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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALÉM DO CREPÚSCULO / Maggie Shayne
ALÉM DO CREPÚSCULO / Maggie Shayne

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

        Ele virou-se na cama e constatou que as mãos femininas estavam ainda lá. Queimando-o. A mulher sussurrava em seu tórax palavras carinhosas, tal qual brisa sobre as águas do mar. Ele tremia. Ele transpirava. Ansiava por ar, mas apenas inalava o perfume dela. Estendeu o braço e enroscou os dedos nos cabelos acetinados. Abriu os olhos e encontrou os dela, enormes, escuros, inocentes, olhos sensuais que o fitavam enquanto ele continuava na cama, tremendo de desejo. Sabia que estava perdido. Ergueu os braços, deslizou-os em volta do pequeno corpo a fim de puxá-lo para junto de si. Abriu os lábios e quis provar a suculenta boca...

        Mas não havia ninguém lá. Estava sozinho na cama. Sentou-se depressa, procurando adaptar a vista à escuridão. Com os diabos! Sentia seu corpo mais quente do que o inferno, por causa da fantasia de uma mulher. Ou melhor, uma fada e não uma garota de programa. O que estaria havendo com ele?

        _ Pressao de trabalho! – murmurou, pulando nu da cama para o ritual do banho de chuveiro. Aqueles sonhos vinham há meses já, com regularidade. – Estresse – acrescentou, indo para o banheiro do hotel. Tudo por causa daquele tipo de trabalho! Diabos, fora derrotado em sua última missão...

 

 

 

 

        Isso acontecera há oito meses já e não obtivera nenhum sucesso depois. Cada vez que achava que a havia apanhado, ela inventava um estratagema e fugia. E ele, um agente de organização americana, ainda não conseguira nada. Naquele momento se encontrava ali, frustrado, numa cidadezinha ao norte do Maine.

        Mas o caso era que ele, Stephen “Ramsey” Bachman, famoso caçador de pessoas suspeitas, lidava agora com uma mulher que não tinha nada de humano. A mulher era um vampiro.

        Estava na casa dela. Grande e gótica, mas necessitando de pintura. A porta da frente não fora trancada. Era quase noite.

        Enfim ele a vira no próprio jardim da casa, aquela mulher que estava por mais de uma década na lista das pessoas procuradas. Precisava aprisioná-la a todo custo, e parecia bem perto disso.

        Agarrou com força sua pequena pasta dentro da qual havia três seringas, cada uma contendo uma dose de anestésico, fórmula desenvolvida por Curtis Rogers. Ramsey engoliu em seco. Naquela noite ele testaria a eficácia do produto.

        A enorme porta abriu quando ele a empurrou. Entrou. Não prestou muita atenção às teias de aranha, à poeira, e nem às escadas que rangiam a cada degrau que subia.

        Vinha observando a casa há algum tempo já, desde o instante em que soubera que era dela. O porão, inabitável, tinha apenas um cômodo sem janelas.

        Chegou no andar superior e atravessou um enorme corredor cheio de portas. Sabia muito bem onde se achava o objeto de sua vingança; sua vitória, enfim.

        Girou o trinco e não encontrou resistência. Ficou imóvel, plantado no chão, sentindo que até o ar lhe recomendava cuidado.

        Nada!

        Entrou. Velas iluminavam a sala lançando luzes e sombras nas paredes, no teto, no chão. O som de um órgão ecoava no espaço. Uma sensação desagradável apoderou-se dele. O que estaria ela lhe preparando agora?

        O caixão negro com remates de latão encontrava-se no meio da sala. Rosas murchas o decoravam. Se a encontrasse a estrangularia imediatamente. Estava cansado daquilo, cansado dos jogos e das brincadeiras, tudo com a finalidade de enlouquecê-lo.

        Ele se aproximou do caixão. A música ficou um pouco mais alta quando encostou a mão na tampa.

        Apertando os dentes, abriu-o.

        Ficou então chocado com o que presenciou. A mais horrenda criatura que já vira lá estava deitada. Os cabelos pareciam ninho de ratos, a pele da face era acinzentada, anéis roxos circundavam os olhos, as faces encovadas impressionavam, os lábios entreabertos deixavam em evidência as pontas amareladas dos incisivos. Poderiam se contar os ossos das mãos cruzadas sobre o peito.

        Ramsey apertou com o dedo o braço do defunto. Céus! O corpo que jazia no caixão era de cera. E Cuyler Jade, a mulher que ele procurava, estava provavelmente a cento e cinquenta quilômetros de distância àquela hora.

        Uma risada suave, como água cristalina borbulhando sobre pedras lisas, encheu a sala. Ramsey endireitou o corpo. Lá estava ela, a mão cobrindo a boca, os olhos marotos brilhando à luz dos candelabros e cheios de alegria.

        _ Se você pudesse ter visto sua cara...- Ela riu um pouco mais.

        Cuyler Jader era pequena, tinha cabelos curtos e muito negros. Assemelhava-se a um duende, tal qual Peter Pan.

Impossível. Tudo era produto de sua imaginação, com os diabos. Ela não podia ser a mulher de seus sonhos.

        Ramsey não disse nada. Cuyler entrou no quarto e disse:

        _ Estou cansada dessa caça sem fim, Ramsey.

        _ De que nome me chamou? – Perguntou ele.

        _ Ramsey. Não era assim que todos na escola militar o chamavam? – Cuyler sorriu e foi para mais perto dele. – Não fique tão surpreendido. Não é a primeira regra de todo agente secreto conhecer bem seu inimigo?

        Ramsey observava-a aproximando-se até ela ficar a alguns centímetros de distância apenas. Aquela não era a mulher que procurava, não podia ser. Era, sim, o diabrete de seus sonhos, a diabinha erótica, sexy, de olhar inocente que sorria enquanto o tocava. A mulher que o deixava fora de si com sua atração animal. Ela não era um monstro, não.

A mulher que acabara de entrar estendeu-lhe a pequena mão e quando Ramsey a apertou, ela disse a última coisa que ele queria ouvir: _Eu sou Cuyler Jade. A pessoa que você vem procurando por todo o país, nos últimos oito meses. Ramsey engoliu o nó que tinha na garganta e bem depressa largou a mão dela. _ Como vê, estou aqui - Cuyler prosseguiu. Seu olhar maroto vinha mesclado de um quê de incerteza. Com um sorriso nos lábios, ela sussurrou: _ Minha pergunta é a seguinte, Ramsey: agora que me achou, o que vai fazer comigo. Ele retesou o corpo. Ok, ela era mesmo um vampiro. E, por incrível que pudesse parecer, ele tivera sonhos eróticos com aquela mulher durante muitos meses já. Quase tanto tempo quanto estivera perseguindo-a. E daí? Possuía uma missão a cumprir e isso tinha prioridade, não sua incontrolável libido. _ Vou prendê-la. - A voz de Ramsey soou dura, ríspida. - Bem, você é agora uma prisioneira da organização, miss Jade. Vou levá-la de volta a Nova York, para nosso quartel general em White Plains. _ Vai mesmo? Deus, os olhos dela eram enormes e escuros. E as sobrancelhas fartas fizeram-n se lembrar do Bambi. Considerou-se um verdadeiro caçador sem coração. _ Sinto muito, mas acho que vou levá-la a Nova York - Ramsey repetiu. _E se eu não for com você? Você vai me forçar? Cuyler tinha certeza de que ele não faria isso. Impressionantemente, ficou imóvel enquanto Ramsey abria a pasta e pegava as seringas. _ Vou anestesiar você. Franzindo a testa, ela perguntou: _Esse negócio funciona mesmo? _Será um bom meio de descobrirmos, usando-o agora. - Ramsey deu de ombros.

Tentou segurar-lhe o braço, porém Cuyler escapou. Dando um tapinha no queixo dele, encarou-o mais uma vez, dizendo: _Você achou que eu ia me entregar assim tão sem resistência? Ramsey examinou-a, não ignorando a habilidade que ela possuía para truques e diabruras. E disse: _Por que motivo resistiria você à prisão, sabendo que está nas minhas mãos agora? Ela apertou as pálpebras que cobriam seus olhos negros. Foi para perto de Ramsey, tão perto que seu hálito bafejou-lhe o pescoço. Com as mãos afagou-lhe a nuca. _Por quê motivo?- ela repetiu.- Simplesmente porque você não terá coragem de me prender. Ramsey engoliu em seco mais uma vez, rezando para que ela não chegasse ainda mais perto e acidentalmente pudesse descobrir o efeito que exercia nele. Tentou se recordar quem era aquela mulher que apenas tinha aparência humana. Gotas de suor perlavam-lhe a testa, e ele tentou concentrar-se na missão de cravar agulha no braço delicado antes que ela pudesse fugir mais uma vez. Em vez disso, apenas perguntou: _O quê a faz pensar que não terei coragem? - A voz dele saiu rouca, mas não tão assustadora como deveria ter sido em tais circunstâncias. _Sei sobre os sonhos - ela sussurrou, com um esboço de sorriso nos lábios carnudos. Ele fez esforço para não se impressionar. Bem, mas se impressionou, embora cuidasse em não demonstrar a emoção. _Foi você que causou esses sonhos? Mais um de seus truques? Cuyler sacudiu a cabeça. _Não sei o que ou quem causou esses sonhos, Ramsey. Mas eu os tive também.

 

        Ela observava-o, esperando uma reação às suas palavras. Acreditava mesmo no que dissera, isto é, que Ramsey não teria coragem de levá-la presa. Contudo, sabia que ele não tinha consciência do fato de que não teria essa coragem. A verdade era que Ramsey Bachman precisava ainda aprender muito sobre si mesmo, e concluiu que ela seria a única pessoa capaz de ensinar-lhe.

        Ramsey ficou silencioso durante muito tempo. Depois sacudiu a cabeça e fitou-a bem nos olhos.

        _ Você mente bem, mas não tao bem como pensa. Nunca sonhou comigo.

        _Não? Quer que eu descreva um desses sonhos?

        _Não! – respondeu ele depressa.

        _Amei você em sonhos, sabe que amei. Não tenho vergonha de admitir.

        _Está sonhando é agora, Cuyler.- Ainda segurando a seringa com uma das mãos, ele agarrou-lhe o braço com a outra e conduziu-a para a porta.

        _Venha, não se demore – disse. – Meu carro está aí em frente. Quer antes fazer sua mala?

        _Não ainda. – ela não puxou o braço. Sabia que os rapazes da organização esperavam no carro e seria melhor ter suas chances com Ramsey estando os dois sozinhos. Precisava lançar mão de métodos adequados logo e bem.

        Ramsey já estava desconfiado da calma dela. O que estaria aquela mulher tramando agora?

        _Arquitetando um plano para escapar? – perguntou ele.

        _Tenho uma oferta a lhe fazer. Pode aceitar ou não, tudo depende de você.

        _Nada de ofertas. Vai comigo e já.

        _Não. Irei com você, mas daqui a alguns dias. Por enquanto, nada de truques, nada de habilidades vergonhosas de minha parte. Prometo.

        _Devo acreditar em você? – indagou ele.

        _Quer que eu escreva isso com meu sangue?

        _Ramsey largou-lhe o braço e fitou-a com tanta força no olhar que Cuyler quase sentiu que a tocava com os olhos. Mais ainda, podia sentir a fúria e a dor por detrás daquele olhar. Havia sem dúvida uma grande atração entre os dois. Cuyler não duvidadva disso.

        _ O que você está querendo? –perguntou ele.

        _Quer mesmo saber?

        _Quero, Cuyler.

        Ela inclinou a cabeça para um lado, e falou:

        _Nada de muito difícil. Apenas um pouco de seu tempo. Três noites serão suficientes.

        _Três...

        _Quero que passe três noites comigo. Ao pôr-do-sol do quarto dia irei com você para onde quiser. Ok?

        _Três noites...fazendo o quê? – indagou ele.

        _ Nada do que está pensando. Isso em que está pensando, eu poderia ter feito meses atrás.

        _ Com os diabos que poderia. Claro que não!

        _ Chega de discussões inúteis, Ramsey. Estou certa do que digo e você sabe disso muito bem. Já imaginou acordar uma noite depois de sonhos quentes, sensuais e encontrar uma mulher nua dormindo em seus braços? Acha que viraria para o outro lado e dormiria de novo? – Cuyler ficou bem perto dele e, na ponta dos pés, tocou-lhe o queixo com o nariz. – Penso que não.

        _Não me interessa o que você pensa. Nesse caso, se não quer dormir comigo, para quê as três noites?

        _ Posso sempre dormir durante o dia. – Cuyler passou as mãos pelos cabelos, sorrindo.

        Ramsey estava furioso. Ela não esperava essa reação da parte dele. Pegou uma vela branca e aspirou a fragrância. Mas apesar das dificuldades com que não contava, continuaria lutando.

        _ Olhe, Ramsey, preciso passar algum tempo com você, só isso. Quero chegar ao fundo dessa...coisa.

        _Que coisa?

        _Saber que eu poderia ter deixado que você morresse, meses atrás, ou que fosse inutilizado? – disse ela. – Poderia ter fechado meus olhos e permitir que o destruíssem.

        _E por que não permitiu?

        _Não sei! Essa é a coisa que pretendo descobrir. Não posso admitir que firam você. Quero cuidar de você, mas...

        _Cuidar de mim? Você? É cômico.

        _Entendo, quando sei que está planejando me arrastar para um campo experimental.

        _Não é isso...

        _Não se preocupe, Ramsey. Mas ouça-me, eu lhe fiz uma oferta. Qual é a sua resposta?

        _Sinto muito, Cuyler, mas já sofri em conseqüência de vários de seus estratagemas. Não acredito em você nem por um segundo e nada de três noites. Vou levá-la já. Por que adiar o inevitável?

        _Eu é que sinto muito, então. Acho que você não tem escolha, Ramsey.

        E antes que ele pudesse impedir a ofensiva, Cuyler arrancou-lhe a seringa da mão, jogou-a no chão e esmagou-a com os pés. Fitando-o depois, desafiou-o:

        _Tente me injetar esse maldito líquido de novo!

        _Maldita seja você, mulher! O que...O que...

        Cuyler segurou-o pelos ombros e sussurrou:

        _É melhor você se sentar, Ramsey.

        Ele obedeceu. Ergueu a cabeça, com olhar furioso e gaguejou:

        _Eu sabia...que não poderia...confiar em você.

        _Pode sim, Ramsey. Juro que pode. Verá como pode.

 

        Ramsey abriu os olhos vagarosamente e surpreendeu-se por ainda poder abri-los. As marteladas em sua cabeça eram prova de que continuava vivo. Então, ela apenas o drogara...mas com que finalidade?

        Ramsey esforçou-se por se sentar, e sentiu as mãos de Cuyler pressionando-lhe os ombros, forçando-o a deitar.

        - Fique na cama por mais alguns minutos, vai ajudar. – Ela colocou uma toalha úmida sobre sua testa.

        _Onde estou?

        _Em meu esconderijo. Não posso lhe dizer onde fica. Não quero que saia por aí correndo para informar seu quartel general sobre meu único refúgio.

        Ramsey rangeu os dentes. Assim que recuperou as forças ergueu-se, esfregou as mãos e caminhou até o peitoril da janela. Olhou para fora.

        Tudo o que pôde ver foi neve, colinas e vales envolvidos num lençol branco. Virando-se para Cuyler, repetiu a pergunta:

        _Onde estou?

        _Ao norte. Definitivamente ao norte.

        _Ao norte do quê?

        _Ao norte de tudo. – ela sorriu, um sorriso brejeiro cheio de malícia.

        _Com os diabos, Cuyler...

        _Ouça, tudo de que você precisa saber é que estamos a milhas de distância de qualquer ser humano. Não há estradas, transportes, ou telefones por aqui. Nada. Só você e eu. E aqui ficaremos durante as três próximas noites. Exatamente como lhe falei. E não fique preocupado. Eu o levarei de volta depois que souber o que desejo saber.

        _E se não há transporte, como chegamos aqui? – Ele perguntou, sacudindo a cabeça.

        _Isso não importa.

        Ele passou a mão pelos cabelos, examinou o quarto e tomou a direção da porta aberta. Cuyler seguiu-o. Ramsey ouvia os passos dela no piso de cerâmica enquanto atravessava os corredores, lançando um rápido olhar pelos quartos mobiliados como num país de fadas. Cetins, babados e rendas. Objetos de valor por toda parte.

        Encontrou logo as escadas, largas de pedra com corrimão de madeira trabalhada. Outra lareira, mais lampiões de gás, mais pedras. E mais móveis antigos e caros.

        As portas da frente eram enormes, duplas, com vitrais coloridos. E estavam abertas. Ele correu para fora. Mas encontrou apenas gelo, nada de vida. Uma sensação de ruína pesou sobre seus ombros como um pilar de centenas de quilos.

        Cuyler tocou-o, de novo. Segurou-lhe o braço e disse:

        _Volte para dentro, Ramsey. Tudo sairá bem no fim, prometo.

        Ele entrou, porém protestando.

        _Não sairá bem coisa nenhuma – disse.

        _Sairá. – Cuyler fechou a porta.

        _Há coisas importantes de que preciso...

        _Eu sei, a insulina.

        _Como sabe? – Ramsey indagou, surpreendido.

        _Trouxe tudo de seu hotel, roupas, remédios, tudo, tudo. A única coisa que não trouxe foi aquela maldita droga que você pretendia injetar em mim. Isso me desapontou muito, Ramsey. Nunca pensei que tivesse coragem de cometer tamanha crueldade comigo. Mas teve.

        _Considera-me um canalha, não? Contudo, não hesitou em fazer o mesmo.

        _Talvez me considere indigna. No entanto, o incenso é inócuo. Seu efeito dura algumas horas e o único dano colateral é uma incômoda dor de cabeça. Por sinal, quer uma aspirina?

        _Não quero nada, exceto sair deste inferno. – ele estava furioso. Detestava se sentir aprisionado em armadilha. Detestava saber-se trancado num castelo em miniatura e, pior de tudo, junto com o objeto de suas fantasias. E sabendo que não poderia encostar um dedo nela. Era isso. Um inferno na terra.

        _Mas vai sair daqui, Ramsey, e logo. Porém há coisas que preciso descobrir.

        _ Se pretende descobrir segredos do laboratório de pesquisas científicas por meu intermédio, está...

        _Não quero descobrir segredos da sua preciosa organização, Ramsey, mas segredos sobre você. – Cuyler o fez sentar-se junto à lareira. – Relaxe, Ramsey. Por favor, tente aceitar que terá de permanecer aqui por alguns dias, para resolver meu problema. Considere isso como se fosse uma curta temporada de férias.

        Ramsey fitou os olhos de expressão inocente, surpreendendo-se de que pudesse esconder tanta falsidade.

        _Férias? – indagou.

        _O lugar é agradável, seguro. Há muita comida e vinho também. O de sua preferência. Quer beber um pouco agora?

        _Para você poder me anestesiar de novo?

        _Não vai ser mais necessário.

        Cuyler afastou-se alguns passos e pegou uma garrafa de vinho e copos de cristal. Nesse instante, Ramsey acreditou que pudesse fugir. Mas, para onde? Não havia lugar habitável na redondeza.

        Cuyler ajoelhou-se em frente da poltrona dele e fitou-o com grande intensidade no olhar. Ramsey jurou a si mesmo que não acreditaria em nenhuma palavra que saísse daqueles lábios úmidos e tentadores. E não iria alimentar pensamentos eróticos considerando-se a situação em que se encontrava.

        _Quero lhe dizer uma coisa, e insisto que me ouça – declarou ela. – Estou cansada desse jogo, dessas tramas. Tudo que lhe disser daqui por diante será a pura verdade. E quero que me pague com a mesma moeda. – Ela fez uma pausa, mas ele não disse nada. – Ramsey, se você me levar para aquele laboratório de pesquisas em White Plains, eu morrerei.

        _ Bobagem. White Plains não tem por hábito assassinar...

        _Mas assassina.

        _São cientistas, querem saber tudo sobre você...

        _Eles querem erradicar nossa espécie deste planeta.

        _ Sim – Ramsey suspirou. – Sim, mas não matando ninguém e sim encontrando uma cura.

        _Uma cura?! Onde aprendeu essa coisa ridícula, Ramsey? Isso não é doença. Não precisamos de cura, pelo que somos da mesma maneira como você não precisa de cura por ser alto e ter olhos cinzentos.

        _Não gostaria de ser humana de novo? De ter sensações normais de novo?

        _Sou tão humana quanto você. Maldição! E o que o faz pensar que não tenho sensações? O velho manual da organização? Não somos animais sem emoção, matadores a sangue frio.

        _Não são? – Ele engoliu o nó que tinha na garganta.

        _ Não, não somos. Eles é que são. Você tem idéia, Ramsey, de quantos de nós morremos nas mãos desses homens da ciência em nome da chamada pesquisa científica?

        _ Não se esqueça de que você me prometeu ir para lá comigo, sem resistência, depois de três noites.

        _Prometi. Se você ainda quiser me levar.

        _ Por quê diz isso?

        _Porque sinto que não quererá. Tenho tanta certeza como sei que meu nome é Cuyler. Não posso precisar por que, mas tenho certeza.

        _Isso não faz sentido como não faz sentido ter me arrastado até aqui.

        _Acho que faz sentido. – Ela apertou a mão dele, e Ramsey sentiu um calor percorrendo-lhe o corpo todo. Algo estranho aconteceu, ele sentiu-se invadido, como se a alma de Cuyler se misturasse com a sua.

        _ Sente alguma coisa? – ela sussurrou. – Há algo entre nós, Ramsey, e você sabe que há.

        Ramsey sacudiu a cabeça num gesto negativo e puxou a mão. Seria aquela outra artimanha de Cuyler?

        _ É uma coisa mais poderosa do que a conexão que senti até hoje com um dos Escolhidos – ela prosseguiu, conservando os olhos baixos.

        _ Os Escolhidos...Esse é o termo usado para os humanos com essa rara beladona, esse antígeno no sangue? – Ramsey endireitou o corpo, imaginando que talvez conseguisse algo instrutivo durante seu aprisionamento, para levar de volta a casa. Isso se um dia voltasse.

        _Esses são os únicos que podem ser transformados. E qualquer mortal pode ter esse antígeno. Mas você não tem. Eu teria percebido imediatamente se o tivesse.

        _Como?

        _Sentimos isso. Não posso explicar, mas sempre sabemos. Temos uma necessidade instintiva de observar essas pessoas, de protegê-las...

        _Fazê-las semelhantes a vocês?

        _Não, nunca, a menos que o desejem, e, que nós tenhamos certeza de que podem se aproveitar disso. A maioria não pode, penso.

        Ramsey estudou a expressão do olhar dela por longo tempo. Cuyler lhe revelava coisas, e não precisava fazê-lo. Afinal, estava sendo honesta. Ele lera algo sobre as conexões entre humanos e vampiros. O que Cuyler dissera concordava com as experiências do departamento de pesquisas sobre o assunto. Portanto, fora ela sincera ao dizer que não mentiria, ou estaria apenas tentando angariar sua confiança?

        Mas...bobagem sua imaginar que Cuyler era sincera. Apenas usava outro truque.

        _Em geral há sempre uma pessoa em particular pela qual um vampiro sente enorme conexão. Certo? – disse ele, lembrando-se dos estudos que fizera. – Então, quem é seu escolhido?

        _ Você!

        _Isso não faz sentido, Cuyler. Não tenho esse antígeno.

        _E pensa que não sei? – ela gritou.

        Ramsey estava completamente confuso. E acrescentou:

        _Nesse caso, por que acha...

        _Sonho com você, Ramsey. Penso em você o tempo todo quando estou acordada. Sei quando está irritado, quando está doente, quando sente dor. Desejo-o a ponto de enlouquecer, e mais do que isso, talvez.

        Cuyler o desejava, e isso o apavorava, pois sabia que com mulheres daquela espécie o desejo sexual vinha misturado com sangue. Se ela o desejava, não apenas queria-o na cama como também queria drenar-lhe toda a energia.

        Era essa a outra razão para controlar o desejo que crescia hora a hora dentro de si. Diabos, se ele fraquejasse, acabaria morrendo.

        _Você pode me destruir – Cuyler continuou. – Eu devia fugir o mais depressa possível, mas tudo o que desejo é ficar junto de você. Minha vida tem sido um tormento...acordo frustrada e confusa em vez de descansada e forte. Estou ficando louca, Ramsey. Tudo o que quero saber é por que. Pode me culpar por tudo isso?

        Ramsey teve dificuldade em engolir ao ver que uma lágrima escorria pela face dela. Não uma lágrima encomendada. Cuyler enxugou logo o rosto com o dorso da mão. Por uma razão que Ramsey não poderia explicar, teve vontade de abraçar a sofredora pequena fada e fazê-la feliz. Rangeu os dentes e retesou o corpo. Cuyler era sua inimiga, a perita em mentiras. Tinha a idéia de morte na mente: a morte dele. Não podia se esquecer disso.

 

        Nos escritórios particulares do quinto andar de um edifício em White Plains, em Nova York, três homens olhavam para uma pequena tela, observando a minúscula luz que acendia e apagava, incessantemente.

        _Alguma coisa deve estar funcionando mal – disse Stiles.

        _ Não, não é isso. É que fica tudo escuro lá dezoito horas por dia, nesta época do ano – comentou Wholey. – Perfeito para eles.

        _ Mas por que aquela mulher o levaria para lá?

        O terceiro homem que não falara ainda, tirou o cachimbo da boca e bateu o tabaco num cinzeiro de plástico.

        _Sabia que ele se viraria contra nós – disse. – Diabos, estava na cara, seria apenas uma questão de tempo. Estou contente por ter posto na mala de Ramsey um mecanismo para descobrir a pista seguida.

        _Uma questão de tempo? Como assim? – indagou Stiles, de testa franzida. – Você parece que estava esperando por isso.

        _E estava – Fuller respondeu.

        _Mas, Fuller, eu não...

        _Até que chegue o momento, não se dê ao trabalho de fazer perguntas.

        Stiles suspirou e indagou:

        _ Então, o que iremos fazer?

        Fuller levou algum tempo reenchendo o cachimbo.

        _Temos mapas, alguma informação, equipamentos, e chegaremos lá. Faremos a pesquisa de duas pessoas pelo preço de uma.

 

        Não era o castelo que parecera inicialmente. Na verdade, era bem menor, todo construído de pedra. Cinzento escuro aqui, cinzento mais claro acolá. Algumas vezes branco. Os cômodos eram enormes e os tetos altos como os de uma mansão.

        O andar térreo constava de três cômodos. O da frente, uma sala de estar com lareira, era digno de um rei. A sala da jantar, espaçosa, tinha lareira também. Na cozinha, mínima, havia uma geladeira e um fogão a gás. A gás era também a iluminação da casa. As torneiras da pia funcionavam bem, com água quente e fria. O local possuía todo o conforto.

Tudo aquilo fez com que Ramsey pensasse nos castelos encantados dos contos de fadas. Em todo o lugar havia cristais. Enormes blocos de quartzo brilhavam ante seus olhos, as ametistas roxas cintilavam, como também o lápis-lazuli de um tom azul que doía na vista. Havia também uma infinidade de estatuetas de estanho impossíveis de ser identificadas. E fadas, unicórnios, dragões, mágicos. Meu Deus, havia centenas disso. E a arte que adornava as paredes era impressionante em sua beleza. Nada de tons pastéis, mas apenas cores como o cinza, o marrom e o azul escuro.

        Interessante.

        _Satisfeito?

        Cuyler sentava-se numa poltrona junto ao fogo com as pernas cruzadas. Não acompanhara Ramsey em sua exploração pela casa. Afinal, não havia possibilidade de ele escapar. Houvesse alguma, não o deixaria fora de suas vistas.

        _ Não olhei em cima ainda – declarou Ramsey.

        _Em cima há três quartos com um banheiro. Mas sente-se agora para conversarmos.

        _ A casa parece maior do que na realidade é – comentou ele.

        _ É verdade. Mas, por favor, Ramsey, há muito mais coisas que quero saber.

        _ Como encontrou esta casa? – Ramsey serviu-se de um pouco mais de vinho, sempre de costas para Cuyler. Tinha de evitar fitá-la se quisesse manter o controle.

        _ Mandei construí-la. Sempre quis ter um castelo só meu. Desde menina.

        _Quantos anos você tem, Cuyler?

        _ Noventa e nove. – Ela sorriu ao dizer. Seus olhos expressavam malícia. – Ótima espiã considerando-se minha idade, não acha?

        _ Há quanto tempo você está...

        _ Nunca fez muitas pesquisas sobre mim, fez, Ramsey?

        _ Pesquisar não é minha profissão. Apenas aprisiono.

        _ Ah, esqueci. Você só nos caça.

        _E não vou pedir desculpas por isso.

        _ E quem lhe pediu que se desculpasse? Apenas me pergunto por que de repente se interessou por mim.

        _Curiosidade. E ordens da organização.

        _ Só isso? – Ela não o fitou. Apenas deu um suspiro antes de continuar: - Eu tinha vinte e cinco anos. Minha irmã e eu dançávamos num cabaré de Chicago, durante a Lei Seca.

        _ E você foi dançarina de cabaré?

        _ Era jovem e precisava de dinheiro. – Cuyler sacudiu os ombros e riu.

        Ramsey riu também. Não pôde evitar. Ela era tão graciosa! Muitas vezes, mesmo quando estava furioso, de mau humor, Ramsey sorria e sacudia a cabeça com os comentários de Cuyler. Aquela manequim do caixão, muito bem preparada, fora um bom exemplo do temperamento jocoso dela.

        _ Honestamente – disse Cuyler – eu gostava de dançar. Nós duas gostávamos de dançar. E dançávamos bem.

        _ Acredito. E depois, o que aconteceu?

        _ Havia aquela mulher, muito estranha, a mais linda mulher que eu já conhecera. Era elegante; não, régia seria a palavra certa. E era divertida também. Estava lá todas as noites, suplicando-nos que a ensinássemos a dançar. Uma noite apareceu com roupas exageradas e dançou conosco no palco. Todos os homens ficaram encantados.

        _ E onde foi parar essa mulher?

        _ Não tenho idéia. Talvez tenha ido para seu próprio mundo. Ela era muito esquisita, já falei, não? Uma noite houve uma batida da polícia. Os donos da boate fugiram, claro, e nós fomos pegas por soldados armados de metralhadoras.

        Cuyler ficou em pé diante dele, e levantou a blusa para mostrar as marcas dos ferimentos.

        Ramsey lambeu os lábios e tentou negar a reação surgida à vista da pele esticada, do ventre chato, da curva da cintura, da depressão escura do umbigo. Retesou o corpo quando ela tomou-lhe a mão e puxou-o. Não reagiu em contrário. Então, com a palma das mãos, pressionou a carne quente de Cuyler e sentiu um frisson repentino. Esse frenesi não deveria ter aparecido. Mas apareceu, e ele pôde senti-lo muito bem. Por quê?, se perguntou.

        Ramsey abraçou-a pela cintura e notou logo as cicatrizes. Bem devagar se deu conto do porquê daquelas marcas e, por uma razão qualquer, seu estômago se convulsionou, formando-se um verdadeiro nó. Pôs o copo de vinho sobre a mesa e levantou-se, sem tirar as mãos da carne quente de Cuyler. Agarrando-a mais firmemente, bem devagar deslizou a ponta dos dedos pelas costas dela, sob a blusa, indo até os ombros.

        Tentou ignorar as cicatrizes deixadas na carne tenra pelas balas que lhe atravessaram o corpo. Mas não conseguiu. Sua garganta estava fechada. Ele então a enxergou subitamente com os cabelos revoltos enfeitados de plumas, o vestido cheio de buracos, o pequeno corpo de fada crivado de balas.

        Fechou os olhos, tentando afastar a imagem tétrica. E Cuyler chegou mais perto.

        _ Minha irmã foi assassinada, e eu não estava muito longe dela. Mas aquela mulher estranha, vendo-me em perigo, levou-me para longe do local, enquanto as balas ainda cortavam o espaço. Não sei como conseguiu isso, só sei que conseguiu. Ela me fez deitar na calçada e perguntou se eu queria viver.

        _ E você disse que sim? – indagou ele.

        Cuyler fitou-o, surpreendida com a pergunta. Ramsey parou de acariciá-la. “Devo tirar as mãos dos ombros dela”, pensou . “Devo, realmente devo”.

        _ O que você teria dito? – Cuyler enfim perguntou.

        Ramsey sacudiu a cabeça lentamente. Não era uma pergunta fácil de se responder, não uma simples escolha entre o bem e o mal. Afinal, a estranha mulher cobraria um preço muito alto pelo seu serviço. Mas ele não conseguia afastar da mente a imagem do pequeno corpo movimentando-se como uma marionete enquanto as balas cortavam o ar. E depois como que enxergou Cuyler deitada na calçada, imóvel, a vida lhe sumindo aos poucos. Por que seria aquilo tudo tão nítido em sua mente? Com as mãos Ramsey apertava, agora com com força, os ombros de Cuyler, numa atitude natural em resposta à situação de uma vida que vira sumir aos poucos.

        _ O que eu teria dito? – ele repetiu. – Francamente, não sei.

        _ Com certeza eu não saberia também, se a mulher me tivesse feito a mesma coisa enquanto eu estava forte e viva. Mas naquele momento eu sangrava, estava morrendo; nem podia mais sentir dor. Por isso falei “sim”.

        “Não, não posso condená-la”, ele disse a si mesmo. Não podia se imaginar agindo diferentemente em situação idêntica.

        Mas aquela decisão repentina pareceu ser o começo de tudo na vida estranha de Cuyler. E ele quis saber o resto.

        _ O que houve depois? – indagou. – Lamentou sua escolha?

        _ Ela cerrou as pálpebras e sorriu suavemente.

        _ Não se preocupe, Ramsey. Eu não me transformei numa pessoa diferente, as mudanças foram apenas físicas. Sou a mesma Cuyler por dentro. Um pouco mais vulnerável, talvez, tal qual alguém que acredita em contos de fada. Caçoísta? Sim. Mas no fundo sou a mesma, minha alma continua sendo a mesma.

        Por um segundo Ramsey se perguntou se era justo arrastar aquela criaturinha frágil ao centro de pesquisas. Ele fitou os olhos enormes, os lábios úmidos, e sentiu o corpo dela junto ao seu. Prosseguiu apertando-lhe os ombros com mãos firmes. Cuyler ficou na ponta dos pés, levantou a cabeça e encostou os lábios nos dele.

        O ruído da resina quente que escapava das achas da lareira ficou mais alto no momento em que os lábios de ambos se juntaram, Ramsey sugando-lhe a boca, explorando-a com a língua. Porém, um ruído mais forte do crepitar das chamas rompeu a magia, como um choque elétrico. E ele achou que não teria se entregado assim tão facilmente não tivesse sido pela aceitação incondicional de Cuyler. Nesse instante enxergou o corpo sem vida de sua mãe, os olhos parados. Fora esse o motivo que o fizera entrar no serviço policial.

        Ele levantou a cabeça e afastou-se. Maldita mulher, o fizera recordar fatos que desejava esquecer. Os sonhos que tivera com ela, as cenas eróticas, tudo fazia então parte de um plano?

        Ramsey tentou encará-la, mas Cuyler olhava para todos os lados, exceto para ele.

        _Desculpe, não quis provocá-lo. – Com as mãos ela eriçou os cabelos que se transformaram num tufo de plumas. – O que se passou agora entre nós não se repetirá-. Não foi para isso que o trouxe para cá.

        Cuyler se desculpava, pensou Ramsey. Por que diabos se desculpava? Ele sacudiu a cabeça.

        _Ouça, Ramsey. Não estou procurando seduzi-lo. Se pudermos chegar a um entendimento, quero que seja por você ter confiança em mim, e não porque sua libido é forte demais para ser controlada.

        Ramsey estava mais confuso agora do que nunca. A sedução seria a melhor arma de Cuyler, naquele lugar. Estaria ela falando a verdade, tentando lhe dizer que nem ao menos tentaria conquistá-lo? Céus, devia se sentir aliviado, não era mesmo? Não precisaria se preocupar com uma paixão que o consumiria até a morte. Ao contrário...

        _ Você devia comer qualquer coisa, Ramsey – disse ela. – E sua injeção de insulina antes de ficar doente.

        Ramsey franziu a testa, olhando pela janela e vendo que continuava a escuridão do inverno.

        _A que distancia estamos do pólo norte, Cuyler? Os dias não deviam estar mais claros agora?

        Ela sacudiu a cabeça, num gesto negativo.

        _ Ainda amanhece mais ou menos às nove horas e anoitece às três da tarde. Por isso gosto deste lugar de inverno prolongado.

        _ Não fica cansada de clima tão austero? Não é fácil se saber quando é a hora de ir para cama e a hora de se levantar.

        _Céus, Ramsey, desde que você está comigo não sei o que é dormir.

        Ele entendeu que Cuyler se referia aos sonhos. Queria evitá-los. Talvez os tivera mesmo, então. Ele duvidara disso, mas havia uma chance, uma pequena chance de ser verdade. Sim, havia uma chance, ele finalmente se convenceu, e por essa razão Cuyler o levara para lá. Embora Ramsey não quisesse confessar a ela, admitiu a veracidade dos sonhos. Mas havia uma única diferença: Cuyler sabia quem era seu prisioneiro, mas ele apenas conhecia uma fada de enormes olhos sensuais que o seduzia nos sonhos. Portanto, talvez o desejo de Cuyler fosse apenas decifrar essa coisa, e quem sabe o deixasse partir quando obtivesse suas respostas. Talvez...ela estivesse falando a verdade.

        Mas duvidava muito.

       

Wes Fuller segurou o isqueiro junto ao cachimbo e inalou até que o acendesse. Deu uma baforada no ar, sentindo imenso prazer. Em seguida segurou o cachimbo fora da boca e ficou soltando anéis de fumaça enquanto estudava os mapas pendurados na parede.

_ O único meio de descobrirmos alguma coisa será usando o helicóptero. Mas eles ouvirão o ruído anunciando nossa chegada. – era Stiles quem falava, o auxiliar número um do chefe da organização. Stiles sempre fora o mais cauteloso dos três, o mais preocupado. – Poderemos, claro, aterrissar a alguns quilômetros de distância e caminharmos depois. Mas será necessário chegarmos e sairmos com a luz do sol. Temos de sair de lá antes da escuridão.

_ O que há com você, Stiles? Tem medo de que nós três não consigamos controlar a tal mulher? – Esse era Whaley, o intrépido. Whaley adorava uma luta. Seus olhos brilhavam, como se estivesse com febre.

_ Stiles tem razão nesse caso - Fuller disse vagarosamente. – Não há condições de sabermos se a mulher está lá sozinha ou não. Pode haver meia dúzia de pessoas com ela.

Stiles arregalou os olhos.

_ Não pensei nisso – disse. – Meu Deus, será que Bachman ainda está vivo? E se o levaram lá apenas para...

_Ele está vivo – afirmou Fuller.

_Mas, sir, como pode...

_ Ele está vivo. Ninguém mataria Bachman. Se alguém quisesse matá-lo, já o teria feito. Confesso que sempre dei a ele as missões mais arriscadas, e agora mandei-o para o pior delas. Mas Bachman nunca foi ferido irremediavelmente, e nunca ficou com seqüelas.

Stiles suspirou.

Whaley franziu a testa e observou:

_ Está me dizendo que, apesar de saber dos perigos, expôs Bachman a situações de alto risco?

Fuller sacudiu a cabeça, concordando. Whaley teve vontade de esbofeteá-lo. Mas jamais faria isso. Era um subordinado e conhecia bem seu lugar. Fuller percebeu a reação dele pelo brilho do olhar e disse:

_ Com o tempo, você entenderá, Whaley. Por enquanto confie em meu julgamento. Há muito venho observando Bachman cuja utilidade para a organização está decrescendo. Confio nele sempre com um pé atrás. Na verdade, nunca foi um de nós. O caso é que Bachman ignora isso.

 

Ele comera, injetara a insulina, e percorrera a casa de ponta a ponta. A coisa mais interessante que vira fora um trenó no porão e alguns arreios pendurados na parede. Nada de cachorros e nem de construções nos jardins onde os animais poderiam estar. Os trenós pareciam não ter sido usados há anos. Enfim, tudo o que encontrara era interessante, mas inútil.

Agora examinava o quarto de Cuyler. Ela dormia profundamente. Ramsey ficou algum tempo aos pés da cama, fitando-a através das transparentes cortinas vermelhas. Cuyler estava descoberta, deitada de lado, abraçada ao travesseiro. A camisola, erguida, escondia muito pouco. As pernas não eram longas, mas bem formadas, e ele viajou com o olhar na coxa exposta aos pequenos dedos dos pés.

Fez esforço e olhou para o outro lado. Fora ver se Cuyler tinha segredos escondidos no quarto, não fora? Bem, devia então estar procurando por esses segredos em vez de ficar apreciando um corpo perfeito, temendo o tempo todo que ela acordasse caso fosse examiná-la mais de perto. Não esperara ver coisa tão linda. Imaginou que Cuyler se assemelhasse a um cadáver enquanto dormia, deitada de costas, as mãos cruzadas sobre o peito, sem respirar, fria. Em vez disso tinha aspecto igual ao de qualquer outra mulher. Relaxada. Quente. Respirando com regularidade. Não, não como qualquer outra mulher. Muito melhor. Quase irresistível na sua vulnerabilidade naquele momento.

Engoliu em seco e caminhou até a cômoda. Havia lá três fotos dela com outra jovem, ambas vestidas extravagantemente, como coristas. Não gostou nem um pouco de vê-la com aqueles trajes. Sabia que ela era mortal na ocasião em que a fotografia foi tirada. Vampiros não apareciam em fotos. Contudo, não conseguia ver nenhuma diferença na Cuyler que acabara de conhecer. Sorriso brejeiro, olhos brilhantes, inocência e sex-appeal, tudo embrulhado no pacote mais atraente do mundo.

Das fotos, ele passou aos livros. Havia pelo menos uma centena deles, alinhados nas prateleiras contra as paredes e, ao verificar os títulos, notou que todos eram de histórias sobrenaturais. Contos de bruxas, cavaleiros e dragões, magia. Com certeza, livros da preferência dela.

Resolveu abandonar o quarto porque, embora quisesse investigar mais, seu olhar teimava em voltar á mulher ali adormecida. Não devia continuar. Era muito perigoso. Deus, poderia ela enfeitiçá-lo mesmo quando dormia?

Ramsey desceu e foi à sala de jantar. Examinou os livros e constatou que tratavam do mesmo assunto. Histórias fantásticas sobre outros mundos onde o bem sempre vencia o mal. Irônico...

De repente, viu algo diferente. Puxou um compêndio e franziu a testa. Sorriu. Era sobre vampiros. Tornou a pô-lo no lugar, desejando ter tempo para ler a fim de saber com que os modernos escritores de ficção sonhavam. Mas precisava dormir um pouco.

Cuyler contorcia-se na cama, sabendo que tudo não passava de sonho, mas usufruindo um puro e tormentoso prazer, de qualquer forma . Ele a beijava...a boca era quente, úmida, ávida, enquanto se movia das pontas de seus dedos ao pulso, do antebraço ao cotovelo. Ele roçou com a língua a pele sensível, caminhando até o ombro, até o pescoço. E ela deitou a cabeça para trás, gemendo suavemente. Enterrou os dedos nos cabelos de Ramsey enquanto ele baixava-se as alças da camisola, beijando-lhe os seios com boca faminta e abrindo-lhe as pernas com o joelho.

Cuyler tocou o tórax de Ramsey, afagando-o com dedos ágeis, e foi descendo, descendo, até atingir o centro do desejo.

Ramsey fitou-a então, não dizendo nada; apenas fitou-a. Em seguida fechou os olhos, e Cuyler percebeu que a necessidade dele era quase dolorosa. Entregou-se. Ergueu os joelhos, desesperada também pelo ato sexual. Precisava daquilo, precisava dele. Ninguém, nada mais, poderia preencher o vazio do seu coração. E somente ela poderia suavizar a dor do outro coração ferido, apagar o sofrimento que obscurecia a mente de Ramsey, e substituir o ódio e a fúria pela ternura e o amor.

Ela estendeu as mãos a fim de puxá-lo para dentro de si...

Mas havia apenas...o nada. Arregalou os olhos e gritou de frustração, puxando os cabelos. Pegou o travesseiro e atirou-o longe, atingindo vários objetos de estanho e depois gemeu como um animal ferido.

A porta se abriu e lá estava ele, encarado-a surpreendido, o rosto em chamas, gotas de suor na testa. Respirava irregularmente. Quando os olhos de ambos se encontraram, Cuyler concluiu que Ramsey tivera o mesmo sonho. Cada imagem de que se lembrava estava refletida nos olhos dele.

_ Você gritou – disse Ramsey. – Está se sentindo bem?

_ Não agüento mais isso, Ramsey.

Ele sentou-se na cama e seu peso fez o colchão afundar. Agarrou os ombros de Cuyler com mãos firmes.

_ E acha que eu não sei? – perguntou. – Também estou ficando louco.

Ela soluçou, e Ramsey a fez encostar a cabeça em seu peito. Cuyler sentiu a carne quente, os músculos rijos, o cheiro masculino, e desejou-o com loucura. Passou os braços em torno da cintura dele.

_ Maldição, Ramsey, por que teve de entrar aqui em meu quarto justamente agora? Você está tornando as coisas ainda piores. – Cuyler pressionou os lábios contra o tórax dele, provando a carne quente.

Ramsey a fez inclinar a cabeça e beijou-lhe os lábios. Ela abriu a boca permitindo que com a língua ele a explorasse, num jogo erótico. Caiu na cama de novo, e Ramsey acomodou-se em cima dela. Cuyler sentiu o membro masculino pronto para o ato do amor, e arqueou o corpo.

Ramsey afastou-se então, sentando-se na cama de costas para Cuyler.

_ Diabos, Ramsey...- Ela tentava segurar as lágrimas de frustração.

_ Não posso, não posso fazer isso, Cuyler.

_ Nesse caso, por que você...

_ Não foi minha intenção. Céus, Cuyler, eu estava meio dormindo, provavelmente por ter tido o mesmo sonho que o seu. Mas isso tudo é loucura, verdadeira loucura. – Ramsey andava pelo quarto, tenso.

_ Talvez se nos amarmos ao menos uma vez, os sonhos sumirão...- ela opinou.

_ Não!

_ Você tem medo de mim, não tem? Receia que eu deseje mais do que apenas seu corpo?

_ E estou, por acaso, enganado?

Cuyler fechou os olhos e rangeu os dentes. Por mais que o desejasse, não perderia o controle mesmo no auge de sua paixão. Procurando ser honesta, respondeu:

_ Desejo. Porém jamais o feriria, Ramsey. Tem de saber isso. Não o forçaria a nada, mesmo que eu quisesse.

_ Se você fosse capaz de me ferir, duvido que eu ainda estivesse respirando agora. Portanto, acho que preciso acreditar no que me diz.

_ Então por que...

_ Ouça, já lhe disse, não posso. Seria uma agressão à natureza...- Ele parou no meio da sentença, devido talvez ao choque e à dor que vira estampados no rosto de Cuyler, ou quem sabe por causa do gemido involuntário que ela deixou escapar. – Não foi isso que eu quis dizer. Espere...

_ Vá para o inferno, Ramsey!

Ela levantou-se da cama e foi ao banheiro, batendo a porta com força e trancando-a.

 

Cuyler não disse uma palavra quando saiu do banheiro, vestindo calças pretas e um longo suéter branco. Mas não precisava falar nada, pois Ramsey podia ver a dor em seu olhar. Ele sentia-se como uma bala assassina, como uma cobra venenosa. Sentia-se como o ser mais abjeto do mundo, mais desprezível. Mas pior ainda, não tivera a intenção disso. Sua voz de auto preservação era a culpada de tudo, pois tentara convencê-la de que devia se afastar de Cuyler. Céus, procurara se proteger contra ela, crendo que lhe faria algum mal se a amasse. Mas, bem no fundo, não acreditara nisso.

Uma agressão à natureza. Ele dissera essas palavras e havia sido como se a tivesse apunhalado. Mas não tencionava magoá-la. Porém, pensando bem, por que motivo considerava lamentável o resultado obtido? Por que essa súbita transformação radical no seu modo de pensar?

Cuyler sentou-se na cama, para calçar as meias e os sapatos. Ramsey sentou-se ao lado dela e, no instante em que os corpos se tocaram, ela levantou-se e foi ao banheiro fingindo ter esquecido alguma coisa lá.

_ Cuyler, ouça-me, eu...- O ruído de um secador de cabeços impedia-a de escutar.

Ele entrou no banheiro. Ela sentava-se numa banqueta secando os cabelos. Não havia nem mesmo espelho naquele local. Ramsey quis dizer alguma coisa, mas não sabia bem o quê. Não desejava propriamente se desculpar. Santo Deus, afinal, ela continuava sendo sua inimiga. O fato de estar ardendo por dentro não devia mudar em nada seu comportamento. Mas jamais a magoaria, isso nunca. E, apesar de seus anos de estudos sobre vampiros, e sabendo que eles não tinham sentimentos, duvidou do fato.

Abrindo o armário do banheiro pegou uma agulha de injeção e, com grande habilidade, tirou um pouco de sangue do pulso esquerdo e colocou-o num papel especial. Observou depois o resultado; o papel ia mudando de cor.

Sentiu que Cuyler acompanhava seus movimentos.

_ Você está doente? – perguntou ela, os olhos ainda maiores do que geralmente eram.

_ Não. Estou apenas checando a taxa de açúcar do sangue.

_ E como está ela? Normal?

_ Perfeita. – Ele colocou a agulha e o papel de volta no armário.

_ Você precisa fazer isso todos os dias?

_Preciso.

_ Alguma vez teve problemas?

_ Sobre a taxa de açúcar no sangue? Não. Está sempre normal. Tenho um bom médico, Marcus Welby, que me mantém em forma. Sou o diabético mais saudável do mundo.

Cuyler apertou os olhos e perguntou ainda:

_ E quem é Marcus Welby?

_ Um dos melhores hematologistas do país.

_ Nem precisa me dizer que pertence ao grupo da sua organização.

Ramsey sacudiu os ombros, perguntando-se aonde Cuyler desejava chegar. Contudo, ficou aliviado ao constatar que o assunto anterior fora esquecido.

_ Sim, ele pertence à organização – respondeu enfim.

_ Interessante. Isso quer dizer que não se dedica apenas a nós, animais. Acertei?

Cuyler retirou-se e foi para o quarto apanhando um par de chinelos de unicórnios que estava embaixo da cama.

_Ouça, não quis dizer isso – ele insistiu.

_ Não, não quis. – Ela ergueu um pé e calçou um chinelo. – Ramsey, se de fato você não quis dizer isso, então por que motivo estamos os dois vestidos aqui neste quarto? – Ela não o fitava, apenas ocupava-se em calçar o outro chinelo.

_Entenda, Cuyler, sabe muito bem que uma vez só não seria suficiente para nós. Eu ficaria preso a você. Tenho tanta certeza disso como tenho certeza de que estou agora em seu quarto. Acha por ventura que eu poderia levá-la para a cama e em seguida aprisioná-la? Se a amasse uma vez, eu...

Ramsey fitou-a e notou que ela o encarava com enorme surpresa, com um espanto quase infantil.

_ Eu o quê? Eu não sabia que você me desejava tanto assim.

E talvez tivesse sido melhor que ela não o soubesse, pensou ele. Não lhe parecia nada aconselhável estender a mão ao inimigo. Porém o mínimo que podia fazer agora era ser honesto. Estava decidido a levá-la presa, e sabia ser impossível realizar seu trabalho tendo feito amor antes.

_ Não falei que a desejava..._ Ramsey protestou.

_Falou, falou sim. Ou deu a entender. Não tente retirar o que pensou, Ramsey, é claro que pensou.- Ela estendeu-lhe a mão e levou-o ao banheiro. – Desça depois do banho. Vou lhe preparar o café da manhã, não quero que fique doente.

Cuyler retirou-se. E Ramsey se perguntou quando pararia de enxergá-la como algo anormal, algo assustador, e quando começaria a vê-la como uma mulher com algumas necessidades especiais. E ele se consideraria extremamente feliz se pudesse satisfazer essas necessidades especiais.

 

_ Vou considerar esse comentário como impessoal, Ramsey.

_ O quê? – Ele terminava de devorar os pãezinhos com goles de um delicioso café.

_ Enquanto você achar que encostar um dedo em mim é assustador...tentador talvez, mas ainda assustador, vou procurar fazer as coisas mais fáceis. Mas precisamos conversar.

_ Conversamos ontem à noite. E acho que isso não ajudou em nada.

Ramsey teve vontade de dizer que ela estava enganada, que não a achava assustadora,nada daquilo, para ser franco. Porém ficou imaginando que talvez fosse melhor deixá-la sofrer um pouco agora, deixar que ela o odiasse. E não estava ainda satisfeito com o pouco que descobrira na véspera, queria saber muito mais.

_ Eu falei, você não falou, Ramsey.

_O que deseja saber sobre mim?

_Como e por que começou a trabalhar na organização? Quando isso aconteceu na sua vida?

_ No meu último ano da escola militar. – Não era verdade, mas ele achava que quanto menos Cuyler soubesse de sua vida, melhor.

_ Não acha isso um pouco estranho? Sua organização é secreta. Nem o alto comando da CIA tem conhecimento da existência dessa organização que, em geral, não angaria adeptos entre estudantes.

Ramsey tomou mais um gole de café e perguntou:

_ Como sabe tanto sobre minha organização?

_ As façanhas dessa organização estão bem documentadas. Provavelmente sei mais dela do que você.

_ Como? Onde estão todos esses documentos que acaba de mencionar, Onde está a prova de que os membros da organização são criminosos?

Cuyler suspirou, levantou-se da cadeira e foi até a estante que Ramsey examinara tão atentamente na véspera. Tirou vários livros de lá e os colocou sobre a mesa.

Livros sobre vampiros. Ramsey franziu a testa antes de protestar:

_ Chama isso de prova? Trata-se de pura ficção.

_ O mundo todo acredita que seja ficção. E nós, que sabemos de tudo, temos boas razões para deixar que acredite. Leia esses livros, Ramsey. Uma vez em sua vida examine essa caçada com os olhos da presa em vez de com os olhos do predador.

Ramsey abriu um dos livros e ficou gelado.

_ Há informações classificadas aqui! Diabos, trata-se de um relatório de todas as investigações do nosso grupo.

_ Mas como eu já disse, o mundo acha que é ficção.

_E o resto dos livros?

_ Quais? Os de minhas histórias de fadas? – Cuyler foi uma prateleira cheia de estatuetas de estanho, pegou um dragão alado e acrescentou: - Gosto de saber que duendes são reais, que pode haver outro mundo onde as fadas e mágicos vivem. Por quê não? Vampiros são reais, mas muitas pessoas nos consideram como fantasia.

Ramsey devia ficar furioso. Estava lá por muito pouco tempo. Por que, então, encantava-se com tudo aquilo tão de repente? Teria a organização o mandado atrás de um monstro? Por que mandariam prender um lindo duende que acreditava em contos de fada? Ele limpou a garganta e tentou se concentrar nos negócios.

_ Os membros da organização conhecem esses livros? – Perguntou.

_ Não sei. – Cuyler sacudiu os ombros. – Vai contar a eles? – Fitou-o com seus enormes olhos escuros, cheios de incoerência e beleza.

_ Tenho de contar, Cuyler.

Ela estava de pé, diante dele. E indagou:

_ Por que você é tão dedicado ao grupo? O que fizemos nós para nos odiar tanto?

        Ramsey limitou-se a sacudir a cabeça. Não poderia lhe contar a razão. Já era bastante mau que seus pensamentos contra a organização, por causa dela, o perturbassem. Se passasse mais tempo com Cuyler, sua traição ao grupo seria completa.

        _ Fale-me sobre sua infância, Ramsey. Como era sua família?

        Ele retesou o corpo. Estaria ela lendo em seus olhos? Lendo seus pensamentos?

        _ Não tenho muito a lhe contar. Sou filho único. E nunca conheci meu pai.

        Cuyler baixou a cabeça, vagarosamente foi até o aparelho de som. Apertou um botão e uma linda música ecoou pela sala. Era uma voz de mulher que soava tal qual tecido transparente sacudido pela brisa suave. Música celta, da nova era.

        Cuyler fechou os olhos por segundos, ouvindo apenas. Em seguida pediu, quase num sussurro:

        _ Fale-me de sua mãe, Ramsey.

        _ Minha mãe morreu quando eu tinha doze anos de idade.

        Ele deu as costas a Cuyler e sentou-se perto da lareira. Ficou olhando para as chamas, pensativo.

 

        _Era tudo o que você tinha, não? – Perguntou Cuyler, pondo as mãos nos ombros dele. – E a perdeu. Não admira haver tanta dor em seu olhar. De que morreu ela?

        Ramsey nada disse, por segundos. E tentou ignorar o toque das mãos de Cuyler que se transformava em massagem rítmica.

        _ Não me lembro – disse ele enfim. Seus olhos quase se fechavam. Ele dormira muito pouco na noite anterior, e quando conseguira, não descansara. Sonhara apenas com um amor violento, quente..., com Cuyler.

        _ Por que mente para mim, Ramsey?

        Cuyler agora massageava-lhe o pescoço e ele inclinou a cabeça para lhe dar melhor acesso.

        _ Não vou falar com você sobre minha mãe – disse, mas faltava convicção em sua voz. Suspirou ao visualizar a imagem da mãe na memória, e resolveu se abrir: - Ela era linda, de cabelos louros, e enormes olhos azuis. E cantava...às vezes, antes de dormir à noite, posso ainda ouvi-la cantando.

        Durante algum tempo a voz da mãe soou-lhe aos ouvidos. Ms logo sentiu os lábios de Cuyler em sua face. Ela inclinara a cabeça e pressionava-lhe o rosto com o seu. E Ramsey deliciou-se com a umidade da pele dela.

        _ Eu arrancaria essa dor de você se soubesse como – observou Cuyler.

        _ Sei que faria isso. – Por quê falara ele do passado? E por que lhe soara tão vivo esse passado? Tentou recuperar as energias antes de prosseguir. – Todos nós sofremos, Cuyler. Faz parte da vida. Você deve ter sofrido também quando perdeu sua irmã.

        _ Durante algum tempo quis morrer. – Ela deslizou a mão ao longo do tórax de Ramsey e pousou-a sobre o coração. _ Depois, quis vingança. Tive vontade de matar todos os homens envolvidos naquela batida da polícia. Mas logo concluí que aquilo não me traria Cindy de volta. E minha dor não ficaria menos intensa.

        _ Mas teria impedido que tirasse outra vida.

        Cuyler ajoelhou-se diante dele, com lágrimas nos olhos. Ramsey não devia ter se surpreendido com isso, mas se impressionou: Vampiros não tinham emoções. Tinham? Não fora isso que lhe ensinaram? Mas...não estaria essa crença perdendo sua validade a cada segundo que passava perto de Cuyler?

 

        _E o que aconteceu com você após a morte de sua mãe? – indagou ela.

        _ A escola militar. Uma instituição benemérita pagou minhas mensalidades. Morava na escola e passava as férias com parentes. Depois, entrei na organização para treinamento.

        _ Para ser doutrinado?

 

        Ele sacudiu a cabeça bem devagar, encarando o lindo rosto dela.

        _ Não foi bem assim, Cuyler.

        Mas foi. Desde os doze anos de idade ele fora educado sob os olhos atentos da organização, começando com o assassinato de sua mãe. A organização pagara seus estudos, pagara um professor particular para ensinar-lhe as coisas que não aprendera na escola. Ele estava cheio de ódio, e esse ódio encontrara eco nas aulas secretas, nas aulas sobre as quais não devia falar a ninguém. E agora reconhecia que se transformara num candidato perfeito. Procurara por vingança em toda sua vida. Os membros da organização sabiam disso, e ofereceram-lhe meios de conseguir o que pretendia.

        E agora sentava-se ali ao lado de uma dessas criaturas que odiara a vida inteira. Em contrapartida, desejava-a também com todas as células do seu corpo. Conversava com ela como se se tratasse de uma grande amiga, havendo entre os dois um tipo de entendimento que nunca esperara ser possível. E esse entendimento provinha de uma mulher linda, agora com os olhos lacrimejantes.

        _ Não quero continuar aqui, Cuyler. Você é muito convincente. – Ele afastou-se. Levantou-se, inclinou-se contra a lareira e fechou os olhos.

        _ Por que você me odeia tanto? – perguntou ela.

        Erguendo a cabeça, Ramsey fitou-a. Cuyler ainda permanecia ajoelhada em frente á poltrona.

        _ Minha mãe foi assassinada por um vampiro. Um de vocês. Por um vampiro que se satisfez com a morte de uma inocente, e sem sombra de remorso. Um matador. – Ramsey esperava que essas palavras reacendessem o ódio em sua alma, que reforçassem sua resistência contra Cuyler e seus ardis.

        Ela arregalou os olhos e, por segundos, apenas o fitou, e o ambiente caiu num silêncio atordoante. Enfim, sacudiu a cabeça, e disse:

        _Mas não fui eu!

        _ Vocês são todos iguais. – ele desviou o olhar. Maldição! Não conseguia discursar em favor da organização enquanto olhava para Cuyler. – Agora já sabe. Nada do que possa dizer vai mudar as coisas. Pode fingir que é igual a qualquer um de nós, Cuyler, mas sei o que na realidade é. E eu nunca cessarei de odiá-la.

        Ela levantou-se vagarosamente, os olhos cheios de ressentimento.

        _ Você mente, Ramsey – protestou ela. – Você não me odeia. Odeia-se, sim, odeia a si mesmo por não ser capaz de...

        Ramsey ergueu a mão, interrompendo-a.

        _ Não se dê ao trabalho de me explicar – disse. – Está apenas tentando convencer-se.

        _ Tudo isso é tão ridículo, Ramsey. Uma pessoa de sua espécie assassinou minha irmã e enterrou balas em meu corpo em quantidade suficiente para matar um elefante. Mas não odeio você por causa do que outra pessoa de sua espécie fez. Não condeno todos os mortais só porque alguns são maus. Não os caço como animais para satisfazer minha vingança.

        _ Não? – Ele perguntou.

        _ Como pode me fazer essa pergunta? – Cuyler sentiu-se tal qual esbofeteada.

        Deus, quanta dor nos olhos dela...! Ramsey desviou a vista para as chamas da lareira. Como a fazia sofrer...

        _ Olhe, você já conseguiu o que desejava, Cuyler – declarou. – Conversamos bastante. Acha que podemos sair deste inferno de lugar agora?

        Cuyler não deu uma palavra. Surpreendida, talvez. Enfim, manifestou-se.

        _ Ainda não consegui o que queria. Não descobri por que há tamanha conexão entre nós. Ainda não sei que força mal orientada fez com que eu me interessasse por um homem como você.

        _ Atração física? Então empatamos – observou ele.

        _ É mais do que isso. E você sabe muito bem que é mais do que isso.

        Ramsey encarou-a, a expressão dura como pedra. Expressão forçada?

        _ Talvez para você seja mais do que isso, Cuyler. Não para mim. – Ele começou a subir as escadas na direção do quarto, e acrescentou: - Vou fazer minha mala. Providencie o mesmo transporte que nos trouxe para cá.

        _ Não! Não! – ela protestou.

        _ Nesse caso, irei a pé.

        _ E eu não deixarei que se vá. – Cuyler acompanhou-o, subindo as escadas também.

        _ Uma hora você terá de dormir, mais cedo ou mais tarde, Cuyler. De um jeito ou de outro, sairei daqui.

        Ramsey foi para o quarto que ocupara à noite e bateu a porta com força. Trancou-a em seguida. Não poderia olhar para ela, não poderia ouvi-la nem por mais um segundo, pois do contrário cederia. Tratava-se de um jogo, um jogo da mente em que Cuyler manobrava para ganhar, e manobrava muito bem. E isso o fizera trazer em cena a lembrança da morte da mãe. Maldita seja ela por forçá-lo a falar sobre sua mãe, por fazê-lo sacudir uma velha dor, e especialmente por agir como se sofresse com tudo aquilo. Maldita Cuyler!

 

        Como potente veneno, a rejeição dele queimava, e Cuyler sabia disso; via-lhe nos olhos, na voz. Estava tão sintonizada aos sentimentos de Ramsey, que seria impossível ser enganada pela teimosa resistência dele. Ramsey a amava apesar da determinação em negá-lo. Ele a desejava, mesmo que isso fosse contra tudo em que acreditava. Porém Cuyler sabia que sensações conflitantes vagarosamente o dilaceravam. Sentia as emoções de Ramsey, mesmo as que ele negava: frustração, confusão, raiva, desejo. Naquele lugar, onde ela o induzira a vê-la como era em vez de como a organização a pintara, Ramsey se torturava. Cuyler reconhecia ser crueldade submetê-lo a tanto sofrimento, uma vez sabendo onde e quando o ódio dele se originara. Enxergá-la como uma mulher e não como um monstro era, para a mente de Ramsey, o mesmo que trair a própria mãe. O mesmo que aceitar o assassinato dela.

        Talvez fosse melhor levá-lo de volta, deixá-lo ir.

        Ela forçou a fechadura da porta do quarto. Ramsey dormia. Reclinado, com as costas de encontro à cabeceira da cama, a cabeça caída para um lado, dava a impressão de que não pretendera dormir.

        Cuyler foi para bem perto dele. Até dormindo parecia tenso. Uma ruga pregueava-lhe a testa e os lábios estavam apertados. A dor continuava impressa em seu rosto, a mesma dor que lá estivera há muito tempo. Por instantes, Cuyler o viu como o menino que ele fora. Uma criança inocente da qual lhe roubaram a mãe. Uma criança forçada a ficar como adulta antes da hora, um homem que se esquecera de como amar.

        Cuyler fitava-o, enviando-lhe mensagens silenciosas, mensagens suaves, de sua mente para a dele. Concentrava energia para fazê-lo relaxar em sono profundo, afastando assim todas as preocupações da mente da mesma forma como o vento de outono afastava as folhas caídas no solo. Depois o fez deitar, agarrando-lhe suavemente os ombros e forçando-o para baixo, até ele encostar a cabeça sobre o travesseiro. Cobriu-o com o cobertor e depois encostou os lábios nos dele, num beijo similar a um roçar de pluma.

        Quando Cuyler endireitou o corpo, Ramsey tocou-a e sussurrou o nome dela.

        _Cuyler afagou-lhe o rosto e disse:

        _ Estou aqui. Descanse agora. Apenas descanse. Não pense em nada.

        Ramsey pareceu relaxar, e ela suspirou, sacudindo a cabeça, cheia de remorso. Não poderia deixá-lo ir. Não agora. A organização o atraíra para o grupo no minuto em que a mãe dele fora assassinada, Cuyler tinha certeza disso. Os membros daquela máfia deviam ter sabido de sua fúria, e do sentido de abandono, solidão em que vivia. E, acima de tudo, do sentimento de culpa por não ter estado ao lado da mãe para ajudá-la. Aqueles homens cruéis da organização fizeram com que a revolta dele se transformasse num inferno tão violento que bem depressa lhe devorava a alma. Usaram a dor de Ramsey como arma contra ela e contra os de sua espécie. E, sem dúvida, destruiriam ambos a menos que se pudesse encontrar um meio de lutar contra a terrível máfia.

        Ela entendia as coisas tão melhor agora! Mas ainda não o suficiente. Não havia explicação para o que existia entre os dois. E, enquanto não descobrisse, teria de conservar Ramsey ali, com ela.

 

        Ele caminhava penosamente pela neve, meio cego devido ao brilho do sol nos olhos. Precisava encontrar um meio de sair da terrível confusão. Estava desesperado, e aquele era seu último esforço. Devia haver um meio de transporte em algum lugar da casa. Um avião, um trenó, algo, enfim, mas, esperta como era, Cuyler por certo escondera esse veículo num local distante da propriedade, para impedi-lo de fugir. E Ramsey se surpreendia por não ter concluído isso logo.

        Pretendera não dormir na noite anterior. Mas foi só quando acordou e viu os raios brilhantes de um sol de inverno entrando pelas janelas que se deu conta de como estivera cansado na véspera. Estranho, sentia-se repousado agora, refrescado até. Nada de sonhos, na última noite, para variar.

        Não, não era verdade. Era? Houvera sonhos, sim, mas não os usuais sonhos, loucos, eróticos, que o deixavam exausto. Sonhara com Cuyler. Vira-a inclinada sobre sua cama, tocando-lhe a face, e sussurrando palavras amáveis aos seus ouvidos. O toque de suas mãos havia sido suave, e a voz como um anestesiante nas velhas feridas. Na verdade, não quisera se separar de Cuyler..

        Parou e fechou os olhos ao sentir uma dor forte no peito. Notara que havia um cobertor sobre ele ao acordar. Não se lembrava de ter se coberto antes de dormir. Teria Cuyler entrado em seu quarto e ficado bem perto, tocando-o e sussurrando palavras amáveis enquanto ele dormia?

        Cuyler o beijara. A boca úmida, suave, o tocara e ele desejara tomá-la nos braços, colocá-la em sua cama. Quisera sentir aqueles mesmos lábios acariciando cada centímetro de seu corpo e desejara fazer o mesmo com ela. O perigo seria Cuyler querer ir longe demais. Pouco importava eles dois serem inimigos jurados. Cuyler também desejava-o com violenta paixão acima de tudo, acima de qualquer animosidade. Acima e além de tudo.

        Ele abriu os olhos e suspirou. Precisava fugir dela. Cuyler o enfeitiçava, usava seu poder mental para fazê-lo esquecer os trabalhos, conduzindo-o a um caminho tão louco a ponto de ele ser capaz de abandonar todos os seus princípios por uma noite de amor nos braços dela. Sim, estava em perigo, e precisava se afastar.

        Mas agora que fugira, quase se arrependia da atitude tomada. Caminhara durante horas, e a paisagem não mudara. Sempre a mesma, nada além de neve. Nada de árvores. Nada de vegetação de espécie alguma. Nada de montanhas. Ele tinha certeza de que tudo o que sua vista alcançava não poderia ser mais nem menos do que uma planície árida. Esperava que Deus o ajudasse, de uma maneira ou de outra. Não estava vestido adequadamente para longos períodos de exposição à neve. Apenas galochas comuns separavam seus sapatos da neve endurecida. O casaco não era pesado e ele não tinha chapéu. O vento soprava forte.

        Começou a andar um pouco mais depressa e, de repente, inclinou a cabeça. O que seria aquele barulho? Um motor roncando à distancia? Virou-se devagar, tentando imaginar de onde provinha o som. Um trenó? Um carro próprio para andar na neve? Não, mais de um. E o ruído vinha da direção da casa, agora quase desaparecida. Seu primeiro pensamento foi que Cuyler se aproximava, usando um meio de transporte escondido em algum lugar da casa. Mas abandonou logo a idéia. Ela não poderia ter acordado tão cedo.

        Não, Cuyler não estava acordada. Dormia profundamente em seu próprio quarto, quando ele saíra.

        O ruído cessou abruptamente. E, de acordo com seus cálculos, os veículos pararam junto à casa. Alguém chegava lá, e ele achou que podia imaginar quem era.

        Não fazia sentido um membro da organização havê-lo seguido. Mas fazia menos sentido ainda pensar que amigos de Cuyler tivessem ido visitá-la. E ela estava sozinha, completamente indefesa. As histórias de torturas e assassinatos que lhe contara eram imaginação, ele sabia que eram. Contudo, essas mesmas histórias soavam-lhe aos ouvidos indo até sua alma. E ele começou a voltar para o lugar de onde saíra horas atrás. Primeiro com passos normais, depois correndo.

        Seguia as próprias pegadas, as mãos nos bolsos , ombros inclinados para se proteger contra o vento cortante. Cada vez encontrava mais dificuldade em achar o caminho de volta pois as marcas de seus pés desapareciam aos poucos. Franziu a testa e pediu a Deus que não permitisse que os sinais sumissem por completo antes de a casa estar á vista. A paisagem não mudara, era a mesma de quando iniciara a jornada. Mas o vento soprava mais forte. Logo seria noite e o ar ficaria mais frio ainda. Ele procurava não pensar no que estaria acontecendo na casa, mas imagens assustadoras dançavam em sua mente, de qualquer maneira. As advertências de Cuyler acerca das táticas usadas pela organização martelavam em seus ouvidos, por mais que procurasse afastá-las. Não acreditara em nada daquilo. Dizia a si mesmo que ela apenas tentava convencê-lo a não aprisioná-la. Mas agora refletia se não haveria uma pequena chance de as histórias de horror narradas por ela serem verdadeiras. Recusava-se acreditar. Porém a idéia de que alguém pudesse feri-la...

        Por que diabos estava ele agora pensando nas coisas daquela maneira? Por quê? Estaria ficando louco?

        O som do motor voltou. E agora estava bem perto. Ramsey tentou correr, mas o ar frígido queimava-lhe o pulmão e a garganta. Eles, quem quer que fossem, vinham depressa da direção oposta.

        Oh, Deus, não...Ramsey procurava se apressar, mas arfava. Seus músculos protestavam. As pernas começaram a ceder no minuto em que a casa surgiu à vista. Ele caiu de joelhos na neve dura e olhou para o horizonte onde o sol começava a desaparecer.

        Aí os viu. Três carros motorizados, próprios para a neve apareceram na planície branca. Um deles tinha atrelada alguma coisa atrás, algo longo e estreito, parecido com uma caixa. Ramsey deu um gemido de angústia quando os carros desapareceram na neve.

        Ele não teve certeza de quanto tempo permanecera ajoelhado. Sua emoção crescia, tão potente e confusa que o deixou tonto. Enfim, não prometera levar Cuyler presa? Não jurara jamais deixar de odiá-la e a toda sua espécie pelo que fizeram à sua mãe?   

Por que, por Deus, estava então cheio de remorso por não estar lá a fim de protegê-la? Sua frustração era tão grande como a que o consumira por não ter estado junto à mãe quando fora assassinada, a fim de defendê-la. Por quê? Por que, afinal, continuava ajoelhado na neve, queimando por dentro por causa da necessidade de ir atrás deles, de arrancar Cuyler das mãos criminosas? Sorriu à idéia de desejar ser como um cavaleiro da Idade Média a cargo de resgatar a donzela dos bandidos que a raptavam. Não, não se tratava bem disso. Ela era a vilã, nesse caso.

Seria mesmo?

Ramsey levantou-se e pôs-se de volta a casa, não se preocupando em tropeçar na neve enquanto corria. Assim que chegou, subiu depressa para o quarto de Cuyler, já sabendo que não a encontraria lá.

O quarto estava na mais completa desordem, as gavetas reviradas, os armários remexidos e abertos, as roupas espalhadas pelo chão. Desceu. Embaixo era a mesma coisa. O local havia sido examinado com pressa e sem cuidado, antes de eles a levarem. As estatuetas de estanho estavam espalhadas por toda a parte. Os cristais foram jogados no chão e pisados.

As prateleiras dos livros tinham sido esvaziadas, e as preciosas histórias de fadas calcadas por pés indiferentes ao valor das mesmas.

Ramsey inclinou-se para apanhar o primeiro dos livros sobre vampiros que vira, e mordeu o lábio sentindo que sua garganta e olhos queimavam.

Perdia as esperanças de poder continuar com a busca naquela noite. Morreria de frio e exaustão antes de encontrá-la, e Cuyler ficaria abandonada à própria sorte. Precisava esperar, embora morresse de desespero por ter de fazer isso. À primeira luz do dia partiria, com a maior quantidade de provisões que pudesse carregar. Sairia de lá e encontraria Cuyler.

Depois disso, não tinha a mínima idéia do que fazer.

No momento, pensou, teria de esperar o amanhecer, e que o frio diminuísse um pouco.

E assim o fez. Acomodou-se numa poltrona, fraco por causa do alvoroço, e abriu o livro que tinha nas mãos.

 

Ramsey levou duas horas para ler o livro do começo ao fim. Cuyler estivera certa. A totalidade de uma das mais desastrosas investigações da organização aparecia muito bem documentada lá, do ponto de vista das vítimas. O aspecto era bem diferente do apresentado pelos registros oficiais. Oh, os fatos não deixavam de ser os mesmos, mas os métodos e motivações da organização e as características das vitimas dessa investigação eram completamente diversos. Ramsey queria acreditar que fosse propaganda. Porque, sendo verdade...

Ele gemeu em indisfarçável agonia. Se fosse verdade, então Cuyler estivera certa sobre as torturas sempre presentes nas investigações do grupo. Até os detalhes estavam bem descritos naquelas páginas.

Contudo, não era verdade. Não podia ser verdade.

Mas bem no fundo de sua mente, sabia que poderia muito bem ser. Ele nunca estivera envolvido nas pesquisas, nunca testemunhara os chamados estudos inofensivos sobre as vítimas. Não era um cientista. E, embora lhe tivessem dito que os prisioneiros trazidos ficavam lá uma ou duas semanas e depois eram liberados sãos e salvos, ele nunca viu isso acontecer.

A organização acreditava que Cuyler e os demais de sua espécie eram quase como animais. Seres sem emoções, incapazes de dar amor. Sem coração, aves de rapina que oprimiam inocentes sem sombra de remorso. Isso era o que Ramsey sabia. E não seria tão absurdo ele pensar que um grupo de pessoas que acreditava naquilo desejasse aniquilar esses indivíduos. Certo? Mas...por que ele não soubera de nada sobre o assunto? E...faria alguma diferença se tivesse sabido?

Até uns dias atrás acreditara em tudo o que a organização dissera sobre os vampiros. E queria se vingar. E queria se vingar. Porém, não se vingar de Cuyler. Tudo em que ele acreditara fora uma mentira, ao menos no que se referia a Cuyler.

Levantou-se, tencionando ir à pequena cozinha a fim de preparar um farnel. Não tinha mais muita certeza de que poderia esperar até o amanhecer.

Havia uma nova urgência roendo sua alma. Precisava chegar até Cuyler, apenas para provar a si mesmo que ela estava bem, e não submetida aos tormentos descritos no livro. A cada segundo que se passava, aquelas cenas aprofundavam-se em sua mente, só que agora a vitima tinha o lindo rosto de Cuyler. Ele parou no meio da cozinha, retesou o corpo ao ouvir um ruído na porta da frente. — Cuyler? — Uma esperança surgia em sua alma enquanto abria a porta. Um enorme, peludo cachorro lá estava,e encarou-o. Latiu algumas vezes. De onde viera aquele animal?, Ramsey se perguntou. Mais latidos e ele ficou atônito ao ver três outros cachorros, iguais ao primeiro, andando sem dificuldade pela neve. Cães esquimós todos eles, de pêlo prateado e olhos azuis, peito largo. Magníficos!

Cães de puxar trenós? O que estava na porta latiu de novo. Ramsey franziu o sobrolho, pensando no trenó e nos arreios que vira no porão da casa. Fora de trenó que Cuyler o trouxera até lá? Eram dela aquele cães? Mas... o que faziam na casa? Por onde andava todo mundo? Não importava. Via agora o meio de sair dali e lançaria mão desse meio. Deixando a porta aberta foi ao porão e transportou o trenó para o jardim. Voltou ao porão a fim de apanhar os arreios, pedindo a Deus que soubesse como usá-los e esperando que os cachorros permitissem ser atrelados ao veículo. Não sabia bem se chegaria a algum lugar. Afinal, não tinha idéia de para onde ir, mesmo em veículo mais eficiente. Assim que apareceu no jardim com os arreios os cachorros o rodearam, latindo excitadamente, balançando a cauda. Pareciam impacientes em entrar por baixo das rédeas, antecipando o prazer do passeio. Ramsey viu logo que estavam acostumados a isso, pois ficaram imóveis enquanto ele os prendia ao trenó.

 

Uma vez tudo pronto, correu para dentro da casa a fim de pegar o paletó. Foi tudo. Sua idéia inicial de levar provisões sumira. Tudo o que restava era uma urgente necessidade de resgatar Cuyler, de ter certeza de que ela estava bem. Sentou-se no trenó, pegou as rédeas. Os cachorros partiram imediatamente, quase derrubando-o. Ramsey nem tentou guiá-los. Os cães pareciam saber exatamente a que lugar deviam ir. Tudo o que podia fazer agora era rezar para que eles soubessem mesmo. Mas não teve certeza de que suas preces haviam sido atendidas até horas mais tarde quando os cachorros pararam e latiram como um grupo barulhento de soldados que celebravam a vitória. Uma enorme construção, ou melhor, uma cocheira, ficava no meio de uma planície coberta de neve. No instante em que Ramsey tentava se ajustar ao estranho ambiente, uma voz rouca o chamou. — Acho que você vai preferir decolar daqui. Ramsey levantou a cabeça e sacudiu-a. Um homem grisalho, com o rosto coberto por barba cinzenta, saiu da cocheira e inclinou-se para desatrelar os cachorros do trenó. — Quem é você? — indagou Ramsey. — Chame-me de Kirkland. Eles conseguiram pegar miss Jade? — Como você... — Miss Jade me falou que alguns homens poderiam aparecer algum dia para levá-la. Preveniu-me que não contasse a ninguém onde era sua casa. E eu nunca contei. — O tom de voz do homem dava a entender que achava que Ramsey talvez tivesse contado.

 

— Eles disseram a você por que queriam levar miss Jade?— perguntou Ramsey, que não podia acreditar que aquele velho soubesse a verdade sobre Cuyler. E não podia crer que Cuyler confiara a ele seu segredo. — Não. E eu também não perguntei. Não é de minha conta. — O velho soltou os cachorros que começaram a dançar em volta de suas pernas. — Percebi que havia problemas logo que vi o avião. Miss Jade é excelente pessoa, mulher de bom coração. Cuidou de um de meus cachorros quando foi atacado por um lobo. Tratou do animal como se fosse seu. Chegou a ficar acordada a noite inteira com ele. Não foi, Duke? — O velho alisou o pêlo do cachorro em questão antes de voltar sua atenção a Ramsey. — Vai ajudá-la? Ramsey fez um sinal afirmativo com a cabeça. —Bom, então.—O homem entrou na cocheira, e Ramsey seguiu-o, observando-o enquanto ele pendurava os arreios na parede. Um pequeno avião lá estava. Mas, apesar de pequeno, parecia um pássaro gigante, em repouso, que ocupava quase todo o espaço. O velho puxou com força uma enorme porta corrediça, e Ramsey ajudou-o a abri-la. — Não entendo nada. O que faz você aqui? — Ramsey entrou no avião atrás de Kirkland. Sentou-se. — E meu meio de vida — respondeu Kirkland. — Levo pessoas para caçadas, transporto suprimentos em aldeias distantes. Aperte o cinto. As decolagens são bruscas nestes aviões pequenos. — Sabe aonde eles foram? O velho sacudiu a cabeça, num gesto que podia ser tanto "sim" como "não", mas não disse nada enquanto o motor se punha em movimento e o avião levantava voo.

— Por onde anda ele? — O homem soltou uma baforada de fumaça no rosto de Cuyler, e ela virou a cabeça o mais que pôde. Mas não foi o suficiente. Estava algemada, presa a uma cadeira, com três pares de olhos cruéis observando todos os seus movimentos. Normalmente ela se livraria das algemas, investiria contra os homens e escaparia. Mas por infelicidade lhe fora aplicada uma injeção de tranqüilizante que agora funcionava. Sentia-se, portanto, tão fraca como qualquer mortal. E um mortal exausto. Toda a energia própria de um vampiro se evaporara. E sua mente estava confusa, bastante confusa. Mas não tão confusa a ponto de se esquecer de Ramsey. De início imaginara que ele tivesse sido raptado. E ficou aliviada quando os homens começaram a lhe perguntar sobre ele. Porém, apesar de aliviada, sentia-se mais fraca do que antes. — Mias Jade, por favor, não nos force a lançar mão de medidas drásticas. — O homem gordo, de cabelos grisalhos, tinha olhos de expressão mais cruel ainda que os outros. Eram como dois botões azuis na face, cheios de maldade, olhos de serpente. — Todos nós sabemos como sua espécie é sensível à dor física. Não nos obrigue a machucá-la, portanto. O homem agarrou-lhe o queixo e forçou-a a fitá-lo. Outra baforada de fumaça. Ela tossiu. — Diga-me, por onde anda Bachman?

— Já lhe disse que não sei de que está falando. Eu me encontrava sozinha na casa. O homem que os outros chamavam de Fuller sorriu, sacudindo a cabeça. — Vimos a mala dele lá — disse. — Tínhamos conhecimento de que estava em sua casa. — Eu roubei essa mala — Cuyler mentiu. — Ele me caçava há tempos. Pensei descobrir a razão se examinasse seus pertences. Cuyler procurou manter a cabeça erguida, em atitude desafiadora. Precisava mostrar-se forte. Preocupava-se, acima de tudo, por não saber onde Ramsey se achava. Teria ele encontrado os cachorros e fugido enquanto ela dormia? Cuyler dissera ao velho Kirkland que soltasse os cachorros no terceiro dia após sua chegada. Enfim, se Ramsey os houvesse encontrado e se soubesse fazer uso deles, tudo bem. Os animais sabiam o caminho para o hangar de Kirkland tanto quanto se conheciam, um ao outro. — O que acha disso, Whaley? — perguntou Fuller ao homem moreno, muito magro. — Acho que ela está mentindo. — Não estou — protestou Cuyler, pensando num meio melhor de convencê-los. — Por que estão atrás de mim, afinal, para descobri-lo? Pensei que Ramsey fosse um dos seus. — Ele também pensou... — Whaley começou a falar, mas Fuller o interrompeu com um olhar. 0 terceiro homem sentava-se numa poltrona, mudo. Não parecia ter a mesma crueldade dos outros dois.

— Tem de nos contar tudo, miss Jade. Não podemos voltar ao nosso quartel general sem ele — declarou Fuller. Cuyler começou a ficar desanimada. Se a levassem a Nova York, morreria. Ela poderia chamar as pessoas de sua espécie para auxiliá-la. Mas, se viessem, teriam a mesma sorte dela. E não queria morrer com essa culpa na consciência. Deus, se ao menos soubesse que Ramsey estava bem! Fuller pôs a mão no bolso. E tirou-a com um alicate. Abriu-o e fechou-o vagarosamente em frente dela. Depois entregou-o a Whaley, dizendo: — Comece pelo dedo mínimo da mão esquerda. Esmague-o. Cuyler sentiu o frio instrumento tocar-lhe a pele. — Espere! Tudo bem. Tudo bem. Eu vou falar — disse ela. Whaley afastou o alicate, e Fuller encarou-a, com um sorriso maldoso. — Tudo bem — declarou. — Onde está ele?

 

Kirkland aterrissou com maestria no minúsculo aeroporto. — Foi aqui que eles desceram? — perguntou Ramsey. — Não. Ramsey esperou uma explicação mais detalhada. Kirkland já lhe havia dito que ele fora capaz de localizar o outro avião com o equipamento que tinha no hangar. Porém o homem era de poucas palavras. — Eles desceram em Loring, não muito longe daqui. Mas acho que seria perigoso eu levá-lo a uma base militar agora. Concorda comigo, não? Rangendo os dentes, Ramsey pediu a Deus que lhe desse paciência e tempo. Não parava de dizer a si mesmo que Cuyler era uma moça boa. Eles não a magoariam. Porém cada vez mais a voz da razão lhe soava como a de um mentiroso. Kirkland abriu a porta, e Ramsey saltou para o solo. Olhou ao redor, mas, além das pistas, hangares e pequenos aviões, não havia nada que lhe desse uma pista. — Onde estamos, Kirkland? — Ao norte do Maine. Ao norte do Maine? Por que a levaram para lá? Por que não diretamente a White Plains? — A cidade mais próxima é Limestone — Kirkland resolveu continuar com sua explicação. — Caribou fica um pouco mais adiante. Tem idéia de onde a levaram? — Não! Limestone? Ramsey suspirou, aliviado. A organização tinha casas seguras espalhadas por todo o país, à disposição de seus agentes. Se alguma coisa desse errado, ele poderia se refugiar em uma delas. As casas tinham sistemas de segurança como o Fort Knox, telefones diretos e computadores ligados ao quartel general. Como agente devotado e obediente que sempre fora, Ramsey memorizara os endereços de todas essas casas ao norte do país. Havia uma delas exatamente em Limestone. Ele não sabia por que a haviam levado para lá. Prendê-la fora a finalidade de Fuller e, uma vez feito isso, o que ganhariam atrasando a volta? A menos que ela não fosse a única finalidade daquela caçada humana. Talvez houvesse algo mais, talvez procurassem alguma outra pessoa. Ramsey lançou um olhar para o homem grisalho ao seu lado e disse: — Preciso de um carro.

Era ridículo pensar assim. Trabalhava para a organização, era um deles. Poderia entrar pela porta da frente e pedir para ver a prisioneira. Mas algo o segurava, algo insistia que ele tivesse cuidado. Que loucura! Uma vaga suspeita obscurecia sua alma. Queria acreditar que Cuyler estava bem mas, até que a visse, precisava ter muito cuidado. Ele tivera de discutir com Kirkland para que não o acompanhasse. Diabos, o homem não tinha idéia do que lhe poderia acontecer se fossem vistos juntos. A organização era enorme. Poderosa. E perigosa se a pessoa entrasse pelo caminho errado. Já era bastante arriscado Kirkland ter de fazer o telefonema.

Vagamente, ela ouviu o telefone tocar e a conversa sussurrada além da porta fechada do quarto. Dois dos homens ficaram com ela. O terceiro, o de nome Fuller, foi atender ao telefone. Segundos mais tarde voltou. — Conseguimos achá-lo. Whaley levantou-se e indagou; — Bachman? — O telefonema era do hospital em Caribou — respondeu Fuller. — Parece que Bachman foi levado para lá, inconsciente. Encontraram um número no bolso dele e telefonaram. Cuyler mordeu o lábio para não engasgar. Deus, o que acontecera coro Ramsey? — Que diabos fazia ele em Caribou? — perguntou Whaley. — Provavelmente estava vindo para cá, para a segurança de uma de nossas casas. Ainda penso que vocês estão enganados quanto a Bachman. — Era Stiles falando, o mais amável dos três. — Que mal fez Bachman até hoje? — Ele pode não viver muito. Temos de ir vê-lo, Uma dor profunda apoderou-se de Cuyler. Morrendo? Ramsey estava morrendo? Ela apertou as pálpebras para segurar as lágrimas que lhe queimavam os olhos. — O que faremos com ela? — Fuller encarou Stiles, este silencioso, num canto do quarto. — Você pode cuidar da prisioneira? — Posso. — Se ficar muito agitada, dê-lhe outra injeção. Telefonaremos do hospital. Cuyler não levantou a cabeça enquanto os dois homens saíam. Procurava tingir calma, pois não queria que lhe dessem outra injeção daquela droga debilitante.

Ramsey agachava-se atrás de um arbusto perto do portão, e esperava. Dois homens saíram da casa. Tomaram o carro, foi dada a partida, os faróis foram acesos. Com um ruído eletrônico, metálico, os portões se abriram. O carro saiu, e os portões começaram a se fechar de novo. Ramsey observou o carro acelerando ao atingir a estrada. Os portões ainda se fechavam. As luzes dos faroletes traseiros desapareceram na primeira curva, e ele levantou-se. Com os olhos fechados, respirou fundo três vezes. Pássaros noturnos, bem devagar, reiniciavam sua serenata. Alguns segundos mais tarde sapos entravam na melodia. O vento sacudia as árvores. Além disso, não se ouvia mais nada. Ramsey limpou as mãos na calça e encaminhou-se para a casa. Diante do painel junto à porta pensou em digitar o código. Mas receou. Se os três homens tivessem trocado os números e ele, portanto, errasse, um alarme soaria acusando sua presença. E tinha certeza de que havia alguém no interior. Não deixariam Cuyler sozinha. Ramsey umedeceu os lábios secos. Bem, mas não havia outro jeito de entrar na casa. Se abrisse uma janela ou uma porta sem digitar o código, o alarme soaria de qualquer maneira. Ele ergueu então a mão e, rangendo os dentes, digitou os quatro algarismos da senha que guardava de memória. A luz vermelha sumiu, sendo substituída por uma verde. Ramsey colocou o ouvido na porta, escutando com atenção. Apenas silêncio. Tentou girar o trinco, sem sucesso. Esfregando a palma da mão na calça, tentou de novo. A porta se abriu sem ruído, ele espiou no interior, depois entrou e fechou a porta. Sem hesitar, foi diretamente às escadas, segurando cada célula de seu corpo para não produzir ruído algum. Em cima, ficou frio, pois seus passos pesados soaram alto.

 

Encostando-se na parede, esperou e observou. Uma porta se abriu e, ajudado pelas luzes pálidas, ele reconheceu o homem. Ron Stiles. Ramsey trabalhara com ele antes, e sempre achara que faltava ao rapaz coragem para ser membro da organização. Naquela noite, contudo, ficou radiante e aliviado ao constatar que o amável agente era o guardião de Cuyler. Stiles atravessou o hall e entrou no banheiro sem olhar para a direção onde ele se encontrava. Fechada a porta, Ramsey foi para o quarto de onde Stiles saíra. Cuyler sentava-se numa cadeira dura, os braços presos nas costas. A cabeça inclinava-se para a frente, numa posição forçada. Ela não se movia, e Ramsey tornou-lhe o pulso. De joelhos, segurou-lhe o queixo e a fez erguer a cabeça. Os olhos de Cuyler estavam inchados e quase fechados. Manchas roxas espalhavam-se por seu rosto, e o lábio inferior tinha uma crosta de sangue coagulado. Ramsey não foi capaz de lhe dirigir uma única palavra. Empurrando a mão dele, que lhe segurava o queixo, Cuyler murmurou: — Deixe-me me paz. Por favor, deixe-me só. — Cuyler... Ela arregalou os olhos que pareciam estar fora de foco. Fitou-o como se Ramsey se achasse atrás de uma nuvem. — Ramsey?! Passos se aproximavam. Ramsey escondeu-se atrás de uma porta. Stiles entrou. — Se você der um passo, Ron, eu o mato — gritou Ramsey. Palavras ousadas para quem não tinha uma única arma. Stiles endireitou o corpo, mas sem sair do lugar. Ergueu os braços. — Bachman? Pensei que você estivesse... — Não importa o que você pensou — declarou Ramsey, chegando bem perto dele e agarrando-o pelo braço. — Agora dê-me a chave dessas algemas. E logo. — Ramsey pressionou-lhe as costas com a própria arma de Stiles, contente pelo fato de o rapaz não ter notado quando a tirara do bolso dele. Stiles entregou a chave a Ramsey, mas este insistiu que o próprio Ron abrisse as algemas. — Tire isso dela! — exclamou.

— Maldito! — Ande, depressa! Stiles foi vagarosamente atrás da cadeira de Cuyler, inclinou-se e abriu as algemas. Ergueu-se de novo. — Eu não acreditei quando Fuller disse que você nos traía. Agora vejo que ele tinha razão. — Stiles sacudiu a cabeça. — Por que Fuller chegou a essa conclusão? — Ramsey indagou. — Não sei. Não me pergunte mais nada e mate-me se quiser. — Ok, se for necessário matarei, é claro. Prenda uma dessas algemas em seu pulso, Ron. — Ramsey esperou até que o homem lhe obedecesse. — Ok. Agora ponha as mãos nas costas, vamos. E fique de joelhos — Stiles obedeceu mais uma vez. Feito isso, Ramsey rapidamente o prendeu aos pés da cama e fechou a segunda algema. — Você não vai conseguir ir muito longe, Bachman. Fuller e Whaley voltarão logo que... — Fuller? — Ramsey sacudiu a cabeça, preocupado com o que poderia acontecer. Fuller era seu superior imediato, um homem em quem confiava plenamente, mas que era bastante rigoroso nas punições. E Whaley era o homem mais cruel do planeta. Ramsey foi para perto de Cuyler e ajoelhou-se. Irritou-se ao ver como as algemas haviam cortado sua carne. E ficou mais irritado ainda quando Cuyler ergueu a cabeça, e ele viu a dor estampada nos olhos. — Qual de vocês fez isso, Ron? E por que, pelo amor de Deus? Por que a feriram tanto? — Ela não quis nos revelar onde você estava. Mas agora, dá até para pensar que é humana, a se considerar pelo modo como você a trata. Mas não, Bachman, a mulher é um vampiro mesmo. Um animal, como os. demais de sua espécie. — Ao olhar irritado de Ramsey, ele baixou a cabeça e disse: — Meu Deus! Você talvez seja um deles! E possível? — O que quer dizer com isso? — Rarosey ergueu-se, furioso. Stiles recusou pronunciar qualquer outra palavra. Ramsey virou-se para Cuyler, agarrou-lhe os ombros, e perguntou: — Você pode ficar de pé?

Ela acenou com a cabeça e tentou se levantar. Mas seus joelhos cederam. Ramsey segurou-a então e ergueu-a. Carregou-a para o banheiro. Inclinou a cabeça dela na pia e fez a água correr. Com cuidado, banhou-lhe o rosto ferido, os olhos congestionados. Limpou o sangue coagulado do lábio. Apanhando uma toalha, disse: — Olhe, segure isto contra os ferimentos que vou procurar alguma coisa para pôr em seus pulsos. — Precisamos sair daqui, Ramsey — disse ela sacudindo a cabeça. — Aqueles dois... Ramsey encontrou um tubo de pomada e algumas ataduras no armário do banheiro, e colocou tudo no bolso. Depois carregou-a escada abaixo até a porta da frente. Notou que Cuyler quase não podia manter os olhos abertos. A maldita droga! Só Deus sabia o que haviam dado a ela. A fúria de Ramsey era incontrolável. Sentia-se como no dia do assassinato da própria mãe. Mas aquilo fora o ódio de uma criança e não podia se comparar à tempestade que irrompia dentro de si agora. Queria matar os desgraçados dos membros da organização por havê-la machucado tanto.

Ramsey carregou-a para fora, ao relento de uma noite fria de outono, surpreendido como o pequeno corpo se ajeitava bem em seus braços. E carregou-a como se fosse algo muito precioso! Céus, e ela era algo muito precioso! E por que tinha ele tanta dificuldade em aceitá-la? Cuyler era-lhe muito especial, vampiro ou não, e por certo não merecia o tratamento que lhe deram. Ele corria pelo jardim, não se importando se os alarmes soassem. Nada era tão grave agora. Chegou na estrada e tomou a direção oposta à que Fuller e Whaley haviam seguido. Seu carro estava onde o deixara, coberto com galhos de árvores. Ele abriu a porta com uma das mãos e colocou Cuyler no assento do passageiro. Controlou-se para não acariciá-la enquanto afivelava o cinto de segurança; mas não foi fácil. Cuyler estava com um aspecto horrível, e Ramsey não tinha idéia do que fazer. Talvez ela estivesse morrendo... Com carinho afastou-lhe os cabelos do rosto. Por que a abandonara? Por que a deixara nas mãos daqueles animais? Por que acreditara no que lhe haviam dito sobre a organização? De súbito, ela abriu os olhos e ordenou: — Depressa! Ramsey bateu a porta e correu para o assento do motorista. Segundos mais tarde o carro entrava na estrada principal. Ele mudava as marchas rapidamente e corria da organização. Corria, sim, de tudo em que acreditara na vida.

Ron Stiles se retorceu e se contorceu para poder tirar a chave do bolso traseiro da calça. Precisou se esforçar a fim de colocá-la na fechadura, sem olhar. Mas conseguiu. As algemas soltaram e ele levantou-se, massageando os pulsos. Em seguida parou e refletiu. Os pulsos de Cuyler ficaram em carne viva e sangraram, e não havia motivo para Fuller ter apertado tanto as algemas. Mas ele apertou, e isso perturbava sua consciência. Porém não falou nada na ocasião; tampouco cuidou para torná-las menos penosas, para soltá-las um pouco, depois que ficou sozinho com a prisioneira. E não houve motivo, igualmente, para Whaley ameaçá-la com o alicate. Contudo, a pergunta de Stiles era: por que diabos Ramsey se incomodava tanto com a moça? Como se tornara tão envolvido com ela a ponto de jogar fora sua carreira, sua vida, indo lá para resgatá-la? Deus, Ramsey sabia que Cuyler não era humana. Ele sabia. Então, o que tinha na cabeça? Stiles não quis acreditar no que lera na ficha de Ramsey. Protestara contra o que Fuller dissera, que Ramsey se votava contra o grupo, que era inimigo deles agora. Mas, como tivera a prova diante de seus olhos, naquele exato momento, não poderia ter mais dúvidas. Apenas desejava entender. Saiu do quarto, desceu as escadas correndo, e apanhou o telefone.

Cuyler mal podia acreditar que Ramsey se dera ao trabalho de salvá-la. Enquanto ele conduzia o carro pela estrada escura, ela fazia esforço para abrir os olhos e fitá-lo. Ramsey tinha o rosto tenso e rangia os dentes. A transpiração deixava sua testa brilhante e a barba crescida escurecia-lhe as faces. Os olhos gris, em concentração intensa e talvez um pouco assustados, fixavam-se nela de tempos a tempos. E quando percebeu que Cuyler notara sua preocupação, sorriu. Um quase sorriso para animá-la. Nada mais que isso. — E você foi mesmo me buscar... — disse ela. — Não me diga que ficou surpresa. — Ramsey sacudiu a cabeça, suspirando. — Você repetiu mil vezes que eu não a levaria presa. Ela mordeu o lábio, incapaz de desviar os olhos do rosto apreensivo de Ramsey. — Você arriscou tudo... Ele aumentou a velocidade do carro, e com uma das mãos afagou-lhe o rosto. — Sinto muito, Cuyler. — Sente? Sente o quê? Você acabou de salvar minha vida e... — Se eu a tivesse ouvido, em primeiro lugar, não teria feito o que fiz. Se eu não a houvesse deixado sozinha... Tentei voltar quando ouvi o ruído dos motores dos carros, mas... — Não importa. Foi atrás de num e tirou-me de lá. — Tudo não está terminado ainda, Cuyler. Eles não vão nos deixar partir sem luta. E garanto que estão atrás de nós agora mesmo. — Sempre estiveram atrás de nós, Ramsey. Perguntaram-me o tempo todo onde você se encontrava. O gordo, o Fuller, contou para os outros que você nunca fora um deles, que seria questão de tempo dar-lhes as costas. — Isso não faz o mínimo sentido. Por que teria ele dito tal coisa? Jamais lhes dei motivo para duvidar de minha lealdade. — Não sei... Ramsey blasfemou e freou o carro, saindo para o acostamento e apagando os faróis. Cuyler olhou para trás e viu um carro se aproximando. — Acha que estão procurando por nós? Já? — A organização trabalha depressa. Precisamos seguir por uma estrada secundária.

— Onde? Ramsey, para onde vamos? — Não sei. — Ele fechou os olhos devagar. — Há um mapa no porta-luvas. Cuyler pegou o mapa, desdobrou-o sobre o colo e tentou concentrar a mente ainda perturbada em descobrir onde estavam, em descobrir uma estrada segura. — Ok — informou ela. — Vá até o fim da rodovia; depois, vire à esquerda. Há uma estrada paralela a esta. Ramsey seguiu as instruções. Porém, antes de atingirem o destino, Cuyler viu luzes à distância. Ramsey blasfemou..Estacionou o carro e encarou-a. — Estamos cercados — disse. — Precisamos abandonar o carro. Como você se sente? Acha que pode andar? Cuyler ergueu a cabeça e engoliu o medo. Tinha de ser forte para ajudá-lo naquela fuga, embora tivesse perdido muito sangue e apesar da dor. Sentia-se fraca como nunca estivera na vida. Cuyler concordou, carregando o mapa ao descer do carro. Ramsey pôs o casaco nos ombros, pegou-a pela cintura, e ambos entraram na mata. A escuridão funcionava em favor deles enquanto iam de uma pequena floresta para outra sem perder de vista a estrada, mas ao mesmo tempo mantendo certa distância dela e escondendo-se sempre atrás das árvores. Cuyler estava exausta e apavorada. E Ramsey sabia disso. Céus, ele não podia censurá-la, pois estava apavorado também. Não era fácil enganar a organização. Além disso, tinha outras razões para se preocupar. Estava sem uma gota de insulina no corpo. E, se não conseguisse aplicar em si uma injeção logo, começaria a sentir os efeitos da diabete. Quase amanhecia quando Cuyler parou de repente, pôs a mão sobre o ventre e caiu de joelhos, gemendo de dor. Ramsey ajoelhou-se ao lado dela e tentou ajudá-la a se levantar. Deus, Cuyler parecia tão cansada! — Tudo bem, tudo bem, Ramsey. Estou bem. — Não, não está. — Não sei o que há comigo. Talvez seja a droga que me injetaram. Não sei. Mas sinto-me bem agora. Vamos.

Não era verdade. Via-se claramente que ela não estava bem. Pálida, tremendo, gelada, Cuyler precisava de um lugar para descansar. Diabos, ele nem ao menos sabia do que mais ela necessitava. Mas, o que quer fosse, faria de tudo para conseguir. Estavam numa pequena cidade onde havia um agrupamento de casas, alguns carros e, de quando em quando, uma bicicleta correndo pelas ruas pavimentadas. Com Cuyler apoiada em seu braço ele procurava um lugar, qualquer lugar onde ela pudesse se deitar. — Tudo vai sair bem — prometeu-lhe Ramsey. — Venha. Confie em mim. Ela confiava, ainda que hesitante. Enfim divisaram um barracão pré-fabricado, nos fundo de uma casa. Ramsey suspirou aliviado, e para lá se dirigiram. Pararam de súbito quando um cachorro enorme começou a latir. Ramsey deu um passo atrás, pronto para voltar à floresta, porém Cuyler segurou-o pelo braço. Não disse uma palavra, apenas ficou bem perto do animal encarando-o com enorme intensidade no olhar. O cão parou de latir e sacudiu a cauda. Ela inclinou-se e afagou-lhe a enorme cabeça. Ramsey ficou silencioso, estarrecido, observando. — Ele vai ficar quieto agora — disse Cuyler, sorrindo. — Posso começar a chamá-la de feiticeira? — Não é sempre que meus métodos funcionam, mas às vezes posso fazer com que os animais pensem que sou amiga deles. Ramsey tomou-lhe a mão e levou-a para o barracão, dando graças à sua boa estrela pelo fato de o local não estar trancado. Ele .abriu a porta, e entraram. Dentro, a escuridão era completa. Tropeçaram num cortador de grama, deram trombada numa pá. Ramsey encontrou uma lona que cobria algumas máquinas e puxou-a. Fez Cuyler deitar-se no chão, acomodou-se ao lado dela e ambos cobriram-se com a lona. — Poderíamos ter continuado nossa fuga. — Cuyler encostou a cabeça no ombro dele. — Você mal podia pôr um pé diante do outro. Está doente e sabe disso. — Ele passou a mão pelos cabelos desgrenhados dela. — Que posso fazer para você se sentir melhor?

— Nada. Vou vencer minhas dificuldades sozinha. — É engraçado como percebo quando está mentindo. Seu cansaço não é por causa da droga — Ela não respondeu. — Cuyler, se houver alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-la, diga-me que farei. Ela acariciou-lhe o rosto, e respondeu: — Não, você não pode fazer nada. Foi o tom de voz de Cuyler, mais do que as palavras, que agilizou o cérebro dele. — E sua perda de sangue, não é? Seus pulsos sangram, seus lábios também. —Os ferimentos não foram tão maus, Ramsey. Nós, em geral, temos facilidade em perder sangue. Só isso. — Precisa de transfusão? — Sim. Amanhã à noite por certo encontraremos um banco de sangue em algum lugar ou... — Pode usar meu sangue. — Ramsey, não... — Você se sentiria mais forte, bem melhor, não acha? Cuyler, tudo vai sair bem, garanto. — Esse não é o ponto. — Ela suspirou. — Veja, Ramsey, tudo isso nos une mais do que já estamos unidos. E esse vínculo está destruindo você. Não quero que o vínculo se tome ainda mais forte. Ramsey sentou-se, agarrou-lhe os ombros e obrigou-a a fitá-lo. Depois confessou: — Não se passam dez minutos sem que eu pense em você, Cuyler. Fui contra todos os meus princípios para ter certeza de que estava bem. — E esta situação que me preocupa, Ramsey; é perigosa. Precisa se afastar de mim. O melhor seria você voltar para sua antiga vida e ficar o mais longe possível. Ele fechou os olhos e deu um profundo suspiro. — Céus, Cuyler, precisa entender minha situação, concorda? Por Deus, um de vocês assassinou minha mãe. Como poderia eu... — Um de nós? Mesmo? Você ainda vê as coisas dessa maneira? Uma pessoa matou sua mãe, Ramsey. Eu não tive nada a ver com o caso. — Sei que não. Ramsey ficou silencioso. Sim, outras pessoas fizeram aquilo. Outras. Mas outras iguais a ela. Vampiros. Aqueles seres que ele aprendera a odiar durante toda sua existência.

Ramsey respirou fundo e sacudiu a cabeça. Não podia confiar sua vida aos vampiros. Só pelo fato de se dar conta de que Cuyler não era um predador sem coração, isso não queria dizer que os outros também não o fossem. — Cuyler, você não pode esperar que eu ponha minha vida nas mãos de vampiros — acrescentou ele. — Não, não espero. Mas, Ramsey, os vampiros são gente também. Fomos todos humanos um dia, tal qual você. Há bons e maus em nosso grupo, e não pode condenar toda uma raça por causa de um incidente. E intolerância demais, certo? — Não, não é. O caso agora é diferente... — E diferente porque nós dois somos diferentes. Ramsey viu que a ofendera, que a irritara. Mas, por Deus, seu ponto de vista o fazia vê-la não como um monstro, mas como uma mulher bondosa, com mentalidade igual à de qualquer outra mulher. Mas Cuyler esperava que ele aceitasse toda sua raça como composta de pessoas comuns, apesar da aversão à luz do sol e a comidas sólidas? Vampiros eram diferentes, embora humanos. Esse maldito antígeno no sangue os fazia diferentes. Não, ele não conseguiria atribuir tudo o que aprendera como erro. A organização talvez fora exagerada em sua perseguição, mas tivera boas razões para isso. E ele tinha as próprias razões também. A mãe. Ela era a razão, e ele não poderia deixar que sua revolta desaparecesse assim de uma hora para outra.

Ramsey dormitava. Já era dia alto quando acordou. Cuyler dormia num canto, bem longe dele. E antes que o sol penetrasse no barracão, Ramsey cobriu-a melhor com a lona. Não havia janelas no lugar, mas o sol penetrava pelas frestas, aqui e acolá. Sons de vida, motores, freadas de carros, chegavam até eles. Ramsey abriu a porta e olhou para fora, cuidando para que a claridade não incomodasse Cuyler. Um ônibus escolar parou à porta da casa. Não pôde ver quem subira no veículo, mas segundos mais tarde o carro prosseguiu, passando bem perto de dois outros carros. Ramsey saiu do barracão, olhando para ambas as direções a fim de ter certeza de que ninguém poderia vê-lo. Lançou um olhar ao cachorro que agora devorava sua ração, não lhe dando a mínima importância. Engolindo a ansiedade, ele foi para a porta dos fundos da casa e bateu na porta. Qual seria o melhor meio de saber se alguém estava no interior? Esperou, imaginando o que iria dizer se uma pessoa aparecesse. Poderia fingirque estava no endereço errado. Mas nenhuma resposta veio.

Ele entrou então. Seria milagre demais algum dos moradores ser diabético e ter provisão de insulina. Mas procurou-a, de qualquer jeito. Não encontrando nada, foi ã geladeira. Precisava comer. Achou salsão e arroz doce. Comeu. Havia café num bule e ele aqueceu-o no forno de microondas. Bebeu-o num gole. Depois foi para a sala e ligou a televisão. Deu um passo atrás quando viu sua imagem e a de Cuyler na tela. Apenas ouviu as palavras: ... armados e extremamente perigosos. Isso antes de a imagem desaparecer e o repórter passar para outro assunto. Sua primeira reação foi se dirigir ao barracão, pegar Cuyler e fugir o mais depressa possível. Mas isso não seria viável. Precisaria esperar até o pôr-do-sol. Não haveria outro meio. Serviu-se de mais arroz doce e sentou-se para refletir sobre o que fazer. A condição de Cuyler... Ela estava muito fraca, doente. E Ramsey sabia muito bem do que ela necessitava para se sentir forte de novo. E sabia também que Cuyler não aceitaria facilmente sua oferta, por mais que ele insistisse. Portento, tinha de inventar um modo de convencê-la. E apenas um lhe veio à mente.

EIa acordou sentindo todo o corpo vibrar. A lona escorregara de seus ombros. Sentou-se, chamando por Ramsey. — Aqui. Estou aqui. — Ouviu-se logo um dique e uma luz se acendeu, banhando de claridade o espaço entre os dois. Ramsey sorria, porém Cuyler teve a sensação de que o sorriso escondia grande agitação. — Encontrei alguns tesouros na casa. Cuyler tentou se acomodar melhor no chão, mas uma tontura a perturbava. Procurou se distrair e perguntou: — Você esteve dentro da casa? — Estive. Não havia ninguém lá. — O sorriso de Ramsey morreu em seus lábios. — Apenas peguei aquilo de que necessitávamos- A família nem achará falta. — De que precisamos com tanta urgência para você chegar a ponto de roubar? — indagou Cuyler. Ramsey lançou-lhe um olhar de espanto e ela acrescentou: — Não quis chocar você, Ramsey. Esqueci-me de que gente de minha espécie desconhece valores morais. Pelo menos é o que se pensa em seu mundo. — Você sempre se levanta assim de mau humor? Ninguém nunca lhe falou isso? Ainda não se sente bem? — Cuyler recusou-se a responder, e Ramsey examinou-lhe as feições com cuidado. — Você não tem o mesmo aspecto de antes. Afinal, não roubei propriamente essas coisas, pois deixei algum dinheiro sobre o sofá da sala. — Maravihoso! — exclamou ela. — Contudo ainda não valeu o risco, poderia ter sido descoberto. — Mas não fui. E trouxe para nós algo muito importante. Uma lanterna. Será bastante útil porque só viajaremos à noite. — Tenho excelente vista no escuro. — Trouxe também um saco de dormir. Assim não apanharemos pneumonia. — Eu jamais apanharei pneumonia. — Trouxe comida também. Ah, quase me esquecia, Cuyler. Que acha disto? — Ramsey mostrou-lhe umas peças de roupa dobradas. — O que... — Um jeans tamanho pequeno. Deve haver uma adolescente na casa, de seu tamanho. E trouxe um suéter quente. Vista já e vamos embora.

Cuyler levantou-se e começou a despir a blusa. Depois parou e disse: —Bem? — Bem o quê? — Não vai apagar essa luz? — Claro. — Após um suave dique o barracão ficou às escuras. Cuyler tirou os sapatos, acabou de despir a blusa e pegou as roupas que Ramsey lhe trouxera. Ele chegou mais perto, segurando-lhe a mão. — O que há? — perguntou Cuyler. — O barracão não está suficientemente escuro, acho. Ele passou os braços em volta da cintura dela, puxando-a contra seu peito. — Ainda quero você muito, Cuyler. Continuo com os mesmos sonhos. Ela fechou os olhos, cheia de desejo também. Mas não podia permitir que aquilo acontecesse agora, estando tão faminta de sexo. Ramsey jamais sonharia com as conseqüências caso eles... — Não... posso... — gaguejou Cuyler. — Por que não? — Ramsey baixou a cabeça e beijou-lhe o pescoço. Ela estremeceu de desejo. Qualquer desculpa serviria. Mas precisava acabar com aquela loucura. — Você ainda me vê... como uma... Pare, Ramsey! — Cuyler virou o rosto enquanto com a boca ele roçava-lhe o ombro. Dedos quentes percorreram-lhe a espinha. — Não quero... — O protesto saiu-lhe dos lábios quase como um gemido. — Sim, você quer. E eu também. Diabos, estou cansado de lutar, Cuyler. Estou cansado de tentar me convencer de que isso é imaginação, esperando que você suma de meus pensamentos. Mas não some. E ambos sabemos. — Mas... Ramsey... Ramsey... Você ainda acredita... — Para os diabos com o que eu acredito. Trata-se apenas de físico, de matéria. Crenças não entram no caso. Ele apertava-lhe os seios com mãos quentes. E com as pontas dos dedos contornava os mamilos rígidos enquanto Cuyler ofegava. Com um movimento rápido ele a fez virar o corpo e beijou-a na boca, penetrando com a língua. Cuyler retribuiu o beijo com a mesma intensidade, passando as mãos pelas costas dele, sob a camisa. Ramsey agarrou-a pelas nádegas com ambas as mãos e ergueu-a, colocando-a no colo. Ele sentava-se no trator. Em seguida sugou-lhe os seios, mordeu-os, e Cuyler logo percebeu que Ramsey se excitava.

— Isso não é justo — ela sussurrou. — Por que não? Você disse certa ocasião que, se fizéssemos amor uma vez, ficaríamos livres dessa obsessão terrível. Bem, aqui estamos nós, Cuyler. Vamos testar sua teoria agora. Ramsey beijou-lhe os mamilos mais uma vez, um depois do outro, isso enquanto segurava-a firme no colo roçando coxa contra coxa, em movimentos rítmicos. Depois ergueu-a pela cintura até que o traseiro dela pousasse na curva da direção do trator. — O que está fazendo? — indagou Cuyler. — Fiz isso em meus sonhos. Vou fazer o mesmo na realidade. Com as mãos abriu-lhe as pernas e em seguida beijou-a. Finalmente atingiu sua finalidade quando pressionou o rosto contra as virilhas dela penetrando-a com a língua. Inclinando a cabeça para trás, Cuyler permitiu que ele a beijasse até todo seu corpo tremer. Ela enterrou os dedos nos cabelos de Ramsey que a fitou, surpreendido. E togo, agarrando-o pelo pescoço, Cuyler aproximou-se mais.. E ele penetrou-a. Ela continuava beijando-o, acariciando-o com os lábios, provando o sal da pele. O fogo da paixão aumentava gradualmente. Sim, o jogo do amor caminhava depressa. O êxtase pairava um pouco além, quase ao alcance deles; e a sede crescia. Ela beijava-o com desespero. — Tudo bem, tudo bem, Cuyler. — Ramsey movia os lábios sobre os dela, enquanto sussurrava. — Tudo está bem. Vamos em frente. Vamos. Os lábios de Cuyler tremeram e se abriram. Apenas o suficiente para usufruir por completo o prazer daquela noite, ela refletia. Ramsey gemeu quando Cuyler mordeu-lhe o pescoço. O clímax se aproximava. Ela ergueu a cabeça e fechou os olhos; queria impedir que as lágrimas explodissem. — Deus, o que estamos fazendo? — Ela não conseguia encará-lo, não queria ver a condenação nos olhos de Ramsey. Não aguentaria. Começou a se levantar, porém ele segurou-a. — Precisa ir até o fim, Cuyler, precisa...

O olhar surpreendido dela impediu-o de prosseguir falando. — Você sabia, não? — murmurou Cuyler. — Você sabia como o desejo aumentava a necessidade a ponto de eu não poder lutar contra. Sabia, não? — Sabia, sim, eu sabia. Mas também sabia que não poderia passar outra noite comigo sem que tudo isto acontecesse. — Ele afagou-lhe os cabelos. — Eu me ofereci antes, e você recusou. Não pude pensar em outro meio. Então era aquilo. Necessidade física que precisava ser satisfeita, tal qual Ramsey dissera. Só que ele se referira à necessidade dela, e não à própria. Cuyler escorregou para o chão, soltando-se das mãos de Ramsey que tentavam segurá-la. Sem uma palavra ela pegou as roupas e começou a se vestir. Levantou-se, mas não teve coragem de encará-lo. Impossível. Fazer amor com Ramsey enchera seu coração até transbordar. Porém recordando-se do pouco que o ato significava para ele, sentiu o mesmo coração partido e podia quase sentir o frágil conteúdo se esparramar pelo chão. . Cuyler ouviu-o andando pelo barracão. Empacotando os tesouros, imaginou. Depois percebeu que Ramsey a fitava. — Magoei você — sussurrou ele. — Não tive essa intenção, creia-me. Com o rosto tal qual máscara sorridente, Cuyler respondeu: — Não, Ramsey. Tudo foi só físico, não foi? Nada de sentimentos envolvidos. Ramsey penetrou com o olhar ate as profundezas da alma dela e murmurou: —Talvez...—Parou, sacudindo a cabeça vagarosamente. — O que é isso? Parece um bando de gansos ou... Cuyler apurou o ouvido e depois sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. — Cachorros! — exclamou. — Deus, eles têm cachorros. O ruído do que se assemelhava a centenas de cães de caça permeou a noite, ficando mais alto no instante em que ela abriu a porta e correu para fora.

Ramsey agarrou-lhe a mão, e ambos partiram para a estrada. Cuyler sabia que não adiantaria se embrenhar na floresta, não com os cachorros perseguindo-os. O melhor a fazer seria correr pelas estradas", escondendo-se por trás das árvores, e o mais depressa que pudessem. Acalmar um cachorro caseiro com o poder da mente era simples, admitia ela. Controlar um bando de cães treinados para atacar seria muito diferente. Cuyler caminhava apavorada ao lado de Ramsey. A orquestra dos latidos estava cada vez mais próxima, cada vez mais alta. Em segundos os animais sairiam da floresta, onde os procuravam. Os cães ferozes os apanhariam, e tudo estaria acabado. Tudo... a vida... tudo. — Olhe lá! — gritou Ramsey, porém sem diminuir a marcha da corrida. Ele vira uma pequena moto sobre a calçada. Largando a mão de Cuyler montou no veículo. Fez uma tentativa para que o motor rodasse, fez uma segunda tentativa. Conseguiu. Uma fumaça negra escapou pelo tubo de escapamento . Cuyler pulou na garupa, segurando-se na cintura dele, e lá se foram os dois. Ramsey cambiou a marcha, desceu da calçada e entrou na estrada. Ela poderia morrer montada naquela máquina precária era alta velocidade, pensou Cuyler. Mas ao menos pararia de ouvir os malditos cachorros latindo.

Ok, então ele a magoaria... de novo. Apenas rezava para que dessa vez tivessem tempo de ir até o fim. Quando de início Ramsey decidira fazer amor, dissera a si mesmo que faria por Cuyler, a fim de que ela não murchasse e morresse de desejo antes de poder ser conduzida à segurança. O problema era que aquilo que dissera a si mesmo fora uma mentira. Uma deslavada mentira. Ele a desejara, sim, a desejara. E ainda a desejava. Céus, e em lugar de a intimidade que usufruíram ter amortecido seu ardente desejo, aguçara-o incrivelmente, como navalha afiada entrando na carne. Não fora apenas físico o desejo, de forma alguma. Fora algo mais, algo mais... profundo, mais... mais espiritual. E quando Cuyler enfim fez o que ele a induzira a fazer... Ramsey sacudiu a cabeça, atônito. Por breves segundos sentira tudo o que ela estava sentindo. Experimentara os pensamentos, conhecera as emoções de Cuyler, sentira as vibrações que sacudiam seu corpo. Fora como se as mentes de ambos se unissem numa só. Tivera a chocante certeza do coração dela batendo ao lado do seu, dentro de seu próprio peito. Tudo caminhara lado a lado com a paixão crescente que sentia por Cuyler, e que explodira em algo nunca experimentado por ele antes. Não era igual ao sexo com uma... com uma mulher normal. Ficava acima e além disso, num mundo inteiramente novo. E o que fizera ele após tão estranha revelação? Nada. Ignorara, fingira que nada acontecera, deixara Cuyler pensar que seu interesse era apenas físico. Quanto a ela, agora sofria muito. Sentia violenta dor no peito, como se sua alma sangrasse enquanto lutava para segurar as lágrimas.

Ramsey ficou em estado de choque quando essas emoções todas surgiram-lhe à mente com tanta clareza como se fossem suas. Que diabo estava lhe acontecendo? Um carro de polícia bloqueava a estrada um pouco adiante. Ele dobrou para a esquerda seguindo por uma estrada secundária. A moto pulava, e com ela os ocupantes, enquanto passava por buracos e elevações. Voltavam para o lugar de onde tinham vindo. A manobra funcionou. A policia não pôde seguir na frente deles a tempo de bloquear a passagem, e Ramsey percebeu que teria condições de seguir por uma rota menos importante para depois entrar na rodovia. Dessa vez, contudo, ele não esperou que os faróis dos carros da polícia o forçassem a parar. Atravessou fazendas, passou por atalhos e teve de lutar para manter a precária moto em pé. Os policiais chegariam sem dúvida àquela estrada; mas, para evitar isso, ele fez ziguezagues com o fim de escapar. Pela primeira vez achou que sairiam vivos da confusão. Cuyler começava a pensar nisso também. Ramsey franziu a testa e olhou para trás. Cuyler agarrava-se à cintura dele e pousava a cabeça nas costas. Ramsey não conseguia mais negar a si mesmo que ela possuía sentimentos e emoções. Podia até sentir as emoções de Cuyler. E ela estava apavorada. Mas, acima de tudo, uma profunda tristeza quase a fazia chorar. Cuyler achou que estivera errada acerca de Ramsey o tempo todo. Mas também achou que Ramsey jamais poderia admitir que a desconfiança que tinha das pessoas de sua espécie era um engano, pois se tratava do produto do ódio que alimentara por anos. E ela achava... Como se uma corrente elétrica transmitisse a Ramsey as emoções pelas quais Cuyler passava, ele sentiu um choque e quase caiu da moto. Ela achava... o quê? Que talvez estivesse se apaixonando por ele?

— Conseguimos fugir da polícia? — Cuyler teve de gritar junto ao ouvido de Ramsey para se fazer escutar, tal o barulho da moto. — Só por enquanto — respondeu Ramsey, gritando também. — Assim que passarmos por um local descampado, eles nos verão. A estrada por onde seguiam agora era cheia de curvas. Ramsey cuidava para não se distanciar muito da rota principal, a fim de não se perder. A um dado momento, Cuyler gritou: — Ramsey, estamos indo na direção errada! Foi daqui que nós saímos — E exatamente o que pensei. Ele fez uma curva, depois outra, e em alguns minutos chegaram numa rua que Cuyler reconheceu logo. Ramsey parou e, quando ambos apearam, ele escondeu a moto atrás das árvores da estrada. Pegando Cuyler pelo braço passaram pelo portão da casa onde ela estivera presa há poucos dias atrás.

EIa tremia incontrolavelmente enquanto Ramsey a empurrava através dos portões, ao longo do pátio, até a porta da frente. Ele sabia no que Cuyler devia estar pensando. Que ele perdera a cabeça, ou que decidira entregá-la à organização, afinal. Surpreendia-se muito por ela não lhe perguntar nada; apenas caminhava ao seu lado, confiante no homem que não lhe dera razões para tão estranho procedimento. Percebendo a agonia de Cuyler, Ramsey apertou-lhe a mão quando a porta se fechou após a entrada dos dois no prédio. — Tudo vai sair bem, Cuyler. Este é o lugar mais seguro onde poderíamos ficar neste momento. O último em que eles pensarão nos procurar. E posso apostar que Fuller e seus homens não voltarão para cá enquanto acreditarem que continuam na nossa pista. Cuyler examinava o local. Parecia ser a casa de um milionário, mas não de muito bom gosto. Não tinha de forma alguma o aspecto de uma agência governamental. E aí estava a chave do negócio. O anonimato da organização era vital para seu sucesso. Ramsey começou a digitar as teclas, programando um novo código que Fuller não descobriria. Cuyler caminhava devagar de um lado para o outro; e suspirou. Um suspiro de exaustão. Felizmente, pensava Ramsey, as feridas dela haviam quase cicatrizado. Os pulsos não tinham mais cortes e as manchas roxas do rosto praticamente desapareceram, como também o inchaço do lábio. No entanto, alguns ferimentos eram mais difíceis de cicatrizar que outros, e o pior de todos era a dor que ele lhe causara. Precisava encontrar um meio de reparar seu erro logo, do contrário a perderia. Não tinha muita certeza se sairiam daquela aventura vivos mas, se saíssem, e se seguissem por caminhos separados como Cuyler parecia desejar, ele iria sofrer de remorso durante o resto de sua vida. Aberta a porta de entrada para o hall, Ramsey disse a ela: — Por que não sobe já? Você está muito tensa. Tome um banho quente e relaxe por algum tempo.

— Não, Ramsey. Quatro olho vêm mais do que dois. E se eu subir, e alguns agentes entrarem por esta porta? — Não acho provável quê isso aconteça tão cedo. Ramsey terminou de mexer com a nova entrada do código. Ninguém abriria aquela porta, ou o portão, sem seu conhecimento. Depois fitou-a e viu incerteza nos olhos dela. — Vamos, Cuyler. Pergunte. — Perguntar o quê? — Pergunte por que eu a trouxe aqui. — Ele acariciou-lhe o rosto. Deus, como a pele dela era acetinada. — Não foi por ter desistido de salvá-la. Antes de a pegarem terão de passar sobre meu cadáver. Percebendo que Cuyler não parecia acreditar muito no que ouvira, ele insistiu: — Você não crê em mim? — Eu... Como posso acreditar que dará sua vida para proteger uma pessoa que vê como raça inferior? — Não é... — Eu sei. Não é o que você quis dizer. Mas é como você sente. — Está errada, Cuyler. Não há nada de inferior em você. — Só no resto das pessoas de minha espécie, é isso? Sou uma exceção? Uma anomalia da raça? Ramsey tentou encontrar palavras para convencê-la de que estava errada. Porém o olhar de Cuyler lhe dizia que não adiantava nada. Ela não o ouviria. — Então, por que me trouxe aqui? — indagou ela de cabeça erguida. Ramsey não sabia como explicar. Levaria tempo para Cuyler confiar nele de novo. Mas conseguiria, sim, conseguiria enfim. — Venha comigo — disse. — Vou lhe mostrar uma coisa. Ramsey tomou-a pela mão e entrelaçou os dedos nos dela. Mão pequena, sedosa, firme agora, apesar do medo. Ele pensou ao modo como essa mão o acariciara, como as pontas dos dedos se enterraram em seus ombros.

Segurando-a com mais força, levou-a até a porta que ficava no fim do corredor. Entraram numa sala, e ele apontou para um equipamento que cobria vários balcões. Havia lá computadores, fax, telefones, rádios, videocassetes, e outros artigos de informática. Ramsey mexeu em vários aparelhos de rádio, mas só conseguiu o som da estática. Depois sentou-se numa poltrona e começou a digitar num computador. — O que você está procurando? — indagou ela, curiosa e ao mesmo tempo preocupada. — Tenho meios de saber tudo o que eles estiverem planejando ou executando, todos os movimentos da organização, daqui por diante. Garanto que descobrirei um caminho livre para sairmos daqui antes do amanhecer. Este sistema fornece ligação direta com o escritório central em White Plains. Quero saber o que eles têm contra mim, descobrir por que Fuller duvida de minha lealdade. — Em seguida, sorrindo para Cuyler, sugeriu: — Agora suba. Não há nada mais que você possa fazer aqui, cuidarei de tudo. Vá tomar um banho demorado.

Cuyler foi ao banheiro. Mas não fez o que Ramsey sugeriu, não ficou horas num banho de imersão. Tomou um chuveiro rápido, mas refrescante- Vestiu o mesmo jeans e o mesmo suéter, enxugou os cabelos, foi para o andar térreo procurou a cozinha e fez um café. Com uma xícara na mão voltou para a sala onde deixara Ramsey. Bateu na porta e entrou. Por mais esforço que fizesse, ele não conseguiu esconder sua preocupação. Cuyler passou a xícara para as mãos dele e perguntou: — As coisas vão mal? — Muito mal. — Conte-me o que se passa. Ramsey apontou para a tela do computador e mostrou-lhe um mapa cheio de pontos vermelhos que piscavam em intervalos regulares. — Veja — disse ele. — Há bloqueios em todas as rodovias. E eles estão verificando cada veículo que passa. — Quer dizer que não poderemos fugir de carro? Nesse caso, teremos de ir a pé. — Há cachorros nas florestas, com certeza. Cuyler, eu não acho que... A porta bateu com força, e ambos retesaram o corpo, virando para o lado de onde vinha o ruído. — Você não está em condições de achar nada, Bachman. E aí reside grande parte do problema.

Ramsey ouvira antes aquela voz grave. Reconheceu-a e levantou-se devagar. O vulto escuro, em pé no batente da porta, inclinou a cabeça e disse: — Alo mais uma vez, agente Bachman. Ramsey tentou engolir, mas sua garganta estava fechada como se um tijolo a bloqueasse. Aquele homem era um assassino; Ramsey tentara capturá-lo por diversas vezes, mas sem sucesso. — Damien... — Não está contente em me ver, Bachman? Achei que iria pular de alegria, depois de me ter perseguido durante meses com a finalidade de me entregar aos seus chefes da organização. — Você matou duas mulheres, seu vampiro covarde. E você... — Eu matei um homem. Por sinal, também um vampiro. Ele foi responsável pelo assassinato das duas mulheres, assassinato esse ao qual você foi enviado para investigar. — Mentiroso! — Ramsey avançou na direção de Damien, porém Cuyler pulou na frente dele colocando as mãos em seu peito. — É verdade, Ramsey! — exclamou ela — Houve testemunhas do fato. Li sobre o caso na época, e ele fala a verdade. Ramsey olhou para Cuyler, depois para o homem que tentara prender. — Verifique tudo nos preciosos arquivos da organização, caso não acredite em mim — insistiu Damien. — Todos sabem agora que o assassino foi Anthar, o vampiro que eu matei. Mas ainda continuam me caçando. Consulte os arquivos agora, o computador está em suas mãos. Tem medo do que vai encontrar? — Anthar? —repetiu Ramsey. Fitou Cuyler, e ela fez um sinal afirmativo com a cabeça. — Tudo bem. Acredito em você. — Não quer mesmo ver as provas? — Damien manifestou surpresa. — Não! Já tive muitas surpresas com referência à minha ficha nos arquivos da organização. Chega! Você esteve certo o tempo todo, Damien. Apenas lamento eu não ter acreditado em suas palavras antes. Dirigindo-se a Damien, Cuyler perguntou: — O que faz você aqui, afinal? —Vim buscá-la. — Mas, como sabia... — Não há tempo para explicações agora, menina. Venha comigo já. — Ele pegou-a pela mão e quase a arrastou até a porta.

Cuyler puxou a mão e protestou. — Não vou deixar Ramsey aqui. — Ele não merece sua dedicação. E um dos deles, um desses canalhas que fazem de nossa vida um Jogo de esconde-esconde, que cuidam para que nunca tenhamos paz. Se esses mesmos homens estão contra ele agora, tanto pior. Castigo merecido, se quiser saber minha opinião. — Não pedi sua opinião! — protestou Cuyler, revoltada. — Os homens que nos perseguem já me haviam aprisionado, Damien, e Ramsey me salvou. Arriscou a vida por mim. — Tarde demais — declarou Damien. — E de que adianta isso agora? Bachman é um deles, Cuyter! Deixe-o e se livre desse homem para sempre. — Maldito seja você com sua mentalidade atrasada de "nós-e-eles!" Não vê que é exatamente o preconceito que nos põe nesta situação ridícula, antes de tudo? Damien, seu modo de pensar é tão deturpado e retrógrado como o dos membros da organização. Não enxerga isso? Ramsey tocou o ombro dela, apertou-o gentilmente, mas tinha o olhar fixo em Damien. — Você pode tirá-la daqui? — perguntou. — Não ha duvida. — Vá com ele, Cuyler — Ramsey suplicou. — Não vou! Não vou! — ela berrou, irritada. — Não há tempo para discussões. — Damien interveio, porém seus olhos já não expressavam mais tanta raiva contra Ramsey. — Você notou o silêncio do rádio, Bachman? Notou a súbita parada nas transmissões? Notou a interrupção no computador?

Ramsey arregalou os olhos e virou-se lentamente para ver a tela do computador que, de fato, não continha nada. — Eles se deram conta de sua presença aqui assim que você ligou o computador. Começaram então a obter informações — Damien acrescentou, agora bem suavemente. Toda sua ira se fora — Eles estão ao seu encalço e talvez já... A voz de um amplificador estourou no ar. Cuyler assustou-se e gritou, quase impedindo que se ouvisse o que dizia. Mas Ramsey pôde escutar. — Bachman, a casa está cercada. Não há possibilidade de vocês saírem daí. Entreguem-se imediatamente. Ramsey baixou a cabeça, dando-se por vencido. — Você ainda pode tirá-la daqui, Damien? — perguntou. — Ramsey, eu... — Cuyler começou a falar. — Sim, se pudermos sair pelo telhado — respondeu Damien, impedindo que Cuyler continuasse. Ela agarrou-se ao pescoço de Ramsey, soluçando: — Não! Não farei isso. Eu amo você... Eu... A voz do amplificador voltou a encher o espaço, dizendo: — Nós lhe damos dez minutos, Bachman. Em seguida, atiraremos.

O atirador que estava no mais alto pinheiro do pátio assobiou e, quando conseguiu a atenção de Fuller, informou com voz bastante alta: — Há uma terceira pessoa lá dentro, Fuller. Um homem, alto, de pele um tanto escura. — Diabos! — Fuller exclamou e correu para a perua da organização onde estava o amplificador, e perguntou aos homens que ali trabalhavam nas transmissões; — E possível se pôr em funcionamento a aparelhagem para ampliar o som das vozes das pessoas na sala? Preciso ouvir o que se fala lá dentro. Um dos técnicos ergueu a mão pedindo paciência. Ajustou os fones de ouvido e manobrou vários botões. Enfim sacudiu a cabeça e sorriu. Deu os fones a Fuller que imediatamente os colocou nos ouvidos. Fuller arregalou os olhos e também sorriu. — É ele? — Fuller sacudia a cabeça devagar. — Acertamos na mosca desta vez, amigos. Arranjem-me uma linha que me ponha em contato com Bachman. Está na hora de fazermos um acordo.

Damien examinava Ramsey atentamente, como se o visse pela primeira vez. E disse: — É difícil acreditar que ambos temos uma finalidade em comum, depois de tudo o que houve. Ambos queremos ver Cuyler sair daqui viva. Ramsey baixou os olhos. — Temos muito mais em comum do que você sabe, Damien. Ouça-me, não é segredo o fato de que eu não gosto de você. — E você também não é minha pessoa favorita, Ramsey. — Apesar de o achar desagradável, meu consolo é que não é um assassino. — Muitíssimo obrigado por sua consideração. — Quer fechar essa boca e permitir que eu me desculpe? — disse Ramsey. — Ah, é isso que você esta fazendo agora? Desculpando-se? Ambos se olhavam com ódio. Ramsey teve vontade de nocautear o homem, mas controlou-se. Havia um outro lado de sua personalidade que desejava apertar-lhe a mão, chamá-lo de amigo. — O sujeito que você matou, de nome Anthar... — Ramsey engoliu um nó que tinha na garganta e sacudiu a cabeça. —O que tem Anthar? Limpando a garganta, endireitando o corpo, Ramsey respondeu: — Foi Anthar que assassinou minha mãe. A organização sempre soube disso. Consta na minha ficha com uma infinidade de outros... —Ele mordeu o lábio, deu um suspiro. — Não importa agora, penso. Apenas achei que você deveria saber. — Saber? Saber o quê? — Que não é tão canalha como imaginei que fosse. Agora, se não se importa, podemos parar de falar e tirar Cuyler daqui? — Claro. Você não tem nem um pingo de medo de mim, tem? — Oh, que inferno. Morro de medo, Damien. Não vê como meus joelhos tremem? — Ramsey caçoava. — Você é um mortal bem fora do comum. — E vocês são dois idiotas! — Cuyler berrou enquanto abria a cortina para ver lá fora. — E é um louco, Ramsey, se acha que vou sair daqui sem você. — Os olhos dela estavam molhados de lágrimas. — Vamos todos juntos, ou não vai ninguém.

Ramsey foi para perto dela. Nem percebeu que, disfarçadamente, Damien sairá da sala, pois sua atenção focalizava-se apenas em Cuyler. Ela estava com o coração partido, via-se. Ou seria seu coração que estava partido? Ramsey abraçou-a e disse: — Eu não valho tanto para você morrer por mim. Cuyler,vá com ele. — Você me ama, não me ama, Ramsey? — Ela enroscou os dedos nos cabelos dele. Ramsey a devorou com o olhar. Amava tudo nela, o nariz arrebitado, os enormes olhos escuros, os cabelos sempre em desordem. — Diga isso, diga que me ama. Só uma vez — ela insistia. — Não penso que "amar" seja uma palavra bastante forte para designar meus sentimentos. Céus, Cuyler, você virou minha vida pelo avesso. Antes de conhecê-la, eu juraria haver gelo correndo em minhas veias em vez de sangue. E um enorme bloco de granito no lugar de meu coração. Você mudou tudo. — Ele inclinou a cabeça e beijou-lhe os lábios do modo como desejara fazer durante a longa noite. — Sim, Cuyler, eu amo você. E muito. Lágrimas corriam pelo rosto dela como rios. Com voz embargada Cuyler suplicou: — Nesse caso, não me peça para ir sem você. Porque acho que não poderei. — Mas terá de se separar de mim mais cedo ou mais tarde. Você é imortal, eu não sou, e não há meios de eu poder ser, Cuyler. — Deus, como ele sofreu para pregar tamanha mentira. Havia um meio, sim, sabia agora que havia, e estava ainda surpreso com essa possibilidade. Porém jamais poderia falar a Cuyler sobre essa chance. Ela nunca partiria sem ele, se o soubesse. — É verdade, temos de encarar o fato de nos separar um dia — ele repetiu. — Não quero ouvir falar nisso. Damien voltou ò sala, e Ramsey disse a ela: — Quero que você vá com Damien agora. Eles não esperarão pacientemente por muito mais tempo. Há uma passagem para o telhado através do sótão. Damien deu a mão a Cuyler e conduziu-a amavelmente escada acima. O telefone tocou, e Ramsey ficou rígido. Tocou de novo e dessa vez uma voz no amplificador gritou para que ele pegasse no fone. Com mãos úmidas Ramsey o fez.

— Bachman? — Era a voz de Wes Fuller, seu superior. — Que diabos está você querendo? — Não é boa idéia sua amiga e amigo saírem pelo telhado, Bachman. Temos atiradores peritos bem no alto das árvores. Ramsey cobriu o fone com uma das mãos e fez sinal para Damien, que já estava no meio das escadas. Damien parou e ficou olhando para trás. Ramsey limpou a garganta e disse a Fuller: — O que o faz supor que alguém teria a idéia de ir ao telhado? —Oh, não foi suposição. Nós sabemos. Ouvimos toda sua tocante conversa. — Quer mesmo se encontrar comigo, Fuller? Precisa de algum auxílio meu? — Não, obrigado. Olhe, sei que você andou remexendo em sua ficha... entre outras coisas. Quanto sabe? — Sobre o quê? — Sobre a diabete, para inicio de conversa. — Sei que não tenho diabete. Sei que nunca tive, Fuller. — E a insulina? — Foi uma experiência da organização, com o fim de mascarar... — Ramsey olhou para Cuyler em pé no meio das escadas, e decidiu não falar mais. — Vamos, Bachman. Fale! Você sabe algo acerca de seu tipo de sangue? —Sei. — Então sabe que tudo foi mentira? Você poderia ter se unido às fileiras de sua amiga Cuyler, e ter vivido feliz com ela. Sabia disso? — Aonde quer chegar, Fuller? — Eu posso deixar você partir, Ramsey. A ela também. Posso voltar atrás e permitir que ambos saiam daqui, agora mesmo. Tenho autoridade para tanto. Agora mesmo... Fuller deixou suas palavras pairando no ar por muito tempo. Mas Ramsey não era idiota. Havia muito mais atrás daquela magnanimidade. Tratava-se de um estratagema para apanhá-los, pois Fuller devia desejar muito mais. Contudo, Ramsey não tinha ainda certeza do quê. — De que maneira? O que quer em troca? — Ele procurou não demonstrar muita esperança no tom de voz. — Que você termine com a missão que tinha antes desta. Só isso. Não é pedir demais, acha, Bachman?

Ramsey fechou os olhos, entendendo muito bem o que Fuller desejava. Sua missão anterior fora a captura de Damien Namtar, o mais poderoso, o mais velho, e provavelmente o mais importante de todos os vampiros. Ramsey não tivera escrúpulos quanto a caçá-lo um ano atrás, quando acreditara ser ele um predador sem coração, um assassino. Mas agora que o conhecia melhor convencia-se de que errara em sua perseguição a Damien. E no momento, mais do que nunca, sabia o que aconteceria a Damien se o entregasse à organização. Eles é que eram os assassinos sem coração, não Damien. Deus, tudo ficava tão claro agora! Por que levara ele tanto tempo para entender? — Como você quer que eu faça isso? — perguntou Ramsey, ao mesmo tempo pensando num meio de escapar da vergonhosa armadilha. — O tranqüilizante, Bachman. Há seringas cheias na última gaveta da escrivaninha. Apenas espete uma agulha nele, e deixe o resto conosco. Você e sua protegida poderão sair sem olhar para trás. — Mas isso pode levar algum tempo — observou Ramsey, já de caso pensado. — Posso lhe dar uma hora, Bachman. Nem um minuto mais. Desfez-se a conexão. Ramsey pôs o fone de volta no gancho. — O que há? — indagou Cuyler. — O que está acontecendo? — Nada. — Ramsey lançou um olhar a Damien e teve e estranha impressão de que o homem sabia cada palavra que Fuller lhe dissera. — Tentei negociar a fim de ganhar algum tempo, foi tudo. — Ele pegou um lápis e um pedaço de papel e escreveu: — Eles podem ouvir cada palavra do que dizemos; portanto, cuidado. Damien e Cuyler desceram as escadas, os poucos degraus que haviam subido, e ambos leram o recado. Ficaram estarrecidos. Ramsey olhou ao redor, sentindo-se mais perdido que nunca. Mais até do que quando acordara no pequeno castelo de Cuyler, escondido na neve ao norte do país. Esse pensamento o fez fechar os olhos e refletir sobre os dias que passara lá. Perdera tanto tempo, o tempo em que estivera sozinho com ela, naquele mágico lugar. Nunca mais voltariam para lá...

Ramsey fez um sinal para que o seguissem e os três foram ao porão, levando o telefone. Era um local de construção sólida, cimentado, seguro. Ramsey imaginou que não seriam ouvidos tá. Mesmo assim, sussurrou o que tinha a dizer. — Damien, precisamos trocar nossas roupas, você fica com as minhas e eu com as suas. — Por que isso agora? — indagou Damien. — Não temos tempo para examinar os fatos. — Ramsey resolveu mentir. — Olhem, há atiradores lá fora. Se vocês saíssem pelo telhado, seriam alvo das balas, e com a maior facilidade. Mas tenho um plano. — Explique-se melhor — pediu Damien. — Já lhe disse, não temos tempo para explicações. Cuyler encarou os dois homens, primeiro um outro. E falou: — Não gosto disso, Ramsey. Conte a verdade. O que expôs aquele canalha no telefone? —— Nada que importe a vocês dois. — Eu sei o que foi — declarou Damien com a maior calma do mundo. — Ele simplesmente ofereceu a liberdade a você e a Cuyler em troca de minha captura. Foi isso, não foi? Ramsey ficou furioso com o comentário de Damien. Achou que o tolo estava estragando tudo, pois isso dificultaria que Cuyler aceitasse sua idéia. — E você propôs a troca de roupas para que eu pudesse passar por você — acrescentou Damien. —Desse modo, Cuyler e eu poderíamos escapar. — Ramsey, você não pode fazer isso! Não pode!— protestou ela energicamente. Ramsey segurou-lhe ambas as mãos e dirigiu-se a Damien: — Você precisava ter falado isso? Não poderia apenas pegar Cuyler e ir embora? — Atitude muito fora do comum a sua, Bachman, muito generosa em se tratando de um mortal — repetiu Damien. — Já estou cansada de vocês dois!— exclamou Cuyler. Ela puxou as mãos que Ramsey ainda tinha presa à dele e espiou pelas estreitas janelas do porão. Do lado de fora os batentes encostavam no solo. Ela caminhava de uma para a outra janela enquanto Damien e Ramsey continuavam com aquela batalha ridícula.

— Olhem! — O grito de Cuyler chamou a atenção dos dois homens — Estão vendo o carro da organização ali adiante? É o que está mais perto da casa. Damien fitou Ramsey. Ramsey sacudiu a cabeça. — Não vou me dar ao trabalho de explicar meu plano a vocês dois — prosseguiu Cuyler. — Estão ocupados demais com suas rusgas para me ouvir.Ramsey, ponha Fuller na linha outra vez e diga-lhe que concorda coro os termos apresentados. Mas é necessário que ele afaste todos os carros da polícia do local. O helicóptero também tem de descer.Diga-lhe que você entregará Damien somente a ele e àqueles dois palhaços que sempre o acompanham. Os outros têm de se retirar. E em particular os atiradores. Posso ver um deles daqui, em cima de uma árvore. Não podemos arriscar nada. E para isso é importante nos vermos livres dessa gente toda. Ramsey franziu o sobrolho, segurou Cuyler pelos ombros e disse: — Querida, não entendi o que... — Precisamos de alguns minutos de distração da turma lá de fora — prosseguiu ela. — Então, correremos para o carro. Poderemos nos espremer através de uma janela, e... Cuyler parou de falar, subiu sem muita dificuldade num caixote de madeira e soltou a janela do batente com o auxílio de uma alavanca improvisada. Ramsey observou-a pasmo enquanto ela trabalhava e calmamente descia do caixote pondo a janela removida ao lado. — Olhem — Cuyler sussurrou, com voz ainda mais baixa do que antes. Ela apontou para os arbustos que cresciam entre a casa e o carro. Havia apenas alguns metros desprovidos de vegetação. Cuyler deu uma cutucada no ombro de Ramsey, dizendo: — Depressa agora, faça sua ligação.

Cuyler e Damien olhavam pelo espaço aberto enquanto Ramsey conversava com Fuller, através do telefone sem fio. Não havia quase ninguém à vista lá fora, apenas dois carros da organização e três agentes. Eles deviam estar querendo muito Damien para arriscar tanto, para fazer tantas concessões, pensava Cuyler. Isso, ou preparavam um blefe. Talvez outros agentes estivessem escondidos, aguardando. Talvez Fuller e os demais membros não tivessem a mínima intenção de deixá-los partir. — Ele dorme a sono solto, Fuller — disse Ramsey ao telefone. — Pelo visto, seu tranqüilizante funciona. Cuyler e eu queremos um transporte para sair daqui. Agora. Ramsey segurou o fone distante do ouvido e Cuyler foi bem perto para escutar a resposta de Fuller. Damien parecia se importar pouco com o andamento das coisas e dava a impressão de que não tinha necessidade daquilo tudo. Ela, na verdade, ainda não se dera conta da extensão do poder de Damien. — Você e Cuyler fiquem de prontidão — respondeu Fuller. — Nós entraremos na casa e, quando virmos com nossos próprios olhos que Damien está incapacitado, deixaremos vocês livres. Ramsey cobriu o fone com a mão e murmurou: — Mentiroso! — Tirando a mão, disse: — Tudo bem, Fuller, mas cumpra sua palavra! Eles esperaram, todos os três grudados no espaço aberto da janela. Cuyler sabia que Damien poderia escapar, se quisesse. O homem possuía impressionante habilidade. Mas ele ficou, fazendo-lhes companhia. Quando ouviram a porta da frente se abrir, e Fuller chamar Ramsey pelo nome, este fez um estribo com as mãos e inclinou-se. Cuyler subiu e passou pelo orifício da janela. Ajoelhou-se do lado de fora, escondendo-se atrás dos arbustos, mas ainda bastante perto da casa para ouvir a voz de Fuller, agora alarmada: — Onde se meteu você, Bachman? Maldito! Ele planejou alguma coisa! Revistem o lugar! Damien passou para o lado de Cuyler em seguida. Ramsey foi o último. Entre os dois homens, ela olhou para a direção do carro.

— Vamos juntos como se fôssemos uma só pessoa — sugeriu Ramsey. Damien concordou. Tão logo chegaram ao fim do jardim e o portão se abriu, uma rajada de metralhadora estourou no ar. Eles correram e Ramsey abriu a porta dianteira do carro. Cuyler se atirou dentro, ficando agachada no chão. A janela acima dela explodiu e pedaços de vidro emaranharam-se em seus cabelos. Ela tentou ver Ramsey ou Damien, mas as balas passavam perto de seu rosto, trazendo-lhe lembranças horríveis, até que finalmente ela baixou o rosto de novo, cobrindo-o com as mãos. Ouviu então o barulho da porta que se fechava e do carro se pondo em movimento. As balas pararam de estourar em seus ouvidos. Cuyler arriscou erguer a cabeça, e viu Damien sentado no banco de tras, calmo, olhando para qualquer coisa que vinha ao encalço deles. Curiosa, apesar do medo, sentou-se e acompanhou o olhar de Damien. Viu os homens da organização numa perua, correndo atrás deles. Mas, antes que chegassem perto a perua explodiu, transformando-se numa bola de chama branca. Tapando os olhos e ofegante, Cuyler olhou para Damien. Ele não percebeu que era observado, pois tinha os olhos fixos no que estava atrás de si. Olhava para a casa. De súbito, o carro onde eles viajavam tremeu ao impacto de uma explosão. Cuyler ouviu Ramsey praguejar e viu o corpo dele se retorcer no assento do motorista. Ela decidiu olhar para trás , e constatou que não restava nada da casa além de enorme chama, logo transformada em cinzas. Enquanto Cuyler ainda sentia as vibrações do estouro das balas, a casa sumia por completo. Meu Deus! Segundos depois o carro em que fugiam começou a perder velocidade. — Ramsey, o que há de errado? O que... Cuyler engoliu o resto da sentença ao ver sangue no rosto e no peito dele. A mão que segurava a direção estava branca, imóvel, os olhas parados, o corpo inclinava-se para a frente e a perna direita movia-se espasmodicamente.

— Ramsey! — Ela pôs o pé no freio e passou o câmbio para o neutro. Segurou a direção, conduzindo o carro ao acostamento. Sacudiu Ramsey pelos ombros e gritou: — Ramsey, Ramsey, não faça isso comigo, por favor! Ramsey. Ram...sey! Com grande esforço ele conseguiu dizer: — Acho melhor Damien tomar a direção do carro. Em seguida silenciou, fechando os olhos. Cuyler enterrou o rosto no pescoço dele, chorando incontrolável e copiosamente. — Não está tudo terminado ainda, Ramsey — balbuciou. — Com os diabos, não está acabado. Não ainda, e não desse jeito! No mesmo instante, uma mão firme tocou-lhe o ombro. Era Damien que lhe dizia, fitando-a com olhar solene: — Não, Cuyler. Não está tudo terminado. Não ainda. Ele saiu do carro, abriu a porta da frente, puxou Ramsey para fora e depois, cuidadosamente, colocou-o no assento traseiro. Cuyler foi para lá também e ergueu a cabeça dele pousando-a sobre seu colo. Damien tomou a direção. — Segure-o bem, Cuyler — ele disse. — Eu os levarei a um lugar seguro. E o resto... — Damien olhou para o homem deitado no banco de trás e, com as pálpebras semicerradas, murmurou: — O resto, suponho, fica por sua conta, Bachman. Ramsey acordou sentindo terrível dor, como nunca sentira antes na vida. Mas ao menos acordara. Achou que devia ser grato aos céus pelos pequenos favores. Estava com o peito coberto de bandagens, as pernas adormecidas, mas por felicidade ainda quentes. Com a cabeça apoiada no que lhe pareceu um travesseiro de cetim, sentiu que pequenas mãos acariciavam-lhe o rosto, dedos enroscavam-se em seus cabelos. Uma voz musical, como uma brisa de primavera, suplicava-lhe que acordasse. Lágrimas salgadas, que não eram as suas, molhavam-lhe as faces. Lábios trêmulos pressionavam os seus, ininterruptamente. Ele abriu os olhos. Tudo estava anuviado. Sentia-se fraco, esgotado. E havia aquela necessidade imperiosa de fechar os olhos de novo, de flutuar nas alturas. — Ramsey?

Deus, ele não queria flutuar nas alturas. Não, uma vez que flutuar significava ir para longe de Cuyler. — Estou aqui — ele disse. Mas a voz não lhe pareceu a sua. Era como se viesse de longe, da outra extremidade de um longo túnel. Ele tentou concentrar a vista ao redor, mas apenas enxergava círculos dourados de luz. Seriam velas? E, mais além, uma claridade maior. Uma lareira, quem sabe? Sentia o calor, sentia a fragrância do fogo. Sim, era uma lareira. Ramsey desconfiou que estivesse numa cama, mas nem disso tinha muita certeza. — Onde estou? — perguntou. — Na casa de Damien..., em uma das casas dele, segundo penso. Estamos seguros aqui, Ramsey. Damien agora foi se livrar do carro. Assim que voltar, irá à procura de um médico. — Um médico não vai ajudar em nada, Cuyler. — Ele tinha consciência disso, bem no fundo de seu intimo. E Cuyler sentia que Ramsey lhe fugia. Conseqüentemente, ela também morria um pouco, junto com ele. Ramsey fez esforço para se sentar, e Cuyler ajudou-o. — Não posso aguentar tamanha dor, Ramsey — disse ela, ajeitando os travesseiros. — Não posso aguentar perder você. — Como fui tolo! — Ele beijou-lhe as mãos. — Você salvou nossas vidas, Ramsey. Até Damien reconheceu o que você fez para nos salvar. —Fui um tolo! — repetiu. Deus, ele tinha cada vez mais dificuldade em falar. — Damien é um homem decente, eu e que estava errado... sobre ele. Sobre... tudo... acho. — Isso não importa agora. — Sim, sim, importa, e muito. Não sou... — Ele respirava com dificuldade. — Não sou o que você pensa que sou, Cuyler. A insulina... o tempo todo... Não passou de um truque deles. —Não fale tanto — Cuyler pediu. — Descanse apenas e... —Não mereço... viver. E não estou pronto para morrer, tampouco. Cuyler deixou escapar um soluço e abraçou-o. — E eu quero que você viva... Se é isso que você deseja.

— Quero viver, Cuyler. Quero poder amar você... do jeito que merece. — A dor que ele sentia no peito era intolerável. Mas a dor do coração parecia ser ainda maior. — Quero amar você, Cuyler. Quero que me faça viver; — Quer, Ramsey? E teso que está dizendo? Mas o caso é que não posso transformá-lo. O antígeno... — Eu o tenho. Sempre... o tive... em meu sangue. A insulina... — E foi o fim. Ele sentia-se indo, sentia que se afastava de Cuyler rapidamente. Tentou se agarrar a ela, mas não teve energia. Com supremo esforço, sussurrou: — Eu amo você, Cuyler... Ele fechou os olhos e sua respiração começou a ficar cada vez mais fraca. — Ramsey! Ramsey, não... Porém Cuyler sabia que chegara o fim. E sabia que ele tentara lhe falar alguma coisa... alguma coisa que ela não entendera bem.

Vamos, Cuyler, a voz suave, profunda de Damien flutuou através das fronteiras do tempo e do espaço. Ele é um de nós. Sempre foi. Tudo estava explicado nas fichas dele. Mascaravam-no com uma droga ou outra. Foi submetido a lavagem cerebral. Diziam-lhe que precisava de insulina e que ele era diabético. Mas era mentira. Convenceram-no a aceitar a situação durante a maior parte de sua existência, e mesmo assim ele se apaixonou por você. Vamos, traga-o de volta a vida. Se algum dia um homem mereceu esse presente, esse homem, é Bachman.

Cuyler tinha os olhos arregalados. Estava terrivelmente chocada, mas se perguntava se aquela voz que ouvira fora produto de sua imaginação. Teria sido? Mas, se houvesse uma chance... Ela inclinou a cabeça e beijou Ramsey na boca. Depois abaixou-se mais e beijou-lhe o pescoço. — Volte para mim, querido — sussurrou, seus lábios movendo-se sobre a pele salgada.

Quando Ramsey abriu os olhos, muito tempo mais tarde, havia centenas de novas e inacreditáveis sensações circulando através de seu corpo. Coisas que nunca sentira antes, que nunca entendera, um sentido de exaltação, de força e vitalidade que jamais experimentara anteriormente. Mas tudo empalidecia ante a alegria que sentiu ao encontrar Cuyler segurando-o nos braços. Fitou-a, e viu a incerteza estampada nos enormes olhos de ônix quando procuraram seu rosto. — Você fez isso, não fez? — perguntou ele, e até sua voz soou-lhe diferente. Ou talvez fosse sua audição que adquirira nova intensidade. — Fui eu — respondeu Cuyler. — Você disse... Eu pensei... Não me odeie por isso, Ramsey. Achei que era seu desejo viver comigo, viver como eu. Se entendi mal, então... — E o que eu queria. — Mas... Ramsey ergueu a cabeça e a fez calar pressionando os lábios nos dela. — Eu amo você, Cuyler Jade, e sabe disso, não sabe? Â preocupação sumiu dos. olhos dela sendo substituída por um sorriso nos lábios. — E claro que sei, Ramsey. Soube disso antes mesmo de você saber. E é uma coisa muito boa. — Por que muito boa? Cuyler beijou-lhe a testa, depois a boca. — Por que, Ramsey? Porque amo você também. E eu não aceitaria nada menos em retorno. Em especial tendo de viver com você por toda a eternidade. — Eternidade com a minha pequena fada! — ele disse, sorrindo. — E eu não poderia desejar destino mais encantador, mais promissor.

 

 

                                                                                                    Maggie Shayne

 

 

 

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