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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMOR & REDENÇÃO / Margaret Moore
AMOR & REDENÇÃO / Margaret Moore

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Um terrível acidente rouba toda a alegria de viver do conde Griffin Branwynne... Recluso em seu castelo, ele re­cebe a inusitada visita da bela e obstinada Gwendolyn Davies. Ela viera lhe pedir recursos para um orfanato... e acaba ficando presa em sua residência por conta de uma tempestade de neve. Gwendolyn não acredita em amor à primeira vista, mas Griffin se torna outro homem ao conhecê-la. E não medirá esforços para convencê-la do contrário!

 

 

 

 

20 de dezembro, 1860

Llanwyllan, País de Gales

A jovem criada segurou com força o corpete preto de lã com as mãos calejadas, ao observar a patroa se prepa­rando para partir.

— Ah, srta. Davies, acho que está se arriscando mui­to! Eu ficaria apavorada de ir até lá sozinha!

— Besteira — Gwen disse, de forma ríspida, ao ajei­tar o gorro marrom-escuro. — Não há nada a temer. Te­nho certeza de que o conde de Cwm Rhyss não deve ser tão ruim quanto dizem.

— Ah, mas ele é! Vil, malvado e terrível! — excla­mou Molly. — Ora, ele jamais recebe ninguém, nem sai de seu castelo, desde o acidente. E dizem que é horrivel­mente desfigurado.

Gwen virou-se para a ansiosa jovem e lhe ofereceu um sorriso tranquilizador.

— Ele sai do castelo. Pelo que eu soube, costuma sair para cavalgar. E ele tem uma governanta que, todo sá­bado, vem à aldeia, além de um outro empregado. Não considero isso viver como eremita.

— Mas, com exceção deles, ninguém jamais o vê.

— Não me parece tão estranho assim que um homem horrivelmente desfigurado queira se esconder de olhares curiosos e perguntas indiscretas.

— Não se lembra do que ele fez da última vez que al­guém foi até lá pedir contribuições para a caridade? Ele ameaçou atirar neles!

Gwen vinha se esforçando para não se lembrar das histó­rias que se espalharam pelo vale a respeito do incidente de três anos atrás.

— Estou certa de que isso não passa de exagero. — Molly sacudiu a cabeça rapidamente.

— Na época, eu estava trabalhando na estalagem. Di­zem que o conde pegou a espingarda e ameaçou usá-la se eles não fossem embora.

— Se eu perceber que ele vai começar a atirar, saio correndo — garantiu Gwen.

Ela não estava brincando, pois as histórias que escuta­ra a respeito do recluso conde de Cwm Rhyss não eram nada encorajadoras, especialmente, considerando o pro­pósito de sua visita.

Molly apontou para a janela.

— Parece que vai chover, srta. Davies. Não quer ficar presa na tempestade, quer?

Gwen seguiu o olhar da mulher mais jovem, até um ponto entre o orfanato de pedras cinzentas e o muro que o cercava, uma construção remanescente de quando o local era uma casa correcional. Atrás dele, estendiam-se as rochosas montanhas galesas. O céu-acinzentado que as cobria não parecia lá muito promissor, mas ela não se permitiria ser demovida por um pouquinho de neve.

— Faltam apenas quatro dias para o Natal, e se eu não for a Rhyss Hall hoje, posso não ter outra oportunidade antes da chegada do feriado — disse, deixando claro o motivo pelo qual não podia adiar sua visita. Ela sorriu para Molly. — Não creio que vá começar a nevar logo, e, como não espero ser convidada para o chá, devo estar de volta antes que o primeiro floco de neve caia.

— Por que, pelo menos, não me deixa chamar William? Ele pode levá-la em sua carroça.

Gwendolyn sacudiu a cabeça ao vestir as luvas de lã, remendadas nos polegares.

— Não temos dinheiro para isso, e não fica tão longe assim. Quando mais jovem, caminhei muitos quilômetros montanha acima. Se eu tiver algum problema, pro­curo refúgio na fazenda dos Denhallows. Fica bem no caminho.

— Olhe, tem mais uma coisa — afirmou Molly —, não é uma caminhada fácil. Desde que o rio encheu, na primavera, ele jamais providenciou para que a estrada fosse restaurada.

— Estou certa de que darei um jeito — disse Gwen, com firmeza.

— Dizem que o conde sempre teve gênio forte, ainda mais depois que foi ferido... — insistiu Molly.

— Eu estive na Criméia — Gwen interrompeu, deter­minada a fazer as coisas do seu jeito, sem escutar mais lamentações e alertas da parte de Molly. — Se pude sobreviver ao horror de Balaclava, acho que posso lidar com um nobre eremita. E se ele for rude... Bem, não será a primeira vez que um homem é rude comigo. Nem, desconfio, será a última. E se começar a nevar, ficarei sã e salva na cozinha dos Denhallows.

Dito isso, Gwen olhou-se pela última vez no pequeno espelho rachado para se certificar de que estava apresen­tável, ignorou a expressão amarrada de Molly, e se pôs a caminho.

Escolhendo cuidadosamente o caminho a seguir pela trilha acidentada e enlameada, que poderia até ter ser uma estrada decente se não fosse pela negligência do conde, Gwen ergueu o olhar na direção do enorme muro de pedra ao longe. Parecia saído de um conto de fadas, e era fácil acreditar que um mago maligno ou um ogro moravam lá. Os portões de ferro trabalhado, adornados com o brasão do conde — um dragão galês e um leão bravo — rangiam com a força crescente dos ventos. As poucas árvores pelo caminho curvavam-se e gemiam, e o céu estava ainda mais escuro do que antes.

Não era um bom dia para se fazer visitas, mesmo que necessárias.

Ela olhou para trás, para o caminho por onde viera. A fazenda dos Denhallows ficava três quilômetros vale abaixo. Se o tempo não piorasse, ela provavelmente con­seguiria chegar lá bem rápido. E quanto tempo se demo­raria na casa do conde? Não achava que ele de fato fosse apontar uma espingarda para ela, mas também tinha cer­teza de que sua visita seria breve.

Assim, como os dedos de seu pé estavam ficando pro­gressivamente mais adormecidos, enrolou-se ainda mais na capa acinzentada e decidiu que seguiria até a mansão, faria o seu pedido, e iria embora o mais rápido possível.

Quando chegasse à fazenda ela decidiria o que fazer, de­pendendo das condições climáticas.

Tomada a decisão, ela caminhou o mais rápido que pôde até o portão, tentando não tropeçar nos sulcos da trilha. Sua causa não seria beneficiada caso ela caísse e chegasse à mansão coberta de lama e desgrenhada.

A trilha logo se nivelou, pois a mansão dos Cwm Rhyss havia sido construída sobre o platô que contem­plava o vale abaixo. Ela soubera que, nos tempos dos normandos, havia um castelo ali, embora não existissem mais vestígios dele. Além do platô estendia-se um pe­queno vale, depois o terreno se erguia novamente, ainda mais acidentado. Alguns fazendeiros moravam no alto das montanhas, mas a maioria dos habitantes residia abaixo da propriedade isolada.

Ao alcançar os portões de ferro, Gwen espiou entre as barras e viu a estrada de acesso que levava à enorme casa que datava dos dias de Elizabeth e dos Tudors, que eram de ascendência galesa. Sua fachada era de pedra acinzentada, com altas janelas escuras e aparência de abandonada. Uma varanda maciça abrigava a porta da frente.

Era um visual nada acolhedor, mas ela não chegara até lá para desistir.

E estava desesperada. Tinha apenas duas libras para gastar com o Natal. Isso não compraria muitos presentes, e não daria nem para o começo de uma ceia de comemo­ração. Suas crianças já tinham tão pouco que, com toda certeza, mereciam alguns agrados de Natal. Ela jamais se perdoaria se permitisse que o aspecto inquietante da casa e os boatos sobre o conde a dissuadissem. Gwen procurou uma portaria ou algum outro modo de alertar os moradores de que tinham visitas. Não avistando nada, experimentou o portão. Para a sua surpresa, ele abriu facilmente.

Isso parecia mais promissor. Contudo, o vento que entrou por baixo da capa parecia ainda mais frio. Talvez por ela estar parada.

Caminhando apressadamente até a entrada de acesso ela logo se sentiu aquecida, embora não estivesse muito confiante quanto a uma recepção agradável. Uma luz acendeu-se em uma das janelas de baixo. Outro bom sinal.

Então que um homem apareceu, uma silhueta na ja­nela — um homem alto de ombros largos. Ela ergueu a mão, em sinal de cumprimento, mas o homem abrupta­mente fechou as cortinas.

— Pois, um Feliz Natal para você também — ela mur­murou baixinho.

Se aquele era o conde, esse não era um bom sinal. Gwen torceu para que ele não tivesse ido buscar a es­pingarda.

Por outro lado, como contara a Molly, sobrevivera à Criméia, e outras coisas, sem se entregar ao medo. Caso o tivesse feito, jamais teria se tornado enfermeira, e teria fugido desde a primeira vez que avistara o desembar­cadouro sangrento de Balaclava. Os feridos precisavam dela, na ocasião, e seus órfãos precisavam dela agora.

Ela marchou até a enorme porta da frente de carvalho, que exibia uma pesada aldrava de ferro, no formato de uma cabeça de cavalo. Gwen ergueu a peça de ferro e bateu.

A porta se abriu, revelando não um nobre irritado com uma espingarda — para o alívio dela — mas uma mulher idosa com o rosto enrugado e olhos sombrios. Ela esta­va usando uma touca e um avental tão limpos quanto a brancura da neve recém-caída.

— Lamento incomodar — começou a dizer Gwen, com um sorriso. — Sou a srta. Gwendolyn Davies, do orfanato de Saint Bridges, em Llanwyllan, e, se fosse possível, gostaria de ver o conde.

A mulher sorriu, depois franziu a testa e, ansiosamen­te, olhou por sobre o ombro.

— O conde não está recebendo visitas hoje.

— Ah? — respondeu Gwen, com um misto de sim­patia e preocupação ao inclinar a cabeça para dentro da casa. — Espero que o conde não esteja doente. Talvez eu possa ajudar. Estudei para ser enfermeira.

— Não, hã, não é isso — disse a mulher, olhando no­vamente por sobre o ombro. — Ele não gosta de visitas.

— Não estou aqui para visitá-lo — retrucou Gwen, ainda espiando dentro do vestíbulo, que possuía um chão de mármore e paredes com painéis de carvalho escureci­do. Várias lanças, espadas e escudos medievais estavam pendurados na parede, e havia uma armadura completa ao pé da enorme escadaria que levava ao segundo andar. Dois corredores saíam do vestíbulo, um para a direita e outro para a esquerda. — É uma questão de caridade — ela prosseguiu. — E, como já estamos quase no Na­tal, estou certa de que ele não...

— Sra. Jones! — gritou uma voz grave, vinda do cor­redor da direita, onde ela avistara a janela momentaneamente iluminada. — Tire essa mulher de minha casa! Ela não vai tirar um pêni sequer de mim!

Qualquer dúvida que Gwen tivesse sobre invadir a privacidade do conde foi instantaneamente dissipada.

A mulher idosa corou. Parecia encabulada.

— Sinto muito, mas acho melhor a senhorita ir embo­ra. Ele está de mau humor hoje. É a época do ano, a se­nhorita entende. Ele costumava adorar o Natal, mais aí... Bem, agora só serve para lembrá-lo de como as coisas eram antes. Ele sempre gostou de festas, jogos e canto­rias. Além do mais, ele está ocupado, terminando uma história que está escrevendo.

Gwen jamais soubera das pretensões literárias do con­de, e lamentava o fato de ele ter se machucado, mas isso não lhe dava o direito de ser rude.

— Talvez, se a senhora lhe disser que vim de Saint Bridget.

Uma porta se abriu no corredor à sua direita, ilumi­nando o corredor escuro. Uma figura alta e de ombros largos, com cabelos fartos, à altura dos ombros, apare­ceu no vão da porta com as mãos na cintura.

— Sra. Jones! Será que pode, por favor, se livrar des­sa mulher, ou será que eu devo fazê-lo?

Gwen notou que ele não carregava qualquer tipo de arma, de modo que marchou na direção de seu objetivo, como um soldado preparando-se para tomar uma colina, ignorando a governanta, que correu atrás dela, berrando como uma ovelha agitada:

— Ah, meu Deus. Não acho que... Senhorita... é me­lhor não... ele...

— Meu senhor, se puder me conceder um instante do seu tempo — Gwen disse, determinada a fazê-lo ao me­nos escutar o seu pedido. — Não quero incomodá-lo, mas já estamos quase no Natal, e eu vim até aqui...

— Sei muito bem para que diabos veio até aqui, e a resposta é não — rosnou o homem, antes de desaparecer para dentro do aposento à sua direita e bater a porta atrás de si.

Por um instante, Gwen hesitou — mas apenas por um instante. Ele podia ser um conde, mas ela merecia, no mínimo, um pouco da mais básica cortesia, e não conse­guia parar de pensar no ar desapontado de vários rostinhos na manhã de Natal.

Ela segurou a maçaneta da porta e a abriu — aden­trando o quarto mais bagunçado que já vira na vida. Li­vros e papéis estavam espalhados por todos os lados, como se alguém houvesse deixado a janela aberta em um dia de ventos fortes. Um único abajur estava aces­so sobre uma escrivaninha coberta de páginas escritas à mão, que tinha frases riscadas e anotações nas margens. Capacetes de diversos tipos descansavam sobre as pra­teleiras das estantes que cobriam as paredes do quarto, e uma enorme espada de lâmina larga estava apoiada na escrivaninha, que tinha uma das bordas notavelmente lascada, como se alguém a tivesse golpeado repetidas vezes com a arma.

Mais desconcertante ainda, o conde de Cwm Rhyss estava postado diante da lareira acesa, com as pernas fir­memente plantadas no chão-, os braços cruzados e uma expressão feroz no rosto. A própria imagem da autori­dade furiosa, embora estivesse vestido com a mesma simplicidade dos fazendeiros locais — calça de algodão estreita, camisa branca aberta no peito, colete de lã pen­teada e um paletó escuro. A corrente dourada do relógio brilhava sob a luz.

Também estava visível sob a luz uma terrível cicatriz que lhe deixava o lado esquerdo do rosto permanente­mente mosqueado e vermelho.

Ela já vira coisa pior em um rosto humano. Muito pior. A cicatriz margeava o olho, e ela supôs que o ca­belo comprido fosse para ocultar a maior parte do tecido cicatrizado e, provavelmente, uma orelha danificada.

— Sinto muito, meu senhor! — exclamou ofegante a sra. Jones, entrando no aposento atrás de Gwen. — Não consegui...

— Eu escutei — rosnou o conde. — Pode ir embora, sra. Jones. Eu mesmo lidarei com está pessoa.

Em vez de se apressar em se retirar, como Gwen es­tava esperando que ela fizesse, a sra. Jones olhou para o conde como se este fosse uma criança teimosa. Depois, fez uma mesura.

— Vou buscar um pouco de chá.

— Não precisamos de chá — ele retrucou. — Tocarei a campainha quando esta mulher insolente estiver pronta para ir embora. Muito em breve.

A sra. Jones assentiu, lançou um outro olhar de repreen­são para o conde e retirou-se.

— Meu senhor, lamento incomodá-lo...

— Não lamenta mesmo.

Suplicante ou não, havia um limite do quanto Gwen estava disposta a aturar, e ela estava rapidamente per­dendo o bom humor.

— Se acha que vai me dissuadir com esses modos, meu senhor, devo lhe informar que estou acostumada a coisas muito piores.

Ela reprimiu um sorriso de satisfação ao notar que ele fora pego de surpresa pelo comentário.

— Meu nome é Gwendolyn Davies, e vim até aqui...

— Pedir dinheiro. — Ele a olhou de cima a baixo. —Achei que devia ser outra charlatã tentando me roubar com alguma história triste sobre fazer caridade, ou uma daquelas damas que viram Lady Generosidade no Natal, ajudando os menos afortunados. Mas posso dizer pelo mau gosto de seu guarda roupa que não é nenhuma das duas coisas. Suponho então que seja o tipo de mulher que, não conseguindo um bom marido, se dedica a traba­lhos de caridade. Isso explicaria seu incrível atrevimen­to. E provavelmente também quer me dar um sermão sobre a necessidade de salvar minha alma imortal nesta época festiva de renascimento. Não se dê ao trabalho. — Ele apontou para a porta. — Acredito que pagãos de­vam ser deixados em paz, e eu também.

Ela continuou a fitá-lo, calma e decididamente.

— Meu senhor, receio que não tenha entendido direi­to. Eu não dou a mínima para a sua alma imortal, e, no que me diz respeito, o senhor pode ir feliz da vida para o inferno;

Os olhos castanhos do nobre se incendiaram, mas ela ignorou a reação, e, usando o mesmo tom descontraído, prosseguiu:

— Contudo, meu senhor, não poderá levar seu dinhei­ro consigo quando se for. Antes de tal dia melancólico, e como já estamos quase no Natal, um dia em que a maioria das pessoas se sente grata por sua boa sorte, e inclina­da a compartilhar com os menos afortunados, esperava que pudesse contribuir com alguns presentes e um pouco de comida natalina para várias crianças galesas que moram no orfanato que eu administro em Llanwyllan.

Ele contornou a mesa, mancando. Ela não notara essa dificuldade de caminhar antes. Ele devia estar tentando disfarçar, da mesma maneira que deixara o cabelo crescer para esconder a cicatriz e o que restava de sua orelha.

— Bom Deus, você é a mulher mais irritante e inso­lente que já conheci.

— Simplesmente me recuso a ser intimidada, ainda mais levando em conta o motivo pelo qual me intrometi em sua — ela passou os olhos pelo gabinete bagunçado — existência interessante.

— Prefiro que minha existência interessante não in­clua visitas inoportunas de pessoas querendo o meu di­nheiro.

— E eu preferia não ter que incomodá-lo, mas faltam apenas quatro dias para o Natal, e não temos quase nada para as crianças.

Ele fungou, e sentou-se atrás da escrivaninha.

— O Natal cai no mesmo dia todos os anos. Deveria ter se planejado melhor, e não esperado até que tivesse de pedir a ajuda de estranhos no último instante.

— Pois eu me planejei. O que eu esqueci de incluir em meus planos foi a necessidade de uma nova chaminé, depois que a antiga caiu. Ou a chegada de quatro novas crianças. Ou a perda súbita de um de nossos principais benfeitores. O que eu tinha reservado para o Natal aca­bou sendo usado em outras coisas.

— De modo que reuniu coragem para vir mendigar ao conde de Cwm Rhyss?

— De modo que decidi pedir a um homem rico se ele poderia nos ajudar. Não queremos muito, meu senhor. Apenas alguns doces para as crianças e um peru para a ceia de Natal.

— De quantas crianças estamos falando?

— Cinquenta.

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Só cinquenta? — indagou, com sarcasmo.

— Eles não esperam muito de Papai Noel, meu se­nhor. Talvez uma laranja, ou alguns doces. A quantia de que preciso não deve representar nada para o senhor, mas significaria tudo para eles. Detestaria que não en­contrassem nada ao acordar na manhã de Natal.

Os lábios do conde se retorceram em um sorriso.

— É muito boa mesmo, tentando comover o coração de um homem com imagens de criancinhas patéticas, com os olhos cheios de lágrimas de decepção. Talvez deva considerar uma carreira no teatro, srta. Gwendolyn Davies.

— Se for bem-sucedida, talvez o faça. Fui?

— Se eu disser que não, o que fará em seguida? Ficar de joelhos?

— Se for preciso.

Ela fez menção de se ajoelhar, e ele protestou.

— Bom Deus, mulher, eu não estava falando sério.

— Ah? — ela retrucou. — Deve me desculpar por não ter percebido que o senhor tem senso de humor. Ou não ter compreendido que não iria exigir a minha humilhação antes de concordar em se separar de uma pequena quantia.

Ele lançou-lhe um olhar amargo.

— Se lhe dar algum dinheiro fará com que deixe o meu escritório e me permitirá prosseguir com o meu tra­balho, contribuirei para os órfãos, os enfermos, os idosos, e quem mais quiser.

Não foi a mais graciosa das respostas, mas, mesmo assim, ela sorriu.

— Neste caso, meu senhor...

— Eu estava brincando.

— Mais uma vez, deve me perdoar por não entender o seu astuto senso de humor.

Resmungando uma praga, o conde abriu uma gaveta e começou a revirar o seu conteúdo.

— Se quer saber, srta. Davies, contribuo para várias instituições de caridade através de meu advogado. Sim­plesmente não vejo por que alardear o fato, embora tal­vez deva pensar em colocar uma lista na porta, para im­pedir que megeras intratáveis como a senhorita invadam a minha casa exigindo a minha ajuda.

— Se isso lhe dá prazer, meu senhor, pode me insultar o quanto quiser. Considerarei isso o preço que devo pagar por incomodá-lo. Mas, se lhe servir de consolo, as crianças ficarão muito agradecidas. Pode acreditar, esta é uma das épocas do ano em que é fácil para elas acreditarem que alguém se importa com elas. É uma época em que muitas pessoas realmente o fazem.

— Suponho que há muito trabalha com orfanatos.

— Tanto antes da guerra, quanto depois.

Ele não retrucou, e continuou a revirar a gaveta. Ela afastou a lembrança de Natais passados, e admirou no­vamente o aposento. Era óbvio que o homem gostava de colecionar artefatos medievais. Ou talvez eles o ajudas­sem a escrever.

Os livros amontoados nas prateleiras, na mesa e até empilhados no chão eram muitos e variados. Os títulos que conseguia ler eram sobre histórias e bibliografias. Os títulos que não conseguia eram em latim.

— Fico feliz que ainda esteja aqui, senhorita!

A sra. Jones retornara trazendo uma bandeja enorme com um bule de café, creme, açúcar, duas xícaras de por­celana, cones folheados doces e geléia de morango.

— Deixe-me apenas colocar isso aqui... — Ela emitiu um ruído exasperado ao empurrar a pilha de livros para fora da mesa em forma de pedestal. — Pelo amor de Deus, Griffín, você precisa empilhar esses seus livros velhos e empoeirados em tudo quanto é lugar?

Se os olhos do conde pudessem atirar flechas, a velhi­nha já estaria morta.

— Já lhe disse que não precisamos de chá, sra. Jones. A Srta. Davis vai embora assim que eu achar meu maldi­to talão de cheques.

A sra. Jones sorriu, evidentemente não se deixando aborrecer pela propensão do conde a praguejar. Depois, franziu a testa.

— Sequer a convidou para se sentar, ainda mais de­pois de ela ter andado o caminho todo até aqui! — ela o censurou caminhando apressadamente na direção de Gwen. — Ela vai achar que não passa de um grosseirão sem modos. Dê-me seu gorro e sua capa, e sente-se perto da lareira, srta. Davies. Eu levarei o chá para a senhorita. Aceita açúcar?

— Não, obrigada. Prefiro o meu puro.

— Isso não é uma droga de reunião social — murmu­rou o conde.

— Não há necessidade de ser rude, Griffin — disse a sra. Jones. — Já esbravejou demais com a pobrezinha. De­veria respeitá-la, considerando o que ela já fez na vida.

Gwen não conseguiu entender o que ele resmungou, mas deu para ver que estava dizendo que ela não era nenhuma pobrezinha e que mal era merecedora de uma xícara de chá e uma cadeira para se sentar.

— Ela foi enfermeira na Criméia.

O conde lançou um olhar indagador na direção de Gwen.

— Esteve naquela confusão?

— Estive — ela retrucou, dando-se conta de que ja­mais vira olhos com o mesmo tom castanho que os dele. Eram salpicados de verde e dourado, no entanto não o suficiente para serem cor de avelã.

Ele tivera sorte de não ter ficado cego do olho esquer­do no incêndio.

O conde prosseguiu com sua busca.

— Espero que consiga achar um cheque, meu senhor — disse Gwen, ao fitar o topo da cabeça dele, e a sua cabeleira espessa e ligeiramente encaracolada. — Muitas mulheres matariam para ter um cabelo daque­les. E cílios tão grossos, que deveriam parecer ridículos em um homem, mas eram perfeitos nele. — Eles estão aqui em algum lugar. Talvez eu possa ajudar.

— Não! — ele retrucou, bruscamente, lançando-lhe um olhar aborrecido. — Sente-se, beba o seu chá, e não toque em nada!

— Ele diz ter um sistema, para que suas anotações não saiam de ordem. Para o livro dele, entenda bem — explicou a sra. Jones, com um sussurro alto e em tom conspirador, ao entregar a Gwen uma xícara de chá com um aroma agradável. — Já eu acho que ele é preguiçoso demais para arrumar suas coisas.

As revelações confidenciais da sra. Jones provocaram mais uma careta e alguns resmungos do conde, e um sor­riso discreto de Gwen, ao beber o seu chá.

— Ahá! — gritou triunfalmente o conde, após vas­culhar o fundo da última gaveta. Ele se endireitou, ba­lançando no ar o talão de cheques. — Encontrei. Nem adianta se acomodar, srta. Gwendolyn Davies. Logo, logo, estará fora daqui.

— Não estará, não — declarou a sra. Jones. — Ela não pode. — A velhinha franziu a testa diante dos rostos confusos que a fitavam. — Ela não pode ir a lugar ne­nhum no meio de uma tempestade de neve.

 

Desolada, Gwen olhou para fora da janela, e outra raja­da de vento sacudiu as vidraças. Ela mal podia enxergar o exterior, devido à intensa nevasca.

Deveria ter voltado quando chegou aos portões.

— Estava certa de que ainda daria tempo — ela mur­murou, mais para si mesma do que para qualquer outra pessoa no recinto.

O conde contornou a escrivaninha e veio se postar ao seu lado.

— Infelizmente, parece que a Mãe Natureza não pare­ce levar em grande conta as suas necessidades. Ou quem sabe se vir até aqui no meio deste tempo inclemente não tenha passado de um plano arrojado. Talvez tivesse pensado que com mais tempo conseguiria amaciar o meu coração duro, se ficasse presa aqui comigo. Posso viver relativamente isolado agora, srta. Davies, mas já passei muito tempo convivendo com a alta sociedade. Conheço as manhas das mulheres.

— Isso jamais me passou pela cabeça! — Gwen protestou, indignada. — Pensei que, se fosse nevar, só aconteceria depois que eu estivesse sã e salva em casa. E se tivesse optado por esperar, teria corrido o risco de acabar sem nada para as crianças. Se não acredita em mim...

O conde ergueu a mão marcada para silenciá-la.

— Acontece que acredito na senhorita. Apenas uma tola tentaria uma tática dessas comigo, e não creio que seja uma tola. Teimosa, determinada, insistente e capaz de praguejar como um operário de construção, mas não tola.

Ele afastou-se da janela.

— Pode ir para casa na minha carruagem. Jones pode passar a noite na estalagem e retornar amanhã, ou depois que parar de nevar.

A sra. Jones o fitou como se a sugestão fosse ridí­cula.

— Daniel não pode sair com a carruagem no meio de uma nevasca! Podem acabar atolados. E, além do mais, já tem quatro anos, ou mais, desde a última vez que o coche foi utilizado. Uma das rodas pode até cair!

— Não é bem uma nevasca — Gwen protestou, com mais esperança do que convicção.

O conde riu.

— E como chamaria isso? Um pouco de mau tempo?

— Chame como quiser, ela não pode ir para casa hoje, ou, pelo menos, enquanto estiver nevando desse jeito — insistiu a sra. Jones. — Vou preparar o quarto de hós­pedes azul — ela completou, e saiu antes que Gwen ou o conde pudessem protestar.

Gwen fitou o anfitrião, que estava visivelmente con­trariado; não poderia estar mais descontente com a situa­ção do que ela mesma.

— Preciso voltar ao orfanato.

Mancando, o nobre, irritado, voltou para contornar a escrivaninha.

— Será que as crianças se revoltarão se não estiver lá para cuidar delas?

Gwen empertigou-se.

— Estou certa de que meus assistentes poderão man­ter a ordem.

— Neste caso, tem receio de que sua família sinta a sua falta?

— Não tenho família, e avisei que, caso o tempo mu­dasse, buscaria refúgio na fazenda dos Denhallows.

— Ahá! — gritou triunfalmente o conde, espalmando as mãos sobre a mesa e inclinando-se na direção dela. — Quer dizer que sabia que o tempo provavelmente iria piorar e veio assim mesmo!

— Eu sinceramente achei que daria tempo, pelo me­nos para chegar à fazenda dos Denhallows — ela res­pondeu, com toda a dignidade que conseguiu reunir. — Não planejava abusar de sua hospitalidade, e lamento ter que fazê-lo.

— É um pouco tarde para arrependimentos — rosnou o conde, sentando-se em sua poltrona.

Ela já aguentara tudo que podia de sua grosseria.

— Posso não ser nada além de uma diretora de orfa­nato sem recursos, meu senhor, mas mereço ser tratada com cortesia e respeito, independente do motivo de eu estar aqui, e do que o tempo possa ter provocado. Prefiro me arriscar tentando chegar à fazenda dos Denhallows do que aguentar a sua incivilidade. Tenha um bom dia, meu senhor.

Ela virou-se, determinada a partir.

Mostrando-se mais ágil do que Gwen poderia suspei­tar, o conde alcançou a porta antes dela.

— Não seja idiota, srta. Davies. Não vai a lugar ne­nhum.

— Não sou idiota, e esse tipo de comentário é exatamente o motivo de eu querer ir embora — ela disse, tentando passar por ele.

Ele se posicionou de modo a bloquear a porta.

— Não permitirei que banque a mártir em uma nevasca.

— Não permanecerei onde sou tratada com tanto des­respeito.

Os olhos dele se estreitaram e a testa se franziu.

— Muito bem, visto que não quero ser responsável por sua morte, eu me esforçarei para me conter. O que significa que é melhor eu manter a máxima distância possível da senhorita.

Ela enfrentou o seu olhar.

— Acredito ser melhor assim, e lhe garanto, meu se­nhor, que assim que for possível, eu deixarei de abusar de sua generosidade.

A expressão no rosto do nobre mudou para a curiosi­dade.

— É apenas a minha insolência que a incomoda, srta. Davies? Ou existe outro motivo para não querer perma­necer aqui? Está preocupada com a sua reputação? Com o que os vizinhos poderão dizer? Os aldeões? O clero? Uma jovem solteira na casa do recluso conde de Cwm Rhyss?

Ele estava tentando usar sua poderosa presença física para intimidá-la, mas Gwen o fitou com desprezo.

— Dirão que não tive escolha.

Os lábios dele se contorceram, transformando-se no sorriso mais malicioso e diabólico que Gwen já vira.

— Não receia que eu possa me esgueirar para dentro de seus aposentos no meio da noite, e tentar me aproveitar da senhorita?

— Meu senhor poderia até tentar, mas venho cuidan­do de mim mesma há muito tempo, e devo avisá-lo de que o senhor se arrependeria.

— Isso está me parecendo um desafio, srta. Davies.

— Só se meu senhor for um tolo.

Ele mancou até a mesa em forma de pedestal e pegou uma das xícaras, que parecia ridiculamente pequena e delicada em suas mãos largas e poderosas, como se, só de segurá-la, ele pudesse estilhaçá-la.

— Já houve tempo, srta. Davies, em que eu poderia tê-la feito temer por sua virtude. — Ele olhou rapidamente para ela. — Ou até, de bom grado, abrir mão dela.

De repente, a garganta de Gwen ficou muito seca. Mas aquela não era a primeira proposta indecorosa que escutava. Cansara de ouvi-las de soldados e até de ofi­ciais, de modo que sua resposta não tardou.

— Vangloriar-se de seduções passadas e de sua ca­pacidade de fazer uma mulher separar-se de sua virtude não é comportamento digno de um cavalheiro.

Ele veio na direção dela, com movimentos lentos, mas aparentemente inexoráveis.

— O cavalheiresco filho mais velho do conde de Cwm Rhyss morreu quando aquela viga caiu sobre mim, eliminando-me.

Ela não arredou o pé de onde estava.

— Pretende continuar com este método de sedução tão incomum, meu senhor? Por que sinto-me obrigada a alertá-lo de que não vai funcionar. Passei muitos anos cercada por homens, muitos dos quais achavam que, se uma mulher não era bonita e nem rica deveria estar dis­posta a deitar-se em suas camas e ainda sentir-se grata pela oportunidade. Eles fracassaram, e o senhor também fracassará, porque minha virtude é a única coisa que posso chamar de minha. Ainda assim, devo admitir que a abordagem de se mostrar um patife e um depravado, em uma tentativa de se fazer mais atraente, é nova.

Ele pousou a xícara de porcelana na mesa com tanta for­ça que Gwen ficou surpresa de ela não ter se quebrado.

— E nenhum homem que se pareça comigo jamais terá sucesso com qualquer mulher.

— Agora, devo sentir pena de meu senhor, porque suas cicatrizes arruinaram sua capacidade de sedução?

— Elas arruinaram muito mais do que isso — ele mur­murou, dirigindo-se para a porta. Olhou novamente para ela. — Mas a senhorita jamais seria capaz de entender. Onde diabos está a sra. Jones?

Como se convocada pela pergunta, a mulher idosa apareceu no vão da porta, segurando uma vela que tremeluzia com a corrente de ar.

— Estou bem aqui, meu senhor — disse ela, lançan­do-lhe um olhar severo. — Venha, minha querida. Acen­di a lareira e esquentei um pouco de água para que possa se lavar.

Quando Gwen se preparou para acompanhá-la, o con­de girou nos calcanhares e mancou de volta para a sua escrivaninha.

— Jantarei no meu gabinete, esta noite. Sozinho.

A sra. Jones não parecia muito satisfeita, mas disse:

— Como quiser.

Erguendo a vela para iluminar o caminho, ela condu­ziu Gwen na direção das escadas.

— Por favor, não ligue para ele, senhorita. Ele tende a ser meio rude quando o seu trabalho é interrompido, e o frio faz a perna dele doer.

Meio rude? Gwen jamais conhecera alguém tão rude. Vulgar, talvez, e descortês, mas não tão absurda e deliberadamente insolente. E desalentador. E perturbador.

Quanto à ideia de tentar seduzi-la... Que ridículo.

— Entenda bem, o conde precisa terminar o seu livro, e ele sempre fica um pouco irritadiço quando está fican­do sem tempo.

Neste caso, ele deveria ter entendido melhor do que ninguém sua necessidade de recursos antes do Natal.

— É uma história do País de Gales — prosseguiu a mulher, com evidente orgulho. — Desde antes dos ro­manos até a rainha Elizabeth.

No alto da escadaria chegaram a uma longa galeria, com paredes de painéis de mogno, cobertas de retratos, Eram da família do conde, presumiu Gwen, ao passar pelas pinturas à óleo de homens e mulheres usando rou­pas de eras passadas, que ostentavam o seu poder e a sua riqueza. Ela podia senti-los empinando os narizes ao fitar a órfã, filha da pobreza.

Gwen não deixaria que os retratos a intimidassem, da mesma maneira que não permitiu que o descendente deles o fizesse. De modo que os fitou ao passar por eles, detendo-se momentaneamente ao chegar ao último. Era o conde, em roupa de gala, provavelmente pintado quan­do ele não tinha mais de vinte e poucos anos. Apesar da roupa, ele estava postado casualmente diante da larei­ra, com o braço apoiado na cornija, com uma postura tranquila que combinava com a expressão dos olhos, que parecia sugerir que o mundo lhe pertencia.

E por que não? A julgar pelo retrato, o jovem não era apenas rico e nobre, era também incrivelmente belo.

A passagem do tempo e as cicatrizes com certeza ha­viam alterado as feições do conde, mas ainda havia mui­to daquele jovem bonito naquele homem no escritório lá embaixo. O cabelo escuro e ondulado, o queixo for­te, o nariz elegante, os olhos maliciosos e zombeteiros. O corpo também ainda era o mesmo — ombros largos, cintura e quadris finos e coxas musculosas. Na verdade, apesar das cicatrizes, o duque ainda era um homem mui­to atraente.

O que tornava o seu isolamento voluntário muito mais cômodo, e ela se recusava a desperdiçar piedade com ele.

— Isso foi durante o último ano dele em Oxford — informou a sra. Jones, retornando para se juntar a ela. — Quando se formou com louvor em História.

Então, ele era inteligente — mais um motivo para não sentir pena dele.

— Isso foi há cinco anos antes...

A voz da sra. Jones falhou, mas não havia necessidade de ela terminar. Gwen podia adivinhar o que ela estava falando.

— As jovens costumavam rodeá-lo como pássaros em busca de um lugar para pousar — confidenciou, com um suspiro, a sra. Jones. Depois, virou-se e seguiu adiante novamente. — E todos os jovens da nobreza queriam ser seus amigos. Ah, ele era um sujeito muito alegre naquele tempo, antes do incêndio, e daquela mulher que partiu o seu coração. Rompeu o noivado logo após acidente. Mas ele estava melhor sem ela, e eu lhe disse isso na época.

Gwen suspeitava que ele não devia ter ficado muito contente de escutar os comentários da sra. Jones, pois ela já testemunhara situações semelhantes no hospital — um corpo permanentemente ferido ou marcado, seguido de um compromisso rompido. Um homem era capaz de suportar somente uma perda, mas duas? Ela lembrava-se de dois homens que preferiram tirar a própria vida a retornar à Inglaterra.

— Quanto aos supostos amigos, um ou dois, talvez tenham tentado permanecer ao seu lado; mas só porque era rico. Meu pobre menino logo se deu conta disso.

Aparentemente, havia mais por trás do isolamento do conde do que a vaidade. Ele deve ter sentido como se todo o seu mundo houvesse desmoronado com aquela viga.

— E no Natal... Acho que nunca vi um homem de­dicar tanto de sua alma à comemoração como o conde costumava fazer. A casa toda vibrava com o canto dele. Ele herdou esse dom dos pais, que Deus os tenha! Eles eram iguaizinhos. Havia presentes para todo mundo e mais alguém. E comida também! Ah, durante as Festas, costumávamos contratar um verdadeiro exército de cozi­nheiros. Bebidas especiais, pudins, tortas e todo tipo de frutas. Até mesmo a área de serviço ficava cheia de ra­mos de pinho, visco e azevinho. — Ela enxugou os olhos com a ponta do avental. — Acho que o que eu mais sinto falta é da cantoria. Ele tem a voz de um anjo.

— A fumaça do incêndio afetou os pulmões dele?

— Não. Ele simplesmente diz não ter mais vontade de cantar. — A sra. Jones deteve-se diante de uma porta. — Aqui estamos. O quarto azul. Um belíssimo aposento.

Eles entraram no maior e mais lindo quarto que Gwen já vira, embora houvesse cantos ocultos pelas sombras, até que a sra. Jones acendeu mais velas. As paredes eram revestidas com um delicado papel de parede com a es­tampa de delicadas flores azuis. A mobília era de pau-rosa, de estilo bem simples, e estava empoeirada. A cama era grande, com dossel e cortinas de veludo azul. Uma grossa colcha de cetim estava dobrada sobre a cama, que dava sinais de ter sido apressadamente arrumada.

Era óbvio que o quarto não era usado há muitos anos.

— Por que não fica à vontade enquanto vou buscar o que mais for necessário para fazer com que se sinta em casa?

Como se fosse possível para ela se sentir "em casa" em um lugar desses!

— Se não se importa, prefiro acompanhá-la. Estou acostumada a trabalhar e prefiro ter companhia.

— Mas a senhorita é convidada do conde. Não seria certo.

— Não sou exatamente convidada dele, no sentido es­trito da palavra — retrucou Gwen. — Sou apenas uma refugiada do tempo inclemente.

A sra. Jones inclinou a cabeça e estudou a jovem.

— Bem, ainda está mesmo muito frio aqui dentro. Na cozinha, está mais agradável. Muito bem, venha comigo. Griffin não poderá reclamar do que ele não sabe. Quando está desse jeito, ele costuma ficar enfurnado no gabinete até só Deus sabe quando.

Mais tarde naquela noite, após convencer a sra. Jones a deixá-la jantar na cozinha e ajudá-la a lavar a louça, Gwen se viu sentada na enorme cama do quarto azul, abraçando os joelhos. Estava usando a volumosa cami­sola que a sra. Jones havia lhe emprestado. Aquela mu­lher gentil também lhe fornecera bastante carvão para o fogo, um aquecedor de cama, três velas, mais dois co­bertores e um xale.

Lá fora, a neve continuava a cair ininterruptamente, açoitada pelo vento uivante. Ela quase podia sentir a neve se empilhando de encontro à casa, bloqueando as estradas. E se ela não conseguisse ir embora amanhã? Ou no dia seguinte?

Ainda havia tanto a se fazer antes do Natal. Normal­mente, suas crianças já tinham tão pouco, além de roupa limpa e barriga cheia. Ela queria lhes providenciar um Natal feliz, para lhes mostrar que elas eram tão mere­cedoras de um doce ou um brinquedo quanto qualquer outra criança. Para tornar aquele dia especial.

Deveria ter pensado nisso, e não ter permitido que o conde a aborrecesse. O que era um pouco de humilha­ção pessoal, quando a felicidade das crianças estava em jogo? E se ele mudasse de ideia e decidisse não dar nada as crianças? Por que ela não podia ter ficado de boca calada?

Ela afastou as cobertas e desceu da cama. Inspirou fundo quando as solas dos pés tocaram no chão frio de madeira. Pegando o xale, se enrolou nele, caminhou até a janela, e espiou o exterior. Não conseguia enxergar nada além da nevasca.

Olhando ao redor, no interior do quarto, estremeceu — e não apenas devido ao frio.

Não queria ficar ali naquele aposento. Ela se vestiria e desceria até a cozinha, onde esperaria pela manhã e pela sra. Jones. Era melhor do que ficar ali sozinha.

Depois de se vestir, pegou uma das velas e deixou o quarto, descendo o corredor na ponta dos pés. Ela se de­teve novamente na galeria para olhar o retrato do conde na flor da juventude.

Se ela fosse uma beldade, e depois, terrivelmente mar­cada com cicatrizes, rejeitada pelo homem com quem ia se casar, e a seguir abandonada pelos amigos, quem sabe se também não teria se isolado, escondendo-se de tudo e todos? Será que não ficaria amarga e zangada com o mundo?

Ela ergueu um pouquinho a vela, e estudou o retrato cuidadosamente. Como seria possuir boa aparência, pro­priedades e título de nobreza? Não era de se surpreender que gostasse tanto do Natal. Para ele, deveria ser uma ocasião para comemorar a fartura de sua vida, regozijar-se por tudo que possuía.

Para ela, o Natal sempre representara mais tempos de esperança do que de comemoração. Esperança de que as pessoas pensassem um pouco mais nas crianças neces­sitadas. Esperança de que fossem mais generosas. Espe­rança de ganhar um presente — qualquer presente. Uma bola, um par de meias quentinhas.

— As acomodações não são de seu agrado, srta. Davies?

Ela virou-se e ficou de frente para o conde, que logo atrás dela emergia das sombras como um fantasma. Um fantasma bem sólido e musculoso. Ele agarrou-lhe o pulso.

— Se não se importa — disse, tomando-lhe a vela das mãos. — Já escapei por muito pouco da morte em um in­cêndio. Não gostaria de provocar o destino novamente.

Nervosa e desconcertada, ela não respondeu, quando ele libertou seu pulso.

Com o rosto iluminado pela vela, ele ergueu curioso uma das sobrancelhas.

— O quarto azul não estava quente o bastante?

— Estava muito confortável.

Isso não era mentira. Para a maioria das pessoas, ele seria muito confortável.

— Então por que está rondando a minha casa no meio da noite?

Ele estava falando como se ela fosse uma ladra.

— Não vou roubar nada!

— Fico aliviado em saber. Estava planejando ficar olhando para os retratos de minha família a noite toda?

— Estava indo para a cozinha.

— O jantar não a satisfez?

Ela tentou não deixar transparecer sua frustração diante da insistência do conde em sugerir que ela havia achado algo que a desagradasse.

— Estava delicioso, e os Jones são muito hospitaleiros.

— Diferente do seu anfitrião. — Ignorando o comentário, ela disse:

— Pensei em ir até a cozinha ajudar com o café-da-manhã.

Ele arqueou as sobrancelhas.

— No meio da noite?

— Já deve estar quase amanhecendo — ela retrucou, torcendo para que estivesse certa.

O conde tirou o relógio de ouro de dentro do bolso do colete e o abriu.

— Três da madrugada. — Ele fechou o relógio. — Terá uma longa e fria espera. A sra. Jones apaga o fogo antes de ir para a cama. Sugiro que vá para a cama, srta. Davies. A sra. Jones a chamará quando o café-da-manhã estiver pronto.

Ele virou-se para ir embora, levando a vela consigo.

— Meu senhor!

O nobre virou-se, percebeu o que havia feito, e ofere­ceu a vela para a moça.

Ela hesitou, depois instintivamente juntou as mãos, como sempre fizera quando menina, pedindo perdão por algo de errado que houvesse feito.

— Meu senhor, lamento o que disse após ter se ofere­cido de modo tão generoso para doar algo para o Natal das crianças, e espero que não mude de ideia quanto a fazê-lo.

Os lábios do conde se curvaram para cima. Sob a luz da vela, isso o fazia parecer demoníaco.

— Acalme-se, srta. Davies. Eu lhe disse que faria a doação, e vou fazê-la. Pelas crianças.

Ela suspirou aliviada.

— Obrigado, meu senhor.

— Na verdade, não sou um ogro, embora minha apa­rência possa sugerir tal impressão.

— Não acho que se pareça com um ogro, meu senhor. Já vi cicatrizes piores.

— É claro. A senhorita foi enfermeira. Mas a senhori­ta é a exceção, não a regra.

Ela não conseguiu pensar em nada para dizer em res­posta a isso, pois, de fato, havia visto mais cicatrizes do que a maioria das pessoas.

— Bem, srta. Davies, visto que meu rosto não a as­susta, e que também não consigo dormir, o que acha de me acompanhar em um copo de conhaque no meu ga­binete?

Quando ela não respondeu de imediato, ele franziu a testa.

— Prometo que estará segura comigo. De qualquer modo, não é o tipo de mulher pelo qual costumo me sen­tir atraído.

Como se ela já não soubesse.

— Não tenho dúvidas quanto a isso, meu senhor!

— Ou será que, apesar de tudo que disse, tem medo de mim?

— Não, meu senhor.

— Então, venha, srta. Davies, e beba um copo de co­nhaque.

Determinada a lhe mostrar que não tinha medo dele, Gwen seguiu o conde até o gabinete. Ele abriu a porta e fez um gesto para que ela entrasse.

— Sente-se.

Ela sentou perto da lareira, onde uma chama viva oferecia calor. O brilho avermelhado de um lampião a óleo iluminava os papéis bagunçados sobre a mesa. As janelas do aposento estavam cobertas de gelo. A bagunça, os livros espalhados, o fogo e o brilho do lampião, tudo junto fazia a sala parecer muito acon­chegante, bem diferente do que se esperaria do gabine­te de um nobre.

O conde pegou dois copos e uma garrafa de cristal atrás de alguns livros empilhados na estante mais perto da porta.

— Os copos estão limpos. A sra. Jones os trouxe hoje de manhã — ele disse, ao servir a bebida.

Talvez ela devesse recusar a bebida.

— Obrigada, meu senhor, mas...

— Mas? — ele indagou, ao caminhar na direção dela, trazendo os copos. — Assim como nada tem a temer de mim, nada tem a temer de um copo de conhaque. — Seus olhos brilharam, e ele exibiu aquele sorriso diabolicamente zombeteiro. — Pense nisso como um remédio, srta. Davies.

Ela aceitou. De repente, estar sozinha com ele come­çou a lhe parecer muito perigoso. Mas Gwen se recusava a fugir correndo como uma covarde ou a correr o risco de ofendê-lo, quando tudo que ele fizera fora lhe passar o copo de conhaque.

O conde sentou-se na poltrona diante dela e a fitou por sobre a borda do copo.

— De quanto precisará para fazer deste um Natal feliz para as suas crianças?

— Dez libras.

Ele tomou um gole da bebida.

— Isso não parece muito para tantas crianças.

— Elas não precisam de muito para se alegrarem. E, além disso, tenho receio de que, se eu pedir muito, o senhor talvez jamais contribua novamente.

Ele riu. Uma gargalhada baixa e sincera que foi sur­preendentemente agradável.

— Uma boa resposta. E como a senhorita parece ser uma mulher sagaz e inteligente, acho que posso contri­buir com um pouco mais do que isso.

Ela sorriu.

— Obrigada, meu senhor.

— Então seus esforços valeram a pena, srta. Davis. — Ele se levantou e pousou o copo sobre a cornija. — Se não havia nada privando-a do sono nesta noite, suponho que não terá mais problemas. Ainda temos algumas ho­ras antes do nascer do sol.

Ele casualmente se apoiou na cornija, em uma pose semelhante à do retrato, lembrando-a que ainda era mui­to bonito, ainda que o conde discordasse.

— Ou será que havia mais do que preocupações nata­linas perturbando o seu sono?

— Não — ela mentiu.

— Neste caso, me pergunto o que a fez deixar o seu quarto, ou será que não estava confortável, e por algum motivo não quis me dizer, por receio que eu mudasse de ideia quanto à contribuição?

Ela de fato estivera extremamente desconfortável, mas não pelo motivo que ele sugerira.

— O quarto é muito confortável, meu senhor.

— Então, por que o deixou?

— O senhor não entenderia.

— Talvez entenda.

Ela sacudiu a cabeça.

— Eu acho que não.

— Experimente.

Que mal faria lhe contar? Sua fraqueza nada tinha a ver com ele.

— O senhor talvez prefira a solidão, meu senhor — ela disse, lentamente —, mas eu não. Eu a acho... enervante. — Uma vez que começara, ela decidiu continuar. — Meus pais morreram de febre na mesma noite, com diferença de horas, quando eu tinha apenas quatro anos de idade. Só nos descobriram quase na metade do dia seguinte.

Ela fitou as chamas, recordando-se de seu pânico e desespero ao tentar acordar os pais. Depois, ao ser leva­da embora pelo sacristão, praticamente arrastada, gritan­do e chorando.

Sem nada dizer, o conde se levantou e lhe serviu outro copo de conhaque.

Ela o aceitou, segurando o copo entre as mãos e fitan­do, sem de fato enxergar, o líquido em seu interior.

— Fui levada para um orfanato.

Ela tomou um gole, quando o conde retornou à sua poltrona.

— Conheço muitas pessoas, especialmente aquelas que já leram as obras de Charles Dickens, que acham que todas essas instituições são lugares horrorosos — ela prosseguiu, mais relaxada, agora que o pior de sua história havia passado. — Muitas delas são mesmo. Eu tive a sorte de ser mandada para uma das boas. A comida era pouca, mas suficiente, e as roupas que me deram eram limpas, e melhor do que as vestimentas imundas e rasgadas que eu tinha antes. Mas eu tinha pavor de ficar sozinha à noite.

Ela tentou falar casualmente, como se não houvesse nada demais em revelar este aspecto de seu passado, e o efeito que causava nela.

— Ainda detesto ficar sozinha, especialmente no es­curo. É claro que tenho meu próprio quarto no orfanato, mas sei que estou a um ligeiro grito de distância de ou­tras pessoas.

— Não teve uma vida fácil, srta. Davies — disse o conde, após alguns instantes.

— Não — ela concordou, pensando que as palavras do conde não chegavam nem perto da verdade. — Mas eu sobrevivi.

— Diria que fez muito mais do que apenas sobreviver. Como acabou se tornando enfermeira?

— Tive sorte. O vigário me achava inteligente, e quando soube que eu queria ser enfermeira, se ofereceu para pagar os meus estudos. — Ela não viu necessidade de lhe contar como tivera de se esforçar para alcançar seu objetivo, mesmo com a ajuda do reverendo Johnston. — Quando soube da situação na Criméia, pedi para ser mandada para lá.

— Para retribuir a ajuda do reverendo, ou para ir atrás de algum amor?

Ela franziu a testa.

— Nem um, nem outro. O reverendo Johnston jamais pediu nada em troca pela ajuda em meus estudos. E se eu segui alguém, foi Mary Seacole.

— E não Florence Nightingale e sua famosa lâm­pada?

O conde sardônico estava de volta, e não era uma transformação que Gwen considerava bem-vinda, espe­cialmente levando-se em conta o assunto.

— Ela, e seus métodos, salvaram muitas vidas. Mas passei mais tempo com Mary Seacole em Balaclava, do que no hospital em Sebastopol. Talvez tenha ouvido fa­lar dela, embora não seja tão famosa quanto a srta. Nightingale.

Gwen sorriu ao se recordar daquela mulher determi­nada, natural de uma colônia inglesa.

— Ela é uma mulher maravilhosa, e tão inspiradora! Recusada pela secretária da Guerra, ela foi por conta própria, e gastou todo o seu dinheiro montando o seu próprio hospital, próximo ao front. Ela jamais deixou al­guém impedi-la. Deveria escutá-la falando dos oficiais que conheceu quando estavam nas Antilhas. "Meus me­ninos" era como costumava sempre chamá-los. Ela sim­plesmente tinha de ajudá-los, e fez com que eu também quisesse ajudá-los. — A voz de Gwen ficou mais baixa, quando ela se lembrou de todos os jovens que haviam morrido. — Tantos quanto eu pude, é claro.

— Ela obviamente a impressionou, srta. Davies — disse o conde, recostando-se na cadeira, com o rosto oculto pelas sombras. — Balaclava foi tão ruim quanto os jornais disseram?

— Pior. Nenhum relato escrito poderia descrever aquela realidade.

Ela jamais poderia esquecer as imagens, os sons, e os odores dos feridos sendo amontoados em navios para se­rem levados para o hospital da srta. Nightingale. Ou a sen­sação de total impotência diante de tanta dor e sofrimento.

— É por isso que não trabalha mais como enfermeira? — Ela terminou o conhaque e assentiu.

— Já vi morte, sangue e mutilação suficientes para jamais querer vê-los novamente. Gosto de crianças, e, tendo sido abençoada por ter uma mulher assim no lu­gar para onde fui mandada, sei a diferença que uma boa diretora pode fazer em um orfanato. Quando soube da vaga de diretora em Saint Bridget, me candidatei, e aqui estou.

Os cantos da boca dele se levantaram.

— É verdade, aqui você está... presa com o conde de Cwm Rhyss.

 

Subitamente, deu-se conta de que estava sozinha em um aposento, na companhia de um homem atraente e vi­ril, enquanto uma nevasca caía do lado de fora da casa. Os dois únicos serviçais estavam em algum outro lugar da mansão, e não havia vizinhos em um raio de quilômetros. Gwen engoliu em seco.

No entanto, o que sentiu não era medo. Era completa-mente diferente — e completamente errado.

O conde levantou-se e jogou mais carvão no fogo.

— Parece até a heroína de uma história gótica, ou de um conto de fadas. A virtuosa srta. Gwendolyn Davies encontra um castelo encantado, governado por um belo príncipe desfigurado pelo feitiço de uma bruxa malva­da. — Ele se empertigou, e a fitou. — Talvez possa quebrar o feitiço se me beijar. Minhas cicatrizes desa­parecerão e serei novamente como era: jovem, bonito e feliz.

O coração de Gwen disparou. Seus dedos tremeram ao pousar o copo sobre a mesa.

Determinada a não deixar transparecer como as pa­lavras do conde e aquele olhar — especialmente aquele olhar — a afetavam, ela respondeu abruptamente:

— O passado é como é, meu senhor. Há coisas que eu mudaria sobre o meu, mas não posso. Devemos aceitar isso.

Ele pegou o tiçoeiro e cutucou as brasas, provocando fagulhas que subiram para a chaminé.

— Não preciso que me diga que o passado não pode ser mudado. Percebo isso cada vez que olho no espelho.

Ela levantou-se e tirou o tiçoeiro das mãos dele antes que ele fizesse um buraco no tijolo.

— O senhor tem algumas cicatrizes horríveis e man­ca, mas, tirando isso, é saudável. É rico e tem o seu títu­lo. Tem muito a ser grato.

— E isso torna o que aconteceu comigo insignifican­te? — ele gritou, fitando-a intensamente, e cruzando os braços diante do peito largo. — É fácil para a senhorita falar, srta. Davies. Tente ficar tão desfigurada a ponto das pessoas virarem o rosto de repulsa ao vê-la, e então venha me dar um sermão sobre como tenho sorte.

Ela devolveu o tiçoeiro ao seu lugar e enfrentou aque­le olhar.

— Meu senhor sabe quantos homens, de bom grado, trocariam de lugar com o senhor?

— Sabe com quantos eu trocaria de lugar?

— As pessoas logo deixam de enxergar as cicatrizes.

— Como a senhorita deixou, eu suponho?

— É. Se as pessoas o rejeitam devido à suas cicatri­zes, isso só serve para mostrar a fraqueza de caráter de­las. Entendo que seu coração foi partido...

— O que sabe a respeito do estado do meu coração? — Ela corou ao prosseguir.

— Soube que a mulher com quem pretendia se casar rompeu com o senhor.

Ele soltou uma gargalhada gélida e amarga ao se apoiar na escrivaninha.

— Não que seja de sua conta, mas se houve algo de bom a respeito de meu acidente foi me ver livre da ado­rável Letitia. Se eu tivesse me casado com ela, Letitia teria me transformado em um corno em menos de um mês. Não estou chorando pelo amor perdido.

Gwen ficou aliviada por ele.

— Fico feliz de saber. Mas ainda está chorando pela vida que perdeu, e nada de bom pode vir disso, apenas a amargura e o descontentamento.

— A senhorita faz tudo parecer tão simples. — Com a mão, ele desenhou um arco abrangente no ar. — Apenas saia para o mundo e reivindique seu lugar nele. — Ele agarrou com força a borda de sua mesa, até as juntas de seus dedos ficarem esbranquiçadas. — A senhorita jamais teve de testemunhar o horror das pessoas ao fi­tarem-na. Ou se dar conta de que todo o seu futuro foi arrancado de suas mãos devido a uma briga que não co­meçou, por causa de uma mulher que se mostrou pouco melhor do que uma prostituta comum.

— Não estou dizendo que vai ser fácil. Acha que foi fácil para mim, uma órfã paupérrima, sobreviver neste mundo que oferece poucas oportunidades para mulhe­res, especialmente as pobres, sem família? Eu lhe garan­to que não foi, meu senhor. Talvez seu futuro não seja o que havia planejado quando criança, mas isso não sig­nifica que não exista nada pelo qual valha a pena lutar. Na verdade, deve saber disso, ou não estaria escrevendo um livro. O que é isso senão uma empreitada cheia de esperança?

— É um passatempo interessante. Impede que eu en­louqueça.

— Neste caso, não vai se importar se eu jogar algu­mas páginas no fogo.

Ela estendeu a mão na direção dos papéis atrás dele.

Com um grito, o conde agarrou-lhe o pulso antes que ela pudesse sequer pegar uma folha. Depois, puxou-a para perto de si.

— Não toque no meu trabalho!

— O seu trabalho, não é? — Gwen disse, dando-se conta de que estava a poucos centímetros do corpo dele, e que seu coração estava batendo com uma emoção di­ferente de tudo que já sentira na vida. — Não era o seu passatempo?

O olhar dele parecia querer perfurá-la.

— Sou capaz de entender perfeitamente minhas moti­vações sem que tenha de explicá-las para mim. Afasto as pessoas antes que elas se afastem de mim, enquanto a se­nhorita faz o que faz porque anseia pelo contrário. Quer que as pessoas gostem da senhorita, e acha que se con­seguir se fazer útil e necessária, elas o farão. A senhorita será valorizada. É isso que a trouxe aqui hoje, a vontade de ser amada, uma necessidade tão egoísta quanto o meu desejo de ser deixado em paz.

Ela fitou, estupefata, a boca do conde retorcida em outro sorriso.

— Não é tão agradável quando a pimenta é nos seus olhos, não é, srta. Davies? O que acha de ter suas barri­cadas derrubadas?

Ela se soltou da mão dele.

— Como ousa transformar meu trabalho em algo ego­cêntrico e egoísta? Pelo menos, estou tentando ajudar as pessoas. O que tem feito além de amaldiçoar e lamentar a própria sorte? Posso estar presa aqui por causa do mau tem­po, mas o senhor escolheu se esconder aqui por vaidade.

— Vaidade? Como posso ser vaidoso com um rosto como este? — Ele enfiou as mãos nos cabelos, puxando-o para trás, para que ela pudesse ver a cicatriz vermelha que lhe marcava o rosto, o pescoço e o que restava de sua orelha. — Será que é vaidade querer poupar o mundo de uma visão destas?

— É vaidade e orgulho. Já vi isso antes, especialmente entre oficiais que eram bonitos antes de serem feridos ou aleijados. Alguns até preferiram se matar a voltar para casa mutilados ou com cicatrizes. O senhor não fez isso literalmente, mas se enterrou aqui dentro.

"Quanto a querer ser amado, meu senhor, todo inundo quer isso, inclusive o senhor. É o medo de ter se tornado incapaz de ser amado que o mantém aqui. É melhor se esconder do que arriscar a rejeição".

— Não sou o único que está se escondendo, srta. Gwendolyn Davies, com seu vestido preto enorme, sua pouco atraente capa cinza, seu horroroso gorro marrom e o cabelo preso de tal modo que acho surpreendente que sua cabeça não doa.

Ela dirigiu-se para a porta.

— Eu me visto de acordo com minhas posses, meu senhor, e meu cabelo é preso deste jeito porque não te­nho tempo, e nem uma criada, para ajeitá-lo de modo diferente.

Ele se colocou no caminho dela com tal velocidade que ela quase esbarrou nele.

— Veste-se como uma freira, e cerca-se de pessoas que dependem da senhorita, para que não corra o risco de ser rejeitada.

— Não vou escutar mais nem uma palavra — ela gri­tou, tentando forçar a passagem.

— Como ousa vir até minha casa e me repreender? É muito atrevimento achar que tem o direito de fazer pronunciamentos presunçosos a respeito de meu caráter e minha situação.

— E é tão diferente assim do direito que o senhor tem de me insultar, de zombar de mim, e tirar conclusões presunçosas a meu respeito?

O conde a segurou pelos ombros. Com o peito ofegan­te, ele a fitou intensamente.

Arquejando de raiva e indignação, com os olhos cheios de lágrimas zangadas e o coração magoado pelos insultos do conde, Gwen enfrentou o seu olhar.

E, subitamente, tudo pareceu se mover, como se o aposento houvesse se inclinado. Uma expressão de sur­presa apareceu nos olhos dele, enquanto algo no íntimo da moça se sobressaltou e se incendiou, uma emoção, uma empolgação, diferente de qualquer coisa que já ex­perimentara antes.

Uma batida ensurdecedora ecoou pelo corredor.

O conde a soltou e pegou o lampião a óleo que estava sobre a mesa. Ele deixou o gabinete mancando e desapa­receu corredor abaixo.

Ao correr atrás do conde, Gwen esforçou-se para re­cuperar o autocontrole. Apenas uma emergência poderia ter feito alguém sair de casa no meio de uma noite da­quelas.

Envolvido pelo brilho do lampião, o conde abriu a porta da frente. Um homem baixo e encorpado, com o chapéu, a barba preta e o casaco de lã cobertos de neve, adentrou cambaleante no vestíbulo. Ele trazia nas mãos uma lanterna com o cotoco de uma vela, cuja chama tre­mulava fracamente.

— Bom Deus! É Mervyn! — gritou o conde, segu­rando-o antes que este fosse ao chão, endireitando-o. — Que diabos está fazendo fora de casa em meio a uma nevasca dessas?

— Vossa Excelência? Graças a Deus — sussurrou o homem, com a respiração ofegante ao se apoiar no con­de, como se estivesse semimorto.

Gwen apressou-se em ajudar. Bill Mervyn tinha uma pequena fazenda montanha acima. Às vezes, acompa­nhado pelos dois jovens filhos, ele ajudava no orfanato, sempre que precisavam que algo fosse consertado.

Gwen amparou o fazendeiro pelo ombro e agarrou a lanterna antes que ela caísse de sua mão.

— Onde estão os meninos?

— Ainda estão na fazenda — ele respondeu. — Tive de deixá-los. Precisava ir buscar o médico. Para Teddy. Ele caiu. A perna quebrou feio. Vim ver se poderia pegar um cavalo emprestado para chegar ao doutor.

— É um milagre que não tenha se perdido, ou caído e quebrado a própria perna — disse o conde, ao levarem Bill para o gabinete.

Depois de o sentarem em uma poltrona perto do fogo, Bill fitou o nobre com um olhar suplicante.

— Será que pode me emprestar um cavalo, meu se­nhor? Preciso ir buscar o médico em Llanwyllan. Tive de esperar que a tempestade melhorasse, e enfim ela o fez, um pouquinho, graças a Deus, mas tenho de ir bus­cá-lo, e rápido. Tive de deixar meus meninos sozinhos, e Teddy não está nada bem.

O conde examinou Bill, e na expressão do nobre, Gwen pôde ver o reflexo de seus próprios pensamentos: mesmo que o tempo estivesse ótimo, Bill estava molhado, exaus­to e aflito demais para ir a qualquer lugar naquela noite.

Enquanto Gwen alimentava o fogo, o conde serviu um enorme copo de conhaque para o homem e o colocou em suas mãos enluvadas.

— Beba um pouco disso.

Bill fez menção de se levantar.

— Preciso ir buscar o médico.

— Sente-se — ordenou o conde, com um tom de voz mais sério e imponente do que qualquer outro que ela já escutara dos oficiais do exército britânico. — Você está quase congelado. Não pode voltar lá fora assim.

— Mas...

— Eu vou buscar o médico. — O conde caminhou até a porta. — Jones! — berrou.

Surpresa e aliviada com a oferta do conde, Gwen se ajoelhou aos pés de Bill, e começou a retirar as botas molhadas.

— Vamos tirar isso.

— Não precisa fazer isso — Bill disse, pousando o conhaque sobre a mesa e curvando-se para ajudar.

— Não me incomodo, Bill. Se puder, tire as luvas — Gwen ordenou, com um tom de voz que já se mostrara eficiente com generais, praças e todas as patentes entre os dois. — Precisa se secar e se aquecer, ou vai ficar doente.

A sra. Jones, usando um robe de flanela, passou pelo conde e entrou no gabinete.

— Deus misericordioso! — exclamou. — É Bill Mervyn?

O grisalho sr. Jones apareceu, com metade da camisa para fora das calças, um dos braços para dentro de uma das mangas do casaco, e as botas na outra mão. Ele silen­ciosamente fitou a cena diante de si.

— O filho dele sofreu um acidente — explicou o con­de. — Jones, sele o meu cavalo. Vou buscar o médico.

Os Jones trocaram olhares incertos e ansiosos.

— Mervyn disse que está parando de nevar, e que seu filho não pode esperar — insistiu o conde. — Vá logo, homem. Não temos tempo a perder. Srta. Jones, acho que Bill precisa de um bom chá forte e algo para comer.

Ainda terminando de se vestir, o sr. Jones saiu corren­do do recinto, seguido de perto pela mulher.

— Bill, o osso quebrado perfurou a pele de Teddy? — Gwen perguntou, gentilmente.

Com a agonia no olhar, o homem aflito assentiu.

— Perfurou. Está com uma aparência terrível. Eu lhe rasguei as calças e coloquei algumas ataduras. Não sabia o que mais fazer.

— Fez a coisa certa, Bill — Gwen afirmou, embora estivesse desesperadamente rezando para que ele não ti­vesse feito um estrago ainda maior e para que as atadu­ras estivessem bem limpas.

Ela ficou de pé e dirigiu-se ao conde.

— Meu senhor, será que posso lhe falar? Em parti­cular?

Bill voltou a se sobressaltar.

— O que foi? Qual é o problema? — Gwen tratou de pensar rápido.

— Só queria perguntar ao conde quanto tempo ele acha que vai levar para trazer o médico.

— É uma trilha fácil — retrucou o nobre. — Não devo me demorar, desde que a neve não piore ou que não te­nha se acumulado na estrada.

Bill gemeu e colocou a cabeça nas mãos.

— Já cavalguei em nevascas antes, Mervyn — disse o conde, como se os receios do homem o insultassem. — Agora, se nos der licença, preciso falar com a srta. Davies. — Ele hesitou por alguns instantes. —A respei­to do meu joelho.

Gwen o seguiu corredor abaixo.

— O seu joelho...?

O conde segurou-lhe o braço para puxá-la ainda mais para longe da porta, e depois, aliviou um pouco a pres­são, mas sem soltar seu antebraço.

— Está ótimo. Foi apenas uma desculpa. O menino está em mau estado, não está? — ele indagou aos sussur­ros, apertando-lhe novamente o braço. — É por isso que queria falar comigo a sós.

— Está. Tem um outro cavalo, meu senhor? Estamos mais perto do que o médico, e a perna de Teddy precisa de cuidados imediatos. Posso reduzir a fratura e limpá-la o suficiente para impedir danos maiores, pelo menos, até o médico chegar para vê-lo. Caso contrário... Bem, ele corre o risco de perder a perna. Ou coisa pior, caso a ferida já esteja infeccionada.

— É claro que pode levar o outro cavalo. Quase perdi minha perna, e não quero que o mesmo aconteça com o menino. Conheço um atalho até a fazenda de Mervyn. Jones pode ir buscar o médico, e eu lhe mostrarei o ca­minho.

Qualquer coisa que os levasse rapidamente até Teddy.

— Não é um caminho fácil. A senhorita monta bem?

— Posso ficar em cima do cavalo tempo o suficiente para chegarmos à fazenda de Bill, e vai ser mais rápido do que tentarmos atravessar a neve andando.

O conde praguejou novamente.

— Neste caso, não temos escolha.

— Vou buscar minha capa.

— Deixe que eu pego. Fique com Bill. Ele está preci­sando de consolo. — O conde virou-se e hesitou. — Te­nho um pouco de láudano, se acha que pode ser útil.

— Pode, e todas as ataduras que conseguir. — Assentindo, o conde afastou-se mancando, e Gwen voltou para o gabinete e ajudou Bill a retirar seu casaco, cachecol e gorro de lá. Ela esfregou-lhe as mãos e os pés, tentando ativar a circulação. Ficou aliviada ao ver que não havia sinais de enregelamento das extremidades; seu maior problema era pura exaustão.

— Como foi que Teddy quebrou a perna? — ela per­guntou, enquanto empenhava-se em aquecê-lo.

— Ele escorregou em uma poça de gelo no pátio — contou Bill. — Torceu a perna. Escutei o osso se partir. Carreguei o pobre do menino até o quarto dele e fiz o melhor que pude, mas sabia que ele precisava do mé­dico.

— Passei a noite inteira pensando que a qualquer mi­nuto iria parar de nevar. A qualquer momento, eu dizia para mim mesmo, até que não pude mais esperar.

— Eu entendo — Gwen disse, baixinho. — E fez bem em vir até aqui.

Bill agarrou a mão de Gwen.

— Vendo que está aqui, eu diria que foi a intervenção divina.

— Farei o que puder para ajudar Teddy, Bill. — Ela se forçou a sorrir, e cobriu a mão dele com a dela. — Posso reduzir a fratura.

— Vista isso.

Ambos se sobressaltaram quando uma capa femini­na de veludo vermelho, revestida com pele de arminho e com capuz aterrissou sobre a mesa. Corando, Gwen soltou as mãos de Bill, apesar de não haver motivo para isso, já que o estava consolando.

Ela se virou e avistou o conde no batente da porta, usando um sobretudo comprido e escuro e um chapéu alto de pele de castor. As botas de montar de cano alto brilhavam à luz da lareira. Ele trazia uma bolsa que tinia cada vez que se mexia, e ela reconheceu o som de gar­rafas de vidro envolvidas em tecido. Sem dúvida nenhu­ma, o láudano.

— É um pouco cara para usar para cavalgar, mas vai aquecê-la melhor do que aquela coisa cinza que estava usando — murmurou o conde, antes de girar nos calca­nhares. — Eu a aguardarei no estábulo, srta. Davies.

Seu tom de voz mais uma vez era ríspido e rude. Gwen não podia se preocupar em descobrir o motivo da mudança, pois tinha de se concentrar em ajudar Teddy Mervyn.

O conde mal havia saído, quando a sra. Jones voltou trazendo uma bandeja com chá, torradas, presunto e ovos. Ao pousar a bandeja sobre a mesa, ela lançou um olhar solidário para Bill, e disse:

— Vou deixar isso aqui para você, Bill. Tenho de ir buscar luvas para a srta. Davies, um bom par de botas resistentes que eu tenho, e um cachecol grosso. Não me demoro nada, e ela já vai poder se pôr a caminho.

Ela avistou a capa e inspirou profundamente.

— Pensei que ele já houvesse queimado essa coisa — murmurou, antes de retirar-se às pressas.

Por pertencer à adorável ex-noiva? Gwen perguntou-se. Uma mulher que rejeitava um homem como o con­de apenas por causa de algumas cicatrizes também não merecia algo tão lindo, embora seria um desperdício se destruísse a capa.

Bill mal começara a comer quando a sra. Jones voltou com as luvas, as botas e o cachecol.

Gwen rapidamente trocou os sapatos pelas botas pe­sadas. Eram, pelo menos, dois números acima, mais isso não importava. Ela passou o cachecol ao redor do pesco­ço e vestiu a capa de veludo.

— Acho que eu devia ir com... — começou a falar Bill, fazendo menção de se levantar.

— Não, fique aqui e procure se secar — ordenou Gwen. — Não queremos que você também fique doente. — Relutantemente, Bill sentou-se de novo. — Sra. Jones, será que posso contar com a senhora para colocá-lo na cama?

A velhinha gentil sorriu e assentiu.

— Pode deixar comigo, minha querida. Eu também entendo um pouco de como cuidar do outros.

— Foi o que eu pensei — retrucou Gwen, suspeitando que a sra. Jones devia cuidar do conde desde que este era criança, o que explicava a informalidade de seu relacio­namento com o nobre. — Não se preocupe, Bill — disse, gentilmente. — Eu cuidarei bem de Teddy.

Ela deixou o gabinete correndo e seguiu para o pátio. A neve no chão estava com pelo menos trinta centíme­tros de altura onde ela havia se acumulado. Ainda neva­va, mas o vento parara, e o sol, evidentemente, já havia nascido, pois o céu estava mais claro na direção do leste. Alguém já abrira o portão. Pelas pegadas na neve, perce­beu que havia sido o conde.

Ela abriu a porta do estábulo, cujo interior estava agradavelmente quente. Três cavalos estavam prontos.

O conde estava postado ao lado de um enorme ani­mal negro, que fungava e batia os cascos no chão im­pacientemente, lembrando seu dono. Os outros cavalos eram castanhos e menores. Mesmo assim, apenas uma emergência poderia tê-la feito montar qualquer um dos dois.

O sr. Jones começou a puxar um dos cavalos casta­nhos para fora.

— Fique na estrada — gritou o conde. — Não se ar­risque. Se começar a nevar mais forte, busque abrigo em uma das fazendas. O menino estará em boas mãos até a chegada do médico.

Gwen torcia para que o voto de confiança fosse mere­cido, e para que o ferimento de Teddy fosse menos sério do que ela receava.

O sr. Jones assentiu, e, depois de levar a mão ao chapéu para se despedir dela, seguiu o seu caminho, enquanto o conde puxava até a entrada do estábulo o capão negro e o outro cavalo, que tinha focinho, crina e rabo escuros.

— Segure a sela e pise em minhas mãos — ordenou o conde, entrelaçando os dedos enluvados.

Ela fez o que ele mandou e foi erguida o suficiente para subir na sela. Gwen precisou de alguns instantes para se ajeitar, e precisou se esforçar para não ficar com medo, pois seu apoio parecia precário e ela estava no alto. Não se sentia daquele jeito desde a primeira vez em que colocara os pés no navio que a levaria ao Mediter­râneo.

— Você já se sentou em um cavalo antes, não é? — in­dagou o conde.

— Já — ela respondeu. — Uma vez ou outra. Bem, uma vez. Em uma feira. Mas o importante é chegar ao Teddy.

— E chegarmos inteiros — murmurou o conde, ao puxá-la para fora, onde montou o cavalo negro com um único e ágil movimento.

Com a neve caindo levemente ao redor deles, Gwen e o conde atravessaram os portões de ferro e seguiram para as montanhas.

 

A neve continuava a cair pesadamente do céu acinzen­tado, mas, graças a Deus, o vento parara de soprar. Oca­sionalmente, havia uma fresta no chão, onde córregos de água corriam sobre as pedras, movendo-se rápido de­mais para serem congelados. Com exceção disso, tudo ao redor era puro silêncio, apesar do som dos cascos dos cavalos na neve, e a própria respiração de Gwen. Ne­nhum outro animal ou pássaro dava sinal de vida.

Ela não fazia ideia de onde estava, pois não haviam tomado a estrada. Estavam em uma pequena trilha que corria paralela à estrada, e depois, se desviava para a direita.

Ainda bem que ela estava usando a capa de veludo. Sem ela, Gwen estaria muito mais molhada, com mais frio e mais infeliz.

— Falta muito? — a moça gritou para o guia quando continuaram subindo a trilha estreita e acidentada que cortava a mata.

— Não, respondeu o conde.

Seus ombros largos e o chapéu de castor estavam co­bertos de neve. Os quadris iam de um lado para o outro, acompanhando o balanço do cavalo, que, às vezes, empertigava-se todo, como se estivesse impaciente com o ritmo lento no qual estavam seguindo.

O animal não podia estar mais impaciente do que ela.

Gwen torcia para chegar a tempo de impedir que Teddy tivesse complicações mais sérias. Ela esforçou-se para se lembrar de tudo que sabia sobre fraturas expostas e como tratá-las. Deveria ter perguntado a Bill quais remé­dios ele tinha em casa, embora, levando em conta a po­breza dele, era pouco provável que tivesse algum. Ainda bem que o conde tinha um pouco de láudano. O menino deveria estar sentindo muita dor.

— Ali está a casa — anunciou o conde, após vários outros minutos. Ele apontou para a esquerda.

Ela mal conseguiu ver a cabana de paredes de pedra e teto de ardósia e as pequenas construções ao seu redor, através dos galhos das árvores cobertos de neve, antes que o conde virasse o seu cavalo e puxasse o dela na direção do portão de madeira. Ele desmontou, abriu a tranca, e seguiu na direção do pequeno pátio.

O conde aproximou-se do cavalo dela, e, sem dizer uma palavra, estendeu os braços para ajudá-la a descer. Gwen apoiou as mãos nos ombros dele e escorregou de cima do animal, enquanto ele a segurava pela cintura.

Sentindo a pressão das duas mãos fortes, e da proxi­midade do corpo dele, ela deslizou para o chão coberto de gelo.

Ela mal havia posto os pés no chão, quando ele se virou para pegar algo no seu alforje.

— Aqui está o láudano — disse, entregando-lhe a gar­rafa, envolta em um pano grosso. Ele lhe passou outra garrafa. — Também trouxe um pouco de uísque.

— Uísque?

— Para limpar a ferida.

Ele retirou do alforje outro rolo de tecido.

— O que é isso?

— Ataduras — respondeu o conde, e começou a puxar os cavalos na direção de um pequeno celeiro de pedra à direita da cabana.

— Não demore.

O conde deteve-se, e girou nos calcanhares para fitá-la.

— Não vou entrar na casa. — Ela franziu a testa.

— Não pode ficar aqui fora neste frio. Ninguém vai atravessar esta nevasca só para lhe roubar os cavalos.

— Não estou preocupado com ladrões, e vou ficar bem aquecido no celeiro.

Apesar de as enormes botas e a profundidade da neve tornarem a caminhada algo muito difícil, ela seguiu cambaleante até ele.

— Posso adivinhar seus motivos para querer ficar no celeiro, os mesmos para se enclausurar na sua mansão. Mas esta não é a hora de satisfazer a sua vaidade, meu senhor. Mesmo que fosse medonho como uma gárgula, o que o senhor não é, preciso de sua ajuda com Teddy. Alguém vai ter que segurá-lo, enquanto cuido da perna. O filho mais novo de Bill Mervyn tem apenas oito anos de idade. Ele não conseguirá fazê-lo sozinho.

A expressão no rosto do conde não mudou e, por um instante, ela teve medo de que ele fosse recusar, até que o homem assentiu ligeiramente.

— Deixe-me apenas guardar os cavalos.

— Ótimo.

Virando-se, ela se esforçou para cruzar a neve na direção da porta da casa. Esta se abriu antes que Gwen a alcançasse, e o gorducho William Mervyn apareceu.

Como o pai, ele possuía cabelos negros encaracola­dos e um rosto redondo. Obviamente não dormira a noite toda, pois a face estava pálida e tinha profundas olheiras sob os olhos azul-claros.

— Você se lembra de mim, não lembra, William? — ela disse, ao chegar até ele. — Sou a srta. Davies, do Saint Bridget. Você e o seu pai às vezes me ajudam.

— Onde está o pai? — indagou ansiosamente o me­nino, olhando para além dela. — Ele caiu e também se machucou?

Com um sorriso tranquilizador, Gwen levou o menino para dentro e fechou a porta.

— Não, ele está ótimo. Mas estava muito cansado e molhado, e eu mandei que ele ficasse na mansão do con­de. Não queremos que ele fique doente logo antes do Natal, queremos?

O menino sacudiu a cabeça, e Gwen tirou a capa mo­lhada e a pendurou em um gancho perto da porta, do qual pendiam chapéus, um cachecol e partes de arreios.

— Felizmente, eu estava na casa do conde, e pude vir até aqui. Já cuidei de muitos ossos quebrados.

— Quem é o outro homem?

— O conde de Cwm Rhyss — ela respondeu, rapida­mente passando os olhos pelo interior da pequena casa. Todo o primeiro andar da cabana não era maior do que a cozinha do conde. Havia um sótão acima, onde ela supôs que os meninos dormiam. A cornija e o maciço aparador de carvalho estavam decorados com pinho e galhos de azevinho. Sobre a mesa havia pratos sujos.

O garoto ferido, Teddy, estava deitado sobre um pe­queno catre perto da lareira, muito pálido, com os olhos fechados, entre travesseiros e cobertores de lã gastos. Com os cabelos negros desgrenhados e os longos cílios abanando a face vermelha, ele parecia ter menos do que seus doze anos de idade.

Gwen rapidamente depositou sobre uma mesa o láudano e os outros itens e correu até Teddy, colocando a mão em sua testa.

Como temia, ele estava febril.

Gwen gentilmente levantou o cobertor e começou a remover as bandagens improvisadas, porém limpas, que Bill havia colocado logo abaixo do joelho do menino.

Teddy gritou e arregalou os olhos, fitando-a horrori­zado, o rosto contorcendo-se de dor.

— Lamento se estou lhe causando dor, Teddy — ela disse, de modo tranquilizador. — Você se lembra de mim, não lembra? Sou a srta. Davies, do Saint Bridget.

Cerrando os dentes, o menino assentiu.

— Tenho de examinar a fratura, e, depois, tentarei consertá-la.

A fratura realmente fora feia; tanto que precisaria de toda a sua experiência e habilidade para tratá-la.

Ela voltou a colocar a mão na fronte do menino. Desta vez, não para lhe medir a febre, mas para afastar seu ca­belo do rosto e lhe oferecer um pouco de consolo.

— Feche os olhos e descanse por um instante, en­quanto eu lhe dou algo que vai fazer a maior parte da dor desaparecer.

Ele assentiu.

— Menino corajoso — ela disse, ao se levantar. William a observou com os olhos arregalados, quando ela desenrolou as garrafas de láudano e uísque.

— Tem um pouco de água para eu me lavar? — Gwen perguntou.

William apontou para um balde perto do fogo.

— O pai tirou um pouco do poço ontem.

A porta da cozinha se abriu, permitindo a entrada de uma rajada de ar gelado e do conde. William se sobres­saltou e ficou encarando o conde, quando o nobre en­trou, roçando a cabeça na verga da porta.

Ele não avançou. Ficou postado no batente da porta, com o rosto ligeiramente virado, em uma tentativa de esconder o lado marcado.

O nobre parecia tão vulnerável, como se o olhar de uma criança pudesse machucá-lo fisicamente.

Gwen achava que ele ficara amargo por causa da re­jeição de seus colegas de nobreza e das pessoas que o co­nheceram na juventude, quando ainda era bonito. Agora, percebia que o conde temia a rejeição de qualquer um que o visse. Por um instante, ela se arrependeu do modo brusco com que se dirigira a ele antes.

Mas pena não era a melhor resposta para a dor dele. Esconder-se de tudo e de todos apenas prolongaria e au­mentaria seus temores. Ela precisava tratá-lo como o homem repleto de vitalidade e valoroso que de fato ainda era.

— Entre e feche a porta — disse. — Está deixando o ar frio entrar. William, será que pode colocar mais um pouco de lenha no fogo, por favor?

Ambos obedeceram, embora William não tirasse os olhos do conde, quando este retirou seu casaco.

— Vejo que notou as cicatrizes do conde — Gwen comentou. — Ele se machucou seriamente, alguns anos atrás.

— O senhor é mesmo um conde — perguntou William, quando a curiosidade mostrou ser maior do que o medo.

— Sou — respondeu o nobre, em tom solene.

— O senhor se machucou em uma batalha?

— Não — foi a resposta ríspida. Quando ele prosse­guiu, seu tom foi menos abrupto. — Eu me feri em um incêndio.

— Ah.

William parecia desapontado. Gwen pegou a garrafa de láudano.

— Você tem uma colher, William?

Ele assentiu e foi buscar uma colher de madeira em seguida.

— Vou dar a Teddy um pouco de remédio, para ajudá-lo a dormir — ela explicou para o menino. — Depois, vou precisar da sua ajuda e do conde também.

Ela se sentou no catre de Teddy, e o ajudou a se levan­tar um pouco.

— Beba isso, Teddy, beba tudo.

Ela inclinou a colher. Ao provar o líquido, o menino quase engasgou, mas conseguiu engolir a maior parte. Depois de lhe limpar o queixo com a ponta da coberta, ela gentilmente o ajudou a se deitar.

— Teremos de afastar a cama da parede — ela disse para o conde. — Depois, quero que segure os ombros de Teddy. William pode segurar a outra perna dele. — Ela olhou para o menino machucado. — Eles vão ajudá-lo, Teddy, porque você deve permanecer imóvel.

Embora seus olhos já estivessem exibindo o olhar per­dido que o láudano costumava produzir, Teddy assentiu em sinal de compreensão.

Gwen dirigiu-se para uma extremidade do catre e o conde para outra.

— Com cuidado, agora — ela disse, assentindo, e jun­tos afastaram a cama da parede, o suficiente para que William conseguisse se enfiar entre ela e a parede, no lado da perna boa de Teddy.

— Muito bem, tomem suas posições — Gwen orde­nou, enrolando as mangas e se preparando para fazer o seu trabalho.

O conde tirou algo que parecia ser uma ripa de madei­ra macia do bolso do paletó e a entregou a Teddy.

— Coloque isso entre os dentes e morda com força. O olhar do nobre se cruzou com o dela, e ele notou sua indagação.

— Ganhei isso do médico que cuidou de mim assim que me feri — disse, ao se preparar para ajudar.

Trêmulo e pálido, Teddy colocou a ripa na boca. Bran­co como a neve que caía lá fora, William se posicionou. O conde colocou as enormes mãos nos ombros de Teddy, e assentiu, indicando que estava pronto.

E Gwen fez o que tinha de fazer, gentil, porém, inexo­ravelmente forçou o osso de volta para debaixo da pele e ao seu lugar de origem.

— Grite se quiser, rapaz — disse, baixinho, o con­de. — Ninguém além de nós pode escutá-lo, e jamais diremos nada. Deus sabe o quanto eu gritei quando os médicos estavam cuidando de mim, e eu era muito mais velho do que você.

O conselho veio tarde, pois Teddy já havia desmaia­do. A ripa caiu de seus lábios frouxos.

— Melhor assim -— murmurou o conde.

— Teddy dormiu. Isso é bom, não é? — William per­guntou, com óbvia ansiedade.

— Ele precisa descansar — Gwen o acalmou, enquan­to apalpava a perna do menino, para se certificar de que o osso voltara ao lugar. — Pode soltá-lo.

— Você deve ser forte como um touro, para ter conse­guido segurá-lo tão firme — o conde disse para William, quando ele soltou Teddy. — Eu mesmo tive muita difi­culdade.

O menino sorriu timidamente ao se afastar da cama, acompanhado pelo conde.

— Agora será que tem um pouco de chá? — pergun­tou o nobre. — E pão? Tenho certeza de que a srta. Davies vai querer comer algo.

— Papai deixou um pouco de sopa — disse o menino, apontando para a panela no fundo da lareira. — Ele co­zinha muito bem — acrescentou, com orgulho.

— Não tenho muita experiência em preparar chá. Você sabe como fazer?

— Já vi o meu pai fazendo.

— E eu já vi minha governanta. Bem, vamos torcer para que, somando o que nós dois sabemos, não nos des­gracemos. Com certeza, se mulheres são capazes de pre­parar chá, dois sujeitos inteligentes como nós daremos um jeito.

O menininho riu.

— Meu pai faz um chá muito gostoso.

Certa de ter feito o melhor que podia, com o vesti­do grudando nas costas, devido ao suor, Gwen inspirou profundamente e se endireitou bem devagar. Ela quase esbarrou no conde, que estava postado atrás dela, esten­dendo-lhe um pano úmido.

— Tome.

Agradecida, ela aceitou o pano e o usou para limpar o suor do rosto.

— Obrigada.

— Aceita um pouco de chá?

— Ainda não. Primeiro tenho de limpar a ferida e de­pois fazer o curativo.

— Quando quiser, ele estará pronto.

Gwen pegou o uísque e um pano limpo que William encontrou na gaveta do aparador e pôs mãos à obra.

Ao trabalhar, escutou o som de água sendo fervida na chaleira. Depois, a voz grave do conde.

— Vejo que alguém está se preparando para o Natal.

— Eu e Teddy fizemos isso. Nós sempre colhemos os ramos de azevinho e de visco. O pai prepara a comida. Ele ia... — A voz do menino falhou, mas ele prosseguiu. — Ele ia começar a fazer o pudim de Natal hoje, mas Teddy se machucou.

— Eu providenciarei para que tenham seu pudim de Natal. O que mais costumam ter para o Natal?

— Ano passado, ganhei uma laranja!

— É mesmo? Uma laranja inteira só para você?

— Foi, e ela estava deliciosa! O senhor já ganhou uma laranja?

— Uma ou outra.

— O que ganhou de presente no último Natal?

— Acho melhor ficarmos em silêncio, William, para que a srta. Davies possa se concentrar no seu trabalho, e seu irmão possa descansar.

Gwen terminou de enrolar a perna de Teddy em ata­duras limpas. Ela fizera tudo que estava ao seu alcance. Apenas o tempo, e o médico, diriam se havia sido bem-sucedida.

Levando a mão à parte inferior das costas, ela se le­vantou e se espreguiçou. Suas costas e o pescoço doíam. As pernas também estavam doloridas, provavelmente por cavalgar, pensou.

Ao virar-se, deparou-se com uma chaleira marrom e algumas canecas brancas sobre a mesa, ao redor do qual estavam sentados William e o conde, que fatiava um pão.

— Quanto tempo acha que o médico vai levar para chegar aqui? — ela perguntou.

O conde olhou lá fora, através da pequena janela perto da porta. Depois, pousou a faca sobre a mesa e caminhou até a porta, abriu-a e espiou lá fora.

— Não acho que o médico vá chegar aqui hoje. Nem nós vamos a lugar nenhum. Está nevando ainda mais do que antes.

Desanimada, Gwen correu até onde estava o conde, e descobriu que ele tinha razão. Ela mal podia enxergar um metro além da porta. Estava ventando novamente.

Abraçando a própria cintura, e estremecendo, ela mordeu o lábio inferior quando ele fechou a porta. Os dois se entreolharam, e ela percebeu que ele estava tão preocupado quanto ela.

— Como está o menino? — o conde indagou, aos sus­surros.

— Já vi fraturas piores — ela respondeu. — E já en­direitei vários ossos quebrados quando os médicos esta­vam ocupados demais com ferimentos mais graves, mas realmente não sei.

— Pois minha impressão foi de que sabia exatamente o que estava fazendo, e o estava fazendo melhor do que muitos médicos que conheço.

— Não sou médica.

— Pois deveria ter sido — ele disse, e mancou de volta para a mesa, onde cortou outra fatia de pão para William.

Quantas vezes pensara que ela e as colegas enfermei­ras poderiam cuidar dos ferimentos melhor do que mui­tos dos médicos enviados ao front? Mais vezes do que podia contar, mas na única vez em que mencionara isso para um médico, ele a fitara como se ela houvesse dito uma heresia e a condenou a lavar vasos em que pacientes urinam e defecam por uma semana.

Ela sentou-se à mesa e sorriu para William e para o conde.

— Vamos ver se vocês dois são capazes de preparar um chá decente.

Aparentemente eram, e, se Gwen não estivesse tão ansiosa por causa de Teddy, poderia até ter se divertido. William estava visivelmente empolgado por ter visitas, especialmente uma tão ilustre como o conde. Ele fez todo tipo de perguntas, o que indicava que o menino achava que a nobreza inglesa passava todos os dias em cotas de malha e armaduras, salvando donzelas em perigo, ou caçando com falcões. O conde teve algum trabalho para convencê-lo de que não era bem assim.

Infelizmente, a admissão de que era dono de armadu­ras e de várias espadas, escudos e maças não ajudou a sua causa.

Mesmo assim, ele foi surpreendentemente paciente com as perguntas do menino, e, ao final da conversa, parecia bem à vontade, especialmente quando o assunto passou a ser vitórias famosas de galeses na Idade Média, no qual o conde era, sem dúvida nenhuma, perito.

— O senhor fala como se houvesse estado lá — Gwen comentou, sem disfarçar sua admiração, pois ele não des­crevia aqueles dias com o mesmo tom seco e impessoal que os acadêmicos costumavam usar. — Não concorda, William?

— Eu é que queria ter estado lá — disse o menino, des­cendo da cadeira e fingindo cortar o ar com sua espada.

— Batalhas reais estão longe de serem agradáveis — disse o conde, com seriedade. — Pergunte à srta. Davies.

O menino franziu a testa.

— Mulheres não lutam em batalhas.

— Não, mulheres têm de cuidar dos feridos após a batalha, o que é muito mais difícil — retrucou o conde, levantando-se da mesa. — Agora, que tal me ajudar a cuidar dos cavalos e providenciar para que tenham água para beber e algo para comer?

— Vão sair? — perguntou Gwen, olhando na direção da janela, que estava tão coberta de gelo que ela não con­seguia enxergar lá fora.

— É preciso. Nós teremos cuidado, não é, William?

O menino prontamente assentiu.

— Ótimo. Pegue o seu casaco, um gorro e luvas, en­quanto visto o meu casaco.

William correu para obedecer ao conde, e Gwen se colocou de pé.

— Precisa de ajuda com isso? — perguntou o conde, indicando os pratos.

— Não, eu posso cuidar de tudo sozinha — Gwen disse, e foi verificar como estava Teddy.

A fronte do menino ainda estava quente, e a face co­rada.

O conde aproximou-se por trás dela.

— Alguma melhora?

— Ainda é cedo — ela disse, tentando tranquilizar a si mesma mais do que a ele.

— Estou pronto — avisou William.

— Ótimo — disse o conde, vestindo o sobretudo. — Mas devemos falar baixinho dentro de casa, caso contrário acordaremos Teddy, e a srta. Davies vai brigar conosco.

Depois que os dois saíram, Gwen tratou de arrumar a mesa rapidamente, deixando um pouco de sopa esquentando na panela, para quando Teddy acordasse. Depois, amarrou quatro pedaços de lenha pequenos, fazendo dois suportes para manter as cobertas longe da perna de Teddy, pensando que, talvez, isso aliviasse um pouco a dor, para quando o menino acordasse.

Estava terminando quando o conde e William retornaram. Ela logo viu que o mancar do conde estava mais acentuado, e que William, agora com a barriga cheia de sopa e pão, e após tomar um pouco de ar puro, parecia completamente exausto, assim como o conde.

— Por que não se deitam e descansam um pouco? — ela sugeriu, vendo o conde tirar a neve do casaco do menino, e de seu próprio.

— Não quero me deitar — retrucou William, com pe­tulância. — O conde prometeu jogar damas comigo.

— E vou, depois que você tiver tirado um cochilo. Passou uma longa noite, aqui com Teddy, e trabalhou duro, ajudando a mim e a srta. Davies.

— O senhor também precisa descansar, meu senhor — disse Gwen.

Ele a fitou intensamente.

— A senhorita também.

— Estou acostumada com longas noites cuidando de pacientes. O senhor não.

— Estou acostumado com longas cavalgadas, a se­nhorita não. Eu a chamarei no instante em que o rapaz acordar.

— Eu dormirei mais tarde — ela disse, com as mãos nos quadris. — Por ora, vocês dois deviam dormir um pouco.

O conde lhe lançou um olhar contrariado, e, depois, dirigiu-se a William.

— Acho que ela está falando sério.

O menino bocejou e esfregou os olhos.

— Não estou cansado. Quero jogar damas.

— Mais tarde — disse o conde. — Onde fica a sua cama?

— No sótão — ele disse, apontando para o andar de cima.

O conde franziu a testa, e ela desconfiou que ele não estava nada ansioso para tentar subir as escadas, pelo menos, ainda não.

Gwen passou por ele e caminhou até um comparti­mento oculto por uma cortina. Como suspeitara, era onde Bill dormia, pois havia ali uma cama de ferro e um pequeno lavatório.

— Como é apenas um cochilo, por que não se deitam aqui? Deste modo, se eu precisar de ajuda, vocês podem vir rapidamente.

William e o conde se entreolharam.

— Acho que a srta. Davies não vai aceitar não como resposta, não concorda? — indagou o nobre.

William bocejou novamente, e sacudiu a cabeça.

O conde aproximou-se de Gwen, e sussurrou baixinho:

— Apenas por alguns minutos, depois a senhorita vai dormir.

Ela não queria discutir, de modo que assentiu, em si­nal de concordância.

— O pai sempre canta para mim quando vou dormir. Será que o senhor se incomoda? — perguntou o menino, quando o nobre o acompanhou até a cortina. — Gosto de "Deck the Halls", porque é galesa, como eu.

— Já faz muito tempo que não canto nada. Talvez a srta. Davies possa...

— Mas é o pai quem canta para mim. Por favor. Só uma.

O conde suspirou profundamente.

— Muito bem. Mas só uma.

Ela escutou a armação da cama ranger quando William subiu nela e se deitou.

— Sente-se aqui ao meu lado — pediu.

Após alguns instantes, ela escutou um ranger ainda mais forte, causado por alguém mais pesado se sentando na cama.

— Se não se importa, vou esticar um pouco as pernas.

— Não, não me importo. Primeiro "Deck the Halls" e depois "All Through the Night". São as minhas favo­ritas.

— Você disse apenas uma.

— Mas "All Through the Night" também é galesa. O senhor também é galês, não é?

— Sou.

— Neste caso, acho que devia cantar as duas.

Enquanto Gwen verificava mais uma vez como estava Teddy e se preparava para lavar a louça, ela se perguntou se o conde iria aceitar ou se recusar, embora torcesse para que ele cantasse "All Through the Night". Adorava essa música. Na Criméia, vários soldados haviam cantado essa música para ela em uma noite de Natal, lembrando-a de sua casa. Até mesmo um pobre órfão poderia ter boas lembranças natalinas quando a alegria tomava a forma de uma maçã inesperada, ou algo quente para vestir.

Foi então que o conde de Cwm Rhyss começou a can­tar a alegre "Deck the Halls". Que bela voz de barítono ele possuía — capaz de se destacar até em Gales. Ele foi, na mesma hora, acompanhado pelo soprano oscilante de William.

Ao terminar, ele começou "All Through the Night", cantando-a com a mesma gentileza e suavidade de uma canção de ninar. A princípio, William cantou com ele, mas a voz do menino logo se calou, e o conde ficou cantando sozinho. Ele foi abaixando cada vez mais o tom de voz, até chegar a sussurrar a canção, em vez de cantá-la.

Na ponta dos pés, Gwen contornou a cortina para ver se suas suspeitas estavam corretas. Estavam. O conde estava sentado sobre as cobertas, apoiado na cabeceira da cama, com os olhos fechados e o peito subindo e des­cendo lentamente, enquanto dormia. William estava sob as cobertas, ao lado do conde, aconchegado nele.

Quando estava relaxado, as feições sérias do conde se suavizavam, e ele ficou parecendo com o belo jovem do retrato.

Com aquele rosto e o corpo magnífico que tinha, o conde deveria ter sido irresistível para as mulheres. Ele continuava irresistível agora, e não devido à aparência ou à forma física. Ele também possuía um coração gen­til e generoso, e, se as pessoas pudessem vê-lo como William, saberiam — como ela — que muito de seu ex­terior severo era exatamente isso: um exterior, destinado a afastar as pessoas, antes que estas pudessem magoá-lo com sua repugnância.

Se as outras mulheres pudessem vê-lo agora, iriam querer se aproximar silenciosamente dele e afastar aque­le cacho de cabelo que lhe caía sobre a testa, e talvez até pressionar os lábios em sua fronte. Como ela acabara de fazer.

Ela se censurou por fazer papel de tola, ao se afastar e fechar a cortina. Mesmo com aquelas cicatrizes, ele era um nobre rico, e ela era filha de pobres que administrava um orfanato. Imaginar qualquer outra coisa era idiotice, tolice e...

Irresistível.

Gwen sobressaltou-se ao escutar o som de pés se arrastando. Virando-se, ela viu o conde de Cwm Rhyss cambaleando para fora do compartimento. Ele dormira quase quatro horas, durante as quais Teddy se mexera e gemera uma ou duas vezes, mantendo-a alerta.

O conde olhou para a janela.

— Ainda está nevando?

— Pior do que nunca.

Ela suspirou e massageou a nuca. Estava longe de ser a pior vigília pela qual tivera de passar, mas, consideran­do que não dormira na noite anterior...

Ela gelou ao sentir as mãos fortes do conde sobre seus ombros. Antes que pudesse falar qualquer coisa, ele co­meçou a lhe massagear as costas doloridas e o pescoço, aliviando a tensão que sentia.

Gwen deveria protestar ou fazer com que ele parasse, mas estava tão gostoso...

— Como está o menino? — o conde perguntou com sua voz grave, porém suave.

— Ainda febril — ela admitiu.

— Ele vai precisar de mais láudano.

— É possível.

— Use o quanto quiser. Não me serve de nada.

— Não alivia a sua dor? — Gwen perguntou, recean­do que os ferimentos dele fossem mais sérios do que presumira.

— Deveria ajudar a... Deveria me ajudar a dormir, mas não funciona.

Baseada na experiência, ela fez uma suposição.

— O senhor tem pesadelos?

— Tenho.

— Não é de surpreender, considerando o que lhe aconteceu.

— Desde o meu acidente, não tive uma única noite de sono decente. — As mãos dele se detiveram por um instante, e depois continuaram. — Embora, ainda agora, tenha dormido como uma pedra.

Gwen tentou ignorar o calor e a ligeira pressão das mãos dele sobre ela.

— Detestaria pensar que ajudar a mim e aos meninos possa tê-lo prejudicado.

— Claro que não. Na verdade, srta. Davies, diria que a seu modo único e incomparável, a senhorita me fez muito bem.

Ele parou de massageá-la, e Gwen teve um instante de autêntica tristeza, até senti-lo retirando um dos grampos de seu cabelo.

— O que está fazendo? — indagou, exaltada, levando a mão à cabeça para manter o cabelo no lugar.

— Este coque parece estar tão apertado, que não pode ser confortável — ele disse, retirando mais dois grampos do outro lado.

Ela levou a outra mão à cabeça.

— Pare! Vai desmoronar tudo.

— Essa é a ideia. Tem um lindo cabelo, srta. Davies.

— Tenho um cabelo comum — ela retrucou, levan­tando-se e virando-se para encará-lo, com a raiva disfar­çando sua angústia.

Ela costumava sonhar em ter cabelos dourados como o trigo maduro, ou negros como as asas de um corvo, como os do conde, mas os dela eram castanhos como o pêlo de um rato, e nenhuma bajulação iria transformá-los em algo mais que cabelos comuns.

Nenhuma bajulação, nenhuma palavra gentil e dita com suavidade iria torná-la algo que não fosse comum.

Ele sacudiu a cabeça.

— Seu cabelo é notável. Quando está solto sobre o rosto, como agora, ele faz toda a diferença do mundo. E quando seus olhos brilham com esse seu espírito indo­mável, a senhorita poderia se comparar às maiores bel­dades de Londres.

— Agora o senhor está mentindo, embora não entenda por que acha que tem de me bajular — ela disse, tentando não deixar transparecer o quanto ele mexera com ela.

— Apenas estou lhe dando minha opinião sincera. Não tenho intenções ocultas. Suponho que não receba muitos elogios quanto à sua aparência ou o seu cabelo, srta. Davies.

— Não, não recebo.

— Pois, deveria.

Ela corou intensamente, e tentou se convencer de que não deveria lhe dar atenção.

— Será que pode me devolver os meus grampos? — Ele estendeu os grampos sobre a palma da mão aberta, e com um sorriso nos lábios, disse:

— Venha pegá-los.

— Ora, mas de todas as tolices...

Ela tentou pegá-los, e ele fechou a mão ao redor da dela, depois a levou aos lábios, para beijá-la.

— Eu a acho muito atraente, srta. Davies.

Ela deveria afastar a mão da dele. Esta intimidade de­veria ser indesejada. Quem sabe o que ele poderia fazer a seguir, ou o que ela poderia fazer? As ideias mais ab­surdas passaram por sua cabeça.

No entanto, Gwen não conseguiu se mexer, até que uma voz débil veio do catre perto da lareira.

— Já é Natal? Eu perdi tudo?

Mais nervosa do que jamais se lembrara de ter estado — mesmo durante a pior fase da Criméia — e esforçan­do-se para não deixar isso transparecer, Gwen rapidamente enrolou o cabelo em um nó na altura da nuca e prendeu-os com os grampos, enquanto corria até Teddy.

Pela voz e pelos olhos do menino, dava para notar que o láudano ainda estava fazendo efeito, embora não mui­to, a julgar pela dor estampada em suas feições.

— Ainda não é Natal — ela afirmou. — Você não per­deu nada.

Teddy esforçou-se para sentar na cama.

— Onde está o pai?

— Não se mexa — ordenou Gwen, gentilmente em­purrando-o de volta para a cama. — Seu pai não tem como chegar aqui. Ainda está nevando muito. Prometo acordá-lo quando ele chegar, mas, até então, deveria ten­tar dormir mais.

O olhar de Teddy percorreu o aposento, antes de se fixar no conde.

— Ele ainda está aqui — ele murmurou, enquanto Gwen preparava outra dose. — Imaginei que ele estava aqui.

— Ele tem sido de grande ajuda — a moça informou.

— Lembro-me da ripa que ele me deu para morder.

— Você não precisou dela. Foi muito corajoso — dis­se o conde, aproximando-se e sentando-se ao lado do catre. — Estou certo de que a bela srta. Davies ficou muito impressionada com a sua bravura.

Ela corou e procurou se convencer de que ele estava apenas tentando fazer Teddy se sentir melhor. As palavras do nobre provocaram um leve sorriso aos lábios pálidos de Teddy, antes que as pálpebras se fechassem lentamente.

Quanto ao que ele dissera antes, o conde não podia, de fato, achá-la atraente. Talvez estivesse apenas tentando se distrair, visto que estavam quase sozinhos.

Gwen procurou não pensar nisso, e ficou feliz quando o conde se dirigiu até a lareira e adicionou mais duas toras de madeira ao fogo.

Ela também se esforçou para não notar o modo como ele se movia, ou como o paletó se esticava ao redor dos ombros largos, antes do homem se endireitar.

— Vou dar uma olhada nos cavalos antes que William acorde. Ele tem boa vontade, mas estou acostumado a cuidar de Warlord sozinho. E Warlord também não está acostumado com um sujeitinho curioso por perto.

Ela assentiu, aliviada por ele estar de saída.

Depois de dar um pouco mais de láudano a Teddy, ela sentou-se ao lado dele, até ter certeza de que ele estava dormindo. Depois, voltou para a lareira e adicionou mais água à sopa.

Concentrando-se em algo que não fosse o conde, ela pensou na situação deles no tocante à comida. Aparen­temente, a sopa não seria suficiente para os quatro mais tarde.

O conde retornou, batendo as botas no chão cuidado­samente para retirar a neve, ao tirar o casaco e o chapéu e pendurá-los nos ganchos da parede.

— Agora que já descansei um pouco, e seu paciente está dormindo novamente, deveria se deitar — ele disse para ela. — Ficarei de olho em Teddy e a acordarei se houver alguma mudança.

Embora Gwen estivesse à beira da exaustão, Teddy era sua responsabilidade.

— Não posso. Ele pode precisar de minha ajuda. E eu não posso dormir antes que a febre ceda.

— Se ele piorar, e estiver exausta, você não vai ser de muita ajuda.

— William acordará em breve — ela retrucou. — Vai estar com fome, e Teddy também precisa comer. Tenho de preparar algo além da sopa.

Ela passou a mão na testa, tentando pensar em algo para preparar.

— Talvez um cozido. Ou talvez eu possa fazer algo com aquele presunto que está pendendo do teto.

— Acho que você precisa dormir um pouco, antes que desmaie de pura exaustão. Vá se deitar que eu preparo alguma coisa.

— O senhor não sabe cozinhar. — Ele ergueu uma das sobrancelhas.

— Como sabe o que sei ou não fazer, srta. Davies? — Ela começou a suspirar de impaciência, e acabou bo­cejando prodigiosamente.

— O senhor é um conde.

— Sou um conde que não passa todo o seu tempo trancado em seu gabinete, escrevendo um livro. Às ve­zes, gosto de ir até a cozinha, e observar a sra. Jones trabalhar. Acredito que, no mínimo, seja capaz de me encarregar do mais rudimentar. — O conde segurou as mãos da moça e começou a puxá-la na direção da corti­na. — Já lhe disse que não quero a morte de uma mártir em minhas mãos.

Ela plantou os pés no chão e tentou soltar a mão da dele.

— Sabe, o senhor não está no comando aqui. Esta não é a sua mansão.

— Mas a propriedade é minha. Bill Mervyn é um de meus arrendatários. Agora, pare de discutir, ou será que vou ter que carregá-la para a cama?

Que turbilhão de imagens essas palavras lhe trouxe­ram à mente.

— Faça o favor de tirar as mãos de mim.

Ele a puxou mais para perto de si, e quando a fitou nos olhos, Gwen notou uma expressão que a deixou com a respiração alterada e fez com que seu coração dispa­rasse.

— Talvez eu não queira fazer esse favor — ele sus­surrou, trazendo-lhe as mãos aos lábios. — Já houve um tempo em que teria sido invejada em qualquer salão de festas repleto de mulheres tolas e risonhas, srta. Davies, simplesmente por estar nos braços do conde de Cwm Rhyss. — Ele inclinou-se ainda mais perto. — E se o conde de Cwm Rhyss a beijasse...

— Vocês estão dançando? — perguntou uma vozinha de criança. — Meu pai já voltou?

William estava postado ao lado da cortina.

Com um sorriso nervoso, Gwen rapidamente afastou-se do conde.

— Não, querido, seu pai ainda não voltou para casa por­que não parou de nevar. O conde estava apenas... Hã...

— Tentando convencer a srta. Davies a tirar um co­chilo. Agora, vá se deitar, srta. Davies, e me deixe prepa­rar um pouco de chá com torradas para o jovem William, só para começar.

Ela ainda não estava disposta a abrir mão de sua res­ponsabilidade.

— Mas Teddy...

— Se Teddy acordar, ou eu notar a menor alteração em seu estado, vou chamá-la na mesma hora. Precisa dormir, srta. Davies, ou o seu discernimento ficará com­prometido.

Se estava considerando a possibilidade de que um no­bre pudesse realmente estar atraído por ela, ou se estava pensando em uma vida ao seu lado, talvez seu discerni­mento já estivesse, de fato, comprometido.

— Promete me acordar ao primeiro sinal de qualquer mudança?

Ele colocou a mão sobre o coração e se curvou elegante­mente, como se estivessem no palácio de Buckingham.

— Minha querida srta. Davies, tem a palavra do conde de Cwm Rhyss.

 

Gwen acordou com o som de vozes murmurando algo em tom baixo, uma grave e agradável, a outra aguda e excitada — o conde e William. Deu-se conta de que estava na cabana de Bill Mervyn, cuidando de Teddy, que havia se ferido.

Tentando imaginar quanto tempo dormira, ela olhou na direção da pequena janela próxima à cama. Estava escuro demais para poder saber que horas eram, ou se ainda estava nevando.

Fosse a hora que fosse, havia dormido demais. Ela rapidamente ficou de pé e contornou a cortina, avistando o conde de Cwm Rhyss usando um avental remendado, com farinha na face, mexendo algo no interior de uma vasilha grande. William estava ao seu lado, na mesa, sentado sobre o tampo, com as pernas pendendo da la­teral. Algo cozinhando na panela de ferro sobre o fogo estava espalhando um aroma delicioso pela cabana.

— Boa noite, srta. Davies — disse baixinho o conde. — Espero que tenha dormido bem.

Ela havia dormido sim, especialmente considerando as circunstâncias, mas sua primeira preocupação foi com seu paciente.

— Como está Teddy? — ela perguntou, ao cruzar o aposento, na direção do catre perto da lareira.

— Como pode notar, ainda dormindo pesadamente. — O conde franziu a testa. — Eu a teria acordado, em caso de alguma mudança.

Não fora sua intenção criticar, mas Gwen nada disse. Manter distância, o máximo possível, considerando-se as circunstâncias, era a sua melhor defesa contra tolos voos de imaginação com relação a nobres belos e viris.

Notando que a respiração de Teddy parecia estar mais tranquila e sua face menos vermelha, ela levou a mão à testa do menino.

Ela não estava fervendo.

Prendendo a respiração, Gwen inclinou-se e beijou-lhe a fronte para confirmar seu diagnóstico.

— Ah, graças a Deus — murmurou.

Ela ficou de pé e fitou os companheiros com um misto de alegria e alívio.

— A febre cedeu.

O conde sorriu. Ela sorriu. William também, e depois gritou:

— Teddy está bom!

E na mesma hora o menino arregalou os olhos e tapou a boca com a própria mão.

— Eu deveria apenas sussurrar — disse, com as pala­vras abafadas atrás de sua mão.

— Ele não está completamente bom. Ainda não! — Gwen disse, aproximando-se da mesa. — Mas vai estar em breve.

— Antes do Natal?

— Receio que ossos levem um pouco mais de tempo do que isso para sarar — ela retrucou. — Contudo, ele vai estar se sentindo bem antes da Páscoa. — Ela olhou na direção da vasilha. — O que é isso? Pão?

Um sorriso largo apareceu nos lábios de William.

— Estamos fazendo pudim de Natal!

O conde olhou para ela com uma expressão que era uma deliciosa mistura de acanhamento e orgulho.

— Eu sempre ajudei a sra. Jones a preparar o pudim de Natal. — De repente, o brilho de prazer desapareceu de seus olhos. — Pelo menos, até recentemente.

— Estou com fome — Teddy murmurou de sua cama.

— Teddy! — William gritou, pulando de cima da mesa. — Estamos fazendo pudim de Natal, o conde e eu.

Sentindo-se grata por outros sinais de que Teddy esta­va melhorando, e vendo que talvez tivesse de protegê-lo do entusiasmo excessivo do irmão caçula, Gwen correu na direção do catre.

— Eu pego um pouco de cozido para ele — o conde se ofereceu.

Isso explicava o aroma delicioso, e se o cozido estava tão gostoso quanto o seu aroma, o conde de fato apren­dera algo ao observar a sra. Jones.

— Ele põe muito mais nozes no pudim do que o papai — disse William, detendo-se ao lado do catre de Teddy. — E ele pôs algo mais que trouxe consigo da mansão. Uma bebida que esqueci o nome. Vai ser o melhor pudim de Natal que já comemos!

Gwen ergueu as sobrancelhas.

— Uísque? — ela perguntou, olhando para o conde, que servia um pouco do espesso cozido em uma vasilha de madeira.

Ele deu de ombros.

— Não achei nenhum conhaque, de modo que tive de improvisar.

Teddy soltou um gritinho de dor, e, ao se virar, Gwen viu William sentado na beirada do catre.

— Por favor, não sente aí, William — ela alertou. — A perna de Teddy precisa ficar o mais imóvel possível.

Com uma cara de assustado, William desceu lenta­mente da cama.

— Está tudo bem. Será que pode ir buscar os traves­seiros da cama de seu pai? Teddy vai ter que se sentar para poder comer.

William obedeceu prontamente.

O conde depositou a vasilha sobre a mesa e, quando William voltou, ajudou Teddy a se levantar na cama, até estar confortavelmente sentado. Ele foi buscar o cozido e uma toalha, e depois de entregar a vasilha do cozido e a colher para Gwen, cobriu o peito de Teddy com a toalha.

— Eu posso comer sozinho — Teddy suspirou, enca­bulado.

— O remédio que ela lhe deu vai deixá-lo um pouco trêmulo, e a vasilha está quente — disse o conde. — Ho­mem algum gosta de ser tratado como bebê, eu sei, mas, por outro lado, nenhum homem também gosta de lambu­zar o queixo todo. Além do mais, este homem não quer ver desperdiçados seus esforços culinários.

Teddy enrubesceu.

— No que me diz respeito, eu aproveitaria a rara opor­tunidade de ter uma linda jovem cuidando de mim.

Gwen corou, ao ajudar Teddy. Recebera mais elogios nos últimos dois dias do que em muitos anos. Gwen pen­sou que não era à toa que as mulheres realmente bonitas fossem vaidosas. Elas deviam escutar tais comentários com frequência.

Não era à toa que ele era vaidoso. E a perda de tais atenções deveria ser arrasadora. Ela provavelmente sen­tiria algo parecido se fosse informada de que não poderia mais cuidar de suas crianças.

— Que esforços culinários? — quis saber William.

— O cozido — explicou o conde. — Agora, peque­no Willie Mervyn, que o pudim já está quase pronto, eu não me esqueci de que me desafiou para uma partida de damas. Vá montando o tabuleiro, que estarei pronto em um instante.

— Sou um bom jogador de damas, não sou, Teddy? — William perguntou ao irmão. O menino mais velho assentiu.

— Pois eu não temo oponente algum! — gritou o con­de, agitando a colher no ar, como se fosse uma espada. — Apresse-se, jovem Mervyn, para que eu possa me vangloriar de sua derrota para quem quiser me escutar!

Os lábios de Teddy curvaram-se para cima, William deu uma risadinha, e Gwen não pôde deixar de sorrir. Olhando para o conde de Cwm Rhyss agora, era fácil de esquecer que ele morava em uma mansão, e era um membro da nobreza local. Ela quase podia acreditar que esta era a cabana deles, e que moravam todos ali, juntos, compartilhando seus dias. E suas noites. Ela quase podia acreditar nisso. Quase.

— Só mais uma vez, e depois chega.

Lá em cima no sótão, o conde parecia inflexível, e Gwen já o escutara dizer isso, antes de ter dado início à versão anterior de "Deck the Halls". Pelo menos desta vez o pedido fora feito com uma voz cansada, como se William estivesse prestes a dormir.

Teddy voltara a dormir tranquilamente, após comer o cozido. Até agora ele estava reagindo muito bem, mas isso não impedia Gwen de rezar para que o médico pu­desse subir a montanha na manhã seguinte.

A voz grave e melodiosa do conde chegava até ela, vinda do sótão. O perfume dos ramos de abeto vermelho na cornija da lareira preenchia o ar no interior da cabana. As janelas estavam cobertas de gelo, mas ali dentro es­tava quente e confortável. A chaleira estava na lateral da lareira, pronta para outro chá. Teddy não corria nenhum risco imediato. Há anos que Gwen não tinha tão poucas responsabilidades. A vida para muitas mulheres felizes, casadas e com filhos devia ser assim.

Era pouco provável que, algum dia, experimentaria continuamente este tipo de domesticidade. No entanto, tinha muito com o que se ocupar, e que lhe dava prazer. Seu trabalho era importante, pois muitas crianças preci­savam de seu amor. Ela poderia aceitar que jamais tives­se um marido, afinal, tinha muitas outras compensações. E no entanto...

O conde ficou em silêncio, e no instante seguinte Gwen o escutou descendo as escadas que levavam ao sótão. Limpando as mãos no avental, o mesmo avental que ele usara antes, ela observou o seu progresso lento escada abaixo.

— O joelho está doendo? — perguntou quando ele chegou ao chão.

— Um pouco — ele respondeu, sem olhar para ela. — Cheguei a pensar que o menino jamais fosse dormir.

— O senhor canta lindamente.

— Estou um bocado enferrujado. Já faz muito tempo. — Ainda sem olhar para ela, o nobre caminhou até a ja­nela. Com a mão no vidro, esfregou um pequeno pedaço para ver o exterior. — Bom Deus, não acredito. Parou de nevar.

Ela caminhou até ele, postando-se ao seu lado, fican­do na ponta dos pés para espiar. O céu noturno parecia um manto de veludo azul, salpicado com as pequenas luzes brilhantes das estrelas. Para o leste, era possível avistar a lua, cheia e pálida, reluzindo na neve.

— Não restou uma nuvem sequer — Gwen murmu­rou, surpresa.

— Se continuar assim, o médico e Bill poderão estar aqui logo de manhã.

Gwen ficou feliz por Teddy.

— É verdade, e o senhor deve estar ansioso para vol­tar para a sua mansão.

Ele olhou para Gwen de esguelha.

— Tanto quanto a senhorita deve estar para voltar ao seu orfanato.

— Tenho muito a fazer antes do Natal, meu senhor, mais ainda agora, que tenho menos tempo para fazê-lo.

Ele virou-se para ela, e Gwen ficou surpresa com a intensidade de seu olhar, quando ele disse:

— Parece tão ridículo que ainda me chame pelo meu título. Meu nome é Griffin.

O pedido também a pegou desprevenida.

— Seria muita ousadia minha querer chamá-lo pelo primeiro nome, meu senhor.

Também era um lembrete necessário de que perten­ciam a dois mundos diferentes, e que para dois mundos diferentes retornariam.

— Foi muita ousadia sua invadir meu gabinete, mas isso não a deteve — ele lembrou, com um sorriso nos lá­bios. — Será que não pode me chamar de Griffin enquan­to estamos aqui? Tão poucas pessoas me chamam deste jeito, hoje em dia. Considere um presente de Natal.

Ela não resistiu à súplica.

— Então, deve me chamar de Gwen.

— Muito bem, Gwen.

Seu próprio nome jamais lhe soara tão bem.

O sorriso desapareceu dos lábios do conde quando ele virou-se para a janela e para o céu que se estendia além dela.

— Sempre achei que o primeiro Natal, quando o anjo veio aos pastores, deve ter sido assim. Uma noite fria e límpida, com as estrelas brilhando no céu como pe­quenos diamantes. E a estrela, incrivelmente brilhante, capaz de mostrar o caminho a Belém e também guiar os sábios. Deve ter sido uma visão maravilhosa, aquela estrela. Como algo que Deus guardou dos primeiros dias da criação.

Ele se virou novamente para ela, e foi como se toda a intimidade de poucos instantes atrás houvesse desapare­cido por completo.

— Bill Mervyn e o doutor devem chegar aqui logo de manhã cedo.

Gwen não pôde deixar de se perguntar se não estaria imaginando a decepção na voz dele.

Ela voltou para a lareira, colocando um pouco de dis­tância entre si e o nobre, cuja voz e a presença pareciam ser capazes de jogar sobre ela um feitiço de necessidade e desejo, e uma esperança incontrolável, tola e impossível.

— O tempo tem estado maldi... deveras curioso — ele disse, ao mancar na direção da cadeira do lado oposto da lareira, e se largar nela, mantendo a perna esticada. — Uma tempestade a impediu de deixar minha casa, depois parou apenas tempo o suficiente para virmos até aqui ajudar Teddy. A seguir, o tempo piorou, de modo que não pudemos sair daqui, e agora, eis a noite mais agradável dos últimos meses. Dá até para pensar que a Mãe Natureza está brincando conosco, ou tentando nos manter juntos.

Gwen parecia constrangida. Era uma versão fantasio­sa e tão ridícula quanto seus sentimentos pelo homem sentado diante de si. Tais emoções de nada lhe adianta­riam, e seria melhor que ela tratasse de reprimi-las.

— Acha que Teddy terá problemas permanentes com a perna? — Griffin perguntou.

— Não tenho certeza, mas espero que não.

— Ele teve sorte de ter sido capaz de ajudá-lo.

— Ele teve sorte do pai ter decidido enfrentar a tem­pestade. Se ele tivesse esperado mais...

— Você e Bill Mervyn parecem ser bons amigos — Griffin comentou, brincando com um fio solto no pulso da camisa.

— Ele é um bom homem.

— Talvez deva considerar vê-lo com outros olhos. — Isso não era algo que ela queria escutar, especialmen­te vindo dele.

— Não estou à procura de um marido.

— Pelo menos, não à procura de um com dois filhos.

— À procura de nenhum.

— Não quer se casar? Rejeitou todos os homens que a pediram em casamento?

Ela entrelaçou os dedos no colo.

— Nunca fui pedida em casamento.

— Nunca?

Ele parecia genuinamente chocado.

— Não — ela confessou. — Nunca.

— Decerto algum veterano da Criméia deve ter se apaixonado por sua enfermeira.

— Às vezes isso acontecia, mas nunca comigo.

O conde recostou-se na cadeira e a fitou intensamente.

— Deve ter sido o seu ar de auto-sufíciência. A maioria dos homens gosta de sentir que a mulher precisa dele quan­do se apaixona. Que precisa da ajuda e da proteção dele.

Lembrando-se do que ele lhe dissera no gabinete, ela ergueu a sobrancelha.

— Então, não tem problema um homem querer se sentir necessário, mas quando eu quero, estou desespe­rada para ser amada?

Ele se levantou e apoiou-se na cornija, atiçando o fogo.

— Fui um idiota em dizer aquilo. Estava zangado e queria aborrecê-la. — Ele olhou para ela, e Gwen pôde ver remorso genuíno nos seus olhos. — Eu sinto muito.

Ela também se levantou, fitando-o.

— Você de fato me aborreceu, porque eu realmente quero me sentir necessária. Eu quero ser amada. Mas todo mundo não quer se sentir necessário? Todo mundo não deseja ser amado? Você não quer?

Ele chutou uma tora de madeira, e faíscas subiram pela chaminé.

— Por que outro motivo teria pedido Letitia em ca­samento?

Ela se esquecera da ex-noiva.

— Até mesmo eu, o belo e popular conde de Cwm Rhyss, queria ser amado, e pensava que Letitia me ama­va. O que ela amava era o meu título e meu dinheiro. Suponho que o fato de haver tantas mulheres atrás de mim, e, mesmo assim, ter sido ela quem eu pedi em ca­samento, também deve ter lhe exaltado a vaidade.

Ele soltou um suspiro cansado.

— Certa noite, meus amigos e eu estávamos em uma taverna e alguns deles tentaram me abrir os olhos sobre os motivos mercenários daquela dama. Outros se jun­taram a mim em negar as acusações e defender Letitia. Um lampião foi derrubado. Se não fosse pela bravura do estalajadeiro, eu teria morrido por uma mulher que me abandonou, aparentemente, sem pestanejar.

Escutando sua amargura, Gwen teve vontade de en­volvê-lo com os braços e consolá-lo, mas não ousava fazê-lo, da mesma forma que se recusava a admitir que, se descobrisse que estava permanentemente exilada ali, com ele, não consideraria isso um castigo. Em vez disso, disse simplesmente:

— Fico feliz que não tenha morrido.

— Se eu tivesse, não teria conseguido chegar até Teddy, e seus órfãos não teriam um benfeitor para o Natal.

Não era só por isso que estava contente. No entanto, também não deu voz a este pensamento.

— Sou muito grata pela sua generosidade, meu se­nhor.

— A senhorita disse com toda a sinceridade.

— A emoção é sincera, e vem do fundo do meu cora­ção. E as crianças...

— Possuem a mais passional das campeãs. Quem me dera ter uma assim, para censurar os supostos amigos que me abandonaram.

— Se eles desertaram, não eram seus amigos.

— Sei disso melhor do que ninguém, srta. Davies — ele disse, voltando-se novamente para a lareira. — Aprendi do modo mais difícil que aqueles que achei serem meus amigos não passavam de conhecidos, ou queriam apenas se beneficiar de minha natureza generosa. Eles vinham às minhas festas, minhas reuniões e meus eventos so­ciais, e ficavam muito gratos por meus presentes, mas quando mais precisei deles, fugiram de mim.

— Nenhum deles permaneceu ao seu lado?

— Apenas um. O duque de Barroughby. Mas foi ele quem, acidentalmente, começou o incêndio, de modo que, na minha amargura, eu me recusei a vê-lo. Quando pude pensar com mais clareza, tive certeza de que ele não iria querer me ver. Sendo assim, com a exceção de meus serviçais, estou sozinho.

— Não precisa estar.

Ele ergueu uma das sobrancelhas e, temendo revelar-se por demais, ela apressou-se em completar:

— Teddy e William o aceitam como é. Bill também. Se tentasse, estou certa de que outros fariam o mesmo.

Ele inclinou a cabeça para estudá-la.

— Acha que o mundo poderá eventualmente me ver como um homem e não como uma monstruosidade des­figurada?

— Acho.

Ele inclinou-se para ela.

— A senhorita me vê como um homem?

— Vejo um homem saudável e cheio de vitalidade, com muitos anos de vida pela frente.

Ele sorriu ao estender a mão e lhe acariciar o rosto.

— Tenha cuidado, srta. Davies. Não acho que saiba bem o que está fazendo.

Talvez não soubesse mesmo, mas percebeu que ele es­tava tocando sua face, e que isso fazia com que emoções contraditórias despertassem em seu íntimo — esperança, alegria, medo, desejo.

— Foi maravilhosa com os meninos — ele disse, bai­xinho. — Estou certo de que seus tutelados no orfanato recebem o mesmo cuidado excelente. Estou certo de que a amam por isso.

— Tento ser mais do que apenas uma diretora para as crianças que dependem de mim — ela disse, mal resis­tindo à tentação de virar a cabeça e pressionar os lábios de encontro à palma da mão quente.

— Posso acreditar que é muito mais do que apenas isso — ele retrucou, abaixando a mão. — A senhorita me lembra meu professor favorito em Harrow. Ele era severo, mas justo.

Severa? Ele a considerava severa? No entanto, aque­las palavras eram para ser um elogio, e ela decidiu acei­tá-las como tal.

— Crianças precisam de regras e de orientação.

— E de uma mulher maternal para lhes dar ambos, de modo que as regras não sejam vistas como uma prisão, e a orientação seja apenas mostrar um caminho, e não forçar à conformidade.

Mais uma vez, deveria se sentir lisonjeada, e não... desanimada... por ele a achar maternal.

— A senhorita dará uma excelente mãe. Uma exce­lente esposa.

Ele não fazia ideia de como essas palavras a magoa­vam. Eram golpes em seu coração, pois ele jamais iria querê-la por esposa.

— É pouco provável que um dia me case, e já faço o papel de mãe de inúmeras crianças.

— Mas quer se casar, não quer? E se um jovem pastor se apaixonasse pela senhorita? Ou um charmoso profes­sor de escola lhe pedisse a mão em casamento?

— Acho ambos os casos muito pouco prováveis. E existe uma falha em seus planos fantasiosos.

— Que falha?

— Não sou tão jovem e nem bonita o bastante para atrair nenhum dos dois. E também sou cabeça-dura, per­sistente e pouco feminina, meu senhor. Tais caracterís­ticas me permitiram completar meus estudos e são de grande valia em Saint Bridget, mas não são qualidades que um homem busca em uma mulher. Não, meu senhor, eu me contentarei com minhas crianças órfãs e não vou me iludir com fantasias ridículas.

— Um homem pode aprender a admirar e respeitar a per­sistência e a teimosia, quando o objetivo que persegue é valoroso. Quanto às qualidades que homens supostamente buscam em uma mulher, elas podem ser aceitá­veis apenas se o sujeito quer apenas uma criatura tediosa e conformada, tão obediente e excitante quanto uma bo­neca em tamanho natural. — Ele brincou com um dos galhos sobre a cornija. — Ou está tentando me dizer que torcer para encontrar o amor quando as cartas estão con­tra você seria um desperdício de tempo?

— Sou uma mulher prática, que não perde tempo com sonhos e desejos infantis e tolos.

— Nem mesmo no Natal?

Ela hesitou por um breve instante, antes de responder:

— Não.

— E, no entanto, eu devo ter esperanças de que as pessoas vão me aceitar, a despeito de meu rosto.

— Isso é diferente. Ainda tem muito a oferecer ao mundo.

— E eu acho que tem muito a oferecer ao homem que conseguir conquistar o seu coração. — Ele segurou um dos galhos sobre a cabeça de Gwen, e ela viu que era um ramo de azevinho. — Se a sua teoria é correta, e não sou tão repugnante quanto pensei, então me deixará beijá-la.

Ela corou e olhou para o azevinho. Meu Deus! O que estava acontecendo? Por que isso? Por que naquele lu­gar, com aquele nobre? Por que ela não pôde ter esses sentimentos anos atrás, por um carpinteiro, ou um pe­dreiro, ou um soldado raso?

Seus sentimentos pelo conde estavam destinados a lhe trazer apenas tristeza. Jamais poderiam criar algo dura­douro entre os dois. Independente do que ele dissesse, ou do desejo e das emoções que despertava nela, Gwen sabia que devia esquecê-los. Devia proteger seu coração o melhor que podia.

— Isso não é justo, meu senhor. Eu poderia ter vários motivos para não querer beijá-lo.

— Pois me diga um que não seja a minha cara feia.

— Eu mal o conheço.

Ele sacudiu o ramo de azevinho sobre a cabeça de Gwen.

— Diria que me conhece melhor do que muita gente. — Ela decidiu ser direta, porque parecia não haver outro jeito.

— O senhor é um conde, e eu sou pobre.

— Sou um homem, e você é a mulher mais interes­sante que já conheci. Você me intrigou desde o instante em que invadiu o meu gabinete como um general con­quistador. Já me fartei de mulheres tímidas, afetadas e bobas. Você é direta, franca, inteligente e determinada. Qualquer homem deveria se considerar afortunado de cair em suas boas graças.

Ela se virou.

— Pare de dizer essas coisas, meu senhor.

— Estou dizendo a verdade. — Ele aproximou-se e passou a mão ao redor da cintura dela, deixando o ramo de azevinho cair. — E agora, vou beijá-la.

 

E ele o fez, capturando-lhe os lábios e movimentando os dele com firmeza deliciosa, e deliberada lentidão.

Ela jamais fora beijada, muito menos por um homem que considerava atraente e interessante. As emoções que já sentira antes — felicidade, contentamento e a sensa­ção de ter encontrado o seu lugar — não eram tão inten­sas quando comparadas às emoções maravilhosas que o beijo dele despertava.

Os braços dela o envolveram, puxando-o para perto. Os seios se comprimiram contra a muralha sólida do pei­to do conde, enquanto as mãos dele deslizavam pelas suas costas. Ainda beijando-a, ele soltou-lhe o cabelo e deixou que eles lhe caíssem sobre os ombros.

A língua dele pressionava-lhe os lábios. Instintiva­mente, ela os entreabriu e, quando ele aprofundou o beijo, Gwen sentiu seu corpo se derreter como gelo ao sol.

Durante as longas noites em que passara cuidando de um paciente, ou de uma criança insone, ela sonhara em estar nos braços de um homem que a amasse. Em ser beijada com paixão e desejo. Em não se sentir mais so­zinha, indesejada ou sem o direito de ser amada. Que ainda havia esperança de que um homem gostasse dela como poderia apenas imaginar.

Este homem era a personificação do amado de seus sonhos. Um herói do passado, que voltara à vida apenas por ela.

Uma fantasia.

A realidade se intrometeu como uma rajada de vento invernal. Isto não era diferente das fantasias que costu­mava nutrir nos Natais de sua infância, quando, apesar de sua situação e de todos os Natais anteriores, ela so­nhava em acordar diante de presentes e de um banquete de Natal com ganso assado e molho, doces e pudim. A decepção inevitavelmente vinha em seguida, até que ela aprendeu a não esperar nada.

Também não devia esperar nada dele, com a exceção de mais decepção e sofrimento. Era ridículo esperar que o conde de Cwm Rhyss pudesse realmente amar a diretora de um orfanato em Llanwyllan.

Ela interrompeu o beijo e libertou-se do abraço quente e apaixonado do nobre.

— O que foi?

— Isto é errado — ela disse, dando um passo atrás, reunindo toda a sua determinação para fazer o que era necessário, e não o que, de fato, queria. — Não devía­mos estar nos beijando.

A expressão do rosto do conde tornou-se desconfiada, e o seu olhar... Ela não conseguia encará-lo.

— Então me enganei ao pensar que gostava de mim? — ele perguntou.

— Eu gosto de você. Você é tudo... — ela se interrom­peu, antes que revelasse por demais. Seus sentimentos jamais mudariam o fato de serem de dois mundos dife­rentes, e de que sempre o seriam. — É um homem gentil e generoso.

— E eu acho que é uma mulher fantástica e muito desejável — ele disse, avançando na direção dela.

Gwen afastou-se novamente dele e da tentação que ele representava.

— Aqui, neste lugar, sob estas circunstâncias extra­ordinárias. Mas nós mal nos conhecemos. Acabamos de nos conhecer. — Ela empertigou os ombros e reuniu toda a sua determinação. — Você é um homem solitá­rio que pensou que nenhuma mulher jamais iria querê-lo novamente. Eu lhe mostrei que isso não é verdade. O que está sentindo pode simplesmente ser resultado disso, e nada mais.

— Acha que o que sinto por você é gratidão por não me achar pavoroso?

— Eu não sei o que você está sentindo.

— Só sabe o que não estou. Então, o que você sente por mim? — Ele proferiu a próxima palavra como se ela lhe queimasse a língua. — Pena?

— Não, com certeza não é pena. — Ele a puxou para junto de si.

— Eu lhe garanto, Gwen, que o que sinto por você é bem mais do que gratidão, ou luxúria, ou simples afei­ção. É mais do que já senti por Letitia ou por qualquer outra mulher. Eu a quero em minha vida.

Ah, que Deus me ajude, Gwen queria acreditar nele! Ela queria acreditar que ele a amava, e que o que sentia por ele era o tipo de amor que poderia triunfar sobre qualquer dificuldade e tornar insignificantes as diferenças de posição social dos dois. Mas ainda não era capaz de tamanha fé.

— Solidão e circunstâncias especiais podem fazer as pessoas acreditarem que seus sentimentos são mais profundos do que realmente são. Quando voltarmos para casa as coisas serão diferentes, e logo você também vai se sentir diferente.

— Realmente acredita nisso?

— Já vi oficiais feridos que se imaginavam apaixona­dos por suas enfermeiras. Já os vi se casarem e soube o que sucedeu após voltarem para casa. Longe dos campos de batalha e dos hospitais, nada tinham em comum. Mais de um deles se arrependeu amargamente do que havia feito.

— Neste caso, não podiam estar realmente apaixona­dos.

— E você também não está. É um homem inteligente, que já rodou o mundo. Sabe que tenho razão ao duvidar se o que está acontecendo entre nós durará.

— Não acredita em amor à primeira vista?

— Não, não acredito. Luxúria à primeira vista, atração e tentação à primeira vista, mas não no tipo de amor que durará para sempre.

O olhar intenso do conde enfim titubeou. Ela sentiu-se aliviada e arrependida ao perceber que suas palavras enfim surtiram algum efeito.

— Suas palavras são sinceras — ele disse baixinho. — E, se você tem dúvidas, que escolha tenho, senão du­vidar também. — Ele a fitou interrogativamente. — No entanto, você realmente gosta de mim?

Ela assentiu.

— E sei que sente desejo por mim, como eu sinto por você.

Ela não pôde negar, pois, se o fizesse, estaria men­tindo.

— Sinto, de modo que devo rogar para que se abste­nha de tentar me beijar novamente.

Que olhar que ele lançou na direção dela!

— Posso não ser o mesmo cavalheiro de outrora, srta. Davies, mas ainda não me tornei um grosseirão luxurioso. É claro que respeitarei seus desejos, e também manterei distância. Mas é melhor a senhorita ir para a cama. Está visivelmente exausta. Eu ficarei de olho nos meninos, e a acordarei se houver algo de errado.

Era melhor ele ficar zangado do que fitá-la com olhares vorazes e desejosos. Caso contrário, Gwen po­deria acabar sucumbindo ao desejo que mal conseguia conter.

— Concordarei apenas se me acordar em algumas horas. O senhor também está exausto.

— Não acho que vá dormir esta noite. Tentar controlar meus desejos animalescos primordiais deverá me manter acordado.

Ele parecia estar mais zangado, mais magoado, do que quando falara de Letitia, e isso só serviu para deixá-la ainda mais angustiada.

— Meu senhor... Griffin...

— Vá para a cama, Srta. Davies. E me deixe em paz.

Gwen estava diante da janela quando o sol nasceu, em toda a sua glória rosada e alaranjada, pintando uma linha fina de nuvens no céu. A luz do sol se refletia na neve lá fora, e parecia celestial em seu brilho. A calma pairava no ar, como a esperança ocultando a realidade.

Pois a neve acabaria derretendo, como todos os so­nhos felizes que tivera naquela cabana acabariam desa­parecendo, quando a vida voltasse ao normal.

A mudança já começara. Quando Griffin a acordara no meio da noite, ele não dissera uma só palavra, e ela tam­bém não. A culpa era dela, é claro, mas não podia haver outro jeito. Acreditar em qualquer outra coisa era negar a realidade do mundo, e pensar que a vida poderia ser como um conto de fadas. Sabia muito bem que não era.

O médico logo chegaria, na companhia de Bill Mervyn, e então ela e Griffin seguiriam seus próprios cami­nhos. Pelo menos, Gwen tinha a satisfação de ter ajuda­do Teddy, e tê-lo poupado das consequências fatais de uma fratura tão séria.

Ela escutou Griffin acordando atrás das cortinas, e ca­minhou até a lareira, para verificar como estava Teddy, que ainda dormia.

— Como está o menino, esta manhã? — Griffin per­guntou ao aparecer.

Gwen notou as feições cansadas de Griffin. Ela se em­pertigou, toda a determinação de manter distância desa­parecendo diante da preocupação.

— Está se sentindo mal? — ela perguntou, estenden­do a mão para lhe sentir a temperatura da fronte.

— Não — ele disse, segurando-lhe a mão, e franzindo a testa. — Afaste-se, srta. Davies.

A frustração substituiu a preocupação.

— Qualquer homem de bom senso entenderia como tinha razão no que disse ontem à noite. Qualquer homem que realmente gostasse de mim não insistiria em uma resposta diferente. Eu lhe disse que minha virtude é a única coisa que posso chamar de minha, e não abrirei mão dela por uma paixão que pode ser tão passageira quanto a neve sobre uma pedra quente.

— Srta. Davies? — Teddy chamou baixinho. Gwen forçou-se a pôr de lado a frustração e caminhou até Teddy. Logo percebeu que ele ainda estava sentindo dor. Ignorando Griffin, que estava colocando a chaleira no fogo, ela serviu outra dose de láudano.

Como ela queria que o médico chegasse logo! Que qualquer um chegasse logo e desse um fim à espera pelo inevitável.

— O pai! — William gritou do sótão. — É o pai! Ele está chegando a cavalo!

Por um instante, foi como se o tempo houvesse para­do. Abraçando Teddy, com a colher quase chegando aos lábios do menino, Gwen hesitou. Com o pote de chá nas mãos, Griffin estava imóvel, ao lado da mesa.

O feitiço fora rompido quando William desceu as es­cadas correndo e disparou na direção da porta. Gwen deu o medicamento a Teddy, e Griffin voltou a preparar o chá e a fatiar o que restava do pão.

Bill Mervyn apareceu no vão da porta.

— Como está Teddy? — ele indagou ansiosamente, ao pegar o filho caçula nos braços, sua atenção focaliza­da no outro menino sobre o catre.

— Passando muito bem — Gwen respondeu. — Me­lhor do que poderíamos esperar.

— Graças a Deus! — gritou Bill, correndo até a cama de Teddy, sem se dar ao trabalho de tirar as botas, o casaco ou o chapéu. Ele colocou William no chão e se ajoelhou ao lado do catre.

Pelo canto do olho, Gwen viu Griffín vestindo o so­bretudo e o chapéu de pele de castor.

— Vou cuidar do cavalo — murmurou, saindo da casa.

— Não tenho como agradecê-la o suficiente, srta. Davies! — disse Bill, com a gratidão iluminando-lhe o rosto.

— Não poderia ter vindo se o conde não tivesse me trazido — Gwen disse, mas Bill não escutou.

Estava ocupado demais afastando os cachos escuros da testa do menino ferido.

Apesar do láudano, Teddy abriu os olhos e sorriu debilmente.

— Pai?

— Sim, sou eu, meu menino, meu filho — disse Bill, disfarçadamente enxugando os olhos, com uma das mãos sobre o braço de Teddy e a outra ao redor da cintura de William, que estava ao seu lado. — Aqui estou, e aqui vou ficar.

— Já é Natal?

— Ainda não, filho.

Teddy apertou a mão enluvada do pai.

— Não quero perder o Natal.

Ao observá-los, Gwen foi tomada de uma dor insu­portável, ansiando por algo do qual jamais sentira falta antes — algo que, antes, jamais conhecera para poder sentir falta.

Ela se virou e quase colidiu com Griffin, que havia retornado, e estava imóvel atrás dela. Ainda usando o sobretudo e o chapéu, ele a segurou pelos ombros, para equilibrá-la, depois a fitou nos olhos. Nos dele, Gwen viu uma ânsia que espelhava a sua própria, um desejo que fez seu coração se contorcer, e a esperança que bata­lhara tanto para conquistar, desde que ele a beijara, lutar para se libertar.

Do pátio, veio o som de sinos de trenó.

— Acho que é o médico — Gwen sussurrou.

— É sim — Griffin respondeu, sem desviar os olhos do rosto da moça. — Eu o vi subindo a estrada.

Muito em breve, ela estaria de volta ao orfanato, de volta ao único tipo de lar que pudera conhecer. Griffin a soltou, e virou-se para a porta.

— Eu cuidarei também dos cavalos dele, enquanto conversam sobre o paciente.

Ele saiu, e, instantes depois, o jovial médico de meia-idade, dr. Morgan, com sua valise preta nas mãos, seu bigode, cabelo, e costeletas tão brancas quanto o linho alvo, adentrou a cabana.

— E onde está o jovem que escolheu uma época tão inconveniente para quebrar a perna? — ele perguntou, retirando o casaco e entregando-o a Gwen. — Jones qua­se teve um derrame quando começou a nevar de novo. Devo dizer, que tempinho esquisito!

Bill saiu do caminho, para que o doutor pudesse exa­minar seu filho. Tentando não pensar em Griffin, e nem na volta para o orfanato, Gwen aguardou ansiosamente, torcendo para que houvesse feito tudo certo.

— Uma redução de fratura muito bem-sucedida, srta. Davies — declarou o médico. — Eu mesmo não pode­ria ter feito melhor. Tudo que Teddy .precisa é descanso, ataduras novas e algo para a dor.

— Então, posso voltar para minhas crianças?

— Pode, sim — respondeu o dr. Morgan, ao medir uma colher do líquido de uma garrafa que pegara da valise.

A porta se abriu, e Griffm se deteve para tirar a neve das botas.

— Posso levá-la de volta para Llanwyllan no meu tre­nó — ofereceu o médico.

— Obrigada — disse Gwen. — Muita gentileza de sua parte.

— Visto que isso já está acertado, eu já vou indo — anunciou o conde. — Depois, mandarei Jones lhe en­tregar o cheque para o Natal das crianças, srta. Davies, como prometi.

Ela não podia acreditar que havia esquecido disso. Ele virou-se para ir embora.

— Feliz Natal.

— Feliz Natal — disseram Bill, Teddy e o doutor, si­multaneamente.

— E muito obrigado — acrescentou Bill, com grande fervor.

— Adeus, e Feliz Natal! — William gritou, correndo até a porta e acenando alegremente.

Gwen nada disse.

 

O salão de jantar do orfanato era a imagem de um pandemônio ligeiramente supervisionado. A onda inicial de empolgação já havia passado, e naquele momento, en­quanto as crianças e os funcionários do orfanato terminavam a ceia de Natal, e exaustão começava a se instalar.

Gwen também estava exausta por causa dos preparati­vos de última hora e da reunião de todos os funcionários e crianças para o Plygin, uma procissão antes do alvorecer até a igreja para cantar, seguida da missa de Natal. Ela tentara não ter esperanças de que o conde pudesse estar lá, pois, independente do modo como haviam se despedido, ele não mais seria um recluso.

Ele não viera. A decepção de Gwen fora extrema. Ela receava jamais parar de lamentar ter estado com o conde na cabana de Bill Mervyn, pelas esperanças tolas que isso despertara.

A ausência do conde foi a confirmação de que seus sentimentos por ele eram tolos e inúteis, e ela tivera ra­zão ao lhe dizer que, assim que retornassem a seus res­pectivos lares, ele pensaria de modo diferente.

A campainha do portão externo tocou, alta e insisten­te, acima das vozes das crianças.

— Quem pode ser — perguntou Molly. — Será que não podemos ter nossa ceia de Natal em paz?

Gwen teve de sorrir diante da última palavra. Aquela barulheira alegre não era exatamente o que poderia se chamar de pacífica.

— Eu atendo — ela disse, deixando a mesa. — Pode ser alguém precisando de nossa ajuda.

Não seria a primeira vez que uma criança era deixada na porta deles. Da mesma forma que deixava os cora­ções de alegria, o Natal podia preencher de desespero muitos corações.

Assim que deixou a casa principal, ela se enrolou no xale e atravessou correndo o pátio pavimentado com pedras redondas, tomando cuidado para não escorregar. A maior parte da neve que a isolara na companhia do conde já havia derretido, mas estava frio o bastante para congelar trechos do chão.

Ela abriu a portinhola do portão, e a primeira coisa que viu foi o conhecido focinho negro de um cavalo.

Ele viera. Descera de sua montanha. Griffin... o con­de de Cwm Rhyss... deixara sua mansão e viera até aqui.

Seu coração foi às alturas, até que ela rapidamente o puxou de volta para a terra. Ele não poderia simplesmen­te ter vindo vê-la, ou não teria esperado até hoje.

Ele sequer lhe enviara um bilhete com o cheque de cem libras entregue pelo sr. Jones, como se o sr. Jones estivesse dando uma de Papai Noel, e não o homem que a beijara e dissera gostar dela. Ela enviara ao conde uma breve nota de agradecimento, junto com a capa de velu­do, suas palavras soando formais e distantes até para os próprios ouvidos. Talvez ele quisesse testemunhar com os próprios olhos a felicidade que trouxera às crianças. E, quem sabe ela, de fato, o convencera a se aventurar mais no mundo, a começar pelo orfanato, na companhia de crianças gratas e felizes.

A despeito de seu voto silencioso de agir como se ele não passasse de um benfeitor como outro qualquer em visita, as mãos de Gwen tremeram ao abrir o portão.

Montado em Warlord, ele estava usando seu sobre­tudo e o chapéu de pele de castor, com o cabelo preso para trás, em um rabo de cavalo. A orelha mutilada ainda estava encoberta, mas a cicatriz do rosto estava muito mais visível.

— Feliz Natal, meu senhor — ela disse, sorrindo, e esforçando-se para não deixar transparecer como a che­gada inesperada dele a afetava.

Griffin desmontou e se postou diante dela, a expres­são de seu rosto difícil de ser decifrada devido à fraca luz de fim de tarde.

— Pode até ser para a senhorita, mas para mim, este é o Natal mais infeliz desde o meu acidente.

Ela não sabia como responder.

— Posso entrar, ou devo ficar parado aqui?

— Ah! — ela exclamou, desconcertada. — Por favor, entre. O senhor precisa conhecer as crianças. O senhor as deixou tão felizes com sua generosa contribuição. — Ela acrescentou delicadamente. — E a mim também.

Ele parecia não tê-la escutado. Ou, talvez, não se im­portasse com a gratidão dela.

— Onde posso guardar meu cavalo?

Ela o guiou até o estábulo, onde mantinha três vacas para fornecer leite fresco para as crianças.

— O senhor tem passado bem?

— Já estive melhor.

— Ah? Espero que não tenha se excedido ao me es­coltar até a casa de Bill Mervyn — ela disse, esforçando-se para parecer apenas a enfermeira profissional.

— Fisicamente, estou bem — ele retrucou, conduzin­do o cavalo até a baia vazia. O conde a olhou de cima a baixo. — Suponho que também não tenha tido sequelas de nossa aventura?

— Estou ótima.

Ele abriu o alforje e, de lá de dentro, retirou um em­brulho marrom. Ela se perguntou se não seria um presen­te de Natal, e ficou aborrecida por não ter nada para dar a ele, depois, censurou a própria tolice. Ele jamais lhe daria um presente.

— Não deveria ter devolvido a capa — o conde disse, rispidamente, entregando-lhe o embrulho.

Ela rapidamente entrelaçou as mãos nas costas.

— Não podia ficar com ela, e não posso aceitá-la agora.

— Por que não? — Ele abaixou os olhos escuros. — Precisa de uma capa quente para continuar fazendo o seu trabalho. — Ele a estudou novamente, o que a fez corar desde as raízes dos cabelos até a ponta dos pés. — Também deveria ter mandado que usasse parte do meu dinheiro para lhe comprar um vestido decente.

— Minhas roupas são práticas e duráveis. A capa é luxuosa demais para mim.

A recusa dela não o agradou.

— Se não ficar com ela, vou mandar queimá-la.

— Soube que já ameaçou fazer isso antes, meu se­nhor.

O conde ergueu e, depois, abaixou as sobrancelhas.

— Suponho que a sra. Jones tenha andado falando mais do que devia. —Após fechar a baia, ele se aproxi­mou. — Então, se não quer usar a capa, venda-a.

Gwen não era teimosa a ponto de não aceitar a capa sob tais circunstâncias, de modo que assentiu e aceitou o em­brulho das mãos dele, tomando cuidado para evitar qual­quer contato que fosse com as mãos enluvadas do conde.

— Muito bem.

Virando-se, ela seguiu para a casa principal.

— Lamento não ter nada para lhe dar de presente de Natal.

— É o que veremos — ele disse, em um tom que a fez se esquecer de prestar atenção por onde ia e escorregar em uma poça de gelo.

Duas mãos fortes a seguraram.

— Cuidado, srta. Davies. Não quero que quebre a perna.

Corando, tentando imaginar se alguém dentro da casa não teria visto a cena, ela se soltou das mãos dele.

— Terei mais cuidado — disse, seguindo o seu ca­minho e tentando manter a objetividade no tom de voz.

— As crianças vão gostar muito de vê-lo. Elas têm feito todo tipo de perguntas a seu respeito.

— Têm mesmo? A sra. Jones tem feito todo tipo de perguntas a seu respeito.

E o que ele respondera? A mente dela fervilhou com todas as possibilidades — as boas, as más, as lisonjeiras e as insultuosas.

Eles entraram na casa principal, e ao atravessar o cor­redor caiado, com manchas de umidade nos lugares onde as chuvas e a neve derretida haviam se infiltrado, Gwen pensou que o fato de ainda não ter tido tempo para con­sertar o reboco acabou sendo um algo bom. Afinal, deste modo, ele podia ver por si mesmo como as circunstân­cias dos dois eram diferentes.

O som das crianças foi ficando mais alto à medida que se aproximavam do salão de jantar. Para um homem como Griffin, que não estava acostumado com crianças, deveria parecer que estavam descontroladas.

— Esse barulho é de felicidade — ela disse, a título de explicação.

Já estavam quase lá, quando Griffin se deteve.

— Não adianta — ele disse, com súbita rebeldia. — Não posso fingir que quero ver outras pessoas a não ser você, pelo menos, não antes de dizer por que vim aqui. Será que há algum lugar onde possamos conversar a sós?

A voz insistente da sua consciência prática a alertava de que não deveriam ficar sozinhos. Sua determinação estava titubeando.

— Não acho que isso seria sensato, meu senhor. — Ele lhe segurou a mão, e a fitou nos olhos.

— Por favor?

Se ignorasse a expressão suplicante nos olhos de Griffin, aquilo a assombraria pelo resto da vida.

— Venha comigo.

Ela o conduziu até um pequeno recinto no final do corredor, além do salão de jantar, que lhe servia de escri­tório. Diferente do gabinete do conde, ele era arrumado e sóbrio.

Ela sentou-se atrás da escrivaninha, colocando um obstáculo entre eles.

Griffin postou-se diante dela, com os punhos cerrados ao lado do corpo, como um homem preparando-se para enfrentar a própria destruição.

— Tinha razão em duvidar da força e da longevidade dos sentimentos que brotaram entre nós quando estáva­mos na cabana de Mervyn.

Por que, Meu Deus, por que havia permitido o desa­brochar do menor vestígio de esperança que fosse?

Ele inclinou-se para a frente, e espalmou as mãos so­bre a escrivaninha.

— Mas não tinha razão ao dizer que não poderiam du­rar. Acho que podem, e acho que o que sinto por você é o princípio do amor, senão o próprio amor. Embora eu de fato ache que a ame, e acredito que, pelo menos por algum tempo, você também me amou. Talvez se sinta diferente, agora que está de volta ao orfanato e seus tutelados. Mas não consigo me livrar da esperança de que, se me deixar fazer parte de sua vida, poderemos ser felizes juntos. Será que me concederá, que nos concederá, tal chance?

Era Natal, e ela era novamente uma menininha, fitan­do todos aqueles brinquedos e guloseimas através das vitrines das lojas, ansiando desesperadamente por eles, mas sabendo que, na manhã de Natal, não teria nada de­vido ao que ela era. O que ela ainda era.

— Sei que tudo lhe parece ser possível, meu senhor. O senhor possui riqueza e títulos, poder e influência. Não sou parte desse mundo, jamais poderei ser. Meu traba­lho, minha vida, é aqui, com as crianças órfãs que preci­sam de mim. — Fitando intensamente o rosto do conde, ela lhe estendeu suas mãos calejadas. — Independente do quanto eu deseje que seja diferente, estas não são as mãos de uma dama sofisticada, digna do conde de Cwm Rhyss.

Ele contornou a escrivaninha. Antes que Gwen pudes­se reagir, Griffin segurou-lhe as mãos e as levou aos lá­bios, dando um beijo carinhoso em cada uma das palmas antes de responder.

— Estas são as mãos de uma mulher que conhece o trabalho duro e o sofrimento, e que, com seus esforços, tornou o mundo um lugar melhor.

Seu coração palpitou como as asas de um pássaro engaiolado, mas a gaiola simplesmente não sumiria sem mais nem menos. A gaiola era feita das mais fortes con­venções, e Gwen já havia visto o que acontecia com aqueles que tentavam vergar suas barras.

— A sociedade condenará a nós dois. Você, por se re­baixar, eu pela minha audácia. Dirão que você estava desesperado, e que eu só queria a sua riqueza.

— Quem me disse para ignorar o que as pessoas pen­sam? Por que deveríamos dar atenção aos intolerantes e ignorantes?

Ele pousou as mãos nos ombros dela.

— Ah, Gwen, por favor, não nos negue a chance de descobrir se o que sentimos é verdadeiro e duradouro, só porque você teme o mundo, como eu temia. Você me deu esperança, não de voltar a ser o que eu era, mas de que eu posso ser mais feliz do que jamais sonhei, mesmo antes do acidente, se ao menos você me amar. Por favor, não me prive desta esperança. Ainda não.

Era Natal, e ela recebera o presente mais maravilhoso de todos.

— Quero ter esperança — sussurrou. — Quero acre­ditar que possamos ficar juntos.

— E para o inferno com o resto do mundo?

Ela sorriu através das lágrimas de alegria, fitando o rosto sorridente do conde.

— E para o inferno com o resto do mundo.

Os braços de Griffin se apertaram ao redor da cintura dela, e eles se beijaram, um beijo pleno de alegria e ter­nura, e depois, com crescente desejo, até que ela gentil­mente o afastou.

— Acho melhor pararmos por aqui e nos juntarmos aos outros. Devem estar se perguntando o que aconteceu comigo.

— Suponho que tenha razão — ele disse, com um sor­riso malicioso. — Do contrário, haveria causa para um escândalo em Saint Bridget. — O sorriso glorioso com que ele a agraciou parecia ser capaz de iluminar o recin­to escuro. — De repente, srta. Davies, meu Natal ficou muito feliz.

— De repente, o meu também.

— Tenho esperanças de que o próximo será ainda me­lhor.

Ela se aconchegou nos braços dele, encostando a ca­beça no tórax forte.

— Não vejo como poderia ser mais feliz.

— Eu sei quando poderei dizer que sou mais feliz — ele sussurrou, puxando-a para mais perto de si. — No dia em que aceitar se tornar minha esposa.

Gwen mais uma vez sentiu a pontada da dúvida. Ela ergueu a cabeça para fitá-lo.

— É cedo demais para falarmos disso.

Ele exibiu aquele seu sorriso diabolicamente sedutor.

— Mas não descarta por completo esta possibilidade?

— Não — ela disse, aconchegando-se novamente nos braços dele e se permitindo visualizar a maravilhosa possibilidade. — E, tenho certeza, meu senhor...

— Griffin.

— Meu senhor Griffin, se eu a descartasse por com­pleto, não faria... — ela beijou-lhe a face. — E nem isso... — em seguida, levou os lábios ao queixo do ho­mem. — E, muito menos isso — ela sussurrou, antes de beijá-lo com paixão, desejo e promessa.

— Por todos os santos no céu.... Srta. Davies! — gri­tou Molly.

Sobressaltados, eles se apartaram, e avistaram a jo­vem parada sobre a soleira da porta, com os olhos quase tão grandes e arredondados quanto a travessa de pudim que trazia nas mãos.

— Eu estava... o pudim... e aqui está a senhorita... com... quem é ele?

Gwen perdoou a incoerência de Molly, e sequer co­rou, embora estivesse feliz por Molly ter presenciado o beijo relativamente inocente.

— Este é o conde de Cwm Rhyss. Meu senhor, esta é Molly.

Ele curvou-se elegantemente.

— É um prazer.

A boca de Molly se mexeu, mas nenhum som saiu dela.

— São as cicatrizes, não é? — perguntou Griffin. — São feias, eu sei. Mas, se fizer a gentileza de deixar o pudim, talvez, algum dia, eu a deixe ver as das pernas.

Molly soltou um gritinho, deixou a travessa de pudim cair no chão e desapareceu.

— O que o levou a dizer uma coisa dessas? — per­guntou Gwen ao se curvar para pegar os pedaços da tra­vessa quebrada.

Ele a puxou para si, antes que ela pudesse se abaixar.

— Sem arrependimento nenhum, confesso que queria fazê-la ir embora.

— Estou começando a pensar que as pessoas tinham razão a seu respeito. Você é um homem perverso.

— Neste caso, você precisa retomar seus esforços para emendar meu caráter recluso. Suponho que será uma batalha difícil. Na verdade, acho que vai ter que se casar comigo para poder fazer um trabalho decente.

— Se eu me casar com você, não será para emendá-lo. Será porque o amo. — Ela se esticou para beijá-lo na face marcada. — Feliz Natal, Griffin.

Ele passou os braços ao redor dela.

— E um Natal muito feliz para você, minha querida, meu amor! E rogo a Deus para que compartilhemos mui­tos outros iguais.

E compartilharam.

 

 

                                                                  Margaret Moore

 

 

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