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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ACEITAÇÃO / Jeff VanderMeer
ACEITAÇÃO / Jeff VanderMeer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Bem ali, fora do alcance, quase perto de você: o avanço e a espuma da arrebentação, o cheiro penetrante do mar, as silhuetas das gaivotas se entrecruzando nos ares, seus gritos bruscos, incômodos. Um dia normal na Área X, um dia extraordinário — o dia da sua morte —, e ali está você, encostada a um banco de areia, meio protegida por um muro em ruínas. O sol quente contra o seu rosto, e acima a visão vertiginosa da torre do farol, iminente em sua própria sombra. O céu tem uma intensidade de cor que não admite nada além da sua prisão azul. Há areia pegajosa reluzindo no corte profundo que atravessa sua testa; há algo picante em sua boca, escorrendo.
Você se sente entorpecida e quebrada, mas há um alívio estranho misturado ao arrependimento: ter percorrido um caminho tão longo, ter parado ali, sem saber o que iria acontecer, e ainda assim... descansar. Vir para descansar. Finalmente. Todos os planos que você concebeu lá no Comando Sul, o medo angustiante e permanente de cometer um erro ou coisa pior, o preço daquilo... Tudo agora está escorrendo na areia ao seu lado, em pérolas rubras.
A paisagem avulta à sua frente, curvando-se às suas costas para vê-la melhor. Em alguns trechos ela explode em clarões, ou gira em torvelinho, ou se reduz a um ponto luminoso, antes de voltar a entrar em foco. Sua audição também não é mais o que era; enfraqueceu, juntamente com o seu equilíbrio. E então vem essa coisa impossível: uma voz que brota da paisagem e a impressão de que há olhos sobre você, como um truque de mágica. O sussurro é familiar: Sua casa está em ordem? Mas você pensa, seja lá quem está perguntando deve ser um estranho, e você o ignora, não gosta de pensar em quem pode estar batendo à porta.
O latejar no seu ombro, depois daquele encontro na torre, está muito pior. A ferida traiu você, a fez saltar para aquela ardente imensidão azul mesmo contra a sua vontade. Alguma comunicação, algum gatilho embutido entre a ferida e aquela chama que se aproximou dançando por entre os juncos, traiu a sua soberania. Sua casa raras vezes esteve tão desarrumada e, no entanto, você sabe que independentemente do que deixará daí a uns minutos, outra coisa há de ficar. Desaparecer no céu, na terra, na água não é garantia de morte aqui.
Uma sombra une-se à sombra do farol.

 

 

 

 

Em seguida, chega o rangido de botas e, desorientada, você grita “Aniquilação! Aniquilação!” e se debate até perceber que a aparição ajoelhada à sua frente é a única pessoa insensível a essa senha.

— Sou só eu, a bióloga.

Só você. Apenas a bióloga. Apenas sua arma desafiadora, arremessada contra as paredes da Área X.

Ela escora você, põe água na sua boca, limpando um pouco do sangue, e você tosse.

— Onde está a topógrafa? — pergunta você.

— No acampamento — responde ela.

— Não veio com você?

Medo da bióloga, medo daquela chama que crescia, tão parecida com você. “Uma chama queimando em fogo lento, um fogo-fátuo, flutuando entre o pântano e as dunas, flutuando e flutuando, não parecia humano, mas algo livre, flutuando.” Uma sugestão hipnótica cujo propósito era deixá-la calma, mesmo não tendo mais efeito que uma canção de ninar.

A conversa avança, mas você continua oscilando, perdendo o fio da meada. Você diz coisas que não quer, tenta manter o seu personagem — a pessoa que a bióloga conhece, aquela imagem construída para ela. Talvez você não devesse se preocupar mais com papéis, a esta altura, mas ainda resta um a ser desempenhado.

Ela acha que você é a responsável, e você não pode culpá-la.

— Se foi um desastre, você ajudou a produzi-lo. Você apenas cedeu ao pânico e desistiu.

Não é verdade — você nunca desistiu —, mas assente de qualquer maneira, pensando em todos os enganos que foram cometidos.

— Fiz isso. Fiz mesmo. Eu deveria ter percebido mais cedo que você tinha mudado. — Era verdade. — Deveria ter mandado você para a fronteira. — Não era verdade. — Não deveria ter descido com a antropóloga.

Não era verdade, não mesmo. Você não teve escolha, depois que ela escapuliu do acampamento, querendo submeter-se àquela provação.

Você tosse um pouco mais de sangue, mas isso agora não importa mais.

— Qual é a aparência da fronteira?

Uma pergunta infantil. Uma pergunta cuja resposta não significa nada. Não existe nada a não ser a fronteira. Não existe fronteira.

Vou lhe dizer quando chegar lá.

— O que acontece de fato quando a cruzamos?

Não é o que você imagina.

— O que foi que você escondeu de nós sobre a Área X?

Nada que pudesse ter sido útil a vocês. Não mesmo.

O sol é um halo esmaecido e sem centro e a voz da bióloga se aproxima e se afasta; a areia é ao mesmo tempo quente e fria dentro de sua mão direita cerrada. A dor, que segue voltando em explosões, agora ataca a cada dois microssegundos, tão presente que nem parece mais estar ali.

A certa altura, você percebe que perdeu a capacidade de falar. Mas continua ali, abafada e distante, como se fosse uma criança deitada num lençol nessa mesma praia, com os olhos cobertos por um chapéu. Embalada até cair no sono pelo barulho constante das ondas e pela brisa do mar, compensando o calor que ondula sobre você, espalhando-o por todos seus membros. O vento contra seus cabelos é uma sensação tão remota quanto o farfalhar da relva que brota de um rochedo em forma de cabeça.

— Sinto muito, mas tenho que fazer isto — diz a bióloga, quase como se soubesse que você ainda pode ouvi-la. — Não tenho escolha.

Você sente algo agarrando e repuxando sua pele, o corte breve e incisivo, enquanto a bióloga recolhe uma amostra do seu ombro infectado. De uma distância enorme, intransponível, descem mãos examinadoras enquanto a bióloga passeia pelos bolsos do seu casaco. Ela encontra seu diário. Encontra sua arma escondida. Encontra sua carta patética. O que fará com elas? Talvez nada. Talvez apenas jogue a carta no mar, e a pistola junto. Talvez desperdice o resto da vida estudando o seu diário.

Ela continua falando:

— Não sei o que dizer a você. Estou com raiva. Estou com medo. Você nos trouxe para cá e teve a chance de me contar o que sabia, e não o fez. E nunca teria feito. Eu gostaria de desejar que descansasse em paz, mas não acredito que isso aconteça.

E então ela se vai e você sente sua falta, aquele peso de um ser humano ao seu lado, a bênção perversa daquelas palavras, mas não sente a falta dela por muito tempo porque está se dissipando cada vez mais, fundindo-se com a paisagem como um espectro relutante, e pode ouvir uma melodia fraca e delicada à distância, e alguma coisa que já sussurrou ao seu ouvido no passado está sussurrando novamente, e você começa a se dissolver no vento. Uma espécie de olhar alienígena colou-se a você, algo que poderia ser facilmente confundido com os átomos do ar se não fosse uma coisa tão concentrada, tão intencional. Alegre?

Arrebatada por sobre os lagos tranquilos, erguendo-se sobre o pântano, cintilando em reflexos verde-faiscantes contra o mar e a areia da praia no sol de fim de tarde... apenas para girar e aterrissar contra o interior e seus ciprestes, sua água negra. Depois ascende bruscamente de novo rumo ao céu, mirando o sol, uma guinada, um rodopio e logo uma queda livre, girando o corpo para ver de frente a terra que se aproxima veloz, estendida sobre a imagem fugaz dos juncos que ondeiam devagar. Você quase espera avistar Lowry ali, o sobrevivente ferido da longínqua primeira expedição, arrastando-se em busca da segurança da fronteira. Mas em vez disso há apenas a bióloga voltando com dificuldade pelo caminho escuro... e esperando por trás dela, soltando gemidos lamentosos, uma criatura alterada, o psicólogo da expedição anterior à décima segunda. Culpa sua, tanto quanto dos demais; culpa sua, e irrevogável. Imperdoável.

Enquanto você faz uma curva para retornar, o farol aproxima-se veloz. O ar tremula ao passar por ele e depois se recompõe, sempre buscando, sempre experimentando, erguendo-se bem alto apenas para logo descer de novo, e finalmente voando em círculos como um ponto de interrogação, de modo que você pode contemplar sua autoimolação: aquele vulto encolhido no solo, vazando luz. Que figura triste, ali adormecida, dissolvendo-se. Uma chama verde, um sinal de inquietação, uma oportunidade. Você ainda está voando? Ainda está morrendo, está morta? Você não consegue mais distinguir.

Mas o sussurro ainda não lhe deixou em paz.

Você não está lá embaixo.

Está no alto.

E ainda há uma pergunta que não foi respondida.

Uma que ficará se repetindo até que você tenha dado todas as respostas.


PARTE I

LUZ DE ALCANCE


0001: O FAROLEIRO

Fiz a vistoria no mecanismo, limpei as lentes. Consertei o cano do jardim. Pequenos consertos no portão. Organizei no barracão as ferramentas, as pás etc. Visita da BP&C. Preciso requisitar tinta para a marcação externa — o preto está descascado no lado que dá para o mar. Também preciso de pregos e checar a sirene do lado oeste. Avistei: pelicanos, galinhas-d’água, uma espécie de ave canora, um sem-número de melros, maçaricos, uma andorinha-do-mar, uma águia-pescadora, pica-paus, biguás, azulões, cascavéis anãs (junto da cerca — lembrar), um ou dois coelhos, veados galheiros e, ao amanhecer, perto da trilha, vários tatus.

Naquela manhã de inverno, o vento era frio de encontro à gola do casaco de Saul Evans enquanto ele descia penosamente pela trilha que conduzia ao farol. Tinha caído uma tempestade na noite anterior, e lá embaixo, à sua esquerda, o oceano se estendia cinzento e inquieto de encontro ao azul sem brilho do céu, visto através da agitação e do farfalhar da relva alta. Pedaços de madeira flutuante, garrafas, boias brancas desbotadas e o corpo de um tubarão-martelo tinham vindo parar na areia após o fim da tormenta, emaranhados com bolos de algas, mas não tinha havido nenhum dano real nem ali nem no vilarejo.

Aos pés dele espalhavam-se amoras e o cinza espesso dos cardos, que floresceriam roxos na primavera e no verão. À sua direita, as lagoas estavam escuras com os queixumes abafados dos mergulhões e dos patos. Melros pousados faziam pender os ramos finos das árvores e depois revoavam em pânico à passagem dele, aquietando-se de novo em seus bandos tagarelas. O odor salgado e cortante do ar tinha algo de chama: um cheiro de queimado vindo de alguma casa próxima ou de uma fogueira mal apagada.

Saul vivera quatro anos no farol antes de conhecer Charlie, e ainda morava lá, mas na noite anterior ficara no vilarejo, a quase dois quilômetros de distância, no chalé de Charlie. Era uma novidade, algo que não tinha sido acertado em palavras, simplesmente foi puxado de volta para a cama quando começou a se vestir para ir embora. Um gesto de acolhimento que fez aparecer no rosto de Saul um meio sorriso desajeitado.

Charlie mal se mexeu pela manhã, quando Saul levantou, vestiu-se e fez ovos para o café. Ele serviu uma porção generosa, junto com uma fatia de laranja, colocando-a sob uma vasilha, para que permanecesse quente, e deixou um bilhete ao lado da torradeira, com o pão pronto para ser preparado. Ao sair, voltou-se para olhar o homem esparramado na cama, barriga para cima, metade do corpo sob o lençol. Mesmo com quase quarenta anos, Charlie tinha um torso enxuto, musculoso, ombros fortes e as pernas rijas de quem passara a maior parte da vida adulta em barcos, arremessando redes, e a barriga seca de quem nunca foi um beberrão.

Um clique baixinho na porta, e ele saiu assobiando no vento como um idiota assim que se afastou alguns passos — agradecendo a Deus que o fizera, no fim das contas, um homem de sorte, ainda que com atraso e de maneira tão inesperada. Algumas coisas nos vêm tarde, mas antes tarde do que nunca.

Logo a torre do farol se erguia sólida e alta diante dele. Servia como um ponto de referência durante o dia, de modo que os barcos pudessem navegar na maré baixa, mas também era aceso à noite durante metade da semana, de acordo com os horários do tráfego comercial marítimo. Ele conhecia cada degrau daquelas escadas, cada aposento no interior daquelas paredes de pedra e tijolo, cada rachadura, cada pedacinho de massa corrida. No topo, a extraordinária lente de quatro toneladas, ou farol, tinha sua marca inconfundível, e ele conhecia centenas de modos de ajustar sua luz. Uma lente de primeira linha, com mais de um século de existência.

Como pregador religioso, ele pensara que tinha encontrado uma espécie de paz, uma espécie de missão, mas somente após seu autoexílio, depois de desistir de tudo, Saul descobrira de verdade aquilo que vivia procurando. Levou mais de um ano para entender por quê: pregar tinha sido uma forma de projetar-se para fora, de se impor ao mundo, para que o mundo se projetasse de volta sobre ele. Mas cuidar do farol... Isso tinha se tornado um meio de olhar para dentro de si, e parecia menos arrogante. Ali, ele não sabia de nada além das tarefas práticas, aprendidas com seu antecessor: como cuidar das lentes, como operar o ventilador e o painel de acesso às lentes, como cuidar das instalações, como consertar as coisas que quebravam — dezenas de ocupações diárias. Ele se entregava com prazer a cada parte dessa rotina, reconfortado pelo fato de não ter tempo para pensar no passado, e não se incomodava com as vezes em que trabalhava por longas horas, especialmente agora, com a lembrança do abraço de Charlie no seu corpo.

Mas a recordação desapareceu quando ele viu o que o esperava na área de estacionamento coberta de cascalho, dentro da cerca branca recém-pintada que circundava a torre e o terreno em volta. Uma conhecida caminhonete, já bastante desgastada, estava parada ali, e ao lado dela os costumeiros recrutas da Brigada da Paranormalidade e da Ciência. Eles o surpreenderam mais uma vez, invadiram para arruinar o seu bom humor, e já haviam amontoado seu equipamento ao lado do carro — ansiosos para começar, sem dúvida. Saul acenou de longe para eles, sem muito entusiasmo.

Eram uma presença constante agora, fazendo medições e fotos, ditando relatórios em seus enormes gravadores de fita, rodando filmes amadores. Determinados a descobrir... o quê? Ele conhecia a história daquele litoral, conhecia o modo como a distância e o silêncio ampliavam as coisas mais banais. Sabia como, no meio daqueles espaços e do nevoeiro e da linha deserta da praia, os pensamentos podiam se voltar para coisas estranhas e criar uma história a partir do nada.

Saul avançou devagar, porque os considerava cansativos e cada vez mais previsíveis. Viajavam sempre em dupla, de maneira que pudessem ter tanto sua paranormalidade quanto sua ciência, e ele às vezes ficava pensando nas conversas que eles mantinham — como deviam ser cheias de contradições, tais como as discussões que giravam na cabeça dele nos anos finais de sacerdócio. Ultimamente vinham sempre os mesmos: um homem e uma mulher, ambos na casa dos vinte anos, embora às vezes mais parecessem adolescentes, um garoto e uma garota que fugiram de casa levando consigo um estojo de química comprado na papelaria e uma tábua Ouija de invocar espíritos.

Henry e Suzanne. Embora Saul tivesse presumido que a mulher era a supersticiosa, acabou percebendo que ela era a cientista — cientista do quê? — e o homem era o pesquisador dos mistérios. Henry falava com um leve sotaque que Saul não conseguiu identificar, e isso punha um enfático selo de autoridade em tudo o que ele dizia. Era rechonchudo, impecavelmente barbeado — ao contrário do barbudo Saul —, tinha olheiras escuras sob os olhos azuis, cabelo preto cortado em cuia com franjas que lhe ocultavam a testa longa e muito pálida. Henry não parecia dar muita importância às coisas terrenas, como o clima do inverno, porque usava sempre alguma variação de camisa de seda azul com botões e calças sociais. As botas negras e reluzentes com zíper lateral não eram feitas para caminhadas, mas para a cidade.

Suzanne era mais parecida com o que se costuma chamar de hippie, mas, na época em que Saul era criança, teria sido considerada comunista ou boêmia. Tinha cabelos louros, usava uma bata branca bordada e uma saia de camurça marrom abaixo dos joelhos cuja barra se encontrava com botas castanhas de cano longo que completavam o uniforme. Algumas semelhantes a ela haviam vagado por ali durante seu sacerdócio — perdidas, sonhadoras, à espera de que algo as acendesse. A fragilidade de sua silhueta a fazia parecer mais, e não menos, a irmã gêmea de Henry.

Os dois nunca haviam dito os sobrenomes, embora um ou outro tivesse falado algo que soara como “Soroesta”, o que não fazia muito sentido. Saul não se importava em conhecê-los melhor, para ser honesto, e tinha se acostumado a chamá-los pelas costas de “a Brigada Leve”, como em “uma refeição leve”.

Quando finalmente se deteve diante dos dois, Saul os cumprimentou com um aceno de cabeça e um olá áspero, e como de hábito os dois passaram a agir como se ele fosse o balconista de um mercadinho do vilarejo, e o farol, um serviço de atendimento ao público. Se os gêmeos não possuíssem uma autorização concedida pelo departamento de parques, teria batido a porta na cara deles.

— Saul, você não parece muito alegre, mesmo num dia lindo como este — disse Henry.

— Saul, o dia está lindo — completou Suzanne.

Ele conseguiu assentir e dar um sorriso azedo, o que provocou acessos de riso nos dois. Ele os ignorou.

Mas os dois continuaram a falar enquanto Saul destrancava a porta. Queriam sempre conversar, embora o faroleiro tivesse preferido que os dois simplesmente fizessem o seu trabalho. Desta vez, era a respeito de algo chamado “duplicação necromântica”, que, pelo que pôde entender, envolvia a construção de um quarto escuro forrado de espelhos. Era um termo esquisito e ele ignorou as explicações dos dois; não via nenhuma relação daquilo com sua vida, ou com o farol.

As pessoas dali não eram ignorantes, mas eram supersticiosas, e, visto que o mar era capaz de ceifar vidas, quem poderia condená-las. Que mal podia fazer alguém usar um amuleto no colar, ou dizer algumas palavras em oração para pedir pela segurança de um ente querido? Intrusos tentando compreender aquelas coisas, tentando “analisar e pesquisar”, como falara Suzanne, afastavam as pessoas porque acabavam banalizando as tragédias vindouras. Mas você se acostumava à Brigada Leve depois de algum tempo, assim como àqueles ratos do céu, as gaivotas. Ele quase aprendera a não reclamar da presença deles nos dias mais sombrios. E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho?

— Henry acha que o topo do farol pode servir perfeitamente como um quarto — disse Suzanne, como se isso fosse uma grande e espantosa descoberta.

Saul achava que o entusiasmo dela era sério e autêntico, mas mesmo assim o considerava frívolo e amadorístico. Às vezes eles o faziam lembrar dos pregadores ambulantes que armam tendas na periferia das cidades pequenas e contam com pouco mais do que o fervor de suas convicções. Em alguns momentos ele até pensava que eram charlatães. Na primeira vez que conversaram, Saul achou que Henry tinha dito que estavam estudando a refração da luz numa prisão.

— Já ouviu falar dessas teorias? — perguntou Suzanne quando começaram a subir as escadas.

Ela levava apenas uma câmera leve pendurada ao pescoço e uma maleta na mão. Henry tentava não parecer esbaforido e não disse nada. Era ele quem carregava o equipamento pesado, parte numa caixa: microfones, fones de ouvido, sensores de ultravioleta, filme de oito milímetros e um par de máquinas cheias de mostradores, botões e outros indicadores.

— Não — respondeu Saul, principalmente para ser do contra, porque Suzanne muitas vezes o tratava como alguém sem cultura, confundindo seu jeito brusco com ignorância, suas roupas informais como pertencendo a um simplório.

Além do mais, quanto menos falasse, mais descontraídos eles iam ficar em sua companhia. Era o mesmo que ocorria com potenciais doadores, quando Saul pregava. E a verdade é que não sabia do que ela estava falando, assim como não sabia o que Henry queria dizer quando contou que estavam estudando o “teiuá” ou o “terror” da região, mesmo quando ele soletrou a palavra como t-e-r-r-o-i-r.

— Partículas prebióticas — conseguiu explicar Henry num tom jovial, mesmo que ofegante. — Energia fantasma.

Suzanne veio em auxílio dele com uma longa preleção sobre espelhos e coisas que podem nos espreitar de dentro deles e como você pode olhar obliquamente para algo e saber mais sobre sua verdadeira natureza do que o encarando, e enquanto isso Saul imaginava se ela e Henry seriam amantes. O súbito entusiasmo dela pelo lado paranormal da Brigada podia ter essa origem mais prosaica. Isso também explicaria a risada histérica dos dois, lá embaixo. Uma ideia pouco generosa, mas ele queria aproveitar o calor da noite passada com Charlie.

— Encontro vocês lá em cima — disse por fim, farto, e subiu a escada às pressas, de dois em dois degraus, enquanto Henry e Suzanne avançavam devagar e logo ficaram fora de vista.

Queria ficar o maior tempo possível sozinho no topo, sem eles. Deveria se aposentar obrigatoriamente aos cinquenta anos, mas pretendia estar com a mesma forma física que tinha no momento. Apesar do rangido nas juntas.

No topo, com a respiração quase normal, Saul ficou satisfeito ao ver a sala da lanterna do jeito que a deixara, com a lente coberta para evitar arranhões e a descoloração devido ao sol. Tudo que ele precisava fazer era abrir as cortinas em torno do parapeito para deixar a luz entrar. A concessão que fazia a Henry, somente algumas horas por dia.

Uma vez, do seu posto de observação, avistara alguma coisa enorme produzindo ondulações por baixo da água, lá bem além dos bancos de areia, uma espécie de sombra, de um cinza tão escuro e profundo que formava uma silhueta lisa, espessa, em contraste com o azul. Mesmo usando o binóculo, foi incapaz de dizer que criatura era aquela, ou no que ela poderia se transformar se ele a observasse por tempo suficiente. Nunca soube se ela acabara se desmanchando em mil formas pequenas, revelando ser um cardume de peixes, ou se a cor da água e o brilho da luz mudaram e fizeram com que ela desaparecesse, mostrando ser uma ilusão. Naquela tensão entre o que ele era capaz e o que era incapaz de saber sobre o mundo à sua volta, sentiu-se à vontade de uma maneira que não teria se sentido cinco anos antes. Agora não precisava de mistérios maiores do que esses momentos em que o mundo parecia tão miraculoso quanto nos seus antigos sermões. E era uma boa história para contar lá embaixo, no bar do vilarejo, o tipo de história que eles esperavam ouvir de um faroleiro, se é que alguém esperava alguma coisa dele.

— É por isso que estamos tão interessados, toda essa história de como a lente veio parar aqui e da relação que isso tem com a história completa dos dois faróis — disse Suzanne às costas dele.

Ela vinha mantendo uma conversação com Saul na ausência dele, aparentemente, e parecia acreditar que ele tinha lhe respondido. Por trás dela, Henry parecia a ponto de desabar, embora aquela subida tivesse se tornado uma rotina.

Quando depositou o equipamento no chão e recuperou o fôlego, Henry disse:

— Você tem uma vista maravilhosa daqui de cima.

Ele sempre falava aquilo, e àquela altura Saul tinha deixado de dar uma resposta educada, ou qualquer resposta.

— Quanto tempo vocês vão ficar desta vez? — perguntou Saul.

Aquela visita, em especial, já vinha durando duas semanas, e ele tinha adiado a pergunta por temor da resposta.

Os olhos de Henry, sombreados por olheiras, se estreitaram.

— Nossa autorização, desta vez, nos permite acesso até o fim do ano.

Algum acidente antigo ou problema de nascença fazia com que sua cabeça ficasse meio inclinada para a direita, principalmente quando ele falava, a orelha direita quase tocando a curva superior do ombro. Aquilo lhe dava um aspecto mecânico.

— Só para lembrar: vocês podem tocar no farol, mas em hipótese alguma podem interferir no funcionamento dele.

Saul vinha repetindo esse aviso todos os dias desde que eles reapareceram. No passado, eles tinham chegado ali com ideias estranhas sobre o que podiam e o que não podiam fazer.

— Relaxe, Saul — disse Suzanne, e o faroleiro rangeu os dentes ao ser tratado pelo nome de batismo.

No início eles o chamavam de Sr. Evans, o que preferia.

Ele sentiu mais do que o habitual prazer assumidamente juvenil ao posicionar os dois sobre o tapete, por baixo do qual havia um alçapão e uma plataforma de observação que anos atrás servira para guardar o equipamento para manutenção do farol, antes do advento da automação. Manter aquele espaço escondido da dupla equivalia a manter parte de sua mente a salvo dos experimentos deles. Ademais, se os dois fossem tão observadores quanto imaginavam, teriam percebido o que significava o súbito estreitamento das escadas ao se aproximar do topo.

Quando se certificou de que eles estavam com tudo instalado e não iriam interferir em nada, cumprimentou-os e saiu. Na metade da descida, julgou ter ouvido o barulho de algo se quebrando lá em cima. O ruído não se repetiu. Ele hesitou, depois deu de ombros e continuou a descer a escada em espiral.

* * *

Embaixo, Saul ocupou-se fazendo pequenos reparos e arrumando o barracão de ferramentas, que estava muito bagunçado. Mais de um adepto de caminhadas tinha se surpreendido ao ver um faroleiro fazendo a manutenção do seu território, como se ele fosse um caranguejo eremita fora da casca, mas a verdade é que havia muito trabalho, devido ao modo como as tempestades e a maresia eram capazes de estragar e corroer tudo ali se ele não estivesse vigilante. No verão, era mais difícil, por causa do calor e das picadas dos insetos.

A garota, Gloria, aproximou-se quando ele estava examinando um barco atrás do barracão, que ficava junto a uma crista elevada de terra e pedra, paralela à praia, e uma fileira de rochas que se prolongava até o mar. Quando a maré subia, a água inundava aquele trecho para revigorar as poças de maré cheias de anêmonas, estrelas-do-mar, siris-azuis, caramujos e pepinos-do-mar.

A menina tinha uma presença marcante, e era alta para sua idade, nove anos — “Nove e meio!” —, e embora às vezes vacilasse ao escalar as rochas, raramente se percebia um vacilo em sua mente jovem, o que Saul admirava. Sua mente de meia-idade de vez em quando se perdia.

E lá estava ela de novo, uma presença firme sobre as rochas, em seu traje de inverno — jeans, casaco com capuz e um suéter por baixo, botas grossas para pés largos —, enquanto ele finalizava o trabalho no barco e pegava o carrinho de mão para trazer uma carga de compostagem. Ela estava falando com ele. Estava sempre falando com ele, desde que começara a ir ali um ano antes.

— Meus antepassados viviam aqui — afirmou ela. — Mamãe diz que viviam exatamente aqui, onde fica o farol.

Gloria tinha uma voz profunda e tranquila para alguém tão jovem, o que às vezes o deixava admirado.

— Os meus também, menina — respondeu Saul, erguendo o carrinho e derrubando a carga na pilha de compostagem.

Embora, na verdade, o outro lado de sua família tivesse sido uma estranha combinação de contrabandistas de rum e fanáticos religiosos que, como ele gostava de dizer no bar, “tinham vindo para aquela terra fugindo da liberdade religiosa”.

Depois de refletir por um momento sobre a afirmação de Saul, Gloria disse:

— Mas não antes dos meus.

— Faz diferença?

Ele percebeu que tinha esquecido de parte da calafetagem do barco.

A garota franziu a testa; ele podia sentir essa expressão mesmo de costas, tão poderosa era ela.

— Não sei.

Ele a olhou, viu que ela havia parado de saltar de uma rocha para a outra e parecia ter decidido que ficar se equilibrando na borda estreita de uma delas fazia mais sentido. Aquela visão fez o estômago dele se contrair, mas Saul sabia que Gloria nunca escorregava, mesmo que muitas vezes isso parecesse prestes a acontecer, e toda vez que ele tocou no assunto ela fingiu não ouvir.

— Acho que sim — acrescentou a menina, retomando a conversa. — Acho que faz diferença.

— Eu sou um oitavo índio — disse Saul. — Eu também estava aqui. Parte de mim.

Se é que fazia alguma diferença. Um parente distante tinha lhe falado a respeito do emprego de faroleiro, é verdade, mas ninguém mais havia se interessado.

— E daí? — perguntou ela, saltando para outra rocha estreita, equilibrando-se no topo, os braços oscilando.

Saul deu alguns passos na sua direção, receoso.

A garota o incomodava na maior parte do tempo, mas ele ainda não tinha descoberto um jeito de se livrar dela. O pai da menina morava em algum lugar no interior do continente; a mãe, que tinha dois empregos, num bangalô ao norte da orla. A mulher precisava dirigir até a distante Bleakersville pelo menos uma vez por semana, e devia acreditar que a garota era capaz de se cuidar sozinha de vez em quando. Sobretudo se o faroleiro estivesse por perto para vigiá-la. E o farol exercia sobre Gloria uma espécie de fascinação, algo que ele ainda não havia conseguido quebrar com sua monótona rotina de manutenção e as idas e vidas do carrinho de mão com material de compostagem.

No inverno, ela também ficava muito tempo sozinha, caminhando pela praia enlameada durante a maré cheia, cutucando com uma vara a toca de algum siri ou perseguindo uma corça semidomesticada ou examinando fezes de coiote ou de urso para ver se guardavam algum segredo. O que aparecesse.

— Quem é esse pessoal esquisito que apareceu aqui? — perguntou ela.

Isso quase o fez dar uma gargalhada. Havia muita gente esquisita escondida ali, naquele litoral esquecido, inclusive ele. Alguns se escondiam do governo, outros de si mesmos, outros de esposas. Alguns poucos acreditavam que estavam criando a própria nação soberana. Uns dois provavelmente nem estavam legalmente no país. Ali, as pessoas faziam perguntas, mas não esperavam uma resposta honesta. Bastava que fosse criativa.

— De quem exatamente você está falando?

— Aqueles dois com os cachimbos.

Saul precisou de um momento, durante o qual imaginou Henry e Suzanne passeando pela praia, cachimbos nas bocas, fumando furiosamente.

— Cachimbos? Ah, não são cachimbos. São outra coisa.

Estavam mais para grandes espirais repelentes de mosquitos. Ele tinha permitido que a Brigada Leve os deixasse na saleta traseira do andar térreo durante alguns meses, no verão passado. Quando foi mesmo que a garota viu aquilo?

— Quem são eles? — insistiu ela, enquanto se equilibrava, agora sobre duas rochas, o que pelo menos permitia a Saul respirar tranquilo.

— São da ilha ao norte da costa.

O que era verdade — a base deles ainda era situada na Ilha do Fracasso, que abrigava dezenas deles, sua habitual toca. “Fazendo testes”, como diziam os boatos no vilarejo, onde o pessoal apreciava uma boa história. Pesquisadores privados, com autorização do governo para fazer medições. Mas os rumores insinuavam que a BP&C tinha uma motivação mais sinistra. Seria a meticulosidade e a precisão de alguns deles, ou a desorganização de outros que tinha dado origem àquele boato? Ou eram apenas dois ou três aposentados bêbados e entediados que emergiam dos seus trailers para inventar histórias?

Mas a verdade é que ele não sabia o que a dupla estava fazendo lá na ilha, ou o que pretendiam com o equipamento guardado no térreo, ou mesmo o que Henry e Suzanne estariam aprontando no topo do farol naquele exato momento.

— Eles não gostam de mim— disse ela. — E eu não gosto deles.

Isso fez Saul soltar uma risada, principalmente pela maneira insolente, de braços cruzados, com que ela falou, como se tivesse resolvido que eles seriam seus inimigos eternos.

— Está rindo de mim?

— Não — respondeu ele. — Não, não estou. Você é uma pessoa curiosa. Você faz perguntas. É por isso que eles não gostam de você. Só isso.

Pessoas que fazem perguntas não necessariamente gostam de responder.

— Qual é o problema de fazer perguntas?

— Nenhum.

Todos. Depois que uma pergunta é feita, o que parecia certo se torna incerto. Perguntas abrem caminho para a dúvida. Seu pai lhe dissera isso: “Não deixe que lhe façam perguntas. Você já está lhes dando todas as respostas, mesmo que eles não saibam.”

— Mas você também é curioso — replicou ela.

— Por que diz isso?

— Você protege a luz. E a luz vê tudo.

* * *

A luz podia ver tudo, mas ele tinha esquecido algumas tarefas, pequenas coisas que iriam mantê-lo fora da torre por mais tempo do que gostaria. Levou o carrinho de mão pelo cascalho até perto da caminhonete. Sentia uma vaga ansiedade, pensando se não devia verificar Henry e Suzanne. E se os dois tivessem encontrado o alçapão e feito alguma coisa estúpida, como cair lá dentro e quebrar aqueles pescocinhos estranhos? Erguendo o olhar, viu Henry debruçado no parapeito, olhando para baixo, e isso o fez sentir-se bobo. Como se estivesse paranoico. Henry acenou, ou teria sido algum outro gesto? Tonto, Saul afastou o olhar e deu meia-volta, desorientado pelo brilho do sol.

Então viu algo cintilando por entre a relva, semioculto por uma planta numa moita perto de onde ele encontrara um esquilo morto, dias antes. Vidro? Uma chave? As folhas verde-escuras formavam um círculo irregular, ocultando o que quer que houvesse na base. Ele se ajoelhou, protegeu os olhos com a mão, mas a coisa cintilante ainda estava escondida pela folhagem, ou será que fazia parte dela? Fosse o que fosse, era algo de delicadeza além do comum e, no entanto, o fez lembrar-se da lente de quatro toneladas que havia lá no alto.

O sol era um halo sussurrante às suas costas. O calor tinha aumentado, mas havia uma brisa que erguia as folhas das palmeiras num remexer constante. A garota estava um pouco atrás dele, cantarolando uma musiquinha boba. Tinha voltado das rochas antes do que ele esperava.

Nada existia naquele instante além da planta e daquele brilho que ele não conseguia identificar.

Saul ainda estava de luvas, então se ajoelhou ao lado da planta e estendeu a mão na direção da coisa brilhante, afastando as folhas. O que era aquilo, uma minúscula espiral de luz se mexendo? Lembrava o que se vê num caleidoscópio, só que era de um branco intenso. Mas, fosse o que fosse, girava e faiscava e fugia ao seu toque, e ele começou a sentir-se tonto.

Alarmado, começou a recuar.

Mas era tarde. Sentiu um fragmento penetrar seu polegar. Não houve dor, apenas uma pressão e depois insensibilidade, mas ele levantou-se de um pulo, assustado, soltando uma exclamação e balançando a mão com força. Arrancou freneticamente a luva, examinou o polegar. Percebeu que Gloria o observava, sem entender o que havia com ele.

Agora não havia mais nada cintilando por entre as folhas. Nenhuma luz na base da planta. Nenhuma dor no polegar.

Devagar, Saul relaxou. O polegar não estava latejando. Não havia nenhum ponto de entrada, nenhum corte. Ele apanhou a luva no chão, examinou, não encontrou nenhum rasgo.

— O que foi? — perguntou Gloria. — Você foi picado?

— Não sei — disse ele.

Ele sentiu a presença de outro olhar e virou-se. Ali estava Henry. Como tinha descido a escada tão depressa? Será que havia se passado mais tempo do que ele imaginava?

— Alguma coisa errada, Saul? — perguntou Henry, mas Saul não conseguiu fazer uma conexão entre a preocupação expressa naquelas palavras e qualquer preocupação perceptível em sua voz. Porque não havia nenhuma. Apenas uma ansiedade bem peculiar.

— Não foi nada — respondeu ele, inquieto, mas sem saber por que estava assim. — Acho que arranhei meu dedo.

— Através da luva? Deve ter sido um espinho e tanto.

Henry estava examinando a moita como alguém que tivesse perdido seu relógio favorito ou uma carteira cheia de dinheiro.

— Estou bem, Henry. Não se preocupe comigo. — Estava zangado por parecer um bobo a propósito de nada, mas queria que Henry acreditasse nele. — Talvez tenha sido um choque elétrico.

— Talvez...

O brilho nos olhos do homem era a luz fria de um farol vindo até Saul de muito longe, como se Henry estivesse recebendo uma mensagem completamente diferente.

— Não há nada errado — repetiu Saul.

Não havia nada errado.

Havia?


0002: AVE FANTASMA

No seu terceiro dia na Área X, tendo Controle como sua taciturna companhia, a Ave Fantasma encontrou um esqueleto entre os juncos. Era inverno, e isso se tornou mais aparente à medida que a trilha se afastava do mar, que tinha sido o ponto de entrada deles. O vento era frio e soprava contra seus rostos, seus casacos; o céu era de um cinza-azul cauteloso que parecia carregar algum segredo essencial. Os jacarés, as lontras e os ratos almiscarados tinham recuado para a lama, fantasmas em algum lugar sob as pancadas e o fervilhar das ondas.

Lá no alto, onde o céu adquiria um azul profundo, ela percebeu o brilho de um reflexo e reconheceu a formação em V de cegonhas, o sol cintilando em tons de prata nas suas penas brancas e cinzentas, enquanto elas cortavam o céu a grande distância e com uma serena autoridade, indo... aonde? Não sabia dizer se estavam experimentando os limites de sua prisão, capazes de reconhecer a barreira invisível antes de cruzá-la, ou se estavam, como todas as outras criaturas aprisionadas ali, apenas operando graças a um instinto mais ou menos lembrado?

A Ave Fantasma parou de caminhar, e Controle parou ao lado dela. Era um homem com maçãs do rosto proeminentes, olhos grandes, um nariz discreto, pele morena. Vestia jeans e uma camisa vermelha de flanela, com um casaco preto e um tipo de botas que não teriam sido a primeira escolha dela para andar na selva. O diretor do Comando Sul. O homem que tinha sido seu interrogador. Tinha constituição de atleta, talvez, mas desde que estavam na Área X, vivia encurvado, murmurando, enquanto examinava sem parar um maço de páginas manchadas de água e enrugadas que conseguira salvar, parte de algum inútil relatório do Comando Sul. Restos flutuantes do antigo mundo.

Controle mal notou a interrupção.

— O que é aquilo? — perguntou ele.

— Aves.

— Aves?

Como se aquela palavra fosse estrangeira para ele, ou como se não tivesse sentido. Ou importância. Mas quem sabia o que era importante ali?

— Sim. Aves.

Especificar mais do que isso seria inútil, em se tratando dele.

Ela pegou o binóculo, acompanhou o modo como as cegonhas viravam numa direção, depois noutra, mas nunca abandonavam a formação: uma espécie de vórtice vivo deslizando pelo céu. O padrão formado por elas lembrava o cardume circular de peixes do qual eles emergiram, em choque, na sua entrada surpreendente na Área X do fundo do oceano.

Se olhassem para a Ave Fantasma lá do alto, as cegonhas iriam reconhecer o que viam? Estariam enviando relatórios para alguém ou para alguma coisa? Por duas noites seguidas ela pôde pressentir animais se agrupando a certa distância do acampamento onde acenderam uma fogueira, como vagos e remotos sensores da Área X. Controle queria pressa, como se ter um ponto de chegada significasse alguma coisa, ao passo que ela queria mais dados.

Já tinha havido algum mal-entendido a respeito da relação entre os dois, depois que chegaram à praia — especificamente, sobre quem estava no comando —, e em seguida ele havia reassumido seu nome anterior, pedindo-lhe que voltasse a chamá-lo de Controle em vez de John, e ela o respeitara. Alguns animais possuíam carapaças que eram vitais para sua sobrevivência. Alguns não podiam viver muito tempo fora delas.

A desorientação de Controle fora agravada por uma febre e uma sensação, oriunda dos depoimentos dela da existência de um “brilho”, que ele também estava assimilando e em breve poderia não ser mais o que era. E com isso, talvez, Ave Fantasma tivesse entendido por que ele enterrava o rosto no que chamava de “meus textos sobre terroir”, por que mentia sobre querer encontrar soluções quando para ela era tão claro que Controle precisava apenas de algo familiar a que pudesse se apegar.

A certa altura do primeiro dia, ela havia lhe perguntado:

— O que seria eu para você, lá no mundo? Você, num dos seus antigos empregos, eu no meu?

Controle não tinha resposta, mas ela achava que já sabia: seria um suspeito, um inimigo do que é certo e verdadeiro. Então, o que eram eles um para o outro ali? Em breve ela precisaria forçar uma conversa de verdade, provocar um conflito.

Mas por enquanto estava mais interessada em algo distante entre juncos do lado esquerdo. Um vislumbre de algo alaranjado? Uma bandeira?

Talvez tivesse se retesado, ou algo em seu comportamento a entregara, porque Controle perguntou:

— O que houve? Alguma coisa errada?

— Provavelmente nada — disse ela.

Depois de um instante, a Ave Fantasma avistou o alaranjado de novo — um trapo, um pedaço velho de pano amarrado a um junco, pendendo para um lado e para o outro ao sabor do vento. A cerca de cem metros no meio do oceano de juncos, aquele pântano de lama traiçoeira. Parecia haver uma sombra ou depressão logo depois, onde os juncos davam lugar a alguma coisa que não podia ser vista de onde eles estavam.

Ela entregou-lhe o binóculo.

— Está vendo?

— Sim. É uma... uma marcação da topógrafa — disse ele, pouco impressionado.

— Porque é bem possível — começou ela, e logo se arrependeu.

— Ok. “É possível” que seja uma marcação da topógrafa. — Controle devolveu o binóculo. — Devemos prosseguir na trilha, ir até a ilha.

Pelo menos dessa vez a palavra ilha estava sendo dita com sinceridade, proporcional à sua aversão à ideia de que fossem investigar o trapo.

— Você pode ficar aqui — sugeriu ela, sabendo que Controle não o faria.

Sabendo que ela preferiria que ele ficasse para trás, para que pudesse permanecer sozinha na Área X por algum tempo.

Exceto que: estaria alguém realmente sozinho ali?


Por muito tempo, depois que despertou no terreno baldio e foi levada para o Comando Sul para ser investigada, a Ave Fantasma pensou que estava morta, que estava no purgatório, mesmo não acreditando na vida depois da morte. Essa sensação não se atenuou mesmo quando entendeu que tinha voltado ao mundo real através da fronteira por meios desconhecidos... que ela nem sequer era a bióloga original da décima segunda expedição, mas uma cópia.

Tinha confessado isso a Controle durante as sessões de interrogatório.

— Era um lugar calmo e tão vazio... Fiquei esperando ali, com medo de me afastar, com medo de que houvesse alguma razão para que eu estivesse lá.

Mas isso não abrangia todos os seus pensamentos, toda a sua análise. Não havia apenas a questão de saber se ela estava viva, mas de quem era, uma questão tornada evasiva pelo seu confinamento no Comando Sul. Ali, passara a examinar aquela sensação de que suas lembranças não eram de fato suas, de que eram de segunda mão, e não podia saber se isso era por causa de algum experimento feito no Comando Sul ou se era produzido pela Área X. Mesmo durante a sua complexa fuga rumo à Central, havia uma noção de projeção, de que aquilo estava acontecendo a outra pessoa, de que ela era apenas uma solução provisória, e que talvez esse distanciamento a tivesse ajudado a evitar a captura, tivesse adicionado uma camada de calma absoluta às suas ações. Quando chegou aos confins de Rock Bay, um lugar tão familiar à bióloga que estivera ali antes, teve algum tempo de paz, deixou que a paisagem a absorvesse de uma maneira diferente, esfarelando-a, de modo que ela pudesse se reconstruir outra vez.

Somente quando os dois irromperam na Área X, a Ave Fantasma conseguiu de fato dominar sua inquietação, sua falta de foco. Teve um segundo de pânico quando a água que a cercava, por todos os lados, evocou o seu próprio afogamento. Mas então alguma coisa se ligou, ou retornou, e ela, insurgindo-se contra a própria morte, exultou com a sensação da presença do mar, agradeceu a chance de lutar e abrir caminho até a superfície, explodindo através de uma histeria alegre de biomassa, como uma espécie de prova de que ela não era a bióloga, de que era uma nova coisa que podia, por querer sobreviver, jogar para longe seu medo de se afogar, como se pertencesse a outra pessoa.

Depois disso, mesmo a tarefa de ressuscitar Controle na praia serviu como uma prova inegável de sua própria soberania. O mesmo se deu com sua insistência de que deviam seguir para a ilha, não para o farol. “Para onde a bióloga teria ido, é para lá que eu vou.” A verdade, a correção daquilo lhe deu esperança, a despeito da sensação de que tudo que recordava tinha sido observado através de uma janela aberta para a vida de outra pessoa. Algo que não fora experimentado de fato. Ou que não fora experimentado ainda. “Você quer uma vida vivida intensamente porque não tem uma”, Controle lhe dissera, mas essa era uma maneira rude de colocar as coisas.

Não houve muito a ser experimentado desde então. Nada monstruoso ou fora do comum surgira no horizonte, depois de quase três dias inteiros de caminhada. Nada sobrenatural, exceto pelo aspecto hiper-realista da paisagem, os processos que atuavam por baixo da superfície. Ao cair da noite, às vezes, uma imagem da estrela-do-mar da bióloga lhe vinha à mente, brilhando de leve, como uma bússola que a arrastava, e ela percebia novamente que Controle não podia sentir o mesmo. Ele não podia se orientar por entre os perigos, reconhecer as oportunidades. O brilho a tinha abandonado, mas alguma outra coisa surgira para substituí-lo.

— Contrailuminação — disse ela, quando ele confessou estar confuso porque a Área X lhe parecia tão normal. — Você pode conhecer uma coisa e não conhecer essa coisa. As marcas de um mergulhão, vistas de cima, são bastante óbvias. Você não pode deixar de reconhecer um mergulhão, se o avistar do alto. Visto por baixo, no entanto, quando está planando sobre a água, ele é praticamente invisível.

— Mergulhão?

— Uma ave. — Outra ave.

— Tudo isso é um disfarce? — perguntou ele com uma espécie de incredulidade, como se a realidade já fosse estranha o suficiente.

A Ave Fantasma abrandou um pouco, porque não era culpa dele:

— Você nunca andou por um ecossistema que não estivesse comprometido ou disfuncional, não é verdade? Pode até pensar que sim, mas não, não andou. De modo que, em qualquer caso, você pode confundir o que é certo com o que é errado.

Aquilo podia não ser verdade, mas ela queria se manter apegada à ideia de autoridade, não queria entrar em uma nova discussão sobre o lugar aonde estavam indo. Sua insistência em ir na direção da ilha estava protegendo não apenas sua própria vida, mas a dele também, acreditava. Não tinha interesse em últimas chances, em últimas investidas desesperadas contra as armas do inimigo, e algo no modo de ser de Controle a levava a crer que ele estivesse se preparando para esse tipo de solução ao passo que ela ainda não tinha se comprometido com nada além da vontade de saber mais — a respeito de si mesma, e da Área X.


Era impossível escapar à luz daquele lugar, tão brilhante e, no entanto, distante. Ela produzia uma claridade rara nos juncos e na lama e na água que refletia e acompanhava a caminhada dos dois ao longo dos canais. Era a luz que a fazia sentir-se como se deslizasse, porque a levava a perder de vista os próprios passos. Era a luz que reabastecia a calma dentro dela. A luz explorava e questionava tudo, de uma maneira que Controle talvez não fosse capaz de entender, e depois recuava, permitindo que aquilo que fora tocado continuasse a existir por si só.

Talvez também fosse a luz o que atravessava seu caminho, porque o avanço deles era cheio de recuos, de vacilos, enquanto usavam uma vara para examinar o chão à frente à procura de ameaças, os feixes espessos de juncos formando às vezes uma barreira impenetrável. A certa altura, um carão, pintalgado de marrom e quase invisível junto aos juncos, ergueu-se tão perto deles e tão silenciosamente que ela quase se assustou ainda mais do que Controle.

Acabaram chegando junto do trapo alaranjado atado à ponta do junco e viram além dele algo como uma catedral amarelada, semiafundada na lama.

— Que diabo é isso? — perguntou Controle.

— Está morto — disse ela. — Não pode nos fazer mal.

Controle continuava a reagir com exagero diante do que ela considerava estímulos insuficientes. Assustadiço, ou quem sabe traumatizado por alguma outra experiência totalmente diversa.

Mas a Ave Fantasma sabia muito bem o que era aquilo. Afundada no meio daqueles despojos via-se a medonha caveira e a máscara ressecada e descolorida de uma cara que os fitava sem olhos, debruada de lodo e de líquens.

— A criatura que gemia — explicou ela. — A criatura que sempre gemia ao anoitecer.

E que tinha perseguido a bióloga através dos juncos.

A carne tinha se desprendido, escorrido ao longo dos ossos e se misturado com o solo. O que restava era um esqueleto que parecia uma estranha mistura entre um gigantesco porco e um ser humano, com um conjunto de costelas menores pendendo das maiores como um macabro candelabro interno, e tíbias que terminavam em extremidades nodosas de cartilagem mordiscada por pássaros, coiotes e ratos.

— Está aí há muito tempo — disse Controle.

— Sim, está.

Tempo demais. Um arrepio de alarme a fez examinar o horizonte em busca de algum intruso, como se aquele esqueleto fosse uma armadilha. Estava vivo dezoito meses antes, e mesmo assim exibia agora um estado de decomposição muito avançado, com o que restava da cara sendo a única coisa que permitia identificá-lo. Mesmo que a criatura, a transformação do psicólogo que fazia parte do que Controle chamava de “a última décima primeira expedição”, tivesse morrido imediatamente após a bióloga tê-la encontrado viva... a velocidade de decomposição não era natural.

Controle não tinha percebido, no entanto, de modo que ela decidiu não compartilhar seus pensamentos. Ele apenas caminhou em torno do esqueleto, examinando-o.

— Quer dizer que isto foi uma pessoa, em algum momento — disse ele, e repetiu a frase quando ela não respondeu.

— É possível. Pode ter sido também um “duplo” que não deu certo.

A Ave Fantasma não se considerava um duplo que não dera certo, como aquela criatura. Tinha vontade, tinha livre-arbítrio.

Talvez uma cópia pudesse ser superior ao original, pudesse criar uma nova realidade evitando velhos equívocos.


— Tenho seu passado na minha cabeça — comentara-lhe Controle, assim que os dois se afastaram da praia, com a intenção de trocar informações. — Posso repassar tudo para você.

Uma ladainha antiga agora, algo indigno tanto dele quanto dela.

O silêncio da Ave Fantasma forçou-o a começar, e embora ela achasse que ele podia ainda estar guardando alguma informação, suas palavras, injetadas de urgência e de uma espécie de paixão, tinham um tom de sinceridade. Às vezes, também, um desamparo se infiltrava, algo cuja natureza ela entendia muito bem e escolhera ignorar. Algo que já tinha percebido com facilidade desde o tempo em que ele a visitava nos alojamentos no Comando Sul.

Depois que ele lhe disse que a psicóloga da décima segunda expedição tinha sido a ex-diretora do Comando Sul e que considerava a bióloga o seu projeto especial, sua principal esperança, a Ave Fantasma começou a rir. Sentiu um afeto súbito pela psicóloga e lembrou-se de suas desavenças durante as entrevistas de qualificação. A desonesta psicóloga/diretora, tentando combater uma coisa tão vasta e profunda como a Área X com algo tão estreito e tão obtuso quanto a bióloga. Quanto ela. Uma repentina garriça, num voo rápido através das sarças até se perder de vista, pareceu concordar com essa opinião.

Quando chegou sua vez de falar, a Ave Fantasma admitiu que àquela altura lembrava-se de tudo até o ponto em que tinha sido escaneada ou atomizada ou replicada pelo Rastejador que vivia dentro do túnel/torre — o momento de sua criação, que podia ter sido também o momento da morte da bióloga. Mas quando descreveu o Rastejador e como vira o rosto do faroleiro ardendo por entre as camadas de mito que o formavam, percebeu a descrença brilhando através de Controle, como se ele fosse um daqueles peixes translúcidos do oceano profundo. Entre todas as coisas impossíveis que já tinha testemunhado, que diferença fazia uma a mais?

Ele não fez nenhuma pergunta que já não tivesse sido feita de alguma forma pela bióloga, a topógrafa, a antropóloga ou a psicóloga durante a décima segunda expedição.

De algum modo, aquilo também criava um desconfortável efeito de duplicação, sobre o qual ela ficava internamente se questionando. Porque às vezes não concordava com algumas decisões que tinha tomado, com as decisões da bióloga. Por exemplo: por que o seu outro “eu” havia tratado as frases escritas na parede de uma maneira tão descuidada? Por que não enfrentara a psicóloga/diretora assim que ficara sabendo da hipnose? O que havia ganhado ao descer a torre ao encontro do Rastejador? Algumas dessas coisas a Ave Fantasma era capaz de perdoar, mas outras a incomodavam e a faziam girar em espirais de o-que-poderia-ter-sido, até ficar furiosa. Quanto ao marido da bióloga, rejeitava-o inteiramente, sem ambivalência, porque com ele viera também a desolação de morar na cidade. A bióloga tinha sido casada, mas a Ave Fantasma não, e não se sentia mais responsável por nada daquilo. Não entendia, na verdade, como a sua réplica pudera se acostumar àquela situação. Um dos desentendimentos entre ela e Controle tinha sido sobre deixar claro que sua necessidade de experiências vividas, para suplantar as lembranças que não eram suas, não se estendiam à relação entre os dois, fosse qual fosse a imagem dela que Controle tinha em mente. A Ave Fantasma não podia mergulhar com ele em algo físico e recobrir o irreal com o comum, o mecânico, não quando as lembranças que tinha eram de um marido que voltara para casa com a memória apagada. Qualquer concessão iria magoar a ambos. Estava fora de questão.

Parado diante do esqueleto da criatura que gemia, Controle perguntou:

— Quer dizer que eu posso terminar assim? Uma versão de mim mesmo?

— Nós todos terminamos assim, Controle. Mais cedo ou mais tarde.

Mas não propriamente assim, porque daquelas órbitas vazias, daqueles ossos cobertos de mofo, vinha ainda uma impressão de brilho, uma espécie de vida — uma interrogação na direção dela, e que Controle era incapaz de sentir. A Área X a estava observando através daqueles olhos mortos. A Área X a estava analisando por todos os lados. Aquilo a fazia sentir-se como um vulto criado por um olhar que incidia lá do alto sobre ela, um vulto que se movia apenas porque o olhar se movia e o arrastava, mantinha juntos os átomos que a constituíam e lhe davam uma forma coerente. E, mesmo assim, aquele olhar parecia familiar.

— Pode ser que a diretora tenha se enganado quanto à bióloga, mas talvez você seja a resposta.

Havia apenas um pouco de sarcasmo na voz de Controle, como se ele soubesse o que ela estava sentindo.

— Não sou uma resposta — disse ela. — Sou uma pergunta.

A Ave Fantasma podia ser também uma mensagem em carne e osso, um sinal materializado, mesmo que ainda não tivesse descoberto que história deveria contar.

Ela pensava também no que tinha visto ao longo do trajeto dos dois até a Área X, como parecera que não havia nada em torno deles senão as terríveis ruínas enegrecidas de vastas cidades, enormes navios encalhados, iluminados pelas chamas vermelho-alaranjadas de fogueiras que projetavam sombras imensas e obscureciam a visão de coisas longínquas que choramingavam e se arrastavam e saltavam através das cinzas. Como havia tentado bloquear o fluxo das confissões balbuciantes de Controle, as coisas chocantes que ele dizia sem perceber, para que ela não pensasse que ele tinha um segredo. Pegue a arma... Conte-me uma piada... Eu a matei, a culpa foi minha... Ela sussurrara fórmulas hipnóticas no ouvido dele, não apenas para abafar suas palavras, mas também o espetáculo de horrores em volta dos dois.

O esqueleto diante deles tinha sido roído até ficar limpo. Os ossos descoloridos estavam apodrecendo, as pontas das costelas já haviam se tornado macias por conta da umidade, muitas delas partindo-se, desaparecendo na lama.

No alto, as cegonhas ainda davam guinadas e mudavam de direção, numa dança aérea complexa, sincronizada, mais bela do que qualquer coisa criada pela mente humana.


0003: A DIRETORA

Nos fins de semana, seu refúgio é o Chipper’s Star Lanes, onde você não é a diretora do Comando Sul, mas uma frequentadora qualquer do bar. O Chipper’s fica na rodovia, fora de Bleakersville, a um passo do fim de uma estradinha de terra. Pode ser que o pessoal de Jim Lowry, lá na Central, conheça o lugar, e vigie e escute tudo, mas você nunca encontrou ninguém do Comando Sul por ali. Mesmo Grace Stevenson, sua assistente, não sabe da existência do lugar. Como disfarce, você veste uma camiseta de uma construtora local ou de um evento de caridade tipo concurso de comida mexicana, uma velha calça jeans de quando estava gorda, às vezes finalizando com um boné com o logotipo de sua churrascaria preferida.

Você joga boliche, como fazia com seu pai quando era garota, mas em geral começa lá fora, sozinha, na pista de minigolfe Safari Adventure, meio deteriorada mas ainda funcionando. Os leões no nono buraco são um amontoado de formas de plástico, vultos adormecidos e escurecidos nas bordas por algum acidente em tempos remotos. O enorme hipopótamo que se ergue por cima do último buraco, o décimo oitavo, tem tornozelos delicados e manchas descascadas que revelam tinta vermelho-vivo por baixo, como se seus fabricantes tivessem a obsessão de torná-lo real.

Depois você entra e joga algumas partidas casuais de boliche com um grupo que precise de uma quarta pessoa, sob o universo desbotado pintado no teto: ali está a Terra, ali está Júpiter, ali está uma nebulosa roxa com um centro vermelho, tudo isso iluminado à noite com um show de laser bem vagabundo. Você joga bem umas quatro partidas, raramente fazendo mais de duzentos pontos. Depois que acaba, vai se sentar na penumbra confortável do bar. Ele fica enfiado lá no fim, o mais longe possível do salão cheio de calçados fedidos, e de algum modo a acústica consegue abafar os rangidos, as pancadas secas, o rolar das bolas do boliche. Tudo aquilo fica muito próximo da Área X, mas, como ninguém sabe disso, essa informação pode continuar matando os frequentadores tão lentamente quanto vem fazendo nas últimas décadas.

O Chipper’s atrai sobretudo seus clientes fiéis, porque não passa de uma espelunca, com feltro escuro grampeado no teto que finge estar cheio de estrelas. Mas seja qual for o metal pregado lá em cima, parecendo mais uma coleção interminável de estrelas de xerifes dos velhos faroestes, já está enferrujando há muito tempo, de modo que agora o que se vê é um preto fosco salpicado de estrelas-do-mar de um marrom avermelhado. Uma placa num canto anuncia que aquele é o Star Lanes Lounge, que consiste em meia dúzia de mesas redondas de madeira e cadeiras com estofamento de couro sintético que parecem ter sido roubadas muito tempo atrás de alguma cadeia de restaurantes.

A maior parte dos seus companheiros no bar está profundamente concentrada em um evento esportivo na TV, muda e com legendas; o velho carpete verde, que sobe pelas paredes, absorve o murmúrio das conversas. Os clientes habituais são inofensivos e raramente fazem muito barulho, incluindo uma Corretora que se acha uma sabe-tudo, o que acaba por torná-la uma boa contadora de histórias. E há também o homem setentão de barba grisalha, que está quase sempre na extremidade do balcão tomando uma cerveja light. É veterano de alguma guerra, oscila entre lacônico e amistoso.

Seu disfarce de psicóloga não se enquadra muito bem ali, e você prefere não usá-lo. Em vez disso, diz a quem pergunta que é uma caminhoneira curtindo uns dias de folga e toma um longo gole de cerveja para encerrar aquela parte da conversa. As pessoas acham plausível que você tenha esse tipo de trabalho; talvez alguma coisa na sua altura e na largura dos seus ombros ajude a convencê-las. Mas na maioria das noites você quase chega a acreditar que de fato é uma caminhoneira, e que aqueles indivíduos ali são meio que seus amigos.

A Corretora diz que aquele homem não é um veterano como alega ser, somente “um alcóolatra à procura de solidariedade”, mas você percebe que ela solidariza um pouco com isso. “Eu mesmo escolho a minha hora” é uma das frases favoritas do veterano. Assim como “o cacete que não existe”. O resto da clientela é um cruzamento de enfermeiras, alguns mecânicos, uma cabeleireira, alguns recepcionistas e funcionários de escritório. O que o seu pai chamaria de “pessoas sem autorização para ver o que acontece atrás das cortinas”. Você não se dá o trabalho de investigá-los, ou aos barmen que não param quietos, porque isso não tem importância. Nunca diz nada arriscado ou confidencial quando está no Chipper’s.

Mas algumas noites, quando fica até tarde e o bar esvazia, você rabisca num guardanapo ou num descanso de copo uma ou duas ideias que não a deixam em paz — alguns dos quebra-cabeças inesgotáveis propostos por Whitby Allen, um especialista em ambientes holísticos subordinado a Mike Cheney, o diretor excessivamente jovial do setor de ciências. Você nunca lhe pediu essas perguntas, mas isso não detém Whitby, que parece viver com a cabeça em chamas e a única maneira de apagar esse incêndio é derramando suas ideias. “O que há do lado de fora da fronteira quando se está dentro dela?” “O que é a fronteira quando você está dentro dela?” “O que é a fronteira quando alguém está do lado de fora?” “Por que a pessoa que está dentro não pode ver a pessoa que está fora?”

— Minhas afirmações não são melhores do que as minhas perguntas — admitiu Whitby certa vez. — Mas se você quer respostas mais fáceis, é só se servir do que eles estão distribuindo na Barraca de Ciências de Cheney.

Um documento impressionante avaliza as ideias de Whitby e reluz por baixo da membrana lustrosa de uma capa de plástico transparente. Em um fichário de três aros preto novo em folha — folhas perfuradas com requinte e sem um único erro de digitação nas doze páginas do texto, com uma folha de rosto imaculada, está uma obra-prima sob o título de “Teorias Combinadas: Uma Abordagem Completa”.

O relatório é tão brilhante, hábil e rápido quanto o próprio Whitby. As questões que propõe, as recomendações que faz, deixam transparecer sem muita sutileza que, para ele, o Comando Sul poderia ter desempenho melhor, que ele mesmo poderia ter um desempenho muito melhor se pelo menos lhe dessem uma chance. É muita coisa para digerir, principalmente com o setor de ciências emboscando-o através de memorandos repletos de críticas, enviados exclusivamente para você: “Suposições ainda em busca de provas; parece que perdeu a cabeça em algum lugar.” Talvez na bunda.

Mas para você o tema é da maior seriedade, principalmente uma lista de “condições necessárias para a existência da Área X”, que incluem:

um lugar isolado
um gatilho inerte mas volátil
um catalisador que dispare o gatilho
um elemento de sorte ou de acaso na maneira como o gatilho foi posicionado
um contexto que não compreendemos
um comportamento a respeito de energia que não compreendemos
uma abordagem de linguagem que não compreendemos
— E depois, o quê? — pergunta Cheney numa das reuniões da equipe. — Um estudo cuidadoso dos milagres dos santos, ocorrências inexplicáveis relatadas com exagero, bezerros de duas cabeças anunciando o apocalipse, para ver se alguma coisa acerta o alvo?

Whitby é um debatedor acalorado a essa altura, que gosta de problematizar, que desfere uma réplica demonstrando não estar apenas disposto a agarrar o touro de Cheney pelos chifres, mas a abatê-lo, esfolá-lo, assá-lo.

— Ela age um pouco como um organismo, como uma pele que tem um milhão de bocas famintas em vez de células ou poros. E a questão não é o que ela é, mas quais são suas motivações. Pense na Área X como um assassino que estamos tentando apanhar.

— Ah, ótimo, essa foi muito boa, agora temos um detetive na equipe — murmura Cheney enquanto você faz sinal para que ele se cale e Grace tenta colaborar dando um sorriso penoso.

A verdade é que você disse a Whitby para agir como um detetive, numa tentativa de “pensar as coisas fora do Comando Sul”.

* * *

Durante algum tempo, com a ajuda de Whitby, todas as suas flechas acertam o alvo. Não é que você não tivesse tido sucesso no começo. Sob a sua supervisão houve grandes avanços quanto ao equipamento das expedições, como microscópios de campo aperfeiçoados e armamento que não faz disparar as defesas da Área X. Mais pesquisadores começaram a regressar incólumes, e certos refinamentos, como passar a designar as pessoas pelas funções que exercem — um truque que você aprendeu pelo fato de viver seu próprio disfarce —, pareceram ser úteis.

Você mapeia o avanço da Área X sobre o território, começa a ter um pouco de noção dos seus parâmetros, e chega mesmo a criar ciclos de expedições com características compartilhadas. Nem sempre tem controle sobre esses critérios, mas, por algum tempo, o consenso é de que a situação se estabilizou, que as notícias começam a ser melhores. O reluzente ovo prateado que você visualiza quando pensa na Central — aqueles pensamentos impecáveis e de alto nível tão imperfeitamente expressos pelos seus superiores — zumbe, murmura e pulsa sua aprovação sobre você... mesmo que dele, ao mesmo tempo, emane certa impressão de que o Comando Sul é a decomposição orgânica de um belo e elegante algoritmo que a Central escondeu no fundo de si mesma.

Mas à medida que os anos passam, com a influência de Lowry se tornando mais e mais corrosiva, não se vê uma solução no horizonte. Os dados colhidos na Área X começam a se repetir e a declinar, ou a “declinar interpretações”, como diz Whitby, e as teorias proliferam mas ninguém é capaz de provar nada. “Faltam-nos analogias”, continuam a afirmar os linguistas.

Grace começa a chamar estes últimos “os linguarudistas”, porque falam demais e não explicam muita coisa, e, de acordo com uma piada irônica, “vão por uma estrada que é a metáfora mista de uma língua que acaba se enrolando em torno deles e os puxa”, ou seja, a Área X turvando suas águas. Exceto que ali não se tratava de águas turvas ou de uma estrada que virava língua ou qualquer outra coisa, confusa ou não, que eles fossem capazes de entender. “Faltam-nos analogias” era algo deficiente como diagnóstico, era o módulo dos linguistas ardendo em chamas em sua reentrada na atmosfera terrestre depois de encontrar a Área X. Aquilo deixava você pensativa a respeito de todos os satélites mortos ou moribundos arremessados com violência na direção das coordenadas que delimitavam a Área X, porque era fácil, porque detritos espaciais sumindo para sempre era algo que fazia um sentido perverso, mesmo que transformar a região num lixão celestial parecesse um desrespeito capaz de ofender uma divindade insegura. Só que a Área X nunca respondia, nem mesmo a indignidades desse porte.

Os linguistas não são o problema, na verdade, nem mesmo a Central. Lowry é o problema, porque guarda o seu segredo — que você cresceu no que viria a se tornar a Área X —, e em troca você tem que lhe dar o que ele quer, desde que seja razoável. Lowry investiu o sangue e o suor de outras pessoas na ideia das expedições, e com isso criou a ideia da fronteira como uma barreira intransponível, o que significa que ele está a salvo do lado certo dessa divisória. Já Whitby segue questionando a visão convencional: “O que quer que pensemos sobre a barreira, é importante reconhecer nela uma limitação da Área X.” Será que isso tem importância?

O que parecia mais importante para você: a verdade dos rumores sobre as ações implacáveis de Lowry assim que se instalou na Central, onde teria construído para si uma espécie de cabine à prova de som. Os murmúrios que chegam aos seus ouvidos ao longo dos anos, distantes mas claros, como quando caminha através de uma floresta escura e tranquila, e escuta o som distante de sinos de vento. Algo que lhe acena com a promessa do conforto da civilização, mas, mal o caminhante chega ao fim da trilha, tudo o que encontra é um matadouro cheio de cadáveres empilhados. A prova disso é o modo como ele passa por cima de Pitman, que oficialmente é o seu chefe na Central, e pressiona você por resultados.

Quando você chega ao décimo primeiro ciclo de expedições, está cada vez mais esgotada, e o planejamento da Central começou a mudar. Contratação de novos funcionários, dinheiro, equipamento, tudo foi drasticamente reduzido enquanto a Central passa a maior parte do tempo esmagando terrorismo doméstico e escondendo provas de uma destruição ecológica iminente.

Você volta depois de muitos dias para a casa em Bleakersville, que não lhe serve de refúgio. Seus fantasmas a acompanham, sentam no sofá, espreitam pela janela. Pensamentos indesejados invadem nos momentos mais inconvenientes — no meio das reuniões, quando está almoçando com Grace no refeitório, quando vasculha o escritório à procura dos grampos mais recentes da Central — dizendo-lhe que talvez nada valha a pena, que você não vai a parte alguma. Você sente o peso de cada expedição sobre suas costas.

— Eu podia ter sido o diretor — vangloriou-se Lowry certa vez —, mas uma luz de alarme acendeu no painel do comando e eu obedeci.

A luz de alarme foi um medo que você sabe existir dentro dele, mas que Lowry jamais irá admitir. O bom humor cruel com que ele a pressiona, sabendo que está pedindo o impossível.

Sempre temerosa, como quem tem uma febrícula permanente, de que alguém no Comando Sul ou na própria Central venha a descobrir seu segredo, de que Lowry não será capaz de guardar essa informação oculta sempre, ou que ele mesmo resolva torná-la pública, porque considerou que você é descartável. Um risco para a segurança. Uma mentirosa. Com muito envolvimento emocional. E, no entanto, a coisa de que mais desconfia é a compaixão, é o que você mais repele, preferindo projetar na direção de todos, menos de Grace, a imagem de que é uma pessoa fria, distante, até mesmo rude, de modo a poder pensar nas coisas com clareza e objetividade — mesmo sabendo que o simples fato de representar esse papel transformou você numa pessoa fria, distante e rude.

É difícil quantificar essa sensação, mas você acredita que a abordagem de Lowry está cada vez mais afastando o Comando Sul das respostas. Como um astronauta arremessado na vastidão vazia do espaço e que, debatendo-se, apenas antecipa o momento em que estará além de qualquer possibilidade de resgate. E o pior, a seu ver, recordando sem nostalgia o entusiasmo dos seus tempos de psicóloga, é que Lowry condenou-se a descobrir incontáveis maneiras de reviver a própria experiência horrível na Área X, de maneira que ele nunca pôde ficar inteiramente livre, e a mera tentativa de arremessar aquilo para longe se transformou num abraço sem fim.


Seu outro santuário é o terraço do Comando Sul, protegido da visão de quem está embaixo por aquela estranha parte da estrutura que se projeta para fora e circunda o teto. É chamado de Comando Vazio, ou CV, o que lhes permitia dizer no inverno “cê vê só que frio?”, e no verão “cê vê só que calor?”, ou “cer-vê” quando decidiam beber uma cerveja para relaxar, no fim do expediente.

Você partilha esse espaço sagrado com apenas uma pessoa: Grace. Ali ficam examinando as ideias que lhe vêm à cabeça quando você bebe no Star Lanes e “mandam ver”, protegidas pelo fato de que somente você, Grace e o zelador têm a chave que dá acesso ao local. Muitas vezes as pessoas tentam encontrá-la e descobrem que você simplesmente sumiu, reaparecendo, sem que ninguém saiba, no Vazio.

É ali, olhando para aquele pântano pré-histórico, os quilômetros e quilômetros de floresta de pinheiros, que você e Grace se divertem criando apelidos. Chamam a fronteira de “o fosso” e o acesso é “a porta da frente”, embora ambas tenham esperança de que um dia descubram uma “porta lateral” ou um “alçapão”. O túnel, ou a anomalia topográfica da Área X, é apelidado de “El Topoff”, uma brincadeira com o título de um filme psicodélico que Grace viu certa vez com a namorada.

Muito disso não passa de bobagem, mas na hora é engraçado, especialmente se você tem do lado uma garrafa de conhaque, ou se Grace traz um maço de cigarros sabor cereja, e as duas puxam um par de espreguiçadeiras e fazem um brainstorming ou apenas conversam sobre os planos para o próximo fim de semana. Grace sabe a respeito do Chipper’s, como você sabe a respeito dos passeios de canoa dela com os amigos, “esse seu vício de remar”. Você não precisa dizer a ela que não apareça no Chipper’s, e nunca se convida para descer o rio. A amizade se limita ao perímetro do Comando Sul.

É no terraço que você fala a Grace pela primeira vez sobre sua ideia de cruzar a fronteira e penetrar na Área X. Ao longo do tempo aquilo tinha se tornado mais do que um pensamento comichando na periferia das ideias, tinha produzido metástases em forma de código, como “uma viagem de carro com Whitby”, uma vez que as expedições durante o décimo e o décimo primeiro ciclos se estabilizaram: não houve mais catástrofes, embora também não tivessem surgido respostas.

Não pode levar Grace consigo, embora precise dos conselhos dela. Isso significaria cortar duas cabeças com um só golpe, caso alguma coisa desse errado, e além do mais você não achou que Grace tivesse temperamento para aquilo. Tem muitas conexões com o mundo. Filhos. Irmãs. Um ex-marido. Uma namorada. Você a chama brincando de “minha bússola moral externa”, porque ela sabe melhor quais são os limites. “Normal demais”, você escreveu uma vez num guardanapo.

— Por que deixa que Lowry lhe diga o que fazer? — perguntou Grace certa tarde, no terraço, depois que você conduziu a conversa naquela direção.

Você se esquiva, desvia a pergunta. Lowry não é o seu chefe imediato, é como uma rima interna num verso, não está no ponto extremo mas mesmo assim controla as coisas. Grace teria que saber de que maneira Lowry adquiriu tanto poder dentro da Central, e também sobre você, e é melhor protegê-la disso.

Você lembra a Grace que existe uma parte nesse reino que consegue controlar, uma parte que está além da influência de Lowry: aquilo que vem da Área X com o retorno das expedições. Tudo é processado através do Comando Sul, e assim, quando a última décima primeira expedição volta sem nada para apresentar além de algumas fotos desfocadas deixadas no acampamento pela expedição anterior, ou talvez por uma ainda mais antiga, você as recolhe e passa horas examinando-as. Uma coleção de sombras contra um fundo negro. Mas seria aquilo uma parede? Seria uma textura que a fazia lembrar-se de outra foto, de outra expedição? Assim, você pegou todas as fotografias tiradas no interior de El Topoff. Todas as treze que havia, e, sim, as mais recentes também podiam ter sido tiradas dentro do túnel. Aquela sombra, aquela tênue silhueta de um rosto... Aquilo era familiar? Seria um erro acreditar que significava alguma coisa?

Você confidencia a Grace o seu plano, que é muito simples, mostrando-lhe alguns dos indícios, e apostando que ela não vai denunciá-la à Central, mesmo sabendo que pode fazê-lo, em respeito às regras. Porque por trás de todas as suas argumentações, de todos os seus dados, você teme que tudo não passe de um cansaço enorme daquele vazio no estômago toda vez que uma expedição não volta, ou volta apenas pela metade, ou volta de mãos vazias. Sente que de algum modo é preciso mudar o paradigma.

— É apenas uma incursão rápida até El Topoff, e de lá eu volto. Ninguém vai descobrir.

Embora Lowry seja capaz disso. O que ele fará se descobrir que você cruzou a barreira sem autorização? A fúria dele seria dirigida somente a você?

Depois de uma pausa, Grace pergunta apenas:

— E de que você precisa?

Ela percebe que é importante, e que você vai fazer aquilo com ou sem a ajuda dela.

A coisa seguinte que ela diz é:

— Acha que pode convencer Whitby?

— Sim, acho — responde você, e Grace parece cética.

Mas Whitby não é um problema. Ele é ansioso, como um cachorrinho impaciente para dar um passeio muito, muito longo. Sonha em sair por algum tempo de dentro do setor de ciências. É o único que lhe tranquiliza, citando a taxa de sobrevivência das expedições mais recentes. Whitby está tão fortalecido, tão inflamado por essa oportunidade que você quase esquece como esse projeto é perigoso.

É um alívio, porque você percebe naquele final de semana, enquanto joga conversa fora com a Corretora, que estava morrendo de medo de ir sozinha. Percebe, assistindo a um jogo de futebol na TV do bar, por baixo daquele dossel de firmamento enferrujado, que, se Whitby não tivesse concordado, você teria cancelado o plano por completo.


Cruzando a porta, no trajeto rumo à Área X, você sente uma espécie de pressão dobrando-a para baixo, vê um horizonte negro cheio de estrelas cadentes deixando rastros que espalham uma luz tão rica e profunda naquele não céu que você aperta os olhos diante do fulgor daquele maçarico celestial. Uma sensação de hesitação, de vertigem, mas, cada vez que pende demais para um lado ou para outro, alguma coisa a empurra de volta para o centro, como se as bordas, mais próximas do que parecem, se curvassem em um ângulo ainda mais acentuado. Seus pensamentos disparam rápidos, depois, lentos, carregando entre eles alguma coisa que não consegue identificar. Vem um impulso de parar de andar, de ficar simplesmente ali, de pé, no corredor entre a Área X e o mundo real, durante uma eternidade.

Enquanto Whitby, hipnotizado, se arrasta de olhos fechados, seu rosto é uma massa contorcida de tiques nervosos, como se ele estivesse tendo um sonho muito intenso. Não importa o que esteja assombrando a mente de Whitby, você se certificou de que ele não vai se perder, não vai simplesmente parar no meio do percurso. Ele está amarrado a você pelo pulso com uma corda de nylon, e a acompanha aos tropeços.

Logo depois surge a sensação sobre a qual Whitby lhe falou, de andar por dentro de um xarope, de dar passos com água na altura das pernas, uma resistência que significa que você está perto do fim, um sinal da porta espiralada e profunda que a espera mais adiante, e já era tempo, porque, por mais estoica que seja, o caminhar sonâmbulo de Whitby começa a dar nos seus nervos, a fazê-la imaginar coisas olhando na sua direção. Você perde a noção de onde está em relação a qualquer coisa, até seu próprio corpo... Está mesmo andando, ou está parada e sua mente imagina que ergue os pés, pousa-os no chão, ergue-os de novo?

Até que aquela resistência cede — como quando uma respiração presa durante muito tempo é liberada — e os dois cambaleiam através da porta para dentro da Área X. Com Whitby de quatro, agarrando-se ao chão, tremendo convulsivamente, e você puxando-o até que cruze a porta por completo, para que ele não tropece na direção errada e desapareça para sempre. Whitby está ofegante, vocês dois estão ofegantes, sentindo o frescor daquele ar, e vão se acostumando a ele.

Um céu tão azul, sem nuvens. Uma trilha que deveria ser familiar aos seus olhos, mas já se passaram décadas desde que você viu aquela costa pela última vez. É necessário mais do que alguns instantes para pensar naquilo como o seu lar. Você reconhece a trilha mais por causa das fotografias e dos relatos dos membros das expedições, e sabe que ela já estava ali antes dos primeiros invasores, que foi usada por alguns dos seus antepassados distantes, e até agora está sobrevivendo, invadida pelo mato, como uma parte da Área X.

— Pode andar? — pergunta a Whitby, assim que o leva a recobrar a consciência.

— Claro que posso.

Entusiasmado, mas com uma espécie de brilho frágil por dentro, como se algo lhe tivesse sido raspado por baixo da superfície.

Você não pergunta o que ele sonhou, o que ele viu. Só vai querer saber quando estiverem de volta.

* * *

Você havia examinado aqueles terríveis vídeos da Área X feitos pela primeira expedição não em busca de respostas, mas, com certa dose de culpa, para procurar uma ligação com a paisagem que conheceu quando criança. Para reavivar lembranças, para recordar o que já não recorda — passando rápido pelos gritos, pela desorientação, pela falta de compreensão, pelo choro de Lowry, pelas trevas.

Ali você avista a linha de rochedos perto do farol, a praia agora um pouco diferente, como se o terroir de Whitby pudesse ser traçado a partir dos padrões deixados pelas ondas. Como se lá embaixo, por entre as tocas dos caranguejos e os pequenos mariscos enfiando-se na areia sempre que o recuo da água os revela, alguma espécie pudesse guardar em si todas as respostas.

As trilhas, também: as silhuetas imóveis e escuras dos pinheiros e o matagal espesso, pintalgado pela luz que se filtra entre eles. A lembrança de uma vez ter se desorientado e se perdido durante uma chuva com trovoadas, aos seis anos, e de emergir daquela floresta sem saber onde estava — uma lembrança despertada pelo modo cauteloso como, no vídeo, o líder da expedição observava o acúmulo de nuvens no céu, como se elas trouxessem o presságio de algo mais urgente do que a simples necessidade de procurar um abrigo.

Depois da tempestade, ao descobrir num sobressalto o espaço aberto e a luz do sol, você encontrou um enorme jacaré bloqueando a trilha estreita, com água de ambos os lados. Recuou para tomar impulso e saltou por cima dele. Nunca disse isso a sua mãe, nunca falou daquela euforia, do modo como no meio do salto ousou olhar para baixo e viu aquele olho amarelo, aquela pupila vertical e escura, registrando, absorvendo você como a Área X absorveu a primeira expedição, mas no instante seguinte você estava do outro lado, correndo por um longo tempo por pura alegria, pura adrenalina, como se tivesse acabado de conquistar o mundo.

O que aparece na tela perto do fim do vídeo é a fuga de alguma coisa, não na direção de alguma coisa, e os gritos logo adiante não são de triunfo, mas de derrota — gritos exaustos, como que cansados de lutar contra algo que nunca se revela de verdade. Em seus momentos mais cínicos, pensou neles como gritos meramente formais: um organismo que sabe que não adianta lutar, o corpo se entregando e a mente permitindo. Eles não estavam perdidos como você esteve naquele dia; eles não tinham um chalé na praia para onde retornar, nenhuma mãe caminhando na varanda, morrendo de preocupação, agradecida ao ver sua figura imunda, encharcada de chuva.

Alguma coisa no seu rosto devia ter preservado a memória daquela alegria imensa, porque ela não a castigou, apenas a vestiu com roupas secas, deu-lhe de comer e não lhe fez perguntas.

* * *

Evitando o caminho que leva ao acampamento, você segue direto para a anomalia topográfica, movida por uma urgência semelhante à provocada pelo tique-taque de um relógio. O conhecimento — nunca discutido com Whitby — de que, quanto mais tempo você fica lá, maior a possibilidade de alguma catástrofe. O olho do jacaré erguido na sua direção, com mais consciência por trás de sua mirada penetrante do que você recorda. Alguém, fora de quadro, no segundo dia da primeira expedição, dizendo: “Quero ir para casa”, e Lowry, brincalhão, confiante, respondendo: “Como assim? Isto é a nossa casa agora. Temos tudo aqui. Tudo de que precisamos. Certo?”

Em nenhum trecho essa sensação de urgência é mais intensa do que quando vocês cruzam a floresta pantanosa a dois ou três quilômetros da fronteira, onde a mata encontra uma valeta de água escura. O lugar onde você percebeu mais indícios da presença de ursos e ouviu ruídos de coisas se movendo ao abrigo da escuridão e das árvores.

Whitby está calado a maior parte do tempo e, quando fala as suas perguntas e preocupações não contribuem em nada para aliviar a pressão do desalento, da ideia de uma intencionalidade eterna e imortal que ocupa aquele trecho de terra, e que vem desde muito antes da Área X. A água imóvel e estagnada, o negror opressivo de um céu onde o azul espia através das árvores em momentos inesperados, apenas para sumir novamente, e sempre dando a impressão de estar a quase dois mil quilômetros de distância. É esta a clareira onde três homens morreram durante a quinta expedição? Aquela lagoa guarda os corpos dos homens e das mulheres da primeira oitava? Às vezes, imerso nessa superposição de paisagens, Whitby, pálido, murmurando sem parar, produz em você um choque súbito, inseparável desses ecos de dias remotos.

Depois de algum tempo, contudo, você cruza uma paisagem mais otimista, à qual consegue se integrar, reconciliando o passado e o presente em uma única visão. Aqui, um caminho mais largo separa a floresta mergulhada no pântano e o terreno aberto, proporciona um horizonte de alguns altos pinheiros espalhados por entre o mato selvagem e os círculos das palmeiras. O declive da floresta significa que a escuridão termina num ângulo que projeta uma sombra oblíqua sobre metade da trilha.

Existem outras fronteiras dentro da Área X, outros desafios, e você passou através de um deles para poder chegar à anomalia topográfica.

* * *

Uma vez ali, assim como Whitby, você vê imediatamente que a torre não é feita de pedra. Será que ele deseja agora — sua expressão é indecifrável — que você o tivesse submetido a um condicionamento de verdade, que tivesse lhe proporcionado todo o treinamento que a Central pode fornecer, e não suas meias medidas, seu hipnotismo amadorístico?

A torre está respirando. Não há nenhuma ambiguidade quanto a isso. A carne do topo circular da anomalia sobe e desce com o ritmo regular de uma pessoa em sono profundo. Ninguém mencionou esse aspecto nos relatórios; você não está preparada, mas com facilidade aceita, entrega-se a esse fato, já pode imaginar-se descendo por aquela abertura mesmo que parte de você se desprenda e flutue, observando do alto a imprudência dessa decisão.

E se aquilo acordar enquanto você está do lado de dentro?

A abertura que leva à escuridão parece mais um estômago do que um corredor, a vegetação rasteira em volta está afastada, amassada em forma de um círculo irregular, como se uma serpente enorme e agora ausente tivesse se enrodilhado, em atitude protetora. A escada forma um emaranhado de degraus tortos em espiral, e o ar expelido por ali tem cheiro de mel estragado.

— Não posso entrar aí — diz Whitby, de maneira tão irrevogável que ele deve estar pensando que, na descida, deixaria de ser Whitby.

Suas feições encovadas, mesmo àquela luz vibrante de verão, fazem com que pareça estar assombrado por uma lembrança que ainda não se formou.

— Então vou eu — propõe você.

Descer pela garganta da fera. Outros já desceram, mesmo que raros, e já voltaram, então por que você não voltaria? Usando uma máscara cirúrgica, por via das dúvidas.

Há uma espécie de pânico atordoado e de impulso contido por trás de cada um dos movimentos que serão executados por sua carne, seus ossos. Em alguns meses você vai acordar doída e machucada, como se seu corpo não pudesse esquecer o que aconteceu e esse fosse seu único modo de expressar o trauma.

* * *

Dentro é tudo muito diferente do que aparece nos relatórios fragmentários trazidos pelas outras expedições. O tecido vivo que forra a parede é quase inerte, e os débeis movimentos dos fios que formam as palavras são tão lentos que por um momento você pensa que aquilo é um tecido necrosado. As palavras também não são de um verde vibrante, como diziam os relatórios, mas de um azul desbotado, quase da cor da chama de um fogão a gás. A palavra adormecido vem à sua mente, e com ela uma esperança viva: de que tudo lá embaixo esteja inerte, normal, mesmo que no limite externo desse significado.

Você desce pelo meio dos degraus, sem tocar as paredes, tenta ignorar a respiração trêmula da torre. Não lê as palavras porque há muito as vê como uma espécie de armadilha, um modo de distrair... além de sentir que o que verdadeiramente desorienta e desestabiliza está lá embaixo, decidindo se quer ser visto ou se pretende continuar oculto — por trás de uma esquina, além do horizonte, e a cada revelação vazia, cada curva dos degraus iluminada pela chama azul das palavras mortas, na direção dessa entidade desconhecida que se recolhe, você fica num espaço cada vez mais apertado, mesmo que não haja nada para ser visto. O inferno disso tudo, o inferno de não haver nada, como se você estivesse revivendo cada momento de sua vida no Comando Sul, descendo ali sem motivo, para nada, para não encontrar nada. Nenhuma resposta, nenhuma solução, nenhum final à vista, as palavras na parede ficando menos vívidas, mais escuras, parecendo piscar e sumir quando você se aproxima... até que, finalmente, vislumbra uma luz longe, bem longe, lá embaixo, tão embaixo que é como uma flor luminosa dentro de um buraco no fundo do mar, uma luz cintilante e indescritível que, por uma espécie de truque de mágica, parece também flutuar diante do seu rosto, dando-lhe a ilusão de que pode alcançá-la e tocá-la se tiver a coragem de estender a mão.

Mas não é isso que faz suas pernas esquisitas e uma corrente de sangue subir fervilhando à sua cabeça.

Um vulto está sentado de encontro à parede do seu lado esquerdo, olhando para os degraus.

Um vulto de cabeça baixa, dando as costas para você.

Sua cabeça formiga por baixo da máscara, como a inserção delicada e suave de um milhão de agulhas geladas e indolores, tão sutis, tão invisíveis, que você pode fingir que é apenas um calor que se alastra pela sua pele, uma sensação de retesamento nas laterais do nariz, em volta dos olhos, a penetração suave e cuidadosa das agulhas numa almofada de alfinetes, a volta de alguma coisa que devia ter ficado sempre ali.

Você diz a si mesma que não é menos real do que jogar boliche no Chipper’s, do que o hipopótamo com tinta vermelha sob a pele, do que viver em Bleakersville, trabalhar no Comando Sul. Que aquele momento é igual a todos os outros, que para os átomos aquilo não faz nenhuma diferença, nem para o ar, nem para a criatura cujas paredes respiram à sua volta. Que você abriu mão do direito de chamar qualquer coisa de impossível quando decidiu penetrar na Área X.

Chega mais perto, atraída por essa criatura impossível, senta-se no degrau junto dela.

Ele tem os olhos fechados. O rosto está iluminado por um brilho azul profundo, que emana de dentro, como se sua pele tivesse sido retirada e fosse tão poroso quanto uma rocha vulcânica. Ele se funde com a parede, ou se projeta para fora dela, como uma extensão da parede, uma protuberância que pudesse ser puxada de volta a qualquer momento.

— Você é real? — pergunta você, mas ele não responde nada.

Estendendo a mão, uma mão trêmula, na direção dele, atônita com essa aparição, querendo saber que textura tem aquela pele, com medo de que seu toque possa reduzi-lo a pó. Seus dedos roçam a testa dele, que tem uma superfície áspera e úmida, como a de uma lixa embaixo de uma camada espessa de água.

— Você se lembra de mim?

— Você não devia estar aqui — retruca Saul Evans em voz muito baixa. Seus olhos estão fechados; ele não pode vê-la, e, no entanto, você sabe que ele a enxerga. — É melhor sair de cima dessas rochas. A maré está subindo.

Você não sabe o que dizer. Vai ficar sem saber por muito tempo. Sua resposta já foi dada, muitos anos atrás.

Agora começa a ouvir o zumbido vasto, avassalador, de alguma máquina poderosa que ressoa lá embaixo, as rápidas rotações de estranhas órbitas, e a luz lá embaixo, aquela luz que desabrocha impossivelmente, está flutuando, movendo-se, transformando-se em alguma outra coisa.

Os olhos dele se abrem de súbito, brancos de encontro à escuridão do lugar. Ele não está diferente da última vez que o viu, não envelheceu, e você está de novo com nove anos, e a luz lá de baixo vem ao seu encontro, percorrendo os degraus rumo a você, depressa, e lá no alto você ouve o eco distante de Whitby gritando, no topo da torre, como se gritasse por vocês dois.


0004: O FAROLEIRO

Tatus arruinando o jardim, mas não quero colocar veneno. Os arbustos de uva-do-mato precisam ser podados. Fazer lista de tarefas de manutenção para amanhã. Fogo na Ilha do Fracasso, mas já foi relatado e não é grande. Avistei: albatroz, andorinhas-do-mar não identificadas, lince (espreitando por entre as palmeiras do lado leste, olhando um caminhante que não o percebeu), algum tipo de papa-moscas, golfinhos num grande tumulto perseguindo um cardume de tainhas pelas ervas marinhas.

Os corpos também podem ser faróis, e Saul sabia disso. Um farol era uma luz fixa, para um propósito fixo; uma pessoa é uma luz que se move. Mas as pessoas ainda emanavam luz ao longo do seu caminho, ainda brilhavam através da distância dando sinal de alarme, de convite, ou mesmo somente um sinal de estática. As pessoas se abriam e se tornavam um brilho, ou escuridão. Voltavam sua luz para dentro, às vezes, de modo que ninguém a via, e porque não tinham escolha.

— Isso é bobagem — disse Charlie naquela noite, quando Saul falou algo parecido, depois que fizeram sexo. — Não vá virar poeta.

Naquela vez, pelo menos, Saul tinha convencido Charlie a ir até o farol, um acontecimento raro porque o amante ainda tinha um jeito arisco, inconstante. Espancado pelo pai e expulso de casa pela família, depois de vinte anos ainda não havia saído inteiramente de dentro da sua casca. Portanto, aquele era um pequeno avanço — algo que fazia Saul feliz, ver que podia proporcionar um pouco de segurança.

— É uma ideia de um dos sermões do meu pai. O melhor que ele já proferiu.

Saul flexionou os dedos da mão, procurando algum resto de desconforto causado pelo incidente com a planta. Não sentiu nada.

— Sente falta às vezes? De ser pastor? — perguntou Charlie.

— Não, estou só pensando numas coisas a respeito da Brigada Leve.

A dupla ainda despertava nele uma sensação aguda de alarme, mesmo que distante. O que estavam projetando lá de cima, e que ele não podia ver?

— Ah, eles, hein? — disse Charlie, simulando um bocejo enquanto se virava na cama. — Você não pode deixar esses brigadistas em paz? Um bando de malucos. E você também — completou, agora num tom afetuoso.

Mais tarde, quando já estava quase adormecido, Charlie murmurou:

— Não, não é bobagem. Essa coisa sobre a luz. É um pensamento bonito. Talvez.

Talvez. Saul achava difícil saber quando Charlie estava sendo sincero. Às vezes, a vida deles entre os lençóis parecia misteriosa, parecia não ter relação com a vida no mundo lá fora.

Outras vezes, havia pessoas que davam sua luz, e pareciam estar piscando, quase invisíveis, se ninguém cuidasse delas. Porque tinham dado muita luz sem guardar nada para si mesmas.

No fim, na época em que tinha sua igreja, ele se sentia como um farol cuja luz se esgotara, exceto por um leve bruxulear lá no seu íntimo — o modo como as palavras brilhavam ao sair da sua boca, e quase não tinha muita importância que tipo de luz elas produziam, pelo menos não para sua congregação, porque estavam todos olhando para ele, não escutando-o. De qualquer forma, na melhor das hipóteses, a comunidade tinha sido uma colcha de retalhos, atraindo tanto os hippies quanto os mais caretas, porque ele recorria tanto ao Velho Testamento quanto ao deísmo, e aos livros esotéricos da casa do pai. Algo que o velho homem jamais tinha planejado: as estantes de livros arrastando Saul para lugares aos quais, se dependesse do próprio pai, ele nunca teria ido. Mas a biblioteca do velho homem tinha sido muito mais liberal do que o próprio.

O choque de estar no centro das atenções para depois estar completamente fora dele era algo que de vez em quando retornava a Saul, nos momentos mais inesperados. Mas o fim do seu ministério religioso lá no Norte não tinha sido dramático, não houvera nenhuma revelação chocante, além do modo como ele costumava pregar uma coisa e pensar em outra, confundindo esse conflito, por um tempo interminável, com uma manifestação de sua culpa por pecados tanto reais quanto imaginários. E num dia terrível ele percebeu, traído pela própria paixão, que estava se tornando a própria mensagem.

Quando Saul acordou, Charlie tinha ido embora, sem deixar sequer um bilhete. Mas a verdade é que um bilhete pareceria algo muito sentimental, e Charlie era o tipo de farol que não se permitia projetar aquele tipo de luz.

* * *

À tarde, ele viu Gloria andando pela praia, acenou-lhe, sem ter certeza se ela o tinha visto até que a garota mudasse aos poucos o trajeto e se aproximasse. Saul sabia que ela não queria parecer muito interessada em conversar com ele. Talvez violasse algum tipo de código de garotas.

Ele estava tapando os buracos feitos por tatus que vinham arrancando raízes no jardim. Tinham o formato aproximado de seus focinhos e o divertiam. Ele não sabia por quê. Mas aquele trabalho lhe causava uma espécie de felicidade sem forma, sem motivo. Melhor ainda era o fato de os gêmeos, Henry e Suzanne, estarem atrasados.

O dia tinha se tornado lindo, depois de um amanhecer nublado. O oceano tinha uma tonalidade azul-clara, vibrante, reluzindo de encontro às manchas escuras das algas submersas. Lá na borda de um céu imaculado, de um azul cada vez mais intenso, a linha branca deixada por um avião, mostrando seu desdém pelos cidadãos daquele litoral esquecido. Mais próximo de sua casa, ele tentou ignorar as rochas manchadas pelo excremento branco dos biguás.

— Por que você não faz alguma coisa contra esses tatus? — perguntou Gloria quando chegou ao terreno do farol.

Ela devia estar andando sem rumo, distraindo-se com os tesouros que se podia encontrar entre as algas levadas pelo mar para a areia.

— Eu gosto de tatus — disse ele.

— O Velho Jim diz que eles são umas pestes.

O Velho Jim. Às vezes ele achava que ela o trazia para a conversa sempre que queria impor sua maneira de ver. O homem vivia no final de uma estrada de terra, entre muitas, um verdadeiro labirinto, num barraco perto do local onde eram despejados ilegalmente tonéis de resíduos químicos. Ninguém sabia o que tinha sido a vida dele antes de desembarcar naquele litoral esquecido, mas agora ele era o proprietário do bar do vilarejo, que ora estava aberto, ora fechado.

— É isso que Jim diz, hein?

Ele teve o cuidado de pressionar bem a terra, mesmo sentindo-se já estranhamente fatigado. Outra tempestade e tudo aquilo ia ficar cheio de torrões espalhados.

— Eles são ratos com armaduras.

— Do mesmo jeito que as gaivotas são ratos de asas?

— O quê? Você podia encher isso aqui de armadilhas.

— Eles são espertos demais.

Devagar, ela o olhou de lado.

— Não acho que isso seja verdade, Saul.

Quando ela o chamava pelo nome, ele sabia que podia estar com problema. Sendo assim, por que não arranjar mais problemas? Além do mais, ele precisava fazer uma pausa, estava suando demais.

— Um dia — disse ele, apoiando-se na pá —, eles entraram pela janela da cozinha, subindo nas costas uns dos outros e mexendo no trinco.

— Uma pirâmide de tatus! — Depois, ela recuperou sua cautela infantil. — Também não acho que isso seja verdade.

A verdade é que ele gostava dos tatus. Achava-os engraçados — desajeitados mas sinceros. Tinha lido num guia de vida selvagem que eles “nadavam” caminhando pelo fundo da água prendendo a respiração, um detalhe que o comoveu.

— Eles podem incomodar muito — admitiu ele. — Então talvez você tenha razão.

Ele sabia que, se não fizesse uma pequena concessão, ela insistiria naquilo enquanto pudesse.

— O Velho Jim disse que você é maluco, porque contou que viu um canguru aqui.

— Talvez você devesse parar de andar com o Velho Jim.

— Eu não ando com ele. Ele mora num lixão. Foi ele que veio conversar com minha mãe.

Ah. Fora consultar a doutora. Uma sensação de alívio o percorreu, ou talvez fosse apenas o suor frio do exercício. Não que houvesse algo de errado com Jim, mas a ideia daquela garota andando tão solta e tão independente o incomodava. Apesar de Charlie ter-lhe dito certa vez que Gloria conhecia a área melhor do que Saul.

— E então, você viu mesmo um canguru?

Meu Deus, aquilo era como ter filhos.

— Não exatamente. Vi alguma coisa que parecia um canguru.

Os moradores locais ainda faziam brincadeiras a respeito, mas ele jurou que o tinha visto, só um vislumbre muito rápido no seu primeiro ano ali, em meio à euforia e à excitação de estar explorando tantos caminhos desconhecidos.

— Ah, esqueci. Vim aqui por um motivo.

— Sim?

— O Velho Jim disse que ouviu no rádio que a ilha está pegando fogo, e eu queria ver melhor lá de cima do farol. Tem um telescópio?

— O quê?! — Ele largou a pá. — O que você quer dizer com “a ilha está pegando fogo”?

Pelo que ele soubesse, não havia ninguém lá naquela época a não ser o pessoal da Brigada Leve, mas parte do trabalho dele era relatar incêndios e outros incidentes desse tipo.

— Não é a ilha inteira — disse ela —, só uma parte. Deixe-me dar uma olhada. Tem fumaça e tudo.

* * *

Então os dois subiram, Saul insistindo em levá-la pela mão, sua pegada forte e úmida, dizendo-lhe para ter cuidado com os degraus enquanto pensava se não devia ter alertado alguém a respeito do fogo antes mesmo de confirmar a notícia.

No topo, depois de afastar a lona que cobria a lente e espiar pelo telescópio, usado basicamente para observar as estrelas, Saul descobriu que Gloria tinha razão: a ilha estava em chamas. Ou, pelo menos, o topo do farol em ruínas — a muitos quilômetros de distância, mas bastante visível pelas lentes. Uma fumaça com tons de vermelho, mas sobretudo escura. Como uma pira funerária.

— Acha que alguém morreu?

— Não tem ninguém lá. — Exceto “as pessoas estranhas”, como Gloria dizia.

— Então quem colocou fogo?

— Não precisa ter sido uma pessoa. Pode ter acontecido por acidente.

Mas ele não acreditava nisso. Podia ver o que pareciam ser pequenas fogueiras, com fumaça negra se erguendo delas. Isso seria parte de uma queima controlada?

— Posso olhar de novo?

— Claro.

Mesmo depois de deixar Gloria ocupar sua posição ao telescópio, Saul ainda tinha a impressão de ver os filetes de fumaça escura no horizonte, mas só podia ser uma ilusão.

* * *

Estranheza não era nenhuma novidade para a Ilha do Fracasso. Se alguém desse ouvidos ao Velho Jim, ou a algum outro dos moradores locais, os mitos daquele litoral esquecido tinham sempre incluído a ilha, antes mesmo do fracasso de uma série de tentativas de colonização. As pedras brutas e a madeira de suas construções, seu isolamento, o modo como as rotas marítimas tinham começado a mudar quando o farol ainda estava em construção, tanto tempo antes, tudo parecia ser um presságio do destino que a aguardava.

A lente do farol tinha pertencido anteriormente à torre em ruínas lá na ilha. Aos olhos de algumas pessoas, isso indicava que algum tipo de desgraça havia acompanhado a lente quando de sua remoção para o continente, talvez por causas das histórias épicas a respeito do deslocamento do objeto de quatro toneladas, quando uma tempestade súbita se formou e o céu se encheu de relâmpagos, quase afundando o navio enviado para transportá-lo, que encalhou conduzindo a luz que poderia salvá-lo.

Enquanto Gloria continuava grudada ao telescópio, Saul percebeu algo esquisito no chão, junto à base da lente, do lado que dava para o mar. Uma minúscula pilha de fragmentos de vidro reluzia de encontro às tábuas de madeira escura. Mas que diabo? O pessoal da Brigada Leve teria quebrado uma lâmpada, ou algo assim? Então outro pensamento lhe ocorreu e, agachando-se um pouco, Saul puxou a cobertura de lona da lente por cima dos cacos. E de fato encontrou uma fratura no local onde o vidro se encaixava no suporte. Era quase como ele imaginava que seria um buraco de bala, só que bem menor. Examinou de perto esse “orifício de saída”, como o chamou mentalmente. As rachaduras que se espalhavam em todas as direções pareciam as raízes de uma planta. Ele não viu nenhum outro dano na superfície lisa e fractal.

Não sabia se devia ficar com raiva ou apenas juntar mais aquele item à lista de consertos a fazer, uma vez que a perfuração não ia prejudicar o funcionamento da lente. Será que Henry e Suzanne tinham feito aquilo deliberadamente, ou devido a algum engano, alguma falta de jeito? Ele se via incapaz de afastar da mente a sensação irracional de conexões ocultas, a impressão de que algo tinha escapado daquele espaço.

Um eco de passos lá embaixo, o ruído de vozes — dois passos diferentes, duas vozes. A Brigada Leve, Henry e Suzanne. Num impulso, ele puxou para baixo a cobertura de lona e, com a bota, espalhou os pedacinhos de vidro pelo chão, o que lhe deu uma incômoda sensação de cumplicidade.

Quando os dois finalmente apareceram, Saul não pôde culpar Gloria pelo modo como os encarou — fitando-os como um gato selvagem com o pelo todo eriçado, de onde estava, junto ao telescópio. Ele se sentia do mesmo modo.

Henry estava mais uma vez vestido como se fosse sair à noite na cidade. Suzanne parecia tensa, talvez porque daquela vez fosse ela quem carregava a maior parte do equipamento.

— Vocês estão atrasados — disse Saul, sem disfarçar uma ponta de descontentamento na voz. Henry segurava a alça do que parecia uma caixa de metal com ferramentas e a balançava de leve, para a frente e para trás. — E isso aí, o que é?

Saul ainda não tinha visto aquela caixa.

— Ah, não é nada, Saul — respondeu Henry, o sorriso largo como sempre. — Só algumas ferramentas. Chaves de fenda, esse tipo de coisa. Material de um faz-tudo.

Ou coisas de alguém recolhendo amostras de uma lente de alta qualidade que vem escapando do vandalismo há mais de um século.

Aparentemente percebendo a hostilidade de Gloria, Suzanne pousou no chão a mala e a caixa de papelão que carregava, e inclinou-se sobre o telescópio, dizendo:

— Você é uma menininha tão linda! Quer um pirulito?

E então o fez surgir da orelha de Gloria, como se por mágica, com um floreio de mágico amador.

Um olhar de avaliação hostil por parte da garota.

— Não. Estamos vendo o incêndio da ilha. — E desdenhosamente colocou os olhos novamente no telescópio.

— Sim, há fogo — disse Henry, imperturbável, enquanto Suzanne voltava para junto dele.

Ouviu-se um chocalhar metálico quando ele pousou a caixa de metal junto ao resto do equipamento.

— O que vocês sabem sobre ele? — perguntou Saul, embora muitas outras dúvidas estivessem brotando.

— O que posso saber? Foi um acidente infeliz. Acho que nunca nos saímos bem como escoteiros, não é mesmo? Felizmente ninguém se feriu, num dia tão bonito. E em breve iremos embora dali, de qualquer forma.

— Vão embora? — indagou Saul, subitamente esperançoso. — Vão encerrar o trabalho?

A expressão de Henry era menos amistosa do que tinha sido até um instante antes.

— Apenas da ilha. O que estamos procurando não está lá.

Henry disse isso num tom presunçoso, como se estivesse satisfeito de possuir um segredo que não iria partilhar com Saul. O faroleiro ficou ainda mais irritado, ficou realmente furioso.

— E o que estão procurando? Alguma coisa que obrigue vocês a danificar a lente?

O modo direto com que ele falou fez Suzanne franzir o rosto. Ela desviou os olhos de Saul.

— Nós não tocamos na lente — disse Henry. — Você não tocou nela, né, Suzanne?

— Não, nunca encostamos o dedo nela — confirmou a jovem, num tom horrorizado.

Saul teve a impressão de que ela estava protestando demais.

Saul hesitou. Devia mostrar a eles o ponto onde a lente tinha sido avariada? A verdade é que não queria. Se tivessem feito aquilo, tornariam a mentir. Se não tivessem feito, ele estaria chamando a atenção dos dois para aquele detalhe. E também não queria principiar uma discussão tendo Gloria por perto, de modo que cedeu e arrancou a menina de junto do telescópio com alguma dificuldade, sabendo que o tempo todo ela estivera escutando.

* * *

Lá embaixo, na cozinha, ele ligou para o corpo de bombeiros de Bleakersville e lhe disseram que já tinham sido informados do incêndio na ilha, não era uma ameaça séria, o que o fez sentir-se meio estúpido, porque era assim que tratavam as pessoas daquele litoral esquecido. Ou então estavam mortalmente entediadas.

Gloria estava sentada à mesa, mordiscando distraidamente um doce que Saul lhe dera. Ele pensou que ela provavelmente teria gostado de aceitar o pirulito.

— Vá para casa assim que terminar.

Ele não sabia colocar em palavras o que estava sentindo, mas queria que ela se afastasse do farol o mais depressa possível. Charlie o teria chamado de irracional, emocional, teria dito que ele não estava pensando direito. Mas a confluência do incêndio, a avaria na lente, a atitude estranha de Suzanne... Ele não queria que Gloria ficasse ali, só isso.

Mas a menina se aferrava a sua obstinação, como se fosse algo que tivesse recebido junto com o doce.

— Saul, você é meu amigo, mas não é meu chefe — retrucou ela num tom pragmático, como se fosse algo que ele já devesse saber, que não precisasse ser dito.

Ele imaginou se a mãe de Gloria teria falado aquilo mais de uma vez. Mesmo a contragosto, precisava admitir que era verdade. Ele também não era chefe de Henry, ou, ao que parecia, de quem quer que fosse. Vá cuidar da sua vida.

Então Saul assentiu, admitindo a derrota. Ela ia fazer o que achasse melhor. Todos iam, e ele precisava apenas se adaptar. Pelo menos o fim de semana estava se aproximando rápido. Ele ia pegar o carro e ir com Charlie até Bleakersville, conhecer um lugar novo chamado Chipper’s Star Lanes, um estabelecimento que um amigo achava ótimo. Tinha um campo de minigolfe, algo de que Charlie gostava muito. Saul não ligava para o boliche e apreciava mais o fato de que eles tinham licença para vender bebidas e um bar na parte dos fundos.

* * *

Apenas uma hora depois, Henry e Suzanne desceram — primeiro ele escutou o ruído dos passos da dupla e em seguida, pela janela da cozinha, viu os dois andando para lá e para cá no terreno em volta do farol.

Ele preferiria ter ficado dentro e deixá-los por ali, mas, minutos depois, Brad Delfino, um voluntário que às vezes o ajudava no serviço do farol, surgiu dirigindo seu caminhão. Antes mesmo de estacionar, já vinha acenando para Henry, e por algum motivo Saul não queria vê-lo conversando com a Brigada Leve sem que ele estivesse por perto. Brad era um músico de uma banda local que gostava de beber e de conversar com quem lhe desse ouvidos. Às vezes se metia em confusão, e a ajuda que prestava no farol era considerada “trabalho comunitário” ali no litoral esquecido.

— Ouviu falar no incêndio? — perguntou Brad enquanto Saul o acompanhava para fora do estacionamento.

— Sim — disse o faroleiro laconicamente. — Ouvi falar.

Claro que Brad sabia. Por que outro motivo teria vindo?

Ele percebeu que Henry e Suzanne estavam tirando fotos sem parar de cada centímetro quadrado do terreno e da cerca. Para aumentar o caos, Gloria o viu sair e correu na direção dele fazendo uns barulhos de latido, como costumava fazer às vezes, porque sabia que Saul detestava.

— Sabe o que está acontecendo? — perguntou Brad.

— Não mais do que você. Mas o corpo de bombeiros disse que não há problema.

Alguma coisa no seu tom de voz mudava quando ele se dirigia a Brad, uma espécie de sotaque sulista que se intrometia e que o deixava irritado.

— Posso ir lá em cima dar uma olhada pelo telescópio, em todo caso? — indagou, tão ansioso quanto Gloria para espiar o único fato interessante do dia.

Mas antes que Saul pudesse responder, Henry e Suzanne se aproximaram.

— Hora das fotos! — disse Suzanne com um sorriso largo.

A jovem tinha uma teleobjetiva volumosa acoplada à câmera, e a alça larga em volta do pescoço lhe dava um ar ainda mais infantil.

— Para que você quer uma foto? — perguntou Gloria.

Era a pergunta que Saul também se fazia.

— Para os nossos registros, apenas. Estamos criando um mapa fotográfico desta área e um registro das pessoas que vivem aqui. E, sabe, está um dia tão lindo...

Só que o tempo começava a se fechar um pouco, com um acúmulo de nuvens cinza que iriam chover provavelmente na ilha, não ali.

— Sim, que tal uma foto sua com seu assistente, e com a garota, acho? — disse Henry ignorando Gloria.

Ele estava examinando Saul com uma intensidade que o deixou desconfortável.

— Não sei — respondeu Saul, relutante devido à insistência do outro.

Também queria encontrar uma maneira de se desvincular um pouco de Brad, que não era nem de longe algo formal como um “assistente”.

— Eu sei — murmurou Gloria, olhando para os dois.

Suzanne tentou dar um tapinha na sua cabeça. A garota deu a impressão de que iria mordê-la, mas depois, mantendo-se no personagem, apenas grunhiu e se afastou.

Henry deu um passo na direção de Saul.

— O que seria uma foto de um farol sem o seu faroleiro? — perguntou, mas não era de fato uma pergunta.

— Uma foto melhor?

— Você era pastor, lá no Norte, eu sei — prosseguiu Henry. — Mas se está preocupado com as pessoas que deixou por lá, não fique. A foto não é para publicação.

Isso o desconcertou.

— Como sabe disso? — perguntou Saul.

Mas Brad tinha se animado com essa revelação, e interferiu antes que o faroleiro pudesse responder.

— Sim, este é o Saul, cara. É um autêntico fora da lei. Procurado em mais de dez estados. Se alguém tirar uma foto, é o fim dele!

Uma foto tinha tanta importância assim? Mesmo considerando que ele havia deixado questões inacabadas no Norte, não era como se tivesse fugido de lá e a foto fosse aparecer nos jornais.

O vento começava a soprar em rajadas mais fortes. Em vez de discutir, Saul puxou do bolso traseiro o boné, achando que com aquilo na cabeça ficaria um pouco disfarçado, mas para que precisava de disfarce? Um pensamento irracional. Provavelmente não era o primeiro de um faroleiro ali no litoral esquecido.

— Digam “giz”. Digam “não há segredos”. Vou contar até três.

“Não há segredos?”

Brad decidiu assumir uma pose estoica, o que Saul viu como uma maneira de zombar dele. Gloria preferiu dramatizar o momento, fazendo-os esperar enquanto puxava o capuz do casaco por cima da cabeça e corria para as rochas, como protesto, certa de que Suzanne não conseguiria enquadrá-la. Chegando às pedras, ela começou a subir, afastando-se deles, e depois virou-se e se pôs a descer de volta, gritando com deleite e berrando sem nenhum motivo aparente: “Eu sou um monstro! Eu sou um monstro!”

A contagem chegou a três, Suzanne ficou firme e silenciosa, com os joelhos ligeiramente flexionados, como se estivesse no convés de um navio em pleno mar. Ela deu o sinal.

— Não há segredos! — gritou Brad antes do tempo, com um entusiasmo que talvez viesse a lamentar, dada sua ficha policial a respeito de drogas.

Então veio o flash da câmera, e no instante seguinte pontos negros flutuaram na periferia da visão de Saul, amontoaram-se ali, demoraram-se mais do que parecia normal.


0005: CONTROLE

Eles explodiram através daquele terrível corredor que ligava o mundo à Área X, foram expelidos, num lugar sem ar que deixou Controle em estado de choque até que a solidez do corpo da Ave Fantasma de encontro ao seu e o peso da mochila puxando-o para baixo o forçaram a lutar contra a pressão e as chicotadas daquilo que seus olhos ardendo e sua garganta estrangulada lhe disseram ser água salgada. Conseguiu fechar a boca diante daquela surpresa e ignorar o cacho de bolhas de ar que fazia pressão em cima e ao redor de sua cabeça. Conseguiu controlar tanto seu pânico quanto seu grito, e suportar a sensação cortante de mil superfície lisas e ásperas roçando seu corpo, tão parecidas com aquela porta que se tornara uma parede através dos seus dedos, todas batendo de encontro a seus braços, suas pernas, a certeza de ter se materializado no meio de um tornado submarino feito de facas afiadas — Whitby, Lowry, Grace e sua mãe, a espiã, toda a maldita congregação do Comando Sul gritando em coro a palavra Salte! através daqueles milhares de reflexos prateados. Mesmo quando seus pulmões se encheram de água. Mesmo quando ele se debateu tentando se livrar daquela mochila traiçoeira que o arrastava para baixo mas também segurando o documento de Whitby dentro dela, enfiando uma das mãos pela abertura, tateando, vasculhando em busca das folhas, algumas das quais saíram para a água, e o resto afundou veloz na escuridão abaixo, junto com a mochila — uma lápide empapada de líquido.

A Ave Fantasma, ele percebeu vagamente, já tinha se projetado à frente, na direção de uma espécie de ovo amarelo reluzente que parecia ser um halo e podia ser, ou talvez não, o sol. Enquanto ainda engolia água entre os círculos convergentes das muitas facas rodopiantes que o fitavam com olhos críticos. Confuso pela espiral de páginas que flutuavam acima ou abaixo, que se grudavam às suas roupas, que se desfaziam em redemoinhos menores juntando-se ao vórtice. Por um breve segundo, teve diante dos olhos uma linha de texto e sufocava enquanto bocas lisas se chocavam contra seu peito.

Somente quando surgiu à sua frente um verdadeiro leviatã, sua mente sequiosa de oxigênio entendeu que eles tinham emergido no meio de um cardume de algo que pareciam barracudas perseguidas por um enorme predador. Veio uma terrível sensação de queda no vazio... um espaço rapidamente se fechando onde o enorme tubarão tinha penetrado no vórtice, aniquilando os peixes numa nuvem vermelha. Uma espécie de megalodonte. Lowry já em outra forma... O ar escapava de sua boca como bolhinhas de mentiras sobre o mundo que decidira pela sua extinção.

“Lowry” foi deixando vísceras no seu rastro, passando tão perto dele enquanto subia e Controle descia que o lado de seu rosto foi arranhado pelas guelras. As rebarbas, mais afiadas e mais duras do que ele podia imaginar, talhando-o, e a expulsão da água, um pistão rugindo furioso em seus ouvidos, e aquele olho enorme e ainda assim delicado, do lado esquerdo, encarando-o ao passar. Então seu estômago começou a pulsar dentro do corpo, seu tórax já machucado voltou a ser atingido com força pelo rabo da criatura, a cabeça retinindo, ele saiu volteando e não pôde mais evitar que a boca se abrisse, enquanto via a mancha do sol cada vez menor lá no alto. “Pegue a arma, Controle”, disse seu avô. “Pegue, aí embaixo do banco. Depois salte.”

Lowry, ou alguém mais, teria uma frase que pudesse salvá-lo?

Consolidação da autoridade.

Não há recompensa no risco.

Flutuando e flutuando.

Paralisia não é uma análise convincente.

Só que era. E, no entanto, no meio daquele estardalhaço e das espumas, e de tudo que se debatia à sua volta, certa mão conhecida agarrou seu pulso que afundava e puxou-o para cima. E então Controle não era mais apenas um rodopio de memórias confusas, um corpo castigado, uma cifra, aparentemente era alguma coisa que valia a pena salvar, era alguém em vias de ser salvo.

Seus pés tinham desferido chutes a esmo, como os pés de um enforcado, quando os peixes voltaram a convergir e seu corpo foi cercado por centenas de bocas lisas ou ásperas enquanto ele subia, enquanto sua mente se apagava no meio daquela torrente de corpos ascendentes, aquela áspera forma contínua de carne, um vasto estômago do qual ele podia até escapar, ou não.

E então os dois estavam na praia e a Ave Fantasma o beijava por algum motivo. Dava-lhe grandes beijos sequiosos que machucavam seus lábios, e pressionava seu tórax, e, quando ele abriu os olhos e fitou-a, ela o fez virar de lado. A água veio de dentro dele num jorro, depois ficou pingando. Controle se ergueu apoiando-se nos braços, olhando a areia molhada, as pequenas bolhas nos buracos enquanto a onda roçava suas mãos e recuava.

Deitado de lado, ele podia ver o farol ao longe. Porém, como se pudesse adivinhar sua intenção, a Ave Fantasma disse:

— Não vamos para lá. Vamos para a ilha.

E foi assim que ele perdeu o controle.


Agora, no quarto dia em que estavam na Área X, Controle seguia a Ave Fantasma por entre o mato alto — confuso, intrigado, doente, cansado. As noites eram tão povoadas de insetos que era difícil dormir com o rumor e o zunido. Enquanto isso, nos seus pensamentos, uma mancha vasta e invisível tinha começado a se formar por sobre o mundo do lado de fora da Área X, como água vazando do fundo de um copo trincado.

Pior: a atração gravitacional que a Ave exercia sobre ele, mesmo quando demonstrava indiferença, mesmo quando os dois se aconchegavam para dormir à noite, em busca de calor. A delicadeza inesperada e o delírio daquele toque acidental. E, no entanto, o recado que ela lhe dera, no momento em que ele cruzara uma espécie de fronteira e ela se afastara dele, tinha sido inconfundível e absoluto. De modo que ele se resignou a pensar de novo em si mesmo como Controle, porque era necessário, a fim de recuperar alguma distância, alguma medida de objetividade. Voltou a imaginá-la na sala de interrogatórios do Comando Sul, enquanto ele a contemplava por trás do espelho falso.

— Como você pode estar tão bem-humorada? — perguntou Controle, depois que a Ave Fantasma observou, cheia de disposição, como a comida e a água dos dois estavam acabando, e logo em seguida apontou uma espécie de pardal que afirmou estar extinta no mundo lá fora, com um êxtase quase religioso na voz.

— Porque estou viva — replicou ela. — Porque estou andando no meio da natureza num dia lindo.

Disse isso com um olhar de soslaio que Controle interpretou como certa curiosidade a respeito de como ele mesmo estava se saindo. Um olhar que o fez perceber que talvez os objetivos dela não fossem os seus, que os dois talvez estivessem convergindo apenas para depois divergir, e era melhor estar preparado. Ecos das missões de campo que deram errado. De sua mãe dizendo: “O dano operacional de um evento pode se apegar à mente como se fosse um fantasma.” Enquanto ele imaginava se mesmo as coisas mais banais que a mãe dizia podiam ter um sentido ou um propósito ocultos.

A liberdade pode afastar você do que procura, não aproximar. Era algo que ele estava aprendendo ali, operando fora de qualquer padrão de serviços de inteligência, numa natureza que não compreendia. Tão preparado para a Área X, percebeu, quanto para a Ave Fantasma, e talvez no fim das contas fosse tudo uma coisa só. Porque ali eles existiam juntos e sozinhos, caminhando ao longo de uma trilha entre lagos sufocados por juncos, que tanto podiam ser negros como alcatrão quanto verdes como as árvores refletidas nas águas, e que se aglomeravam em ilhas por entre os juncos... E Controle finalmente estava livre para perguntar a ela o que quisesse, mas não o fazia. Porque não tinha importância.

Em vez disso, então, enfiava a mão no bolso do casaco de vez em quando e cerrava os dedos em torno da pequena peça entalhada feita por seu pai, tirada da cornija da lareira da casinha na colina de Hedley. As linhas suaves, o modo como a fibra da madeira parecia prestes a partir-se sob a tinta, tudo isso o apaziguava. Era um pequeno gato entalhado e o fazia lembrar de Chorry, havia muito desaparecido, sem dúvida feliz, caçando ratos por entre as sebes da vizinhança.

Em vez disso, então, ele mergulhava, incomodado pela atração que exerciam, no exame das três páginas que salvara do relatório de Whitby, as páginas sobre terroir, embora elas fossem algo mais pessoal do que isso. Uma âncora, uma ponte para sua lembrança do resto do manuscrito, perdido no mar. Se usava os papéis para puxar papo com a Ave Fantasma, era em parte para lhe servir de conforto ou de distração da proximidade dela e do modo como os juncos intermináveis, o ar fresco, o céu azul, tudo conspirava para tornar o mundo real algo remoto, sem importância, um mero sonho. Quando era a coisa mais importante.

Em algum lugar lá fora, a mãe dele estava lutando pela sua carreira na Central, uma ação que era sinônimo de lutar contra a invasão da Área X. Em algum lugar, também, novas frentes de luta tinham sido abertas, a Área X se expandindo de novas maneiras, que talvez nem se enquadrassem nas características que tinha antes. Como saber? Talvez os aviões estivessem caindo do céu, e essa não missão, esse acompanhamento que ele estava fazendo já fosse um fracasso.

Citando o relatório de Whitby, do modo como Controle conseguia lembrar, parafraseando-o: “Será que eles não tinham proferido uma sentença sem julgamento? Será que não tinham decidido por si mesmos que não poderia haver um acordo, uma negociação?”

— Isso pode estar mais próximo da verdade, de algum tipo de verdade — explicou a Ave Fantasma.

Era o começo da tarde e o céu tinha adquirido um azul profundo, por onde deslizavam nuvens longas e estreitas. O pântano estava cheio de estardalhaço e canto de pássaros.

— Condenados por um júri alienígena — disse Controle.

— Nem tanto. Pela indiferença.

— Ele fala sobre isso também: “Essa não seria uma humilhação final para a condição humana? Que as árvores e os pássaros, a raposa e o coelho, o lobo e a corça... cheguem a um ponto em que nem sequer nos vejam, enquanto estamos sendo transformados?”

Era outro trecho que Controle lembrava parcialmente, o real ficando parcialmente real. Mas o pai dele nunca tinha dado muito valor à autenticidade de expressão, mas à ousadia.

— Está vendo aquela corça, depois do canal? É bem evidente que ela está nos vendo.

— Ela está nos vendo, ou está nos vigiando?

Qualquer um desses cenários teria apavorado sua mãe, a espiã, que nunca tinha se sentido à vontade junto à natureza. Ninguém da família, na verdade. Ele não conseguia se lembrar de nenhum passeio verdadeiro pelos bosques, somente a pescaria no lago e os dias sentados junto à fogueira no inverno.

— Vamos fingir que é o primeiro caso, já que não podemos fazer nada quanto ao segundo.

— Ou então isto — prosseguiu Controle. — “Ou talvez estejamos recuando no tempo; alguma criatura ou algum impulso do passado está se apossando de nós enquanto tentamos parar.”

— Uma coisa muito estúpida de se dizer — retrucou a Ave Fantasma, incapaz de não morder a isca. — Os ambientes naturais não são diferentes das cidades humanas. O velho existe ao lado do novo. As espécies invasoras se integram com as nativas, ou as empurram para o lado. A paisagem que você vê ao seu redor é como uma velha catedral junto de um arranha-céu. Você não acredita mesmo nessas bobagens, acredita?

Controle dirigiu a ela o que esperava ser uma expressão desafiadora, que não deixasse transparecer o quanto começava a duvidar de Whitby, mesmo ainda recitando o evangelho dele. Continuava mantendo só para si os trechos que podiam conduzir a algo mais substancial, de modo a poder pensar neles mais um pouco, contaminando-os com sua própria opinião.

— Estou tentando separar o irrelevante do útil. Estou tentando fazer algum avanço antes de chegarmos à ilha.

Incapaz de evitar o tom venenoso na palavra “ilha”. O Avô Jack teria sentido o mesmo a respeito do lugar, estaria inquieto, pressionando, sem ligar para o bem que aquilo poderia fazer à Ave Fantasma.

— Alguma expedição já foi até lá? — perguntou ela.

Controle percebeu sua tentativa de mudar de assunto.

— Se foi, nenhuma informação a respeito chegou ao Comando Sul — disse ele. — Não era prioridade.

Talvez houvesse muito mais coisas com que se preocupar.

— Por que o foco todo voltado para o farol e para a anomalia topográfica, não para a ilha?

— Isso você tem que perguntar à ex-diretora. Ou então a Lowry.

— Eu nunca o conheci — retrucou ela, como se isso negasse a existência dele.

A verdade é que o nome Lowry soava irreal a Controle, quando pronunciado naquele lugar. Mas Lowry também se recusava a ser posto de lado, ignorado; mantinha-se flutuando na periferia da visão de Controle como um grão de poeira majestoso, demoníaco. Manifestando-se todas as vezes que ele temia estar numa missão inculcada tão profundamente em seu cérebro que era impossível arrancá-la. Comandos desconhecidos, mensagens, imperativos, impulsos que não eram seus, que podiam ser ativados por outra pessoa.

— Pensamos em termos de máquinas, não de animais. O inimigo não reconhece as máquinas.

Ele gostava da palavra inimigo; ela ajudava a cristalizar e focar sua atenção mais do que “Área X”. Área X era apenas um fenômeno que havia descido sobre a humanidade, como um evento climático, mas um inimigo produzia determinação e foco.

Ela riu ao ouvir máquinas, não animais.

— É muito claro que a Área X entende as máquinas e reconhece sua presença. Ela as compreende melhor do que nós. — A Ave Fantasma se deteve para encará-lo, dando ênfase, e havia algo como uma raiva pulsando nela. — Você não entendeu ainda que, seja o que for que esteja gerando isto, pode manipular o genoma, produzir milagres de mimetismo e de biologia? Sabe o que fazer com moléculas e com membranas, pode ver através das coisas, pode vigiar e retirar-se depois. Em comparação, um smartphone, por exemplo, é algo tão básico quanto uma ponta de flecha feita de pedra. É algo que está operando com sentidos tão refinados e complexos que os instrumentos usados por nós, nossas maneiras de registrar o universo, são provavelmente a prova de nossa natureza primitiva. Talvez isso nem sequer pense que somos dotados de consciência ou de livre-arbítrio, não dentro da sua maneira de medir essas coisas.

— Se for verdade, então por que nos dá tanta atenção?

— É provável que esteja nos dedicando o mínimo possível de atenção.

Tem alguma coisa no canto do seu olho que você não consegue tirar?

— Então desistimos. Vamos viver na ilha, vamos usar chapéus feitos de folhas, recolher as coisas que vêm na maré.

Construir uma casa com as costelas de um daqueles leviatãs vistos em sonho. Ouvir música enquanto bebemos uísque clandestino feito com ervas venenosas. Dar as costas ao mundo real, já que ele não existe mais.

Ignorando-o, ela disse:

— Uma baleia pode machucar outra apenas usando o seu sonar. Pode conversar com outra que esteja a cem quilômetros de distância no oceano. Ela é tão inteligente quanto nós, mas de uma maneira que somos incapazes de medir ou de entender. Porque somos estes instrumentos incrivelmente cegos. — Aquela ideia novamente. — Ou você é, pelo menos. — Talvez ela não tivesse murmurado isso, talvez ele tivesse apenas imaginado.

— Você simpatiza com Isso — disse Controle. — Você gosta Disso.

Um golpe baixo, mas ele não pôde evitar.

Com frequência, nos últimos quatro dias, sentia-se como se estivesse caminhando no interior de um dos dioramas do museu de história natural, de que gostava tanto — algo instigante, fascinante, mas não totalmente real, ou pelo menos não o suficiente para ele. Mesmo que os efeitos ainda não tivessem se manifestado, Controle estava sendo invadido, infectado, refeito. Será que seu destino era se transformar numa criatura gemendo no meio dos juncos, e depois servir de alimento para as minhocas?

— Havia muita coisa sobre as “cópias” nas notas de Whitby — disse ele, algum tempo depois, uma provocação para testá-la.

Principalmente porque a atenção dela parecia sempre distante, os olhos virados para o céu. Talvez quisesse ver se a Ave Fantasma falaria de sua própria condição de forma desapaixonada. E também, ele sabia, com um fiapo de vingança, que não conseguiu evitar. Porque não tinha o menor sentido ir para a ilha.

Como ela não disse nada, Controle inventou uma citação, com uma sensação de culpa no instante em que as palavras lhe saíam da boca:

— “No sentido de que a cópia perfeita se torna a coisa que imita, e isso ocorre mediante algum processo estranho, porém estático, ela revela certa verdade sobre o mundo. Mesmo que não possa, por definição, ser o original.”

Ainda sem resposta.

— Não? Que tal esta aqui: “Quando você encontra a si mesma e vê seu duplo, você se solidariza, ou tem o impulso de destruir a cópia? Julgá-la pouco real, e fazê-la em pedaços, como um boneco de papelão?”

Outra citação falsa, porque Whitby não tinha discutido a questão dos duplos em nenhuma parte do maldito documento.

Ela parou de andar e o encarou. Como sempre, ele teve dificuldade em não desviar os olhos.

— É disso que você tem medo, Controle? — perguntou a Ave Fantasma sem crueldade ou paixão na voz. — Porque eu posso hipnotizá-lo.

— Talvez você também seja vulnerável — disse Controle em tom de advertência, mesmo sabendo que poderia chegar um momento em que ia precisar que ela usasse a hipnose, como tinha feito no túnel onde entraram para chegar à Área X.

Segure minha mão. Feche os olhos. Ele sentiu-se como que rastejando interminavelmente para fora da boca de uma serpente negra como nanquim, sentiu que era quase capaz de “ver” aquele som rascante produzido no fundo de sua garganta e que, em todas as direções daquele azul-escuro à sua volta, tão parecido com um hematoma, havia leviatãs à espreita.

— Não sou.

— Mas você é o duplo, a cópia — insistiu ele, pressionando-a. — Talvez a cópia não tenha as mesmas defesas. E você ainda não sabe por quê.

Isto, ela própria tinha lhe dito.

— Teste-me — falou ela, com um rosnado baixo. A Ave Fantasma parou, encarou-o, largou a mochila no chão. — Vá em frente e me teste. Diga. Diga as palavras que você acha que vão me destruir.

— Eu não quero destruir você — replicou ele com calma, afastando o olhar.

— Tem certeza? — perguntou ela, chegando mais perto. Controle sentiu o cheiro de suor, viu os ombros dela se arqueando, a mão esquerda semicerrada. — Tem certeza? Por que não me inocula, já que se sente inseguro? Você está dividido entre me querer e não saber se eu sou humana, não é mesmo? Fabricada pelo inimigo. Devo ser o próprio inimigo. Mas mesmo assim você não se contém.

— Ajudei você quando estávamos no Comando Sul — lembrou ele.

— Não agradeça às pessoas só porque fizeram o que era sua obrigação. Foi você quem me disse isso.

Ele deu um passo para trás, desajeitado.

— Eu estou aqui, Ave Fantasma, viajando para um lugar aonde não gostaria de ir. Acompanhando uma pessoa que não tenho certeza de conhecer.

E que era um farol para ele, ainda, o que o deixava ressentido, porque não queria. Mas nada podia fazer.

— Bobagem. Você sabe exatamente quem eu sou, ou deveria saber. Você está com medo, tanto quanto eu — rebateu ela, e Controle soube que era verdade.

Ele não tinha defesas contra nada, ali fora, principalmente contra ela.

— Eu não acho que você está com o inimigo — disse ele, a palavra inimigo soando agora dura e pouco razoável. — E não penso em você como uma cópia. Não mesmo.

Exasperação, bem quando a Ave Fantasma estava cedendo, ou pelo menos ele pensou que estava:

— Eu sou uma cópia, John. Mas não uma cópia perfeita. Eu não sou ela. Ela não sou eu. Sabe o que eu diria se me deparasse com ela?

— O quê?

— “Você cometeu erros para cacete, cometeu muitos erros, e mesmo assim eu te amo. Você é uma bagunça e uma revelação, mas não posso ser nada disso. Tudo que posso é resolver as coisas sozinha.” E então, como a conheço bem, sei que ela iria me olhar de um jeito engraçado e tirar uma amostra do meu corpo.

Ele explodiu numa gargalhada, batendo a mão no joelho com força.

— Tem razão. Provavelmente tem razão. É exatamente o que ela iria fazer.

Tirou também a mochila das costas e sentou-se no chão, enquanto ela continuava no mesmo lugar, tesa como uma sentinela.

— Tenho agido além da minha capacidade aqui. Estou completamente fodido. Mesmo que a gente fosse para o farol.

— Completamente fodido — repetiu ela, sorrindo.

— Estranho, não é? É um lugar estranho para se estar.

Ser arrancado de si mesmo, mesmo contra a vontade. De repente sentiu-se mais calmo do que em qualquer momento desde que chegara ali; todos os seus fracassos estavam amortecidos, indistintos, por trás de uma fronteira de outra natureza.

A Ave Fantasma o olhou, avaliando-o.

— Temos que seguir. Mas você pode continuar lendo.

Ela estendeu a mão, e a força da sua pegada, quando ele se pôs de pé, lhe passou mais segurança do que qualquer palavra.

— Mas isto é a porra de um desastre. Estou lendo para você as últimas vontades e o testamento de um tolo.

— Que outra distração temos aqui?

— É verdade.

Controle não havia falado a ela sobre aquele estranho aposento de Whitby ou as suspeitas que tinha a respeito da atuação do homem na Área X. Não lhe contara sobre aqueles últimos momentos desesperados no Comando Sul, quando a fronteira avançou. E não dizendo nada sobre isso à Ave Fantasma, começou a entender melhor as mentiras que sua mãe lhe contara. Ela desejara encobrir o cerne das suas decisões escondendo alguns fatos ou diluindo outros. Mas deveria ter sido sábia o bastante para perceber que, independentemente de suas motivações, independentemente do labirinto, cada omissão deixava algum sinal de sua presença.

— Como é que Isso se renova, se não for por nossas ações? Nossas vidas?

Era Whitby quem perguntava, ainda vivo em Controle quando o homem propriamente dito estaria àquela altura morto ou coisa pior.

Mas a Ave Fantasma não estava ouvindo. Algo no céu chamou de novo sua atenção, algo que ele sabia não poder ser um bando de cegonhas. Controle ergueu o binóculo, ajustando-o em busca do que ela estava observando. Quando encontrou, ajustou o foco algumas vezes, incerto quanto ao que via.

Mas estava vendo.

Do outro lado do azul que começava a escurecer, bem lá no alto, alguma coisa vagava, algo que lembrava faixas de pano dilaceradas em longuíssimas tiras. Longas e largas e alienígenas. Avançava tão alto, tão distante... Controle pensou em uma sacola de plástico feita em tiras, estripada dessa forma para se alongar e tremular no céu... exceto que elas também faziam parte do céu. A textura que tinham, o modo como existiam e não existiam, o fizeram recuar, fizeram sua mão contrair-se sem querer, ficar dormente, a pele gelada, lembrando uma parede que não era uma parede. Uma parede que respirava ao toque dos seus dedos.

— Abaixe-se! — disse a Ave Fantasma, e o forçou a ficar de joelhos num monte de juncos caídos.

Ele podia sentir o brilho dentro de si, agora — compacto, tenso, retesando-se como se fosse sua pele que estivesse sendo repuxada, sendo atraído para aquele céu que já não era mais um céu. E com tal força que teria ficado de pé se a Ave Fantasma não o forçasse a se abaixar novamente. Ele ficou ali, agradecido pela sensação do peso dela junto ao corpo, agradecido por não estar sozinho.

Lá vinham, costurando pelo céu afora de uma maneira terrível, emergindo, mergulhando, erguendo-se novamente, e houve então um grito terrível que dilacerou não só seus ouvidos mas ele por inteiro, como se as partículas minúsculas de alguma coisa física o tivessem atravessado. Controle praguejou, grudado no mesmo lugar, vigilante, com medo.

— “Aquelas linhas ondulantes que estão lá e não estão lá.”

Era uma linha do relatório de Whitby que não comentara com ninguém porque não havia entendido. Imagens do vídeo da primeira expedição vieram à sua mente.

— Fique parado — sussurrou a Ave Fantasma ao seu ouvido. — Fique parado.

Ela protegeu o corpo dele com o seu, estava tentando dar a impressão de que ele não estava ali.

Controle tentou até mesmo não respirar, ficar imóvel a ponto de não estar mais vivo. Enquanto aquilo vinha costurando o céu, podia ouvi-lo ondulando, mergulhando, emergindo de novo, como um barco a vela, e se arriscou a olhar, viu que um impacto no ar o imobilizava, e por um instante aquilo ficou ali esticado, retesado como uma pele, quase fragmentando-se, mas sem ceder.

Então, com um mergulho final seguido de uma guinada, passando muito perto deles, a presença desvaneceu-se da existência, ou deslizou para fora do ar, e o céu voltou a ser como antes.

Controle não teve palavras para aquilo, fossem de Whitby ou dele mesmo. Aquilo não era um diorama sem vida. Aquilo não era o esqueleto bestial de um homem desconhecido. Agora, tudo parecia ser possível. Tudo podia acontecer. Ele agarrou com força o entalhe de Chorry, apertou-o tanto que quase cortou a pele.

Ficaram ali imóveis até que uma tempestade encheu o céu que Controle agora estava considerando traiçoeiro, e através da luz daquela penumbra cinzenta percebiam-se relâmpagos, trovões e, junto com a chuva que logo os encharcou, vieram criaturinhas como girinos, escuras, escorregadias, que tomaram o solo em volta enquanto os dois tentavam se abrigar embaixo de um pequeno grupo de árvores enegrecidas e tortas, com folhas que pareciam adagas. Os tais girinos se pareciam mais com riachinhos vivos, do tamanho do mindinho dele. Controle não conseguia parar de pensar que tinham vindo através da abertura no céu, que de alguma forma aquilo havia se desintegrado em milhões de pedacinhos, e que isso, agora, passava a fazer parte também do ecossistema da Área X.

— O que acha que eles vão virar? — perguntou ele.

— Vão virar aquilo que tudo aqui está virando — respondeu ela, e isso não era resposta nenhuma.

Quando a tempestade passou, o pântano encheu-se de sons dos pássaros e do gorgolejo da água nos canais, e nada parecia fora do lugar. Talvez os juncos parecessem mais vibrantes, as árvores, mais verdes, mas isso devia ser por causa da qualidade da luz, vinda de um sol que parecia tão distante quanto o resto do mundo.

Depois de algum tempo, eles ficaram de pé. Um pouco depois, em silêncio, prosseguiram, andando bem mais próximos do que antes.


0006: A DIRETORA

Há um lugar que, quando criança, você chamava de o mais longe de todos — o lugar mais distante aonde podia ir, o lugar em que podia fingir ser a única pessoa no mundo. Estar ali a deixava alerta, mas também lhe dava uma espécie de paz, uma sensação de segurança. Além daquele ponto, em qualquer direção, você estava sempre voltando, e continua voltando. Mas naquele instante, e mesmo agora com Whitby ao seu lado, você está tão longe que não existe mais nada a quilômetros, e sente isso. Sente com força. Passou de um pouco tensa para um pouco cansada, e agora atravessa esta cena totalmente imóvel, onde o matagal se transforma em pântano, onde um canal de água doce alimenta o pântano salgado e, no final de tudo, o mar. Onde um dia avistava lontras, escutava o grito dos maçaricos. Você respira fundo e relaxa no meio desta paisagem, caminha ao longo da orla deste paraíso inferior, rejuvenescida pela calma perfeita. Desta vez suas pernas não estão muito cansadas e você não tem medo de nada, nem mesmo da Área X, e em sua mente não há lugar para lembranças ou pensamentos ou qualquer outra coisa que não seja este momento, e o próximo, e o próximo.

Não demora muito, no entanto, e essa sensação se esvai, e você e Whitby — sobreviventes da anomalia topográfica — estão agora parados nas ruínas do chalé que foi de sua mãe. Apenas um andar e duas paredes com o papel tão desbotado que você não identifica mais a estampa. No deque afundado, com o chão de madeira todo partido, vê-se a linha de tábuas apodrecidas que servia de passarela rumo às dunas, e de lá até o oceano, de brilho azul metálico, que despeja espumas na areia e depois as leva de volta. Talvez você não devesse ter vindo para cá, mas precisava de algo parecido com a normalidade, alguma evocação daqueles dias antes que tudo desse errado — dias que à época pareciam tão banais.

“Não se esqueça de mim”, tinha dito Saul naquela época, como se falasse não só por ele mas também por sua mãe, e por todo o resto daquele litoral esquecido. Agora, mais esquecido ainda, com Whitby de pé num extremo e você no outro, precisando de espaço. Ele está inseguro a seu respeito, e você certamente está insegura quanto a ele. Whitby quis abortar a missão depois que deixaram a torre, mas em nenhum momento você achou que podiam simplesmente partir. Este lugar é sua casa, e não seria Whitby quem iria impedi-la de levar a missão até o fim, mesmo protestando, mesmo choramingando e tentando escapar, mesmo implorando para que vocês cruzem a fronteira de volta imediatamente.

“Onde está seu otimismo agora?”, você quer perguntar, mas, onde quer que ele esteja, não é mais no seu mundo.

Muito tempo atrás, uma ou duas fogueiras foram acesas sobre o piso do chalé, no lugar onde antigamente ficava a sala de estar, ao abrigo de uma parede agora perigosamente inclinada. As manchas carbonizadas indicam que, mesmo depois da Área X, havia pessoas vivendo ali. Sua mãe teria acendido aquelas fogueiras? O chão está coberto de besouros mortos, esmagados em formas cor de esmeralda, musgo verde-azulado e grossos cipós criando um oceano verde e caótico por cima de tudo. Cambaxirras e outros pássaros miúdos se esgueiram pelos arbustos lá fora, instalam-se na moldura vazia da janela virada para o continente, depois levantam voo. A janela onde você esperava pela visita do seu pai; a estrada que dava acesso aos carros já foi coberta pela proliferação de arbustos e ervas daninhas.

Latas de conserva, há muito enferrujadas e em decomposição, e uma espessa camada de solo que emerge dos cantos, através das tábuas do assoalho roídas pelos insetos, que é o que resta delas. A anomalia de um monte de pratos empilhados, rachados, sobre uma pia que afundou em si mesma e foi coberta por mofo e líquens, enquanto as prateleiras abaixo apodreciam.

Há em você um pesar, um tipo de farol que você deixou se apagar. Nunca foi dito às expedições que pessoas tinham vivido ali, trabalhado ali, embriagado-se e tocado música. Pessoas que viviam em trailers e em bangalôs e em faróis. Melhor não pensar em gente vivendo ali, melhor achar tudo vazio... e contudo você agora quer que alguém lembre, alguém capaz de entender tudo que foi perdido, mesmo que tenha sido pouco.

Whitby fica parado ali como um intruso enquanto você explora o local; sabe que você esconde algo a respeito do chalé. A linha fina e reta da boca dele, o ressentimento no olhar... é algo natural, ou já é a Área X transformando-o, fazendo-o voltar-se contra você? Quando você emergiu da torre, fugindo do que quer que estivesse subindo por ela com tanta velocidade, encontrou-o gritando, balbuciando a respeito de algo que o atacara.

— Não houve nenhum som. Nada. Então... uma parede atrás de mim, correndo através de mim. Depois se foi.

Mas desde então ele não dissera mais nada, nem você comentou sobre o que viu antes de subir correndo aqueles degraus até o lado de fora. Talvez nenhum dos dois imagine que o outro irá acreditar no que ouvir. Talvez ambos estejam esperando voltar primeiro para o mundo.

Não há corpos no chalé, mas você esperava o quê? Que ia encontrá-la enrodilhada sobre si mesma, protegendo-se da catástrofe enquanto o mundo era transformado à sua volta? Isso não se encaixa no perfil de sua mãe. Se houvesse alguma coisa contra a qual lutar, ela lutaria. Se houvesse alguém precisando de ajuda, ela ajudaria. Se pudesse fugir para um lugar seguro, ela o teria feito. Nos seus devaneios é que ela continuava apegada àquele lugar, como você se apegou, esperando socorro.

Quando estava no Star Lanes Lounge, rabiscando, você sentia o chalé se aproximando em momentos estranhos, junto com o farol. Sempre aquela compulsão, como o recuo de uma onda, arrastando-a de volta para a água, aquela vontade de saber, tão maior do que qualquer medo. O som das ondas na maré alta da meia-noite, e o modo como da janela do seu quarto no chalé de sua mãe você podia ver a arrebentação sob o luar como uma série de linhas azul-metálicas, com a água escura espremida entre elas. Às vezes aquelas linhas eram interrompidas pela presença de quando sua mãe caminhava na praia tarde da noite, acordada e perdida em pensamentos que nunca compartilhava, o rosto virado noutra direção. Como se naquele tempo ela já estivesse procurando a resposta que você procura agora.

* * *

— Que lugar é este? — repete Whitby. — Por que estamos aqui?

A voz dele acusa o estresse.

Você o ignora. Tem vontade de dizer “Foi aqui que eu cresci”, mas ele já sofreu mais choques do que podia suportar, e você ainda vai ter que encarar Lowry, com todo o Comando Sul, quando voltar. Caso volte.

“Aquele lugar, ali, na sombra, por baixo desses cipós, era o meu quarto”, responderia, se pudesse. “Meus pais se divorciaram quando eu tinha dois anos. Meu pai foi embora. Ele é uma espécie de golpista sem importância, e foi minha mãe quem me criou, embora todos os anos eu passasse as férias de inverno com ele. Até que eu fiquei com meu pai definitivamente, porque não podia mais voltar para casa. E ele mentiu para mim sobre as razões disso até eu ficar mais velha, o que foi provavelmente uma decisão acertada. E passei minha vida inteira pensando em como seria voltar aqui, a este lugar. Imaginava o que eu ia sentir, o que iria fazer. Às vezes imaginava até que encontraria algum recado de minha mãe, algo que ela tivesse tido a precaução de guardar numa caixa de metal ou embaixo de uma pedra. Algum sinal, porque mesmo agora eu preciso de uma mensagem, um sinal.”

Mas ali no chalé não há absolutamente nada, nada que você já não soubesse, e lá está o farol ao fundo, rindo de você, dizendo “Eu não avisei?”.

— Não se preocupe, logo estaremos em casa — fala você.

Guardando o melhor para o fim, ou seria o pior? Quanto de uma infância pode ser destruído ou distorcido antes que a nova camada substitua as lembranças?

Você passa bruscamente por Whitby, porque não quer que ele veja que está irritada, que a Área X vem se fechando de novo sobre você.

As últimas tábuas remanescentes no chalé rangem e gemem, produzindo uma melodia rude. As aves piam com insistência nas moitas, perseguindo-se, subindo em espirais para o céu. Vai chover em breve, o horizonte parece uma testa franzida, um aríete na direção da costa. Será que eles viram quando veio, mesmo Henry? Foi algo visível? Algo que passou sobre eles, varrendo-os? Quando você é criança, a única coisa que sua mente processa é que sua mãe morreu; depois você precisa de anos para pensar na morte dela sob outros aspectos.

Tudo o que vê é a expressão no rosto de Saul naquela última vez em que o encontrou, quando menina — e o olhar que você mesma lançou àquele litoral esquecido através da janela traseira empoeirada do carro, quando fizeram a curva deixando a estrada de terra e pegando a rodovia estadual, e as tremulações distantes do mar sumiram da sua vista.


0007: O FAROLEIRO

Avistei dois cargueiros e um barco da guarda costeira ontem à noite. Alguma coisa maior no horizonte — um petroleiro? “Tal é este vasto e espaçoso mar, onde se movem seres inumeráveis, animais pequenos e grandes. Ali passam os navios.” A sirene do lado oeste ainda não está ok — fio solto? Me sentindo um pouco mal, fui ao médico. Fiz uma caminhada. Vi um corujão em cima de uma tartaruga, tentando devorá-la. Não entendi o que estava vendo. Fiquei perturbado, no início. Pensei que era algum ser estranho com corpo coberto de penas e um coto coberto de armadura. O corujão ergueu a cabeça e apenas olhou para mim, não voou até que eu o afugentasse de cima da tartaruga.

Atos de amorosa bondade. A inutilidade da culpa.

Às vezes Saul sentia falta dos sermões, da cadência deles, maneira como podia tirar de si as palavras e enviá-las para fora, nunca perdendo a profunda conexão entre elas. Podia citar uma coisa e fazê-la entrar em muitas mentes. Mas então houve um dia, no tempo em que era pastor, quando se viu sem palavras, quando percebeu que estava desfrutando das cadências de suas frases muito mais que do seu sentido — e com isso viu-se perdido durante algum tempo, dando braçadas num enorme mar de dúvidas, certo de que tinha fracassado. Porque tinha fracassado. Falar do fogo do inferno e de visões apocalípticas, da destruição iminente do mundo na mão de demônios, não é capaz de sustentar um homem durante tanto tempo sem secar também alguma coisa dele. No final, Saul não sabia o que estava dizendo ou no que acreditava, por isso livrou-se daquilo tudo com uma sacudida dos ombros que jogou uma vida inteira para longe, e partiu na direção do Sul, o mais distante que pôde. Fugindo, também, do pai que tinha se alimentado daquele culto crescente à personalidade, fora ao mesmo tempo manipulador e invejoso, e isso foi algo que ele não suportou por muito mais tempo: ver que um homem tão distante, que tinha projetado tão poucas luzes, viesse agora revelar a Saul somente as emoções que ele não queria.

Tudo se alterou depois da mudança. Em muitos aspectos ele se sentia ali no Sul tão diferente de como era no Norte, e sentia-se diferente porque estava feliz, e não queria aceitar uma doença ou qualquer coisa que pudesse interferir em algo que já era ideal.

No entanto, havia uma certa dormência quando estava na cama com Charlie, uma semana depois do incidente com aquela planta, um acontecimento que o fizera passar uns dez minutos sentindo-se como que desconectado do corpo. Ou os momentos desconcertantes em suas caminhadas ao longo da praia nas proximidades do farol, em tese para policiar a presença de invasores, mas na verdade para observar os pássaros.

Ele olhava na direção do mar e, com o canto do olho, via coisas nadando, coisas que não era capaz de explicar apenas como pontinhos negros na visão. Seria paranoia ou uma dúvida persistente? Alguma parte de seu cérebro tentando botar tudo a perder, querendo que ele se sentisse infeliz — para fazê-lo negar a si mesmo a vida que estava construindo ali?

Comparada a esses acontecimentos, a presença da Brigada Leve tinha se tornado menos e menos real, e nos dias que se seguiram à fotografia havia vigorado uma espécie de trégua, um acordo de não acusação recíproca. Ele tinha consertado o buraco na lente, limpado o vidro, e disse a si mesmo que todo mundo merecia uma segunda chance.

Mas às vezes os encontros entre eles eram tensos.

Naquele dia, Saul entrou na própria cozinha e encontrou Suzanne preparando um sanduíche, sem nenhuma vergonha ou constrangimento por ter sido descoberta. O presunto dele e as fatias de queijo dele estavam empilhados na bancada, junto com o pão branco dele, a cebola dele e um tomate arrancado do jardim dele. Empoleirada no banquinho da cozinha num ângulo exagerado, uma perna esticada, pé pousado no chão, e a outra encolhida, Suzanne e sua postura o tinham deixado ainda mais irritado. Porque dava quase a impressão de que ela estava pregada ali, rígida, mantendo uma posição tão artificial para ela quanto parecia para ele.

Henry interveio, então, e antecipou-se às perguntas de Saul, sua preleção sobre não pegar as coisas dos outros como se fossem suas. Sobre não preparar um sanduíche sem pedir licença primeiro, o que pareceu na hora muito invasivo, e depois, bastante trivial.

Henry disse, num tom quase de bate-papo:

— Não acontecem coisas tipo assombração aqui, acontecem, Saul? Aqui por perto, ou um pouco mais longe?

Tudo o que conseguiu foi um sorriso forçado. Todo mundo conhecia as histórias de fantasmas do litoral esquecido.

— E olhe, provavelmente é uma coincidência, mas, desde aquele quase desmaio que você teve lá fora, nossas leituras estão malucas, totalmente distorcidas. Às vezes dá a impressão de que o equipamento não presta, está com defeito, mas não, a gente testa e não tem nada de errado com ele. Estou certo, não estou, Saul?

O “quase desmaio” lá fora. Henry estava mesmo determinado a irritá-lo.

— Ah, sim, está funcionando normalmente, tudo bem. — Saul tentou soar jovial.

Qualquer pessoa acharia que Henry, principalmente, era uma espécie de bufão, e suas tentativas canhestras de travar uma conversa eram sinal de desajuste social. Mas ele muitas vezes dava nos nervos de Saul, apenas ao ficar por perto.

De modo que ele mandou a dupla embora, ligou para Charlie e convidou-o para almoçar, trancou seus aposentos e dirigiu até o bar do vilarejo para fazer uma pausa.

O bar do vilarejo era um local improvisado, ao estilo de quem estivesse por lá. Naquele dia era um furgão de churrasco estacionado e um refrigerador cheio de cerveja. Pratos de papel de algum aniversário de criança, um bolo com velinhas em um fundo cor-de-rosa. Os dois se sentaram do lado de fora, no deque de madeira virado para o mar, numa mesa sob uma sombrinha azul desbotada.

Falaram sobre o dia de Charlie no barco, e sobre um novo morador local que comprara uma casa semidemolida por um furacão, e como o Velho Jim precisava muito trocar os móveis do bar porque “não é justo manter uma espelunca num lugar onde não existe nenhum bar decente para servir de comparação”. E sobre como eles talvez procurassem ouvir a banda de rock de que Charlie tinha falado recentemente. Como, em vez disso, talvez acabassem passando o resto do dia na cama.

E como a Brigada Leve estava fazendo mal aos nervos de Saul.

— Henry é esquisito — disse ele. — Tem um olhar estranho, como uma espécie de agente funerário. E Suzanne o acompanha aonde quer que ele vá.

— Eles não podem ficar vindo aqui eternamente — afirmou Charlie. — Um dia irão embora. Os Esquisitinhos. A Brigada Esquisita.

Experimentando palavras apenas por prazer, talvez porque os dois já tivessem tomado algumas cervejas àquela altura.

— Pode ser, mas enquanto isso eles me dão arrepios.

— Será que não são agentes disfarçados da Agência de Proteção Ambiental?

— Claro, afinal eu passo a noite despejando resíduos químicos.

Charlie estava brincando, mas o litoral esquecido tinha sofrido ao longo de uma ou duas décadas com uma legislação muito liberal no que dizia respeito ao despejo de resíduos biológicos numa “área não incorporada”. Aquela natureza selvagem ocultava uma quantidade de tonéis em decomposição maior do que se podia imaginar, alguns deles em velhas fazendas abandonadas, meio afundadas no barro dos pinheiros.

Mais tarde voltaram a tocar naquele assunto, no chalé de dois quartos de Charlie, que ficava na mesma rua. Havia umas duas fotos de sua família, alguns livros, pouca coisa na geladeira. Nada que ele não pudesse jogar numa mochila se de repente resolvesse ir embora ou morar com alguém.

— Tem certeza de que eles não escaparam de algum manicômio nas redondezas?

Saul deu uma risada, porque no verão anterior dois internos tinham fugido de um hospício e foram dar na periferia de Hedley, e de lá vieram até o litoral esquecido, onde conseguiram ficar à solta por quase três semanas antes de a polícia os encontrar.

— Se tirassem todos os loucos daqui, não ia sobrar ninguém.

— Exceto eu — disse Charlie. — Exceto eu e talvez você.

— Exceto os pássaros e as corças e as lontras.

— Exceto as colinas e os lagos.

— Exceto as cobras e as escadas.

— O quê?

Àquela altura os dois já estavam tão animados sob os lençóis que podiam estar dizendo qualquer coisa, e de fato estavam.


No dia seguinte, foi Gloria quem o convenceu a procurar um médico. Henry e Suzanne estavam de volta ao farol, e Saul trabalhava embaixo, quando ela apareceu no começo da tarde, sua sombra surgindo diante dele. Estava tão acostumado com a menina que se ela não aparecesse ele pensaria que algo errado havia acontecido.

— Você está diferente — disse Gloria, e ele ficou ruminando aquilo durante certo tempo.

Dessa vez ela estava encostada no barracão, olhando-o replantar o gramado lá de fora. Brad, o voluntário, tinha prometido dar uma ajuda, mas não aparecera até então. O sol lá no alto era um enorme escarro de catarro amarelo. As ondas não paravam de vibrar através dele, mas bem abafadas. Estava com um dos ouvidos entupido desde a hora em que se levantara, sem dúvida porque dormira por cima dele de mau jeito. Talvez ele estivesse mesmo ficando velho para aquele tipo de trabalho. Talvez houvesse mesmo um motivo para que os faroleiros tivessem que se aposentar aos cinquenta.

— Hoje estou um dia mais velho e um dia mais sábio — replicou ele. — Você não deveria estar na aula? Isso a deixaria mais sábia também.

— Minha professora hoje está trabalhando.

— O faroleiro também está trabalhando — disse ele, soltando um grunhido ao enterrar a lâmina da pá na areia dura.

Estava se sentindo com a pele borrachuda, sem forma, e tinha um tique nervoso embaixo do olho esquerdo pulsando visivelmente.

— Então me mostre como é seu trabalho, e eu posso lhe ajudar.

Ouvindo isso, ele parou, apoiou-se na pá e ficou olhando para ela. Se continuasse crescendo assim, bem que poderia virar uma boa jogadora de futebol americano um dia.

— Você quer trabalhar como faroleira?

— Não, eu quero usar a pá.

— Ela é maior do que você.

— Pegue outra no barracão.

Sim, o barracão. Onde tudo ficava guardado, exceto quando não ficava. Ele ergueu os olhos para o alto do farol, onde a Brigada Leve estava certamente fazendo coisas inimagináveis.

— Ok — disse ele, e foi pegar uma pá pequena, mais decorativa do que qualquer outra coisa.

Recusando com uma sacudida de ombros a tentativa de Saul de dar instruções sobre o uso das pás, Gloria se postou ao lado dele e começou a arrancar nacos do chão enquanto ele tomava a precaução de ficar a salvo. Certa vez levara uma pancada na cabeça com uma pá, manejada por um ajudante muito próximo e muito entusiasmado.

— Por que você está diferente? — perguntou ela, direta como sempre.

— Já disse, não estou diferente. — Soou um pouco mais irritado do que pretendia.

— Mas está — disse ela, sem ligar para o tom de voz dele.

— É por causa daquele fragmento — respondeu finalmente, para simplificar.

— Fragmentos ferem, mas só fazem você sangrar.

— Não aquele — replicou ele, voltando a trabalhar, com esforço. — Aquele era diferente. Eu não entendo muito bem, mas estou vendo coisas no canto do meu olho.

— Você deveria procurar um médico.

— Eu vou procurar.

— Minha mãe é médica.

— Sei que é.

A mãe dela era, ou tinha sido, pediatra. Não era bem a mesma coisa. Embora ela tivesse o hábito de dar consulta sem autorização para os moradores do litoral esquecido.

— Bem, se eu estivesse diferente, iria falar com ela.

Diferente. Mas diferente em quê?

— Mas você mora com ela.

— E daí?

— Por que você está aqui? Para me interrogar?

— Você pensa que eu não sei o que quer dizer “interrogar”, mas eu sei — disse ela, e foi embora.

* * *

Quando Henry e Suzanne deram por encerrado o dia de trabalho, Saul subiu até o topo do farol e ficou olhando o rico contraste entre o mar e a areia, o brilho de bronze do sol do fim da tarde. Daquele farol, vinha uma luz durante tempestades e catástrofes feitas pelo homem, em tempos de calmaria e de crise. Luz que se superpunha em cascatas ou que se interrompia de vez. Luz que pulsava e tremulava, que puxava a escuridão de encontro a si e depois a jogava de volta.

Ele estava ali na janela quando avistou Henry pela primeira vez, muitos meses antes. O jovem avançando com dificuldade pela areia fofa, na direção do farol, tinha sido uma espécie de imitação burlesca do progresso, enquanto ele afundava, e se lançava, e lutava para avançar. Henry com a cara toda franzida virada para o sol, o vento quase lhe arrancando a camisa fora, uma camisa tão grande que a parte de trás se inflara como vela de navio às suas costas, doida para voar. Por causa dela não era possível ver direito Suzanne, que vinha atrás, e que Saul nem sequer tinha avistado no primeiro momento. Os maçaricos mal se dignaram a dar sua corridinha habitual quando Henry se aproximara; preferiram continuar bicando a areia até o último instante e depois alçar voo para longe daquele monstro desengonçado. Naquela hora ele parecia um suplicante desajeitado, um peregrino que viera participar de um culto.

Deixaram o equipamento — as caixas de metal com os estranhos mostradores e suas leituras.

Quase como se fosse uma ameaça. Direitos adquiridos pelos invasores. Vamos voltar. Saul não entendia metade do que estava vendo, mesmo de perto. E não queria entender — não queria saber o que estava do lado da paranormalidade ou do lado da ciência. Partículas prebióticas. Energia fantasma. Salas de espelhos. A lente do farol já era miraculosa o bastante no que podia fazer sem que fosse preciso procurar significados ocultos para ela.

O joelho de Saul estava começando a dar defeito, rangendo demais a cada passo enquanto ele examinava o equipamento da Brigada Leve. Enquanto procurava algo que ele sabia não ser capaz de reconhecer se encontrasse, pensava que um homem pode ser derrubado por um grande número de enfermidades, e um pouco de manutenção não faz mal nenhum. Especialmente sendo Charlie sete anos mais novo. Mas isso servia apenas para camuflar o pensamento que lhe vinha agora em breves surtos de pânico: o de que alguma coisa estava errada, que ele se sentia cada vez mais um estranho em sua própria pele, que talvez alguma coisa estivesse começando a ver através de seus olhos. Infestação era um pensamento que brotava naqueles momentos entre a vigília e o sono, entre o sono e a vigília, esgueirando-se pela passagem entre os dois.

Havia a sensação de algo movendo-se e se instalando firme no seu lugar, e isso o deixava confuso e amedrontado.

* * *

Felizmente a mãe de Gloria, Trudi Jenkins, concordou em vê-lo naquele mesmo dia, antes do anoitecer. Ela morava na direção oeste, num chalé isolado, e Saul pegou sua caminhonete. Estacionou na estradinha de terra, perto da porta da frente, sob os galhos de carvalhos, magnólias e algumas palmeiras. Na lateral da casa, uma varanda com piso de madeira, quase da mesma largura da casa, virada na direção da praia. Um dos lugares mais agradáveis ali no litoral esquecido. Se ela quisesse, poderia alugar um quarto para turistas no verão.

Havia um boato de que Trudi tinha vindo para o litoral esquecido depois de conseguir um acordo numa acusação de tráfico de drogas, mais de dez anos antes. Porém, qualquer que fosse o seu passado, tinha a mão firme e a cabeça no lugar, e era melhor consultar-se com ela do que na clínica que ficava a mais de oitenta quilômetros para o interior, ou com o residente médico que visitava o vilarejo.

— Eu me feri com um fragmento...

Outra coisa boa em se consultar com Trudi é que ele podia falar sobre o fragmento. Tinha tentado conversar com Charlie, mas, por motivos que ainda não conseguia compreender, quanto mais falava, mais tinha a impressão de que estava jogando sobre ele um peso grande demais, e não sabia quanto o homem seria capaz de suportar.

Pensar naquilo o deixava deprimido, e depois de algum tempo Saul mudava de assunto, sem mencionar a sensação de que havia coisas flutuando na periferia de seu campo de visão.

— Você acha que alguma coisa o mordeu?

— Talvez não uma mordida, é como se tivesse me picado. Eu estava usando luvas, mas mesmo assim não devia ter tentado pegá-lo. Talvez isso não tenha nenhuma relação com o que ando sentindo.

E, ainda assim, como ele podia saber? O momento de sensação, de não sensação... Saul seguia voltando para ele.

Ela assentiu e disse:

— Entendo. É normal ficar preocupado, com todas essas doenças transmitidas por mosquitos e carrapatos. Vou examinar sua mão e seu braço, ver os seus sinais vitais e talvez sossegar seus receios.

Talvez ela tivesse sido mesmo uma pediatra, mas não falava como se Saul fosse uma criança. Tinha um jeito de simplificar as coisas e ir direto ao que importava, e ele se sentia grato por isso.

— Sua menina perambula um bocado lá pelo farol — disse ele, para prosseguir na conversa, enquanto tirava a camisa e ela começava o exame.

— Sim, eu sei. — disse ela. — Espero que não atrapalhe.

— Não. Mas ela sobe muito naquelas rochas.

— Gloria gosta mesmo de escaladas. Vive subindo em tudo.

— Pode ser perigoso.

Trudi lhe lançou um olhar penetrante.

— Prefiro que ela esteja circulando pelo farol perto de pessoas que eu conheço do que andando nas trilhas ou sei lá o quê.

— Claro, claro — concordou ele, lamentando ter tocado no assunto. — Ela tem talento para identificar cocôs.

Trudi sorriu.

— Isso ela herdou de mim. Ensinei-lhe todos os diferentes tipos de cocô.

— Se um urso cagar na floresta, ela fica sabendo.

Trudi deu uma risada.

— Talvez ela se torne uma cientista quando crescer.

— Onde ela está agora?

Saul achava que Gloria tinha voltado direto para casa, depois de deixar o farol.

— Na mercearia. Essa menina gosta de andar, não importa para onde. Não custa nada mandá-la até lá para trazer leite e alguma coisa para o jantar.

A mercearia, vizinha ao bar do vilarejo, era bastante improvisada também.

— Ela diz que eu sou o defensor da luz.

Ele não soube de onde surgira isso, mas tinha gostado.

— Mmmmm... — fez Trudi, e voltou a examiná-lo. No final, disse: — Não vi nenhum indício de anormalidade na mão nem no braço. Não vi nem mesmo uma marca. Mas se foi uma semana atrás pode já ter sumido.

— Quer dizer que não é nada?

Aliviado, e satisfeito por não ter ido até Bleakersville, pensando no tempo livre que tinha pela frente, e como preferia passá-lo com Charlie. Descascando camarões num bar na beira da estrada. Bebendo cerveja e jogando dardos. Parando num motel, tendo o cuidado de pedir duas camas de solteiro.

— Sua pressão sanguínea está alta, e você está com um pouquinho de febre, mas só isso mesmo. Coma menos sal. Coma mais verduras. Veja como fica daqui a alguns dias.

Ele já se sentia melhor quando foi embora, depois de negociar um pagamento em serviços e em espécie: vinte dólares mais a promessa de voltar para pregar algumas tábuas soltas no piso do deque e mais uma ou duas coisinhas.

Mas, ao voltar para o farol, repassando na cabeça as tarefas de manutenção da lente, o alívio que lhe trouxera um novo vigor já tinha começado a se desvanecer e a dúvida se instalou. Por trás de tudo estava o pensamento de que ele fora se consultar como um mero paliativo para um problema maior, que tudo que fizera fora confirmar que não existia um diagnóstico fácil, que aquilo não era algo tão simples quanto um resfriado ou uma picada de mosquito.

Na estrada, algo o fez olhar para trás, para a Ilha do Fracasso, que era uma sombra no lado oeste, surgindo à distância como se fosse uma curva acentuada da linha costeira. Um pequeno pulso de luz vermelha acendia e apagava, alto demais para pertencer a qualquer coisa que não fosse um navio de carga. Mas também muito irregular para não ser algo segurado com as mãos ou de forma improvisada. O ponto exato no horizonte indicava que vinha da Ilha do Fracasso, das ruínas do antigo farol.

Piscando num código que Saul não conhecia, uma mensagem de Henry que ele não queria receber.

* * *

Quando voltou, ligou para Charlie, mas não teve resposta. Depois lembrou que ele trabalharia naquela noite, caçando polvos, medusas e linguados, o tipo de aventura de que mais gostava. Então jantou rapidamente, limpou tudo e depois preparou o farol. Não haveria tráfego marítimo naquela noite, e a previsão do tempo indicava mar calmo.

Com o pôr do sol veio uma premonição de beleza. O céu do crepúsculo já estava cheio de estrelas. Antes de ativar a lente, ficou sentado ali alguns minutos, olhando para elas, e para o azul profundo do céu que as emoldurava. Em momentos assim, sentia-se mesmo como alguém que vive no limite do mundo conhecido. Como se estivesse sozinho, mas do jeito que queria: quando escolhesse, e não quando o mundo impusesse. E ainda assim ele não conseguia ignorar aquele pontinho de luz pulsando lá na Ilha do Fracasso, mesmo estando agora cercado por tantos sóis distantes.

E então a lâmpada do farol acendeu e fez tudo desaparecer; Saul recuou, sentou-se no degrau de cima para monitorar o funcionamento da lente por alguns minutos antes de descer para cuidar das outras tarefas.

Ele não devia dormir nas noites em que o farol ficava aceso, mas a certa altura percebeu que tinha cochilado no degrau superior, e que inclusive estava sonhando, e que não podia acordar, na verdade não ia sequer tentar. Então ele não tentou.

As estrelas não apenas brilhavam, elas esvoaçavam e deslizavam pelo céu, com tanta violência que não se podia avistá-las bem. Ele teve a sensação de que alguma coisa distante ficava mais próxima, e que as estrelas se moviam daquele modo porque agora estavam próximas o suficiente para não serem mais vistas como pontinhos distantes de luz.

Saul andava pela trilha, caminhando na direção do farol, mas a lua estava com uma hemorragia em seu círculo de prata e ele sabia que coisas terríveis deviam ter acontecido na Terra para o satélite estar morrendo, a ponto de desabar lá do céu. Os oceanos estavam cobertos por um cemitério de lixo e de cada poluente que já fora largado sobre o mundo natural. Guerras pela disputa de recursos escassos transformaram países inteiros em nada mais do que desertos de morte e sofrimento. A doença espalhou suas legiões e a vida começou a assumir outras formas, que se arrastavam gemendo e miando por entre as ruínas fumegantes e em decomposição das cidades um dia tão poderosas, iluminadas por fogueiras que rugiam fazendo estalar os ossos de cadáveres estranhos, deformados.

Esses corpos estavam espalhados ao longo dos terrenos em volta da torre do farol. Fatais eram seus ferimentos, brilhante o seu sangue rubro, alto o som dos seus gemidos, tão abruptos e inúteis quanto a violência com que ainda arremetiam uns contra os outros. Mas Saul, enquanto caminhava por entre eles, teve a sensação de que existiam em outro lugar, e era somente alguma atração oculta, como um refluxo de maré, que os arrastava para virem aparecer naquele local, onde a torre escura do farol se elevava numa espiral de sombras e chamas.

No meio daquela paisagem apareceu também Henry, erguendo-se na porta do farol, com um sorriso beatífico que foi se alargando até ultrapassar os cantos de sua mandíbula. Palavras brotavam dele, mas nada era dito em voz alta. E disse Deus: Haja luz. Deus disse isso, Saul, e Ele está vindo de tão longe, e Seu lar se foi, mas Seu propósito permanece. Você negaria a Ele um novo reino? Com essas palavras vinha uma sensação de tristeza que fez Saul recuar, afastar-se de Henry. Aquilo falava de todas as coisas que ele já tinha deixado para trás.

Dentro da torre do farol, não encontrou escadas levando ao topo, mas um vasto túnel que se aprofundava na terra, uma avassaladora espiral que girava sobre si mesma, descendo, descendo.

Atrás dele, a lua estava agora cheia de sangue e começava a cair na direção da Terra, descendo no interior de uma chama tão ardente que ele podia senti-la às suas costas. Os mortos e os moribundos se juntaram ao clamor do esquecimento final, que se aproximava.

Ele bateu a porta, fechando-a atrás de si, e começou a descer por aquele percurso inesperado, a mão roçando a parede fria como gelo, e viu os degraus muito abaixo de onde estava, de modo que, ou estava observando a si mesmo de uma grande altura, ou seu corpo tinha se tornado tão alto quanto a torre do farol, e cada passo à frente que dava acontecia muitos andares abaixo dele.

Mas Henry permanecia ao seu lado, inoportuno, e as escadas começavam a se encher de água numa grande torrente que bramia com fúria, e logo a maior parte dele estava submersa, a camisa fina de Henry toda encharcada, enquanto Saul continuava a descer, a descer, até que sua cabeça também estava embaixo da água, sem respirar, vacilando, e ele abriu os olhos para ver o verde-dourado de fogo das palavras na parede, sendo traçadas diante dos seus olhos como que por um escriba invisível.

Mesmo sabendo que aquelas palavras vinham dele, sempre tinham vindo dele, e estavam sendo emitidas sem som pela sua boca. E que estivera falando aquilo já havia muito tempo, e cada palavra vinha desmontando sua mente um pouco mais, um pouco mais, mesmo que cada uma delas lhe desse um alívio daquela pressão que sentia no crânio. E, enquanto isso, aquilo que estava lá embaixo esperava que todas as camadas da sua mente tivessem sido removidas. Uma luz branca e ofuscante, uma planta com folhas que faziam uma espécie de círculo, um fragmento que não era um fragmento.

* * *

Quando acordou, estava sentado numa cadeira do lado de fora do farol, sem a menor ideia de como fora parar ali. As palavras ainda estavam vivas dentro dele, um sermão que teimava em emergir, quisesse ele ou não. Fosse para destruí-lo, ou não.

De onde jaz o fruto asfixiante que veio da mão do pecador eu trarei as sementes dos mortos para partilhar com os vermes.


0008: AVE FANTASMA

Logo depois da tempestade, o caminho por onde eles seguiam curvava-se na direção do mar, correndo ao longo de uma sucessão de colinas amontoadas e paralelas à orla. O chão molhado, a lembrança daqueles riachinhos escuros, faziam o solo recém-semeado parecer acolhedor. Diante deles estendia-se a silhueta verde da ilha, iluminada pela luz dourada e quente do fim da tarde. Nada mais havia voltado a assombrar o céu, mas agora eles caminhavam num mundo de coisas despedaçadas, de silhuetas semidestruídas contra aquele horizonte brilhante.

— O que aconteceu aqui? — perguntou a Ave Fantasma, fingindo que aquele era território dele.

Talvez fosse.

Controle não disse nada. Não estava dizendo nada já havia algum tempo, como se não confiasse mais nas palavras. Ou como se tivesse começado a se afeiçoar ao silêncio, como se o silêncio guardasse um tipo de resposta.

Mas alguma coisa ruim tinha acontecido ali.

Procurando um caminho de descida para a areia da praia, onde fosse possível não cortar os pés em caules de junco ou nos cactos, eles não tiveram escolha senão cruzar um cenário de carnificina. Um antigo rastro de pneu cheio de lama, e uma bota abandonada emergindo dele. O brilho opaco de um fuzil automático escondido no meio do mato molhado. Indícios de fogueiras que tinham sido acesas e depois apagadas às pressas, barracas armadas, derrubadas e despedaçadas. Era bem claro que comando e controle tinham sido reduzidos a pó.

— Não foi a tempestade que fez isto — disse ela. — Isto é muito antigo. Quem foram?

Ainda nenhuma resposta.

Chegaram ao topo de uma pequena elevação. Abaixo, os destroços de um caminhão; dois jipes, um deles carbonizado quase até as rodas; um lança-foguetes em avançado estado de decomposição. Tudo isso carinhosamente envolvido, rodeado pelo lodo, pelo mato e pelos cipós. Vislumbres perturbadores de ossos amarelados por entre os farrapos dos uniformes verdes. O único cheiro era o leve e penetrante odor das flores silvestres roxas e brancas que o vento sacudia com força.

Era um lugar pacífico. Ela se sentia em paz.

Por fim, Controle falou:

— Não podem ser soldados que ficaram presos na Área X quando ela se expandiu, a não ser que a taxa da decomposição dentro dela tenha aumentado de velocidade.

A Ave Fantasma sorriu, agradecida por ouvir o som da voz dele.

— Sim, é bem antigo — disse.

Mas ela estava mais interessada num outro aspecto daquele painel que se estendia diante deles.

A praia e a terra imediatamente abaixo, em duas faixas paralelas, tinham sido atingidas por algum evento catastrófico, escavadas e revolvidas: um enorme sulco na areia estava agora cheio de uma água profunda, e ao longo do solo rodeado de capim rasteiro viam-se o que podiam ser imensas marcas de algo que se arrastara, ou então os efeitos de uma erosão muito acelerada. Ela teve a visão de um ser enorme, monstruoso, arrastando-se praia adentro para atacar.

Ele apontou para os profundos sulcos.

— O que fez aquilo?

— Um tornado?

— Alguma coisa que veio do mar. Ou... aquilo que nós vimos no céu?

O vento agitou uma pequena bandeira alaranjada presa com uma vara ao chão, perto das barracas destruídas.

— Alguma coisa muito enfurecida, eu diria — concluiu ela.

* * *

Curioso. Lá embaixo, na praia, encontraram um bote, escondido atrás de uma parede de mato, um barco um pouco acima da marca da maré alta, com remos e tudo. Parecia estar ali havia bastante tempo, esperando. Uma tristeza misturada com nervosismo tomou conta da Ave Fantasma. Talvez aquele bote tivesse sido deixado ali para ser encontrado pela bióloga e, em vez disso, eles o haviam achado. Ou talvez o marido dela nunca tivesse conseguido chegar à ilha, e a presença da embarcação ali era uma prova. Mas isso era o de menos. Não sabia o que o bote significava, mas sabia que podia levá-los ao outro lado.

— Temos o tempo certo — disse ela.

— Você quer atravessar para a ilha agora? — perguntou Controle, incrédulo.

Talvez fosse uma tolice, mas a Ave Fantasma não queria esperar. Ainda teriam mais uma hora de luz de verdade e depois aquele halo de sombras antes que a cortina da escuridão se estendesse sobre tudo.

— Você prefere passar a noite de hoje dormindo ao lado de cadáveres?

Sabia que ele já não gostava mais de dormir, começara a sofrer alucinações. Estrelas cadentes que viravam coelhos brancos, o céu cheio deles, com manchas de escuridão intercaladas entre as silhuetas saltitantes. O medo de que sua mente estivesse usando aqueles truques apenas para evitar que ele se preocupasse com algo ainda mais perturbador.

— E se a coisa que fez estas marcas veio lá da ilha?

Ela devolveu a pergunta:

— E se a coisa que fez estas marcas estiver atrás de nós, aqui no pântano? O bote está em bom estado. E temos tempo.

— Não acha um pouco suspeito um bote justamente aqui, à nossa espera?

— Talvez seja nosso primeiro momento de sorte.

— E se alguma coisa emergir da água?

— Remamos de volta, bem depressa.

— Estratégias ousadas, Ave Fantasma. Estratégias ousadas.

Mas ela estava igualmente com medo, mesmo que não das mesmas coisas.


Quando eles zarparam, cruzando aquele trecho que parecia arrancado da orla, e passaram em seguida por uma série de bancos de areia, o sol já estava se pondo. A água possuía um tom de ouro escuro. O céu por cima deles tinha um brilho rosa, com o cinza-azulado do crepúsculo avançando pelas bordas. Os pelicanos passavam em pleno voo, e andorinhas-do-mar cortavam o espaço com suas rápidas equações e as gaivotas se limitavam a pairar pragmaticamente contra o vento.

Os salpicos e a espuma produzidos pelos remos resultavam em pequenos redemoinhos de água dourada que se dissipavam e voltavam ao reflexo liso da correnteza. A proa do barco tinha um traçado duro e objetivo que, de encontro àquela luz, parecia muito sério à Ave Fantasma, como se o que estivessem fazendo fosse de fato essencial. Padrões podem às vezes servir como propósitos, e o sincronismo dos remos que os dois empunhavam lhes fazia bem. Eles foram feitos para ir até a ilha, tinham que estar ali, naquele lugar. A ansiedade que ela sentia ante a possibilidade de encontrar na ilha a bióloga com o marido, a perspectiva de ficar frente a frente com eles era anulada ou cancelada, pelo menos durante algum tempo, por aquele avanço pelas águas.

A longa e larga faixa de verde que era a ilha a meia distância ganhava uma aparência irregular e desgrenhada, graças aos poucos carvalhos e pinheiros bem altos que, junto com a destruída torre do farol, erguiam-se no horizonte. Presa ali entre o céu calmo e parado e o mar eternamente revolto, a ilha brilhava, cercada por linhas distorcidas, como se emitisse calor. Deslizando entre eles, de ambos os lados, ilhotas montanhosas, acidentadas, com pinheiros desgarrados contorcendo-se em terra, e as silhuetas desses postos avançados se espalhando pela áspera fileira negro-acinzentada dos bancos de ostras pontilhados aqui e ali com a viva iridescência das cascas vazias, abertas pelos pássaros.

Os dois não falavam, mesmo quando precisavam fazer uma correção de rumo ligeiramente para oeste a fim de evitar um trecho assoreado, ou quando a corrente aumentava, com ondas chocando-se contra a proa, forçando-os a remar com força redobrada. O único som que escapava eram os grunhidos baixos dele, a respiração ofegante dela, ao ritmo dos remos, o choque repetido do remo de Controle de encontro à quina do barco, pois não conseguia imitar os movimentos fluidos da Ave Fantasma. No cheiro acre do suor dele e no odor salgado da água, havia de repente um odor forte, quase um sabor, uma sensação de esforço sincero. A contração dos tríceps e dos músculos do antebraço quando ela colocava toda sua força. A dor agradável que vinha logo depois, lembrando-a de que isso era esforço físico, isso era real.

Enquanto a luz do céu ia sumindo e o mar emitia sua cintilação dourada, a sombra escura do barco começou a se misturar com o azul mais profundo das ondas, e o vermelho intenso do céu ia se transformando em um roxo coberto de faixas de outras cores. Com o pôr do sol, sentiu alguma coisa sendo liberada no seu peito, e suas remadas ficaram mais tranquilas, mais fortes, e Controle a observou de testa franzida. Ela percebia o olhar dele, e às vezes voltava-se para encará-lo e neutralizar aquela atenção.

A torre do farol em ruínas foi crescendo à medida que a luz afundava na noite. Mesmo desmoronada pela erosão ou pelas tempestades, servia de guia para eles, produzia uma sensação de vida que ela não podia ignorar. Havia algo de quase nobre em seu aspecto, algo que tinha a ver com o frio e com as sombras das árvores, e o fato de aquele lugar ainda existir a deixava triste e orgulhosa — uma sensação inesperada. A bióloga teria sentido aquilo também, caso tivesse chegado até ali? A Ave Fantasma achava que não. Ela teria prestado atenção, primeiro, em tudo que cercava a torre.

Um trecho menos escuro entre os contornos da ilha e do mar acabou revelando ser os destroços de um pequeno cais, inclinado de modo que seu lado direito ficava submerso, e a praia de ambos os lados dele era um amontoado de pilastras de concreto partidas e de pedras. Não havia sinal de areia, até que um sorriso opaco surgiu logo após a curva que dava para o lado oeste.

Nenhuma luz vinha do farol, mas havia bandos ruidosos de pássaros acomodando-se nas árvores para passar a noite, competindo com o barulho das ondas, e ela ouvia de longe os seus gritos ásperos trazidos pelo vento. Por cima deles, as trajetórias dos morcegos pareciam programadas por um navegador bêbado, e seus corpos obliteravam as estrelas num desenho imprevisível e caótico.

— Sente como se alguém estivesse nos observando? — murmurou ela.

— Não, não sinto.

A voz dele estava rouca, como se tivesse falado com ela durante todo aquele tempo, mas era algum efeito do vento e do ar salgado.

— Eu sinto como se alguém nos espreitasse.

— Pássaros. Morcegos. Árvores.

Mas ele disse isso num tom exageradamente descontraído, como se não acreditasse que eram apenas pássaros, morcegos e árvores.

* * *

O chapinhar das águas sob o cais quando eles amarraram o barco a uma pilastra, o barulho das ondas lambendo as pedras, o rangido das tábuas quando caminharam na direção da terra. Os pássaros anônimos ficaram silenciosos sobre as árvores, mas era possível escutar o coaxar dos sapos, em séries monótonas, vindo de todos os lados da torre. Mais adiante, ouviam-se os passos pesados de algum mamífero de médio porte, através dos arbustos. E por cima deles erguia-se a torre erodida do farol, pálida e quase luminosa, emoldurada pela escuridão do céu e pelas estrelas que se arrumavam em torno, como se ela fosse o centro do universo.

— Passamos a noite no farol, e de manhã vamos à luta.

Ali era mais quente do que no mar, mas ainda assim frio.

Ela sabia que aquilo não podia ter escapado aos olhos dele — o caminho aberto entre a relva alta, bem visível à luz das estrelas. Somente um movimento regular ou uma manutenção permanente impediriam o mato de brotar ali.

Controle assentiu, o rosto ilegível no escuro, e se inclinou para apanhar um galho, que brandiu como um bastão. Não tinham armas de fogo — havia muito tempo tinham se livrado dos artefatos mais modernos, reconhecendo os estranhos efeitos da Área X, e conservaram apenas a lanterna. Acendê-la ali iria parecer algo tolo e imprudente. Mas a Ave Fantasma tinha uma faca de estripar, e a tirou da bainha.

A porta do farol ficava na face que dava para o continente, e o caminho conduzia direto para lá. A entrada original não existia mais. No seu lugar havia uma barricada maciça de madeira que ela aos poucos deduziu que era uma porta de estábulo ou coisa parecida. Com algum esforço, os dois a deslocaram para o lado e olharam pela abertura. O ar lá dentro cheirava a decomposição e madeira molhada. Era um cheiro mais leve do que o que ela estava esperando.

A Ave Fantasma acendeu um fósforo e viu, por entre as sombras que dançaram nas paredes, que a estrutura em espiral da escada mantinha-se de pé, despojada de tudo, como um imenso saca-rolhas de pedra, no meio do andar térreo, e subia até um buraco profundo lá no alto. Na melhor das hipóteses, precária. Na pior, prestes a vir abaixo.

Como se lesse os pensamentos dela, Controle disse:

— Provavelmente aguenta o nosso peso. São construídas de tal maneira que as paredes laterais suportam a maior parte da carga. Mas isso é um cálculo aproximado.

Ela assentiu, e agora podia discernir os varões de ferro correndo por dentro da estrutura, o que lhe inspirou mais confiança.

O fósforo apagou. Acendeu outro.

O chão do térreo estava coberto de folhas mortas e galhos soltos, uma catacumba de quartos menores na parte dos fundos, fora de visão. Um piso nu de concreto, com cicatrizes mostrando de onde tinham sido arrancadas as tábuas.

O fósforo apagou. Ela achou que ouviu um som.

— O que foi isso?

— O vento?

Mas Controle não parecia muito seguro.

Ela acendeu outro fósforo.

Nada. Ninguém.

— Foi só o vento — Ele soou aliviado. — Vamos dormir aqui mesmo, ou seria melhor olhar os quartos lá nos fundos?

— Olhar. Não quero ter surpresas.

O fósforo foi apagado por uma lufada de vento que viera da escada.

— Temos que aproveitar melhor esses fósforos — queixou-se Controle.

Ela acendeu outro, soltou um grito, Controle teve um sobressalto.

Uma sombra estava sentada nos degraus da escada, com um rifle apontado para os dois. Foi se tornando mais visível até revelar uma mulher negra de uniforme militar — com compleição forte, cabelos crespos cortados bem curtos.

— Olá, Controle — disse ela, ignorando a presença da outra.

A Ave Fantasma a reconheceu do primeiro interrogatório que lhe fizeram no Comando Sul.

Grace Stevenson, a diretora assistente.


0009: A DIRETORA

As instalações secretas de Lowry, num lugar lúgubre da costa leste, com praias de cascalho e uma relva amarela e áspera, foram montadas em cima do esqueleto de uma antiga base militar. Ali, ele está se aprimorando em neurologia e em técnicas de condicionamento — alguns diriam de lavagem cerebral. Do alto daquela colina pantanosa, escavada por dentro para acomodar seu centro de comando e controle, rege o seu estranho mundo, onde podem ser vistas minas submarinas desativadas, cor de prata, decorando o gramado em volta, ou plataformas de artilharia corroídas pela ferrugem, de uma guerra travada há mais de setenta anos. Lowry mandou construir ali réplicas do farol da Área X e do acampamento das expedições, e até mesmo fez um buraco no chão com a intenção de indicar o mínimo que se sabia sobre a “anomalia topográfica”. Você já sabia de tudo aquilo antes de ser chamado até lá pela primeira vez, e na sua imaginação o falso farol e o falso acampamento eram um presságio, quase sobrenaturais, pelo efeito que produziam. Mas, na verdade, parada ali ao lado de Lowry, olhando seus domínios através de uma vidraça fumê, você tem a impressão de estar num estúdio de filmagem: uma coleção de objetos que, se não forem animados pela paranoia e pelo medo de Lowry, pela história que ele projeta ali, estão inertes, patéticos. Não, nem mesmo um estúdio de filmagem, percebe. É mais uma espécie de carnaval de balneário no inverno, em baixa temporada, quando até mesmo uma praia é um poema a respeito de solidão. Que tal a solidão de Lowry aqui, cercado por essas coisas todas?

— Sente aí, vou lhe trazer um drinque.

Isso é a cara de Lowry, mas você não se senta e recusa educadamente a bebida, e continua olhando lá para a praia, para o mar. É um dia cinzento e desagradável, e a meteorologia admite que pode até nevar. A água tem um tom oleoso em virtude da poluição do mar, e a luz abafada produz arco-íris sobre aquela superfície imóvel.

— Não quer? Bem, vou trazer-lhe um, de qualquer maneira.

Muito Lowry também, e você está mais tensa do que um momento atrás.

A sala é estreita, e você está de pé junto a um sofá verde-limão, baixo, com uma estrutura de tubos metálicos cobertos de travesseiros psicodélicos cor de laranja. Luminárias de porcelana, em forma de seios voltados para baixo, estão penduradas em filas de vinte no teto que se alonga até acompanhar a curva da encosta. Seu brilho se dissolve em torno de sofás e mesas e do piso de madeira, em círculos suaves que se interseccionam. A lâmina de vidro que isola o aposento do que há por trás é um espelho, projetando suas imagens e protegendo todos da verdade de que aquilo não é de fato um ambiente de lazer, e que você está ali não a convite, mas obedecendo uma ordem. A realidade é que vai ser uma espécie de interrogatório.

Este Lowry refinado, tão diferente do outro Lowry, o rústico — inclinado para a frente, sentado numa cadeira em diagonal com o sofá —, acaba de passar uma eternidade, deliberadamente, extraindo cubos de gelo com um pegador e transferindo-os para dentro de copos de vidro, de um em um, de clinque em clinque. Ele abre com todo o cuidado uma garrafa de uísque escocês e, com uma batidinha leve do gargalo contra a borda do copo, derrama dois dedos de líquido.

Entretido com essa tarefa, Lowry deixa aquele momento ir se estendendo. A juba de cabelo louro, agora grisalha, está crescida e longa. A cabeça sólida, determinada, em cima de um pescoço grosso, e nela a paisagem de feições que até hoje vem lhe dando para o gasto: traços rudes mas agradáveis, dizem as pessoas, como um astronauta ou um galã de cinema dos velhos tempos. Pessoas que nunca viram as fotos de Lowry após a primeira expedição à Área X, aquele rosto desidratado e barbudo onde ainda está impresso o primeiro encontro com o horror desconhecido, o homem que foi a um lugar aonde ninguém mais chegou. “Um sujeito honrado”, naquela época, carismático e direto. Mesmo tendo engordado um pouco, a cintura um pouco mais larga, ele ainda guarda algum charme. Mesmo que tenha agora um olho esquerdo dado a vagar sem destino, como se um pequeno planeta resolvesse abandonar o alinhamento e se deixasse atrair por outra coisa que está fora da imagem. Aqueles olhos azuis, aquele brilho, tão penetrante. Com uma centelha a mais de brilho, e todo o seu carisma seria posto a perder — o nariz determinado, o queixo resoluto, uma paródia, como a linha costeira de um país confiante —, pois se tornaria um olhar demasiado glacial. Mas nele ainda resta calor suficiente para preservar o resto de ilusão.

— Aí está — diz Lowry, e o seu nervosismo é inversamente proporcional à sua calma ao preparar os drinques com reverência.

Ele substituiu os bunkers escondidos na colina próxima por laboratórios secretos. Repletos de animais de ordens mais elevadas — é o boato ridículo que circula —, trazidos para aguentar o peso da sua imaginação, como se Lowry quisesse punir a natureza por tê-lo punido. Experiências com neurônios, conexões neurais, controle de sinapses. Coisas tediosas e impossíveis como essas. Você duvida que ele já tenha trazido sua quarta esposa ou os filhos para aquele lugar, embora a casa de veraneio da família esteja convenientemente próxima. Não, não há passeios para o escritório do papai.

Você fica pensando o que será que Lowry faz para se divertir. Talvez o que está fazendo agora.

Ele se vira, um drinque em cada mão, impecável em seu caro terno azul-escuro, em seus sapatos elegantes com biqueira de ouro. Sorri, estende ambas as mãos com as bebidas, um movimento que é duplicado, triplicado, pelos espelhos na parede às suas costas. Um reluzir de dentes perfeitos. O sorriso largo de político. Um sorriso perigoso.

É pouco mais que uma sacudida com o pulso, tal é a economia de movimentos. Um gesto tão compacto usando cotovelo e braço que por um momento você não percebe que alguém jogou um copo na sua direção.

O que estava na mão esquerda dele se espatifa de encontro à janela, junto da sua cabeça. Você recua, dá um passo para o lado, seus olhos nunca deixam Lowry, mesmo enquanto o líquido ensopa seus sapatos e cacos beliscam seus tornozelos. O vidro reforçado da janela, à prova de bala, nem sequer estremece. O drinque na mão direita de Lowry não está balançando. Mas, você também não.

Lowry ainda sorri. Ele diz:

— Agora que você tomou o seu drinque, vamos começar a resolver essa merda.

* * *

Você se recosta nas almofadas, desconfortável, olhando para o mar lá fora, o farol, os restos do copo de uísque espalhados no chão. Imagina se eles são feitos especialmente para quebrarem com facilidade. Lowry está sentado na cadeira, curvado para a frente como um predador. Você continua calma. Seu coração bate num código secreto que não é capaz de decifrar. O rosto largo de Lowry se aproxima, com a vermelhidão do álcool, o abaixamento súbito dos ombros largos, o modo como a barriga se derruba sobre o seu colo quando ele se inclina, com o copo de bebida ainda na mão. Você ainda não viu o menor sinal dos funcionários dele, mas sabe que há seguranças diante da porta de entrada.

— Quer dizer que você resolveu que ia dar uma olhada mais de perto, hein, Cynthia? Resolveu usar meus códigos de segurança e passar por cima dos seus superiores, só para dar uma olhadinha? Não podia resistir a espiar o que há por trás da cortina.

Havia sido um bom plano, e deveria ter funcionado. Você iria cruzar a fronteira, na volta, sem ser vista. Mas Lowry tinha seus espiões no comando da fronteira, que o avisaram, e o máximo que Grace tinha conseguido fazer fora confiscar o material que eles trouxeram de volta e guardar tudo na catedral de amostras no Comando Sul, propositalmente atribuído a alguma expedição antiga. Lowry manteve você detida, na base militar, sob sigilo, antes de fazê-la voar até aquele local. Whitby já tinha sido interrogado e estava numa espécie de prisão domiciliar.

— Eu já sabia o que existe lá.

Um rosnado ruidoso, de irritação, de incredulidade.

— Típica ação de burocrata. Acham que, porque leram os relatórios e estão no comando, sabem de tudo.

Disse isso sem ironia.

O hálito dele era doce, tão doce, como se alguma coisa dentro estivesse a ponto de se decompor. Seus olhos são instáveis, hostis, mas afora isso sua expressão é indecifrável. Ele parece um homem que, se tomar mais um drinque, será capaz de fazer qualquer coisa.

— Então vocês atravessam e passam um belo feriado. Relaxando na praia, certo? Uma vez lá, você deve ter tido uma fantasia de aproveitar o passeio com o seu brinquedo, o Whitby? Quis um bocado de farol nos degraus do farol?

Silêncio é a melhor resposta. As pessoas da Central veem a versão sofisticada de Lowry. Você vê o lixo inteiro, vê tudo que ele varre para debaixo do tapete.

— Não tem nada para me dizer, hein? Nada? Nenhuma anotação? Nenhuma explicação a mais?

— Já entreguei meu relatório.

Ele meio que se ergue da cadeira ao ouvir isso, mas você não se move. Mesmo quando tinha apenas nove anos no litoral esquecido, já sabia que não devia fugir de um urso ou de um cão selvagem. Você fica firme onde está, olhando-o de cima a baixo. Pode até soltar um grunhido. Teria agido da mesma forma depois que as regras mudaram, depois que o local virou a Área X? Você não sabe. Está suando sob todas aquelas lâmpadas ridículas.

— Estou querendo entrar na sua cabeça sem precisar entrar na sua cabeça, se é que me entende — diz Lowry. — Tentando entender como é que chegamos a este ponto. Procurando descobrir se existe pelo menos uma porra de motivo para a Central não demitir você.

O ovo da Central se abrindo como uma boca para ordenar que você entre em combustão espontânea, ou, mais provavelmente, que se evapore como uma neblina. Mas isso quer dizer que Lowry é a razão principal de você ainda não ter sido despedida, e isso traz de volta um pouco de esperança.

— Eu não podia continuar enviando expedições sob minhas ordens sem ter ido lá pessoalmente.

Você não podia deixar que eles fossem os únicos a ter aquela experiência.

— Suas ordens? Minhas ordens, não suas ordens. Que fique bem entendido.

Ele bate com toda a força o copo sobre a mesa diante de você. Um cubo de gelo salta, desliza pela superfície e cai no chão. Você reprime um impulso de pegá-lo, de colocá-lo de volta no copo.

— E Whitby? Você também tinha que recrutá-lo para sua triste expediçãozinha?

Você pode revelar que ele queria ir, mas não pode prever a reação de Lowry. Whitby sempre esteve muito à frente de Lowry, um desentendimento fundamental entre duas formas de vida tragicamente diferentes.

— Eu não queria ir sozinha. Precisava de um apoio.

— Eu sou o seu apoio. E envolver a diretora assistente em tudo isso, ainda por cima... foi também uma ótima ideia, não?

Grace podia odiar Lowry, mas por algum motivo ele chegava a gostar um pouco dela. O que, se ela viesse a saber, a desagradaria muito.

— Nada disso foi uma boa ideia. Foi um erro de avaliação... Mas é duro enviar homens para a batalha sem querer ir para a batalha também.

A ideia de Grace para seu plano defensivo. Ficar apegada ao mais simples. Ao mais convencional.

— Pare de falar merda. Foi Grace quem lhe aconselhou a dizer isso? Aposto que foi.

Será que algum dos grampos escapou ao seu exame? Ou ele está apenas blefando?

Você repete:

— Você já está com o relatório.

Lowry era o único que os tinha lido. O comando militar na fronteira sabe de tudo, mas Grace escondeu o fato do pessoal do Comando Sul, por exigência de Lowry — “para preservar o moral e manter a segurança” —, até que ele tomasse sua decisão final. Oficialmente, você ainda goza férias prolongadas, e Whitby está sob licença administrativa.

— Foda-se o relatório. Você está escondendo Whitby de mim. — Isso não era propriamente verdade. — E suas descobertas são muito fraquinhas, muito incompletas. Você ficou lá quase três semanas e seu relatório tem só quatro páginas?

— Não aconteceu nada fora do comum. Considerando as circunstâncias.

— Considerando o cacete. O que foi que Whitby viu? Era uma coisa real ou mais uma merda de alucinação? Você tem noção do que poderia ter acontecido com essa sua ida lá? Tem noção do que você pode ter despertado?

As palavras saem atropeladamente da boca de Lowry, e a última soa como “espetado”.

— Entendi.

Um farol de brinquedo de repente adquire vida.

Lowry inclina-se, numa guinada brusca, para sussurrar, num miasma de hálito doce em decomposição:

— Quer saber o que é mais engraçado? Engraçado para cacete?

— Não.

Lá vem. Como se ele fosse o vovô numa reunião dominical. A mesma história de quase sempre.

— Lá atrás, naquele tempo... Naquele tempo, você entendeu tudo errado. O engraçado é que, se você tivesse confessado ao antigo Comando Sul durante a entrevista, acabaria sendo contratada do mesmo jeito. Você conseguiria o emprego. Eles podiam ter feito isso, levando em conta o antigo diretor. Claro, talvez com certa fascinação mórbida envolvida. Como quando se tem um animal de laboratório mais inteligente, especial... Digamos, um coelho branco diferenciado, magnífico. É verdade que você jamais teria virado diretora, mas foda-se, esse trabalho é um saco, não é? Como você está percebendo. E vai continuar. O problema agora, no entanto, é que a mentira foi longe demais. E que diabo a gente faz agora.

Do seu ponto de vista, o problema é menos o passado do que o presente. O momento em que você poderia de alguma forma ter contido Lowry ou o influenciado já passou há muito tempo. Assim que ele foi promovido para a Central, foi canonizado, você não podia mais atingi-lo.


Aquela pessoa, a pessoa que você era antes de entrar para o Comando Sul, tinha sido cuidadosa, cuidadosa demais para tentar chegar àquele ponto em que poderia fazer algo impensado como cruzar a fronteira para a Área X.

Seu pai sempre teve paranoias quanto ao governo, e de vez em quando se envolvia com algo ilegal para aumentar sua renda como barman de meio expediente; era uma espécie de golpista de segundo escalão. Não queria compromisso com nada. Não queria nenhum problema. Então manteve o governo à distância, não lhe disse que sua mãe provavelmente estava morta e que você nunca mais iria voltar ao litoral esquecido, até quando foi absolutamente necessário. Instruiu-lhe a dar respostas vagas aos homens que viessem interrogá-la a respeito de sua mãe — era o melhor que podia fazer por ela. Tudo para evitar atrair atenção para suas “atividades profissionais”.

— Você ainda não sabe porque é muito nova — rezava o sermão habitual dele. — Os políticos são os maiores bandidos de todos. O governo é o maior ladrão de todos os tempos. É por isso que persegue tanto os ladrões: porque não gosta de concorrência. Você não vai querer isso montado nas suas costas pelo resto da vida só porque aconteceu de você estar no lugar errado na hora errada.

Quando ele disse que ela havia morrido, você chorou durante um mês, mesmo sentindo que aquela expressão no rosto do seu pai, as advertências bruscas, o modo como funcionava a casa de vocês perpetuamente em mudança, tudo aquilo lhe inculcava as vantagens de manter silêncio.

Com o passar do tempo, as lembranças de sua mãe foram desvanecendo, no sentido de que você não sabia se tinha experimentado de fato uma determinada imagem ou momento ou se os conhecia apenas das fotos que seu pai guardava numa caixa de sapatos dentro do armário. Guardadas menos no sentido de manter algo próximo do que afastado. Você ficava horas vendo os retratos de sua mãe — no terraço com os amigos, uma bebida na mão, ou na praia com seu pai — e imaginava que ela estava dizendo “Não se esqueça de mim”, e se sentia envergonhada quando via que o rosto que lhe voltava com mais insistência era o do faroleiro.

De forma experimental, e depois com mais entusiasmo, você começou as próprias investigações. Descobriu que havia uma coisa chamada Comando Sul, encarregada de sanar a “devastação ambiental” no que tinha sido o litoral esquecido e era agora a Área X. Iniciou um álbum de recortes, que logo estava tão cheio que era difícil de abrir, repleto de trechos de livros, jornais, revistas e, depois, sites. As teorias conspiratórias predominavam, ou reconstituições especulativas das versões oficiais dadas pelo governo. A verdade era sempre alguma coisa vaga e fora de foco, algo que não tinha nenhuma relação com as coisas que você vira, com a sua impressão de que o faroleiro estava ficando diferente.

No seu primeiro ano na universidade, percebeu que queria trabalhar para o Comando Sul, não importava em que função, e com seu faro de golpista para perceber a verdade, soube que o seu passado seria um empecilho. Você mudou de nome, contratou um detetive particular para ajudá-la a ocultar o resto e dedicou-se a conseguir o diploma. Psicologia cognitiva, focada em psicologia da percepção, com algum treinamento em psicologia organizacional também. Casou-se com um homem a quem nunca amou de verdade, por uma série de razões, divorciou-se dele nove meses depois, e passou cerca de cinco anos fazendo trabalhos de consultoria e repetidas tentativas de inscrição na Central, respondendo aos questionários de uma maneira orientada para conseguir alguma posição no Comando Sul.

O diretor da época, um homem da Marinha, era amado por todos e nem um pouco exigente, e não a entrevistou. Lowry, sim — no Comando Sul naquela época, e com suas próprias motivações. Gostava de acumular horizontalmente seu poder. Houve primeiro a reunião formal no escritório dele, e depois vocês foram dar uma volta ao ar livre, no pátio dos fundos, e ali ocorreu um tipo diferente de entrevista.

— Ninguém pode nos ouvir aqui — disse Lowry, e campainhas de alarme começaram a soar no seu cérebro.

Pensamentos irracionais de que ele iria lhe fazer uma proposta indecente, como os amigos de seu pai faziam às vezes. Alguma coisa na polidez de suas maneiras, suas roupas bem cortadas, seu ar de autoridade devem ter deixado você em alerta.

Mas Lowry tinha em mente algo mais sério, algo mais a longo prazo.

— Pedi ao meu pessoal que checasse seus antecedentes. Você fez um esforço notável para esconder quem é. Dou-lhe um B sem hesitar, pelo esforço. Nada mal, considerando tudo. Mas o fato é que descobri, e isso quer dizer que a Central poderia tê-la descoberto também, se eu não tivesse ocultado as pistas que você deixou. O que restava delas.

Um sorriso largo, uma atitude simpática. Vocês dois podiam estar conversando sobre esportes ou sobre o pântano que borbulhava à sua frente como se cozinhasse seu próprio caldo.

Você vai direto ao ponto mais importante:

— Vai me entregar?

A garganta seca, e o ar parecendo mais quente do que um instante antes. A lembrança do seu pai sendo levado para a cadeia por causa de uma pequena fraude, sempre com a bravata de um sorriso e de um beijo jogado de longe para você, como se o propósito daquilo tudo fosse ser preso, ter uma plateia, ser notado.

Lowry dá uma risada espontânea, e você fica intimidada com o que identifica, naquele momento, como certa sofisticação, apesar das falhas dele. A sua verve. O modo como ele ocupa inteiramente o terno, o modo como o rosto retrata sua experiência, como se ele já tivesse visto aquilo que você deseja ver, já tivesse ido aonde você pretende ir.

— Entregar você, Gloria... quero dizer, Cynthia. Entregar você? A quem? Aos caras cuja tarefa é investigar nomes falsos e identidades forjadas? Os buscadores da verdade no litoral esquecido? Não, acho que não. Não acho que vou entregar você a ninguém.

O pensamento não verbalizado fica flutuando no ar, entre vocês dois: Vou guardá-la somente para mim.

— O que quer? — pergunta você.

De vez em quando agradece o fato de ser filha do seu pai e, com isso, ser capaz de perceber um golpe.

— O que eu quero? — Falso até a medula. — Nada. Por enquanto nada, em todo caso. Na verdade, tudo depende de você... Cynthia. Vou voltar lá para dentro com você e vou recomendá-la para a função. E se for aprovada no treinamento na Central, então veremos. Quanto ao restante... vai ser o nosso segredo. Não propriamente um segredinho, mas é nosso segredo.

— Por que você faria isso?

Ainda incrédula, sem saber se ouviu direito.

Uma piscadela.

— Ah, a verdade é que eu só tenho confiança em quem já foi à Área X. Mesmo que seja a pré-Área X.

* * *

No começo, não foi um preço tão alto assim. Tudo que ele queria, nos bastidores, relatado para ele e para ninguém mais, era a história dos seus últimos dias passados no litoral esquecido. O faroleiro, a Brigada da Paranormalidade e da Ciência... “Descreva o homem e a mulher”, dizia ele, referindo-se a Henry e Suzanne; e todas as perguntas que ele fazia sobre a Brigada davam a sensação de que você estava ajudando a preencher um quebra-cabeça que ele já vinha montando havia algum tempo.

Depois de alguns meses, começaram a se multiplicar os favores pedidos e atendidos com relutância — apoiar essa ou aquela iniciativa ou recomendação e, quando você adquiriu maior influência, pressionar contra certas coisas, ser menos entusiasmada, colocar na geladeira. A maior parte, você veio a perceber, em determinados comitês ligados ao setor de ciências, de modo a diminuir ou anular o poder da Central dentro do Comando Sul. Tudo muito hábil, gradual, de modo que você não percebeu a escalada senão quando já estava tão envolvida que aquilo tudo era apenas parte do seu trabalho.

Depois de certo tempo, Lowry apoiou sua nomeação para o cargo de diretora. Vir para o Comando Sul tinha sido como ser autorizada a escutar o batimento do coração de uma fera misteriosa. Mas, tornando-se diretora, você chegava ainda mais perto — terrivelmente perto, presa entre aquelas paredes, precisando de tempo para se acostumar. Um tempo que Lowry soube explorar, é claro.


Jogada sobre a mesa, a mais recente filmagem feita pelo satélite sobre a Área X, imagens de alta resolução impressas em papel A4. Fotos glamorosas de um recurso inesgotável. Esse mimetismo em branco do normal, afetado apenas pelos borrões que você poderia esperar encontrar em fotos tiradas por caçadores de fantasmas. Uma prova definitiva de mudança, mancha. Como se de alguma forma o Comando Sul estivesse perdendo até a capacidade de enxergar a mentira.

— O Mal caminha junto com o Bem. Mas esses dois termos não fazem sentido lá na Área X. Ou para a Área X. Então, por que motivo eles devem ser aplicados a nós, quando enfrentamos um inimigo que os ignora? Um contexto indiferente merece da nossa parte uma indiferença análoga, se quisermos sobreviver.

Você não precisa responder, e Lowry faz uma pausa em sua filosofia enquanto prepara um segundo drinque para si. Não que você soubesse o que responder, porque jamais poderia caracterizá-lo como “indiferente” ou alguém que demonstra indiferença por meio de suas ações. Como sempre, isso é parte da estratégia de dissimulação: a capacidade de produzir uma impressão de autoridade instilando nos outros a própria autoconfiança.

Lowry já a ameaçou com hipnose, mas a única decisão que você tomou, tendo vivido um pouco à margem dos experimentos dele, é que jamais permitirá que a hipnotize. Torcendo sempre para que Lowry tenha algum limite, que não seja intocável, que não atue sem alguma coação superior. Certamente cada ação dele revela um pouco de seus objetivos, para alguém, em algum lugar, que tenha poder de intervir.

Portanto, você chegou ao que parece ser um impasse.

E então ele lhe surpreende:

— Quero que você encontre outra pessoa que está envolvida nisto. Alguém que você já conhece. Jackie Severance.

Não era um nome que você esperava ouvir. Mas aí está ela, trazida por Mary Philips, uma das assistentes de Lowry, através da porta espelhada, para o lado de cá do vidro. Severance nem dá atenção ao fato de seus saltos altos estarem pisando em cacos de vidro. Impecavelmente vestida como sempre, ainda viciada em echarpes.

Teria escutado tudo? A sucessora dinástica do lendário Jack Severance. Jackie, removida há quinze anos de seu último cargo no Comando Sul, uma estrela brilhante ainda reluzindo no firmamento da cosmologia da Central, a despeito da sombra de um filho também no serviço, alguém que ela precisa resgatar de vez em quando. Lowry, o fora da lei, e Severance, a agente interna, parecem aliados pouco prováveis. Uma segura o ovo de prata na mão, acariciando-o. O outro tenta espatifá-lo com um martelo invisível.

Qual é a jogada aqui? Ela tem algum poder sobre Lowry? Ou é Lowry que tem poder sobre ela?

— Jackie vai ser minha conselheira nesta situação. De agora em diante, ela vai se envolver. E, antes que a gente tome qualquer decisão final sobre o que vai fazer com você, quero que lhe repita tudo que está no seu relatório, tudo que lhe aconteceu depois que cruzou a fronteira. Pela última vez.

Severance exibe um sorriso de crocodilo e senta no sofá, perto de você, enquanto Lowry se afasta para preparar uma bebida.

— Nada muito formal, Cynthia. Não precisa ter nada preparado. E não precisa ser em nenhuma ordem especial. Pode contar da maneira que preferir.

— Muito gentil de sua parte, Jackie.

Não, não é gentil, é apenas uma tentativa tosca de chegar a uma versão divergente. O que faz de tudo isto uma espécie de ritual, com desfecho já determinado.

Portanto, você recapitula tudo, mais uma vez, para Severance, que a interrompe de vez em quando com perguntas mais bruscas do que o esperado, vindas de alguém que você sempre encarou como um animal político.

— Foi a mais algum lugar? Nenhum atalho ou excursão?

— Excursão?

— É fácil omitir aquilo que não parece relevante.

O mesmo sorriso entediado.

Você não se importa em responder.

— Trouxe de volta com você alguma coisa?

— Somente o material que fui recuperando ao longo do trajeto, coisas da expedição passada, como fizeram outras expedições.

É a história que você e Whitby combinaram de contar, porque você quer manter aquelas coisas consigo, testá-las lá mesmo, no Comando Sul, não deixar que sejam apreendidas pela Central. Vocês são os especialistas, não a Central.

— Que impressão você teve dos diários lá no farol? Teve alguma ideia, alguma sensação, ao vê-los daquele jeito? Se isso não for vago demais.

Nenhuma ideia ou impressão especial, é o que você diz a ela. Eram apenas diários. Porque você não quer voltar lá, não quer ainda reviver o fim daquela viagem, as coisas que aconteceram no farol.

— E nada lá pareceu incomum ou fora do lugar?

— Não.

Você está vendendo a história simples do perigo no túnel.

Em seguida, inclinando-se, conspiratória, como uma conversa só de garotas:

— Gloria. Cynthia. Por que você fez isso? De verdade?

Como se Lowry não estivesse na sala.

Você dá de ombros e dá um sorriso forçado.

No final do seu relato, Severance sorri e fala:

— É possível que mais adiante a gente arquive isso na pasta do “Nunca Aconteceu” e siga em frente. Se isso acontecer, agradeça a Lowry.

A mão no seu braço, pesada, como que dizendo “Não esqueça que eu também ajudei”. Ela também informa que você vai poder manter Whitby, se ele for aprovado na avaliação final de um exame psicológico que você mesma vai ajudar a preparar na Central, extraoficialmente. Mas...

— Você vai cuidar dele. Vai ser a responsável por ele.

Como se você fosse uma criança que pede para ter um bicho de estimação.

A nova comandante da fronteira será escolhida por Lowry e deverá se reportar tanto a ele quanto a Severance, e os dois vão instituir procedimentos tais que, como Lowry falou, “você e Whitby e qualquer outro filho da puta estúpido vai pensar duas vezes antes de tentar escapar”.

Mais algumas amenidades e Severance deixa o aposento, tão rápida quanto chegou, um encontro tão breve que você se pergunta por que motivo afinal ela está ali, que outro assunto tem com Lowry. Será que você caiu em uma armadilha? Será que Lowry caiu? Você tenta lembrar a data exata em que Severance chegou ao Comando Sul. Repassa a lista das funções dela, as obrigações, e onde estava e quando. Pensa que há partes do quebra-cabeça que você não vê ainda, mas que precisa ver.

* * *

Lowry, ali no centro do seu quartel-general secreto com vista para o mar, quando a neve começa a cair em flocos grandes que logo estão cobrindo a relva, as minas submarinas, as pequenas trilhas. Os gansos e as gaivotas que jamais vão se interessar pelas plantas baixas dele ou pelas suas, amontoando-se no falso farol, tão iludidos quanto as expedições foram pelo farol verdadeiro. Mas Severance agora está lá fora, caminhando perto das rochas, olhando para a água. Fala ao telefone, mas Lowry não a vê, enxerga apenas o próprio reflexo, e ela está presa ali, circundada pela silhueta dele.

Lowry, enchendo os pulmões, andando de um lado para outro, bate no peito com a mão fechada.

— E o que eu quero é isto: a próxima expedição não vai para a Central. Eles vão vir para cá. Vão receber o treinamento aqui. Você quer que a Área X reaja? Quer que alguma coisa mude? Pois eu vou mudar. Vou introduzir certas coisas no cérebro da Área X, coisas que vão ter veneno na cauda. Elas vão drenar sangue. Isso vai mostrar à porra do inimigo que nós somos a resistência. Que estamos em cima deles.

Algumas pistas esfriam bem depressa; levam um bom tempo para serem percebidas e seguidas por alguém. Ver Severance andando ao longo da linha de rochas negras perto do farol, mesmo um farol falso, fez você ficar com raiva, ter vontade de dizer: “Isso não é seu, é meu.”

Lowry continua de pé à sua frente, esbravejando sobre o que vai acontecer e como vai acontecer. Claro que o que ele quer é mais controle. Claro que ele vai conseguir.

Mas agora você também sabe o que tinha antes apenas imaginado: por detrás das bravatas, Lowry sente que os destinos de vocês estão entrelaçados. Que agora ele está mais preso a você do que nunca.


Depois de seis meses, você será autorizada a voltar para o Comando Sul. Ninguém lá vai saber por que você ficou tanto tempo afastada, e Grace não vai contar nada para eles; prometeu que os manterá tão ocupados que “nem terão tempo de pensar no assunto”.

Enquanto você fica em casa, esperando o fim da suspensão, a imagem que se forma em sua mente é a de Grace como uma mulher negra bem alta e severa, num jaleco branco de laboratório, com o chapéu de três pontas de um general, estendendo o braço de sabre em punho, por algum motivo de pé na proa de um barco a remo, cruzando um rio de grande valor estratégico. Quando chegar a hora de ela tirar o chapéu, descer da embarcação e lhe devolver o controle, como será que vai se sentir?

Um único pensamento sombrio durante aquelas noites, depois de voltar de uma consulta médica ou de fazer compras para o jantar: em que mundo, de fato, estou vivendo? O mundo em que é possível ouvir os gritos de Whitby no farol misturados aos da primeira expedição, ou aquele em que você está guardando latas de sopa no armário? É possível existir nos dois? Você gostaria? Quando Grace liga para saber como foi seu dia, deve dizer “o de sempre”, ou “terrível, como fazer uma autópsia inúmeras vezes sem motivo”.

Sentada num banquinho no balcão do bar no Chipper’s — isto é o mesmo desde que você voltou, não é? Talvez ainda mais, visto que agora você tem muito mais tempo para ficar aqui. A Corretora também tem aparecido bastante. Ela fala o tempo todo — sobre a viagem que fez ao Norte para visitar a família, sobre o filme a que assistiu, sobre a política local. Às vezes o veterano com sua eterna cerveja em punho desfia uma longa recordação dos seus filhos, tentando participar da conversa.

Enquanto a Corretora e o bêbado conversam em volta de você e através de você, você concorda como se soubesse do que eles estão falando, como se pudesse se interessar, quando tudo que vê são duas imagens superpostas do faroleiro, dizendo a mesma coisa em tempos diferentes, a duas versões diferentes de você. Uma no escuro e a outra na luz.

— Você está pensando nos seus filhos, não é? — pergunta a Corretora. — Dá para perceber.

Sua mente deve ter vagado muito. A máscara escorregou.

— Sim, é mesmo — diz você, e sorri como era esperado.

Você pede outra cerveja, começa a contar à Corretora tudo sobre seus filhos — a escola em que estudam, a vontade de vê-los mais vezes, o desejo deles de ser médicos. E que você pensa que vai encontrá-los no próximo feriado. Que agora, depois de crescidos, eles parecem pertencer a um mundo diferente. O veterano, sentado na ponta do balcão, olhando para você por trás da Corretora, tem uma expressão estranha no rosto. Um olhar de reconhecimento, como se soubesse o que você está fazendo.

Que diabo, talvez você devesse tocar também duas ou três músicas no jukebox. Talvez dar um pulo no caraoquê mais tarde, tomar mais umas cervejas, inventar mais alguns detalhes de sua vida. Mas, a certa altura, a Corretora já foi embora, e só restam você e o veterano, além de alguns clientes desconhecidos, que não vai conhecer nunca. O piso é pegajoso, escuro, cheio de manchas antigas. As garrafas por trás do balcão têm copos de plástico emborcados por cima delas, para afastar as moscas. Há uma luminosidade acima do bar que não é totalmente natural. Por trás de você, as alamedas estão escuras e os céus desbotados voltaram a se erguer, maravilhas inimagináveis pintadas no teto; algumas delas você precisa de instantes para reconhecer.

Porque o outro mundo sempre vaza para dentro deste. Porque não importa o quanto tente manter o que aconteceu no farol apenas entre você e Whitby, sabe que mais cedo ou mais tarde aquilo vai vazar, de algum modo, e haverá consequências.

No farol, Whitby ficara vagando, e você ainda estava examinando a parte de baixo quando percebeu que já não o ouvia se mover no aposento ao lado. Naquela imobilidade, naquela poeira, no modo como a luz passando através da porta da frente despedaçada tornava a escuridão mais tenebrosa, você esperava encontrá-lo de pé num canto, uma figura luminosa por entre as sombras.

Mas logo percebeu que ele tinha subido a escada da torre, rumo ao topo. Vieram os sons de briga, de madeira sendo estilhaçada. Uma voz se erguendo por cima de outra, as duas curiosamente parecidas, e como poderia haver ali uma segunda voz? Você subiu às pressas, e durante a subida percebia uma duplicação e uma dissonância, porque na sua lembrança os degraus são muito mais largos, o trajeto muito mais longo, o espaço no interior da torre passando uma sensação de gravidade zero, as paredes que já foram pintadas de branco, as janelas abertas para receber o céu, o cheiro da grama cortada trazido por Saul. Mas na escuridão, preocupada com Whitby, você tinha se tornado um gigante ou o farol havia se perdido ou diminuiu de tamanho, não só pela ação do tempo, mas contraindo-se, como o fóssil espiralado de um molusco, conduzindo-a a um local desconhecido. Apagando, a cada passo, tudo quanto você pensou que sabia.

No topo, descobriu Whitby na sala de observação, ofegante como um animal, as roupas rasgadas, mãos sujas de sangue, e a estranha impressão de que as bordas daqueles diários amontoados estavam tremulando, envolvendo-o, ameaçando submergi-lo. Não havia mais ninguém ali, somente ele com uma história impossível sobre ter encontrado seu duplo, o Falso Whitby, no andar térreo, de tê-lo perseguido até o topo do farol, até que os dois caíram pelo alçapão aberto em cima do monte de diários, meio em desequilíbrio, desorganizado. O cheiro daquilo. A enorme montanha daquilo. A sensação deles em volta do Verdadeiro Whitby e do Falso Whitby enquanto os dois lutavam com aquela oposição fundamental, ora no escuro, ora na luz que descia pelo alçapão aberto.

Como seria possível checar esse episódio de não um Whitby, mas dois? Não era possível imaginá-lo dando socos em si mesmo, chutes em si mesmo, mordendo a si mesmo, coberto de papéis velhos, mas lutando contra outra versão de si... Os ferimentos que tinha eram inconclusivos.

Mas aquele quadro a deixa fascinada, volta o tempo inteiro à sua memória durante aqueles seis meses, mesmo quando você está cortando cebolas para preparar um chili na cozinha, ou cortando a grama.

Às vezes você tenta imaginar como seria se tivesse chegado um pouco antes, não após a briga, e parasse ali, no alto dos degraus, observando aquele espaço, incapaz de se mexer, olhando a briga entre os dois. Você chega quase a acreditar que Whitby deu à luz Whitby, que ao explorar a Área X alguma coisa na própria natureza conflituosa dele deu origem àquele paradoxo, com uma versão, uma coleção de impulsos, pensamentos e opiniões tentando, de uma vez por todas, eliminar a outra.

Até que duas mãos pálidas agarraram e sufocaram um pescoço pálido, e dois rostos se encararam, a centímetros de distância, o de cima distorcido num paroxismo de fúria enquanto o inferior permanecia calmo, tão calmo, cercado pelos diários amassados e meio destruídos. As folhas brancas com a linha vermelha na margem, as linhas azuis para guiar a escrita. Páginas e páginas de texto manuscrito quase incompreensível. Todos aqueles diários, sem nenhum nome, apenas com as funções de cada um anotadas, e às vezes nem mesmo isso, como se a Área X tivesse introduzido os próprios relatos. Estão mesmo se movendo como se algo enorme dormisse embaixo deles, inspirando e expirando?

Que luz é essa rodeando os dois, ou rodeando Whitby? Os Whitbys?

Até que se ouve um estalo. Um pescoço? Uma coluna? E o corpo do Whitby derrubado sobre o monte de cadernos afrouxa, e sua cabeça cai para um lado, e o Whitby por cima dele, imóvel, emite uma espécie de soluço de derrota e se afasta de cima do morto, consegue desajeitadamente arrastar-se e rolar e ficar o mais longe possível... e fica sentado num canto, olhando para o seu próprio cadáver.

Então, e só então, você é levada a imaginar se foi o seu Whitby quem ganhou — e quem esse outro pode ter sido, um Whitby que na morte parece de uma calma sobrenatural, o rosto liso e sem rugas, os olhos arregalados e fixos, e somente o ângulo do pescoço sugere que foi vítima de alguma violência.

Depois, você obrigou Whitby a sair daquele lugar, a tomar um pouco de ar junto da balaustrada, olhar para aquela paisagem magnífica e incognoscível. Apontou para ele alguns velhos fantasmas cujo conhecimento atribui às suas informações enciclopédicas sobre o litoral esquecido. Whitby está lhe dizendo alguma coisa com urgência, mas você não o ouve. Sua intenção naquele instante é preencher o espaço entre os dois com a sua própria narrativa, sua própria interpretação, para acalmar Whitby, para negar a experiência dele. Para esquecer aquela montanha de diários. Uma coisa que você não quer passar muito tempo avaliando, que afasta de sua mente, porque não é assim que são as coisas: ignorar o irreal para que ele não se torne mais real?

Durante a descida, você procura o corpo do Whitby Morto, mas ele parece ter sumido.

Talvez você nunca venha a saber a verdade.

Mas, no que Whitby lhe garante que era a mochila do duplo, você encontra dois itens curiosos: uma planta estranha e um celular quebrado.


0010: CONTROLE

Controle acordou e abriu os olhos para ver um pé e uma bota a uns quinze centímetros de onde ele estava deitado de lado, embaixo de alguns lençóis. A sola preta do calçado militar estava desgastada, com várias rachaduras, como um mapa de uma área montanhosa. Areia e lama seca se misturavam ali, bem como nas travas pretas. Uma asa de libélula tinha sido partida e estava pulverizada em escamas redondas e pó de esmeralda. Blocos de grama, um pedaço esmagado de alga que tinha secado na lateral.

A paisagem em torno pareceu mostrar uma falta de cuidado que não se refletia nos mantimentos cuidadosamente empilhados, as folhas secas e a sujeira varridas para fora daquele abrigo. Junto à bota, via-se a sola moreno-clara de um pé musculoso que parecia pertencer a uma pessoa diferente, unhas cortadas curtas, o dedão envolvido numa gaze de onde minava uma pequena mancha de sangue seco.

Tanto a bota quanto o pé pertenciam a Grace Stevenson.

Por cima do pé, ele viu que ela segurava as três folhas molhadas, ressecadas, do relatório de Whitby. Em seu uniforme militar, que incluía uma camiseta de mangas curtas, Grace parecia mais magra, e um pouco de grisalho surgia em suas têmporas. Dava a impressão de ter passado por muita coisa em pouco tempo. Tinha uma pistola no coldre, ao seu lado, junto da mochila.

Ele girou o corpo, sentou-se, arrastou-se até a parede adjacente à de Grace, a janela entre os dois. Os pássaros estridentes que o despertaram por um instante ao amanhecer estavam quietos agora, provavelmente para comer ou fazer o que os pássaros fazem. Seria meio-dia já? A Ave Fantasma estava encolhida em um saco de camuflado, e durante a noite tinha feito movimentos bruscos e sons que lembraram a Controle seu gato tendo visões.

— Por que diabo mexeu nos meus bolsos?

O tom de acusação acabou abandonando sua voz no instante em que falou, pois percebeu que a peça entalhada por seu pai ainda estava no casaco.

Ela o ignorou, folheando as últimas palavras de Whitby, a expressão no seu rosto uma mistura de sorriso e testa franzida, intensa mas não comprometida.

— Isto não mudou nada desde a última vez que li. Está até mais cheio de merda do que antes, provavelmente. Só que naquela época o autor era um maluco. Um único maluco. Agora somos muitos malucos do caralho.

— “Do caralho”?

Um olhar interrogativo.

— Qual o problema com “caralho”? A Área X não liga a mínima para palavrões.

Ela continuou a ler e reler as páginas, acenando com a cabeça diante de algumas partes, enquanto Controle a encarava, ainda se sentindo possessivo. Tinha mais apego a elas do que imaginara, e temia que Grace amassasse tudo aquilo numa bola e jogasse pela janela.

— Posso pegar de volta?

Um olhar fatigado, gracioso, algo no sorriso dela revelava como ele era transparente.

— Ainda não. Por enquanto não. Tome o seu café da manhã. Depois apresente uma requisição formal.

Ela voltou a ler.

Frustrado, ele olhou em torno. Meticulosamente arrumado, confirmando a primeira impressão que tivera. Rifles automáticos enfileirados com precisão na parede mais distante, perto de onde ela dormia, num colchão forrado com cobertor e lençol, bem esticados e presos nos cantos. Uma foto da namorada dela, amassada, que estivera na carteira, as beiradas alisadas. Pilhas de comida enlatada erguendo-se junto à parede mais longa, e barras de proteínas. Copos e garrafas de água potável que ela devia ter recolhido em alguma fonte ou poço. Facas. Um fogareiro portátil. Potes, panelas. Trazidos penosamente durante todo o trajeto do Comando Sul até ali, ou roubados daquele comboio cujos corpos eles tinham visto na praia? Quanto daquilo podia ter sido recolhido na própria ilha, ele não conseguia imaginar.

Controle estava a ponto de levantar para pegar uma lata quando ela jogou as páginas no chão entre os dois, bem num ponto onde estava úmido por causa da chuva.

— Dane-se.

Ele arrastou-se às pressas de quatro para recuperar as folhas.

O cano da arma de Grace empurrou sua cabeça junto à orelha.

Controle ficou completamente imóvel, olhando para o lugar onde a Ave Fantasma dormia.

— Você existe? — perguntou ela, num tom áspero, como se a voz estivesse grisalha como o cabelo.

Ele deveria ter adivinhado alguma coisa mais intensa a partir daquela bota, daquele dedo com curativo?

— Grace, eu...

Ela meteu-lhe a coronha na lateral da cabeça, pressionou o cano da arma contra sua pele, falou baixo em seu ouvido:

— Não diga a porra do meu nome. Nunca pronuncie o meu nome! Nada de nomes. Talvez ele ainda possa saber nomes.

— O que pode saber nomes?

Reprimiu a palavra Grace.

— Você já não devia saber?

Ressentida.

— Abaixe essa arma.

— Não.

— Posso sentar?

— Não. Você existe?

— Eu não sei o que isso significa — disse ele, com toda a calma que conseguiu.

Imaginou se seria rápido o bastante para sair da linha de tiro e afastar o cano da cabeça antes de ela estourar os seus miolos.

— Eu acho que sabe. Adulterado. Comida estragada. Uma alucinação. Uma aparição.

— Eu existo tanto quanto você — garantiu ele.

Mas havia um segredo por trás disso, um que ele não ousava revelar. Junto com o pensamento de que não sabia o que Grace teria suportado desde que a vira pela última vez. Que não tinha certeza nem mesmo se a conhecia agora. Não mais do que conhecia a si próprio.

— A que roteiro você está desobedecendo? O da Central... ou o da palavra com L?

— Palavra com L? — Pensamentos absurdos. Lei? Luz do farol? Lésbicas? Então percebeu que ela se referia a Lowry. — Nenhum dos dois. Cortei as sugestões hipnóticas. Estou livre.

Não tinha muita certeza se acreditava naquilo.

— Vamos fazer um teste?

— Nem pense nisso. Estou falando sério. Não.

— Não vou — disse Grace, como se ele a tivesse acusado de crimes muito graves. — É por causa do cacoete de L. Eu já conheço bem os sinais a esta altura. Há um jeito atormentado em vocês todos, uma palidez. As mãos se contraindo em garras. É a assinatura dele, escrita em cada um de vocês.

— Residual. Totalmente residual.

— Bem, então você admite.

— Admito que não vejo motivo para você estar apontando a porra de uma arma para a minha cabeça! — gritou ele.

A Ave Fantasma continuava sem ouvir nada, ou fingia dormir? E ali estava, como que para chamá-lo de mentiroso de qualquer maneira, o que ela chamava o brilho, curioso, interessado, questionador, erguendo-se agora como um aperto no seu peito, um espasmo em sua coxa esquerda enquanto ele permanecia de quatro no chão sendo interrogado pela diretora assistente.

Uma pausa, uma pressão ainda mais forte do cano contra sua cabeça; Controle recuou. Então a pressão sumiu, junto com a sombra que o cobria. Ergueu os olhos. Grace tinha se encostado na parede, ainda empunhando a arma.

Ele se sentou no chão, as mãos nas coxas, respirou profundamente, e considerou suas opções. Era uma daquelas situações de campo que sua mãe chamava de “um ou outro sem o outro”. Ou ele tentava encontrar uma maneira de amenizar aquela relação ou corria direto para a fileira de rifles junto à parede. Não teria muita chance. Não enquanto a Ave Fantasma estivesse fora de ação.

Lentamente, com cuidado, recolheu as três páginas de Whitby, esforçando-se para ultrapassar o perigo daquele momento:

— Você sempre dá boas-vindas desse jeito?

O rosto dela era uma máscara impassível agora, provocando-o a desafiá-la.

— Às vezes acabo apertando o gatilho. Controle, não estou interessada nessa merda. Você não faz a menor ideia do que eu encarei. O que pode ser real, e o que pode não ser real.

Ele se deixou cair sentado de encontro à parede, segurando os papéis de Whitby junto ao peito. Havia alguma coisa no canto do seu olho?

— Nada existe neste mundo — disse Controle —, nada além do que os nossos sentidos nos mostram, e tudo que posso fazer é a melhor escolha possível baseada nessa informação. — Embora ele não confiasse mais no mundo.

— Houve um tempo em que eu teria atirado primeiro, antes mesmo que vocês descessem do barco.

— Obrigado? — disse ele, injetando tanta pressão nisto quanto possível.

Grace assentiu com um gesto curto, como que achando que ele falava a sério, e enfiou de volta a arma no coldre do lado direito, distante de Controle.

— Sempre preciso ter cuidado.

Ele notou o braço dela retesado e ouviu um clique enquanto ela brincava com o fecho do coldre. Abrindo. Fechando.

— Claro — disse Controle. — Estou vendo que alguma coisa machucou seu dedão. Esse tipo de coisa pode deixar a pessoa paranoica.

Ela ignorou isso e falou:

— Quando chegaram aqui?

— Há cinco dias.

— Quanto tempo faz que a fronteira avançou?

Então Grace tinha perdido a noção dos dias, estando ali, sozinha?

— Não faz mais do que duas semanas.

— Como conseguiram entrar?

Ele lhe contou, omitindo o detalhe da localização do portal submarino. Omitindo, também, que fora criado pela Ave Fantasma.

Grace ponderou tudo aquilo durante um bom tempo, mantendo um sorriso amargo que resistia a interpretações. Mas ele já estava de novo em modo alerta: ela empunhou uma faca com a mão esquerda e começou a desenhar círculos no chão poeirento. Aquilo não era apenas um interrogatório paranoico. Coisas maiores e suas próprias análises deviam ser consideradas: Grace teria sido abalada por alguma coisa ali mesmo na ilha, ou sofrera o tipo de choque que desarranja os processos mentais e prejudica para sempre seus julgamentos?

Com o máximo de gentileza que conseguiu reunir, disse:

— Você se incomoda se eu acordar a Ave Fantasma agora?

— Pus um sedativo na água dela ontem à noite.

— Você o quê?

Ecos de uma dúzia de interrogatórios a terroristas domésticos, todos os símbolos e signos.

— Você é o melhor amigo dela agora? Acredita nela? E faz ideia do que estou falando?

Tinha acreditado que ela não era inimiga. Tinha acreditado que ela era humana. Queria dizer Acredito nela tanto quanto acredito em mim mesmo, mas isso não iria satisfazer Grace. Não aquela versão de Grace.

— O que aconteceu aqui?

Ele se sentia traído, triste. Ter chegado tão longe, mas aquela antiga dinâmica — dividir um cigarro no pátio dos fundos do Comando Sul — tinha virado cinzas.

Um estremecimento percorreu o corpo de Grace, algum motivo oculto de estresse subindo à superfície, movendo-se e indo embora, como se acordasse somente agora do meio de um pesadelo.

— É preciso se acostumar — disse ela, olhando os desenhos rabiscados na poeira. — É preciso se acostumar com a consciência de que tudo que fizemos não resultou em nada. Que a Central nos abandonou. Que nosso novo diretor nos abandonou.

— Eu tentei...

Eu tentei ficar; você me disse para fugir. Mas claramente não era assim que Grace via a questão. E agora os dois estavam ali no fim do mundo e ela resolvia descarregar tudo em cima dele.

— Tentei pôr a culpa em você, no começo, quando comecei a organizar as coisas na minha cabeça. Culpei você. Mas o que você poderia ter feito? Nada. A Central provavelmente o programou para fazer o que eles queriam.

Repassando agora aqueles momentos terríveis entulhados na sua memória, enfiados ali de qualquer jeito. A expressão no rosto de Grace naquele momento extremo, enquanto a fronteira avançava sobre o Comando Sul, ponderando a possibilidade de ele não ter dito nada a ela. Não ter chegado tão perto nem tocado no braço dela com a mão. Ter apenas imaginado isso tudo.

— Seu rosto, Controle. Se você pudesse ver a expressão no seu rosto... — falou ela, como se os dois estivessem conversando sobre a reação dele diante de uma festa-surpresa.

A parede do edifício virando carne. A diretora voltando, rodeada por uma onda de luz esverdeada. O peso daquilo. A mão esquerda que ele tinha cerrado em torno do entalhe de Chorry no bolso do casaco. Afrouxou os dedos, tirou a mão do bolso, deixou-a se abrir. Examinou as endentações brancas, em curva, com bordas cor-de-rosa.

— O que aconteceu com o pessoal no setor de ciências?

— Eles decidiram criar uma barricada no porão. Mas o lugar estava se transformando muito depressa. Não fiquei por muito tempo.

Dito assim casualmente, muito casualmente, falando sobre o desaparecimento do mundo que ambos tinham conhecido. Não fiquei por muito tempo. Uma frase encobrindo uma multidão de horrores. Controle duvidava que os funcionários houvessem tido alguma chance contra o que lhes acontecera, vedados por aquela parede repentina.

E Whitby? Mas, lembrando a última transmissão de suas câmeras-espiãs, ele não queria saber nada sobre a palavra com W agora, ou talvez nunca mais.

— E sobre... a diretora?

Aquele olhar de frente, mesmo nesse novo contexto, mesmo com ela no limite, inquieta, cansada, subnutrida. Aquela invencível capacidade de assumir a responsabilidade, pelo que quer que fosse, e avançar.

— Meti uma bala na cabeça da coisa. Conforme as ordens que recebi. No momento em que eu tive certeza de que o que tinha voltado era um intruso, uma cópia, uma falsificação.

Ela não pôde continuar, ou pensou em algo que a distraiu da narração, ou estava apenas tentando arrumar as ideias. O que teria lhe custado matar, ainda que uma versão dela, a pessoa a quem tinha sido tão devotada, a quem se podia dizer que havia amado, Controle podia apenas imaginar.

Depois de algum tempo, ele fez a pergunta inevitável:

— E depois?

Ela encolheu os ombros, os olhos fitando o chão.

— Fiz o que precisava. Limpei o que pude, reuni as pessoas que quiseram me acompanhar e, sempre seguindo as ordens, fui para o farol. Para onde ela havia me instruído que fosse. Fiz exatamente o que mandou, mas não conseguimos nada. Não fez diferença. Ela estava errada, só isso, e não tinha um plano. Nenhum plano.

Uma ferida aberta, com tanta intensidade, e Grace contando tudo com tanta calma na voz. Controle fixou os olhos na sola da bota que ela exibia. O tórax partido de uma formiga aparecia quase no ponto extremo de baixo.

— Foi por isso que você não quis cruzar a fronteira de volta? — perguntou ele.

Por causa da culpa?

— Não se pode mais voltar pela fronteira! — Ela gritou. — Não existe mais portal.

Sufocado pela água do mar, cercado por peixes. A visão do quase afogamento voltando com força.

Não há mais porta. Não existe mais.

Somente a que está no fundo do mar. Talvez.

Ele perdeu-se naqueles pensamentos enquanto Grace continuava a falar sobre coisas grotescas, impossíveis.

* * *

Pelas janelas do térreo da torre em ruínas, o mundo parecia diferente, e não apenas porque Grace tinha reaparecido nele. Uma tênue parede de neblina se aproximava, vindo do mar, obscurecendo a paisagem, e a temperatura caía depressa. Se continuasse assim, iam ter que acender uma fogueira quando anoitecesse. Imagens vagas através da névoa e da copa das árvores: os destroços fantasmagóricos das casas, paredes inclinadas como fatias grossas de carne pendendo sobre uma carne ainda mais decomposta. Uma estrada correndo paralela à praia e, depois dela, as colinas cobertas por uma densa floresta de pinheiros.

Não havia mais portal na fronteira levando para casa.

Grace tinha abatido o duplo da diretora.

Sentira a fronteira passando através dela e deixando-a para trás.

— Era como se eu estivesse sendo vista. Estivesse nua. Reduzida ao mínimo. A nada.

Ela dizia isso enquanto contemplava com devoção intensa a fotografia frágil, preservada com tanto cuidado, da mulher que amava lá no outro mundo.

Tinha batido em retirada, mantendo a ordem, com alguns membros da equipe do Comando Sul, funcionários, seguranças e outros, refugiando-se no farol, seguindo as instruções deixadas pela diretora, que Controle ignorava e que emergiam do passado pedindo para ser validadas. Lá no farol, alguns dos soldados começaram a sofrer a modificação e não conseguiram suportá-la. Alguns tentaram voltar para o túnel e nunca mais foram vistos. Uns poucos falaram sobre vastas sombras que se aproximavam do lado do mar. Um racha entre as facções, incluindo uma discussão com a comandante da fronteira, piorou sua situação.

— Nenhum deles sobreviveu, eu acho. Nenhum deles saberia como sobreviver.

Mas ela permaneceu vaga a respeito das ações no farol e de sua retirada dali para a ilha. “Fiz o que tinha de fazer.” “Tudo isso é passado. Já fiz as pazes com isso.” “Não consigo dormir muito.” Tudo aquilo uma grande confusão. É passado? Tinha acabado de acontecer.

Ele tinha até então se apegado a uma certa esperança ou ilusão, com a mentalidade capaz de suportar um cerco, de apoiar uma causa comum e combater o inimigo. Mas isso fora uma fantasia mórbida, uma espécie de vergonhosa rejeição à realidade. O Comando Sul não existia mais, mesmo que eles ficassem barricados dentro do setor de ciências durante os cem anos seguintes, tornando-se a semente subterrânea de um povo pálido, morador de cavernas, cheios de medo e cujos bisnetos ouvem histórias amedrontadoras sobre o mundo arrasado que os espera na superfície.

— Você fez treinamento para as expedições?

Apenas um blefe, mas com certo fundamento, a julgar pelos mantimentos.

— Pacote básico de proteção, era o nome — disse Grace. — A diretora sugeriu isso para os chefes de setores, da administração.

Porque ela dava tanto valor à segurança deles, e esperava que os cabeças sobrevivessem ao apocalipse. Controle estava disposto a apostar que o “pacote básico de proteção” tinha sido aplicado apenas a Cynthia e Grace. Ela jamais o partilharia com ele.

— Se você planejou tudo isto, quer dizer que há uma missão?

— Isto parece uma missão? — Um sorriso conciso, irônico. Seu tom de voz já um pouco diferente, como se ela achasse que a Ave Fantasma, que começava a se mexer, pudesse estar escutando. — A missão é sobreviver, John. A missão é encarar as coisas dia a dia. Eu me garanto. Sigo alguns protocolos. Sou cuidadosa e estou tranquila.

Grace estava preparada para viver ali o resto dos seus dias. Já tinha se resignado a esse paradigma.

A Ave Fantasma ergueu-se apoiada num cotovelo. Não parecia grogue. Seu olhar parecia uma arma, como se ela não tivesse necessidade de uma pistola ou de uma faca. Não parecia alguém que recebesse bem a notícia de que tinha sido drogada, de modo que Controle ficou calado. Grace dirigiu a ela um olhar respeitoso e receoso, agora que não era mais apenas um corpo encolhido no chão.

— O que atacou aquele comboio? — perguntou a Ave Fantasma.

Nenhum bom-dia, nem mesmo algum interesse no que eles estavam discutindo. Quanto ela teria escutado, deitada ali? O que teria se infiltrado em sua mente semiconsciente a respeito de cópias e do duplo da diretora?

Uma risadinha sinistra de Grace, seguida por um encolher de ombros, mas sem outra resposta.

A Ave Fantasma fez o mesmo gesto, agarrou uma barra de proteína, rasgou o invólucro com a faca, começou a devorar o conteúdo, falando entre dentadas:

— Isto aqui está horrível, estragado. Encontrou alguma coisa fora do comum aqui na ilha?

— Tudo aqui é fora do comum — disse Grace, com uma espécie de exaustão, como se já tivesse respondido àquela pergunta mil vezes.

— Você viu a bióloga?

Uma pergunta direta exigindo uma resposta direta, e Controle ficou tenso, aguardando.

— Se eu vi a bióloga? — Ela pareceu girar essa pergunta para vê-la de todos os ângulos. — Se eu vi a bióloga?

O estalido do botão do coldre ficou mais rápido, e o desenho com a ponta da faca na poeira tornou-se mais complexo. Era uma hélice? Duas espirais entrelaçadas? Uma estrela-do-mar, ou meramente uma estrela?

— Vamos, Grace, responda — exigiu a Ave Fantasma, levantando-se, pondo-se diante deles dois com as mãos caídas dos lados, naquele tipo de posição relaxada mas em perfeito equilíbrio, típica de quem está pronta para um enfrentamento.

Principalmente em quem teve treinamento de combate.

A luz que entrava pela janela do andar térreo ficou mais sombria pela passagem de uma nuvem. Um pássaro lá fora estava murmurando ou cochichando ao ritmo da faca que riscava o chão. Lá bem de longe veio a sugestão de algo ressonante, lúgubre, talvez um eco rebatendo nas pedras da torre. Uma lagartixa subiu veloz pela parede. Controle não sabia se devia se preocupar com o que estava próximo ou com o que havia mais longe. Essa pergunta da Ave Fantasma era a única que importava para ela, e Controle não sabia do que ela seria capaz se Grace não lhe respondesse.

A diretora assistente virou-se para Controle e falou:

— Se eu fosse ficar sentada aqui contando a essa cópia — ela apontou a Ave Fantasma — tudo que vi, ainda estaríamos sentados aqui no dia em que o inferno congelasse.

— Basta responder à minha pergunta — murmurou a Ave Fantasma.

— Eu e a Ave Fantasma estamos aqui só de passagem? — perguntou Controle. — Não devíamos seguir caminho?

Essa era a questão principal, de certo modo. Não as perguntas da Ave Fantasma, mas a atitude de Grace. Aquela suspeita constante estava começando a enervá-lo.

— Você sabe há quanto tempo eu cheguei nesta ilha? Você já me fez essa pergunta?

— Você viu a bióloga? — exigiu a Ave Fantasma, separando as sílabas, com a voz carregada.

— Pergunte-me.

A faca se cravou, vibrando, no piso de madeira. A mão no coldre estava agora imóvel, firme sobre a arma.

Controle deu uma olhada rápida na direção da Ave Fantasma. Ele teria deixado escapar alguma coisa vital?

— Há quanto tempo você está aqui na ilha? — perguntou Controle.

— Três anos. Eu cheguei aqui há três anos.

* * *

Lá fora, tudo parecia imóvel, tão impossivelmente imóvel. A lagartixa pregada na parede. Controle pregado em seus pensamentos. Uma satisfação que Grace não conseguiu reprimir brotou no seu rosto cansado. Ter dito aos dois algo que eles não tinham como saber, que não podiam prever.

— Três anos — repetiu Controle, como se pedindo que ela se corrigisse.

— Não acredito — retrucou a Ave Fantasma.

Uma risada subitamente generosa.

— Não culpo muito vocês dois. Não culpo de forma alguma. Vocês estão certos. Eu devo ser uma vaca maluca qualquer que enlouqueceu de tanto ficar sozinha aqui. Devo ter sido incapaz de lidar com a situação. Devo estar doida para cacete. Claro, devo estar. Exceto por isto...

Grace puxou da mochila um monte de páginas dobradas. Ressequidas, amarelas. Via-se que estavam todas escritas e presas no canto por um clipe enferrujado.

Jogou as folhas aos pés da Ave Fantasma.

— Leia. Leia antes de me fazer perder meu tempo lhe contando coisas. Basta ler.

Ela as apanhou, olhou a primeira página com uma expressão confusa.

— O que é isso? — perguntou Controle.

Parte dele não queria saber. Não queria sofrer outro deslocamento.

— As últimas vontades e o testamento da bióloga — disse Grace.


PARTE II

LUZ IMÓVEL


Escrever, para mim, é como tentar pôr em funcionamento um motor que está parado há anos, silencioso, enferrujado, num terreno baldio — engasgado com água e lixo, infiltrado por formigas, aranhas e baratas. Cipós e mato enfiando-se nele, brotando de dentro dele. Um ronco que parece uma tosse, uma erupção de folhas e terra, uma voz que soa um pouco como a minha mas que não é a mesma de antes; eu uso minha voz verdadeira muito raramente.

Um longo tempo se passou desde que tracei palavras num papel, e desde então não voltei a sentir essa necessidade. Estou sentindo mais vividamente do que nunca que aqui na ilha eu não devo nunca me deixar arrancar do momento. Ser arrancada do momento é perigoso — é nesse instante que as coisas se infiltram em mim e de repente não existe mais presente para onde retornar. Só bem recentemente comecei a sentir algo faltando, algo além da sensação de que neste lugar eu devo simplesmente existir e viver qualquer que seja o tempo que me concedam. Também não tenho nenhum interesse em recontar, em registrar, em me comunicar pelos modos que consideramos comuns. Talvez não seja surpresa, então, que eu tenha começado a escrever isto aqui várias vezes, e que já abandonei três ou quatro rascunhos deste... deste documento? Desta carta? Deste seja lá o que isso for.

Talvez, por outro lado, a hesitação tome conta de mim porque, quando penso em escrever, tenho um vislumbre do mundo que deixei para trás. Esse mundo de além, quando meus pensamentos se voltam para ele, é uma esfera difusa, nebulosa, irradiando uma luz não muito forte, e no seu interior emaranham-se vozes discordantes e imagens que traspassam os olhos e as mentes como um fio de navalha, e nenhum de nós consegue sequer piscar. Parece um mito, uma espécie de tragédia mítica, uma mentira, que eu tenha um dia vivido lá, ou que alguém ainda possa viver lá. Algum dia os peixes e os falcões, as raposas e as corujas irão contar histórias, ao seu modo, sobre esse globo incorpóreo de luz e o que nele se continha, todo o veneno e toda a dor que vazaram para fora dele. Se a linguagem humana significasse alguma coisa, eu mesma poderia contar toda essa história para as ondas ou para o céu, mas para quê?

Mesmo assim, já que finalmente decidi deixar o brilho tomar conta de mim, depois de tê-lo controlado durante tantos anos, vou fazer mais uma tentativa. Quem vai ler estas linhas? Não sei, nem me preocupo muito. Talvez eu esteja escrevendo apenas para mim mesma, talvez exista em algum lugar outro relato desta jornada, mesmo que eu seja capaz de contar apenas a parte inicial de uma longa história. Mas se alguém ler isto, saiba que não vivi aqui na esperança de ser resgatada, aguardando o aparecimento de uma décima terceira expedição. Se o mundo lá fora parece ter desistido completamente do recurso de mandar expedições, talvez seja uma prova de que de repente a sanidade mental prevaleceu. Mas o mundo lá fora, ou mesmo os perigos deste mundo onde vivo agora, será um problema cada vez menos importante nos próximos dias.


01: O BRILHO

A princípio, havia sempre a ilha à minha frente, em algum lugar, ao longo da costa, e a presença de meu marido naquelas migalhas de notas que eu achei pelo caminho, as notas que eu esperava que fossem dele. Embaixo de pedras, enfiadas em galhos finos, enroscando-se pelo chão. Todas foram importantes para mim, tanto fazia se umas fossem reais e as outras, apenas acaso e coincidência. Chegar à ilha significava muito para mim àquela altura. Eu ainda estava apegada à ideia de causalidade, de intenção, da forma como essa palavra era entendida lá no Comando Sul. Mas, e quando você descobre que o preço da intenção é tornar invisíveis tantas outras coisas?

De acordo com o diário do meu marido, ele precisou de seis dias para chegar à ilha, na primeira vez. Precisei de um pouco mais. Porque as regras tinham mudado. Porque o chão onde eu buscava apoio num dia, no dia seguinte ficava instável, e às vezes parecia sumir embaixo dos meus pés. Às minhas costas, lá no farol, uma luminescência ia se tornando mais forte, e uma névoa cor de brasa invadia o céu, e pelo meu binóculo, por mais dias do que imaginei possível, tive a impressão de algo enorme se elevando no mar numa onda contínua e em câmera lenta. Algo que eu ainda não estava pronta para ver.

Adiante, aves disparavam pelo céu arrastando manchas de cor que pareciam outras versões delas mesmas, que podiam até ser alucinações. O ar parecia maleável, como se pudesse ser convencido ou coagido a algo. Eu me sentia acuada entre duas coisas, sempre viajando, nunca chegando a lugar algum, de modo que em pouco tempo queria um lugar que pudesse considerar meu “acampamento-base” por algum tempo — que pudesse satisfazer aquele constante sentimento de frustração, de que eu não podia confiar naquele ambiente que estava percorrendo. Minha única âncora era a própria trilha, que, embora fosse se tornando mais invadida pelo mato e mais cheia de voltas, nunca sumia, nunca desembocava em nada.

Se ela tivesse me conduzido a um penhasco, eu me deteria ali ou teria passado direto? Ou a ausência seria bastante para me fazer dar meia-volta e tentar achar de novo a porta da fronteira? É difícil prever o que eu faria. As trajetórias dos meus pensamentos foram se dispersando ao longo daquela viagem, virando numa direção e depois noutra, como as andorinhas no claro céu azul que, mergulhando e traçando espirais numa fração de segundo, retomavam o curso anterior, depois daquela rápida digressão, para colher um inseto, seu grão de proteína.

Também não sei quantos desses fenômenos, desses pensamentos, eu podia atribuir ao brilho dentro de mim. Alguns, mas não todos, a julgar por tudo que aconteceu depois, tudo que ainda está acontecendo. No momento em que eu pensava que o brilho era uma coisa, ele virava outra. Na quinta manhã, quando me ergui da relva e do chão duro e da areia, o brilho tinha se adensado até formar uma aconchegante segunda pele sobre mim, uma pele que produziu estalidos quando abri os olhos, dando a leve sensação, a mais fugaz, de ser uma camada de gelo impossivelmente fina. Eu podia ouvi-la se fraturando ao derreter como se viesse de milhares de anos de distância.

Quando o dia avançou, o brilho se manifestou no meu peito como uma pedra quente e vermelha que pulsava junto do meu coração, uma companhia indesejada. A cientista em mim tinha vontade de me anestesiar e fazer uma cirurgia, remover as obstruções, mesmo eu não sendo uma cirurgiã e o brilho não sendo um tumor. Lembro-me de ter pensado que, na manhã seguinte, eu poderia já estar falando com os animais. Poderia rolar na terra, rir histericamente sob aquele impiedoso céu azul. Ou poderia sentir o brilho elevando-se curioso até a minha cabeça, como um periscópio — algo independente e vivaz, que não deixava atrás de si mais do que uma casca vazia.

Ao entardecer daquele dia, tendo ignorando as picadas das moscas e os enormes répteis que me observavam da água, arreganhando os dentes para mim como os carnívoros insensíveis que eram... A essa altura, o brilho tinha subido até minha cabeça e estava alojado ali por trás de tudo que eu pensava, como um pedaço de carvão esfriando sob uma cinza gelada. E eu não sabia mais ao certo se era uma sensação, um impulso, uma infecção. Estava indo rumo a uma ilha, que podia ou não me trazer respostas, porque queria ir para lá ou porque estava sendo empurrada numa direção por um estranho invisível? Um acompanhante. O brilho seria mais separado do que eu percebia? Por que as palavras da psicóloga apareciam tanto em minha mente, por que eu não conseguia arrancá-las dali?

Essas não eram questões especulativas, matéria para debates ociosos, mas preocupações concretas. Às vezes eu sentia como se aquelas palavras, minha conversa final com a psicóloga, estivessem postas como um escudo ou uma parede entre mim e alguns aspectos do brilho, como se uma peculiaridade intencional delas tivesse ativado algo em mim. Mas por mais que eu as revirasse na minha mente, não chegava nem perto de uma conclusão. Às vezes você está tão próxima de uma coisa que não consegue vê-la por inteiro.

Naquela noite acampei, fiz uma fogueira, porque não me importava de ser vista por ninguém. Se o brilho existia em separado, e se cada parte da Área X era capaz de me ver, que diferença fazia? Uma espécie de negligência atordoada estava voltando a me invadir, e eu a acolhi. O farol tinha ficado para trás havia muito tempo, mas percebi que eu ainda o procurava, aquela grande âncora, aquela grande armadilha. Também ali cresciam cardos roxos, com ainda mais abundância, e eu não podia deixar de imaginar que eram espiões da Área X. Mesmo sabendo que ali tudo espiava e tudo era espiado.

O vento se ergueu com força lá da praia, eu me lembro, e o tempo esfriou. Eu me apegava aos pequenos detalhes, naquele tempo, como um recurso para manter o brilho à distância — tão supersticiosa quanto qualquer um. Logo um gemido profundo se elevou por entre o escurecer, com um estardalhaço familiar enquanto algo pesado passava por entre os juncos. Estremeci, mas também dei uma risada e falei alto: “Ora, é só o meu velho amigo!” Não tão velho, e também não tão amigo assim. Presença sinistra. Uma fera apenas. Naquele instante destemido, ou talvez somente neste, senti uma afeição profunda por ele, uma sensação de parentesco. Ergui-me para ir ao seu encontro, com o meu brilho murmurando o tempo inteiro de uma maneira queixosa, quase petulante. Um monstro? Sim, mas depois do monstro que era o Rastejador, eu me entreguei àquela fonte mais simples de mistério.


02: A CRIATURA QUE GEMIA

Pouparei vocês da busca àquela criatura de quem eu já fugira uma vez; era absurdo tentar distinguir juncos vergados pelo vento daqueles amassados por alguma força mais específica, capaz de romper por entre o lamaçal e os atoleiros sem quebrar uma pata ou afundar no lodo.

A certa altura, saí numa espécie de clareira, uma ilha de terra coberta por um capim anêmico e cercada mais uma vez de juncos. No extremo oposto, alguma coisa pálida, com jeito de larva, monstruosa, agitava-se e gemia, as patas martelando o chão de juncos, parecendo agora não ter mais a rapidez que eu tinha testemunhado no passado. Logo percebi que a criatura estava dormindo.

A cabeça era pequena comparada ao corpo, mas estava virada para longe de mim, de modo que eu só conseguia ver o pescoço grosso e cheio de rugas que se transformava no crânio. Ainda havia uma chance de ir embora. Tinha todos os motivos para isso. Estava trêmula, e a resolução que me levara a abandonar o caminho principal se evaporara. Mas algo em sua falta de consciência me fez ficar.

Avancei, mantendo minha arma apontada para a criatura. De perto, o gemido era ensurdecedor, o badalar estranho e gutural de um sino de catedral vivo. Não havia como me aproximar furtivamente — o chão de terra e capim estava coberto de juncos secos que estalavam sob minhas botas — e, mesmo assim, ela continuava a dormir. Apontei minha lanterna para o seu tronco. O corpo tinha a consistência e a forma de uma mistura de lesma e de suíno, a pele pálida toda coberta de manchas de musgo esverdeado. As patas dianteiras e traseiras lembravam os membros de um porco, mas com três dedos grossos nas extremidades. Mais ou menos no meio do corpo, perto do que imaginei que fosse o estômago, havia mais dois apêndices, que lembravam pseudópodes carnudos. A criatura os usava para ajudar seu corpanzil a avançar, mas eles frequentemente ficavam apenas se agitando pateticamente, como se não estivessem inteiramente sob controle.

Iluminei com a lanterna a cabeça da criatura, aquele pequeno oval rosa protegido pelo pescoço roliço. Como sugeria aquela máscara em decomposição que eu havia achado no encontro anterior, a criatura tinha o rosto do psicólogo da expedição do meu marido. Adormecido, era uma máscara de total angústia e perplexidade, a boca aberta num perpétuo O, como se gemesse todo o seu sofrimento, enquanto seus membros escarvavam o chão, e a criatura fazia seu doloroso e espasmódico avanço no que acabaria sendo um enorme círculo. Por sobre seus olhos, uma película esbranquiçada indicava que ela era cega.

Eu devia ter sentido alguma coisa. Devia ter ficado emocionada ou enojada com aquele encontro. Mas depois da minha descida à torre e minha aniquilação pelo Rastejador, eu não sentia nada. Nenhuma emoção, nem mesmo a piedade simples, comum, a despeito daquela expressão crua de trauma, de uma agonia incompreensível.

Aquele animal deveria ter sido um golfinho com um olho estranho, um javali selvagem que agia como se fosse novo naquele corpo. E talvez isso fizesse parte de um padrão proposital, cujos contornos eu era incapaz de perceber. Mas aquilo parecia um erro, um tiro no pé dado por uma Área X que tinha assimilado tantas coisas de maneira tão bela e impecável. O que me fez imaginar se o meu brilho era o prenúncio de alguma coisa como aquilo. Desaparecer ali na orla do oceano, nos alcances anônimos entre a praia e o vento, ou então nos pântanos, era algo que não me perturbava, talvez nunca tivesse perturbado. Mas aquilo, sim — aquela busca cega e incansável. Será que eu tinha me iludido em pensar que me deixar tomar pelo brilho seria um processo indolor, e até mesmo belo? Não havia nada de belo naquela criatura que gemia, nada que não parecesse uma intervenção medonha.

Naquele contexto, eu não podia intervir, também, mesmo enquanto a observava contorcendo-se no seu desassossego perpétuo. Eu não iria acabar ali com sua miséria, em parte porque estava lidando com dados incompletos. Não tinha certeza do que ela representava ou pelo que estava passando. Por baixo do que parecia ser dor talvez houvesse o êxtase — o que restava do sonho humano e, nele, algum conforto. Também me veio o pensamento de que talvez o que aquele membro de uma expedição tinha trazido para a Área X pudesse ter contribuído para seu estado atual. Isso é o que consigo lembrar agora, quando minha memória começa a ficar entrelaçada a tantas outras considerações. No final, tirei uma amostra do seu pelo, que se mostrou tão inútil quanto as anteriores — esse fato tinha uma consistência que eu devia ter admirado, mas não o fiz —, e voltei para perto da minha pequena e triste fogueira, no meio daquele nada que era tudo.

Mas esse encontro acabou me afetando de algum modo. Resolvi não dar mais espaço ao brilho, não abdicar da minha identidade — ainda não. Eu não podia me conformar com a possibilidade de que um dia pudesse relaxar a vigilância e me transformar na criatura que gemia entre os juncos.

Talvez fosse uma fraqueza. Talvez fosse apenas medo.


03: A ILHA

Logo a ilha se tornou uma sombra ou uma mancha no horizonte do mar, então vi que seria apenas uma questão de dias, mesmo com a minha dificuldade para registrar a passagem do tempo. A ilha, que era tão opaca aos meus olhos agora quanto meu marido tinha sido ao retornar. Eu não fazia ideia do que ia encontrar ali, e saber disso me deixava concentrada, me ajudava a monitorar o brilho mais de perto, a combatê-lo com mais força, como se, ridiculamente, assim que eu conseguisse fazer a travessia, eu fosse me encontrar em minha melhor forma, meu momento mais alerta. Alerta ao quê? A um cadáver que eu talvez encontrasse, se tivesse sorte? A alguma lembrança de uma vida naquele outro mundo que pudéssemos agora recordar de forma distorcida como sendo mais plácida e mais confortável do que de fato fora? Não sei a resposta a essas perguntas, exceto que a primeira diretriz de um organismo é continuar existindo — respirando e comendo e cagando e dormindo e fodendo, e de todas as maneiras levando a cabo sua alegre repetição dos dias.

Vedei com cuidado a mochila, e mergulhei no mar.

* * *

Qualquer pessoa que leia isto e goste de histórias sobre personagens agrupados em volta da fogueira com lobos espreitando à distância vai se decepcionar ao saber que não fui atacada por leviatãs das profundezas quando nadei até a ilha. E que, embora cansada e com frio, não tive dificuldade em preparar meu alojamento nas ruínas da torre do farol, de frente para o mar. Que facilmente encontrei comida ali, em pouco tempo, pescando e colhendo frutas silvestres, arrancando tubérculos que, mesmo amolecidos, eram comestíveis. Fiz armadilhas e peguei pequenos animais quando precisei, plantei minha própria horta usando sementes que recolhi ali mesmo e a fertilizei com compostagem que eu mesma preparei.

A princípio, a coisa que me deixou mais perplexa na ilha foi o farol. Ele me parecia uma imagem espelhada do outro no litoral — o modo como a luz se refletia nele — e isso soava como parte de alguma brincadeira obscura e potencialmente cruel. Podia ser apenas mais um detalhe entre tantos outros que não me ajudavam a obter respostas sobre a Área X. Ou talvez essa convergência, esse sinônimo incompleto, com o teto desmoronado, com o térreo coberto por folhas apodrecidas, onde comecei a preparar minha cidadela... talvez tudo aquilo fosse uma indicação poderosa e inconfundível a respeito de algo.

Passei algum tempo depois explorando o farol, examinando as construções em volta, a vila abandonada, avaliando tudo de forma sistemática, com rigor científico, mas senti que meu primeiro reconhecimento deveria ser mais amplo: checar toda a ilha à procura de ameaças, de comida, de fontes de água, de qualquer sinal de vida humana. Não alimentei muitas esperanças porque não vi nenhum sinal de ocupação recente do farol, que parecia ser o abrigo mais provável ali, uma vez que todas as outras construções se revelaram, logo ao primeiro olhar, arruinadas; tinham entrado em decomposição com espantosa rapidez assim que a Área X se impôs sobre aquele lugar. Havia também sinais de poluição, cicatrizes antigas, mas que tinham se diluído tão depressa no firmamento que não fui capaz de calcular havia quanto tempo existiam. E se a Área X estava ajudando a apagar mais rápido os seus efeitos.

A ilha tem cerca de vinte quilômetros de comprimento, dez de largura, e uns sessenta e cinco de circunferência, contendo uma área que eu calculo mais ou menos em duzentos e quinze quilômetros quadrados ou aproximadamente vinte mil hectares. A floresta de pinheiros e carvalhos constitui a maior parte do seu interior e se estende até perto da praia no lado que dá para o continente, mas a região virada para o mar tem sido muito fustigada pelas tempestades, e ali há uma grande quantidade de arbustos, charcos e mato retorcido. Existem mais fontes de água potável do que eu esperava, principalmente devido aos riachos que descem das colinas para o mar. Isso, assim como a proteção proporcionada pelas colinas em relação às tempestades que vêm do mar, provavelmente explica a posição da vila abandonada. Mas encontrei também uma torneira no terreno do farol que cuspiu de início, com ruído, um pouco de água enferrujada, mas logo começou a produzir um filete constante de uma água salobra mas bebível, de algum aquífero subterrâneo.

Mais adiante, descobri um rico ecossistema onde uma população arisca de coelhos era controlada por predadores, principalmente raposas de uma espécie pequena, agressiva, um tipo que parece descender de um ou mais casais que se reproduziram dentro da gama limitada de possibilidades do ambiente. A população de aves também é abundante, com vários tipos de andorinhas e carriças, pica-paus e corujas, além de aves limícolas em quantidade grande demais para serem catalogadas. Ao entardecer, o som desse passaredo triunfante produz um coro extraordinário de vozes, em contraste com os pântanos, cuja riqueza é do tipo silencioso, quase vigilante.

Vaguei pela ilha durante muitos dias, tanto contornando o perímetro quanto me aventurando pelo interior, para ter uma ideia bem clara dela e do que contém. Enquanto registrava minhas observações, amaldiçoei o Comando Sul por não nos fornecer um mapa, mesmo sabendo que, se tivessem me dado um, eu me sentiria na obrigação de conferi-lo e acabaria tendo mais ou menos o mesmo trabalho. Não somente porque eu não confiava no Comando Sul, mas também porque não confiava na Área X. E, no entanto, quando dei por encerradas essas explorações iniciais, eu não podia dizer que havia qualquer coisa sobrenatural ou fora do comum na ilha inteira.

A não ser, talvez, o corujão.


04: A CORUJA

Encontrei meu marido? De certo modo, se bem que não sob a forma como eu o conhecia. Na parte mais afastada da ilha, num fim de tarde, depois que atravessei um longo trecho de urtigas e arbustos e uma relva alta de folhas cortantes, tudo à sombra de pequenos bosques compactos de pinheiros retorcidos pelo vento — atravessei até chegar a uma enseada tranquila de areia branca e piscinas naturais que se estendiam por uma grande extensão até darem lugar a águas escuras e profundas. Na praia, via-se um amontoado de grandes pedaços de cimento e pedras, os remanescentes de um píer de épocas antigas, que proporcionava abrigo a um bando de cormorões.

Um pinheiro anão, da altura de uma pessoa, erguia-se desafiador no meio das pedras e dos cormorões, escurecido e com as agulhas quase todas arrancadas. Num longo galho que se estendia, via-se a improvável silhueta de uma coruja, com orelhas pontudas e empenachadas, a face marrom com penas brancas no pescoço, corpo sarapintado de marrom e cinza. O barulho da minha aproximação deveria tê-la alarmado, mas ela continuou pousada, cercada pelos cormorões que se aqueciam ao sol. Era uma cena incomum, para mim, e me fez chegar mais perto.

Pensei de início que a coruja estava ferida, principalmente quando me aproximei e ela não se mexeu, ao contrário da maioria dos outros pássaros que, reclamando com algazarra, levantaram voo, formando uma linha comprida acima da água, afastando-se sem destino, inquietos. Qualquer outra coruja também fugiria, desapareceria na floresta. Em vez disso, continuou pousada sobre a casca rugosa e nodosa daquele galho, contemplando o sol poente com seus olhos enormes.

Mesmo quando parei junto à árvore, equilibrando-me com dificuldade sobre as rochas, ela não voou, não olhou para mim. Ferida ou moribunda, pensei de novo, mas ainda cautelosa, pronta para bater em retirada, porque corujas podem ser perigosas. Aquela era enorme, pesando uns oito quilos pelo menos, a despeito dos ossos ocos e das penas muito leves. Mas nada do que fiz conseguiu inquietá-la, de modo que fiquei ali enquanto o sol se punha, com a ave bem ao meu lado.

Eu tinha estudado corujas no começo da carreira e sabia que as neuroses são desconhecidas entre elas, ao contrário de outras espécies de aves mais inteligentes. Muitas também são belas e têm uma qualidade difícil de definir mas que passa ao observador uma impressão de calma. Ali naquela praia predominava esse tipo de quietude, que não me pareceu sinistra.

Quando o sol se pôs, a coruja finalmente virou para mim seu olhar amarelo e intenso e, com a ponta da asa estendida roçando de leve meu rosto, lançou-se no ar descrevendo um semicírculo silencioso e suave que a levou para a floresta às minhas costas. Foi embora para sempre, ou pelo menos foi o que acreditei, pensando num sem-número de razões para explicar seu comportamento incomum. As linhas que separam as excentricidades da vida selvagem e a consciência instaurada pela Área X às vezes são difíceis de traçar.

Eu precisava buscar abrigo para passar a noite e encontrei na extremidade oeste da praia um pequeno círculo formado por rochas, em torno dos restos enegrecidos de uma fogueira, acima da marca da maré alta, quase no limite da floresta. Achei também, aproveitando o resto da luz do dia, uma velha barraca, desbotada pelo sol, castigada e amassada pelas tempestades. Alguém tinha vivido ali por algum tempo e, sem me atrever a pensar quem poderia ter sido, fiz acampamento, acendi minha própria fogueira, cozinhei um coelho caçado à tarde. Depois, cansada, adormeci ao som das ondas, abaixo de um suave e discreto dossel de estrelas.

Acordei apenas uma vez durante a noite e vi a coruja empoleirada sobre a minha mochila, do outro lado da fogueira. Tinha me trazido outro coelho. Cochilei e, quando acordei de novo, ela havia ido embora.

* * *

Fiquei lá durante três dias, e admito que só o fiz por causa da coruja, e porque aquela enseada era quase perfeita; eu podia me ver passando o resto da vida ali. Mas também porque queria descobrir mais alguma coisa sobre a pessoa que tinha feito aquela fogueira e vivido na barraca. Voltei a examiná-la pela manhã e, mesmo tão velha e estragada, percebi que era do modelo padrão, embora não tivesse o logotipo do Comando Sul.

Dentro da floresta atrás da barraca, encontrei uma pistola enferrujada, parecida com a minha, ainda no coldre apodrecido, no meio das flores silvestres, das sementes de carriço-da-areia e do musgo. Achei uma camiseta de uniforme das nossas expedições e, depois, o casaco e as meias, espalhados em grande área, como se tivessem sido jogados fora de propósito, até prazerosamente... Ou como se atirados ali por algum animal ou pessoa. Não me dei o trabalho de juntá-los para tentar recriar esse exoesqueleto humano. Já sabia que não iria encontrar nome nenhum e também não descobri nenhuma carta. Eu nunca saberia se tinha sido meu marido que acampara ali ou alguma outra pessoa ainda mais desconhecida para mim.

E, contudo, ali estava a coruja, sempre de olho em mim, sempre nas redondezas. Cada vez mais próxima, mais mansa, mas nunca por completo. Ela vinha e jogava gravetos aos meus pés, aleatoriamente, mais como se fosse por distração. Inclinava a cabeça diante de mim, num gesto típico das corujas, e depois passava horas afastada, quase taciturna. Uma ou duas vezes, pousou quase à minha altura, e eu me aproximei, como num experimento, somente para vê-la emitir um silvo parecido com o de um gato, bater as asas e eriçar as penas até eu recuar. Outras vezes, num ponto mais alto, costumava ficar oscilando, balançando, movendo o corpo de um lado para outro enquanto agarrava-se ao galho, sem sair do lugar. Depois baixava os olhos para mim com uma expressão estúpida.

Segui minha caminhada, sempre beirando a praia, às vezes também sob a sombra dos cormorões. Não tinha a expectativa de que a coruja me acompanhasse, mas não me envergonho de dizer que fiquei feliz quando ela o fez. No fim da segunda semana, comia na minha mão ao entardecer, antes de partir para sua vida noturna. Durante a noite eu ouvia seus estranhos piados cavernosos — um som que muitos achariam misterioso ou ameaçador, mas que para mim sempre soou brincalhão, irreverente. Ela reaparecia rapidamente antes da aurora, uma vez apenas, numa confusão de penas quando mergulhava a cabeça na areia e agitava a plumagem, tomando um banho a seco e depois catando seus piolhos e outros parasitas.

O pensamento voltava à minha mente sempre que estava distraída, e eu o afastava. Aquilo seria meu marido numa forma alterada? Será que ele me reconhecia ou tratava-se apenas de uma coruja reagindo a um ser humano? A presença de outros animais gerava uma sensação estranha, mas com ela não havia isso — pelo menos em mim. Mas depois ponderei que talvez eu já tivesse me acostumado a ela. Talvez eu já tivesse atingido uma espécie de equilíbrio com o meu brilho capaz de normalizar esses indicadores.

Quando terminei de circundar a ilha, de volta ao farol em ruínas, a coruja continuou comigo. Ela então se esforçava menos para atrair minha atenção, mas ao entardecer surgia nos galhos de uma árvore perto do farol, e ficávamos juntos ali. Às vezes já estava ali no meio da tarde, e se eu caminhasse sob a sombra das árvores, me seguia, soltando piados intensos para anunciar minha chegada. Mas nunca vinha mais cedo do que isso, como se lembrasse como eu detestava animais que se comportam de forma não natural, como se me entendesse. Além disso, ela tinha seus próprios afazeres — a caça. Depois de uma semana, no entanto, começou a se alojar nos escombros da parte superior da torre do farol. Os cormorões também reapareceram ali, ou talvez nem fossem os mesmos, mas eu não tinha visto um número muito grande desses pássaros no lugar antes da minha jornada exploratória.

Durante o dia, a coruja tomava ali o seu banho de sol antes de mergulhar num sono que era às vezes acompanhado por um ronco baixo e nasal. Durante a noite, eu dormia no térreo e ouvia lá em cima o ruído distante do ruflar de suas asas agitando o ar, quando ela partia para a floresta atrás de alimento. Nesses momentos de transição, entre o dia e a noite, quando tudo parecia possível, ou pelo menos quando me enganava pensando que isso era verdade, eu conversava com a coruja. Apesar da minha antipatia pela antropomorfização de animais, achei importante não me privar dessa comunicação, porque a excentricidade do comportamento dela era autoevidente. Ou ela me entendia ou não, mas, mesmo que não entendesse, o som é mais importante para as corujas do que para os seres humanos. Por isso eu conversava com ela, para o caso de ser algo além do que parecia e também por mera cortesia, e para me ajudar a suportar o aumento do brilho.

Apesar disso, que podia ser uma tolice, como eu poderia vir a reconhecer nela a pessoa que eu procurava, como poderia cruzar esse limite? No entanto, começou a crescer uma útil simbiose em nosso relacionamento. Continuei a caçar animais para ela e ela para mim, embora de uma maneira um tanto desleixada, como se não fosse proposital — coelhos e esquilos caíam do seu poleiro no andar térreo onde eu me encontrava. De certo modo, aquele arranjo, mudo da parte dela e baseado nos princípios mais básicos de amizade e sobrevivência, funcionou melhor do que qualquer outra coisa no mundo lá fora. Eu ainda não tinha visto nenhuma pessoa na ilha, mas sentia agora os indícios de uma presença anterior.

Não era o que eu tinha esperado.


05: OS BANDIDOS DA PRECAUÇÃO & CAÇA

Ao retornar da minha expedição, tendo a coruja por companhia, fui me situando devagar no ambiente: o farol, as edificações em volta, a vila mais adiante. A vila, que deve ter sido abandonada muito antes da criação da Área X, consistia de uma rua principal e umas poucas transversais, e depois se diluía em uma porção de caminhos de terra, com os rastros deixados por pneus agora cobertos de mato. Tudo estava vazio; eu poderia me tornar a governante daquele lugar automaticamente, se quisesse.

A “Rua Principal” tinha se tornado uma espécie de fachada, derrubada por um exército de cipós e árvores cobertas de flores, moitas, relva e flores silvestres. Esquilos e texugos, gambás e guaxinins tinham se apossado dos destroços; águias se aninhavam nos tetos em ruínas. No andar de cima de uma antiga casa, ou loja, pombos e estorninhos se empoleiravam em janelas escancaradas, cujos vidros estavam partidos e espalhados do lado de dentro. Por toda parte, o cheiro profundo de um lugar reclamado pela natureza, o perfume doce de botões florescentes e do capim novo no verão, misturado ao odor pungente com que os animais marcam seus territórios. Tudo aquilo tinha para mim um sinal do inesperado, uma espécie de choque prolongado ao ver aqueles memoriais rudes e ásperos da vida de seres humanos num lugar onde eu imaginava que fossem quase inexistentes.

Aqui e ali, encontrei outros resquícios das expedições que haviam alcançado a ilha e que tinham voltado pelo mar, ou morrido ali mesmo, ou se transformado. Uma mochila abandonada contendo o mapa de sempre. Uma lanterna. Um rifle. Um cantil de água. Eram restos fascinantes — indícios nos quais tentei ver coisas em excesso, por motivos que revelavam uma fraqueza em mim. Devia me bastar saber que eu não era a primeira a chegar ali e que outros também tinham vindo em busca de respostas, encontrando-as ou não.

Mas esse tipo de informação tinha diferentes camadas sedimentárias, e parte do material mais antigo, que eu acreditava datar de um pouco antes e um pouco depois da criação da Área X, me interessava mais. Pessoas haviam se estabelecido naquele âmbito estreito, designadas pelas iniciais BP&C, mas não fui capaz de achar um só fragmento que me explicasse essas letras. Eu não me lembrava de ter ouvido falar de nenhuma organização assim, fosse no mundo exterior, fosse durante o treinamento para a expedição. Também não me recordava de nenhuma menção à ilha. Àquela altura, qualquer deslealdade por parte do Comando Sul não era nenhuma novidade para mim.

Na falta de mais informações, passei a chamá-los de Bandidos da Precaução & Caça. Era um nome que funcionava, dado o que eu sabia a respeito deles pelas pistas que tinham deixado, e por algum tempo dediquei meus dias a tentar estabelecer sua identidade e descobrir o propósito de sua permanência na ilha.

Os sinais deixados pelos BP&C, seus resíduos, tinham a forma de equipamentos danificados que identifiquei como instrumentos para gravar ondas de rádio, monitorar raios infravermelhos e de outras frequências, além de máquinas mais esotéricas que resistiram às minhas tentativas de adivinhar sua função. Além desse maquinário quebrado, descobri fotos e papéis castigados pela chuva, geralmente ilegíveis, e umas poucas gravações que se revelaram palavras ditas muito lentamente, incompreensíveis, quando as reproduzi usando um gerador precário que, a cada vez, me concedia apenas meio minuto de energia antes de voltar a falhar.

Tudo isso foi encontrado nos prédios abandonados da Rua Principal, restos protegidos por paredes que caíram inteiras, ou no interior de porões onde certos recantos ficaram livre de alagamento. Havia marcas de fogo em alguns lugares onde o incêndio, depois controlado, começou no interior de uma casa. Mas eu não era capaz de dizer se os BP&C o provocaram ou se eles tinham acontecido depois, durante alguma fase de desespero antes que tudo fosse assimilado pela Área X. Olhando todas aquelas cinzas, percebi que qualquer tentativa de reconstituir uma sequência de acontecimentos ficaria sempre incompleta, porque alguém tinha se esforçado para esconder alguma coisa.

Peguei tudo que pude encontrar, levei para o farol e comecei a selecionar o material, do jeito que estava, sob o olhar vigilante mas inútil da coruja. A despeito da natureza tortuosa do que pude recuperar, comecei a perceber sinais de atos intencionais que sugeriam uma conspiração. Tudo que relatarei aqui é altamente especulativo, mas, acredito, fundamentado nos indícios frágeis de que eu dispunha.

Os BP&C começaram a ocupação da ilha não com um mapeamento do perímetro, mas com uma investigação minuciosa do farol em ruínas, o que indica que vieram para cá com um propósito específico. Essa sondagem tinha relação com o estabelecimento de uma espécie de ligação entre o farol da ilha e o do continente. Havia referências a algo que “podia ou não” ter sido transferido, sugerindo que talvez a lente do farol que eu conhecia tão bem viera originalmente daqui. Mas, no contexto, aquilo que “podia ou não” parecia, quase com certeza, existir em separado da lente propriamente dita, ou podia existir separadamente. Havia páginas recortadas de livros com a história de faróis famosos do mundo ou com a linhagem dos grandes fabricantes e transportadores de lentes, mas isso pouco me ajudou.

Também discutiam se procuravam “um objeto ou um fenômeno passível de registro”, o que parecia voltar à ideia de estabelecer um elo entre os dois faróis; caso se tratasse de um “fenômeno”, essa ligação era importante. Se fosse um “objeto”, então poderia não ser tão relevante assim e, nesse caso, ou a ilha ou o farol do continente não seriam interessantes. Além disso, a natureza daqueles fragmentos era contraditória, em termos de sua organização e da sofisticação do seu conteúdo. Alguns membros dos BP&C pareciam não ter nem a mais rudimentar compreensão de ciência, e perdi muito tempo lendo seus rabiscos a respeito de fantasmas e assombrações e longos trechos copiados de livros sobre possessão demoníaca. A lista dos estágios requeridos me interessou apenas porque eu podia transportá-los para o mundo biológico das relações simbióticas e parasíticas. Outros entre eles costumavam deitar-se à luz das estrelas e anotar seus sonhos como se fossem transmissões do além. Como um tipo de ficção, me deu prazer durante a leitura, mas, tirando isso, era algo sem valor.

Junto com essas superstições efêmeras, acabei agrupando também as observações científicas menores, que refletiam o envolvimento de mentes de terceira ou quarta categoria. Não era tanto um problema de imprecisão das observações, mas da banalidade das conclusões. Nessa categoria se enquadravam extrapolações sobre “prebióticos” e “ação fantasma à distância”, assim como experimentos que já tinham sido desmentidos décadas antes.

O que se destacava desse material que eu joguei na pilha de compostagem parecia vir de uma espécie de inteligência completamente diferente. Essa mente, ou essas mentes, parecia fazer perguntas sem interesse algum em obter respostas rápidas, não se preocupava se uma questão dava origem a outra meia dúzia, ou se, no final, nenhuma delas conduzia a algo concreto. Havia nela uma paciência que passava a impressão de ser imposta e de não fazer parte daquela consciência mercurial e rodopiante que a cercava. Se entendi direito o que li naqueles pedaços de papel, em minha patética brincadeira de adivinhação, esse segundo tipo não apenas mantinha sob vigilância as pessoas que viviam no continente, mas também seus próprios colegas, membros dos BP&C. Não tinha apenas a experimentação em sua mente coletiva.

O resíduo de uma presença deixa traços identificáveis? Embora eu não pudesse ter certeza, senti que tinha identificado uma presença independente — que se infiltrara entre os BP&C posteriormente. Uma mudança de comando e controle, rumo a algo mais sofisticado, observando-me das páginas que eu havia encontrado.

No meio daqueles detritos, daquelas frágeis adivinhações, a palavra Achei! manuscrita, triunfante. Achei o quê? Com tão poucos dados, mesmo “Achei!”, mesmo a percepção de que havia uma entidade mais inteligente viva no meio daqueles fragmentos, não me levava a nada. Alguém, em algum lugar, devia ter informações adicionais, mas os elementos — ou a Área X? — tinham acelerado tanto a decomposição dos documentos que eu não conseguia ir muito além, mesmo que o que havia sido encontrado fosse o bastante. O bastante para indicar que houvera certa interferência ali naquele litoral antes da criação da Área X, e minha experiência me dizia que o Comando Sul tinha deliberadamente ocultado informações sobre a ilha em nossos mapas e nossas instruções. Esses dois dados, embora tivessem mais a ver com ausência de algo do que com uma confirmação positiva, me fizeram redobrar esforços para encontrar vestígios dos BP&C no meio das ruínas. Mas nunca achei nada além do que viera a descobrir durante a minha primeira e minuciosa investigação.


06: A PASSAGEM DO TEMPO, E A DOR

Eu nunca tive um país, nunca tive essa escolha; já nasci em um. Mas com a passagem do tempo, a ilha se tornou meu país, e não preciso de outro. Nunca pensei em fugir daqui, em voltar para o mundo. Os anos foram passando, ninguém veio até meu refúgio, e comecei a pensar se o Comando Sul ainda existia — ou se já tinha existido um dia, e que talvez nunca tivesse havido outro mundo, ou uma expedição, e eu houvesse sofrido algum tipo de ilusão ou de trauma, uma espécie de perda de memória. Um dia, talvez, eu acordaria e lembraria de tudo: algum cataclismo que me deixou como a única pessoa neste lugar, tendo somente uma coruja com quem conversar.

Sobrevivi a tempestades que desabaram de repente, e a secas, e a um prego que atravessou meu pé quando me descuidei. Sobrevivi às mordidas de muitas criaturas, inclusive uma aranha venenosa e uma cobra. Aprendi a me sintonizar tão bem com o ambiente que, depois de algum tempo, nenhum animal, natural ou não natural, fugia à minha chegada, e por esse motivo, a menos que fosse forçada, caçava apenas peixes e recorria cada vez mais a verduras e frutas. Embora eu acredite que a minha sintonia com elas também tivesse aumentado.

Neste silêncio e nesta solidão intermináveis, a Área X às vezes se revelou para mim de formas inesperadas. Comecei a perceber mudanças infinitesimais no céu, como se os pedaços dele nem sempre se encaixassem... e adquiri, do ambiente, uma percepção de coisas invisíveis se infiltrando, fantasmas que quase me fizeram reconsiderar minha antipatia pela ênfase que os BP&C davam ao sobrenatural.

Certo final de tarde, quando eu estava parada numa clareira, tão quieta quanto possível, surgiu por trás de mim uma espécie de respiração, ou de espessamento das moléculas do ar, algo que não fui capaz de identificar, e desejei que meu batimento cardíaco desacelerasse, de modo que, para cada pulso meu, os corações das rãs que coaxavam com toda a força nas árvores ao meu redor batessem vinte mil vezes. Minha esperança era ficar tão quieta que, sem me virar, eu seria capaz de ouvir ou perceber de alguma outra forma o que estava me observando. Mas, para meu alívio, aquilo se afastou, ou se dissipou ou retornou para dentro do chão logo depois.

Uma vez, desabou do céu uma chuva de maneira pouco natural e, no meio daquela escuridão, uma luz estranha começou a arder nos limites da minha visão. Imaginei que fosse o farol distante, e que outra expedição tivesse sido enviada à minha procura. Mas, quanto mais eu olhava, mais a luz parecia estar partindo ao meio a escuridão, e através dela vislumbrei por um instante sombras que se dissipavam e que podiam ser nuvens de tempestade peculiares ou o despertar de algum tipo de organismo vasto. Esses fenômenos, experimentados de forma intermitente ao longo dos últimos trinta anos, eram acompanhados por mudanças no céu noturno. Nessas noites, cujo único presságio é uma intensificação do brilho dentro de mim, a lua nunca surge. A lua nunca aparece, e as estrelas no alto não me são familiares — são estranhas, pertencentes a uma cosmologia que não consigo identificar. Nessas noites, eu gostaria de ter estudado astronomia.

Em pelo menos duas ocasiões, eu definiria essa mudança como sendo mais significativa, como uma espécie de cataclismo celeste, acompanhado pelo que poderiam ser terremotos, e fendas ou rachaduras aparecem na superfície do céu, logo se fechando, e através delas reluz apenas uma escuridão mais profunda. Lá fora, no mundo ou no universo, deve estar acontecendo alguma coisa que produz esses momentos disfuncionais. É o que acho, pelo menos. Há uma sensação de que o mundo ao meu redor está mais reforçado, ou mais espesso, de que o peso e a leveza da realidade estão mais cheios de foco, de determinação. Como se aqueles olhos de golfinho, tão humanos, que certa vez percebi olhando para mim, estivessem em cada nova fase se irradiando para toda a carne que existe em torno deles.

Além dessas observações, tenho uma única pergunta: qual é a natureza da minha ilusão? Estou alucinando, quando vejo o céu que me é familiar? Ou quando vejo o céu estranho? Em quais estrelas devo confiar, para minha orientação? Fico às vezes no farol em ruínas, olhando para o mar, e percebo que, nesta forma, neste corpo, jamais virei a saber.

Minha sobrevivência também tem se baseado, sinceramente, em ser capaz de ferir a mim mesma. No momento em que fiquei na praia do lado oposto à ilha, prestes a começar a nadar para cá, eu estava usando a dor como uma forma de controlar o brilho. Havia milhares de maneiras, mas eu fui muito precisa. Você pode descobrir modos de quase se afogar, quase se sufocar, que não são tão prejudiciais como parecem. Modos de sugerir dor, capazes de enganar seja lá o que for que está alojado em você. Um prego enferrujado. O veneno de uma cobra. O resultado disso é que a dor já não incomoda muito; ela me dá provas de que eu continuo existindo e me salvou daquelas ocasiões em que, sem ela, eu poderia ter ficado tanto tempo apenas olhando o vento e a chuva e o mar que acabaria me tornando um nada, desaparecendo.

Num documento à parte, fiz uma lista das melhores e menos invasivas tentativas, que, sei muito bem, podem parecer mórbidas, apesar de considerar isso um método absurdo de registrar a crônica dos meus dias. Também anotei a rotação dos ciclos que provou ser a mais eficaz. Embora, caso seja possível escolher, eu não recomende essa abordagem, porque é possível acostumar-se em demasia a ela, como às tarefas domésticas ou à procura por comida.

Depois de tanto tempo, a dor tornou-se uma amiga tão familiar e tão revisitada que me pergunto se vou notar mais a sua presença agora que interrompi o meu regime. Será difícil para alguém acostumar-se à ausência de dor? Acho que essa preocupação acabará sendo esquecida no meio de tantos outros ajustes que precisam ser feitos. Porque, depois de ter encontrado tantas maneiras de adiar a minha transformação, acredito agora que ela será mais radical do que teria sido, e que posso me transformar em algo como a criatura que gemia entre os juncos. Serei capaz então de ver as verdadeiras estrelas?

* * *

Às vezes, também, a dor atinge você inesperadamente; não é necessário provocá-la, infligi-la conscientemente ao próprio corpo. Ela apenas aparece ali. A coruja que me fez companhia nesses trinta anos morreu na semana passada, sem que eu pudesse ajudá-la, sem que eu adivinhasse até ser tarde demais. Tinha envelhecido, e embora seus olhos ainda fossem enormes e brilhantes, suas cores tinham desbotado, sua camuflagem estava gasta; passava mais tempo dormindo e já não caçava com tanta frequência. Eu lhe dava ratos para comer, com a mão, no seu reduto no alto da torre.

Encontrei-a na floresta, depois de passar alguns dias sem vê-la e finalmente sair à sua procura. Pelo que pude reconstituir, ela se ferira, talvez por fragilidade ou pela perda gradual da visão, quebrara a asa e se refugiara no chão. Uma raposa ou um par de raposas o atacou. Ela estava lá, espalhada no meio de um emaranhado de penas marrons e sangue vermelho, os olhos fechados, a cabeça caída de lado, o corpo sem vida.

Meu microscópio estava abandonado havia muito tempo num recanto do andar térreo da torre, coberto de mofo, meio enterrado ali pela simples passagem dos anos. Não tive ânimo para colher amostras, para descobrir o que já sabia: que, no final das contas, não havia nada que um microscópio pudesse me dizer sobre a coruja que eu já não soubesse depois de muitos anos de interação e observação muito próximas.

O que posso dizer? Que não sinto falta dele?


PARTE III

LUZ QUE OCULTA


0011: AVE FANTASMA

Que vida era esta em que você podia ler uma carta escrita por uma irmã gêmea sobrenatural? Em que você podia viver no interior das memórias alheias e pensar nelas como sendo reais, uma segunda pele, e mesmo assim completamente falsas? Aquilo era o que ela havia sido. Aquilo era o que havia pensado e como vivera. Deveria ser também a partir de agora a vida da Ave Fantasma, os seus pensamentos? A raiva e o assombro lutavam dentro dela — e não havia ninguém forçando essas emoções, a não ser ela mesma. Tinha que deixar as duas se enfrentarem, como o pulsar de um segundo coração, e confiar que sua reação não fosse apenas como um espelho que reflete o que vê. Que mesmo que ela fosse um engano, pudesse ser um engano viável — uma mutação, não uma anomalia como a criatura que gemia nos juncos. Ossos havia muito apodrecidos, afundados no pântano.

Existiram perguntas que não queria fazer, porque, se as fizesse, elas iriam adquirir detalhe e peso e substância, carne e pele revestindo as costelas. As maravilhas e os horrores ela era capaz de isolar, mas pelo menos Controle talvez nunca estivesse pronto para isso, e num certo aspecto era cansativo ter que forçar, ter aquele tipo de intencionalidade. Era algo que parecia pressionar a realidade da Área X, dizer que mesmo ela não tinha aprendido coisa alguma sobre ser ela mesma. Deveria tentar, sabendo que não era justo, que todos eles tinham ido muito longe, muito depressa, mesmo Grace com seus três anos de vantagem?

Era o fim da tarde agora, quase o anoitecer, e, no silêncio por entre as sombras que se ampliavam, Grace tomou a iniciativa e disse:

— Nós somos astronautas. Todos os membros das expedições têm sido astronautas.

Isso deveria ter sido reconfortante, de certo modo, uma espécie de âncora, mas o rosto de Controle tinha se transformado numa máscara resoluta que deixava claro que ele não queria lidar com aquilo, que, numa espécie de desafio, queria meter o nariz apenas no que era para ele uma zona de conforto. Segurou com força entre os dedos da mão esquerda as páginas amareladas da carta da bióloga, enquanto o diário dela, que Grace tinha recuperado no farol, repousava em seu colo. A Ave Fantasma havia se interessado em lê-lo para preencher as últimas lacunas, e ainda as outras que permaneciam. A luz branca na base da torre. A aparição do faroleiro dentro do Rastejador. Eram coisas de que ela duvidava sem tê-las visto pessoalmente. Mas, para Controle, ela apenas as registraria como novos indícios, novas esperanças — informações que talvez pudessem proporcionar uma solução, uma resposta súbita. Como se o escrutínio e as ideias de Grace a respeito não fossem suficientes.

— Não estamos na Terra — disse a Ave Fantasma. — Não podemos estar na Terra. Não com essas distorções do tempo. Não com as coisas que a bióloga viu.

Não que eles quisessem fingir que havia regras naquele lugar, mesmo tendo sido obscurecidas, tornadas duvidosas, mantidas fora do alcance deles. Mas seria verdade? Ou era apenas o tempo que tinha se tornado irracional, inconsistente?

Aquela relutância persistiu, e também a distância que ela criava entre Grace e eles dois, até que a diretora assistente falou:

— Esta é a minha conclusão, é uma das teorias que chegaram a ser propostas pelo setor de ciências.

— Uma espécie de buraco de minhoca — disse Controle.

O máximo a que ele podia ir; qualquer coisa a mais teria que ser arrancada de dentro dele pelo brilho.

Um olhar incrédulo de Grace.

— Você acha que a Área X constrói também espaçonaves? Que atravessa o espaço interestelar? Buracos de minhoca? Pense em alguma coisa mais sutil, alguma coisa se infiltrando através do que nós chamamos realidade.

Palavras secas, entrecortadas, esvaziadas do assombro que deveria impregná-las. Só porque ela tivera aqueles três anos extras? Porque estava pensando nos entes queridos que deixara para trás?

Controle falou lentamente, como se estivesse hipnotizado:

— Todas aquelas coisas na Área X que pensávamos estar se decompondo depressa demais... A maioria estava apenas envelhecendo.

Algumas coisas eram muito velhas, sem dúvida — as ruínas do vilarejo, e as diversas camadas sedimentares dos diários, sob o alçapão no farol. Tanto tempo tinha se passado na Área X depois de a barreira se formar, antes da primeira expedição. Pessoas podiam ter vivido na Área X por muito, muito mais tempo do que eles eram capazes de imaginar, depois que a fronteira surgira.

— Como ninguém pensou nisso antes... — disse Controle. — Como isso não ficou claro antes.

Como se alguma força elementar na repetição pudesse justiçar sumariamente aqueles que tinham impedido seu acesso à verdade. Em vez disso, a repetição apenas sublinhava sua ignorância.

— Dados corrompidos — comentou Grace. — Amostras inadequadas. Informações incompletas.

— Eu nem sei como...

— Ela quis dizer — interrompeu a Ave Fantasma — que muitas expedições voltaram desorientadas, afetadas, ou que nem sequer voltaram, que o Comando Sul não tinha amostras confiáveis.

Ela queria dizer que a dilatação do tempo provavelmente era mais acentuada sempre que a Área X ampliava ou sofria uma mudança, e que em outras circunstâncias devia ser quase imperceptível.

— Ela tem razão — concordou Grace. — Nunca tivemos alguém que vivesse na Área X por tempo suficiente ou que visse as coisas com clareza e conseguisse anotar suas observações.

Dados conflitantes, propósitos conflitantes. Um oponente que não facilitava as coisas.

— Mas devemos acreditar na bióloga? — perguntou Controle.

Porque as teorias da cópia da bióloga podiam ser suspeitas? Porque ele não era feito para aquilo e a Ave Fantasma era.

— Você acredita em mim? — questionou Grace. — Eu também vi estrelas estranhas no céu à noite. Vi rachaduras no céu. Estou aqui há três anos.

— Então me diga: como é que o sol pode brilhar aqui, e as estrelas, e a lua? Se não estamos na Terra?

— Não é essa a questão fundamental — disse a Ave Fantasma. — Não para organismos que dominam a camuflagem.

— Então qual é? — perguntou Controle, frustrado, tentando ainda assimilar a enormidade daquela ideia, e a Ave Fantasma achou doloroso observá-lo.

— A questão fundamental — disse Grace — é qual é a intenção desse organismo ou organismos. E como poderemos sobreviver.

— Nós sabemos qual é a intenção — replicou Controle. — É nos matar, nos transformar, se ver livre de nós. Não é nisso que evitamos pensar o tempo todo? O que a diretora, você — ele apontou para Grace —, Cheney e todos os outros tiveram que manter escondido? A ideia de que tudo que isto quer é matar todos nós.

— Acha que não discutimos isso milhares de vezes? — perguntou Grace. — Acha que não ficamos andando em círculos o tempo inteiro, tentando achar uma saída?

— As pessoas criam padrões sem perceber — disse a Ave Fantasma. — Um organismo pode ter um propósito e, mesmo assim, produzir padrões que têm muito pouco a ver com ele.

— Porra, e daí? — rosnou Controle, um animal acuado. — E daí?

A Ave Fantasma trocou um olhar com Grace, que desviou os olhos. Controle não estava preparado para assimilar aquelas informações. Era algo que o devorava de dentro para fora. Talvez algo mais específico pudesse distraí-lo.

— Há uma grande quantidade de energia sendo gerada e descarregada — comentou a Ave Fantasma. — Se a fronteira é uma espécie de membrana, pode ser que esteja sendo descarregada em outro lugar. Pense no modo como as coisas desaparecem quando entram em contato com ela.

— Mas elas não desaparecem, certo? — disse Grace.

— Acho que não. Acho que são transportadas para outro lugar.

— Para onde? — perguntou Controle.

A Ave Fantasma encolheu os ombros, pensando na sua jornada para dentro da Área X, na devastação e a destruição que tinha visto. As cidades em ruínas. Aquilo era real? Algo que lhes fornecia uma pista? Ou somente uma ilusão?

Membranas e dimensões. Extensões ilimitadas de espaço. Quantidades ilimitadas de energia. Moléculas manipuladas sem o menor esforço. Tentativas constantes de transformar o humano em não humano. A capacidade de mover uma biosfera inteira para outro lugar. Agora mesmo, se é que o mundo exterior ainda existia, aquilo estaria enviando mensagens pelo espaço e monitorando frequências de rádio para procurar outras formas de vida inteligentes no universo. Mas a Ave Fantasma não achava que aquelas mensagens estivessem sendo recebidas. Era mais uma maneira de as pessoas se virem limitadas por sua visão do que seria uma mente consciente. E se uma infecção fosse uma mensagem, e se um brilho fosse uma espécie de sinfonia? Como forma de defesa? Como uma estranha forma de comunicação? Se fosse assim, a mensagem não tinha sido recebida, provavelmente não seria recebida nunca, pois escondia a transformação propriamente dita. Era preciso procurar respostas assim, banais, por causa da falta de imaginação, porque os seres humanos jamais seriam capazes de se colocar dentro da mente de um cormorão ou uma coruja ou uma baleia ou um besouro.

Será que ela estaria disposta a se aliar a algo tão limitado, será que tinha outra opção?

* * *

Da janela, os prédios baixos mostravam ser apenas fachadas: casas de blocos de cimento desgastados e desmoronados, com os tetos destruídos, invadidos pelas trepadeiras, a tinta branca descascada cobrindo as laterais granulosas, desalentadas, incapazes de conter o mato bravio que brotava por toda parte. No meio daquele terrário involuntário, via-se uma fileira de pequenas cruzes enfiadas no chão, recentes o bastante para que fossem de corpos sepultados por Grace. Talvez ela tivesse mentido e um pequeno grupo a houvesse seguido até a ilha, só para encontrar o destino que ela própria tinha evitado. A Ave Fantasma havia escutado quase toda a conversa entre Controle e Grace, estivera pronta para intervir caso a diretora assistente não tivesse afastado a pistola da cabeça de Controle. Ninguém podia drogá-la se o seu corpo não permitisse. Ela não tinha esse tipo de organismo. Não mais.

Mas não gostava da vista, sentia uma espécie de desconforto instintivo ao olhar para a estrada esburacada, os trechos devastados na mata que cobria a colina, que à luz do sol da tarde pareciam menos clareiras do que marcas de alguma violência. A janela que dava para o mar mostrava um oceano calmo e um continente aparentemente normal, talvez mesmo banal. Mas aquela distância escondia também toda a carnificina que tinha vitimado o comboio.

Atrás dela, Grace e Controle conversavam, mas a Ave Fantasma tinha se distanciado. Era uma discussão em círculos, como uma armadilha que Controle estava criando para si mesmo, para cavar as trincheiras, a vala que o isolaria daquilo tudo. Como isso é possível, como aquilo é possível, e por quê — martirizando-se a respeito tanto do que sabia quanto daquilo que nunca, jamais viria a saber.

Ela devia admirar a luta dele, mas sabia aonde tudo aquilo iria levar, como sempre levava quando se tratava de seres humanos — uma decisão a respeito do que fazer. O que vamos fazer? Para onde vamos daqui? Como podemos seguir adiante? Qual é a nossa missão agora? Como se ter um propósito já resolvesse tudo, pudesse delinear os contornos do que faltava e, pela mera força da vontade, invocá-lo, fazer com que aparecesse, trazê-lo de volta à vida.

A bióloga também tinha agido assim, criando um padrão a partir de coisas que podiam ser aleatórias — fazendo correlações entre o comportamento excêntrico de uma coruja e seu marido desaparecido. Quando tudo aquilo podia ser apenas os indícios, ou os resíduos, de um ritual totalmente diverso — e assim o que ela dizia sobre a coruja estava tão longe do alvo quanto suas afirmações sobre os BP&C. Alguém pode saber “o quê” de algo para sempre, e nunca descobrir “por quê”.

O fascínio daquela ilha jazia em sua negação do “por quê” — tanto para a bióloga quanto, supôs a Ave Fantasma, para Grace, que vivia ali havia três anos imbuída desse conhecimento, enquanto ele a devorava. E continuava a devorá-la, porque o alívio trazido pelo aparecimento de companhia humana não pudera anestesiá-la. A Ave Fantasma a observava da janela e imaginava se Grace ainda estaria escondendo alguma informação essencial: se aquele seu estado de alerta e a constatação de que ela não dormia bem proporcionavam os contornos de um “por quê” de natureza diferente, ainda não revelado.

Sentia-se tão distanciada dos dois naquele momento como se o conhecimento de que estariam muito longe da Terra, de quanto tempo passara, implacável, os tivesse afastado uns dos outros, e ela os contemplasse da fronteira — espiando através da porta cintilante.

Controle tinha começado a voltar ao terreno seguro de assuntos como o faroleiro, como a Central. Daquele modo não haveria galáxias explodindo na mente dele como fogos de artifício, nem o Comando Sul transformado num reduto da Área X, nem humanos se transformando em outras criaturas por um motivo só conhecido, talvez, por aquela fenda que se abrira no céu.

— A Central manteve a ilha em segredo o tempo todo. Enterrou o assunto, enterrou a ilha, ficou apenas mandando expedições... para esse lugar tenebroso para cacete, esse lugar que nem sequer está onde devia, essa porra de lugar que não faz outra coisa senão matar gente e não nos dá a merda de uma chance de defesa, de lutar, porque vai mesmo acabar ganhando de qualquer jeito e...

Controle não conseguia parar. Não ia parar. No máximo iria fazer uma pausa, perder um pouco o rumo e depois retomá-lo.

Então, depois de algum tempo, a Ave Fantasma o interrompeu. Ajoelhou-se ao lado dele e, com delicadeza, recolheu o diário e a carta da bióloga. Passou os braços em volta de Controle e o apertou, enquanto Grace afastava o olhar, constrangida, ou incomodada por sua própria necessidade de conforto. Ele se debateu nos braços da Ave Fantasma, resistindo, enquanto ela sentia o calor sobrenatural que emanava do corpo dele, até que por fim Controle cedeu, parou de lutar, abraçou-a de leve, depois com força, enquanto ela permanecia calada, porque dizer algo — qualquer coisa — seria humilhante, e ela se importava com ele a esse ponto. E aquilo nada lhe custava.

Quando Controle ficou quieto, a Ave Fantasma se desvencilhou, ficou de pé, voltou sua atenção para Grace. Havia ainda uma pergunta a ser feita. Não se ouviam os arrulhos dos pássaros nos ninhos, nenhum barulho penetrava ali a não ser o som das ondas e do vento, e o da respiração dos três, e o barulho de uma lata de feijão que Grace rolava com o pé para lá e para cá.

— Onde está a bióloga agora? — perguntou a Ave Fantasma.

— Não importa — disse Controle. — É a última das questões. Virou uma mosca, um pássaro, qualquer coisa. Ou nada. Pode estar morta?

Grace deu uma risada, de um jeito que não agradou à Ave Fantasma.

— Grace?

Não iria deixar que ela escapasse sem responder.

— Sim, ela certamente ainda está viva.

— E onde está?

— Em algum lugar aí fora.

Aquele som profundo se elevando. A sensação distante de algo pesado em movimento, e de volume e de substância e de intenção, e alguma coisa na mente da Ave Fantasma estava ligada àquilo, e não havia como se desligar.

— Ela não está em algum lugar aí fora — disse a Ave Fantasma.

Grace assentiu, agora amedrontada. Amedrontada com o que não seria capaz de dizer aos dois, além de todas as coisas impossíveis que já lhes dissera.

— A bióloga está vindo.

Vindo de volta para o lugar onde um dia a coruja tinha se abrigado. De volta ao lugar onde agora se achava o seu duplo. Aquele som. Cada vez mais alto. Os estalos dos galhos e dos troncos das árvores se partindo.

A bióloga estava descendo a encosta da colina.

Em toda a sua glória e monstruosidade.

* * *

A Ave Fantasma a avistou pela janela. Viu como a bióloga se destacava da noite, seu corpo cintilando até se tornar visível, no meio de uma onda tremeluzente que se impunha sobre a existência da encosta. Aquele vasto corpo parecia fervilhar ao descer pela colina, através da floresta, deixando em seu rastro árvores partidas e estilhaçadas, enquanto os troncos cediam à pressão daquela massa escura que deslizava, pesada, e os reduzia a gravetos, com seus músculos por trás daquela luminescência cor de esmeralda que pulsava por entre o negror. O odor que precedia a bióloga: salmoura espessa, óleo e alguma erva pungente, esmagada. O som que ela produzia: como se o vento e o mar tivessem sido esmigalhados juntos e, no abalo secundário, reverberasse aquele mesmo gemido profundo. Uma busca. Uma procura. Uma comunicação ou comunhão. Aquilo, pensou a Ave Fantasma, ela era capaz de compreender.

A colina parecia uma coisa viva, descendo rumo ao farol em ruínas, num movimento contínuo como o de uma torrente de lava. Aquela intrusão. Aquelas trevas que se rearranjavam numa forma colossal de encontro à escuridão do céu noturno, iluminada pelos reflexos das nuvens e realçada pela sombra mais profunda da linha das árvores e da floresta.

Aquilo rumou na direção do farol, aquela massa estranha, aquele leviatã, que de alguma forma estava e não estava ali, e a Ave Fantasma ficou presa à janela esperando, enquanto Grace e Controle lhe gritavam para que se afastasse, que saísse dali, mas ela não sairia, não deixaria que os dois a arrancassem da janela, e ficou postada como a capitã de um navio enfrentando uma tormenta monumental, as ondas erguendo-se imensas contra a janela. Grace e Controle já tinham desaparecido, descido as escadas correndo, e então aquela massa imensa atirou-se contra a janela e a porta lá embaixo, num estalo de tijolos e pedras desmoronando. Ficou pressionando a torre do farol, que resistiu, mas por pouco.

O som tinha se elevado até ficar quase insuportável. Em um momento era profundo como um violoncelo, em outro, estalidos muito agudos, outro ainda, algo etéreo e lamentoso.

A larga extensão do seu corpo se espalhava diante da Ave Fantasma, e suas bordas eram difusas, desfocadas, pareciam deslizar para dentro de outro espaço. A montanha que agora era a bióloga aproximou-se até quase tocar o peitoril da janela, tão próxima que a Ave Fantasma poderia ter saltado para cima do que pareciam ser suas costas. Havia a sugestão de uma cabeça larga, achatada, sem nenhuma transição para um pescoço, parecendo cravada diretamente no torso. Havia a sugestão, do lado leste, já quase ultrapassando o farol, de uma boca vasta e curva, e os flancos exibiam cortes escuros como os de uma baleia, onde se grudavam algas secas, dos quais vinha um intenso odor de maresia. As cracas verdes e brancas pregadas ao seu dorso eram como centenas de minúsculas crateras e lembravam poços de maré após terem ficado tanto tempo imóveis nas águas profundas, por um tempo sem fim no interior daquele cérebro enorme. As cicatrizes dos conflitos com outros monstros, pálidas e foscas sobre a pele da bióloga.

Tinha muitos, muitos olhos brilhantes que pareciam flores ou anêmonas-do-mar bem abertas, muitos olhos brotando por todo o corpo, normais, parietais e simples, como uma constelação viva arrancada do céu noturno. Os olhos dela. Os olhos da Ave Fantasma. Observando-a em fileiras longas, sem piscar.

Enquanto ela se chocava contra o andar de baixo, à procura de algo.

Enquanto ela cantava e gemia e uivava.

A Ave Fantasma debruçou-se na janela e empurrou aquela camada tremeluzente, aquele brilho que sugeria que a bióloga existia em mais de um lugar ao mesmo tempo, um gesto que parecia com o de romper a superfície de um poço de maré para tocar o que jazia lá dentro... E suas mãos tocaram aquela pele lisa e espessa, no meio de todos aqueles olhos, os olhos dela mesma, encarando-a. Enterrou ali as duas mãos, sentiu o roçar de cílios grossos e ásperos, sentiu as superfícies curvas e lisas, e outras que eram duras e enrugadas. Todos aqueles olhos. Na multiplicidade daquele olhar, a Ave Fantasma viu os próprios olhos e viu o que eles viam. Viu a si mesma, parada ali, olhando para baixo. Ela percebeu que a bióloga existia agora através de localizações e paisagens, aqueles outros horizontes reunindo-se em uma onda crescente e turva. Entre as duas passou-se alguma coisa sem palavras, mas profunda. Ela entendeu a bióloga naquele momento, de um modo que não havia entendido até então, a despeito das lembranças que compartilhavam. Talvez estivesse exilada num planeta longe do seu lugar de origem. Talvez observasse uma encarnação de si mesma que não era capaz de compreender, e mesmo assim... havia uma conexão, havia um reconhecimento.

Não havia ali nada de monstruoso — somente beleza, somente a glória de um desenho perfeito, de um planejamento complexo, desde os pulmões que possibilitavam àquela criatura viver na terra ou no mar, até as enormes guelras escavadas nos seus flancos, agora hermeticamente fechadas, mas que se abririam para respirar profundamente a água do mar quando a bióloga rumasse outra vez para o oceano. Todos aqueles olhos, todos aqueles poços de maré provisórios, todas as marcas na pele e as cicatrizes, e a textura grossa e resistente da sua pele. Um animal, um organismo que nunca existira antes ou que podia pertencer a uma ecologia alienígena. Capaz de fazer a transição não somente da terra para a água, mas de um lugar remoto para outro, sem necessidade de um portal aberto numa fronteira.

Observando-a com os próprios olhos dela.

Vendo-a.


0012: O FAROLEIRO

Repintei a sinalização preta externa do farol, do lado do mar; a escada talvez tenha que ser substituída, está instável. Cuidei do jardim o resto do tempo, resolvi coisas. Fiz uma caminhada no fim do dia. Avistei: um rato almiscarado, um gambá, guaxinins, raposas-vermelhas numa árvore ao entardecer, apoiadas nas forquilhas como vagabundos. Um pica-pau felpudo. Um pica-pau-de-cabeça-vermelha.

Mil faróis ardendo em colunas de cinza, ao longo da costa de uma ilha sem fim. Mil velas enegrecidas soltando fumaça branca no alto da cabeça imensa e despedaçada de um monstro que se ergue do mar. Mil cormorões negros, com as asas cobertas de chamas rubras, alçando voo do meio das ondas, os olhos refletindo a fúria por sua própria extinção. Faz dos ventos seus mensageiros, dos seus ministros, um fogo abrasador.

Saul acordou tossindo na escuridão, suando devido a um calor estreito, plano, que parecia estender suas asas por sobre o osso do seu nariz e seus olhos. Penetrando seu crânio para beijar o calor estava a sensação, àquela altura já familiar, que tinha descrito ao médico de Bleakersville dois dias antes como “imprecisa mas intensa, como uma espécie de segunda pele pelo lado de dentro”. Aquilo soava bizarro, não era muito preciso, mas ele não conseguia encontrar as palavras certas. O médico o olhou por alguns instantes, quase como se Saul tivesse dito algo ofensivo, e depois diagnosticou sua condição como “um resfriado atípico, com sinusite” e o mandou embora com alguns remédios inúteis para “desobstruir as cavidades dos sinos”. Mas isso foi no meu coração como fogo ardente, encerrado nos meus ossos.

Ouviu-se um sussurro novamente, e de modo instintivo ele estendeu a mão através da cama para tocar o ombro ou o peito do seu amante, mas encontrou apenas os lençóis. Charlie não estava lá e só voltaria de seu trabalho noturno apenas dali a mais uma semana, na melhor das hipóteses. Sentia-se incapaz de dizer a ele a verdade: que ainda não se sentia bem, aquilo não era uma doença comum, e não era o que o médico tinha diagnosticado, mas alguma coisa escondida por dentro, esperando sua hora. Um pensamento paranoico, Saul sabia disso. Era apenas um resfriado, ou talvez uma sinusite, como o doutor dissera. Um resfriado de inverno, como ele já tivera no passado, só que agora com suores noturnos, pesadelos e aquele estranho sermão que se espiralava em seus pensamentos quando não estava alerta, enovelado dentro dele agora. E a mão do pecador irá se rejubilar, pois não há pecado na sombra ou na luz que as sementes dos mortos não possam perdoar...

Ele se sentou abruptamente na cama, reprimindo outro acesso de tosse.

Havia alguém no farol. Mais de uma pessoa. Sussurrando. Ou talvez até gritando, pois o som se infiltrava por entre tijolos e pedras, madeira e aço, e chegava até ele através de uma distância, um tempo, que não era capaz de saber. O pensamento irracional de que estava escutando os fantasmas de dezenas de faroleiros todos ao mesmo tempo, numa espécie de trenodia, o coral condensado de todo um século. Mais som fantasma?

Os sussurros, os murmúrios continuavam de maneira natural, sem emoção, e isso o convenceu a investigar. Ergueu-se da cama, enfiou um jeans e um suéter, pegou o machado pendurado na parede — um pêndulo monstruoso e difícil de manobrar — e começou a subir a escada em espiral, com os pés descalços.

Os degraus estavam frios e o espaço, escuro, mas ele não quis correr o risco de acender as luzes, no caso de haver de fato um intruso lá em cima. No patamar, a luz brilhava obliquamente, fazendo as cadeiras e a mesa parecerem criaturas angulosas congeladas pelo seu brilho. Ele parou e escutou. As ondas lá embaixo, seu marulho suave, misturado ao voo repentino dos morcegos, que passavam bem próximos e sumiam de repente, enquanto a sua ecolocalização os mantinha afastados das paredes do farol. Devia haver também um zumbido ao fundo, um ronronar vindo lá do alto, mas ele não estava ouvindo. Isso significava nenhum facho de luz projetado por trinta quilômetros à frente para guiar os navios.

Ele continuou a subir a escada o mais rápido possível, alimentado pela raiva que rompia através da névoa do seu mal-estar e clamava por um confronto. E disse-me: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza.

Quando ele entrou na sala da lâmpada, captou a visão pouco familiar do céu azul-escuro pontilhado de estrelas, e de três vultos, dois de pé, um curvado por cima da lente apagada. Todos seguravam lanternas e os círculos brilhantes daquela iluminação só faziam intensificar sua impressão a respeito da culpa deles, de sua cumplicidade, mas em quê?

Os três estavam virados para ele.

Saul ergueu o machado num gesto ameaçador e tocou com a ponta do cabo no interruptor, inundando de luz o recinto.

Suzanne e uma mulher desconhecida estavam de pé perto da porta que dava para a balaustrada, vestidas de preto, e Henry se encontrava de joelhos, quase como se tivesse levado uma pancada. Suzanne parecia ofendida, como se Saul estivesse invadindo a casa deles. A mulher estranha mal pareceu notar sua chegada e continuou ali, de braços cruzados, estranhamente relaxada. Seu cabelo era longo e estava preso. Ela vestia um sobretudo, calças sociais pretas e um longo cachecol vermelho. Mais alta e mais velha que Suzanne, tinha uma maneira de olhar para Saul que o fez desviar a vista para Henry.

— Que diabo vocês estão fazendo aqui?

A calma deles frente a um homem ofendido de machado em punho o deixou perplexo, esvaziou um pouco a ira dele, a demora entre a pergunta acusadora e uma resposta qualquer. Mesmo Henry já estava novamente recomposto, e a expressão inicial que era quase de medo tinha dado lugar a um sorriso fraco.

— Por que não volta a dormir, Saul? — disse ele, sem se mexer. — Por que não volta para a cama e nos deixa terminar? Não falta muito.

Terminar o quê? O ritual de humilhação de Henry? Seu cabelo geralmente impecável estava bagunçado, seu olho esquerdo exibia um tique nervoso. Alguma coisa tinha acontecido ali, logo antes de Saul entrar. Mas o tom condescendente o atingiu em cheio, fazendo sua surpresa se transformar novamente em fúria.

— Dormir de novo porra nenhuma. Vocês invadiram. Entraram sem permissão. Desligaram o farol. E quem é essa?

Quem era aquela mulher para Suzanne e Henry? Ela nem parecia pertencer ao mesmo universo. Ele tinha quase certeza de que o volume sob seu casaco era uma arma.

Mas o faroleiro não ia obter nenhuma resposta.

— Nós temos uma chave, Saul — replicou Henry, num tom apaziguador, como que tentando tranquilizá-lo. — Temos uma autorização.

A cabeça virada meio de lado. Avaliando. Zombeteiro. Dizendo a Saul que era ele quem não estava sendo razoável e ainda interrompia os importantes estudos de Henry.

— Não, vocês invadiram — insistiu ele, recuando para uma zona mais segura, ainda confuso com a incapacidade do jovem de admitir aquele fato básico e incomodado pela pose descontraída daquela mulher estranha, que agora o observava com o sangue-frio de um pistoleiro profissional. — Vocês desligaram o farol, pelo amor de Deus! E sua autorização não diz nada sobre entrar aqui durante a noite enquanto estou dormindo. Ou trazer... convidados...

Henry ignorou aquilo tudo, ergueu-se e, com uma rápida olhadela para a mulher e Suzanne, chegou mais perto do que Saul queria. Se o faroleiro recuasse dois passos cairia escada abaixo.

— Volte a dormir.

Havia uma urgência ali, no modo como sussurrava as palavras, quase como se estivesse lhe implorando, como se não quisesse que Suzanne e a mulher vissem a preocupação em seu rosto.

— Sabe de uma coisa, Saul — disse Suzanne —, você não parece muito bem. Está doente e precisa descansar. Está doente e precisa soltar esse machado tão pesado, esse machado que parece tão pesado e que é tão difícil de segurar, e você precisa largar esse machado, respirar fundo, relaxar, dar meia-volta e ir dormir, ir dormir...

Uma sensação de vagar à deriva, de embotamento, começou a tomar conta de Saul, e ele entrou em pânico. Deu um passo para trás, girou o machado acima da cabeça e, enquanto Henry erguia as mãos para se proteger, enterrou a lâmina nas tábuas à frente de Henry, o impacto reverberando através de suas mãos, torcendo um pouco um dos pulsos.

— Caiam fora. Agora. Todos vocês.

Saiam do farol. Saiam da minha cabeça. Naquela escuridão dourada se partirão para expor a revelação da suavidade fatal da terra.

Outro longo silêncio se estendeu, e mesmo a estranha parecia ter ficado mais alta e mais empertigada e, de certo modo, mais séria, como se ele agora tivesse toda a atenção dela. Sua frieza e sua calma deixaram Saul se borrando de medo.

— Estamos estudando uma coisa muito rara, Saul — disse Henry finalmente. — Então, talvez você possa perdoar nossa ansiedade, nossa necessidade de extrapolar o que nos foi autorizado...

— Saiam daqui, caralho — interrompeu Saul, e arrancou o machado de volta, mesmo com dificuldade.

Segurou-o bem alto pelo cabo, porque num espaço tão apertado não seria útil de outra forma. Havia dentro dele agora um terror de que eles não partissem, de que não fosse capaz de fazê-los sair dali, caralho. E enquanto isso, na sua mente, mil faróis se incendiavam.

Henry apenas encolheu os ombros e disse:

— Faça como quiser.

Firme, embora se sentisse fraco, para preencher o silêncio que eles continuavam lhe oferecendo, como uma armadilha:

— Vocês já fizeram o que precisavam fazer aqui. Vou chamar a polícia se vir qualquer um de vocês de novo.

Era curioso que ele quisesse de fato dizer aquelas palavras que saíam da sua boca mas, mesmo assim, as examinasse para saber se eram verdadeiras.

— Mas vai ser uma manhã tão bonita... — retrucou Suzanne; teria lançado isso contra ele com uma lâmina de sarcasmo?

Henry quase se contorceu todo para evitar roçar nele quando o trio cruzou a porta, como se Saul fosse feito do mais delicado dos cristais. A mulher lhe dirigiu um sorriso misterioso ao fazer a primeira volta descendo a escada em espiral, um sorriso cheio de dentes, como o de um tubarão.

E os três desapareceram.

* * *

Quando teve certeza de que eles não voltariam mais, Saul abaixou-se para ligar a lâmpada. Levaria algum tempo para esquentar, e depois ele teria que verificar uma longa lista de detalhes para checar se Henry e seus acólitos não tinham mudado a direção das principais superfícies refletoras no interior da lente. Enquanto isso, ainda de machado em punho, resolveu que desceria para se certificar de que o estranho trio tinha mesmo ido embora.

Quando chegou ao térreo, não viu sinal deles. Ao abrir a porta da frente, esperava vê-los se afastando pelo terreno ao redor do farol ou entrando num carro. Mas mesmo quando acendeu as luzes de fora, não havia sinal deles nem de qualquer veículo. Não passara tempo suficiente. Teriam percorrido correndo parte do caminho e sumido na claridade difusa que vinha da praia? Ou estariam ocultos entre os pinheiros, ou nos pântanos, misturados às sombras?

Então ele ouviu o som distante de um barco a motor, mais alto que o marulho das ondas. Um barco sem luzes acesas. A única luz que se via agora, além da lua e das estrelas, era o pequeno ponto vermelho que ainda piscava na ilha.

* * *

Quando voltou, uma sombra esperava por ele junto à porta de entrada. Henry.

— Não se preocupe, sou só eu — disse o jovem. — As duas foram embora.

Saul suspirou, apoiou-se no machado.

— Você não podia simplesmente ir embora, Henry? Tem que continuar sendo esse fardo?

Mas ele estava aliviado com o fato de Suzanne e a mulher desconhecida não terem ficado.

— Um fardo? Eu sou uma dádiva, Saul. Porque compreendo. Sei o que está acontecendo.

— Já lhe disse que não faço ideia do que você está falando.

— Saul, eu fiz o buraco na lente quando Suzanne estava distraída. Eu sou o cara.

Saul quase riu.

— E por isso eu devo dar ouvidos a você? Porque você vandalizou meu farol?

— Fiz isso porque sabia que devia haver algo. Porque havia ali um ponto onde o meu equipamento não registrava nada.

— E daí?

Isso não mostra simplesmente que tentar encontrar coisas estranhas com equipamento inadequado é perda de tempo?

— Saul, por que você estaria assim tão assombrado se este lugar não fosse assombrado também? Você sabe disso tanto quanto eu. Mesmo que ninguém mais acredite.

— Henry...

Ele deveria mesmo começar a dar aquela longa explicação de que ter fé em Deus não era a mesma coisa que acreditar em espíritos?

— Não precisa dizer nada. Mas você sabe a verdade. E eu vou rastreá-la também. E vou encontrá-la.

A ânsia com que Henry falava, o modo como parecia vibrar com aquilo, deixou Saul chocado. Era como se ele tivesse despido um disfarce, exposto a alma, e por baixo daquele exterior tão reservado, o faroleiro estivesse descobrindo agora uma daquelas ovelhas mais virulentamente obstinadas de seu rebanho lá do Norte. Os escolhidos, aqueles que nada é capaz de convencer, o lado “paranormal” daquela pequena brigada. Ele não queria um seguidor.

— Ainda não sei sobre o que você está falando.

Obstinado, porque não queria ser arrastado para dentro daquilo, porque se sentia muito doente. Porque não bastava uma meia dúzia de pesadelos para chegar às conclusões a que Henry parecia estar chegando.

O jovem o ignorou e disse:

— Suzanne acha que o catalisador é alguma coisa que eles trouxeram consigo. Mas não é verdade, mesmo que eu não possa lhe explicar a combinação de passos, experimentos ou processos que nos conduziu até este ponto. E, ainda assim, aconteceu. Depois de passarmos tantos anos procurando em tantos lugares, com tão pouco resultado.

Indo contra à própria prudência, porque Henry cada vez mais lhe parecia uma vítima, Saul disse:

— Você precisa de ajuda? Diga-me o que está havendo, e talvez eu possa ajudar. Diga-me quem é aquela mulher.

— Esqueça que a viu, Saul. Você nunca vai vê-la de novo. Ela não liga para o mundo sobrenatural nem se interessa pela verdade, com certeza.

Henry deu um sorriso e afastou-se, caminhando rumo ao quê, Saul não fazia ideia.


0013: CONTROLE

Metade da parede explodiu para dentro e mil olhos espreitaram o interior enquanto Controle era jogado para trás pelo impacto da poeira e dos destroços. Sua cabeça latejava e havia uma dor forte na lateral do corpo e na perna esquerda, mas ele se obrigou a ficar imóvel. Estava se fazendo de morto apenas para manter a calma. Estava se fazendo de morto para manter a calma. Uma linha de um livro sobre monstros que seu pai lera para ele quando era garoto. Erguendo-se de um lugar sumido havia muito tempo no esquecimento, como um rojão sinalizador disparado para o céu. Enfiado no seu cérebro, continuava rodando. Fazendo-se de morto para manter a calma. A poeira dos tijolos começava a assentar, aqueles olhos ainda exercendo uma pressão terrível. Apesar do som de vidro esmagado ressoando junto ao ouvido — do som obliterante daquilo, aquele horrível rastreamento — e do peso se deslocando próximo às suas pernas. Lutou contra o impulso de abrir os olhos, porque tinha que se fingir de morto para manter a calma. Um pouco à direita, a faca que ele tinha deixado cair e a pequena talha de madeira esculpida por seu pai. Mesmo estendido como estava, tateou à sua procura, com a mão trêmula, num reflexo. Estava tremendo, seu corpo era sacudido por espasmos, e as reverberações da passagem da criatura criavam uma dor que era como fraturas e fissuras nos seus ossos, o brilho tentando escapar, a parte dele que era solitária, que queria sair. Fingir de morto. Para manter a calma.

Mas, mesmo assim, o que prendia sua atenção era o vidro esmagado e a sua origem, além da parede, explorando o interior do farol. Bota? Sapato? Pé? Não. Garras? Cascos? Cílios? Barbatanas? Reprimiu um tremor. Daria para alcançar a faca? Não. Se ele pudesse ter alcançado a faca a tempo, se sua faca pudesse ter ajudado em algo, as coisas não teriam acontecido daquele jeito, exceto que, sim, iria ser sempre assim. Violação da fronteira, mas não havia fronteira ali. Tudo vinha acontecendo tão devagar, como uma jornada que significava alguma coisa, e agora era tudo tão rápido. Rápido demais. Como uma respiração transformada em luz, uma névoa que se tornou um raio, rompendo o espaço rumo ao horizonte mas sem levá-lo consigo. Do lado de fora da parede semidemolida, o que era aquilo, uma criatura nova? Uma criatura antiga? Mas não era um engano. Havia nela algo que lembrasse o que ele conhecera através de sua substituta? Porque reconhecia aqueles olhos.

Parte daquilo o envolvia, segurava-o ali, preso contra o piso enquanto gritava. Algo como um eclipse de sua mente, um eclipse espesso, palpável, crescendo por vontade própria. Vasculhando sua mente à procura de algo inteiramente diverso, fazendo com que ele se olhasse por dentro e visse todas as coisas que Lowry tinha colocado ali, as coisas terríveis, irrevogáveis, e como a mãe dele ajudara Lowry. “Veja se tem moeda caída entre os assentos, John.” O Avô Jack tinha dito isso a ele, não tinha? O pesado volume da pistola em suas mãos, o olhar de cobiça do Avô Jack, e mesmo aquela lembrança de infância parecia algo tão difuso quanto a espiral de fumaça que sobe da ponta do cigarro de alguém que está de pé na sombra, na extremidade oposta de uma sala longa e escura.

Aqueles milhares de olhos o encararam, o leram através de uma vasta extensão de espaço, como se a bióloga existisse simultaneamente em pontos opostos do universo. A sensação de estar sendo visto e, em seguida, o alívio e o doloroso desapontamento ao perceber que a criatura recuava, cuspindo-o para fora. Rejeitando-o.

Depois veio um som como um peso deixando o céu, um mergulho nas ondas, e aquele peso opressivo pressionando o ar não estava mais ali, e a agonia interminável dos seus ossos amainou, e ele era agora somente uma figura suja, esgotada, chorando no piso de um farol em ruínas. Com palavras como dano colateral e contenção e contra-ataque brotando como antigas fórmulas mágicas, encantamentos que funcionavam em outras terras, terras muito distantes, mas não ali. Ele tinha recuperado o controle, mas o controle não significava nada. As esculturas de seu pai no velho quintal estavam desabando, uma após a outra. Os movimentos de xadrez entre elas naqueles últimos dias antes da morte do seu pai. A pressão da pequena peça entre seus dedos enquanto ele a movimentava, e o ar vazio de quando a soltou.

Silêncio, agora. Uma ausência na qual o brilho voltou a assumir seu posto de sentinela em serviço e virou-se para observá-lo, cada vez mais seguro, como os leviatãs dos seus sonhos. Talvez sem saber direito a quem protegia, quem estava vivo ali dentro.

Exceto que ele agora jamais iria esquecer.

* * *

Depois, muito depois, passos familiares e uma voz familiar: Grace estendendo a mão para ele.

— Consegue andar?

Conseguiria? Sentia-se como um ancião que tivesse sido achatado pelo soco de um punho enorme. Ele tinha caído em um buraco profundo, escuro e estreito, e agora precisava rastejar para sair dele.

— Sim, posso andar.

Grace lhe estendendo a escultura de seu pai; ele a pegou.

— Vamos voltar ao patamar.

Havia um enorme buraco na parede externa do primeiro andar. A noite espreitava por ele. Mas o farol tinha aguentado.

— Sim, o patamar.

Lá ele estaria em segurança.

Lá ele não estaria em segurança.

* * *

Controle ficou estirado num cobertor, olhando para a pintura descascada do teto todo pintalgado pela luz de velas. Tudo parecia muito distante. A sensação psíquica esmagadora da distância da Terra, a sensação de que agora talvez não existissem mais astrônomos, talvez nunca surgisse um astrônomo sábio o bastante para localizar o minúsculo grão de luz que era a estrela em volta da qual deviam estar girando. Sentia dificuldade de respirar, continuava repetindo uma passagem das páginas de Whitby em que o homem fora quase poético: “A Área X foi criada por um organismo deixado para trás por uma civilização tão avançada e tão antiga e tão alienígena em relação a nós e aos nossos desejos e aos nossos processos mentais que ela há muito tempo nos deixou para trás, deixou tudo para trás.”

E ao mesmo tempo ficava imaginando, por conta de todas as coisas que a intrusão da bióloga tinha deixado soltas em sua mente, se haveria alguma prova concreta de que ele já sentara no banco traseiro do carro de seu Avô; se em algum lugar da Central não haveria fotos em preto e branco tiradas do lado oposto da rua, pelo vidro de um carro ou de uma van. Um investimento. Uma privação. O começo de tudo. Ele tivera sonhos com falésias, leviatãs e quedas no mar. Mas, e se os leviatãs estivessem lá na Central? As formas sombrias eram meras silhuetas de lembranças que não conseguia evocar, superpostas àquelas que não devia recordar porque não tinham nunca acontecido. Salte, disse uma voz, e ele saltou. Dois dias perdidos na Central antes de vir para o Comando Sul, e somente a palavra de sua mãe para lhe garantir que estava sendo paranoico... Mas era algo tão pesado, tão cansativo de analisar, como se o Comando Sul e a Área X estivessem ambos interrogando-o.

Olá, John, disse uma vaga versão de Lowry em sua mente. Surpresa!

Foda-se.

Sério, John? E eu pensando que você estava sabendo de tudo, sabendo qual era o nosso jogo. O jogo que a gente joga sempre.

Seus pulmões estavam pesados, cheios, enquanto Grace o examinava, aplicava curativos nos seus cotovelos, enquanto informava:

— Você machucou algumas costelas e o quadril, mas parece que consegue se mover sem problemas.

— A bióloga... — disse ele. — Ela foi mesmo embora?

Aquele leviatã que se apossou do terroir de um lugar e o tornou seu. A cada instante que passava, o evangelho pregado por Whitby começava a fazer mais e menos sentido para ele. Um batimento cardíaco tão inconsistente. A simplicidade de se concentrar naquelas três páginas, focar a atenção naqueles trechos tão manchados que ele precisava decifrar as palavras ou alisar um canto de folha retorcido, mais fácil do que pensar que o sol não podia estar brilhando no céu, de que o céu podia se descosturar para revelar por trás uma paisagem celestial talvez nunca sonhada pela espécie humana, o peso daquela coisa opressiva, uma besta se abaixando bem no centro, que precisava ser protegido daquilo que não podia ser contemplado.

— Ela se afastou por enquanto — disse Grace. — Você perdeu os sentidos por algum tempo.

Ela estava de pé junto à janela que dava para o mar, ao lado da Ave Fantasma, que se encontrava de costas para Controle, olhando fixamente para a noite. Estaria acompanhando a rota de seu original? Aquela vasta silhueta estaria agora em mar aberto, afastando-se na profundidade e na distância? Ou teria partido para outro lugar ainda mais estranho e mais remoto? Ele não queria saber.

Quando por fim a Ave Fantasma se virou, as sombras projetaram no rosto dela uma sugestão de sorriso se desvanecendo e de olhos abertos, curiosos.

— O que foi que ela compartilhou com você? — perguntou Controle. — O que foi que levou consigo?

Mais cáustico do que pretendera, mas ainda estava meio em choque, sabia disso em algum nível. Queria que sua experiência fosse partilhada por todos.

— Nada. Nada mesmo.

De que lado você está?, perguntou Lowry.

— De que lado você está? — perguntou ele.

— Basta! — exclamou Grace. — Basta! Cale a merda dessa boca. Isso não ajuda em nada.

Mas ele não conseguia se calar:

— Não me admira que você esteja à flor da pele, Grace. Não me admira que não tenha nos contado.

— A bióloga destruiu o comboio — disse a Ave Fantasma.

— Sim, foi ela — admitiu Grace. — Mas eu tenho agido com cuidado e com calma, e não a provoquei. Sei quando devo ficar afastada do farol ou da praia. Sei quando preciso sumir na floresta ou em outras partes da ilha. Às vezes há uma espécie de premonição no ar. Às vezes ela provoca deslizamentos no lugar onde encontrou a coruja e atravessa todo o interior da ilha, vindo nesta direção. Como se recordasse. Na maioria das vezes consigo evitá-la. Na maior parte do tempo ela não está aqui.

— Recordasse o quê? Este local?

— Não sei o que ela recorda ou deixa de recordar — disse Grace. — Só sei que a presença de vocês aqui a atraiu, deixou-a curiosa.

Não a presença de Controle, disso ele tinha certeza. A presença da Ave Fantasma. A bióloga fora atraída por ela, tanto quanto ele próprio.

— Nós podíamos ser como a bióloga — sugeriu Controle. — Ficar aqui. Esperar. Esperar por ela. Entregar os pontos.

Ele as estava instigando.

Mas foi a Ave Fantasma que respondeu:

— Ela teve o direito de escolher seu destino. Tinha direito a isso.

— Não somos ela — disse Grace. — Eu não quero me transformar nela, nem numa coisa parecida.

— Mas não é isso que você está fazendo? Esperando?

Ele queria saber até que ponto Grace tinha se adaptado ao fato de dividir a ilha com um monstro.

— Não exatamente. Mas o que você quer que eu faça? Diga-me o que devo fazer, e eu farei. — Gritando, agora: — Você acha que eu queria estar esperando aqui? Morrendo aqui? Pensa que eu gosto disso?

Ocorreu-lhe a ideia de que Grace estava fazendo uso da lista de indutores de dor da bióloga, que sua magreza, o aspecto encovado do seu rosto, não eram provocados apenas pela perseguição de um monstro.

— Você precisa de uma saída — disse a Ave Fantasma.

— Através de um buraco no mar, que talvez não esteja ali?

— Não. Um meio diferente.

Controle ergueu o tronco, com um gemido. A lateral do seu corpo parecia queimar.

— Tem certeza de que minhas costelas estão só machucadas?

— Não posso ter certeza sem fazer uma radiografia.

Mais uma coisa impossível. Mais um momento do seu declínio. Uma parede que mudava ao toque de uma mão, o toque da bióloga em sua cabeça. Chega disso. Chega!

Ele apanhou as páginas de Whitby, começou a ler à luz das velas, enquanto começava a arrancar os cantos das folhas. Devagar.

Temos que confiar nas coisas em que pensamos quando estamos dormindo. Temos que confiar nos nossos palpites. Temos que começar a examinar todas aquelas coisas que chamamos de irracionais simplesmente porque não as entendemos. Em outras palavras, temos que desconfiar do racional, do lógico, do são, numa tentativa de alcançar algo mais elevado, algo mais valioso. Inteligência e baboseira juntas. Um binário encurralado no seu foco unidirecional em busca de soluções.

— O que foi? — perguntou Controle.

Sentia que as duas não tiravam os olhos dele.

A Ave Fantasma disse:

— Você precisa descansar.

— O que eu ia sugerir parece não ser uma ideia muito popular — comentou ele.

Rasgando uma página inteira em tiras. Deixando os pedacinhos se espalharem pelo chão. Era agradável rasgar alguma coisa.

— Então diga. — Desafiando-o.

Uma pausa. Ele se preparou. Consciente das vozes conflitantes em sua cabeça.

— Isso que vocês chamam o Rastejador — começou ele. — Temos que tentar. Temos que descer aquela torre e encontrar uma maneira de neutralizá-lo.

A Ave Fantasma:

— Você andou prestando atenção? Você nos ouviu?

— Ou então ficamos aqui.

— Ficar aqui não vai adiantar absolutamente nada — admitiu Grace. — De duas uma: ou a bióloga vai nos pegar, ou então a própria Área X.

— Entre nós e a torre existe uma quantidade enorme de espaço aberto, vulnerável — disse a Ave Fantasma.

— Há uma grande quantidade de muitas coisas entre nós e a torre.

— Controle — chamou a Ave Fantasma, e ele não queria encará-la, não queria olhar naqueles olhos que agora lhe lembravam a criatura que a bióloga se tornara. — Controle, não há como recomeçar. Não é possível recomeçar. Esta é uma missão suicida.

Não mencionou que achava que era uma missão suicida para eles dois. Quem sabe o que seria para ela?

— Mas a diretora achava que seria possível mudar a direção — disse ele. — Que era possível mudá-la, se alguém se esforçasse o bastante.

Uma espécie de esperança suspensa. Uma resistência infantil contra os fatos da realidade. Se você fizer um pedido a uma estrela. Ele estava pensando na luz no fundo da torre, essa coisa nova de que não tinha ouvido falar antes de entrar na Área X. Estava pensando em sentir-se nauseado, e depois mais ainda, e no que isso significava.

Pelo menos estavam todos agora com as cartas na mesa, tudo estava visível para ele. O brilho, Lowry, tudo. Tudo misturado, incluindo aquele núcleo no qual ele ainda pensava como sendo John Rodriguez. O Rodriguez que não pertencia a ninguém. Que agarrava entre os dedos a peça feita por seu pai. Que era capaz de se lembrar de alguma coisa para além de toda aquela desgraça e ruína.

— É verdade que temos algo que ninguém mais tinha — disse Grace.

— O quê? — perguntou a Ave Fantasma, num tom cético, cheio de dúvida.

— Você. A única fotocópia do último plano da diretora.


0014: A DIRETORA

Quando, finalmente, você volta para o Comando Sul, encontra um presente à sua espera: uma foto em preto e branco, emoldurada, mostrando o faroleiro, seu assistente e uma garotinha brincando nas rochas — cabeça baixa, o capuz do casaco escondendo-lhe as feições. O sangue sobe à sua cabeça. Você quase desmaia ao ver essa foto que não sabia que ainda existia.

“É para ficar no seu escritório”, diz o bilhete bem visível junto à foto. “Você poderia pendurá-la na parede. Na verdade, deve pendurá-la na parede e deixá-la ali. Para lembrar quão longe chegou. Pelos seus anos de serviço e pela sua lealdade. Amor e beijos, Jimmy Boy.”

É quando você percebe que há algo muito mais errado com Lowry do que imaginava. Que ele cria situações disfuncionais cada vez mais espetaculares e grandiosas para testar o que o sistema é capaz de suportar antes de descobri-lo. Ele parece, ano após ano, se deleitar com essas operações clandestinas, não porque são secretas, mas por esses momentos que agitam o espírito, em que, pela mão dele ou pela mão do destino, é quase possível avistar seus limites.

Mas de onde veio a fotografia?

— Reúna tudo que sabemos sobre Jackie Severance — você diz a Grace. — Junte também tudo que houver sobre Jack Severance. E o filho, John Rodriguez. Mesmo que leve um ano. Estamos à procura de alguma ligação entre os Severance, qualquer um deles, e Lowry.

Você tem a impressão de uma aliança maligna, uma associação diabólica. Uma infiltração de má-fé. Alguma coisa se escondendo na fenda entre as pedras.

Enquanto isso, tem em mãos uma planta e um celular, de modelo bem antigo, para serem examinados — é tudo que você pode exibir como resultado de sua incursão. Além de uma sensação, nova, de estar separada, remota, distanciada da sua equipe.

Quando avista Whitby no corredor, às vezes seus olhares se cruzam, há um breve aceno e uma sensação de segredo compartilhado. Outras vezes você desvia os olhos e fita aquele velho carpete verde que serpenteia pelo prédio inteiro. Faz algum comentário cordial no refeitório, tenta mergulhar nas reuniões de preparativos para a próxima expedição. Tenta fingir que está tudo normal. Será que Whitby fraquejou? O sorriso dele às vezes volta por alguns instantes. A antiga pose confiante, a espirituosidade típica acabam reaparecendo, mas não por muito tempo, porque logo a luz em seus olhos pisca e se apaga, e a escuridão envolve tudo.

Não há nada que você pudesse dizer a Whitby além de “sinto muito”, mas nem isso consegue. Você não pode mudar aqueles momentos que o transformaram para sempre, exceto na sua memória, e mesmo na memória essa tentativa é obscurecida por aquela coisa que vem avançando lá de baixo, a coisa que a deixou tão apavorada que abandonou Saul ali mesmo, nos degraus do túnel. Disse a si mesma mais tarde que Saul não era real, não podia ser real, portanto você não abandonou ninguém. “Não se esqueça de mim”, tinha dito ele, muito tempo atrás, e você jamais vai esquecê-lo, mas precisou deixá-lo para trás. Aquela aparição. A alucinação que, quando senta no bar do Chipper’s Star Lanes ou quando discute política com Grace no terraço do Comando Sul, você tenta racionalizar e dizer que não foi uma alucinação de fato.

Em parte porque trouxe a planta consigo ao voltar. Por algum tempo, obcecada com cada uma daquelas folhas verde-escuras e pelo modo como a planta, olhada de cima, formava uma espécie de leque circular, mas, se vista de lado, esse efeito sumia completamente. Se você se concentrar na planta, talvez possa esquecer por algum tempo que Lowry está à espreita lá fora. Talvez Saul não tenha tanta importância. Talvez você possa salvar alguma coisa... do nada.

A planta não vai morrer.

Nenhum parasita a tocará.

A planta não vai morrer.

As temperaturas mais extremas não a afetam. Se congelada, ela se descongela. Se queimada, ela se regenera.

A planta não vai morrer.

Não importa o que você tente, não importa quais experimentos sejam realizados com ela no ambiente esterilizado, branco, ofuscante, da catedral das amostras. A planta não morre. Não que você tenha determinado sua execução; mas, quando começam a coletar amostras, os pesquisadores mandam lhe dizer que ela se recusa a morrer. Alguém poderia cortá-la em dezenas de pedacinhos, colocar tudo num medidor, usá-los para temperar um filé... e teoricamente a planta voltaria a crescer dentro de você, e sairia rompendo em busca da luz do sol.

Desse modo, você cede e permite que algumas amostras sejam levadas à Central, para que os especialistas resolvam o mistério dessa planta simples, ordinária, que se parece com tantas outras espécies perenes dos climas temperados. Mais amostras são levadas para as instalações secretas de Lowry, talvez para ficarem guardadas junto às jaulas dos seus bunkers experimentais, embora nenhum resultado disso tenha jamais chegado aos seus ouvidos. Tudo isso no meio de um frenético retalhamento e dissecação de outros espécimes na catedral das amostras, apenas para assegurar que não ocorreu nenhum efeito dominó, ou que algo passou despercebido. Mas nada passou despercebido.

— Não acho que estejamos olhando para uma planta — diz Whitby, hesitante, numa das reuniões, pondo em risco seu novo relacionamento com o setor de ciências, onde se abrigou como numa espécie de refúgio.

— Então, Whitby, por que motivo estamos vendo uma planta? — perguntou Cheney, conseguindo transmitir total exasperação. — Por que vemos uma planta que parece uma planta sendo uma planta? Fazendo coisas de planta, como fotossíntese e absorção de água pelas raízes? Por quê? Não é uma pergunta tão difícil, na verdade, hein? Será que é? Talvez seja, não sei, por motivos que me escapam. Mas isso está virando um problema, não acha? Ter que reafirmar que certas coisas, que nós pensamos ser as coisas que são, são de fato essas coisas e não outras completamente diferentes. Pense só na quantidade de coisas que vamos ter que reconsiderar se você estiver certo, Whitby. A começar por você! — A expressão no rosto injetado e avermelhado de Cheney voltada para Whitby como se ele fosse o receptáculo de tudo de ruim que o afligira desde o dia de seu nascimento. — Porque — prosseguiu, baixando a voz —, se essa é uma pergunta difícil, não vamos ter que reconsiderar todas as perguntas realmente difíceis?

Depois, Whitby vai presentear você com informações de como a mecânica quântica influencia a fotossíntese, pois é só uma questão de “antenas captando luz, e antenas podem ser hackeadas”, ou como “um organismo pode estar nos espiando de dentro de outro, sem na verdade precisar viver dentro dele”, ou como as plantas “falam” umas com as outras, como as comunicações podem ocorrer de uma forma química e por meio de processos tão invisíveis aos olhos humanos que, se ficassem subitamente visíveis, produziriam “um choque irreparável no sistema”.

No sistema do Comando Sul? Da humanidade?

Mas Whitby silencia de repente, muda de assunto. Abruptamente.

* * *

Você está um pouco menos obcecada pelo celular, que, a esta altura, vive entre os técnicos do setor de hardware, os únicos que têm autorização da segurança. Mas eles não conseguem fazê-lo funcionar, estão confusos, talvez até um pouco nervosos. Não identificam nele nenhum defeito. Devia estar funcionando. Mas não funciona. Devia indicar quem foi seu proprietário. Não indica.

— Como se ele não tivesse sido feito com as peças de que um celular é feito. Mas tem a aparência exata de um celular normal. Embora bastante velho.

Um telefone veterano, volumoso. Arranhado, riscado e manuseado. Como você mesma se sente às vezes.

Você o oferece a Lowry durante um dos seus telefonemas, assim como o enxadrista que sacrifica um peão. Para lhe dar algo exclusivo, deixá-lo atarefado como um cão com um osso novinho em folha, para que o osso velho descanse um pouco. Mas ele não o quer, e insiste para que você o guarde.

Algo que um membro de uma expedição levou consigo às escondidas, ou inadvertidamente? Talvez algo de uma expedição mais recente, que alguém imaginou ser antigo o bastante para não perturbar o sono da Área X? Talvez durante os ciclos anteriores à intervenção de Lowry, a você mesma como administradora, quando as técnicas eram primitivas e não verificadas.

Você lembra as fotos e os vídeos mais antigos, onde Lowry e outros membros vestem o que equivale a um escafandro submarino para atravessar a fronteira, antes de constatar que era desnecessário. Lowry, após o retorno, desorientado, balbuciando na gravação palavras de que mais tarde iria se arrepender, sobre como nada sairia daquela passagem através da barreira, nada, porque estavam esperando por fantasmas, por alguma coisa morta havia muito tempo, e que a Área X era um memorial, uma lápide.

— O que fez a Área X cuspir isto de volta? — você pergunta a Grace, quando as duas estão em segurança no terraço Comando Sul.

— E por que foi logo Whitby quem o encontrou?

— Boa pergunta.

Um presente do Finado Whitby.

— Por que o celular se permitiu ser encontrado?

Essa parece ser a pergunta certa, e há alguns dias em que você sente vontade de contar a Grace... tudo. Mas na maioria do tempo prefere protegê-la dessas informações, que não farão nenhuma diferença para o emprego dela, para a vida dela. De alguma maneira o Finado Whitby e a aparição de Saul estão do mesmo lado, dizendo a ela que seu nome não é seu verdadeiro nome. Que todas as coisas miúdas a seu respeito são mentiras.

A certa altura, chega o temido chamado: Lowry, com uma intenção bem clara. Enquanto você está contemplando aquela imagem incriminadora na parede: você saltando sobre as rochas e gritando, um pouco antes ou depois de a foto ser tirada: “Eu sou um monstro! Eu sou um monstro!”

— Estamos preparando uma nova décima primeira expedição.

— Já?

— Em três meses. Estamos quase chegando lá.

Você quer dizer, mas não diz: “Está na hora de parar de interferir. Não é a hora de intensificar as intervenções.” Parar de remexer naquilo. Parar com tudo que Lowry faz para tentar controlar algo que não pode ser controlado.

— É muito cedo — retruca você.

Muito cedo mesmo. Nada mudou, exceto que você interferiu e atravessou a fronteira e trouxe de volta dois objetos para os quais não tem explicação.

— Talvez esteja na hora de você deixar de ser assim tão covarde — diz Lowry. — Três meses. Vá se preparando, Cynthia.

Ele bate o telefone com força, e você o imagina batendo o receptor sobre um aparelho em forma de crânio humano.

E eles implantam na mente da psicóloga — no que acabará se tornando a última das décimas primeiras expedições — o que Lowry denomina “uma joia de vigilância e de recuperação de dados”. Um pequeno subconjunto do ovo de prata que é a Central, passando em primeiro lugar pelo toque deformador dele. Aquilo faz com que um homem não seja mais ele mesmo, mas você aceita e vai em frente para manter seu emprego, para se manter próxima do que é realmente importante.

Doze meses depois, a última décima primeira expedição retorna, todos se comportando como zumbis, com a memória mais enevoada do que a do veterano bêbado do Star Lanes Lounge. Dezoito meses depois, estão todos mortos de câncer, e Lowry está de volta ao telefone falando sobre “a próxima décima primeira” e em “fazer uma afinação nos procedimentos” e você conclui que alguma coisa ali tem que mudar. Mais uma vez. A não ser que você encoste um revólver na cabeça de Lowry e puxe o gatilho, essa mudança implica interferir no modo como os membros de uma expedição são selecionados, preparados, e uma série de outros fatores. Talvez nada disso faça diferença, mas você precisa tentar. Porque nunca mais quer ver rostos tão perdidos e vazios como aqueles, não quer ver de novo pessoas de quem foi arrancada alguma coisa tão vital que não pode ser expressa através de palavras.

* * *

O moral no Comando Sul piora visivelmente após o retorno da última décima primeira, mas bem depressa se volta para a próxima questão, qualquer que ela seja. Embotamento? Uma sensação de ter passado por tantas crises que as emoções precisam ser protegidas, para não se esgotarem.

Das transcrições: “Era um dia maravilhoso.” “A expedição decorreu sem incidentes.” “Não tivemos nenhum problema em cumprir a missão.”

Qual seria a missão, do ponto de vista deles? Mas essa era uma pergunta a que nunca respondiam. Grace falava deles num tom de reverência, como se tivessem se tornado santos.

No setor de ciências, Cheney ficou silencioso e arredio por um bom tempo, como se a TV colorida dos seus comentários tivesse sido substituída por um modelo de tela preto e branco com um único canal de chuvisco de pixels.

O efêmero e etéreo Pitman ligou da Central apresentando condolências um tanto oblíquas, com uma espécie de indiferença deliberada no tom, o que sugeria desorientação.

Mas você era a pessoa que tinha visto o verme espiralado da corrupção de Lowry em ação, e sabia que o que você fez, o acordo que firmou e que permitiu a ele ser tão invasivo e tão controlador, não valeu a pena.

Pior ainda, Jackie Severance começa a fazer visitas regulares, como se a Central estivesse preocupada com alguma coisa, e fica caminhando no seu escritório, falando, gesticulando muito, em vez de ficar sentada. E você precisa lidar com essa emissária da Central, em vez de apenas com Lowry.

— Ela é a minha supervisora de liberdade condicional — você comenta com Grace.

— Então, Lowry é o quê?

— É o parceiro dela? O patrão? Um empregado?

Você não sabe.

— Um enigma embrulhado num quebra-cabeça — comenta Grace. — Você sabe em que o pai dela, Jack Severance, está envolvido?

— Não. Em quê?

—Em tudo.

E é tanto “tudo” que Grace ainda está abrindo caminho no meio daquilo.

Quando Jackie Severance surge no seu escritório, produz sempre a impressão de que está verificando seus investimentos, os riscos que assumiu.

— Isso nunca a afeta? — Severance lhe pergunta, mais de uma vez, e você tem certeza de que ela está apenas jogando conversa fora.

— Não — mente, e devolve seu próprio clichê: — Todo mundo aqui está fazendo seu trabalho.

Quando ela estava no Comando Sul, você até gostava dela — incisiva, charmosa, muito eficiente, passando um pente-fino na logística, mergulhando num problema e saindo dali com soluções. Mas desde que ficou sob a asa de Lowry, você não pode correr o risco de ignorar que a presença dela significa a presença dele. Partilhando um conhaque com Grace, comenta:

— Ela é um grampo de carne e osso. Não posso simplesmente estender a mão e arrancá-la do teto.

E aos poucos o glamour começa a se dissipar. Em alguns momentos Severance parece apenas uma balconista cansada e sem qualquer brilho parada no setor de cosméticos de uma loja de departamentos.

Jackie senta-se ao seu lado, observando pelas câmeras de circuito fechado durante longos minutos os membros sobreviventes da expedição. Uma xícara de café na mão, checando o celular de tempos em tempos, às vezes mergulhando numa conversa paralela sobre algum projeto completamente distinto, e depois voltando a se concentrar no momento e fazendo perguntas.

“Tem certeza de que eles não foram contaminados com alguma coisa?”

“Quando vão mandar a próxima expedição?”

“O que acha dos parâmetros de Lowry?”

“Se você recebesse um orçamento maior, quais seriam as suas prioridades de investimento?”

“Você sabe com clareza o que procura?”

Não, você não sabe. Ela sabe disso. Você não sabe nem sequer o que está olhando, essas pessoas que se tornaram cada vez mais esquálidas até parecerem esqueletos vivos, e depois nem isso. O psicólogo talvez ainda mais vazio de ideias do que o restante, como uma espécie de advertência para você, como se fosse um efeito colateral de sua profissão ao se deparar com a Área X.

Porém, um exame mais detalhado de sua história revela que foi nele que Lowry mais apostou, pensando, talvez, que sua profissão o tornasse mais forte do que os demais. Os vínculos, as sessões de recondicionamento, os diversos truques mentais, certamente um psicólogo poderia suportá-los bem melhor, armado de seu conhecimento prévio.

Só que não foi o que ocorreu e, pelo que puderam perceber, esse “ferrão engatilhado” dentro do seu cérebro não fez nenhuma diferença dentro da Área X.

— Certamente há coisas que você teria feito de um modo diferente — diz Severance.

Você emite alguns sons não comprometedores e finge que está rabiscando algo na caderneta. Uma lista de compras de mercado, talvez. Um círculo vazio que tanto pode ser uma representação da fronteira quanto da Central. Uma planta que crescia de dentro de um celular. Ou talvez você devesse apenas escrever Foda-se e encerrar o assunto. Escapar da armadilha de Lowry com os dentes.

* * *

A certa altura, depois da morte do último membro da mais recente décima primeira, você manda buscar uma lata de tinta preta do almoxarifado, assim como canetas pretas de ponta grossa, e abre a porta inútil que dá acesso a uma parede vazia, consequência involuntária de uma reforma malfeita no corredor. Você escreve ali as palavras que foram copiadas de dentro da anomalia topográfica, as palavras que sabe que foram escritas pelo faroleiro (este relâmpago de intuição, surgido durante uma reunião, lhe permite ordenar uma investigação da história de Saul muito mais rigorosa do que todas as anteriores).

Você também esboça um mapa, assinalando todos os pontos importantes que há na Área X. Há o acampamento, ou, como você o chama agora, a Miragem. Há o farol, que deveria ser um ícone de segurança mas muitas vezes não é, o lugar onde os diários vão morrer. Há a anomalia topográfica, aquele buraco no chão para dentro do qual desce toda a iniciativa, todo o foco, somente para ficarem mais difusos e imprecisos. Mais adiante há a ilha e, finalmente, o Comando Sul propriamente dito, que parece tanto a última defesa contra o inimigo quanto o posto avançado dele.

Lowry, bêbado, perdendo a cabeça em sua festa de despedida, mandado para a Central, apenas três anos depois de você ter sido contratada. “Que coisa mais chata. Muito chato se eles vencerem. Se tivermos que viver naquele mundo.” Como se as pessoas pudessem viver “naquele mundo”, ao contrário do que todas as evidências tinham indicado até então, ou continuavam indicando, e como se não pudesse haver nada pior do que achar algo chato e o único objetivo do mundo em que as pessoas viviam fosse descobrir uma forma de não achar o mundo uma chatice, de fazer com que “todos os momentos”, como dizia Whitby quando se punha a discorrer sobre universos paralelos, pudessem ser percebidos, de modo que as mentes não fossem invadidas por um vazio que elas estariam apenas multiplicando cada vez que suas escolhas se bifurcassem, aumentando sua capacidade para o tédio.

E Grace, destemida, uma voz contrária erguendo-se anos depois durante outra festa, onde um membro da equipe acabava de proferir uma opinião igualmente cínica e depressiva, mas falando como se respondesse a Lowry: “Pois eu continuo aqui por causa da minha família. Da minha família e da diretora, e porque não quero desistir nem deles nem de vocês.” Mesmo que nunca pudesse compartilhar com sua família as lutas que enfrentava no Comando Sul, sendo “a garota braço direito”, como dizia Lowry com sarcasmo. A voz profana da razão, quando a sua parece soar muito esotérica ou muito distante.

Enquanto desenha o mapa, você pressente olhos que a observam e vira-se para ver Grace, com os braços cruzados e a expressão carrancuda. Ela fecha a porta do escritório atrás de si e continua ali, apenas observando.

— Posso ajudar em alguma coisa? — pergunta você, com a lata de tinta numa das mãos e o pincel na outra.

— Você poderia me garantir que está tudo normal.

É uma das primeiras vezes em que você percebe dúvida na voz dela. Não discordância, mas dúvida, e visto que tantas coisas dependem da fé, na fase atual do Comando Sul, você fica preocupada.

— Eu estou bem. Estou bastante bem. Queria apenas algo para servir de lembrete.

— Lembrete de quê? Da equipe? De que você está ficando um pouco excêntrica?

Você sente uma onda de irritação diante daquilo, e um pouco de mágoa também. Lowry, com todos os seus defeitos, não acharia aquilo estranho. Entenderia. Mas, ao mesmo tempo, se fosse ele quem estivesse pintando um mapa na parede do escritório, ninguém iria questioná-lo. Iriam perguntar se precisava de alguém para segurar o pincel, retocar esse ou aquele outro detalhe, trazer mais tinta.

Você decide partir para um efeito cumulativo, fazer pressão até chegar ao ponto de ruptura, e diz a Grace:

— Depois que eu terminar aqui, vou dar a ordem para exumarem os corpos de toda a última décima primeira.

— Por quê?

Irritada, algo em sua experiência a opõe a esse tipo de profanação.

— Porque eu acho necessário. É razão suficiente.

Você no momento está tendo o que Grace chama “um instante Lowry”, e nem é algo tão vulcânico assim, é apenas uma demonstração de teimosia.

— Cynthia — diz Grace —, Cynthia, o que eu acho ou deixo de achar não tem importância, mas o resto do pessoal daqui precisa querer seguir você.

Um pensamento ainda mais teimoso: a ideia de que o que você realmente precisa é ser seguida por Lowry e Severance, e então manteria seu posto ali para sempre. Mas é um pensamento lúgubre, o de outras trinta e seis expedições sendo despachadas, e apenas algumas delas voltando, enquanto você, Grace e Whitby, cada vez mais calejados e mais cínicos com o passar do tempo, continuam a repetir procedimentos que não ajudam mais a ninguém, nem mesmo a vocês.

— Vou acabar isto aqui — comenta você, num tom conciliatório — porque já comecei.

— Porque vai parecer ainda mais estúpido caso não termine — diz ela, relaxando também.

— Sim, isso mesmo. Vai ser ainda mais estúpido se eu não terminar.

— Então deixe-me ajudá-la — ofereceu-se ela, e algo na ênfase que põe nas palavras acaba produzindo efeito.

Sempre produzirá.

Deixe-me ajudá-la.

— Tudo bem, então — diz você com uma voz mal-humorada, e lhe estende outro pincel.

* * *

Mas você ainda tem a intenção de exumar os mortos, e ainda pensa em mudar de paradigma, como Lowry vive tentando. E se perde nesses pensamentos durante todo o fim de semana seguinte, enquanto joga boliche no Chipper’s, enquanto fica em casa colecionando cupons de desconto do mercado, enquanto toma banho, enquanto sai para sua aula de dança de salão, porque isso é o tipo de coisa que jamais faria. Então você faz, sabendo que, caso Severance esteja de olho, vai ver nisso um indício de comportamento “errático”, mas não vai ligar muito. Foi você quem se meteu aqui, abriu essa armadilha para si mesma, então, se acha que foi apanhada, a culpa é sua.

Um dia depois de pintar a porta, Grace retoma o assunto, como sempre faz, incapaz de deixar aquilo quieto, mas o faz em particular, no terraço, de cuja existência a esta altura Cheney já deve suspeitar, tal como desconfia do envolvimento de “energia escura” na manutenção da barreira invisível... Grace pergunta:

— Você tem um plano, certo? Tudo isso é parte de um plano. Estou confiando que você tenha.

Então só lhe resta assentir, sorrir e dizer:

— Sim, Grace, eu tenho.

Porque você não quer trair aquela confiança, porque não há vantagem em responder: “Tudo que eu tenho é uma sensação, uma intuição, e uma conversa curta com um homem que devia estar morto. Eu tenho uma planta e um celular mudo.”

Nos seus sonhos, você está de pé, meio afastada, com a planta em uma das mãos e o celular na outra, observando a guerra entre a Central e a Área X. De alguma forma essencial, você sente, eles vivem em conflito há muito mais do que esses trinta anos — durante eras e mais eras, através de séculos em segredo. A Central, o vazio terminal para fazer frente à Área X: impessoal, antisséptica, labiríntica, incognoscível. Diante dessa fachada, você não pode deixar de exprimir uma sensação terrível de traição: às vezes chega a admirar os excessos mortais da vida de Lowry, comparados a isto, uma silhueta se contorcendo diante de uma tela branca e embaçada.


0015: O FAROLEIRO

Sirene do lado oeste consertada. Retoques na pintura branca, lado do mar; consertei a escada também, mas continua instável, pouco segura. Algo derrubou quase meio metro da cerca e entrou no jardim, mas não dá para dizer o que foi. Nenhum rastro de veado, porém é o culpado mais provável. BP&C? As sombras do abismo são como as pétalas de uma monstruosa flor. Sem vontade de caminhar, mas, do que vi do farol, anoto: papa-moscas (não sei de que tipo), alcatrazes, andorinhas-do-mar, cormorões, uma ave pernilongo (!), um par de curiós-do-brejo. Fui até a praia e encontrei o corpo de um cavalo-marinho grande, trazido pela maré, e algumas águas-vivas apodrecendo na areia.

Uma luz incandescente apareceu. Uma estrela em movimento, o sol desabando sobre a Terra. Caiu dos céus uma gigantesca tocha ardente, produzindo chamas grossas que deixavam um rastro de gotas de fogo. E essa luz, essa estrela, se chocou com o céu e a praia, onde, um segundo antes Saul estava caminhando sob um céu azul. A intensidade abrasadora do objeto que subitamente despencou sobre ele embotou-lhe os sentidos, atirou-o de joelhos no chão quando tentou correr e o fez enterrar a cara na areia. Gritou ao sentir os raios, as fagulhas, espalhando-se à sua volta, e o núcleo daquela luz chocou-se com o chão um pouco à sua frente, seus dentes bateram, seus ossos viraram poeira. A reverberação continuou dentro dele enquanto tentava se pôr de pé, mas o impacto provocou um gigantesco maremoto que se ergueu como uma criatura viva e se abateu sobre a praia. Quando tombou sobre Saul, aquele peso e aquela imensidão o destruíram novamente, arrastando consigo tudo que ele era capaz de reconhecer, capaz de saber. Tossiu e arquejou e se debateu e gemeu de dor, enterrando as mãos maltratadas na areia dolorosamente fria. A areia tinha uma textura diferente, e as minúsculas criaturas vivas que havia nela eram diferentes. Ele não queria erguer o rosto, olhar em volta, com medo de que a paisagem também pudesse ser outra, pudesse ser algo tão distante que ele não teria coisa alguma a que se apegar.

O maremoto retrocedeu. A luz ardente amainou.

Saul conseguiu ficar de pé, dar um ou dois passos cambaleantes, e percebeu que tudo ao seu redor tinha se restaurado. O mundo que conhecia, o mundo que amava: tranquilo, inalterado, e com a torre do farol no alto da praia, intocada pela onda. Gaivotas voavam, e bem ao longe alguém caminhava, catando conchas. Ele limpou a areia em sua camisa, em seu short, e ficou ali um longo tempo, curvado, as mãos apoiadas nas coxas. O impacto ainda afetava sua audição, ainda o fazia estremecer ao lembrar a potência do choque. E, no entanto, aquilo não deixara nenhum vestígio, exceto aquela melancolia, como se ele guardasse consigo a única lembrança de um mundo que se perdeu.

Depois Saul não conseguia parar de tremer e pensou que estava enlouquecendo. Isso era menos arrogante do que pensar que estava recebendo uma mensagem das alturas. Porque, no centro da luz que ele vira precipitar-se do céu, uma imagem apareceu, um padrão que foi capaz de reconhecer: as oito folhas da estranha planta, cada uma como mais um degrau descendo a espiral rumo ao esquecimento.


Manhã alta. As rochas estavam escorregadias e pontiagudas, incrustadas de lapas e cracas. Copépodes, antigos como o tempo, as atravessaram em busca do que houvesse para devorar, e as algas que tinham se grudado ali, em faixas finas e espessas e às vezes gelatinosas, emitiam um odor pungente, fungoso.

Era um alívio poder sentar, tentando se recuperar — olhando os poços de maré que se estendiam aos seus pés enquanto o traseiro se apoiava na pedra. Tentando parar de tremer. Tinha havido outras visões, mas nenhuma tão poderosa como aquela. Ele sentia uma impaciência perversa em esperar a aparição de Henry, para confessar todos os seus sintomas àquele homem que, depois de perceber que se tratava de um caça-fantasmas autoiludido e cheio de ardor, ele agora recordava com certa afeição. Mas Saul não tinha voltado a ver Henry ou Suzanne depois do incidente daquela noite, nem a mulher estranha. Às vezes achava que alguém o espreitava, mas isso provavelmente era apenas o resultado de sua crença de que Henry, ao dizer “eu vou encontrar aquilo”, dera a entender que voltaria.

O poço de maré à sua frente formava um oval grande e irregular, cercado por uma moldura viva de anêmonas rosadas e brancas. Sua superfície se tornava frustrantemente opaca quando uma nuvem passava bem por cima e mudava a qualidade da luz, ou o vento batia de lado, criando ondinhas. Mas quando o sol voltava a brilhar de novo e o que ele via não era apenas o reflexo do seu rosto e de seus joelhos, o poço virava um armário vivo de curiosidades. Ele preferia caminhar e observar pássaros, mas também era capaz de entender a fascinação que um poço de maré podia ter sobre alguém.

Gordas estrelas-do-mar cor de laranja, amontoadas ou adormecidas, tinham metade do corpo para fora da água. Um peixe qualquer das profundezas veio contemplá-lo com olhos bulbosos, cansados. Uma criatura compacta, beiçuda, cujo corpo era da mesma cor da areia, menos os olhos, que eram duas joias em safira e ouro. Um miúdo caranguejo-vermelho correu de lado até chegar à borda daquela plataforma, que devia lhe parecer um abismo escancarado de um buraco escuro que se aprofundava, talvez penetrando no labirinto de minúsculas cavernas escavadas naquelas rochas ano após ano. Se ele passasse tempo suficiente olhando apenas para o reconfortante esquecimento daquele microcosmo, todo o resto deixaria de existir, até a sombra do seu reflexo.

Foi ali, alguns minutos depois, que Gloria o encontrou, como Saul talvez soubesse que aconteceria, as rochas sendo para ela o que o farol havia se tornado para ele.

Ela se jogou ao lado dele como se fosse indestrutível, com o traseiro, revestido de veludo, deslizando com dificuldade na superfície de pedra. Não tão empoleirada quanto uma rocha em cima de outra rocha. O peso sólido dela o forçou a pender um pouco para o lado. Gloria estava ofegante por ter subido depressa até ali, mas fez um “hum hum” de aprovação ao ver a distração que Saul tinha escolhido e ele lhe devolveu um breve sorriso e um aceno. Por um longo tempo, os dois ficaram sentados juntos, olhando. O faroleiro chegara à conclusão de que não podia contar a ela o que tinha visto, de que não era justo descarregar esse peso sobre a menina. A única pessoa a quem poderia contar era Charlie. Talvez.

O caranguejo vasculhava a areia. O peixe camuflado arriscou se afastar, usando barbatanas que pareciam leques entreabertos, e se moveu para o abrigo da sombra de uma saliência de rocha. Uma das estrelas-do-mar, como se tivesse sido captada numa sequência automática de fotos, recolheu-se para dentro da água com uma hipnótica lentidão, até que ficaram de fora apenas as pontas de dois dos seus braços, brilhando.

Finalmente Gloria perguntou:

— Por que você está aqui, e não trabalhando lá perto do barracão, ou então na torre?

— Não estou com vontade de trabalhar hoje.

Imagens de iluminuras de antigos manuscritos, de cometas galgando os céus, ilustrações dos velhos livros da casa do seu pai. A reverberação e a praia explodindo sob os seus pés. As estranhas criaturas naquela areia. Qual era a mensagem a extrair daquilo?

— Sim, eu às vezes não estou com vontade de ir para a escola — disse ela. — Mas você pelo menos ganha dinheiro.

— Ganho, é verdade — concordou ele. — E eles nunca vão lhe pagar para ir à escola.

— Eles deviam me pagar. Tenho que aguentar muita coisa.

Ele imaginou o quanto. Podia ser muito, sim.

— A escola é importante — disse ele, porque sentiu que devia dizê-lo, como se a mãe de Gloria estivesse bem ali atrás deles, batendo o pé.

A garota pensou naquilo por um momento, depois cutucou as costelas dele com o cotovelo, num gesto muito familiar, como se os dois fossem bebuns no bar do vilarejo.

— Falei para a minha mãe que isto aqui é uma escola para mim, mas não funcionou.

— “Isto aqui” o quê?

— Os poços de maré. A floresta. As trilhas. Tudo. Na maior parte do tempo, é verdade que fico só vadiando, mas aprendo coisas também.

Saul podia imaginar como transcorrera aquela conversa.

— Aqui você não vai nunca passar de ano. — Animando-se com a ideia: — Embora eu acredite que os ursos possam lhe render boas notas pelo modo como você os investiga.

Ela meio que se inclinou para trás a fim de encará-lo melhor, como se mudando de ideia a seu respeito.

— Que coisa boba. Você está se sentindo bem?

— Sim, essa conversa toda é boba.

— Você ainda está se sentindo diferente?

— O quê? Não. Não, estou bem, Gloria.

Ficaram olhando os peixes mais algum tempo depois disso. Algo na conversa dos dois, o modo como fizeram movimentos rápidos ou falaram muito alto, tinha feito com que os peixes se enfiassem na areia, e agora só os olhos deles eram visíveis.

— Mesmo assim, tem algumas coisas que eu aprendo lá no farol — disse Gloria, arrancando Saul de seus pensamentos.

— Aprende a ficar em pé bem alta e projetar luz no mar com a cabeça?

Ela riu com aquilo, dando-lhe crédito demais por uma resposta no mínimo parcialmente irônica.

— Não. Vou lhe dizer o que o farol me ensina. Fique quieto e me deixe dizer. O farol me ensina a trabalhar bastante, a manter meu quarto limpo, a ser honesta e legal com as pessoas. — Depois ela refletiu melhor, olhando para os pés. — Meu quarto é uma bagunça e nem sempre eu sou legal com as pessoas, mas a ideia é essa.

Um pouco encabulado, ele disse:

— Esse peixe aí embaixo está claramente morrendo de medo de você.

— Hein? Ele nem me conhece. Se me conhecesse, apertaria minha mão.

— Não acho que você possa dizer algo que o convença a isso. E há mil possibilidades de você machucá-lo mesmo sem ter a intenção.

Fitando aqueles olhos que não piscavam, azuis rajados de ouro, com a pupila vertical e escura, que parecia uma verdade fundamental.

Ela o ignorou:

— Você gosta de ser faroleiro, não gosta, Saul?

Saul. Isso era uma novidade. Quando eles tinham se tornado Saul e Gloria em vez de Mr. Evans e Gloria?

— Por quê? Quer ter o meu emprego quando crescer?

— Não. Nunca vou querer ser faroleira. Cavando com a pá, preparando tomates, subindo escadas o tempo todo...

Era assim que ele parecia usar o tempo que tinha? Achou que sim.

— Pelo menos você é sincera.

— Sim. Minha mãe me diz para ser menos sincera.

— Tem esse lado, também.

O pai dele também poderia ter sido menos sincero, porque no seu caso significava estar a um passo de ser cruel.

— De qualquer modo, não posso ficar muito tempo.

Havia um arrependimento na voz dela.

— É uma pena, agora que está sendo tão sincera.

— Eu sei. Mas tenho que ir. Minha mãe vai passar de carro daqui a pouco. Estamos indo para a cidade, para encontrar meu pai.

— Ah, ele veio lhe buscar para o feriado, é isso?

Então era esse dia.

Outra sombra passou por cima do poço de maré e tudo que conseguiu ver foram os rostos dos dois, espiando para baixo. Ele bem podia passar como pai dela, não? Ou seria velho demais? Bom, pensamentos assim eram sinais de fraqueza.

— Desta vez vai ser mais tempo — disse ela, que visivelmente não estava muito satisfeita. — Minha mãe quer que eu fique por lá pelo menos dois meses. Porque perdeu um dos trabalhos que tinha e precisa voltar a procurar. Mas são oito semanas somente. Ou sessenta dias, talvez.

Ele ergueu os olhos para ela, viu a expressão séria em seu rosto. Dois meses. Isso era um tempo inconcebivelmente longo.

— Você vai achar divertido. Quando estiver de volta, vai gostar ainda mais daqui.

— Já gosto agora. E não vai ser divertido. A namorada do papai é uma vadia.

— Não use essa palavra.

— Desculpe. Mas ela é.

— Sua mãe diz essas coisas?

— Não. Eu descobri sozinha. Não foi difícil.

— Bem, tente conviver — falou Saul, tendo chegado ao limite extremo de conselhos cabíveis a um faroleiro. — Vai ser por pouco tempo.

— Claro. E depois eu volto. Me ajude a levantar, acho que é minha mãe vindo.

Ele não ouviu nenhum carro, mas isso não queria dizer nada.

Segurou na mão dela, firmou-se para que Gloria pudesse se apoiar nele e se pôr de pé. Ela ficou um instante equilibrando-se diante de Saul, com a mão no seu ombro, e disse:

— Adeus, Saul. Guarde esse poço de maré para mim.

— Vou botar uma placa. — Ele tentou sorrir.

Ela assentiu, e desapareceu precipitadamente entre as rochas, como uma espécie de maluco audacioso — exibindo-se.

Num impulso, Saul se virou e gritou:

— Ei, Gloria!

Antes que ela estivesse longe demais.

A garota se virou, equilibrando-se com os braços estendidos, à espera.

— Não se esqueça de mim! E se cuide!

Ele tentou fazer com que isso soasse leve, frases que pudessem flutuar pelo ar. Nada muito importante.

Gloria assentiu, acenou em despedida, dizendo algo que ele não pôde ouvir, e logo disparou subindo a encosta relvada do farol. Ao chegar lá em cima, contornou a curva do muro e sumiu.

Abaixo, o peixe tinha a boca em volta do caranguejo-vermelho, que se debatia de uma maneira vagarosa, meditativa, quase como se não quisesse se libertar.


0016: AVE FANTASMA

A torre do farol se ergueu entre a neblina e os reflexos como um espelho de si mesma, a praia cinza e gelada, a areia arranhando o casco do barco quando eles o empurraram para dentro do mato. As ondas eram pequenas e encaracoladas como pontos de interrogação malformados.

O farol não se parecia com a imagem mental que a Ave Fantasma tinha dele, porque suas laterais estavam calcinadas pelo fogo. Manchas que se estendiam até o topo, onde a lente e a luz dentro dela estavam apagadas. O fogo tinha brotado da janela do patamar também, e combinado com os cacos de vidro, e com todos os outros talismãs deixados ali pelos humanos com o passar dos anos, dava ao farol a aparência de algo xamanístico. Agora estava reduzido a um ponto de referência diurno para o barco deles, ou seja, a mais simples de suas funções, a única tarefa que, não executada, faz com que um farol perca sua razão de ser. Faz com que se transforme num reduto estreito e assombrado.

— Queimado pela comandante da fronteira — Grace tinha dito aos dois. — Queimado porque ela não o compreendia, e os diários foram queimados com ele.

Mas a Ave Fantasma percebeu a hesitação na sua voz, como ela ainda evitava contar exatamente o que tinha acontecido dentro do farol, em que consistiam o massacre e o engano, qualquer relatório pormenorizado do que viera até eles do lado do mar.

Em lugar disso, o que Grace lhe oferecera fora um diagnóstico específico: a origem das bandeirolas cor de laranja. Obra da comandante também, um catálogo de tudo quanto era incompreensível para ela. Talvez tivesse tentado separar o real do imaginário. Se era isso, tinha fracassado. Mesmo cardos comuns haviam sido marcados. Se lhe dessem tempo bastante, teria marcado o mundo inteiro.

A Ave Fantasma teve uma visão breve de que os diários estariam lá mesmo assim, reconstituídos, na hora em que entrassem na sala que abrigava a lâmpada, abrissem o alçapão, olhassem para baixo como fizera a bióloga, como ela mesma fizera, tantos anos antes. Será que a luz refletida daqueles registros imobilizados seria capaz de irradiar seus pensamentos, contaminar seus sonhos, prendê-los para sempre ali? Ou haveria apenas um monte de cinzas no lugar? A Ave Fantasma não estava interessada em descobrir.

A tarde já ia alta. Haviam deixado a ilha de manhã cedinho, num barco maior que Grace mantinha escondido longe da visão do ancoradouro. A bióloga não havia voltado, embora Controle tivesse investigado aquelas águas com uma ansiedade que parecia patológica. A Ave Fantasma pressentiria sua aproximação muito antes de haver qualquer perigo. Ela não podia lhe dizer, para o próprio bem dele, que os oceanos onde a bióloga agora navegava eram mais vastos e mais profundos do que aquele que os conduzira até o farol.

* * *

Subiram com esforço a encosta que se erguia em frente à praia, na direção do farol, usando um trajeto que minimizaria as chances de um possível atirador lá no alto. Grace acreditava que estava todo mundo morto, ou que já tinham ido embora dali havia muito tempo, mas sempre existia um risco. Nada se ergueu do lado do mar, fantasmagórico ou não. Saíram coisas do mar, coisas como a bióloga, mas menos piedosas.

Da beirada das dunas, chegaram ao nível do farol sem incidentes e se detiveram no matagal que cobria o espaço à sua frente, onde cresciam urtigas e tufos de amora preta. Espinhoso para eles, mas um abrigo natural para as cambaxirras e pardais que se entrecruzavam no voo, para lá, para cá, sua canção alegre se tornando um elemento de discordância com o clima nublado do dia. Os onipresentes cardos pareciam à Ave Fantasma uma espécie de microfone natural, com seus domos pegajosos prontos para receber e reproduzir sons em vez de espalhar sementes.

A porta partida bocejou, convidando-os a penetrar na escuridão, enquanto o céu cinzento lá no alto, o modo como ele parecia piscar ou tremular a qualquer momento, deixava Controle inquieto. Ele não conseguia ficar parado, também não queria que as duas permanecessem imóveis. A Ave Fantasma podia ver o brilho emanando dele como um halo de facas serrilhadas, imaginou se ainda seria o mesmo quando chegassem à torre. Talvez sim, se nada sobrenatural aparecesse costurando o azul do céu.

— Não há motivo para ir lá em cima — disse Grace.

— Não está nem um pouquinho curiosa?

— Você gosta de passear por sepulcros e cemitérios?

Ainda a estava avaliando, e a Ave Fantasma era incapaz de saber o que se passava em sua cabeça. Grace estaria do lado deles com a esperança de que a Ave Fantasma fosse algum tipo de arma secreta, ou por alguma outra razão? O que sabia com certeza era que, com ela por perto, suas oportunidades de falar a sós com Controle eram insignificantes, que qualquer conversa teria que ser travada entre os três. Isso a incomodava, porque conhecia Grace ainda menos do que o conhecia.

— Eu não quero ir lá em cima — afirmou Controle. — Não quero. Quero cruzar esse espaço aberto o mais depressa possível. Chegar ao lugar aonde estamos indo o mais depressa possível.

— Pelo menos parece que não há ninguém aqui — disse Grace. — Pelo menos parece que a Área X conseguiu reduzir bastante a oposição.

Sim, era um bom sinal, mesmo dito com essa frieza, mas o olhar que Controle dirigiu a ela indicou que ele ainda não conseguira se livrar de um sentimentalismo que não tinha função ali, algum mecanismo que pertencia somente ao mundo lá de fora.

— Bem, deixe-me fazer uma doação para a coleção deles — disse Grace, e atirou longe o diário da bióloga junto com o seu relato sobre a ilha pela porta da frente aberta.

Controle ficou olhando para aquela escuridão como se Grace tivesse cometido um ato terrível que ele estava tentando consertar. Mas a Ave Fantasma não pensava assim. Grace queria deixá-los mais livres.

* * *

“Nunca um cenário foi tão capaz de viver sem as almas que o atravessam.” Uma frase que a Ave Fantasma lembrava de ter lido num dos livros do colégio, uma frase que se mantivera na memória da bióloga depois de sua mudança para a cidade e que tinha emergido quando ela estava no terreno baldio, acompanhando com os olhos o voo silencioso de um petauro-do-açúcar entre os postes telefônicos. O texto original se referia a paisagens urbanas, mas a bióloga o tinha interpretado como se se aplicasse ao mundo natural, ou pelo menos ao que pudesse ser considerado natureza selvagem, mesmo levando em conta que os seres humanos tinham transformado o mundo de tal maneira que mesmo a Área X não fora capaz de reduzir por completo os seus signos e símbolos. Os arbustos e as árvores que constituíam espécies invasoras eram apenas parte disso; a outra parte era o modo como mesmo o mais leve sinal de uma trilha aberta por pés humanos era capaz de modificar a topografia de um lugar. “A única solução para o meio ambiente é negligenciá-lo, o que requer o nosso colapso.” Uma frase que a bióloga tinha extraído de sua tese, mas que ficara ardendo em sua mente, e agora na da Ave Fantasma, onde, mesmo analisada e mantida à prudente distância, como todas as memórias herdadas, guardava certo poder. Junto à lembrança de mil olhos a encarando.

Enquanto se dirigiam para o interior da ilha, as coisas maiores ficaram para trás, revelando apenas o essencial: a linha escura de um tartaranhão-azul voando baixo sobre a água, as delicadas fraturas causadas pelo nado de uma cobra-d’água na superfície, a visão estranhamente reconfortante da relva comprida que brotava e cascateava como cabelo pelo chão.

Ela se sentia confortável com o silêncio, mas Grace e Controle eram diferentes.

— Sinto falta de um banho quente — disse ele. — Sinto falta de não sentir o corpo inteiro coçando.

— Ferva água — replicou Grace, como se isso fosse uma solução para os dois problemas. Como se Controle sentisse falta de desejos, e ele devesse pensar grande.

— Não é a mesma coisa.

— Sinto falta de estar no terraço do Comando Sul, olhando para a floresta — disse Grace.

— Você fazia isso? Como conseguia chegar lá?

— O zelador nos deixava passar lá para cima. A diretora e eu. Ficávamos lá um tempão, fazendo nossos planos.

Aquele nó na garganta de Grace, aquela conexão invisível, a Ave Fantasma percebeu tudo. E do que ela sentia falta? Tinha havido tão pouco tempo livre para sentir falta de algo... A conversa dos dois era tão distante dela que ficou a imaginar de novo o que seria capaz de fazer quando encontrasse o Rastejador. E se ela fosse meramente uma bomba humana, engatilhada por alguém no curso de um duelo muito mais antigo do que o Comando Sul ou a Área X? Deveria ser leal à antiga diretora ou à diretora quando era uma criança saltando sobre as rochas perto do farol? E a que mestre servia o faroleiro? Seria mais fácil se conseguisse pensar em cada pessoa daquela equação como uma única coisa, mas nenhum deles era tão simples assim.

Talvez a resposta final da bióloga fosse a única que importava. Ela teria escrito aquela carta para satisfazer a uma expectativa, uma reação que estava embutida nos seres humanos. Ou talvez fosse algum tipo de procrastinação final antes de assumir de corpo inteiro a resposta certa. Talvez aqueles diários todos tivessem sido empilhados no farol porque, em algum lugar de suas mentes, a maior parte das pessoas veio a reconhecer a futilidade da linguagem. Não somente na Área X, mas indo de encontro ao impacto direto do momento vivido, o instante do toque, da conexão, para o qual as palavras eram um desapontamento tão sofrido, uma expressão tão inadequada para o finito e para o infinito. Até mesmo no instante em que o Rastejador escrevera sua mensagem terrível.

Lá na ilha, tinha ficado uma última pergunta sem resposta, cujo peso ainda repousava sobre cada um deles de maneira diferente. Se agora estavam caminhando numa paisagem transplantada de algum lugar muito longe, então o que será que existia nas coordenadas da verdadeira Área X, lá na Terra?

Grace tinha tangenciado essa ideia, claramente estava considerando aquilo, há anos possivelmente, perseguida e frustrada por ela.

— Nós estamos — devolvera Controle, e ela o via como muito distante, os olhos desfocados. — Nós estamos. É onde nós estamos.

Embora ele não fosse estúpido, devia saber que Grace tinha razão.

— Se você cruzar aquela porta, entra na Área X — disse Grace. — Se atravessar a fronteira, vai para o outro lugar. Seja ele o que for.

O tom de Grace não admitia dúvida, e nem estava ligando se acreditariam nela ou não; era indiferente àquelas questões, como se a Área X a tivesse usado até o fim. Um pragmatismo cujo significado era ela saber que as conclusões a que tinha chegado não agradariam a ninguém.

Mas a Ave Fantasma sabia o que vira no corredor que conduzia à Área X, os detritos e o lixo espalhados, os corpos, e pensou se aquilo era mesmo real ou produto da sua mente. Pensou em quem poderia surgir através da porta de seis metros que Controle lhe descrevera, a porta que estava perdida para eles. Quem poderia passar por ela? E a Ave Fantasma pensou: nada, porque, se pudesse, já teria acontecido muito tempo antes.

As lagoas do pântano estavam cintilando um azul tão profundo, perfeito, naquela luz incerta, que o reflexo da floresta de arbustos em volta parecia tão real quanto seu duplo de raízes. As botas deles, incrustadas de lama seca, passaram pisando nas poças, esmagando o rico sedimento e as raízes, e fazendo subir um cheiro como o de palha seca.

Mais de uma vez Controle apoiou-se na Ave Fantasma para não perder o equilíbrio, quase a derrubando. Chegou a eles um cheiro de fumaça de um ponto adiante, e lá no alto alguma coisa que não puderam ver costurou o céu nublado; a Ave Fantasma não ficou surpresa.


0017: A DIRETORA

Um dia de primavera no Comando Sul, você está fazendo um intervalo, caminhando sozinha sobre os ladrilhos do pátio enquanto revira um problema na mente, quando vê algo estranho na beira do pântano. Bem na margem da água escura, uma figura se acocora, curvando-se, e as mãos, que você não é capaz de ver, estão entregues a alguma tarefa misteriosa. Seu primeiro impulso é chamar a segurança, mas então você reconhece aquela silhueta delgada, aquele tufo de cabelo escuro. É Whitby, vestindo seu paletó marrom, suas calças azul-marinho, seus sapatos sociais.

Brincando na lama. Lavando alguma coisa? Estrangulando alguma coisa? O nível de concentração que ele demonstra, mesmo àquela distância, é o de alguém executando um trabalho que exige a precisão de um joalheiro.

O instinto lhe diz para ficar calada, para ir devagar, evitando as folhas secas e os galhos caídos. Whitby sobressaltou-se o bastante no passado, pelo passado, e você quer que ele perceba sua presença aos poucos. No meio do caminho, no entanto, ele se vira o suficiente para avistar você e logo se concentrar novamente no que estava fazendo, e depois disso você se apressa.

As árvores estão lúgubres como sempre, parecendo padres com as costas curvadas e longas barbas de musgo, ou como Grace diz de modo menos respeitoso, “como uma fileira de drogados no fim da picada”. A água não mostra uma ondulação sequer, a não ser as minúsculas e pacientes ondinhas feitas por Whitby, e o seu reflexo, quando você chega perto e se inclina sobre o ombro dele, é distorcido por anéis que se expandem naquela luz cinza e tremulante.

Ele está lavando um ratinho marrom.

Segura o rato, cuidadoso mas firme, entre o polegar e o indicador da mão esquerda, a cabeça e as patas dianteiras do animal rodeadas pelos dedos, e a barriga pálida, as patas traseiras e a cauda se espalham sobre a palma. O rato parece hipnotizado ou, por alguma outra razão, sobrenaturalmente calmo, enquanto Whitby, com a mão direita em concha, derrama água sobre ele, depois estende o indicador e espalha-a sobre o pelo do baixo-ventre, as laterais do corpo, o focinho peludo, terminando com uma unção no topo da cabeça.

Whitby tem uma pequena toalha branca dobrada sobre o antebraço, há um grande W em letra cursiva bordado com linha dourada. Trouxe de casa? Ele a pinça e, usando somente um cantinho dela, enxuga com delicadeza o topo da cabeça do rato, enquanto os olhinhos miúdos do bicho encaram a distância. Há naquilo tudo um extremo de cuidados quase febril, e Whitby começa a enxugar uma patinha rosa e depois outra, antes de passar para as traseiras e a cauda fininha. A mão dele é tão pálida e pequena que há certa simetria naquela cena, uma sugestão absurda mas tocante de uma ancestralidade compartilhada.

Já se passaram quatro meses desde a morte por câncer do último membro da última décima primeira expedição, seis semanas desde que você ordenou a exumação de todos. Mais de dois anos desde que cruzou a fronteira de volta com Whitby. Durante os últimos sete ou oito meses, mesmo com essas perturbações, você tinha uma impressão de que o homem estava se recuperando — menos requisições de transferência, mais participação nas reuniões, um ressurgir do interesse pelo seu “documento das teorias combinadas” que ele agora denomina “uma tese sobre o terroir”, evocando a abordagem de um “ecossistema abrangente” baseado numa teoria avançada relativa à produção de vinho. Nada no modo como cumpria suas tarefas indicava alguma coisa além da excentricidade costumeira. Até Cheney admite isso, a contragosto, e você não liga se ele já começa a usar Whitby como uma arma contra você. Não liga para as razões dele, desde que isso traga Whitby de volta para o centro das coisas.

— O que você tem aí?

Quebrar o silêncio parece tão súbito, tão invasivo... Nada que você diga pode soar diferente de um adulto falando com uma criança, mas ele a coloca nessa posição.

Whitby para de lavar e enxugar o rato, joga a toalha por cima do ombro esquerdo, olha para o animal, examina-o como se pudesse ainda haver um pouquinho de sujeira aqui ou ali.

— Um rato — diz ele, como se fosse algo óbvio.

— Onde você o encontrou?

— No sótão. Eu o achei no sótão.

Seu tom é o de alguém que sabe que vai ser repreendido, mas, ao mesmo tempo, de desafiado.

— Ah, na sua casa?

Trazendo a segurança do lar para aquele lugar perigoso, o trabalho, sob uma forma física. Você está tentando suprimir a psicóloga que ainda é, não analisar demais as coisas, mas é difícil.

— No sótão.

— Por que o trouxe para cá?

— Para lavá-lo.

Você não quer que aquilo pareça um interrogatório, mas sabe que é assim mesmo. Será que isso fará bem ou mal à recuperação de Whitby? Não há um número de pontos atribuído ao gesto de ter um rato ou dar banho nele. Não há como determinar se quem faz isso está apto para o trabalho ou não.

— Você não podia lavá-lo lá dentro?

Whitby ergue a cabeça, dando-lhe uma olhada de baixo para cima. Você ainda está inclinada e ele, agachado.

— A água está contaminada.

— Contaminada. — Uma escolha de palavra interessante. — Mas você a usa, não?

— Sim, uso... — Whitby cede, recua um pouco, relaxa, de modo que você fica menos preocupada de que ele estrangule o rato por distração. — Mas eu pensei que ele poderia gostar de vir um pouco aqui fora. Está um dia tão bonito...

Tradução: Whitby precisava dar um tempo. Assim como você precisava, e viera passear um pouco nos ladrilhos do pátio.

— Qual é o nome dele?

— Ele não tem nome.

— Ele não tem nome?

— Não.

De certa forma, isso a incomoda mais do que o banho, mas é um incômodo que você não sabe como verbalizar.

— Bem, é um rato simpático.

Isso soa estúpido no momento em que está sendo dito, mas você não tem saída.

— Não fale comigo como se eu fosse um idiota — diz ele. — Eu sei que isto parece estranho, mas pense em algumas das coisas que você faz quando está estressada.

Você cruzou a fronteira com aquele homem. Sacrificou a tranquilidade mental dele no altar da sua fascinação insaciável, da sua curiosidade e da sua ambição. Ele não merece, ainda por cima, a sua condescendência.

— Desculpe. — Você senta desajeitadamente em cima das folhas mortas e da lama quase seca ao lado dele. A verdade é que ainda não quer voltar para o edifício, e Whitby parece que também não. — A minha única justificativa é que tem sido um dia muito longo.

— Tudo bem — diz Whitby depois de uma pausa, e volta a lavar o rato. Então informa, por conta própria: — Eu o tenho há umas cinco semanas. Tive um cachorro e um gato quando era garoto, mas depois não tive mais animais de estimação.

Você já tentou imaginar como poderia ser a casa de Whitby e não conseguiu. Só é capaz de visualizar um vasto espaço branco com mobília branca e moderna, o único ponto de cor sendo um monitor de computador num canto. Isso provavelmente indica que a casa dele é um festival opulento e decadente, uma salada de estilos e períodos, tudo em cores vívidas, saturadas.

— A planta floresceu — comenta Whitby, no meio de suas reflexões.

Aquela frase a princípio não quer dizer nada. Mas quando o significado vai chegando, você senta-se empertigada.

Whitby a observa.

— Não é urgente. Já acabou.

Você está reprimindo o impulso de agarrá-lo, botá-lo de pé e levá-lo para dentro do prédio e lhe mostrar o que quer dizer não é urgente.

— Explique-se. — Há na palavra apenas a pressão necessária, e você a segura ali como um ovo a ponto de chocar. — Seja específico.

— Aconteceu no meio da noite. A noite passada — começou ele. — Todo mundo já tinha saído. Às vezes eu trabalho até tarde então passo bastante tempo na catedral de amostras. — Ele afasta o olhar, então continua, como se você tivesse comentado algo: — Eu gosto de ficar lá, só isso. Me acalma.

— E...?

— E na noite passada eu cheguei lá e resolvi dar uma avaliada na planta — dito com uma casualidade excessiva, como se ele estivesse sempre avaliando-a —, e lá estava uma flor. A planta estava florescendo. Mas agora já acabou. Foi tudo muito rápido.

É importante continuar conversando, para manter Whitby calmo e respondendo às suas perguntas.

— Quanto tempo durou?

— Uma hora, talvez. Se eu soubesse que ela ia se desintegrar toda, teria chamado alguém.

— Com que se parecia a flor?

— Com uma flor comum, com sete ou oito pétalas. Translúcida, quase branca.

— Você tirou alguma foto? Fez algum vídeo?

— Não — responde ele. —Pensei que ela iria durar mais tempo. Não falei a ninguém depois, porque agora não resta nada.

Ou porque, sem nenhum tipo de prova, isso serviria como uma prova a mais contra ele, contra sua sanidade mental, sua funcionalidade, quando mal começava a recuperar sua reputação.

— E o que fez então?

Whitby encolhe os ombros, e a cauda do rato se agita quando ele o transfere para a mão direita.

— Eu programei uma purificação. Só para ter certeza. E fui embora.

— Você estava com a roupa protetora o tempo todo, não?

— Claro. Sim. Sem dúvida.

— Nenhuma leitura estranha depois?

— Não, nenhuma. Eu chequei.

— E não há mais nada que eu precise saber?

Como a possível conexão entre o fato de a planta ter florescido num dia e, no seguinte, Whitby estar ali com o seu rato.

— Nada que você já não saiba.

Já um pouco mais desafiador, erguendo os olhos para deixar você perceber que ele está pensando na viagem à Área X, aquela sobre a qual não pode falar para ninguém, que fez todo o resto do pessoal perder a confiança nele. Como avaliar alucinações que talvez fossem reais? Uma paranoia que acabasse sendo justificada? Logo depois que voltaram, você lembra de ter ouvido Whitby falar pensativo consigo mesmo, como se algo tivesse se perdido: “No começo eles não repararam em nós. Mas depois, gradualmente, passaram a nos espiar... porque nós não conseguíamos ficar parados.”

Você fica de pé, baixa o olhar para Whitby e diz:

— Quero um relatório detalhado, para minha leitura apenas, sobre essa planta. E você não pode ficar entrando no prédio com um rato, Whitby. Para começo de conversa, a segurança vai pegá-lo cedo ou tarde. Leve-o para sua casa.

Whitby e o rato estão agora olhando para você, é mais difícil de entender Whitby do que o rato, que deseja apenas se desvencilhar dos dedos dele e sumir.

— Vou guardá-lo no sótão — afirma ele.

— Faça isso.

* * *

De volta ao edifício, você vai à catedral de amostras e põe um traje de purificação, para não contaminar o ambiente nem ser contaminada por ele. Encontra a planta, que ostenta uma etiqueta falsa, onde se afirma que pertence à primeira das oitavas expedições. Você examina a planta, assim como a área em volta dela, o piso, procurando qualquer sinal deixado por uma flor ressequida. Não acha nada, somente um resíduo na lateral que um teste posterior revela ser resina de pinheiro de alguma outra amostra que era guardada ali previamente.

Você olha os resultados desses testes no escritório e fica imaginando se a planta florescera apenas na mente de Whitby e, em caso positivo, o que significa isso. Pensa por um longo tempo, até que o pensamento vai sendo soterrado pelos memorandos e as reuniões e as chamadas telefônicas e um milhão de emergências menores. Você acha que deve perguntar a Whitby se o rato o acompanhou quando ele fora à catedral das amostras. Mas tudo que faz é deixar a planta imortal sob vigilância vinte e quatro horas por dia, mesmo tendo que aguentar o diabo por causa disso, da parte de Cheney e Grace.

Whitby apenas precisa de companhia. Necessita de alguém que não o julgue e não o interrogue, alguém ou alguma coisa que dependa dele. E, desde que deixe em casa a criatura, no sótão, você não vai contar a ninguém sobre a violação da segurança — e a esta altura já está consciente de que, na mesma medida em que Lowry está amarrado a você, você está acorrentada a Whitby.

Jogando sinuca com a Corretora e o veterano, numa expedição ao Star Lanes uma semana depois, você presta atenção enquanto a mulher se refere ao episódio de um casal que invadiu uma casa, estava morando nela e se recusou a fornecer seus nomes, e isso faz você pensar em Whitby não querendo dar um nome ao rato. Como se ele quisesse seguir o protocolo do Comando Sul para as expedições.

— Eles acharam que, se eu não soubesse seus nomes, não poderia chamar a polícia. Espiando através das cortinas, como uns fantasmas. Havia uma história de fracasso tão grande ali, e não senti nenhum prazer em expulsá-los. O problema é que preciso vender a casa. Não tenho uma instituição de caridade. Faço doações, claro, mas, afinal, para que existem os abrigos de sem-teto, não é mesmo? E, se eu os deixasse lá, isso poderia acabar encorajando outros. Depois soubemos que eles já tinham passagem pela polícia, de modo que minha decisão foi a certa.

Você sabe que existe, em cima da sua escrivaninha no Comando Sul, uma pilha de fichas de candidatos para uma décima segunda expedição. No topo dela, a seu ver a ficha mais promissora de todas: uma bióloga antissocial, cujo marido fez parte da mais recente décima primeira.


0018: O FAROLEIRO

Chequei a segurança do farol. Trabalhei no [ilegível]. Consertei coisas. Devo jogá-las na fornalha, onde se ouvirão gemidos e ranger de dentes. Então veio o choro do canto de um maçarico e, ao amanhecer também, ouvi um piado de coruja, o regougo das raposas. Um pouco ao norte do farol, onde vaguei por algum tempo, um filhote de urso enfiou o focinho para fora das moitas e ficou olhando ao redor, como qualquer criança faria. E a mão do pecador irá se rejubilar, pois não há pecado na sombra ou na luz que as sementes dos mortos não possam perdoar.

Quando Saul chegou finalmente ao bar do vilarejo, o lugar já estava lotado, todos esperando o show de uma banda local chamada Monkey’s Elbow. O terraço, com sua vista magnífica do oceano escuro, estava deserto — fazia bastante frio —, e ele logo entrou de novo, na expectativa. Sentia-se melhor a cada dia que passava, depois da alucinação na praia, e ninguém na Brigada Leve tinha aparecido para aborrecê-lo. Sua temperatura estava mais baixa e a pressão no crânio diminuíra, bem como sua ansiedade para descarregar nas costas de Charlie todos aqueles problemas. Havia três noites que não sonhava. Até a audição estava boa, o momento em que seus ouvidos voltaram a funcionar tinha sido como um solavanco no seu corpo: mais energético em todos os aspectos. Então, tudo parecia normal, como se ele tivesse se preocupado demais por nada — e a única coisa de que sentia falta era a visão familiar de Gloria, vindo pela praia até o farol, ou brincando perto do barracão.

Charlie prometera se encontrar com ele no bar por algum tempo, antes de sair para sua pesca noturna; apesar dos horários corridos, ele parecia feliz por estar ganhando um bom dinheiro, mas havia vários dias que os dois mal se viam.

O Velho Jim, com aquele rosto avermelhado e as enormes suíças brancas cobrindo as bochechas, tinha mandado afastar o piano desconjuntado para o canto mais afastado do salão. O Monkey’s Elbow estava fazendo um aquecimento em volta dele, uma cacofonia discordante de violino, acordeom, violão acústico e pandeiro. O piano, resgatado do oceano, tinha sido restaurado à sua glória pré-naufrágio — toda a madrepérola da tampa fora preservada —, mas ainda conservava certo timbre de lata-velha, tinha algumas teclas “encharcadas e inchadas”, segundo o Velho Jim.

O lugar tinha o cheiro confortável de cigarro e peixe frito, e uma sugestão distante de um mel bem doce. As ostras eram frescas, e a cerveja, servida de um refrigerador, era barata. Saul sempre esquecia o lado negativo bem rápido. Ele se divertia ali, mesmo que às vezes com certo mau humor. Nunca se preocupara por saber que nenhum fiscal sanitário tinha penetrado na pequena cozinha improvisada do bar, ou na churrasqueira lá fora, onde as gaivotas se amontoavam cheias de uma esperança irreprimível.

Charlie já estava lá, tinha se apossado de uma pequena mesa redonda com dois bancos altos que puxara da parede oposta à do piano. Saul foi se enfiando entre o aglomerado de corpos, talvez umas sessenta pessoas, uma verdadeira multidão para os padrões do litoral esquecido, e deu um aperto no ombro do amante ao se sentar.

— E aí, estranho? — disse Saul, fazendo aquilo soar ainda pior do que já era.

— Vejam só, alguém aqui está de bom humor, camarada — comentou Charlie. Depois se corrigiu: — Bem, quero dizer...

— Não conheço nenhum camarada — interrompeu Saul. — Mas eu sei o que você quis dizer, sim. E na verdade estou... estou me sentindo muito melhor.

Era o primeiro sinal, da parte de Charlie, de que fora o problema de saúde de Saul que o trouxera, o que só fez aumentar sua afeição. Ele não havia se queixado nem uma vez durante todas as reclamações a respeito da letargia e dos sintomas, tinha apenas tentado ajudar. Talvez eles pudessem fazer as coisas voltarem ao normal, depois que as expedições de pesca fossem encerradas.

— Bom, bom — disse Charlie, sorrindo e olhando em volta, ainda demostrando certa estranheza nos gestos em público.

— Como foi a pesca ontem?

Charlie comentara algo sobre uma boa pescaria, mas não tinham falado muita coisa.

— A melhor até agora — respondeu Charlie, cujo rosto se iluminou. — Uma porção de arraias diferentes, e linguados. Alguns salmonetes e peixes de água doce.

Ele era pago por hora, com um bônus quando fossem apanhados peixes acima de certo peso.

— Alguma coisa estranha?

Uma pergunta que Saul sempre fazia. Ele gostava de ouvir a respeito de criaturas esquisitas do mar. Ultimamente, pensando nas coisas que Henry dissera, tinha começado a dar uma atenção especial às respostas.

— Uma ou duas só. Joguei na água de novo porque eram muito feias. Uns peixes sinistros e uma espécie de ascídia que parecia cuspir sangue.

— Muito bom.

— Sabe, você me parece bem melhor. Tudo tranquilo lá no farol?

Essa era a forma de Charlie falar: “Me conte por que no telefone você disse que ‘não tinha se divertido muito recentemente’.”

Saul estava prestes a entrar na história de seu confronto final com Henry e a Brigada Leve quando o piano foi silenciado e o Velho Jim se adiantou para apresentar o Monkey’s Elbow, mesmo num lugar onde todo mundo já os conhecia. Os integrantes da banda eram Sadi Dawkins, Betsey Pepine e o ajudante ocasional do farol, Brad. Todos trabalhavam de vez em quando ali no bar. Trudi, a mãe de Gloria, estava ao pandeiro, como convidada. Um dia seria a vez de Saul.

O Monkey’s Elbow começou a tocar uma canção densa, triste, exibindo nas letras toda a riqueza do oceano, falando de um casal de amantes infelizes e de uma colina trágica por cima de uma caverna secreta. O de sempre, mas era menos um cântico marítimo do que uma influência do que Charlie chamava de “hippies praianos cheios de areia”, que tinham popularizado uma espécie de música folk-pop relaxante e de fácil assimilação. Saul gostava de ouvi-los ao vivo, mesmo com Brad exagerando um pouco na performance. Mas Charlie ficou olhando para a bebida, franzindo a testa e tensionando os lábios, e depois revirou os olhos só para o amante, que balançou a cabeça num gesto cômico de desaprovação. Claro, a banda não era grande coisa, mas subir num palco sempre exige coragem. Saul costumava vomitar antes de fazer o sermão, o que, pensando bem, talvez fosse um sinal de Deus. Nas piores noites, fazia flexões de braço e polichinelos, para diluir o medo em suor.

Charlie se inclinou, e Saul se curvou para perto. Charlie falou bem no seu ouvido:

— Sabe aquele incêndio que houve na ilha?

— Sim?

— Um amigo meu estava pescando lá naquele dia e viu fogueiras. Algumas pessoas ficaram horas queimando papéis, como você disse. Mas quando ele passou novamente mais tarde, viu que estavam enchendo algumas lanchas com caixas. Sabe para onde elas seguiram?

— Para alto-mar?

— Não. Para oeste, acompanhando a costa.

— Interessante.

A única coisa que havia a oeste da Ilha do Fracasso, além de algumas enseadas pequenas e infestadas de mosquitos, eram um ou dois vilarejos e a base militar.

Saul recostou-se, apenas olhando para Charlie, que balançava a cabeça como se dissesse “eu não falei?”, embora o faroleiro não soubesse o que isso significava. Falou o quê, que eles eram esquisitos? Que não eram boa gente?

A segunda canção era um folk tradicional, lento, profundo, carregando consigo a bagagem de um ou dois séculos de interpretações prévias. A terceira, uma musiquinha mais animada e mais boba, também composição da banda, sobre um caranguejo que perdeu a casca e ficou viajando de um lugar para outro à procura dela. Àquela altura, alguns casais já dançavam. Na sua época de pastor, Saul não era do tipo que proibia a dança ou os outros “prazeres terrenos”, mas também não tinha aprendido a dançar. Essa era sua fantasia secreta, algo que imaginava ser agradável mas que já tinha arquivado sob a rubrica “tarde demais”. E, de qualquer modo, Charlie jamais seria capaz de dançar, nem mesmo a sós.

Sadi veio até a mesa deles durante um intervalo. Ela trabalhava num bar em Hedley durante o verão e sempre tinha histórias engraçadas sobre os clientes, muitos deles vindo dos passeios no rio “bêbados como um gambá”. Trudi se aproximou também, e eles conversaram por algum tempo, embora não diretamente sobre Gloria. Foi mais sobre o ex-marido da médica, e Saul ficou sabendo que a garota e o pai já tinham partido para a casa dele. Então estava tudo tranquilo.

Depois ficaram apenas ouvindo a música, aproveitando as pausas entre as canções para trocar algumas frases ou pegar mais cerveja. Saul examinou o salão em busca de alguém conhecido, alguém para quem pudesse acenar, com quem tivesse alguma relação, porque havia um tempo tinha a sensação não de estar observando, mas de ser observado. Atribuiu isso a algum sintoma residual de sua não condição, ou ao fato de parte da inquietude de Charlie estar passando para ele. Nesse momento, porém, através do borrão tumultuado dos corpos, da enchente de conversas a plenos pulmões, do som frenético da banda, ele divisou uma indesejável figura no lado oposto do salão, perto da porta.

Henry.

Estava totalmente imóvel, observando, sem ter sequer um drinque na mão. Usava a sua ridícula camisa de seda e calças sociais pretensiosas, bem passadas, e, no entanto, coisa curiosa, ele dava a impressão de se misturar à parede, como se fizesse parte dela. Ninguém além de Saul parecia notar a presença dele. O fato de Suzanne não estar com Henry produziu um pequeno abalo no faroleiro, por algum motivo. Fez com que ele resistisse ao impulso de mostrar a Charlie: “Olha, foi aquele cara que invadiu o farol algumas noites atrás.”

Durante o tempo em que Saul manteve o olhar sobre Henry, o perímetro do salão foi se tornando cada vez mais escuro, e aquele cheiro enjoado e doce cada vez mais forte, e todo mundo em volta do jovem ficou cada vez mais insubstancial — silhuetas vagas, irreconhecíveis — e toda a luz caía sobre Henry e se derramava sobre ele, e respingava de volta.

Uma espécie de vertigem arrebatou Saul, como se um vasto poço se abrisse por baixo e ele ficasse ali suspenso, prestes a cair. Voltaram de uma só vez todos os velhos sintomas que pensou terem acabado, como se tivessem apenas se escondido. Havia um cometa gotejando fogo ao longo de sua cabeça, derramando chamas pela sua espinha.

Enquanto isso, a banda continuava tocando no meio daquela treva, e o som coagulando, uma música tocada muito devagar, e antes que desaparecessem numa espiral faiscante, antes que tudo que não fosse Henry desaparecesse, Saul agarrou a mesa com as duas mãos e olhou em volta.

O vozerio, o zum-zum e o entrecruzar das vozes voltaram por inteiro, e a luz retornou, e a banda soou normal de novo, e Charlie estava falando com ele como se nada tivesse acontecido. A sensação de alívio que percorreu Saul foi tão palpável que o sangue correu muito forte e ele se sentiu desfalecer.

Depois de se restabelecer por um minuto, ousou dar uma olhadela na direção onde Henry tinha aparecido, porém ele já sumira e havia outra pessoa em seu lugar. Alguém que Saul não conhecia, mas que ergueu a cerveja fazendo-lhe uma saudação constrangida, e só então o faroleiro percebeu que o homem já o observava havia muito tempo.

— Escutou o que eu disse? — perguntou Charlie, acima do som da banda. — Você está bem?

Estendeu a mão e agarrou Saul pelo pulso, o que queria dizer que estava preocupado com o comportamento estranho de Saul, que sorriu e assentiu.

A música acabou e Charlie disse:

— Não foi por causa daquele papo sobre os barcos e a ilha, não? Não quero que fique preocupado.

— Não, nada disso. Não tem nada a ver com isso. Estou bem.

Ficou comovido, porque era o tipo de coisa com que Charlie se preocuparia, se os papéis dos dois estivessem trocados.

— Você me falaria se estivesse se sentindo mal novamente, não é?

— Claro que sim. — Uma meia mentira, ainda tentando processar o que acabara de acontecer. E depois mais sério, como que movido por algum tipo de premonição: — Detesto dizer isto, mas é bom você ir agora, ou vai se atrasar.

Charlie já estava se erguendo do banco ao ouvir isto, porque na verdade não gostava da música.

— Nos vemos amanhã, então — disse ele, com uma piscadela e um último e longo olhar que não foi totalmente inocente.

Por algum motivo Charlie pareceu ótimo naquele momento, vestindo o casaco. Saul lhe deu um abraço forte antes de ele partir. O peso daquele homem nos seus braços. A sensação da barba por fazer, de que gostava tanto. A surpresa ácida do protetor labial de Charlie em seu rosto. Segurou-o por um instante a mais, tentando guardar em si aquilo tudo, como um baluarte contra algo que acabara de acontecer. E então, cedo demais, ele sumiu, saiu pela porta, adentrou a noite, na direção do barco.


0019: CONTROLE

A noite estava cheia de coelhos brancos cruzando o céu, em vez das estrelas e da lua — e Controle soube que aquilo estava errado, em alguma parte febril do seu cérebro, algum compartimento ainda fechado contra o avanço implacável do brilho. Aquilo eram coelhos brancos ou eram manchas escuras em movimento, reproduzidas como negativos de fotos, dificultando sua visão? Porque não queria ver o que havia ali. Porque a bióloga tinha desencadeado alguma coisa dentro dele, e à sua mente retornava agora a imagem da arte bizarra feita por Whitby nas paredes do aposento estranho no Comando Sul, e depois a teoria dele de que cruzar a fronteira era adentrar um purgatório onde você poderia encontrar todas as coisas perdidas e não lembradas: todos os coelhos que foram empurrados através da barreira invisível, todos os contratorpedeiros atracados e todos os caminhões surpreendidos na noite da criação da Área X. Os mortos em ação durante todas as expedições. O pensamento era um abismo aniquilador. E, no entanto, havia também a luz que brotava do lugar abaixo do Rastejador, mencionada em detalhes no diário da bióloga. Aonde levava aquela luz?

Tentando catar no meio de todas aquelas peças e montar o que lhe parecesse uma escolha pelo menos razoável, talvez até honrosa. Uma com que mesmo seu pai pudesse concordar; já não pensava tanto na mãe, no que ela pudesse achar.

Talvez tudo o que eu queira é que me deixem em paz. Ficar naquela casa na colina de Hedley, com seu gato Chorizo e o reboliço dos morcegos à noite, não muito longe do lugar onde crescera, mesmo que agora tão distante.

— Não teria feito nenhuma diferença, Grace.

Vocês três estão dormindo em montes de agulhas de pinheiro, na grama molhada, a cerca de um quilômetro da anomalia topográfica, a arrancada final planejada para aquela manhã.

— O que não teria?

Delicada, talvez até simpática. O que deu a ele a medida de como estava mal. Não parava de ver os mil olhos da bióloga, que viravam estrelas, que viravam luminosidades brancas saltitando. Que viravam um tabuleiro de xadrez e, nele, a última jogada de seu pai congelada. Assim como o último movimento de Controle, ainda por vir.

— Se você tivesse me contado tudo. Lá no Comando Sul.

— É, não teria.

A Ave Fantasma dormia bem ao seu lado, e isso, também, o ajudou a perceber ainda mais o próprio declínio. Deitada às suas costas, protegendo-o, os braços envolvendo-o com firmeza. Ali estava seguro, e ele a amou ainda mais por se permitir aquilo agora, quando a Ave Fantasma tinha cada vez menos motivos, ou até nenhum.

A noite ficou fria e profunda, e nas suas extremidades amontoavam-se criaturas que observavam o grupo, sombras silenciosas e paradas. Mas Controle não lhes dava atenção.

Certas coisas que o pai lhe contara retornavam a ele com mais força agora, porque tinham acontecido. O pai estava dizendo: “Se você não conhecer bem a sua paixão, ela vai confundir sua cabeça, não seu coração.” Num momento de honestidade, depois do fracasso no campo, quando só podia falar com o pai a respeito disso usando enigmas, nunca lhe contando a verdade: “Às vezes a gente tem que saber quando passar para a próxima coisa, pelo bem dos outros.”

Que calafrio existia ali. A próxima coisa. O que viria a seguir? Qual era a sua paixão? Ele não sabia a resposta para nenhuma das perguntas, sabia apenas do conforto que havia no roçar áspero das agulhas de pinheiro no seu rosto e no cheiro defumado do barro úmido.

* * *

A manhã veio, e ele se aconchegou nos braços da Ave Fantasma até que ela estremeceu e desvencilhou-se num gesto que pareceu bem conclusivo. Por entre os juncos e os pântanos sem fim, por entre a lama, chegavam indícios de horizontes em chamas, e um pipocar e um ruído que podiam ser de armas de fogo ou alguma lembrança de conflitos recentes brotando dentro de sua cabeça.

Apesar disso, a mesma garça-azul no estuário bicava os girinos e os peixes pequenos, e o abutre planava nas camadas mais quentes, lá de cima. Mil ruídos brotavam de cada bloco de árvores. Por trás delas, no horizonte, dava para ver o farol, que na verdade podia ser avistado o tempo inteiro, mesmo através da neblina que se formava ao amanhecer: ora difuso e pouco claro, ora sólido, erguendo-se como uma defesa natural quando preciso, um teste e uma bênção junto à paisagem. Ser capaz de apreciar coisas assim tinha sido o presente da Ave Fantasma a Controle, como se tivesse gotejado para dentro dele por meio de um simples toque.

Mas o mundo não natural interferiu, como sempre faz, contanto que existam vontade e propósito, e por um momento ele se ressentiu disso. A Ave Fantasma e Grace estavam discutindo o que fariam caso encontrassem remanescentes das tropas da guarda da fronteira. Discutindo o que fariam quando chegassem à torre.

— Eu e você descemos — disse Grace. — E Controle pode tomar conta da entrada.

Esse último confronto, essa tarefa desesperada.

— Eu deveria ir sozinha — falou a Ave Fantasma — e vocês dois ficariam de guarda em cima.

— Isso seria contra o protocolo das expedições.

— É isso que você quer aplicar aqui? Agora?

— O que mais resta para ser aplicado? — perguntou Grace.

— Vou descer sozinha — disse a Ave Fantasma, e a diretora assistente não respondeu.

Tática, não estratégia, uma frase do seu catálogo de favoritas. Parecia tão obsoleta quanto o resto, como o quadro absurdamente grande daquelas bicicletas antigas.

Ele continuou erguendo os olhos para o alto, esperando que aquele céu pesado se diluísse e revelasse a verdadeira posição deles. Mas a ilusão permaneceu no lugar, muito convincente. E se a bióloga estivesse errada? E se ela, na hora em que escrevia suas coisas, estivesse lunática, delirando sem se incomodar com nada? E se depois virasse um monstro? E então?

Levantaram acampamento, usando algumas árvores do pântano como proteção inicial e para examinar dali toda a área, por onde se estendiam as águas do estuário. A fumaça agora se erguia em ângulo de sessenta graus, somando sua própria cinza prateada à neblina, criando uma brancura mais pesada. Essa mistura obscurecia o restante do céu e fazia sobressair a linha crepitante de fogo no horizonte, paralela a eles: ondas de chamas alaranjadas brotando de núcleos de ouro.

A quietude de estanho da água lenta do canal à frente deles refletia as linhas das labaredas e o desabrochar da fumaça, assim como os juncos mais próximos, e ainda duplicava a ilha, que no seu ponto mais elevado exibia carvalhos e palmeiras, com troncos que eram como linhas brancas perdidas entre farrapos de neblina.

Ouviram-se gritos e berros de dor e tiros — todos muito próximos, todos vindo daqueles blocos de árvores, ou talvez fosse algo que Lowry tinha plantado em seu cérebro. Algo que ocorrera ali havia muito tempo vindo à tona. Controle manteve os olhos no reflexo, onde homens e mulheres em uniforme militar atacavam uns aos outros, enquanto lá no alto alguma coisa impossível observava do céu claro. Distanciado assim, distorcido, tudo parecia menos vívido, menos visceral.

— Eles já estão em outro lugar — disse Controle, embora soubesse que Grace e a Ave Fantasma não iam entender.

Estavam todos no reflexo, através do qual nadava agora um crocodilo. Onde voava agora um pica-pau por entre as árvores, alheio a tudo.

E assim os três continuaram, ele com aquele mal-estar que não queria mais que fosse diagnosticado, Grace mancando e a Ave Fantasma fechada em seus pensamentos.

Não havia nada a fazer, e nenhum motivo para fazer algo: o caminho passaria ao largo do incêndio.

* * *

Na imaginação de Controle, a entrada para a anomalia topográfica era algo enorme, meio influenciada, em seus pensamentos, pelo corpo gigantesco da bióloga, de modo que ele esperava avistar um imenso zigurate invertido penetrando na terra. Mas não, era o que sempre tinha sido: com um pouco mais de vinte metros de diâmetro, circular, situada no meio de uma pequena clareira. A entrada estava escancarada diante deles, como estivera para tantos outros. Não havia soldados e nada mais incomum do que a anomalia propriamente dita.

Na entrada, ele disse às duas o que aconteceria em seguida. Na sua voz havia apenas a sombra da autoridade do diretor do Comando Sul, mas nela jazia uma espécie de resistência.

— Grace, você vai ficar aqui em cima, montando guarda com os rifles. Há muitos tipos de perigo em volta, e não queremos ficar presos lá embaixo. Ave Fantasma, você vem comigo, guiando o caminho. Eu vou segui-la, um pouco mais atrás. Grace, se não voltarmos em três horas — o máximo de tempo registrado pelas expedições anteriores —, você está livre de qualquer responsabilidade que diga respeito a nós dois.

Se havia um mundo para onde era possível retornar, a pessoa sobrevivente devia ter algo para o qual voltar.

Elas o encararam, e Controle achou que iriam discordar, iriam se insurgir contra ele e, nesse caso, estaria perdido. Seria deixado ali fora, no alto.

Mas esse momento nunca veio e um alívio quase debilitante se irradiou por ele quando Grace assentiu e disse que tivessem cuidado, dando conselhos repetidos que Controle mal ouviu.

A Ave Fantasma ficou parada a certa distância, com uma expressão curiosa. Lá embaixo, ela iria experimentar a derradeira duplicação de experiências com a bióloga, e disso ele não poderia protegê-la.

— Apeguem-se ao que tiverem agora nas suas mentes, seja lá o que for — disse Grace. — Porque talvez não reste mais nada depois que vocês forem lá para baixo.

O que haveria na sua mente, e de que maneira isso iria afetar o resultado? Porque o objetivo dele não era alcançar o Rastejador. Porque ele imaginava o que mais podia estar contido no brilho que trazia dentro de si mesmo.

Começaram a descer a torre.


0020: A DIRETORA

Sobre a sua mesa está o inútil relatório de Whitby a respeito da flor no momento em que você se levanta e sai para mais uma entrevista pré-expedição com a bióloga; os possíveis candidatos para a décima segunda expedição já se reduziram a dez, e você, Grace e Lowry estão fazendo pressão para a escolha dos favoritos de cada um, com os membros do setor de ciência agitando-se nos bastidores e lhe cochichando os nomes que preferem. Severance parece terminantemente desinteressada por essa questão.

Não é um bom momento para entrevistar alguém, mas você não tem escolha. A planta está brotando de novo em sua mente enquanto você conduz a conversa num pequeno escritório atravancado na cidade da bióloga — um lugar que pediu emprestado para fingir que é seu, com todos os livros adequados de psicologia e psiquiatria enfileirados nas estantes. Os diplomas e as fotos de família do verdadeiro ocupante foram removidos. Numa concessão feita a Lowry, para os seus estudos, você permitiu que a equipe dele trocasse cadeiras, luminárias e outros elementos do aposento, como se redecorá-lo e mudar suas cores de plácidos verdes e azuis para vermelho e laranja, ou cinza e prata, pudesse fornecer a resposta para alguma questão mais ampla.

Lowry alega que seus arranjos e recombinações podem ter um efeito “subliminar ou instintivo” sobre os candidatos.

— Para que se sintam seguros e à vontade? — perguntou você, num dos raros momentos em que cutuca a onça com vara curta, mas ele a ignora, e na sua mente responde: “Para obrigá-los a fazer o que nós queremos.”

Ainda resta aquele cheiro de inundação, de um cano que estourou no porão. Há uma mancha de água num canto, escondida por uma mesinha, como que para ocultar a prova de um crime. O único indício de que aquele não era o seu escritório está no fato de você ficar muito apertada na cadeira.

A planta continua florescendo em sua mente e, cada vez que isso acontece, há menos tempo para agir, menos coisas que você pode fazer. A planta é um desafio ou um convite ou uma distração sem importância? Uma mensagem? E se for, o que significa, supondo que não seja tudo imaginação de Whitby? A luz no fundo de uma anomalia topográfica, de uma passagem para a Área X, ou sobre uma carta de tarô usada pela Brigada da Paranormalidade e da Ciência. A luz desabrochada de uma ressonância magnética de corpo inteiro, como a que você fez semana passada.

No meio de tudo aquilo que floresce em sua mente — o tipo da coisa que faria Grace elaborar uma piada se ao menos você pudesse lhe contar tudo —, ali, cavalgando o mundo, está a bióloga: um talismã que chega justamente quando as portas estão se fechando de novo e seu tempo se torna mais limitado.

— Diga o seu nome, para a gravação.

— Eu já falei na última vez.

— Mesmo assim.

A bióloga a olha como se você fosse uma antagonista, não a pessoa que pode enviá-la para o lugar aonde ela obviamente quer ir. Você observa de novo não só a musculatura da mulher, mas o fato de que está disposta a complicar até mesmo a tarefa simples de dizer o próprio nome. E o fato de que tem uma espécie de serenidade que não vem apenas de saber quem é, mas de saber que, se for o caso, não precisa de ninguém mais. Alguns profissionais podem ver nisso um tipo de desordem, mas na bióloga é algo que aparece com uma claridade absoluta e sem concessões.

“Fale-me sobre os seus pais.”

“Quais são as suas lembranças mais antigas?”

“Você teve uma infância feliz?”

Todas as respostas costumeiras e tediosas, e as respostas bruscas dela são tediosas também, de certo modo. Mas depois começa a parte mais interessante.

— Já teve pensamentos ou tendências violentas? — pergunta você.

— O que considera um ato violento? — replica ela.

Uma tentativa de fuga, ou um interesse genuíno? Você aposta no primeiro.

— Fazer mal a outras pessoas ou a animais. Causar danos elevados à propriedade alheia, como incêndio proposital.

A Corretora no Star Lanes tem dezenas de histórias de violências contra casas, e se refere a todas elas com rispidez. A bióloga provavelmente classificaria a mulher como pertencente a uma espécie alienígena.

— As pessoas são animais.

— Violência contra animais, então?

— Somente contra animais humanos.

Ela está tentando enrolar ou provocá-la, mas a verdade é que as investigações cruzadas e as pesquisas do setor de inteligência revelaram alguns fatos interessantes que você não foi capaz de confirmar. Enquanto era estudante de graduação na Costa Oeste, a bióloga tinha feito um estágio como inspetora florestal num parque nacional. Seus dois anos lá coincidiram aproximadamente com o que foi chamado “terrorismo ecológico”. No caso mais sério de todos, três homens foram violentamente espancados por “um agressor que usava máscara”. A razão, de acordo com a polícia: “as vítimas tinham atormentado uma coruja, espetando-a com um pau e tentando tocar fogo às suas asas.” Não se localizou nenhum suspeito, e ninguém foi preso.

— O que você faria se os outros membros da sua expedição exibissem tendências violentas?

— O que precisasse ser feito.

— Isso incluiria matar alguém?

— Se chegasse a esse ponto, eu teria que fazê-lo.

— Mesmo que fosse eu?

— Principalmente se fosse você. Porque essas perguntas são um tédio.

— Mais tediosas do que seu emprego trabalhando com plástico?

Isso a faz diminuir o ritmo.

— Eu não estou pensando em matar ninguém. Nunca matei ninguém. Estou pensando em coletar amostras. Estou pensando em aprender o máximo possível e neutralizar qualquer um que não siga os parâmetros da missão.

Aquela tensão na voz de novo, o ombro projetado para dentro, para a frente, na sua direção, para bloqueá-la. Se fosse uma luta de boxe, viria um golpe de baixo para cima, contra o rosto, ou visando o corpo.

— E se acontecer de você ser a ameaça?

A bióloga ri ao ouvir aquilo, e lhe dá um olhar tão direto que você desvia a vista.

— Se eu sou a ameaça, então eu não vou ser capaz de deter a mim mesma, não acha? Se eu sou a ameaça, acho que então a Área X ganhou.

— E quanto ao seu marido?

— O que é que tem meu marido? Ele morreu.

— Tem a esperança de encontrá-lo na Área X?

— Tenho esperança de encontrar a Área X na Área X. Tenho esperança de ser útil.

— Isso não é meio insensível?

Ela se inclina para a frente, mais uma vez a encara com aquele olhar, e você tem que se esforçar para manter a pose. Mas tudo bem, tudo bem quanto a antagonismo. Na verdade, acha útil qualquer coisa que ajude a bióloga a rejeitar traços de corrupção que você possa ter adquirido, traços aderidos inconscientemente.

Ela diz:

— Não é correto que você, uma total estranha para mim, queira projetar em mim as emoções que considera apropriadas. Que pense que pode entrar na minha cabeça.

Você não pode comentar com ela que os outros candidatos foram de leitura bastante fácil. A topógrafa deverá ser o eixo, a coluna vertebral da expedição, nem um pouquinho passivo-agressiva. A antropóloga fornecerá empatia e nuances, embora você ainda não saiba se o desejo dela de provar alguma coisa é um ponto positivo ou negativo. Ela será capaz de ir mais longe e fazer mais esforço por causa disso, mas o que a Área X pensará? A linguista fala demais, tem pouca introspecção, mas é dos quadros do Comando Sul e demonstrou lealdade absoluta em mais de uma ocasião. É a favorita de Lowry, com tudo que isso implica.

Antes da entrevista, você esteve com Whitby, com quem discutiu isso, em meio à desordem crescente do seu escritório. Falou mais sobre a bióloga, a importância de mantê-la paranoica, isolada e antissocial, e como há uma mudança na bioquímica do cérebro, produzida por meios naturais, que pode ser o resultado que as experiências secretas de Lowry estão tentando induzir artificialmente — e como o marido dela já tinha ido à Área X, fora “lido por ela”, isso representa uma oportunidade única “em termos de parâmetros” por causa “dessa conexão”, porque “isso nunca ocorreu antes”. Ou seja, em certo sentido, a bióloga já tinha criado uma relação com a Área X antes mesmo de pôr os pés lá. Isso pode conduzir ao que Whitby chama de “precognição terroir”.

Uma expedição à Área X com a bióloga seria diferente de uma expedição com Whitby. Você não seria a líder, a não ser pelo comportamento da adolescência, quando andava um pouco à frente do seu pai para não parecer que estava acompanhada por ele, mas sempre olhando para trás, na direção dele, para ver aonde ele estava indo.

Enquanto o interrogatório continua, você fica cada vez mais certa sobre aquele palpite. Aquilo lhe traz à lembrança a Área X. A bióloga faz você se lembrar de quando esteve lá.

* * *

O resto da documentação dela é de tirar o fôlego pelo foco, pela estreiteza, mesmo assim revelando-se fecundo. Você cruza o deserto com a bióloga, num pequeno carro, para verificar os buracos feitos por corujas. Depois, está perdida num platô que se ergue sobre um litoral intocado, onde passeia o puma, um lugar onde a relva é dourada e lhe chega até os joelhos, e as árvores são enegrecidas pelo fogo e prateadas pela cinza. Está escalando uma montanha pela encosta coberta de mato, subindo em grandes blocos de pedra, cada músculo das pernas protestando, ainda que você esteja possuída por uma vertigem selvagem que a faz continuar se movendo mesmo após a exaustão. Você está de volta com a bióloga ao primeiro ano de faculdade, quando ela fez à companheira de quarto uma rara confissão, disse que precisava de isolamento, mudou-se no dia seguinte para um cômodo só seu e todos os dias caminhava oito quilômetros do campus para casa em absoluto silêncio, fazendo contato com o mundo através de um buraco na sola do sapato.

Você está certa de que vai ter que dar algo a Lowry para mantê-lo longe da bióloga, mas seja qual for o preço, decide que vai pagar, sim, você toma essa decisão no momento em que pede um uísque, para variar um pouco, no balcão do Chipper’s — paga um uísque para cada pessoa presente, para variar um pouco, para os quatro de sempre. Porque é tarde, porque é dia de semana, porque o bar está ultrapassado e a clientela, cada vez mais velha. Como você. O médico disse que seu câncer desabrochou de vez nos ovários e vai chegar ao fígado em um piscar de olhos, antes que você se acostume com a ideia. Mais uma coisa que não há necessidade de ninguém saber.

— E antes que pudéssemos começar a pensar em vender aquela casa — a Corretora estava narrando —, arrancamos umas dez camadas de papel de parede. Tudo que a mulher havia feito durante uma década foi colar papel de parede por toda parte. Era uma quantidade absurda, e todos berrantes, como se ela estivesse botando sinais de advertência. Embrulhando a casa de dentro para fora. Vou dizer uma coisa: nunca vi nada como aquilo.

Você assente sorrindo, sem nada para acrescentar, nada para falar, mas feliz só de estar escutando. Terminantemente interessada.

É apenas um bom e velho câncer, dos normais, nada daquilo que assaltou brutalmente todos da última décima primeira expedição. É só a velha vida acertando as contas com você, tentando matá-la, e você pode escolher entre fazer uma quimioterapia agressiva e largar o Comando Sul e acabar morrendo mesmo, ou se segurar aqui tempo bastante para se juntar à décima segunda expedição e, com a bióloga ao seu lado, cruzar a fronteira pela derradeira vez. Você já guardou segredos antes. Que diferença faz mais um, o último?

Além disso, outros segredos, muito mais interessantes, estão se abrindo, porque Grace finalmente encontrou alguma coisa a respeito de Jackie Severance. Há muita sujeira, inclusive o escândalo envolvendo o filho dela — uma missão desperdiçada que resultou na morte de uma mulher —, mas até agora nada que fizesse diferença. Numa lista altamente secreta, não dos arquivos dos casos em aberto de Jackie, mas dos encerrados de Jack — o que faz sentido, porque com ele é bem mais fácil: está aposentado, com setenta e poucos anos, e as coisas em que trabalhou estão registradas apenas em formulários de papel.

— Olhe para este item na quinta linha — orienta Grace, quando estão no terraço, depois de uma vasculhada rápida por grampos.

Vocês nunca acharam nenhum, mas valia a pena ter cautela.

A linha dizia:

Pagamento solicitado — SE, Projeto Soro Êxtase

— Mais alguma coisa?

Aquilo não é bem o esperado, mas você acha que sabe do que se trata.

— Não, é só isso. Pode haver mais, porém o resto dos arquivos desse período sumiu. Esta página não era nem para estar lá.

— O que acha que significa Soro Êxtase?

— No protocolo desse período, supõe-se que não queira dizer nada. Provavelmente um nome gerado aleatoriamente.

— É inconsistente — diz você. — Não é nem sequer “BP&C”.

— É a porra do papel de arroz. Pode não significar nada, mas...

Mas se, de algum modo, a BP&C estivesse na folha de pagamento da Central — um pouquinho só, uma espécie de projeto paralelo — e Jack dirigisse as operações, se Jackie soubesse de tudo a respeito e a BP&C tivesse desempenhado um papel, qualquer que fosse, na criação da Área X...

Uma porção de “se”. Um monte de lapsos. Uma infinidade de pesquisas para Grace.

No entanto, é o quanto basta para você começar a imaginar um motivo para o novo aliado de Lowry ser Jackie Severance.


0021: O FAROLEIRO

...voltei ao jardim, [ilegível], e mantive o machado em meu poder, por via das dúvidas. Pouco comum com ursos-negros, mas não desconhecido. Gaios, tordos, pardais, as mais humildes das criaturas de Deus. Sentei ali e os alimentei com migalhas de pão, porque eram umas coisinhas de pelos arrepiados e muito necessitadas. Vou fazê-los procriar, como se diz...

Saul ficou no bar do vilarejo até o apagar das luzes, não sabendo ao certo se era porque queria testar a disposição de Brad, ou porque receava sair e encontrar Henry. Ou porque estava triste pela partida de Charlie.

Desse modo, entornou mais duas cervejas, atribuiu à bebida a sensação de que a sala se mexia e pediu umas ostras e um peixe com batatas fritas. Sentia uma fome que era rara nele. Não tinha muito interesse por comida, mas naquela noite estava faminto. As ostras foram servidas na própria água salgada, tiradas das cascas e cozidas no vapor, e ele não se deu o trabalho de mergulhá-las no molho antes de engoli-las inteiras. Depois caiu sobre o peixe frito, que se desfez em camadas nas suas mãos, o calor se desprendendo junto com o cheiro de fritura, que lhe enchia a boca d’água. As batatas, cortadas fininhas, ele mergulhou em ketchup, e foram fazer companhia ao peixe. Ele estava frenético em seu banquete, consciente de que babava, enchendo a boca, as mãos se mexendo num frenesi, num ritmo pouco natural, mas não conseguia parar.

Pediu outro peixe com fritas. Pediu outra porção de ostras. Outra cerveja.

Depois do último número, os músicos ficaram por ali, mas a maior parte dos demais foi embora, inclusive Trudi. O mar negro e o céu do outro lado da janela pareciam espreitar pelo vidro, enquanto os rostos desfocados e as garrafas de bebida por trás do balcão eram refletidas nos olhos de Saul. Agora tinha ficado apenas o Velho Jim dedilhando o piano, com outros músicos batendo papo, e tão pouca gente que ele era capaz de escutar a pulsação do mar de novo, podia reconhecê-la como uma mensagem sutil ressoando ao fundo. Ou então era alguma coisa pulsando dentro da sua cabeça. Seu olfato estava mais apurado, e aquele odor de mel estragado, que parecia vir da cozinha, era como um perfume borrifado pelo salão. Um latejar que se costurava às notas do piano se encaixou naquela cadência, na mesma batida.

Detalhes banais assumiam proporções extraordinárias. O verme de cinzas esbranquiçadas saindo de um cinzeiro na mesa vizinha à dele, cada um daqueles flocos ardendo por si, subindo soltos no ar, e no centro um ponto de vermelho latejante, que pulsava na direção dele como uma luz de freio. Perto da cinza via-se a mancha gordurosa de uma impressão digital, imortalizada pela pátina durante a imolação de centenas de cigarros. Ao lado dela, os sinais de uma tentativa de rabiscar alguma coisa na lateral do cinzeiro, uma tentativa que não tinha ido além de um J e um A.

O piano começou a tocar notas discordantes, ou seria apenas seu ouvido escutando melhor... ou pior? Sentado no banquinho, costas apoiadas na parede, cerveja na mão, ele avaliou essa ideia. Avaliou o modo como as vozes das pessoas estavam ficando confusas, como que misturadas, e aquela vibração que se erguia por baixo de sua pele, a vibração e o zumbido e aquele zunido nos tímpanos. A sensação era de que alguma coisa vinha de muito longe na direção dele, para ele, para dentro dele. A garganta estava seca e áspera. A cerveja estava com um gosto estranho. Ele a largou, olhou em volta pelo salão.

O Velho Jim não conseguia parar de tocar o piano, embora o fizesse muito mal, batendo os dedos com muita força nas teclas, teclas já com manchas vermelhas do sangue dele, quando ele começou a berrar uma canção que Saul nunca tinha escutado, de letra incompreensível. Os outros músicos, quase todos sentados em volta do Velho Jim, deixaram os instrumentos cair das mãos frouxas e olhavam uns para os outros como se chocados. Chocados com o quê? Sadi soluçava e Brad dizia: “Por que você está fazendo isso? Por que diabo você faz isso?” Mas a voz dele saía do corpo de Sadi, e havia sangue gotejando da orelha esquerda de Brad, e as pessoas estavam caídas sobre o balcão do bar... estavam assim um instante antes? Estavam bêbadas, ou mortas?

O Velho Jim saltou da cadeira e ficou de pé, sem parar de tocar. Estava alcançando um crescendo caótico, gritando, soltando guinchos e uivos, com os dedos sendo destruídos de junta a junta enquanto o sangue salpicava todo o piano, molhando sua roupa, pingando no chão.

Alguma coisa pairava acima de Saul. Alguma coisa emanava dele, era transmitida através dele, numa frequência alta demais para que pudesse ouvir.

— O que você está fazendo comigo?

— Por que você está olhando para mim?

— Pare de fazer isso.

— Eu não estou fazendo nada.

Alguém se arrastava pelo piso do bar, ou rastejava, porque as pernas não funcionavam. Alguém batia com a cabeça no vidro escuro perto da porta da frente. Sadi torcia o corpo, girava e se debatia no chão, esbarrando nas pernas das mesas e das cadeiras, começando a se desfazer em pedaços.

Lá fora, a noite reinava absoluta. Não havia luz. Não havia luz. Saul ficou de pé. Andou até a porta, e a nuvem de barulho da canção incompreensível do Velho Jim deixou de ser um rugido, virou um fio de som cada vez mais fino.

O que havia além da porta ele não sabia, desconfiava da treva tanto quanto do que estava por trás, mas não podia continuar ali no bar, fosse aquilo real ou alguma alucinação que estava tendo. Tinha que sair.

Girou a maçaneta, saiu para o clima frio da noite, do estacionamento.

Tudo estava no lugar certo, tão normal quanto possível, e não havia ninguém à vista. Mas tudo atrás dele, tudo lá dentro estava descontrolado, errado, e de um modo irreparável demais para que alguém pudesse dar um jeito. O barulho estava pior, e agora havia outras pessoas gritando, produzindo sons que não podiam ser gerados por uma boca humana. Ele encontrou, por fim, a caminhonete. Conseguiu enfiar a chave na ignição, engatar a ré, sair do estacionamento. Seu refúgio era o farol, a menos de um quilômetro dali.

Não olhou o retrovisor em nenhum momento, não quis ver nada que pudesse se derramar pelo resto da noite. As estrelas estavam tão distantes e, ainda assim, tão próximas, no negror do céu que o cobria.


0022: AVE FANTASMA

Durante a maior parte da descida, veio à mente da Ave Fantasma uma estranha sensação de estar retornando a algo que já conhecia, mesmo que tivesse vivenciado aquilo através de outra pessoa — a memória de estar se afogando, de um afogamento sem fim, de arrancar aquelas palavras pouco confiáveis do diário da bióloga, o fim de tudo que ela havia encontrado, do que havia sofrido, do que tinha conseguido resgatar. E a Ave Fantasma não queria nada daquilo — tampouco queria ser seguida por Controle. Ele não tinha preparo para aquilo, o plano não previa que passasse por aquilo. Você não podia se sacrificar a entrar na Área X, podia apenas desaparecer tentando, e não ter certeza sequer disso.

Se a bióloga não tivesse se inclinado para ver de perto aquelas palavras, seu duplo poderia não ter existido assim: cheia de lembranças e se infiltrando nas profundezas. Podia ter retornado com a mente zerada, e sua diferença não seria expressa pelo seu papel como bióloga, mas como uma função do tempo certo ou do lugar errado, o lugar certo ou o tempo errado.

Um consolo tão estranho, o fato de as palavras na parede serem as mesmas, assim como o método de expressá-las, embora ela agora pudesse interpretá-las como uma alusão nostálgica a um ecossistema alienígena, uma abordagem ou um preparativo que o Rastejador e a torre, combinados, não tinham conseguido impor à Terra. Porque não era viável? Porque não era esse o seu propósito — e, portanto, dava a eles, em vez disso, esses indícios indiretos do lugar de onde vinha, do que pretendia, do que pensava?

Ela rejeitara uma máscara cirúrgica e a ideia de que a Área X de algum modo estivesse concentrada ali, naquele espaço apertado, naqueles degraus, na fosforescência daquelas palavras às quais havia se tornado tão familiarizada. A Área X estava ao redor deles; não estava contida num só lugar ou num só ícone. Era a disfunção no céu, era a planta a que Controle tinha se referido. Era os céus e a terra. Podia interrogar você de qualquer posição ou de posição nenhuma, e você talvez nem reconhecesse na ação dela uma pergunta.

A Ave Fantasma não se sentiu poderosa quando começaram pelo clarão luminescente, a mão de encontro à parede da direita, mas ela não tinha medo.

* * *

Veio então a superposição dos sons, tanto na memória quanto no momento: o zumbido profundo e o giro pesado de um poderoso mecanismo, ou a batida de um coração, e ela soube que Controle também estava escutando, podia adivinhar do que se tratava. Moveram-se com rapidez, descendo até o ponto de onde não havia retorno possível: aquele momento em que iriam ver o monstro e medi-lo. Ele estaria deitado, assim que virassem a esquina.

— Quero que você fique aqui — disse a Controle, a John.

— Não — retrucou ele, como ela sabia que iria fazer. — Não. Eu não vou esperar.

Havia uma inesperada doçura na expressão dele. Uma espécie de cansaço resoluto em sua voz.

— John Rodriguez, se você vier comigo, não vou poder protegê-lo de nada. Você vai ter que ver tudo. Seus olhos vão estar abertos.

Ela não podia lhe negar o nome dele, ali, ao final de tudo. Não podia lhe negar o direito de morrer se fosse o caso. Não havia mais nada a dizer.

Arrastando suas lembranças, arrastando Controle, a Ave Fantasma desceu em direção à luz.

* * *

O Rastejador era enorme, parecia estar se erguendo, e que nunca ia acabar de se erguer, expandindo-se para todos os lados até preencher todo o campo de visão da Ave Fantasma. Não havia nenhuma das distorções que recordava, nenhuma reverberação de retorno dos seus próprios medos ou desejos. Ele simplesmente se apresentou como uma revelação aos olhos dela, tão imenso, tão chocantemente concreto.

A superfície do seu corpo, que tinha o feitio de um sino, era translúcida, mas tinha uma textura estranha, como a água que congelou enquanto fluía e acabou com formato de pólipos que pareciam dedos. Por baixo dessa superfície translúcida, uma segunda superfície se revolvia lentamente, e no interior dessa centrífuga ela podia ver padrões de imagens passando, como se houvesse ali uma pele por dentro, e o material que a cobria fosse algum tipo de couraça macia.

Havia algo de hipnotizante naquele movimento, um primo distante do hipnotismo da diretora, e ela não ousou demorar o olhar ali por muito tempo.

O Rastejador não tinha traços discerníveis, não tinha um rosto. Movia-se tão devagar enquanto burilava as letras na parede que dava a impressão de fazer algo muito delicado, e os mistérios de sua locomoção estavam ocultos por baixo da borda de carne que se derramava pelo chão. O braço esquerdo, seu único braço, situado na metade superior do corpo, se mexia com infalível precisão, tão rápido que mal se via, criando a mensagem na parede, mais como um soldador do que como um escritor — com uma cascata de faíscas que ela sabia serem tecidos isolados se acendendo. O braço era o agente da mensagem, e daquele instrumento fluíam as letras. De onde jaz o fruto asfixiante que veio da mão do pecador eu trarei as sementes dos mortos. Se algum dia ele tinha sido humano, então aquele braço que escrevia, manchado pela marga e pelo musgo, era tudo que restava da sua humanidade.

Três anéis orbitavam o Rastejador, todos no sentido horário, e de vez em quando ondas de energia eram descarregadas entre eles e reverberavam por todo o corpo. O primeiro anel girava em ciclos ébrios com aparência de sonho: uma fileira irregular de meias-luas. Pareciam delicadas águas-vivas, com tentáculos brancos emplumados que se contorciam em uma busca constante por algo que nunca encontrava. O segundo anel, que girava um pouco mais depressa logo acima do braço que escrevia, lembrava um cinturão largo feito de pequenas pedras negras bem agrupadas que, quando batiam umas nas outras, cediam de maneira esponjosa, e lembravam a ela girinos macios ou então as criaturas que tinham chovido do céu durante o trajeto deles para a ilha. Que funções esses anéis desempenhavam, fossem elas parte da anatomia do Rastejador ou uma espécie simbiótica, ela não fazia ideia. Sabia apenas que ambos eram, cada qual à sua maneira, tranquilizadoramente corpóreos.

Mas o terceiro anel, com aspecto de halo acima do Rastejador, não a tranquilizou nem um pouco. Os globos de ouro, que se moviam com grande velocidade, eram entre dez e doze; pareciam ao mesmo tempo mais leves e mais pesados que o ar. Giravam a uma velocidade feroz, de modo que a princípio ela não pôde discerni-los que eram. Mas sabia que eram perigosos, e que ali talvez se aplicassem as palavras defesa e agressão.

Talvez o faroleiro tivesse sido sempre uma ilusão, uma mentira desenhada pela Área X e refletida para a mente da bióloga. E, mesmo assim, a Ave Fantasma desconfiava também desse avatar, dessa fantasia de monstro, dessa roupa de borracha feita para o consumo dos cientistas: algo tão preciso, tão específico. Ou talvez a verdade, porque seu aspecto não flutuava nem se transformava noutra coisa.

— Não é mais do que um filme de terror — disse a Ave Fantasma a Controle, tão parado e silencioso atrás dela, absorvendo aquilo tudo, ou sendo absorvido.

O que mais podia fazer? Deu um passo adiante, para dentro do campo gravitacional daquelas órbitas. Assim, de perto, a camada transparente se parecia mais com uma lâmina de microscópio mostrando certo tipo de células longas, irregulares. Ela quase podia ler os padrões que havia por baixo, na segunda camada, mas eles permaneciam ocultos, como o fundo de águas agitadas.

Estendeu a mão, sentiu uma vibração delicada de encontro aos dedos, como se estivesse encontrando uma superfície porosa, um véu.

Isso era um primeiro contato, ou o último contato?

Seu toque provocou uma reação.

O halo superior se dissolveu, permitindo que uma das partes que o formavam se destacasse dele, como uma pérola dourada do tamanho da cabeça dela, que veio descendo e parou à sua frente, suspensa no ar, como se a examinasse. Lendo-a por inteiro, com uma espécie de calor que lhe queimava a pele. Mesmo assim, ela não sentiu medo. Não iria sentir medo. Tinha sido feita pela Área X, que devia estar à sua espera.

A Ave Fantasma recolheu a pérola de ouro que flutuava, segurou-a quente e macia em sua mão.

Uma luz verde-dourada brilhante brotou do globo e mergulhou em seu coração, e uma calma muito fria se apossou dela, e através dessa calma vazou uma espécie de luz monumental, em que se podia ver tudo que se revelava enquanto a Área X a olhava por dentro.

Ela viu ou sentiu, num lugar profundo, o cataclismo como uma chuva de cometas que aniquilou uma biosfera inteira, muito longe da Terra. Testemunhou como um organismo fabricado se fragmentou e se dispersou, cada minúscula parte empreendendo uma viagem longa e perigosa através de espaços intermediários, negros e sem forma, pontilhados por um clarão súbito quando entraram em repouso, dispersos, perdidos — emergindo apenas para se alojar, inertes, no vidro da lente de um farol. E como, quando despertado do seu sono, o alarme acionado, como ele tinha se regenerado da melhor maneira que pôde, para depois cumprir uma tarefa vasta e pré-planejada, comprometida pelo tempo e pelo contexto, e pela verdade terrível de que a espécie que designara aquele propósito para a Área X já havia desaparecido. Ela viu as membranas da Área X, esta máquina, esta criatura, viu os coelhos brancos saltando através da fronteira, desaparecendo, brotando noutro lugar, os leviatãs, os fantasmas, observando-a do além. Tudo isso em fragmentos que lhe chegavam através do gosto ou do cheiro ou de sentidos que não entendia por completo.

Enquanto o Rastejador continuava escrevendo como se ela nem existisse, as palavras ardiam na luz mais rica e mais cheia de sentido que ela já vira, e dessa luz brotavam mundos. Muitos mundos. Tanta luz. E só ela podia ver. Cada palavra um mundo, cuja luz vazava de um lugar remoto, um canal e um ponto de entrada, se você soubesse como usá-los, as coordenadas que a bióloga utilizava agora em suas jornadas remotas. Cada frase era uma cura sem piedade, uma implacável reconstrução que não podia ser negada.

Talvez ela devesse gritar agora: “Pare!” Talvez devesse implorar em favor de pessoas que ela não conhecia e que viviam na sua cabeça, pessoas que a bióloga conhecera? Talvez devesse achar que o que viria em seguida poderia destruir ou salvar o planeta? No momento em que a Área X a reconheceu, a Ave Fantasma soube que alguma coisa sobreviveria, ela sobreviveria.

O que ela podia fazer? Nada. Nem queria. Havia uma escolha no ato de não fazer escolhas. Soltou a esfera, deixou que flutuasse no ar.

Sentiu a presença de Grace nas escadas atrás deles, sentiu suas intenções agressivas, mas não ligou. Não era culpa dela. Grace era incapaz de compreender o que a Ave Fantasma estava vendo agora; estaria vendo outra coisa — alguma coisa lá do farol ou da ilha ou da vida anterior que tivera.

Ela atirou na Ave Fantasma pelas costas. A bala saiu pelo peito, cravou-se na parede. O halo por cima do Rastejador girou ainda mais furiosamente. A Ave Fantasma se virou e gritou com toda a força do seu brilho. Porque não estava ferida, não tinha sentido nada, não queria que a outra fosse machucada.

Grace congelou ali à meia-luz, o rifle apontado, e agora nos seus olhos a consciência de que era inútil, que sempre tinha sido inútil, que não havia retorno, nada voltaria a ser o que era.

— Volte, Grace — disse a Ave Fantasma, e ela desapareceu escada acima, como se nunca tivesse estado ali.

Então a Ave Fantasma percebeu, tarde demais, que Controle sumira, ou tinha voltado a subir ou tinha passado às escondidas, descido as escadas, procurando a ofuscante luz branca que brilhava lá.


0023: A DIRETORA

Você volta para aquilo que conhece mais, ou pensa que conhece: o farol e a Brigada da Paranormalidade e da Ciência, uma pista reavivada pela descoberta daquela linha escrita mostrando a conexão entre a BP&C e Jack Severance. Você vasculha cada pasta três ou quatro vezes seguidas, força-se a reler de novo a história do farol e de seu irmão em ruínas lá na ilha.

Em certos momentos, vê o rosto de Henry, um círculo pálido a grande distância, chegando cada vez mais perto até você ser capaz de catalogar cada detalhe insípido. Não sabe o que isso quer dizer, sabe apenas que Henry não pode ser descartado facilmente. Ele a perturba como uma carta não aberta que todo mundo, com pomposa segurança, afirmara conter uma banalidade qualquer.

A antipatia que sentia em relação a eles a tornou desatenta, quando criança. Você não estava buscando uma maneira de gravá-los na memória, de capturar detalhes, apenas queria bani-los, apagá-los, livrar-se deles. Aquela impertinência, aquela presença que você via como deixava Saul inquieto, pouco à vontade. Mas o que havia neles que o fazia se sentir dessa forma?

Ninguém que se parecesse com Henry e Suzanne surgira nas listas dos membros da BP&C; nenhuma das fotos não identificadas de outros membros revelou ser um dos dois. Investigações anteriores haviam levantado os nomes e os endereços de todos os agentes enviados para o litoral esquecido, e foram feitas entrevistas minuciosas. As respostas eram sempre as mesmas: a BP&C estava realizando pesquisas de rotina, a habitual mistura entre o científico e o sobrenatural. Qualquer pessoa que soubesse algo mais a respeito teria sido surpreendida no interior da Área X e desaparecera muito antes da primeira expedição conseguir atravessar aos tropeções a fronteira e chegar lá.

O pior é que não havia notícias dos Severance, fosse Jack ou Jackie, esta última também ausente em pessoa, como se alguma coisa nova tivesse atraído sua atenção ou como se soubesse que você quer interrogá-la — cada tentativa de telefonema se perdendo, sendo absorvida pela Central. Portanto, você redobra seus esforços para encontrar nos arquivos alguma prova da influência dela, mas, se a presença de Lowry parece assombrar você, Severance é o tipo de fantasma que é esperto demais para se materializar.

Você assiste mais uma vez ao vídeo da primeira expedição, estuda de novo o ambiente e as coisas fora de foco no farol. Usando um recurso de compressão do tempo numa sequência de fotos, revê uma espécie de ciclo de evolução e degeneração do farol, desde a origem até a última foto tirada por uma expedição.

A atuação chega a um ponto em que Grace puxa você de lado um dia e fala:

— Acho que já chega. Você precisa dirigir a agência. Outra pessoa pode pesquisar os arquivos.

— Que outra pessoa? De quem está falando? — retruca você com aspereza, e logo se arrepende.

Mas não há “outra pessoa”, e o tempo está correndo. Você deve lembrar que, num certo nível, o Comando Sul inteiro tornou-se uma grande fraude, e se esquecer que não é parte da solução, você é parte do problema.

— Talvez você precise descansar um pouco, dar um tempo — diz Grace. — Talvez precise adquirir um pouco de perspectiva.

— Você não vai ganhar o meu cargo.

— Eu não quero a merda do seu cargo.

Ela está furiosa, a ponto de explodir, e parte de você até gostaria de ver isso, gostaria de saber como é Grace quando perde as estribeiras. Mas se forçá-la a esse ponto, vai perdê-la também.

Mais tarde, sobe ao terraço com uma garrafa de bourbon, e Grace já está lá, em uma das espreguiçadeiras. O prédio do Comando Sul não é mais do que um navio grande e pesado, e você não sabe o que foi feito do leme, não pode nem sequer se amarrar ao timão.

— A maioria das coisas que digo não é a sério — diz você a ela. — Lembre que não penso aquilo para valer.

Ela faz um som de desdém, mas descruza os braços, as rugas no rosto ficam mais suaves.

— Este lugar não passa de um manicômio fodido.

Grace raramente diz palavrões em outro lugar que não seja ali.

— Trabalho de doido.

Você parafraseia o último e desencontrado solilóquio de Cheney, sobre a carência de dados seguros: “Mesmo uma bolota caída de uma árvore nos diz alguma coisa sobre de onde veio, como nos demonstrou Newton, não concorda? Haveria uma trajetória, que diabo, e você pode retraçar essa linha, mesmo que teoricamente, e encontrar algum ponto na árvore de onde a bolota caiu, ou algo bem próximo.” Você não pode garantir que entendeu mais de um terço das curvas elípticas dele.

— Um manicômio de campanha — comenta Grace, referindo-se às barracas brancas do Comando Sul próximas à fronteira e aos postos de controle.

— Nosso manicômio de campanha — diz você com ar severo, balançando o dedo erguido. — Mas pelo menos não é nenhuma maluquice como os caçadores de água.

Depois do desabafo de Cheney, você revisou outro relatório inócuo e pouco produtivo da equipe dos “caçadores de água”, a agência que estuda ondas de rádio à procura de sinais de vida extraterrestre. A Central já sugeriu mais de uma vez que vocês e eles “fizessem um esforço conjunto”. Eles buscam mensagens das estrelas, escutando numa fenda muito estreita que abriga duas regiões de micro-ondas não afetadas por emissões de rádio de origem natural. Chamam essa frequência de “a poça de água” porque corresponde ao comprimento de onda do hidrogênio e da hidroxila. Uma chance mais do que remota, presumir que outra espécie inteligente iria automaticamente se dirigir a essa “poça de água”.

— Enquanto isso, o que eles procuravam entrou pela porta dos fundos...

— Criou a porta dos fundos, e entrou por ela...

— Você está olhando para o céu e, enquanto isso, alguém vem por trás e furta sua carteira — diz Grace, rindo.

— Construíram a fonte de água para nada; eles preferem a entrada de serviço, muito obrigado — fala você pomposamente, passando o bourbon. — Você não pode apenas ligar os sprinklers e brincar no quintal.

Você já não sabe o que está dizendo, mas Grace dá uma gargalhada, e daí em diante fica tudo bem, por algum tempo, e você pode voltar a se dedicar a Henry e Suzanne, os manequins falantes, os chatos mortíferos ou os gêmeos mortais.

Mas, naquela mesma semana, a situação chega a um ponto em que Grace a encontra arremessando pastas contra a parede, e você não tem outra reação senão encolher os ombros. Um dia ruim no consultório do médico. Um dia ruim nos preparativos para a expedição. Um dia ruim de pesquisa. Somente um dia ruim numa sucessão de dias ruins.

Logo, você decide fazer algo a respeito.

* * *

Voa até o quartel-general de Lowry, cerca de um mês antes da expedição. Mesmo tendo sido ideia sua, viaja a contragosto, porque tinha esperado atraí-lo ao Comando Sul mais uma vez. As coisas ao seu redor — seu escritório, as conversas no corredor, a vista lá de cima — adquiriram uma espécie de pátina luminosa, uma claridade que vem do fato de você saber que, em breve, tudo estará acabado.

Lowry está nos estágios finais de sua performance pré-expedição, anda exportando para a Central suas técnicas menos invasivas. Ele gosta de fazer o papel de instrutor diante dos membros da expedição, de acordo com Severance. Ela assegura a você que a bióloga “sofreu interferências mínimas”. A única coisa nela que você quer ver aumentada é seu sentimento de alienação quanto às outras pessoas. Tudo o que você quer é que ela entre na maior sintonia possível com a Área X. Você nem tem certeza de que ela precisa de um empurrão nesse sentido, de acordo com os relatórios. Ninguém na história do programa abriu mão do próprio nome com tanta facilidade.

Uma leve sugestão hipnótica, um condicionamento que tem mais a ver com a sobrevivência na Área X do que com qualquer um dos duvidosos “valores adicionais” de Lowry, suas alegações de que descobriu uma maneira de burlar a necessidade do indivíduo, em certo nível, de querer de fato executar a ação sugerida — “uma espécie de trucagem e substituição”. Os estágios sobre os quais você leu são identificação, doutrinação, reforço e implantação, mas Grace viu outros documentos que recorrem à semiótica do sobrenatural: “manifestação, infestação, opressão e possessão”.

A atenção de Lowry tem se concentrado na linguista, uma voluntária com ideias radicais sobre a importância do livre-arbítrio. Você fica imaginando o que Lowry prefere: menos ou mais resistência. Então, absorve o impacto das instruções dele, os relatórios dos seus progressos, suas pequenas provocações perguntando se você pensou melhor sobre a sugestão de hipnose, de condicionamento, sempre dando a entender que, se ele tentar de verdade, não vai poder impedi-lo.

Para ser honesta, você não dá a mínima importância às orientações dele.

* * *

Chega um momento em que consegue atrair Lowry para uma caminhada até o falso farol. O verão ainda está começando, o clima está ameno, e não há razão para ficarem sentados ali no saguão de controle e comando dele. Você consegue persuadi-lo ao apelar para sua vaidade, pedindo um tour completo e levando nas mãos apenas uma pasta fina de documentos que trouxe na viagem.

Então Lowry a leva para um tour nem tão completo assim ao longo daquele mundo miniaturizado de maravilhas em decadência. Há uma qualidade kitsch estranha na música ambiente que sai dos alto-falantes ocultos no terreno. Uma melodia distante mas alegre, que não é pop, não é jazz, não é clássica, mas alguma coisa ainda mais ameaçadora por ser cheia de vivacidade.

No topo daquele farol pequeno e exótico (o que Saul teria pensado daquilo?), ele aponta e explica que as marcações pintadas na torre são exatas, tanto quanto “os malditos cacos de vidro que alguém adicionou depois”. Quando puxa e abre o alçapão que existe no alto, o que se vê no espaço embaixo são pilhas e pilhas de cadernos e diários vazios, páginas em branco, como se Lowry tivesse comprado uma papelaria inteira para montar um negócio paralelo. A lente também não funciona, mas, em tom de desculpa, ele lhe dá uma aula de história:

— Antigamente, e bota antigamente nisso, eles espetavam em um pedaço de madeira uma ave grande, gorda, e lhe ateavam fogo, a título de farol.

Já aquele “maldito buraco no chão”, como diz Lowry, é a parte menos fiel ao original. É um velho posto de artilharia de onde foi removida toda a estrutura do canhão, deixando um círculo com bordas de granito, de onde começa a descer uma longa escada até um túnel que faz um desvio para dentro da colina atrás de vocês, onde fica a maioria das instalações de Lowry. Você desce apenas um pouco, o bastante para ver, emoldurada pelas paredes úmidas, uma galeria de arte: as ampliações fotográficas borradas, enormes, registradas pelas várias expedições. Uma espécie de metaversão do túnel trazida para dentro do falso túnel, expondo com autossuficiência uma coisa inacessível. Você pensa em Saul nos degraus do túnel de verdade, virando-se na sua direção, e sente um desagrado tão profundo com Lowry que precisa ficar ali, olhando para baixo, um longo tempo, com medo de ser traída por sua expressão.

Depois dos murmúrios habituais sobre como é impressionante tudo aquilo, você sugere continuar o passeio à beira-mar, “ar fresco e natureza”, e Lowry aquiesce, vencido por sua tática de perguntar sobre cada coisa nova à frente, porque não consegue parar de falar a respeito das próprias qualidades. Vocês seguem por uma rota paralela à costa, rumo ao norte. Gansos que fizeram seus ninhos numas rochas pontudas mais adiante lançam um olhar maldoso, e uma lontra no mar segue vocês a meia distância.

A certa altura, a conversa chega à BP&C. Você tira do bolso um pedaço de papel, aquele item relacionado a “Jack Severance”. Aponta o trecho a ele, mesmo o texto já estando destacado em rosa. Mostra-lhe aquela coisa engraçada, sobre a qual Lowry certamente já tinha conhecimento, claro, em vista da reunião secreta que tiveram antes de sua ida para o Comando Sul, quando falaram sobre suas experiências de infância.

— É essa a razão de você e Jackie estarem trabalhando juntos? — pergunta você. — Isso quer dizer que a BP&C tinha uma linha direta com a Central através de Jack?

Lowry avalia a pergunta, com uma espécie de sorriso afetado no rosto enrugado. Um sorriso afetado, um olhar que desce até o chão e depois volta a você.

— Foi só para isso que me chamou aqui fora? Para isso? Meu Deus, bastava a porra de um telefonema.

— Não é grande coisa, eu acho — diz você. Um sorriso de cordeirinho, oferecido ao lobo faminto de um narcisista. — Mas eu gostaria de saber, mesmo assim.

Ou seja, antes de cruzar a fronteira.

Uma hesitação, um olhar rápido de soslaio examinando você em busca de alguma intenção oculta ou algum movimento que ele talvez não esteja prevendo.

Uma tentativa.

— Um projeto paralelo? Será que a BP&C era um projeto paralelo da Central, ou...?

— Claro, por que não? — rebate Lowry, relaxando. — Aquele tipo de oração coordenada, que pode ser retirada a qualquer hora, sem prejuízo.

Mas às vezes o que é secundário contamina o que é primário. Às vezes o hospedeiro e o parasita ficam confusos quanto ao papel de cada um, como a bióloga talvez pudesse explicar.

— Foi assim que você conseguiu aquela foto antiga minha no farol.

Não foi uma pergunta.

— Muito bom! — exclama Lowry, deliciado. — Botou para foder. Eu tinha a missão de encontrar provas para me assegurar de que você continuaria leal... então imaginei por que motivo aquilo estaria nos arquivos da Central, para começo de conversa, e não no Comando Sul. Fiquei pensando em qual seria a origem dela, depois encontrei essa mesma linha escrita que você descobriu.

Sim, só que Lowry tinha um grau superior de autorização junto à segurança, o que lhe dava acesso a informações que você e Grace não podiam examinar.

— Foi muito esperto da sua parte. Esperto mesmo.

Lowry se infla todo, estufa o peito, sabendo que está sendo adulado mas não pode evitar a autoparódia que não é paródia de verdade, porque... Qual é o problema? Você já está de partida. Ele provavelmente já tem avaliado substitutos. Você não se deu o trabalho de propor o nome de Grace; em vez disso, apoia Jackie Severance.

— A ideia era muito simples, da maneira como Jack colocou. A BP&C era um grupo de loucos de pedra, com probabilidade baixa de resultados, mas, caso existisse de fato alguma coisa estranha ou alienígena aqui no planeta, nosso dever era monitorá-la, ter consciência de sua presença. Talvez influenciá-la um pouco, conduzir um pouco, proporcionar os materiais necessários, a orientação. E se algum desordeiro ou elemento indesejável se juntasse ao grupo, bem, seria também um modo interessante de manter sob observação alguns subversivos em potencial. E um bom disfarce para ter acesso a lugares “ocultos e à vista de todos” para vigilância, uma metodologia em que a Central era especialista naquele tempo. A costa estava fervilhando de antigovernistas.

— Nós os recrutamos, ou...

— Em alguns casos infiltramos agentes. Em outros, persuadimos as pessoas a trabalhar para nós, porque gostavam da proposta de bancar o espião. Tem muita gente que se empolga com isso. Não precisa haver um motivo muito profundo, tipo Deus ou a pátria. Provavelmente dá no mesmo.

— Jackie também estava envolvida?

— Jack não estava protegendo apenas a si próprio — explica Lowry. — Quando Jackie estava começando, ela o ajudou um pouco, e depois veio para o Comando Sul e o ajudou de novo, para garantir que nada disso iria vazar. Só que eu descobri, como descubro às vezes. Você sabe.

— Chegou a encontrar Henry ou Suzanne nesses arquivos?

— Nenhum nome verdadeiro no material a que tive acesso. Só codinomes como “Berro D’água”, “Ação Oculta” ou “Costela Maldita”. Bobagens desse tipo.

Mas nada disso é a pergunta real, a primeira das perguntas reais.

— A BP&C facilitou, conscientemente ou sem perceber, a criação da Área X?

Lowry parece tanto atordoado quanto divertido para além da razão e do bom senso.

— Não, claro que não. Não, não, não! Foi por isso que Jack conseguiu manter tudo em segredo, apagar tudo. Foi uma questão estritamente de estar no lugar errado na hora errada, porque senão eu teria... eu teria tomado providências. — Mas você pensa que ele quer dizer “eu teria mandado matar todo mundo”. — E depois ficou claro que Jack estava manipulando isso praticamente por conta própria, uma coisa que eu acho que tanto eu quanto você valorizamos, não é mesmo?

Acima de vocês estão as velhas barracas, os populosos subterrâneos, as seteiras de metralhadoras nos paredões de concreto.

Você acredita em Lowry? Não, não acredita.


A estreita praia de cascalho onde vocês dois estão agora fica a alguma distância do falso farol. Ela tem uma borda de grama anêmica e, bem de frente para a água, uma linha de rochas cobertas de líquens. Por um instante, o sol brilhante se perde no meio de uma depressão de nuvens e de sombras, deixando acinzentada a superfície azul-clara do mar. A lontra que os acompanhava chegou um pouco mais perto. Seu monólogo incessante, cheio de assobios e estalos, soa desrespeitoso a Lowry, talvez devido a encontros anteriores. Ele começa a gritar com o animal, que continua “falando” e aparecendo de maneira inesperada, de modo que Lowry nunca consegue acertar o seixo na cabeça dela. Você senta nas rochas, apreciando o espetáculo.

— Porra de bicho mais escroto. Porra de bicho escroto estúpido.

A lontra mostra um peixe que acabou de pegar e sai nadando de costas, os olhos risonhos, se é que isso é possível.

A lontra desliza em zigue-zague, desaparece e aparece de novo. As pedras atiradas por Lowry ricocheteiam na água e afundam sem fazer efeito, e ela parece achar que é uma espécie de brincadeira.

Mas é uma brincadeira da qual ela se cansa depois de algum tempo, e então submerge e se demora, enquanto Lowry fica parado com uma das mãos no quadril, a outra segurando uma pedra, esquadrinhando a água em busca de uma ondulação qualquer, dando a impressão de que tenta adivinhar por quanto tempo uma lontra consegue prender a respiração, quais serão as opções do animal quando tiver que subir em busca de ar. Só que ela nunca reaparece, e Lowry fica ali parado, com uma pedra na mão.

Ele é um monstro? Aos seus olhos, é, porque você sabe que, quando desaparecer o poder que tem sobre a Central, sobre as partes dela que quer que dancem conforme a sua música... quando esse poder desaparecer, quando acabar seu jogo de duplos e de espelhos — como acontece com a maior parte dos reinos de terror —, as marcas da sua mão, da sua vontade, continuarão visíveis em muitos lugares. Seu fantasma continuará assombrando a muitos pelos anos futuros, sua marca continuará em muitas mentes, de tal modo que, se todos os detalhes a respeito de Lowry forem subitamente apagados de todos os sistemas, eles ainda serão capazes de reconstruir sua imagem pela mera força e poder do seu impacto.

Você tira do bolso uma foto do celular misterioso e bate com ela no braço dele, obriga-o a aceitar. Lowry fica pálido e tenta devolvê-la, mas você o força a ficar com ela. Ele segura ao mesmo tempo a foto e a pedra que ia jogar na lontra. Acaba soltando a pedra, mas evita olhar a imagem novamente.

— Lowry, acho que você mentiu a respeito desse celular. Acho que esse telefone é seu. Da primeira expedição.

Enquanto diz isso, você tem a sensação de que está indo longe demais, mas a verdade é que em breve vai mais longe ainda.

— Você não sabe se esse telefone é meu.

— Ele tem uma longa história a esta altura.

— Não. — Brusco. Final. Sem nenhuma abertura. Uma espécie de autodanação. Sem protesto. Sem escândalo. Sem nada do melodrama habitual de Lowry. — Não.

Sem dar a menor chance a que se extraia alguma luz de entre as letras da palavra, de modo que você mesma deve tentar, quando cruzar a fronteira.

— Você está trabalhando para eles? É esse o problema?

Você deixa propositalmente vago esse “eles”.

— Para “eles”? — Um riso ácido. — Por quê? Tem algum problema com o telefone?

Ainda sem admitir.

— Existe algum assunto pendente entre você e a Área X? Existe alguma coisa que você não nos contou sobre a primeira expedição?

— Nada que lhe possa ser útil.

Um tom amargo agora. Dirigido a você, por tê-lo emboscado, ou a alguém mais?

— Lowry, se você não me disser se este celular é ou não é seu, eu vou até a Central e vou contar a eles tudo a respeito da BP&C, tudo a respeito da minha origem e de como você escondeu essas informações. Vou afundar você para sempre.

— Você vai afundar comigo, nesse caso.

— Já estou afundada, você sabe disso.

Lowry lhe dá um olhar que é metade agressão e metade alguma mágoa secreta vindo à tona.

— Entendi agora, Gloria — diz ele. — Você está indo numa missão suicida e quer tudo às claras, mesmo que seja algo sem importância. Bem, você deve saber que, se compartilhar isso com alguém, eu...

— Você corrompeu os dados. Se usarmos em você suas próprias técnicas, Lowry, o que vamos achar na sua mente? O que está engatilhado aí?

— Como você se atreve?

Ele está tremendo de raiva, mas não se move, não recua um centímetro. Não é uma negação, embora provavelmente devesse ser. Culpa? Será que Lowry acredita em culpa?

Meio insistindo, meio sondando, sem ter certeza de que o que você diz é verdade:

— Durante a primeira expedição, você se comunicou com eles? Com a Área X?

— Eu não chamaria de comunicação. Está tudo nos arquivos que você conhece.

— O que você viu? Como o viu?

Fomos condenados quando você voltou, ou antes disso?

— Nunca vai haver uma grande teoria unificada, Gloria. Nunca vamos descobrir. Não em nosso tempo de vida, e aí será tarde demais. — Lowry tenta confundir as coisas, sair dos holofotes. — Sabe, eles estão descobrindo água nas luas de Júpiter neste exato momento, lá fora, as nossas não tão secretas organizações irmãs. Talvez exista um oceano oculto lá fora. Talvez haja vida, bem embaixo dos nossos narizes. Mas sempre existiu, na verdade, nós é que somos cegos demais para perceber. Essas questões idiotas, nada disso tem importância.

— Jim, isto é uma prova de contato. Descobrir este celular, em particular, na Área X.

Porque indica uma espécie de reconhecimento e entendimento.

— Não. É aleatório. Aleatório.

— Ela quer falar com você, Jim. A Área X quer falar com você. Quer lhe perguntar alguma coisa, não é?

Você não sabe se isso é verdade, mas tem certeza de que vai deixar Lowry assustado para cacete.

Você tem a sensação de um atraso em Lowry, um vazio ou uma distância muito vasta entre vocês dois. Alguma coisa muito antiga brilha nos olhos dele, a observa.

— Não vou voltar — diz ele.

— Isso não é resposta.

— Sim, é meu celular. É a porra do meu celular.

Você estará vendo Lowry como ele era logo depois de voltar da primeira expedição? Por quanto tempo uma pessoa pode se manter presa a um padrão, um processo, apesar de estar fundamentalmente avariada? Whitby lhe dizendo “acho que isto aqui é um asilo, mas o resto do mundo também é”.

— Você não cansa, depois de certo tempo? — pergunta você. — Não cansa de estar sempre avançando e nunca chegar ao fim? De nunca ser capaz de contar a verdade a quem quer que seja?

— Sabe, Gloria, vocês nunca vão entender o que foi aquela primeira vez, o que foi atravessar aquela porta na fronteira e depois voltar. Nem mesmo se a cruzarem mil vezes. Nós fomos oferecidos e então perdidos. Estávamos passando por uma porta de fantasmas, entrando num lugar de espíritos. E tivemos que lidar com isso. Pelo resto das nossas vidas.

— E se a Área X estiver vindo procurar por você?

Existe ainda aquele ar remoto no olhar de Lowry, como se ele não estivesse de fato ali, parado à sua frente, mas para ele já basta, ele foi até o limite e se afasta sem nem olhar para trás.

Você nunca mais vai vê-lo de novo, e esse alívio temporário dá uma energia a mais aos seus passos enquanto o sol volta a brilhar. A lontra se aproxima de novo, e você senta à beira-mar, fica olhando enquanto o animal dá pinotes e se diverte durante alguns minutos que você deseja que nunca cheguem ao fim.


0024: O FAROLEIRO

...trarei as sementes dos mortos para partilhar com os vermes que se reúnem nas trevas... Ouvi durante a noite: coruja-das-torres, curiango, algumas raposas. Uma bênção. Um alívio.

No farol, a lâmpada estava apagada. A lâmpada estava apagada, e alguma coisa estava tentando transbordar de dentro dele, ou passar através dele para ir a algum outro lugar. As sombras do abismo são como as pétalas de uma flor monstruosa que desabrochará dentro do crânio e expandirá a mente para além do que qualquer homem pode suportar, mas se ele apodrece sob a terra ou sobre ela nos campos verdejantes, ou sob o oceano ou a céu aberto, tudo conduzirá à revelação, e à celebração, com o conhecimento de que o fruto asfixiante.

Ele ainda estava em choque após o que ocorrera no bar, continuava acreditando que, se voltasse lá agora, veria que tudo não tinha passado de uma visão ou uma piada de péssimo gosto. O Velho Jim despedaçando os dedos ensanguentados nas teclas do piano. O olhar de desespero de Sadi, traída por suas próprias palavras. Brad, parado ali, o olhar pregado à parede como se tivesse sido paralisado por alguém. Graças a Deus Trudi já tinha ido embora. O que ele ia dizer a Gloria quando a visse novamente? O que iria dizer a Charlie?

Saul estacionou o veículo, caminhou com passos trôpegos para o farol e ficou parado à entrada, respirando forte. Ia chamar a polícia, falar a eles que fossem até o bar, para dar uma olhada no Velho Jim e nos outros. Ia chamar a polícia e depois tentaria entrar em contato com Charlie, no oceano, e então sairia chamando todo mundo que pudesse porque algo terrível devia estar acontecendo ali, alguma coisa além da sua doença.

Mas ninguém atendia. Ninguém atendia. O telefone estava mudo. Ele podia fugir, mas para onde? A lâmpada estava apagada. A lâmpada estava apagada.

Armado com uma pistola sinalizadora, Saul subiu a escada aos tropeções, a mão tocando a parede para manter o equilíbrio. O fragmento era uma picada de inseto. Ou uma abertura. Um intruso. Ou nada, nada a ver com aquilo tudo, enquanto ele escorregava e quase caía, havia algo úmido nos degraus, uma penugem na parede que ficou na sua mão e que ele limpou esfregando nos jeans. A Brigada Leve. Eles tinham lhe dado alguma droga experimental, ou o haviam exposto à radiação com seus equipamentos. E a mão do pecador irá se rejubilar, pois não há pecado na sombra ou na luz que as sementes dos mortos não possam perdoar.

Perto do topo, o vento soprava com força; aquele frio o reconfortou pelo modo como lhe dizia que existia um mundo fora da sua mente e o ajudou a negar esses sintomas que estavam voltando com força. Sentiu o puxão de uma maré muito forte e uma vibração que a acompanhava, e ele estava ardendo.

Ou seria o farol que estava ardendo? Porque um clarão o aguardava no topo da escada, e não era a débil fosforescência verde que agora brotava das paredes, dos degraus. Não, era uma luz incisiva, que sabia o que queria, ele podia perceber. Mas não era a luz da lâmpada do farol, e ele hesitou só por um instante ao chegar logo abaixo do cômodo da lâmpada. Seu corpo afrouxou um pouco ali nos degraus, porque não estava certo de querer ver o novo farol que tinha suplantado o velho. Suas mãos tremiam. Seu corpo chacoalhava. Os dedos do Velho Jim não saíam de sua mente, nem as palavras do sermão que ainda se desenrolava dentro da sua mente. Algo a que ele não podia resistir, que não podia manter à distância.

Mas seu lugar era ali agora, e Saul não podia abandoná-lo.

Ele se ergueu. Virou-se. Entrou no salão da lâmpada.

O tapete tinha sido removido.

O alçapão estava aberto.

Brilhava uma luz no interior daquele espaço. Uma luz que girava e se curvava como se tivesse a disciplina de não escorrer pelo piso ou se refratar no teto, mas em vez disso fosse capaz de imitar uma porta, uma parede, erguendo-se no meio da sala de observação.

Cauteloso, segurando firme a pistola sinalizadora, Saul aproximou-se da borda do alçapão e da fonte da luz, enquanto era tomado por uma impressão de que a escada por trás dele tinha ficado ainda mais estranha, que era melhor nem olhar. Ajoelhando-se, espiou por aquela abertura, enquanto sentia o calor da luz banhando seu rosto, seu pescoço, chamuscando sua barba.

De início, o que viu foi apenas uma montanha de papéis e o que pareciam ser cadernos erguendo-se do chão do aposento, uma monstruosidade desmedida, uma caótica biblioteca de sombras e reflexos que entrava e saía de foco — fantasmas e filamentos, encaracolando-se, buscando espaço, ali mas não propriamente ali, uma visão que ele não compreendia porque era de algo que não existia ainda.

Então seus olhos se acostumaram e a fonte de luz se aglutinou numa imagem: uma flor. Uma flor branca e pura com oito pétalas, que tinha desabrochado no topo de uma planta comum, cujas raízes desapareciam no monte de papéis abaixo. A planta que o tinha atraído naquele dia, no pátio ao lado do farol, tanto tempo antes, a planta que o levara a se abaixar, atraído por um brilho, uma cintilação de luz.

Uma intensidade quase sagrada brotou dentro de Saul e o preencheu por inteiro, deixando-o tonto. Havia luz brotando dele agora, escorrendo para dentro do alçapão para se comunicar com o que jazia ali embaixo, e veio então a sensação de que algo o puxava mais para perto, algo que o segurava com força... algo que o reconhecia.

Rebelando-se contra aquilo, ficou de pé, com os braços um pouco abertos em busca de equilíbrio, oscilando na borda do alçapão, olhando para baixo bem no centro daquele torvelinho de pétalas, até que não pôde mais resistir e estava caindo dentro da coroa de luz branca e pura em torno de um círculo de fogo, ardendo numa chama tão pura que se tornar cinzas era uma espécie de alívio, engolfado pela luz que não apenas o consagrava, mas tudo que existia em volta dele, uma luz que fundia o receptor e aquilo que era recebido.

Haverá um fogo que sabe o seu nome, e na presença do fruto asfixiante a chama escura tomará cada uma das suas partes.

* * *

Quando ele recobrou a consciência, estava deitado de costas no chão, no espaço embaixo do alçapão, olhando para cima. Não havia nenhum monte de cadernos. Não havia nenhuma flor impossível.

Somente os corpos de Henry e Suzanne, sem nenhum ferimento aparente, inexpressivos e ainda mais assustadores por causa disso. Ele recuou, rastejou para longe, encarando-os. Ali entre as sombras parecia haver algo como os restos ressequidos de uma planta, mas não conseguia pensar em mais nada senão em sair daquele lugar.

Começou a subir a escada.

A silhueta de uma figura estava diante da porta que dava para a escada do farol. Um vulto empunhando uma pistola.

Impossivelmente, era Henry.

— Achei que você fosse demorar mais tempo por lá, Saul — disse ele, com uma voz distante. — Achei que ele nem voltasse hoje à noite. Que talvez fosse para a casa de Charlie, mas ele está pescando agora. E Gloria está na casa do pai. Não que ela fosse capaz de estar andando por aqui a esta hora da noite, ou que pudesse ajudá-lo. Mas é só para você se situar.

— Você matou Suzanne — falou Saul, ainda incrédulo.

— Ela quis me matar. Não acreditou no que eu descobri. Nenhum deles acreditou. Nem mesmo você.

— Você matou a si mesmo.

Seu gêmeo. Sabendo que, mesmo que isso fizesse alguma diferença, não poderia sacar a tempo a pistola sinalizadora, ou mesmo fugir em disparada pela escada antes que ele o alvejasse também.

— Coisa estranha — disse Henry, que antes estava indistinto, machucado, precisando de ajuda, e agora readquiria firmeza. — É estranho matar você mesmo. Pensei que fosse alguma aparição sobrenatural, mas talvez Suzanne tivesse razão.

— Quem é você?

Ignorando-o:

— Eu descobri, Saul, como lhe disse que descobriria. Ou algo me descobriu. Só que não foi o que eu pensava. Sabe o que é, Saul?

Quase implorando.

Não havia uma boa resposta para a pergunta de Henry.

Saul deu dois passos na direção do homem, como se estivesse vendo outra pessoa fazer aquilo. Ele era um albatroz, flutuando num bolsão de ar bem alto, planando abaixo de nuvens escuras, uma combinação de sombra e luz sempre em movimento, uma latitude e longitude errantes, e embaixo, muito lá embaixo, estavam os dois, na sala da lâmpada.

Saul deu o terceiro passo, e a planta era um farol aceso em sua mente.

Um quarto passo, e Henry acertou um tiro em seu ombro. A bala o penetrou e atravessou, e Saul não sentiu nada. Ainda estava flutuando lá muito alto, concentrado em sua navegação, nas correntes térmicas que o conduziam, um animal que raramente descia à terra e tudo que fazia era voar, voar.

Saul atirou-se sobre Henry, jogando o ombro ensanguentado de encontro ao peito do outro, e os dois cambalearam, saindo pela porta aos tropeções e indo na direção da balaustrada, a arma escapando da mão do jovem e deslizando pelo piso. Tão próximo a Henry, olhando bem nos seus olhos, Saul teve a sensação de que o outro estava distante dali, de que havia um lapso de tempo, um hiato, uma demora entre a recepção, o reconhecimento e a resposta: uma mensagem que vinha de muitíssimo longe. Como se Henry estivesse lidando com outra situação, completamente diferente... enquanto num outro nível ainda fosse capaz de observá-lo, avaliá-lo. Escondes o teu rosto, e ficam perturbados; se lhes tiras o fôlego, morrem, e voltam para o seu pó.

Porque Henry estava conduzindo os dois na direção da balaustrada. Porque Henry o agarrava com firmeza e estava conduzindo os dois na direção da balaustrada. Só que ele estava dizendo a Saul:

— O que você está fazendo?

Mas o faroleiro não estava fazendo nada, era Henry que estava e parecia não perceber.

— É você — conseguiu falar o albatroz. — Você que está fazendo isto, não eu.

— Não, não estou.

Henry estava além do pânico agora, debatendo-se e tentando se soltar, mas ao mesmo tempo arrastando os dois rumo à balaustrada, mais depressa. Ele pedia a Saul que interrompesse algo que não conseguia parar. Mas seus olhos não mandavam a mesma mensagem que suas palavras.

Henry chocou-se contra a balaustrada — com força —, e Saul um segundo depois, jogado para o lado pelo próprio impulso, e ambos passaram por cima da grade, e somente então, quando era tarde demais, o jovem afrouxou os dedos, o vento rasgando o grito que brotou de sua garganta, e o faroleiro precipitando-se ao lado no vazio do ar gelado — caindo depressa demais, de muito alto, enquanto parte dele contemplava tudo aquilo lá de cima.

A arrebentação, como labaredas brancas brotando inquietas ao longo da areia.

Vim lançar fogo na terra; e que mais quero, se já está aceso?

O terrível som do impacto de encontro ao chão.


0025: CONTROLE

Naquele instante extremo — quase incapaz de se mover, incapaz de falar —, Controle experimentou um sentimento avassalador de conexão, de que nada estava separado, do mesmo modo que tinha sentido, ainda que no rabisco mais aleatório das anotações da diretora, que tudo ali se encaixava num padrão mais amplo. E embora a pressão estivesse aumentando e ele sentisse muita dor, o tipo de dor que não o deixaria tão cedo, ou nunca, dentro dele brotou uma música poderosa que não entendia por completo, enquanto se desviava e deslizava pela escadaria em curva, forçando-se a avançar às vezes, com o braço esquerdo pendendo inútil, o pequeno pedaço de madeira entalhada por seu pai firmemente cerrado entre os dedos que não mais sentia, o brilho avolumando-se e derramando-se por sua boca, seus olhos, e preenchendo-o por completo ao mesmo tempo, como se o Rastejador tivesse acelerado o processo. Ele deslizava em parte porque estava se transformando, sabia, era capaz de perceber que já não era inteiramente humano.

Whitby ainda estava com ele, velho amigo, mesmo que Lowry, também, dando risadas e estalando o chicote lá atrás, e ele apertou a peça entalhada do seu pai contra o corpo, o único talismã que lhe restava. Esta máquina ou criatura ou combinação das duas coisas que pode manipular moléculas, que pode armazenar energia à vontade, que pode esconder de nós seus propósitos e suas maquinações. Que vive repleta de anjos e dos vestígios de seu próprio terroir, e de indícios do lugar de onde veio, e para o qual nunca vai poder voltar porque ele não existe mais.

No entanto, o Rastejador havia empregado um truque barato: Controle tinha visto sua mãe parada ali e experimentou uma satisfação sombria e primitiva ao perceber que aquilo não passava de uma ilusão, algo que não tinha mais poder sobre ele — uma pessoa que ele perdoava porque como poderia não perdoar, finalmente, num lugar como aquele? Livre, portanto, livre antes mesmo de ser atingido pelo Rastejador, de ser ferido tão gravemente. E, mesmo naquele sofrimento, Controle sabia que a dor era algo colateral, não era a intenção do Rastejador, mas nada que dissesse respeito à linguagem, à comunicação, poderia transpor o abismo entre os seres humanos e a Área X. Sabia que qualquer ilusão de semelhança seria apenas algum subconjunto da Área X funcionando em seus níveis mais primitivos. Uma folha de relva. Uma garça-azul. Uma formiga.

Perdeu a noção do tempo e da velocidade de sua descida e da sua transformação. Não sabia mais se era ao menos um fragmento de ser humano no momento em que — dolorosamente, nauseado, arrastando-se ou estaria andando a passos elásticos? — alcançou os degraus ou a escada mais antiga, até a luz branca e ofuscante no fundo, a que tinha o formato da planta imortal, como um cometa rugindo imóvel, e agora sua decisão era de se arrastar até a extremidade final, de romper através daquela agonia e daquele impulso de voltar atrás, para penetrar... em quê? Não sabia, exceto que a bióloga não tinha chegado tão longe, e ele, sim. Ele tinha chegado até ali.

Agora “Controle” dissolveu-se de novo. Agora era o filho de um homem que tinha sido escultor e de uma mulher que vivia num reino repleto de segredos bizantinos.

A peça do seu pai caiu da sua mão, ricocheteou nos degraus e acabou parando ali mesmo na escada, junto aos signos e aos símbolos deixados pelos seus antecessores. Um rabisco na parede. Uma bota vazia.

* * *

Ele farejou o ar, sentiu sob suas patas o calor ardente, a intensidade.

Era tudo que lhe restava, e ele não iria agora cair morto nos degraus, não iria sofrer essa derradeira derrota.

John Rodriguez desceu os últimos degraus e saltou para dentro da luz.


0026: A DIRETORA

Duas semanas antes da décima segunda expedição, o velho celular vem com você para casa. Você não se lembra de tê-lo trazido. Não sabe como foi que a segurança não questionou a presença dele. Mas lá está ele, primeiro na sua bolsa, depois sobre a bancada da cozinha. Você pensa nos suspeitos de sempre. Talvez Whitby esteja mais esquisito do que você supõe, ou Lowry esteja se divertindo às suas custas. Mas o que importa? Basta levar o aparelho de volta pela manhã.

A essa altura já não existe uma separação muito clara entre vida pessoal e profissional — você traz arquivos para casa, trabalha, rabisca coisas em pedaços de papel e às vezes em folhas, como costumava fazer quando era garota. Em parte porque se delicia ao imaginar Lowry recebendo fotografias delas nos relatórios; mas também porque usar esses materiais parece de algum modo mais seguro, embora não saiba por quê, é apenas uma sensação maior de um “toque” quando manuseia os arquivos, uma presença que não pode definir nem quantificar. Um pensamento irracional, uma ideia que simplesmente brotou na sua mente, uma noite, fazendo serão. Indo de vez em quando ao banheiro para vomitar — efeito colateral da medicação que está tomando para o câncer. Pedindo desculpas ao zelador e dizendo a primeira coisa que lhe ocorre para evitar contar que está doente: “Estou grávida.” Grávida de um câncer. Grávida de possibilidades. Às vezes isso a faz dar risadas. Caro veterano alcoólatra no balcão do bar, acha que gostaria de ser pai?

Não é uma noite de Chipper’s, não é uma noite para ouvir a Corretora falar pelos cotovelos enquanto os bêbados concordam. Você está fatigada pelo treinamento adicional, que tem exigido mais deslocamentos ao norte, até a Central, com o resto da expedição, além do seu treino individual como líder da expedição. Para entender plenamente o uso dos comandos hipnóticos, entender a importância — e os detalhes específicos — das caixas pretas com a luz vermelha que ajudam a ativar a obediência.

Em vez de sair de casa, você põe uma música para tocar, depois resolve assistir a um pouco de TV porque está com o cérebro derretendo. Ouve um som no corredor, depois da cozinha — é só alguma coisa assentando lá no sótão, mas isso a deixa nervosa. Quando vai verificar, não encontra nada, mas vai buscar o machado que guarda embaixo da cama. Volta para o sofá e começa a ver uma série de detetive de trinta anos atrás filmada no Sul. Lugares desaparecidos, locações que não existem mais, que nunca mais vão voltar. Uma paisagem do passado que volta para assombrá-la com tantas coisas que se foram, que não estão mais lá. Durante as perseguições de carros, fica olhando as paisagens ao fundo, como se fossem fotos de família que nunca tivesse visto.

Você cochila. Depois desperta. Cochila novamente. Então ouve alguma coisa se arrastando quase sem ruído rente ao chão, pelos ladrilhos da cozinha, fora do seu campo de visão. Uma espécie de calafrio de terror sacode seu corpo. Há algo de furtivo naquele som, de modo que você não consegue identificá-lo, não faz ideia do que terá entrado na sua casa. Por um longo tempo, fica imóvel, tentando ouvir mais, esperando não escutar mais nada. Você pensa que jamais poderá se levantar dali para ir à cozinha descobrir que animal entrou na casa. Mas ele volta a se mover, volta a fazer barulho, e você não pode ficar sentada para sempre. Não pode simplesmente ficar sentada.

Então você levanta, empunha o machado, vai até a bancada da cozinha, ergue-se na ponta dos pés para espiar do outro lado, mas seja o que for está do lado esquerdo, fora de sua visão. Você vai ter que dar a volta e encarar.

E ali, arrastando-se no piso, cego, impertinente, está o celular — volumoso, arranhando o piso, tentando fugir de você. Ou tentando se enfiar nos armários, esconder-se. Só que agora não se mexe. Parou no instante em que você pôs os olhos nele. Você o observa, chocada, por algum tempo. Talvez pelo choque da surpresa, ou por algum mecanismo de defesa, tudo que vem à sua mente é que o trabalho a persegue até em casa. Tudo que você pensa é essa monstruosa ruptura. Seja da realidade, ou da sua sanidade mental.

Trêmula, você o recolhe do piso, o machado bem seguro na outra mão. Ele parece morno, e o couro que o envolve lembra o toque de uma pele. Você pega uma caixa de metal onde guarda recibos, transfere todos para um saco plástico e coloca ali o celular, depois a tranca e a põe sobre a bancada da cozinha. Resiste à tentação de jogá-la no quintal dos fundos, ou levá-la de carro até o rio e arremessá-la na escuridão.

Em vez disso, procura um charuto na caixa que guarda no quarto, embaixo de algumas roupas. O que você pega está seco, esfarelando-se, mas pouco importa. Você o acende, vai para o cômodo que lhe serve de escritório, guarda em um saco plástico as anotações que trouxe para casa. Cada teoria sem fundamento. Cada página delirante de diário resgatada de velhos relatórios de expedição. Cada rabisco incompreensível. Você enfia tudo ali, com um sentimento de vingança, enquanto esbraveja em voz alta contra Lowry pelo fato de estar espionando seus pensamentos em benefício de alguma missão que só interessa a ele. Você sibila. Fique longe de mim! Não entre aqui. Só que Lowry já entrou, é a única pessoa ferrada o bastante, sabendo o que sabe, para fazer isso com você.

Algumas daquelas anotações, você nem se lembra de ter escrito, nem tem certeza de já tê-las visto ali. Será que havia tantas assim? Se havia, quem escreveu as outras? Será que Whitby se esgueirou no seu escritório e as criou, tentando ajudá-la? Imitando sua caligrafia? Você resiste ao impulso de tirar todas de dentro do saco e examiná-las de novo, arrastada por aquele peso terrível. Leva o saco plástico para fora, junto com uma taça de vinho tinto, vai para o terraço com piso de pedra, fumando, enquanto acende a churrasqueira, mesmo vendo que um temporal se aproxima, mesmo já sentindo as primeiras gotas, espera um ou dois minutos e, depois, com um grunhido, esvazia o saco sobre as chamas.

Você é uma mulher grande, cheia de autoridade, no pátio de sua casa, queimando documentos secretos, recibos e outras coisas que refletem a totalidade e a banalidade de sua vida — tudo transformado em “provas” devido ao que rabiscou ali. Você derrama fluido de isqueiro sobre tudo para melhorar ou piorar o resultado, e joga ali todo aquele monte de detritos inacabáveis, inúteis, estúpidos, ridículos, patéticos; acende um fósforo, fica olhando a fumaça esverdeada se elevar em ondas, ardente aos olhos. Tudo vai se enrodilhando e enegrecendo, perdendo o sentido. Não faz diferença, porque na sua mente ainda há uma luz bruxuleante que não consegue extinguir, uma vela que oscila bem longe na escuridão de um túnel que, na verdade, é uma torre, que é uma anomalia topográfica, que é você estendendo a mão para tocar o rosto de Saul Evans. Tudo isso é demais. Você apoia o corpo na parede, fica olhando enquanto as chamas se erguem, oscilam e depois se apagam. Isso ainda não basta. Há muito mais coisas lá dentro — na mesa junto do sofá, na bancada da cozinha, na cornija do quarto de dormir; você está imersa em notas, afogando-se nelas.

Longe, depois do declive do seu quintal, as janelas estão acesas e há uma televisão ligada. Um homem, uma mulher, um menino e uma menina no sofá parecem envoltos numa calma sublime, apenas sentados ali, vendo uma transmissão esportiva. Nenhuma palavra. Ninguém faz nada a não ser assistir. Certamente não querem olhar na sua direção, enquanto as gotas de chuva engrossam, se multiplicam, e os papéis em brasa crepitam.

E se você voltar lá para dentro, abrir a caixa de metal e o celular não for mais um celular? E se a contenção for uma piada? Você mal se contém. E se você pegar o telefone de volta e testá-lo mais uma vez e de novo não houver nada de extraordinário com ele? E se voltar lá dentro, o celular não estiver normal, e você relatar isso a Lowry e ele der uma gargalhada e dizer você está louca — ou então vá relatar isso a Severance, e o telefone continua ali, inerte, e você é a diretora em risco de uma agência que ainda não resolveu o mistério central responsável pela existência mesma da instituição? E se o seu câncer acelerar e devorá-la antes que tenha a chance de cruzar a fronteira? Antes de poder garantir que a bióloga faça a travessia?

Você aí, com seu charuto e sua taça de vinho e a música em volume bem alto na vitrola que nem lembra de ter comprado, e a ideia de que algo disso tudo vai ajudar a manter lá fora a escuridão, manter distantes os pensamentos que fervilham na sua cabeça, o olhar frio que a imobiliza como se a própria Deus, através de um olhar beatífico e eletrificado, tivesse cravado você como uma borboleta na vitrine de um colecionador de mediocridades.

A tempestade desaba finalmente e você joga fora o charuto, fica pensando na barreira invisível e em todas as intermináveis hipóteses que, no fim das contas, não passam de uma religião psicótica... e você bebe vinho, ora que diabo, toma a garrafa inteira, e ainda não está funcionando, e você ainda não quer entrar para encarar... nada.

“Conte-me alguma novidade! Me diga uma porra qualquer que eu ainda não saiba!”, grita para a escuridão e arremessa o copo no escuro da noite, e sem sequer pensar, se vê ajoelhada sob a chuva, entre os relâmpagos e a lama, e não sabe se isso é um ato de desafio ou de dor ou somente um gesto gracioso e egoísta que dedica a si mesma. Você de fato não sabe, tanto quanto não sabe se aquele celular lá dentro estava mesmo se movendo, estava vivo.

Os papéis carbonizados estão empapados de água agora, derramando-se em punhados de cinza pelas bordas da churrasqueira inundada. Algumas faíscas derradeiras ainda se elevam no ar e vão se apagando uma a uma.

É quando você finalmente se ergue. Ergue-se do meio da lama, sob a chuva, volta para dentro e, de repente, tudo se torna frio e calmo. A resposta não está no seu quintal, porque ninguém virá até ali para salvá-la, mesmo que implore. Principalmente se implorar. Você está por conta própria, como sempre esteve. Vai ter que seguir em frente, até não poder mais.

Você precisa aguentar firme. Está quase lá. Vai conseguir ir até o fim.

* * *

Você para de investigar a BP&C. Para de investigar o farol. Deixa as notas restantes no seu escritório, notas que você tem consciência de que são muitas, em quantidade muito maior do que a que queimou em casa no seu esforço inútil em busca de catarse.

— Alguém já tentou incendiar uma casa? — pergunta à Corretora mais tarde, naquela mesma noite, ao entrar para um drinque rápido, uns dois coquetéis que a ajudem a dormir e, depois, a acordar, inquieta, revirando-se sem parar na cama no meio da noite.

O ambiente está à meia-luz, a TV é um clarão mudo, um zumbido distante, as estrelas no teto cintilam ao reflexo dos holofotes das pistas de boliche. Alguém está tocando no jukebox uma canção country sombria, mas ela soa distante, algo muito remoto: Alguma coisa se mexe em meu coração. Às vezes eu tenho que fazer esse papel.

— Ah, claro — responde a Corretora, “entusiasmada com o desafio”, como diz o veterano num acesso de espirituosidade. — O de sempre: queimar a casa para receber o seguro. Às vezes é um ex-marido tentando incendiar a residência da esposa depois que o novo namorado foi morar com ela. Mas na maior parte das vezes não há nenhum motivo. Já vi um cara que teve o impulso de provocar um incêndio, deixou tudo se consumir em fumaça e ficou parado olhando. Então começou a chorar e a se perguntar por que tinha feito aquilo. Ele não sabia. Mas eu sempre pensei que devia haver uma razão. Algo que ele não conseguia admitir para si mesmo ou que talvez nem soubesse.

A raiva se debate dentro de você, tentando sair, manifestando-se numa suspeita que já guarda há algum tempo.

— Você não é Corretora coisa nenhuma — diz à mulher. — Nunca foi.

Ela é a sensação de manusear papéis com anotações, é um celular que não consegue parar quieto.

Você precisa de ar fresco, vai para fora, fica parada sobre o chão de cascalho do estacionamento, sob a luz incerta do poste. Ainda escuta a música bradando lá dentro. A luz cai sobre você e sobre o corpanzil do hipopótamo na margem do campo de minigolfe, onde seu vulto volumoso projeta uma sombra larga e oval. Os olhos dele são de vidro branco, a boca escancarada é um espaço vazio onde você jamais enfiaria a mão, não importa quantas partidas de graça o Chipper’s lhe oferecesse.

O veterano sai do bar.

— Você está certa — diz ele. — Ela não é Corretora. Foi demitida. Está desempregada há mais de um ano.

— Tudo bem. Eu também não sou caminhoneira.

Tragicamente, ele pergunta se não quer entrar e dançar um pouco. Não, você não quer dançar. Mas tudo bem se ele quiser se encostar no hipopótamo e conversar um pouco. Sobre nada em particular. Sobre as coisas comuns, do dia a dia, que lhe escapam.

A planta continua lá na catedral de amostras. O rato de Whitby passa a maior parte do tempo no sótão. Nos últimos dias antes da partida da décima segunda expedição, o celular faz a migração para sua escrivaninha, como um lembrete secreto. Você não sabe se fica mais preocupada quando ele está em seu poder ou quando o perde de vista.


0027: O FAROLEIRO

Quando voltou a si, Saul estava estendido de costas perto do farol, coberto de areia, e Henry todo encolhido ao seu lado. Ainda era noite, o céu tinha um azul profundo tendendo para o negro, mas cheio de estrelas ao longo de toda a sua vasta extensão. Ele sabia que deveria estar morrendo, com mais de cem fraturas, mas não se sentia machucado. Na verdade, experimentava apenas uma inquietude, que agora parecia cem vezes maior, e nada mais além dela. Nenhuma agonia devido à queda, nenhuma dor naqueles ossos que deviam estar todos quebrados. Nada disso. Estaria em choque?

Mas ainda persistia aquele clarão se elevando e a noite escura que o observava com milhares e milhares de olhos cintilantes, o casulo acolhedor e o murmúrio da arrebentação, e no momento em que ele virou o rosto de lado para olhar o oceano, viu as sombras difusas das garças, com suas cristas erguidas, bicando os miúdos peixes prateados que rabeavam na areia molhada.

Com um grunhido, antevendo um colapso que nunca veio, Saul se pôs de pé sem cambalear e sem ficar tonto, sentindo uma terrível energia percorrer o seu corpo. Até o ombro parecia bom. Não estava ferido, ou talvez tão gravemente machucado e desorientado que devia estar perto do fim. Tudo que vinha à sua cabeça estava sendo transformado em palavras, seu desconforto, expresso em linguagem, mas tentou manter o controle, porque de algum modo sabia que deixar aquilo explodir seria entregar os pontos, e que talvez não lhe restasse muito tempo.

Ergueu os olhos até o topo da torre do farol, imaginando de novo como tinha sido aquela queda. Algo dentro dele o salvara, protegendo-o. No momento em que atingira o chão, não era mais ele mesmo — o baque tornara-se uma descida tão suave, tão leve, que fora como um casulo de seda pairando devagar até beijar a areia. E descansando ali, como se fosse uma posição predeterminada, só para ele.

Ao virar-se para Henry, Saul pôde ver, mesmo naquela penumbra, que o homem ainda estava vivo, e com aquele olhar distante tão fixo nele quanto as estrelas no alto. Aquele olhar que chegava a Saul através dos séculos, através de distâncias vastas e inconquistáveis. Beatífico, e ainda assim mortal. Um assassino desajeitado. Um anjo caído, castigado pelo tempo.

Saul não queria sentir aquele olhar sobre ele, então caminhou para longe de Henry, pela praia, próximo da água. Charlie estava em algum lugar no mar, em sua pescaria noturna. Queria tê-lo perto de si naquela hora, mas também preferia que o amante estivesse longe, bem afastado, para que aquilo que se apossara dele não se apossasse também de Charlie.

Caminhou até o cinturão de rochas que Gloria gostava de explorar, até os poços de maré, e sentou-se ali, em silêncio, recobrando o senso de si mesmo.

Lá longe, no oceano, julgou ver os dorsos ondeantes dos leviatãs, quando emergiam para respirar e depois mergulhavam de novo nas profundezas. Chegou-lhe o odor do óleo e da gasolina e dos resíduos químicos, enquanto o mar agora vinha quase até os seus pés. Viu que a praia estava coberta de plástico e lixo e pedaços de metal sujos de alcatrão, barris e pedaços de tubulação incrustados de algas e de cracas. Destroços de navios que vinham à tona, também. Detritos que nunca tinham alcançado aquela costa, mas que surgiam ali agora.

No alto, as estrelas pareciam se mover a uma velocidade tremenda, cruzando um céu sem lua, e ele podia ouvir os gritos trovejantes da sua passagem — deixando riscos na escuridão, cada vez mais rápidas, até que tudo se dissolvia em fitas e serpentinas de luz.

Henry, como uma sombra desajeitada, surgiu ao seu lado. Mas Saul não sentia medo dele.

— Estou morto? — perguntou a Henry.

O homem não disse nada.

E então, depois de um momento:

— Você não é mais Henry, é?

Sem resposta.

— Quem é você?

Henry encarou Saul, desviou novamente o olhar.

Charlie num barco, em alto-mar, numa pescaria noturna, muito longe do que quer que fosse aquilo, daquela sensação que brotava de dentro dele como uma coisa viva. Pressionando cada vez mais forte.

— Eu vou ver Charlie de novo?

O jovem deu as costas a Saul e saiu caminhando ao longo da beira-mar, alquebrado, cambaleando. Depois de alguns passos, algo mais se partiu dentro dele e Henry tombou na areia, conseguindo arrastar-se mais um pouco até ficar imóvel. E a mão do pecador irá se rejubilar, pois não há pecado na sombra ou na luz que as sementes dos mortos não possam perdoar.

Algo estava prestes a se erguer como uma onda. Algo estava a ponto de brotar de dentro dele. Saul se sentia ao mesmo tempo fraco e invencível. Era assim que acontecia? Era essa uma das maneiras de Deus surgir dentro de nós?

Ele não queria ir embora do mundo e, no entanto, sabia agora que estava indo, ou era o mundo que o abandonava.

* * *

Saul conseguiu entrar na caminhonete, sentia aquela náusea invadindo-o, sabia que seria incapaz de controlar o que quer que estivesse prestes a acontecer, pois estava além de qualquer tentativa de controle. Não queria que acontecesse ali, na praia, perto do seu farol. Não queria que nada daquilo ocorresse, mas sabia que não tinha escolha. Havia cometas brotando em sua cabeça e a visão de uma porta terrível e de algo que saía por ela. Portanto, dirigiu pela trilha marcada de pneus, derrapando loucamente às vezes, tentando pôr-se a salvo mesmo sabendo que era impossível. Através do vilarejo adormecido. Pegando uma estrada de terra após a outra. Charlie em alto-mar. Felizmente não estava ali. A cabeça latejando. Sombras produzindo sombras, e as palavras tentando brotar agora através de sua boca, querendo sair por ela com urgência, um código que não conseguia decifrar. Sentindo como se algo estivesse com a atenção voltada para ele. Incapaz de escapar daquela sensação de interferência e de transmissão, uma comunicação que pressionava a periferia de sua mente.

Até que não conseguiu mais dirigir, ali na parte mais remota do litoral esquecido, aqueles trechos de floresta de pinheiros que ninguém reivindicava, onde ninguém queria morar. Parou, desceu do carro cambaleando, os vultos escuros das árvores, o som das corujas, um farfalhar onipresente, uma raposa passando e olhando para ele, sem medo, as estrelas no alto ainda rodando e deixando rastros no céu.

Tropeçando no escuro, arranhando-se nas palmeiras e nos arbustos mais ásperos, abrindo caminho por entre as moitas mais altas, um pé afundando na água negra e voltando a sair. O odor forte de urina de raposa, a sugestão de haver um animal ou animais à espreita. Tentando recuperar o equilíbrio. Tentando manter a mente clara. Mas havia um universo abrindo-se na sua cabeça, cheio de imagens que ele não entendia, não podia entender.

Uma planta florescente que não podia morrer.

Uma chuva de coelhos brancos, cortados ao meio em pleno salto.

Uma mulher estendendo a mão para tocar numa estrela-do-mar dentro de um poço de maré.

Poeira verde de um cadáver sendo soprada pelo vento.

Henry, no topo do farol, sacudindo-se, contorcendo-se, recebendo um sinal de muito, muito longe.

Um homem andando aos tropeções pelo litoral esquecido em traje militar, depois de todos os seus companheiros estarem mortos.

E uma luz lá do alto que o localizava e o cravava ali, completando alguma transação vital.

A sensação de folhas mortas. O cheiro da fumaça de uma fogueira. O som de um cachorro latindo ao longe. O gosto da terra. E, acima dele, os galhos entrelaçados dos pinheiros.

Estranhas cidades em ruínas erguiam-se na sua mente, e com elas um fragmento que prometia a salvação. E Deus disse que isso era bom. E Deus disse: “Não lute contra isso.” Mas tudo que ele desejava era lutar contra aquilo. Era apegar-se a Charlie, a Gloria, até mesmo a seu pai. Seu pai, pregando, aquele clarão íntimo, como de quem é arrebatado por algo maior que ele mesmo, algo que a linguagem era incapaz de exprimir.

Por fim, no meio do mato selvagem, Saul não pôde mais avançar, estava acabado, ele sabia, e chorou ao cair no chão, quando sentiu aquela coisa dentro dele ancorando-o ali no solo, algo tão alienígena a qualquer sensação que já tivera e, ainda assim, tão familiar, como se já tivesse acontecido cem vezes. Era só algo minúsculo. Um fragmento. No entanto, era grande como mundos inteiros, e ele nunca iria compreender aquilo, mesmo enquanto se deixava arrebatar. Seus últimos pensamentos antes dos pensamentos que não eram seus, que nunca seriam dele. Talvez não haja vergonha nisto, talvez eu possa suportar, eu possa combater. Ceder mas não desistir. E projetou de volta, na direção do mar — Saul incapaz de pronunciar o nome —, apenas três palavras que pareciam tão inadequadas e, no entanto, eram tudo que lhe restava.

* * *

Algum tempo depois, acordou. Naquela manhã de inverno, ventava frio contra a gola do casaco enquanto ele descia penosamente a trilha que conduzia ao farol. Tinha caído uma tempestade na noite anterior, e lá embaixo, à sua esquerda, o oceano se estendia cinzento e inquieto de encontro ao azul sem brilho do céu, visto através da agitação e do farfalhar da relva alta. Pedaços de madeira flutuante, garrafas, boias brancas desbotadas e o corpo de um tubarão-martelo tinham vindo parar na areia após o fim da tormenta, emaranhados com bolos de algas, mas não tinha havido nenhum dano real nem ali nem no vilarejo.

Aos pés dele espalhavam-se amoras e o cinza espesso dos cardos, que floresceriam roxos na primavera e no verão. À sua direita, as lagoas estavam escuras com os queixumes abafados dos mergulhões e dos patos. Melros pousados faziam pender os ramos finos das árvores e depois revoavam em pânico à passagem dele, aquietando-se de novo em seus bandos tagarelas. O odor salgado e cortante do ar tinha algo de chama: um cheiro de queimado vindo de alguma casa próxima ou de uma fogueira mal apagada.


0028: AVE FANTASMA

O Rastejador tinha ficado para trás. As palavras tinham ficado para trás. Era apenas um túnel submerso num dia de calor. Era apenas uma floresta. Era apenas um lugar que, caminhando, elas iam deixando para trás.

A Ave Fantasma e Grace não falaram muito enquanto andavam. Não havia muito a dizer, tão grande era o mundo que as separava agora. A Ave Fantasma sabia que Grace não a considerava propriamente humana, mas algo nela devia dar à mulher a segurança necessária para que pudessem viajar juntas, para confiar quando disse que alguma coisa tinha mudado além do clima, que as duas deviam ir na direção da fronteira e ver o que era. O aroma de pólen dos pinheiros pairava no ar, denso e dourado e maduro. As cambaxirras e as mariquitas-amarelas se perseguiam por entre as moitas e as árvores.

Não encontraram ninguém, e os animais, mesmo ariscos, pareciam despreocupados. Pelo menos não estavam preocupados com elas. A Ave Fantasma pensou em Controle, lá atrás, no túnel. O que teria encontrado ali embaixo? Descobrira a verdadeira Área X, ou será que a morte dele servira de catalisador para a mudança que ela sentira, que se manifestara em volta deles? Mesmo agora não podia ver Controle com clareza, sabia apenas que a ausência dele era uma perda, uma tristeza. Ele tinha estado por perto durante quase toda a vida dela — a vida real, vivida, que tinha agora, não a que herdara. Isso ainda significava algo.

No momento em que Controle descera para a porta lá embaixo, a Ave Fantasma o vira e percebera que os apêndices do Rastejador retrocediam, que todo aquele aparato recuava para a sombra, indo atrás dele. Houve uma espécie de pequeno terremoto quando as laterais do túnel se contraíram uma vez, duas, e depois ficaram firmes de novo. Ela soube que, embora nada pudesse ser revertido, a diretora tinha razão: aquilo podia ser mudado, podia mudar, e Controle havia somado ou subtraído alguma coisa a uma equação que era complexa demais para que alguém pudesse vê-la por inteiro. Talvez a diretora estivesse certa a respeito da bióloga, só que não do modo como tinha imaginado. As palavras na parede ainda ardiam através dos seus pensamentos, e a envolviam por inteiro, como um escudo protetor.

A Ave Fantasma tinha emergido à luz do dia e encontrara Grace olhando-a com medo, com suspeita, e sorrira, dizendo-lhe que não havia nada a temer. Que não tivesse medo. Por que ter medo do que você não pode evitar? Do que não quer evitar? Não eram elas duas a prova de que era possível sobreviver? Não eram uma espécie de testemunhas? As duas. Não havia nada para ser avisado a quem quer que fosse. O mundo seguia em frente, mesmo que estivesse se fazendo em pedaços, mesmo mudando irrevogavelmente, tornando-se algo diferente e estranho.

Elas caminharam. Montaram acampamento quando a noite caiu. Voltaram a caminhar assim que surgiu a primeira luz do dia, o mundo incandescente com o nascer do sol e a paisagem despertando em volta delas. Não havia soldados, não havia nenhuma indicação de algo branco costurando o céu. O inverno tinha passado e fazia calor, era verão agora na Área X.

Os momentos se alongavam, depois que passaram as lagoas de águas paradas e os derradeiros quilômetros. Ela vivia apenas no presente, em função dos pés cheios de bolhas e os tornozelos arranhados e as moscas famintas atraídas pelo suor em suas orelhas ou na testa, e a sensação permanente de secura na garganta, mesmo com toda a água que bebia do cantil. O sol tinha resolvido se instalar por trás dos seus olhos e brilhar, de modo que o interior de sua cabeça parecia uma fornalha. Cada coisa bonita que havia à sua frente ela sabia que já tinha visto atrás de si pelo menos uma vez. A eternidade se manifestava na repetição dos passos de Grace, nos seus passos às vezes hesitantes, e na maneira constante como a luz atingia o solo e refletia o calor de volta para ela.

— Acha que ainda há alguém nos postos de vigilância? — indagou Grace.

A Ave Fantasma não respondeu. A pergunta não fazia sentido, mas ainda restava humanidade bastante nela para que não quisesse discutir. A hegemonia do que era real tinha sido alterada, ou rompida, para sempre. Ela agora saberia sempre a posição da bióloga, estivesse perto ou longe, como um farol aceso em algum ponto de sua mente, uma conexão que nunca cessava.

Nos últimos quilômetros antes da antiga entrada da barreira, o sol estava tão quente e brilhante que se sentiu um pouco delirante, mesmo sabendo que aquilo era uma miragem — ela ainda tinha água, e caminhava com dificuldade devido às bolhas e às pequenas dores. Como o sol podia ser tão opressivo e, mesmo assim, aquela cena ser tão insuportavelmente bela?

— Se conseguirmos passar, o que vamos dizer a eles?

A Ave Fantasma duvidava que houvesse algum tipo de “eles” a quem dizer algo. Ansiava agora por estar de volta a Rock Bay, queria enxergá-la através dos olhos da Área X, imaginava a que ponto teria mudado, a que ponto estaria a mesma coisa. Era na verdade seu único objetivo: voltar para um lugar que tinha sido o que a ilha era para a bióloga.

Chegaram ao ponto onde tinha sido a antiga fronteira, perto da borda do enorme sumidouro. As barracas brancas do Comando Sul tinham adquirido o verde-escuro do mofo e de outros organismos. A construção de tijolos do posto militar avançado estava destruída, afundada, como se tivesse sido atacada por alguma criatura gigantesca. Não havia soldados, não havia postos de vigilância.

Ela se agachou para apertar os cadarços da bota, com uma formiga passando perto do pé. Do que lhe pareceu uma enorme distância, soou um ruído brusco do meio da vegetação exuberante do sumidouro. Por um instante, uma marmota esquisita, de ombros largos, enfiou o focinho por entre os juncos. Ao vê-la, recuou precipitadamente e desapareceu estatelando-se no riacho que corria lá no fundo, enquanto a Ave Fantasma se erguia, bem-humorada.

— O que foi? — perguntou Grace atrás.

— Nada. Nada mesmo.

E então ela voltou a caminhar, rindo um pouco, e toda aquela pressão dentro desapareceu, deixando em seu lugar apenas uma vontade de beber água e de vestir uma blusa limpa. Inexplicavelmente, incompreensivelmente feliz, chegou a sorrir.

* * *

Um dia depois, as duas chegaram ao edifício do Comando Sul. O pântano tinha avançado pelo pátio e embebido os ladrilhos, alcançando os degraus de concreto que levavam ao interior do prédio. Cegonhas e íbis construíram seus ninhos no terraço, que dava a impressão de ter afundado em muitos pontos. Havia sinais de um incêndio que tinha se extinguido por si só, perto do departamento de ciências, e que deixara as paredes externas chamuscadas. De longe, não conseguiam ver nenhum sinal de presença humana. Nem sombra das pessoas que Grace conhecera ali. Atrás delas, estava a lagoa e o pinheirinho esquálido ainda cheio de lâmpadas natalinas, agora mais de meio metro mais alto do que quando a Ave Fantasma o vira pela última vez.

Por uma decisão unânime e silenciosa, pararam do lado de fora do prédio. Dali, uma rachadura na parede lateral mostrava três andares de salões vazios, cobertos de entulho, e uma enorme escuridão no interior. Detiveram-se por um momento, escondidas pelas árvores, olhando as ruínas.

Grace não conseguia perceber o modo como o edifício tomava uma inspiração e depois outra, o modo como ele suspirava. Não percebia o eco que vinha do coração do prédio do Comando Sul, o eco dizendo à Ave Fantasma que aquele lugar tinha criado sua própria ecologia, sua própria biosfera. Perturbá-lo, entrar ali, seria um erro. O tempo das expedições tinha acabado.

Elas não se demoraram, não procuraram sobreviventes, nem fizeram qualquer das coisas previsíveis e talvez idiotas que poderiam ter feito.

Mas agora vinha o momento mais difícil, agora vinha o teste.

— E se não houver mundo lá fora? Um mundo como o que conhecemos? Ou se não houver passagem para o mundo?

Era o que Grace perguntava, mesmo existindo, naquele momento, no interior de um mundo tão rico e tão completo.

— Vamos saber em breve — disse a Ave Fantasma, e segurou-lhe a mão por um instante, apertando-a.

Algo na expressão dela devia ter acalmado Grace, que sorriu.

— Sim, vamos descobrir.

Elas duas juntas talvez soubessem mais do que qualquer outra pessoa viva na Terra.

Era apenas um dia como qualquer outro. Um dia comum de verão.

E assim elas seguiram em frente, atirando pedras ao acaso enquanto avançavam, atirando pedras para tentar descobrir a silhueta invisível de uma barreira que talvez nem existisse mais.

Andaram por muito tempo, atirando pedras para o ar.


000X: A DIRETORA

Você está no escuro sentada à sua mesa de trabalho no Comando Sul, nos minutos que antecedem a partida da décima segunda expedição, a mochila ao lado, as armas guardadas na rede de malha externa, travadas, descarregadas. Você vai deixar uma bagunça enorme para trás. As estantes estão abarrotadas, suas anotações, amontoadas sem qualquer ordem que alguém possa identificar. Tantas coisas que não fazem o menor sentido, ou só fazem sentido para você. Como uma planta e um velho celular. Como uma fotografia na parede, do tempo em que conheceu Saul Evans.

Você leva no bolso sua carta para ele. Parece-lhe uma coisa desajeitada. Parece a tentativa de dizer algo que precisaria ser dito sem palavras, para alguém que talvez não seja mais capaz de ler. Mas talvez, por outro lado, seja como as frases escritas na parede da torre: as palavras não são importantes, o importante é o que se manifesta através delas. Talvez o mais importante seja colocar aquilo numa folha de papel, para fixá-lo melhor na sua mente.

Pela milésima vez, experimenta a angústia de pensar que sua linha de ação foi mal planejada. Você tem uma escolha. Pode deixar que tudo continue acontecendo como antes. Ou... pode fazer aquela outra coisa que em pouco tempo vai tirá-la das trevas, do silêncio, e colocá-la num caminho sem volta. Mesmo que consiga voltar.

Você já disse a Grace tudo que era preciso para lhe garantir que tudo vai correr bem. Tudo que foi necessário dizer a sua vítima tão querida, para deixá-la tranquila. Manter o moral elevado. E você quase acredita que ela acreditou, por sua causa. Quando eu voltar... Quando resolvermos tudo isto... Quando nós...

Um rosto pálido espia para dentro da sala com curiosidade, com o pescoço oblíquo: é Whitby, e a cabeça do ratinho aparece no bolso da camisa, com suas orelhas e olhinhos pretos e as patinhas que parecem mãos muito frágeis.

De repente, você se sente velha e indefesa e tudo parece muito distante — a cadeira, a porta ali na frente, o corredor, e Whitby dá a impressão de estar do lado oposto de um cânion com milhares de quilômetros de largura. Você solta um pequeno soluço, numa tentativa de encher os pulmões de ar. Vacilando num surto momentâneo de pânico, no meio do lixo espalhado de suas anotações. E mesmo assim, por baixo de tudo, há um núcleo que não pode ceder.

— Ajude-me a levantar, Whitby — pede você, e ele obedece.

É um homem mais forte do que aparenta, e a segura mesmo quando você apoia sobre ele todo o seu peso, inclinando-se sobre sua pequena estatura.

Você oscila um pouco, olhando para baixo. Whitby tem que ficar para trás, mesmo que tudo isso desmorone. Mesmo que ele desmorone, porque ninguém pode suportar essa visão durante meses, durante anos. Mas você tem que lhe pedir. Não tem escolha. Grace vai dirigir a agência. Whitby vai ser o seu gravador, a sua testemunha.

— Você tem que escrever tudo que vir, todas as suas observações. Pode vir a ser importante.

Seus ouvidos captam o ruído da arrebentação. Seus olhos, a imagem do farol. As palavras na parede da torre.

Whitby não diz nada, apenas a encara com olhos enormes, mas não é preciso. O fato de que está ali, silencioso, ao seu lado, é suficiente.

Quando você dá os primeiros passos na direção da porta, sente o peso que leva às costas e o peso da decisão que tomou. Mas você o ignora. Vai até o corredor. Já é bem tarde. As luzes fluorescentes parecem menos brilhantes, mas um calor desagradável emana delas, ou vem dos exaustores, passando com um sussurro por cima de sua cabeça. Uma realidade que não poderá ser resgatada.

A noite vai ser fresca e talvez haja um cheiro de madressilva no ar, talvez até a evocação semirrelembrada da maresia, e isso parecerá ter passado muito rápido, a viagem familiar até aquele local, sob a claridade da meia-lua, através dos vultos escuros dos edifícios em ruínas. Junto com os outros membros da décima segunda expedição.

* * *

Na fronteira, você percorre as barracas brancas do controle de missões do Comando Sul, e a linguista, a topógrafa, a bióloga e a antropóloga são conduzidas aos seus aposentos separados para o processo final de descontaminação e condicionamento. Não vai demorar muito e você estará na barreira, será conduzida com toda a graça que seu corpo alto e largo pode comportar rumo à luminescência daquele enorme portal.

Você observa todas elas através dos monitores. Todas, com exceção da linguista, parecem calmas, com movimentos relaxados e sem nenhum tremor aparente. A linguista estremece, parece tiritar. Pisca repetidamente. Seus lábios se movem sem produzir palavras.

O técnico olha para você, à espera de instruções.

— Deixe-me entrar lá — diz você.

— Vamos ter que refazer o processo dela a partir do zero, se você entrar lá.

— Tudo bem.

E está tudo bem. Você tem determinação suficiente para as duas. Por enquanto.

Com todo o cuidado, entra e senta de frente para a linguista. Faz o possível para banir de sua mente os pensamentos da sua primeira viagem através da fronteira, de como aquilo afetou Whitby, mas é o rosto dele que você vê agora, não o de Saul, ou o de sua mãe. Percebe o custo humano ao longo de todos aqueles anos, as vidas perdidas ou desfeitas, a longa trapaça. Os contorcionismos e os subterfúgios. Todas as mentiras, e para quê? Lowry, lá no seu quartel-general, incapaz de captar a ironia daquilo tudo, ditando regras a você: “Somente identificando a disfunção e a doença no interior de um sistema podemos começar a articular uma resposta cuja lógica será a abolição dos problemas propriamente ditos.”

A linguista foi submetida a um regime de drogas psicotrópicas. Sofreu uma operação, um recondicionamento, foi desmontada, passou por lavagem cerebral, recebeu falsas informações que ameaçam sua própria segurança, foi recomposta e, durante todo esse processo, de certo modo sabia o que estava se passando, pois tinha se apresentado voluntariamente. Lowry achou que o fato de ela ter perdido membros da família no litoral esquecido fazia dela o mais próximo de uma substituta de Gloria. É uma espécie de provocação que ele lhe faz, uma espécie de recado idiota e, segundo Lowry acredita, a mais refinada expressão de sua arte. Sua arma engatilhada — tão tensa que está se desmanchando bem ali diante de você. Como se fosse o psicólogo da última décima primeira expedição, só que de uma perspectiva diferente.

O rosto dela reflete uma confusão de impulsos, a boca abrindo-se repetidamente, querendo falar mas sem saber o que dizer. Os olhos se contraem como se ela esperasse algum tipo de golpe e se recusam a se fixar nos seus. Ela está amedrontada e sente-se só e já foi traída antes mesmo de pôr os pés na Área X.

Você ainda poderia usá-la na missão, poderia encontrar uma dúzia de maneiras úteis de posicioná-la, mesmo prejudicada como está. Comida para o que quer que esteja à espera na anomalia topográfica. Comida para a Área X, e um pouco de despiste para os outros membros da expedição. Mas você não quer distrações, não desse modo. É só você. É só a bióloga. Um plano que na verdade é apenas um tiro no escuro, um modo de achar o caminho tateando.

Você se inclina e toma a mão da linguista nas suas. Não vai lhe perguntar se ela ainda quer ir, ou se tem condições. Não vai lhe dar a ordem de ir. Quando Lowry descobrir o que você fez, já será tarde.

A linguista a encara com um sorriso estripado.

— Você pode ficar — diz ela. — Pode ir para casa. E vai ficar bem, vai ficar tudo bem.

Com essas palavras, vai se afastando de você e sumindo, deslizando para a escuridão, ela e a cadeira e o aposento, como se fossem meras peças de um cenário, e você está de novo lá no alto, acima da Área X, planando sobre os juncos, descendo na direção da praia, vendo mais além a arrebentação. O vento e o sol, o calor do ar.

O interrogatório acabou. A Área X fez o que tinha de fazer com você, tirou-lhe até a mais minúscula coisa de que foi capaz, e há uma sensação de estranha paz de espírito nisso tudo. Uma mochila. Os restos de um corpo. Sua pistola, atirada às ondas, sua carta para Saul, amassada e rolando por cima das algas secas e da areia da praia.

Você ainda está ali por um instante, olhando sobre o mar para o farol e a beleza terrível do brilho deste mundo.

Antes de não estar mais em lugar nenhum.

Antes de estar em toda parte.


Caro Saul:

Duvido que você chegue um dia a ler esta carta. Não sei de que maneira ela poderia chegar até você ou mesmo se você seria capaz de entendê-la agora.

Mas eu quis escrevê-la. Para deixar tudo mais claro, e para que você entendesse o que significou para mim, mesmo que por um tempo muito curto.

Para que soubesse o quanto eu gostava do seu jeito rude e sua coerência e sua preocupação. Para que soubesse que eu entendia o que significavam aquelas coisas, e elas eram importantes para mim. Que teriam sido importantes mesmo que todo o resto não tivesse acontecido.

Para que soubesse que não foi culpa sua. Não foi nada que você fez. Foi apenas má sorte, estar no lugar errado na hora errada — que é como tudo sempre acontece, de acordo com meu pai.

E sei que é verdade porque aconteceu comigo também, embora eu mesma tenha escolhido uma porção de coisas que me aconteceram desde então.

Seja o que for que tenha acontecido naquele momento, sei que fez o melhor que pôde, porque você sempre tentava fazer o melhor. E eu estou fazendo o possível, também. Mesmo que a gente nem sempre saiba como ou que consequências vai ter. Você pode acabar sendo envolvido por alguma coisa muito maior e nunca saber nem a razão.

O mundo de que fazemos parte agora é difícil de aceitar, inimaginavelmente difícil. Não sei se mesmo agora o aceito por completo. Não sei como. Mas a aceitação nos faz dar um passo à frente da negação, e talvez haja um desafio nisso, também.

Eu me lembro de você, Saul. Eu me lembro do homem que era o guardião da luz. Nunca me esqueci de você; só precisei de muito tempo para voltar.

Com amor,

Gloria

(que andava perigosamente entre as rochas e enchia seu saco)


AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu paciente e brilhante editor, Sean McDonald, que tornou possível para mim escrever estes livros com a certeza de que havia alguém cuidando da retaguarda. Obrigado a todos na editora FSG por tornar esta experiência de publicar uma trilogia algo tão maravilhoso: Taylor Sperry, Charlotte Strick, Devon Mazzone, Amber Hoover, Izabela Wojciechowska, Abby Kagan, Debra Helfand e Leni Wolff. Obrigado a Karla Eoff, Chandra Wohleber e Justine Gardner. Obrigado também a Alyson Sinclair, por seu excelente trabalho na área de marketing, e a Eric Nyquist, pela grande arte da capa. Mais uma vez obrigado à firmeza da minha agente, Sally Harding, e à Cooke Agency. Tenho também um débito de gratidão para com meus editores no Canadá, no Reino Unido e em outros países, por demonstrarem tanta imaginação e energia na publicação da trilogia do Comando Sul. Foi também um prazer trabalhar com a Blackstone Audio, particularmente com Ryan Bradley. Muitos agradecimentos aos talentosos Bronson Pinchot e Carolyn McCormick, por suas grandes performances nos audiolivros. Agradecimentos adicionais vão para Clubber Ace, Greg Bossert, Eric Schaller, Matthew Cheney, Tessa Kum, Berit Ellingsen, Alistair Rennie, Brian Evenson, Karin Tidbeck, Ashley Davis, Craig L. Gitney, Kati Schardl, Mark Mustian, Diane Roberts e o Fermentation Lounge. Obrigado a Amal El-Mohtar por suas observações sobre corujas, e a Dave Davis por inúmeras gentilezas.

Durante a concepção e a execução destes livros, sou grato pelas ideias que encontrei na Semiotext(e) Intervention Series, e particularmente em The Coming Insurrection, que teve uma tremenda influência nos pensamentos da Ave Fantasma ao longo de toda esta obra, e que é citado ou parafraseado nas páginas 252, 253 e 356. Também agradeço às obras de Rachel Carson e Jean Baudrillard; a The Book of Miracles, da editora Taschen; The Sea Inside, de Philip Hoare; Weird Life, de David Toomey; o romance The Sea, the Sea, de Iris Murdoch; as obras de Tove Jansson (especialmente The Summer Book e Moominland Midwinter); Tainaron, de Leena Krohn; as poesias de Pattiann Rogers sobre a natureza; The Derrick Jensen Reader, editado por Lierre Keith; After London, de Richard Jefferies; e Guardians of the Light, de Elinor De Wire. Finalmente, The Seasons of Apalachicola Bay, de John B. Spohrer, Jr., foi como uma revelação para mim durante a escrita de Aceitação — um livro caloroso, exuberante e cheio de sabedoria que me manteve em conexão com os lugares que fizeram a trilogia do Comando Sul um projeto tão pessoal.

Outras pesquisas me obrigaram a visitar, revisitar ou recordar paisagens que me falam de uma maneira útil para minha ficção: o St. Marks National Wildlife Refuge, Apalachicola, a região rural da Flórida e da Geórgia, o Botanical Beach Provincial Park e o Pacific Rim National Park Reserve, na ilha de Vancouver, a costa norte da Califórnia, e as Ilhas Fiji, que me presentearam com uma certa estrela-do-mar.

Gostaria de agradecer também aos inúmeros livreiros maravilhosos, criativos, que encontrei durante minha turnê — vocês me trouxeram muita inspiração e energia —, como também aos leitores entusiasmados e dispostos a me seguir nesta jornada um tanto estranha. Fiquei muito feliz.

Finalmente, confesso a minha humildade e a alegria do meu coração diante de minha esposa, Ann, minha parceira nisto tudo. Ela me encorajou, me escutou, me ajudou a desfazer nós à medida que os rascunhos avançavam, levou para si outros trabalhos que ocupavam minha mesa, e foi muito além dos imperativos do dever ou dos votos matrimoniais para me conceder o tempo e o espaço necessários para escrever estes romances. Nada disto teria sido possível sem ela.

 

 

                                                   Jeff VanderMeer         

 

 

 

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