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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS GUERRAS DE TROLLTOOTH / Steve Jackson
AS GUERRAS DE TROLLTOOTH / Steve Jackson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Tudo começou com uma emboscada.

Quando os sanguinários Goblins da Montanha, asseclas de Balthus Dire, realizam o ataque à caravana dos Strongarms, mal percebem as conseqüências dramáticas de suas ações. Essa caravana levava cunnelwort, uma enigmática erva rústica da Allansia Oriental, destinada ao maléfico mago Zharradan Marr! Uma guerra entre duas forças igualmente malignas está para começar.

A medida que o conflito se intensifica, o reino de Salamonis torna-se ameaçado. Um guerreiro da corte, Chadda Darkmane, é convocado para uma perigosa missão. Ele deve, de algum modo, tomar a guerra vantajosa para Salamonis. E também precisa evitar o caos e a matança que um exército invasor traria no Vale do Salgueiro.

As Guerras de Trolltooth seguem a jornada de Darkmane, de Salamonis para - a misteriosa cidade do deserto -, depois para a Torre de Yaztromo, ao sul da Floresta de Darkwood, e finalmente para Kay-Pong, à procura de Zagor, o Feiticeiro da Montanha de Fogo.

Darkmane terá sucesso em sua busca? E quem serão os vitoriosos, os bárbaros de Balthus Dire ou os mortos-vivos de Zharradan Marr? As respostas encontram-se aqui, em As Guerras de Trolltooth.

 

 

 

 

"Goblins! Goblins!" Uma voz soou como um sinal de alerta no meio da escuridão, invadindo a quietude da noite. "Estamos sendo atacados! Tomem posições! Goblins! Emboscada!"

Mas o alerta do capitão dos Strongarms chegou tarde demais. Um segundo depois seu grito silenciou quando um colar de sangue surgiu-lhe na garganta; o enfurecido chefe dos Goblins da Montanha, brandindo um punhal gotejante, despachou-o do cavalo e tomou seu lugar na sela. O violento atacante espumava, gritando com entusiasmo selvagem enquanto segurava as rédeas do cavalo e as puxava brutalmente para um lado. O animal resistiu freneticamente, relinchando e corcoveando, e por um instante os olhos dele encontraram-se com os do Goblin. Então o cavalo aterrorizado virou-se, como seu novo mestre comandara, para encarar a terrível cena de carnificina iluminada pela luz bruxuleante das tochas.

A caravana fora apanhada desprevenida. Trinta e oito Strongarms não eram páreo para a horda histérica de Goblins da Montanha que pulavam sobre eles vinda das falhas rochosas de Paço de Trolltooth. Guinchando e berrando, as criaturas imundas jogavam os Strongarms para fora das montarias e engalfinhavam-se com eles no chão. Lâminas faiscavam; gritos ecoavam de ambos os lados, e a batalha estendeu-se por uma hora inteira.

"Prove sangue! Prove sangue!" gritava Foulblade em cima da montaria do capitão morto. O chefe Goblin empunhou a espada, enterrou os calcanhares nos flancos do cavalo e galopou para o combate. Seu primeiro golpe atingiu bem abaixo do cotovelo um Strongarm desmontado. O humano berrou e viu, horrorizado, seu antebraço caído no chão, ainda empunhando a espada. Com uma gargalhada demente, Foulblade dirigiu-se para seu objetivo: a carroça no centro da caravana.

Lutando desesperadamente para manter sob controle os dois cavalos de carga, Donnag Kannu estava de pé, agarrando as rédeas para mantê-los firmes enquanto eles tentavam libertar-se. Seus Strongarms contratados realizavam uma valente defesa, mantendo os Goblins da Montanha distantes da carroça, mas um a um eles estavam sendo vencidos pelas insanas criaturas. Foi o ataque de Foulblade que finalmente rompeu o equilíbrio, quando sua cimitarra, vermelha de sangue, eliminou mais dois Strongarms.

Donnag Kannu reagiu instantaneamente. Pulou para cima de um dos cavalos de carga e, agarrando-lhe a crina, incitou-o a um galope direto contra o líder Goblin. A criatura pulou, frenética, arrastando com ela o outro cavalo. Mas o segundo cavalo, tendo um líder a seguir, recuperou o passo imediatamente, e a carroça saltou para a frente, ganhando velocidade. Foulblade foi forçado a se desviar para evitar a colisão e segurou o cavalo com rédea curta quando a carroça passou por ele como um raio. Ele trincou os dentes afiados e rosnou furiosamente ao virar-se para continuar a perseguição. Não lhe seria negado o seu prêmio de vitória!

Sua cimitarra atacou novamente, mas desta vez foi o flanco do próprio cavalo que sentiu o golpe. Apesar de exausto, o garanhão aterrorizado deu um relincho agudo e pulou para a frente com vigor renovado, através dos Goblins e Strongarms em combate, para perseguir a carroça. A cimitarra golpeou outra vez, ensangüentando o outro flanco do animal. Ele estava se aproximando da carroça rapidamente!

Segundos depois estavam ambos um ao lado do outro. O Goblin se firmou. Então, com um salto ousado, pulou do cavalo para a carroça. Donnag Kannu olhou em volta com desespero e viu a criatura corpulenta rastejando desajeitadamente sobre a carroça aos solavancos até o assento, onde estavam amarradas as rédeas. Os dedos nodosos agarraram as rédeas e as puxaram. Os cavalos, confusos, reagiram com hesitação, mas seu passo começou a tornar-se mais lento. Uma gargalhada maléfica ecoou da garganta de Foulblade quando ele percebeu que tivera sucesso.

Kannu pensou rápido. Com uma espada curta ele não era páreo para um chefe Goblin totalmente armado. Com ou sem carga, precisava escapar! Instintivamente empunhou a espada e, com um movimento veloz, golpeou as correias do cavalo e esporeou-o. No mesmo instante o couro se partiu e a montaria libertou-se dos arreios que o prendiam à carroça. Enquanto fugia a galope para dentro da noite, Kannu voltou-se para ver o chefe Goblin de pé na carroça, amaldiçoando-o. A criatura poderia ter ganho o prêmio, mas suas ordens eram de não deixar nenhum sobrevivente — seu mestre não ficaria satisfeito. E ele pouco sabia das conseqüências de seu fracasso. Como poderia adivinhar os acontecimentos seguintes?

Quando Foulblade voltou para o local da emboscada, a batalha já terminara. O seu grupo de Goblins fora bem reduzido, mas ainda assim haviam vencido os Strongarms. Corpos mutilados de ambos os lados cobriam a área. Os Goblins sobreviventes recuperavam-se. Sua respiração ofegante, saindo de nariz achatados e bocas abertas, condensava-se no ar frio da noite. Eles rastejavam à toa até seus inimigos sem vida e um ou dois deleitavam-se com carne de cavalo ainda quente. Os membros mais jovens do grupo divertiam-se em atormentar dois Strongarms seriamente feridos que haviam encontrado. Suas espadas silenciariam eventualmente os queixumes dos prisioneiros, mas não antes de eles terem sua diversão.

O chefe Goblin desceu da carroça e caminhou até seu sargento de batalha, Orcleaver.

— Foulblade pego a caravana — anunciou ele corajosamente, batendo nas costas do exausto sargento.

Orcleaver grunhiu como resposta e os dois observaram a cena do combate. Particularmente, Orcleaver não admirava seu superior, mas sabia que ele era o próximo na linha para a posição de chefe, então ele permanecia fiel. Servia a seus propósitos, por enquanto.

— Carroça aqui. Nós olhamos. Ouro!

Eles subiram juntos na carroça e remexeram nas caixas e sacas que a caravana transportava para seu destino, a Allansia Oriental. Muitos outros Goblins vieram juntar-se a eles, mas foram afastados por uma ordem de Foulblade. Se havia ouro nesse carregamento, ele queria dividir o mínimo possível.

—Foulblade! OLHE! — O corpulento sargento deu um passo para trás para que seu chefe olhasse um dos sacos que abrira- Primeiro Foulblade ficou furioso; o saco não continha ouro! Mas quando o aroma do conteúdo chegou até suas narinas, sua expressão tornou-se curiosa.

O saco continha alguma espécie de erva rasteira, seca e em flocos; o odor rico e doce pairou pesadamente no ar sobre o saco aberto. Uma expressão de contentamento tomou conta do rosto de Orcleaver e seus olhos fixaram-se em algum ponto imaginário bem distante do saco. Foulblade sentiu sua própria cabeça flutuando e os barulhos à volta dele diminuíram, sem chegar ao silêncio, mas até um indistinto murmúrio de fundo. Sua boca abriu-se e seus olhos sem foco fitaram, vazios, o saco...

— Chefe! Mestre! Veja! Veja isso! — Um Goblin jovem veio correndo até a carroça, grunhindo excitado e segurando alguma coisa na mão. O ruído metálico de sua cimitarra contra a armadura assustou o cavalo de carga e a carroça pulou para a frente, fazendo com que Foulblade e seu sargento se desequilibrassem. Os dois Goblins foram acordados pelo choque repentino. Levantaram-se e lançaram olhares mal-humorados para o jovem.

O ofegante Goblin parou ao lado da carroça e levantou a mão. — Encontrei isso! — falou ele atabalhoadamente. — Em volta de pescoço humano! Mais em outros! Veja! Pendendo de seu punho fechado estava uma tira de couro. A medida que seus dedos se abriam lentamente os dois Goblins engasgaram com uma única voz.

— Não! Não é possível! — gaguejou Orcleaver. — Olhos dos deuses, NÃO! Mas a evidência estava diante deles. Eles caíram em silêncio ao perceberem o que haviam feito. E tremeram pelas possíveis conseqüências. Pois, na palma suja do Goblin, encontrava-se um medalhão de metal maleável onde estavam escritos dois algarismos - o número "85".

Gotas de suor rolavam pela testa de Donnag Kannu, fazendo-o piscar quando lhe atingiam os olhos. Ele se mexia nervosamente em seu assento, tamborilando os dedos, abrindo e fechando os punhos.

— Meu lorde — gaguejou ele —, infelizmente estávamos em menor número. Eles... eles nos pegaram de surpresa. Havia dezenas deles... Poderíamos ter acampado nos limites das Terras Planas e alcançado o País durante o dia. Diabo! Eu sabia. Eu me amaldiçôo, majestade. Aceitarei minha punição..."

— SILÊNCIO!

A palavra foi dita não em voz alta, mas em um tom esmagador, como se fora para deter um Demônio do Inferno em seu caminho. A voz inflexível ordenou a Kannu que parasse com a choradeira e relatasse detalhadamente os acontecimentos. O líder da caravana estremeceu; ele estava desgostoso consigo mesmo por sua atitude covarde. Lutou desesperadamente contra seu próprio medo. Mas falhara com seu mestre e sabia perfeitamente quais seriam as conseqüências do fracasso. Recompôs-se lentamente. Inspirou profundamente e começou a relatar os fatos que levaram à emboscada.

— Após nossos meses de busca pelas Fenlands, a longa jornada de volta da embocadura do Rio Sardath era bem-vinda. Muitos dos nossos foram mortos na Floresta da Noite, quando fomos atacados por Elfos Negros, mas isso era apenas uma pequena escaramuça — exercício de combate para nossos espadachins. Quando deixamos a floresta, encontramos um acampamento de Strongarms e lá pegamos reforços para o grupo.

— Viajamos pelas Terras Planas por três dias inteiros até alcançarmos as Colinas Moonstone. Era o final da tarde quando chegamos ao Passo. Alguns queriam acampar ali; outros, ansiosos para voltar para suas casas, queriam apressar-nos e insistiam em que seguíssemos adiante pelo Passo de Trolltooth. Os Strongarms decidiram entre si. Eles me serviram bem e eu estava querendo permitir-lhes a última palavra. Mas agora aprendi minha lição. Esses brutamontes são só músculos e nenhum bom senso. A imprudência deles custou-lhes a vida e meu carregamento — vosso carregamento,-meu lorde — e minha missão foi em vão.

— Agora me fale sobre seus atacantes — ordenou a voz. — E você será privado de sua vida se uma única palavra desviar-se da verdade.

— C-claro, meu lorde — tossiu Kannu. — D-Deixe-me ver. Nós devíamos estar na metade do Passo quando as criaturas fedorentas caíram sobre nós. As tochas que carregávamos não nos deram nenhum aviso até eles já estarem sobre nós, jogando meus Strongarms para fora dos cavalos e assassinando-os. Eu fui lançado da carroça quando meus cavalos de carga entraram em pânico. Tentei controlá-los, mas no final fui forçado a montar em um deles porque o chefe deles estava quase sobre mim, soltando seu grito de batalha, balançando sua cimitarra e...

Ele foi interrompido no meio da frase.

— A o quê dele?

— Eh, a cimitarra, senhor.

— Sei. Descreva-me esta criatura.

Kannu puxou pela memória. A imagem do chefe Goblin cavalgando ao lado da carroça estava indelevelmente estampada em sua memória.

— Ele, ah, tem pele escura. Feio como uma bruxa. Pior. Dentes pontiagudos, quebrados na frente. Vestia armadura de placas de metal. Carregava, como já disse, uma cimitarra. E ele parecia não ter uma orelha — não estou seguro — mas o elmo dele estava cortado em volta da orelha. A outra era grande e me lembro de pensar que a cabeça dele parecia torta. É, era isso mesmo. Ele tinha uma orelha a menos.

— Algum dos outros o chamou?

— Chamou-o, meu lorde?

— Sim, idiota, chamou-o! Chamou-o pelo nome!

— Eeh, não, acho que não. Espere! Quando ele passou pelas linhas em minha direção, lembro-me de um dos seus comandados chamá-lo, incitando-o. Seu nome era...

Ele novamente foi cortado no meio da frase. — Foulblade! — A voz rosnou, e então explodiu com tal força que Kannu tremeu visivelmente em sua cadeira. — FOULBLADE! Esse nanico fedorento se atreve a saquear minha caravana. Ele não pode saber. Ele não se atreveria. Ele vai queimar lentamente. Ele...

A medida que o significado do acontecimento tornou-se mais claro, a fúria acalmou-se. Isso não fora uma mera travessura dos Goblins.

A voz falou novamente, mais calmamente desta vez e com autocontrole respeitável: — Não. É óbvio. Esta maquinação veio de uma autoridade superior. De outro modo, eu teria previsto esta emboscada. Foulblade recebe ordens de seu mestre...

Fez-se silêncio no aposento — um silêncio ameaçador. Parecia ressoar nos ouvidos de Kannu, mais alto do que um trovão. Seu coração estava bombeando no peito enquanto ele esperava ansiosamente que seu mestre falasse. Apesar de estar desesperado para quebrar o silêncio, sabia que não devia falar para não perturbar a concentração do mestre.

As pálpebras escuras abriram-se lentamente. Dois brilhantes olhos vermelhos queimaram dentro da mente de Kannu. Incapaz de manter o olhar de seu mestre, seus olhos abaixaram-se e fixaram-se nos dedos intranqüilos, que ainda tamborilavam no colo.

— Compreendo — rosnou a voz, os lábios movendo-se estranhamente, como se Kannu estivesse ouvindo os sons através de algum tipo de aparelho de tradução. — O significado é claro. Devo abandonar minha busca e voltar toda minha atenção para este fato. E devo agir rapidamente.

— Mestre, se eu puder ser de alguma ajuda...

— VÁ! Os olhos abriram-se para enfatizar a ordem. Tremendo visivelmente, Donnag Kannu obedeceu.

Levantou-se atabalhoadamente de sua cadeira e tropeçou para trás, inclinando-se desajeitadamente até a saída. Estava amedrontado, porém aliviado. Seu mestre, preso em pensamentos, não pronunciara seu destino. Ele deveria sair rapidamente antes que a questão de sua punição ocorresse à criatura fantasmagórica diante dele. Suas mãos tocaram na maçaneta da porta às suas costas. Ele a agarrou e virou, abrindo a pesada porta de madeira e pisando no corredor do lado de fora.

Donnag Kannu soltou um longo suspiro. Mas seu alívio teve vida curta. Antes que pudesse fechar a porta, quatro mãos rudes agarraram-no firmemente pelos cotovelos e ombros. O choque o surpreendeu e ele virou-se para ver seus agressores. Olhos vorazes, em rostos com narizes longos de pele cinzenta, fitaram-no impassíveis. Cada um deles portava um chifre na ponta de seu focinho. Guardas Homens-rinocerontes, pensou ele. O mestre não esqueceu minha punição, afinal. Ele voltou-se com uma aparência implorante para a criatura de olhos vermelhos antes de ser levado embora pelo corredor.

O destino dele fora decidido antes mesmo de ele ter entrado no escuro aposento da masmorra. Decidido por um mestre inclemente que não permitia que tais atos de incompetência passassem sem punição.

Zharradan Marr.

— Lá! — Uma zombaria de boas-vindas passou pela face do Goblin quando ele voltou-se para fitar seus companheiros. — Dedo Negro! Ali no alto! Logo ali!

Todos os oito rostos cansados seguiram o gesto de Foulblade. Eles pararam no caminho e observaram; já era difícil seguir a trilha na meia-luz do cair da noite, quanto mais distinguir quaisquer sombras nas redondezas das montanhas. Tudo que podiam ver eram mais afloramentos pontiagudos das Craggen Heights subindo como os dentes de alguma gigantesca armadilha. Eles rosnaram em descrédito.

— Não. LA. Olhem lá.

Apertaram os olhos para ver o que Foulblade apontara. Bem ao longe, uma rocha alta parecia mais regular que as outras; uma haste lisa elevava-se e terminava em uma forma que, desta distância, parecia com um chapéu pontudo de bruxa.

Um por um, eles reconheceram a torre escura.

— Vêem? Lá. Dedo Negro!

Os Goblins da Montanha tinham respeito pela fortaleza. Apesar de pouco saberem sobre ela, sentiam que, de algum modo, ela representava uma força de ordem e poder muito além da compreensão de suas mentes simples. Nas lendas dos Goblins locais, ela era conhecida como "O Dedo Negro", pois para eles isso significava algum tipo de gesto de extremo desafio dirigido às próprias divindades celestiais. Os Goblins admiravam tal audácia: uma verdadeira declaração de caos.

Os risinhos guturais do grupo indicaram uma hora propícia para uma parada na jornada. Após as longas horas de subida infindável pelas Montanhas Craggen, a visão de seu objetivo era dolorosamente bem-vinda. Como um chefe, Foulblade sabia o efeito benéfico que este momento teria na moral deles. Ele gesticulou para que montassem acampamento para a noite.

Meia hora depois, a escuridão desceu sobre o grupo. Os Goblins estavam amontoados em volta de um fogo bruxuleante, investindo furiosamente na carne crua. Orcleaver deu um tapa em um dos Goblins jovens que tentava surrupiar um naco saboroso de carne de um osso de coxa que o sargento de batalha deixara de lado. Dois outros gesticulavam e faziam piadas sobre a bravura de combate deles, e o som de suas gargalhas resfolegantes ecoavam no ar quieto da noite.

Foulblade estava profundamente pensativo, mexendo ausente no que fora deixado de sua orelha direita e olhando fixamente para as chamas dançantes. Os dois Goblins de guarda estavam sentados em sacos e caixas apanhados da caravana. Aqui e ali um barulho distante prendia-lhes a atenção e eles perscrutavam a escuridão sombria com as mãos pousadas sobre as armas. Mas o ar estava calmo. Um a um, os Goblins adormeceram.

Graaauuughh! Eeeeyaaargh!

Os gritos de agonia acordaram o grupo de súbito. Foulblade já estava de pé, com a cimitarra pronta, preparado para combate.

Os guardas da noite gesticulavam excitados na direção de uma área de vegetação rasteira fora da trilha.

— Lá! Orcleaver! Nos arbustos! Venham!

Liderados por seu chefe, os Goblins dispararam na direção dos gritos. Um arbusto farfalhante chamou-lhes a atenção. Pararam, estáticos, olhos arregalados.

Na luz difusa podiam ver apenas as formas lutando no chão, atrás do arbusto. O sargento de batalha deles estava preso em um combate furioso com... alguma coisa.

Parecia que uma sombra de um negro profundo estava envolvendo o seu corpo. Apesar de Orcleaver estar tentando libertar-se ele não podia se livrar da criatura de sombra. O frenético sargento de batalha estava preso em uma rede viva de escuridão, e quanto mais lutava, mais parecia estar-se envolvendo na sombra sem forma. Ele lutava inutilmente contra ela.

Os Goblins da Montanha nunca haviam encontrado uma Sombra Noturna antes. Se o tivessem, teriam percebido com era intítil a luta de seu sargento. Também teriam percebido que a melhor linha de ação seria abandonar o companheiro e deixar a área. No entanto, seus instintos lhes diziam outra coisa — principalmente porque agora Orcleaver emitia sons sufocados enquanto a criatura, envolvendo-o, abraçava-o mortalmente.

Os Goblins dispararam em seu auxílio. Eles agarraram e empurraram a sombra negra inconsistente, mas em vão. O espírito fantasmagórico era meio-sólido, e permanecia envolvendo o sargento. Sua substância escorregava por entre os dedos como líquido fino e oleoso.

— Fogo! gritou Foulblade. — Peguem fogo.

Um dos Goblins foi até o fogo e correu de volta com um galho em chamas. Mas, em sua ânsia, tropeçou em uma pedra, fazendo o galho rolar pelo lado da estrada, onde se apagou. Levantando-se, voltou correndo até o fogo para pegar outro galho.

— Aaaggh! Aaaaakk/ — Os sons de sufocação de Orcleaver estavam se tornando mais fracos. — Oooonvn-mphh! — O estômago dele lançou seu conteúdo sobre a forma escura da criatura de sombra. Só então o jovem Goblin chegou com o galho em chamas.

Foulblade agarrou o galho e segurou-o contra a criatura. Não houve reação a princípio, mas então alguma coisa se agitou. Como se tivesse sido preso pelo anzol de um pescador, a sombra escorregou repentinamente do peito e da cabeça de Orcleaver e pelo chão esgueirou-se para a noite. Em um segundo ela era indistinguível do restante da escuridão noturna.

— O que isso? Onde foi? Orcleaver morto? — Os Goblins matraqueavam nervosamente, aterrorizados pela criatura desconhecida.

Foulblade abaixou-se até o corpo fraco do sargento. - Não morto. Carregue pra lá. - Ele latiu a ordem, tentando trazer um senso de ordem em seu grupo. O tom de sua voz mostrava apenas uma pista do medo que estava sentindo.

Os Goblins carregaram seu companheiro até o fogo e deixaram-no ao lado dele. Foulblade pediu mais madeira, mandando, por segurança, dois Goblins para pegá-la. Eles voltaram e o fogo foi aumentado. O grupo discutiu o incidente por algum tempo, mantendo atenção sobre Orcleaver para descobrir sinais de melhora. Eles finalmente acomodaram-se para dormir novamente, mas primeiro Foulblade certificou-se que a guarda noturna fora aumentada para três.

Acordaram de madrugada e embalaram as coisas, preparando-se para a continuação da viagem. Orcleaver acordou com os outros, reclamando de "dor de cabeça", mas não tão ruim que não pudesse se vestir. Porém, quando os Goblins lhe perguntaram sobre o encontro com a sombra negra, ele simplesmente olhou-se vagamente. Ele simplesmente adormecera e acordara com os outros. Não se lembrava de nenhum incidente durante a noite. Do que estavam falando?

No entanto, os outros notaram uma ligeira mudança no sargento. Ele estava muito mais quieto do que o normal e parecia um pouco perturbado. Quando eles o pressionaram, ele ficou quieto. Deixaram o assunto morrer e continuaram o caminho. Chegaram à Torre Negra no final da tarde.

 

Construída há duas gerações com as pedras do próprio Rochedo Craggen onde foi erguida, a Cidadela do Caos inspirava tanto medo quanto respeito nos corações das criaturas das Montanhas Craggen. As pedras negras foram colocadas no lugar por um exército de criaturas aliciadas pelo feiticeiro Gandor Dire — dizem alguns que com uma pequena ajuda das divindades do mundo interior.

O feiticeiro rico, mas do tipo ermitão, não era um homem mau, mas seu fascínio pouco saudável pelas questões demoníacas preocupava os habitantes de sua cidade natal, Warpstone, que o chamavam de Mago Negro. A hostilidade contínua finalmente forçou-o a partir. Ele, a esposa e o jovem filho viajaram para a norte através das Montanhas Craggen e foi aqui, no Rochedo Craggen, que resolveu construir seu santuário.

A construção foi concluída em tempo espantosamente rápido, mas Gandor ignorou os avisos dos outros com relação à escolha de sua nova moradia. Não somente todos os tipos de perigos e criaturas misteriosas viviam suas existências desventuradas nas Montanhas Craggen, como a própria essência do caos infestava as rochas das montanhas. Como uma doença sinistra, esse espírito do mal parecia infectar todos aqueles que habitavam a área. Gandor Dire pouco sabia que as próprias pedras com que construíra seu santuário iriam por certo sobrepujar sua mente. Lenta e seguramente, como as vis criaturas que eram vizinhas suas, Gandor Dire começou a mudar.

A princípio, tornou-se tolerante com as criaturas do caos; depois, veio a se tornar até mesmo simpático a elas. Ele as convidava a entrar em sua torre, onde realizavam deveres não pronunciáveis e eram recompensadas com moradia, abrigo e a usual moeda de cobre como pagamento. Mas, quanto mais tempo ele morava na Torre Negra, mais ele se tornava como elas.

Quando Gandor morreu, seu filho, Craggen Dire, herdou a cidadela. Tendo passado toda a sua vida na Torre Negra, Craggen era um patife de coração maléfico. Durante sua vida, gastou a maior parte da fortuna de seu pai em dois caprichos: as artes mágicas e seu filho único, Balthus.

Craggen Dire jamais foi um feiticeiro particularmente bem sucedido; talvez fosse mais talhado para uma carreira militar. Mas gastava muitas horas com o jovem Balthus, que veio a tornar-se obcecado pelas artes místicas. Balthus Dire era uma criança excepcionalmente brilhante,, e logo apreendeu tudo o que Craggen poderia lhe ensinar. No início de seus quatorze anos, as habilidades dele haviam ultrapassado as do pai e ele passara a desprezar as limitações do homem mais velho. Balthus finalmente persuadiu — ou melhor, intimou — o pai a enviá-lo a um mestre mais experimentado, que poderia ensinar-lhe o que ele desejava saber. Temendo a fúria de seu próprio filho, Craggen Dire assegurou um lugar para Balthus junto a Volgera Darkstorm na sua escola de rnagia, dele, nas Terras Planas e lá, com o tempo, o conhecimento de Balthus Dire sobre as artes mágicas tornou-se formidável.

Ao retornar da escola de Darkstorm, ele foi recebido de braços abertos pelo pai. Nessa época, porém, já não havia, no coração negro de Balthus, lugar para mera lealdade familiar; ele resolvera dedicar sua vida à procura de poder — a qualquer custo — e nada ficaria em seu caminho. No mesmo momento de seu abraço de boas vindas, as lágrimas nos olhos de seu pai congelaram no rosto quando Balthus deu, em troca de sua saudação, a lâmina de um punhal - rapidamente introduzida entre as costelas de Craggen Dire.

O primeiro requisito para sua nova procura era uma base de poder. A Torre Negra agora era dele.

A princípio, os lacaios da cidadela receberam o novo mestre com suspeita e até mesmo desprezo; como alguém tão jovem poderia se julgar mestre de tal lugar? Dentro de muito pouco tempo, enquanto Balthus tomava o comando com uma crueldade que instilava terror até mesmo em um Bárbaro das Terras Planas, o desprezo deles tornou-se medo servil.

Mas Balthus Dire também era um grande estrategista militar. As tropas de seu pai compunham-se de apenas um pequeno punhado de guardas da Cidadela. Balthus logo percebeu que, sem tropas, não poderia ser um conquistador, e, desde o início, começou a construir suas forças. Ele tornou-se uma lenda viva para as tribos e clãs de Goblins guerreiros e outras criaturas caóticas que faziam a vida nas Montanhas Craggen. Muitos juntaram-se às suas forças por medo das conseqüências caso recusassem, mas a maioria juntou-se a ele porque desejava ser parte desta força crescente de caos, saboreando assim tanto as atrocidades quanto as riquezas que eram os espólios de guerra.


Os ataques iniciais ficaram confinados a pequenas comunidades de criaturas, próximas às Montanhas Craggen. Balthus Dire concentrava-se em desenvolver seus poderes mágicos para fomentar guerras. Ele tornou-se curioso a respeito de um tipo de magia de guerra pouco conhecida, surgida na corte de Lendle Real, em Gallantaria; ela foi levada através de Allansia pelos Ganjees, seres de aparência de espírito, que pouco interesse tinham em sua aplicação, mas eram fascinados por suas origens misteriosas. Esta magia de guerra poderia ser lançada em um inimigo durante combate, com efeitos devastadores. Mas, até então, os Ganjees não haviam transmitido nenhuma informação sobre os segredos de sua arte.

As histórias sobre o crescente poder de Balthus Dire espalhou-se, e logo mais e mais criaturas guerreiras do caos dirigiam-se para a Torre Negra. Ores de narizes arrebatados, Kobolds de corações cruéis, Ogres errantes e seres semelhantes juntaram-se às suas forças, assim como fizeram as tribos de Goblins da Montanha, uma a uma, ansiosa para servir a seu novo e todo-poderoso mestre.

Uma dessas tribos era liderada por Foulblade, que servia bem a seu mestre e tornou-se comandante das tropas de Dire. Mas o próprio Dire mantinha seu desprezo pelos Goblins da Montanha, a quem considerava estúpidos mas nem por isso menos importantes em seus planos de conquista.

Um clarim dissonante anunciou a chegada do chefe dos Goblins da Montanha.

Foulblade tirou da cabeça o pesado elmo e colocou-o cuidadosamente sob o braço. Gesticulando para Orcleaver, ele caminhou orgulhosamente através da porta larga, com seu sargento de batalha seguindo-o a três passos de distância.Entraram em um grande aposento revestido de madeira, adornado com armas exóticas e retratos de ancestrais há muito falecidos. Na ponta mais distante do aposento, sentado atrás de uma escrivaninha robusta, estava Balthus Dire.

O Goblin sentiu a confiança esvair-se. Enquanto caminhava para a frente, podia sentir o próprio coração pulsando nervosamente na presença de seu lorde. Esta reação era compreensível: a figura sentada atrás da mesa era de aparência grandiosa. Um homem poderoso, alto e de ombros largos virou-se na direção dele. A expressão das faces de pedra permaneceram imóveis, mas sob as linhas pesadas das sobrancelhas de Balthus Dire dois olhos brilhantes queimaram fundo dentro do cérebro de Foulblade. O feiticeiro era careca, a não ser por um topete de cabelos longos e nigérrimos que caíam lisos por trás da cabeça até a base de seu colarinho alto. A boca estava fechada em uma linha fina. Nada em sua expressão dizia alguma coisa sobre seu humor.

Um erro, um ato descortês, pensou o Goblin, apesar de ser em uma linguagem Goblin mais simples, e ele irá tirar minha vida como punição.

Balthus Dire tinha bastante consciência do efeito que sua presença causava em seus asseclas. Em uma idade bem jovem ele percebera que tantos os humanos quanto as criaturas não-humanas quase que instintivamente conscientizavam-se de sua posição na hierarquia social da vida. Intrigado por sua constatação, ele descobrira o que tornava um homem inferior aos olhos de outro. Ele observara e lera. E agora, era um mestre na arte de impor sua vontade a outros.

Foulblade inclinou-se ao chão diante de seu mestre e gesticulou para que os outros Goblins trouxessem os sacos e caixotes obtidos durante a emboscada no Passo de Trolltooth.

— Sua missão foi bem sucedida? Você trouxe a cunnelwort?

As palavras de Dire ecoaram nos ouvidos de Foulblade. Ele lutou para pronunciar uma resposta, mas seu cérebro vacilante tremeu, incapaz de fornecer-lhe sequer uma única frase. Ele assentiu rapidamente, foi até um dos sacos e abriu-o bem, dobrando as bordas para longe da fragrância adocicada da erva.

Balthus Dire foi até a gaveta de sua mesa, pegou um pequeno recipiente de líquido e deu três provadas cuidadosas. Aguardou alguns instantes para que a poção tivesse efeito e então ficou de pé. Caminhou até o saco e mergulhou a mão dentro da erva seca, esfregando-a entre as palmas. Inspirou profundamente e seus olhos se fecharam lentamente.

— Bom trabalho, Foulblade. Bom trabalho — disse ele, e seus lábios levantaram-se quase num sorriso. — Perdas?

— Poucas. Não muitas. O chefe Goblin deu de ombros.

Dire sabia que isso podia significar qualquer coisa entre dez e quarenta. Goblins não sabiam contar. Ele assentiu.

— Sobreviventes?"

Foulblade tossiu e revirou o pé nervosamente. — Matamos todos. Exceto...

— EXCETO? — A ira de Dire explodiu e a boca do Goblin abriu-se em silêncio. Ele estava petrificado, preso, impotente diante do olhar glacial de seu mestre.

Finalmente Foulblade contou toda a história da emboscada e da perseguição, implorando por perdão enquanto explicava como o condutor da carroça fugira em meio à escuridão. Mas não poderia haver clemência, pois Dire tinha apenas uma regra para governar. Aqueles que o serviam bem sobreviviam; aqueles que lhe falhassem pereciam. Quando suas desculpas findaram-se, Foulblade foi ladeado por dois guardas e escoltado para fora do aposento.

Orcleaver estivera ouvindo e observando com a mesma estranha indiferença que o vinham caracterizando desde seu encontro com a Sombra Noturna. Quando os olhos de Dire caíram sobre ele, Orcleaver tirou a mão de dentro da túnica. - Veja isto. - Ele segurava o medalhão de latão que o jovem Goblin lhe dera. — Nós humanos. Em volta do pescoço.

Balthus Dire agarrou o medalhão e fitou-o, de olhos arregalados. Ele olhou de volta para Orcleaver rapidamente. - Vá, Orcleaver - ordenou. - Deixe-me agora.

Orcleaver voltou-se despreocupadamente para deixar o aposento.

Balthus Dire acrescentou: — E você fica no lugar de seu chefe com suas criaturas. Você será o comandante dos Goblins. Assim ordeno.

Orcleaver permitiu-se um sorriso secreto de satisfação.

Enquanto o sargento Goblin virava-se, relaxado, e partia, Dire ponderava sobre a atitude do Goblin; ele conhecia Orcleaver há algum tempo, mas este agora não possuía nada dos movimentos vivos e precisos que traíam seu passado militar. Suas maneiras pareciam quase despreocupadas... Mas Dire logo dissipou todos os pensamentos sobre o Goblin — a questão atual era muito mais grave. Olhou para o medalhão e trincou os dentes, concentrado. Se ele soubesse sobre isso jamais teria ordenado uma emboscada. O ataque à caravana seria vingado...

Houvera um sobrevivente... Esse sobrevivente estaria relatando tudo a seu mestre... Um lorde cujas tropas usavam medalhões numerados.

Os legionários de Zharradan Marr.

A guerra começara.

 

— De pé, Darkmane. — O rei fitou a pessoa que ajoelhava-se diante dele. Hmm, pensou ele, promissor. Este jovem oficial é certamente talhado para a missão. Talvez ainda um pouco inexperiente, mas, fornecidas as oportunidades certas, o treinamento correto... Se a mente dele for tão penetrante quanto a largura de seus ombros... Hmm. Mas ele terá que fazer alguma coisa quanto a sua aparência. Mais parece um bárbaro das Terras Planas do que um cavaleiro da corte...

Ele observava enquanto o topete de cabelos negros desgrenhados era afastado para revelar o rosto inflexível da Chadda Darkmane. Os olhos, sem pestanejar, fitavam o olhar do Rei Salamon com uma expressão autoconfiante quase irreverente. Não importava qual fosse a missão que o rei lhe destinasse, ele estava determinado a ser bem-sucedido. Esta era a chance de ele mostrar seu valor, de aumentar seu Amonour, sua reputação em Salamonis.

Darkmane colocou a mão sobre os joelhos e ergueu-se até ficar de pé, enquanto sua armadura militar rangia nas articulações. Alto, ele permaneceu diante de Salamon. Como uma águia, pensou o rei. Ombros largos acentuados por uma armadura grande, cintura fina, expressão solene e olhos inteligentes. Ele segurava o elmo sob o braço esquerdo e sua mão direita pousava casualmente sobre o punho da espada. Um líder nato de homens. Mas havia alguma coisa nele que fazia com que o rei se sentisse desconfortável. Ele não seria um pouco arrogante demais? Não seria jovem demais para confiar-lhe uma missão de tal importância? Ele era de confiança? Ou seria apenas sua aparência desalinhada que não agradava Salamon?

Os Três Que Tudo Vêem nunca lhe haviam falhado antes em seu julgamento. Eles o haviam selecionado para a missão do rei entre um sem -número de candidatos. Apesar de estar em serviço do exército de Salamonis há pouco tempo, ele avançara de posto rapidamente e se destacara nas missões de treinamento. Quando suas tropas tiveram oportunidades de lidar com distúrbios populares, sempre lidaram com o problema de maneira rápida e eficaz, mas nunca com força bruta.

— Você foi convocado devido ao conselho de meus sábios leais, os Três Que Tudo Vêem — iniciou o rei. — A opinião deles é que esta missão é somente para um membro da corte de Salamonis que seja desconhecido: um que possa cruzar Allansia sem levantar suspeitas; um que tenha o vigor para completar o objetivo que lhe for dado, e um que venha a ganhar muito em Amonour em uma missão externa bem-sucedido.

Com estas palavras finais, Darkmane levantou uma sobrancelha. É que a aristocracia de Salamonis não era baseada em laços de família ou mesmo em riquezas e bens. Todo isso era secundário diante da reputação de um homem — seu Amonour. O povo de Salamonis adorava ouvir estórias de grandes aventureiros que enfrentavam criaturas ferozes, descobriam uma fortuna em jóias ou desafiavam as forças do mal. Além do mais, a posição de uma pessoa na sociedade era determinada abertamente pela reputação que conseguisse criar para si mesma. Se, durante toda sua vida, um homem trabalhasse dura nos campos, em seu ofício ou até mesmo no círculo da corte e jamais deixasse a família para procurar aventuras, então o Amonour dele — e seu status — seriam baixos. Por outro lado, se me-nestréis errantes cantassem canções sobre suas façanhas brilhantes, então ele certamente garantiria um lugar à Grande Mesa dos Cavaleiros do Rei Salamon. Darkmane apreciava a oportunidade de aumentar seu Amonour.

O rei continuou: — Chegou-me ao conhecimento a aproximação de uma tempestade. A tempestade propriamente dita é de pouca consideração. Apesar de milhares morrerem enquanto ela dominar as montanhas do caos, Salamonis sentirá pouco efeito até que ela tenha terminado. E a calmaria após a tempestade que me preocupa.

— Esta terra é amaldiçoada com duas encarnações do mal, ambas criados por aquele fedorento necromante das Terras Planas, Volgera Darkstorm. Ele recebeu o que merecia por passar o seu conhecimento oculto para a próxima geração ao ser assassinado por seus pupilos, mas não antes de terem assimilado o conhecimento dele. Os nomes lhe serão familiares: Balthus Dire e Zharradan Marr.

Darkmane assentiu: Esses nomes eram bem conhecidos e igualmente desprezados em Salamonis.

O Rei Salamon continuou: — Esses dois são amaldiçoados, e habitam em suas regiões obscuras. Durante anos eles estiveram construindo suas bases de poder: Dire ao sul, nas Montanhas Craggen e Marr ao norte, nas terras próximas a Coven. Durante anos eles estiveram contentes em evitar um confronto entre si. Até agora. As nuvens estão se agrupando e a tempestade deve desabar.

— É irrelevante distribuir culpas — este conflito estava por acontecer. No entanto, gostemos ou não, estamos no meio. Devemos nos prevenir durante o decorrer desta guerra. Se um dos lados ganhar a batalha e um dos oponentes for morto, todo o território entre o Rochedo Craggen e o Lodaçal serão reclamados pelo vencedor. A princípio, nossa presença em Salamonis será um aborrecimento, depois se tornará um espinho na pele daquele que triunfar; será apenas uma questão de tempo até que Salamonis entre em guerra. E não posso dizer com certeza que nossas corajosas tropas serão capazes de defender-se contra um tal feiticeiro todo-poderoso, auxiliado por seus combativos exércitos do caos.

— Então chegamos ao seu papel, jovem Chadda Darkmane. — O rei olhou novamente para ele. — Sua missão é a seguinte: você deve encontrar um meio de permitir-nos algum benefício com esta guerra — para evitar o inevitável ataque sobre Salamonis.

Houve silêncio enquanto os dois homens se encaravam. Eles se fitavam nos olhos. O silêncio continuava. No grande salão, o séqüito real começou a se entreolhar, nervoso. Este era o momento para Darkmane falar, aceitar sua missão e agradecer ao rei. Seu comportamento era acintoso! Todos os olhos estavam voltados para a figura jovem e de cabelos desgrenhados. As mandíbulas duras dele abriram-se lentamente.

— Vossa majestade... — A voz profunda ecoou pelo salão. — Eu aceito sua missão. Será minha a honra de servi-lo. E de servir ao povo de Salamonis. Partirei em dois dias. Nesse meio tempo, devo permanecer aqui para fazer os preparativos. Preciso de um quarto e aposentos pessoais dignos de um membro de sua corte, à qual me juntarei. E também de um criado, um que faça o que lhe disser e a quem não seja necessário repetir uma ordem.

Palavras entrecortadas vinham da audiência. Quem era esse jovem iniciante para falar de tal modo com o rei de Salamonis? Tal arrogância não poderia passar sem punição. Mas, no momento, ele estava mais uma vez preso ao olhar do rei. Foi Salamon quem falou desta vez.

— Meu rapaz — iniciou de um jeito calmo, quase paternal. — Você ainda precisa aprender muito sobre a etiqueta palaciana antes de erguer-se à nobreza que tanto aspira. Mas você possui coragem e determinação. E não desperdiçava palavras. Você terá de mim o que pede. Mas deve me pagar com sucesso. Você concorda?

Darkmane fez que sim. Ele não falharia. Ele se arrependia de seus modos bruscos diante de seu soberano, mas tanto sua educação quanto seu orgulho evitaram que ele modificasse seu jeito. Ele pouco sabia e ainda menos se importava com a "etiqueta palaciana". Fora-lhe pedido que realizasse uma missão. Ele concordara. O que mais restava para ser discutido?

Ele deu meia-volta e caminhou em passadas largas na direção da porta. Mais comentários elevaram-se da multidão. O rei não lhe dera permissão para partir. Quanto atrevimento! Como Salamon reagiria a esse insulto?

Mas o rei estava preso em pensamentos enquanto observava a figura solene caminhar para longe dele. Os Três Que Tudo Vêem haviam feito a escolha certa? Este Chadda Darkmane possuía as qualidades necessárias para completar uma missão de tal importância?

Salamon acomodou-se novamente em sua cadeira. Quando a porta fechou-se atrás de Darkmane, seus dedos cocaram distraidamente a barba elegantemente aparada que lhe adornava o queixo quadrado.

Seus pensamentos finalmente voltaram para o assunto imediato. - O próximo! - ordenou ele.

Um arauto em trajes vistosos deu um passo adiante.

— Vossa majestade, deixe-me apresentá-lo Vignor, um mercador de Karabnab, na distante Ruddlestone. Ele gostaria de lhe falar sobre a questão da safra de shaggle.

Mais um, grunhiu Salamon para si mesmo. Nessa época do ano sempre havia inúmeros mercadores esperançosos do Velho Mundo e de Khul que vinham a Salamonis tentar, desesperadamente, persuadir o rei a partilhar um pouco de sua shaggle — uma erva medicinal que promovia a cura rápida de ferimentos — em troca de peles de urso-gambá, ou alguma coisa igualmente inútil. Ele permitia audiências a esses mercadores somente por cortesia. Nenhum deles jamais o persuadira a repartir a shaggle.

O arauto curvou-se profundamente e a porta abriu-se para admitir a entrada de um homem gorducho e de aparência dúbia, vestido em túnicas de seda azul. Ele estava carregado de jóias — um hábito que Salamon achava censurável nos homens — para indicar ao rei sua riqueza e prestígio. O homem gordo suava; ele forçou um sorriso entre dentes enquanto se curvava diante do assento de Salamon.

— Vossa alteza. Vossa Majestade... — iniciou ele, com as faces coradas pelo esforço de se curvar —, vim para fazer-lhe uma proposta. Na verdade, uma proposta tão generosa que nem mesmo eu posso compreender como meus colegas de profissão conseguiram formulá-la. Eh, posso levantar agora, majestade? Arrependo-me de ter que perguntar-lhe isso, mas minha saúde atualmente é fraca. Muito trabalho, de acordo com meu médico - mas, o que sabem os médicos, não é mesmo? Muito obrigado. E agora, onde eu estava? Ah, sim, minha proposta. Eu sei como é frio na Allansia Setentrional durante a estação de inverno. Tenho visto sua gente amontoada em volta das lareiras, todos trêmulos, incapazes de deixarem suas cabanas. Tenho exatamente o que precisa para diminuir-lhes o sofrimento, e asseguro a Vossa Majestade que será uma troca justa por sua shaggle. Vossa Majestade jamais ficará tão aquecido como quando estiver usando uma pele de Urso-gambá...

 

Após ter partido a última pessoa a fazer-lhe petição, Salamon soltou um pesado suspiro. Sozinho em sua câmara, seus pensamentos voltaram-se para o homem estranho e sem modos a quem enviara para a missão, que, indubitavelmente, era a mais importante de sua vida. Poderia ele confiar cegamente nesse personagem enigmático? Ou a ambição desse Darkmane o motivava em outra direção? Se ele próprio, Salamon, fosse trinta anos mais jovem, realizaria essa missão. Mas não, deveria ser um salamoniano desconhecido. E ele confiava na sabedoria dos Três Que Tudo Vêem. E agora, o que poderia fazer para assegurar a lealdade contínua de Darkmane?

Seus olhos se estreitaram e ele lentamente assentiu para si mesmo. O Rei Salamon tinha um plano.

 

Ouviu-se uma batida na porta.

Darkmane estava perdido em pensamentos, olhando pela janela, para a distante Floresta de Yore.

— Entre! — ele finalmente retrucou.

A porta abriu-se para revelar uma figura magra, com cerca de talvez um metro e meio. Apesar de estar trajando roupas coloridas da corte, essa criatura certamente não era humana. Um Elfo? Não, a pele era escura demais e o rosto largo demais. Mas definitivamente parecido com um Elfo, com olhos amendoados e grandes orelhas pontudas. Um Elfo Negro? Não, a cabeça era lisa e o rosto com feições parecidas com as de um bebê, apesar do nariz ser um pouco menor do que o restante de suas feições.

Darkmane jamais encontrara um Chervah antes. Ele observou enquanto o Chervah entrou no aposento. Os passos dele eram saltitantes e seus olhos moviam-se de um lado para outro. Havia alguma coisa de cômica naquela pequena criatura enquanto ele dava cada passo com as pernas finas, a cabeça redonda balançando como uma bola de criança flutuando no mar.

— O senhor pediu um criado, meu lorde. Ele sou eu. Meu nome é Sroonagh Monnow Pirrashatha. Sugiro que achará mais fácil chamar-me de "Chervah", já que esta é a minha raça. Eu não me ofenderei caso deseje me chamar assim, apesar de que o senhor, provavelmente, ficaria ofendido se eu o chamasse de "humano". Esse costume é comum entre nossa gente quando estamos em terras estrangeiras. Temos orgulho de nossa gente, como pode ver. — Sua voz era aguda, mas possuía um certo tom musical que Darkmane achou curioso.

A pequena criatura continuou: — Vejo que minha aparência o confunde. Sou da cidade de Rimon, em Arantis. Toda nossa gente é parecida comigo — ou melhor, eu sou parecido com eles. Estava a bordo de um veleiro a caminho do Velho Mundo, a menos de dois dias de distância de Rimon, quando um diabo de vento pegou nosso navio. — A expressão do Chervah entristeceu-se enquanto ele relembrava o acontecido. — Por um dia e uma noite lutamos contra o vento enquanto esse demônio pegava o navio e o lançava de um lado para outro, assim como uma pessoa forte joga uma pequena bola de uma mão para a outra. Quando ele terminou conosco, havia poucos sobreviventes. Eu era um deles. Corremos de volta para Allansia e encontramos a costa próxima à Bahia das Ostras. Minhas viagens trouxeram-me para o interior até Salamonis, onde permaneci desde então. Estou feliz em minha nova terra — e com minha nova posição na vida. Foi sugerido de que eu seria uma escolha apropriada como seu criado durante sua estada em Salamonis."

Darkmane soltou um grunhido incontido. Ele não estava particularmente interessado em ouvir a história da vida da criaturinha. Mas, uma vez que sua linha de pensamento já havia sido perturbada, talvez agora fosse uma boa hora para comer.

— Muito bem, criado... Chervah. E hora da minha refeição. Você me trará...

— Perdoe-me, sire — interrompeu a pequena criatura. — Eu antecipei sua fome. Eis aqui minha própria seleção de alimentos nutritivos, especialmente escolhidos para aumentar sua energia e prepará-lo para a jornada que o aguarda.

Ele empurrou um carrinho de servir sobre o qual estava uma coleção de pratos frios, a maioria vegetais. Darkmane olhou para a comida com desdém.

Pressentindo a desaprovação dele, o Chervah explicou apressadamente:

— Sire, se me permitir eu explico. Deve começar com um prato de folhas de planta-tigre, essas aqui. O senhor as achará bem mastigáveis e de sabor não de todo ruim. Folhas de planta-tigre contêm uma infinidade de elementos bons para aumentar sua força e energia.

Há um ditado do lugar donde vim que diz:

' 'Se amanhã deves

combater,

Deves esta noite três folhas

de tigre comer."

Darkmane olhou para as três folhas finas e alaranjadas que estavam sobre o prato e franziu as sobrancelhas.

O Chervah continuou: — Eu lhe peço, Sire, para experimentar essas folhas saborosas. Então o senhor deve bebericar este chá de erva do Vale. Com toda a devida modéstia, eu me orgulho de minha habilidade em preparar um bom chá. De fato, quando primeiro fui lançado à costa de Allansia, uma das minhas maiores tristezas era não poder fazer meus chás, já que as ervas locais me eram desconhecidas. Porém, finalmente passei a conhecer as ervas desta região. As melhores ervas crescem no Vale de Willow. Este chá é preparado com elas. Por favor — veja como o prefere.

— Então o senhor poderia provar meu Guisado Salamon — dei-lhe este nome por causa do próprio rei, pois o considero minha melhor criação. Mas, na verdade, os ingredientes são bastante simples; quaisquer vegetais podem ser acrescentados. Seu segredo é o caldo especialmente condimentado que...

— BASTA! — O Chervah foi cortado no meio de uma frase por uma explosão furiosa de Darkmane. — Criado, guarde sua comida de coelho para os camponeses. Eu não comerei nada disso. Vá. Traga-me pão, cerveja e um pernil de carneiro assado.

O queixo do Chervah caiu e suas sobrancelhas finas levantaram-se com uma expressão magoada e aflita. Seu novo mestre estava descontente com sua culinária! Ele gaguejou uma desculpa: — M-m-mas é claro, sire. Um milhão de desculpas, sire. N-nesse, eh... nesse instante. — Ele curvou-se rapidamente e deixou o aposento, olhando amedrontado e desanimado para a explosão de mau-humor de seu novo mestre.

Imbecil! pensou Darkmane. Burro, tagarela imbecil. Será que eu pareço ser do tipo que foi nutrido com nozes e frutas? Ele deu uma olhadela para o carrinho de servir. As folhas de planta-tigre. E isso — o que era — chá de salgueiro? Ele então percebeu como a comida fora servida delicada e deliberadamente, com guarnições e pequeninas frutas coloridas arranjadas aqui e ali para tornar agradável a aparência da comida. Darkmane franziu o cenho. A pequena criatura fizera um certo esforço. Teria ele, de alguma maneira, sido brusco com o Chervah?

Ele caminhou até o carrinho de servir e pegou uma folha de planta-tigre do prato. Segurando-a pelo talo, girou-a na mão. A pesada folha caiu. Ele a levou até o nariz e cheirou-a. O cheiro era curioso — de algum modo parecido com o de amendoins, mas com um odor ligeiramente doce também. Lembrou-se do verso da criatura: "Se você combater amanhã, coma três folhas hoje, ou algo parecido — Darkmane jamais tivera jeito para a poesia.

Mordiscou a pontinha da folha. A textura era mastigável e esponjosa, e o sabor doce de amendoim não era de todo mau. Pegou um pedaço maior e o pôs na boca por inteiro, depois sentando-se na cama para apreciar o sabor.

Amanhã, pensou, deveria acordar cedo e visitar seu amigo, Calorne Manitus, o recenseador. Pois, para a jornada que planejara, ele precisaria de companhia; um grupo de quatro seria suficiente. No entanto, sendo uma pessoa solitária, Darkmane tivera pouco contato com outras pessoas em Salamonis; ele esperava que seu amigo pudesse ajudá-lo. Levantou-se da cama e, sem dar conta, pegou outra folha de planta-tigre e mordiscou-a, preso em pensamentos.

Nesse instante, houve uma batida na porta. Ele retornou de suas cogitações devolveu a folha ao prato e abriu a porta. O criado magricela chegara novamente, desta vez com uma boa refeição. De cabeça baixa, o Chervah empurrou o novo carrinho de servir para dentro do aposento.

— Devo deixar a outra comida, sire? Talvez o senhor se sinta inclinado a comê-la mais tarde? — perguntou ele, esperançoso.

— Não - respondeu Darkmane firmemente. — Leve-a embora.

A criaturinha suspirou e segurou o primeiro carrinho. Ele trabalhara arduamente para preparar a comida vegetariana, e tudo o que conseguira fora aborrecer seu mestre. E seus pratos seriam muito mais nutritivos do que o pernil assado e o pão que Darkmane pedira. Ele empurrou o carrinho na direção da porta. Notou, então, as folhas de planta-tigre que estavam faltando.

Um pequeno sorriso particular passou pelo rosto do Chervah. Uma mordida era suficiente para provar as folhas; somente alguém que gostara do sabor comeria uma folha e meia.

No dia seguinte, Darkmane acordou pouco depois do sol nascer. Aos pés de sua cama ele encontrou roupas novas, colocadas cuidadosamente para ele, para o novo dia. Seu criado estivera no quarto durante a noite. Ele até mesmo antecipara a preferência pouco comum de Darkmane por roupas escuras, deixando assim um pesado par de culotes de montaria negros e um blusão acolchoado negro.

Após se vestir, Darkmane saiu do quarto, desceu as escadas e entrou no pátio. A bomba d'água próxima ao poço ficava no lado mais distante.

Uma voz aguda chamou-lhe a atenção quando se aproximava da bomba para lavar-se: — Sire! Por favor, permita-me. — Era o Chervah, ofegando pesadamente enquanto trotava atrás de Darkmane. — O senhor tem apenas que pedir e eu lhe levarei uma bacia de água para seus aposentos. Esses demônios do sono devem ter pego minha alma por mais um segundo, já que não o ouvi levantar-se. Minhas desculpas, sire. Por favor. Eu lhe levarei água para seu banho. Volte a seus aposentos.

— Não faça tanto rebuliço, Chervah. — Darkmane forçou um sorriso. A criaturinha, pega desprevenida, agora estava frustrada e ainda colocava a túnica colorida. Além do mais, ele não tinha percebido que uma das mangas estava voltada para dentro e o braço direito dele estava fazendo movimentos cômicos - como um cão com carrapatos — enquanto tentava encontrar, inutilmente, a manga. — Você volta para o quarto. Arrume meu café da manhã. Prefiro me lavar na água de bomba, fresca e fria, ao ar livre. Acalme-se, vista sua túnica e leve-me a comida para o quarto. Mas nada de vegetais. Mais pão. E três ovos.

O Chervah virou-se e correu ansioso na direção da cozinha. Darkmane voltou-se para a bomba e moveu a manivela até que a água começasse a fluir; ele jogou um pouco d'água sobre a cabeça. A água fria era um choque bem-vindo. Colocou as mãos em concha para pegar mais água, jogou novamente na cara e espantou o sono dos olhos.

Quando abriu os olhos e olhou para cima, descobriu-se fitando o rosto de uma mulher de pele bonita, vestida em túnicas coloridas. Dando um passo atrás devido à aproximação silenciosa da mulher, Darkmane se desequilibrou. Ele abriu a boca para falar, mas a mulher levantou o dedo e colocou-o sobre os lábios dele. Ela lhe sorriu, e então abaixou-se para pegar água que fluía da bomba. Darkmane pegou a manivela e girou-a para ela. Ele observava enquanto os dedos longos dela formavam uma delicada concha sob a água jorrante. Ela mexeu a cabeça para a esquerda e para a direita para que os longos cabelos não caíssem sobre o rosto. Suas roupas eram leves e coloridas; ela poderia ser uma artista — talvez uma dançarina. Ou talvez uma das damas de companhia da própria rainha.

A água molhou-lhe o rosto e ela abriu lentamente as pálpebras, fitando-o diretamente nos olhos. Por um instante o tempo ficou suspenso enquanto eles ficaram de olhar preso um no outro. Então ela virou-se e partiu.

Darkmane observou-a partir. Os pés ligeiros, vestidos em chinelos delicados, pareciam carregá-la, voando, através do pátio. Ele olhava petrificado o movimento dos quadris, o jeito como a brisa soprava gentilmente nos seus cabelos. Ele pegou ar para chamar por ela, mas decidiu não fazê-lo e sim voltar para seus aposentos.

Quem era essa bela criatura? ele se perguntou.

Como ordenado, o Chervah trouxe-lhe pão e ovos. Mas ele também trouxe um pouco de chá de ervas. Ele observava, contente, enquanto Darkmane, com a mente em outras coisas, bebia o chá. Essa bebida será para ele melhor do que outra beberagem, pensava o Chervah enquanto se movia em volta do mestre, arrumando o aposento.

— E agora nós nos vamos — finalmente anunciou Darkmane. — Precisamos encontrar Calorne Manitus, o recenseador desta região de Allansia. Para meus planos precisarei de mais mãos — mais cabeças. Manitus sabe muito sobre as pessoas que moram em volta do Passo de Trolltooth. O conselho dele em ajudar-me a conseguir companheiros de viagem é de extremo valor.

Lá fora, no pátio, eles descobriram dois cavalos selados e prontos para a partida. Darkmane não conseguia compreender como eles haviam aparecido.

— Se o senhor me perdoar, sire —, explicou o Chervah, — eu dei um jeito para que nossos cavalos estivessem prontos a qualquer hora. Não gostaria que sua missão fosse atrasada pelos garotos de estábulos, que ainda estariam selando sua montaria.

— Bom. Vamos partir. — Darkmane estava impressionado com o cuidado com detalhes que a pequena criatura tinha.

Atravessaram os portões do palácio e entraram na cidade de Salamonis. Barracas de mercado alinhavam-se pela trilha que levava para o centro da cidade. Enquanto Darkmane passava montado em seu orgulhoso cavalo negro, espalhavam-se sussurros em meio aos camponeses. Uns poucos pedintes arrastavam-se diante dele, na estrada, segurando suas tigelas, mas o cavaleiro ignorou-os e continuou seu caminho.

O Chervah fazia comentários constantes enquanto prosseguiam: — Agora, o vê? Lá, Caddentras, o gordo com chapéu listrado. Não, não esse. Sim, aquele outro. Bem, ele vende os tongos mais esquisitos. O senhor sabe, é importante comer-se tongos no tempo certo. Quando eles estão maduros e com a pele escura. Bem, esse Caddentras parece ter um jeito para pegá-los. Mas não confie no sorriso dele. Conte seu troco cuidadosamente bem diante dele. E conte seus dedos também! — A risada do Chervah mais parecia um guincho. Ele continuou: — E olhe lá para aquele vendedor de fumo? O rei não permite que eles coloquem barracas ao longo do caminho até o palácio, então eles têm que fazer negócios na rua. Agora, vê aquele homem-macaco? Ele treinou bem o macaco para que dançasse ao som da flauta. Mas as chances são de que ele tenha outro macaco treinado em uma arte bem mais rentável: bater a carteira dos curiosos! Eu talvez não seja gentil — nem todos os homens-macaco são crápulas. Mas eu ficaria bem atento se estivesse lá, observando...

Salamonis era um lugar geralmente considerado agradável de se viver. Sob a influência civilizada do Rei Sala-mon, as disputas tribais haviam sido erradicadas. A própria cidade era próspera. Diante do portão para o Passo de Trolltooth, mercadores de todos os tipos se encontravam em Salamonis para trocar e organizar as caravanas que atravessariam a região. Os Strongarms chegavam a Salamonis sabendo que para eles sempre seria fácil conseguir trabalho em uma caravana indo para leste, pois proteção de aluguel era essencial para uma jornada através das Terras Planas. E os Strongarms, deixando em Salamonis as caravanas destinadas ao oeste, chegavam cheios de moedas de prata. Sendo do tipo que amavam nada além de uma caneca de cerveja, uma refeição consistente, uma boa história, uma garçonete com quem flertar e talvez até mesmo uma boa briga, os Strongarms eram atraídos, naturalmente, na direção do centro da cidade de Salamonis, onde havia um crescente número de tabernas de desordeiros, apesar de estes lugares não serem os mesmos que os freqüentadores usuais costumavam ir.

Fora da cidade, o Vale de Willow estendia-se até c Rio Águas Brancas, para noroeste, através da Floresta de Yore. A Floresta de Yore era a residência de Vermithrax Moonchaser, o Grande Mago de Yore, um personagem solitário sobre a qual pouco se sabia. Ele dividia a floresta com seus amigos, o Povo de Yore — uma raça de Meios-Elfos — e devido a sua idade avançada ele jamais se aventurava a sair de lá. Suas habilidades mágicas eram notórias, e com o passar dos anos ele havia dividido muito de seus conhecimentos com magos aprendizes, especialmente selecionados pelo Grande Mago. Entre seus pupilos mais famosos estavam Arakor Nicodemus, de Porto Blacksand, Gereth Yaztromo, da Floresta de Darkwood e Pen Ty Kora, de Arantis. As pessoas não mágicas simplesmente não se aventuravam para dentro da Floresta de Yore, a menos que estivessem procurando encontrar-se com o Grande Mago Moonchaser. Os visitantes eram espionados de perto pelo Povo de Yore, desafiados e mandados embora. Se ignorassem os avisos, o Povo de Yore sopraria zarabatanas neles e a morte era instantânea.

O vale de Willow era um vale rico, sempre fértil por causa do Rio Águas Brancas, que corria nos limites a oeste. Era lá que os fazendeiros de Salamonis preparavam suas plantações. Trigo, milho pigmeu e shaggle eram as plantações básicas, sendo a última peculiar a esta área e muito procurada em todo o mundo por suas qualidades realmente surpreendentes de curar ferimentos com rapidez. Também eram criadores de gado e de animais de pasto, especialmente de carneiros-urso, cujos casacos eram muito mais quentes do que os dos carneiros montanheses e cuja lã era muito mais fácil de ser tosquiada. Havia várias pequenas vilas no Vale e algumas delas eram especializadas em ervas mais esotéricas e especiarias, usadas tanto com fins médicos como mágicos.

Os habitantes do Vale de Willow eram, no entanto, um povo segregado. Eles detestavam intensamente os estranhos, sempre com a suspeita de que estariam tentando roubar seus segredos. Muito relutantemente eles negociavam com o restante de Allansia através dos mercados da cidade de Salamonis. Seu vestir, seus costumes e sua linguagem eram muito peculiares a eles, e a maioria dos estrangeiros simplesmente se esquecia deles. Mas eles eram muito respeitados por todos os habitantes da cidade de Salamonis, que compreendiam que o trabalho deles trazia grandes riquezas para os mercados, i

Prosseguindo pela estrada, as barracas de mercado cediam lugar às cabanas em ruínas. Darkmane e o Chervah seguiram para o centro da cidade, viraram à esquerda na Rua Vento Fresco e então à direita na Travessa Água Fria, antes de pararem do lado de fora de uma cabana de madeira de bom tamanho, com um telhado de sapê espesso. Belas flores ladeavam o caminho para a porta da frente. Dois grandes arbustos de erva-da-lua cresciam em ambos os lados da entrada, com suas flores redondas e brancas balançando gentilmente ao vento. Uma tímida criatura peluda — talvez o animalzinho de estimação de um vizinho — botou o nariz na curva da parede para observar Darkmane andar até a porta e bater com a aldrava. Pouco depois, passos apressados aproximaram-se e a porta abriu-se ligeiramente. Lá dentro estava um velho homem, quase todo curvado sobre si mesmo. Seu rosto enrugado fez o Chervah lembrar-se de um limão seco.

— Bem? — a voz seca questionou. — Qual é o seu assunto? O que deseja? — A criatura peluda saiu correndo de onde estava, passou em meio às pernas do velho e entrou na casa.

— Eu procuro por Calorne Manitus, o recenseador — iniciou Darkmane. — O senhor não é ele, mas esta é a casa dele.

— Calorne não está aqui. Não tem estado aqui há semanas. Quem deseja encontrá-lo? — O velho olhou bem para o rosto de Darkmane.

— Eu sou Chadda Darkmane, um velho amigo. Procuro pelo conselho dele em uma questão de grande urgência, velho. Diga-me por favor onde posso encontrá-lo.

O velho cocou o queixo eriçado. — Darkmane. Chadda Darkmane. Hmmm. Sim. Já ouvi meu filho falar nesse nome antes. Não foi você, Chadda Darkmane, quem venceu a Volee Hanu?

Darkmane assentiu. Sua inteligente manipulação da feiticeira ardilosa em muito aumentara seu Amonour em Salamonis.

— Bem, então estou honrado em poder ajudá-lo. E ficarei feliz em poder dizer-lhe como chegar até meu filho. No momento ele está trabalhando em Shazaar, no censo. Você o encontrará lá. Ele fica em uma estalagem chamada o Porco Engordado.

Darkmane agradeceu ao homem e afastou-se da casa. Shazâar ficava a vários dias de viagem para oeste, além do Rio Águas Brancas. Ele não contara em ter que fazer uma viagem longa e agora era obrigado a reconsiderar suas opções. Se houvesse qualquer outra alternativa para sua viagem, seria preferível, mas Darkmane sabia que somente o recenseador tinha um conhecimento abrangente dos vários povos da região. Somente ele seria capaz de sugerir-lhe as adesões corretas para o grupo. Porém, não desprezava a idéia de uma visita a Shazâar. Erguendo-se solitária como um oásis no deserto, na região norte da grande Planície Sul, Shazâar era um paraíso para bandidos, rastreadores de areia e feiticeiros. O diurno grupo mantinha o controle sobre a cidade, e como resultado os costumes de Shazâar eram estranhos e difíceis de serem compreendidos por estrangeiros. Os visitantes testemunhavam coisas nas ruas de Shazâar que achariam sem sentido (como um homem andando em um círculo, de costas, durante uma manhã inteira) ou idiota (alguns shazâarianos eram empregados para cavar pequenos buracos nas ruas, enquanto outros também eram pagos para segui-los enchendo esses buracos). E durante uma estada na cidade não era pouco comum testemunhar um ato de crueldade aparentemente horrível — digamos, um grupo de jovens forçando outro jovem a comer carvão em brasa. Porém, se algum observador lançava-se valentemente em defesa do pobre rapaz, a própria vítima defenderia seus torturadores contra quaisquer tentativas de salvamento. Em Shazâar, os visitantes não deviam se meter nos assuntos alheios!

O Chervah olhou para seu mestre como se estivesse perguntando qual seria o próximo passo. Darkmane já decidira: antes de tudo, eles deveriam voltar ao palácio para os preparativos finais. Só então, deveriam iniciar seu caminho para a misteriosa cidade de Shazâar.

 

Em um aposento nas profundezas do labirinto subterrâneo sob a pequena vila de Coven, realizava-se um encontro. Luzes de tochas, bruxuleantes, lançavam sombras feéricas pelo aposento, que estava cheio de estantes deformadas pelo peso dos volumes que suportavam. Uma mesa grande encontrava-se no centro da câmara, coberta de livros, mapas e quinquilharias típicas, que davam a impressão de que, apesar de ser esparsamente mobiliado, o aposento sem dúvida alguma era ocupado por uma pessoa de grande importância. De pé, diante da mesa, estava um horrendo Meio-Troll, e atrás da mesa estava uma pesada cadeira de madeira entalhada. Mas a cadeira estava vazia. Em. vez dela, o Meio-Troll estava fitando um espelho adornado do corpo inteiro que prendia em uma parede. Na luz dançante das tochas, parecia que ele conversava com seu próprio reflexo, mas a segunda voz era conhecida dos seguidores de Zharradan Marr. Pois aqui, profundamente entocado sob a pacífica cidade e seus camponeses simplórios, o necromante fizera sua pousada.

Marr olhou para seu sargento de armas e um sorriso lento passou por seus lábios finos. Seus olhos brilharam com frágil excitamento e ele levantou seus braços esqueléticos em sinal de aprovação. - Sim - ele sibilou. - Um plano excelente. E você irá liderar esse ataque pessoalmente, Thugruff?

O orgulho do Meio-Troll mostrou-se quando ele arrastou os pés e assentiu para a figura fantasmagórica que tremeluzia no espelho de corpo inteiro diante dele.

A aparência mortal de Marr estremeceu no vidro; o espelho era o portal entre seu próprio mundo e o mundo material exterior. Ele preferia permanecer dentro do espelho sempre que possível — sentia-se mais confortável lá. Mas sempre que tinha uma audiência com algum estranho ou com alguém que ele não pudesse confiar totalmente, forçava-se a entrar no mundo material.

 

Ele poderia confiar em Thugruff, porém. Como um dos auxiliares mais confiáveis de Marr, Thugruff o servia bem. Quando Marr deixara claro o desejo de vingança contra Balthus Dire, o corpulento Meio-Troll ocupara-se imediatamente de preparar planos para levar até seu mestre. Thugruff divertia-se com a perspectiva de combate. Ele era uma criatura feia, de pele grossa e pintada, mas suas feições quadradas e os músculos pesados impunham respeito. Sua força e sua habilidade com armas eram consideráveis. E ele sabia disso.

— Claro, mestre. Precisaremos, é claro, de alguém com a autoridade de oferecer termos. Sugiro que eu pegue duas unidades dos Sem-Almas — quatro tropas deverão ser suficientes. Também preciso de um punhado de Droomies para entrar na Torre Negra e uns poucos Craggeracks para nos guiarem através das montanhas e infiltrar-nos entre os Goblins. Pensei também em levar uma jaula de Mudos e deixá-los à solta em volta da torre, só para aterrorizar os lacaios de Dire que jamais ouviram falar de marrangha.

Zharradan Marr sorriu mais uma vez quando Thugruff mencionou os Mudos. Seu sargento planejara bem a estratégia; este era um movimento de gênio. Os experimentos de Marr na arte feiticeira de marrangha deixara muitas criaturas infelizes horrivelmente deformadas quando membros e órgãos foram magicamente transplantados de um corpo para outro. Como muito poucos experimentados haviam sido bem-sucedidos, os resultados eram pobres criaturas que viviam com as agonias de ferimentos incuráveis e ossos permanentemente quebrados; aqueles que podiam gritavam constantemente para que suas vidas fossem extintas. Normalmente seus desejos eram atendidos uma vez que seus gemidos incessantes quebravam a concentração de Marr. Mas Thugruff viera com um uso perfeito para esses seres: eles seriam mostrados para o inimigo como um terrível aviso do poder de Marr. Excelente!

Marr dispensou Thugruff e convocou Vallaska Roue. Um humano corpulento e barbado entrou afobado no aposento, a túnica de couro esticada para abarcar seu tamanho considerável. Vallaska Roue era outro dos capangas leais de Marr. Ele viajara para seu mestre através da Allansia Ocidental à procura de recrutas competentes para as tropas de Marr. Enquanto Marr evitava misturar-se à ralé de Allansia, Vallaska Roue divertia-se na vida inferior, bebendo e brigando em tabernas. Ele também gostava de aprender sobre todas as novidades e intrigas do mundo e recontá-las a seu mestre, que sempre ouvia as histórias com grande interesse. Vallaska Roue era o intermediário entre Marr e as desprezíveis criaturas do mundo que ainda não estava em seu poder.

Mas Roue era um homem eminentemente desprezível, arrogante e agressivo. Sua cabeça redonda acachapava-se sobre um gordo pescoço taurino, e ele suava profusamente. Isto, mais o fato de ele se lavar com pouquíssima freqüência, resultava em um odor de corpo mofado que fazia com que as pessoas virassem a cabeça quando ele entrava em um aposento. Mas qualquer um que comentasse sobre seu cheiro desagradável logo se arrependeria de suas palavras: ele tinha pavio curto e os braços fortes poderiam levantar dois homens — um em cada mão — bem alto ou jogá-los voando pelo meio do aposento. Brigas eram esporte para Vallaska Roue, e as cicatrizes obtidas com essas atividades esportivas poderiam ser vislumbradas no seu rosto. Uma cicatriz profunda — lembrança de uma briga de bar em Zengis —, que descia de sua orelha esquerda até o nariz, mostrava onde a lâmina o cortara fundo antes do corpo do atacante ter sido esmagado em um abraço de urso. E a venda sobre o olho esquerdo cobria uma órbita vazia, conseguida em uma disputa de bêbados com um degolador astuto em Porto Blacksand. O sujeito tivera a ousadia de referir-se a Roue como um "monte ambulante de estéreo de Urso-gambá" e pegara o preço dolorosamente — mas não antes de sua faca ter furado o olho de Roue.

Zharradan Marr deu as linhas gerais do plano de Thugruff para Vallaska Roue. Thugruff, acobertado pela noite, lideraria um bando de Sem-Alma — suas tropas de mortos-vivos — através das Cragrocks até a Torre Negra. Quaisquer grupos de Goblins da Montanha aliados de Balthus Dire que fossem encontrados no caminho deveriam ser destruídos. Quando eles chegassem à Torre Negra, dois Droomies seriam despachados para entrar na torre, procurar os Ganjees de Dire e aliciá-los para trocarem de aliança e se tornarem parte do exército guerreiro de Marr. Se a magia de combate dos Ganjees pudesse ser usada para auxiliar Zharradan Marr, a vitória nesta luta seria certa. Mesmo se os Ganjees se recusassem a ajudar, ele ao menos estaria evitando que utilizassem seu poder de fogo a favor de seu inimigo.

Roue ouviu atentamente e assentiu sua aprovação. -Sim — grunhiu ele. — Mas o que o faz pensar que os Droomies irão convencer os Ganjees de Dire a juntar-se a nós?

Esse era um problema e Marr bem o sabia. Mas ele também sabia que os Ganjees tinham uma fraqueza: eram insaciáveis estudiosos de artes mágicas. Eles ficariam intrigados com as experiências marrangha de Marr e ansiosos para aprender mais; e em troca, ele quereria aprender mais sobre a magia de combate deles. Eis aqui as bases para um acordo. Pois a lealdade não entrava em discussões no que se referia aos Ganjees. Essas misteriosas criaturas do plano espiritual pouco se importavam com as questões dos homens. A guerra iminente era-lhes nada mais que mera curiosidade; os resultados dela não teriam quaisquer efeitos sobre suas existências. Mais provavelmente era que se importassem apenas com o lado do vitorioso, pois um senhor poderoso atrairia aliados poderosos; e, sem dúvida, muitos desses aliados também teriam segredos mágicos interessantes de serem roubados. Um perdedor não poderia oferecer-lhes coisa alguma.

Marr explicou isso tudo para Roue, que pensou que estava terminado e concordou finalmente. Preparou-se para partir. Ele devia ajudar nos preparativos das tropas.

— Espere! A ordem gelada de Zharradan Marr fez com que ele se detivesse. Ele voltou-se para o espelho para encarar a imagem de espírito. Os lábios se moviam, pronunciando palavras estranhas, mas o efeito do espelho dimensional era o de traduzi-las para a linguagem de Roue. — Vallaska Roue, tenho mais uma missão para você. Sente-se.

A criatura corpulenta cocou o próprio peito flácido e sentou-se novamente.

— Esses combates aumentarão — disse o mestre fantasmagórico. — Precisaremos de recrutas. E rápido, antes que Dire faça o mesmo. Ajude Thugruff a conseguir as tropas para o ataque, então faça planos para partir. Preciso de soldados, sargentos e feiticeiros de guerra. Consiga-me músculos e mentes das Planícies.

— Sim, mestre — replicou ele, assentindo. — O senhor está certo. Encontrarei para o senhor os melhores vilões de Allansia.

Zharradan Marr observou-o partir. Roue o servia bem e, apesar de ser uma criatura desagradável, sempre conseguia descobrir bons recrutas: o demoníaco Darramouss, mestre de suas masmorras e de sua mina; o Apodrecido Kantie, o traficante de mortos-vi vos; até mesmo Thugruff — todos eles haviam sido apresentados aos serviços de Marr ao seguirem as viagens de Vallaska Roue. Ele podia ser nojento, mas parecia ter jeito para escolher os recrutas perfeitos. E se realmente houvesse uma guerra com Balthus Dire, Roue precisaria ser especialmente bem-sucedido...

Os dois Homens-Rinoceronte pesadões empurraram os portões para deixar Thugruff passar com seu regimento de mortos-vivos.

O Meio-Troll virou bruscamente seu cavalo e apressou-o para a frente, para orgulhosamente passar todo emproado pelos portões à cabeça da temível tropa. Sua armadura brilhante, adornada com mortais ferrões penetrantes, retinia ao ritmo das passadas de sua montaria. Atrás dele vinham seus dois sargentos de armas: Krravaakk, um Homem-Rinoceronte corpulento, ia à sua esquerda, e Tankasun, um Gorian de um braço, ia à sua direita.

Os quatro Craggeracks de pele marrom que seguiam atrás dos sargentos lançavam olhares furtivos em todas as direções. Essas criaturas parecidas com os Kobolds detestavam intensamente os Homens-Rinoceronte; eles estavam convencidos de que os dois guardas que mantinham os portões abertos planejavam fechá-los rapidamente e assim esmagar os astutos guias. Seus dentes pontiagudos faiscaram. Um dos guardas Homem-Rinoceronte esticou o pé enquanto eles passavam, apenas para atormentá-los. Todos os quatro pularam em suas selas, e então começaram a falar, excitados, e um deles discutiu com o Homem-Rinoceronte. Mas a criatura pesadamente armada não estava em perigo. Ele simplesmente gargalhou e observou-os passar. Os Craggeracks não eram lutadores. Seu papel naquela missão era simplesmente o de guiar a tropa à noite através dos Rochedos Craggen em segurança.

Seguindo os comandantes e os Craggeracks, vinham os soldados desmontados de Thugruff. Quatro grupos de infelizes Sem-Alma arrastavam os pés vindos dos Campos de Testes ao longo do desfiladeiro até a Floresta de Knotoak. Todos usavam o signo de sua fidelidade a Zharradan Marr: um medalhão numerado preso em volta do pescoço.

Os Sem-Alma eram o orgulho entre as criações de Marr — zumbis, sem almas e ressuscitados, cujos vidrados olhos mortiços olhavam para cima sem vida enquanto eles seguiam, trôpegos, arrastando os membros apodrecidos. Essas criaturas de aparência deplorável eram mortais em combate. Sem alma, sem mente e sem emoção, eles nada sabiam sobre medo ou perigo. Importavam-se apenas com suas ordens de matar. Podiam sofrer ferimentos, mas não podiam ser destruídos. A única esperança de um oponente seria de arrancar fora seus membros pútridos para que assim fossem impedidos de continuar a avançar. Mas eles vinham em tal número que sempre venciam os oponentes. E qualquer ferimento causado por suas unhas pontudas ou por seus dedos ossudos quase sempre significava uma morte lenta e dolorosa, pois os corpos apodrecidos eram cobertos com um limo fedorento que infestaria de imediato qualquer carne fresca com que entrasse em contato.

Quatro cavaleiros no final da tropa puxavam uma carroça sobre a qual havia uma grande caixa quadrada com a altura da montaria de Thugruff. Apesar de coberta por um lençol grosseiro, os guinchos e gemidos vindos de dentro dela identificam seu conteúdo: Mudos. Essas criaturas hediondamente deformadas seriam liberadas do lado de fora da Torre Negra de Dire.

Os membros restantes do regimento mortal de Thugruff se juntariam aos outros em seu destino. Os fantasmagóricos Droomies seguiriam quando lhe aprouvessem. Essas criaturas parecidas com espíritos poderiam fazer a longa jornada pelas Cragrocks em menos de uma hora, enquanto que as tropas de Thugruff, a pé, levariam vários dias.

Enquanto essa legião de horror passava pelos portões, o ritmo da marcha aumentou até que os Sem-Alma alcançaram seu limite. Era essencial que a jornada fosse veloz, portanto deveria ser mantida uma boa velocidade de marcha. Os Sem-Alma não eram soldados marchadores ideais porque não poderiam jamais alcançar o passo de uma unidade de infantaria Ore ou Goblin. Mas o que eles perdiam em velocidade ganhavam quando entravam em combate. Essas criaturas temíveis causavam verdadeiro terror no coração de qualquer inimigo. E podiam ser gastos à vontade. O cemitério amaldiçoado que ficava atrás dos Campos de Testes podiam gerar quantos Sem-Alma Thugruff pudesse usar. Tudo o que Vallaska Roue precisava fazer era providenciar os corpos que seriam enterrados lá por um período de três dias de incubação. Durante a terceira noite após o enterro no cemitério, um Sem-Alma emergiria de cada cova fresca, prontos para seguir um mestre e realizar suas ordens.

Nesse mesmo instante Roue estava combinando com um degolador para trazer cadáveres frescos.

— Essa é a melhor oferta que eu lhe farei! — anunciou Roue para o homem de cara de fuinha cujos olhos de aparência de contas olhavam-no, expectantes. — Quinze moedas de cobre por cadáver. Se não estiver interessado, há muitos outros que não torceriam o rosto para um dinheiro fácil. O que vai ser, degolador?

O pequeno trapaceiro imundo olhou em volta, nervoso, considerando a oferta. Finalmente lançou um olhar zangado sobre Vallaska Roue e assentiu. O pagamento era pouco, mas pelo menos havia bastante trabalho; Roue oferecera para ficar com todos os cadáveres que ele pudesse trazer, sem fazer perguntas.

Vallaska Roue fez um gesto para um Anão de barba cinzenta que estava de pé a seu lado para que fizesse os arranjos necessários enquanto ele voltava para seu aposento. Tinha que fazer os preparativos para sua viagem.

— Eles O QUÊ?! - rugiu Balthus Dire em um tom tão feroz que o pequeno criado tremeu.

— Oh, sire - guinchou ele —, perdoe-me. E quem pode dizer o que vai pela cabeça oca deles? Não eu, tenho certeza. Ontem eles estavam aqui, causando distúrbios. Agora não há sequer sinal deles. Todos se foram - a menos que seja apenas mais um dos truques Ganjees.

— Eles não se atreveriam a deixar a Torre Negra. Devem sua existência a mim. Eles devem ser encontrados! Eles devem...

Uma batida alta na porta interrompeu a grandiloqüência de Dire.

—ENTRE!

Era o sargento dos Goblins da Montanha, Orcleaver, agora comandante das tropas dos Goblins de Dire. A armadura e o rosto dele tinham a aparência de alguém que acabara de sair de uma luta. Mas ele relatou suas novidades calmamente.

— Luta. À noite. Criaturas infernais de covas. Goblins mataram muitas. Criaturas das covas não morrem. Muitos Goblins feridos pelos dedos. Goblins feridos doentes. Morrendo. Mortos. Resto dos Goblins fugiram. Não mais na vila. Criaturas vão para norte.

Dire ouviu atentamente.

— Criaturas das covas — murmurou. Ele percebeu de onde viera o ataque e sabia que os atacantes estariam voltando para a Floresta de Knotoak. As regiões de mortos-vivos de Zharradan Marr. Ele voltou-se para o Goblin: - E sobre os Ganjees? Você viu algum sinal deles? Eles foram feitos prisioneiros? Fale!

O Goblin estremeceu à menção dos Ganjees. - Não vi nenhum rosto de espírito — balbuciou ele. — Muitos Goblins mortos. Mortos por criaturas das covas. Mortos à noite...

O relato dele foi interrompido por mais batidas na porta, e ele voltou-se para ver quem entrava seguindo a ordem de Dire.

Tanto Orcleaver quanto o criado engasgaram quando a porta foi aberta. De pé, no batente, estava um dos guardas da cidadela, segurando uma das pontas de uma corda. Um gemido de lamento vinha da forma corpulenta atada à outra ponta da corda e contorcida no chão. O guarda deu um passo, puxando a criatura miserável para dentro do aposento; isso fez com que ela guinchasse e gritasse, como se cada milímetro de movimento fosse de impiedosa agonia. Todos os olhos se viraram para estudar o ser disforme.

Diante deles, no chão, estava uma criatura com uma aparência jamais vista por nenhum deles. A pele era de uma cor de preto queimado, manchada de cortes vermelhos onde a carne estava exposta ou onde um osso protuberante surgia desajeitadamente. Uma perna retorcida, quebrada em vários lugares, pendia atrás como uma cauda e movia-se fracamente. A cabeça dela era uma monstruosidade: escamas escuras haviam crescido em um dos lados de seu rosto de aparência humana; faltava uma orelha; seu único olho estava solto sob sua pálpebra semi-aberta. A cabeça juntava-se ao restante do corpo por um pescoço longo e esquelético, que também parecia ter sido quebrado em vários lugares.

O Goblin e o criado desviaram os olhos, enojados.

Mas Balthus Dire estudou a criatura por mais alguns instantes.

— Onde você encontrou isso? — perguntou ele ao guarda.

— Do lado de fora, próximo ao portão principal. E há mais deles. Alguns estão no pátio se desejar vê-los. Tem uma multidão se formando.

— Leve-o daqui. Destrua-o. Disperse a multidão e destrua os outros também antes que haja sinais de pânico. Todos vocês, deixem-me agora. Preciso de tempo para pensar. E planejar.

Deslocaram-se para fora do estúdio de Dire, aliviados de serem dispensados e ponderando sobre o horror medonho que haviam acabado de ver.

Em seu estúdio, porém, Balthus Dire sabia exatamente o que vira. Ele já ouvira falar um pouco sobre as experiências mágicas de Zharradan Marr quanto à alteração da vida, mas muito do que ouvira estava envolto em uma bruma de rumores e especulações. Mas ele agora vira marrangha com seus próprios olhos.

Dire estava furioso. Se Foulblade não tivesse deixado nenhum sobrevivente da emboscada, como haviam sido suas ordens, então nada disso estaria acontecendo. O grupo de ataque de Zharradan Marr sobre o ladrão de sua cunnelwort era a retaliação inevitável. Para evitar as chances de mais outros ataques, Balthus Dire sabia que precisaria agir rapidamente. Se a guerra fosse inevitável, ele precisaria acertar no coração do território de Marr.

 

—... E foi assim que Lorde Thimbeth encontrou-se trapaceado em todas as suas riquezas por uma dançarina fujona!

O Chervah caiu em grandes gargalhadas agudas, interrompidas por regulares soluços altos, enquanto recuperava o fôlego.

Uma ponta de sorriso surgiu no canto da boca de Darkmane. Ele fora forçado a ouvir as histórias do Chervah por toda a tarde. Apesar de agora desejar um pouco de paz, nada podia fazer a não ser divertir-se; a criaturinha era um contador de estórias naturais — apesar de ele duvidar que nenhuma delas tivesse sequer um grama de verdade.

As pastagens do Vale de Willow por onde passavam eram uma visão colorida; as fazendas maiores eram rodeadas por seus campos de plantação, enquanto nas menores cresciam ervas de odores estranhos. Não era necessário dizer que o Chervah fazia comentários sobre tudo o que via; ele manifestava saber tudo o havia sobre fazendas no Vale de Willow.

O sol estivera escondido atrás de nuvens brancas fofas durante quase toda a tarde. Enquanto realizava sua lenta viagem pelo céu, ele às vezes lançava um raio sobre os dois cavaleiros. O dia estava quente, mas não desconfortável. A rota deles os levava a passar em meio a pequenos grupos de camponeses trabalhando nos campos, em suas roupas de cores brilhantes. O Chervah descobrira que se ele fazia um gesto de cumprimento enquanto passavam, os trabalhadores dos campos retribuíam o gesto e algumas vezes sorriam timidamente. A princípio eles haviam parado para conversar com os camponeses, mas Darkmane logo percebeu que o Chervah era incapaz de uma conversa curta. Se queriam alcançar a Floresta de Yore naquela noite, precisavam apressar-se.

A trilha que seguiam descia por uma pequena colina. Pararam os cavalos no topo para observar a paisagem à sua frente e guardar a primeira imagem da plenitude verde da Floresta de Yore, coitada em duas metades iguais pelo grande Rio Águas Brancas, que corria para sul pelo lado mais próximo da floresta. Alcançariam seu destino para aquela noite em cerca de uma hora.

— Ah, este é realmente um belo pedaço do mundo -suspirou o Chervah, contente, enquanto observava a paisagem. — De onde vim a terra é muito mais inóspita. As cores são mais sombrias e, durante os meses de Trancar e Congelar, aqueles demônios das cores roubam o brilho dos meses anteriores. Tudo fica com uma forma sombria de cinza amarronzado.

Darkmane sorriu novamente. Seu companheiro de viagem parecia pensar que todos os acontecimentos dos quais não gostava fossem obra de demônios. Se ele dormira demais uma manhã, "demônios do sono" o haviam pego. Demônios causaram-lhe dores na cabeça depois de uma noite de farra (apesar do próprio Chervah jurar que não tocara nem cerveja nem vinho). Demônios haviam-lhe causado a perda do alvo em torneios de bestas. E se um em dia de festival fora estragado por uma chuva torrencial - bem, é claro que aquilo fora trabalho dos terríveis demônios da chuva.

— Venha — disse Darkmane. — Temos que alcançar o Águas Brancas antes do cair da noite. Hoje acampamos na Floresta de Yore. Você lembrou-se de instruir o mago da corte para informar ao Mago Moonchaser de nossa chegada?

— Lembrei, sire. Gaviões noturnos levaram a mensagem para o Grande Mago pouco depois que deixamos Salamonis.

— O que temos de provisões? — perguntou Darkmane.

— Trouxe conosco, deixe-me ver... — o Chervah pensou sobre o que tinha em sua mochila. — Ah, sim, temos fruta tuktuk — muito saborosa e cheia de energia. E alguns tubérculos — bons para os dentes e para a digestão também. Aqui temos alguns pedaços de casca de madeira suave — limpa o sangue e os órgãos vitais. E também, veja aqui. Eu trouxe — agora sei que secretamente o senhor gostou delas — algumas folhas de planta-tigre. Lembra-se delas? O senhor...

— O QUÊ! — a voz de Darkmane elevou-se, irada. -Que tipo de provisões são essas? Eu quero comida, não restos de um monte de estéreo. Como você quer que eu faça uma viagem de dois dias com um punhado de — o que era? — raízes mastigáveis e folhas gordas? Você não trouxe nenhuma carne?

O Chervah negou tristemente com a cabeça.

— Nenhum pão?"

— Temos um pouco de fruta-pão - disse ele, entusiasmado. — Muito melhor para o senhor e mantém-se fresca por...

O olhar glacial de Darkmane interrompeu-o logo. -E quanto a ovos cozidos?

— Ah... Não. Nada desse tipo...

Darkmane estava quase explodindo. — Seu imbecil! Eu pedi um criado ao rei e ele me dá um vegetariano incompetente. Você pode gostar de viver de nozes e frutas, Chervah, mas eu não. Eu como uma refeição de homem: carne, ovos, queijo. E eu vou comer minha porção esta noite. Nós estamos indo para Yore, Chervah, e você vai caçar comida para mim. E se não for capaz de pegar-me um coelho, um jovem gamo ou até mesmo uma rã, então você, Chervah, irá tostar no meu espeto!

Ele virou o cavalo bruscamente e enterrou as esporas nos flancos do animal, descendo a colina a galope na direção da grande Floresta de Yore. O Chervah, de cabeça baixa, seguiu-o.

A escuridão espalhava-se sobre a terra enquanto eles montavam o acampamento na floresta. Darkmane amarrou seu cavalo em um galho de árvore e retirou-lhe a sela. Sua raiva se fora, mas sua fome crescera.

O Chervah estava lutando com um isqueiro de pederneira, tentando acender o fogo do acampamento. — Aagh! Amaldiçoe esses demônios do fogo. Onde eles estão? Parem de brincar com o isqueiro. Ooopa! Ah, aqui estamos. — Usou a mão para proteger a pequena chama que conseguira obter. Finalmente algumas folhas secas pegaram fogo e a chama cresceu. Ele colocou dois pequenos galhos sobre ela e deu um passo para trás.

Haviam alcançado os limites da floresta e montado acampamento não muito longe das margens do Rio Águas Brancas, cujos borbotões e borrifos eram constante barulho de fundo. Decidindo evitar aventurarem-se muito profundamente nas florestas, acamparam em uma clareira, próximos a uma árvore extremamente alta. Ambos estavam um pouco nervosos, particularmente o Chervah, conscientes das histórias ouvidas sobre o Povo de Yore. Havia a hipótese de sua mensagem não ter alcançado o Grande Mago e, se assim o fosse, suas vidas corriam perigo.

— Muito bem, então, Chervah — Darkmane falou asperamente com a criaturinha, que estava admirando o fogo que acabara de conseguir acender. — Consiga-me carne. Leve sua besta e cace-me um jovem cervo. Ou um coelho.

O Chervah não estava ansiando por nada daquilo. Ele detestava até mesmo o pensamento de caçar e matar animais. Apesar de carregar uma pequena besta consigo em suas viagens, isso era muito mais para se mostrar do que para ser usada — ele nunca a usara em um alvo vivo. Já tendo visto muitas criaturas orgulhosas sofrendo nas mãos de caçadores incompetentes, contorcendo-se inutilmente no chão, nos estertores da morte, mortalmente feridas, ele resolvera jamais ser a causa de um animal passar por tal agonia. Mas não podia arriscar-se a enfurecer Darkmane ainda mais. Pegou suas besta e a mochila e entrou sem rumo na floresta, pensando sobre como conseguiria pegar o jantar de Darkmane.

A noite se aproximava. O guerreiro alto pegou um galho caído próximo aos cavalos e caminhou até o fogo. Os ramos e folhas no centro da fogueira estavam agora acesos; as chamas começavam a subir, lançando um brilho laranja bruxuleante à volta da clareira. A luz do dia diminuía rapidamente. Ele sentou-se e fitou as brasas incandescentes, feliz por ter paz. Seu rosto duro sentiu o calor crescente e confortante em meio à escuridão. Começou a pensar nos detalhes de sua missão.

Seu plano era ambicioso. Ele precisaria de um pequeno grupo de homens bem dispostos. Deveriam ser lutadores — apesar de suspeitar que também precisaria incluir a ajuda de um mago. Essa perspectiva era uma grande preocupação, já que ele não acreditava nos truques de magos ardilosos. Poderia comprar homens de armas; a lealdade deles sempre podia ser comprada com uma bolsa de ouro. Mas os homens de magia eram de outra estirpe: aqueles que valiam o pagamento não precisavam de ouro; e aqueles que se ofereciam por um preço seriam aliados não confiáveis.

Quando encontrasse os companheiros certos, poderia prosseguir com o plano de seu mestre. Conforme o vira, enquanto os dois feiticeiros permanecessem lutando entre si, o perigo para Salamonis era mínimo. Enquanto durasse essa inimizade, Salamonis seria ignorada. O Rei Salamon estava muito certo quando apontara para a hora do verdadeiro perigo. Haveria guerra e, certamente, um vencedor; seria então que o vencedor, inspirado por seus sucessos militares, voltaria suas atenções para outras conquistas. Não havia dúvidas de que o próximo alvo seria Salamonis.

Mas também era verdade, sem qualquer dúvida, que quanto mais longa fosse a guerra melhor as coisas seriam para Salamonis. Não somente uma guerra prolongada atrasaria a invasão fatal como, quanto mais tempo Marr e Dire ficassem presos em suas inimizades, maior numero de suas tropas seriam perdidas nos combates. Se a guerra pudesse continuar por tempo suficiente, o vencedor poderia vir a encontrar-se fraco demais para contemplar outros combates. E se o Rei Salamon tomasse a iniciativa e escolhesse esse momento para atacar com suas próprias tropas, então a terrível ameaça que pairava sobre seu reino seria banida para sempre.

Os planos de Darkmane, portanto, eram de manter um olhar observador sobre os destinos dessa luta. Se algum dos lados começasse a ganhar, ele procuraria meios de ajudar o inimigo; se a balança, pendesse para o outro lado, sua aliança seria trocada. Seu grupo permaneceria "por trás dos panos", e por essa razão ele precisava escolher cuidadosamente seus acompanhantes. Precisaria obter acesso a ambos os feiticeiros. Ele deveria encontrar alguém que conhecesse Balthus Dire e mais alguém ligado a Zharradan Marr. Calorne Manitus, o recenseador da Allansia Ocidental, era a pessoa perfeita para ajudá-lo a montar um grupo dessa natureza.

O galho na mão de Darkmane estalou, tirando-o de seus devaneios. Ele o lançou ao fogo e observou-o gemer e estalar enquanto acendia e queimava com uma chama dançante. A chama cresceu. Enquanto o galho queimava, Darkmane ficou petrificado; ele fitava a chama que, agora, estava lenta mas perceptivelmente mudando de cor, indo do amarelo para o laranja escuro e para um tom de vermelho, até que finalmente tornou-se do tom de escarlate escuro de um sol baixo em um pôr-do-sol poeirento.

A chama estava crescendo rapidamente. Ela subiu no ar e dominou a fogueira do acampamento e então continuou a aumentar até que se estendeu sobre o pequeno fogo. Um cheiro estranho chegou às narinas de Darkmane, um odor com um pouco de enxofre e salitre. E isso ele sabia que era cheiro de magia!

Reagiu rapidamente, ficando logo de pé. Sua espada estava a seu lado no chão, de ponta para baixo, e ele colocou a mão sobre o punho. Seu ódio pela magia era tão grande que suas narinas haviam desenvolvido a capacidade de detectar o fraco odor e o avisaram em tempo hábil. Ele permaneceu em seu lugar e observava a chama crescer até ultrapassar sua própria altura.

Agora, alguma coisa estava acontecendo com a chama misteriosa. Seu brilho vermelho estava iluminando a clareira como o faria uma bola de fogo, mas o calor era pouco. Darkmane estava próximo a ela e ainda assim o calor dela não o fazia retroceder. Seus olhos se estreitaram e ele olhou para o centro; formas ardentes começavam a surgir.

De repente, e sem qualquer aviso, a chama elevou-se no ar — não muito alto, mas o suficiente para separar-se das outras chamas do fogo. Flutuou pelo chão para longe de Darkmane, até que estivesse bastante longe da fogueira do acampamento; então ela parou, tremendo etereamente no ar. As formas de fogo que ele vira dentro da chama agora estavam transformando-se em uma única forma de proporções rudemente humanas. Os nós dos dedos de Darkmane ficaram brancos quando ele apertou o cabo da espada com mais força.

Darkmane! Chadda Darkmane! Uma voz sussurrante, como a do próprio vento, disse seu nome. Ela parecia não vir de nenhum lugar, e ainda assim de todos os lugares.

Os cabelos na nuca do guerreiro arrepiaram-se. Isso era o que ele mais odiava sobre magia: você jamais sabia realmente se estava ou não em perigo. E se estivesse, você nunca sabia exatamente o que esperar. Ele permaneceu onde estava.

Chadda Darkmane! Não tenha medo. Largue sua arma. Você não precisa dela.

— Mostre-se! — rugiu Darkmane. — Se é amigo, então você não tem necessidade dessa alquimia e desse espetáculo. Mostre-se! Então poderei julgar por mim mesmo se


estou ou não em perigo. Eu não confiarei minha vida à palavra de alguém que não posso ver.

Ele se enfurecera. Sabia perfeitamente que todos aqueles magos amaldiçoados tinham uma queda pelo lado teatral; tal entrada dramática deveria supostamente insular medo na platéia e respeito pelo poder de seu realizador. Mesmo assim, Darkmane também estava apreensivo: ele se lembrava muito bem de que estava na Floresta de Yore. Se esta aparição fosse o Grande Mago, ou mesmo um de seus mensageiros, então ele deveria mostrar deferência.

Mas seus olhos estavam pregados na chama; o brilho vermelho estava morrendo. A chama estava se retraindo — mas retraindo-se para uma forma... uma forma humana. Enquanto ele observava, o brilho passara para o rosa e depois para uma cor ainda mais pálida. A forma tornou-se mais sólida; era uma jovem donzela — e muito bonita.

Ela levantou a cabeça e deixou que os longos cabelos caíssem flutuantes sobre os ombros. Os braços, atravessados sobre o peito até os ombros, pareciam agarrar o que sobrara do fogo; as chamas extinguiram-se imediatamente e formaram um longo manto, o qual ela puxou sobre os ombros. Ela deu um passo à frente e seus olhos prenderam o olhar de Darkmane. Sorriu suavemente, um sorriso que derreteria o coração de qualquer homem. Darkmane relaxou o apertão na espada.

Ele reconheceu o rosto: a mulher do poço! Aqueles olhos verdes melancólicos, como belas esmeraldas brilhando através da escuridão. E os cachos dourados cascateando até metade de suas costas.

Os lábios dela se abriram para que falasse. - Chadda Darkmane. Vejo que me reconhece, apesar de não me conhecer. É hora de me apresentar. Meu nome é Lissamina. - A voz suave enchia os ouvidos de Darkmane. Ela estava falando com ele, mas ao mesmo tempo ele estava ouvindo música. Ele estava enfeitiçado pelo encanto da mulher. - Eu vim não para amedrontá-lo, mas para ajudá-lo, se puder. Arrependo-me de minha entrada lhe ter causado alguma perturbação, mas esta é a magia que aprendi. Sei sobre sua missão e sei alguma coisa sobre as dificuldades que enfrentará. Pois esta é minha arte.

Darkmane acompanhava as palavras da mulher. Após uma momentânea perda da calma, seu autocontrole estava retornando. E ele bem sabia que, no referente a magia, as coisas não eram necessariamente o que pareciam ser. Apesar de ela ser bela e encantadora, ele não poderia dar-se ao luxo de confiar em Lissamina.

— Eu não sou do tipo que coloco minha fé na magia — disse ele. — Meu caminho é o da espada, onde o que é verdade é verdade e o que é real é real. Mas assim não acontece com o caminho por você escolhido. Meus olhos vêem uma jovem maga, cuja beleza se compara à das mais belas princesas de Allansia, oferecendo-me sua ajuda. Mas em minha mente ressoa um aviso: Isso é magia! Tudo isso não é o que parece.

Lissamina sorriu e assentiu lentamente com a cabeça. — Sua suspeita é compreensível e não fico ofendida. Na verdade, eu lhe agradeço por seu cumprimento que, tenho certeza, é por demais cortês. Minha chegada aumentou sua desconfiança. Que seja. Nada posso fazer para diminuir seus temores. Mas permita-me dizer-lhe um pouco sobre mim e sobre minha habilidade. Se você for capaz de utilizar-se dela, então por favor o faça. Se não o fizer, então será sua escolha. Primeiro de tudo, devo revelar-lhe um propósito que deve permanecer em segredo. Você concorda?

Darkmane não tinha nada a perder. Ele assentiu, concordando.

— Meu mestre é o seu mestre: o propósito Rei Salamon — começou ela. — Em seguida à sua audiência com o rei, fui chamada por ele. O rei estava preocupado por ter confiado uma missão de grande importância a um estranho pouco experiente — mesmo sendo um que tanto prometa. Minhas instruções foram de segui-lo em suas viagens e fornecer a ele as notícias de seu progresso. Mas para não interferir em seus assuntos, pois temia que meu propósito se tornasse conhecido e que a aparente falta de ) confiança dele em você comprometesse sua fidelidade.

O guerreiro alto ouvia intensamente. Sempre com suspeitas, ele procurava por falhas na estória dela que pudessem comprometê-la. Ele abriu um cobertor no chão e convidou-a para sentar-se.

Eles se sentaram juntos e ela continuou: — Por seis anos realizei meus estudos junto a Gelda Wane, em Silverton. Quando, há duas semanas, voltei a Salamonis, estava ansiosa em usar meus conhecimentos para servir meu rei. E aqui estava minha oportunidade! Meus contemporâneos na Guilda da Órbita eram invejosos — eu considerava como sendo ciúmes — mas não me importava com o ressentimento deles. Estava ansiosa para prosseguir com minha missão - tão ansiosa, de fato, que apareci junto ao poço para poder vê-lo pela primeira vez. E tenho seguido seu progresso desde então.

Darkmane considerou as palavras dela. Ela sabia sobre o poço, então ela era a mulher que vira. E ninguém mais estivera presente. Ninguém mais sabia do encontro. — O que mais sabe sobre mim? — perguntou ele.

— Bem, sei que viaja com um Chervah. — Ela deu uma pequena gargalhada. — Eu o acho bastante divertido. Você não?"

Ele ignorou-lhe a pergunta.

— E o Chervah está na floresta, procurando carne para você. Ele voltará logo com uma lebre e uma cobra."

Darkmane esquecera sua fome; de repente percebeu que provavelmente a criaturinha estava aterrorizada, sozinha em uma floresta escura. Ele se fora há algum tempo.

— Sei também que visitou o pai de Calorne Manitus e que Calome não estava em casa. Você agora está indo para o Porco Engordado, em Shazâar, à procura dele.

Darkmane levantou uma sobrancelha. Se ela dissera a verdade sobre sua tarefa, certamente estava fazendo seu trabalho com cuidado.

Ela viu que ele estava impressionado. — Bom, e posso contar-lhe mais. Posso contar-lhe algumas das histórias relatadas pelo Chervah enquanto atravessavam o Vale de Willow. Posso dizer-lhe o que teve que comer após ter acordado esta manhã. Posso dizer-lhe a cor... Ah, não. Oh, deus. — As belas bochechas dela coraram e ela levou a mão ao rosto para cobri-las. Darkmane riu alto. Agora ele estava mais relaxado; ela parecia estar dizendo a verdade. — Bem, então, jovem Lissamina — ele brincou, —, diga-me o que está fazendo aqui. Você tem me seguido em segredo por todo esse tempo. Por que escolheu este momento para revelar-se a mim? E contra os desejos do rei, também. O que a persuadiu a desobedecer ao rei?

— O rei jamais saberá, se você cumprir sua promessa e mantiver este encontro em segredo. Em todo caso, acho que o Rei Salamon está errado em manter-nos separados — posso ser de grande ajuda para você. Também, agora que já o observei, estou certa de que é um homem forte o bastante para que as suspeitas do rei não impeçam seu progresso. Elas não são pouco razoáveis pois você é - ou era - um estranho para ele. Você mesmo é tão descrente de magia. Todos nós suspeitamos daquilo de que nada sabemos. — Ela esfregou as mãos e levou-as ao fogo.

Darkmane abriu outro cobertor e colocou-o sobre ela. Sua mão pousou por um instante sobre o ombro dela. Ela percebeu o gesto e voltou os olhos para fitá-lo.

— Eh... Fale-me então desses seus poderes — disse ele, rápido, retornando a seu lugar junto ao fogo. — Como você acha que pode me ajudar?

Darkmane ouvira falar da professora dela, Gelda Wane, em Silverton. Gelda praticava e ensinava um tipo de magia que estava mais relacionada com predição de futuro do que com aparições e ilusões.

— As habilidades por mim aprendidas não se resumem apenas à clarividência — explicou ela. — Gelda Wane passou-me os poderes de predição dela. Sou capaz de ter visões de certas possibilidades que podem ocorrer no futuro. Essas visões aparecerão para mim em meus sonhos. Ver o futuro não é uma ciência exata, no entanto: sempre há muitas coisas desconhecidas. Mas irei ajudá-lo se o desejar. Às vezes, quando estiver incerto quanto aos resultados de seus planos — ou se deve seguir uma ou outra linha de ação — você pode me chamar para sonhar para você. Meus sonhos revelarão os resultados que poderiam advir de suas proposições.

Lissamina olhou para as mãos, cuidadosamente dobradas sobre o colo. Seus dedos começaram a se mexer, irrequietos. Ela não mencionara que seus poderes de ver o futuro não estavam livres de perigos. Sabia que o gasto de energia de entrar em seus sonhos de visão eram sérios. Quando sonhava sobre tempos que viriam, ela ficava fraca e depois tinha que gastar muito tempo recobrando suas energias. Ela não desejava incomodar o guerreiro com esses problemas. Por um instante fitou, do outro lado da clareira, as sombras das árvores que, lançadas pela luz bruxuleante da fogueira, dançavam sobre a vegetação rasteira mais além.

Darkmane fitava o fogo, ponderando sobre a oferta dela. Finalmente falou. - Como irei chamá-la — perguntou-lhe ele — quando quiser que me prediga meu futuro?

— Nós devemos nos comunicar à noite — explicou ela. - Pense em mim quando estiver quase adormecendo.

Isso não vai ser muito difícil! pensou Darkmane.

— Nós nos comunicaremos através de seus sonhos. Ele assentiu, pensativo. — Deixe-me perguntar

isso também — disse ele. - Você tem clarividência e poderes de prever o futuro. Qual é seu conselho para mim? Devo procurar por aventureiros em Shazâar, como planejo? Ou deveria escolher outro futuro?

Ela parou para pensar por um instante e então respondeu: — Você deve saber disso. Zharradan Marr conseguiu incitar os Ganjees a saírem da cidadela de Dire. Eles possuem o segredo da magia de combate. Se ele conseguir persuadi-los a dividir o segredo com ele, certamente será o vencedor desta guerra — e a curto prazo. Eu sei de seus planos de prolongar a guerra. Se os Ganjees puderem ser persuadidos a permanecerem neutros, talvez isso fosse de boa ajuda à sua causa. Se falhar aqui, Marr deve ficar privado de suas ilimitadas tropas de Sem-Almas. Porém, como as coisas estão, os combates definitivamente estão pendendo a favor do necromante.

Darkmane estava chocado. Sem as criaturas-espírito, o equilíbrio de poder certamente estava pesando para um lado.

De repente, uma voz vinda da profundeza da floresta o acordou. — Mestre! Sire! Socorro!

Ele virou-se na direção da voz. O Chervah! E parecia que estava em apuros.

O guerreiro agarrou a espada e pulou do fogo até o limite da clareira. Ele perscrutou a vegetação. "Esse pequeno tolo teve..." Suas palavras morreram quando ele percebeu que não estava falando com ninguém. A maga misteriosa desaparecera.

O Chervah arquejava pesadamente enquanto avançava através da vegetação, afastando folhas e galhos com uma mão. A outra estava segurando sua besta e uma rede. Um barulho de passos estava vindo atrás dele. Alguma coisa o estava seguindo... alguma coisa grande.

Ele entrou correndo na clareira. Darkmane o agarrou.

— Sire, por favor! Precisamos ir! Ela está vindo! Rápido!"

— O que está vindo? Acalme-se, Chervah! Fique quieto, seu idiota! O que o está seguindo?

Mas antes que o Chervah pudesse falar, as perguntas de Darkmane foram respondidas. Uma forma escura e arredondada surgiu dos arbustos para a clareira. A bola de pele negra tinha uma linha distinta que corria em toda extensão de suas costas. Ela parou em frente à fogueira e ficou de pé nas duas patas traseiras para enfrentá-los. Seus olhos os fitaram com um olhar de fúria e os lábios negros estavam levantados para trás para revelar dentes pontiagudos. Garras mortais safam das patas peludas da criatura enquanto ela avançava na direção deles com um grande rugido que mandou o Chervah voando para a mata, em fuga por sua vida. Darkmane manteve sua posição e agarrou sua espada com ambas as mãos. Ele já lutara com um Urso-gambá antes. Moveu-se lentamente para a esquerda, mantendo o fogo entre ele e a criatura enraivecida. O Urso-gambá rugiu uma vez mais, caiu sobre as quatro patas e correu em volta do fogo com rapidez surpreendente. Darkmane levou sua espada para trás, pronto para o golpe, e então introduziu-a no peito da criatura. O Urso-gambá grunhiu de dor enquanto a lâmina vertia sangue. Ela atacou Darkmane ferozmente com suas garras afiadíssimas, errando-lhe o braço da espada por um fio de cabelo. Darkmane preparou novo golpe dirigido à cabeça do Urso-gambá, e desta vez a espada atingiu profundamente bem abaixo da orelha. Os ossos foram ruidosamente esmigalhados quando a lâmina entrou no crânio da criatura, e Darkmane lutou para tirá-la de lá. Quando o fez, o Urso-gambá, agora dono de uma ira desvairada, pulou sobre ele. Ele gritou de dor quando as garras passaram sobre seu peito rasgando-lhe a túnica. Ele protegeu o estômago com o braço livre e deu um passo atrás para conseguir equilíbrio.

O Urso-gambá deu-lhe as costas e levantou a cauda. Darkmane já vira isso acontecer antes. Ele sabia o que vinha a seguir e mergulhou atrás dos arbustos no exato instante em que um jato de líquido alcançou as folhas que estavam diante dele. Dando uma inspirada profunda, o guerreiro ficou sem fala; o fedor do jato do Urso-gambá era horrendo — os esgotos de Porto Blacksand eram perfume se comparados com este fedor pútrido. Darkmane cambaleou para o lado enquanto a criatura voltava-se para ele e avançava.

— Corra, sire!

Darkmane ouviu a voz trêmula do Chervah. A pequena criatura reencontrara a coragem e voltara, com a besta pronta, para ajudar seu mestre. Mas então, o cheiro do jato do Urso-gambá alcançou-lhe as narinas.

— Oh, poderosos deuses! O bafo fedorento de um arroto de demônio bêbado! Que cheiro!

Ele lançou de sua besta uma flecha muito mal mirada e perdeu o Urso-gambá — mas isso serviu para distrair o animal enquanto Darkmane se preparava. A segunda flechada do Chervah foi mais cuidadosa. Quando o Urso-gambá avançou na direção de Darkmane, o Chervah lançou uma flecha que enterrou-se tão profundamente na pata da criatura que a ponta surgiu do outro lado. A criatura rugiu de dor e Darkmane aproveitou a oportunidade. Segurando a espada sobre a cabeça, apontou para a frente, arremeteu-se na direção da criatura para enterra-lhe sua arma no pescoço. O Urso-gambá abriu a boca para rugir novamente. A espada errou o alvo inicial e, ao invés disso, desapareceu entre as mandíbulas da criatura. O rugido transformou-se abruptamente em gorgolejo e o Urso-gambá caiu no chão, com a ponta da espada ensangüentada surgindo do outro lado da garganta.

Os dois aventureiros caíram de joelhos, exaustos. Ambos fitavam a imensa carcaça.

Foi o Chervah quem falou primeiro. — Bem, sire, o senhor me pediu para trazer-lhe um pouco de carne...

Ele olhou nervosamente para Darkmane. Percebeu que a criatura que o seguira de volta até o acampamento poderia facilmente estar-se fartando com eles.

A expressão solene de Darkmane não se alterou quando seu rosto duro voltou-se para a criaturinha. Ele viu a apreensão nos olhos do Chervah. Rugas formaram-se em ambos os lados de sua boca. Sua cabeça caiu para trás e ele riu alto.

— Sim, criado —, bradou ele — isso você fez. E parece que me trouxe escolhas variadas. O que temos para hoje? — Ele olhou para a rede, que ainda estava presa na mão do Chervah. - O que temos aqui? Uma lebre esquálida? Uma pobre cobra rastejante? Em nenhum deles há carne o suficiente para uma boa refeição. Esta noite comeremos bem. Eis aqui sua carne. Venha, Chervah. Cuide primeiro de meus ferimentos. Então você pode esquartejar este Urso-gambá e preparar-me o jantar.

 

Charnley Troone abriu a porta de sua cabana e inspirou longamente antes de entrar. Sua esposa havia preparado uma panela de ensopado de nabo que borbulhava ao fogo. Toggi e Mindi, seus dois jovens filhos, brincavam a um canto da cabana. Cada um deles segurava um pequeno bastão. Enquanto Toggi segurava o bastão à sua frente agarrando cada ponta com uma mão, Mindi tentava acertá-lo com seu próprio bastão antes que Toggi puxasse o seu. Enquanto brincavam, seus gritos alternavam-se entre risco e raiva. Shabitha Troone, segurando em seus braços um bebê que chorava, pedia-lhes que ficassem quietos.

O jogo ficou esquecido quando Charnley entrou. Shabitha suspirou de alívio quando as duas crianças largaram seus bastões e correram para falar com o pai, que os levantou nos braços e os abraçou apertado. Ele sorriu para Shabitha. Ela o conhecia bem; aquele sorriso seco significava que ele tivera um dia difícil nos campos.

Era a estação de colheita de tubérculos; trabalho estafante para as costas, cavar o solo para encontrar as gordas plantas sob a terra, e então o mesmo árduo cabo-de-guerra contra as raízes para puxá-las de dentro da terra. Os homens de Coven economizavam suas forças para a colheita de tubérculos, e quando ela estava terminada eles celebravam com o seu Festival do Limmannin, que durava dois dias. Charnley estava ansioso pelas celebrações, na próxima semana, mas, até lá, ele e mais todos os trabalhadores do campo que moravam na vila poderiam esperar por mais cinco dias de dores, bolhas e suor.

— Quantas hoje, Pai? — perguntou Toggi.

— Trinta e quatro.

— Trinta e quatro.' Uau! Deixe-me ver suas mãos! Toggi estava fascinado pelas mãos de seu pai após

um dia de trabalho árduo. Se alguma bolha nova surgisse, seus olhos se abririam de admiração, como o filho de um soldado admiraria os ferimentos de guerra do pai. Sendo o mais velho dos dois, Toggi sabia que logo estaria ajudando seu pai nos campos; e ansiava pelo dia em que ele também trabalharia tão duramente que surgiriam bolhas em suas palmas.

— Uau! Veja esta, Mindi! Caramba, ela deve doer, não é, pai?

O pai assentiu.

Os Troones sempre haviam vivido em Coven e não vislumbravam nenhum outro futuro que não o de permanecer lá. Charnley não era nem um homem ambicioso nem particularmente inteligente. Mas tinha um rosto gentil e maneiras agradáveis, e sabia contar uma boa história. Trabalhava duro nos campos e construíra uma boa cabana para sua família nos limites da vila. As paredes de barro e o telhado de sapê até então os tinham protegido da hostilidade dos elementos naturais.

Shabitha Troone mantinha o único aposento limpo e cuidava das cabras e galinhas no quintal. Ela tivera três filhos de Charnley: os dois meninos e a sua irmã, ainda bebê, Bethalee. Tomar conta da cabana e das crianças era mais do que um trabalho de horário integral, e ela estava sempre esperando ansiosa pela volta de Charnley, vindo dos campos, para que pudesse ter uma folga em cuidar das crianças. Ela agora estava servindo o ensopado de nabo em tigelas de madeira enquanto a família se sentava à volta do fogo.

— Ouvi falar que estão tramando confusão — disse Charnley entre colheradas de ensopado.

— Que confusão? — perguntou Shabitha.

— Já ouviu falar de Lorde Balthus Dire?

— Não.

— Parece que ele e Lorde Zharradan estudaram juntos. Agora ele vive ao sul, nos Rochedos Craggen, em uma grande torre. Aconteceu alguma coisa entre eles — ninguém sabe exatamente o que — e eles estão com inimizades um contra o outro. O pessoal diz que, se as coisas piorarem, Lord Zharradan recrutará um exército.

Shabitha parou de comer e olhou para Charnley gravemente.

— Um exército?

— É o que dizem.

— De Coven?

— Talvez de Coven. Ou de Salamonis. Ou talvez ele possa mesmo trazer mercenários das Terras Planas.

Sua esposa estava temerosa. Apesar de odiarem Zharradan Marr, ele sem dúvida alguma trouxera paz para a vila. Antes de sua chegada, Coven fora um alvo contínuo para o ataque de bandidos. Mas desde que se tornara seu senhor, os ataques haviam parado; ninguém se atreveria a atacar sua vila.

Os olhos dela se abaixaram. - V-v-você... Pensa você que pode ser chamado para esse exército dele?

— Não posso dizer. — O rosto de Charnley estava sombrio. — Mas você sabe que não posso recusar se o meu senhor pedir meus serviços. Mesmo que eu esteja ressentido — todos estamos — de ter que servir tal patife malévolo.

Shabitha estava quase em prantos. Os dois garotos haviam silenciado por causa da conversa e agora olhavam, boquiabertos, para o pai.

Charnley tentou confortar a esposa: - Não tema, minha querida. Quem sabe. talvez isso não seja nada além de um rumor idiota. De qualquer maneira, Lorde Zharradan não nos mandaria embora durante a colheita de tubérculos. Talvez as coisas desapareçam antes do fim da colheita.

Acabaram a refeição em silêncio. Até mesmo Charnley estava preso em pensamentos, remoendo os temores que não ousara expressar para Shabitha. Ele jamais fora chamado para serviço militar antes. Não tinha nenhuma espada, nenhuma armadura. Quais seriam as chances de um exército de camponeses contra soldados treinados?

— Ouçam ! — O sussurro de Toggi quebrou o silêncio.

— O que é isso? — perguntou Shabitha.

— Ssssh.

— Não consigo ouvir nada.

— Ao longe. Ouça.

Todos ouviram com cuidado. -Lá!

— Sim - disse Shabitha. — Posso ouvir alguma coisa lá fora. Parece com...

— Está chegando mais perto.

— O que é isso?

Os sons estavam ficando realmente mais próximos. Vindo de longe, um barulho retumbante e ameaçador se aproximava. A medida que se tornava mais alto, Charnley conseguia identificar sons isolados: o tropel de passos ao longe; o tinir de metais; um assovio alto ocasional, seguido, como se fosse uma resposta, de um rugido de reagrupamento. Estava chegando mais perto.

Uma tempestade se avolumava. Uma tempestade do mal.

Charnley correu para a porta da cabana, abriu-se e saiu. Mais adiante na estrada poeirenta, as cabeças de seus vizinhos apareciam nas portas.

— Vejam! — gritou alguém. — Lá longe! Vindo na nossa direção!

Os outros correram para onde ele estava e olharam para o sul, seguindo a direção indicada pelo dedo trêmulo. Ele estava apontando para o Passo de Trolltooth.

— Vejam! — O tom da voz havia mudado; ele não podia esconder o medo que sentia. — Oh, meus deuses! Há centenas deles! E estão todos vindo nessa direção!

Charnley podia vislumbrar luzes tremeluzindo ao longe. Tochas! Elas estavam agrupadas em uma linha reta até onde sua vista alcançava — e elas estavam avançando! A luz fraca das tochas caía sobre os carregadores de tochas e iluminava atrás deles uma visão ainda mais aterradora. Seguindo os carregadores de tochas havia mais figuras - figuras de todas as formas e tamanhos. E quando ocasionalmente a luz das tochas faiscava no metal aquilo significava apenas uma coisa: essas figuras estavam vestidas com armaduras de combate.

Os sons eram mais claros agora; não havia engano quanto ao progresso constante do exército em marcha. Os gritos e grunhidos das criaturas avançando eram trazidos pelo vento até os ouvidos do grupo de aldeões aterrorizados. Soou um assovio crescente. Ele foi respondido primeiro por um rugido vindo das tropas e depois por um tropel alto, quando várias centenas de pés bateram em conjunto no chão.

Os aldeões começaram a berrar.

— Estão nos atacando!

-Soem o alarme!

— Temos que fugir!

— Não! Nós devemos ficar e defender nossas casas e famílias!

— Alertem a vila!

— Quem avisará Lorde Zharradan?

— Shabitha! Junte as crianças!

A última exclamação viera de Charnley Troone, que agora entrava correndo na cabana, esquecido de seu cansaço. Ele escancarou a porta. Shabitha e os meninos estavam de pé ao lado do fogo; eles o fitaram, ansiosos.

— O que é, pai?

— Atacantes! — ofegou ele. — Vindo para cá. Centenas deles. Rápido! Precisamos fugir! Eles estarão aqui em minutos!

— Oooooooh! Shabitha estava paralisada de medo.

— Rápido, mulher! — bradou Charnley. — Não há tempo para o medo. Precisamos juntar nossas coisas e fugir se quisermos escapar com vida!

Mas suas palavras não tiveram efeito. Ela permanecia onde estava, soluçando histericamente e apertando em desespero a pequena Bethalee.

Charnley a agarrou e a sacudiu. — Não me ouviu? Eles chegarão aqui! Precisamos fugir para leste, para a Floresta de Knotoak. Tenha bom senso, mulher.

Ela gemeu novamente e caiu, soluçante, nos braços dele. Ele a abraçou apertado, mas então empurrou-a para longe. Havia muito a ser feito, e em pouco tempo. Pegou o bebê enquanto ela secava o rosto.

Ela finalmente conseguiu se recompor e começou a jogar seus pertences dentro de um bornal imundo. Os garotos enfiavam roupas e comida dentro de um saco de grãos. Charnley procurou embaixo do seu colchão de palha, apanhou uma pequena bolsa com as poucas moedas de cobre que haviam economizado e colocou-a no bolso de seus culotes. Ainda segurando Bethalee com um braço, pegou um forçado com o outro e mandou que Shabitha e os meninos se apressassem.

Um sino começou a se fazer ouvir na capela em ruínas ao norte da vila; o alarme finalmente soara. A vila agora estava alertada, e o alarido ficou mais intenso enquanto os camponeses corriam para todos os lados, inseguros do que fazer. Mulheres se lamentavam, crianças choravam e homens gritavam furiosamente, os ânimos exaltados. O povo de Coven achava-se num estado de confusão e terror. As ruas da cidade estavam apinhadas de gente correndo a esmo. Algumas pessoas carregavam ou arrastavam cestas e sacos entupidos de pertences. Outras gritavam, frenéticas, os nomes de amigos e pessoas queridas, perdidas na multidão. Outras ainda, não desejosas de deixarem suas casas, haviam resolvido fazer barricadas e preparavam suas parcas defesas contra os invasores.

Mas o exército invasor chegara aos limites externos de Coven.

"ATACAR!" veio o grito, seguido de três sopros arrepiantes vindos de uma cometa de chifre. E as legiões do próprio inferno desceram em fúria sobre os aldeões indefesos.

Indescritíveis criaturas do caos e do inferno caíram sobre Covem brandindo suas violentas armas: Goblins da Montanha com suas espadas curtas e seus alfanjes; Ores de bocas fedorentas e dentes selvagens. Negros Cães do Inferno rugiam e espalhavam chamas para todos os lados.

Os terrores desconhecidos desabaram. Criaturas altas e de duas cabeças, vestindo capas encouraçadas, brandiam foices de cabos longos, limpando o caminho à sua frente e deixando uma trilha de corpos enquanto avançavam. Gigantescas criaturas voadoras, de pernas cabeludas, garras afiadas e mandíbulas cortantes pairavam no ar. Pequenos demônios sem olhos e de rostos peludos estavam armados com arcos curtos, e atiravam, com mira apurada e fatal, uma saraivada de flechas sobre os aldeões em fuga. E criaturas-aranha gigantes erguiam-se sobre as cabanas, esgueirando-se pela vila com pernas longas e esguias.

— Mindi! Cuidado! — gritou Charnley.

Ele agarrou o menino e o puxou para um lado no exato instante em que a tromba gorda de uma criatura-aranha bateu no chão no lugar onde ele estivera. De suas concavidades nojentas jorrou um vapor, que foi sugado de volta no ar em espirais, na direção daquela horrenda cabeça, que agora olhava em volta à procura de outra vítima.

— Você está bem, filho?

— Sim. Pai, estou bem. O-O que era aquilo?

— Não sei. Nunca vi nada parecido com aquilo. Onde estão os outros?

No meio da confusão, Shabitha fora arrastada pela multidão em pânico, junto com Toggi e Bethalee. Ela também acabara de perceber que eles se haviam separado de Charnley. — Toggi! Você pode ver seu pai? Onde está Mindi?

— Não sei. Mãe! Cuidado!

Um Ore de nariz achatado soltou um grito de entusiasmo enquanto, correndo através da multidão, balançava o cutelo perigosamente perto de Shabitha. Ela evitou o golpe e a lâmina do cutelo enterrou-se profundamente no lado de uma carroça abandonada. Com uma gargalhada maníaca, o Ore passou por Shabitha e Toggi e continuou no meio da multidão.

— Onde está o pai? Não posso vê-lo!

Toggi estava em pânico. Vindos da escuridão surgiram alguns Ores, rosnando. Ele não tinha nenhuma arma; eles podiam apenas fugir das criaturas horríveis. Mas para onde quer que se virassem, eram bloqueados por aldeões em pânico.

Ele agarrou a mão de sua mãe e puxou-a. — Veja! Lá estão o pai e Mindi! — Toggi vislumbrou Charnley de pé, no meio da estrada, procurando em desespero pela mulher e o filho. — Pai! Estamos aqui!

Mas Charnley não podia ouvir Toggi em meio ao caos. Ele agachou-se bem em tempo quando uma criatura-mosca do tamanho de um cão alado mergulhou, com as garras preparadas para agarrá-lo. A criatura peluda deu um giro e voltou-se para atacar uma vez mais. Mas desta vez Charnley estava preparado. Ele permaneceu onde estava e segurou o forcado em ambas as mãos. Quando a criatura entrou em seu raio de ação, ele a alvejou com o forcado, atingindo-a embaixo da barriga. Uma tocha em brasa voou pelos ares, lançada por um dos carregadores do caos. O horror alado mergulhou rapidamente para evitá-la e Charnley sentiu o baque pesado quando ela aterrissou no seu forcado. O monstro foi empalado pelos dentes da arma, que se enterraram em seu abdômen. Ela guinchou em agonia e um líquido grosso marrom-esverdeado escorreu pelo cabo do forcado. Charnley sentiu as mãos queimarem quando o líquido as alcançou e ele largou a arma.

A criatura caiu no chão com um baque. Imediatamente, duas criaturas semelhantes dardejaram do céu e aterrissaram sobre a criatura-mosca, despedaçando o corpo negro com voracidade, mandíbulas estalando. Charnley afastou-se, horrorizado, e agarrou Mindi, virando-o de costas para a visão. De repente ele ouviu uma voz familiar atrás de si.

— Pai! Aqui! Estamos aqui! Esperem! Mindi! Toggi estava correndo na direção deles, forçando

através da multidão.

—Toggi Aqui! Espe... NÃO! CUIDADO!

Ele percebera um dos arqueiros de rosto peludo fazendo pontaria na direção de Toggi. O arqueiro puxou a corda do arco e atirou a flecha na multidão de aldeões.

— NÃO! Nãããão! TOGGI! - Charnley Troone gritou.

A multidão se separou rapidamente quando a flecha caiu sobre eles. Milagrosamente, a flecha não alcançou ninguém. Charnley soltou um suspiro de alívio quando viu que ela caíra sobre a parede de uma cabana. Mas a multidão dividida levara Toggi para longe dele. Toggi não estava em nenhum lugar que pudesse ser visto.

Shabitha sentia-se mal. Ela ouvira os gritos, mas não vira o que acontecera. Em todos os lados, os aldeões abriam o caminho para um lado ou para outro. Desorientara-se e não tinha a mínima idéia para onde fugir. E a pequena Bethalee, envolta em seus braços, choramingava de medo. Escolheu uma direção e avançou para a frente, com lágrimas correndo por suas bochechas. Se ao menos pudesse encontrar Charnley!

Ela percebeu um rosto familiar na multidão — as sobrancelhas grossas, barba cerrada e gorro de lã de Grummold Noomran. Grummold era uma alma velha e gentil que vivia sozinho, bem próximo aos Troone. Antes de estabelecer-se em Coven, fora lenhador na Floresta de Knotoak, e as crianças adoravam ouvir as histórias das criaturas que ele encontrara - apesar de a maioria delas provavelmente ser mais fantasia do que fato.

Para Shabitha, o rosto de Grummold pareceu-lhe um raio de luz na escuridão. Ela foi na direção dele. — Grummold! Grummold Noomran! Socorro! Oh, por favor, ajude! Você viu Charnley? Eu perdi meu marido! Por favor! Me ajuda!

Ele estava freneticamente abrindo seu caminho entre a multidão. Suas feições normalmente calmas haviam adquirido um ar pouco familiar, agressivo — quase selvagem — enquanto ele lutava com o mar de pessoas que lhe barrava o caminho. Seus olhos dardejaram na direção de Shabitha e, por um instante, sua expressão furiosa relaxou. Mas não havia nada que pudesse fazer por ela. Agora, era cada um por si. Se ele parasse para ajudar essa mulher, então, sem dúvida alguma, ambos seriam pegos pelos atacantes. Os olhos dele se desviaram e ele continuou a lutar contra a multidão.

Shabitha estava arrasada. Ela se virou, primeiro para um lado, depois para outro. Agora ela já estava tão confusa que chegava ao total desespero. Permaneceu no meio da estrada, agarrada a seu bebê, incapaz de decidir o que fazer ou para onde ir. Parecia estar virada para a direção errada. Os aldeões em fuga todos passavam correndo por ela, aparentemente fugindo de alguma coisa. Mas Shabitha não mais se importava. Ela não poderia fazer nada além de ficar onde estava, chorar e agarrar Bethalee mais apertado.

Charnley e Mindi viraram uma esquina e chegaram à praça no centro de Coven. A situação era desesperante. Charnley voltou-se para ver a terrível devastação do que antes fora seu lar. Chamas elevavam-se alto no céu. Colunas de fumaça escura erguiam-se das cabanas secas que as tochas dos atacantes haviam incendiado. Os sons de batalha enchiam seus ouvidos. Gritos de assassinato e morte ainda ecoavam ao longe. E os atacantes ainda estavam avançando.

Uma multidão se amontoava em torno da praça da vila. Parecia ser o local lógico para onde as pessoas se dirigirem e poderem decidir o que fazer a seguir. Ninguém tinha uma idéia clara, mas as palavras "Floresta de Knotoak" podiam ser ouvidas em meio ao burburinho geral. O consenso parecia ser de que os aldeões deveriam fugir para a floresta.

Mas Charnley não poderia escapar. Primeiro precisava encontrar Shabitha, Toggi e Bethalee.

Ele puxou Mindi para si na frente da cabana do homem dos remédios. — Mindi, preciso encontrá-los. Eles podem estar em apuros.

— Sim, pai. Eu ajudo.

— Não, Mindi. E perigoso demais. Você deve esperar aqui até que eu volte.

— Não, pai! Eu vou com você. — Havia lágrimas nos olhos dele.

— Não vou demorar. Você sabe como sua mãe fica amedrontada. Eu os acharei mais rápido se você permanecer aqui.

Mindi ficou em silêncio, olhos voltados para o chão. Lágrimas rolavam por seu rosto.

— Você deve ser corajoso, Mindi. Eu vou ficar longe por alguns minutos. E se eu não voltar logo, siga a multidão para dentro da Floresta de Knotoak e o encontrarei lá, junto com sua mãe, Toggi e a pequena Bethalee. Você vai fazer isso por mim?

Mindi tentava ser corajoso. Ele assentiu, limpando os olhos com as costas das mãos.

— Bom menino. Cuide-se. E lembre-se: se eu não voltar logo, siga a estrada para leste que nós o veremos na floresta. Tenho um serviço muito importante para você. Quero que você tome conta disso para mim.

Tirou do bolso a sacola com as moedas de cobre, colocou-a na mão de Mindi e fechou os dedos de seu filho em volta dela. Beijou o topo da cabeça do menino, virou-se e foi na direção de sua cabana para procurar por Shabitha. Mindi observou-o ir.

Foi a última vez que Mindi Troone viu seu pai.

 

O ataque a Coven realizado pelas hordas do caos de Lorde Balthus fora impiedoso. Os poucos aldeões que sobreviveram foram forçados a fugir para dentro da Floresta de Knotoak e de lá seguiram mais profundamente até a Floresta das Aranhas. Alguns seguiram a trilha e procuraram refúgio nos Campos de Teste de Lord Zharradan, onde Thugruff dera ordens para que s<5 fosse permitida a entrada de homens de corpos saudáveis; para ele de nada valiam mulheres e crianças. Outros deixaram os caminhos e vagaram pelas florestas à procura de um bom lugar para construir um acampamento improvisado como lar temporário. Mas a horripilante experiência do ataque mostrava-se em seus olhos. Eles não sabiam quão "temporário" seriam seus novos lares.

Coven fora completamente destruída. Tudo o que restara da outrora pequena vila pacífica fora um monte esparso de brasas ardentes, como se fossem muitas gigantescas fogueiras de acampamento apagadas. Em toda parte viam-se os restos medonhos daqueles desafortunados que não haviam escapado. Alguns estavam sem membros; alguns meio comidos; outros haviam sido decapitados. A maioria era dificilmente reconhecível como os camponeses simplórios que haviam sido uma vez.

Depois que os atacantes fizeram sua pilhagem das ruínas de Coven, retornaram na direção dos Rochedos Craggen ainda gritando, entusiasmados com a carnificina que haviam realizado. Fora uma boa noite.

A contagem de corpos mostrara que suas baixas haviam sido mínimas, quase insignificantes. Duas das criaturas-mosca gigantes haviam sido empatadas com lanças improvisadas; três Goblins da Montanha ficaram presos quando uma cabana em chamas desabara; dois Ores enfurecidos haviam se matado em uma briga, discutindo sobre quem poderia reclamar a filha do amolador de machados como prêmio. Essas baixas haviam sido ensacadas e levadas embora pelos homens de Zharradan Marr.

Zharradan Marr fervia por dentro enquanto ouvia a descrição da cena. Por sorte, os atacantes não descobriram nenhuma das entradas para os domínios subterrâneos de Marr. Suas masmorras — e suas minas — estavam a salvo. Mas, apesar de sempre ter desprezado os fracotes que habitavam a vila, suas plantações serviam para alimentar seu exército e seus escravos.

Seus olhos vermelho-escuros estreitaram-se quando ele voltou a se sentar em sua cadeira. O sargento de armas tentou estudar sua expressão, mas descobriu-se incapaz de olhar para o sinistro rosto verde de Marr. Era como se estivesse sendo forçado a um estado de humildade pela simples presença de Zharradan Marr.

O necromante finalmente ergueu um único dedo ossudo e cocou a ponta de sua orelha. — Encontre Thugruff - sibilou ele. — Diga-lhe para preparar o Galleykeep. Amanhã nos dirigiremos para sul!

O Galleykeep era a suprema máquina de guerra de Zharradan Marr: um majestoso galeão voador com imensas velas negras que captavam o vento e suavemente levavam o navio através do ar. Como um espetáculo, a magnificência dele era incomparável. Aqueles que viam o Galleykeep passar sobre eles acreditavam estar vendo os próprios deuses velejando. Como um navio de transporte, ele poderia carregar um milheiro de tropas ou tanta carga quanto os carregamentos que atravessavam o Passo de Trolltooth, por terra, em dez semanas. Como nave de combate, seu poder era surpreendente: poderia ser atacado somente por canhões ou criaturas voadoras — na verdade, foram as leais tropas voadoras Tooki, de Marr, que primeiro capturaram o Galleykeep. E possuía uma impressionante variedade de armas letais, tais como canhões-tridente e balões de potassa, exclusivos do Galleykeep.

O sargento de armas estava cocando o queixo quando deixou os aposentos de seu senhor. O Galleykeep, pensou ele. Isso significa que Lord Zharradan velejará direto para os Rochedos Craggen e pegará Dire em seu próprio território? Ele balançou a cabeça. Não acreditava que tivessem vantagem suficiente para arriscar um ataque de tal ousadia. Mesmo assim, apressou o passo para transmitir a mensagem de Zharradan para Thugruff.

Mas Zharradan sabia que não deveria ousar o risco de levar o Galleykeep em uma viagem que adentrasse o território de Dire. Balthus Dire era um feiticeiro de grande poder, e se seus recursos mágicos fossem usados contra o navio, Marr não tinha certeza de que sairia vencedor. Seria extremamente imprudente para Zharradan Marr ficar assim tão exposto. Como todos os generais, ele deixaria suas tropas correrem os riscos e lutarem as batalhas. Só se aproximaria para pegar os louros da vitória quando a batalha já tivesse sido vencida.

Em vez disso, ele estava planejando usar estrategicamente o galeão voador. Já era tempo de definir a batalha. Suas tropas deveriam ser mandadas para a guerra.

Tanto a força como a fraqueza de Balthus Dire derivavam da localização de seu quartel-general. No alto dos Rochedos Craggen era um alvo militar difícil; nenhum exército poderia tomá-lo facilmente. A jornada, para qualquer força suficientemente grande, seria extremamente perigosa. A subida lenta permitiria que batedores da montanha tivessem uma visão acurada do progresso do exército, e existiam muitas localidades para se realizar emboscadas e quedas de pedras. O grupo atacantes de Thugruff tivera sorte; Marr sabia que Dire já teria se prevenido contra um outro ataque dessa natureza.

O necromante, por sua vez, não estava tão bem defendido. O massacre de Coven mostrou-lhe exatamente quão próximo Balthus Dire poderia chegar. Apesar dos atacantes não terem conseguido encontrar as entradas para sua masmorra, eles sem dúvida alguma haviam passado muito perto de uma ou mais das localizações secretas.

Porém, o simples fato de a Torre Negra ser tão inacessível trazia problemas a Balthus Dire. Era difícil às suas próprias tropas moverem-se maciçamente. As rotas de suprimentos eram facilmente sabotáveis.

Marr fazia planos de sitiar de longe a Torre Negra.

Os suprimentos chegavam à cidadela trazidos do norte e do oeste. Para leste e sul não havia nada além dos picos inóspitos das Montanhas Craggen. Nada além de musgo de rocha e frágeis arbustos crescia nessa área. Era verdade que um tipo selvagem de cabrito montes podia ser encontrado por todas as Montanhas Craggen, mas eles eram caça difícil e certamente em número insuficiente para prover comida a todos os habitantes da Torre.


No decorrer das semanas seguintes, Zharradan Marr enviou tropas pelo Galleykeep. A prioridade era montar guarda nos estreitos do Passo de Trolltooth. O desfiladeiro precisava ser patrulhado todas as horas, pois seria difícil evitar que Dire enviasse grupos a cavalo que seguissem para leste das Montanhas Graggen e fossem para o lado sul do Passo.

Outras tropas estavam posicionadas nas margens do Rio Águas Brancas, ao sul do Vale dos Salgueiros. Dali eles poderiam construir jangadas e barcos para patrulhar os dois afluentes que desciam dos Rochedos Craggen e que alimentavam o veloz Águas Brancas. Os suprimentos para a Torre Negra tinham que atravessar esses afluentes e as tropas de Marr bem sabiam as penalidades terríveis que enfrentariam se falhassem em evitar que todo o suprimento fosse bloqueado.

O Galleykeep tornou-se o novo escritório de batalha de Zharradan Marr. Ele não poderia arriscar mais nenhum contato imediato com seus inimigos. Apesar de preferir seu santuário sob a terra, a necessidade ditava que ele deveria manter seus aposentos a bordo do galeão voador.

Escaramuças e batalhas entre as forças em guerra passaram a tornar-se ocorrências diárias. No início, as tropas de Marr tiveram sucesso em cortar as linhas de suprimentos. Os comerciantes que se dirigiam para a Torre Negra eram forçados a retornar ou eram massacrados. Foram enviados Goblins da Montanha para passar com suprimentos e havia combates em toda a extensão dos afluentes do Águas Brancas. No Vale dos Salgueiros, onde o Águas Brancas atravessava a Floresta de Yore, o povo falava sobre os dias em que se podia ver que a água tinha outra tonalidade: algumas vezes de um rosa claro, outras de um verde claro. E houve um efeito marcante na vegetação das margens do rio: as flores começaram a murchar e a cor verde normal do capim e das plantas frondosas pareciam de uma palidez doentia para a época do ano.

Então, para grande vergonha de Balthus Dire, os sopés dos Rochedos Craggen tornaram-se, por um tempo, o campo de batalha dos Guerras de Trolltooth. Ele estava na defensiva. Precisava desesperadamente que os suprimentos conseguissem passar. Mas apenas uma entre quatro caravanas conseguia chegar até ele com segurança, graças às ordens de "atacar e destruir" de Zharradan Marr. Logo os mercadores independentes não mais se arriscariam a ir até a Torre Negra — mesmo com os altos preços oferecidos.

Era hora de Balthus Dire realizar sua campanha, hora de enfrentar alguns riscos — riscos que poderiam ser desastrosos para ele ou que poderiam trazer forças de poderes desconhecidos para o seu lado na batalha.

Era hora de usar a cunnelwort.

 

— E olhe para aquilo! - sussurrou o Chervah. - O que eles pensam que estão fazendo?

Darkmane seguiu os olhos de seu serviçal. O Chervah estava olhando para dois homens de pé em frente a uma construção pela qual estavam passando. Um deles tinha unhas longas e arranhava estranhas formas em seu próprio peito. O outro estava deitado sobre uma mesa, pintando-se todo com um pigmento negro.

Ele deu de ombros. Darkmane não tinha a mínima idéia do que estariam fazendo.

Chegaram a Shazâar.

Estavam com machucados por causa das selas e cansados após a longa viagem desde o Rio Águas Brancas e através da poeirenta Planície Sul. O sol estava para se pôr quando eles entraram em Shazâar. Mas o cansaço agora estava esquecido. Nenhum visitante dessa peculiar cidade oásis poderia deixar de ficar surpreso tanto com sua estranha beleza como com o comportamento bizarro de seus habitantes. No portão de entrada o guarda lhes forneceu as coordenadas para o Porco Engordado e então acenou-lhes com uma estranha despedida: "Que Logaan tire toda sua riqueza..."

Os dois continuaram pela Rua da Lua, que lhes fora recomendada pelo guarda. E, depois de entrarem na cidade de Shazâar, o que viram logo os persuadiu de que a estranha reputação da cidade não era exagerada.

As construções eram uma estranha mistura. Muitas pequenas, cabanas quadradas com fachadas simples. Estavam brilhosamente pintadas em uma infinidade de manchas de cores - como se latas de tinta tivessem sido jogadas nas paredes por crianças maldosas. Essas pequenas casas eram intercaladas de construções altas e esparramadas, com espirais artificiais e frontões que safam das estruturas centrais em todos os ângulos. Era como se os construtores tivessem escolhido pregar extensões, espirais e escadas completamente ao acaso, sem qualquer preocupação para a praticidade. Essas construções pareciam orgânicas, crescendo a cada estação como grandes carvalhos.

O lugar era uma maravilha de se olhar.

— Sire, veja. A bifurcação. Lá estão as barracas do mercado. — O Chervah notara a bifurcação através de uma arcada, e ele agora levantava a mão e puxava a manga de seu mestre para atrair-lhe a atenção, apontando para ela. Darkmane assentiu e eles passaram pela arcada que, descobriram, que não era uma ruela como haviam suposto. A Rua da Lua na verdade passava por um aposento de uma das casas maiores.

Eles continuaram até chegar à junção.

— Olhe para esses lugares - riu o Chervah.

Atrás das barracas havia várias lojas. Cada uma delas apresentava um sinal anunciando os serviços do dono. O Chervah estudou-as e uma delas chamou-lhe a atenção.

— Hmmm. Doenças e deformidades. Aposto como esse doutor tem um negócio agitado nesse lugar de doidos.

Darkmane sorriu. Ele apontou para a mensagem escrita debaixo da faixa principal.

O Chervah se esticou e leu-a em voz alta: — Hmmm. Eu quase não consigo lê-la. Deixe-me ver. "Doenças e deformidades. Lepra à venda. O quê? Mutilações Feitas Segundo Seus Pedidos?" Ele voltou-se para Darkmane com uma expressão de horror no rosto.

O guerreiro agora já estava rindo à larga. - Eu não compreendo isso, Chervah — divertiu-se ele. — Este lugar é tão estranho para mim quanto para você. Quem sabe o que está acontecendo? Vamos, amiguinho. Continuemos nosso caminho.

Vários vendedores de rua, esfarrapados, haviam-se juntado em volta de seus cavalos. Um deles segurava frutas-bomba podres. Darkmane nem mesmo olhou para ele. Ele empurrou o rapazola com o pé.

Outro rapaz desengonçado estava ao lado do cavalo do Chervah, fazendo caretas idiotas para ele.

O Chervah olhava para ele, intrigado: - O que ele está fazendo? perguntou a Darkmane.

— Não sei. Talvez ele seja maluco.

— Vão embora! — gritou o Chervah. — Não temos dinheiro. Não chateiem. Deixe a gente passar.

Cutucaram seus cavalos através dos vendedores. Ouviram gritos às suas costas, mas não olharam para trás.

Mais adiante na estrada eles chegaram à área falada pelo guarda. Algum tipo de jogo estava sendo jogado por um grupo de jovens imundos.

- Ogreball - disse o Chervah. - Eu já vi ser jogado antes. Vê o rapaz no meio? Ele é o lançador. Ele lança a bola para aquele cepo de árvore e tenta acertá-lo. O golpeador — vê, aquele que está com um porrete diante do cepo? Ele tenta golpear a bola para longe. Se ele acertá-la, ele deve correr em volta desse circuito de sacos. O lançador está se preparando. Observe.

Eles puxaram as rédeas dos cavalos e observaram. O lançador encurvou-se numa posição de corcunda e então girou, lançando a bola no cepo de árvore.

— Deve ser um bom lançador — disse o Chervah. — Nem mesmo pude ver a bola.

O golpeador brandiu o porrete e começou a correr. No campo, os mascotes corriam em volta, à procura do golpe dele. E o golpeador percorria a trilha de sacos o mais rápido possível.

Passaram pelo jogo de Ogreball e viraram à esquerda. Passaram por um homem carregando um cachorro sobre os ombros e perguntaram-lhe qual o caminho da estalagem Porco Engordado. O cachorro latiu duas vezes e levantou uma pata, apontando rua abaixo.

O homem os olhava, vaziamente.

A estrada adiante estreitava-se enquanto eles seguiam sob uma arcada. Depois de terem atravessado, entraram no que deveria ter sido a parte central de Shazâar. Muitas outras pessoas e animais estavam vagueando pelas ruas. Ninguém prestava atenção neles.

Um pouco mais adiante, chegaram a seu destino. Uma construção grande erguia-se solitária no lado esquerdo da estrada; as paredes de um verde escuro eram atravessadas por vigas azuis. Em um poleiro suspenso sobre a estrada havia uma jaula, e dentro dela estava um porco imenso, alegremente adormecido e balançando gentilmente à brisa.

Sob a jaula, porém, a cena não era tão pacífica. Sons de alegria criada pela bebida vinham de dentro da estalagem e espalhavam-se pela rua. Homens entravam e safam — andando quando entravam e cambaleantes quando safam.

Eles haviam chegado ao Porco Engordado.

Desmontaram e prenderam os cavalos no lado de fora da estalagem. A garganta seca de Darkmane implorava para entrar. Mas o Chervah estava cansado dessas casas de bebida; ele já estivera em várias muitas vezes antes e as evitava, se possível. Seu tamanho e suas feições de bebê típicas de um Chervah freqüentemente eram objeto de ridículo dos clientes bêbados de tais lugares. Ele gastou seu tempo prendendo as rédeas dos cavalos.

Darkmane estava ficando impaciente. - Chervah! Vamos! Eu estou seco. Se apressa!

— Eh, o senhor segue na frente, mestre. Eu ficarei aqui e cuidarei dos cavalos.

— Não seja tolo. Os cavalos vão cuidar de si mesmos. Vamos entrar e molhar nossas gargantas. Venha para cá. Agora!

O Chervah terminou de amarrar as rédeas do cavalo e caminhou lentamente até Darkmane. Juntos, entraram no Porco Engordado.

A taberna estava entupida de freqüentadores. Lá dentro, o ar estava pesado de fumaça de fumo e o burburinho era ensurdecedor até aos ouvidos ficarem acostumados a ele. O Chervah tossiu desconfortável enquanto seguia Darkmane pela multidão. Olhos inquietos vindos de todos os cantos do aposento imundo seguiam-nos enquanto eles percorriam o caminho até o bar. Eles se esgueiravam por entre mesas de madeira e em volta de bancos de três pernas. Um dos freqüentadores foi acidentalmente empurrado quando Darkmane passou por ele. Este logo levantou-se com uma garrafa na mão e agarrou o ombro de Darkmane. O Chervah levou um susto, mas Darkmane apenas lançou-lhe um olhar glacial. Lentamente o homem voltou a sentar-se, resmungando consigo mesmo. Ele sabiamente decidira que não era bom manter as mãos sobre o guerreiro salamoniano.

— Eu... eu não gosto desse lugar nem um pouquinho - gaguejou o Chervah.

— Acalme-se, amiguinho. Tome uma caneca de cerveja. Tome duas! Ninguém neste aposento irá perturbá-lo. Estalajadeiro!

— Obrigado, sire. Mas eu preferiria néctar de fruta-cana. E... é muito mais nutritivo do que cerveja. Talvez o senhor queira prová-lo...

Atrás do bar estava um homem rotundo e careca. Ele usava um avental que sem dúvida fora branco no início do dia, mas um expediente de trabalho no bar do Porco Engordado fazia com que isso fosse difícil de acreditar. Ele voltou-se depois de servir outro cliente e andou até Darkmane, enrolando suas mangas para cima.

— O que é?

— Uma caneca de cerveja, estalajadeiro. E meu amiguinho aqui queria saber se tem... o que era mesmo, Chervah?

Eh, néctar de fruta-cana, sire — respondeu o Chervah, nervoso. — Mas, por favor, não se atrapalhe. Eu ia mesmo esperar lá fora...

— Néctar de fruta-cana — riu Darkmane. — Você tem néctar de fruta-cana, estalajadeiro?

O estalajadeiro robusto balançou a cabeça.

— Então são duas canecas de cerveja. E você pode arrumar uma mesa? Temos viajado desde o Rio Águas Brancas e desejamos descansar aqui.

— Duas canecas de cerveja. — O estalajadeiro já enchera as canecas e as colocara sobre o balcão. — Seis moedas de prata. Ache sua própria mesa.

Darkmane levantou uma sobrancelha. Esse estalajadeiro tinha os modos de uma pessoa de Blacksand. Ele pegou as seis moedas e colocou-as na mão estendida do homem. Mas quando o estalajadeiro fechou os dedos sobre o dinheiro, Darkmane segurou o pulso dele com firmeza.

— Calome Manitus — sussurrou ele. — O recenseador. Ele fica aqui. Em que quarto?

— Problema dele. Não seu. — O estalajadeiro puxou a mão e virou as costas para Darkmane para servir outro cliente.

- Aqui! Mestre! Por aqui! — O Chervah encontrara uma mesa com dois bancos vazios.

Darkmane levou as bebidas até lá e ambos se sentaram.

— Temo que tenha desperdiçado seu dinheiro, sire. Eu não posso beber uma caneca dessa cerveja. Eu... eu até acho o cheiro dela bastante repulsivo. Por favor. Beba a minha também. Não estou com tanta sede quanto o senhor.

— Bobagem — riu Darkmane. — Se você estiver com metade da minha sede, beberá esta caneca de um gole. Experimente.

— Não, mestre, eu não poderia.

— Vamos, Chervah. Acabe com sua sede.

— Eu preferia que não, sire.

— Eu insisto!

— Bem...

A pequena criatura pegou a caneca cautelosamente, segurou-a sob o nariz e cheirou. Seu rosto contorceu-se numa expressão de desgosto.

Darkmane riu de novo. — Vamos, Chervah. Isso pode não ser néctar de fruta-cana, mas certamente irá matar sua sede. Beba!

A sede do Chervah finalmente ultrapassou sua relutância. Ele experimentou a cerveja. A princípio só um golinho, então um gole grande, depois vários goles. Ele se engasgou e fez uma careta. O restante da caneca foi consumido.

Darkmane deu-lhe os parabéns enquanto a criaturinha batia com a caneca vazia na mesa: — E isso aí, Chervah! Nós ainda vamos fazer de você um homem!

— Sire, essa é uma experiência que eu preferiria não repetir.

Darkmane terminou a bebida e levantou-se para buscar mais uma rodada para eles. Quando o fez, seus olhos caíram sobre uma figura solitária sentada no canto da taberna.

Ele reconheceu as feições familiares de Calorne Manitus.

— Calome Manitus!

— Chadda Darkmane!

Os dois amigos abraçaram-se calorosamente. Calorne Manitus era um homem gentil, com um rosto agradável. Tinha a vantagem de ser vários anos mais velho que Darkmane, mas sua mente continuava tão aguçada como sempre. Ele sabia se vestir, tinha preferência por sedas azuis e também gostava de usar mantos com capuz. Um andarilho permanente, conseguira persuadir vários governantes da Allansia Ocidental de que eles deviam obter mais informações sobre as raças e pessoas que habitavam seus reinos. Surpreendentemente, cada um deles concordara. Desse modo, Calorne criara o emprego de recenseador para si mesmo, viajando pela Allansia Ocidental recolhendo informações sobre os habitantes - é claro que num passo descansado. Provavelmente Calome Manitus sabia mais sobre as pessoas e das idas e vindas na Allansia Ocidental do que qualquer outro ser humano vivo.

Os olhos de Calorne caíram sobre o Chervah, que estava ao lado de Darkmane. A essa altura a criaturinha já sentia os efeitos da cerveja: seus olhos já estavam rolando de um lado para outro e ele agarrava-se à perna de Darkmane para conseguir manter-se de pé.

Darkmane o atingiu nas costas com um golpe que fez os dentes do Chervah chacoalharem e o apresentou:

— Este é meu criado. Um Chervah.

— Sroo...er, Sroonagh Morrow... Monnow Pirra-shathasha, às suas ordens, senhor. Mas se... Por favor, me chame de "Chervah". Eu não ficarei ofendido — é claro que não — apesar de que o senhor ficaria se eu o chamasse de "humano". Nossos nomes são de dif-f difícil pronúncia para os estrangeiros. Oh, deuses! O senhor deve me desculpar.

— Estou contente em conhecê-lo, Sroonow...er, Pi-sha... É, você está certo. É melhor eu chamá-lo de Chervah. Prazer em conhecê-lo, Chervah.

— Nosso Chervah aqui acabou de ser apresentado à cerveja sahazâariana", brincou Darkmane.

Calome Manitus sorriu e virou-se para o guerreiro. — Agora me diga, Chadda Darkmane: o que o traz às Planícies Sul?

— Nós viajamos de Salamonis até Shazâar em busca de você, amigo. Pois estou precisado de seu auxílio.

— Então me diga apenas em que posso lhe ser útil, Darkmane. — O recenseador lembrava-se bem de como, há alguns anos, o guerreiro alto o ajudara a fugir, quando fora apanhado por assaltantes nas Montanhas Craggen. Sozinho, apenas com sua espada, Darkmane dominara seis dos malfeitores enquanto Calorne desatava os cavalos deles e os mandava galopando para longe e retendo dois deles para que ambos conseguissem escapar.

— Deixe-me sentar. Devo contar-lhe sobre minha missão. Porém ninguém mais deve saber disso. Jure-me que nossa conversa aqui jamais será repetida.

— Juro. Eu juro pelo nome de minha família. E juro sobre meu Amonour. O que me disser não sairá de meus lábios.

— Ótimo. Agora ouça o que tenho a lhe dizer, pois preciso de um conselho...

Os três sentaram-se em torno da mesa e Darkmane contou ao recenseador sobre a guerra, que se desenvolvia entre os dois feiticeiros. Ele enumerou os temores do rei e explicou como fora enviado para uma missão de encontrar um meio de garantir a segurança de Salamonis depois de ganha a guerra.

— ... e meu plano é este: devo manter contato com os dois lados desta guerra; ambos devem ver-me como um abado — um mercenário. Eu acho que devo oferecer a ambos os lados planos para a conquista de Salamonis após terem vencido a guerra. Devo assegurar-me de que nenhum dos dois lados obtenha vantagem em demasia. A guerra será prolongada até que ao final nenhum deles tenha força suficiente para desafiar Salamonis.

Darkmane olhou bem dentro dos olhos de Calorne Manitus.

— Mas é aqui que preciso de seu conselho, meu amigo — sussurrou. — Você é o levantador de informações dessa região. Você mais que ninguém conhece as pessoas dessa área; a quem são leais, suas forças e suas fraquezas. Por favor. Procure em sua mente. Diga quem pode ser útil para mim e quem poderia me levar para mais próximo de Balthus Dire e Zharradan Marr.

O recenseador estava silencioso. Seus olhos fitavam um ponto distante. Finalmente ele falou.

— Chadda Darkmane — começou —, a missão a que se impôs é nobre e justa. Mas temo que também seja cheia de dificuldades e que acabe em tragédia; sua própria tragédia. Você é apenas um homem. Esses dois senhores da guerra têm utilizado os poderes do mal. Balthus Dire escolheu o caos como seu aliado. Zharradan Marr é um necromante; é dele o poder de vida e morte. Ambos estão cercados por suas tropas, muito bem guardados nos próprios esconderijos fortificados. Quais são suas chances, sendo um homem contra o poder deles? Eu sequer apostaria uma única moeda de cobre contra um monte de ouro puro pelas suas chances de sucesso.

— Meu amigo, você não deve temer por mim — replicou o guerreiro. — O destino escolheu a mim para esta missão e serei bem-sucedido. Os Três Que Tudo Vêem me selecionaram. O próprio Rei Salamon depositou sua confiança em mim. E sei, no fundo do coração, que estou destinado a ter sucesso. Não, não tema por minha segurança, Calorne. E aceite essa aposta se quiser se tornar um homem rico!

— Palavras orgulhosas, Darkmane. Mas seu orgulho não o ajudará a entrar desapercebido na Torre Negra, nem protegê-lo dos horrores de mortos-vivos no mundo inferior de Marr. Você deveria voltar a Salamonis e aconselhar seu rei a montar um exército. Deixe que o exército do rei lute primeiro contra um lado e depois com outro. 0 exército dele teria uma chance maior de vencer esta guerra do que você sozinho.

— Um plano desse tipo já foi criado antes. Os riscos são grandes demais. O rei não pode saber com certeza o tamanho do exército de cada um dos lados. As tropas de Dire estão espalhadas pelos Rochedos Craggen, prontas para servi-lo assim que forem chamados — e quem sabe quantos são? E Zharradan Marr recruta os mortos-vivos para lutar em combates — talvez o número deles não tenha limite. Não, Salamonis está a salvo no presente momento, até que um dos lados seja vitorioso. É muito melhor deixar os dois feiticeiros lutarem entre si pelo tempo que for possível antes de entrarmos em combate.

— Mas você se arrisca à morte certa!

— Sem seu auxílio, talvez isso ocorra.

— Até mesmo com minha ajuda, que eu lhe fornecerei com prazer, você não pode ter esperança em conseguir.

— Você não deveria se preocupar com meu destino, meu amigo, pois existem várias coisas que você desconhece. Estou destinado a servir ao povo de Salamonis e ganhar o respeito dele de um modo que muito poucos já o fizeram no passado. Já ouviu falar de Hallan Wardalus?

— O profeta?

— O próprio. Ele agora vive como recluso no Sopé dos Rochedos Craggen. Ele está velho, mas sua sabedoria é sem igual, apesar de já estar perdendo a visão. Ele é assistido por uma tribo de Thagralites, que o vê como uma espécie de sacerdote místico.

— Mas como você o encontrou? — Manitus estava atônito. — No meu censo ele está registrado como morto, já que não é visto ou não se ouve falar dele desde o encontro dele com Rosina em Dree.

Darkmane sorriu. Ele enganara uma das bruxas de Dree para que ela lhe fornecesse a informação. — Eu queria visitar Hallan Wardalus por um sinal dele... uma profecia. Eu tinha dezenove anos. Meu Amonour ainda precisava ser desenvolvido; mas minha fama estava crescendo. Você sabe que um salamoniano não consegue descansar depois que o desejo pelo Amonour o tocou. Eu estava ansioso para saber o que os deuses me haviam reservado. Procurei pelo profeta idoso, encontrei-o e solicitei-lhe que olhasse em meu futuro.

— E... ?

A essa altura tanto Calorne Manitus quanto o Chervah já estavam envolvidos pela história de Darkmane. Hallan Wardalus fora o sábio mais em quem o rei mais confiara; alguns diziam que suas profecias e seus avisos haviam feito mais para estabelecer o estado contínuo de paz e prosperidade em Salamonis do que até mesmo o julgamento do rei. Ele previra e avisara o rei a tempo sobre a revolta de Strongarms que estava se formando. O rei, inteligentemente, resolvera a situação ao convidar um encontro de caravanas mercantes Pan-Allansianas em Salamonis para realizar uma semana especial sobre o mercado mercantil. É claro que as caravanas precisavam de guardas Strongarms quando partissem com seus gordos lucros. E assim, ao final da semana, o problema estava resolvido. Com a maioria dos Strongarms dirigindo-se com as caravanas para os recantos mais distantes de Allansia, haviam restado muito poucos mercenários para organizar uma briga de bar, muito menos um assalto ao palácio real! Não importava se seus poderes eram uma bênção divina ou se ele simplesmente era um observador arguto da vida em Salamonis; o Amonour de Hallan Wardalus estava entre os mais altos do reino.

Ainda assim, a curiosidade dele vencera quando ele visitara Dree, a vila das mulheres-feiticeiras: ele jamais retomou de sua viagem a Dree, e fora dado como morto. Até ser procurado pelo jovem Chadda Darkmane.

— No princípio Hallan Wardalus não aceitou bem a minha vinda. Eu era um estranho em seu mundo novo e simples. Ele queria que lhe deixassem viver sua vida em reclusão. Mas aconteceu uma coisa que o fez mudar de opinião.

Enquanto conversávamos, ele tropeçou; segurei-lhe o braço para sustentá-lo. Quando sua mão tocou na minha, houve entre nós uma troca de energia. Pude sentir isso! Uma emoção me invadiu. Não tinha a mínima idéia do que era aquilo ou jamais tivera tal sensação. Foi um sentimento de... de glória. Ele fez com que quisesse cair de joelhos e gritar alto para o mundo! Eu senti como se pudesse pular no céu e descansar sobre as próprias nuvens!

— Nos olhamos um para o outro e pude perceber que ele também sentira. Corriam lágrimas por seu rosto. Nós dois sentíamos como se nos conhecêssemos há longo tempo — e ainda assim nos havíamos conhecido momentos antes. Ficamos ali, demoradamente, agarrando o braço um do outro e fitando-nos nos olhos sem piscar.

Ele me convidou para entrar. Fiquei com ele por vários dias e nos tornamos amigos. Amigos especiais. Ele era como um pai para mim, e eu era como o filho que ele nunca tivera. Ele ensinou-me muito sobre a sabedoria do mundo; eu lhe trouxe alegria de viver; a alegria da juventude. Ele me mantinha encantado por horas a fio com lendas do passado. Eu o fazia rir com brincadeiras joviais.

— Antes que eu partisse ele me explicou que a troca de energia que ocorrera entre nós era um sinal. Era como, disse ele, se eu fosse um indivíduo com um destino. O poder dele está em sua sensitividade para essas coisas. Ele comparara nosso encontro do primeiro dia com o toque de um ímã com uma arma de ferro.

— Ele também me fez jurar que eu jamais revelaria a ninguém sobre seu paradeiro. Quando partiu de Salamonis, o Amonour dele estava no ponto mais alto. Desde então, tornou-se velho e frágil. Seus poderes estão diminuindo. Ele não gostaria de retornar a Salamonis e permitir que as pessoas o vejam enfraquecido, abatido pela senilidade. Ele queria ser lembrado apenas como um grande profeta, não como um homem velho e moribundo, que já fora grande. Eu jurei manter-lhe o segredo.

Houve um imenso silêncio entre os três. O barulho da estalagem era apenas o sussurro de fundo. Mas eles foram retirados bruscamente de seu silêncio por um patife corpulento, usando uma armadura de couro escuro de salteador, que parou à mesa e agarrou o braço do Chervah.

— Aqui! — gritou ele para o outro lado do bar. -Aqui tem um banco! Este aqui é meu! — Ele pegou o Chervah com uma mão e, segurando a criatura aterrorizada diante dele, balançou-o no ar. Sua boca imunda abriu-se em um meio sorriso. — Fiquei de pé, nanico. Eu vou pegar esse banco pra minha companhia. Você não tem nenhuma objeção, tem?

— N-n-não...

Darkmane reagiu rápido como um raio. Seu pé direito partiu direto do chão e atingiu em cheio o abdômen gordo do patife. O salteador largou o Chervah e dobrou-se para a frente, agarrando a barriga. Quando abaixou a cabeça, Darkmane jogou o braço direito sobre os ombros do homem e em volta do pescoço dele, prendendo-o em uma gravata. Com um golpe Cínico, bateu-lhe com o rosto na mesa. Outro golpe fez com que a cabeça fosse para trás. O Chervah estremeceu diante da expressão de agonia do homem e viu um fino fio de sangue escorrendo pelo nariz quebrado. Darkmane apertou mais o braço e abaixou a cabeça do patife outra vez. Mas desta vez ele não a abaixou até a mesa. Em vez disso, empurrou-a na direção de sua mão esquerda, que segurava um punhal afiado. Com perícia, ele parou a ponta da lâmina a menos de dois centímetros do olho direito do homem. O salteador guinchou, em completo pânico.

— Você está errado — disse Darkmane, frio. — Esse banco está ocupado. Talvez não possa ver meu amigo nele. Você gostaria que minha lâmina tirasse a névoa de seus olhos? — Ele aliviou o abraço: sua mão direita agarrou os cabelos do homem e puxou-lhe a cabeça para trás. Agora a lâmina de seu punhal estava pousada sobre o pescoço do salteador.

Gotas de suor surgiram na testa do homem e rolaram pelo rosto dele. — Eu-eu-eu sinto muito, meu lorde — gaguejou o patife. — O s-s-senhor está bastante certo. Eu terei que encontrar outro banco. Mil perdões.

— Então vá. E não nos incomode mais. — Ele largou o cabelo do homem e o empurrou para o chão.

Uma multidão se juntara para observar o incidente. Darkmane olhou para os rostos à sua volta; os olhos desviavam-se furtivamente quando ele notava que o estavam fitando. Finalmente voltaram a suas bebidas. Darkmane voltou à conversa anterior.

O Chervah tremia visivelmente em seu banco.

Calorne Manitus permanecera quieto durante o decorrer do incidente. Finalmente ele falou: — Você é rápido, Darkmane, muito rápido. Mas uma pessoa é tola ao causar problemas no Porco Engordado. Você já fez inimigos esta noite.

— Não tenho medo de fazer inimigos. E veja, nossas canecas estão vazias. O que acha, tomamos outra? — Darkmane foi até o bar.

O Chervah já recuperara a postura e estava ansioso para aprender mais sobre os estranhos hábitos de Shazâar. - É, Calorne —, começou ele — me diga — se não se importar, é claro — este lugar, Shazâar, é bastante incomum, não diria? Quero dizer, as pessoas que vivem aqui. Por que eles fazem coisas tão estranhas?

Calorne riu. — Sua primeira vez em Shazâar, não é, Chervah?

— Eh, sim. Quero dizer, a primeira vez em que realmente estive aqui. É claro que já ouvi falar muito sobre a cidade no deserto. Mas, realmente, nada do que ouvi se compara a ver este lugar com meus próprios olhos. Quando chegamos, passamos por um lugar — eu pensei que fosse de um curandeiro — oferecendo doenças para vender! Quem em Titã quereria pagar para ficar doente? - O rosto enrugado do Chervah torceu-se em uma expressão de total perplexidade.

Calorne riu novamente. — Você ficaria surpreso — respondeu o recenseador. — Eu conheço o lugar a que se refere. Todos os tipos de pessoas querem comprar doenças. Feiticeiras amaldiçoadoras, pra começar. Elas não são muito boas para lançar suas maldições de uma grande distância, mas se realmente puderem entrar em contato físico com suas vítimas... Comprar um pequeno frasco de doenças para jogar sobre as vítimas é muito mais conveniente — e algumas vezes mais eficiente — do que gastar horas preparando suas poções de maldição. - O Chervah fez uma careta. Calorne continuou: — Mendigos, também. Sua mendicância é muito mais aproveitável se eles forem realmente doentes em vez de apenas fingir. Mas recentemente, também, algumas doenças e desfigurações tomaram-se moda aqui em Shazâar. Eu tenho para mim que essas modas foram começadas pelos próprios mercadores.

— Sei. - O Chervah assentiu. - Mas então, e quanto ao estranho comportamento de alguns shazâarianos? Quando chegamos vimos um homem arranhando com as longas unhas desenhos no próprio peito. E uma mulher andando pela rua com suas mãos sobre as orelhas.

Calorne sorriu mais uma vez. — Esse lugar é bastante conhecido como a Cidade da Loucura. Alguns desses atos, é verdade, são pura insanidade. Mas a maioria não são mais que rituais religiosos. Em Salamonis não se pensa nada contra os homens sagrados que raspam as cabeças, que andam pelas ruas cantando e dançando, ou que se autoflagelam com chicotes. Em Shazâar há mais de cem diferentes religiões, e cada uma delas tem seu ritual bastante peculiar. Alguns deles podem ser atos de penitência, outros são métodos de reza. Vocês já encontraram algum adorador de Logaan desde que chegaram?

O Chervah encolheu os ombros, na dúvida.

— Os membros desse culto devem, esta semana e nesta mesma semana, a cada ano, reduzir suas riquezas a zero doando-a para qualquer pessoa que tenha menos do que eles.

— Mas como é que eles sobrevivem?"

— Bem, eles não são exatamente os cidadãos mais ricos de Shazâar! Eles trabalham muito o ano todo, ganhando tanto quanto possível, então, durante a Semana da Fortuna, têm que dar todo o obtido. É um maná dos deuses para os mendigos, é claro, que saem às ruas de Shazâar para pegar as riquezas. Alguns dos astutos adoradores de Logaan descobriram meios de lograr a prática. Qualquer um com verdadeira riqueza certifica-se que possui um bom amigo que não seja adorador de Logaan. Desse modo eles podem dar todos os seus pertences e a maior parte de seu dinheiro para esse amigo logo antes da Semana da Fortuna. Eles separam uma pequena quantia de dinheiro para dar aos outros, para limpar a consciência, e depois da Semana da Fortuna eles obtêm o dinheiro de volta. Já houve casos em que esses "amigos" foram mal escolhidos e que pediram uma parte da riqueza dos adoradores antes de concordarem em devolver o que tinham em mãos. E houve um incidente famoso quando um desses "amigos" converteu-se — ele realmente se tornou um adorador de Logaan durante a Semana da Fortuna. E deu todo o dinheiro do amigo!

Darkmane voltou com três canecas de cerveja; duas grandes para ele mesmo e para Calorne Manitus e uma menor para o Chervah.

O recenseador tomou um gole. — Aaah. Cerveja shazâariana. A melhor de Allansia. Sim, a maioria desses comportamentos aparentemente estranhos pode ser traçada de volta até as origens religiosas. Mas recentemente, quando as lendas de Shazâar espalharam-se por Allansia - algumas vezes imensamente exageradas -, artistas, loucos e pessoas estranhas vindas de todos os lugares começaram a chegar, para verem eles mesmos a cidade. Muitos fizeram da cidade seu lar. E começaram a introduzir suas próprias idéias de comportamento excêntrico. O que você atualmente vê em Shazâar é uma mistura de todas essas influências.

Darkmane bufou. Ele desdenhava aqueles que gastavam seu tempo com coisas sem sentido. — Bem, esta estalagem me parece bastante comum — zombou ele. — Como qualquer outra taberna em Allansia.

— Aguarde - disse Calorne Manitus. - Há sempre aqueles que aproveitam a oportunidade para um pouco de exibicionismo espalhafatoso...

E como se as palavras dele tivessem sido ouvidas bem do outro lado do bar, uma comoção repentina explodiu no canto mais distante. Duas criaturas magras e de peles claras — talvez de uma raça de Elfos — empurravam-se para o meio do chão, caindo sobre alguns dos que estavam próximos, bebendo de pé. As pessoas do local perceberam uma briga e rapidamente criou-se um círculo em volta deles.

Um dos dois, usando um capuz verde escuro, levou a mão até o cinto e agarrou um estilete. Ele gritou para o outro, em uma voz esganiçada e aguda: — Galee Eredil, estou por aqui com seus insultos. Você pode zombar de mim, mas não deve desacreditar minha família. Minha lâmina cuidará para que eu nunca mais tenha que ouvir as suas indignidades novamente.

A multidão aplaudiu.

O segundo Elfo também pegou um punhal e eles se encararam. O Elfo com capuz verde segurava seu punhal no alto. Quando a lâmina desceu, porém, o outro Elfo agarrou-lhe o braço da arma e levou-o para trás. Ele brandiu o próprio punhal e disse: — Neela Imuria, o único meio de escapar de mim é ir para os céus!

—NÃO!

Neela Imuria agarrou o punho de Eredil, e os dois Elfos se enfrentaram. A luta continuou, para delícia da multidão, com cada Elfo tentando desesperadamente matar o outro.

Darkmane notou uma mesa próxima à cena da luta, à qual estavam sentados dois homens. Eles ignoravam completamente a confusão à volta e estavam envolvidos em conversação profunda. O menor deles estava voltado na direção de Darkmane. Era um sujeito bem proporcionado, de aparência limpa, elegantemente trajado com um gibão de couro marrom. Seu companheiro era justamente o oposto: um homem gordo — tão grande, na verdade, que, mal acomodado no pequeno banco do bar, seu traseiro se espalhava para os lados e ele ficava continuamente se mexendo, desconfortável, de um lado para o outro. Dobras de gordura saíam do exato ponto em que o pescoço dele terminava e começava a cabeça.

Os Elfos brigões ainda estavam presos um no outro: cada um procurando esquivar-se dos golpes e ao mesmo tempo tentando apunhalar o adversário. Os observadores se acotovelavam, incitando-os. Uma mão da multidão deu-lhes um empurrão e Galee Eredil pisou em um taco solto. Os dois saíram voando, caindo sobre o homem gordo com impacto suficiente para atirá-lo do banco ao chão. Partiram exclamações dos observadores, e então um silêncio repentino espalhou-se pela taberna.

O homem gordo levantou-se do chão. Os Elfos haviam parado a luta e estavam de boca aberta diante dele. De pé, ele erguia-se sobre eles, e Darkmane viu ali uma expressão de fúria, acentuada por uma cicatriz profunda que lhe cortava o rosto. Era uma visão que faria o mais bravo dos homens correr de medo.

Ele abaixou-se e agarrou os dois Elfos pelo pescoço. Os dedos poderosos agarravam-nos com firmeza. Os dois Elfos desafortunados estavam indefesos diante da força do homem. Eles tremiam e gaguejavam, agitando-se desesperados nos dedos dele. Ele levantou os braços e facilmente os ergueu no ar. Então, com um rugido alto, juntou os braços esticados, fazendo os dois Elfos se encontrarem cabeça com cabeça. Ouviu-se um barulho de cabeças se chocando e os Elfos brigões desmaiaram. O homem gordo jogou-os para o lado.

Ele voltou para a mesa, tomou um último gole da caneca e levou a mão ao bolso. Jogou duas moedas sobre a mesa, assentiu para seu antigo companheiro de bebidas, abriu caminho em meio à multidão e saiu da estalagem. Os observadores o olharam ir em silêncio.

O Chervah estava aterrorizado.

Darkmane virou-se para Calorne Manitus, mas, antes que pudesse falar, Calorne apontou um dedo para o homem menor; ele ainda estava sentado à mesa, obviamente tão chocado com o que acontecera quanto o restante dos observadores.

— Observe aquele homem — disse Calorne. — Aquele é Jamut Mantrapper. Talvez ele possa ser o seu homem."

Darkmane o estudou do outro lado do bar. Um homem bem trajado, com olhos argutos; provavelmente bastante inteligente. Apesar de não ser alto, tinha ombros largos e dava a impressão de ser alguém capaz de tomar conta de si mesmo. Uma espada com um punho ornamentado estava presa ao seu lado. Ele estava perdido em pensamentos.

Darkmane virou-se de volta para seus amigos. - Me fale mais sobre ele, Calorne.

— Jamut Mantrapper é um aventureiro e mercenário. Ele já viajou para longe e através de Allansia e conhece bem a terra. Se o pagamento for alto o bastante e a busca suficientemente interessante, então ele está à venda. Ele tem uma história bastante diversificada e é bem conhecido da nobreza de Allansia. Suas habilidades são resgates audaciosos, roubos, assassinatos, arte militar. E por tudo que se sabe, ele é bastante bom em todas elas. Se lembra como Shannack, sumo sacerdote de Zengis, foi encontrado em sua cama, uma manhã, com a garganta cortada? Apesar da presença de uma centena de guardas especialmente treinados para protegê-lo? Há rumores de que foi Mantrapper quem o assassinou. E o terrível Ogre do Mar, que, para Lord Azaur, atacava os navios mercantes em Porto Blacksand? O corpo dele foi encontrado no porto, mas sem nenhum arranhão. As pessoas dizem que também foi trabalho de Jamut Mantrapper.

— E sobre o homem? — perguntou Darkmane. — Ele é de confiança? Eu não confio nesses aventureiros mercenários; a lealdade deles muda conforme o preço oferecido.

— Bem, isso pode ser assim — concordou Calome. — Quem sabe como assegurar a lealdade deles acima da tentação de uma bolsa de dinheiro mais cheia? Mas Jamut Mantrapper tem a reputação de ser muito, muito caro mesmo. E por esse preço você compra não somente a espada como também a honra dele. Ele tem uma boa reputação entre os mercenários, tanto quanto isso pode ser considerado. E pelo que sei dele, ele geralmente luta do lado justo. Há rumores de que foi terrivelmente enganado por Shareella, a Feiticeira da Neve, após ter capturado e escravizado para ela o influente explorador Harlak Erlisson. Mas eu concordo, não há garantia de lealdade para nenhum desses aventureiros, embora eu pense que você descobriria mais escrúpulos, em Jamut Mantrapper do que na maioria: ele foi educado pelo sacerdote de Silverton. Por que você mesmo não fala com ele?

Darkmane assentiu. Ele corria riscos com quaisquer estranhos, mas, baseado no que Calome lhe dissera, as credenciais desse Jamut Mantrapper pareciam promissoras.

Ele se. levantou da mesa. O Chervah se levantou com ele, mas Darkmane fez um gesto para que ele voltasse a se sentar e a criaturinha aceitou. O guerreiro atravessou o aposento aos empurrões e parou à mesa de Jamut Mantrapper.

— Jamut Mantrapper?

O homem sentado à mesa estava bebendo. Ele abaixou a caneca e voltou-se lentamente para olhar para Darkmane. - Quem quer saber?

— Eu sou Chadda Darkmane, de Salamonis. Estou aqui em uma missão; uma missão — e bem remunerada -que pode ser do interesse de Jamut Mantrapper, o aventureiro mercenário. Você é ele?

A mão direita de Jamut Mantrapper se moveu lentamente até segurar o punho da espada. Ele não facilitava com estranhos. — Sim, eu sou ele. Mas você está perdendo seu tempo. Minha espada já está empregada.

Darkmane ignorou a rejeição, pegou um banco e sentou-se à mesa, do lado oposto a Jamut Mantrapper. Não importava quão lucrativa a missão atual de Mantrapper pudesse ser, Darkmane podia oferecer mais.

O mercenário franziu o cenho diante do atrevimento dele e começou a se levantar, mas o gesto pacificador de Darkmane o encorajou a sentar-se novamente. Ele bem que poderia ouvir o que o guerreiro tinha a oferecer. Darkmane também estava pensando cuidadosamente na melhor maneira de se aproximar do mercenário; ele não se atrevia a contar-lhe muito sobre sua missão.

— Estou em uma missão para o Rei Salamon — iniciou. — O rei quer que eu obtenha uma audiência com Lord Balthus Dire, dos Rochedos Craggen. Eu viajo com meu criado, mas necessito de outro companheiro de viagem — um que seja habilidoso em conflitos e ações furtivas. Minha jornada pelos Rochedos Craggen terá seus perigos, por isso preciso de alguém que lute a meu lado e que, caso eu venha a falhar em minha busca, ou continuará minha missão ou retornará à corte de Salamonis e falará ao rei de minha morte. Me foi dito que você conhece bem Allansia. Preciso de alguém que me guie pelas Montanhas Craggen até a Torre Negra.

Darkmane aguardou uma resposta.

Jamut Mantrapper olhou casualmente para a caneca, já quase vazia, e passou os dedos por ele pensativamente. - Hmm. Talvez uma viagem perigosa. Apesar de alguns caminhos pelas Montanhas Craggen serem menos perigosos que outros. Mas isso não importa. Como já lhe disse, minha espada já está empregada. Estou indo na direção norte, amanhã de manhãzinha. E mesmo que estivesse interessado em sua missão, terão se passado algumas semanas até que eu retorne a Shazâar. E se isso ainda fosse aceitável... talvez você já tenha ouvido falar de minha reputação? Eu não sou barato. E você poderia ter 50 Strongarms de Salamonis pelo preço de Jamut Mantrapper.

— E como você acha que Balthus Dire reagiria a um exército de Strongarms marchando pelos Rochedos Craggen? Um grupo pequeno tem não somente uma melhor chance de alcançar a Torre Negra sem ser detectado, como também tal grupo não significaria nenhuma ameaça a Lorde Dire. E Strongarms têm mais másculos que cérebro; eu exijo músculos e cérebro.

— Bem, então, deixe-me ver. Uma missão de tal natureza raramente gera excitação suficiente em mim: uns poucos dias cansativos em cima da sela de um cavalo; talvez umas briguinhas com alguns Goblins para tomar as coisas um pouco mais vividas — mas mesmo assim, se formos bastante cuidadosos e pegarmos a minha rota, poderemos até evitar qualquer encontro. Não, eu não prevejo muita aventura nessa missão. Sugiro que você encontre outra espada para utilizar. Ele tomou um gole de sua caneca e desviou o olhar de Darkmane.

O olhar sem expressão do guerreiro estava fixo sobre ele. - O pagamento é de trezentas moedas de ouro.

Jamut Mantrapper engasgou-se com a cerveja. Isso era muito dinheiro para uma missão relativamente simples!

Darkmane acrescentou. - Cento e cinqüenta agora; o restante quando voltarmos.

Jamut Mantrapper recompôs-se rapidamente.

— Quatrocentas moedas.

— Quatrocentas então. Mas devemos partir amanhã.

— Quinhentas moedas.

Darkmane lançou-lhe um olhar gelado e não disse nada. O mercenário atrevido já pronunciara seu preço e Darkmane concordara. A problemática do preço já fora acertada e não mais estava em questão.

Mas Mantrapper, encorajado pelas três canecas de cerveja que consumira, estava exagerando na barganha, apesar de perceber que se atrapalhara. — Eu pensarei sobre sua proposta, Darkmane.

Darkmane estava começando a se irritar com a insolência arrogante de Jamut Mantrapper. Ele não gostava que brincassem com ele. — Preciso de uma resposta agora.

— Você a terá amanhã.

Sem qualquer aviso, a mão de Darkmane agarrou a espada, a longa lâmina voou de sua bainha, e num único movimento furioso ele foi na direção da mesa. Reagindo de imediato, a arma de Jamut Mantrapper também foi desembainhada para que ele se protegesse.

A confusão chamou a atenção de outros freqüentadores do bar; estava para acontecer outra briga! Era como se o tempo estivesse congelado: a ponta da espada de Jamut Mantrapper estava posicionada à distância de um fio de cabelo do pescoço de Darkmane; a espada do próprio Darkmane estava em suspenso, imóvel, sobre a cabeça do mercenário.

Mas os olhos de Darkmane não estavam sobre Jamut Mantrapper. Uma fração de segundo antes ele vira o brilho de um punhal na mão de um assassino de manto negro que se espreitava às costas do mercenário. Quando o punhal desceu, tendo o pescoço de Jamut Mantrapper como alvo, ele agira instintivamente. A lâmina afiada dele era agora a única coisa entre o punhal que descia e o pescoço de seu companheiro de bebida!

Um agudíssimo grito de agonia saiu da sinistra figura de negro de pé atrás do mercenário. Ao mesmo tempo, a mão estirpada do assassino, ainda segurando o punhal, caiu com um baque sobre a mesa. Os olhos de Jamut Mantrapper se arregalaram quando ele compreendeu o que acontecera. Se ele tivesse reagido diferentemente e resolvido lançar a espada na garganta de Darkmane, a cena teria sido inteiramente diferente: ele e Darkmane agora estariam mortos sobre a mesa da taberna, enquanto o assassino fugiria pela multidão e para as ruas tendo completado sua missão. A espada de Mantrapper foi retirada do pescoço de Darkmane.

— Vamos segui-lo! — rugiu Darkmane, apontando para o assassino.

Os dois homens pularam de pé e caíram em perseguição ao assassino fujão. Uma porta lateral abriu-se e fechou-se. Eles correram até ela e descobriram uma mancha de sangue, ainda molhada, bem acima da maçaneta, onde o assassino empurrara para abri-la. Darkmane abriu a porta e os dois homens correram para a rua.

Estava escuro lá fora. Eles olharam para a esquerda, para a direita, mas não conseguiram ver sequer um sinal do assassino.

— No chão!" gritou Darkmane. - Procure pelas gotas!

Os dois homens olharam em volta mas não conseguiram encontrar nenhuma mancha de sangue no chão. Não havia nenhuma pista para que lado se fora o assassino. E a essa altura ele, sem dúvida alguma, já estava bem longe. Ele escapara.

— Droga! — praguejou Jamut Mantrapper. — Foi-se! O desgraçado! Eu juro que sei de que sarjeta ele rastejou, apesar de... — Ele se virou para Darkmane. — Meu amigo. E pensar que estive perto de cometer um terrível engano — trágico para nós dois. Mas, em vez disso, você me poupou do punhal daquele verme negro. E os dias dele como assassino contratado agora estão terminados! Você me salvou a vida. Diga-me como posso recompensá-lo.

Os dois se fitaram. Cada um sabia de que forma o pagamento deveria ser feito.

Uma expressão solene cobriu o rosto de Jamut Mantrapper. — E claro, falou ele calmamente. — Mas, ai de mim, esta é uma recompensa a que não posso me comprometer. O preço é alto demais. Existem certos problemas. Mas deixe-me pensar em uma maneira de ajudá-lo em sua missão. Preciso falar com algumas pessoas. Consiga no Porco Engordado um quarto para a noite e eu o visitarei pela manhã...

 

Darkmane acordou sobressaltado.

Ele estava sentado alerta na sua cama. Filetes de suor brilhavam em sua testa. Seus cabelos estavam desgrenhados e ele respirava com dificuldade.

— M-mestre! — a voz aguda do Chervah soou na escuridão. — O senhor... Há algo que eu possa fazer? Esses demônios do sonho atormentam o senhor?

Darkmane suspirou.

— Não, Chervah — disse ele, finalmente. — Foi apenas um sonho ruim. Deuses! Foi apenas um pesadelo -mas tão real! Eu realmente senti aquela espada... Mas não, foi um sonho. — Ele olhou em volta do quarto, como para convencer-se de que fora mesmo apenas um sonho. Reconheceu suas roupas dobradas sobre um banco de madeira: e lá estava uma caneca de consome frio pela metade, na mesa de cabeceira, próxima à vela, ambas fornecidas pelo estalajadeiro do Porco Engordado quando subiram para o quarto.

A voz trêmula do Chervah interrompeu o silêncio. — Que tipo de sonho, sire?

— Um sonho estranho. Você, eu e esse Jamut Mantrapper estávamos prosseguindo pelas Montanhas Craggen em direção à Torre Negra. Mantrapper sugerira que pegássemos uma rota especial por ele conhecida — dando a volta pelo lado da montanha. Depois de várias horas de viagem, pudemos ver a espiral da Torre Negra subindo no céu. Ela estava próxima. Muito próxima.

— A trilha seguia por baixo de uma saliência precária. Eu me lembro que olhava para a saliência enquanto levávamos os cavalos por ela. As rochas pontiagudas pendendo lá em cima pareciam os dentes de uma feroz criatura de pedra, e era como se estivéssemos caminhando pela língua dela!

O Chervah estremeceu ao pensamento.

Darkmane continuou: - Mais adiante, um deslizamento de pedras acontecera recentemente sobre a trilha, destruindo a maior parte dela. Nós podíamos subir, mas jamais conseguiríamos passar com os cavalos. Discutimos se deixaríamos os cavalos e continuaríamos a pé ou se daríamos meia-volta com os cavalos e perderíamos com isso mais metade de um dia. Eu queria continuar; vocês dois queriam dar meia-volta. Mas vocês permitiram que eu fizesse do meu jeito - e eu vos levei para a emboscada.

— Com cavalos poderíamos facilmente ter escapado ao ataque dos Goblins da Montanha. Eles estavam armados e esperando por nós... aguardando por nós. Nós nos viramos para fugir. Mas estávamos pesados por causa de nossa bagagem e eles nos pegaram com facilidade enquanto escalávamos o deslizamento. Você caiu quando uma flecha o atingiu na parte de trás de seu joelho. Senti dois pares de mãos grosseiras com garras quebradas agarrarem minha cintura. Minha espada me libertou dessa vez. Então outros dois; depois mais. Eles finalmente me pegaram. Uhh! Consigo me lembrar do cheiro do bafo fedorento deles. Então o chefe deles se aproximou de mim e murmurou alguma coisa do tipo: "Você tentou fugir. Nós paramos." Isso pareceu diverti-lo. E um dos capangas dele segurava um punhal.

Na outra cama, o Chervah estava se perguntando se ter perguntado a Darkmane sobre o sonho tinha sido realmente uma boa idéia. Ele queria que tivesse uma vela acesa. E ficou afirmando para si mesmo de que aquilo fora apenas um sonho de Darkmane.

— Enquanto os outros me seguravam, esse Goblin começou a passar a espada dele lentamente pela parte de trás de meus tornozelos, logo acima do calcanhar, cortando mais fundo que os tendões. Foi então que eu acordei.

O Chervah suspirou dessa vez. Ele estava feliz que a história tivesse chegado a um fim. — Eh, ah... Q-que sonho te-terrível! Mas isso foi tudo, sire, um sonho. O senhor pode descansar agora.

O guerreiro voltou a descansar a cabeça sobre o colchão. As imagens de seu sonho ainda estavam presentes. E ele não dissera ao Chervah o que acontecera a Mantrapper no sonho. Não mencionara que o mercenário parará para observar enquanto Darkmane era capturado e que permanecera entre os Goblins da Montanha, com um sorriso irônico nos lábios, enquanto o punhal do capanga penetrava profundamente em seus calcanhares. Apesar de tudo, fora apenas um sonho. Não queria dizer nada...

Darkmane caiu no sono uma vez mais.

Ele começou a sonhar novamente. Mas dessa vez sonhou com um fogo distante, queimando no céu. Uma chama única, alta e vermelha flutuava acima dos topos das árvores. Ela tremeluziu desafiadora ao vento, hesitou e então disparou para a frente através do ar como uma flecha veloz, direto na direção dele.

Parou sobre ele e queimou com um rico tom de escarlate. A forma da chama alterou-se gradualmente, até que finalmente ele pôde discernir uma forma humana dentro dela, envolta em uma seda frágil. Os braços dela estavam dobrados e seu rosto estava escondido por ondas e cachos de cabelos dourados que cascateavam. Lentamente ela levou as mãos até a testa e seus polegares separaram em duas partes suas madeixas. Jogou a cabeça primeiro para um lado e depois para outro, para tirar os cabelos do rosto.

Dois grandes olhos verdes abriram-se vagarosamente e fitaram Darkmane com franqueza. Um sorriso suave iluminou-lhe o rosto. O coração dele flutuou quando ele reconheceu as feições de sílfide da maga da Floresta de Yore. Lissamina o estava visitando em sonho.

Quando ela tomou a forma humana, Darkmane estava paralisado. Ele não podia fazer outra coisa a não ser observar todos os movimentos dessa criatura delicada: cada passo que ela dava; cada gesto descuidado de sua cabeça; até mesmo o jeito como o manto a envolvia; ele observava poesia em movimento. Cada movimento parecia harmonizar-se com o próximo, como se ela fosse uma dançarina real com muitos anos de experiência.

O transe dele foi finalmente quebrado pela voz dela, tão suave como uma brisa quente: — Darkmane, eu fiz essa viagem para trazer-lhe mais notícias. Você precisa saber que a guerra está aumentando. Lorde Balthus Dire enviou atacantes do caos para Coven e a vila foi destruída. Lorde Zharradan Marr subiu no Galleykeep e agora está no céu. Ele colocou tropas ao longo do Rio Águas Brancas para fazer com que os caóticos morram de fome. O Rei Salamon teme que, se o plano de Marr for bem-sucedido, muitas das tropas dele estarão perfeitamente posicionadas para uma invasão ao Vale dos Salgueiros. E há até mesmo alguns relatórios de que as tropas de Marr invadiram fazendas do Vale à procura de comida.

Darkmane percebeu que havia emoções aparentes na voz dela que o rosto bonito tentava não demonstrar. Ela evidentemente estava profundamente preocupada com o fato de as tropas de Marr estarem tão próximas a Salamonis. E havia algo mais em sua voz, que parecia ligeiramente monótona e arrastada. Na última vez em que se haviam encontrado, ela estava borbulhante e excitada. Ela não era capaz — nem sequer tentara — de esconder seu entusiasmo por estar encarregada de tarefa tão importante. Mas agora sua voz estava um pouco arrastada. Um pouco cansada.

— Tenho continuado a observar seu progresso. Você está planejando levar Jamut Mantrapper para as Montanhas Craggen, para visitar Balthus Dire - isso eu sei. Quando você anunciou essa pretensão, eu decidi que deveria usar meus poderes para testar esse plano.

— Darkmane, sei que você não confia em magia. E que provavelmente não confia em mim. Mas eu lhe imploro: não embarque nessa jornada! Você acredita que teve apenas um sonho, um pesadelo. Isso não foi um sonho. Essa era uma visão do futuro.

— Eu já lhe descrevi meus poderes, passados a mim por Gelda Wane, em Silverton. Posso criar visões de possibilidades futuras. Talvez você não aceite muito do que ouve de feitiçaria cigana. Mas deve crer em mim quando lhe digo que sua viagem para a Torre Negra será desastrosa. Você viu com seus próprios olhos o destino fatal que o aguarda nos Rochedos Craggen.

— Agora eu ouço você dizer: "Podemos evitar o perigo todos juntos. Se chegarmos até a saliência da rocha, nós simplesmente retornamos e pegamos outra rota." Mas você não deve tomar o seu sonho como uma visão absoluta do futuro. Minhas visões são meras indicações das possibilidades existentes. Todas as predições devem trabalhar desta forma. Pois, de outro modo, aquele que tiver o conhecimento desse futuro certamente poderia alterá-lo.

— Não. As visões do futuro só podem funcionar como o pescador que, tendo lançado sua linha no mar, encontra, para sua boa fortuna, um cardume de peixes nadando sob seu barco. O pescador certamente pegará um peixe, mas ele não pode saber de antemão qual deles ele pegará.

— Minhas visões do futuro podem ser comparadas a um único peixe desse cardume. E é claro que é possível que esse peixe venha a ser aquele apanhado pelo pescador. Mas a mensagem da visão deve ser lida de uma maneira mais abrangente: realizar essa viagem para a cidadela de Dire seria uma missão perigosa. Os meios pelos quais esses perigos venham a surgir podem ser tão variados como o número de peixes no cardume. E do mesmo modo que o pescador sabe que vai pegar um dos peixes, sabe-se que o perigo é certo. Eu lhe imploro: por favor, não continue essa jornada.

Suas últimas palavras foram pronunciadas com um tremor que revelavam o controle que ela mantinha sobre si mesma. Os olhos dela brilhavam com as lágrimas.

Ela recompôs-se rapidamente e continuou: — Talvez você considere meu aviso; talvez não. Mas lembre-se disso: se vier a se arrepender, você terá falhado em sua missão e seus esforços de ajudar o povo de Salamonis terão sido em vão. Tenho uma sugestão alternativa. É de conhecimento público que tanto Balthus Dire como Zharradan foram, ao mesmo tempo, pupilos sob a tutela de Volgera Darkstorm. Poucos sabem, porém, que Darkstorm possuía um terceiro pupilo nesse mesma época: um jovem feiticeiro conhecido como Zagor. Com a morte de Darkstorm — nas mãos dos outros dois pupilos -, Zagor seguiu na direção norte para Kay-Pong e lá estabeleceu-se como um semi-ermitão nas Montanhas de Pedras da Lua. Diz-se que ele estava ressentido e que desprezava os outros dois pelo assassinato do seu mestre. Talvez ele conheça meios que possam ajudá-lo a vencê-los.

— Eu não posso dizer com certeza onde habita esse Zagor, mas suspeito de que se você for em direção norte para Cálice ou Stonebridge, o lar dos Anões, você possa descobrir o paradeiro dele.

A atenção de Lissamina foi desviada para a capa de seda que estava usando, que começara a bruxulear. Uma pequena vermelhidão se transformou em chamas em uma das mangas; então outra começou a queimar na ponta próxima ao calcanhar. As chamas cresceram.

Ela ergueu novamente a cabeça. — E agora devo ir, bravo Darkmane. Mas antes de partir eu lhe imploro que ouça meus conselhos...

As chamas haviam crescido. Ela sorriu para ele e abaixou a cabeça, jogando os cabelos dourados para cobrir-lhe o rosto. Segurou as mangas flamejantes e levantou-as bem alto, finalmente descendo-as cuidadosamente sobre os ombros. Agora era apenas uma chama vermelha, queimando. A chama girou, subiu no ar e moveu-se na direção dele. Então o fogo começou a diminuir, extinguindo-se rapidamente. Em poucos instantes ela desaparecera!

Darkmane sentou-se reto sobre a cama mais uma vez. Outro sonho igualmente vivido! O suave perfume dos cabelos de Lissamina ainda penetravam suas narinas e ele podia sentir o calor gostoso da chama vermelha.

— O que foi, mestre? Outro sonho? Desta vez não foi tão aterrorizador, espero. — O Chervah acordara com ele.

— Não, amiguinho. Sem pesadelos. Não dessa vez.

Darkmane deitou na cama novamente. A madrugada estava se dissipando e ele logo teria que se levantar. Mas antes precisava tomar algumas decisões.

O sonho sobre a visão do futuro teve um efeito profundo sobre Darkmane. Ele ficou silencioso durante a primeira hora do dia, preocupado com as visões da noite anterior. Realmente tivera uma visão do futuro fornecida por Lissamina, ou fora apenas um sonho particularmente vivido? O Chervah estava sensível a seu humor e tentava fazê-lo falar sobre o que o preocupava. No entanto, Darkmane permaneceu calado. Precisava decidir sobre levar em consideração o estranho aviso ou ignorá-lo. Ele teria preferido não ter que tomar nenhuma decisão — especialmente quando o aviso vinha de uma maga.

Duas horas mais tarde a batida de Mantrapper soou à porta.

Ao menos o homem tem palavra, pensou Darkmane. Ele veio, como prometeu.

—Entre!

Mantrapper entrou com um floreio. Ele vestia uma túnica shazâariana colorida e enfeitada com golas de tufos, franzidos e enchimentos que o tornavam duas vezes mais cheio na região peitoral; a túnica apertava na região da cintura. As calças eram coladas na pele. A impressão de Darkmane era de que o mercenário mais parecia um menestrel do que uma espada de aluguel, mas havia algo nas maneiras de Mantrapper que o tornavam mais parecido a um nobre da corte. Eles trocaram saudações. Darkmane disse ao Chervah para preparar-lhes uma bebida e a pequena criatura saiu para fazer um bule de chá de erva-do-vale.

Quando voltava com duas canecas cheias do líquido com odor de limão, Jamut Mantrapper estava retirando um pergaminho de dentro da bolsa. — Veja. Aqui está um mapa. Vê? Esta é a Torre Negra e as trilhas da montanha estão marcadas. Sugiro que pegue essa rota...

— Você não irá nos acompanhar?

— Não posso. — Mantrapper levantou a cabeça. Ele obviamente estava dividido. — Como já lhe disse, minha espada já está empregada — e eu sou um homem de honra. Em vez disso, posso apenas oferecer-lhe conselhos e esse mapa.

— Eu agradeço por sua ajuda, mercenário. — Darkmane estava desapontado. — Mas tive que alterar meus planos. O Rei Salamon não mais deseja que eu fale com Balthus Dire, mas sim com outro. Você já ouviu falar de Zagor?

Mantrapper engasgou-se e cuspiu de volta para a caneca o chá de erva-do-vale que estava em sua boca. — Nossa! Esse chá está quente! — O mercenário secou a boca. - Quem você disse? Zagor"? Não. Nunca encontrei nenhum Zagor antes. Em que cercanias ele mora?

— Não sei. Talvez próximo a Kay-Pong? Eu tinha a esperança de que você soubesse de alguma coisa sobre ele.

— Não. Nunca ouvi falar dele. Bom, quando é que vocês partem?

— Quando encontrarmos uma companhia de viagem adequada. Alguém que possa nos auxiliar a encontrar esse Zagor.

Mantrapper logo enrolou seu mapa e levantou-se para partir. — Bom, agora preciso ir. Mas vejo se posso descobrir alguma coisa sobre Zagor. Encontre-me lá embaixo na taberna, essa noite...

Quando o mercenário saiu, Darkmane e o Chervah se entreolharam.

— Eu acho — disse Darkmane, cocando o queixo -que deveríamos manter um olho sobre Jamut Mantrapper. Siga-o, Chervah. Vejamos o que ele nos consegue para hoje...

Naquela noite, o salão do bar do Porco Engordado estava, como sempre, barulhento, fumacento e sujo. Os mesmos rostos apertavam-se no bar animado. Não era de admirar que os ânimos se alterassem, mas até agora não havia ocorrido nenhuma briga séria. Darkmane e o Chervah estavam sentados a uma mesa no canto — uma mesa onde o barulho não era tão ensurdecedor e onde esperavam não serem perturbados. Duas canecas de cerveja shazâariana pela metade estavam na mesa diante deles. O Chervah estava desenvolvendo um gosto pela bebida e, como na noite anterior, estava lhe causando o mesmo efeito de soltar-lhe a língua. Ele acabara de voltar de sua vigília do dia e estava fornecendo seu relatório para Darkmane: -... Ele foi direto para o Menestrel Cantante, sire, e ficou um certo tempo por lá. Pude vê-lo perto de uma janela, conversando com alguém. Mas não pude ver com quem. Então ele saiu e atravessou metade de Shazâar a pé. Ah, sire, as coisas que vi hoje! Esse lugar... E eu fui atacado por uma lavadeira! Ela me agarrou sem qualquer motivo. Puxando minhas roupas como um cão selvagem! Eu quase perdi a pista de Mantrapper. Mas ele finalmente chegou até uma casa — uma casa muito grande para os padrões shazâarianos, suponho. Ele ficou um longo tempo lá dentro. Perguntei a um passante quem morava lá e ele me disse que ela pertencia a Lorde Tanneth de Shazâar. Esses demônios da impaciência quase tomaram conta de mim enquanto eu aguardava, mas, justamente quando eu estava para partir, Mantrapper apareceu na porta e dirigiu-se uma vez mais para o Menestrel Cantante. Mas ele não saía nunca. Ao menos eu não o vi sair. Talvez ele tenha saído pela porta de trás? Eu não sei. Após esperar até ter certeza, voltei direto para cá.

Darkmane estava perdido em pensamentos, considerando se havia quaisquer significados ocultos nessas visitas. Seus olhos perscrutaram o bar novamente, à procura de Calome Manithus, que também prometera juntar-se a eles.

Jamut Mantrapper foi o primeiro a chegar. - Darkmane! E olá, pequeno Chervah. Vejo que você prefere cerveja shazâariana a seus chás de ervas. Ha-ha!"

Mantrapper sentou-se com eles. Seu humor parecia ter mudado; parecia de algum modo mais brilhante. O sorriso dele estava mais aberto, os olhos mais ansiosos... Alguma coisa acontecera com ele no decorrer do dia. Darkmane pensava o que seria.

O mercenário ofereceu-lhe a mão. - Colegas, estou a seu serviço. Se quiserem que me junte a vocês, minha espada é sua para ser empregada!

Os outros se entreolharam.

— E quanto a sua missão anterior? — perguntou Darkmane.

— Eu consegui ahn... transferi-la. Vamos partir e encontrar o seu Zagor!

— Mas você disse que nada sabia sobre ele — disse Darkmane, suspeitando.

— É verdade. Hoje eu perguntei a várias pessoas, mas ninguém pôde me dizer nada a respeito de Zagor. Mas eu conheço alguém que certamente o conhece...

— Continue — Darkmane falou asperadamente.

— Ei, controle-se por um instante! — Mantrapper sorriu forçado. — Isso é uma mudança de planos. Do modo como vejo, uma viagem para a Torre Negra era uma coisa, mas a busca por uma pessoa desconhecida — isso é uma coisa totalmente diferente. Nós poderíamos procurar por semanas. É uma viagem dispendiosa para alguém como eu...

Darkmane percebeu o que o mercenário queria. Apesar da expressão do guerreiro alterar-se pouco, Mantrapper sentiu uma explosão crescendo dentro dele, mas Jamut Mantrapper era um mercenário; ele estava acostumado com barganhas acaloradas e era letrado no assunto.

— Agora acalme-se, meu amigo — começou ele, com um sorriso relaxado no rosto. — Eu não esqueci que estou em débito com você. Mas se estivesse em meu lugar, você pensaria como eu. Eis o que sugiro.

— Tenho um conhecido que sem dúvida alguma poderá nos apontar a direção desse Zagor. Nós iremos visitar meu amigo e, se ele puder ajudar, então você terá duas opções. Pode decidir seguir sozinho para encontrar o feiticeiro, e se você o fizer nós nos dividiremos e eu lhe cobrarei apenas cem moedas de ouro. Ou então, se desejar contratar-me para essa nova missão, minha taxa aumentará para quatrocentas moedas — mais os custos de viagem. A escolha será sua.

Darkmane pesou as palavras dele. Era verdade que uma viagem para encontrar Zagor levaria muito mais tempo do que uma viagem até a cidadela de Dire. O senso de oportunidade de Mantrapper poderia ser um pouco mais sutil, mas, com Darkmane estava descobrindo, o mercenário falava direto e francamente. Ele admirava isso. Ele queria Jamut Mantrapper com ele nessa viagem?

— Muito bem —, disse Darkmane finalmente, — aceito seus termos. Mas diga-me, mercenário, por que decidiu juntar-se a nós? Esta manhã uma tal mudança em seus planos seria impossível.

Mantrapper abriu um grande sorriso para Darkmane.

— Você queria contratar meus serviços. E agora você pode fazê-lo. Porque minha decisão deveria preocupá-lo?

— perguntou ele. Não houve nenhuma alteração na expressão do guerreiro; essa explicação não era adequada. Mantrapper rapidamente acrescentou: — Tudo bem, então. Devo confessar que fiquei intrigado com sua missão. Ninguém a quem tenha perguntado em Shazâar já ouviu falar nesse mago. Isso é um desafio! Eu ganhei o nome de "Mantrapper", caçador de homens, por causa de minhas habilidades — e meus sucessos — em buscas como essa. E, é claro, não podemos esquecer os acontecimentos da noite passada, aqui neste mesmo lugar. Eu não estaria aqui agora se não fosse por seu pensamento rápido... -ele interrompeu, esperando por uma reação do guerreiro.

Não houve nenhuma a princípio. Mas Darkmane finalmente falou. - Sei. Pois que seja. Agora me fale sobre esse seu amigo.

— Ah, claro. Nós deveríamos partir agora e seguirmos para norte — disse o mercenário. — Na borda sul da Floresta de Darkwood ergue-se uma bela torre de pedra branca. Essa é a casa de meu amigo.

— E qual é o nome dele?

— O nome dele é Yaztromo. Ele pratica artes mágicas.

Darkmane fez uma careta. Mais outro feiticeiro com quem argumentar!

O Chervah, porém, estava perdido em pensamentos. Ele estava pensando sobre as palavras de Mantrapper, Darkmane também percebera o escorregão? Ele deveria citá-lo ao mestre mais tarde. O próprio Jamut Mantrapper nunca ouvira falar de Zagor. Tampouco as pessoas com quem falara durante o dia.

Então, como ele sabia que Zagor era um mago!

 

Balthus Dire estava sentado no chão, em transe profundo. Sua esposa, a feiticeira negra Lucrécia, sentava-se de pernas cruzadas diante dele, observando-o de perto. Em volta da cabeça ela tinha uma curiosa meia-máscara de couro. Um longo cachimbo flexível, saindo da peça que envolvia a boca, serpenteava pelo chão do aposento para fora da janela — algum tipo de aparelho respiratório.

As velas tremeluziram quando uma brisa suave passou pelo aposento e ela as verificou para ter certeza de que todas permaneciam acesas, mas o brilho delas fora apenas momentaneamente perturbado. Elas banhavam o centro do aposento com um brilho verde fluorescente que envolvia o feiticeiro e parecia focalizar-se sobre seu rosto. Fora do circulo de areia sobre o qual Balthus Dire sentava, imóvel, ela não podia ver nada exceto escuridão.

Os olhos de Lucrécia se fixaram nos olhos do marido, que estavam bem fechados. Com bastante freqüência, o olhar dela caía sobre a tigela ornamentada que estava colocada no chão diante dele. O líquido da tigela continuava a borbulhar lentamente, os vapores brancos que subiam do preparado e banhavam o rosto de Dire pareciam ser verdes à luz da vela. Dentro da tigela ela também poderia ver flocos de erva boiando sobre o líquido fervente. Cunnelwort! Balthus Dire estremeceu e os olhos de Lucrécia voltaram a observá-lo à procura de efeitos colaterais.

A erva misteriosa e de odor doce era pouco conhecida em Allansia e só recentemente seus poderes reais haviam-se tornado conhecidos dos feiticeiros, que até então a imaginavam meramente como mais uma erva obliteradora da mente, bastante parecida com a planta do fumo. Mas os feiticeiros de Allansia que tinham um contato mais chegado com as divindades, e aqueles que sondavam as barreiras dimensionais, estavam começando a aprender mais sobre a verdadeira natureza dela.

A cunnelwort crescia somente na margem leste do Lago Nykosa, onde os K'Amoole, um tipo de Goblin dos Pântanos, protegiam-na e a consideravam como uma erva sagrada. Quando era secada e misturada com determinadas ervas e poções, no entanto, a cunnelwort poderia tornar-se muito mais que uma simples erva de fumo. Para os que haviam treinado as mentes para viagens no vazio universal, uma mistura de cunnelwort devidamente preparada era capaz de abrir os portões mentais para os planos espirituais.

Essa descoberta fora transmitida tanto para Balthus Dire quanto para Zharradan Marr por seu professor - Volgera Darkstorm — apesar de o próprio Darkstorm jamais ter-se atrevido a experimentá-la. Mas os potenciais dela fascinaram ambos os discípulos e eles fizeram um voto secreto de procurar e obter suprimentos de cunnelwort., A corrida para obtê-la já começara há muitos anos, quando ouviram-se notícias em Salamonis de que um mercador viajante de Wolftown chegara com uma pequena quantidade da erva. Sem conhecer as propriedades da erva, ela a vendera muito barato para um grupo de turbulentos Strongarms, que a tomaram erroneamente por um novo tipo de planta de fumo. Todos os quatro Strongarms morreram dentro de uma semana, mas não antes que essa estranha planta seca viesse a tornar-se conhecida dos herbistas locais.

Balthus Dire cometera o erro de enviar dois Guardas da Cidadela para perseguirem o mercador. O interrogatório deles fora totalmente mal-sucedido. O homem morreu de pavor antes que eles pudessem extrair qualquer informação útil dele. Temerosos por suas próprias vidas, os Guardas disseram a Balthus Dire que o mercador viera de Frostholm; conseqüentemente, Dire enviara vários grupos de batedores em busca inútil para as regiões nordeste de Allansia, para Fangthane, Vynheim e a Floresta da Noite — áreas onde o clima era frio demais para que as sensíveis plantas de cunnelwort pudessem sobreviver.

Zharradan Marr tentara uma abordagem diferente. Ele mandou que desenterrassem um dos Strongarms e que o trouxessem à sua presença. O necromante obtivera sucesso em restaurar por instantes alguma vida no cadáver - por tempo suficiente para saber como a erva fora comprada e de onde ela viera. Com essa informação, ele mandara imediatamente uma caravana na direção leste para o Lago Nykosa.

Apesar de ambos os feiticeiros saborearem a possibilidade de explorar os planos espirituais, cada um deles tinha uma pretensão diferente para a cunnelwort. Zharradan Marr já existia no mundo inferior de seu espelho encantado. Esse espelho era sua única passagem entre o universo físico e o mundo de Titã. O universo dentro de seu espelho era limitado, apesar de nele encontrar-se a salvo de danos físicos. Marr desejava comunicar-se com seres de outros planos. Ele era sedento de conhecimento de novos universos e, em particular, ansiava por estabelecer contato com as fontes de poder. Quem Sabia o conhecimento que poderia ser adquirido dessas outras dimensões? Mas uma coisa ele sabia: quem tivesse acesso a tal riqueza de conhecimento certamente seria o mestre de tudo que ele, Marr, demarcara. Tal ser, ajudado pelas criaturas espirituais, não poderia ser contido no plano material.

Balthus Dire, por outro lado, já tivera sua própria visão dos planos espirituais através de suas conversas com os Ganjees, eles próprios criaturas de outra dimensão. Ele achava difícil absorver e compreender muito dos conceitos por eles usados em suas conversações. Mas eles o haviam convencido de que sua própria imortalidade seria assegurada se conseguisse o acesso para os planos espirituais. Essa possibilidade o enchia de um desejo insano e cobiçoso.

Ele observara com cuidado os preparativos necessários para tais viagens interdimensionais — a medida exata de ervas menos importantes e poções que seriam misturadas com a cunnelwort; o estado mental que ele deveria alcançar antes de embarcar em sua viagem mental; e também as condições corretas de ritual e segurança, caso algo desse errado.

Balthus Dire encontrava-se agora, na escuridão da noite, sentado em uma esteira de palha no alto de sua cidadela, sendo observado por sua companhia mais fiel. Seu corpo físico, apesar de na aparência estar em paz, estava torturado interiormente, enquanto seu corpo espiritual era levado para longe de sua forma humana. A luta era sempre mais árdua quando da primeira vez, mas a alquimia e os preparos de Dire não tinham nenhuma falha. Seu espectro fantasmagórico saiu de seu corpo e entrou em dimensões espirituais.

A primeira sensação que teve foi uma movimentação de luz-som-cor-silêncio. E então novamente: luz-som-cor-silêncio. Ele lutou para conseguir compreender o que estava acontecendo com ele. Mas as experiências pelas quais passava não existiam em palavras da língua humana para serem expressas. Era como se, com seus parcos cinco sentidos, ele fosse tão inútil quanto um homem cego-surdo-mudo nesse mundo de experiências novas. As sensações que passavam por ele dispararam uma onda de emoções ao acaso: em um momento ele sentia uma felicidade tão intensa que queria gritos de alegria — mas então, repentinamente, seu grito se transformava em agonia. Em um instante ele estava cheio de uma espécie de compreensão divina; tudo o que ele via e sentia parecia encaixar perfeitamente em sua compreensão. E então, tão repentino quanto surgira, ele não entendia nada. Por um segundo ele se sentiu calmo e relaxado. E então o pânico o dominou — isso era algo contra o que lutar para poder se livrar.

Tudo isso estava acontecendo ao mesmo tempo em sua mente enquanto ele passava pela barreira dimensional. Logo, no entanto, a confusão foi substituída por vazio e calma. Ele se sentia como se estivesse flutuando sem peso em um vácuo. Não havia sensações para perturbá-lo. Ele não podia ver nada, sentir nada, ouvir nada, cheirar nada. Caiu em um sono de paz.

Mas, algum tempo depois de ter adormecido — talvez momentos ou talvez uma eternidade —, ele começou a sonhar. Imagens familiares davam voltas e passavam velozes por ele em todas as direções. Pessoas, lugares, coisas — até acontecimentos de grande escala — estavam aparecendo diante de seus olhos e logo desaparecendo no nada. Mas essas imagens não eram perfeitas. Sua cidadela agora tinha duas torres em vez de apenas uma e estava localizada em uma região desértica. Andando à frente dele, pelo ar, estava uma mulher esguia, de cabelos longos e negros. Lucrécia! Ele tocou no ombro dela e ela voltou-se para encará-lo. Suas feições familiares foram um grande conforto. Ela sorriu para ele. O sorriso ficou maior e tomou-se malicioso, transformando-se em olhar maldoso. Sua boca cresceu em tamanho até que a cabeça foi jogada para trás, mutando para as feições reptílicas de uma criatura-lagarto. Ele virou-se horrorizado!

Seus olhos focalizaram a Torre Negra, como se ele estivesse sendo violentamente atirado pelo ar na direção dela. Uma figura estava em uma das janelas, fazendo gestos para que se aproximasse. Ele chegou mais perto... mais perto! A figura era familiar. Zharradan Marr! Ele tentou parar. Impossível. Mais perto! CRASH!! O espelho se partiu! Escuridão...

Um barulho estranho começou. Um som agudo de gorjeio foi diminuindo até se tomar lento e grave, e então novamente gorjeou como um pássaro. Um míssil invisível passou sibilando perto dele. Então outro. Mas tudo ainda era escuridão. Ele não podia ver nada. Um terceiro silvo soou quando outro míssil passou por ele... e ele começou a ouvir sons vindos de algum lugar, e ainda assim de lugar nenhum; talvez vindos de dentro de sua cabeça ou talvez de tudo a sua volta.

A princípio, eles eram apenas um amontoado de sons incompreensíveis, depois tomaram-se mais distintos. Pareciam vibrar rapidamente, mudando de altura, hesitantes, então mudavam rápido novamente, como se estivessem procurando um tom em particular. Os barulhos começaram a tomar forma. Ele começou a reconhecer alguns padrões que ocorriam com regularidade. Forçou-se para segui-los, para ouvir com mais cuidado.

Os sons ficaram mais claros, "Aaaaasssmyyye..." O tom sibilante mudou de altura. "Pppaaassmyye... Ddda-assmmyyrrre... Dddaambussmmyyrrre..." Ele tornou-se mais grave e mais claro. "Bbbaambusss Mmyrrre... Bb-baandusss Mmmyyrrre... Bbbaanthuss Ssstyyrrre..." Ele percebeu que estavam sendo duas palavras distintas. E, como em resposta a isso, as palavras foram repetidas com maior rapidez. "Bbbaanthuss Ssstyrrre. Bbbaanthuss Ssstyrrre. Bbbaanthuss Ssstyrrre. Bbbalthus Tyrre. Bb-balthusss Dyrrre. Bbbalthus Dyrre!" Ouvir seu próprio nome o chocou.

De volta à meditação, Lucrécia viu o corpo físico dele estremecer e então relaxar.

Ele ainda não podia ver nada além de escuridão. Mas começou a distinguir vários tons de preto. Por ele agora passavam formas, formas vagas em cores cinzentas.

— Bbbalthusss Dire! Bbbalthusss Dire!

O chamado continuava. Ele agora podia associá-lo às formas cinzentas que voavam à sua volta. Tornou-se mais alto quando uma forma se aproximou e foi diminuindo quando ela se afastou. Ele sentia uma mistura de excitamento - pois certamente entrara em outra dimensão - e medo. Ainda não podia ver nada além das vagas formas cinzentas que giravam na escuridão infinita. Ele focou sua mente para falar.

— Eu sou ele! — Suas próprias palavras soaram estranhas, como se ele estivesse ouvindo a voz de outra pessoa falando por ele.

Em resposta a seu chamado. Os espirais giraram acelerados e depois pararam. Mais palavras, rugidas e sibilantes, vieram da escuridão "Nnnóóss fffizeeemoss cc-connnttaaatttooo.''

O coração de Balthus Dire deu um salto. Sua experiência com a cunnelwort fora um sucesso!

De volta à sua meditação Lucrécia notou um fraco sorriso nos lábios do marido.

 

— Bata na porta, Darkmane. — Jamut Mantrapper cocou o queixo, pensativamente. — Tentarei surpreender o mago."

Darkmane fitou-lhe o rosto, tentando ter-lhe os pensamentos. Estaria Jamut Mantrapper usando Darkmane para testar perigos escondidos? No entanto, ele não via nada nos olhos do mercenário, e acabou voltando-se lentamente para a porta.

A imensa porta de carvalho era suficientemente forte para manter todo um exército do lado de fora. No meio, no nível dos olhos, havia um brilhante sino de bronze enrolado em uma mola. Embaixo do sino havia um grande gongo de cor semelhante. Um pequeno golpeador com cabeça de couro estava preso ao lado da porta; ele evidentemente poderia ser usado tanto no sino quanto no gongo. Darkmane pegou-o e pensou por um instante. Bateu no gongo.

O BONGGGGG ressonante fez com que o Chervah estremecesse. A criaturinha estava de pé, atrás de Darkmane. — Se eu fosse o senhor teria soado o sino, senhor — disse ele. - O som de um gongo tem uma espécie de ressoar místico. Parece preparar o ambiente para a magia, se compreende o que quero dizer. Quase...

- Quem está aí?

A voz de um homem idoso cortou a fala do Chervah. Um pequeno painel na porta fora empurrado para um lado e dois olhos observavam Darkmane e seu criado.

— Eu sou chamado de Chadda Darkmane. — O guerreiro falou, audacioso. — E este é meu criado, um Chervah. Gostaríamos de falar com você sobre uma questão de certa urgência.

— Você quer minha ajuda? Você deseja que eu faça alguma magia para ajudá-lo?"

- Sua ajuda, sim. Mas não necessito de sua magia. Apesar de respeitar sua arte, eu por mim não confio em magia, senhor. A ajuda que pedimos refere-se apenas ao seu conhecimento da terra.

O mago atrás da porta bufou. - Não confia em magia, não é? Bem, Darkmane, posso ver que você fala o que lhe passa pela cabeça. Se desejar fazer perguntas, então faça. Estou ouvindo.

Darkmane olhou para o Chervah. A pequena criatura percebeu-lhe as mandíbulas apertadas. Darkmane estava ficando furioso.

— Diabos! amaldiçoou ele a meia voz. - O mago nem mesmo vai abrir-nos a porta! Esses magos tem os modos dos Ogres das Montanhas.

Jamut Mantrapper ficara ouvindo a conversa de trás de uma árvore. Ele deu um passo adiante, com as mãos nos quadris e um largo sorriso estampado no rosto. — Gereth Yaztromo! — chamou ele. — Onde estão seus modos? Você saúda todos seus amigos desse jeito? Você parece com um Jib-Jib na caverna, falando conosco através da porta! Seu velho ermitão! Abre a porta e nos ofereça sua hospitalidade, seu velho miserável. Será que eu viajei desse Shazâar para falar com meu velho amigo através da porta dele?

Mantrapper Os olhos atrás do painel da porta arregalaram-se, e os três viajantes ouviram o som de dobradiças gemendo. A pesada porta finalmente se abriu e o velho mago saiu da torre. Jamut Mantrapper deu um passo à frente e os dois homens abraçaram-se calorosamente.

Darkmane estudou cuidadosamente o velho mago. Um velho ermitão inofensivo, Mantrapper lhe dissera; mas cuidado para não ofendê-lo, pois seus poderes mágicos são assombrosos. Ele certamente parecia inofensivo. Suas roupas eram bastante usadas, chegando até a estarem puídas. Seu manto vermelho tinha buracos nos cotovelos e listas esmaecidas descendo pelas dobras. Seu chinelo estava roto e o solidéu assentava-se sobre sua cabeça como se fosse um acessório permanente. Ele estava encurvado pela idade e por isso era muito mais baixo que Mantrapper. Na verdade, nos braços do mercenário ele parecia uma criatura frágil, e Mantrapper o abraçava cuidadosamente, como alguém que segura o tio mais velho favorito.

Sob as sobrancelhas cerradas de Yaztromo, Darkmane podia ver o prazer nos olhos do velho mago enquanto cumprimentava o amigo. Jamut Mantrapper falara constantemente sobre os tempos em que, juntos, ele e o mago enfrentaram adversários. Os dois homens afastaram-se do abraço e olharam um para o outro.

— Ah, Yaztromo! O grande Yaztromo! Pelos céus, você está muito bem! Você tem trabalhado novamente na sua Poção da Eterna Juventude? Parece que você a aperfeiçoou. Ha-ha!

— Ora, jovem Jamut. Seu atrevimento cresce com sua barriga. Jamais encontrei alguém com tal atrevimento. Mas venha, meu amigo. Você não vai me apresentar seus companheiros? Mas vamos lá em cima para conversar. Tenho certeza que Vermithrax desejará vê-lo novamente.

Mantrapper fechou os braços em volta dos ombros de Yaztromo em um gesto amigável, mas talvez tenha sido um abraço um pouco forte demais para o idoso mago. Ele primeiro apresentou Darkmane e até mesmo conseguiu apresentar o Chervah pelo nome completo. Depois disso os quatro entraram na torre de pedra branca de Yaztromo e subiram a escada circular até o quarto andar.

Os olhos do Chervah se arregalavam a cada andar por que passavam. Do lado de fora, a torre de Yaztromo parecia uma residência elegante, mas lá dentro ela era irremediavelmente desordenada. Ela estava completamente abarrotada com coisas recolhidas pelo mago durante sua vida: livros, troféus, mapas, tapeçarias, bugigangas e ornamentos ocupavam todo e qualquer espaço disponível, fosse nas paredes, prateleiras ou mesas. Para onde quer que olhasse, o Chervah podia ver instrumentos científicos e aparelhos mágicos, sendo que a maioria deles o desconcertava quando tentava imaginar seu propósito. Darkmane estava menos fascinado. Ele se perguntava como o velho conseguia viver cercado por tantas quinquilharias. A seus olhos, uma casa desordenada era o produto de uma mente desordenada. Sacudiu a cabeça. Não conseguia entender os caminhos dos feiticeiros.

Eles continuaram a subir até finalmente chegarem ao estúdio do mago. Livros com lombadas de couro cobriam as paredes, do teto ao chão; alguns permaneciam abertos nas prateleiras, enquanto outros haviam sido recolocados de cabeça para baixo no lugar. Todo o aposento estava coberto de pó. Yaztromo sentou-se a uma mesa coberta por papéis, mapas e livros abertos. Os três aventureiros pegaram cadeiras do aposento e sentaram-se do outro lado da mesa, de frente para o mago.

Yaztromo foi o primeiro a falar. — Então me diga, Jamut. O que o traz à Floresta de Darkwood...?

Yaztromo estava debruçado sobre a mesa, as mãos em concha sob queixo. Ele olhava de seu amigo para o guerreiro alto, de cabelos negros, e depois para a criaturinha ao lado de Darkmane, que lhe lançava olhares nervosos e passava os olhos pelo aposento quando percebia que Yaztromo o fitava.

O velho mago assentiu. - Sim", disse ele finalmente. — Eu conheço esse Zagor a quem procuram. Mas sua jornada para encontrá-lo será perigosa. Ele vive ao norte daqui, nas profundezas de uma montanha próxima aos limites das Colinas de Moonstone. Vocês a encontrarão facilmente, posto que o topo dela é coberto com uma erva vermelha. E daí derivou-lhe o nome: Montanha de Fogo. Darkmane assentiu lenta e atentamente. Yaztromo continuou:

— Eu talvez até seja capaz de mostrar-lhes o lugar. Sobre nós, no topo da torre, perto de meu aviário, está meu observatório. Neste aposento encontra-se meu visoscópio. Com esse aparelho sou capaz de ver para além de enormes distâncias. Venham. Vejamos o que podemos ver.

Os quatro se levantaram juntos.

Yaztromo hesitou e voltou-se para Darkmane. - É claro que — disse ele — meus serviços nos assuntos do mundo são pagos. Você pode considerar que eu pertenço à mesma profissão que nosso amigo Jamut. Hoje, porém, é um dia feliz para mim — estou feliz de ver meu amigo uma vez mais. O único pagamento que lhe peço é mais uma cortesia do que uma taxa. Talvez, antes que subamos, você compre um de meus itens mágicos que estão à venda e que lhe ofereço?

Darkmane se preparava para falar, mas seus olhos recaíram sobre o Chervah, que fitava o mago com olhos cheios de excitamento ao pensar nos itens mágicos de Yaztromo.

Darkmane deu uma olhada para Jamut Mantrapper, que assentiu discretamente. — É claro, Yaztromo — disse ele, finalmente. - Jamut falou-me sobre suas habilidades em criar esses tesouros. Seria uma honra carregar peças de um tão grande mago. Por favor, mostre-as para nós - e talvez você também possa nos sugerir qual delas seria de melhor valia para nós.

Tanto o mercenário quanto o Chervah fitaram Darkmane, atônitos. Eles jamais haviam escutado um tom tão cortês vindo do guerreiro.

Yaztromo estreitou os olhos ligeiramente, apreciando os cumprimentos de Darkmane.

— Muito bem, então — disse ele. — Eu os levarei até meu depósito.

Eles o seguiram por cinco lances descendentes, até que finalmente chegaram ao depósito, em um porão no subsolo. O Chervah mal podia se conter. As prateleiras que cobriam as paredes do chão ao teto estavam completamente entulhadas com bengalas andantes, anéis, armas, garrafas, sacos, roupas, livros... e todos esses objetos, segundo Yaztromo, haviam sido encantados magicamente. Ele passeava de prateleira em prateleira, pegando esse ou aquele objeto, estudando-o e então perguntando a Yaztromo qual era a utilidade dele.

Mantrapper e o mago divertiam-se com o excitamento da pequena criatura, mas Yaztromo também percebeu o olhar de desaprovação no rosto de Darkmane enquanto ele examinava o aposento. Sua expressão revelava o desdém que sentia por magia, em todas as suas formas.

— Vamos então, Gereth -, disse Mantrapper finalmente — diga-nos em que tem trabalhado. Se bem o conheço, sem dúvida alguma você tem exatamente o que precisamos para nossa jornada — e por um bom preço, também!

— Hrrmmph", bufou o mago. — Sim. Bem, eu ia recomendar-lhe alguma coisa como um Anel de Luz. Vocês podem precisar dele caso entrem na montanha de Zagor. Ou talvez esta rede; é uma Rede de Emaranhamento e vocês podem amarrar a maioria das criaturas com ela...

— O que é isso? — a voz aguda do Chervah interrompeu Yaztromo e todos os olhos se viraram para ele. -Ah... desculpe. Eh, o que é isto, sire?

Ele segurava uma garrafa clara dentro da qual estava uma pequenina árvore, perfeitamente formada com folhas diminutas e fios de raízes que descansavam no pó negro existente no fundo da garrafa.

— Epa, epa! Tenha cuidado com isso, pequeno. -Yaztromo tirou-lhe a garrafa das mãos. — Se esta garrafa quebrasse, eu logo teria um grande carvalho crescendo no meio da minha torre!

Ele recolocou a garrafa em uma estante cuidadosamente, depois cocou o queixo, pensativo. — Jamut, você já viu muitas de minhas criações. E, é claro, eu não posso dispensá-los com algo que seja menos que o melhor. Muitos desses objetos nada mais são que bugigangas, o que devo admitir. Me diverte conjurar um pouco de magia neles, e volta e meia sou visitado por um tolo que me pagará bem por algo para impressionar sua dama — ou seu senhor. Mas vocês três estão ligados a uma missão perigosa. Zagor é um mago poderoso — e não desejo que esta seja a última vez em que vejo meu amigo Mantrapper. -- Sugiro que levem apenas um item. No entanto, o objeto que lhes recomendo — como todos os itens mágicos de grande poder — drenará uma parte de sua energia a cada vez que for utilizado. A tentação de usar magia é sempre forte quando ele está à mão, mas para uma pessoa que não tenha habilidades mágicas — como vocês — os riscos são grandes. Não. Pegue um objeto e concentrem suas mentes somente no poder deste item.

— Eu sugiro esta adaga: uma adaga Orukk. Seu propósito é duplo. Primeiro, como uma adaga a ser lançada, a precisão é total. Se você apontar para o coração de seu inimigo, somente uma grande magia evitará que atinja o alvo. A segunda função dela será vital se vocês tiverem que encontrar o caminho através do santuário interno de Zagor. Segure a adaga ao nível do chão, e então balance o punho para este ponto e pergunte a ela para apontar a direção em que se encontra seu objetivo. Ela lhe mostrará que rota tomar. Veja.

Yaztromo pegou uma pena em uma mesa atrás dele e segurou-a, com a ponta para cima, entre os dedos. Ele encontrou a pequena reentrância no cabo da adaga e colocou-a cuidadosamente no bico da pena. A adaga vacilou mas manteve o equilíbrio, balançando para a frente e para trás.

Yaztromo falou suavemente com ela:

— Mostre-me aquele que duvida de você...

A adaga vacilou novamente e virou-se na direção dos aventureiros. Quando ela se estabilizou, ainda estava tremendo, mas apontava claramente na direção de Darkmane.

— Gereth! Isso é maravi... — As palavras de Mantrapper foram interrompidas quando ele percebeu a expressão do rosto do mago. Os olhos de Yaztromo estavam firmemente fechados e os músculos do rosto tentavam obviamente lutar contra uma dor interna de algum tipo. O mercenário correu em seu auxílio.

— Não. Está tudo bem... — O mago falou com alguma dificuldade. — Como... como lhes disse, essas conjurações mágicas drenarão sua energia, e no momento minha... minha energia não está em alta. Alguém com a energia da juventude, como você, dificilmente sentirá o esforço — a menos que se apóie na adaga em demasia.

Yaztromo recuperou-se lentamente. A preocupação de Mantrapper era evidente, mas ele tentava não demonstrá-la quando falou: - Bem, Gereth, obrigado por nos mostrar suas finas mercadorias. Venha, Darkmane, pague o preço ao homem e então voltemos para o observatório de Yaztromo. Eu sou um que está ansioso para saber o que nos aguarda lá em cima!

Yaztromo pediu 40 moedas de ouro pela adaga Orukk e então levou-os novamente escada acima. Eles subiram quase até o topo da torre. O ar lá em cima era mais leve e frio.

Yaztromo parou para recuperar o fôlego; ele era muito mais velho que os outros e seus anos protestavam contra tal exagero. - Ufa! Desculpem! - ofegou o mago. — Jamut, você está certo. Eu preciso concentrar meus esforços em uma Poção da Juventude! Uff! Quase lá. Nós só precisamos ultrapassar este alçapão.

Estavam em algum tipo de aposento de trabalho. Um banco robusto, no meio do aposento, estava coberto e cercado por ferramentas e sobras de madeira. Perto de uma parede, uma escada subia e ultrapassava o teto, indo para o próximo nível. O cheiro de madeira e serragem informava que o aposento era constantemente usado. O Chervah estava surpreso em ver um aposento como aquele na casa de um mago: ele sempre pensara que os magos realizavam a maioria das tarefas que exigiam esforço físico com seus feitiços.

— Ah, pequenino —, disse o mago — posso ver que está surpreso, talvez porque veja as ferramentas de um artesão sendo usadas por um mago? Este é o aposento em que faço muitos dos meus itens mágicos. Por que eu não os crio com magia? Magia é algo precioso demais para ser gasto em tarefas simples como serragem e entalhe. Não, eu os faço aqui e os encanto lá embaixo. Para dizer a verdade, eu adoro trabalhar com essas ferramentas...

— Mas ele não gosta de fazer uma limpeza depois do trabalho — como vocês podem ver! — Jamut Mantrapper sorriu para o mago.

— Por aqui - disse Yaztromo, apontando para a escada. — Vamos subir até meu observatório.

Quando entraram no aposento superior, o Chervah teve, uma vez mais, a chance de expressar sua surpresa. Ao subir pela entrada-alçapão, ele ficou cara a cara com um mecanismo de aparência singular, feito de engrenagens de ferro e rodas que vinham do chão para agüentar um tubo de metal fino e pesado, que estava levantado na direção de um céu aberto. Manivelas, roldanas, hastes e puxadores projetavam-se do tubo, servindo para funções incompreensíveis.

Esse aposento estava um pouco mais arrumado que os outros. Cartas celestes estavam afincadas desajeitadamente nas paredes, em ângulos estranhos, mas, a parte isso e um escrivaninha de madeira, as únicas outras coisas no aposento eram o estranho aparelho de metal, parecido com um canhão, e uma cadeira alta, posicionada em uma ponta.

Yaztromo estava recuperando o fôlego novamente. Ele descansou uma mão na cadeira e sorriu orgulhoso para os outros. — Deixem-me apresentar-lhes... meu visoscópio! - Os três observadores sorriram polidamente, inseguros quanto a como reagir realmente. Yaztromo continuou: - Posso ver que estão intrigados. Esta peça é a única desse tipo existente em Allansia. Com este visoscópio posso ver a norte as Montanhas Dedo de Gelo, e em um dia claro posso ver a cidadela de Balthus Dire ao sul. A magia da máquina está nos cristais que são colocados em cada ponta. Esses cristais foram cortados por mim, da rocha cristalina encontrada nas cavernas em DadduYadu, na linha costeira do Final da Terra, em Kakhabad — de fato, é o mesmo cristal que é polido para serem as bolas de cristal de Allansia. Mas este visoscópio não é uma mera bola de cristal. Vocês podem olhar aqui. Sente nesta cadeira e coloque um olho no final do tubo, ali.

Darkmane permaneceu firme. Ele não tinha nada a fazer com tal aparelho. O Chervah deu um meio passo à frente, percebeu a reação de Darkmane e voltou atrás.

Jamut Mantrapper não hesitou. Ele se sentou na cadeira e começou a olhar por um olho enquanto tentava ficar confortável. — Onde é que eu olho, Gereth? Por aqui?

— Isso mesmo. Se você não vir nada, gire esse puxador aqui.

Todos eles observaram enquanto Mantrapper manuseava o aparelho desajeitadamente.

— O que você quer dizer... Ei! O que era aquilo? Assim é melhor... O quê...? Logaan! Que truque é esse?

A boca ficou completamente escancarada. Ele estava observando a imagem de um cavaleiro com uma roupa de couro trotando por uma rua cheia e passando por um grupo de jovens. O cavaleiro prosseguiu e Mantrapper observou-o virar e desaparecer de sua visão ao virar em uma esquina. Havia uma construção na esquina e nela pendia uma tabuleta com uma imagem. Apesar de não poder ler o que estava escrito, não havia qualquer engano quanto à imagem existente no meio — uma grande lagosta negra.

— A Lagosta Negra! - exclamou ele. Tão perto que eu poderia dar um passo pela porta e sentir o cheiro do fedor da cerveja rançosa! Como isso é possível? A Lagosta Negra fica em Porto Blacksand. E Porto Blacksand fica a duas semanas de viagem daqui!

Darkmane olhou inquisitivamente para Yaztromo.

O velho mago sorriu. — Meu visoscópio é minha preocupação atual. Através desses lentes de cristal eu posso observar Allansia, das Montanhas do Dedo de Gelo até o Deserto de Crânios, do Oceano Oeste até as Flatlands. Deste meu assento eu observei o Barão Sukumvit enviar contestadores ansiosos para suas mortes na Prova Anual de Campeões, em Fang. Observei Balthus Dire dando uma volta pelo lado de fora das muralhas de sua cidadela, junto com sua senhora, Lucrécia. Eu posso ver tão longe quanto...

Ele se interrompeu no meio de uma frase. Era evidente que os três aventureiros estavam concentrados, não em suas palavras, mas no visoscópio. Até mesmo Darkmane agora mostrava impaciência, ansioso por dar uma olhada através da peça, e o Chervah estava quase espumando de tanto excitamento!

Finalmente, Mantrapper afastou-se do aparelho e Darkmane sentou-se. Mas ele tinha um propósito mais sério para o aparelho de Yaztromo do que meramente observar a paisagem.

— Como posso ver Salamonis? — perguntou ele.

— Salamonis? Ah, deixe-me ver... — Yaztromo remexeu em uma pilha de mapas que estava colocada em sua escrivaninha, encontrou um e o estudou. — Sim, Eu creio... Se você colocar o visoscópio nessa direção! — Ele apontou com um dedo na direção sudeste.

O pesado visoscópio só podia ser movido de um lado para outro com alguma dificuldade, mas eles finalmente conseguiram apontá-lo na direção correta. Yaztromo se sentou, observou através da ocular e mexeu em vários puxadores, tentando encontrar a cidade de Salamonis.

— Ah! Ei-lá! Lá está Salamonis!

Darkmane se sentou na cadeira e olhou através do aparelho. Ele reconheceu o portão da cidade e a silhueta dos prédios e torres atrás da muralha; isso era, sem dúvida, uma imagem muito familiar a ele. Atônito com a visão, ele segurou o fôlego.

— Posso chegar mais perto? — perguntou.

Yaztromo lhe mostrou quais puxadores deveria mexer. Enquanto ele os movia, a cidade se moveu rapidamente na direção dele. Era como se ele fosse um pássaro, voando sobre as muralhas e em volta dos prédios até o centro de Salamonis, olhando para alguns lugares lá embaixo — e até mesmo pessoas — que ele reconhecia. O castelo real erguia-se à sua frente. De repente, ele estava olhando um pátio dentro do palácio. Duas figuras estavam de pé, conversando, próximas a um poço. Suas mãos pararam de manipular os controles e ele observou silenciosamente, surpreso. O mais velho dos dois que observava era um homem trajando fino manto amarelo. A estatura alta, o rosto quadrado e a barba curta eram inconfundíveis: Rei Salamon! O rei estava falando com uma mulher mais jovem — uma mulher de beleza, porte e graça. Os cabelos na nuca de Darkmane se arrepiaram quando ele reconheceu os cabelos dourados e as feições de sílfide da maga, Lissamina!

Os dois estavam em profunda conversa. O rei parecia ansioso a princípio, mas então Lissamina falara e pareceu acalmá-lo com suas palavras. Como Darkmane gostaria de ouvir o que falavam! O rei gesticulou com as mãos para enfatizar um ponto: ele as mantinha separadas, com os dedos curvados para dentro, como se apertasse uma criatura que estivesse em volta do pescoço dele.

Olhou então para a maga e falou, aumentando a pressão sobre a criatura invisível enquanto o fazia, até que finalmente as duas mãos se juntaram. Ela assentiu e falou uma vez mais. O rei suspirou. Finalmente ele levou a mão até ela. Ela a beijou, fazendo uma mesura ao mesmo tempo. O rei colocou a outra mão sobre a cabeça dela de um modo quase paternal e então virou-se para partir. Ele saiu do raio de visão de Darkmane.

Lissamina permaneceu perto do poço por um instante, presa em pensamentos. De repente virou a cabeça para um lado: era como se ela pudesse sentir alguma coisa no ar. Ela olhou para cima. De cenho franzido, olhou em volta como se procurasse por algo — só que ela não estava bem certa quanto a que. Quando às vezes o olhar dela dirigia-se para o horizonte parecia que ela estava olhando diretamente na direção do visoscópio e de Darkmane, e ele tinha que se controlar para resistir ao impulso de chamá-la. O olhar dela finalmente parou na direção dele e ele descobriu que estava olhando diretamente para dentro dos profundos olhos verdes. As linhas de expressão sumiram do rosto dela e um sorriso quente surgiu em seus lábios. Ela sabia que ele a estava observando] Ela se moveu para longe do poço e para fora do alcance do visoscópio.

Darkmane levantou-se rápido, e foi para longe do aparelho em estado de choque.

— O senhor está bem, mestre? — perguntou o Chervah.

— O quê...? Ah, sim. Sim. Eu estou... bem. — Ele se recompôs e virou-se para Yaztromo. — As imagens que vi através deste aparelho — elas são reais?

— É claro. — O velho mago bufou. O ceticismo de Darkmane o irritava. Se não fosse por sua amizade por Jamut Mantrapper, ele não teria nenhum escrúpulo em mandar o guerreiro embora. Em vez disso, porém, ele acrescentou: — E agora que vocês já tiveram a chance de usar meu aparelho encantado... — Yaztromo lançou um olhar gelado para Darkmane —... deixe-me ver se posso ajudá-los em sua busca. — Ele voltou para seus mapas, encontrou um grande e começou a estudá-lo.

O Chervah ficou amuado. Ele tinha esperança de ter sua vez junto ao aparelho. Se ele podia ver a grandes distâncias, talvez ele até mesmo pudesse ter uma visão dos espirais volteantes de Rimon, sua cidade natal, muito distante ao sul. Mas os outros o ignoraram.

— Nós devemos mover o visoscópio na direção norte — disse Yaztromo finalmente. — Então virá-lo ligeiramente para leste. Lá talvez encontremos o que procuramos.

Eles giraram o pesado instrumento na direção indicada pelo mago. Yaztromo sentou-se na cadeira e observou através da ocular. As mãos dele se posicionaram sobre as manivelas e ele começou agilmente a fazer ajustes.

— Hmmm. Deveria ser por aqui... ah, deuses. Bruma. Bruma nas Moonstores. Espere... Ah, o que é isso? Sim. Lá. Um pico vermelho. Achamos! Lá!

Ele recuou orgulhosamente e levantou-se da cadeira para permitir aos outros que olhassem. Mantrapper foi o primeiro a alcançar o óculo e ajustar-se a ele.

O excitado Chervah não conseguiu se conter por mais tempo. — O-o que você pode ver? Posso olhar? -disse com uma voz aguda.

— Montanhas. Uma cadeia de picos de montanhas encobertas pela neblina. Ou talvez nuvens. Pelos olhos de Zorna, Yaztromo, eu me sinto tonto! Será que tornei-me um Falcão Noturno planador, tocaiando minha presa?

— Deixe-me ver. - Darkmane colocou-se na cadeira enquanto Mantrapper se levantava.

Ele estudou o panorama de montanhas visíveis pelo óculo. Um dos picos chamou-lhe a atenção.

— Como faço para que se aproxime de mim? — perguntou, impaciente.

Yaztromo novamente colocou as mãos grandes do guerreiro em dois pontos. Darkmane os girou desajeitadamente e o pico pulou para trás, então pareceu pular na direção dele. Ele agora podia ver claramente que era diferente dos outros. O cume da montanha estava coberto por uma penugem vermelha, como se os deuses tivessem jogado um imenso cone de lã sobre ele. E não era pontudo, mas quase achatado. Darkmane podia ver filetes de fumaça flutuando no ar. Ele recostou-se na cadeira.

— Deixe-me ver novamente... — insistiu Mantrapper, mas ele então notou o Chervah. A criaturinha excitada estava lutando desesperadamente para controlar a excitação e a frustração. O mercenário riu alto. - Tudo bem, Chervah, sente-se. Olhe dentro do visoscópio. E rápido, antes que seus próprios olhos pulem para fora de sua cabeça e batam em você por causa disso!

O Chervah acomodou-se freneticamente na cadeira. Ele era pequeno demais para alcançar o óculo e os outros tiveram que levantá-lo junto com a cadeira até que ele conseguisse ver pelo visoscópio.

— Faa... Ah, vejam! Aaah! Montanhas! Dentes! Como os dentes gigantes! Heee! Elas são... Ah! Eu sou um deus! Ah, deuses! É como... É como se eu estivesse vendo através dos olhos de um deus!

Os outros sorriram enquanto o Chervah balbuciava, entusiasmado. Finalmente Mantrapper voltou-se para o mago. — Fale-nos mais sobre essa Montanha de Fogo, Gareth. Como chegamos até lá?

— É uma viagem segura se vocês contornarem a Floresta de Darkwood — talvez três dias, talvez quatro. Se vocês escolherem seguir pelo lado leste de Darkwood, encontrarão uma trilha que corre ao longo do sopé das montanhas de Moonstone e que os leva até a Travessia na Travessia, onde o Rio Vermelho e o Rio Catfish se encontram. Nesse ponto vocês devem pedir informações aos Anões, já que o caminho a partir daí segue dentro das colinas.

— Você irá nos mostrar em seu visoscópio, Gereth?

— Sim! Uma boa idéia. Vamos planejar sua rota... Nas horas seguintes, até que descesse a escuridão,

eles treinaram o uso do visoscópio pela rota que planejavam tomar. Iriam seguir para leste da torre de Yaztromo, avistando a Floresta de Darkwood. Apesar do caminho através da floresta ser mais direto, ele era muito mais perigoso: Gremlins, Ores, criaturas selvagens e mortais Mutantes de Formas viviam na Floresta de Darkwood. Em vez disso, Yaztromo aconselhou-os a seguir o caminho entre o limiar da floresta e as regiões mais baixas das Colinas de Moonstone. Este era um caminho bastante usado e muito mais seguro.

O visoscópio pegou uma imagem da Travessia na Travessia, onde um serviço de jangada os levaria para a margem norte. Yaztromo direcionou o visoscópio para oeste para observar Stonebridge, lar dos Anões. Ele conseguiu obter uma imagem de Gillibran e sugeriu que, se o grupo viesse a ter algum problema, eles poderiam vir a pedir-lhe ajuda. Ele então retornou à questão da rota: ela começava a subir no sopé das Colinas de Moonstone e era de difícil acesso com o visoscópio. Mas Yaztromo mostrou-lhes várias pequeninas vilas onde poderiam pedir informações sobre a Montanha de Fogo.

O Chervah abriu um mapa enquanto eles planejavam a rota, anotando tudo o que o mago lhes dizia sobre os perigos pelo caminho, as possíveis frutas, as plantas e os animais que poderiam encontrar para comer e os lugares onde provavelmente poderiam encontrar raças amigáveis.

Quando eles finalmente terminaram de fazer todas as suas perguntas, Yaztromo levou-os um andar abaixo do observatório. Ele parou no patamar e andou até uma porta com a palavra "Aviário" inscrita nela. Segurou a maçaneta da porta. — Antes que desçamos, Jamut — disse ele — talvez você queira encontrar um amigo seu uma vez mais?

Uma brisa passou por eles quando Yaztromo abriu a porta; uma grande janela no aposento estava bem aberta para permitir que os pássaros entrassem e saíssem da torre.

— Ah, Vermithrax — disse o mago para um grande corvo negro que estava empoleirado sobre um galho de uma árvore que crescia dentro do aposento. — Veja quem veio nos visitar!"

"C-c-r-raw!" respondeu o pássaro. Mantrapper! Boa tarde! C-c-r-rawk!"

— Olá, Vermithrax! — riu o mercenário. "Como vão as coisas em Darkwood, seu pardal penudo!

— R-r-r-oark! Vejo que seus modos continuam tão ruins quanto seu gosto por moças! C-c-r-rawk!

Mantrapper riu. A última vez que visitara a torre do mago fora a caminho de Stonebridge, lar dos Anões, acompanhado por uma donzela Anã de péssimas maneiras, que fugira da família. Ela fugira para Silverton para evitar um casamento arranjado com um Anão que desprezava. O abastado pai dela contratara o mercenário para encontrá-la e trazê-la de volta. Mantrapper tivera que arrastá-la, chutando e gritando, todo o caminho desde Silverton, e eles haviam passado uma noite na torre de Yaztromo durante a jornada. Ela guinchara e lutara por toda a noite. Quando o velho mago ficara cansado dos acessos de cólera da donzela Anã, ele trancara a criatura de péssimos modos em uma casa externa por aquela noite — mas não antes que ela tivesse encontrado Vermithrax. Os dois haviam se detestado de imediato.

— Então, como vão indo as coisas na floresta? Está tudo calmo em Darkwood?

— C-c-r-rawk! Hoje eu estive bisbilhotando em Cálice para obter novidades do que está acontecendo no Passo. C-c-rawk! Os Elfos e os Anões de Darkwood estão nervosos. C-c-rocok! Especialmente os Elfos. C-c-rawk! Eles temem que o problema possa espalhar-se para Stittle Woad, na Floresta das Aranhas.

Mantrapper assentiu. "E o que você ouviu?"

— C-c-r-rawk! Muitas coisas, Mantrapper, muitas coisas. C-r-rawk! Mas você fornece os seus serviços como caridade? C-c-r-rawk!

Jamut Mantrapper riu. Ele tirou uma moeda de ouro de dentro do bolso e jogou-a no ar para o corvo, que pulou e pegou-a com as garras.

— O mesmo velho Vermithrax! Tudo bem, então. Dê-nos suas notícias!

— C-c-r-rawk! Obrigado. C-c-roak! — O pássaro pousou sobre um galho e se acalmou. Da próxima vez que falou, a voz dele tinha um tom mais sério. — C-crawk. A guerra sangrenta continua, mas parece que o fiel está virando...

 

Os acontecimentos mudavam de rumo; uma nova força entrara em combate. Balthus Dire não podia imaginar o que viria depois que ele decidira fazer a experiência com a cunnelwort. Ele não poderia ter previsto os perigos de um portal aberto para o plano espiritual.

Vieram para dentro do mundo material. Os estranhos seres espirituais com os quais encontrara emergiram do portal dimensional para um mundo concreto. A princípio, Balthus Dire estava convencido, de que era seu mestre. Ele os encontrara e abrira o portal: eles precisavam obedecê-lo.

Logo descobriu que os poderes dessas entidades eram infinitamente maiores que os dele.

Quando os Espíritos Sorq entraram no mundo material, imediatamente desapareceram da Torre Negra. Apesar do desespero de Balthus Dire, pensando que eles haviam partido para sempre, eles voltaram no dia seguinte. Balthus Dire descobriu que eles simplesmente estavam determinados a aprender sobre esse novo mundo, e durante a ausência deles, viajaram por toda a Allansia. Em cada lugar que visitavam procuravam uma pessoa proeminente, fosse nobre, um rico mercador ou um mago, e dela assinalavam o conhecimento. As mentes de suas pobres vítimas não haviam sido meramente abertas: elas haviam sido roubadas durante o sono. Quando acordavam na manhã seguinte, descobriram-se como pessoas pouco mais inteligentes que animais.

Os Espíritos Sorq absorveram rapidamente as novas informações adquiridas. Eles estavam fascinados com o novo mundo em que se encontravam. Ansiavam por mais e mais conhecimentos. Mas depois de haverem aprendido o bastante retornaram para a cidadela de Balthus Dire. Eles agora já sabiam quem ele era. Haviam descoberto que esse humano primitivo possuía evidentemente algum poder nessa dimensão e que era um mago respeitado. Talvez ele pudesse ensiná-los mais coisas sobre o mundo material e os segredos de feitiçaria existentes. Eles também já sabiam tudo sobre sua luta com Zharradan Marr. Para eles seria divertido ajudar nessa luta... mas somente pelo tempo que lhes aprouvesse.

Seu próprio plano espiritual era vazio de coisas. Eles eram mestres do tempo e do espaço; eles também eram mestres das habilidades intelectuais — mas aqui havia objetos físicos! Montanhas, árvores, cidades, construções, pessoas, animais... Para os Espíritos Sorq, viajar por Allansia fora tão maravilhoso quanto seria para um cego ter a visão de súbito recuperada.

Voltaram para a Torre Negra e cooperaram com os planos de Balthus Dire. Este lhes explicou sobre o bloqueio de suprimentos e pediu-lhes que o ajudassem a retirar as tropas de Zharradan Marr dos sopés dos Rochedos Craggen. Eles imediatamente seguiram para norte, para o Passo do Trolltooth.

Era tarde da noite. Uma pequena tropa dos legionários de Marr amontoava-se em volta de uma fogueira de acampamento, nas margens do Rio Águas Brancas, no ponto em que uma passagem natural tornava a travessia possível. Os Homens-rinocerontes haviam forçado para ficar com os lugares mais quentes próximos ao fogo, e os Elfos Negros atrás deles resmungavam por terem sido expulsos; com os Homens-rinocerontes sentados à volta do fogo, muito pouco calor chegava até eles.

A escuridão era profunda. Os únicos sons presentes eram o rugir incessante do Rio Águas Brancas em seu caminho para a Bafa das Ostras e os gemidos monótonos que vinham do cercado próximo a eles. Era lá que os Sem-Alma estavam trancados. As horríveis criaturas mortas-vivas teriam que permanecer enjauladas até que surgisse uma caravana.

Os legionários descobriram que agora seu trabalho era fácil. Muito poucas caravanas vinham com suprimentos para a Torre Negra, e aquelas que os traziam seriam facilmente capturadas, soltando-se simplesmente os Sem-Alma; não havia necessidade de os legionários arriscassem-se em combate. Em vez disso, eles dormiam, trocavam estórias, jogavam e brigavam. -

Foi um jovem Elfo Negro quem primeiro ouviu o barulho do chapinhar. Ele levantou a mão e pediu silêncio de todos. Eles ouviram. Cavalos atravessavam o rio!

O fogo foi rapidamente extinto com lixo e os legionários esgueiraram-se na margem do rio. Conforme seus olhos acostumavam-se ao escuro, eles podiam ver a imagem difusa de um cavalo de carga em uma carroça, seguindo cuidadosamente pela passagem.

"Peguem os Sem-Alma!" A ordem iniciou nova discussão entre os legionários, mas finalmente um dos Homens-rinoceronte foi se arrastando até o cercado.

A carroça parecia ser uma presa fácil. No banco da frente estava uma figura encapuzada e havia quatro cavalos. Um punhado de criaturas do tamanho de Goblins empurravam as rodas, diminuindo o peso da carga para os cavalos. A carroça estava coberta, e por isso não se sabia o que ela continha, mas presumia-se que era apenas mais suprimentos para a Torre Negra. Presa fácil. Os legionários simplesmente deixariam a carroça atravessar o rio e então, com todos os guardas Goblins exaustos, soltariam os Sem-Alma. Permaneceram escondidos atrás dos arbustos na margem do rio e aguardaram.

A carroça finalmente chegou à margem sul. Deixaram que os cavalos descansassem por um instante. A respiração pesada dos animais transformava-se em vapor no ar frio da noite. Os guardas também se sentaram na margem do rio para ganhar fôlego.

— Soltem eles!

A ordem do Homem-rinoceronte atravessou o silêncio com um assovio estremecedor. Os guardas da carroça pularam de pé e agarraram as espadas enquanto duas centenas de Sem-Alma caminhavam arrastadamente na direção deles, na margem do rio. A situação era desesperadora. Apesar dos Sem-Alma não estarem armados, a quantidade era suficiente para vencer os defensores. E a horrenda visão de tantos cadáveres vivos, apodrecidos e fedorentos, gemendo e caminhando trôpegos na direção deles era o bastante para congelar o coração de qualquer guarda, mesmo fiel. As criaturas que os cercavam estavam mortas há muito tempo, e, pelos olhares de agonia em suas órbitas totalmente brancas, não tinham qualquer concepção de medo ou idéia do que estavam fazendo. Elas eram máquinas de matar que podiam ser usadas. Na verdade, era assim que o próprio Zharradan Marr via seus Sem-Alma.

Eles se aproximaram. Os guardas começaram a tremer. Os cavalos de carga resfolegaram e relincharam. Os legionários sorriam e saíram de trás dos arbustos para observar o massacre mais de perto. Os Sem-Alma do início da fila espalharam-se para cercar a carroça. O círculo fechou-se. Foi somente quando os Sem-Alma estavam a cerca de dez metros da caravana que o condutor da carroça se levantou e tirou o manto.

Nos instantes seguintes, a cena mudou completamente: o caçador virou caça, a vítima tornou-se vitoriosa, quando o Espírito Sorq atacou.

O manto caiu no chão e todos os olhos voltaram-se para a horrenda criatura segurando as rédeas dos cavalos. Apesar de todos o verem e engasgarem ao mesmo tempo, cada legionário via uma figura diferente, pois o Sorq havia alcançado a mente de cada criatura e para cada uma delas havia criado o pior horror imaginável.

Alguns dos legionários confrontavam-se com uma criatura demoníaca de suas próprias mitologias tribais; outros tinham uma visão de seu mais terrível pesadelo; e ainda outros enfrentavam uma lendária criatura feroz. O terror tomou conta do coração de todos os legionários.

Os Sem-Alma pararam, imóveis e silenciosos. Suas almas escravizadas, como se fossem uma só tinham diante de si a mais terrível visão jamais imaginável para suas mentes: a imagem de Zharradan Marr.

O Sorq estalou o chicote e dirigiu a carroça para cima dos Sem-Alma. Mas a carroça não mais estava sendo levada por meros cavalos. Os quatro cavalos de carga haviam se transformado em ameaçadores e salivantes criaturas do inferno! Eles investiram contra os horríveis Sem-Alma, com as poderosas mandíbulas abocanhando e mastigando ossos e membros arrancados de corpos como se fossem segadeiras em um campo de trigo. Para onde quer que as criaturas atacassem, os Sem-Alma eram apanhados aos montes. Os que tinham conseguido evitar o ataque permaneciam confusos. Era Zharradan Marr que estava de pé na carroça — e eles não podiam atacar seu mestre!

A carnificina continuou.

Os guardas Sorq não podiam fingir por mais tempo; já era tempo de eles juntarem-se ao combate. Eles se metamorfosearam da forma simples de criaturas Goblin que haviam imitado para demônios alados e voaram no ar e atacaram os legionários, que no momento estavam fugindo para salvar suas vidas pelas margens do Águas Brancas. Mergulhando sobre suas vítimas como os pássaros predadores, eles investiam com espadas e garras afiadíssimas. Um Homem-rinoceronte caiu no chão, gritando, segurando o ferimento no meio de seu rosto onde antes estivera o focinho. Um Elfo Negro morreu instantaneamente quando um golpe violento de um dos demônios caiu sobre seu peito franzino. Os legionários eram atacados sem piedade enquanto fugiam.

Então, subitamente, os Sorq interromperam o ataque. O plano estava completo: os Sem-Alma tinham sido destruídos; muitos dos legionários haviam sido mortos. Eles não desejavam matar todas as tropas em fuga. De que modo se espalhariam as notícias do massacre?

Voltaram para as carroças e observaram os legionários restantes escapando dentro da noite.

As notícias sobre o massacre se espalharam. Rapidamente. Dentro de poucos dias, o pânico tomara conta das tropas de Marr ao longo do Rio Águas Brancas e nos sopés das montanhas Craggen. Os Sorq atacaram mais duas vezes: uma a norte e uma a oeste. Sua estratégia era de um sucesso incomum. Enfrentando perdas severas, moral baixa e motins ocasionais, Zharradan Marr foi forçado a recolher suas tropas.

O fluxo de suprimentos para a Torre Negra estava restaurado.

Contudo, Marr não era nenhum tolo. Segundo as informações sobre os massacres, ele logo percebeu que a mágica atuante no caso não era deste mundo. Quando torturados, seus prisioneiros da Torre Negra também começaram a narrar histórias sobre essas "estranhas criaturas espirituais".

Ele voltou-se para os Ganjees, pedindo-lhes conselho. Os Ganjees reconheceram de imediato o trabalho de seus parentes espirituais. Mas as notícias sobre a chegada dos Sorq enfureceu-os grandemente.

Zharradan Marr estava muito desapontado com seus novos hóspedes. Uma vez os tendo atraído à sua casa, eles mostraram-se visitantes bastante indesejáveis. Ficavam contentes em poder fazer brincadeiras com os serviçais de Marr, mas até o momento não haviam oferecido qualquer informação relativa à sua magia de combate. Eles não demonstravam qualquer interesse na guerra que se desenvolvia e queriam somente aprender sobretudo as experiências marrangha. Zharradan Marr consolava-se com o pensamento de que ao menos eles não estavam ajudando Balthus Dire. E mantinha suas explicações sobre marrangha apenas num nível superficial.

Mas tudo isso mudara quando os Ganjees descobriram que os Sorq haviam chegado ao plano material. Ordenaram a Zharradan Marr que preparasse um confronto com os Sorq. Ele estava para enviar um regimento de legionários e Sem-Alma para a passagem do Águas Brancas, para o mesmo local do primeiro massacre — e os Ganjees os acompanhariam.

Marr estava enfurecido por receber tal "ordem". Mas se ele quisesse destruir os Sorq, então certamente os Ganjees eram as únicas criaturas que poderiam fazê-lo. Ele tomou as providências, como lhe fora ordenado.

Quando o combate ocorreu, isso custou-lhe a vida de três centenas de Sem-Alma e cinqüenta e dois legionários antes que, no auge da batalha, os Ganjees se revelassem!

A carroça que haviam usada fora abandonada, e os legionários restantes observavam, incrédulos, enquanto as duas raças de criaturas-espírito travavam combate. O céu estava iluminado com cores enquanto formas sem corpos brilhavam pelos ares. Explosões enviavam ondas de choque que lançavam ao chão todos os observadores. Gigantescas formas fantasmagóricas surgiam no céu, rugindo com a energia e a força de um vendaval. Depois sumiam de vista. Demônios das sombras flutuavam no ar, presos em combate, e depois desapareciam. Relâmpagos cortavam o céu. Nuvens se perseguiam pelos céus. Era um espetáculo surpreendente.

De repente, um som baixo e retumbante encheu todos os ouvidos; tornou-se mais alto. Bem alto no céu, um tremeluzente vácuo escuro surgiu. As formas espirituais pararam seus combates por um instante e pareciam olhar para cima, para o vácuo. Então, com um puxão louco e frenético, eles foram sugados para dentro dele!

Instantes depois, tudo estava calmo. Os Ganjees — e os Sorq — haviam retornado para o plano espiritual e lá continuariam sua batalha.

Balthus Dire amaldiçoou as notícias. Ele agora perdera sua vantagem. Os Sorq haviam liberado sua linha de suprimentos, e juntos eles tinham feito planos para atacar o Galleykeep de Marr. Zharradan Marr fora obrigado a ficar na defensiva enquanto suas tropas eram continuamente empurradas para trás. O equilíbrio da guerra voltara.

E Dire. apressando sua iniciativa, já ordenara que Orcleaver, o sargento de batalha Goblin que ficara no lugar de Foulblade como comandante de suas tropas, convocasse um exército de Goblins, Ores e caóticos, e que marchassem para dentro do Passo e o protegessem. Mas a vitória total seria certa e rápida com os Sorq para ajudá-lo.

Agora havia apenas uma saída para isso. Ele teria que fazer uma nova experiência com a cunnelwort.

Mas os perigos eram consideráveis. Ele decidiu primeiro esperar e ver como o exército de Orcleaver reagiria no Passo. Aí, se fosse necessário, usaria a cunnelwort novamente.

O que não sabia era que Zharradan Marr, ao encontrar-se em uma posição enfraquecida, tomara medidas desesperadas.

Nesse mesmo instante, Thugruff liderava o exército do próprio Marr na direção sul. Os dois exércitos se encontrariam no Passo a qualquer instante.

 

Um vento frio fazia rodopiar a brisa matinal. O Chervah olhou para cima e estremeceu. De onde eles estavam, a montanha parecia um imenso titã de pedra erguendo-se sobre eles. Penhascos rochosos nos pontos mais altos criavam formas e feições vagas, e a atenção da criaturinha estava fixada no que pareciam ser dois olhos furiosos que o fitavam.

Ele se forçou a olhar a montanha ainda mais alto. O topo da Montanha de Fogo estava obscurecido por nuvens, mas ele podia muito bem ver o pico de cor estranhamente avermelhada brilhando quando a luz do sol penetrava nas nuvens e iluminava o orvalho da manhã que decorava o musgo carmim que dava o nome à montanha.

Os três se aproximaram da entrada da caverna e espiaram as profundezas escuras da Montanha de Fogo. O Chervah segurava uma lanterna que lhes fora dada pelos Anões de Stonebridge. A passagem se estreitava um pouco à medida que o caminho pela caverna desaparecia na escuridão. Paredes viscosas brilhavam quando a luz da lanterna incidia sobre elas. Gotas vindas do teto caíam em pequenas poças no chão de pedra, fazendo um ruído de água que ecoava novamente pelas paredes. A luz súbita causara uma agitação de fugas precipitadas pelo chão quando pequenas criaturas invisíveis correram para esconder-se, mas os aventureiros não podiam ver qualquer perigo imediato.

Darkmane deu um passo adiante e gesticulou para que os outros o seguissem. O guerreiro liderava, com o Chervah seguindo próximo a seus calcanhares e iluminando os lados do caminho com a lanterna. Jamut Mantrapper tomou seu lugar como a retaguarda do grupo. Ele passou a mão pela parede para sentir o visco. Esfregou o líquido oleoso entre os dedos e limpou-o na túnica.

— Uma bifurcação — disse Darkmane em uma voz sussurrante. - Cuidado! Esperem aqui.

Aproximou-se da parede e observou cautelosamente pela curva do corredor. A passagem continuava para a direita; para a esquerda, ela virava uma outra esquina. Mas por esse caminho ele também podia ver uma luz opaca.

Ele virou-se para Mantrapper. - Tente a adaga Orukk.

Mantrapper deu um passo adiante e equilibrou a adaga em uma pequena depressão no punho de sua espada. Sussurrou para ela: "Qual o caminho para os aposentos de Zagor?"

A adaga virou para um lado, depois para outro, como se estivesse tentando farejar a direção correta. Finalmente apontou para a esquerda.

— Esquerda. A adaga... Uma onda de dor atingiu-o e cortou-lhe a frase no meio.

— Você está bem? — perguntou Darkmane. Mantrapper assentiu e colocou a adaga de volta em seu cinto. Eles viraram à esquerda e seguiram cuidadosamente pela parede.

O Chervah ouviu um barulho repentino e agarrou a perna de Darkmane.

— O que é?

— Eu-eu p-posso ouvir um som!

Todos ouviam. O som era fraco, mas eles podiam ouvi-lo distintamente, vindo da passagem à frente, depois da curva. Era o som baixo e ritmado de alguma coisa respirando!

Um brilho vermelho opaco iluminava o canto adiante, onde o corredor virava para a direita. Novamente Darkmane espremeu-se contra a parede e lentamente colocou a ponta de sua cabeça para fora para poder ver além da curva. O barulho ali era mais alto.

Ele deu uma olhada rápida e então puxou rapidamente a cabeça de volta. — Ssshh — avisou ele. — Tem alguma coisa adormecida logo depois da curva. Devagar. Não devemos acordá-la.

Os outros dois o seguiram quando ele passou pela curva na ponta dos pés. O Chervah engasgou-se quando viu a horrível criatura esparramada e adormecida em uma fenda na pedra na parede. A pele era escura e cheia de verrugas e as mãos e pés terminavam em garras calejadas. Quando o peito dela subia e descia, o lábio de baixo se abria para revelar dentes sujos porém pontudos. A sentinela Ore usava armadura de couro remendada, e entre seus pés e apoiada na parede estava uma lança de madeira.

Darkmane avançou lentamente, pisando com cuidado quando passou pela sentinela na direção da passagem à sua frente. Mantrapper, que fora antes do Chervah, seguiu-o. Mas a criaturinha estava presa pelo medo, incapaz de se mover.

— Chervah! — sussurrou Darkmane. — Rápido. Venha.

As palavras de seu mestre fizeram-no sair de seu transe. Seu pé moveu-se para a frente. Todo seu corpo estava tremendo. Ele deu mais um passo. Então mais outro...

CRACK!

O Chervah gemeu quando viu o galho quebrado sob seu pé. O som de madeira quebrando ressoara por todo o corredor de pedra. Congelado onde estava, ele olhou nervosamente para o Ore.

Os olhos do Ore piscaram e se abriram!

— Rrraawwk! — Ele viu a pequena criatura em frente a ele trêmula, e pegou a lança. O Chervah não conseguia se mover.

Mantrapper resolveu agir. A lança do Ore estava a apenas poucos centímetros do peito do Chervah quando a espada de Mantrapper investiu contra ela, despedaçando a madeira. Os olhos da criatura horrenda arregalaram-se e ele levou a mão até a própria espada, que estava em uma bainha presa ao cinto. Mas Mantrapper foi mais rápido e a lâmina dele cortou fundo o antebraço do Ore. A sentinela puxou o braço instintivamente e levantou-o para ver o ferimento. Um sangue escuro fluiu do corte, manchou a manga do Ore e pingou no chão. A mão e o antebraço caíram para um lado, presos pelo último tendão deixado intacto por Mantrapper.

O Ore abriu a mandíbula para dar um berro mas, antes que um som pudesse emergir da sua garganta, a ponta da espada do mercenário atravessou-lhe o pescoço. O som emitido parecia um gorgolejar indefinido. O Ore caiu ao chão, morto.

— Venha rápido, Chervah — arquejou Jamut Mantrapper. - E tome cuidado, pelo amor de Slangg!

O Chervah sacudiu a cabeça e seguiu-os. Ficou cabisbaixo quando se deu conta do trabalho que causara. Teria o grito da sentinela avisado outros? Ele seguiu Darkmane e Mantrapper pela passagem.

Passaram por uma porta na parede esquerda e pararam, poucos passos mais adiante, em uma segunda porta. Darkmane pediu-lhes para fazerem silêncio e virou o ouvido para a passagem à frente deles. Ele podia ouvir alguma coisa vindo.

Andou até a porta e pressionou o ouvido na madeira. Não ouviu nada lá dentro. — Aqui — sussurrou para os outros.

O barulho na passagem mais adiante ficava mais alto: passos pesados vinham na direção deles.

Darkmane virou a maçaneta da porta e, audaciosamente, passou pelo batente com a espada em punho. Os outros o seguiram e fecharam a porta atrás.

O aposento estava iluminado por uma única vela sobre uma pequena mesa. Quarto de dormir, pensou Mantrapper ao ver um imundo colchão de palha no canto. Só espero que não seja o quarto do que quer que seja que está lá fora.

O Chervah percebeu uma pequena caixa sob a mesa e pegou-a. Ela se parecia com algum tipo de caixa de jóias, com acabamento de pele de cobra e com uma pequena garra de metal que a mantinha fechada. Balançou-a. Alguma coisa chocalhou lá dentro. Eu vou abri-la! pensou ele, e pegou a garra com as mãos. Espere! Isso pode ser perigoso! disse uma vozinha dentro dele. Mas as palavras foram ignoradas quando seus dedos cobriram a garra e abriram a tampa.

— Aaaaahhh!" ~ ele gritou quando a pequena cobra que estava lá dentro deu o bote e mordeu-lhe a mão. Os outros dois correram para ajudá-lo. Os dedos do Chervah soltaram a caixa e ela caiu no chão, espalhando o conteúdo: a pequena cobra, um pedaço de seda vermelha e uma chave cor de bronze, que estivera escondida sob a seda.

Mantrapper esmagou a cobra sob seu calcanhar e abaixou-se para pegar a caixa e o conteúdo dela. — Devia ser um mascote de Ore - disse ele. - Mas olhem esta chave. O que acham? Uma chave para esse aposento? Não - não há nenhuma fechadura na porta. Mesmo assim, ela pode ter vindo em boa hora, não concordam?

Darkmane assentiu e Mantrapper colocou a chave no bolso. O Chervah colocou o quadrado de prata de volta na caixa, pôs a cobra morta sobre ele, fechou a caixa e recolocou-a debaixo da mesa.

Darkmane estava de pé ao lado da porta, ouvindo, à procura de sons na passagem do lado de fora. Tudo estava calmo. Eles saíram, seguindo mais profundamente na Montanha de Fogo.

Era um pouco mais tarde quando chegaram a um aposento do Ciclope de Ferro. O corredor acabava em uma porta de madeira. Eles haviam virado errado em uma bifurcação anterior — um erro que poderia sair-lhes caro.

— Por aqui? — perguntou Darkmane.

— Eu não sei. Parece ser o único caminho. Deixe-me escutar. — Mantrapper colou a orelha na porta a escutou cuidadosamente por alguns instantes, então deu de ombros. — Não consigo ouvir nada. Vou tentar a porta. — Virou a maçaneta lentamente e empurrou a porta.

Ela abriu, e, ao fazê-lo, uma luz do aposento iluminou o corredor. Os aventureiros cobriram os olhos e espiaram para dentro da luz.

Ficaram encantados quando perceberam a beleza ornamental do aposento. As paredes e o chão eram decorados com um mosaico de azulejos de mármore que brilhavam quando refletiam a luz que vinha de um ponto brilhante do teto. No centro do aposento estava uma estátua alta, de pé em um pedestal.

- O que é isso? — gaguejou o Chervah.

— Não sei. Talvez uma estátua de uma das criaturas de Zagor. Tudo que sei é que estou contente de que seja uma estátua, e não a própria criatura!

A grande estátua metálica representava uma criatura que jamais tinha visto antes. Ela era de proporções humanas, mas possuía cascos em vez de pés. As feições pareciam as de um demônio, com uma língua ofídica saindo da boca e um único olho no meio do rosto. Mas não fora esculpida nenhuma representação de olho. Em vez disso, havia uma imensa jóia brilhante que absorvia a luz e enviava uma miríade de pequeninas centelhas pelo aposento.

Eles entraram cuidadosamente e fecharam a porta atrás, mas Darkmane mandou que o Chervah voltasse para o corredor e que mantivesse as orelhas e os olhos bem abertos à procura de portas escondidas ou de quaisquer outros meios de prosseguir.

Mantrapper olhava petrificado para a estátua de ferro. — Essa jóia... — suspirou ele. — Uau! Ela deve valer o resgate de um rei! Eu acho que vou...

—Deixei-a!"

A severidade no tom de Darkmane fez com que o mercenário parasse imediatamente.

Ele virou para encarar o guerreiro. A princípio recuou devido à dureza da ordem. Então, os olhos dele se estreitaram. — Vamos deixar uma coisa bem clara! — A voz de Mantrapper tinha um tom gélido. - Você pode estar aqui em uma missão para salvar seu precioso reino. Mas eu estou aqui apenas por uma razão. Você está me pagando regiamente, isso eu não posso negar. E enquanto você for meu empregador, meus serviços estão à sua disposição. Mas esperar que eu simplesmente ignore uma jóia do tamanho do crânio de um coelho? E ainda mais uma que não está protegida; que está simplesmente implorando para ser pega? Bom, eu poderia vender essa jóia em Shazâar e viver confortavelmente por um ano com o dinheiro obtido.

Darkmane olhou com severidade para o mercenário. — Nós não estamos aqui como ladrões comuns. Primeiro, encontraremos esse Zagor — e esse é nosso único propósito. Uma vez que o tenhamos encontrado, então você estará livre para voltar e surrupiar o que desejar. Mas, até então, nada nos distrairá de nossa missão.

— Ora, mas é claro! - escarneceu Mantrapper. O grande Darkmane é um guerreiro da corte. Qual a utilidade de ouro e riquezas para ele? Bem, Jamut Mantrapper não tem uma posição tão privilegiada. Eu pegarei essa jóia e isso vai mudar minha vida para melhor. Seria uma tolice deixar a jóia no lugar com a esperança de mais tarde retornar para recolhê-la! Ela está aqui e agora! Olhe, ela está praticamente em minha mão! De qualquer jeito, agora estamos perdendo mais tempo discutindo sobre isso do que o que levará para que eu a retire do olho de estátua...

— NÃO! — rugiu Darkmane. —, Enquanto eu lhe pagar seu preço, você obedecerá minhas ordens. Eu não confio nesse lugar. Sinto perigo no ar à nossa volta. Vamos deixar este aposento agora!

Foi um combate de vontades. Os dois se olharam, olhos brilhantes de ódio. Do outro lado da porta, o Chervah podia ouvir as vozes se alterando e se perguntava se deveria ou não entrar e ver o que estava acontecendo. Mas nesse momento a porta se abriu e Jamut Mantrapper saiu. Seus dentes estavam apertados e as veias em suas têmporas pulsavam visivelmente; ele lutava para conter a fúria interior. Darkmane seguiu-o.

— Devemos refazer nossos passos até a bifurcação — disse Darkmane. E então virar a esquerda. — Eu vou na frente. Chervah, vá atrás de mim. Vamos!

Caminharam em silêncio. Levaria um tempo até que o ânimo dos dois aventureiros se acalmasse. Eles continuaram depois da curva até chegarem à bifurcação.

Darkmane parou para pensar sobre o caminho a seguir.

— Mantrapper, você tem certeza que a adaga apontou para este caminho?

Não houve resposta.

Darkmane sentiu uma onda de ódio pela má vontade de falar do mercenário. Ele voltou-se para encarar Mantrapper...

Mantrapper desaparecera!

Darkmane olhou para o Chervah, que deu de ombros . Ele não vira nem ouvira nada. De repente, uma sucessão de sons quebrou o silêncio.

Nniiiaaaaaaahh!

Claaannngg!

Aaaaarrgghh!

O grito veio de trás deles. Era a voz de Jamut Mantrapper! Darkmane correu de volta pelo corredor, com a espada já preparada. Quando virou a curva, a visão diante de seus olhos o fez parar.

Evidentemente o rancor e a cobiça de Mantrapper haviam vencido. O mercenário resolvera ignorar as ordens de Darkmane e voltara silenciosamente ao aposento de mármore para roubar a jóia da estátua. E realmente a roubara, como o guerreiro podia ver claramente através da entrada aberta. Ele a estava segurando firme na mão esquerda. Mas a jóia não estava indefesa. Quando ela se soltou de sua armação, Mantrapper parou para pegá-la. Ele ouviu um rangido sobre ele, como o de um portão de ferro enferrujado sendo aberto lentamente. Esse som foi repetido uma vez, depois mais outra. Mantrapper pensou a princípio que fosse a porta se abrindo, mas quando olhou para cima descobriu, para seu horror, que os rangidos não vinham da porta.

Ele perdeu a fala, e por um instante ficou como congelado, incapaz de se mover. Sobre ele, os membros da estátua demoníaca flexionavam-se em movimentos desconjuntados. A grande cabeça girava desajeitada sobre o pescoço como se à procura de alguma coisa. Um dos cascos fendidos deu um passo adiante. O outro fez o mesmo. A criatura estava se esticando, dobrando e girando como se estivesse flexionando os músculos de ferro pela primeira vez. Era como se um espírito-demônio guardião tivesse acordado dentro da criatura e estivesse testando e aprendendo os movimentos possíveis para esse novo corpo.

Mantrapper saiu do transe e agarrou a espada enquanto, no mesmo instante, a estátua brilhante pulou do pedestal para o chão! Quando a lâmina do mercenário saiu da bainha com um ruído metálico, a criatura girou a cabeça para um lado. No momento ela estava olhando para além de Mantrapper, mas o som da espada retirada da bainha chamou-lhe a atenção. Ela oscilou o corpo na direção dele e a boca emitiu um rosnado. A língua, semelhante à de uma cobra, dardejou e iluminou-se em sua boca, e ela levantou ambas as mãos, pronta para agarrar sua presa humana aterrorizada.

— Nniiiaaaaaaahhl — Mantrapper deu um passo adiante, levantou a espada sobre a cabeça e desceu-a com um golpe selvagem sobre o antebraço da estátua.

Claaannngg! O som de metal contra metal ecoou pelo aposento.

A onda de choque do impacto correu pela espada, pelo cabo e até o braço de Mantrapper. A linha firme de suas sobrancelhas caíram quando o rosto dele contorceu-se em uma expressão de dor. Aaaaarrgghh!

A estátua moveu-se. Ela aprendera rapidamente a controlar os novos músculos, e com seu punho de ferro deu um tapa em Mantrapper. O golpe atingiu o ombro esquerdo do mercenário e lançou-o voando pelo aposento. Ele chocou-se contra a parede com uma força que teria abalado um homem menor. Balançou a cabeça e observou com os olhos embaçados a estátua que avançava. Milagrosamente, ele conseguira segurar a jóia, mas a espada fora tirada de sua mão e estava no chão, próxima ao pedestal e bem fora de alcance.

Mantrapper conseguiu levantar-se no exato instante em que um punho de ferro batia na parede onde ele esti-vera estirado. Ele reuniu todas as suas forças e lançou-se sobre a estátua. Ela ficou sem equilíbrio; agora ele poderia derrubá-la e ter chance de obter sua espada de volta. Seu ombro bateu no peito da criatura...

Esse não fora um movimento sábio. Mantrapper deu um berro de dor quando seu ombro bateu no alvo, mas a estátua mal sentiu o golpe. O punho aberto dela atingiu o estômago do mercenário com um soco tão poderoso que o mandou girando pelo aposento. Desta vez ele não teve tanta sorte em conseguir manter seus pertences. A jóia caiu de seu apertão e rolou pelo chão de mármore até um canto. A mochila de Mantrapper se abriu e espalhou moedas de ouro e provisões pelo aposento. A adaga de Yaztromo escorregou de seu cinto e foi parar perto do pedestal.

A criatura voltou-se na direção dele. O rosto dela estava contorcido em um rosnado de gato selvagem e um som sibilante, de vapor, veio da parte de trás da garganta dela. Ela avançou aos trancos na direção dele.

Mantrapper estava jogado contra a parede. Ele sacudiu a cabeça aturdida lentamente e piscou várias vezes, como se tentasse conseguir de volta algum equilíbrio para seu cérebro aturdido. Ele levantou os olhos para avaliar a situação. Mas seu olhar perscrutador jamais alcançou o lado distante do aposento de mármore — a imagem foi cortada abruptamente quando a visão com a qual se confrontava estava a meio metro de distância. Ele rapidamente concentrou o olhar no rosto hediondo, metálico e rosnante, com a órbita ocular faltando e língua de prata bipartida que dardejava para dentro e para fora da boca e no som sibilante de vapor na garganta. Antes que ele sequer tivesse a oportunidade de gritar, um abraço de ferro circulou-lhe a garganta e começou a apertar.

Ele tossiu e engasgou-se, lutando valentemente com as próprias mãos para libertar-se do aperto quase fatal das mãos da criatura. Mas quais eram as chances de carne lutando contra ferro? O mercenário começou a sufocar quando as mãos metálicas apertaram mais. A cabeça começou a flutuar e sua consciência a esvair-se. O mundo de Jamut Mantrapper estava se dissolvendo em escuridão...

Sua última visão antes de desmaiar foi a da expressão selvagem da criatura e as feições mutiladas onde a jóia desaparecida fora retirada da órbita ocular. A órbita escurecida estava imediatamente à frente dele; era quase como se a criatura estivesse deixando-o intencionalmente com uma dirima lembrança de seu crime tolo, enquanto ele pagava o preço e sucumbia à punição. O buraco do olho encheu-lhe a visão. Sua escuridão tornou-se a escuridão de Mantrapper. Uma haste de prata brilhou na escuridão. A consciência o deixou...

 

Naquela mesma manhã, nuvens densas e escuras pairavam pesadas nos céus do Passo de Trolltooth. Era como se os próprios deuses celestiais estivessem mal-humorados com a carnificina que se seguiria assim que os dois exércitos se vissem.

— Olhe! No céu. Grande navio.

O rosto feio de Orcleaver se retesou em uma careta quando ele seguiu o dedo da sentinela. — Galleykeep — o sargento de batalha, agora comandante do exército, disse calmamente: - Za'mar vem.

Orcleaver e seus exércitos de cinco mil chegaram primeiro a seu destino e montaram acampamento em uma planície alta ao sul, sobre o Passo de Trolltooth. O exército era composto por 37 tribos de Goblins da Montanha, cada uma delas liderada por seu próprio chefe tribal, bandos desorganizados de Ores e uma mistura variada de criaturas do caos que haviam atacado a vila de Coven.

Apesar de estarem discutindo e brigando entre si, os Goblins eram o que mais próximo Balthus Dire tinha dos legionários de Zharradan Marr. Cada tribo era leal a seu chefe e cada chefe era leal a seu comandante; assim, era possível organizar os Goblins em regimentos e planejar manobras no campo de batalha — uma coisa totalmente impossível com os Ores. Tão logo um Ore visualizasse seu inimigo, qualquer tentativa de ordem estava perdida. Em vez disso, com igual freqüência, eles iriam ou não voar frenéticos e atacariam sem qualquer respeito a ordens — ou até mesmo cuidado com a própria vida. E o mesmo acontecia com as outras criaturas do caos: eram simplesmente alimentadas com batalhas. Podia-se, no entanto, confiar que levariam com eles um bom número das tropas inimigas antes de serem abatidos. Por esta razão, os Goblins os toleravam.

Também espalhadas entre as forças de Orcleaver estavam criaturas muito mais perigosas, igualmente odiadas e temidas pelos Goblins e Ores: Elfos Negros, Bárbaros das Montanhas, Calacorms, Insetos Gigantes, Cães do Inferno, mortais Arqueiros Sem Olhos e uma multidão de outros seres do caos. Haviam-se juntado ao exército de Orcleaver quando ele marchara por suas casas e cavernas. Alguns haviam-se juntado por uma vaga sensação de lealdade a Balthus Dire, mas a maioria pouco sabia sobre o Lorde da Torre Negra, ou mesmo se com ele. Eles compreendiam apenas que tal encontro de tropas significava uma coisa: uma batalha iminente. A isso não conseguiam resistir.

Orcleaver voltou-se para sua reunião de chefes tribais. O tecido imundo da tenda improvisada batia tão forte ao vento que o comandante Goblin precisava elevar a voz para conseguir ser ouvido.

— Za'mar vem — anunciou ele. — Com exército. Nós surpreende. Nós ataca primeiro. Ouça...

O comandante Goblin pouco sabia sobre a arte da estratégia ou de táticas, mas o plano dele era simples e fácil. Esperariam sossegados até que as tropas de Marr entrassem no Passo e então desceriam sobre eles. Ele já testemunhara o uso dessa tática antes, e fora um sucesso total. Naquela ocasião a emboscada de Foulblade deixara apenas um único sobrevivente. Desta vez não haveria sobreviventes.

— Stoneback pega tribo. Vai leste Passo. Pára fuga.

Stoneback levantou as mãos da barriga gorda em um gesto de concordância. Toda sua tribo era tão gorda quanto o chefe e compartilhava dos mesmos hábitos alimentares nojentos. Um sorriso seco expôs uma boca cheia de dentes quebrados quando Stoneback sorriu orgulhosamente para os outros chefes. Afinal de contas, ele e sua tribo haviam sido escolhidos para uma missão especial. Mas Orcleaver não escolhera Stoneback e sua obesa tribo por suas habilidades como guerreiros competentes; ele os escolhera justamente porque a rota de fuga para leste era a que menos o preocupava; não havia nada lá a não ser as Terras Planas.

— Halfclaw pega outra ponta. Oeste. Não escapar. Matar todos.

— NÃO!

Os chefes se voltaram para a figura acocorada atrás do grupo. Halfclaw tinha uma expressão teimosa no rosto feio. Ele e suas tropas eram de uma tribo particularmente violenta que ficava ao sul da Torre Negra. Eles eram abertamente conhecidos como "Os Sanguinários" por seus costumes e rituais macabros. Os Goblins praticavam suas habilidades com armas todos os dias, religiosamente.

Todos os julgados a serem executados (na verdade, os que, de algum modo haviam contrariado os juizes) tornavam-se vítimas de uma caçada humana mensal e eram perseguidos e chacinados pela tribo. No seu tempo, Halfclaw matara um bom numero de seu próprio povo. Ele não era uma criatura em quem confiar. Pôs-se de pé.

— Não. Não vir para guardar. Vir para matar. Orcleaver também se levantou. Ele não poderia

permitir tal insubordinação. Seus lábios finos se apertaram. — Você obedece ordem. Ou nós matamos você. Vá oeste. Atacar exército de Za'mar por trás. Bastante matança. Mas sem fuga.

Halfclaw abriu a boca para falar, mas sentiu a hostilidade vinda dos outros chefes, que estavam contentes por tê-los longe da batalha principal — e longe de suas próprias tribos. Ele hesitou, e então levantou a mão com três garras em um gesto de concordância. Murmúrios de alívio partiram do grupo quando Halfclaw sentou-se novamente.

— Bom — continuou Orcleaver — Todos os outros comigo. Esconder nas montanhas. Esperar meu sinal. Então atacar.

— Zangões. — Uma voz roufenha veio da esquerda de Orcleaver. — E quanto aos Zangões?

Os Goblins se referiam aos Ores, Elfos Negros e outras criaturas não controladas pelos Goblins como "Zangões". Em um ataque surpresa, eles eram um risco constante. Podiam ou não ser incapazes de controlar a própria impaciência e atacariam prematuramente.

— Observadores falam deles. Eles não atacar. — Orcleaver falou com autoridade e confiança. — Não até prontos.

Essa resposta pareceu satisfazer o questionador, apesar do próprio Orcleaver não poder ter mais do que a mera esperança de que eles obedecessem as instruções.

— Agora ir. Tomar posições. Observar. E esperar por sinal.

Os 37 Goblins se levantaram fazendo barulho com seus pés e saíram afobados da tenda. Hoje iriam realizar um pouco de matança.

A figura ao lado de Thugruff estivera silenciosa durante toda a noite... silencioso fora o clip-clop rítmico das patas do cavalo. Thugruff se virará várias vezes para oferecer-lhe água ou conversar, mas nenhuma das duas havia sido aceita. Em vez disso, a criatura fantasmagórica simplesmente olhava para a frente, com olhos arregalados e sem piscar. Os dois, à frente do exército de Zharradan Marr, continuavam em silêncio. Thugruff imaginava quais seriam os pensamentos de seu companheiro.

Mas ninguém sabia ao certo se algum pensamento cruzava a mente de Darramouss, o encarregado das masmorras de Marr. O misterioso Meio-Elfo havia sido convocado para juntar-se a Thugruff e para trazer com ele algumas das criaturas sob seu comando. Apesar dele ter obedecido à ordem, detestava estar em céu aberto e odiava o sol. Sua pele seca, bem esticada sobre os ossos, tornava-se incômoda à luz do dia. Ele preferia o frio e a umidade dos seus domínios subterrâneos.

Seu mestre, Zharradan Marr, decretara que essa guerra deveria ser decidida, e decidida rapidamente. Ele não tinha paciência para uma guerra prolongada e desgastante. Thugruff estivera treinando um exército de legionários nos Campos de Testes na Floresta de Knotoak. O exército de Balthus Dire, ele sabia, não tinha tal treino. Quanto mais tempo ela durasse, mais tempo Dire teria para organizar as suas tropas. Havia somente um risco; as tropas de Thugruff não eram numerosas — mil legionários e talvez quinhentos Sem-Alma. Se ele atacasse imediatamente, antes que seu inimigo tivesse tempo de juntar seu exército, haveria uma boa chance de terminar a guerra rapidamente e com bom resultado. Ele não sabia que ambos haviam dado a seus comandantes de batalha as mesmas instruções virtualmente ao mesmo tempo.

Thugruff e Darramouss prosseguiam lentamente na direção dos Rochedos Craggen. Atrás deles, uma densa parede de Homens-rinoceronte, armados com lanças longas, liderava a infantaria. Eles eram seguidos por três regimentos de legionários, agrupados por raças: os humanos, os Homens-lagarto e os Elfos Negros. Seguindo os Elfos Negros ia um regimento de raças miscigenadas: Goblins, Anões, Kobolds, Craggeracks e Gorians.

A seguir vinham os Sem-Alma, zumbis tropeçantes que se arrastavam pelo caminho como uma massa desajeitada. Duas dúzias de guardas montados patrulhavam continuamente os zumbis, chicoteando-os. Havia um constante barulho de fundo, uma mistura de suspiros e gemidos enquanto as monstruosidades mortas-vivas cambaleavam para a frente.

Na retaguarda, puxadas por uma carroça de carregamento, estavam as criaturas de Darramouss. Cada uma delas usava uma carga de onde safa uma corda que os prendia à carroça. O bando desajeitado incluía Ores Sanguinários, Besta-Garras, Devoradores e Bestas Maníacas. Apesar de agora parecerem dóceis ao seguirem atrás da carroça, cada uma dessas criaturas se tornaria um matador destemido e mortal quando Darramouss ordenasse.

E bem no alto, observando do convés do Galleykeep, estava o próprio Zharradan Marr. Um pequeno bando de legionários fiéis tripulava o grande navio. Ao lado de Marr estava a imensa figura de um homem com uma cicatriz selvagem que corria em um dos lados do rosto: Vallaska Roue. Voando ao lado do Galleykeep seguia uma dúzia de Tooki. Eram imensos Grifos alados - metade águia, metade leão — guiados por implacáveis arqueiros de Ores Sangrentos sentados orgulhosamente às costas deles, com os arcos cruzados no peito. Os Tooki subiam e desciam no ar ao lado do navio enquanto os Grifos batiam lentamente suas asas.

Foi Vallaska Roue quem apontou para o movimento abaixo quando o exército de Thugruff entrou no Passo; ele percebeu o enxame de formigas negras que eram as tropas de Orcleaver se espalhando pelas colinas. Marr deu a ordem e o Galleykeep, com sua escolta de Tooki, começou a descer. Uma bandeira vermelha foi rapidamente içada no mastro — o sinal de alerta para as tropas de terra lá embaixo.

— Thugruff! Veja! — Tankasun, o sargento de armas Gorian de um braço, galopou até a frente da linha. Os cascos de seu cavalo ecoavam pelo Desfiladeiro. — Vê? No Galleykeep. Uma bandeira vermelha. Um aviso!

Thugruff virou-se para olhar o navio de velas negras. Quando notou a bandeira vermelha, o pulso disparou. Ele também notou que a estranha criatura a seu lado voltara o olhar para o céu e a seguir virará imediatamente o cavalo e se dirigira para a retaguarda da tropa. Thugruff voltou-se para estudar as escarpas rochosas que os ladeavam. Ele ouvira falar do incidente que desencadeara a guerra. Os amaldiçoados Goblins da Montanha, asseclas de Dire, planejando outra emboscada?

Levantou a mão para parar a marcha. A primeira coisa a fazer era observar o Passo. Mas já era tarde demais. Eles já se encontravam lá, e as pedras a sua direita estavam cheias de Goblins.

— ATACAR! Este lado! Baixo! Matar!

Orcleaver berrou as ordens e soaram as trombetas. A horda negra pulou das encostas como se um imenso caldeirão de piche tivesse sido virado. Os Goblins berravam e gritavam enquanto se lançavam sobre os legionários, atônitos e despreparados, que permaneciam abaixo deles.

Thugruff esporeou o cavalo e percorreu a linha, rugindo ordens enquanto galopava. Os Homens-rinoceronte fecharam posições para formar uma falange, com as lanças firmemente apontadas para a frente. Nenhuma criatura, nem mesmo um Goblin, se atreveria a enfrentar uma tal parede de morte. Os outros empunhavam suas armas e enfrentavam os atacantes. Darramouss já estava dando ordens para soltar seus horrores das masmorras.

Thugruff dirigiu rapidamente seu cavalo para os infelizes Sem-Alma, que não pareciam sequer notar o ataque em curso.

— Vão! Lutem! Matem! — urrou ele, apontando com a espada para as encostas.

Quinhentas cabeças desventuradas gemeram enquanto os mortos-vivos viravam para sul. Eles cambalearam na direção dos Goblins, que agora chegavam ao chão do Passo e corriam para o combate — direto para os braços esticados dos Sem-Alma.

Ouviam-se os gritos dos Goblins quando as criaturas mortas-vivas os arranhavam e cortavam com suas garras. As espadas Goblins cortavam profundamente a carne dos zumbis, espalhando gosma fedorenta em volta. Mas mesmo quando os membros estavam cortados e quebrados, os Sem-Alma continuavam a lutar. Eles nada sabiam de medo ou dor, a não ser a ordem de matar. O simples número deles venceria o primeiro ataque dos Goblins e dispensaria os outros, tornando assim mais fácil aos legionários começar o contra-ataque.

Os Sanguinários de Halfclaw já estavam lá embaixo no Passo, atrás do exército de Thugruff, e avançavam sobre as criaturas de Darramouss. O Meio-Elfo observava impassível enquanto os Goblins atolavam sua carroça. Mas o terreno começava a clarear no centro do corpo-a-corpo enquanto as Bestas Maníacas e os Devoradores forçavam os Goblins a recuarem em círculo. Então os Goblins apertaram o cerco...

Thugruff ordenou que os Homens-rinoceronte fossem para frente, e a falange se moveu. Eles marcharam ombro a ombro, em um quadrado perfeito. As lanças esticadas evitavam que quaisquer Goblins atacantes se aproximassem, e Thugruff usava os Homens-rinoceronte para quebrar as defesas organizadas. Os Homens-lagarto haviam atacado a horda de Goblins e as duas forças estavam presas em uma terrível batalha de espadas. Os Homens-rinoceronte avançaram e pegaram os Goblins pelos flancos. Eles cortaram através das criaturas, direcionando uma linha pelo meio dos postos e tomando fácil para os Homens-lagarto esquartejar os Goblins deixados ao lado da linha.

De seu posto bem no alto das rochas, Orcleaver observava a batalha. Ele envolvera cerca de dois terços de suas tropas no combate, mantendo o resto como reforços a serem utilizados caso a batalha tornasse maus rumos. Ele cocou o queixo e grunhiu quando viu os Homens-rinoceronte realizarem novamente em suas tropas uma profunda entrada em ângulo.

— Deve matar Homens-rino! — A voz de Blackscar, seu próprio sargento de batalha e um dos seus oficiais mais velhos, tirou-o de seu mutismo.

— Grrnt. — Orcleaver também estava surpreso com sua resposta evasiva. Obviamente o oficial estava certo. Os Homens-rinoceronte estavam fazendo uma devastação e precisavam ser atacados — a falange tinha que ser quebrada. Orcleaver também sabia o que exatamente deveria ser feito: Os Arqueiros Sem Olhos deviam lançar suas flechas no centro da falange. Tudo o que tinha a fazer era dar a ordem...

Mas a expressão de Orcleaver tornou-se repentinamente vaga. Dentro de sua própria mente ele lutava para manter o controle. Seus pensamentos vagavam, vagavam da cena lá embaixo para outra cena, perdida em sua memória. Uma fogueira de acampamento. Um saco de ervas. Seu velho comandante, Foulblade, ordenando-lhe que fosse dormir.

Ele podia ver a si mesmo andando na escuridão, parando em um arbusto. Então...

— Aaargh!

Ele caiu para trás no chão, com o rosto congelado em uma expressão de horror!

— Orcleaver! O que é isso? Nós matar Homens-rino. Deve usar arqueiros. Perdemos mais tropas agora. Dar ordem. Você diz. — Blackscar ajoelhou-se ao lado de seu comandante, agarrou-o pelos ombros e o sacudiu.

— O-o-o quê? O que acontece comigo? — Os olhos de Orcleaver flutuaram e ele balançou a cabeça.

— Deve dar ordem. Usar arqueiros. Veja! Homens-rino matar mais!

Lá embaixo, os Homens-rinoceronte continuavam o trabalho de devastação. Apesar dos Goblins estarem fazendo os Sem-Alma recuarem, os Homens-rinoceronte eram implacáveis, contendo-lhes o avanço: os Goblins caíam diante deles como moscas. Na entrada do Passo, as criaturas de Derramouss não estavam mantendo o cerco aos Sanguinários de Halfclaw. Os Goblins haviam recebido a ajuda de alguns Zangões, que viam criaturas sem armas como presas fáceis. Mas eles logo descobriram que a coisa era diferente quando uma única Besta-garra quebrara o pescoço de três Ores e um Devorador atacara ferozmente dois outros.

O oficial estava implorando a seu comandante. — Deve dar ordem! Não esperar!

— Grmmph. — Orcleaver sacudiu a cabeça novamente e voltou-se para olhar para o jovem oficial Goblin. Sua expressão era vaga e distante, como se ele tivesse acabado de acordar de um sono profundo.

Ele finalmente deu a ordem.

— Arqueiros. Rrrmph. Matar Homens-rino...

Um furioso combate desenvolvia-se entre três tribos de Goblins presas em combate com legionários humanos. Os abatidos de ambos os lados sob gritos altos, segurando aqui um braço quebrado, ali um rosto ensangüentado. Os dois lados estavam tão misturados que era difícil dizer quem estava ganhando. Mas quando mais duas tribos Goblins entraram em combate, os humanos não puderam esperar manter a posição. Eles estavam sendo empurrados na direção da parede do Passo e massacrados quando recuavam.

Thugruff viu o perigo e sinalizou para os Homens-rinoceronte. A falange girou e foi na direção dos Goblins, mantendo o quadrado perfeito. Os Homens-rinoceronte cortaram uma faixa pelos Goblins, até que finalmente os Arqueiros Sem-Olhos encontraram o alvo. Então, uma chuva de flechas cortou o ar na direção da falange e as lâminas denteadas cortaram as armaduras e o couro duro dos Homens-rinoceronte.

O pânico cresceu nos postos dos Homens-rinoceronte. Krravaak, o sargento-em-chefe, gritava ordens. Se a formação se quebrasse, eles seriam impiedosamente estraçalhados pelos Goblins que os cercavam; mas, sendo em conjunto um alvo tão fácil, eles eram atingidos do mesmo modo pelas flechas mortais. Valentemente tentavam obedecer às ordens de seu sargento, mas, como ondas e ondas de flechas caíam sobre eles, a formação finalmente se quebrou. Os Homens-rinoceronte, em desordem desesperada, encontraram-se lutando com Goblins selvagens armados com espadas. Suas lanças não eram armas úteis em um tipo de combate tão próximo. Eles eram eliminados e estraçalhados pelos Goblins de nariz achatado.

No alto do céu, Zharradan Marr observava do Galleykeep a evolução da batalha. Suas tropas iam bem, contendo e fazendo uma força muito maior de Goblins e caóticos recuar. Mas agora, com a falange dos Homens-rinoceronte dispersada, o fiel da balança poderia muito bem mudar. Marr fez com que seu capitão sobrevoasse em volta com o navio até que estivesse velejando sobre uma parte das rochas onde empoleirava-se uma linha de criaturas negras, cada uma delas mirando e atirando uma flecha após outra no campo de batalha abaixo.

Quando a sombra do Galleykeep passava sobre os Arqueiros Sem-Olhos, a face da rocha que os circundava começou a sofrer uma série de explosões de vapor quente. Bem acima, os legionários de Marr davam às criaturas um pouco do próprio remédio enquanto jogavam, da balaustrada, balões de potassa sobre os arqueiros. Esses mísseis mortais explodiam ao impacto, lançando uma chuva de pequeninos fragmentos de potassa que grudavam e queimavam em qualquer coisa que tocassem, inclusive a pele.

Os Arqueiros Sem-Olhos miraram para o céu, mas não havia defesa possível contra as armas mortais que caíam entre eles. Os legionários lá embaixo soltaram vivas quando viram vários corpos negros queimados caindo das paredes dos rochedos, rolando pelas pedras e caindo entre as hordas de Goblins.

Apesar dos balões de potassa terem destruído sua posição e deixado poucos deles, os Arqueiros Sem-Olhos já haviam causado estrago: a falange de Homens-rinoceronte fora quebrada. Os sobreviventes estavam agora circundados por Goblins e sendo impiedosamente dizimados. As forças de Thugruff estavam sendo vencidas pelo número exagerado de Goblins. Eles necessitavam reagrupar-se com urgência.

Thugruff considerou suas possibilidades e finalmente soou o recuo, chamando os Homens-rinoceronte e os outros legionários para fora do combate corpo-a-corpo e do Passo. Olhando na direção leste junto ao Passo, ele decidira sobre a próxima linha de ação: uma única tribo de Goblins obesos permanecia bloqueando-lhe a passagem para leste. Depois que tivessem forçado seu caminho através dos guardas desajeitados de Stoneback e depois se reagrupado, eles poderiam montar um contra-ataque eficiente. Suas tropas se livraram das lutas com os Goblins e o seguiram pelo Passo.

O Galleykeep posicionou-se sobre o Passo e lançou os balões de potassa sobre os Goblins perseguidores. A perseguição parou. Os Tooki mergulharam e lançaram suas flechas na massa. Canhões tridentes atiraram bolas mortais dentro das hordas, e os Goblins fugiram para as pedras à procura de proteção.

Zharradan Marr sabia que suas armas não durariam para sempre. Seu navio não poderia conter os Goblins por muito mais tempo; o numero superior deles conseguiria finalmente abrir caminho. Mas ele tinha outra arma que poderia usar contra eles, uma que poderia ser muito mais eficiente — se os esforços de Quimmel Bone tivessem tido sucesso. O médico do navio andava meio excêntrico ultimamente e nem sempre era confiável. Porém Marr tinha certeza de que essa criatura Sombra Noturna poderia ser sua chave para o sucesso.

Mandou Vallaska Roue para ver como estava progredindo o médico...

As tropas de Stoneback mantiveram sua posição quando os legionários fugiram pelo Passo na direção delas. Eles estavam irremediavelmente em menor número, e os que estavam na frente começavam a ficar agitados. Um jovem guerreiro, não tão gordo quanto seu chefe, voltou-se para Stoneback. - Tropas de Za'mar vêm. Muitos. Como vamos matar todos? — ele tremeu.

Stoneback virou-se para fitá-lo. - Nós ficamos. Orcleaver mantém tribos nas colinas. Emboscada. Logo. Você observa. Mantenha posição.

Mas quando Stoneback voltou-se para os legionários que avançavam, teve que admitir para si mesmo seus maiores temores. Que chances teria sua pequena tribo contra a horda de Thugruff? A relação era de pelo menos vinte para um. Ele novamente pensou sobre os reservas, mantendo suas posições entre as pedras. Orcleaver os estava deixando na reserva por tempo demais! Por que não lançar agora a armadilha?

Bem no alto do Passo, Blackstar protestava com seu comandante. Lá embaixo, entre as pedras, mil e quinhentos Goblins frenéticos estavam posicionados, esperando pelas ordens de atacar os legionários desavisados. — Dê ordem! Mande tribos agora! Qual o problema? A tribo de Stoneback ser morta! — O oficial estava em desespero.

Mas o olhar de Orcleaver estava fixo em algum ponto perdido no espaço. Ele não poderia ouvir os protestos de Blackstar. Não poderia ver o massacre que estava para acontecer no Desfiladeiro abaixo, quando o poderio total do exército de Thugruff alcançasse o pequeno bando de menos de 70 Goblins pesadões. Tampouco podia ver os 1.500 Goblins impacientes aguardando em suas posições entre as pedras acima dos legionários, aguardando, desesperados, que lhes fosse dada a ordem de ataque.

A mente de Orcleaver estava uma vez mais cheia com a imagem da noite nos Rochedos Craggen. Ele contorcia-se no chão enquanto lutava com a sombra noturna que o engolfava. Quanto mais lutava, mais ficava amarrado. Quanto mais tentava respirar, mais difícil se tornava. Seus esforços tornaram-se mais fracos. Ele estava sufocando pela densa sombra noturna presa em sua garganta. Ele não podia se mover.

Os Ores e as criaturas do Caos não mais podiam esperar; quebraram hierarquia e avançaram pelas pedras, gritando e berrando. Mas as criaturas idiotas não tinham nenhuma chance contra os legionários treinados. As forças de Thugruff voltaram-se, reagruparam-se e enviaram os Zangões calmamente para longe enquanto eles atacavam. Então, viraram-se e atacaram a tribo aterrorizada de Stoneback, que ainda aguardava os reforços que jamais vieram.

Vallaska Roue voltou para o convés do Galleykeep e orgulhosamente anunciou a Zharradan Marr: - Bone relata que o poder da Sombra Noturna está funcionando. O comandante Goblin de Dire é nosso.

A tribo de Stoneback foi dizimada onde estivera. O massacre fora completo.

 

— Mantrapper! Mantrapper, vamos. Acorde! — O Chervah voltou-se para falar com Darkmane. — Eu não sei, sire, o pulso dele está fraco. Esses demônios da morte estão pulando em volta da alma dele. Talvez nós devêssemos deixá-lo recuperar-se em seu próprio ritmo.

— Não temos tempo para isso, Chervah. Continue tentando. Ele sairá dessa. Eu deveria tê-lo deixado receber a punição dele. Tolo!

— Não diga tais coisas, sire! — O Chervah parecia chocado. — Tenho certeza que o senhor está certo. Foi tolice — e ganância — voltar por causa da jóia. Mas como é que ele saberia que a estátua tomaria vida?

— Chervah! — a voz furiosa de Darkmane atingiu a criatura como um estilete. O Chervah caiu imediatamente em silêncio. — Ele desobedeceu uma ordem! Como podemos esperar ultrapassar os perigos diante de nós se agirmos não como um time, mas somente com nossos interesses egoístas no coração? Eu não posso...

As palavras de Darkmane morreram quando ele ouviu um som vindo dos lábios do mercenário.

— Oooooohhhhh....

A cabeça de Jamut Mantrapper rolou lentamente de um lado para outro. Os cílios bateram e os olhos finalmente se abriram. Ele olhava direto para Darkmane, que estava de pé diante dele. O guerreiro olhava para ele como se fosse um espectro negro, até que os olhos dele conseguiram focalizar-lhe o rosto.

— Ah, o que...? — Ele relanceou os olhos em volta. Eles estavam no corredor escuro ao lado de fora do aposento de mármore. - Onde...? Oooohh, meu pescoço! -

— Sire, temo que permaneça com essas marcas vermelhas em seu pescoço por algum tempo ainda. — O excitado Chervah falava rápido. Ele estava feliz que o companheiro deles parecesse bem. — Mas é melhor isso do que o destino que o aguardava, não é?

— Mas o que aconteceu? — Mantrapper esforçou-se para sentar e passou a mão no pescoço. Descobriu que também seus ombros estavam doloridos. — O que aconteceu lá dentro! — Aquela criatura... A estátua!

O Chervah olhou orgulhosamente para Darkmane. -Sire, meu mestre — nosso mestre... — Darkmane percebeu o emprego do plural —... livrou-se da criatura, ou estátua ou seja lá o que fosse.

Mantrapper voltou-se para Darkmane. — Mas... como? A coisa era feita de ferro sólido. Minha espada não tinha qualquer efeito sobre ela...

Darkmane levantou a adaga Orukk.

— Observei sua luta através da porta. A princípio eu estava indeciso se deveria ou não entrar no combate, já que você mostrara tal insubordinação. Então você ficou incapacitado de se defender. A criatura agarrou-o pela garganta... Eu não podia querer ferir uma criatura feita de ferro sólido. Minha preocupação era encontrar as fraquezas dela. Percebi duas: a parte de trás da garganta e o buraco do olho. Entrei no aposento e peguei sua adaga no chão. Eu tinha que escolher meu alvo com rapidez, já que suas forças estavam acabando e eu não teria chance para um segundo ataque. Decidi que a parte de trás da garganta era arriscado demais já que eu teria que empurrar a adaga — e meu punho — entre as mandíbulas da criatura. Em vez de pular nas costas dela introduzi a lâmina dentro do buraco do olho. Ela expirou no mesmo instante.

— Darkmane, meu amigo, uma vez mais lhe devo a vida. Obrigado.

A expressão de Darkmane permaneceu impassível. Ele não esquecera que a tolice de Mantrapper fora a causa do incidente. O mercenário também percebeu isso e abaixou a cabeça. Embora o orgulho dele não permitisse um pedido de desculpa imediato, ambos sabiam que ele estava implícito.

O Chervah tentou alegrar o espírito de Mantrapper. Ele caçoou, rápido: — E quando examinamos a estátua caída, você nem adivinharia...

— Basta! — Darkmane cortou. - Agora... Agora devemos nos concentrar novamente em nosso propósito. Você está bem o suficiente para continuar?

Mantrapper assentiu. Mas o ímpeto do Chervah despertara-lhe a curiosidade. — A jóia — perguntou ele, hesitante. - Vocês...

— Ela continua com seu dono caído — disse Darkmane. — Essa gema amaldiçoada não nos causará mais problemas.

Mantrapper suspirou. O incidente acontecera por nada. Ele pensou vagamente na possibilidade de retornar imediatamente para recolhê-la, mas a expressão dura de Darkmane persuadiu-o de que esta não era uma boa idéia.

Ele pegou seus pertences, que os outros haviam recolhido, levantou-se e jogou o pacote nas costas. - Vamos continuar, então —, disse ele.

Os três aventureiros seguiram pela passagem. Darkmane liderava, seguido por Jamut Mantrapper, com o Chervah seguindo atrás. O mercenário caminhava desajeitadamente, reajustando-se aos machucados do combate. Havia alguma coisa estranha e desconhecida em seu bolso. Ele colocou a mão no bolso e ela se fechou em volta de alguma coisa que se parecia com uma pequena pedra. Mas esse objeto não era como uma pedra comum; sua forma era regular demais — cônica, com uma ponta em um lado e arredondada do outro, e com lados lisos entre as pontas.

Ele se virou para o Chervah. Quando abriu a boca para falar, o criado sorriu, levantou um dedo ossudo e o colocou entre os lábios, como um aviso para manter silêncio. Ele então apontou para Darkmane e piscou. O coração de Mantrapper deu um salto! Ele fez um gesto largo para a criatura, assentiu e voltou-se para seguir Darkmane.

Apesar do Chervah ter-lhe dado a jóia, ele não mencionara que também encontrara uma chave: uma pequena chave, escondida no peitoral da estátua.

Continuaram através de cavernas e passagens dentro da Montanha de Fogo. Por enquanto, a perigo estava longe mas eles logo iriam encontrar outra das criaturas de Zagor, no emaranhado de armadilhas que era o Labirinto de Zagor...

— Ouçam! — sussurrou Mantrapper. — Atrás de nós! Passos. Podem ouvi-los?

— Não ouço nada. — Darkmane levou uma mão até a orelha. — E não pode haver nada atrás de nós. Lembra-se da grade levadiça?"

— Talvez ela tenha subido sozinha.

Eles apressaram o passo e continuaram pelo corredor até que chegaram a uma encruzilhada onde outra passagem, indo de norte para sul, cruzava a passagem em que estavam.

— Que caminho? - perguntou o Chervah.

— Eu não sei. — Darkmane considerou as três possibilidades. — Talvez pudéssemos usar a adaga Orukk novamente.

— Passos! - sibilou Mantrapper. - Chegando mais perto. Rápido, coloque a lanterna atrás de nós.

Os outros dois podiam ouvir os passos agora. O Chervah iluminou a passagem atrás deles com sua lanterna e aguardou. O ruído de passos ficou mais perto. Eles podiam ouvir uma respiração pesada. Darkmane e Mantrapper moveram suas mãos para os punhos das espadas. Os cabelos na nuca do criado se arrepiaram.

De repente, a figura saiu das sombras para a luz bruxuleante. Não uma figura humana, mas consideravelmente maior. Ela usava apenas uma tanga e eles podiam ver que o corpo volumoso tinha músculos potentes. As mãos e os pés eram imensos, terminando em longas unhas que batiam na pedra conforme avançava. O rosto peludo era retorcido como um carvalho. Ao entrar na luz, ela rosnou furiosa. Os lábios arreganharam-se para revelar presas pontiagudas.

— Um Troll — sussurrou Mantrapper. - Ele não nos pode ver na luz. Mas é melhor que nos movamos rápido. Mesmo três de nós contra um brutamontes desses faria no máximo que a luta ficasse em pé de igualdade.

O Troll rosnou e deu um passo adiante.

Darkmane tomou uma decisão imediata. — Por aqui! Sigam-me.

Ele escolhera a passagem para norte. Lentamente, Darkmane e Mantrapper recuaram até ela, enquanto o Chervah mantinha a lanterna acesa sobre o Troll pelo tempo que fosse possível. No dirimo instante, a criaturinha apagou a lanterna e seguiu os outros dois, na esperança de que isso tivesse confundido a criatura.

Os três moviam-se lenta e silenciosamente pela passagem, examinando as paredes na escuridão. Darkmane finalmente encontrou sua mão tocando uma porta de madeira na frente deles. Agarrou a maçaneta e virou-a.

Uma luz suave vinha de uma tocha que queimava lentamente lá dentro. Ela iluminava um aposento grande mas esparsamente mobiliado, cheio de fragmentos de cerâmica. Rapidamente entraram e fecharam a porta, para que a luz não atraísse o desajeitado Troll na direção deles.

Os olhos de Mantrapper foram imediatamente atraídos para um dos cantos do aposento, onde se encontrava um grande vaso, cheio de líquido. Mas não era esse o objeto da atenção do mercenário. Ao lado do vaso, uma tigela menor se encontrava no chão — e essa tigela estava cheia com o que pareciam ser moedas de ouro!

— Uma excelente escolha de direção, Dark...

Sua frase foi interrompida, pois ele ouvira, atrás dele, um rosnado. Os três aventureiros se viraram juntos e seus queixos caíram quando viram a criatura de pé nas sombras.

Do pescoço para baixo, era como um homem, com poderosos músculos flexionando e relaxando quando o peito largo dava profundas inspiradas. Nu, a não ser por uma tanga amarrada em volta da cintura, era tão alta quanto o próprio Darkmane — apesar de ele mesmo ficar surpreso com a extraordinária força implícita nos braços e coxas da criatura. Mas o grande bloco que formava o pescoço dela não era humano. Músculos e tendões contraíam-se por baixo da pele, mantendo a grande cabeça ereta — a cabeça de um touro violento! Os imensos olhos vermelhos fitavam os aventureiros como se fossem carvão em brasa, enquanto o focinho úmido abria e fechava a cada respiração. Ela abaixou a cabeça, apontando dois chifres pontiagudos para Mantrapper.

Então, com um profundo rosnado furioso, atacou!

O mercenário reagiu lentamente: o choque do confronto o deixara pasmo. Darkmane, no entanto, reagira de imediato. Vendo a expressão congelada de Mantrapper, ele o empurrou com força para um lado, um segundo antes dos chifres do Minotauro poderem atingi-lo. Mantrapper caiu desajeitadamente e o joelho da criatura atacante pegou o lado de sua coxa direita. Ele se dobrou de dor e rolou pelo chão, segurando a perna.

O ímpeto do Minotauro fez com que ele atravessasse o aposento e fosse até o canto oposto. Ele parou, virou-se e preparou-se para atacar Darkmane. O guerreiro desembainhou a espada e permaneceu firme. Ao ver a arma, o Minotauro parou. Em vez de atacar, ele pegou o vaso cheio de água e segurou-o acima da cabeça. O vaso pesado parecia tão leve quanto uma taça nas mãos da criatura. A água balançou e caiu do vaso sobre a cabeça da criatura e no chão.

Sem esperar para fazer mira, o Minotauro jogou o vaso em Darkmane. O guerreiro não teve tempo para reagir. O vaso o pegou bem no peito, quebrou-se e jogou-o para trás. Sua cabeça bateu no chão de pedra quando ele caiu.

Darkmane ficou imóvel. Um fio de sangue escorreu pelos cabelos da parte de trás da cabeça e pingou no chão, formando uma pequena poça ao lado da orelha.

O Minotauro soltou um rugido de triunfo e virou-se para o mercenário caído, que lutava para ficar de pé apesar da dor na perna. Mantrapper agarrou a espada e retirou-a da bainha. Quando o fez, perdeu o equilíbrio; a perna esquerda recusou-se a mantê-lo em pé e ele caiu novamente ao chão, gemendo de dor.

O homem-touro percebeu a oportunidade e atacou novamente, com a cabeça baixa e os chifres firmemente dirigidos para o peito de Mantrapper. O mercenário olhou para cima, e ao ver a criatura avançando gemeu de pânico. Mantendo reta a perna ferida, ele impulsionava com a outra desesperadamente, tentando empurrar-se pelo chão. Mas era inútil: ele não poderia escapar. O Minotauro estava próximo a ele, a cabeça e os chifres quase chegando em seu peito.

Mas então, a fera assassina parou. A cabeça levantou-se no ar. Os grandes pulmões arquejaram e os olhos rolaram nas órbitas. A boca escancarou-se e o rugido que saiu da garganta da criatura foi mais alto que uma fanfarra de trombetas dissonantes. — Hhhuunngh! Hhhuunngh! Hhhhhhnnnnneeeeeeee! — A cabeça foi sacudida violentamente de um lado para outro e o Minotauro caiu de joelhos. Outro rugido soou pelo aposento, apesar de ser mais fraco desta vez: — Hhhhnnneee...As pernas dele tremeram em espasmos reflexos. Quando isso aconteceu, a criatura perdeu o equilíbrio, cambaleou e também para a frente. Sua cabeça caiu com um baque doloroso sobre os pés de Mantrapper. Somente então ficou claro ao mercenário o que acontecera: alojada na parte de trás do pescoço da grande fera estava um punhal.

Os olhos de Mantrapper examinaram o aposento até finalmente encontraram o Chervah. A criatura estava de pé, atrás do Minotauro, com olhos arregalados e boca aberta. Gotas de suor escorriam por sua testa alta. E ele tremia visivelmente.

— Chervah! - gritou Mantrapper, estático. — Você conseguiu! Deuses! Você salvou minha vida! Você salvou todas as nossas vidas!

O Chervah permanecia em silêncio.

Mantrapper levantou-se e apoiou-se contra uma parede.

Darkmane ainda estava imóvel.

— Eu acho que minha perna está quebrada — gemeu Mantrapper. — Ajude-me, Chervah.

O criado começava a voltar ao normal. Sacudiu a cabeça e olhou vagamente na direção do mercenário.

— Vamos, Chervah; Ajude-me a levantar.

A voz do dever tirou-o daquela situação. Ele deu um passo à frente para ajudar Mantrapper. - Desculpe, sire, perdi a cabeça. Jamais fiz algo como isso antes. — Ele apontou para o Minotauro caído.

— Bem, agora você já fez isso. Ajude-me a levantar.

— Aqui estou, sire. Dói muito? Pode dobrá-la?

— Eu não sei. Deixe ver. Sim, eu posso dobrá-la. Pelos deuses, isso dói. Ela não vai agüentar meu peso.

— Fique grato, sire, de poder dobrá-la. Ela pelo menos não está quebrada. Mas eu creio que esses demônios da dor zombam do senhor. Descanse por um minuto e esfregue o local. Encoste na parede. Eu o ajudo.

O Chervah o ajudou a manquejar até o canto do aposento, onde Mantrapper descansou, encostando na parede. A atenção deles voltou-se para Darkmane.

— E quanto a seu mestre, Chervah? Cuide dele, se não for tarde demais. Eu ficarei bem aqui.

O Chervah atravessou o aposento e colocou os dedos ossudos no pescoço de Darkmane. — Tem pulso! Que os deuses sejam louvados! Mas está fraco!

A criaturinha arrastou-se até o Minotauro e rasgou um pedaço do tecido que estava em volta da cintura da fera; ele o molhou em uma poça de água no chão e então começou a limpar o ferimento de Darkmane. Enquanto fazia isso, ele percebeu alguma coisa alojada em um pedaço de.cerâmica. - Sire! Veja isto! Ela deveria estar dentro do vaso. E uma chave!

— Esqueça da chave, Chervah. E quanto à tigela do canto? Eu levarei essas moedas de ouro como lembrança.

As pálpebras de Darkmane começaram a tremer.

— Ele está voltando para nós. Ah, sire. Pode ver? Nós estamos aqui. A fera está morta!

A consciência voltou lentamente para o guerreiro. Ele descansou a cabeça no colo do Chervah por vários minutos, enquanto o criado lhe contava o que acontecera. Ele sofrerá um corte na cabeça ao cair no chão, mas o ferimento não fora grave. Afora uma dor de cabeça e alguns cortes pequenos nas mãos e no rosto por causa das lascas de cerâmica, ele não estava ferido.

A perna de Mantrapper também recuperava-se. Um imenso machucado, que se estendia do quadril ao joelho, fazia a perna muito sensível, mas, gradualmente, ele foi capaz de colocar o peso dele sobre ela.

O primeiro movimento dele foi manquejar pelo aposento até a tigela de moedas. - Bah - resmungou. - Cerâmica! Isso aqui não são moedas.

Os outros dois o ignoraram.

— Esperem. — Ele pegou uma moeda e pesou-a na mão. — Essa daqui se parece com ouro. E outra aqui. Isso está mais do meu jeito.

Mantrapper encontrou um punhado de moedas de ouro verdadeiras e colocou-as no bolso. Olhou então para os outros dois. - Eh, há oito moedas de ouro aqui. Creio que é apropriado dividi-las entre nós. Duas para cada. Nós podemos resolver quanto as outras duas mais tarde.

— E eu acho que todas elas pertencem ao Chervah -soltou Darkmane. — Foi ele quem matou o homem-touro. Sem o Chervah, você não teria nenhuma moeda. E nenhuma vida.

— Ah, é..., sim. Talvez você esteja certo. Ei-las, Chervah. Darkmane está certo. Elas realmente pertencem a você.

— Ora, sire — tartamudeou o criado. — Eu... eu não tenho nenhuma utilidade para ouro. Minha recompensa é vê-los aos dois novamente vivos.

— Pegue-se, Chervah — disse Darkmane. - Ou deixe-se para trás. Você as mereceu.

— Be-bem. S-se o senhor assim ordena...

— Eu ordeno.

Mantrapper fechou a cara e colocou as moedas de ouro na mão magricela do Chervah. A palma fina não era suficientemente grande para segurar todas elas, e duas delas caíram no chão. Ele as pegou e colocou-as no bolso com um olhar de desculpas.

Darkmane levantou-se. - Agora, se já estamos prontos, devemos prosseguir em nossa jornada. Chervah, não esqueça da adaga Orukk.

Eles juntaram seus pertences e saíram do aposento. O Troll desaparecera. A adaga Orukk levou-os para sul, depois oeste, depois novamente para norte e a jornada continuava sem acasos, seguindo por passagens aparentemente infindáveis, que faziam parte do Labirinto de Zagor.

Finalmente chegaram a uma abertura estreita, cortada na rocha, pela qual soprava uma brisa fria. Darkmane, liderando o grupo, esgueirou-se pela passagem para explorar. — Uma caverna — sussurrou de volta para os outros. - Uma caverna larga com um teto alto. E há também um buraco no alto que abre para o céu. O lugar é iluminado pela luz da lua, apesar de ainda estar escuro.

— Ela está vazia?

— Não vejo nada vivo. Mas continua pela escuridão. Quem sabe o que está escondido nas sombras? Fiquem quietos quando entrarmos. Sigam-me.

Os outros dois apertaram-se pela falha estreita até que todos estivessem dentro da caverna. Seus passos ecoavam no silêncio. A imensa caverna era do tamanho de um pátio de castelo.

— Para onde vamos saindo daqui?

— Eu vou usar a adaga.

— Não, ainda não. Antes nós vamos dar uma olhada em volta. Deve haver somente uma saída. Não devemos gastar nossa energia. Use a lanterna para iluminar as sombras. Vamos ver se há alguma coisa por aqui.

Com bastante clareza, a lanterna iluminou uma passagem que levava para fora da caverna. Eles se esgueiraram silenciosamente por ela.

— Prrrmmph.

Darkmane parou onde estava. - O que foi isso?

— Darkmane! Você consegue ver alguma coisa? Tenha cuidado!

O som vinha das profundezas da escuridão abaixo deles. O som parecia o bufar de algum tipo de criatura — uma criatura extremamente grande. Darkmane saiu correndo e os outros o seguiram para a segurança da passagem.

Caminharam por ela até alcançarem uma porta. Uma nota escrita em símbolos arcanos estava escrita na porta.

— Aqui vamos nós novamente - sussurrou Mantrapper, pesarosamente. — Espadas de prontidão... — Ele agarrou a maçaneta e a girou.

A porta se abriu e a luz vinda de dentro iluminou o corredor.

Lá dentro havia um aposento desarrumado. Estantes enchiam duas das paredes: mapas e pergaminhos preenchiam cada centímetro quadrado que não fosse ocupado pelas estantes. Um fogo queimava em uma lareira grande. As mesas estavam empilhadas com bugigangas variadas: todos os três aventureiros lembraram-se imediatamente da torre de Yaztromo.

No meio do aposento ficava uma mesa de madeira. Um homem estava sentado atrás da mesa e olhou surpreso • ao vê-los entrar. Ele era um velho de aparência gentil, com longos cabelos grisalhos e uma barba. Suas roupas estavam rotas. Ele segurava um pacote de cartas na mão, as quais virava uma a uma e organizava sobre a mesa.

— Saudações", sorriu o velho homem. — E o que posso fazer por vocês?

— Quem é você? — O tom de voz de Mantrapper era gelado. A confiança dele em pessoas estranhas encontradas na Montanha de Fogo já se fora há muito tempo.

O velho retribuiu-lhe o olhar gelado. Os olhos dele pareceram brilhar com um fogo interno.

Mantrapper piscou. Tentou quebrar o olhar do velho mas descobriu que não conseguia. Estava atônito.

— Então! — devolveu o velho homem. - Vocês procuram por Zagor. E eu posso ler que suas intenções não são amigáveis.

Enquanto o homem falava, a voz dele começou a mudar. O tremor da idade se fora; em vez disso, cada palavra tinha um retinir sólido como aço. Ele se levantou da mesa, os olhos ainda fixados sobre Mantrapper. Enquanto se levantava, esticou-se e ficou de pé, alto, atrás da mesa — muito mais alto e ereto que um velho encarquilhado deveria estar. A aparência dele também mudara:


as rugas estavam ficando lisas, o cabelo grisalho escurecia e as vestes rasgadas estavam desaparecendo. Enquanto o velho desaparecia, uma figura bastante diferente formava-se diante deles. Esse homem era muito mais jovem, forte e mais imponente. Ele trajava mantos de rico veludo e ouro.

Apesar de jamais terem visto o homem antes, eles não tinham qualquer dúvida quanto à identidade do feiticeiro que estava à frente deles. Darkmane sentiu a pequenina mão do Chervah em seu braço. A boca do criado escancarou-se e uma única palavra saiu de seus lábios em um sussurro que pôde ser ouvido apenas por Darkmane, que estava ao lado dele.

—Zagor!"

— Mantrapper! Atrás de você! Cuidado! - O grito de Darkmane cortou o silêncio, alarmando-os a todos.

Jamut Mantrapper saiu de seu transe e rapidamente voltou-se para encarar o perigo atrás dele...

Não havia nada lá. Então ele percebeu que aquilo fora apenas uma manobra para distrair-lhe a atenção dos olhos hipnóticos do feiticeiro diante dele. Ele se amaldiçoou por ter sido apanhado tão facilmente. E amaldiçoou o feiticeiro, Zagor, por chegar tão perto de controlar sua mente. Seu sangue fervia. Quando Mantrapper virou-se para tirar o feiticeiro, havia um brilho de fúria em seu olhar.

O olhar de Zagor queimou novamente em sua mente, esfriando o temperamento de Mantrapper. Mas o mercenário resistiu desta vez. Realizava-se uma batalha em sua mente: seu espírito esforçava-se para repelir o invasor, a força exploradora do feiticeiro alto. — Yyyyyyyaaa-aahhh!" ele conseguiu se libertar da contenda e correu pelo aposento na direção de Zagor, levantando a espada bem acima da cabeça.

— Mantrapper! Recue! Não machuque...

As palavras ansiosas de Darkmane eram desnecessárias. O ataque de Mantrapper havia sido interrompido abruptamente por uma força invisível que o agarrou e o lançou contra a parede. Ele aterrissou pesadamente e a espada caiu de sua mão para o chão.

— Zagor! — falou Darkmane, com autoridade. - Perdoe meu amigo. O comportamento impulsivo dele já nos causou inúmeros problemas em várias situações. Mas não estamos aqui para causar-lhe nenhum mal. Viemos porque preciso de um conselho seu.

O feiticeiro levantou uma sobrancelha e olhou para Darkmane. — Tolo. Você não pode me enganar. Estive dentro da mente de seu dito amigo. Vocês não passam de ladrões comuns — e assassinos.

— Jamut Mantrapper, que se encontra apoiado na parede, é um mercenário de aluguel, isso é verdade. Ele foi contratado para trazer-me até você, e isso ele fez. Mas eu estou aqui por causa de uma missão para o nobre Rei Salamon, de Salamonis. Eu sou Chadda Darkmane, emissário do rei; e este é...

— Não me interessa sua missão. Você está invadindo meu território. Sem dúvida alguma que também deixou uma trilha de sangue atrás de você — o sangue dos meus guardas. Que razão teria eu para ajudá-los?

— Você estudou com Balthus Dire e Zharradan Marr e sem...

— O quê? — Os olhos de Zagor se estreitaram. As próximas palavras dele saíram em um sussurro. — O que vocês têm a ver com esses dois?

— Zagor, você está ciente do que tem acontecido na rota do Passo de Trolltooth? Você não tem ouvido nada a respeito da violência das Guerras de Trolltooth? — O guerreiro esperou que o feiticeiro falasse.

Mas, no entanto, nenhum dos dois observavam Mantrapper; sua fúria por ter sido subjugado tão rudemente aumentara num crescendo. Ele silenciosamente pegou a espada e esgueirou-se por trás do feiticeiro. Ele então realizou o ataque! - Feiticeiro imundo!" guinchou ele. — Você vai se arrepender pelo dia em que resolveu cruzar o caminho de Jamut Mantrapper!

A espada avançou na direção da cintura do feiticeiro. Em tempo mínimo, Zagor lançou um feitiço que teve efeito somente na hora em que a espada do mercenário bateu no cinto do feiticeiro. A espada de Mantrapper e o cinto de Zagor desapareceram.

O mercenário permanecia rígido em seu posto de combate, com os olhos abertos de espanto.

Zagor estava furioso. A voz dele trovejou: — Imbecil! Você não compreende a força que pretende ameaçar? Como alguém tão insignificante pode ter a esperança de desafiar o poder de Zagor? Sua loucura custou-me meu cinto. E agora ela deve custar-lhe a vida! E a vida de seus companheiros.

O feiticeiro esticou os braços e jogou a cabeça para trás. Palavras estranhas saíram de seus lábios. Enquanto ele as pronunciava, um som retumbante ecoava pela rocha.

A mente de Darkmane trabalhava, frenética. Será que o feiticeiro já passara do ponto em que se poderia conversar com ele? Amaldiçoado Mantrapper e seu temperamento! Ele devia decidir corretamente e logo...

Com um salto gigantesco, pulou pelo aposento e caiu sobre Zagor, rolando com ele e desfazendo o feitiço. O Chervah o seguiu.

Os quatro brigavam. O feiticeiro era surpreende-mente forte; ele empurrou tanto Darkmane quanto o Chervah com pouca dificuldade, e foi só quando Mantrapper emprestou seus músculos para a briga que eles conseguiram pegá-lo - mas somente por um instante. Um segundo depois, eles estavam agarrando ar!

—Lá" Lá está ele!

O feiticeiro desaparecera e reaparecera do outro lado do aposento. Sua boca estava bem aberta e aparecia uma bola de fogo na ponta da sua língua. Ele colocou as mãos em concha em volta da boca e soprou a bola de fogo na direção de Mantrapper. O mercenário pulou para um lado e quase não evitou ser atingido. O segundo míssil estava endereçado a Darkmane, e raspou seu braço enquanto ele tentava se desviar. Darkmane olhou em volta à procura do Chervah.

A criaturinha se esgueirava pelo aposento e agora pulava sobre Zagor. A coragem imprudente fora em vão: um gesto do feiticeiro mandou-o voando pelo aposento, e ele tombou pesado e dolorosamente ao chão. Zagor voltou-se novamente para Mantrapper. Outra bola de fogo surgiu em sua língua.

O mercenário estava no chão. Ele não teria como evitar esse ataque se a mira do feiticeiro fosse boa. Procurou desesperadamente por um escudo, mas não havia nada. Colocando a mão no bolso, tocou a jóia do olho do Ciclope. Em um movimento único, ele puxara o braço e o estava esticando para trás, pronto para jogar a gema...

A bola de fogo desapareceu da boca de Zagor. Seus olhos se abriram muito, fixos na jóia.

Mantrapper, percebendo que alguma coisa significativa interrompera o combate, abaixou a mão. - O que é isso? — disse ele. - Esta jóia lhe interessa, mago? Talvez deseje dar uma olhada mais de perto.

Ele a segurou na direção de Zagor e sorriu quando o feiticeiro lutou para recuperar a calma; ele estava lutando para esconder a dor em seu peito. A princípio Darkmane sentira uma onda de raiva ao ver que Mantrapper ainda estava com a jóia proibida; mas agora ele observava cuidadosamente. Fosse já o que estivesse acontecendo, evidentemente a jóia tinha algum poder sobre o feiticeiro.

Sulcos de suor surgiram na testa do feiticeiro. Ele se agarrou e se curvou. De onde o grupo podia ver, estava ocorrendo uma transformação. Ele envelhecia rapidamente! Os cabelos escuros tornavam-se grisalhos; as mãos começaram a ficar cheias de nós e com a pele ressecada. Quando Zagor finalmente levantou a cabeça, ele era, uma vez mais, o velho que eles haviam encontrado primeiro. Zagor permaneceu em silêncio.

— Ora, ora! — escarneceu Mantrapper. — Zagor tem um segredo. Um medo secreto. Uma fraqueza. Agora, quem tem o poder, velho?

— Dê-me a jóia, Mantrapper. — Darkmane estendeu-lhe a mão.

— Não! A jóia pertence a mim. E eu a manterei. Logaan sabe que paguei caro por ela. — As palavras do mercenário soaram com um tom inflexível.

Sabiamente, Darkmane resolveu não pressionar o mercenário; em vez disso, discutiam o que fazer a seguir. Eles ordenaram a Zagor que sentasse à sua mesa e disseram a Chervah para vigiá-lo.

— Preste bem atenção, Chervah - avisou Darkmane. — Não se deve permitir que ele parta. Depois que ele voltar para o subterrâneo, suas criaturas farão com que ele consiga fugir. E lembre-se da caverna. Lembre-se do buraco no teto. Mantenha-o aqui.

Uma porta no lado sul do aposento oferecia alguma privacidade. Darkmane e Mantrapper chegaram até um pequeno aposento que estava vazio a não ser por uma arca grande e solitária. A curiosidade de Mantrapper estava aguçada. - O que é isso?"

— Não é assunto nosso. Devemos pensar no que fazer quanto ao feiticeiro.

— Em um instante, Darkmane. Veja, ele está trancado. E com três trancas. Um baú de tesouro? Vamos descobrir onde estão as chaves.

— Você acha que ele simplesmente vai nos dizer? O mago sabe que precisamos da ajuda dele. Nós não podemos machucá-lo."

— Ele nos compara a ladrões. A vida dele encontra-se em nossas mãos.

— Mantrapper, eu preciso da ajuda dele. Da ajuda que ele queira me dar. Eu não lutei em tantas batalhas para chegar até aqui e matá-lo. E até correndo o risco de ele recusar a nos auxiliar.

— Nós não. Você. — Sim. Isso é certo. Sua parte na barganha já está completa. Você me guiou até aqui. Está livre para partir.

— Não sem antes descobrir o que está lá.

— Que seja. Mas nós não...

Um grito vindo do Chervah chamou-lhes a atenção. Eles voltaram correndo para o aposento. Zagor tentava fugir. E mais uma vez ele estava transformado em um homem mais jovem. Os efeitos da jóia estavam se dispersando. O Chervah fazia o melhor que podia para segurar o feiticeiro, mas seu tamanho o fazia ser um mero obstáculo para Zagor depois que a força dele tivesse sido recuperada. Ambos sabiam que, depois de entrar por aquela porta, seria impossível recapturá-lo. Darkmane correu para ajudar.

Mantrapper reagiu rápido. Um sorriso matreiro surgiu em seus lábios. Ele pegou a adaga Orukk e lançou-a no feiticeiro em fuga. Ela seguiu em direção a seu alvo.

— Mantrapper! Seu tolo! O que está fazendo? -Darkmane gritou. — Chervah, saia daí.

Nesse momento, o Chervah deteve o feiticeiro e os dois rolaram pelo chão. A adaga atingira o alvo. Mantrapper permanecia adiante, com a jóia na mão.

Darkmane alcançou a briga e separou os dois combatentes. Com força incomum, ele jogou Zagor a seus pés e mergulhou na direção de Mantrapper. Então ele se ajoelhou ao lado do Chervah.

A adaga Orukk mostrou-se fatal uma vez mais. O Chervah estava estirado no chão com o punho esticado em seu peito.

A lâmina estava alojada no coração dele.

 

Para grande alívio de Blackscar, Orcleaver finalmente recobrara a consciência o suficiente para dar a ordem. Os mil e quinhentos Goblins histéricos haviam descido para dentro do Passo. Lá eles emergiam com os sobreviventes da batalha anterior, e uma imensa nuvem negra passou para leste, ao longo do Passo, na direção dos legionários de Zharradan Marr.

As tropas de Thugruff posicionaram-se no Passo de Trolltooth, bem a leste das forças Goblin. Desta vez eles estavam prontos para o ataque. Uma linha de Homens-rinoceronte estendia-se muito profundamente pelo vale estreito. Cada um segurava sua arma levantada na direção do inimigo. Os Goblins de pouca inteligência tinham apenas um pensamento em suas cabeças. Ataque ao inimigo! Eles avançaram sob uma sólida parede de lanças e espadas. Os Homens-rinoceronte mantiveram sua posição, firmes.

Os Arqueiros Sem-Olhos sobreviventes reconheceram seus alvos anteriores e lançaram nova carga. Mas agora eles descobriram que os legionários estavam bem longe do alcance. Thugruff certificara-se disso quando escolhera sua nova posição. Eles enfrentaram um novo inimigo quando os Tooki caíram sobre eles e os apanharam com pontaria mortal.

A onda negra alcançou a parede colérica. A linha sofreu baixas quando os legionários absorveram o impacto da carga. Centenas de Goblins, na frente da carga, caíram no chão, gritando, agarrando seus ferimentos. Mas onde quer que um caísse, mais dois tomavam seu lugar. A força absoluta de seu número parecia esmagadora.

Mas Thugruff escolheu o momento e deu a ordem; os Homens-rinoceronte do meio da linha começaram a avançar lentamente e depois para trás. Quando a parede alterou-se de uma linha estreita para a forma de um V, juntaram-se reforços vindos de trás, para engrossar o número no centro. No convés do Galleykeep, sobrevoando bem acima da batalha, Zharradan Marr sorriu. Ele podia ver a linha formando um funil, levando os Goblins por ele até que eram forçados a entrar na passagem apertada. Lá eles estavam amontoados tão próximos uns dos outros que suas armas eram inúteis; e agora eles estavam quase cercados por tropas inimigas.

Aqueles que tentavam abrir caminho com a espada descobriram suas armas atacando seus próprios companheiros. A ira disseminou-se, e Goblin virou-se contra Goblin. O exército de Dire tornava-se desordenado e confuso. Detrás da linha do funil, os Elfos Negros jogavam lanças e pedras no inimigo. Os Goblins lutavam desesperadamente contra os Homens-rinoceronte pesadamente encouraçados para tentar quebrar a linha.

Thugruff observava orgulhoso, enquanto via sua estratégia ser bem-sucedida. Zharradan Marr ficaria contente com ele. Seria apenas uma questão de tempo até os Goblins retrocederem e fugirem. A vitória logo seria dele.

Bem no alto, em sua posição de comando, o próprio Orcleaver era pouco mais que um cadáver. A Sombra Noturna lhe tirara a mente. Seu corpo permanecia estirado no chão, vivo, mas imóvel. Blackscar o abandonara e descera para juntar-se ao combate.

Quando Darramouss ouvira pela primeira vez sobre o incidente nos Rochedos Craggen, ele não tinha nenhuma idéia de que a mente que sua Sombra Noturna agora mantinha sob poder era a do novo comandante Goblin. Ele simplesmente esperava poder sondar a mente do Goblin que a sombra mantinha cativo após terem retornado das masmorras sob Coven. Talvez ele pudesse descobrir alguns detalhes da emboscada no Passo. Possivelmente poderia descobrir a região da cunnelwort. No entanto, quando ele relatara a Zharradan Marr tanto o nome da vítima da Sombra Noturna quanto a nova posição dele no exército de Balthus Dire, os lábios finos do necromante torceram-se em um sorriso maldoso. Foi ordenado à Sombra Noturna que fosse ao Galleykeep, onde Quimmel Bone investigaria melhor os poderes da criatura.

Os Goblins pressionavam forte a linha de Homens-rino. A linha estava começando a romper-se no centro. Enfrentando violentos ataques constantes que partiam da massa de Goblins frenéticos, as tropas de Thugruff começavam a cansar-se rapidamente. Aqui e ali os Goblins passavam pela linha; eles eram imediatamente atacados por Homens-lagarto que, rosnando, os abatiam e preenchiam os vãos. Mas as pesadas linhas do V vacilavam. Os legionários não poderiam manter suas posições por muito tempo mais.

E eles encontraram-se enfrentando uma nova ameaça dos Drones. Os desordenados Ores haviam escalado as rochas para tentar atacar as linhas por trás. Thugruff enviou mais Homens-lagarto para as rochas para contê-los, mas as asquerosas criaturas-mosca deslocaram-se em conjunto e atacaram. As criaturas-aranha de pernas cabeludas lançavam suas trombas grossas para engolfar o inimigo, sugando-os enquanto eles gritavam na direção de mandíbulas ávidas, para serem cortados em pedaços e serem jogados de volta sobre seus companheiros.

Finalmente a linha rompeu-se no ápice do V. Os Goblins gritavam e rugiam enquanto avançavam para enfrentar os humanos e um regimento de Gorians e Kobolds. A primeira onda de Goblins estava exausta demais para oferecer muita ajuda durante o combate; logo foram vencidos. Mas, enquanto a carga continuava, a situação se inverteu e as hordas de Goblins começaram a empurrar os legionários cada vez mais para leste do Passo, na direção de Darramouss. Lá, o Meio-Elfo estava de pé em sua carroça com uma visão espectral, aguardando pacientemente pelo momento de ataque.

Os legionários se separaram; os humanos para um lado e os Gorians e Kobolds para outro. Um único som penetrante partiu por entre os dentes apertados de Darramouss e as Bestas-garra e os Devoradores dispararam para a frente. As imensas Bestas-garra peludas bateram com suas longas garras pontiagudas, dilacerando as armaduras e as carnes dos Goblins. Os Devoradores abocanhavam e mastigavam com mandíbulas possantes. Goblins sangrando e com membros quebrados caíam diante dele.

A batalha agora chegara a um impasse. Nas pedras ao lado, os Homens-lagarto estavam presos em combate com os Ores. A espessa linha de Goblins que se estendia até o meio do vale era atacada de ambos os lados por legionários. Por algum tempo, o resultado fora duvidoso.

O momento de decisão chegou quando as criaturas de Darramouss começaram a forçar o recuo dos Goblins. Os humanos e os Gorians cortavam-lhes os lados e a linha foi refeita através do Passo. Ela avançou firmemente na direção oeste. A cada minuto os Goblins eram empurrados para trás. Thugruff posicionou-se atrás da barreira de suas tropas em avanço, esporeou seu cavalo e impeliu-as para frente. O avanço intensificou-se. Cada passo se fazia sobre os corpos de Goblins caídos, que agora nada mais podiam. Instantes depois, o avanço tornava-se um tumulto.

Blackscar, que assumira o comando das forças Goblin, percebeu que a situação era irremediável. Ele deu o comando de recuo e a trombeta soou. Os Goblins fugiram em todas as direções. Eu não os culpo por isso, pensou consigo mesmo. Comandante Orcleaver — ele eu culpo. Novo comandante, Lord Balthus me fez comandante. É preciso ter tropas para comandar. Devo dizer a Lorde Balthus.

Enquanto eles fugiam através do Passo e subiam as pedras, os legionários os seguiam. Os Ores e monstruosidades do caos, vendo que agora estavam por sua própria conta, também fugiram. O exército de Dire, em pânico, estava em confusão desesperada — todos, com exceção de uma pequena tribo de Goblins, que mantinha sua posição contra as tropas de Thugruff: os Sanguinários de Halfclaw.

Um regimento de Homens-lagarto foi o primeiro a enfrentar a tribo de Halfclaw. Eles ficaram horrorizados ao encontrar os frenéticos Goblins despedaçando e cortando com uma selvageria jamais encontrada. Mas os sanguinários eram muito poucos. O próprio Halfclaw finalmente foi ao chão com uma espada atravessada em seu estômago. Mas antes que sua morte colocasse um fim na defesa valente dos Sanguinários, ele levara consigo seis Homens-lagarto e quatro humanos. A batalha fora vencida.

Zharradan Marr deixou o convés do Galleykeep e foi para seus aposentos. Aquela batalha estava acabada. Thugruff lidara maravilhosamente bem com suas tropas. Mas não havia tempo a perder — não havia tempo para que elas descansassem. Deviam apressar-se na direção sul e obter vantagem total da vitória. Ele convocaria Thugruff ao Galleykeep e, juntos, poderiam fazer seus planos para o objetivo final. Deviam marchar pelos Rochedos Craggen e atacar a Torre Negra de Balthus Dire. Se conseguissem evitar atrasos poderiam chegar à cidadela antes mesmo de Dire saber do resultado da batalha. O Galleykeep desceu no Passo para permitir a vinda do cansado Meio-Troll a bordo.

Mas as esperanças de Marr de manter seu inimigo alheio às novidades sobre o resultado da batalha não aconteceu. O ambicioso Blackscar cobiçava a posição de comando de Orcleaver. O Goblin já estava preparando sua mensagem para ser enviada por um Gavião Noturno para Lorde Balthus Dire. O resultado fora catastrófico para os Goblins; e, é claro, Blackscar informou ao seu mestre que os lapsos de inconsciência de Orcleaver já lhes custara duas vezes a chance de vitória e deixara suas próprias tropas frustradas e confusas. Em suas próprias palavras, a incompetência de Orcleaver custara-lhes a batalha.

Balthus Dire amaldiçoou ao ouvir as notícias. Podia adivinhar qual seria a próxima investida de Zharradan Marr: ele apressaria sua iniciativa e avançaria sobre a própria Torre Negra. Com seu próprio exército batido e apenas alguns Guardas da Cidadela para defendê-lo, ele precisava de aliados, aliados poderosos. Ele precisava encontrar os Sorq e trazê-los de volta para ajudá-lo.

Ele teria que realizar nova viagem com a cunnelwort.

No palácio de Salamonis, Lissamina acordou de repente. Afastou o suor de sua fronte com um lençol suave. Outro sonho de visão do futuro! E pior, ela acabara de ver as conseqüências de Balthus Dire realizar a segunda viagem com a cunnelwort.

Lissamina tremia — mas isso apenas em parte era devido ao esforço mental do sonho. Ela também estava amedrontada. Seu sonho deixara bastante clara uma coisa: ela não devia deixar Balthus Dire realizar a viagem! Como ela poderia detê-lo? Havia apenas um meio.

Ela abriu a porta de sua mesinha de cabeceira e tirou um jarro. Dentro do jarro havia uma erva seca. Girou a tampa de vidro e um suave odor invadiu o ar — um odor doce que a fez sentir-se ligeiramente embriagada.

Cunnelwort.

 

— ... Seus dois colegas de estudo estão empenhados em uma terrível guerra que está devastando Allansia. As terras de meu rei encontram-se no meio do campo de batalha. Em sua sabedoria, ele teme que a carnificina não termine com o fim da guerra. Quem for vitorioso controlará territórios para o norte e para o sul do reino dele, e será apenas uma questão de tempo o fato de Salamonis também envolver-se em uma guerra contra as forças do mal. Vim lhe procurar na esperança de que você seria capaz de pôr um fim a essa guerra. Ambos ou nenhum dos dois feiticeiros devem ser destruídos; se um deles for vitorioso, então ele certamente será invencível.

— Eu não lhe quero nenhum mal. Essa busca já custou a vida de meu criado. — Darkmane olhou triste para o corpo no chão e então voltou-se enfurecido para Mantrapper. — Mas não deixemos que a morte dele tenha sido em vão. Eu lhe peço sua ajuda respeitosamente.

Zagor estava preso em pensamentos. Ele pouco se importava com os problemas de Salamonis, mas a possibilidade de Zharradan Marr ou Balthus Dire estenderem sua base de poder era preocupante. Depois de Salamonis, os exércitos do vencedor sem dúvida alguma marchariam para norte: pelas Colinas de Moonstone, a Floresta de Darkwood, Stonebridge e finalmente até as terras que circundam a Montanha de Fogo. Na escola de Volgera Darkstorm os três haviam sido rivais extremos. Ele sabia que essas velhas rivalidades reemergeriam, e por certo a perspectiva de pegar o próprio Zagor seria irresistível para ambos.

— Hmmm. — Zagor, uma vez mais um homem idoso diante da presença da jóia, juntou as mãos e inclinou-se para a frente sobre a mesa. Ele cocou o queixo pensativamente. — Se eu fosse capaz de conferir sua história, talvez pudesse ajudá-lo. Mas sua própria tolice — ou talvez a do mercenário — tornou isso impossível.

— A caixa que sem dúvida alguma vocês observaram no pequeno aposento contém uma bola que me permitiria testar suas palavras. As chaves para esta arca estavam em meu cinto que, como pode ver, não mais possuo. Um jogo de duplicatas me foi roubado há algum tempo por um de meus criados que foi persuadido a ser desleal. Ele não chegou a sobreviver para ganhar a liberdade que procurava, mas as chaves... Desde então tenho carregado as chaves restantes comigo todo o tempo.

O rosto de Mantrapper se iluminou. - Chaves? -Ele gritou. O entusiasmo deixou-lhe o rosto quando ele viu o olhar gelado de Darkmane voltado para ele. — Mas... mas nós temos chaves. Lembra-se do Minotauro? E da cobra dentro da caixa? Você acha que elas poderiam ser...

— Silêncio, seu matador imbecil, a menos que deseje ter o mesmo destino que o criado de Zagor.

Darkmane conseguira controlar a imensa fúria que sentira pelo mercenário após a morte do Chervah. Mas cada frase que safa da sua boca fazia com que ela crescesse novamente. Apesar disso, desta vez a sugestão dele fazia sentido, mesmo sendo indubitavelmente inspirada em sentimentos não mais nobres que seu próprio desejo por riquezas.

Ele se levantou da mesa e caminhou até o canto onde Mantrapper estava sentado em um banco. Levantou a mão. O mercenário colocou na palma dele a chave que pegara da caixa da cobra. O próprio Darkmane tinha a chave do Ciclopes de ferro, e ele remexeu no saco do Chervah à procura da chave do aposento do Minotauro.

Ele deu as três para o velho mago. — Você acha que essas três podem ser suas chaves?

— Eu não sei. Elas se parecem com as chaves. Nós deveríamos experimentá-las. Mas primeiro quero que me dê sua palavra em dois assuntos.

— Diga quais são.

— Você deve me dar sua palavra de que o que estiver dentro da arca é somente meu e que assim permanecerá.

— Você tem minha palavra. E o que mais?

Zagor apontou para o mercenário. — E ele deve permanecer aqui fora.

— Não preste atenção nele! — Mantrapper levantou-se rapidamente. — Que direito tem ele de ditar os termos para nós! Ele é nosso cativo!

Zagor sorriu. Sua arca estava cheia de armadilhas de dardos envenenados que matariam qualquer pessoa que tentasse roubar-lhe o conteúdo. — Se você entrar no aposento, então você deve introduzir as chaves — disse ele.

— Não há necessidade. Mantrapper permanecerá aqui.

O mercenário reclamou e sentou-se novamente. Darkmane e Zagor voltaram-se para entrar no aposento de trás. Dentro dele, o feiticeiro inseriu cuidadosamente uma chave em cada uma das fechaduras. Girou-as uma a uma, e uma a uma delas deram o clique.

— Você recuperou minhas chaves. A sorte sorri para você. Mas eu devo lhe pedir que se vire enquanto examino o conteúdo.

— Isso eu não posso fazer, Zagor. Pois você ainda não me deu razões para confiar em você. Devo ter certeza de que o que existe aí dentro não é uma armadilha para mim.

Zagor assentiu. Ele estava começando a ter a impressão de que o guerreiro alto era um homem de palavra e que suas intenções eram boas.

— Muito bem...

Ele levantou a tampa lentamente. Quando a luz caiu sobre o conteúdo, Darkmane percebeu a sabedoria nos pedidos anteriores de Zagor. Não seria sábio deixar que tal visão fosse vislumbrada pelo ganancioso mercenário, pois a arca estava cheia de moedas de ouro, jóias e artefatos ricamente decorados.

— Você viu algo onde jamais nenhum outro homem colou os olhos — murmurou ele. — Estes tesouros têm estado em minha família desde os dias do meu tatara-tatara-vô, Gallan Zagor. Naqueles dias ele era ricamente recompensado por suas habilidades em magia. Compreende agora por que estabeleci-me neste lugar.

Ele procurou pela arca e tirou uma pequena bola de cristal. Nas mãos dele ela parecia iluminar-se com um brilho sobrenatural à meia-luz.

— O Cristal da Lua. - Zagor a segurava, orgulhoso. — Com isso poderemos testar a veracidade de sua história.

Darkmane percebeu que as mãos do feiticeiro estavam se tornando mais suaves, com aparência mais jovem. O cabelo dele estava escurecendo. A jóia que era o olho do Ciclope estava com Mantrapper no estúdio de Zagor. Mas ele não disse nada.

O feiticeiro segurou o Cristal da Lua com as mãos em concha diante do rosto. O brilho iluminava-lhe as feições. A transformação estava quase completa. A atenção de Darkmane voltou-se para a bola. Uma bruma enroscava-se profundamente dentro dela. Ela agora se parecia com uma imensa pérola. Zagor estava murmurando, os olhos fechados. Darkmane reconheceu uma palavra -não, um nome — pronunciado pelo feiticeiro: Zharradan Marr.

A bruma começou a se dissipar. Na bola surgiu uma imagem, esmaecida a princípio, e então foi chegando ao foco. Era a imagem de um navio gigantesco, um grande galeão rodeado não por água, mas dirigido bem alto no céu, com suas velas negras balançando ao vento. A vela central levava o sinal de uma imensa caveira encapuzada: a insígnia de Zharradan Marr. Esse navio era o Galleykeep!

O navio surgiu maior no Cristal da Lua. Um capitão Homem-rinoceronte, pesadamente armado, permanecia ao leme, segurando-o firmemente. Darkmane observava enquanto a imagem se movia de rosto para rosto dos homens e criaturas no convés. Um Meio-Troll corpulento permanecia no tombadilho superior, olhando para a frente.

Zagor reconheceu as feições feias e a pele pintada da criatura. — Thugruff — sussurrou ele. O Sargento de batalha de Marr. Um estrategista brilhante, mas com o coração negro como a noite. E lá estão alguns de seus legionários: Homens-rinoceronte, Elfos Negros e Homens-lagarto. Há algum Sem-Alma a bordo? Não, eu imagino que eles estariam acorrentados lá embaixo. — Agora uma figura gorda tomava conta da imagem da bola. — E eis outro de seus homens de confiança — Vallaska Roue, seu oficial de recrutamento.

Uma verdadeira montanha de homem, Vallaska Roue estava na proa, conversando com um Homem-rinoceronte. Suas roupas eram desleixadas e impróprias, e o rosto estava barbado e com aspecto ruim. Usava uma venda sobre um olho e uma profunda cicatriz corria pelo lado esquerdo do rosto. Os olhos de Darkmane arregalaram-se quando ele olhou para o rosto dentro dd globo.

— Mas onde se encontra o Marr propriamente dito? Zagor perguntou a meia voz. — Ele deve estar lá embaixo. Hmmm. Então, Darkmane, talvez sua história contenha mesmo alguma verdade! Agora, deixe-me ver se podemos encontrar Balthus Dire.

Novamente Zagor murmurou para o Cristal de Lua e as brumas rodopiaram. Desta vez ele levou muito mais tempo para formar imagens reconhecíveis, e quando o fez elas eram escuras e cheias de sombras. Formas meio indistintas voavam pelo cristal, formavam ondas de nuvens cinzentas e então se dispersavam. Uma silhueta humana surgiu - e então se foi. E outra. Cores esmaecidas delineavam entidades vagas. Mas poucas podiam ser reconhecidas.

— O que é isso? — Zagor falou baixinho. — Isso não é a Torre Negra. Tampouco Allansia. Alguma coisa estranha está... Espere! O que é aquilo?

Uma imagem fixara-se por um instante, pelo tempo suficiente de mostrar um rosto humano. A testa alta e quadrada, com um nó de cabelos negros no alto da cabeça careca, forneceu-lhes a identidade. Balthus Dire! Tão rápido quanto surgira, a imagem ondulou e desapareceu como um reflexo na água perturbado por uma pedra. Mas a expressão no rosto de Dire, captada naquele instante, não era aquela imagem usual de frio controle. Em vez disso, retratava um homem em agonia: sendo sujeitado a algum tipo de tortura desconhecida.

Uma outra imagem fugaz se formou. Desta vez era uma imagem fantasmagórica em branco. Nebulosa a princípio, ela focalizou o tempo suficiente para que Darkmane reconhecesse a criatura - ou melhor, a mulher.

Ele gritou como se estivesse com dor. — Lissamina! Os deuses têm misericórdia! O que ela está fazendo ali? Zagor! Onde é esse lugar?

Zagor balançou a cabeça. — Não posso ter certeza. Mas asseguro uma coisa: eles não estão nesta terra. Talvez em um plano espiritual... ou talvez em um limbo dimensional. Talvez até mesmo nos céus. É difícil de dizer. Mas como...? Darkmane, a erva de cunnelwort significa alguma coisa para você?"

— Cunnelwort? Sim, claro! Diz-se que as Guerras de Trolltooth começaram quando uma caravana carregando cunnelwort foi emboscada no Passo. Os Goblins da Montanha, em missão para Balthus Dire, roubaram um saco da erva dos Strongarms de Marr. Por que pergunta?

Mas Zagor estava perdido em pensamentos.

Finalmente ele voltou para o gabinete do feiticeiro, Jamut Mantrapper estava encostado em uma cadeira, com os pés para cima e os olhos fechados. A jóia que era o olho do Ciclope estava pousada na ponta da mesa. Quando eles entraram no aposento, Zagor segurou seu peito, com dor. Cada exposição à jóia tinha sobre ele um efeito cada vez mais forte; sua força estava se esvaindo. Levado pelo desespero, ele pulou para a frente, tropeçando pelo aposento na direção da mesa, numa tentativa de agarrar a jóia.

Mantrapper não estava adormecido. Quando o feiticeiro avançou, um dos seus olhos se abriu e um esgar sinistro surgiu em seus lábios. Ele pulou de pé. A cadeira caiu com um estrondo no chão atrás dele. Ele retirou a adaga Orukk do cinto e ergue-a bem alto.

Zagor caiu para a frente e agarrou a jóia em desespero. As pontas de seus dedos tocaram a superfície lisa e escorregaram. Ela escapuliu, rolou pela mesa e caiu no chão.

Ao mesmo tempo, a lâmina de Mantrapper desceu!

O golpe dirigia-se exatamente para as costas do feiticeiro. Por certo ele teria morrido instantaneamente. E isso teria acontecido se Darkmane não tivesse reagido tão rapidamente...

Mas alguma coisa despertara na mente de Darkmane.

As peças se encaixaram. A princípio, ele amaldiçoara o temperamento de Mantrapper pelo seu desejo obsessivo de matar o feiticeiro no momento em que entraram no aposento. Naquele instante, no entanto, ele percebeu qual era o verdadeiro objetivo de Mantrapper. Darkmane saltara pelo aposento com a espada firmemente em punho, com a lâmina para cima, para proteger as costas de Zagor.

A adaga desceu sibilando. A milímetros do alvo, ela caiu das mãos de Mantrapper. Gritando de dor, o mercenário segurou o pulso para tentar estancar o fluxo de sangue que caía sobre o braço. A lâmina de Darkmane fizera um corte profundo.

Ele se voltou para o guerreiro, soluçando. - Darkmane... Porquê...?

Mas o guerreiro não estava arrependido. Ele levantou a espada e colocou a ponta na garganta de Mantrapper.

— Para trás, mercenário. Para trás até a parede. Eu já descobri seu segredo.

Mantrapper olhou incrédulo para o rosto impassível de Darkmane, olhando-o sobre o punho da espada dele. Enquanto isso, Zagor aproveitou a oportunidade; ele procurou pelo chão até encontrar a jóia caída e correu então para o lado mais distante do aposento. Darkmane estava consciente de que o feiticeiro escapava para o aposento de trás; mas ele estava preocupado demais com o mercenário para pensar em pará-lo agora.

— S-segredo? Do que é que você está falando? -Mantrapper gaguejou.

— Não se preocupe em fingir. Desde que entramos neste gabinete, cada pensamento seu está voltado para destruir o feiticeiro. Por quê? Você sabia que eu precisava da ajuda dele. Isso foi apenas por causa de seu temperamento incontrolável? Eu não creio. Você estava adormecido? Não. Por que você simplesmente não pegou a jóia quando Zagor correu para ela? Porque você estava criando uma oportunidade de apunhalá-lo com sua adaga.

— Darkmane! — O mercenário suava. — Você perdeu seu senso de medida?

— Chega! — trovejou Darkmane. — Não ouvirei mais nenhuma mentira. Por que não percebi que alguma coisa estava errada quando sua adaga Orukk atingiu o Chervah? Maldição sobre você por ter conseguido me enganar por tanto tempo. Você sabe tanto quanto eu: a adaga é encantada. Ela nunca erra o alvo. Você mirou no Chervah. Diga-me por quê!

Mas o mercenário estava silencioso e olhava para o chão.

Darkmane continuou: - Você tem usado essa busca para seus próprios fins, para seu próprio desejo de encontrar Zagor e matá-lo. Minha missão apenas foi um meio conveniente de passar pelos horrores da Montanha de Fogo com ajuda de graça até você o encontrar.

Graças aos deuses que percebi tudo isso antes de ser tarde demais. Quanto eles estão lhe pagando?

— Darkmane, eu...

— Quanto — Darkmane apertou mais os dentes e pressionou a ponta de sua espada contra o pescoço do mercenário. Um pequeno fio de sangue escorreu pela túnica dele.

— Agh! Tudo bem! Você adivinhou. Mas como conseguiu ter certeza?

— Eu vi o Galleykeep no Cristal da Lua do feiticeiro. Os legionários de Zharradan Marr estavam no convés; e também no convés estava um rosto que eu pensei reconhecer. Ele era familiar, mas eu não conseguia encaixá-lo. Até que, um instante atrás, eu me lembrei quem ele era. Zagor chamou-o de Villaska Roue, mas o nome nada significava para mim. Eu o vira apenas uma vez antes, porém. No Porco Engordado de Shazâar, quando Calome Manitus me apontou você, você estava conversando com um homem... um homem gordo e brutal com uma cicatriz correndo pelo lado esquerdo do rosto...

— É verdade. — Mantrapper engoliu em seco e secou o suor das sobrancelhas. Vallaska Roue falou comigo antes de você se aproximar de minha mesa. Eu não pude acreditar em minha sorte quando você se sentou à minha frente. Roue me falara sobre um guerreiro de Salamonis que fora enviado em uma missão, um guerreiro cujo propósito era destruir Zharradan Marr. Muitos são os espiões, Darkmane. É difícil esconder alguma coisa deles; as notícias são levadas pelos ventos para os capangas de Marr. Minha tarefa era compreender seu plano e relatá-lo a eles. Se você se tomasse perigoso eu teria que destruí-lo. Seu plano original — alcançar a Torre Negra — servia bem a eles. Mas quando você mudou de direção e procurou por Zagor, minhas ordens também mudaram.

Marr teme o feiticeiro. Ele conhece a mente de Marr. E ele é um feiticeiro igualmente poderoso.

— Foi um alívio: você me salvou a vida e eu não tinha nenhum desejo de matá-lo. Na verdade, eu o tenho em grande respeito. Quando encontramos Zagor, tive que improvisar um plano para matá-lo sem levantar suspeitas. Isso ou então teria que matar a todos.

— E o Chervah — perguntou Darkmane. Por que você matou meu criado?

— Ele não era um criado. — Mantrapper deu um sorriso fraco. — Não. Não era mesmo um criado, apesar de ele sequer percebê-lo. "Os Olhos dos Deuses", ele era conhecido assim para Zharradan Marr. Eu não sei mais nada, mas minhas ordens eram de matá-lo antes de Zagor, assim que acabasse a utilidade dele. Percebi que a utilidade dele terminara tão logo acabou nossa luta para chegar até aqui.

— E qual a sua recompensa por essa traição? Mantrapper abaixou a cabeça. Ele procurou dentro

da blusa e pegou um pequeno medalhão. — Isso — disse ele, abrindo-o - é o preço. Uma oferta que não pude recusar.

Darkmane abaixou a espada e abaixou-se para examinar o medalhão. Dentro dele havia o pequeno retrato de uma mulher jovem e bela.

— Eu sou um caça-fortunas — Mantrapper disse, triste. — Você está bem consciente disso. Mas há uma coisa no mundo que significa mais para mim do que ouro, mais que minha própria vida. Esta é Lady Hellena, Filha de Lorde Tanneth de Shazâar. Ah, Darkmane, se ao menos você pudesse vê-la. A pele dela é mais lisa que um lençol de seda. Seus cabelos são finos como uma teia. E seus olhos — bem, ela pode derreter o coração de um homem com um simples bater de cílios. Ela é um anjo do céu. E eu certamente morreria por ela. — O tom na voz de Mantrapper ficou mais duro. — Em vez disso, eu estava destinado a matar por ela. Quando Vallaska Roue falou comigo em Shazâar, ele primeiro me ofereceu ouro. Quando eu recusei, ele me mostrou um medalhão de ouro, um similar a este. Dentro dele havia um retrato meu. E o retrato estava manchado com três gotas de sangue... O sangue de minha dama.

Surgiram lágrimas no canto de seus olhos. Por um momento ele fitou o medalhão com olhar vago.

— Eles a haviam capturado e levado para as masmorras de Marr, em Coven. Minha recompensa por matar Zagor não seria um saco de ouro. Seria a liberdade de Hellena. Eu não tinha escolha. Você teria agido diferente?

Darkmane estava silencioso. A história do mercenário tocara-lhe o coração. Sua fúria se transformara em simpatia. Ele deu um passo atrás, para longe de Mantrapper e na direção da mesa.

Era esta a oportunidade que o mercenário estava esperando. Em um movimento único, ele pulou para longe da mesa e do raio de ação da espada de Darkmane. Ele segurava a adaga Orukk na mão, pronta para ser lançada.

Darkmane falou calmamente. — Não seja tolo, Mantrapper - disse ele. — Lembre-se da missão. Nós devemos parar a guerra, se não, a própria Allansia cairá sob o controle de...

— Pouco me importa Allansia — Mantrapper o interrompeu — se é pela vida de Hellena. Devo libertá-la primeiro. Somente então me preocuparei com o destino de Allansia.

— Então junte-se a mim, ajude-me. Depois que tivermos completado nossa missão, eu lhe dou minha palavra que o ajudarei a encontrar Hellena.

— Os riscos são altos demais. O que estarão, as criaturas de Marr fazendo com ela nesse mesmo instante? O que mais farão enquanto gasto tempo acompanhando você?

— Talvez o Cristal da Lua de Zagor possa lhe dizer. Foi somente então que Mantrapper percebeu que o

feiticeiro não mais se encontrava no aposento. Os olhos dele examinaram o ambiente até que caíram sobre a porta semi-aberta. — Feiticeiro! Volte aqui!

Os olhos do mercenário dardejaram da porta para a mesa, depois de volta para a porta. A mente dele estava em disparada. Quem é a maior ameaça? O guerreiro com sua espada? Não: a adaga Orukk ainda manterá Darkmane à distância. O feiticeiro, então? O que aconteceu com ele? Ele terá a jóia? Os poderes dele retornaram? Ele não podia ouvir nenhum som vindo da porta. Sua atenção voltou-se para Darkmane.

O guerreiro permanecia no lado oposto do aposento, com a espada na mão. Ele não podia se mover devido ao medo causado pela mortal adaga Orukk. Alguma coisa estava fazendo com que Jamut Mantrapper hesitasse em jogar a adaga e assim terminar tudo de uma vez; talvez isso pudesse ser um resquício de lealdade ou respeito pelo guerreiro negro, que agora estava à sua mercê. Ele hesitou. Os dois homens se fitaram como dois grandes machos no cio.

Uma brisa suave soprou pelo aposento e arrefeceu-lhes os ânimos. A pressão de Mantrapper no punho da adaga relaxou ligeiramente. — Darkmane... Eu...

Um lento rangir veio da porta atrás dele. Ele voltou-se com a adaga preparada. Darkmane aproveitou a oportunidade e pulou para a frente! O rangido não fora nada mais que a brisa.

Mantrapper voltou-se novamente e viu que o guerreiro pulava em sua direção. Em um instante, ele mirou e lançou a adaga.

Darkmane caiu ao chão, com os braços sobre a cabeça. Mas não havia escapatória à arma mágica. A adaga Orukk flutuou na direção dele, ajustando o vôo para baixo quando o guerreiro caiu. A ponta dela estava orientada direto para o pescoço de Darkmane. Sua morte era certa. Até que o impossível aconteceu.

A milímetros do alvo, a adaga parou no ar. Ficou flutuando lá por um instante. O queixo de Mantrapper caiu quando ele, horrorizado, viu a adaga Orukk dar meia-volta e retornar em sua direção! Ele pulou para um lado para evitá-la, mas a adaga seguiu-lhe cada movimento, até que...

— Ungghh!

A lâmina penetrou na garganta e enterrou-se toda em seu pescoço. O grito de Mantrapper acabou como em um gorgolejar quando o sangue do ferimento o sufocou. Ele caiu de joelhos.

Darkmane retirou os braços da cabeça e viu incrédulo quando o mercenário agarrou a adaga em sua garganta com dedos vermelhos de sangue. Conseguiu retirá-la e jogá-la ao chão, mas já perdera sangue demais. Em uma confusão de membros convulsos e tosses sangrentas, ele rolou e caiu ao chão, morto.

— O que...? — A palavra saiu como um sussurro. Darkmane não podia crer no que acontecera. Na verdade, ele deveria estar morto no chão.

Então um rosto surgiu na porta... um rosto que explicava tudo. O feiticeiro recuperara sua aparência de juventude. Seus poderes mágicos haviam retornado.

— Zagor! Foi você...

— Claro. Por que você está tão chocado? Preferiria que fosse você quem estivesse estirado ali, em seu próprio sangue? Isso pode ser conseguido. Não, eu pensei que não. Então venha comigo. Temos trabalho a fazer.

 

Darkmane acordou de repente. Olhou em volta. A não ser pelo fogo bruxuleante e uma única vela queimando sobre a mesa, o aposento estava às escuras. Na luz opaca, Darkmane podia ver a estante, as cadeiras e a mesa caídas, e os corpos do Chervah e de Jamut Mantrapper estirados no chão. Estava nos aposentos do feiticeiro. Ele espantou o cansaço de seu rosto; a exaustão finalmente o pegara e ele adormecera.

Zagor estava sentado à mesa, absorvido em um velho livro. Ele ouviu Darkmane mexer-se e virou-se na sua direção. — Então o guerreiro acorda. Reúna seus sentidos, Chadda Darkmane. Deixe-me dizer-lhe o que descobri e o que devemos fazer. E rápido; tempo é o que menos temos. Neste mesmo instante o Galleykeep está se aproximando dos Rochedos Craggen. Seu grande desafio ainda está por vir.

Darkmane ficou de pé e massageou os membros doloridos. Por quanto tempo estivera dormindo? E o que Zagor teria descoberto?

Ele caminhou até a mesa e sentou-se de frente para o feiticeiro. — Estou pronto. Explique o que deve ser feito.

Zagor fechou o livro e recostou-se na cadeira. -Balthus Dire está perdido para esse mundo — começou ele. — As experiências dele com a cunnelwort foram bem-sucedidas. Ele entrou no plano espiritual e estabeleceu contato com seres possuidores de poderes inimagináveis. Ele os convidou para se juntarem a ele. Esses espíritos vêem o mundo material como nada mais que um pátio de recreio e suas criaturas como pouco mais que insetos, e brincam conosco do mesmo modo que você ou eu brincamos com um pequeno besouro. E, se assim o desejarem, esmagam-nos tão facilmente quanto esmagaríamos um besouro se pisássemos nele. Mas são fascinados pelo mundo da magia. Curiosos sobre os poderes mágicos de Dire, eles ouviram a estória dele e alguns até mesmo entraram no plano material com ele. Mas um combate com os Ganjees enviou-os todos de volta para o plano espiritual. Quando Balthus percebeu a extensão do poder deles, resolveu voltar ao plano espiritual e mais uma vez abrir a porta. Com as criaturas espirituais ao seu lado, ele teria sido invencível.

— Teria sido...?

— Sim. — Zagor assentiu. — Os planos de Dire foram desfeitos pela entrada de outro intruso no mundo espiritual."

Darkmane ficou duro na cadeira. Ele lembrava-se da imagem de Lissamina no Cristal da Lua.

— Sua amiga, a feiticeira - continuou o feiticeiro -, entrou no plano espiritual e confrontou-se com Dire. Mas a magia dele era muito mais forte que a dela. Ela não poderia esperar vencê-lo nem evitar que os espíritos entrassem no plano material se eles assim o quisessem. Então ela fez a segunda melhor opção: selou o portal, prendendo os espíritos, Balthus Dire e a si mesma no plano espiritual. Ela está lá agora. Eu não posso adivinhar o seu destino.

A garganta de Darkmane ficou seca. Ele a vira apenas umas poucas vezes, mas ela fora a primeira maga na qual ele sentira que podia confiar. Fora a conselho dela que ele partira à procura de Zagor, e agora ela se sacrificara. Ele estava silencioso, olhando fixamente os dedos apertados sobre a mesa.

Finalmente falou: - Há algo que podemos fazer?

Zagor mexeu a cabeça.

— Nada que eu ou você possamos. Eu não posso enviá-lo para o plano espiritual, ou eu mesmo entrar. O destino dela está nas mãos dos deuses.

A mandíbula de Darkmane apertou-se. Ele forçou sua mente de volta à sua missão. As noticias sobre Balthus Dire eram uma bênção disfarçada. Com o feiticeiro preso no plano espiritual, seria simplesmente uma questão de tempo as forças de Zharradan Marr serem vitoriosas. Sem um líder, as criaturas do caos voltariam para seus buracos nas Montanhas Craggen. E o que Zagor lhe dissera? O Galleykeep está próximo dos Rochedos Craggen? Da Torre Negra!

— E quanto a Zharradan Marr? — perguntou.

— E por isso que temos que agir rápido — disse Zagor. - O Galleykeep dele está velejando para a Torre Negra. Precisamos pegá-lo antes que ele alcance a cidadela, ou ele irá se entrincheirar lá e o perderemos para sempre. Precisamos atingi-lo dentro do próprio Galleykeep. — Zagor curvou-se para frente. — Eu disse nós... Mas terá que ser você, Chadda Darkmane. Eu não posso fazer a viagem com você e lançar um feitiço. Os riscos são grandes. Não posso fazer mais do que transportá-lo para o Galleykeep. Uma vez em seu convés, o restante é com você.

Darkmane considerou as palavras do feiticeiro. Ele estava pronto para enfrentar Zharradan Marr. Mas queria um conselho de Zagor. — Não falharei, Zagor. Mas primeiro diga-me o que sabe das fraquezas de Marr. Disseram-me que você o conhece bem. Eu arrisquei minha vida procurando por você. Diga-me como posso vencê-lo.

— Você não pode ter a esperança de vencê-lo em uma luta. Ele é tão forte quanto você, e usará todos os seus poderes mágicos contra você. A fraqueza dele é o seu espelho.

— Que espelho?

— Zharradan Marr não é humano. Ele é um meio-espírito morto-vivo que retira seu poder de um espelho que é sempre deixado em seus aposentos ou guardado de perto por seus escravos. Não é um espelho comum, mas sim um portal para o mundo de Marr, que não é nem o plano espiritual nem o plano celestial, mas sim uma espécie de limbo. A verdade é que ninguém sabe com certeza aonde o portal do espelho leva. No entanto, se destruir o espelho você destruirá todos os poderes dele. Se ele estiver dentro do espelho quando você o quebrar, então ele não poderá jamais escapar de volta para nosso mundo. Se ele estiver do lado de fora, então não será mais poderoso que um mortal comum.

A tarefa não era fácil. Uma vez no Galleykeep, ele teria que evitar os guardas, encontrar o caminho para os aposentos de Marr e destruir o espelho sem que ele o percebesse.

— Como o destruo?

— Ele quebrará, como qualquer outro espelho. Simplesmente atinja-o com sua espada. - O guerreiro esperou, apreensivo, por mais ajuda. Zagor fitava a parede atrás de Darkmane, perdido em pensamentos.

Finalmente, ele levantou-se e cruzou o aposento até um armário. De lá tirou uma pequena mochila e trouxe-a para a mesa. — Aqui — disse ele. — Você deve levar isso com você.

— Não tocarei em feitiçaria. Não confio em truques mágicos. Minha confiança está em minha espada.

— Sim, é claro — disse Zagor, sarcasticamente. — Eu não lhe ofereceria nada relacionado a magia. Se Marr o capturasse, ele saberia de onde ela teria vindo. Mas isso não é um objeto mágico. Dentro dessa mochila há pó-de-fogo. Ele explodirá como uma bola de fogo. Veja. Você está vendo esse fio aqui? É estopim. Acenda o fio com essa caixa de fósforos. Ele irá brilhar quando acender. Haverá uma certa demora enquanto o fio queima. Mas quando ele queimar até a mochila, uma grande bola de fogo explodirá e destruirá tudo que estiver por perto.

— E qual é a utilidade disso para mim?

— Você é um soldado, Darkmane. E sabe que as guerras devem ser vencidas a qualquer custo. A vida das tropas é fato para a vitória.

— Fale claro. O que você está dizendo?

— Marr deve ser vencido a qualquer custo. Até mesmo sua vida pode ser perdida nessa tarefa.

— Sim.

— Sua missão é perigosa. Mas se você falhar em quebrar o espelho, essa oportunidade de destruir os planos de Marr não deve ser desperdiçada. Quando você localizar o espelho e fizer seus planos, primeiro esconda essa mochila de pó-de-fogo e acenda o estopim. Só então vá atrás do espelho. Se você o destruir, volte e corte o estopim. Mas se você for impedido, então essa mochila assegurará que sua tentativa não terá sido totalmente em vão. Pois quando o estopim queimar todo, a bola de fogo destruirá o Galleykeep e, com um pouco de sorte, o espelho também. Mas Darkmane, se o pó-de-fogo queimar você perderá sua vida junto com o navio. Você concorda?

Darkmane pensou por um instante. Não havia escolha real: se ele falhasse em sua missão, perderia a vida assim mesmo. Ele podia ver sentido em levar o Galleykeep com ele se isso viesse a acontecer.

Mas havia outra possibilidade. E se ele conseguisse destruir o espelho mas falhasse em apagar o estopim a tempo?

Ele virou-se para Zagor. — Quanto tempo eu tenho?"

— Conte assim: Uma cenoura, duas cenouras, três cenouras... nessa velocidade. Quando chegar a cem cenouras, a bola de fogo será ativada. Tente você.

Darkmane contou: — Uma cenoura, duas cenouras, três cenouras...

— Um pouco mais lento.

— Uma cenoura, duas cenouras, três cenouras, quatro...

Assim é melhor. Lembre-se, assim que você acender o pavio, deve começar a contar. E não parar nunca. Se perder a contagem, isso pode custar sua vida."

— E então...?

— Assim que você tiver quebrado o espelho, encontre a mochila e retire o estopim. Volte ao convés. Diga aos legionários que o mestre deles está morto. Force-os a voarem com o navio para Salamonis e deixá-lo lá.

— E se eles se recusarem?

— Então você acende o pavio novamente. Mas não se preocupe. Se Zharradan Marr estiver morto, eles farão o que você disser. Você concorda?

Darkmane deslocou-se sobre a cadeira. Ele correu a mão pelos cabelos e olhou bem dentro dos olhos de Zagor. — Sim, eu farei isso."

— Ótimo. Então vamos começar.

Zagor novamente abriu seu livro e começou a ler intensamente as páginas. Darkmane levantou-se e andou pelo aposento. Aquela era uma missão perigosa — a mais perigosa de toda sua vida. E se ele fosse capturado antes de poder acender o estopim? E se o estopim apagasse? E se o pó-de-fogo fosse descoberto antes que o estopim tivesse queimado todo?

Ele parou ao lado do corpo de Mantrapper, que ainda estava no chão. A adaga Orukk ainda estava perto dele, coberto com o sangue do mercenário. Ele ajoelhou-se e pegou-a, virando-a na mão.

— Estou pronto — anunciou Zagor. — A hora chegou. Logo ficará escuro; você deve ir agora. Se esperar pela luz, você será visto no convés.

O mago levantou um tapete. Sob ele, dois símbolos de lua crescente haviam sido desenhados no chão. Zagor tomou dois frascos de líquido de um armário e espalhou-os no chão, no centro das luas crescentes. Uma fumaça começou a subir no ar. O feiticeiro levantou as mãos e virou as palmas para a fumaça. Entoou palavras que Darkmane não consegue entender. Quanto mais ele entoava, mais fumaça subia no ar. Ela se transformou de cinza para azul sujo, para vermelho escuro, para amarelo.

Darkmane olhou para o teto acima dos símbolos. Uma mancha de luz apareceu e começou a brilhar. Ela também trocava de cor junto com a fumaça — azul, vermelho, amarelo. Finalmente tornou-se branca e começou a formar uma imagem. A fumaça que subia do chão volteava para cima e desaparecia dentro da imagem no teto. Os olhos de Darkmane abriram-se quando a imagem tomou forma. Manchas marrons e negras moviam-se e fundiam-se. Conforme elas iam se tornando mais densas ele podia definir melhor as imagens: era um navio, um grande navio com velas negras. O símbolo de um crânio encapuzado estava pintado na vela central.

O Galleykeep!

— Rápido, Chadda Darkmane. — As palavras do feiticeiro ecoaram pelo aposento.

Darkmane levantou-se. Seu estômago tinha um n<5. O suor encharcou sua testa e a palma da mão. Ele andou na direção da coluna de fumaça, amaldiçoando entre dentes: feitiçaria! Mais uma vez ele estava à mercê dela. Parou diante da fumaça e deu um último e longo olhar para Zagor, que o observava com intensidade. Ele lançou um olhar para o punhal Orukk, que ainda estava em suas mãos, depois de novo para a fumaça." Seu peito encheu quando ele inspirou profundamente.

Então, com um único movimento, ele colocou o punhal em seu cinto e pisou dentro da fumaça.

 

O vento o atingiu com uma rajada gelada, fazendo com que ele recuasse, cambaleante, até a balaustrada. Os cabelos foram esticados até as raízes, como se o vento tentasse puxá-lo do couro cabeludo. Ele podia ouvir o rangido rítmico dos três mastros gigantescos tencionados e o ocasional bater das velas quando ondulavam e se agitavam. Galleykeep jogava de um lado para o outro enquanto percorria o caminho acima dos picos pontiagudos das Montanhas Craggen. Os grandes Tooki alados navegavam ao lado do navio, cada um subindo e descendo enquanto escoltavam o Galleykeep em sua viagem. A não ser por algumas lanternas bruxuleantes colocadas sobre o convés, tudo mais estava escuro.

Darkmane segurou o punho de sua espada e olhou em volta atentamente. Ele fora visto?

—Não.

O feitiço de Zagor o colocara na traseira do Galleykeep, bem à popa da roda do leme. Rapidamente, ele se agachou perto da amurada e avaliou as cercanias.

A não ser por três figuras, o convés estava vazio. Poucos passos à sua frente, no leme, estava uma figura corpulenta, de focinho chifrudo e com armadura. Um Homem-rinoceronte, dirigindo o navio. Ele podia ouvir claramente os rosnados da criatura, mas o vento carregava para longe do Homem-rinoceronte quaisquer sons que ele pudesse fazer. Ele poderia surpreender a criatura sem muita dificuldade. Mas então, o que aconteceria ao navio? Se não tivesse ninguém para tomar conta do leme, ele certamente sairia do curso? Mas quaisquer desvios súbitos também alertariam o restante da tripulação. Seus olhos caíram sobre uma haste quebrada da amurada do navio. Talvez ela servisse para montar o estratagema.

Havia degraus que desciam da ponta para o meio do convés. Era difícil para Darkmane ver em um nfvel mais baixo, mas ele podia distinguir uma figura humana, esparramada sobre uma pilha de cordame. O guerreiro tinha a ansiosa esperança de que ela estivesse dormindo.

Na direção da proa, podia-se ver outra forma humana; mas ela definitivamente não estava dormindo. O homem alto era bastante gordo; ele estava apoiado no mastro da frente, olhando para longe e observando o avanço do navio. Darkmane reconheceu a imensa figura redonda e as roupas desleixadas. Sua mente retornou àquela noite no Porco Engordado. Vallaska Roue!

Isso poderia ser um problema. Ele poderia se livrar rapidamente do Homem-rinoceronte. Sem dúvida alguma poderia descer até o meio do tombadilho e lidar com o homem sobre o cordame. Mas ele poderia contar com que Vallaska Roue continuaria a olhar para longe enquanto ele subia para a coberta de proa? Se ele desse meia-volta certamente notaria a falta do Homem-rinoceronte! Talvez ele pudesse deixá-lo e seguir direto para os aposentos de Zharradan Marr. E quanto aos Tooki? Não — eles estavam longe demais para notar alguma coisa acontecendo no meio da escuridão.

Ele formulou seu plano.

Uma mancha fina de luz vermelha surgia no horizonte. A madrugada se aproximava. Logo o restante da tripulação estaria se levantando e Darkmane teria que enfrentar muitos mais adversários. Precisava agir rápido.

Ele tirou a espada da bainha cuidadosamente.

Meio agachado, esgueirou-se furtivamente na direção da figura ao leme, tentando da melhor maneira possível manter-se estável enquanto o Galleykeep jogava. Atrás do Homem-rinoceronte, ele se levantou lentamente e mirou a ponta de sua espada para o meio das costas dele. Suas mãos apertaram mais o punho da espada, segurando-a como se fosse um imenso punhal. Esperou até o navio se estabilizar.

Então atacou!

— Hhuunnrmngh!

Darkmane gelou.

Seu golpe fora suficientemente forte para derrubar um Demônio de Fogo.

O Homem-rinoceronte, porém, em vez de cair, deu meia-volta para encará-lo, com a espada presa entre suas espáduas como um punhal lançado em uma árvore. Demônios! A pele do Homem-rinoceronte era tão dura que a espada ficara presa nas costas dele e não lhe atingira o coração!

E agora Darkmane estava desarmado!Juntou suas forças e reagiu imediatamente. Pulou sobre a criatura atingindo-lhe com os dois pés em pleno peito. O homem-rinoceronte, enfraquecido, resto legou alto e cambaleou. Darkmane caiu pesadamente no tombadilho. O leme do navio girou e o Galleykeep adornou para estibordo. O Homem-rinoceronte perdeu o equilíbrio e tropeçou para trás. Seus bufados interromperam-se bruscamente. O próprio peso da criatura forçara a espada pele adentro e ela atingira o coração. A criatura estava no convés, morta.

Darkmane se levantou. Será que os sons da luta haviam sido ouvidos pelo navio. Seu olhar voou até o homem sobre o cordame e depois para Vallaska Roue, mais adiante. Nenhum deles notara os gritos do Homem-rinoceronte.

Ele rapidamente agarrou a haste quebrada e usou-a para calçar a roda do leme. Isso finalmente evitaria que o navio perdesse o rumo. Ele o testou; a roda estava presa firmemente. Darkmane então virou-se para o corpo do Homem-rinoceronte para recuperar sua espada.

Uma nova idéia lhe ocorreu. Ele arrastou o corpo pelo tombadilho e, num esforço sobre-humano, conseguiu colocá-lo de pé. Encostou-o na roda. Isso lhe daria um pouco mais de margem de segurança quanto a Vallaska Roue.

Segurando a respiração, ele voltou sua atenção para a figura adormecida no convés abaixo. Desceu a escada silenciosamente.

O cordame fornecia uma espécie de cama para o tripulante adormecido, que estava desajeitadamente acomodado sobre ela; a boca dele estava escancarada e ele roncava alto, com uma garrafa vazia na mão.

Uma vergonha perturbá-lo, pensou Darkmane enquanto colocava o fio de sua espada na traquéia do homem e fazia uma fina linha vermelha pela sua garganta. O corte não foi profundo. Darkmane tinha uma utilidade para o sujeito.

— Quem? O que...? — O homem acordou subitamente. Darkmane pressionou com um pouco mais de força e levou o dedo até os lábios. O homem compreendeu; ele ficou em silêncio e engoliu em seco.

— Posso acabar com sua vida se quiser — disse Darkmane. — Você concorda? — O homem assentiu da melhor maneira que pôde. O suor agora escorria-lhe pelo rosto.

Um movimento dessa espada e você nunca mais beberá dessa garrafa. Diga-me o que desejo saber e eu talvez poupe sua vida.

— O q-que...

— Silêncio! - ameaçou Darkmane. A linha vermelha no pescoço do homem aumentou. — Eu lhe direi quando falar! Apenas me diga uma coisa: como encontro os aposentos de seu Lorde Zharradan Marr lá embaixo?

— S-senhor. E-eu não posso dizer. Minha vida estaria perdida.

— Se você não disser — sibilou Darkmane -, então a sua vida está perdida agora. O que você prefere? — A ponta de sua espada foi enterrada mais fundo no pescoço do homem.

— Aaahh! Tudo bem. Eu vou dizer! P-por favor. Tire sua espada daí! — Darkmane não se moveu. O homem falou com veemência — P-pegue aquela escada ali para entrar no navio. Você vai se encontrar em um salão circular com cinco portas: cada uma delas tem um símbolo. Entre na porta com uma moringa de água; esse é o aposento de Lorde Zharradan. Agora, por favor. Me poupe!

— O que está acontecendo aí?

Uma voz furiosa soou do convés acima. As palavras sobressaltaram Darkmane. Ele girou a cabeça, para ver a imensa cabeça de Vallaska Roue voltada para ele!

O tripulante escolheu esse momento para tentar fugir. Ele empurrou a espada de Darkmane para um lado e tentou levantar-se.

As reações bem treinadas do guerreiro foram imediatas. Sua espada cortou de lado e encontrou novamente a garganta do tripulante. Mas dessa vez o corte não foi tão delicado. A lâmina cortante penetrou profundamente no pescoço dele e o corpo caiu sobre o cordarne, ensopando de sangue as cordas.

Num mesmo movimento, ele tirou a adaga Orukk do cinto e lançou-a para Vallaska Roue. Antes do homem ter tempo de desviar o corpanzil, a adaga encontrou-lhe o coração. Ele cambaleou, oscilou na beira do tombadilho e finalmente caiu. O Galleykeep estremeceu quando o corpo dele se chocou no convés inferior.

A mente de Darkmane disparou. O choque certamente traria uma horda de guardas ao convés — ele precisava agir rápido. Avistou uma pequena caixa de madeira contendo um punhado de pinos de mareação. Pegou a pólvora de Zagor apressadamente, colocou-a na caixa e acendeu o pavio com a caixa de fósforos. Ele crepitou e vacilou, e finalmente pegou fogo. O brilho vermelho na ponta do pavio colocou-o em ação. Ele pegou os pinos e arrumou-os sobre a pólvora.

— Uma cenoura, duas cenouras, três... — Ele percebeu que estava falando em voz alta. A contagem continuou, mas desta vez apenas em sua mente.

Correu para a escada e abriu a escotilha.

Vinham sons do convés inferior... vozes. Sem dúvida a queda de Vallaska Roue acordara o navio inteiro. Mas parecia não existir nenhum perigo imediato naquela escada. Desceu-a de dois em dois degraus, usando o corrimão como apoio para não fazer barulho.

— Dez cenouras, onze cenouras...

O tripulante falara a verdade, pelo menos quanto ao salão no final da escada. Cinco portas partiam dali. Os olhos de Darkmane passearam de porta em porta. Uma delas tinha o símbolo do fogo; outra o símbolo de uma coroa; a terceira o símbolo de um floco de neve: a carta com duas espadas cruzadas; e a última tinha o símbolo de uma moringa de água.

— Catorze cenouras, quinze cenouras...

Ele encostou o ouvido na porta e escutou. Nenhum som vinha de dentro. Tentou a maçaneta. A porta estava trancada! Darkmane soltou uma imprecação. Ele teria que colocá-la abaixo. Mais barulho. Seu coração estava disparado.

— Vinte cenouras...

Não havia tempo para hesitações. Ele recuou no salão, aprumou os ombros e atacou.

A porta rachou em torno das dobradiças; ela era mais pesada do que ele imaginara. Uma onda de dor atravessou-lhe o ombro. Ele cambaleou para a frente quando a porta repentinamente se abriu, mas recuperou o equilíbrio dentro da cabine. O golpe de ar soprou uma vela que estava presa na parede; ela tremeu e diminuiu, mas conseguiu manter-se acesa. O brilho amarelado finalmente se firmou e Darkmane examinou a cabine.

Sua primeira impressão foi de que entrara no aposento errado, pois o lugar dificilmente seria o quarto imponente de um lorde mago. O aposento estava empoeirado e em desordem. A parede à sua esquerda fazia parte do casco do navio. Duas portinholas e uma janela de observação maior tinham cortinas sujas que as fechavam. Havia uma vela colocada na parede próxima à janela grande. Diante da janela de observação estava um visoscópio de latão, como se fosse uma versão menor daquele que estava no topo da torre de Yaztromo. Um beliche desarrumado ocupava a parede à direita. Perto dele havia um armário maltratado...

O coração de Darkmane parou!

De pé, em um ângulo do armário, havia uma figura encarando-o!

Sua mão dirigiu-se para a espada. Conforme ele se movia, a figura repetia seu gesto com perfeição... perfeição demais. Darkmane parou. A figura também. Sua mão largou o punho da espada. A figura fez a mesma coisa. Ele estava olhando para o seu reflexo em um espelho.

Um espelho? O espelho!

Ele suspirou. Alcançara seu objetivo? Poderia ser-lhe assim tão fácil, simplesmente dar um passo adiante e estraçalhar o espelho?

Não seria.

Plop! Sssssssschh! Plop!

O som baixo e agudo vinha do canto mais distante do aposento. Seus olhos dardejaram na direção do som Eles perceberam uma escada em espiral que subia. Perto da escada havia uma mesa cheia de papel. Mas havia uma figura contorcendo-se atrás da mesa. Havia alguma coisa lá — alguma coisa que ele jamais vira antes.

Seu queixo caiu. Sentada em uma cadeira atrás da mesa estava uma massa efervescente de matéria viva. Na verdade, ela mal poderia ser descrita como estando "sentada". A massa disforme era como uma gigantesca bolha de gelatina que caíra do teto na cadeira. Tentáculos parecidos com cobras cresciam do meio da massa brilhante e então se contraíam de volta para o corpo. Bolhas inflamadas cresciam e rompiam na superfície. Conforme a criatura borbulhava e se espalhava sobre a cadeira e a mesa, era como se estivesse pulsando como um verme rastejante...

Darkmane deu um passo para trás e tropeçou na porta caída. O que era aquilo? A visão lhe chocara tanto que ele quase esquecera de contar. Ele rapidamente concentrou sua mente. Trinta e duas cenouras, trinta e três cenouras...

A criatura escorregou da cadeira para o chão e caiu com um ruído surdo e suave, espalhando falsas manchas de limo. Ela reapareceu ao lado da mesa e rastejou para a frente.

Um tentáculo nojento cresceu da parte de cima da massa e avançou pelo chão na direção de Darkmane. Ele o viu bem a tempo e pulou para um lado quando o tentáculo procurou enroscar-se em sua perna. Ele ficou onde estava, firmou-se no chão e empurrou, puxando o resto do corpo atrás.

Darkmane desembainhou a espada e desceu-a sobre o tentáculo cintilante. O golpe cortou-o em dois — mas tão logo ele retirou a espada, as coisas parecidas com vermes que estavam dentro contorceram-se nas duas pontas feridas e juntaram os pedaços novamente. Evitando a criatura, ele andou de lado na direção do visoscópio. Em seguida levantou a espada novamente, mirando no corpo principal da massa borbulhante.

Abaixe sua arma, humano. Ela de nada servirá contra esta criatura!

A voz fez Darkmane parar imediatamente. Era uma voz profunda e poderosa, que soava com um tom do outro mundo. As palavras eram ditas com tal autoridade que ele nada pôde fazer a não ser obedecer e abaixar a espada. Seus olhos examinaram o aposento à procura da origem dela. Não havia ninguém lá. Então ele viu o espelho: dois olhos vermelhos cintilantes olhavam diretamente para ele e ali estava e se formava uma imagem. Ele olhou, observando a forma.

De repente, sentiu alguma coisa fria e viscosa em seu pé!

Outro tentáculo nojento havia crescido da criatura pegajosa, subira por sua perna e entrara em sua bota. Seu pé começou a ficar frio. Congelando! Darkmane gritou e tirou o pé. A bota caiu. Mas era impossível livrar-se do tentáculo visguento que puxava e esticava como elástico. Ele o atingiu com sua espada. O golpe cortou o tentáculo em dois novamente e seu pé ficou livre, mas a ponta do tentáculo ainda estava firmemente presa em volta dele e aumentava a pressão. Seu pé estava dormente. Ele o balançou e plantou as duas mãos na bolha efervescente, tentando freneticamente retirá-la.

Finalmente conseguiu tirar a bolha do seu pé e ela caiu ao chão. Novamente as coisas vermiformes saíram de dentro do ferimento. Outro tentáculo emergiu do corpo principal e eles se juntaram. Darkmane não podia sentir o pé, e suas mãos estavam ficando dormentes. A criatura avançava.

— Tolo! você me obedecerá! Largue sua arma. Agora!

A voz estava mais alta. A atenção de Darkmane se voltou para o espelho. Agora havia um rosto em volta dos olhos: um rosto de pele escura e testa alta. Um penacho pontudo de cabelos duros coroava o topo da cabeça da imagem do homem que tomara forma no espelho.

Mas Darkmane sabia que aquilo não era nenhum homem. Ele reconheceu as linhas severas das feições, as orelhas grande e pontudas e os dedos longos e ossudos que terminavam em unhas afiadas como garras. Os lábios finos da criatura se moviam num ritmo curioso, que não tinha qualquer relação com o som produzido por sua boca. Os lábios novamente se curvaram em um sorriso de escárnio e a expressão no rosto do reflexo tomou a aparência te fúria. Aquilo não era nenhum homem.

Aquele era Zharradan Marr.

Por um instante Darkmane ficou aterrado quando olhou nos profundos olhos vermelhos do reflexo fantasmagórico. Outra vez ele se libertou ao retomar a contagem rítmica: — Cinqüenta e cinco cenouras, cinqüenta e seis cenouras.

Darkmane esquecera da massa disforme que agora escorregava em torno de seus dois pés. Chapinhando, gorgolejando e sibilando, a criatura formou em volta dele um círculo tão amplo que lhe impossibilitava dar um passo em qualquer direção sem nele pisar. Ela estava esperando as ordens de Zharradan Marr.

— Largue sua espada. Diga-me quem o enviou. AGORA! Ou sua morte será dolorosa, enquanto minha criatura o congela lentamente!"

Darkmane inspirou profundamente. O que poderia fazer? Um passo na massa borbulhante significaria ter ambos os pés dormentes e inutilizados. Se não fizesse o que Marr ordenava, não seria capaz de escapar quando a criatura apertasse o cerco. Talvez sua causa estivesse perdida - mas se conseguisse mais tempo, talvez sua missão pudesse ser salva, mesmo que isto lhe custasse a vida. Como poderia quebrar o espelho?

Ele relaxou o braço da espada em obediência às ordens de Marr. Sua arma pendia molemente em seus dedos.

— Largue-a. No chão.

Darkmane abaixou a cabeça e deixou os ombros caírem.

Uma ponta de sorriso surgiu nos lábios trêmulos de Zharradan Marr. O humano estava começando a ter bom senso. Era preciso agora descobrir quem o enviara ao Galleykeep.

Mas a submissão de Darkmane era fingimento, apenas parte do seu plano. Num movimento único, agarrou firmemente a espada e levantou o braço para lançá-la! Ele estava realmente largando a arma — mas não a seus pés. Em vez disso, tomava o espelho com alvo! Sua mão se moveu para a frente para jogá-la...

E parou.

Ele estava impossibilitado de largá-la! A magia de Marr o mantinha imóvel!

— Idiota! — sibilou Zharradan Marr. - Se sua escolha é esta, então deve sofrer as conseqüências!''

A criatura rastejante moveu-se rápido. O círculo apertou-se e Darkmane sentiu a substância visguenta em volta dos pés e das pernas, enraizando-o no chão. O toque da criatura era congelante! Ele gritou de dor e largou a espada ao chão. Ela aterrissou na massa gelatinosa e foi engolfada.

— Aaaaaagh! — guinchou Darkmane. Suas pernas estavam congelando e a dor se espalhava. — Chame sua criatura, Marr. Eu lhe direi o que quer saber!

Silenciosamente, Darkmane contava: — Setenta e seis cenouras, setenta e sete cenouras...

Ele procurava ganhar tempo. Apenas mais vinte e três "cenouras" e sua missão seria bem-sucedida.

A criatura gelatinosa se retraiu para longe dele e voltou à posição anterior, circulando-o. Darkmane abaixou-se e esfregou as pernas, tentando restaurar-lhes a circulação e conseguindo fazê-la chegar um pouco aos pés.

— Diga-me quem o enviou. I,

— Eu venho de Salamonis. Onde fica meu lar. É uma bela cidade. Uma onde...

— SILÊNCIO — A voz trovejante de Zharradan Marr o interrompeu. A imagem dele tremeu no espelho, sua fúria era óbvia demais. — QUEM o enviou!

— Meu Senhor é... - Darkmane fingiu relutância, e então gaguejou —... é o Rei Salamon.

Ele estava contando em sua mente: Oitenta e nove cenouras, noventa cenouras...

Os lábios de Zharradan Marr se torceram. — Então você não é um dos guerreiros de Balthus Dire. Diga-me por que veio até aqui. Diga-me quanto está recebendo."

Darkmane não conseguia se concentrar na resposta à pergunta. Suave de ansiedade — mas isso fizera com que recuperasse um pouco da sensibilidade de suas pernas e de seus pés. Ele se remexeu nervosamente e o sangue que afluiu à sua cabeça o fez sentir-se tonto. Tentou concentrar-se e alguns sons sem sentido saíram de sua boca. Tudo o que ele podia ouvir era o som de suas batidas cardíacas cada vez mais alto, e seu único pensamento estava na explosão iminente.

Abriu a boca para falar novamente, mas as palavras que saíram foram pronunciadas involuntariamente:

— Noventa e oito cenouras, noventa e nove cenouras, CEM CENOURAS!

Nada.

Darkmane fitou incrédulo a imagem no espelho. Apesar de estar olhando diretamente para Zharradan Marr, ele sequer o via. O que acontecera?

— O quê? Cem cenouras? Explique-se! Darkmane estava atônito. Alguma coisa dera errado.

Zagor! O tolo! Será que a pólvora dele estava com defeito? Ou será que isso era parte do plano dele? Porém, antes de Darkmane ter tempo de pensar em uma resposta, um figura surgiu na porta e um corpulento Meio-Troll entrou no aposento segurando uma caixa de madeira.

— Lord Zharradan! — falou Thugruff. — Nós encontramos isso no convés. Perto do corpo de Vallaska Roue. Veja! Pólvora!

Ele mostrou o monte de pólvora, o pavio apagado a apenas poucos segundos de explodir.

O coração de Darkmane afundou. Seu plano fora descoberto. E ele fora capturado. O que faria agora?

— Então vemos que nosso visitante estava interessado! — rosnou Zharradan Marr. —O plano dele falhou. E a vida dele deve terminar agora. Pela amurada com ele e sua bagagem. E veremos qual morte o pega primeiro. Cuide disso, Thugruff.

O Meio-Troll sorriu. Ele desenrolou um pouco da corda de sua cintura e caminhou cuidadosamente na direção de Darkmane. Isso divertiria a tripulação no convés. Primeiro ele acenderia o pavio e então empurraria Darkmane pela amurada. Sem dúvida alguma a tripulação adoraria apostar se ele explodiria em pedaços antes ou depois de atingir o chão.

Darkmane estava em estado de choque. Esta seria sua última oportunidade de estar cara a cara com Zharradan Marr. Sua mão demorara demais para agora falhar. E as vidas do povo de Salamonis dependiam dele. O que poderia fazer? Era hora de arriscar tudo.

Quando Thugruff andou para a frente ele agiu. Sua mão direita agarrou a vela, apoiada na parede bem atrás dele, e a jogou sobre a bolha cintilante que o circundava. Como era esperado, a criatura encolheu-se para longe da vela e deu-lhe passagem. Ele pulou dolorosamente sobre os pés dormentes e puxou violentamente o espelho da moldura na parede. O peso era considerável, mas ele estava possuído de uma força sobre-humana. Então deu meia-volta, ficando de frente para a grande janela de observação,

Thugruff foi para a frente com a intenção de interceptá-lo, mas os alcançou justamente quando Darkmane e o espelho estavam passando pelo vidro da janela e mergulhando no ar. O Meio-Troll oscilou na beira, mas só conseguiu evitar que ele mesmo seguisse os dois no espaço.

— Seu TOLO! O que você fez! - A voz de Zharradan Marr, gritando do espelho nas mãos de Darkmane, era frenética. Ele estava preso: se deixasse o espelho, mergulharia para a própria morte. Dentro do espelho ele estava a salvo — apesar de não poder evitar que este se partisse quando batesse no chão — mas seu portal para o mundo material seria destruído.

Darkmane, mergulhando para a própria morte, olhou para os picos dos Rochedos Craggen lá embaixo aproximando-se dele cada vez mais. Ele deu um sorriso. O sorriso foi-se alargando até que se transformou em uma gargalhada.

— Ha-ha-haaaa...

 

O calmo silêncio da Corte Celestial era perturbado à medida que o debate ficava mais exaltado.

Três figuras, sentadas à volta de uma mesa baixa, estavam discutindo arduamente. Uma quarta permanecia, perdida em pensamentos, cocando o queixo e olhando intensamente para a miniatura de paisagem diante dele.

A paisagem — pequena porém extremamente semelhante àquela parte de Allansia em volta do Passo do Trolltooth - era colorida e meticulosamente detalhada. Pequenos grupos de nuvens passeavam no ar em volta das Colinas Moonstone. Uma névoa de poeira pairava sobre Shazâar, o oásis do deserto. A observação de perto mostrava sinais de vida e movimentação. As águas do grande Rio Águas Brancas tremeluziam enquanto a corrente as levava para o mar. Nas cidades de Salamonis e Shazâar, muitos minúsculos pontos negros andavam pelas ruas como se fossem formigas muito pequeninas.

Os olhos de Logaan observaram o campo de batalha. Os restos carbonizados da cidade de Coven eram uma cicatriz negra na paisagem. A cidade de Balthus Dire erguia-se orgulhosamente nas Montanhas Craggen. E um pequenino veleiro podia ser facilmente vislumbrado, pairando no ar sobre os Rochedos Craggen. Ele tinha velas negras.

— O que você diz, Logaan? Qual é o seu julgamento? Como Balthus Dire é o único sobrevivente, eu reclamo a vitória!

O deus velhaco saiu de seu transe e voltou-se para encarar Hashak, o criador.

Antes que pudesse falar, no entanto, Slangg apropriou-se de seus pensamentos.

— Ah! Sobrevivente? Você não pode chamar um mortal preso no mundo espiritual de sobrevivente/ Veja! Eis aqui meu Galleykeep, apenas a poucas horas de distância da Torre Negra. Slangg, deus da malícia, fora até a paisagem sobre a mesa e apontou o galeão do céu em miniatura, pairando sobre as pequeninas montanhas. — Minhas forças são boas e o Galleykeep está intacto. Quando chegarem à Torre Negra, o Meio-Troll tomará o comando e arrebatará o prêmio. A vitória será minha!

— Mas seu necromante se foi, — escarneceu Hashak. - O espelho dele foi destruído. Pode esperar que um Meio-Troll governe mais da metade de Allansia? Não — é claro que não! A criatura é por demais idiota. Lembre-se das regras de combate: a vitória só pode ser reclamada por um guerreiro sobrevivente. Tudo o que preciso fazer é libertar Balthus Dire ao abrir o portal para o plano espiritual...

— NÃO!" Libra, a deusa da justiça, levantou-se. — Você não pode interferir. Nós concordamos. Apenas eu podia ajudar meu guerreiro, já que ele não tinha poderes mágicos. Ou você pretende trapacear para vencer essa contenda?

Os dois deuses olharam para longe. Era verdade; eles haviam concordado com isso: já que tanto Zharradan Marr quanto Balthus Dire tinham poderes de feitiçaria, a Chadda Darkmane era garantida a ajuda de Libra... Mas com algumas restrições e com uma condição: os outros poderiam infiltrar um traidor no grupo dele. E Jamut Mantrapper falhara.

Libra continuou: - A vitória, creio, é minha. Seus guerreiros foram removidos de Allansia. Então as Guerras de Trolltooth estão terminadas. E meu guerreiro salvou Salamonis da ameaça de mais guerras contra as forças do mal. O plano dele teve sucesso.

Logaan ouvira a todos os argumentos. Ele olhou para a mesa diante dele. O Galleykeep saíra de curso e agora estava velejando na direção norte, para os restos da vila de Coven. Ele voltou-se para Libra. — Concordo que suas realizações estão mais próximas das condições de vitória de nossa disputa — começou ele. —, mas lembre-se, também concordamos que uma vitória não poderá ser pronunciada se seu guerreiro tiver morrido. Chadda Darkmane trabalhou muito bem para você. Mas o corpo dele agora está jogado, quebrado, nas Montanhas Craggen. Heigths...

— Não exatamente — sorriu Libra. — Como vocês verão...

Nesse instante, duas figuras surgiram e aproximaram-se da mesa. A figura mais baixa guiava a outra, um homem alto e de ombros largos, com cabelos negros e desalinhados, que evidentemente estava confuso pelos arredores.

O menor dos dois era Telak, deus da coragem -apesar de sua aparência sugerir coisa diferente de seu título grandioso. Telak ainda estava sob seu disfarce terreno: pele escura, com grandes e duas grandes orelhas, cada uma delas ao lado de sua cabeça careca. Seu papel na disputa trouxera-lhe grande prazer e até mesmo - pois esta era uma experiência nova para ele — excitamento.

Ao escolher unir-se ao Chervah ao invés de a um homem, ele descobrira que os pensamentos e perspectivas eram bastante diferentes das de um humano. O Chervah, é claro, não tinha qualquer idéia de que estava sendo o anfitrião de tão ilustre hóspede; ele não sentia nada de diferente. Nem era ao deus permitido ajudá-lo — as regras da disputa o proibiam. Telak fora meramente um observador, sua missão fora simplesmente a de relatar suas observações para Libra.

Telak agora sentia uma estranha afinidade com a criatura - e decidira por enquanto não voltar a seu corpo celestial. Era como se ele se tivesse afeiçoado a uma muda de roupas puída. Apesar do Chervah ter morrido, Telak sentia-se muito feliz em imitar-lhe os maneirismos. Para os outros, seus membros esguios faziam-no quase cômico de observar, enquanto que ele ansiosamente puxava o horrorizado guerreiro até eles.

Libra virou-se para seus oponentes. — Se vocês se lembrarem, as regras da disputa permitiram-me uma última chance para ajudar Chadda Darkmane -, anunciou ela. — Elas proibiam que eu mudasse seu destino na própria Titã. Pois então eu usei esta última oportunidade para pegá-lo no ar e trazê-lo até aqui.

À menção de seu nome, Darkmane voltou-se para o rosto da deusa da justiça. Ele reconheceu o rosto: suave, pele bonita; cachos de cabelos louros cascateando em volta de seus ombros; e dois olhos verde-escuros, da cor da esmeralda. Ele abriu a boca para falar: — Lissami ...

Libra levou um dedo até os lábios e cortou-o. — Não se preocupe, Chadda Darkmane — ela sorriu. — Eu lhe explicarei tudo a seu tempo. Agora, Telak, leve embora nosso guerreiro. Deixe-o descansar. Ele mereceu.

A pequena criatura pegou na mão de Darkmane e os dois retrocederam sob seus passos e se afastaram da mesa.

— Ah, que aventura! — conversava Telak enquanto guiava o guerreiro para longe. - Lembra-se de nossos tempos em Shazâar? E o mercenário? Eu queria avisá-lo sobre ele — mas estava proibido. Diga-me o que aconteceu no estúdio de Zagor depois que aqueles demônios da morte me pegaram... Libra voltou-se para os outros.

— Bem, Logaan? Meu guerreiro ainda está vivo. A disputa acabou. A vitória não é minha.

Logaan assentiu. — Sim. A vitória é sua.

 

                                                                               Steve Jackson 

 

 

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