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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS REGRAS DA SEDUÇÃO / Madeline Hunter
AS REGRAS DA SEDUÇÃO / Madeline Hunter

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Uma sombra penetrou cedo na casa junto com o visitante inesperado. Alexia se sentiu perturbada mesmo antes de ver quem era.
Ela descia a escada carregando sua cesta de costura e parou nos degraus ao notar as vozes que conversavam baixo no hall. Mesmo sem entender direito as palavras, compreendeu o tom firme de quem faz exigências. Percebeu que a forma respeitosa como o empregado se opunha de nada servia. Falkner, o mordomo, foi chamado. Diante de um poder silencioso e determinado, as barreiras da casa cediam.
Um mau pressentimento tomou conta de Alexia, como no dia em que aquele homem havia chegado para contar à família sobre Benjamin. Já tivera essa sensação vezes suficientes para saber que não deveria ignorá-la. Más notícias mudam o mundo em um segundo. Mudam o ar. O coração humano pressente que o sofrimento está chegando com tanta certeza quanto um cavalo percebe uma tempestade que se aproxima.
Não conseguiu se mover. Ia se juntar às primas no jardim, para aproveitar o sol da tarde com sua cesta de costura, mas a ideia lhe fugiu da mente.
Um par de pernas surgiu andando na sua direção. Pernas compridas, calça preta e botas elegantes. Elas seguiram o mordomo rumo à escada. Falkner tinha no rosto a expressão de um serviçal que houvesse recebido ordens de um rei.
O tronco do visitante começou a entrar em seu campo de visão, logo seguido dos ombros e da cabeça. Como se sentisse que alguém o observava, ele olhou para cima, para o patamar onde ela se encontrava.

 

 

 

 

 

 

Imediatamente Alexia entendeu a submissão de Falkner. A atitude, o rosto e o porte do visitante intimidariam até quem não conhecesse sua posição social. O cabelo escuro, desarrumado de um jeito que parecia não ter sido penteado naquela manhã, emoldurava o belo rosto de traços angulares e fortes, como se fossem entalhados. Sinais de cansaço obscureciam o azul profundo de seus olhos. Um autocontrole forçado retesava seu maxilar quadrado e sua boca bem desenhada. Lorde Hayden Rothwell, irmão do quarto marquês de Easterbrook, era a imagem do homem exausto mas determinado a cumprir sua dura tarefa. Certamente não viera em resposta aos muitos convites que Timothy havia deixado para Easterbrook em sua residência ao longo do último ano.

Ao se aproximarem, Falkner cruzou os olhos com os dela, expressando seu desânimo. O mordomo também pressentia a tempestade.

Lorde Hayden parou no mesmo patamar da escada em que ela se encontrava e fez um gesto quase imperceptível, cumprimentando-a. Já haviam sido apresentados, mas ele não lhe dirigiu a palavra. Em vez disso, ao levantar o rosto, mediu-a dos pés à cabeça. A avaliação foi tão completa, tão estranhamente interessada, que ela sentiu que corava.

A expressão daquele rosto anguloso se alterou levemente. Como se uma estátua tivesse ganhado vida, os olhos do homem se suavizaram e sua boca relaxou. De súbito, a compaixão o serenava.

Mas, em um piscar de olhos, seu porte severo voltou, expulsando a candura. Alexia, no entanto, vira o bastante para sentir o coração pesar. Reconheceu pena no olhar que ele lhe dirigira. A chegada desse homem não anunciava nada de bom.

– Está levando lorde Hayden para a sala de visitas ou para a biblioteca, Falkner?

Ela estava sendo indelicada, mas não se importava. Com o passar dos anos, aprendera que imaginar más notícias era pior do que efetivamente ouvi-las. Não tinha a menor intenção de ficar esperando, submissa e preocupada.

– Para a sala de visitas, Srta. Welbourne.

Lorde Hayden percebeu suas intenções.

– Por favor, não perturbe a Srta. Longworth com minha presença. Não se trata de uma visita social.

– Não a incomodaremos se não for seu desejo. Contudo, é possível que demore algum tempo até que o Sr. Longworth possa recebê-lo. Podemos ao menos nos encarregar de que o senhor fique à vontade.

Não esperou por aprovação. Deu meia-volta e foi subindo a escada, indicando o caminho para o segundo andar.

Ao chegar à sala de visitas, deixou a cesta de costura de lado e cuidou para que ele ficasse confortável, conforme prometera. Ainda que ele não quisesse, ela se portaria educadamente, como uma anfitriã.

– O tempo está bastante agradável para janeiro, não acha? – perguntou ela após ele ter concordado em se sentar no sofá novo, de um tecido estampado em tons azuis. – O dia até agora está maravilhoso.

As sobrancelhas dele se arquearam um pouco diante da infeliz ênfase no “até agora”.

– Sim, tem feito um calor atípico nos últimos dias – disse ele.

– Acho dias assim cruéis, por mais que os aprecie.

– Cruéis?

– Eles me fazem acreditar que a primavera está se aproximando, quando ainda teremos alguns meses de frio e umidade pela frente.

Por um segundo, uma luz travessa brilhou nos olhos dele.

– Pode não passar de uma ilusão – falou o homem –, mas prefiro me deleitar nessa calidez e me preocupar com o frio apenas quando ele chegar.

A frase pareceu quase imprópria. Ela mudou de assunto fazendo uma observação sobre os feriados recentes. Ele concordava com tudo o que ela dizia. Com muita dificuldade, ela ia levando adiante a desajeitada conversa.

A mente dele não estava ali, mas na reunião com Timothy. O ar na sala de visitas foi ficando pesado. A presença daquele homem fazia pensar que o juízo final estava próximo.

Ela não aguentava mais.

– Meu primo está doente, lorde Hayden. Talvez não consiga se recompor o bastante para recebê-lo. A conversa não pode esperar mais um dia?

– Não.

Foi tudo o que obteve dele. Essa única palavra, dita de modo simples, direto e firme.

Ele voltou sua atenção para longe da conversa, para o nada. E continuou assim, como antes, na escada. Ela se perguntou se ele a consideraria presunçosa por recebê-lo. Não era a dona da casa, apenas uma mera prima. Mas a culpa não era dela se ele estava confinado ali com uma substituta. Fora ele quem não permitira que Roselyn fosse informada de sua presença.

– Talvez, senhor, se eu levasse uma mensagem para meu primo a respeito de sua visita, ele pudesse...

A voz dela foi se dissipando quando ele a encarou como um vigário faz para silenciar uma criança tagarela na igreja.

Ela não se importou com a expressão em seus olhos, que deixava claro que ele percebera o que ela estava fazendo. Hayden Rothwell tinha a reputação de ser inteligente, ríspido e arrogante. Até o momento, ela não poderia discordar dessa avaliação.

Mas também ela não tivera muito tato ao tocar no assunto. Então tentou uma nova abordagem. Como ele era conhecido por sua sagacidade nos negócios, mudou o rumo da conversa para esse tema, tentando deixá-lo mais receptivo a outras perguntas.

– Teve alguma notícia do centro financeiro hoje, lorde Hayden? A crise nos bancos continua?

– Temo que permanecerá por algum tempo, Srta. Welbourne. É de se esperar quando as pessoas têm medo.

– O senhor tem negócios com o banco do meu primo, não é verdade? Está tudo bem por lá, espero.

– Há uma hora, quando saí do centro financeiro da cidade, o Darfield e Longworth permanecia sólido.

– Graças a Deus. Não houve uma corrida ao banco, então. Com tantas outras instituições passando por problemas, fiquei preocupada.

Uma sombra perceptível em seu olhar demonstrava que ele parecia se divertir.

– Não, não houve corrida ao banco.

Isso a aliviou. Várias das grandes instituições financeiras londrinas tinham enfrentado dificuldades no mês anterior. Os jornais estavam cheios de boatos sobre a quebra de pequenos bancos. Aonde quer que se fosse, só se falava em fracasso, ruína e falência. Ela suspeitava de que a atual doença de Timothy se devesse à preocupação com o futuro de seu banco.

– A senhorita tem dinheiro lá? – questionou, parecendo realmente interessado.

– Uma ninharia. Minha preocupação é com meus primos.

Ela conseguira atrair sua atenção com as perguntas sobre a situação financeira do banco. Até bem demais. Ele a olhou de novo, mais demoradamente dessa vez, com uma arrogância casual que demonstrava que ele se sentia nesse direito, algo que homens em posição inferior não ousariam. Aquela avaliação só seria feita por um homem que tivesse plena consciência de seu valor e que, por isso, dispensava algumas regras de etiqueta.

A atenção dele se concentrou intensamente nos olhos dela, observando-a de forma tão perspicaz que ela precisou piscar para se recompor. Lenta e deliberadamente, ele analisou o restante do corpo de Alexia. Ela enrubesceu e uma comichão desconfortável percorreu toda a sua pele. Ele a perturbou de tal maneira que lhe fez lembrar a sensação causada anos atrás pelo olhar de outro homem.

Ficou embaraçada diante da própria reação. Não se julgava alguém que se deixasse abalar por um homem bonito. Não era tola como a jovem Irene. Em silêncio, se censurou por agir como uma solteirona ávida pela atenção de um homem.

Nada na expressão dele indicava que houvesse notado o desconforto dela. Nem ela teve qualquer ilusão de que o interesse do homem fosse desse tipo. Ela sabia o que ele estava pensando. Com seu cabelo castanho e o rosto comum, ela não causava grande impressão. Sem dúvida ele também percebera como os módicos recursos financeiros afetavam sua aparência. Seu vestido não só estava fora de moda como também tinha discretos remendos. O lorde provavelmente estaria vendo cada ponto deles.

– Srta. Welbourne, creio que fomos apresentados no culto a Benjamin – disse ele. – A senhorita é a prima que veio de Yorkshire, não?

Seu orgulho foi atingido por um doloroso golpe. Ele não sabia quem ela era ao entrar naquela sala de visitas. Se não lembrava que já haviam sido apresentados, ele deveria achar incomum o fato de tê-lo recebido, assim como certamente a considerara bastante ousada em sua conversa.

O choque foi seguido pela irritação. A raiva que sentia não era dele, apesar de abrangê-lo mesmo assim, mas tinha origem na situação que a tinha tornado tão esquecível.

– Sim, nos conhecemos no culto em homenagem a Benjamin.

O nome e a lembrança fizeram ecoar uma antiga dor. Tinha sido um culto, não um funeral. O corpo de Benjamin não estava presente, mas perdido no mar. Fazia quatro anos que ele partira da Inglaterra e ela ainda sentia sua falta.

De repente, lorde Hayden não pareceu tão rígido. Uma expressão mais sociável suavizou suas feições belamente esculpidas.

– Eu o tinha como um amigo – disse ele. – Nós nos conhecemos na infância. Sua casa não fica longe das terras de Easterbrook em Oxfordshire.

Timothy sempre mencionava os laços entre Easterbrook e sua família, devidos ao fato de serem vizinhos. Não era uma ligação tão próxima a ponto de que respondessem aos convites de Timothy, é claro. No entanto, se a amizade tinha sido entre Benjamin e Hayden Rothwell, isso explicava algumas coisas, como o motivo da presença de lorde Hayden no culto.

– O senhor também lutou na Grécia, não? – perguntou ela, feliz por tocar em um assunto que o deixava menos severo e que mencionava o querido Benjamin.

– Sim, fui um dos admiradores da Grécia que aderiu à causa deles contra a Turquia. Participei da guerra no início, na mesma época que seu primo. Mas, ao contrário dele e de Byron, tive a sorte de sair vivo dessa aventura.

Ela imaginou Benjamin, sempre otimista, um homem tão cheio de vida e alegria que isso o tornava imprudente. Viu-o lutando como um herói pela liberdade do povo, tendo atrás de si a paisagem de um antigo templo nas montanhas. Ela cultivava essa imagem dele. Como lorde Hayden tinha estado lá com Benjamin, ela já não se importava tanto que ele a tivesse olhado dos pés à cabeça.

Ele estava fazendo de novo, só que agora não era seu vestido que analisava. Era seu rosto e... ela.

– Perdoe-me, Srta. Welbourne. Não quero parecer inconveniente, mas seus olhos têm uma cor incomum. Parecem violeta. É a luz aqui ou já lhe disseram isso antes?

– Não é a luz. A cor dos meus olhos é a única característica marcante que possuo.

Ele não discordou, o que ela considerou deselegante. Ele refletiu sobre a resposta dela e sobre a sua própria.

– Ele falou da senhorita com respeito e afeição. Benjamin, na Grécia. Não disse seu nome. Olhos violeta, no entanto... lembro-me dessa referência. Não percebi no culto que seus olhos tinham essa cor ou teria lhe dito, o que poderia ter-lhe trazido algum consolo naquele momento.

O coração dela se inundou com uma emoção suave e perfeita, apesar da dolorosa saudade que a provocara. Mal pôde se conter e seus olhos se umedeceram. Benjamin falara dela nos dias antes de sua morte. Fizera confidências a esse homem sentado com ela na sala de visitas. Lorde Hayden sabia de seu amor e de seus planos. Alexia tinha certeza disso.

Não ligava mais para o motivo que o trouxera ali. Sua gratidão pela pequena indicação de que Benjamin realmente gostava dela, de que pretendia se casar com ela, foi tão intensa que Alexia seria capaz de perdoá-lo por qualquer coisa naquele instante.

Passou a encará-lo de forma mais amigável. Tratava-se de um belo homem, agora que se permitia reparar. Não era totalmente rígido também. A dureza em volta da boca era culpa das características de sua família. Não se podia culpá-lo se seus ossos lhe davam uma aparência severa em vez de alegre.

– Obrigada por me contar isso. Ainda sinto muitas saudades de meu primo. Emociona-me saber que ele pensava em mim quando estava distante.

Desejou que ele repetisse as palavras exatas que Ben tinha dito. Mas, se ele pretendera fazê-lo, suas intenções foram frustradas. Timothy escolheu aquele exato momento para surgir na sala de visitas.

Timothy parecia bastante adoentado, com o rosto vermelho e os olhos apáticos. Alexia se perguntou se ele não estaria febril. Contudo, seu criado o deixara apresentável, com seu cabelo cor de areia e rosto ansioso despontando sobre casacos e colarinho que demostravam sua tendência a certa extravagância no vestir.

– Rothwell.

– Obrigado por me receber, Longworth.

Alexia se levantou de imediato, despedindo-se. Seu coração ainda estava repleto de felicidade por saber que Benjamin mencionara seus olhos aos seus amigos solteiros na Grécia. Todavia, não conseguia ignorar que um clima de más notícias iminentes impregnara a atmosfera da casa.


Segurando sua cesta, Alexia adentrou o jardim para se juntar às primas. A beleza da hera e do buxo não chegava aos pés de sua exuberância nos dias gloriosos de verão, mas o sol espantava o pior do frio e a falta de vento tornava o jardim um local hospitaleiro.

Roselyn e Irene aguardavam à mesa de ferro, com dois chapéus e sacolas com fitas e aviamentos. Alexia decidiu não mencionar o visitante. Talvez o mau pressentimento que ainda pairava em sua alegria recente fosse apenas uma impressão passageira.

– Você demorou – reclamou Irene, segurando um dos chapéus. – Ainda acho que este aqui não tem salvação e que deveria comprar um novo. Timothy disse que eu poderia.

– Nosso irmão é gastador demais – disse Roselyn. – Se não quisermos que sua apresentação à sociedade nos leve à falência, teremos que ser mais controladas.

– Não é Timothy quem fala em controlar o dinheiro, só você. Nem terei uma grande apresentação, não importa quantos chapéus eu compre – falou e um tom petulante surgiu em sua voz: – Não serei convidada para os melhores bailes. Todos os meus amigos já disseram isso.

– Pelo menos você terá uma apresentação – disse Roselyn. – Certamente é melhor ser irmã de um banqueiro importante do que de um proprietário rural empobrecido. Deveria agradecer a Deus por nossos irmãos terem investido nesse negócio. Se voltássemos para Oxfordshire, você se contentaria com um chapéu novo por ano e o escolheria com mais zelo, em vez de comprar três que não combinassem com você.

Alexia se sentou entre elas, tentando encerrar a discussão. Sendo a mais nova das irmãs Longworths, Irene não entendia a boa sorte que lhes coubera quando, oito anos antes, seu irmão Benjamin decidira investir no banco. A garota só via o que tinha perdido em termos de status, o que não contrabalançava com o luxo que ganhara.

Roselyn, agora com 25 anos, se lembrava muito bem do tempo em que haviam sido obrigados a vender as terras da família em Oxfordshire por causa de dívidas. Em função disso, ela não tivera uma apresentação formal aos homens solteiros na juventude e agora suas chances de se casar eram mínimas. Quando o recente sucesso do banco produziu uma longa fila de pretendentes, ela se mostrou descrente e exigente demais. Alexia suspeitava de que Roselyn se ressentia de que o interesse por ela só surgira após o enriquecimento da família.

– Podemos trocar a fita de cetim rosa por essa amarela – disse Alexia. – E olhe aqui, posso aparar as bordas, para deixar o arco mais perto do seu rosto.

– Vou odiar. Não gosto de chapéus reformados, mesmo que a reforma seja feita por alguém tão habilidoso como você. Fique com ele, se quiser. Pode ficar com o vestido que faz conjunto com ele também, então não terá mais que usar este de cintura alta. Vou avisar à minha criada que ele vai ficar para você, assim ela não o pedirá.

Alexia olhou fixamente para o conjunto de fitas brilhantes e coloridas que cintilava à luz do sol. Irene não era cruel por natureza, apenas jovem e, devido à mão aberta de seu irmão, mimada.

Um silêncio pesado pairou no ar. Irene pegou o chapéu, o avaliou com atenção e o jogou no chão.

– Peça desculpas – ordenou Roselyn em tom ameaçador. – Não vou pensar duas vezes antes de mandá-la morar no interior. Londres está virando sua cabeça e isso não é nada admirável. Está se esquecendo de quem é.

– Ela não está se esquecendo de nada – disse Alexia em um rompante.

Logo em seguida desejou não ter dito aquilo, mas não conseguira conter sua mágoa e seu ressentimento. Respirou fundo, com calma.

– Eu também não me esqueço de quem sou. Só você, por ser tão boa. Todos sabem que dependo desta família, que sou uma parenta pobre que deveria ficar grata por receber aquilo que minhas jovens primas jogam fora. Cada garfada que como é fruto da caridade de seu irmão.

– Oh, Alexia, eu não quis dizer isso... – falou Irene com o rosto contorcido de arrependimento.

– Não é verdade – replicou Roselyn para Alexia. – Você é uma de nós.

– É verdade. Concordei com esta situação anos atrás. Não me importo.

O fato era que se importava. Tentava ignorar, mas isso a desgastava. A humildade e a gratidão que sua situação exigia às vezes lhe escapavam, principalmente porque de início não se sentira obrigada a tê-las.

Sua mudança fora inevitável quando a propriedade da família passou para um primo de segundo grau. Não houve convite para viverem com esse herdeiro, como seu pai supusera. Assim, com 18 anos recém-completados, Alexia fora forçada a escrever para os Longworths, primos pelo lado de sua mãe, pedindo que a deixassem morar com eles. Não levara nada consigo além de vinte libras por ano e seu talento para reformar chapéus.

Benjamin, o primo mais velho, nunca permitira que ela se sentisse um problema para a família, apesar de sua chegada haver coincidido com o início de um novo empreendimento dele, que lhe deixara pouca folga nas despesas daquele primeiro ano. Com o sorriso largo e o bom humor de Benjamin, ela jamais sentia que devesse se mostrar apenas discreta e obediente. Mas depois da morte dele, a realidade de sua dependência ficara clara. Ben dava a ela os mesmos cuidados que oferecia a suas irmãs, ao passo que Timothy a enxergava com outros olhos. Agora ela não passava de conselheira nas visitas às modistas de Londres. Timothy a via como o fardo que ela era, enquanto Benjamin a vira como...

Uma memória de amor cuidadosamente preservada, um eco de emoção profunda e pungente, fez seu coração doer. Ele a vira como uma prima querida e uma cara amiga, o que no último ano tinha evoluído para algo mais. Se o que lorde Hayden dissera era verdade, então ela não se enganara. Se Ben tivesse voltado da Grécia, teria se casado com ela.

Pegou o chapéu.

– Obrigada, Irene. Vou ficar feliz em usá-lo. Pensando melhor: fita azul. Nem rosa nem amarelo vão tão bem com minha cor de cabelo e o tom de minha pele.

Roselyn cruzou os olhos com os de Alexia como que se desculpando. Alexia respondeu também com o olhar: Nasci filha de um cavalheiro, mas aqui estou, com quase 26 anos, sem dinheiro nem futuro. É assim que o mundo funciona. Não tenha pena de mim, eu lhe imploro.

– Quem está lá? – perguntou Irene, interrompendo a conversa silenciosa. – Lá em cima, na janela da sala de visitas.

Roselyn se virou a tempo de ver o cabelo escuro e os ombros largos antes que o homem se afastasse do vidro.

– Temos visita? Falkner deveria ter me chamado.

Alexia começou a retirar a fita rosa.

– Ele pediu para se encontrar com Timothy e não quis que você fosse incomodada.

– Mas Timothy está doente.

– Ele se levantou da cama mesmo assim.

Alexia sentiu a atenção de Roselyn sobre ela enquanto se ocupava do chapéu.

– Quem é? – perguntou Roselyn.

– Rothwell.

– Lorde Elliot Rothwell, o historiador? O que é que ele...

– O irmão dele, lorde Hayden Rothwell.

Os olhos de Irene se arregalaram. Ela deu um pulo e bateu palmas.

– Ele está aqui? Acho que vou desmaiar. Ele é tããão atraente.

Roselyn franziu a testa e olhou para a janela.

– Ai, meu Deus!


– Você andou bebendo, Longworth – disse Hayden. – Está sóbrio o suficiente para ouvir e se lembrar do que vou dizer?

Longworth se espalhou confortavelmente no sofá azul.

– Sóbrio até demais.

Hayden examinou Timothy Longworth. Sim, estava sóbrio o bastante, o que era bom, já que o que tinha para lhe dizer não poderia esperar. A chance de sucesso do plano diminuía a cada hora que passava.

– Passei os últimos dois dias com Darfield, enquanto você se escondia em sua cama, bebendo – disse ele. – O banco pode sobreviver à crise atual, se você seguir minhas instruções.

– Eu disse a Darfield que sobreviveria. Ele é covarde como uma velhota e teme que as reservas estejam muito baixas, mas eu lhe garanti nossa solidez.

– Só sobreviverá porque tomei ontem a decisão de manter os depósitos da família com você. Isso bastou para deter uma corrida ao banco que começou esta manhã.

– Houve uma corrida? – perguntou Longworth, tendo a decência de parecer preocupado. – Eu deveria ter estado lá, sei disso.

– É lógico que deveria.

– Mas o pior já passou, não é verdade? O perigo foi evitado, como disse.

– Por pouco. Apesar de ter vencido as dificuldades hoje, o banco está em sério perigo. Além disso, estou reavaliando minha decisão. É uma escolha difícil, porque, se eu tirar o dinheiro da família, o banco vai à falência. Se isso acontecer, você vai para a forca.

Longworth ficou quieto, uma estátua feita de indiferença.

Hayden não gostava da ideia de estar metido com Timothy Longworth. Tinha sido para ajudar um bom amigo que ele havia assegurado o crescimento do banco com títulos e dinheiro da família. Não se sentia obrigado a salvar o pescoço do irmão mais novo dele.

Longworth abriu um sorriso largo. Isso o fez parecer mais com Benjamin, apesar de mais claro, um contraste com os olhos e o cabelo escuros de Ben. Era uma semelhança que Hayden preferia não perceber naquele momento.

– É claro que deve estar falando metaforicamente quando diz “forca”. Apesar de “arruinado” não ser muito melhor do que isso, não é a morte.

– Quando digo “forca”, é isso que quero dizer. Cadafalso. Nó corrediço. Morte.

– Bancos abrem falência o tempo todo. Cinco faliram nos últimos quinze dias só em Londres e dezenas no interior. Não é crime. É o que acontece nas crises financeiras.

– Não é a falência do banco que vai levá-lo à cadeia, mas o que a contabilidade revelará depois.

– Nada me compromete, posso garantir.

A paciência de Hayden se esgotou rápido. Tinha passado a noite em claro ao lado de Darfield, tentando pôr ordem na bagunça oculta da contabilidade do banco. A fúria que ele contivera a duras penas quando descobrira o pior agora ameaçava romper as frágeis paredes que a controlavam.

– Decidi deixar o dinheiro da família com você, Longworth, mas estou preocupado com minha tia e a filha dela. Os 3% delas é tudo o que têm e elas dependem desses rendimentos. Como seu administrador, não poderia pôr isso em risco. Então, essa parte, essa pequena parte, eu decidi sacar.

Longworth ergueu a cabeça como se essa introdução não lhe dissesse nada, mas o primeiro sinal de pânico faiscou em seus olhos.

– Imagine o meu choque quando vi que os títulos da dívida pública delas tinham sido vendidos e que minha assinatura, como administrador de minha tia, tinha sido falsificada para isso.

Gotas de suor surgiram na testa de Longworth.

– Espere um instante. Está insinuando que eu falsifiquei...

– Tenho provas de que você, por várias vezes, cometeu o crime de falsificação de documentos. Você forjou assinaturas para vender títulos também. Depois continuou a pagar os rendimentos, para que ninguém suspeitasse, mas roubou dezenas de milhares de libras.

– Roubei coisa nenhuma! Estou chocado e ofendido com essa notícia. Darfield é quem deve ter feito isso.

Hayden partiu para cima de Longworth e o agarrou pelo colarinho, suspendendo-o do sofá.

– Não ouse manchar a honra daquele bom homem. Juro que, se mentir para mim agora, vou lavar as mãos e deixá-lo ir para o buraco.

Longworth levantou os braços para cobrir o rosto, protegendo-se do golpe que previa. O medo dele ao mesmo tempo deteve Hayden e lhe causou repugnância. Jogou Longworth de volta no sofá.

Timothy se curvou com o rosto nas mãos. Um silêncio pesado perpassou a sala, carregado da raiva de Hayden e do desespero palpável de Longworth.

– Você contou a alguém?

A voz de Longworth falhou de emoção.

– Só Darfield sabe e ele teme o que isso possa causar aos outros bancos, levando em consideração o clima atual no centro financeiro de Londres.

Hayden havia imaginado esse horror muitas vezes nos últimos dois dias. Os títulos – sólidas apólices que eram a base do crédito e da geração de rendimentos de mulheres leigas e seus filhos – eram supostamente seguros. Os bancos somente os mantinham pelos clientes. Não se pressupunha jamais que o dinheiro ficasse vulnerável.

Timothy Longworth rompera uma confiança sagrada ao falsificar assinaturas e se apossar desse capital. Se isso viesse a público, o pânico atual seria multiplicado por dez.

– O que lhe passou pela cabeça, Longworth?

– Fiz isso pelo banco. Estávamos vulneráveis, com as reservas baixas demais. Fiz isso para proteger os depósitos...

– Mentira! – Hayden só percebeu que havia gritado porque Longworth se sobressaltou. – Você fez isso para comprar esta casa, este casaco e as carruagens que servem para você passear com sua amante cara.

Timothy começou a chorar. Envergonhado pelo outro, Hayden se virou e olhou pela janela.

No jardim, um par de olhos violeta se voltou na sua direção, depois retornou para as fitas e a palhinha. Olhos como violetas em sombra fresca e de formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Era assim que Benjamin descrevera a Srta. Welbourne, em uma noite de embriaguez na Grécia. O tom não fora totalmente respeitoso, mas havia afeição em sua voz, então Hayden não mentira para ela. Contudo, ao ver a reação da moça – os olhos rasos d’água e como seu rosto se suavizou de forma tão doce –, desejou não ter dito nem uma palavra.

Não era um rosto belo, mas os olhos tornavam isso irrelevante. Sua cor incomum cativava primeiro, depois se notava como eles refletiam uma alma intensa e uma mente inteligente. Mostravam também experiência, como se aquela mulher compreendesse bem demais as realidades da vida. Ao se sentar sob a contemplação implacável daqueles olhos, ele se esquecera por alguns minutos da horrível missão que o trouxera àquela casa.

Uma boca que parece uma rosa, com néctar tão doce. Aparentemente, Ben tinha tocado em mais do que o coração da Srta. Welbourne. Não era nem um pouco de surpreender. Um homem cheio de vida como Benjamin Longworth conseguia mexer com muitas mulheres.

Roselyn e Irene Longworth, irmãs de Benjamin, estavam sentadas ao sol com a Srta. Welbourne. A mais velha era uma bela mulher de pele clara, cabelo louro-escuro e rosto doce. Destacava-se por sua beleza, mas era muito orgulhosa. O cabelo da mais nova era longo e claro; o corpo, esguio e o jeito, ainda infantil.

Sentiu alguém de pé ao seu lado. Longworth havia se levantado do sofá. Também observava as três moças no jardim.

– Ai, meu Deus, quando elas ficarem sabendo...

– Juro que elas nunca saberão a verdade da minha boca. Se conseguirmos salvar seu pescoço, você poderá contar quantas mentiras quiser. Um falsificador e ladrão deve ser capaz de inventar umas boas.

– Salvar, me salvar? Mas há uma forma? Obrigado, de qualquer jeito... Como quer que seja...

Hayden esperou enquanto Longworth se recompunha.

– Quanto, Longworth?

Ele deu de ombros.

– Umas vinte mil libras, talvez. Não fiz de propósito. De verdade. Na primeira vez, deveria ter sido um empréstimo de pouco valor, para cobrir uma dívida inesperada...

– Não quero saber quanto você roubou, mas quanto tem.

– Quanto eu tenho?

– Sua única chance é cobrir tudo, cada centavo. Com o que tiver e com as notas promissórias que assinar.

– Isso significaria contar a todos!

– Se eles não sofrerem prejuízos...

– Bastaria um deles dar com a língua nos dentes para eu ir...

– Para a forca. Sim. Uma fraude já seria o bastante. Você terá de confiar que o reembolso os satisfará e que eles entendam que só mantendo-se em silêncio poderão reaver o dinheiro. Posso falar por você e isso talvez ajude.

– Pagar a todos? Vou ficar falido. Totalmente falido!

– Mas vai escapar vivo.

Longworth agarrou o peitoril da janela para controlar a tontura. Olhou para fora de novo e seus olhos se umedeceram.

– O que vou dizer a elas? E Alexia... Se ficarmos reduzidos à renda dos aluguéis rurais, se eu tiver que pagar as dívidas tirando recursos deles também, não poderei mais sustentá-la.

Diante de mais um pensamento terrível, seu rosto desabou. Hayden imaginou o motivo:

– Você roubou os míseros recursos dela também? Não verifiquei as contas menores.

Longworth enrubesceu.

– Você não passa de um canalha, Longworth. Ajoelhe-se e agradeça a Deus por eu ter uma dívida de gratidão e honra com seu irmão.

Timothy não estava mais ouvindo. Seus olhos se anuviaram ao pensar no futuro.

– Irene ia ser apresentada à sociedade e...

Hayden não deu ouvidos aos lamentos do outro. Imaginara uma forma de salvar a vida de Longworth e evitar revelações que deixariam o atual pânico fora de controle. Mas não poderia poupar Longworth da ruína que essa solução geraria.

Passara a noite em claro fazendo cálculos e pensando nas consequências morais do caso. De repente uma profunda exaustão tomou conta dele.

– Sente-se – ordenou ele ao dono da casa. – Vou lhe dizer a quantia necessária e definiremos como você irá devolvê-la.


CAPÍTULO 2

Falido.

A palavra pairou no ar. A sala ficou em silêncio.

O sangue de Alexia congelou nas veias. Tim parecia muito doente agora. Ele se recolhera a seu quarto após a saída de lorde Hayden, mas se levantara da cama novamente de noite. Mandara chamá-la e a suas irmãs na biblioteca e lhes informara do desastre.

– Mas como, Tim? – perguntou Roselyn. – Um homem não vai disto – ela fez um gesto mostrando a exuberância da casa ao redor – à pobreza em um dia.

Os olhos dele se estreitaram e a amargura endureceu sua voz.

– Isso acontece se lorde Hayden decidir que sim.

– Lorde Hayden? O que ele tem a ver com isso? – perguntou Alexia.

Timothy olhou fixo para o chão. Parecia sem forças.

– Ele retirou o dinheiro de sua família do banco. Nossas reservas não foram suficientes para compensar a retirada e tive que penhorar tudo o que tenho. Darfield também terá de fazer isso, mas ele possui mais dinheiro do que eu. Ele pagou parte das minhas obrigações e, em troca, ficou com a minha cota no banco. Ainda assim, não foi suficiente.

Alexia controlou a fúria que fervia dentro dela. Que diferença faria para Rothwell onde todo aquele dinheiro ficava? Ele tinha que ter percebido o que isso causaria a Timothy, a todos eles. Havia entrado naquela casa ciente de que destruiria o futuro dos Longworths.

– Vamos dar um jeito – disse Roselyn, com firmeza. – Sabemos como levar uma vida mais simples. Vamos dispensar alguns empregados e comeremos carne somente duas vezes por semana. Vamos...

– Você não ouviu? – rosnou Timothy. – Eu disse que estou falido. Não haverá empregados, nem carne alguma. Não tenho nada. Não temos nada.

Roselyn o encarou, boquiaberta. Irene, que ouvia com expressão confusa, teve um sobressalto como se alguém a tivesse esbofeteado.

– Isso quer dizer que não vou ser apresentada à sociedade?

Timothy deu uma risada cruel.

– Querida, você não pode ser apresentada à sociedade londrina se não estiver em Londres. O canalha está tomando esta casa. Ela pertence a Rothwell agora. Vamos voltar para o pouco que temos em Oxfordshire e morrer à mingua por lá.

Irene começou a chorar. Roselyn ficou muda com o impacto da notícia. A gargalhada de Timothy foi se transformando em algo entre um cacarejo e um choramingo.

Alexia sentiu o medo se apoderar dela. Timothy não olhara para ela uma vez sequer desde que entrara na sala. E evitava seu olhar agora. Um pânico silencioso tamborilava em seu peito, querendo se avolumar.

Roselyn recobrou a voz:

– Timothy, podemos viver no campo de novo. Ainda temos a casa e algumas terras. Não será ruim. Nunca passamos fome.

– Será pior do que antes, Rose. Terei dívidas a pagar. Boa parte dos aluguéis irá para isso.

O tamborilar acelerou, espalhando-se por suas veias. Sentia calor e frio alternadamente. O destino que temia desde a morte do pai finalmente a encontrara. Era com dificuldade que mantinha a compostura.

Ela não deixaria Timothy pronunciar sua sentença com todas as palavras. Seria injusto e uma péssima retribuição à família que lhe tinha dado um lar.

Levantou-se.

– Se sua situação vai mudar de forma drástica, não precisarão do fardo de ter mais uma boca para alimentar. Tenho algum dinheiro guardado que poderá me manter até encontrar um emprego. Vou me recolher ao meu quarto para permitir que conversem abertamente sobre seus planos.

Os olhos de Roselyn se umedeceram.

– Não seja boba, Alexia. Seu lugar é conosco.

– Não estou sendo boba, estou sendo prática. Não vou forçar Timothy a dizer que devo ir embora.

– Diga-lhe que não tem que ir, Tim. Ela é tão sensata que vai ser uma ajuda, não um fardo. Ele não quer que você nos deixe, Alexia.

Timothy não respondeu. Nem levantou os olhos.

– Timothy – chamou Roselyn, em tom de repreensão.

– Gastarei tudo o que tenho para manter vocês duas, Rose – disse ele, finalmente se voltando para Alexia. – Sinto muito.

Alexia forçou um sorriso trêmulo e saiu da biblioteca. Fechou a porta atrás de si, deixando Irene e Roselyn aos prantos e Timothy envergonhado. Subiu as escadas correndo e maldizendo, a cada degrau, o homem responsável por aquela tragédia.

Hayden Rothwell era um canalha. Um monstro. Era um daqueles homens que viviam no luxo e destruíam a vida dos outros em um piscar de olhos. Ele não precisava ter retirado todo o dinheiro de uma só vez. Era tão duro e frio como parecia. Não tinha compaixão: esmagaria pessoas sob as botas, se desejasse. Ela o odiava.

Jogou-se na cama e enterrou o rosto no travesseiro de penas, onde destilou todo o seu veneno em Rothwell enquanto chorava. Estava tomada pelo pânico.

Falida. Não podia crer que estava passando por isso de novo. Seu pai falira dois anos antes de morrer. Muito provavelmente tinha sido esta a razão pela qual não fora acolhida por seu herdeiro. O destino agora lhe pregava uma peça estúpida, fazendo-a reviver toda a preocupação e o medo de antes.

A duras penas, foi tentando novamente se centrar. Já havia se perguntado algumas vezes o que faria caso se encontrasse naquela situação. Sempre soubera que isso poderia acontecer. Desesperada, procurou se lembrar dos planos feitos naquelas noites terríveis quando, no escuro, a precariedade da situação em que vivia se avultava sobre ela.

Poderia virar preceptora, se conseguisse boas referências. Tinha linhagem e educação para isso, ainda que tal função oferecesse uma vida horrível.

Também poderia procurar trabalho em uma chapelaria. Tinha jeito para fazer chapéus e gostava dessa atividade. Só que trabalhar em uma loja desse tipo seria a pior das humilhações. Não nascera para essas coisas, mesmo que essa ideia tivesse mais apelo do que ficar presa dia e noite cuidando da filha de outra mulher.

Também poderia se casar, apesar de no momento não ter pretendentes. Ela nem sequer pensara nisso depois de Benjamin. Seu coração era dele e sempre seria. A menina escondida em sua alma encarava com pesar a ideia de casar-se em troca de segurança. Depois de ter conhecido um grande amor, um casamento assim seria horrível. Contudo, sem beleza nem fortuna para atrair um marido, aquele era um assunto com que muito provavelmente não teria de lidar.

Enumerar opções lhe deu um pouco de confiança, ainda que baseada em cenários que não a agradassem tanto. Contava com vinte libras por ano e não iria morrer de fome. Poderia construir seu futuro se deixasse de lado o orgulho. Na verdade, tinha bastante experiência nesse campo.

Olhou em volta do quarto, para os móveis, à luz difusa da lamparina. Não era um cômodo grande. Nem tinha os tecidos luxuosos dos quartos de Irene e Roselyn ou as cadeiras e camas novas que elas haviam comprado no ano anterior. Mas era o seu espaço e tinha sido seu lar desde que Tim se mudara com elas de Cheapside, logo depois de Ben zarpar para a Grécia, fazia quatro anos.

Fechou os olhos e se perguntou quanto tempo demoraria até que Hayden Rothwell a jogasse no olho da rua.


Três dias depois, Alexia estava sentada na sala de café da manhã, lendo os anúncios no Times. A casa reverberava de silêncio. Não que os empregados antes fizessem barulho, mas sua ausência era perceptível. Somente Falkner permanecia, enquanto procurava outro emprego apropriado. Ela podia ouvi-lo na sala de jantar, embalando as porcelanas que Timothy tinha vendido na véspera.

Muito pouco dos luxos adquiridos nos últimos anos voltariam para Oxford-shire com suas primas. Rothwell ficaria com os móveis. Tudo o mais seria vendido. Naquele exato momento, os homens estavam na cocheira negociando o preço das carruagens.

Roselyn entrou no cômodo e se sentou ao lado de Alexia, que serviu café para as duas.

– O que está lendo? – quis saber Roselyn.

– Quartos para alugar.

– Piccadilly não seria ruim, se não fosse tão longe.

– Acho que não terei como evitar ficar longe, Rose.

Rose tinha a aparência de uma mulher que havia chorado um mês sem parar. As olheiras e o vermelho dos olhos eram evidentes.

– Deveria ter me casado com um daqueles homens interessados no meu dinheiro. Teria sido bem feito para eles meu irmão ficar em tantas dificuldades a ponto de precisar vender as vasilhas de metal. Até as vasilhas, meu Deus!

Alexia não conteve uma risada. Roselyn riu também. As duas riram até lágrimas rolarem pelas faces.

– Oh, céus, como é bom rir – disse Rose, sem fôlego. – É tudo tão dramático que chega a ser ridículo. Fico esperando Tim vender minha camisola enquanto durmo.

– Espero que ele não esteja acompanhado por um oficial de justiça nesse dia. Daria ainda mais motivo de fofoca para toda a cidade.

Roselyn riu de novo, com ar triste.

– Vou sentir sua falta, Alexia. O que vai fazer?

– Pedi uma carta de referência à Sra. Harper, já que ela é, das suas amigas, a que me conhece melhor. Procurei uma agência de empregos e me candidatei a vagas de preceptora. Espero que seja aqui na cidade mesmo.

– Você tem que nos mandar notícias de onde estiver, sempre. E prometer que vai nos visitar.

– É claro.

Os olhos de Rose se encheram de lágrimas. Ela abraçou Alexia vigorosamente. Enquanto aproveitava o carinho que logo não mais teria, Alexia viu Falkner chegar à soleira da porta.

– O que foi? – perguntou.

Falkner olhou para ela com o mesmo olhar de três dias atrás. O olhar que dizia que uma tempestade se aproximava.

– Ele está aqui. Lorde Hayden Rothwell. Pediu para ver a casa.

Do jeito que Falkner torceu o nariz, Alexia suspeitou que Rothwell não tivesse “pedido” coisa alguma.

– Não o receberei – disse Rose. – Mande-o embora.

– Ele não perguntou pela senhorita, mas por seu irmão, que saiu. Então pediu que eu lhe mostrasse onde esperar.

– Diga-lhe que não. Eu o proíbo. Logo a casa será toda dele – gemeu Roselyn.

O prazo para entrega da casa não fora determinado, o que era motivo de preocupação para Alexia.

– Você não está sendo sensata, Rose. Não vale a pena enfurecer o homem neste momento. Nem é obrigação de Falkner nos servir. Vou atender o visitante para lhe poupar o trabalho.


Lorde Hayden esperava no hall, rodeado por paredes que já se encontravam despidas de quadros. Quando Alexia entrou, ele estava inclinado, examinando uma mesa de canto marchetada, sem dúvida calculando seu valor.

Ela não esperou por sua atenção nem por suas saudações.

– Senhor, meu primo Timothy não está na propriedade. Creio que esteja cuidando da venda dos cavalos. A Srta. Longworth está indisposta. Posso ajudar no assunto que o trouxe aqui?

Ele se aprumou e voltou seu olhar para ela. A contragosto, ela admitiu que ele estava maravilhoso naquele dia, vestido com roupas de montaria, um paletó azul e colete de seda estampado em tons de cinza. Seu porte, expressão e vestimenta anunciavam ao mundo que sabia que era bonito, inteligente e podre de rico. Era de muito mau gosto ir assim a uma casa que estava sendo destituída de seus bens e de sua dignidade.

– Esperava que um criado viesse...

– Não há mais criados. A família não pode mais mantê-los. Falkner vai ficar até conseguir outro emprego, mas não está mais trabalhando. Creio que o senhor não tem alternativa a não ser falar comigo.

Ouviu sua própria voz soar ríspida e pouco amigável. As pálpebras dele baixaram o bastante para indicar que percebia a falta de respeito.

– Acredito que não tenhamos mesmo alternativa, Srta. Welbourne. Meu objetivo ao vir sem ser convidado é muito simples. Tenho uma tia que está interessada nesta casa. Ela me pediu para verificar se seria apropriada para ela e sua filha nesta temporada.

– O senhor quer conhecer a casa para poder descrevê-la a prováveis moradores?

– Se a Srta. Longworth me fizer essa gentileza, sim.

– O coração dela é cheio de gentileza na maioria das vezes. Contudo, ela está ocupada demais para atender seu pedido. Ser levada à falência e ser destituída de seus bens é algo que deixa qualquer mulher sem tempo algum.

O queixo dele se retraiu o suficiente para dar-lhe uma pequena satisfação. A vitória foi breve. Ele pousou o chapéu na mesa de marchetaria.

– Então, terei que achar o caminho sozinho. Quando disse que minha tia estava interessada, não me referi a uma mera curiosidade, mas a um interesse patrimonial. Esta casa já pertence a minha tia, Srta. Welbourne. Timothy Longworth assinou os documentos ontem. Se fiz um pedido, foi apenas para ser cortês com a família dele.

A notícia a deixou estupefata. A casa já tinha sido vendida. Que rapidez! Começou a calcular o que isso significaria para os planos dela e para Roselyn e Irene.

– Peço desculpas, senhor. A venda da casa não havia sido comunicada nem à Srta. Longworth nem a mim. Vou lhe mostrar a casa, se estiver bem assim.

Ele assentiu e ela começou a árdua tarefa. Mostrou-lhe a sala de jantar, onde seus olhos de lince não perderam nenhum detalhe. Ela o notou medindo espaços mentalmente e o ouviu contando cadeiras.

O resto do primeiro andar foi rápido. Ele não abriu gavetas nem armários na despensa. Alexia imaginou que soubesse que já estava tudo vazio.

– A sala de café da manhã é logo atrás desta porta – disse ela, ao voltarem para o corredor. – Minha prima Roselyn está lá. Peço que aceite minha descrição em vez de ir conferir por si mesmo. Temo que ela fique muito aborrecida ao vê-lo.

– Por que ela ficaria aborrecida com a minha presença?

– Timothy nos contou tudo. Roselyn sabe que o senhor levou o banco à beira da falência e nos deixou nesta situação.

Um sorriso implacável lhe surgiu no canto da boca. A crueldade do homem era mesmo ímpar. Ele percebeu o olhar dela fitando-o. Não parecia constrangido por ela ter visto esse sorriso cínico.

– Srta. Welbourne, não preciso ver a sala de café da manhã. Sinto muito por sua prima, mas as questões de altas finanças estão em um plano diferente da vida cotidiana. As explicações de Timothy Longworth foram simplificadas, com certeza porque ele as estava dando a damas.

– Elas podem ter sido simples, mas foram claras, assim como suas consequências. Há uma semana, meus primos viviam no luxo em Londres e em breve viverão na pobreza no interior. Timothy está falido, teve de vender sua parte na sociedade do banco e, ainda assim, continuará arcando com dívidas. Algum desses fatos está incorreto, senhor?

– Não, estão todos corretos – respondeu ele, balançando a cabeça.

Ela não podia crer em sua indiferença. O homem poderia pelo menos parecer um pouco constrangido. Em vez disso, agia como se isso fosse normal.

– Podemos subir? – perguntou ele.

Ela mostrou o caminho para o andar de cima, entrando na biblioteca. Ele não se apressou ao passar os olhos pelos livros nas estantes, enquanto ela aguardava.

– A senhorita vai com eles para Oxfordshire? – perguntou ele.

– Não me permitiria ser um fardo para essa família agora.

A atenção dele permaneceu nos livros.

– O que vai fazer?

– Tenho tudo acertado para meu futuro. Fiz planos e listei minhas expectativas e oportunidades.

Ele recolocou um livro na estante e rapidamente passou os olhos pelo tapete, a escrivaninha e os sofás, andando na direção dela em seguida.

– Quais oportunidades está vislumbrando?

Ela o conduziu aos outros cômodos no andar.

– Minha primeira opção é ser preceptora na cidade. A segunda é ser preceptora em outro lugar.

– Muito sensato.

– A sensatez é algo bastante conveniente diante da ameaça da fome, concorda?

Os cômodos do terceiro andar não eram tão espaçosos quanto os de uso comum. O corredor mais estreito os aproximava. Ao mostrar-lhe os quartos, ela notava a presença forte e masculina ao seu lado. Parecia muito inadequado esse estranho estar lá.

– E se não achar emprego como preceptora?

A pergunta casual veio algum tempo após sua última troca de palavras.

– A outra opção é me tornar chapeleira.

– Uma fabricante de chapéus?

– Tenho muito talento nessa área. Daqui a alguns anos, se vir uma mulher pobre usando um belo chapéu habilmente fabricado apenas com uma cesta velha, penas de pardal e maçãs secas, esta serei eu.

A curiosidade dele fizera com que Alexia deixasse de esconder sua irritação. Parecia inverossímil que o homem que causara tanto sofrimento quisesse saber detalhes. Ela escancarou a porta do quarto de Irene.

– A quarta opção é me tornar cortesã. Há quem diga que uma mulher deveria preferir morrer de fome a isso, mas suspeito que essas pessoas não tenham de fato se visto diante dessa necessidade, como talvez aconteça comigo.

Esse comentário lhe valeu um olhar duro. Além do desconforto por ela estar ridicularizando o fato de ele não sentir qualquer culpa, Alexia também percebeu a ousadia de um olhar masculino que avaliava suas possibilidades na quarta opção da lista.

Alexia enrubesceu. O calor percorreu sua pele, avivando-a e a atingindo bem no íntimo, afetando-a de uma forma chocante. Teve uma incontrolável e traiçoeira consciência dos muitos recantos do próprio corpo. A sensação a estarreceu ao mesmo tempo que a estimulou deliciosamente.

Ela precisou dar um passo atrás, para fora do quarto e para longe das vistas dele, de modo a escapar do rápido aumento na pulsação que a proximidade de Hayden lhe causava. Nos poucos segundos antes de ele voltar para junto dela, Alexia fez um esforço para se lembrar da raiva, a fim de aplacar seu chocante arroubo de sensualidade.

Ela continuou a lhe dar alfinetadas, de forma que ele soubesse que ela não se importava com o que pensava. Queria que aquele homem percebesse o sofrimento que sua ambição tinha causado.

– Minha quinta opção é virar ladra. Refleti muito sobre o que deveria vir antes, a libertinagem ou o roubo. Decidi que, apesar de a primeira opção ser um trabalho mais árduo, é uma forma de comércio honesto, enquanto ser ladra é pura maldade. – Ela parou por um momento, mas não resistiu a acrescentar: – Não importa como seja feito ou se é considerado legal ou não.

Ele parou e invadiu seu caminho, forçando-a a se deter também.

– A senhorita fala de maneira muito franca.

A presença dele se impunha à sua frente no corredor estreito. O olhar demandou sua total atenção. Certo poder se fez sentir, um poder masculino, dominador e desafiador. A intuição dela dizia para se afastar. A excitação ronronava baixa e profundamente. Ela ignorou ambas as reações e se manteve firme.

– Foi o senhor que me perguntou sobre meu futuro, apesar de não lhe fazer a menor diferença o que acontecerá com qualquer um de nós.

Sua raiva vinha em um crescendo desde que tinham deixado o hall. O frio autocontrole daquele homem durante a volta pela casa só tinha posto mais lenha na fogueira.

Ela o olhou de frente.

– O senhor destruiu a vida de pessoas boas e decentes. Não precisava ter retirado todos os seus negócios do banco de Timothy, arruinando-o deliberadamente. Não sei como consegue colocar a cabeça no travesseiro à noite e dormir.

Seus olhos azul-escuros ficaram negros nas luzes opacas do corredor. Seu queixo se enrijeceu. Ele estava com raiva. Que bom, ela também.

– Durmo muito bem, obrigada. E, sem o devido conhecimento sobre as questões financeiras, sua visão se torna bastante limitada. Sinto muito pela Srta. Longworth e sua irmã, e pela senhorita também, mas não vou me desculpar por ter cumprido meu dever como julguei adequado.

O tom dele a deixou embasbacada. Tranquilo, porém firme, ele punha um ponto final na discussão. Ela recuou, mas não por essa razão: estava perdendo o ar. Esse homem não se importava com os outros. Se se importasse, não estaria fazendo esse reconhecimento da casa.

Ela o guiou ao andar de cima, onde ficavam os quartos mais altos, mas ele parou do lado de fora de uma porta, perto do patamar da escada.

– O que é este cômodo?

– É um quartinho, sem utilidade específica. No passado, foi o quarto de vestir do quarto ao lado. Bem, lá em cima...

Ele girou a maçaneta e abriu a porta. Entrou no pequeno cômodo e observou cada detalhe. Os dois livros ao lado da cama, o armário pequeno quase vazio, as cartas ordenadas sobre a escrivaninha, tudo chamou sua atenção. Pegou um chapéu que estava pousado sobre uma cadeira perto da janela.

– É o seu quarto – falou.

Era verdade. E a presença dele ali, investigando seus pertences, criava uma intimidade que a deixou desconfortável. Ver aquele homem tocando seus objetos pessoais era quase como tê-lo tocando-a. Essa proximidade física tornava sua excitação ainda mais chocante e embaraçosa.

– Por enquanto, é o meu quarto.

Ele ignorou a farpa. Examinou o chapéu, girando-o de um lado para outro. Era o que ela havia começado a refazer no jardim três dias antes. Ninguém o reconheceria. Tinha refeito a borda, forrando-o de musselina creme finamente trabalhada, e enfeitado-o com fitas azuis. Ainda não decidira se iria acrescentar algum enfeite de musselina perto da copa.

– A senhorita tem talento.

– Como eu disse, ser chapeleira é apenas a opção número três. Se uma dama trabalhar em uma loja desse tipo, não pode mais se dizer uma dama, não é verdade?

Ele pousou o chapéu com cuidado.

– Não, não pode. No entanto, é algo mais respeitável do que ser cortesã ou ladra, embora bem menos lucrativo. Sua lista está na ordem correta se seu objetivo for a respeitabilidade.

Ela ainda o odiava no momento em que terminaram a visita. Contudo, já não poderia dizer que ele lhe era um completo estranho. Entrar nos quartos juntos, vendo os artefatos da vida cotidiana da família e com tanta proximidade – excessiva até – nos andares mais altos tinha criado uma familiaridade inoportuna.

Sua suscetibilidade à presença dele a deixara em desvantagem. Ela queria acreditar que era superior a essas reações, principalmente com esse homem, que certamente acreditava agradar a todas as mulheres. Ressentia-se de ter passado uma hora inteira na sua companhia.

Voltaram para o hall, onde ele pegou seu chapéu. Ela retomou o motivo de ter concordado em recebê-lo:

– Lorde Hayden, Timothy está com a cabeça nas nuvens. Ele não está contando todos os detalhes a suas irmãs. Se não for muita ousadia...

– A senhorita já foi bastante ousada sem pedir permissão, Srta. Welbourne. A essa altura, não é preciso fazer cerimônia.

Ela realmente tinha sido ousada e tagarela. Permitira que a raiva vencesse o bom senso. Na verdade, não tinha sido muito prática na situação em que mais necessitara dessa virtude.

– Qual é a sua pergunta?

– Já informou a Timothy quando os Longworths têm que esvaziar a casa?

– Ainda não. – Ele lhe dirigiu um olhar desconcertantemente franco. – Quando a senhorita acha que seria razoável?

– Nunca.

– Isso não é razoável.

– Quinze dias. Por favor, dê-lhes mais duas semanas.

– Que seja. Os Longworths podem ficar até lá. – Ele estreitou os olhos em sua direção. – Quanto à senhorita...

Ai, meu Deus. Ela havia despertado o demônio com sua língua grande. Ele ia pô-la no olho da rua imediatamente.

– Minha tia tem paixão por chapéus.

Ela piscou.

– Chapéus? Sua tia?

– Ela ama chapéus. E paga preços exorbitantes por eles. Sei disso porque sou administrador de sua fortuna e pago suas contas.

Era um assunto estranho para se falar na saída. Ele pareceu um pouco tolo.

– Bem, chapéus costumam ser caros – falou Alexia.

– Os que ela compra também são bem feios.

Ela sorriu e assentiu, desejando que partisse logo. Queria contar a Roselyn que teriam mais duas semanas de prazo.

– Preceptora, a senhorita disse. Sua primeira opção. Tem estudos para ser uma preceptora qualificada?

– Estava ajudando a preparar minha prima mais nova para ser apresentada à sociedade. Possuo as habilidades e os talentos necessários.

– Música? A senhorita toca algum instrumento?

– Sou adequada para ser preceptora de moças. Minha própria educação foi requintada. Nem sempre fui como me vê agora.

– Isso é óbvio. Se tivesse sido sempre como hoje, não teria coragem de falar comigo da forma rude e direta como fez.

O rosto dela enrubesceu intensamente. Não porque Alexia fora rude e Hayden notara, mas porque a atenção que ele lhe estava dispensando começava a acender nela aquela excitação estúpida de novo.

– Srta. Welbourne, minha tia, Lady Wallingford, vai tomar posse desta casa porque vai apresentar sua filha à sociedade em breve. Minha prima Caroline precisa de uma preceptora e minha tia, de uma dama de companhia. Tia Henrietta é... bem... Digamos que seria aconselhável ter uma influência sensata na casa.

– Uma influência que a impedisse de comprar chapéus feios?

– Exatamente. Como a situação combina com sua primeira opção na lista, estaria interessada no emprego? Como foi tão sincera comigo, creio que também diria à minha tia quando um chapéu for ridículo.

Ele estava pedindo que ela ficasse naquela casa em que tinha sido um membro da família, só que agora como criada. Ele estava pedindo que servisse ao homem que arruinara os Longworths e destruíra sua frágil sensação de segurança. Ele estava pedindo que ela ajudasse sua jovem prima a ser apresentada à sociedade, uma oportunidade que fora negada a Irene.

É claro que lorde Hayden não enxergava nada disso. Ela era apenas uma solução conveniente para compor o quadro de empregados de sua tia. Tinha uma combinação singular de habilidades que a tornava perfeita para o cargo. Mesmo que houvesse notado como isso era ultrajante, aquele homem não se importaria.

Ela quis recusar a proposta imediatamente. Esteve prestes a dizer algo muito mais direto e rude do que havia feito até o momento.

Mordeu a língua. Não poderia se dar ao luxo de dizer impropérios agora.

– Vou pensar na sua oferta, senhor.


CAPÍTULO 3

– Ouvi um boato sobre você ontem à noite no White’s.

A declaração inesperada ecoou pelo salão e fez com que Hayden errasse a bola que vinha em direção a ele.

– Sua função é marcar os pontos, Suttonly, não ajudar Chalgrove me distraindo.

– Marcar os pontos é um tédio. Se eu o distrair, você perde e então é a minha vez de jogar.

Hayden sabia que o egoísmo era um traço da personalidade do visconde Suttonly desde que haviam ficado amigos, na universidade. Mas ele não era só isso e Hayden aceitava o lado ruim que vinha junto com o bom. O mesmo homem esguio e vaidoso que estava languidamente posicionado no centro da quadra, interferindo nos saques e nas jogadas, era capaz de demonstrar grande generosidade quando queria.

Chalgrove se adiantou para ficar em posição de saque.

– Você sabia que não teríamos um quarto jogador hoje e que precisaríamos nos revezar.

– Você quer dizer que Rothwell e eu teríamos que nos revezar. Você sempre ganha, então sempre continua jogando.

Suttonly levantou seu rosto longo e de feições finas e tentou em vão olhar Chalgrove de cima, mas o outro era um palmo maior do que ele. O cabelo dourado de Suttonly tinha sofrido a tortura dos ferros quentes naquela manhã. Os cachos perfeitamente desalinhados não iam sobreviver ao jogo.

– É ele quem tem permissão para usar esta quadra – lembrou Hayden.

Se não fosse pela paixão de Chalgrove pelo tênis e por sua vitória inesperada em uma jogatina contra o rei três anos antes, eles nem sequer estariam ali. Em pagamento por aquela dívida de jogo, Chalgrove tinha pedido permissão para usar a antiga quadra de tênis de Hampton Court quando quisesse. Como o esporte saíra de moda e ninguém mais queria ir lá, o rei teve grande satisfação em conceder esse favor real.

Suttonly foi expressar seu tédio nas linhas laterais. Chalgrove assumiu a ofensiva. Hayden percebeu que perderia em breve.

O conde de Chalgrove parecia muito robusto e moreno quando comparado à brandura loura de Suttonly. Mas, durante o jogo, seu corpo musculoso se mostrava surpreendentemente ágil. Atleta nato, seus saques poderosos combinavam bem com a habilidade para mandar a bola de couro na direção dos telheiros e outros pontos difíceis para os adversários.

Hayden observou a bola ricochetear acima da cabeça do outro e cair.

– Bola fora, Rothwell – anunciou Suttonly.

O visconde deu alguns passos à frente e bateu de leve com sua raquete na cabeça de Hayden.

Hayden assumiu a posição de marcador. Apesar de uma parte de sua mente se manter na contagem de pontos, o restante dela se voltou para os negócios com Timothy Longworth. Sua família estaria partindo de Londres em breve, mas não tinha chegado nenhuma carta da Srta. Welbourne falando do emprego que ele lhe oferecera. Não gostava de pensar no preço de seu orgulho. Ela acabaria morando em algum apartamentinho de uma rua violenta, levando uma vida miserável.

Sua falta de senso prático significava que agora ele teria que procurar outra preceptora e dama de companhia. Tia Henrietta chegaria a Londres em poucos dias. Não podia mais esperar a resposta da Srta. Welbourne.

Chalgrove precisou de menos tempo para despachar Suttonly. Depois eles se retiraram para as salas do clube acima da quadra. Chalgrove tinha trazido criados e bebidas geladas. Enquanto lanchavam, Suttonly tocou de novo no assunto da fofoca que corria solta pela cidade.

– Andam dizendo que...

– Não estou interessado – disse Hayden.

– Mas eu estou – disse Chalgrove. – É raro ouvir uma boa fofoca sobre você, Rothwell. Normalmente é sobre quanto dinheiro ganhou nesse ou naquele investimento. Falando nisso, não há nada que queira contar a dois velhos colegas de escola? Ou está esperando que a tempestade passe para lançar o próximo navio?

Suttonly não gostava de ter a atenção roubada de si.

– Andam dizendo – repetiu ele com firmeza – que você arruinou Timothy Longworth.

Isso impressionou até Chalgrove.

– É mesmo? Não sabia que ele estava arruinado, muito menos que você era o responsável.

– Se você viesse à cidade, tomaria ciência do que acontece no mundo – repreendeu-o Suttonly com indolente superioridade antes de se virar novamente para Rothwell e dizer: – O que aconteceu com Longworth? Ele está vendendo tudo tão rápido que o pessoal anda brincando que ele é até capaz de fazer liquidação das irmãs. Você era muito amigo do irmão dele. Ele deve tê-lo enraivecido muito para que decidisse arruiná-lo.

– Eu não o arruinei. A mudança na sorte do homem é problema dele. Quanto aos meus planos, há um acordo sendo firmado em relação a um empreendimento na América do Sul. É muito arriscado, mas vou enviar os documentos a vocês dois. Suponho que guardarão o sigilo de sempre.

– Pode contar comigo – disse Suttonly, fisgando um pedaço de presunto do prato de frios. – Redija os papéis e me avise quando estiverem prontos para a assinatura.

– Nas Américas? Isso não vai ser igual ao esquema de McGregor anos atrás, não é? – implicou Chalgrove. – Você não vai emitir títulos de um país que não existe, como ele fez, não é?

– Se ele fizesse isso, provavelmente encontraria um jeito de compensar os clientes da forma mais sábia possível – disse Suttonly. – Por meu pai morto e os filhos que ainda não tenho, Rothwell, ainda bem que tive a esperteza de ficar seu amigo nos tempos de escola.

– O esquema de McGregor estava fadado ao fracasso. Ele não vai poder fazer novas vítimas de suas fraudes para sempre a fim de pagar as vítimas anteriores. Um dia o castelo de cartas vai desmoronar – disse Hayden.

Hayden Rothwell gostaria que todos – Suttonly, em especial – aprendessem a ser mais desconfiados em relação a investimentos. Se Hayden fosse McGregor, Suttonly teria empenhado sua fortuna para comprar títulos do país fictício de Poyais, nas Américas. Como todos os outros, ele nem teria se dado o trabalho de consultar primeiro um mapa para achar a localização do país.

– Suspeito que haja alguma falcatrua no cerne da crise atual – disse Chalgrove.

Suas sobrancelhas franzidas preocuparam Hayden. Chalgrove não vinha mais para a cidade, porque no ano anterior herdara um imóvel no campo que precisava desesperadamente de cuidados.

– Você perdeu muito dinheiro? – questionou Hayden.

– Não muito, mas o bastante. Tinha uns negócios pequenos com um banco do interior que era correspondente do Pole, Thornton and Company de Londres. Quando eles faliram em dezembro, nosso estabelecimento foi junto – disse ele, dando de ombros, mas não com indiferença. – Muitos homens com negócios bons e sólidos abriram falência por conta disso. Ainda vai haver muito problema antes que esse pânico acabe.

– Mas não há nada que se possa fazer a respeito, não é? – cortou Suttonly, suspirando. – Não vamos ficar nos lamentando pelo que não podemos mudar. Apesar de todas as preocupações, a cidade ainda está movimentada e divertida e se aproxima a época em que as jovens serão apresentadas à sociedade. Chalgrove, prometa que vai permanecer na cidade este ano. Fiquei meio entediado na última apresentação e espero evitar esse estado de ânimo desta vez. Você pode procurar uma noiva rica para resolver seus problemas. Se ela for bonita, pode ser até que você se apaixone.

– Chalgrove não é um tolo romântico como você – disse Hayden. – Você ficou entediado porque está envelhecendo e tem menos chances de se entregar às tolices românticas agora.

– Você se entedia muito facilmente, de qualquer forma – disse Chalgrove. – A vida seria mais gratificante se tivesse algo constante que lhe interessasse.

– Você quer dizer estudar matemática, como ele? Pegar no pesado nas minhas terras, como você? Rezo para nunca ficar velho assim. Quanto a me entregar a tolices românticas, pretendo nunca deixar de fazê-lo. A paixão torna a vida excitante nos poucos meses que dura – disse ele, sacando o relógio do bolso. – Só posso ficar para mais uma partida, Chalgrove. Vou começar sacando desta vez.


– Ouvi boatos sobre você na noite passada, no clube.

Era a tarde seguinte e Hayden levantou os olhos do livro que estava lendo. Havia vencido poucas páginas. Sua mente estava ocupada, pensando em outros assuntos. A chegada inesperada de seu irmão Christian à biblioteca o distraiu ainda mais.

Christian raramente passava a tarde na biblioteca. Seu breve comentário ao se acomodar em uma cadeira acolchoada perto de Hayden explicava o motivo de aquela tarde ser diferente. Era perturbador saber de dois boatos a seu respeito em menos de dois dias. Hayden era o tipo de homem de hábitos regulares e personalidade calma que raramente interessava aos fofoqueiros.

– Não estou flertando com a Sra. Jameson, apesar do que ela anda contando aos amigos – disse Hayden.

– Não era esse tipo de boato, o que nunca me interessaria. Se um dia você se casar, nunca será com uma mulher daquelas.

O “se um dia” dito com tanta propriedade sugeria que seu irmão duvidava da possibilidade de Hayden vir a se casar. O “uma mulher daquelas” não era uma crítica à viúva em questão, mas deixava claro que Christian conhecia bem o gosto de Hayden, muito mais do que o próprio.

Eles se davam bem, tanto que Hayden continuava morando na casa de Easterbrook, em Grosvenor Square. No entanto, as suposições de Christian de que conhecia os irmãos mais novos melhor do que eles mesmos e as suspeitas de Hayden de que isso talvez fosse verdade eram algo irritante.

– O boato tinha a ver com dinheiro. E com seu relacionamento com o banco Darfield e Longworth.

Hayden pôs o livro de lado.

– Você é contra minha decisão de deixar nossas contas lá?

A interferência de Christian infringia um acordo que haviam feito quando ele voltara à Grã-Bretanha depois de ter viajado durante dois anos por sabe lá Deus onde. Apesar de recém-saído da faculdade, Hayden cuidara das finanças da família nesse momento de necessidade. Christian poderia ter assumido a tarefa ao voltar, mas pediu que Hayden continuasse.

– Não faço objeções à sua decisão. Só estou curioso se você realmente confia que o banco não vá falir.

– Se isso acontecer, uso meu próprio dinheiro para compensar quaisquer perdas que você ou os outros sofram. Se necessário, volto até às mesas de jogos.

Os olhos escuros de Christian cintilaram com uma expressão de frieza. A aura de autoridade que ele exalava de repente se fez notar. Era algo que derivava mais do que de seu título de nobreza ou do status de irmão mais velho. Algo havia ocorrido durante aqueles dois anos no exterior que se tornara a fonte desse poder contido e sóbrio.

Christian nunca falara muito de seu tempo fora e das aventuras que tinha vivido. Hayden percebera de imediato como as experiências o tinham mudado. Seu irmão mais velho deixara a Inglaterra como um marquês recém-empossado, instruído e zeloso. Voltara experiente demais, amadurecido demais e um tanto estranho.

– Não peço que aposte sua própria fortuna em suas decisões. Só quero saber se tomou essa decisão em particular com base em seu brilhantismo financeiro de sempre, ou se foi dominado pela emoção.

– Nunca teria deixado as contas lá se achasse que o banco não sobreviveria.

Hayden considerou a conversa encerrada e retomou a leitura.

– Não foi o fato de você ter deixado as contas lá – disse Christian depois de um longo silêncio. – Não era esse o boato.

– Então qual foi o boato que você ouviu?

– Que você de alguma forma arruinou Longworth e o forçou a vender sua parte no banco. Que manipulou a situação para ele falir.

– Mas como você verificou se retirei nossos depósitos e viu que não, já sabe que esse boato não é verdadeiro.

– Ninguém me disse que você o tinha arruinado retirando o dinheiro. Disseram que você manipulou a situação para que Longworth falisse, o que é bem diferente. Não entendo o motivo. Os Longworths são uma família tradicional no nosso condado. E, para começo de conversa, você contribuiu para o enriquecimento deles e foi amigo de Benjamin.

Hayden instintivamente levou uma das mãos ao peito. Ele não sentia a cicatriz por baixo das roupas, mas pensar em Ben sempre fazia com que se lembrasse da dor que a causara. Qualquer ajuda que tivesse dado a Benjamin Longworth já tinha sido mais do que compensada na Grécia. Isso significava que a balança tinha pendido de novo, para o outro lado, na noite em que Ben morreu.

Ele tinha errado com o amigo naquela noite no navio ao não forçá-lo a descer, quando era óbvio que Ben estava bêbado. Pior ainda, tratava-se de um amigo que havia salvado sua vida.

– Está preocupado com minha honra, irmão mais velho?

– Eu deveria estar?

Hayden o fitou.

Christian não baixou o olhar, agindo de forma plácida e paciente. Eles eram muito parecidos, mas qualquer pessoa que entrasse na biblioteca não perceberia isso de imediato. O cabelo escuro de Christian era longo, até mesmo para a moda atual. Suas ondas atingiam os ombros do robe de seda preto que ele vestira ao se levantar naquela manhã. Também não era um robe comum. Ele ostentava uma estampa e um corte exóticos, quase orientais, e era menos estruturado do que os modelos masculinos comuns. A típica falta de formalidade de Christian em casa também fazia com que não usasse uma camisa por baixo do robe, de forma que sob ele não se via uma gola, apenas pele.

Hayden pensou em como o irmão mais velho parecia empertigado e arrumado enquanto o pai deles era vivo. Ele tinha sido tão irrepreensivelmente correto todos aqueles anos. Então, meses depois de assumir o título, desaparecera para depois voltar com aquela desconcertante aparência mundana.

– Os homens fracassam nos negócios o tempo todo – falou Hayden. – É como uma justa. Um homem entra no torneio sabendo que pode perder seu cavalo. Fracassar é sempre um risco.

– Não para você. Não com a mente e os instintos de que dispõe ao entrar na disputa. Se o jovem Longworth tivesse sido outro cavaleiro, e não um mero escudeiro, sua analogia poderia funcionar. No entanto...

– Como você optou por não entrar na competição, fique fora disso.

Hayden engoliu seu crescente rancor. Na verdade, esse sentimento não se dirigia a Christian, mas à sua tendência irritante de incitar o lado negro da alma das pessoas.

– A ruína de Longworth se deve unicamente à sua falta de bom senso. Minha honra está intacta.

Christian pareceu aceitar isso.

– Você tem um lado impiedoso. Nesse ponto, somos bem parecidos. É preciso manter a vigilância para controlar isso, como tenho certeza de que você sabe.

– Cuide da salvação de sua própria alma. Não preciso de ajuda com a minha.

– Todos nós precisamos de ajuda. Contudo, se você diz que não se deixou levar por esses sentimentos, aceitarei que a ruína de Longworth foi obra dele mesmo.

A questão tinha sido definitivamente essa, mas, para evitar maiores consequências além da mera ruína, Hayden tinha sido forçado a conduzir o canalha por muitas reuniões, confissões e promessas nos últimos dias. Com certeza, no clube, na noite anterior, um dos homens que ouvira essas promessas tinha aludido ao papel de Hayden.

Christian se levantou para ir embora.

– É uma pena pelas irmãs. Às vezes as encontro na cidade. A mais velha é estonteante. Se não fosse por sua amizade com o falecido irmão, estaria tentado a ficar com ela.

– Tirar vantagem da má sorte da moça e garantir que o fracasso fosse completo seria algo altamente desonroso, não acha?

Christian deu de ombros.

– Na Inglaterra, sim. Bem, como disse, é preciso manter a vigilância.


A bandeja de prata brilhou à luz da tarde que penetrava pela janela. O cartão sobre ela surpreendeu Hayden.

A Srta. Welbourne estava lá.

Ele passou o polegar sobre o papel e sentiu o alto-relevo de ótima qualidade. Imaginou a moça tirando dinheiro de sua renda magra e decidindo que o cartão que ostentaria seu nome deveria ser digno de uma dama, não importava o sacrifício.

– Vou recebê-la.

A visita dela lhe provocou remorsos. Sua descoberta a respeito do roubo de Longworth atingira muitos inocentes.

É claro que a Srta. Welbourne tinha sido atingida bem antes da descoberta. Entre suas deliberações, enquanto tentava ler na biblioteca, havia algumas em relação a ela. Precisava elaborar uma estratégia para devolver os recursos da moça sem que ela soubesse que tinham sido retirados por Longworth.

Sua palavra de honra o impedia de lhe explicar o que tinha acontecido. Duvidava que ela lhe seria grata por saber a verdade, mesmo que pudesse revelá-la. Isso destruiria sua ligação com as pessoas que considerava sua família. Havia também a hipótese de ela se sentir tão traída a ponto de querer ser a primeira a mandar Longworth para a cadeia.

Abriu as portas da sala de visitas e viu a Srta. Welbourne com sua dama de companhia. Ela trouxera a prima mais jovem. Os olhos de Irene Longworth estavam fixos no relicário medieval cravejado de pedras preciosas que Christian tinha colocado em uma mesa ao lado da janela.

O olhar da jovem se voltou para Hayden quando ele entrou e nele permaneceu enquanto se cumprimentavam. Ele reconheceu sua expressão muda e embasbacada. Estava cansado de vê-la em outras moças ingênuas. Preferia a expressão madura e autocontrolada que a Srta. Welbourne dirigiu a ele.

– Irene, por que não vai olhar os quadros? – sugeriu a Srta. Welbourne. – Ela se interessa por arte, lorde Hayden, e pensei em dar-lhe a oportunidade de ver parte da coleção de Easterbrook hoje.

Com o consentimento de Hayden, a garota começou a caminhar próxima às paredes, examinando as obras.

– Foi muita gentileza sua trazê-la, se tem tanto interesse por arte – disse ele. – Pensei que talvez o motivo real fosse me lembrar do que ela perdeu.

– Esse foi um dos motivos, mas a oportunidade de ver parte da famosa coleção de Easterbrook foi outro. Além disso, quando ela for para Oxfordshire, fará diferença poder falar da visita que fez a esta casa. Algumas pessoas com posses muito superiores às dela nunca terão essa oportunidade.

A Srta. Welbourne falava com a mesma franqueza que marcara as conversas dos dois desde o início. Ocorreu-lhe que seria tratado da mesma forma se não tivesse arruinado Longworth.

Ele gostava disso. Algo nele fazia com que a maioria das mulheres assumisse uma atitude irritantemente fútil. A falta de medo e de nervosismo por parte dela era revigorante. Criava pequenos e encantadores desafios. Sua postura durante o tour pela casa o provocara de muitas formas e carregara o ar entre eles com muito mais do que contrariedade.

Ela sentira o mesmo, ele tinha certeza, só que não gostava dessa sensação. Talvez nem a entendesse direito.

– Além disso, precisava trazer alguém comigo, não é verdade? – disse ela. – Não temos mais criadas, nem mesmo um lacaio. Como Irene sempre sonhou em vir a um baile aqui, um sonho que Roselyn e eu tentamos controlar mesmo nos bons tempos, pensei que ela pelo menos poderia ver suas obras de arte.

A garota obviamente tinha sido instruída a se manter distante e discreta. Ela se reclinou em direção a um quadro de Poussin do outro lado da sala.

Hayden chamou um lacaio.

– Leve a Srta. Longworth até a governanta – ordenou ao homem quando ele chegou. – Diga-lhe para guiar a moça pelo salão de baile e pela galeria.

Mal se contendo de alegria, Irene seguiu o criado. A Srta. Welbourne observou sua saída.

– É muita generosidade de sua parte.

– Se ver esta sala de visitas a ajudará em Oxfordshire, descrever o salão de baile só pode melhorar ainda mais sua posição.

Ele se sentou em uma cadeira que lhe permitia ver de frente o rosto da Srta. Welbourne.

– Como a senhorita precisava trazer alguém consigo, entendo que o objetivo desta visita seja um assunto seu, não dela – comentou Rothwell.

O olhar de Alexia se inflamou. Aquela mulher não gostava muito dele, isso estava bem claro.

Um arco lilás no chapéu de Alexia fazia sobressair ainda mais a cor de seus olhos. Era um chapéu simples, mas parecia muito caro com aquela borda, a copa de seda celestial e rosas enfeitando o arco. Talvez ela mesma tivesse feito o chapéu. Como o cartão de visita, ele demonstrava sua posição, mesmo que essa posição lhe tivesse escapado por entre os dedos.

– Considerei a oferta que me fez na casa de meu primo em sua última visita – disse ela. – Gostaria de conversar sobre isso e ver se conseguimos chegar a um acordo.

Tinham-se passado doze dias desde a oferta. Com a mudança iminente da casa, parecia que ela finalmente tinha se decidido pela praticidade.

Ele decidiu facilitar as coisas para ela sendo breve.

– O salário será o normal para a situação e...

Ela levantou o indicador, detendo-o. Seu tutor costumava fazer isso quando ele era garoto.

– Aceito o salário normal. No entanto, como estarei ocupando dois cargos, o de preceptora e o de dama de companhia, acredito que deveria receber dois ordenados, sobretudo levando-se em conta que o senhor não terá os gastos de manter mais um criado na casa. Além disso, gostaria que o salário fosse pago mensalmente. Vou querer mandar parte do dinheiro para Rose e Irene. Não quero que elas precisem esperar muito para terem algum desafogo.

Ela estava a dois dias de ser despejada, mas fazia exigências desmedidas, como se pudesse apresentar as melhores referências da Inglaterra, em vez de nenhuma. A julgar por sua repetida menção ao problema financeiro dos Longworths, ela esperava que a culpa dele lhe desse alguma vantagem nas negociações.

Fascinado, ele colocou o cotovelo no braço da cadeira e descansou o queixo no punho fechado.

– Acredito que o pagamento mensal possa ser providenciado. Quanto ao salário, a senhorita não passará todo o tempo desempenhando cada um dos papéis. Isso é impossível, portanto o pagamento integral por dois cargos não se justifica.

– Um e meio, então. O senhor tem que admitir que é justo.

Ele quase deu uma risada.

– Bastante justo para a senhorita. Está certo, um e meio.

Ela teve um gesto de alívio, passando a mão sobre a lã fina da roupa. Era um movimento nervoso que revelava que não estava tão contida quando parecia. O vestido era bem mais elegante do que o que ele a vira usar antes. Muito distinto, com um bordado azul ao longo de toda a borda da saia e um casaco que trazia um delicado acabamento em pele. Ele imaginou que as roupas não eram dela. A Srta. Longworth provavelmente as tinha emprestado a ela para a visita à casa do marquês de Easterbrook.

– Quanto à minha relação com sua tia e sua prima – continuou ela –, vivi naquela casa como um membro da família e seria difícil pensar em mim como uma... bem, de outra forma. Gostaria que meu cargo principal fosse o de dama de companhia de sua tia e que meus deveres de preceptora ficassem em segundo lugar. Isso em nada afetaria meu trabalho em relação a sua prima.

Seu tom, comportamento e a forma como continuava a lembrá-lo da mudança na sua situação, que ela acreditava ser culpa dele, deveriam enraivecê-lo. Nada disso.

Alexia Welbourne havia chegado àquela casa vestida como a dama que nascera para ser, mas sairia dali como empregada. Ela sabia disso, mesmo tendo gaguejado ao tentar pronunciar a palavra. Porém, não era uma mulher que desconhecesse seu lugar. Era só uma mulher lutando para manter seus últimos fios de dignidade ao sair pela porta em uma condição diferente da que entrara.

Ele sentia muito por ela, mas manifestar esse sentimento seria um insulto para uma mulher como Alexia.

– Minha tia tem muito bom coração, Srta. Welbourne. O perigo não é ser tratada como criada, mas passar rapidamente a ser tratada como irmã. No entanto, explicarei a sutileza do modo como deseja ser considerada. Tenho certeza de que ela compreenderá. Bem, se não há mais nada a tratar...

O dedo se levantou novamente.

– Algo mais, Srta. Welbourne?

– Só mais um pequeno detalhe.

– Não imagino o que possa ser.

Os lábios dela se franziram diante do tom sarcástico. Belos lábios. Mais para cheios. E um nariz levemente arrebitado, que chamava atenção para a boca.

Uma boca que parece uma rosa. Mas não um botão de rosa. Não era pequena nem curvada, nem mesmo quando o franzido a estreitava. Era uma rosa em plena floração, prometendo o néctar que Ben descrevera.

– Como ambos sabemos, minha situação mudará muito, mesmo continuando a viver na mesma casa – disse ela.

Sua voz provocava pensamentos sobre esse néctar e seu gosto. O caminho rumo aos ardis impiedosos sobre os quais Christian o advertira havia pouco.

De formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Ele a viu de novo no vestido sem atrativos que usara ao guiá-lo no reconhecimento da casa. De um marfim amarelado pelo uso e sem enfeites, que provavelmente haviam sido retirados para adornar outras vestimentas. A moda tinha mudado muito nos últimos anos e sua cintura alta anunciava seus poucos recursos. No entanto, o vestido ressaltava seu busto e revelava suas formas e curvas tentadoras.

Sua mente voou para recuperar a lembrança dela em pé perto dele no corredor do último andar, usando o vestido cor de marfim. As faíscas de raiva nos olhos dela ao confrontá-lo fizeram seu sangue correr mais rápido nas veias outra vez, queimando-o por dentro. Sua imaginação começou a tirar aquele vestido para ver o que tinha por baixo...

– Isso é aceitável, senhor?

A pergunta dela o tirou de sua fantasia erótica.

– Aceita essa última condição? – perguntou ela.

Se pelo menos ele soubesse do que ela estava falando, mas não tinha a menor ideia de como deveria responder.

Assumiu a posição que costumava ocupar em negociações de investimentos quando algo inesperado era proposto.

– Quero pensar melhor sobre isso antes de dar uma resposta.

Suas sobrancelhas se elevaram só um pouquinho, mas o bastante para expressar o que ela pensava disso.

– Não vejo por que isso exigiria tanta ponderação.

– Sou um homem muito ponderado.

– Que admirável! E tais ponderações levariam muito tempo? Estarão concluídas em dois dias, para que eu saiba onde ficar na casa?

Ela usou uma voz cuidadosa e gentil, do tipo usado com um tio velho meio gagá. Ele não estava acostumado a ter ninguém – muito menos uma mulher – tratando-o como se fosse burro.

– Por que não explica esse pedido com mais detalhes, para que eu possa pensar enquanto fala?

– Não consigo pensar em outra forma de explicar isso. Está claro como água. Qual parte não entendeu?

Será que ela havia percebido por onde sua mente andara? Vira nos olhos dele? Estava deixando-o confuso como punição? Será que o pedido era complicado de atender? Ela não teria pedido para vender toda a prataria da casa, imaginava ele.

– Acho que minha tia pode ser convencida a aceitar sua condição.

– Então podemos dizer que chegamos a um acordo – disse ela, imensamente satisfeita com a conclusão da conversa e passando a alça da bolsa pelo braço. – Estou de saída. Estarei na casa para dar as boas-vindas a Lady Wallingford e sua prima quando elas chegarem.

Ele a acompanhou para que procurassem Irene. Encontraram-na na galeria com a governanta. Christian estava lá também, apontando para algum detalhe na pintura que observavam. Ele tinha finalmente se vestido e, fora o cabelo longo de aspecto primitivo, parecia um lorde inglês bem-apessoado.

– Christian, esta é a Srta. Welbourne. Este é meu irmão Christian, marquês de Easterbrook.

– Estava explicando para sua prima que este não é um Correggio original, mas uma cópia de um quadro que está em Parma, Srta. Welbourne – disse Christian.

A Srta. Welbourne olhou para o quadro. Ele retratava a princesa Io delicadamente voluptuosa e sensual, suspensa no ar por Júpiter, que tinha se transformado em nuvem. Como Io estava nua, aquele provavelmente não era um quadro que Christian devesse ter estimulado Irene a examinar.

– É adorável, mesmo sendo uma cópia – disse a Srta. Welbourne, segura de si o bastante para não revelar embaraço com o assunto.

Hayden o considerava adorável também. Observando agora, o corpo de Io parecia um pouco com a imagem que ele fizera do corpo da Srta. Welbourne. Arredondado nos lugares certos. Curvas e maciez à espera.

Hayden mostrou o caminho para que as mulheres saíssem com a governanta. Irene começou a cobrir a Srta. Welbourne de perguntas imediatamente, esquecendo-se de que seus sussurros seriam ouvidos na galeria.

– Você vai aceitar a função?

– Sim.

– Ele aceitou suas condições?

– Sim, vamos embora.

– Todas elas? Até mesmo a folga e o uso da carruagem?

Hayden se perguntou se tinha ouvido direito.

– Função? – disse uma voz baixinho sobre o ombro dele.

Ele virou o rosto e deu com Christian também observando as duas.

– Ela vai trabalhar como dama de companhia de tia Henrietta e preceptora de Caroline.

– Ah, entendo. As únicas mulheres que já fizeram negócios comigo foram minhas amantes. Daí minha confusão. Ela tem belos olhos... de uma cor inusitada.

Hayden observava as fitas do chapéu de Alexia flutuarem, a bainha do vestido se arrastar e seus quadris esbeltos se moverem.

– Ela queria se certificar do que se esperava dela no serviço doméstico. Nossa conversa tratou desse tipo de coisas.

– Como folga e uso da carruagem, você quer dizer.

Hayden ignorou a implicância. A Srta. Welbourne se virou para sussurrar algo no ouvido de Irene. Seu perfil apareceu por baixo da aba do chapéu. Um olho violeta, um nariz levemente arrebitado e uma boca carnuda expressiva formaram uma silhueta colorida contra o vestido marrom da governanta.

A porta se abriu e as mulheres desapareceram.

Hayden se virou e pegou seu irmão mais velho observando-o. Christian deu meia-volta e partiu.

– Vigilância, Hayden, vigilância.


CAPÍTULO 4

Alexia caminhava ao lado de Roselyn em ritmo de enterro. Estavam fazendo uma revista silenciosa de cômodo em cômodo para que Rose verificasse se nada fora esquecido.

Uma carruagem alugada esperava na rua. Ela levaria os Longworths até uma estalagem nos arredores de Londres. Lá seriam transferidos para a triste carroça que saíra antes do amanhecer, oculta pela escuridão, carregando os poucos bens que ainda lhes pertenciam.

Rose espiou a sala de visitas.

– Ouso dizer que a tia de Rothwell encontrará tudo em ordem. Espero que ela e a filha sejam felizes aqui.

A frase teria soado generosa, não fosse por seu tom amargo.

Alexia nada disse para reconfortá-la. Já usara todas as palavras de consolo que poderia conceber. Tinha até mesmo prometido a Irene lhe dar uma festa de apresentação à sociedade no ano seguinte, o que era o mais próximo de uma mentira deslavada que já dissera. Seu coração estava em prantos por todos eles. Rose e Irene, Timothy e ela própria.

Rose se voltou para ela. Com os olhos soltando faíscas pelos olhos, ela permitiu que toda a sua raiva viesse à tona.

– Você tem que me prometer não se afeiçoar a elas. Não quero saber se são boas ou não. Tem que me prometer...

Alexia a abraçou. O corpo de Rose começou a tremer e ela caiu no choro. Passou rápido. Rose engoliu as lágrimas e se recompôs, tudo em uma única inspiração profunda.

– Oxfordshire não é tão longe assim – disse Alexia.

Tal pensamento tinha sido repetido por todos eles muitas vezes na última semana.

– Vamos nos ver com frequência, tenho certeza – continuou.

Ela não estava tão certa disso, mas talvez fosse possível. Afinal, ela poderia usar uma carruagem, não? E tinha um dia de folga.

– Vamos subir para buscar Timothy – disse Roselyn.

Encontraram Timothy em seu quarto, estendido na cama, doente. Doente, não, percebeu Alexia. Ela avistou um decantador lascado debaixo da mesinha de cabeceira.

– A carruagem está esperando, Timothy – disse Rose.

– Para o diabo com a carruagem.

Tim nem sequer moveu o braço que se estendia sobre a testa.

– Para o diabo com os canalhas que esperam para ver esta cena – prosseguiu ele. – Para o diabo com a vida.

Rose pareceu exausta. Fora obrigada a assumir quase todas as providências necessárias nos últimos dias. Depois que vendeu o que podia, Timothy se tornara um inútil.

Alexia se curvou sobre a cama.

– Já se entregou à infelicidade por muito tempo, primo. Suas irmãs precisam que você volte a si. Permita-lhes sair pela porta com dignidade, não carregando o irmão em frangalhos entre elas.

Ele não reagiu nem se moveu. Ela tocou seu braço.

– Venha, Tim. Isso não é do seu feitio. Levante-se pelo bem de Irene, ao menos.

Depois de uma longa demora, ele fez um esforço para se levantar. Rose alisou seu casaco e fez o que pôde para deixar sua gravata apresentável. Timothy parecia tão triste e desamparado que Alexia teve vontade de chorar.

– Pegou as coisas dele no sótão, Rose? – disse ele em tom abafado. – Os baús de Ben e tudo o mais?

A expressão de Rose foi de desespero quando respondeu:

– Arrumamos tudo às carreiras... Como pude ser tão relapsa? Não tem mais espaço na carruagem e...

– Não se preocupe. Cuidarei do que possa ter ficado para trás – disse Alexia. – Podem ter certeza de que os baús continuarão aqui enquanto eu estiver e os levarei quando for embora. Vou achar um jeito de devolvê-los a vocês.

– Você é tão boa, Alexia – disse Rose com visível alívio.

Alexia não se importava de assumir a responsabilidade pelos pertences de Ben. Assim, parte dele ficaria com ela na casa. Ela poderia resistir melhor à adversidade da vida que iria enfrentar se pudesse se lembrar daqueles baús no sótão.

– Detesto deixá-la aqui – disse Tim olhando para o chão. – Odeio a ideia de ver você se sujeitar a ele. Esta foi a jogada mais cruel: ele ser capaz de se deleitar com sua queda de posição social.

Alexia não achava que lorde Hayden se deleitaria com isso, já que aparentemente não pensou duas vezes antes de praticar seus atos. Em poucos dias, ela seria uma criada conveniente e nada mais. Ele provavelmente esqueceria até seu nome.

– Não me importo com o que ele pense, Tim. Não me afeta em nada.

Essa afirmação pelo menos era verdade. Ela já sabia que, na vida, quando se desce um degrau, o motivo não importa. O estrago no orgulho era o mesmo, independentemente da causa. A pessoa podia enfrentar isso com elegância ou com amargura. Ela estava lutando para assumir a primeira postura, como fizera no passado.

Tim caminhava sem firmeza, mas Roselyn e Alexia o conduziram para o andar de baixo, até a porta. Irene esperava com ar sombrio pela partida solene. Com certeza os vizinhos espiariam de suas janelas para ver a cortina descer no último ato do fracasso encenado na Hill Street nas duas últimas semanas.

– Eu o odeio – disse Irene. – Não faz diferença se ele é bonito e se me deixou ver o salão de baile. Tenho certeza de que o irmão dele ficaria chocado em saber o que aconteceu. Eu deveria ter contado tudo a Easterbrook enquanto estávamos na galeria.

Alexia deu um beijo de despedida em Irene.

– Não ocupe seu coração com ódio, Irene.

– Você não precisa disso – falou Roselyn. – Eu odiarei Hayden Rothwell o bastante por todos nós, querida.

Seu rosto se fechou em uma máscara de orgulho. Ela pegou a irmã pela mão.

– Vamos embora – chamou.

Timothy abriu a porta. Ele não apreciou a atitude da irmã ao saírem. Na verdade, não as estava enxergando. Virou-se para a porta aberta e ficou lá, parado indolentemente por um tempo. Seu rosto enrubesceu de emoção.

Alexia manteve a mão no braço dele.

– Você é filho de um cavalheiro, Timothy. Nem isso pode mudar esse fato.

A expressão dele retomou a serenidade e ele se empertigou um pouco.

– Para o diabo com ele – grunhiu.

Deu um passo para fora e seguiu Roselyn e Irene rumo à obscuridade.

Alexia fechou a porta antes que a carruagem partisse. Secou as lágrimas que teimavam em rolar de seus olhos. Não ousava sucumbir ao impulso de se enraivecer com a injustiça da vida. Tinha que aprontar a casa para a chegada da tia e da prima de lorde Hayden.

Também precisava preparar seu orgulho para o momento em que as duas mulheres entrassem pela porta da frente.


– Foi tão gentil de sua parte nos acompanhar, Hayden, mesmo que nosso deslocamento seja só por algumas ruas da casa de Easterbrook. Não tenho muita habilidade para lidar com essas mudanças complicadas.

– Fico feliz em ajudar. A situação exigia pulso firme.

– Como sempre, tê-lo conduzindo as rédeas nos transmite confiança e tranquilidade. Não sei o que faríamos sem você.

O pulso firme em questão não tinha a ver com controlar os cavalos que puxavam a carruagem de Easterbrook por Mayfair. Nem com a enorme gama de detalhes relacionados à mudança de tia Henrietta para Londres. Disso tudo Hayden dera conta com facilidade.

Na verdade, era Henrietta, viúva de Sir Nigel Wallingford, que demandava pulso firme. Ela exigia mais da sua atenção do que os mais complicados investimentos financeiros que ele administrava.

Após a morte do marido, ao tomar conhecimento de que sua renda ficaria bem reduzida, ela assentira como se compreendesse a situação, mas depois não alterara em nada seus gastos. Sendo seu administrador, Hayden cumpria o penoso ritual de ir até Surrey para ralhar com ela por causa das contas altas, reprimendas que a tia aceitava com constrangimento, mas depois alegremente ignorava.

Ele a observou enquanto se sentava junto à filha na frente dele na carruagem. Um chapéu gigantesco cobria a maior parte do cabelo muito louro. Sua aba ampla e pontuda ficava o tempo todo batendo no queixo de Caroline. O maior laço vermelho da história da chapelaria apequenava a copa alta. Uma pluma extravagante traçava um amplo arco e tocava o delicado maxilar de Henrietta. A mulher era baixa e franzina, com rosto pequeno e traços finos, e o chapéu parecia um peso prestes a curvá-la.

Sem dúvida, Henrietta achava que o chapéu era magnífico e valia cada centavo gasto nele, mas não percebia como a envelhecia. Sendo irmã mais nova de sua falecida mãe, aos 36 anos, tia Henrietta ainda possuía feições joviais, mas, usando aquele chapéu, aparentava ter 50.

– Você tem absoluta certeza de que essa preceptora fala um francês impecável? – perguntou ela. – Caroline precisa de alguém muito competente.

– A Srta. Welbourne é bem instruída em todas as matérias necessárias.

Na verdade, não tinha certeza se a Srta. Welbourne sabia francês. Mas, se alegava ter a formação exigida para desempenhar seu novo papel, então deveria ser capaz de demonstrar isso. Ele suspeitava de que ela poderia aprender francês em quinze dias se ainda não soubesse.

– Espero que ela não seja igual à Sra. Braxton – murmurou Caroline.

Uma menina quieta e pálida, Caroline raramente falava. Hayden suspeitava de que a criança que ele via não era a Caroline de verdade, mas uma menina desbotada e enrijecida pela presença da mãe.

– Estou certa de que a Srta. Welbourne será muito diferente de sua última preceptora – disse Henrietta. – Hayden teve que lhe prometer algumas concessões incomuns para persuadi-la a nos ajudar.

Os olhos verde-claros de Henrietta brilharam com o feliz otimismo que a fazia parecer sonhadora e distraída o tempo todo.

– Estamos na cidade agora, querida. É um mundo bem diferente. A Sra. Braxton não serviria. Foi por isso que Hayden encontrou essa casa e a estimável Srta. Welbourne para nós.

Ela concedeu a Hayden um daqueles sorrisos. Um dos sorrisos agradecidos e afetuosos que diziam que ele era a âncora de seu navio sem leme. Ela confiava totalmente no sobrinho, dependia dele em excesso e esperava que ele atendesse a seus caprichos. Provocava um desastre atrás do outro e depois, com pesar, encaminhava o problema para ele resolver, porque ele era tão incrivelmente competente nisso.

Ele não tinha dúvida de que sua tia agia com ele de forma semelhante à que costumava agir com seu finado marido. Sua aparência adorável, as voltas que dava nos assuntos tentando evitar dar explicações, suas tentativas de amansá-lo com elogios – estas eram as marcas de uma mulher que manipulava um homem. Ele gostava de tia Henrietta e até a considerava divertida. No entanto, ser seu administrador por seis anos tinha lhe ensinado certos aspectos do relacionamento diário com uma mulher que vinham com o casamento. Nenhum deles o tinha estimulado a procurar uma esposa.

– Aí está – anunciou Henrietta quando a carruagem parou na Hill Street. – Pedi que o cocheiro passasse por aqui anteontem para me mostrar. A casa é bem bonita e de bom tamanho, não acha, Caroline? Mas não fica em uma praça. Tinha esperanças de que ficasse. Porém, se Hayden diz que é adequada para nós, assim será.

Hayden conhecia bem as esperanças dela. Seu irmão Christian também. Tia Henrietta não dera atenção aos detalhes da mudança para Londres até que ficara difícil demais encontrar um local adequado para alugar. Christian desconfiava de que a tia deles tinha outro motivo para tamanha negligência. Ele estava certo de que ela contava com que ficasse sem lugar para morar, quando então pediria para apresentar sua filha à sociedade no lar de Easterbrook.

Três semanas antes, Christian havia decretado sumariamente que isso não aconteceria, de jeito nenhum. Ele ofereceria o baile de apresentação de Caroline à sociedade, mas não viveria sob o mesmo teto que sua tia intrometida e frívola.

A residência dos Longworths resolvera então um problema iminente. Também dera a Timothy oportunidade de reembolsar Henrietta pelos títulos roubados sem que ela ficasse sabendo do golpe. Henrietta acreditava que Hayden os havia vendido para comprar a casa.

Ao descer da carruagem, Hayden pensou no restante do plano. Com sorte, Caroline ficaria logo comprometida com um rapaz da primeira leva de pretendentes e Henrietta voltaria para sua casa, em Surrey. A casa de Londres seria vendida e os títulos roubados, substituídos por novos. Se a divina Providência realmente sorrisse para ele, após Caroline se casar, sua tia procuraria um marido e Hayden passaria para ele a responsabilidade de controlá-la.

Hayden deu a mão para ajudar a tia e a prima a descerem. Ao entrarem, todos os criados se perfilaram no hall para saudar a nova patroa.

Henrietta examinou a criadagem. Hayden mantivera Falkner, mas o restante do pessoal era novo.

Ele deu um passo à frente quando sua tia se aproximou da Srta. Welbourne e apresentou as duas mulheres – o que não fizera com o mordomo ou com a governanta. Era do seu interesse que elas se dessem bem. Com sorte, a Srta. Welbourne reduziria as demandas de Henrietta por ele.

Tia Henrietta examinou em detalhes a nova dama de companhia. A Srta. Welbourne passou com elegância pela avaliação.

– Esta é minha filha, Caroline – disse Henrietta, instigando a garota a dar um passo à frente. – Nosso atraso em vir à cidade significa que seus últimos retoques precisam de atenção. Imagino que você seja adequada para fazer isso.

– Sou, sim, Lady Wallingford.

– Soube que começou a desempenhar suas funções recentemente e que é prima da família que viveu aqui por último.

Hayden não imaginava que Henrietta soubesse disso. Ela estava na cidade havia somente dois dias. A cor dos olhos da Srta. Welbourne se intensificou, mas ela não demonstrou qualquer outra reação.

– Sim, senhora.

– Vamos conversar um pouco sobre isso. Contudo, não tenho motivos para duvidar da confiança que meu sobrinho deposita na senhorita.

– Obrigada, senhora.

Henrietta seguiu em frente, cumprimentando as empregadas, o lacaio e o cozinheiro. Hayden observava o ritual em um canto do cômodo. Observava principalmente a Srta. Welbourne.

Os olhos dela não vacilaram desde que entraram na casa. Ele percebeu que seu olhar estava pregado em um ponto na parede por trás dele. Mesmo quando Henrietta falou com ela, seus olhos violeta não se moveram. Ela estava resistindo bem àquela provação, mas na verdade não a estava vendo.

Admirou sua atitude e a leve altivez que ela emanava. Alexia podia estar entre os criados, mas só um tolo não veria a diferença. Com certeza sua tia havia percebido isso de imediato, por isso lhe fizera aquela pequena provocação.

O olhar da Srta. Welbourne se moveu sutilmente em direção a ele. Raiva e orgulho se estamparam em seu rosto. Não ouse ter pena de mim, expressou uma olhada rápida. Você mais do que todos os homens não tem esse direito.

O ressentimento dela parecia prestes a desmanchar sua pose. Ele andou em sua direção e fez um gesto para que se aproximasse, tirando-a da fila de empregados.

– Parece que a senhorita tem tudo sob controle. É admirável.

Ele se referia a ela, não aos empregados. Ela pareceu entender. Sua expressão voltou à passividade. Seu olhar se dirigiu para o mesmo lugar de antes, atrás dele na parede.

– Falkner cuidou para que os outros ficassem preparados – disse ela, baixo.

– Acha que consegue lidar com ela? – falou Rothwell, olhando para sua jovem prima.

A Srta. Welbourne olhou para o final da fila também, só que parou para observar Henrietta e não Caroline. Mais especificamente, o chapéu de Henrietta.

– Acho que merecia os dois salários – disse ela.

– Andei pensando que talvez a senhorita valha muito mais para mim.

Ao falar, o tom soou meio malicioso. Se ela percebeu, não teve qualquer reação. Provavelmente porque o sentido oculto tinha ficado somente na cabeça dele, um reflexo de maquinações que não fariam nada bem a sua reputação.

– Acho que tem razão. Mas fiquei satisfeita com nossa última reunião e não espero mais por ora.

– Fico aliviado. Só há uma carruagem, como vê, e minha tia vai querer usá-la de vez em quando. Se a senhorita tiver várias folgas em vez de uma só, isso criaria um sério incômodo para ela.

Ela não pôde resistir e sorriu ao lembrar que o havia derrotado nisso. Sua boca rosa relaxou e revelou seu bem-vindo potencial de sensualidade. Os lábios se afastaram o bastante para provocar pensamentos inapropriados na cabeça dele.

Os olhos de Alexia por fim se voltaram para ele, para partilhar a piada. Ele lhe devolveu um olhar profundo, que exigiu sua relutante atenção. Mas Hayden deixou que o momento se prolongasse demais. A janela se fechou, como se Alexia houvesse notado o perigo nos olhos dele. Ela se empertigou.

De repente, corpos se movimentaram em volta deles. Os criados haviam sido dispensados. O chapéu de Henrietta se intrometeu entre ele e a Srta. Welbourne.

– Hayden, informei ao cozinheiro que você jantará conosco amanhã. Easterbrook e Elliot também.

– Elliot está em Cambridge e Christian tem um compromisso amanhã.

Ele começou a acrescentar suas próprias desculpas, mas ver violetas e rosas deteve suas palavras. A Srta. Welbourne estava falando com Caroline, assumindo suas funções.

– Ficarei feliz em aceitar, se minha presença apenas não for tediosa demais.

– Tediosa, nunca! Não venho a Londres há anos e estaria perdida sem a sua ajuda abrindo caminho para a sociedade. Quase me esqueci do que Caroline deve ver e fazer. Precisamos de você para fazer uma lista de locais que devemos visitar e dos passeios que nós não podemos perder.

Ele desconfiou que ela o incluíra no “nós”. Antes que o jantar do dia seguinte se encerrasse, Henrietta teria sua agenda completamente preenchida com formas como ele poderia “ajudar”.

Era tudo culpa da Srta. Welbourne. Ela o distraíra e ele baixara a guarda. Se ela o deixara à mercê de Henrietta somente com um sorriso, era uma sorte ela o odiar e não sorrir com frequência.

Ele se despediu e recebeu um adeus frio da Srta. Welbourne em meio às despedidas efusivas de Henrietta. Ao deixar a casa, Henrietta estava seguindo a governanta para ver os outros cômodos e Caroline se esgueirava à procura da sala de música.

O que significava que a Srta. Welbourne tinha sido a única a de fato vê-lo partir.


Paciência. Alexia disse para si mesma. Lembre-se do seu lugar. Engula as palavras antes de expressar o que você pensa.

Ela se sentou à mesa da sala de jantar com Lady Wallingford, Caroline e lorde Hayden. Manter-se em silêncio durante esses jantares se mostrou uma tarefa fácil, porque Lady Wallingford não parava de falar com o sobrinho. Nas duas últimas refeições em que tinha estado presente, ela o persuadira a contar todas as fofocas que corriam pela cidade, com descrições completas dos personagens importantes. Esta noite ela o estava pressionando a levá-la ao Museu Britânico.

Lorde Hayden olhava com frequência em direção a Alexia, como se esperasse que ela interrompesse a conversa e o salvasse de sua tia. Ela não se mostrou inclinada a fazer isso. Era uma criada, afinal de contas. Não lhe cabia fazê-lo, não era verdade? Ele estava sendo óbvio demais também. Parecia ignorar a tia todas as vezes que desviava a atenção daquela forma.

Ele tratava a tia com uma firmeza afetuosa que sugeria que a considerava distraída demais para ser responsabilizada por seus excessos. Aparentemente não apreciava por completo a sua personalidade. Em apenas uma semana, Alexia descobrira que as maneiras frívolas e despretensiosas de Lady Wallingford escondiam um tipo muito feminino de astúcia.

– Será mais instrutivo para Caroline se você nos levar, Hayden – disse Lady Wallingford. – Sou ignorante em história antiga e nunca conseguiria explicar a importância dos artefatos. – Ela lhe deu um sorriso que derreteria aço. – E Caroline não conhece muito bem você e seus irmãos. Nem você a conhece, agora que ela não é mais uma criança.

Caroline ficou vermelha até as orelhas. O olhar astuto da sua mãe lhe deu uma deixa. Caroline forçou um sorriso esperançoso.

– Seria maravilhoso visitar o museu com você, Hayden. Se puder dispor de tempo para nós.

Alguns minutos depois, Lady Wallingford pegou o sobrinho em sua rede. Na semana seguinte ele iria acompanhá-las ao museu.

Alexia se divertia vendo a nova patroa manipular esse homem orgulhoso e severo. Ele nem parecia perceber o maior desejo da tia, que era o de fisgá-lo de vez.

– Agora temos que decidir sobre a modista que fará o vestido da apresentação de Caroline – disse Lady Wallingford. – Ouvi falar que existe uma madame Tissot que é uma maravilha e também que a Sra. Waterman serviria. O que nos aconselha, Hayden?

– Eu não entendo disso, mas a Srta. Welbourne as ajudará, espero.

Todos os olhares se voltaram para ela, vencendo suas intenções de permanecer uma mera sombra no canto da mesa.

– Se eu tivesse que escolher, com certeza seria madame Tissot – disse ela.

A Sra. Waterman tinha sido a modista escolhida para fazer o guarda-roupa de Irene Longworth para sua apresentação. Caroline agora vivia na casa de Irene e até dormia na cama de Irene. Por nada neste mundo Alexia permitiria que também ficasse com os vestidos feitos para Irene, se pudesse impedir.

A rispidez de sua reação advertiu-lhe que ela ainda não tinha definido sua situação. Os ressentimentos afloravam em ocasiões como essas. Ter que partilhar a refeição com lorde Hayden também deixava parte de sua alma fervilhando. Aceitar sua atenção arrogante, combater sua aura dominadora, parecia uma perspectiva cruel. Ela esperava que ele demonstrasse mais força de caráter no futuro e declinasse os convites da tia para jantar.

– Antes que encomende qualquer vestido, precisamos ter uma conversinha, tia Henrietta.

– É claro – concordou Lady Wallingford, sua expressão tornando-se obediente e respeitosa. – A própria Caroline insistiu em limitações estritas de custo. Ela é muito mais sensata do que eu nessa área, não é, querida? O homem que se casar com ela vai achar bem mais fácil controlar seus gastos do que os da maioria das outras moças.

Caroline enrubesceu de novo. Seu primo não percebia a isca que pairava acima dele, apenas deu um sorriso vago em aprovação.

A refeição terminou e, com a agenda de lorde Hayden adequadamente preenchida, todos se dirigiram para a sala de estar. Ao chegar à porta, Lady Wallingford anunciou um novo plano.

– Hayden, você daria licença a mim e a Caroline por um instante? Ela tem uma surpresa para você e preciso ajudá-la. A Srta. Welbourne vai entretê-lo enquanto preparamos um passatempo.

E assim Alexia se viu sozinha, sentada em frente a lorde Hayden na sala de estar, em uma situação parecida com a de sua primeira conversa.

– Pode me dar uma dica sobre qual será esse passatempo? – perguntou ele, esticando as pernas de maneira muito informal.

Ela não era nenhuma parenta dele; dispensava tal atitude de familiaridade.

– É um mistério para mim.

– A senhorita é a preceptora dela.

– Acho que isso foi planejado antes da chegada delas. Que eu saiba, não houve ensaios ao longo da última semana.

Ele a olhou daquela forma direta e desconcertante que adotara.

– Então não deve mesmo ter havido nenhum. Tenho certeza de que nada lhe escapa, Srta. Welbourne. Por exemplo, já deve ter percebido que a querida tia Henrietta tem planos para Caroline e eu que vão além de visitas a museus.

– É verdade? Que afortunado!

A consciência dele das intenções de Henrietta arrasaram suas fantasias. Ela tivera esperanças de vê-lo nadar arrogantemente contra a correnteza só para no fim morrer na praia, sob os saltos de Henrietta.

– Ajudaria muito se desestimulasse esses planos.

– Não imagino como. Além disso, vocês formariam um belo casal.

– A senhorita pretende se aliar a tia Henrietta contra mim, não é?

– Nós, mulheres, somos como irmãs nesses assuntos, senhor. E realmente gostamos de ver o poderoso perder.

– A senhorita fala como se eu não tivesse chance – disse ele rindo.

– Tenho esperanças de vê-lo estripado, descamado e na frigideira até junho.

O humor fez os olhos de Hayden brilharem. A diversão o transformara. Não parecia mais tão rígido. Forte, sim, mas não rígido.

– Um peixe? Está me comparando a um peixe? Poupe-me alguma dignidade, Srta. Welbourne. Uma raposa caindo na armadilha, um touro vencido por um toureiro. Há muitas analogias à disposição, mas um peixe é cruel demais.

Ela sorriu sem querer.

– Achei a imagem muito convincente.

Apesar de ainda sorrir, ainda... atraente, a conduta dele ficou mais séria.

– Se a senhorita se recusa a desestimular minha tia, então está certo. Mas faça o que puder para evitar que a garota aceite as ideias da mãe. Não gostaria de vê-la magoada ou desencorajando pretendentes por conta desse esquema. Não há a menor possibilidade de eu me casar com minha prima.

– Por que não?

O sorriso dele foi firme o bastante para dar a entender que Alexia tinha ido longe demais. Não havia novidade nisso e ela não retirou a pergunta.

– Ela é uma criança – disse ele.

– Todas elas são. As igrejas estão cheias de noivas meninas, já que se considera encalhada uma mulher solteira de 22 anos.

– Não pretendo me casar no futuro próximo, menos ainda com uma criança. Essas meninas têm ideias muito frívolas e românticas, o que obriga os homens a fingir fraqueza e sentimentalidade. Além do mais, ela é minha prima. Sei que esses arranjos são comuns, mas são uma prática doentia que não aprovo.

Doentia?

– Benjamin Longworth era meu primo. Não gosto da ideia de que meu amor por ele seja doentio.

Hayden empalideceu.

– É claro que não. Desculpe-me, Srta. Longworth. Às vezes sou muito sem jeito ao expressar minhas ideias.

Seguiu-se um silêncio breve e desconcertante.

– É claro que não tínhamos convivência quando éramos mais jovens – disse ela. – Ele não me conheceu quando eu era garota...

– Sim, exatamente. Então entende por que um casamento com Caroline é... impossível.

Ele encerrou o assunto se levantando e caminhando sem rumo pela sala.

– Quando a senhorita conheceu Benjamin?

A pergunta foi feita casualmente, enquanto ele examinava uma cena doméstica pintada por Chardin. O quadro tinha vindo com vários outros após a partida dos Longworths, um empréstimo da coleção de Easterbrook para cobrir as paredes vazias.

– Quando me juntei a eles aqui em Londres. Eles viviam em Cheapside na época. Escrevi-lhes sobre minha situação depois que meu pai morreu e Ben me respondeu dizendo que deveria vir. Ele foi muito gentil.

Gentil e alegre. O mundo se iluminava quando Ben estava por perto. Ele inspirava uma leveza de espírito, muito diferente do homem que estava em sua companhia no momento, que a deixava com raiva e na defensiva o tempo todo.

– O senhor disse que se conheceram quando eram garotos. Como ele era quando jovem?

– A maturidade não mudou sua personalidade. Ele era igualmente impulsivo e despreocupado quando garoto. E fazia muitas travessuras.

– Quer dizer que ele foi um menino levado.

– De uma forma positiva. Todavia... O garoto, assim como o homem, não pesava as consequências de seus atos.

– É porque Ben vivia o momento. Ele não planejava nada. Contava com a sorte de que tudo desse certo no fim.

Ela amava isso nele. Amava como se sentia livre e quase inconsequente na presença de Ben. A vida a forçara a se tornar tediosa e sensata, até que os sorrisos dele a aqueceram em seu último ano juntos.

Ele lhe devolvera a juventude por um curto espaço de tempo e ela ainda ocultava aquela garota renascida e cheia de vida no mesmo lugar em que guardava as lembranças de Benjamin.

Rothwell tinha se virado e estava olhando para ela. Ele parecia rígido de novo e seus olhos azul-escuros demonstravam quão profundamente ele a avaliava. Ben nunca olhava para as pessoas daquela forma.

Ela sustentou o olhar. Foi um erro. A conexão a deixou em desvantagem, assim como acontecera no hall na semana anterior, quando ele chegara com a tia. O olhar dele era penetrante demais, enxergava demais. Ela sentiu como se ele estivesse lendo seu coração.

Alexia reagiu como acontecia com frequência diante desse homem. Parecia com a forma como Ben a fazia sentir, só que com tintas mais intensas. A atenção que ele lhe dispensava flertava com o perigo. O estímulo que lhe provocava causava tremores de medo.

Ela estremeceu. Disse a si mesma que estava com os pés firmes no chão. Mas a verdade sussurrava o contrário em seu coração. Ela era impotente para desviar o olhar, para rejeitar aquela excitação.

– Imagino que a vida não era enfadonha quando vivia nesta casa – disse ele.

Ela se sentiu corar. Era como se ele tivesse visto aqueles beijos roubados nas suas lembranças e agora se referisse a eles.

Ele parecia prestes a falar de novo, mas foi interrompido. Um lacaio apareceu para dizer que eles eram aguardados na biblioteca.

– Parece que o passatempo está pronto – disse lorde Hayden.

Ele a acompanhou até a outra sala. A proximidade do corpo dele a fez pensar na volta de reconhecimento que haviam feito pela casa. E isso não ajudou em nada a combater o estranho poder que ele exercia sobre ela.

– Gosto de falar sobre Benjamin com o senhor – disse ela ao entrarem na biblioteca. – Espero que algum dia me divirta com casos sobre seu tempo na Grécia ou a juventude dele.

– Certamente, Srta. Welbourne.

Um pequeno palco armado aguardava por eles na biblioteca. Duas colunas baixas flanqueavam um pano azul esticado no chão. Um tecido branco pendia ao fundo, preso nas prateleiras de livros. O cenário improvisado mostrava uma pintura de montanha e de um templo com colunas.

Lady Wallingford estava de pé ao lado. Ela indicou que eles se sentassem em duas cadeiras dispostas diante do pano azul.

Ela bateu palmas para chamar atenção. Outra palma e a representação começou.

Caroline surgiu de trás do cenário. Estava usando uma roupa ao estilo grego, que deixava seus braços de fora e mostrava um pouco de seu quadril e muito da sua pele no pescoço e colo. A mãe prendera seu cabelo para cima, dando-lhe um ar mais maduro, e até maquiara levemente seu rosto jovem.

Caroline estava muito bonita, muito adulta – quase infame.

Alexia esticou o olhar para lorde Hayden, para ver sua reação. Pegou-o discretamente olhando de volta para ela.

– E eu que achava que as tinha sob controle, Srta. Welbourne – sussurrou ele. – Parece que minha tia não pretende esperar até junho para me fritar.

A bela isca de Lady Wallingford se posicionou entre as duas colunas e começou a recitar uma passagem da Ilíada.


CAPÍTULO 5

Usando um vestido velho e envolta num longo xale de lã, Alexia se refugiou na biblioteca. Acendeu a lareira, deitou-se no sofá ao lado e apoiou na barriga um livro aberto.

Silêncio. Liberdade. Um fogo aconchegante e horas de privacidade. Fechou os olhos e saboreou a sensação de retorno a um mundo que conhecia bem. A chuva que batia suavemente no vidro das janelas só melhorou a sensação.

Tinha sido brilhante pedir a lorde Hayden uma folga por semana. Ousado também. Nunca imaginou que seu pedido pudesse ser atendido; ficou até espantada quando lorde Hayden cedeu. Talvez ele de fato se sentisse um pouco culpado em relação aos Longworths. Não havia outra explicação.

Era um ponto a favor dele, mas ela não desperdiçaria tempo avaliando seu caráter. Planejava aproveitar ao máximo essas horas sem Lady Wallingford e Caroline – principalmente, sem o próprio lorde Hayden. Ele estava sempre pelo caminho, fazendo visitas de dia ou jantando à noite. O homem era jovem, solteiro e rico. Com certeza tinha coisas melhores para fazer do que visitar a tia.

Ela sorriu para si mesma. Sem dúvida que tinha. Entretanto, sua tia possuía a excepcional capacidade de requisitar sua presença e faltava nele a habilidade necessária para escapar de suas maquinações. Alexia desconfiava de que sua analogia com o peixe tinha sido inapropriada. Rothwell não estava sendo seduzido com uma isca. Henrietta fixara um anel no nariz dele e o estava lenta e implacavelmente levando para o matadouro.

Ela riu ao pensar nessa imagem. Contudo, enquanto um minotauro era arrastado pela corda de Henrietta, a fantasia se transformou. De repente, ela o viu de pé ao lado da jovem Caroline numa igreja.

Seu júbilo se desfez e ela examinou a cena em sua cabeça. Não seria um casamento com amor. Ela duvidava se havia algum romantismo nele. Caroline imaginaria que sim, pois era jovem e impressionável. Quando essa ilusão se desvanecesse, já teriam se adaptado um ao outro. Caroline teria o que a maioria das mulheres almejava: segurança, apoio e, quem sabe, gentileza.

O quadro mudou de novo e Rothwell não estava mais na igreja. Em vez dele, surgiu Benjamin. E Alexia já não observava tudo olhando de cima: estava ao lado dele. Por um instante, a alegria encheu seu coração, como se a cena fosse real.

Ela afastou a imagem da cabeça com um arrependimento melancólico. A vida nem sempre era como se desejava. Às vezes era preciso se contentar com menos do que fora sonhado.

O livro chamou sua atenção. Normalmente leria Walter Scott em seu quarto, onde ninguém poderia ver. Não era o tipo de literatura séria esperada de uma preceptora. Não tinha sido incluído na lista que ela dera a Caroline como parte de suas lições.

Embrulhada e aconchegada, permitiu-se a libertação temporária de viver em um mundo de homens arrojados e mulheres impressionantes, de paixões fortes demais para estarem no mundo real e de romances dramáticos demais para serem verdade.


– Irc.

O rosto de Caroline se torceu de nojo, mas ela se aproximou da cabeça de abutre preservada em álcool. De todos os artefatos eruditos atulhados na coleção do museu em Montagu House, esse grotesco espécime só não era mais popular do que a múmia egípcia e o porco com cara de ciclope conservado em salmoura.

Hayden sorriu com a fascinação e a repulsa infantis. Era revoltante pensar que ela provavelmente estaria casada dali a um ano. Não aprovava que meninas tão novas fossem oferecidas a pretendentes, e não só porque o casamento precoce de sua própria mãe tivesse sido tão trágico.

– Agora temos que ver as peças de mármore – arrulhou Henrietta, puxando a filha da multidão que observava o abutre.

Por duas vezes Hayden já desviara a atenção delas para que esquecessem os mármores de Elgin. Ele se lembrava perfeitamente de como a tia vestira Caroline para sua apresentação da Ilíada e imaginava por que Henrietta se mantinha tão inflexível quanto a ver as peças de mármore. Pouco tinha a ver com o fato de serem uma mostra magnífica da arte grega.

– Não creio que a Srta. Welbourne fosse considerar apropriado a Caroline ver as esculturas em mármore – disse ele.

– Sou mãe dela; a decisão cabe a mim. Contudo, a Srta. Welbourne a instruiu a vê-las. Falou tão bem desses trabalhos que também tive vontade de revê-los.

– Se ela foi tão categórica, deveria ter nos acompanhado na visita.

Ele só descobrira que a Srta. Welbourne tinha optado por tirar folga naquele dia quando chegara para pegar as damas. Ela o deixara à mercê de Henrietta, enquanto se divertia na cidade, sabe lá Deus fazendo o quê. Teve ímpetos de mandar chamá-la e ordenar que entrasse em sua carruagem imediatamente e que escolhesse outro maldito dia para descansar.

A tia o arrebanhava na direção que desejava que ele seguisse.

– A Srta. Welbourne disse que as esculturas estão em um pequeno prédio à parte. É por aqui, não?

Saíram de Montagu House, enfrentaram a chuva e entraram no anexo que abrigava as esculturas que lorde Elgin retirara do grande Parthenon em Atenas.

– Você não deve ficar chocada, Caroline – instruiu Henrietta. – Grandes artistas tomam liberdades que podem parecer escandalosas, mas a arte ocupa um plano mais elevado da experiência. Além disso, essas peças são muito antigas, de uma época anterior à era cristã.

Hayden suspeitava de que, na verdade, a intenção da tia era causar espanto em Caroline. Essa história de plano mais elevado era lorota. As figuras masculinas no salão estavam praticamente nuas. Sua tia estava realizando uma forma disfarçada de iniciação e a presença dele era inadequada.

Tia Henrietta queria isso também. Ela desejava que a filha visse as estátuas e ficasse se perguntando o que haveria por baixo das vestimentas do futuro marido ao seu lado.

Se a Srta. Welbourne tivesse vindo, poderia ter dado uma aula de arte para Caroline, enquanto ele se manteria à sombra. Conjecturou se Henrietta tinha decretado que a preceptora ficasse em casa, para que ele não tivesse essa opção. O mais provável era que a Srta. Welbourne houvesse desconfiado do plano e dado uma mãozinha para sua tia.

Ele pretendia conversar com a Srta. Welbourne a esse respeito. Muito em breve.

Pararam em frente às métopas que mostravam a batalha entre os lápitas e os centauros. Hayden contou a história exibida ali. Henrietta analisou os aspectos artísticos.

Caroline olhava com curiosidade para os corpos masculinos nus. Seguiu-se um silêncio curto e constrangedor durante o qual Hayden se esforçou para manter toda a compostura.

O cenho de Caroline se franziu.

– Estão todas quebradas. É como se tivessem cortado fora as cabeças e os braços com espadas. Não imagino por que essas obras estão em exposição, muito menos por que são famosas.

Hayden quase respondeu que não era assim que os corpos ficavam quando decepados. A imagem bizarra invadiu sua cabeça e sua alma se entristeceu. Voltou a atenção para as damas a fim de conseguir controlar a sensação ruim.

– Trata-se da escultura das formas, querida. É por isso que são tão apreciadas – disse Henrietta. – Os dorsos, coxas e quadris...

– Não gosto nada disso.

– Outras pessoas compartilham suas críticas, Caroline – disse Hayden. – Muitos só começam a apreciar a arte grega depois de um tempo. Já ouvi dizer que as mulheres passam a gostar mais desses mármores conforme vão ficando mais velhas.

Ele indicou o caminho dessa vez, para fora do anexo.

– É uma pena a Srta. Welbourne ter ido visitar amigos em vez de nos acompanhar – comentou Hayden. – Tenho certeza de que ela seria capaz de explicar os aspectos artísticos para além do meu nível de sensibilidade.

– Ela não tirou folga para visitar amigos – disse Caroline. – Ela pretendia ficar em casa para cuidar de assuntos pessoais. Escrever cartas, coisas assim.

Isso não melhorou seu humor. Ele passaria mais algumas horas nesse passeio, enquanto a Srta. Welbourne escapava de suas funções para escrever cartas. Cartas de amor, era provável, para o falecido Benjamin Longworth.

Ela só se alegrava quando o nome de Ben era mencionado. Transformava-se em outra mulher. A lembrança de seu antigo amor a remoçava como por encanto. Isso era doentio! Também era um amor construído sobre mentiras. Mais uma vez Ben tinha agido por impulso, sem medir as consequências.

Ben nunca pretendera se casar com Alexia Welbourne, independentemente do que ela havia sido levada a acreditar. Estava atraído por uma jovem abastada e de família aristocrática muito antes da viagem para a Grécia. A própria ideia de lutar na guerra tinha sido uma forma de executar atos heroicos que impressionariam a tal jovem rica e inatingível.

Henrietta interrompeu seus pensamentos sugerindo que visitassem a biblioteca do museu. Hayden vislumbrou mais uma hora bancando o professor.

Quando abriu a porta, avistou um rosto familiar. Seu irmão Elliot estava sentado a uma mesa, examinando um grande manuscrito. Elliot retornara à cidade na noite anterior, vindo das bibliotecas de Cambridge, e já estava ali.

– Espere aqui, tia Henrietta.

Hayden deixou as duas na porta e andou na direção do irmão. Elliot estava tão absorto que foi preciso tocar seu ombro para chamar sua atenção.

A basta cabeleira escura foi jogada para trás. Elliot olhou através dos óculos. Sua mente refez seu caminho de volta do lugar aonde o manuscrito o levara.

– Hayden. Que surpresa!

– Será, com certeza. Venha comigo. Se fizer alguma objeção, vai se ver comigo.

Confuso, Elliot se levantou e o seguiu sem apresentar resistência.

– Vejam quem encontrei estragando os olhos em um denso tomo latino – anunciou Hayden.

Saudações cordiais se seguiram. Elliot vivia perdido no passado histórico, mas podia ser bem charmoso, quando queria. Caroline ficou envaidecida com os elogios de como estava crescida e bonita e como logo seria assediada por vários pretendentes depois de sua apresentação à sociedade.

– As damas gostariam de conhecer a biblioteca e saber de suas preciosidades, Elliot.

– Ficaria feliz em mostrar-lhes a coleção. Há muitas raridades que são ao mesmo tempo belas e instrutivas. Há também os projetos do arquiteto Robert Smirke para o novo prédio do museu, que está em construção.

– Que ideia esplêndida – disse Hayden. – Deixo-as em suas hábeis mãos.

Henrietta não ficou nada satisfeita.

– Mas, Hayden, achei que você...

– Tenho um compromisso esta tarde e logo teria que me despedir de vocês, de qualquer forma. Agora podem apreciar a biblioteca sem pressa. Elliot é muito mais qualificado para dar essa aula do que eu. Mostre-lhes tudo. Elas têm o dia inteiro.

Ele concluiu sua fuga. Seria improvável que a tia e a prima aparecessem em casa antes do jantar. Ele deixou a carruagem esperando por elas e saiu para procurar um cabriolé de aluguel.

Ele não mentira. Realmente tinha compromissos nesta tarde. Mas não nas próximas horas. Tinha que ir a outro lugar antes de seguir para o centro financeiro e tratar de negócios.


Ela emergiu de um sonho. Mesmo ao flutuar rumo à consciência, sabia que tinha tirado uma soneca sem querer. Algo a puxara de volta à superfície. Não fora um som. Uma sensação de perigo a arrancara do sono.

Abriu os olhos. A primeira coisa que viu foram outros olhos, de um azul tão escuro que surpreendiam. Avistá-los causou um eco em sua alma: tinha acabado de vê-los no sonho que agora se apagava nas brumas das memórias mais profundas.

As visões e odores do mundo real afastaram rapidamente o sono que restava, deixando-a cara a cara com lorde Hayden Rothwell.

Ele parecia muito alto em pé diante dela. E muito sério também, com uma pequena ruga a lhe marcar o cenho. Provavelmente desaprovava que criados dormissem no sofá da biblioteca.

Ela deu um salto e se sentou.

– Sua tia já voltou?

– Deixei-a com meu irmão Elliot na biblioteca.

Ele pairava sobre ela. Essa proximidade a deixava nervosa.

Isso a incomodava. Mesmo nas ocasiões em que conversavam informalmente, mesmo quando se deixava encantar por ele, esquecendo o motivo de odiá-lo tanto, aquela inquietação incômoda persistia.

Ela não deveria ter que tolerar isso hoje.

– Dei ordens a Falkner para que ninguém entrasse neste recinto.

– Os criados nunca imaginariam que tal ordem me incluiria. Na cabeça deles, sou o patrão desta casa e dono de tudo aqui dentro.

Ele não se moveu, como se enfatizasse que seu poder sobre “tudo aqui dentro” significasse que era dono dela também.

– É assim que pretende aproveitar as folgas que me persuadiu a lhe conceder? Lendo perto da lareira?

– Este é meu dia. Sou livre para fazer o que quiser. Se esperava um relatório, deveria ter me dito.

Ela queria que Hayden fosse embora. Ele estava estragando tudo.

– Então, por algumas horas, viverá aqui como outrora e tratará esta casa como se fosse seu lar de novo. Não havia compreendido o significado real da palavra “livre” quando a usou.

As palavras atingiram o coração de Alexia, ressoando em toda a sua verdade. Ele a compreendia melhor do que ela mesma. Entendia por que essas horas tinham sido tão deliciosas.

Tinha mais um motivo para odiar aquele homem agora. Levantou seu olhar para ele.

– Por que está aqui?

– Para vê-la.

Seu olhar mudou. Viu-a da cabeça aos pés, com o velho vestido verde e o grosso xale de lã. Alexia deveria ficar constrangida por suas vestimentas simples, mas naquele momento elas pareceram convenientes e... seguras.

– Também vim para conversarmos, de forma que entenda o que preciso que faça.

– Conheço minhas funções.

– Parece que não. Esperava que acompanhasse minha prima hoje.

– Como ela estaria acompanhada do senhor e da mãe, não havia necessidade que eu fosse. Sua tia concordou.

– Nós dois sabemos por que minha tia não quis que a senhorita fosse conosco. Assim ela poderia empurrar a menina mais facilmente para cima de mim.

– As intenções de sua tia em relação ao senhor não me dizem respeito. Escolhi este dia de folga com cuidado, de forma a não interferir nas aulas de Caroline.

– Acho que escolheu este dia para me evitar.

Mais uma vez, suas palavras ressoaram dentro dela.

– Talvez sim. O senhor tem sido uma presença mais constante nesta casa do que eu esperava. Para mim é muito árduo reunir as forças necessárias para manter a elegância.

A expressão dele se fechou de uma forma que ela conhecia bem. Ela estava sendo novamente ousada demais. Mas não se incomodava. Era seu dia de folga e isso significava, antes de qualquer coisa, que poderia ficar livre dele.

– De agora em diante, quando eu acompanhar minha prima e minha tia, a senhorita irá conosco.

– Não recebo ordens suas sobre minhas obrigações. Cabe à sua tia decidir, não ao senhor.

– A senhorita estará lá – disse ele com firmeza.

Ela cerrou os dentes e olhou para o fogo, ignorando Hayden o máximo possível. Mas ele já devia estar de partida. Depois de ter decretado a nova lei, não havia motivo para permanecer ali.

Ele não foi embora, mas, pelo menos, se afastou. Infelizmente, ficou mais perto da lareira, assumindo uma posição que exigia que ela olhasse para ele. Alto, forte e moreno, ele penetrava seu campo de visão e sua mente.

– A senhorita estava sorrindo enquanto dormia – disse ele. – Estava sonhando com ele, Ben?

– Não sei.

Um par de olhos a encarou das profundezas de sua memória.

– Acho que não, mas talvez sim – concluiu ela.

– Ele era meu amigo e tenho uma dívida com ele, mas...

– Espero que nunca tenha uma dívida comigo, pois sei muito bem como faz o ressarcimento.

Ela alcançou seu intento com essa frase. A reação dele fez sua nuca formigar. No entanto, junto com a precaução vinha uma enxurrada das outras sensações que aquele homem sempre lhe provocava.

– Ele morreu há três anos – disse Hayden. – Talvez devesse esquecer essa fixação.

A raiva lhe subiu à cabeça, fazendo-a deixar a prudência de lado. Levantou-se.

– Minhas lembranças são muito caras para mim, mas não são uma fixação.

– Na noite em que Caroline fez a apresentação da Ilíada, a senhorita falou do seu amor no presente do indicativo.

– Tenho certeza de que não fiz isso.

– Fez, sim, e está perdendo seu tempo.

– O senhor está sendo impertinente. Esta conversa seria despropositada mesmo que fosse um amigo íntimo, o que certamente não é. Não toleraria essas especulações intrometidas de um parente, imagine do senhor.

Ele se aproximou dela. Ela quase deu um passo para trás, mas sua raiva ignorava a prudência.

– A senhorita não terá um futuro, a menos que o deixe ir embora.

Alexia teve que vergar o pescoço para olhar para Hayden. Ele mais uma vez tentava impor sua presença e sua vontade. Gostava de fazer isso. Alexia queria poder bater nele pelo que lhe causara. Sua pulsação se acelerou e suas têmporas pareciam explodir.

– Como ousa falar do meu futuro? O senhor, entre todos os homens? Ele já era pouco promissor o bastante há um mês. Eu não tinha fortuna nem beleza, mas, pelo menos, tinha uma casa e uma família. É ultrajante de sua parte tocar neste assunto comigo.

Ele aceitou suas acusações sem comentários. Alexia percebeu a raiva em seus olhos, que se equiparava à sua própria. Mais do que nunca era necessário ter cautela, no entanto, Alexia a jogou pelos ares.

– Existem homens que veem além da fortuna. E sua beleza é suficiente.

Considerando sua expressão intensa e séria, a voz dele soou muito calma.

– Agora o senhor está sendo cruel.

– Seus olhos são magníficos. Hipnotizantes. E refletem seu espírito indomável.

O elogio a deixou sem palavras. A raiva enfraqueceu. Em um esforço de reunir os pensamentos espalhados com o choque, ela ficou tentando desesperadamente se recompor.

Hayden deu mais um passo em direção a ela. Alexia não percebera sua aproximação antes, mas ele estava muito perto. Perto demais. Olhou dentro dos olhos dele. Era ela a hipnotizada agora.

Um toque aveludado em seu queixo. Ele a estava tocando. Um tremor pulsou sob os dedos dele e se espalhou para o colo de Alexia. Ela deveria...

– Sua pele é maravilhosa – disse ele, afagando-a de leve.

O toque suave, tão surpreendente e íntimo, deixou-a sem fôlego. O olhar dele baixou.

– E sua boca, Srta. Welbourne, sua boca é tão linda que duvido que um dia a senhorita possa entender quanto.

Ele olhou nos olhos dela outra vez e de novo a surpreendeu. Seu olhar queimava, cheio do perigo que percebera desde a primeira vez que o vira.

Com os olhos arregalados de espanto, ela notou a decisão repentina de Hayden. Foi tão absurdo que ela não acreditou em seus instintos.

A boca de lorde Hayden encontrou a de Alexia. Quente, firme, autoritário, o beijo levou a uma sequência de susto e maravilhamento. Sua cabeça era uma confusão só. Em algum lugar no meio de suas reações caóticas, a Alexia prática dava ordens sensatas sobre o que fazer, mas ela estava deslumbrada demais para obedecer.

Ela reagiu sem acanhamento. Sentindo que um calor premente percorria seu corpo todo, pulsando e fervilhando em seus seios, seu ventre e mais abaixo. A excitação se tornou física, ameaçando tomá-la por completo. Correntes de prazer a seduziam a ponto de abandonar-se.

As sensações a encantaram. Ele a abraçou e ela se rendeu. Era uma intimidade tão deliciosa que Alexia gemeu silenciosamente em agradecimento. A força que a segurava, o corpo firme pressionando o seu, o calor intenso da boca beijando seus lábios, seu pescoço, seu peito... Uma Alexia nem um pouco sensata se revelou no estímulo sensual e acolheu a torrente de paixão.

Os beijos pararam. Dedos firmes e viris seguravam seu rosto. Ela abriu os olhos e encontrou lorde Hayden observando-a. O desejo transformava a severidade dele. Mesmo sua rigidez ficava sedutora.

Ele a beijou de novo e uma batalha começou a ser travada dentro de Alexia. Ela vira muitas coisas em seus olhos. Os pensamentos que fervilhavam na mente dele. Também percebeu a impressão que dava naquele momento: era uma mulher se submetendo a um homem de quem não gostava e em quem não confiava. Uma solteirona solitária aceitando as atenções de um qualquer.

Alexia recobrou um pouco do equilíbrio perdido, mas não queria abrir mão de se sentir tão viva. Não queria perder aquele contato físico. Mesmo quando suas mãos empurraram o peito dele, tentando se soltar, grande parte dela queria se fundir nele, não importando quem ele era, nem a vergonha que adviria.

Ela viu e sentiu cada instante a seguir – o relaxamento da pegada dele, o lento desmanchar de seu abraço, o afastamento de seu toque – e seu corpo reagiu a cada perda.

Alexia se afastou rapidamente rumo à janela. Incapaz de encará-lo, olhou para fora. Tentou se aprumar para parecer normal quando saísse da biblioteca. Assim que seu bom senso retornou, uma forte sensação de humilhação a invadiu.

Esperava que lorde Hayden tivesse a bondade de sair. Ele não teve. Ela pensou que ele pelo menos iria se desculpar. Ele nada disse. Sentiu que ele a olhava. Isso só piorou as coisas. Se ele fosse embora, ela poderia maldizer sua própria fraqueza e a crueldade dele. Enquanto ficasse, ela continuaria trêmula e envergonhada, perturbada demais para se recompor.

– Isso não foi muito honroso de sua parte, lorde Hayden.

– Não.

Ele não parecia arrependido. Seu tom parecia dizer: Talvez não, mas eu faço o que quero.

– Sei por que fez isso – disse ela. – Sei o que deve estar pensando a meu respeito.

– Então a senhorita sabe muita coisa.

A voz de lorde Hayden Rothwell soou mais próxima. Alexia percebeu que ele tinha vindo em sua direção. Parara a menos de um metro dela. Para seu espanto, a excitação e o perigo começaram a enfeitiçá-la de novo. Seu coração começou a bater mais pesado e mais lento.

– O que penso da senhorita? Como não tenho certeza, uma explicação sua seria muito útil.

Um homem decente teria se desculpado e ido embora.

– Ben e eu não éramos tão íntimos. O senhor interpretou mal.

– Não estava pensando nisso, de forma alguma. Meu único pensamento foi que a senhorita precisava ser beijada.

Ela se virou determinada a colocar um fim na maneira como brincava com ela. Seu coração falhou ao vê-lo, mas ela conseguiu pôr aquela excitação de adolescente em seu devido lugar.

– Não pelo senhor. Não sou a criada de quem o lorde pode se aproveitar. Peço-lhe que se lembre disso no futuro.

Ele a olhou direto nos olhos, como sempre, só que agora seu olhar refletia aqueles beijos. Agora seria sempre assim. Dar liberdades a um homem criava uma familiaridade que minava de uma vez por todas qualquer formalidade.

– Não tentei agarrá-la, só a beijei. E não foi de forma tão ousada quanto a senhorita teria permitido.

O rosto dela estava fervendo.

– Agora o senhor está me insultando.

– Não, estou sendo honesto. Mas vou deixá-la a sós, para que finja o contrário.

Com um leve cumprimento, Hayden se dirigiu para a porta.

– Lorde Rothwell, espero que no futuro demonstre o respeito que meu emprego junto a sua prima exige.

Ele parou à porta e virou-se.

– Ainda não me decidi.

– Então permita-me ajudá-lo a se decidir. Não gostei de seu beijo e não deve fazer isso de novo.

Ele abriu a porta.

– Gostou, sim. Acha que um homem não consegue perceber a verdade?


CONTINUA

Uma sombra penetrou cedo na casa junto com o visitante inesperado. Alexia se sentiu perturbada mesmo antes de ver quem era.
Ela descia a escada carregando sua cesta de costura e parou nos degraus ao notar as vozes que conversavam baixo no hall. Mesmo sem entender direito as palavras, compreendeu o tom firme de quem faz exigências. Percebeu que a forma respeitosa como o empregado se opunha de nada servia. Falkner, o mordomo, foi chamado. Diante de um poder silencioso e determinado, as barreiras da casa cediam.
Um mau pressentimento tomou conta de Alexia, como no dia em que aquele homem havia chegado para contar à família sobre Benjamin. Já tivera essa sensação vezes suficientes para saber que não deveria ignorá-la. Más notícias mudam o mundo em um segundo. Mudam o ar. O coração humano pressente que o sofrimento está chegando com tanta certeza quanto um cavalo percebe uma tempestade que se aproxima.
Não conseguiu se mover. Ia se juntar às primas no jardim, para aproveitar o sol da tarde com sua cesta de costura, mas a ideia lhe fugiu da mente.
Um par de pernas surgiu andando na sua direção. Pernas compridas, calça preta e botas elegantes. Elas seguiram o mordomo rumo à escada. Falkner tinha no rosto a expressão de um serviçal que houvesse recebido ordens de um rei.
O tronco do visitante começou a entrar em seu campo de visão, logo seguido dos ombros e da cabeça. Como se sentisse que alguém o observava, ele olhou para cima, para o patamar onde ela se encontrava.

 

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Imediatamente Alexia entendeu a submissão de Falkner. A atitude, o rosto e o porte do visitante intimidariam até quem não conhecesse sua posição social. O cabelo escuro, desarrumado de um jeito que parecia não ter sido penteado naquela manhã, emoldurava o belo rosto de traços angulares e fortes, como se fossem entalhados. Sinais de cansaço obscureciam o azul profundo de seus olhos. Um autocontrole forçado retesava seu maxilar quadrado e sua boca bem desenhada. Lorde Hayden Rothwell, irmão do quarto marquês de Easterbrook, era a imagem do homem exausto mas determinado a cumprir sua dura tarefa. Certamente não viera em resposta aos muitos convites que Timothy havia deixado para Easterbrook em sua residência ao longo do último ano.

Ao se aproximarem, Falkner cruzou os olhos com os dela, expressando seu desânimo. O mordomo também pressentia a tempestade.

Lorde Hayden parou no mesmo patamar da escada em que ela se encontrava e fez um gesto quase imperceptível, cumprimentando-a. Já haviam sido apresentados, mas ele não lhe dirigiu a palavra. Em vez disso, ao levantar o rosto, mediu-a dos pés à cabeça. A avaliação foi tão completa, tão estranhamente interessada, que ela sentiu que corava.

A expressão daquele rosto anguloso se alterou levemente. Como se uma estátua tivesse ganhado vida, os olhos do homem se suavizaram e sua boca relaxou. De súbito, a compaixão o serenava.

Mas, em um piscar de olhos, seu porte severo voltou, expulsando a candura. Alexia, no entanto, vira o bastante para sentir o coração pesar. Reconheceu pena no olhar que ele lhe dirigira. A chegada desse homem não anunciava nada de bom.

– Está levando lorde Hayden para a sala de visitas ou para a biblioteca, Falkner?

Ela estava sendo indelicada, mas não se importava. Com o passar dos anos, aprendera que imaginar más notícias era pior do que efetivamente ouvi-las. Não tinha a menor intenção de ficar esperando, submissa e preocupada.

– Para a sala de visitas, Srta. Welbourne.

Lorde Hayden percebeu suas intenções.

– Por favor, não perturbe a Srta. Longworth com minha presença. Não se trata de uma visita social.

– Não a incomodaremos se não for seu desejo. Contudo, é possível que demore algum tempo até que o Sr. Longworth possa recebê-lo. Podemos ao menos nos encarregar de que o senhor fique à vontade.

Não esperou por aprovação. Deu meia-volta e foi subindo a escada, indicando o caminho para o segundo andar.

Ao chegar à sala de visitas, deixou a cesta de costura de lado e cuidou para que ele ficasse confortável, conforme prometera. Ainda que ele não quisesse, ela se portaria educadamente, como uma anfitriã.

– O tempo está bastante agradável para janeiro, não acha? – perguntou ela após ele ter concordado em se sentar no sofá novo, de um tecido estampado em tons azuis. – O dia até agora está maravilhoso.

As sobrancelhas dele se arquearam um pouco diante da infeliz ênfase no “até agora”.

– Sim, tem feito um calor atípico nos últimos dias – disse ele.

– Acho dias assim cruéis, por mais que os aprecie.

– Cruéis?

– Eles me fazem acreditar que a primavera está se aproximando, quando ainda teremos alguns meses de frio e umidade pela frente.

Por um segundo, uma luz travessa brilhou nos olhos dele.

– Pode não passar de uma ilusão – falou o homem –, mas prefiro me deleitar nessa calidez e me preocupar com o frio apenas quando ele chegar.

A frase pareceu quase imprópria. Ela mudou de assunto fazendo uma observação sobre os feriados recentes. Ele concordava com tudo o que ela dizia. Com muita dificuldade, ela ia levando adiante a desajeitada conversa.

A mente dele não estava ali, mas na reunião com Timothy. O ar na sala de visitas foi ficando pesado. A presença daquele homem fazia pensar que o juízo final estava próximo.

Ela não aguentava mais.

– Meu primo está doente, lorde Hayden. Talvez não consiga se recompor o bastante para recebê-lo. A conversa não pode esperar mais um dia?

– Não.

Foi tudo o que obteve dele. Essa única palavra, dita de modo simples, direto e firme.

Ele voltou sua atenção para longe da conversa, para o nada. E continuou assim, como antes, na escada. Ela se perguntou se ele a consideraria presunçosa por recebê-lo. Não era a dona da casa, apenas uma mera prima. Mas a culpa não era dela se ele estava confinado ali com uma substituta. Fora ele quem não permitira que Roselyn fosse informada de sua presença.

– Talvez, senhor, se eu levasse uma mensagem para meu primo a respeito de sua visita, ele pudesse...

A voz dela foi se dissipando quando ele a encarou como um vigário faz para silenciar uma criança tagarela na igreja.

Ela não se importou com a expressão em seus olhos, que deixava claro que ele percebera o que ela estava fazendo. Hayden Rothwell tinha a reputação de ser inteligente, ríspido e arrogante. Até o momento, ela não poderia discordar dessa avaliação.

Mas também ela não tivera muito tato ao tocar no assunto. Então tentou uma nova abordagem. Como ele era conhecido por sua sagacidade nos negócios, mudou o rumo da conversa para esse tema, tentando deixá-lo mais receptivo a outras perguntas.

– Teve alguma notícia do centro financeiro hoje, lorde Hayden? A crise nos bancos continua?

– Temo que permanecerá por algum tempo, Srta. Welbourne. É de se esperar quando as pessoas têm medo.

– O senhor tem negócios com o banco do meu primo, não é verdade? Está tudo bem por lá, espero.

– Há uma hora, quando saí do centro financeiro da cidade, o Darfield e Longworth permanecia sólido.

– Graças a Deus. Não houve uma corrida ao banco, então. Com tantas outras instituições passando por problemas, fiquei preocupada.

Uma sombra perceptível em seu olhar demonstrava que ele parecia se divertir.

– Não, não houve corrida ao banco.

Isso a aliviou. Várias das grandes instituições financeiras londrinas tinham enfrentado dificuldades no mês anterior. Os jornais estavam cheios de boatos sobre a quebra de pequenos bancos. Aonde quer que se fosse, só se falava em fracasso, ruína e falência. Ela suspeitava de que a atual doença de Timothy se devesse à preocupação com o futuro de seu banco.

– A senhorita tem dinheiro lá? – questionou, parecendo realmente interessado.

– Uma ninharia. Minha preocupação é com meus primos.

Ela conseguira atrair sua atenção com as perguntas sobre a situação financeira do banco. Até bem demais. Ele a olhou de novo, mais demoradamente dessa vez, com uma arrogância casual que demonstrava que ele se sentia nesse direito, algo que homens em posição inferior não ousariam. Aquela avaliação só seria feita por um homem que tivesse plena consciência de seu valor e que, por isso, dispensava algumas regras de etiqueta.

A atenção dele se concentrou intensamente nos olhos dela, observando-a de forma tão perspicaz que ela precisou piscar para se recompor. Lenta e deliberadamente, ele analisou o restante do corpo de Alexia. Ela enrubesceu e uma comichão desconfortável percorreu toda a sua pele. Ele a perturbou de tal maneira que lhe fez lembrar a sensação causada anos atrás pelo olhar de outro homem.

Ficou embaraçada diante da própria reação. Não se julgava alguém que se deixasse abalar por um homem bonito. Não era tola como a jovem Irene. Em silêncio, se censurou por agir como uma solteirona ávida pela atenção de um homem.

Nada na expressão dele indicava que houvesse notado o desconforto dela. Nem ela teve qualquer ilusão de que o interesse do homem fosse desse tipo. Ela sabia o que ele estava pensando. Com seu cabelo castanho e o rosto comum, ela não causava grande impressão. Sem dúvida ele também percebera como os módicos recursos financeiros afetavam sua aparência. Seu vestido não só estava fora de moda como também tinha discretos remendos. O lorde provavelmente estaria vendo cada ponto deles.

– Srta. Welbourne, creio que fomos apresentados no culto a Benjamin – disse ele. – A senhorita é a prima que veio de Yorkshire, não?

Seu orgulho foi atingido por um doloroso golpe. Ele não sabia quem ela era ao entrar naquela sala de visitas. Se não lembrava que já haviam sido apresentados, ele deveria achar incomum o fato de tê-lo recebido, assim como certamente a considerara bastante ousada em sua conversa.

O choque foi seguido pela irritação. A raiva que sentia não era dele, apesar de abrangê-lo mesmo assim, mas tinha origem na situação que a tinha tornado tão esquecível.

– Sim, nos conhecemos no culto em homenagem a Benjamin.

O nome e a lembrança fizeram ecoar uma antiga dor. Tinha sido um culto, não um funeral. O corpo de Benjamin não estava presente, mas perdido no mar. Fazia quatro anos que ele partira da Inglaterra e ela ainda sentia sua falta.

De repente, lorde Hayden não pareceu tão rígido. Uma expressão mais sociável suavizou suas feições belamente esculpidas.

– Eu o tinha como um amigo – disse ele. – Nós nos conhecemos na infância. Sua casa não fica longe das terras de Easterbrook em Oxfordshire.

Timothy sempre mencionava os laços entre Easterbrook e sua família, devidos ao fato de serem vizinhos. Não era uma ligação tão próxima a ponto de que respondessem aos convites de Timothy, é claro. No entanto, se a amizade tinha sido entre Benjamin e Hayden Rothwell, isso explicava algumas coisas, como o motivo da presença de lorde Hayden no culto.

– O senhor também lutou na Grécia, não? – perguntou ela, feliz por tocar em um assunto que o deixava menos severo e que mencionava o querido Benjamin.

– Sim, fui um dos admiradores da Grécia que aderiu à causa deles contra a Turquia. Participei da guerra no início, na mesma época que seu primo. Mas, ao contrário dele e de Byron, tive a sorte de sair vivo dessa aventura.

Ela imaginou Benjamin, sempre otimista, um homem tão cheio de vida e alegria que isso o tornava imprudente. Viu-o lutando como um herói pela liberdade do povo, tendo atrás de si a paisagem de um antigo templo nas montanhas. Ela cultivava essa imagem dele. Como lorde Hayden tinha estado lá com Benjamin, ela já não se importava tanto que ele a tivesse olhado dos pés à cabeça.

Ele estava fazendo de novo, só que agora não era seu vestido que analisava. Era seu rosto e... ela.

– Perdoe-me, Srta. Welbourne. Não quero parecer inconveniente, mas seus olhos têm uma cor incomum. Parecem violeta. É a luz aqui ou já lhe disseram isso antes?

– Não é a luz. A cor dos meus olhos é a única característica marcante que possuo.

Ele não discordou, o que ela considerou deselegante. Ele refletiu sobre a resposta dela e sobre a sua própria.

– Ele falou da senhorita com respeito e afeição. Benjamin, na Grécia. Não disse seu nome. Olhos violeta, no entanto... lembro-me dessa referência. Não percebi no culto que seus olhos tinham essa cor ou teria lhe dito, o que poderia ter-lhe trazido algum consolo naquele momento.

O coração dela se inundou com uma emoção suave e perfeita, apesar da dolorosa saudade que a provocara. Mal pôde se conter e seus olhos se umedeceram. Benjamin falara dela nos dias antes de sua morte. Fizera confidências a esse homem sentado com ela na sala de visitas. Lorde Hayden sabia de seu amor e de seus planos. Alexia tinha certeza disso.

Não ligava mais para o motivo que o trouxera ali. Sua gratidão pela pequena indicação de que Benjamin realmente gostava dela, de que pretendia se casar com ela, foi tão intensa que Alexia seria capaz de perdoá-lo por qualquer coisa naquele instante.

Passou a encará-lo de forma mais amigável. Tratava-se de um belo homem, agora que se permitia reparar. Não era totalmente rígido também. A dureza em volta da boca era culpa das características de sua família. Não se podia culpá-lo se seus ossos lhe davam uma aparência severa em vez de alegre.

– Obrigada por me contar isso. Ainda sinto muitas saudades de meu primo. Emociona-me saber que ele pensava em mim quando estava distante.

Desejou que ele repetisse as palavras exatas que Ben tinha dito. Mas, se ele pretendera fazê-lo, suas intenções foram frustradas. Timothy escolheu aquele exato momento para surgir na sala de visitas.

Timothy parecia bastante adoentado, com o rosto vermelho e os olhos apáticos. Alexia se perguntou se ele não estaria febril. Contudo, seu criado o deixara apresentável, com seu cabelo cor de areia e rosto ansioso despontando sobre casacos e colarinho que demostravam sua tendência a certa extravagância no vestir.

– Rothwell.

– Obrigado por me receber, Longworth.

Alexia se levantou de imediato, despedindo-se. Seu coração ainda estava repleto de felicidade por saber que Benjamin mencionara seus olhos aos seus amigos solteiros na Grécia. Todavia, não conseguia ignorar que um clima de más notícias iminentes impregnara a atmosfera da casa.


Segurando sua cesta, Alexia adentrou o jardim para se juntar às primas. A beleza da hera e do buxo não chegava aos pés de sua exuberância nos dias gloriosos de verão, mas o sol espantava o pior do frio e a falta de vento tornava o jardim um local hospitaleiro.

Roselyn e Irene aguardavam à mesa de ferro, com dois chapéus e sacolas com fitas e aviamentos. Alexia decidiu não mencionar o visitante. Talvez o mau pressentimento que ainda pairava em sua alegria recente fosse apenas uma impressão passageira.

– Você demorou – reclamou Irene, segurando um dos chapéus. – Ainda acho que este aqui não tem salvação e que deveria comprar um novo. Timothy disse que eu poderia.

– Nosso irmão é gastador demais – disse Roselyn. – Se não quisermos que sua apresentação à sociedade nos leve à falência, teremos que ser mais controladas.

– Não é Timothy quem fala em controlar o dinheiro, só você. Nem terei uma grande apresentação, não importa quantos chapéus eu compre – falou e um tom petulante surgiu em sua voz: – Não serei convidada para os melhores bailes. Todos os meus amigos já disseram isso.

– Pelo menos você terá uma apresentação – disse Roselyn. – Certamente é melhor ser irmã de um banqueiro importante do que de um proprietário rural empobrecido. Deveria agradecer a Deus por nossos irmãos terem investido nesse negócio. Se voltássemos para Oxfordshire, você se contentaria com um chapéu novo por ano e o escolheria com mais zelo, em vez de comprar três que não combinassem com você.

Alexia se sentou entre elas, tentando encerrar a discussão. Sendo a mais nova das irmãs Longworths, Irene não entendia a boa sorte que lhes coubera quando, oito anos antes, seu irmão Benjamin decidira investir no banco. A garota só via o que tinha perdido em termos de status, o que não contrabalançava com o luxo que ganhara.

Roselyn, agora com 25 anos, se lembrava muito bem do tempo em que haviam sido obrigados a vender as terras da família em Oxfordshire por causa de dívidas. Em função disso, ela não tivera uma apresentação formal aos homens solteiros na juventude e agora suas chances de se casar eram mínimas. Quando o recente sucesso do banco produziu uma longa fila de pretendentes, ela se mostrou descrente e exigente demais. Alexia suspeitava de que Roselyn se ressentia de que o interesse por ela só surgira após o enriquecimento da família.

– Podemos trocar a fita de cetim rosa por essa amarela – disse Alexia. – E olhe aqui, posso aparar as bordas, para deixar o arco mais perto do seu rosto.

– Vou odiar. Não gosto de chapéus reformados, mesmo que a reforma seja feita por alguém tão habilidoso como você. Fique com ele, se quiser. Pode ficar com o vestido que faz conjunto com ele também, então não terá mais que usar este de cintura alta. Vou avisar à minha criada que ele vai ficar para você, assim ela não o pedirá.

Alexia olhou fixamente para o conjunto de fitas brilhantes e coloridas que cintilava à luz do sol. Irene não era cruel por natureza, apenas jovem e, devido à mão aberta de seu irmão, mimada.

Um silêncio pesado pairou no ar. Irene pegou o chapéu, o avaliou com atenção e o jogou no chão.

– Peça desculpas – ordenou Roselyn em tom ameaçador. – Não vou pensar duas vezes antes de mandá-la morar no interior. Londres está virando sua cabeça e isso não é nada admirável. Está se esquecendo de quem é.

– Ela não está se esquecendo de nada – disse Alexia em um rompante.

Logo em seguida desejou não ter dito aquilo, mas não conseguira conter sua mágoa e seu ressentimento. Respirou fundo, com calma.

– Eu também não me esqueço de quem sou. Só você, por ser tão boa. Todos sabem que dependo desta família, que sou uma parenta pobre que deveria ficar grata por receber aquilo que minhas jovens primas jogam fora. Cada garfada que como é fruto da caridade de seu irmão.

– Oh, Alexia, eu não quis dizer isso... – falou Irene com o rosto contorcido de arrependimento.

– Não é verdade – replicou Roselyn para Alexia. – Você é uma de nós.

– É verdade. Concordei com esta situação anos atrás. Não me importo.

O fato era que se importava. Tentava ignorar, mas isso a desgastava. A humildade e a gratidão que sua situação exigia às vezes lhe escapavam, principalmente porque de início não se sentira obrigada a tê-las.

Sua mudança fora inevitável quando a propriedade da família passou para um primo de segundo grau. Não houve convite para viverem com esse herdeiro, como seu pai supusera. Assim, com 18 anos recém-completados, Alexia fora forçada a escrever para os Longworths, primos pelo lado de sua mãe, pedindo que a deixassem morar com eles. Não levara nada consigo além de vinte libras por ano e seu talento para reformar chapéus.

Benjamin, o primo mais velho, nunca permitira que ela se sentisse um problema para a família, apesar de sua chegada haver coincidido com o início de um novo empreendimento dele, que lhe deixara pouca folga nas despesas daquele primeiro ano. Com o sorriso largo e o bom humor de Benjamin, ela jamais sentia que devesse se mostrar apenas discreta e obediente. Mas depois da morte dele, a realidade de sua dependência ficara clara. Ben dava a ela os mesmos cuidados que oferecia a suas irmãs, ao passo que Timothy a enxergava com outros olhos. Agora ela não passava de conselheira nas visitas às modistas de Londres. Timothy a via como o fardo que ela era, enquanto Benjamin a vira como...

Uma memória de amor cuidadosamente preservada, um eco de emoção profunda e pungente, fez seu coração doer. Ele a vira como uma prima querida e uma cara amiga, o que no último ano tinha evoluído para algo mais. Se o que lorde Hayden dissera era verdade, então ela não se enganara. Se Ben tivesse voltado da Grécia, teria se casado com ela.

Pegou o chapéu.

– Obrigada, Irene. Vou ficar feliz em usá-lo. Pensando melhor: fita azul. Nem rosa nem amarelo vão tão bem com minha cor de cabelo e o tom de minha pele.

Roselyn cruzou os olhos com os de Alexia como que se desculpando. Alexia respondeu também com o olhar: Nasci filha de um cavalheiro, mas aqui estou, com quase 26 anos, sem dinheiro nem futuro. É assim que o mundo funciona. Não tenha pena de mim, eu lhe imploro.

– Quem está lá? – perguntou Irene, interrompendo a conversa silenciosa. – Lá em cima, na janela da sala de visitas.

Roselyn se virou a tempo de ver o cabelo escuro e os ombros largos antes que o homem se afastasse do vidro.

– Temos visita? Falkner deveria ter me chamado.

Alexia começou a retirar a fita rosa.

– Ele pediu para se encontrar com Timothy e não quis que você fosse incomodada.

– Mas Timothy está doente.

– Ele se levantou da cama mesmo assim.

Alexia sentiu a atenção de Roselyn sobre ela enquanto se ocupava do chapéu.

– Quem é? – perguntou Roselyn.

– Rothwell.

– Lorde Elliot Rothwell, o historiador? O que é que ele...

– O irmão dele, lorde Hayden Rothwell.

Os olhos de Irene se arregalaram. Ela deu um pulo e bateu palmas.

– Ele está aqui? Acho que vou desmaiar. Ele é tããão atraente.

Roselyn franziu a testa e olhou para a janela.

– Ai, meu Deus!


– Você andou bebendo, Longworth – disse Hayden. – Está sóbrio o suficiente para ouvir e se lembrar do que vou dizer?

Longworth se espalhou confortavelmente no sofá azul.

– Sóbrio até demais.

Hayden examinou Timothy Longworth. Sim, estava sóbrio o bastante, o que era bom, já que o que tinha para lhe dizer não poderia esperar. A chance de sucesso do plano diminuía a cada hora que passava.

– Passei os últimos dois dias com Darfield, enquanto você se escondia em sua cama, bebendo – disse ele. – O banco pode sobreviver à crise atual, se você seguir minhas instruções.

– Eu disse a Darfield que sobreviveria. Ele é covarde como uma velhota e teme que as reservas estejam muito baixas, mas eu lhe garanti nossa solidez.

– Só sobreviverá porque tomei ontem a decisão de manter os depósitos da família com você. Isso bastou para deter uma corrida ao banco que começou esta manhã.

– Houve uma corrida? – perguntou Longworth, tendo a decência de parecer preocupado. – Eu deveria ter estado lá, sei disso.

– É lógico que deveria.

– Mas o pior já passou, não é verdade? O perigo foi evitado, como disse.

– Por pouco. Apesar de ter vencido as dificuldades hoje, o banco está em sério perigo. Além disso, estou reavaliando minha decisão. É uma escolha difícil, porque, se eu tirar o dinheiro da família, o banco vai à falência. Se isso acontecer, você vai para a forca.

Longworth ficou quieto, uma estátua feita de indiferença.

Hayden não gostava da ideia de estar metido com Timothy Longworth. Tinha sido para ajudar um bom amigo que ele havia assegurado o crescimento do banco com títulos e dinheiro da família. Não se sentia obrigado a salvar o pescoço do irmão mais novo dele.

Longworth abriu um sorriso largo. Isso o fez parecer mais com Benjamin, apesar de mais claro, um contraste com os olhos e o cabelo escuros de Ben. Era uma semelhança que Hayden preferia não perceber naquele momento.

– É claro que deve estar falando metaforicamente quando diz “forca”. Apesar de “arruinado” não ser muito melhor do que isso, não é a morte.

– Quando digo “forca”, é isso que quero dizer. Cadafalso. Nó corrediço. Morte.

– Bancos abrem falência o tempo todo. Cinco faliram nos últimos quinze dias só em Londres e dezenas no interior. Não é crime. É o que acontece nas crises financeiras.

– Não é a falência do banco que vai levá-lo à cadeia, mas o que a contabilidade revelará depois.

– Nada me compromete, posso garantir.

A paciência de Hayden se esgotou rápido. Tinha passado a noite em claro ao lado de Darfield, tentando pôr ordem na bagunça oculta da contabilidade do banco. A fúria que ele contivera a duras penas quando descobrira o pior agora ameaçava romper as frágeis paredes que a controlavam.

– Decidi deixar o dinheiro da família com você, Longworth, mas estou preocupado com minha tia e a filha dela. Os 3% delas é tudo o que têm e elas dependem desses rendimentos. Como seu administrador, não poderia pôr isso em risco. Então, essa parte, essa pequena parte, eu decidi sacar.

Longworth ergueu a cabeça como se essa introdução não lhe dissesse nada, mas o primeiro sinal de pânico faiscou em seus olhos.

– Imagine o meu choque quando vi que os títulos da dívida pública delas tinham sido vendidos e que minha assinatura, como administrador de minha tia, tinha sido falsificada para isso.

Gotas de suor surgiram na testa de Longworth.

– Espere um instante. Está insinuando que eu falsifiquei...

– Tenho provas de que você, por várias vezes, cometeu o crime de falsificação de documentos. Você forjou assinaturas para vender títulos também. Depois continuou a pagar os rendimentos, para que ninguém suspeitasse, mas roubou dezenas de milhares de libras.

– Roubei coisa nenhuma! Estou chocado e ofendido com essa notícia. Darfield é quem deve ter feito isso.

Hayden partiu para cima de Longworth e o agarrou pelo colarinho, suspendendo-o do sofá.

– Não ouse manchar a honra daquele bom homem. Juro que, se mentir para mim agora, vou lavar as mãos e deixá-lo ir para o buraco.

Longworth levantou os braços para cobrir o rosto, protegendo-se do golpe que previa. O medo dele ao mesmo tempo deteve Hayden e lhe causou repugnância. Jogou Longworth de volta no sofá.

Timothy se curvou com o rosto nas mãos. Um silêncio pesado perpassou a sala, carregado da raiva de Hayden e do desespero palpável de Longworth.

– Você contou a alguém?

A voz de Longworth falhou de emoção.

– Só Darfield sabe e ele teme o que isso possa causar aos outros bancos, levando em consideração o clima atual no centro financeiro de Londres.

Hayden havia imaginado esse horror muitas vezes nos últimos dois dias. Os títulos – sólidas apólices que eram a base do crédito e da geração de rendimentos de mulheres leigas e seus filhos – eram supostamente seguros. Os bancos somente os mantinham pelos clientes. Não se pressupunha jamais que o dinheiro ficasse vulnerável.

Timothy Longworth rompera uma confiança sagrada ao falsificar assinaturas e se apossar desse capital. Se isso viesse a público, o pânico atual seria multiplicado por dez.

– O que lhe passou pela cabeça, Longworth?

– Fiz isso pelo banco. Estávamos vulneráveis, com as reservas baixas demais. Fiz isso para proteger os depósitos...

– Mentira! – Hayden só percebeu que havia gritado porque Longworth se sobressaltou. – Você fez isso para comprar esta casa, este casaco e as carruagens que servem para você passear com sua amante cara.

Timothy começou a chorar. Envergonhado pelo outro, Hayden se virou e olhou pela janela.

No jardim, um par de olhos violeta se voltou na sua direção, depois retornou para as fitas e a palhinha. Olhos como violetas em sombra fresca e de formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Era assim que Benjamin descrevera a Srta. Welbourne, em uma noite de embriaguez na Grécia. O tom não fora totalmente respeitoso, mas havia afeição em sua voz, então Hayden não mentira para ela. Contudo, ao ver a reação da moça – os olhos rasos d’água e como seu rosto se suavizou de forma tão doce –, desejou não ter dito nem uma palavra.

Não era um rosto belo, mas os olhos tornavam isso irrelevante. Sua cor incomum cativava primeiro, depois se notava como eles refletiam uma alma intensa e uma mente inteligente. Mostravam também experiência, como se aquela mulher compreendesse bem demais as realidades da vida. Ao se sentar sob a contemplação implacável daqueles olhos, ele se esquecera por alguns minutos da horrível missão que o trouxera àquela casa.

Uma boca que parece uma rosa, com néctar tão doce. Aparentemente, Ben tinha tocado em mais do que o coração da Srta. Welbourne. Não era nem um pouco de surpreender. Um homem cheio de vida como Benjamin Longworth conseguia mexer com muitas mulheres.

Roselyn e Irene Longworth, irmãs de Benjamin, estavam sentadas ao sol com a Srta. Welbourne. A mais velha era uma bela mulher de pele clara, cabelo louro-escuro e rosto doce. Destacava-se por sua beleza, mas era muito orgulhosa. O cabelo da mais nova era longo e claro; o corpo, esguio e o jeito, ainda infantil.

Sentiu alguém de pé ao seu lado. Longworth havia se levantado do sofá. Também observava as três moças no jardim.

– Ai, meu Deus, quando elas ficarem sabendo...

– Juro que elas nunca saberão a verdade da minha boca. Se conseguirmos salvar seu pescoço, você poderá contar quantas mentiras quiser. Um falsificador e ladrão deve ser capaz de inventar umas boas.

– Salvar, me salvar? Mas há uma forma? Obrigado, de qualquer jeito... Como quer que seja...

Hayden esperou enquanto Longworth se recompunha.

– Quanto, Longworth?

Ele deu de ombros.

– Umas vinte mil libras, talvez. Não fiz de propósito. De verdade. Na primeira vez, deveria ter sido um empréstimo de pouco valor, para cobrir uma dívida inesperada...

– Não quero saber quanto você roubou, mas quanto tem.

– Quanto eu tenho?

– Sua única chance é cobrir tudo, cada centavo. Com o que tiver e com as notas promissórias que assinar.

– Isso significaria contar a todos!

– Se eles não sofrerem prejuízos...

– Bastaria um deles dar com a língua nos dentes para eu ir...

– Para a forca. Sim. Uma fraude já seria o bastante. Você terá de confiar que o reembolso os satisfará e que eles entendam que só mantendo-se em silêncio poderão reaver o dinheiro. Posso falar por você e isso talvez ajude.

– Pagar a todos? Vou ficar falido. Totalmente falido!

– Mas vai escapar vivo.

Longworth agarrou o peitoril da janela para controlar a tontura. Olhou para fora de novo e seus olhos se umedeceram.

– O que vou dizer a elas? E Alexia... Se ficarmos reduzidos à renda dos aluguéis rurais, se eu tiver que pagar as dívidas tirando recursos deles também, não poderei mais sustentá-la.

Diante de mais um pensamento terrível, seu rosto desabou. Hayden imaginou o motivo:

– Você roubou os míseros recursos dela também? Não verifiquei as contas menores.

Longworth enrubesceu.

– Você não passa de um canalha, Longworth. Ajoelhe-se e agradeça a Deus por eu ter uma dívida de gratidão e honra com seu irmão.

Timothy não estava mais ouvindo. Seus olhos se anuviaram ao pensar no futuro.

– Irene ia ser apresentada à sociedade e...

Hayden não deu ouvidos aos lamentos do outro. Imaginara uma forma de salvar a vida de Longworth e evitar revelações que deixariam o atual pânico fora de controle. Mas não poderia poupar Longworth da ruína que essa solução geraria.

Passara a noite em claro fazendo cálculos e pensando nas consequências morais do caso. De repente uma profunda exaustão tomou conta dele.

– Sente-se – ordenou ele ao dono da casa. – Vou lhe dizer a quantia necessária e definiremos como você irá devolvê-la.


CAPÍTULO 2

Falido.

A palavra pairou no ar. A sala ficou em silêncio.

O sangue de Alexia congelou nas veias. Tim parecia muito doente agora. Ele se recolhera a seu quarto após a saída de lorde Hayden, mas se levantara da cama novamente de noite. Mandara chamá-la e a suas irmãs na biblioteca e lhes informara do desastre.

– Mas como, Tim? – perguntou Roselyn. – Um homem não vai disto – ela fez um gesto mostrando a exuberância da casa ao redor – à pobreza em um dia.

Os olhos dele se estreitaram e a amargura endureceu sua voz.

– Isso acontece se lorde Hayden decidir que sim.

– Lorde Hayden? O que ele tem a ver com isso? – perguntou Alexia.

Timothy olhou fixo para o chão. Parecia sem forças.

– Ele retirou o dinheiro de sua família do banco. Nossas reservas não foram suficientes para compensar a retirada e tive que penhorar tudo o que tenho. Darfield também terá de fazer isso, mas ele possui mais dinheiro do que eu. Ele pagou parte das minhas obrigações e, em troca, ficou com a minha cota no banco. Ainda assim, não foi suficiente.

Alexia controlou a fúria que fervia dentro dela. Que diferença faria para Rothwell onde todo aquele dinheiro ficava? Ele tinha que ter percebido o que isso causaria a Timothy, a todos eles. Havia entrado naquela casa ciente de que destruiria o futuro dos Longworths.

– Vamos dar um jeito – disse Roselyn, com firmeza. – Sabemos como levar uma vida mais simples. Vamos dispensar alguns empregados e comeremos carne somente duas vezes por semana. Vamos...

– Você não ouviu? – rosnou Timothy. – Eu disse que estou falido. Não haverá empregados, nem carne alguma. Não tenho nada. Não temos nada.

Roselyn o encarou, boquiaberta. Irene, que ouvia com expressão confusa, teve um sobressalto como se alguém a tivesse esbofeteado.

– Isso quer dizer que não vou ser apresentada à sociedade?

Timothy deu uma risada cruel.

– Querida, você não pode ser apresentada à sociedade londrina se não estiver em Londres. O canalha está tomando esta casa. Ela pertence a Rothwell agora. Vamos voltar para o pouco que temos em Oxfordshire e morrer à mingua por lá.

Irene começou a chorar. Roselyn ficou muda com o impacto da notícia. A gargalhada de Timothy foi se transformando em algo entre um cacarejo e um choramingo.

Alexia sentiu o medo se apoderar dela. Timothy não olhara para ela uma vez sequer desde que entrara na sala. E evitava seu olhar agora. Um pânico silencioso tamborilava em seu peito, querendo se avolumar.

Roselyn recobrou a voz:

– Timothy, podemos viver no campo de novo. Ainda temos a casa e algumas terras. Não será ruim. Nunca passamos fome.

– Será pior do que antes, Rose. Terei dívidas a pagar. Boa parte dos aluguéis irá para isso.

O tamborilar acelerou, espalhando-se por suas veias. Sentia calor e frio alternadamente. O destino que temia desde a morte do pai finalmente a encontrara. Era com dificuldade que mantinha a compostura.

Ela não deixaria Timothy pronunciar sua sentença com todas as palavras. Seria injusto e uma péssima retribuição à família que lhe tinha dado um lar.

Levantou-se.

– Se sua situação vai mudar de forma drástica, não precisarão do fardo de ter mais uma boca para alimentar. Tenho algum dinheiro guardado que poderá me manter até encontrar um emprego. Vou me recolher ao meu quarto para permitir que conversem abertamente sobre seus planos.

Os olhos de Roselyn se umedeceram.

– Não seja boba, Alexia. Seu lugar é conosco.

– Não estou sendo boba, estou sendo prática. Não vou forçar Timothy a dizer que devo ir embora.

– Diga-lhe que não tem que ir, Tim. Ela é tão sensata que vai ser uma ajuda, não um fardo. Ele não quer que você nos deixe, Alexia.

Timothy não respondeu. Nem levantou os olhos.

– Timothy – chamou Roselyn, em tom de repreensão.

– Gastarei tudo o que tenho para manter vocês duas, Rose – disse ele, finalmente se voltando para Alexia. – Sinto muito.

Alexia forçou um sorriso trêmulo e saiu da biblioteca. Fechou a porta atrás de si, deixando Irene e Roselyn aos prantos e Timothy envergonhado. Subiu as escadas correndo e maldizendo, a cada degrau, o homem responsável por aquela tragédia.

Hayden Rothwell era um canalha. Um monstro. Era um daqueles homens que viviam no luxo e destruíam a vida dos outros em um piscar de olhos. Ele não precisava ter retirado todo o dinheiro de uma só vez. Era tão duro e frio como parecia. Não tinha compaixão: esmagaria pessoas sob as botas, se desejasse. Ela o odiava.

Jogou-se na cama e enterrou o rosto no travesseiro de penas, onde destilou todo o seu veneno em Rothwell enquanto chorava. Estava tomada pelo pânico.

Falida. Não podia crer que estava passando por isso de novo. Seu pai falira dois anos antes de morrer. Muito provavelmente tinha sido esta a razão pela qual não fora acolhida por seu herdeiro. O destino agora lhe pregava uma peça estúpida, fazendo-a reviver toda a preocupação e o medo de antes.

A duras penas, foi tentando novamente se centrar. Já havia se perguntado algumas vezes o que faria caso se encontrasse naquela situação. Sempre soubera que isso poderia acontecer. Desesperada, procurou se lembrar dos planos feitos naquelas noites terríveis quando, no escuro, a precariedade da situação em que vivia se avultava sobre ela.

Poderia virar preceptora, se conseguisse boas referências. Tinha linhagem e educação para isso, ainda que tal função oferecesse uma vida horrível.

Também poderia procurar trabalho em uma chapelaria. Tinha jeito para fazer chapéus e gostava dessa atividade. Só que trabalhar em uma loja desse tipo seria a pior das humilhações. Não nascera para essas coisas, mesmo que essa ideia tivesse mais apelo do que ficar presa dia e noite cuidando da filha de outra mulher.

Também poderia se casar, apesar de no momento não ter pretendentes. Ela nem sequer pensara nisso depois de Benjamin. Seu coração era dele e sempre seria. A menina escondida em sua alma encarava com pesar a ideia de casar-se em troca de segurança. Depois de ter conhecido um grande amor, um casamento assim seria horrível. Contudo, sem beleza nem fortuna para atrair um marido, aquele era um assunto com que muito provavelmente não teria de lidar.

Enumerar opções lhe deu um pouco de confiança, ainda que baseada em cenários que não a agradassem tanto. Contava com vinte libras por ano e não iria morrer de fome. Poderia construir seu futuro se deixasse de lado o orgulho. Na verdade, tinha bastante experiência nesse campo.

Olhou em volta do quarto, para os móveis, à luz difusa da lamparina. Não era um cômodo grande. Nem tinha os tecidos luxuosos dos quartos de Irene e Roselyn ou as cadeiras e camas novas que elas haviam comprado no ano anterior. Mas era o seu espaço e tinha sido seu lar desde que Tim se mudara com elas de Cheapside, logo depois de Ben zarpar para a Grécia, fazia quatro anos.

Fechou os olhos e se perguntou quanto tempo demoraria até que Hayden Rothwell a jogasse no olho da rua.


Três dias depois, Alexia estava sentada na sala de café da manhã, lendo os anúncios no Times. A casa reverberava de silêncio. Não que os empregados antes fizessem barulho, mas sua ausência era perceptível. Somente Falkner permanecia, enquanto procurava outro emprego apropriado. Ela podia ouvi-lo na sala de jantar, embalando as porcelanas que Timothy tinha vendido na véspera.

Muito pouco dos luxos adquiridos nos últimos anos voltariam para Oxford-shire com suas primas. Rothwell ficaria com os móveis. Tudo o mais seria vendido. Naquele exato momento, os homens estavam na cocheira negociando o preço das carruagens.

Roselyn entrou no cômodo e se sentou ao lado de Alexia, que serviu café para as duas.

– O que está lendo? – quis saber Roselyn.

– Quartos para alugar.

– Piccadilly não seria ruim, se não fosse tão longe.

– Acho que não terei como evitar ficar longe, Rose.

Rose tinha a aparência de uma mulher que havia chorado um mês sem parar. As olheiras e o vermelho dos olhos eram evidentes.

– Deveria ter me casado com um daqueles homens interessados no meu dinheiro. Teria sido bem feito para eles meu irmão ficar em tantas dificuldades a ponto de precisar vender as vasilhas de metal. Até as vasilhas, meu Deus!

Alexia não conteve uma risada. Roselyn riu também. As duas riram até lágrimas rolarem pelas faces.

– Oh, céus, como é bom rir – disse Rose, sem fôlego. – É tudo tão dramático que chega a ser ridículo. Fico esperando Tim vender minha camisola enquanto durmo.

– Espero que ele não esteja acompanhado por um oficial de justiça nesse dia. Daria ainda mais motivo de fofoca para toda a cidade.

Roselyn riu de novo, com ar triste.

– Vou sentir sua falta, Alexia. O que vai fazer?

– Pedi uma carta de referência à Sra. Harper, já que ela é, das suas amigas, a que me conhece melhor. Procurei uma agência de empregos e me candidatei a vagas de preceptora. Espero que seja aqui na cidade mesmo.

– Você tem que nos mandar notícias de onde estiver, sempre. E prometer que vai nos visitar.

– É claro.

Os olhos de Rose se encheram de lágrimas. Ela abraçou Alexia vigorosamente. Enquanto aproveitava o carinho que logo não mais teria, Alexia viu Falkner chegar à soleira da porta.

– O que foi? – perguntou.

Falkner olhou para ela com o mesmo olhar de três dias atrás. O olhar que dizia que uma tempestade se aproximava.

– Ele está aqui. Lorde Hayden Rothwell. Pediu para ver a casa.

Do jeito que Falkner torceu o nariz, Alexia suspeitou que Rothwell não tivesse “pedido” coisa alguma.

– Não o receberei – disse Rose. – Mande-o embora.

– Ele não perguntou pela senhorita, mas por seu irmão, que saiu. Então pediu que eu lhe mostrasse onde esperar.

– Diga-lhe que não. Eu o proíbo. Logo a casa será toda dele – gemeu Roselyn.

O prazo para entrega da casa não fora determinado, o que era motivo de preocupação para Alexia.

– Você não está sendo sensata, Rose. Não vale a pena enfurecer o homem neste momento. Nem é obrigação de Falkner nos servir. Vou atender o visitante para lhe poupar o trabalho.


Lorde Hayden esperava no hall, rodeado por paredes que já se encontravam despidas de quadros. Quando Alexia entrou, ele estava inclinado, examinando uma mesa de canto marchetada, sem dúvida calculando seu valor.

Ela não esperou por sua atenção nem por suas saudações.

– Senhor, meu primo Timothy não está na propriedade. Creio que esteja cuidando da venda dos cavalos. A Srta. Longworth está indisposta. Posso ajudar no assunto que o trouxe aqui?

Ele se aprumou e voltou seu olhar para ela. A contragosto, ela admitiu que ele estava maravilhoso naquele dia, vestido com roupas de montaria, um paletó azul e colete de seda estampado em tons de cinza. Seu porte, expressão e vestimenta anunciavam ao mundo que sabia que era bonito, inteligente e podre de rico. Era de muito mau gosto ir assim a uma casa que estava sendo destituída de seus bens e de sua dignidade.

– Esperava que um criado viesse...

– Não há mais criados. A família não pode mais mantê-los. Falkner vai ficar até conseguir outro emprego, mas não está mais trabalhando. Creio que o senhor não tem alternativa a não ser falar comigo.

Ouviu sua própria voz soar ríspida e pouco amigável. As pálpebras dele baixaram o bastante para indicar que percebia a falta de respeito.

– Acredito que não tenhamos mesmo alternativa, Srta. Welbourne. Meu objetivo ao vir sem ser convidado é muito simples. Tenho uma tia que está interessada nesta casa. Ela me pediu para verificar se seria apropriada para ela e sua filha nesta temporada.

– O senhor quer conhecer a casa para poder descrevê-la a prováveis moradores?

– Se a Srta. Longworth me fizer essa gentileza, sim.

– O coração dela é cheio de gentileza na maioria das vezes. Contudo, ela está ocupada demais para atender seu pedido. Ser levada à falência e ser destituída de seus bens é algo que deixa qualquer mulher sem tempo algum.

O queixo dele se retraiu o suficiente para dar-lhe uma pequena satisfação. A vitória foi breve. Ele pousou o chapéu na mesa de marchetaria.

– Então, terei que achar o caminho sozinho. Quando disse que minha tia estava interessada, não me referi a uma mera curiosidade, mas a um interesse patrimonial. Esta casa já pertence a minha tia, Srta. Welbourne. Timothy Longworth assinou os documentos ontem. Se fiz um pedido, foi apenas para ser cortês com a família dele.

A notícia a deixou estupefata. A casa já tinha sido vendida. Que rapidez! Começou a calcular o que isso significaria para os planos dela e para Roselyn e Irene.

– Peço desculpas, senhor. A venda da casa não havia sido comunicada nem à Srta. Longworth nem a mim. Vou lhe mostrar a casa, se estiver bem assim.

Ele assentiu e ela começou a árdua tarefa. Mostrou-lhe a sala de jantar, onde seus olhos de lince não perderam nenhum detalhe. Ela o notou medindo espaços mentalmente e o ouviu contando cadeiras.

O resto do primeiro andar foi rápido. Ele não abriu gavetas nem armários na despensa. Alexia imaginou que soubesse que já estava tudo vazio.

– A sala de café da manhã é logo atrás desta porta – disse ela, ao voltarem para o corredor. – Minha prima Roselyn está lá. Peço que aceite minha descrição em vez de ir conferir por si mesmo. Temo que ela fique muito aborrecida ao vê-lo.

– Por que ela ficaria aborrecida com a minha presença?

– Timothy nos contou tudo. Roselyn sabe que o senhor levou o banco à beira da falência e nos deixou nesta situação.

Um sorriso implacável lhe surgiu no canto da boca. A crueldade do homem era mesmo ímpar. Ele percebeu o olhar dela fitando-o. Não parecia constrangido por ela ter visto esse sorriso cínico.

– Srta. Welbourne, não preciso ver a sala de café da manhã. Sinto muito por sua prima, mas as questões de altas finanças estão em um plano diferente da vida cotidiana. As explicações de Timothy Longworth foram simplificadas, com certeza porque ele as estava dando a damas.

– Elas podem ter sido simples, mas foram claras, assim como suas consequências. Há uma semana, meus primos viviam no luxo em Londres e em breve viverão na pobreza no interior. Timothy está falido, teve de vender sua parte na sociedade do banco e, ainda assim, continuará arcando com dívidas. Algum desses fatos está incorreto, senhor?

– Não, estão todos corretos – respondeu ele, balançando a cabeça.

Ela não podia crer em sua indiferença. O homem poderia pelo menos parecer um pouco constrangido. Em vez disso, agia como se isso fosse normal.

– Podemos subir? – perguntou ele.

Ela mostrou o caminho para o andar de cima, entrando na biblioteca. Ele não se apressou ao passar os olhos pelos livros nas estantes, enquanto ela aguardava.

– A senhorita vai com eles para Oxfordshire? – perguntou ele.

– Não me permitiria ser um fardo para essa família agora.

A atenção dele permaneceu nos livros.

– O que vai fazer?

– Tenho tudo acertado para meu futuro. Fiz planos e listei minhas expectativas e oportunidades.

Ele recolocou um livro na estante e rapidamente passou os olhos pelo tapete, a escrivaninha e os sofás, andando na direção dela em seguida.

– Quais oportunidades está vislumbrando?

Ela o conduziu aos outros cômodos no andar.

– Minha primeira opção é ser preceptora na cidade. A segunda é ser preceptora em outro lugar.

– Muito sensato.

– A sensatez é algo bastante conveniente diante da ameaça da fome, concorda?

Os cômodos do terceiro andar não eram tão espaçosos quanto os de uso comum. O corredor mais estreito os aproximava. Ao mostrar-lhe os quartos, ela notava a presença forte e masculina ao seu lado. Parecia muito inadequado esse estranho estar lá.

– E se não achar emprego como preceptora?

A pergunta casual veio algum tempo após sua última troca de palavras.

– A outra opção é me tornar chapeleira.

– Uma fabricante de chapéus?

– Tenho muito talento nessa área. Daqui a alguns anos, se vir uma mulher pobre usando um belo chapéu habilmente fabricado apenas com uma cesta velha, penas de pardal e maçãs secas, esta serei eu.

A curiosidade dele fizera com que Alexia deixasse de esconder sua irritação. Parecia inverossímil que o homem que causara tanto sofrimento quisesse saber detalhes. Ela escancarou a porta do quarto de Irene.

– A quarta opção é me tornar cortesã. Há quem diga que uma mulher deveria preferir morrer de fome a isso, mas suspeito que essas pessoas não tenham de fato se visto diante dessa necessidade, como talvez aconteça comigo.

Esse comentário lhe valeu um olhar duro. Além do desconforto por ela estar ridicularizando o fato de ele não sentir qualquer culpa, Alexia também percebeu a ousadia de um olhar masculino que avaliava suas possibilidades na quarta opção da lista.

Alexia enrubesceu. O calor percorreu sua pele, avivando-a e a atingindo bem no íntimo, afetando-a de uma forma chocante. Teve uma incontrolável e traiçoeira consciência dos muitos recantos do próprio corpo. A sensação a estarreceu ao mesmo tempo que a estimulou deliciosamente.

Ela precisou dar um passo atrás, para fora do quarto e para longe das vistas dele, de modo a escapar do rápido aumento na pulsação que a proximidade de Hayden lhe causava. Nos poucos segundos antes de ele voltar para junto dela, Alexia fez um esforço para se lembrar da raiva, a fim de aplacar seu chocante arroubo de sensualidade.

Ela continuou a lhe dar alfinetadas, de forma que ele soubesse que ela não se importava com o que pensava. Queria que aquele homem percebesse o sofrimento que sua ambição tinha causado.

– Minha quinta opção é virar ladra. Refleti muito sobre o que deveria vir antes, a libertinagem ou o roubo. Decidi que, apesar de a primeira opção ser um trabalho mais árduo, é uma forma de comércio honesto, enquanto ser ladra é pura maldade. – Ela parou por um momento, mas não resistiu a acrescentar: – Não importa como seja feito ou se é considerado legal ou não.

Ele parou e invadiu seu caminho, forçando-a a se deter também.

– A senhorita fala de maneira muito franca.

A presença dele se impunha à sua frente no corredor estreito. O olhar demandou sua total atenção. Certo poder se fez sentir, um poder masculino, dominador e desafiador. A intuição dela dizia para se afastar. A excitação ronronava baixa e profundamente. Ela ignorou ambas as reações e se manteve firme.

– Foi o senhor que me perguntou sobre meu futuro, apesar de não lhe fazer a menor diferença o que acontecerá com qualquer um de nós.

Sua raiva vinha em um crescendo desde que tinham deixado o hall. O frio autocontrole daquele homem durante a volta pela casa só tinha posto mais lenha na fogueira.

Ela o olhou de frente.

– O senhor destruiu a vida de pessoas boas e decentes. Não precisava ter retirado todos os seus negócios do banco de Timothy, arruinando-o deliberadamente. Não sei como consegue colocar a cabeça no travesseiro à noite e dormir.

Seus olhos azul-escuros ficaram negros nas luzes opacas do corredor. Seu queixo se enrijeceu. Ele estava com raiva. Que bom, ela também.

– Durmo muito bem, obrigada. E, sem o devido conhecimento sobre as questões financeiras, sua visão se torna bastante limitada. Sinto muito pela Srta. Longworth e sua irmã, e pela senhorita também, mas não vou me desculpar por ter cumprido meu dever como julguei adequado.

O tom dele a deixou embasbacada. Tranquilo, porém firme, ele punha um ponto final na discussão. Ela recuou, mas não por essa razão: estava perdendo o ar. Esse homem não se importava com os outros. Se se importasse, não estaria fazendo esse reconhecimento da casa.

Ela o guiou ao andar de cima, onde ficavam os quartos mais altos, mas ele parou do lado de fora de uma porta, perto do patamar da escada.

– O que é este cômodo?

– É um quartinho, sem utilidade específica. No passado, foi o quarto de vestir do quarto ao lado. Bem, lá em cima...

Ele girou a maçaneta e abriu a porta. Entrou no pequeno cômodo e observou cada detalhe. Os dois livros ao lado da cama, o armário pequeno quase vazio, as cartas ordenadas sobre a escrivaninha, tudo chamou sua atenção. Pegou um chapéu que estava pousado sobre uma cadeira perto da janela.

– É o seu quarto – falou.

Era verdade. E a presença dele ali, investigando seus pertences, criava uma intimidade que a deixou desconfortável. Ver aquele homem tocando seus objetos pessoais era quase como tê-lo tocando-a. Essa proximidade física tornava sua excitação ainda mais chocante e embaraçosa.

– Por enquanto, é o meu quarto.

Ele ignorou a farpa. Examinou o chapéu, girando-o de um lado para outro. Era o que ela havia começado a refazer no jardim três dias antes. Ninguém o reconheceria. Tinha refeito a borda, forrando-o de musselina creme finamente trabalhada, e enfeitado-o com fitas azuis. Ainda não decidira se iria acrescentar algum enfeite de musselina perto da copa.

– A senhorita tem talento.

– Como eu disse, ser chapeleira é apenas a opção número três. Se uma dama trabalhar em uma loja desse tipo, não pode mais se dizer uma dama, não é verdade?

Ele pousou o chapéu com cuidado.

– Não, não pode. No entanto, é algo mais respeitável do que ser cortesã ou ladra, embora bem menos lucrativo. Sua lista está na ordem correta se seu objetivo for a respeitabilidade.

Ela ainda o odiava no momento em que terminaram a visita. Contudo, já não poderia dizer que ele lhe era um completo estranho. Entrar nos quartos juntos, vendo os artefatos da vida cotidiana da família e com tanta proximidade – excessiva até – nos andares mais altos tinha criado uma familiaridade inoportuna.

Sua suscetibilidade à presença dele a deixara em desvantagem. Ela queria acreditar que era superior a essas reações, principalmente com esse homem, que certamente acreditava agradar a todas as mulheres. Ressentia-se de ter passado uma hora inteira na sua companhia.

Voltaram para o hall, onde ele pegou seu chapéu. Ela retomou o motivo de ter concordado em recebê-lo:

– Lorde Hayden, Timothy está com a cabeça nas nuvens. Ele não está contando todos os detalhes a suas irmãs. Se não for muita ousadia...

– A senhorita já foi bastante ousada sem pedir permissão, Srta. Welbourne. A essa altura, não é preciso fazer cerimônia.

Ela realmente tinha sido ousada e tagarela. Permitira que a raiva vencesse o bom senso. Na verdade, não tinha sido muito prática na situação em que mais necessitara dessa virtude.

– Qual é a sua pergunta?

– Já informou a Timothy quando os Longworths têm que esvaziar a casa?

– Ainda não. – Ele lhe dirigiu um olhar desconcertantemente franco. – Quando a senhorita acha que seria razoável?

– Nunca.

– Isso não é razoável.

– Quinze dias. Por favor, dê-lhes mais duas semanas.

– Que seja. Os Longworths podem ficar até lá. – Ele estreitou os olhos em sua direção. – Quanto à senhorita...

Ai, meu Deus. Ela havia despertado o demônio com sua língua grande. Ele ia pô-la no olho da rua imediatamente.

– Minha tia tem paixão por chapéus.

Ela piscou.

– Chapéus? Sua tia?

– Ela ama chapéus. E paga preços exorbitantes por eles. Sei disso porque sou administrador de sua fortuna e pago suas contas.

Era um assunto estranho para se falar na saída. Ele pareceu um pouco tolo.

– Bem, chapéus costumam ser caros – falou Alexia.

– Os que ela compra também são bem feios.

Ela sorriu e assentiu, desejando que partisse logo. Queria contar a Roselyn que teriam mais duas semanas de prazo.

– Preceptora, a senhorita disse. Sua primeira opção. Tem estudos para ser uma preceptora qualificada?

– Estava ajudando a preparar minha prima mais nova para ser apresentada à sociedade. Possuo as habilidades e os talentos necessários.

– Música? A senhorita toca algum instrumento?

– Sou adequada para ser preceptora de moças. Minha própria educação foi requintada. Nem sempre fui como me vê agora.

– Isso é óbvio. Se tivesse sido sempre como hoje, não teria coragem de falar comigo da forma rude e direta como fez.

O rosto dela enrubesceu intensamente. Não porque Alexia fora rude e Hayden notara, mas porque a atenção que ele lhe estava dispensando começava a acender nela aquela excitação estúpida de novo.

– Srta. Welbourne, minha tia, Lady Wallingford, vai tomar posse desta casa porque vai apresentar sua filha à sociedade em breve. Minha prima Caroline precisa de uma preceptora e minha tia, de uma dama de companhia. Tia Henrietta é... bem... Digamos que seria aconselhável ter uma influência sensata na casa.

– Uma influência que a impedisse de comprar chapéus feios?

– Exatamente. Como a situação combina com sua primeira opção na lista, estaria interessada no emprego? Como foi tão sincera comigo, creio que também diria à minha tia quando um chapéu for ridículo.

Ele estava pedindo que ela ficasse naquela casa em que tinha sido um membro da família, só que agora como criada. Ele estava pedindo que servisse ao homem que arruinara os Longworths e destruíra sua frágil sensação de segurança. Ele estava pedindo que ela ajudasse sua jovem prima a ser apresentada à sociedade, uma oportunidade que fora negada a Irene.

É claro que lorde Hayden não enxergava nada disso. Ela era apenas uma solução conveniente para compor o quadro de empregados de sua tia. Tinha uma combinação singular de habilidades que a tornava perfeita para o cargo. Mesmo que houvesse notado como isso era ultrajante, aquele homem não se importaria.

Ela quis recusar a proposta imediatamente. Esteve prestes a dizer algo muito mais direto e rude do que havia feito até o momento.

Mordeu a língua. Não poderia se dar ao luxo de dizer impropérios agora.

– Vou pensar na sua oferta, senhor.


CAPÍTULO 3

– Ouvi um boato sobre você ontem à noite no White’s.

A declaração inesperada ecoou pelo salão e fez com que Hayden errasse a bola que vinha em direção a ele.

– Sua função é marcar os pontos, Suttonly, não ajudar Chalgrove me distraindo.

– Marcar os pontos é um tédio. Se eu o distrair, você perde e então é a minha vez de jogar.

Hayden sabia que o egoísmo era um traço da personalidade do visconde Suttonly desde que haviam ficado amigos, na universidade. Mas ele não era só isso e Hayden aceitava o lado ruim que vinha junto com o bom. O mesmo homem esguio e vaidoso que estava languidamente posicionado no centro da quadra, interferindo nos saques e nas jogadas, era capaz de demonstrar grande generosidade quando queria.

Chalgrove se adiantou para ficar em posição de saque.

– Você sabia que não teríamos um quarto jogador hoje e que precisaríamos nos revezar.

– Você quer dizer que Rothwell e eu teríamos que nos revezar. Você sempre ganha, então sempre continua jogando.

Suttonly levantou seu rosto longo e de feições finas e tentou em vão olhar Chalgrove de cima, mas o outro era um palmo maior do que ele. O cabelo dourado de Suttonly tinha sofrido a tortura dos ferros quentes naquela manhã. Os cachos perfeitamente desalinhados não iam sobreviver ao jogo.

– É ele quem tem permissão para usar esta quadra – lembrou Hayden.

Se não fosse pela paixão de Chalgrove pelo tênis e por sua vitória inesperada em uma jogatina contra o rei três anos antes, eles nem sequer estariam ali. Em pagamento por aquela dívida de jogo, Chalgrove tinha pedido permissão para usar a antiga quadra de tênis de Hampton Court quando quisesse. Como o esporte saíra de moda e ninguém mais queria ir lá, o rei teve grande satisfação em conceder esse favor real.

Suttonly foi expressar seu tédio nas linhas laterais. Chalgrove assumiu a ofensiva. Hayden percebeu que perderia em breve.

O conde de Chalgrove parecia muito robusto e moreno quando comparado à brandura loura de Suttonly. Mas, durante o jogo, seu corpo musculoso se mostrava surpreendentemente ágil. Atleta nato, seus saques poderosos combinavam bem com a habilidade para mandar a bola de couro na direção dos telheiros e outros pontos difíceis para os adversários.

Hayden observou a bola ricochetear acima da cabeça do outro e cair.

– Bola fora, Rothwell – anunciou Suttonly.

O visconde deu alguns passos à frente e bateu de leve com sua raquete na cabeça de Hayden.

Hayden assumiu a posição de marcador. Apesar de uma parte de sua mente se manter na contagem de pontos, o restante dela se voltou para os negócios com Timothy Longworth. Sua família estaria partindo de Londres em breve, mas não tinha chegado nenhuma carta da Srta. Welbourne falando do emprego que ele lhe oferecera. Não gostava de pensar no preço de seu orgulho. Ela acabaria morando em algum apartamentinho de uma rua violenta, levando uma vida miserável.

Sua falta de senso prático significava que agora ele teria que procurar outra preceptora e dama de companhia. Tia Henrietta chegaria a Londres em poucos dias. Não podia mais esperar a resposta da Srta. Welbourne.

Chalgrove precisou de menos tempo para despachar Suttonly. Depois eles se retiraram para as salas do clube acima da quadra. Chalgrove tinha trazido criados e bebidas geladas. Enquanto lanchavam, Suttonly tocou de novo no assunto da fofoca que corria solta pela cidade.

– Andam dizendo que...

– Não estou interessado – disse Hayden.

– Mas eu estou – disse Chalgrove. – É raro ouvir uma boa fofoca sobre você, Rothwell. Normalmente é sobre quanto dinheiro ganhou nesse ou naquele investimento. Falando nisso, não há nada que queira contar a dois velhos colegas de escola? Ou está esperando que a tempestade passe para lançar o próximo navio?

Suttonly não gostava de ter a atenção roubada de si.

– Andam dizendo – repetiu ele com firmeza – que você arruinou Timothy Longworth.

Isso impressionou até Chalgrove.

– É mesmo? Não sabia que ele estava arruinado, muito menos que você era o responsável.

– Se você viesse à cidade, tomaria ciência do que acontece no mundo – repreendeu-o Suttonly com indolente superioridade antes de se virar novamente para Rothwell e dizer: – O que aconteceu com Longworth? Ele está vendendo tudo tão rápido que o pessoal anda brincando que ele é até capaz de fazer liquidação das irmãs. Você era muito amigo do irmão dele. Ele deve tê-lo enraivecido muito para que decidisse arruiná-lo.

– Eu não o arruinei. A mudança na sorte do homem é problema dele. Quanto aos meus planos, há um acordo sendo firmado em relação a um empreendimento na América do Sul. É muito arriscado, mas vou enviar os documentos a vocês dois. Suponho que guardarão o sigilo de sempre.

– Pode contar comigo – disse Suttonly, fisgando um pedaço de presunto do prato de frios. – Redija os papéis e me avise quando estiverem prontos para a assinatura.

– Nas Américas? Isso não vai ser igual ao esquema de McGregor anos atrás, não é? – implicou Chalgrove. – Você não vai emitir títulos de um país que não existe, como ele fez, não é?

– Se ele fizesse isso, provavelmente encontraria um jeito de compensar os clientes da forma mais sábia possível – disse Suttonly. – Por meu pai morto e os filhos que ainda não tenho, Rothwell, ainda bem que tive a esperteza de ficar seu amigo nos tempos de escola.

– O esquema de McGregor estava fadado ao fracasso. Ele não vai poder fazer novas vítimas de suas fraudes para sempre a fim de pagar as vítimas anteriores. Um dia o castelo de cartas vai desmoronar – disse Hayden.

Hayden Rothwell gostaria que todos – Suttonly, em especial – aprendessem a ser mais desconfiados em relação a investimentos. Se Hayden fosse McGregor, Suttonly teria empenhado sua fortuna para comprar títulos do país fictício de Poyais, nas Américas. Como todos os outros, ele nem teria se dado o trabalho de consultar primeiro um mapa para achar a localização do país.

– Suspeito que haja alguma falcatrua no cerne da crise atual – disse Chalgrove.

Suas sobrancelhas franzidas preocuparam Hayden. Chalgrove não vinha mais para a cidade, porque no ano anterior herdara um imóvel no campo que precisava desesperadamente de cuidados.

– Você perdeu muito dinheiro? – questionou Hayden.

– Não muito, mas o bastante. Tinha uns negócios pequenos com um banco do interior que era correspondente do Pole, Thornton and Company de Londres. Quando eles faliram em dezembro, nosso estabelecimento foi junto – disse ele, dando de ombros, mas não com indiferença. – Muitos homens com negócios bons e sólidos abriram falência por conta disso. Ainda vai haver muito problema antes que esse pânico acabe.

– Mas não há nada que se possa fazer a respeito, não é? – cortou Suttonly, suspirando. – Não vamos ficar nos lamentando pelo que não podemos mudar. Apesar de todas as preocupações, a cidade ainda está movimentada e divertida e se aproxima a época em que as jovens serão apresentadas à sociedade. Chalgrove, prometa que vai permanecer na cidade este ano. Fiquei meio entediado na última apresentação e espero evitar esse estado de ânimo desta vez. Você pode procurar uma noiva rica para resolver seus problemas. Se ela for bonita, pode ser até que você se apaixone.

– Chalgrove não é um tolo romântico como você – disse Hayden. – Você ficou entediado porque está envelhecendo e tem menos chances de se entregar às tolices românticas agora.

– Você se entedia muito facilmente, de qualquer forma – disse Chalgrove. – A vida seria mais gratificante se tivesse algo constante que lhe interessasse.

– Você quer dizer estudar matemática, como ele? Pegar no pesado nas minhas terras, como você? Rezo para nunca ficar velho assim. Quanto a me entregar a tolices românticas, pretendo nunca deixar de fazê-lo. A paixão torna a vida excitante nos poucos meses que dura – disse ele, sacando o relógio do bolso. – Só posso ficar para mais uma partida, Chalgrove. Vou começar sacando desta vez.


– Ouvi boatos sobre você na noite passada, no clube.

Era a tarde seguinte e Hayden levantou os olhos do livro que estava lendo. Havia vencido poucas páginas. Sua mente estava ocupada, pensando em outros assuntos. A chegada inesperada de seu irmão Christian à biblioteca o distraiu ainda mais.

Christian raramente passava a tarde na biblioteca. Seu breve comentário ao se acomodar em uma cadeira acolchoada perto de Hayden explicava o motivo de aquela tarde ser diferente. Era perturbador saber de dois boatos a seu respeito em menos de dois dias. Hayden era o tipo de homem de hábitos regulares e personalidade calma que raramente interessava aos fofoqueiros.

– Não estou flertando com a Sra. Jameson, apesar do que ela anda contando aos amigos – disse Hayden.

– Não era esse tipo de boato, o que nunca me interessaria. Se um dia você se casar, nunca será com uma mulher daquelas.

O “se um dia” dito com tanta propriedade sugeria que seu irmão duvidava da possibilidade de Hayden vir a se casar. O “uma mulher daquelas” não era uma crítica à viúva em questão, mas deixava claro que Christian conhecia bem o gosto de Hayden, muito mais do que o próprio.

Eles se davam bem, tanto que Hayden continuava morando na casa de Easterbrook, em Grosvenor Square. No entanto, as suposições de Christian de que conhecia os irmãos mais novos melhor do que eles mesmos e as suspeitas de Hayden de que isso talvez fosse verdade eram algo irritante.

– O boato tinha a ver com dinheiro. E com seu relacionamento com o banco Darfield e Longworth.

Hayden pôs o livro de lado.

– Você é contra minha decisão de deixar nossas contas lá?

A interferência de Christian infringia um acordo que haviam feito quando ele voltara à Grã-Bretanha depois de ter viajado durante dois anos por sabe lá Deus onde. Apesar de recém-saído da faculdade, Hayden cuidara das finanças da família nesse momento de necessidade. Christian poderia ter assumido a tarefa ao voltar, mas pediu que Hayden continuasse.

– Não faço objeções à sua decisão. Só estou curioso se você realmente confia que o banco não vá falir.

– Se isso acontecer, uso meu próprio dinheiro para compensar quaisquer perdas que você ou os outros sofram. Se necessário, volto até às mesas de jogos.

Os olhos escuros de Christian cintilaram com uma expressão de frieza. A aura de autoridade que ele exalava de repente se fez notar. Era algo que derivava mais do que de seu título de nobreza ou do status de irmão mais velho. Algo havia ocorrido durante aqueles dois anos no exterior que se tornara a fonte desse poder contido e sóbrio.

Christian nunca falara muito de seu tempo fora e das aventuras que tinha vivido. Hayden percebera de imediato como as experiências o tinham mudado. Seu irmão mais velho deixara a Inglaterra como um marquês recém-empossado, instruído e zeloso. Voltara experiente demais, amadurecido demais e um tanto estranho.

– Não peço que aposte sua própria fortuna em suas decisões. Só quero saber se tomou essa decisão em particular com base em seu brilhantismo financeiro de sempre, ou se foi dominado pela emoção.

– Nunca teria deixado as contas lá se achasse que o banco não sobreviveria.

Hayden considerou a conversa encerrada e retomou a leitura.

– Não foi o fato de você ter deixado as contas lá – disse Christian depois de um longo silêncio. – Não era esse o boato.

– Então qual foi o boato que você ouviu?

– Que você de alguma forma arruinou Longworth e o forçou a vender sua parte no banco. Que manipulou a situação para ele falir.

– Mas como você verificou se retirei nossos depósitos e viu que não, já sabe que esse boato não é verdadeiro.

– Ninguém me disse que você o tinha arruinado retirando o dinheiro. Disseram que você manipulou a situação para que Longworth falisse, o que é bem diferente. Não entendo o motivo. Os Longworths são uma família tradicional no nosso condado. E, para começo de conversa, você contribuiu para o enriquecimento deles e foi amigo de Benjamin.

Hayden instintivamente levou uma das mãos ao peito. Ele não sentia a cicatriz por baixo das roupas, mas pensar em Ben sempre fazia com que se lembrasse da dor que a causara. Qualquer ajuda que tivesse dado a Benjamin Longworth já tinha sido mais do que compensada na Grécia. Isso significava que a balança tinha pendido de novo, para o outro lado, na noite em que Ben morreu.

Ele tinha errado com o amigo naquela noite no navio ao não forçá-lo a descer, quando era óbvio que Ben estava bêbado. Pior ainda, tratava-se de um amigo que havia salvado sua vida.

– Está preocupado com minha honra, irmão mais velho?

– Eu deveria estar?

Hayden o fitou.

Christian não baixou o olhar, agindo de forma plácida e paciente. Eles eram muito parecidos, mas qualquer pessoa que entrasse na biblioteca não perceberia isso de imediato. O cabelo escuro de Christian era longo, até mesmo para a moda atual. Suas ondas atingiam os ombros do robe de seda preto que ele vestira ao se levantar naquela manhã. Também não era um robe comum. Ele ostentava uma estampa e um corte exóticos, quase orientais, e era menos estruturado do que os modelos masculinos comuns. A típica falta de formalidade de Christian em casa também fazia com que não usasse uma camisa por baixo do robe, de forma que sob ele não se via uma gola, apenas pele.

Hayden pensou em como o irmão mais velho parecia empertigado e arrumado enquanto o pai deles era vivo. Ele tinha sido tão irrepreensivelmente correto todos aqueles anos. Então, meses depois de assumir o título, desaparecera para depois voltar com aquela desconcertante aparência mundana.

– Os homens fracassam nos negócios o tempo todo – falou Hayden. – É como uma justa. Um homem entra no torneio sabendo que pode perder seu cavalo. Fracassar é sempre um risco.

– Não para você. Não com a mente e os instintos de que dispõe ao entrar na disputa. Se o jovem Longworth tivesse sido outro cavaleiro, e não um mero escudeiro, sua analogia poderia funcionar. No entanto...

– Como você optou por não entrar na competição, fique fora disso.

Hayden engoliu seu crescente rancor. Na verdade, esse sentimento não se dirigia a Christian, mas à sua tendência irritante de incitar o lado negro da alma das pessoas.

– A ruína de Longworth se deve unicamente à sua falta de bom senso. Minha honra está intacta.

Christian pareceu aceitar isso.

– Você tem um lado impiedoso. Nesse ponto, somos bem parecidos. É preciso manter a vigilância para controlar isso, como tenho certeza de que você sabe.

– Cuide da salvação de sua própria alma. Não preciso de ajuda com a minha.

– Todos nós precisamos de ajuda. Contudo, se você diz que não se deixou levar por esses sentimentos, aceitarei que a ruína de Longworth foi obra dele mesmo.

A questão tinha sido definitivamente essa, mas, para evitar maiores consequências além da mera ruína, Hayden tinha sido forçado a conduzir o canalha por muitas reuniões, confissões e promessas nos últimos dias. Com certeza, no clube, na noite anterior, um dos homens que ouvira essas promessas tinha aludido ao papel de Hayden.

Christian se levantou para ir embora.

– É uma pena pelas irmãs. Às vezes as encontro na cidade. A mais velha é estonteante. Se não fosse por sua amizade com o falecido irmão, estaria tentado a ficar com ela.

– Tirar vantagem da má sorte da moça e garantir que o fracasso fosse completo seria algo altamente desonroso, não acha?

Christian deu de ombros.

– Na Inglaterra, sim. Bem, como disse, é preciso manter a vigilância.


A bandeja de prata brilhou à luz da tarde que penetrava pela janela. O cartão sobre ela surpreendeu Hayden.

A Srta. Welbourne estava lá.

Ele passou o polegar sobre o papel e sentiu o alto-relevo de ótima qualidade. Imaginou a moça tirando dinheiro de sua renda magra e decidindo que o cartão que ostentaria seu nome deveria ser digno de uma dama, não importava o sacrifício.

– Vou recebê-la.

A visita dela lhe provocou remorsos. Sua descoberta a respeito do roubo de Longworth atingira muitos inocentes.

É claro que a Srta. Welbourne tinha sido atingida bem antes da descoberta. Entre suas deliberações, enquanto tentava ler na biblioteca, havia algumas em relação a ela. Precisava elaborar uma estratégia para devolver os recursos da moça sem que ela soubesse que tinham sido retirados por Longworth.

Sua palavra de honra o impedia de lhe explicar o que tinha acontecido. Duvidava que ela lhe seria grata por saber a verdade, mesmo que pudesse revelá-la. Isso destruiria sua ligação com as pessoas que considerava sua família. Havia também a hipótese de ela se sentir tão traída a ponto de querer ser a primeira a mandar Longworth para a cadeia.

Abriu as portas da sala de visitas e viu a Srta. Welbourne com sua dama de companhia. Ela trouxera a prima mais jovem. Os olhos de Irene Longworth estavam fixos no relicário medieval cravejado de pedras preciosas que Christian tinha colocado em uma mesa ao lado da janela.

O olhar da jovem se voltou para Hayden quando ele entrou e nele permaneceu enquanto se cumprimentavam. Ele reconheceu sua expressão muda e embasbacada. Estava cansado de vê-la em outras moças ingênuas. Preferia a expressão madura e autocontrolada que a Srta. Welbourne dirigiu a ele.

– Irene, por que não vai olhar os quadros? – sugeriu a Srta. Welbourne. – Ela se interessa por arte, lorde Hayden, e pensei em dar-lhe a oportunidade de ver parte da coleção de Easterbrook hoje.

Com o consentimento de Hayden, a garota começou a caminhar próxima às paredes, examinando as obras.

– Foi muita gentileza sua trazê-la, se tem tanto interesse por arte – disse ele. – Pensei que talvez o motivo real fosse me lembrar do que ela perdeu.

– Esse foi um dos motivos, mas a oportunidade de ver parte da famosa coleção de Easterbrook foi outro. Além disso, quando ela for para Oxfordshire, fará diferença poder falar da visita que fez a esta casa. Algumas pessoas com posses muito superiores às dela nunca terão essa oportunidade.

A Srta. Welbourne falava com a mesma franqueza que marcara as conversas dos dois desde o início. Ocorreu-lhe que seria tratado da mesma forma se não tivesse arruinado Longworth.

Ele gostava disso. Algo nele fazia com que a maioria das mulheres assumisse uma atitude irritantemente fútil. A falta de medo e de nervosismo por parte dela era revigorante. Criava pequenos e encantadores desafios. Sua postura durante o tour pela casa o provocara de muitas formas e carregara o ar entre eles com muito mais do que contrariedade.

Ela sentira o mesmo, ele tinha certeza, só que não gostava dessa sensação. Talvez nem a entendesse direito.

– Além disso, precisava trazer alguém comigo, não é verdade? – disse ela. – Não temos mais criadas, nem mesmo um lacaio. Como Irene sempre sonhou em vir a um baile aqui, um sonho que Roselyn e eu tentamos controlar mesmo nos bons tempos, pensei que ela pelo menos poderia ver suas obras de arte.

A garota obviamente tinha sido instruída a se manter distante e discreta. Ela se reclinou em direção a um quadro de Poussin do outro lado da sala.

Hayden chamou um lacaio.

– Leve a Srta. Longworth até a governanta – ordenou ao homem quando ele chegou. – Diga-lhe para guiar a moça pelo salão de baile e pela galeria.

Mal se contendo de alegria, Irene seguiu o criado. A Srta. Welbourne observou sua saída.

– É muita generosidade de sua parte.

– Se ver esta sala de visitas a ajudará em Oxfordshire, descrever o salão de baile só pode melhorar ainda mais sua posição.

Ele se sentou em uma cadeira que lhe permitia ver de frente o rosto da Srta. Welbourne.

– Como a senhorita precisava trazer alguém consigo, entendo que o objetivo desta visita seja um assunto seu, não dela – comentou Rothwell.

O olhar de Alexia se inflamou. Aquela mulher não gostava muito dele, isso estava bem claro.

Um arco lilás no chapéu de Alexia fazia sobressair ainda mais a cor de seus olhos. Era um chapéu simples, mas parecia muito caro com aquela borda, a copa de seda celestial e rosas enfeitando o arco. Talvez ela mesma tivesse feito o chapéu. Como o cartão de visita, ele demonstrava sua posição, mesmo que essa posição lhe tivesse escapado por entre os dedos.

– Considerei a oferta que me fez na casa de meu primo em sua última visita – disse ela. – Gostaria de conversar sobre isso e ver se conseguimos chegar a um acordo.

Tinham-se passado doze dias desde a oferta. Com a mudança iminente da casa, parecia que ela finalmente tinha se decidido pela praticidade.

Ele decidiu facilitar as coisas para ela sendo breve.

– O salário será o normal para a situação e...

Ela levantou o indicador, detendo-o. Seu tutor costumava fazer isso quando ele era garoto.

– Aceito o salário normal. No entanto, como estarei ocupando dois cargos, o de preceptora e o de dama de companhia, acredito que deveria receber dois ordenados, sobretudo levando-se em conta que o senhor não terá os gastos de manter mais um criado na casa. Além disso, gostaria que o salário fosse pago mensalmente. Vou querer mandar parte do dinheiro para Rose e Irene. Não quero que elas precisem esperar muito para terem algum desafogo.

Ela estava a dois dias de ser despejada, mas fazia exigências desmedidas, como se pudesse apresentar as melhores referências da Inglaterra, em vez de nenhuma. A julgar por sua repetida menção ao problema financeiro dos Longworths, ela esperava que a culpa dele lhe desse alguma vantagem nas negociações.

Fascinado, ele colocou o cotovelo no braço da cadeira e descansou o queixo no punho fechado.

– Acredito que o pagamento mensal possa ser providenciado. Quanto ao salário, a senhorita não passará todo o tempo desempenhando cada um dos papéis. Isso é impossível, portanto o pagamento integral por dois cargos não se justifica.

– Um e meio, então. O senhor tem que admitir que é justo.

Ele quase deu uma risada.

– Bastante justo para a senhorita. Está certo, um e meio.

Ela teve um gesto de alívio, passando a mão sobre a lã fina da roupa. Era um movimento nervoso que revelava que não estava tão contida quando parecia. O vestido era bem mais elegante do que o que ele a vira usar antes. Muito distinto, com um bordado azul ao longo de toda a borda da saia e um casaco que trazia um delicado acabamento em pele. Ele imaginou que as roupas não eram dela. A Srta. Longworth provavelmente as tinha emprestado a ela para a visita à casa do marquês de Easterbrook.

– Quanto à minha relação com sua tia e sua prima – continuou ela –, vivi naquela casa como um membro da família e seria difícil pensar em mim como uma... bem, de outra forma. Gostaria que meu cargo principal fosse o de dama de companhia de sua tia e que meus deveres de preceptora ficassem em segundo lugar. Isso em nada afetaria meu trabalho em relação a sua prima.

Seu tom, comportamento e a forma como continuava a lembrá-lo da mudança na sua situação, que ela acreditava ser culpa dele, deveriam enraivecê-lo. Nada disso.

Alexia Welbourne havia chegado àquela casa vestida como a dama que nascera para ser, mas sairia dali como empregada. Ela sabia disso, mesmo tendo gaguejado ao tentar pronunciar a palavra. Porém, não era uma mulher que desconhecesse seu lugar. Era só uma mulher lutando para manter seus últimos fios de dignidade ao sair pela porta em uma condição diferente da que entrara.

Ele sentia muito por ela, mas manifestar esse sentimento seria um insulto para uma mulher como Alexia.

– Minha tia tem muito bom coração, Srta. Welbourne. O perigo não é ser tratada como criada, mas passar rapidamente a ser tratada como irmã. No entanto, explicarei a sutileza do modo como deseja ser considerada. Tenho certeza de que ela compreenderá. Bem, se não há mais nada a tratar...

O dedo se levantou novamente.

– Algo mais, Srta. Welbourne?

– Só mais um pequeno detalhe.

– Não imagino o que possa ser.

Os lábios dela se franziram diante do tom sarcástico. Belos lábios. Mais para cheios. E um nariz levemente arrebitado, que chamava atenção para a boca.

Uma boca que parece uma rosa. Mas não um botão de rosa. Não era pequena nem curvada, nem mesmo quando o franzido a estreitava. Era uma rosa em plena floração, prometendo o néctar que Ben descrevera.

– Como ambos sabemos, minha situação mudará muito, mesmo continuando a viver na mesma casa – disse ela.

Sua voz provocava pensamentos sobre esse néctar e seu gosto. O caminho rumo aos ardis impiedosos sobre os quais Christian o advertira havia pouco.

De formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Ele a viu de novo no vestido sem atrativos que usara ao guiá-lo no reconhecimento da casa. De um marfim amarelado pelo uso e sem enfeites, que provavelmente haviam sido retirados para adornar outras vestimentas. A moda tinha mudado muito nos últimos anos e sua cintura alta anunciava seus poucos recursos. No entanto, o vestido ressaltava seu busto e revelava suas formas e curvas tentadoras.

Sua mente voou para recuperar a lembrança dela em pé perto dele no corredor do último andar, usando o vestido cor de marfim. As faíscas de raiva nos olhos dela ao confrontá-lo fizeram seu sangue correr mais rápido nas veias outra vez, queimando-o por dentro. Sua imaginação começou a tirar aquele vestido para ver o que tinha por baixo...

– Isso é aceitável, senhor?

A pergunta dela o tirou de sua fantasia erótica.

– Aceita essa última condição? – perguntou ela.

Se pelo menos ele soubesse do que ela estava falando, mas não tinha a menor ideia de como deveria responder.

Assumiu a posição que costumava ocupar em negociações de investimentos quando algo inesperado era proposto.

– Quero pensar melhor sobre isso antes de dar uma resposta.

Suas sobrancelhas se elevaram só um pouquinho, mas o bastante para expressar o que ela pensava disso.

– Não vejo por que isso exigiria tanta ponderação.

– Sou um homem muito ponderado.

– Que admirável! E tais ponderações levariam muito tempo? Estarão concluídas em dois dias, para que eu saiba onde ficar na casa?

Ela usou uma voz cuidadosa e gentil, do tipo usado com um tio velho meio gagá. Ele não estava acostumado a ter ninguém – muito menos uma mulher – tratando-o como se fosse burro.

– Por que não explica esse pedido com mais detalhes, para que eu possa pensar enquanto fala?

– Não consigo pensar em outra forma de explicar isso. Está claro como água. Qual parte não entendeu?

Será que ela havia percebido por onde sua mente andara? Vira nos olhos dele? Estava deixando-o confuso como punição? Será que o pedido era complicado de atender? Ela não teria pedido para vender toda a prataria da casa, imaginava ele.

– Acho que minha tia pode ser convencida a aceitar sua condição.

– Então podemos dizer que chegamos a um acordo – disse ela, imensamente satisfeita com a conclusão da conversa e passando a alça da bolsa pelo braço. – Estou de saída. Estarei na casa para dar as boas-vindas a Lady Wallingford e sua prima quando elas chegarem.

Ele a acompanhou para que procurassem Irene. Encontraram-na na galeria com a governanta. Christian estava lá também, apontando para algum detalhe na pintura que observavam. Ele tinha finalmente se vestido e, fora o cabelo longo de aspecto primitivo, parecia um lorde inglês bem-apessoado.

– Christian, esta é a Srta. Welbourne. Este é meu irmão Christian, marquês de Easterbrook.

– Estava explicando para sua prima que este não é um Correggio original, mas uma cópia de um quadro que está em Parma, Srta. Welbourne – disse Christian.

A Srta. Welbourne olhou para o quadro. Ele retratava a princesa Io delicadamente voluptuosa e sensual, suspensa no ar por Júpiter, que tinha se transformado em nuvem. Como Io estava nua, aquele provavelmente não era um quadro que Christian devesse ter estimulado Irene a examinar.

– É adorável, mesmo sendo uma cópia – disse a Srta. Welbourne, segura de si o bastante para não revelar embaraço com o assunto.

Hayden o considerava adorável também. Observando agora, o corpo de Io parecia um pouco com a imagem que ele fizera do corpo da Srta. Welbourne. Arredondado nos lugares certos. Curvas e maciez à espera.

Hayden mostrou o caminho para que as mulheres saíssem com a governanta. Irene começou a cobrir a Srta. Welbourne de perguntas imediatamente, esquecendo-se de que seus sussurros seriam ouvidos na galeria.

– Você vai aceitar a função?

– Sim.

– Ele aceitou suas condições?

– Sim, vamos embora.

– Todas elas? Até mesmo a folga e o uso da carruagem?

Hayden se perguntou se tinha ouvido direito.

– Função? – disse uma voz baixinho sobre o ombro dele.

Ele virou o rosto e deu com Christian também observando as duas.

– Ela vai trabalhar como dama de companhia de tia Henrietta e preceptora de Caroline.

– Ah, entendo. As únicas mulheres que já fizeram negócios comigo foram minhas amantes. Daí minha confusão. Ela tem belos olhos... de uma cor inusitada.

Hayden observava as fitas do chapéu de Alexia flutuarem, a bainha do vestido se arrastar e seus quadris esbeltos se moverem.

– Ela queria se certificar do que se esperava dela no serviço doméstico. Nossa conversa tratou desse tipo de coisas.

– Como folga e uso da carruagem, você quer dizer.

Hayden ignorou a implicância. A Srta. Welbourne se virou para sussurrar algo no ouvido de Irene. Seu perfil apareceu por baixo da aba do chapéu. Um olho violeta, um nariz levemente arrebitado e uma boca carnuda expressiva formaram uma silhueta colorida contra o vestido marrom da governanta.

A porta se abriu e as mulheres desapareceram.

Hayden se virou e pegou seu irmão mais velho observando-o. Christian deu meia-volta e partiu.

– Vigilância, Hayden, vigilância.


CAPÍTULO 4

Alexia caminhava ao lado de Roselyn em ritmo de enterro. Estavam fazendo uma revista silenciosa de cômodo em cômodo para que Rose verificasse se nada fora esquecido.

Uma carruagem alugada esperava na rua. Ela levaria os Longworths até uma estalagem nos arredores de Londres. Lá seriam transferidos para a triste carroça que saíra antes do amanhecer, oculta pela escuridão, carregando os poucos bens que ainda lhes pertenciam.

Rose espiou a sala de visitas.

– Ouso dizer que a tia de Rothwell encontrará tudo em ordem. Espero que ela e a filha sejam felizes aqui.

A frase teria soado generosa, não fosse por seu tom amargo.

Alexia nada disse para reconfortá-la. Já usara todas as palavras de consolo que poderia conceber. Tinha até mesmo prometido a Irene lhe dar uma festa de apresentação à sociedade no ano seguinte, o que era o mais próximo de uma mentira deslavada que já dissera. Seu coração estava em prantos por todos eles. Rose e Irene, Timothy e ela própria.

Rose se voltou para ela. Com os olhos soltando faíscas pelos olhos, ela permitiu que toda a sua raiva viesse à tona.

– Você tem que me prometer não se afeiçoar a elas. Não quero saber se são boas ou não. Tem que me prometer...

Alexia a abraçou. O corpo de Rose começou a tremer e ela caiu no choro. Passou rápido. Rose engoliu as lágrimas e se recompôs, tudo em uma única inspiração profunda.

– Oxfordshire não é tão longe assim – disse Alexia.

Tal pensamento tinha sido repetido por todos eles muitas vezes na última semana.

– Vamos nos ver com frequência, tenho certeza – continuou.

Ela não estava tão certa disso, mas talvez fosse possível. Afinal, ela poderia usar uma carruagem, não? E tinha um dia de folga.

– Vamos subir para buscar Timothy – disse Roselyn.

Encontraram Timothy em seu quarto, estendido na cama, doente. Doente, não, percebeu Alexia. Ela avistou um decantador lascado debaixo da mesinha de cabeceira.

– A carruagem está esperando, Timothy – disse Rose.

– Para o diabo com a carruagem.

Tim nem sequer moveu o braço que se estendia sobre a testa.

– Para o diabo com os canalhas que esperam para ver esta cena – prosseguiu ele. – Para o diabo com a vida.

Rose pareceu exausta. Fora obrigada a assumir quase todas as providências necessárias nos últimos dias. Depois que vendeu o que podia, Timothy se tornara um inútil.

Alexia se curvou sobre a cama.

– Já se entregou à infelicidade por muito tempo, primo. Suas irmãs precisam que você volte a si. Permita-lhes sair pela porta com dignidade, não carregando o irmão em frangalhos entre elas.

Ele não reagiu nem se moveu. Ela tocou seu braço.

– Venha, Tim. Isso não é do seu feitio. Levante-se pelo bem de Irene, ao menos.

Depois de uma longa demora, ele fez um esforço para se levantar. Rose alisou seu casaco e fez o que pôde para deixar sua gravata apresentável. Timothy parecia tão triste e desamparado que Alexia teve vontade de chorar.

– Pegou as coisas dele no sótão, Rose? – disse ele em tom abafado. – Os baús de Ben e tudo o mais?

A expressão de Rose foi de desespero quando respondeu:

– Arrumamos tudo às carreiras... Como pude ser tão relapsa? Não tem mais espaço na carruagem e...

– Não se preocupe. Cuidarei do que possa ter ficado para trás – disse Alexia. – Podem ter certeza de que os baús continuarão aqui enquanto eu estiver e os levarei quando for embora. Vou achar um jeito de devolvê-los a vocês.

– Você é tão boa, Alexia – disse Rose com visível alívio.

Alexia não se importava de assumir a responsabilidade pelos pertences de Ben. Assim, parte dele ficaria com ela na casa. Ela poderia resistir melhor à adversidade da vida que iria enfrentar se pudesse se lembrar daqueles baús no sótão.

– Detesto deixá-la aqui – disse Tim olhando para o chão. – Odeio a ideia de ver você se sujeitar a ele. Esta foi a jogada mais cruel: ele ser capaz de se deleitar com sua queda de posição social.

Alexia não achava que lorde Hayden se deleitaria com isso, já que aparentemente não pensou duas vezes antes de praticar seus atos. Em poucos dias, ela seria uma criada conveniente e nada mais. Ele provavelmente esqueceria até seu nome.

– Não me importo com o que ele pense, Tim. Não me afeta em nada.

Essa afirmação pelo menos era verdade. Ela já sabia que, na vida, quando se desce um degrau, o motivo não importa. O estrago no orgulho era o mesmo, independentemente da causa. A pessoa podia enfrentar isso com elegância ou com amargura. Ela estava lutando para assumir a primeira postura, como fizera no passado.

Tim caminhava sem firmeza, mas Roselyn e Alexia o conduziram para o andar de baixo, até a porta. Irene esperava com ar sombrio pela partida solene. Com certeza os vizinhos espiariam de suas janelas para ver a cortina descer no último ato do fracasso encenado na Hill Street nas duas últimas semanas.

– Eu o odeio – disse Irene. – Não faz diferença se ele é bonito e se me deixou ver o salão de baile. Tenho certeza de que o irmão dele ficaria chocado em saber o que aconteceu. Eu deveria ter contado tudo a Easterbrook enquanto estávamos na galeria.

Alexia deu um beijo de despedida em Irene.

– Não ocupe seu coração com ódio, Irene.

– Você não precisa disso – falou Roselyn. – Eu odiarei Hayden Rothwell o bastante por todos nós, querida.

Seu rosto se fechou em uma máscara de orgulho. Ela pegou a irmã pela mão.

– Vamos embora – chamou.

Timothy abriu a porta. Ele não apreciou a atitude da irmã ao saírem. Na verdade, não as estava enxergando. Virou-se para a porta aberta e ficou lá, parado indolentemente por um tempo. Seu rosto enrubesceu de emoção.

Alexia manteve a mão no braço dele.

– Você é filho de um cavalheiro, Timothy. Nem isso pode mudar esse fato.

A expressão dele retomou a serenidade e ele se empertigou um pouco.

– Para o diabo com ele – grunhiu.

Deu um passo para fora e seguiu Roselyn e Irene rumo à obscuridade.

Alexia fechou a porta antes que a carruagem partisse. Secou as lágrimas que teimavam em rolar de seus olhos. Não ousava sucumbir ao impulso de se enraivecer com a injustiça da vida. Tinha que aprontar a casa para a chegada da tia e da prima de lorde Hayden.

Também precisava preparar seu orgulho para o momento em que as duas mulheres entrassem pela porta da frente.


– Foi tão gentil de sua parte nos acompanhar, Hayden, mesmo que nosso deslocamento seja só por algumas ruas da casa de Easterbrook. Não tenho muita habilidade para lidar com essas mudanças complicadas.

– Fico feliz em ajudar. A situação exigia pulso firme.

– Como sempre, tê-lo conduzindo as rédeas nos transmite confiança e tranquilidade. Não sei o que faríamos sem você.

O pulso firme em questão não tinha a ver com controlar os cavalos que puxavam a carruagem de Easterbrook por Mayfair. Nem com a enorme gama de detalhes relacionados à mudança de tia Henrietta para Londres. Disso tudo Hayden dera conta com facilidade.

Na verdade, era Henrietta, viúva de Sir Nigel Wallingford, que demandava pulso firme. Ela exigia mais da sua atenção do que os mais complicados investimentos financeiros que ele administrava.

Após a morte do marido, ao tomar conhecimento de que sua renda ficaria bem reduzida, ela assentira como se compreendesse a situação, mas depois não alterara em nada seus gastos. Sendo seu administrador, Hayden cumpria o penoso ritual de ir até Surrey para ralhar com ela por causa das contas altas, reprimendas que a tia aceitava com constrangimento, mas depois alegremente ignorava.

Ele a observou enquanto se sentava junto à filha na frente dele na carruagem. Um chapéu gigantesco cobria a maior parte do cabelo muito louro. Sua aba ampla e pontuda ficava o tempo todo batendo no queixo de Caroline. O maior laço vermelho da história da chapelaria apequenava a copa alta. Uma pluma extravagante traçava um amplo arco e tocava o delicado maxilar de Henrietta. A mulher era baixa e franzina, com rosto pequeno e traços finos, e o chapéu parecia um peso prestes a curvá-la.

Sem dúvida, Henrietta achava que o chapéu era magnífico e valia cada centavo gasto nele, mas não percebia como a envelhecia. Sendo irmã mais nova de sua falecida mãe, aos 36 anos, tia Henrietta ainda possuía feições joviais, mas, usando aquele chapéu, aparentava ter 50.

– Você tem absoluta certeza de que essa preceptora fala um francês impecável? – perguntou ela. – Caroline precisa de alguém muito competente.

– A Srta. Welbourne é bem instruída em todas as matérias necessárias.

Na verdade, não tinha certeza se a Srta. Welbourne sabia francês. Mas, se alegava ter a formação exigida para desempenhar seu novo papel, então deveria ser capaz de demonstrar isso. Ele suspeitava de que ela poderia aprender francês em quinze dias se ainda não soubesse.

– Espero que ela não seja igual à Sra. Braxton – murmurou Caroline.

Uma menina quieta e pálida, Caroline raramente falava. Hayden suspeitava de que a criança que ele via não era a Caroline de verdade, mas uma menina desbotada e enrijecida pela presença da mãe.

– Estou certa de que a Srta. Welbourne será muito diferente de sua última preceptora – disse Henrietta. – Hayden teve que lhe prometer algumas concessões incomuns para persuadi-la a nos ajudar.

Os olhos verde-claros de Henrietta brilharam com o feliz otimismo que a fazia parecer sonhadora e distraída o tempo todo.

– Estamos na cidade agora, querida. É um mundo bem diferente. A Sra. Braxton não serviria. Foi por isso que Hayden encontrou essa casa e a estimável Srta. Welbourne para nós.

Ela concedeu a Hayden um daqueles sorrisos. Um dos sorrisos agradecidos e afetuosos que diziam que ele era a âncora de seu navio sem leme. Ela confiava totalmente no sobrinho, dependia dele em excesso e esperava que ele atendesse a seus caprichos. Provocava um desastre atrás do outro e depois, com pesar, encaminhava o problema para ele resolver, porque ele era tão incrivelmente competente nisso.

Ele não tinha dúvida de que sua tia agia com ele de forma semelhante à que costumava agir com seu finado marido. Sua aparência adorável, as voltas que dava nos assuntos tentando evitar dar explicações, suas tentativas de amansá-lo com elogios – estas eram as marcas de uma mulher que manipulava um homem. Ele gostava de tia Henrietta e até a considerava divertida. No entanto, ser seu administrador por seis anos tinha lhe ensinado certos aspectos do relacionamento diário com uma mulher que vinham com o casamento. Nenhum deles o tinha estimulado a procurar uma esposa.

– Aí está – anunciou Henrietta quando a carruagem parou na Hill Street. – Pedi que o cocheiro passasse por aqui anteontem para me mostrar. A casa é bem bonita e de bom tamanho, não acha, Caroline? Mas não fica em uma praça. Tinha esperanças de que ficasse. Porém, se Hayden diz que é adequada para nós, assim será.

Hayden conhecia bem as esperanças dela. Seu irmão Christian também. Tia Henrietta não dera atenção aos detalhes da mudança para Londres até que ficara difícil demais encontrar um local adequado para alugar. Christian desconfiava de que a tia deles tinha outro motivo para tamanha negligência. Ele estava certo de que ela contava com que ficasse sem lugar para morar, quando então pediria para apresentar sua filha à sociedade no lar de Easterbrook.

Três semanas antes, Christian havia decretado sumariamente que isso não aconteceria, de jeito nenhum. Ele ofereceria o baile de apresentação de Caroline à sociedade, mas não viveria sob o mesmo teto que sua tia intrometida e frívola.

A residência dos Longworths resolvera então um problema iminente. Também dera a Timothy oportunidade de reembolsar Henrietta pelos títulos roubados sem que ela ficasse sabendo do golpe. Henrietta acreditava que Hayden os havia vendido para comprar a casa.

Ao descer da carruagem, Hayden pensou no restante do plano. Com sorte, Caroline ficaria logo comprometida com um rapaz da primeira leva de pretendentes e Henrietta voltaria para sua casa, em Surrey. A casa de Londres seria vendida e os títulos roubados, substituídos por novos. Se a divina Providência realmente sorrisse para ele, após Caroline se casar, sua tia procuraria um marido e Hayden passaria para ele a responsabilidade de controlá-la.

Hayden deu a mão para ajudar a tia e a prima a descerem. Ao entrarem, todos os criados se perfilaram no hall para saudar a nova patroa.

Henrietta examinou a criadagem. Hayden mantivera Falkner, mas o restante do pessoal era novo.

Ele deu um passo à frente quando sua tia se aproximou da Srta. Welbourne e apresentou as duas mulheres – o que não fizera com o mordomo ou com a governanta. Era do seu interesse que elas se dessem bem. Com sorte, a Srta. Welbourne reduziria as demandas de Henrietta por ele.

Tia Henrietta examinou em detalhes a nova dama de companhia. A Srta. Welbourne passou com elegância pela avaliação.

– Esta é minha filha, Caroline – disse Henrietta, instigando a garota a dar um passo à frente. – Nosso atraso em vir à cidade significa que seus últimos retoques precisam de atenção. Imagino que você seja adequada para fazer isso.

– Sou, sim, Lady Wallingford.

– Soube que começou a desempenhar suas funções recentemente e que é prima da família que viveu aqui por último.

Hayden não imaginava que Henrietta soubesse disso. Ela estava na cidade havia somente dois dias. A cor dos olhos da Srta. Welbourne se intensificou, mas ela não demonstrou qualquer outra reação.

– Sim, senhora.

– Vamos conversar um pouco sobre isso. Contudo, não tenho motivos para duvidar da confiança que meu sobrinho deposita na senhorita.

– Obrigada, senhora.

Henrietta seguiu em frente, cumprimentando as empregadas, o lacaio e o cozinheiro. Hayden observava o ritual em um canto do cômodo. Observava principalmente a Srta. Welbourne.

Os olhos dela não vacilaram desde que entraram na casa. Ele percebeu que seu olhar estava pregado em um ponto na parede por trás dele. Mesmo quando Henrietta falou com ela, seus olhos violeta não se moveram. Ela estava resistindo bem àquela provação, mas na verdade não a estava vendo.

Admirou sua atitude e a leve altivez que ela emanava. Alexia podia estar entre os criados, mas só um tolo não veria a diferença. Com certeza sua tia havia percebido isso de imediato, por isso lhe fizera aquela pequena provocação.

O olhar da Srta. Welbourne se moveu sutilmente em direção a ele. Raiva e orgulho se estamparam em seu rosto. Não ouse ter pena de mim, expressou uma olhada rápida. Você mais do que todos os homens não tem esse direito.

O ressentimento dela parecia prestes a desmanchar sua pose. Ele andou em sua direção e fez um gesto para que se aproximasse, tirando-a da fila de empregados.

– Parece que a senhorita tem tudo sob controle. É admirável.

Ele se referia a ela, não aos empregados. Ela pareceu entender. Sua expressão voltou à passividade. Seu olhar se dirigiu para o mesmo lugar de antes, atrás dele na parede.

– Falkner cuidou para que os outros ficassem preparados – disse ela, baixo.

– Acha que consegue lidar com ela? – falou Rothwell, olhando para sua jovem prima.

A Srta. Welbourne olhou para o final da fila também, só que parou para observar Henrietta e não Caroline. Mais especificamente, o chapéu de Henrietta.

– Acho que merecia os dois salários – disse ela.

– Andei pensando que talvez a senhorita valha muito mais para mim.

Ao falar, o tom soou meio malicioso. Se ela percebeu, não teve qualquer reação. Provavelmente porque o sentido oculto tinha ficado somente na cabeça dele, um reflexo de maquinações que não fariam nada bem a sua reputação.

– Acho que tem razão. Mas fiquei satisfeita com nossa última reunião e não espero mais por ora.

– Fico aliviado. Só há uma carruagem, como vê, e minha tia vai querer usá-la de vez em quando. Se a senhorita tiver várias folgas em vez de uma só, isso criaria um sério incômodo para ela.

Ela não pôde resistir e sorriu ao lembrar que o havia derrotado nisso. Sua boca rosa relaxou e revelou seu bem-vindo potencial de sensualidade. Os lábios se afastaram o bastante para provocar pensamentos inapropriados na cabeça dele.

Os olhos de Alexia por fim se voltaram para ele, para partilhar a piada. Ele lhe devolveu um olhar profundo, que exigiu sua relutante atenção. Mas Hayden deixou que o momento se prolongasse demais. A janela se fechou, como se Alexia houvesse notado o perigo nos olhos dele. Ela se empertigou.

De repente, corpos se movimentaram em volta deles. Os criados haviam sido dispensados. O chapéu de Henrietta se intrometeu entre ele e a Srta. Welbourne.

– Hayden, informei ao cozinheiro que você jantará conosco amanhã. Easterbrook e Elliot também.

– Elliot está em Cambridge e Christian tem um compromisso amanhã.

Ele começou a acrescentar suas próprias desculpas, mas ver violetas e rosas deteve suas palavras. A Srta. Welbourne estava falando com Caroline, assumindo suas funções.

– Ficarei feliz em aceitar, se minha presença apenas não for tediosa demais.

– Tediosa, nunca! Não venho a Londres há anos e estaria perdida sem a sua ajuda abrindo caminho para a sociedade. Quase me esqueci do que Caroline deve ver e fazer. Precisamos de você para fazer uma lista de locais que devemos visitar e dos passeios que nós não podemos perder.

Ele desconfiou que ela o incluíra no “nós”. Antes que o jantar do dia seguinte se encerrasse, Henrietta teria sua agenda completamente preenchida com formas como ele poderia “ajudar”.

Era tudo culpa da Srta. Welbourne. Ela o distraíra e ele baixara a guarda. Se ela o deixara à mercê de Henrietta somente com um sorriso, era uma sorte ela o odiar e não sorrir com frequência.

Ele se despediu e recebeu um adeus frio da Srta. Welbourne em meio às despedidas efusivas de Henrietta. Ao deixar a casa, Henrietta estava seguindo a governanta para ver os outros cômodos e Caroline se esgueirava à procura da sala de música.

O que significava que a Srta. Welbourne tinha sido a única a de fato vê-lo partir.


Paciência. Alexia disse para si mesma. Lembre-se do seu lugar. Engula as palavras antes de expressar o que você pensa.

Ela se sentou à mesa da sala de jantar com Lady Wallingford, Caroline e lorde Hayden. Manter-se em silêncio durante esses jantares se mostrou uma tarefa fácil, porque Lady Wallingford não parava de falar com o sobrinho. Nas duas últimas refeições em que tinha estado presente, ela o persuadira a contar todas as fofocas que corriam pela cidade, com descrições completas dos personagens importantes. Esta noite ela o estava pressionando a levá-la ao Museu Britânico.

Lorde Hayden olhava com frequência em direção a Alexia, como se esperasse que ela interrompesse a conversa e o salvasse de sua tia. Ela não se mostrou inclinada a fazer isso. Era uma criada, afinal de contas. Não lhe cabia fazê-lo, não era verdade? Ele estava sendo óbvio demais também. Parecia ignorar a tia todas as vezes que desviava a atenção daquela forma.

Ele tratava a tia com uma firmeza afetuosa que sugeria que a considerava distraída demais para ser responsabilizada por seus excessos. Aparentemente não apreciava por completo a sua personalidade. Em apenas uma semana, Alexia descobrira que as maneiras frívolas e despretensiosas de Lady Wallingford escondiam um tipo muito feminino de astúcia.

– Será mais instrutivo para Caroline se você nos levar, Hayden – disse Lady Wallingford. – Sou ignorante em história antiga e nunca conseguiria explicar a importância dos artefatos. – Ela lhe deu um sorriso que derreteria aço. – E Caroline não conhece muito bem você e seus irmãos. Nem você a conhece, agora que ela não é mais uma criança.

Caroline ficou vermelha até as orelhas. O olhar astuto da sua mãe lhe deu uma deixa. Caroline forçou um sorriso esperançoso.

– Seria maravilhoso visitar o museu com você, Hayden. Se puder dispor de tempo para nós.

Alguns minutos depois, Lady Wallingford pegou o sobrinho em sua rede. Na semana seguinte ele iria acompanhá-las ao museu.

Alexia se divertia vendo a nova patroa manipular esse homem orgulhoso e severo. Ele nem parecia perceber o maior desejo da tia, que era o de fisgá-lo de vez.

– Agora temos que decidir sobre a modista que fará o vestido da apresentação de Caroline – disse Lady Wallingford. – Ouvi falar que existe uma madame Tissot que é uma maravilha e também que a Sra. Waterman serviria. O que nos aconselha, Hayden?

– Eu não entendo disso, mas a Srta. Welbourne as ajudará, espero.

Todos os olhares se voltaram para ela, vencendo suas intenções de permanecer uma mera sombra no canto da mesa.

– Se eu tivesse que escolher, com certeza seria madame Tissot – disse ela.

A Sra. Waterman tinha sido a modista escolhida para fazer o guarda-roupa de Irene Longworth para sua apresentação. Caroline agora vivia na casa de Irene e até dormia na cama de Irene. Por nada neste mundo Alexia permitiria que também ficasse com os vestidos feitos para Irene, se pudesse impedir.

A rispidez de sua reação advertiu-lhe que ela ainda não tinha definido sua situação. Os ressentimentos afloravam em ocasiões como essas. Ter que partilhar a refeição com lorde Hayden também deixava parte de sua alma fervilhando. Aceitar sua atenção arrogante, combater sua aura dominadora, parecia uma perspectiva cruel. Ela esperava que ele demonstrasse mais força de caráter no futuro e declinasse os convites da tia para jantar.

– Antes que encomende qualquer vestido, precisamos ter uma conversinha, tia Henrietta.

– É claro – concordou Lady Wallingford, sua expressão tornando-se obediente e respeitosa. – A própria Caroline insistiu em limitações estritas de custo. Ela é muito mais sensata do que eu nessa área, não é, querida? O homem que se casar com ela vai achar bem mais fácil controlar seus gastos do que os da maioria das outras moças.

Caroline enrubesceu de novo. Seu primo não percebia a isca que pairava acima dele, apenas deu um sorriso vago em aprovação.

A refeição terminou e, com a agenda de lorde Hayden adequadamente preenchida, todos se dirigiram para a sala de estar. Ao chegar à porta, Lady Wallingford anunciou um novo plano.

– Hayden, você daria licença a mim e a Caroline por um instante? Ela tem uma surpresa para você e preciso ajudá-la. A Srta. Welbourne vai entretê-lo enquanto preparamos um passatempo.

E assim Alexia se viu sozinha, sentada em frente a lorde Hayden na sala de estar, em uma situação parecida com a de sua primeira conversa.

– Pode me dar uma dica sobre qual será esse passatempo? – perguntou ele, esticando as pernas de maneira muito informal.

Ela não era nenhuma parenta dele; dispensava tal atitude de familiaridade.

– É um mistério para mim.

– A senhorita é a preceptora dela.

– Acho que isso foi planejado antes da chegada delas. Que eu saiba, não houve ensaios ao longo da última semana.

Ele a olhou daquela forma direta e desconcertante que adotara.

– Então não deve mesmo ter havido nenhum. Tenho certeza de que nada lhe escapa, Srta. Welbourne. Por exemplo, já deve ter percebido que a querida tia Henrietta tem planos para Caroline e eu que vão além de visitas a museus.

– É verdade? Que afortunado!

A consciência dele das intenções de Henrietta arrasaram suas fantasias. Ela tivera esperanças de vê-lo nadar arrogantemente contra a correnteza só para no fim morrer na praia, sob os saltos de Henrietta.

– Ajudaria muito se desestimulasse esses planos.

– Não imagino como. Além disso, vocês formariam um belo casal.

– A senhorita pretende se aliar a tia Henrietta contra mim, não é?

– Nós, mulheres, somos como irmãs nesses assuntos, senhor. E realmente gostamos de ver o poderoso perder.

– A senhorita fala como se eu não tivesse chance – disse ele rindo.

– Tenho esperanças de vê-lo estripado, descamado e na frigideira até junho.

O humor fez os olhos de Hayden brilharem. A diversão o transformara. Não parecia mais tão rígido. Forte, sim, mas não rígido.

– Um peixe? Está me comparando a um peixe? Poupe-me alguma dignidade, Srta. Welbourne. Uma raposa caindo na armadilha, um touro vencido por um toureiro. Há muitas analogias à disposição, mas um peixe é cruel demais.

Ela sorriu sem querer.

– Achei a imagem muito convincente.

Apesar de ainda sorrir, ainda... atraente, a conduta dele ficou mais séria.

– Se a senhorita se recusa a desestimular minha tia, então está certo. Mas faça o que puder para evitar que a garota aceite as ideias da mãe. Não gostaria de vê-la magoada ou desencorajando pretendentes por conta desse esquema. Não há a menor possibilidade de eu me casar com minha prima.

– Por que não?

O sorriso dele foi firme o bastante para dar a entender que Alexia tinha ido longe demais. Não havia novidade nisso e ela não retirou a pergunta.

– Ela é uma criança – disse ele.

– Todas elas são. As igrejas estão cheias de noivas meninas, já que se considera encalhada uma mulher solteira de 22 anos.

– Não pretendo me casar no futuro próximo, menos ainda com uma criança. Essas meninas têm ideias muito frívolas e românticas, o que obriga os homens a fingir fraqueza e sentimentalidade. Além do mais, ela é minha prima. Sei que esses arranjos são comuns, mas são uma prática doentia que não aprovo.

Doentia?

– Benjamin Longworth era meu primo. Não gosto da ideia de que meu amor por ele seja doentio.

Hayden empalideceu.

– É claro que não. Desculpe-me, Srta. Longworth. Às vezes sou muito sem jeito ao expressar minhas ideias.

Seguiu-se um silêncio breve e desconcertante.

– É claro que não tínhamos convivência quando éramos mais jovens – disse ela. – Ele não me conheceu quando eu era garota...

– Sim, exatamente. Então entende por que um casamento com Caroline é... impossível.

Ele encerrou o assunto se levantando e caminhando sem rumo pela sala.

– Quando a senhorita conheceu Benjamin?

A pergunta foi feita casualmente, enquanto ele examinava uma cena doméstica pintada por Chardin. O quadro tinha vindo com vários outros após a partida dos Longworths, um empréstimo da coleção de Easterbrook para cobrir as paredes vazias.

– Quando me juntei a eles aqui em Londres. Eles viviam em Cheapside na época. Escrevi-lhes sobre minha situação depois que meu pai morreu e Ben me respondeu dizendo que deveria vir. Ele foi muito gentil.

Gentil e alegre. O mundo se iluminava quando Ben estava por perto. Ele inspirava uma leveza de espírito, muito diferente do homem que estava em sua companhia no momento, que a deixava com raiva e na defensiva o tempo todo.

– O senhor disse que se conheceram quando eram garotos. Como ele era quando jovem?

– A maturidade não mudou sua personalidade. Ele era igualmente impulsivo e despreocupado quando garoto. E fazia muitas travessuras.

– Quer dizer que ele foi um menino levado.

– De uma forma positiva. Todavia... O garoto, assim como o homem, não pesava as consequências de seus atos.

– É porque Ben vivia o momento. Ele não planejava nada. Contava com a sorte de que tudo desse certo no fim.

Ela amava isso nele. Amava como se sentia livre e quase inconsequente na presença de Ben. A vida a forçara a se tornar tediosa e sensata, até que os sorrisos dele a aqueceram em seu último ano juntos.

Ele lhe devolvera a juventude por um curto espaço de tempo e ela ainda ocultava aquela garota renascida e cheia de vida no mesmo lugar em que guardava as lembranças de Benjamin.

Rothwell tinha se virado e estava olhando para ela. Ele parecia rígido de novo e seus olhos azul-escuros demonstravam quão profundamente ele a avaliava. Ben nunca olhava para as pessoas daquela forma.

Ela sustentou o olhar. Foi um erro. A conexão a deixou em desvantagem, assim como acontecera no hall na semana anterior, quando ele chegara com a tia. O olhar dele era penetrante demais, enxergava demais. Ela sentiu como se ele estivesse lendo seu coração.

Alexia reagiu como acontecia com frequência diante desse homem. Parecia com a forma como Ben a fazia sentir, só que com tintas mais intensas. A atenção que ele lhe dispensava flertava com o perigo. O estímulo que lhe provocava causava tremores de medo.

Ela estremeceu. Disse a si mesma que estava com os pés firmes no chão. Mas a verdade sussurrava o contrário em seu coração. Ela era impotente para desviar o olhar, para rejeitar aquela excitação.

– Imagino que a vida não era enfadonha quando vivia nesta casa – disse ele.

Ela se sentiu corar. Era como se ele tivesse visto aqueles beijos roubados nas suas lembranças e agora se referisse a eles.

Ele parecia prestes a falar de novo, mas foi interrompido. Um lacaio apareceu para dizer que eles eram aguardados na biblioteca.

– Parece que o passatempo está pronto – disse lorde Hayden.

Ele a acompanhou até a outra sala. A proximidade do corpo dele a fez pensar na volta de reconhecimento que haviam feito pela casa. E isso não ajudou em nada a combater o estranho poder que ele exercia sobre ela.

– Gosto de falar sobre Benjamin com o senhor – disse ela ao entrarem na biblioteca. – Espero que algum dia me divirta com casos sobre seu tempo na Grécia ou a juventude dele.

– Certamente, Srta. Welbourne.

Um pequeno palco armado aguardava por eles na biblioteca. Duas colunas baixas flanqueavam um pano azul esticado no chão. Um tecido branco pendia ao fundo, preso nas prateleiras de livros. O cenário improvisado mostrava uma pintura de montanha e de um templo com colunas.

Lady Wallingford estava de pé ao lado. Ela indicou que eles se sentassem em duas cadeiras dispostas diante do pano azul.

Ela bateu palmas para chamar atenção. Outra palma e a representação começou.

Caroline surgiu de trás do cenário. Estava usando uma roupa ao estilo grego, que deixava seus braços de fora e mostrava um pouco de seu quadril e muito da sua pele no pescoço e colo. A mãe prendera seu cabelo para cima, dando-lhe um ar mais maduro, e até maquiara levemente seu rosto jovem.

Caroline estava muito bonita, muito adulta – quase infame.

Alexia esticou o olhar para lorde Hayden, para ver sua reação. Pegou-o discretamente olhando de volta para ela.

– E eu que achava que as tinha sob controle, Srta. Welbourne – sussurrou ele. – Parece que minha tia não pretende esperar até junho para me fritar.

A bela isca de Lady Wallingford se posicionou entre as duas colunas e começou a recitar uma passagem da Ilíada.


CAPÍTULO 5

Usando um vestido velho e envolta num longo xale de lã, Alexia se refugiou na biblioteca. Acendeu a lareira, deitou-se no sofá ao lado e apoiou na barriga um livro aberto.

Silêncio. Liberdade. Um fogo aconchegante e horas de privacidade. Fechou os olhos e saboreou a sensação de retorno a um mundo que conhecia bem. A chuva que batia suavemente no vidro das janelas só melhorou a sensação.

Tinha sido brilhante pedir a lorde Hayden uma folga por semana. Ousado também. Nunca imaginou que seu pedido pudesse ser atendido; ficou até espantada quando lorde Hayden cedeu. Talvez ele de fato se sentisse um pouco culpado em relação aos Longworths. Não havia outra explicação.

Era um ponto a favor dele, mas ela não desperdiçaria tempo avaliando seu caráter. Planejava aproveitar ao máximo essas horas sem Lady Wallingford e Caroline – principalmente, sem o próprio lorde Hayden. Ele estava sempre pelo caminho, fazendo visitas de dia ou jantando à noite. O homem era jovem, solteiro e rico. Com certeza tinha coisas melhores para fazer do que visitar a tia.

Ela sorriu para si mesma. Sem dúvida que tinha. Entretanto, sua tia possuía a excepcional capacidade de requisitar sua presença e faltava nele a habilidade necessária para escapar de suas maquinações. Alexia desconfiava de que sua analogia com o peixe tinha sido inapropriada. Rothwell não estava sendo seduzido com uma isca. Henrietta fixara um anel no nariz dele e o estava lenta e implacavelmente levando para o matadouro.

Ela riu ao pensar nessa imagem. Contudo, enquanto um minotauro era arrastado pela corda de Henrietta, a fantasia se transformou. De repente, ela o viu de pé ao lado da jovem Caroline numa igreja.

Seu júbilo se desfez e ela examinou a cena em sua cabeça. Não seria um casamento com amor. Ela duvidava se havia algum romantismo nele. Caroline imaginaria que sim, pois era jovem e impressionável. Quando essa ilusão se desvanecesse, já teriam se adaptado um ao outro. Caroline teria o que a maioria das mulheres almejava: segurança, apoio e, quem sabe, gentileza.

O quadro mudou de novo e Rothwell não estava mais na igreja. Em vez dele, surgiu Benjamin. E Alexia já não observava tudo olhando de cima: estava ao lado dele. Por um instante, a alegria encheu seu coração, como se a cena fosse real.

Ela afastou a imagem da cabeça com um arrependimento melancólico. A vida nem sempre era como se desejava. Às vezes era preciso se contentar com menos do que fora sonhado.

O livro chamou sua atenção. Normalmente leria Walter Scott em seu quarto, onde ninguém poderia ver. Não era o tipo de literatura séria esperada de uma preceptora. Não tinha sido incluído na lista que ela dera a Caroline como parte de suas lições.

Embrulhada e aconchegada, permitiu-se a libertação temporária de viver em um mundo de homens arrojados e mulheres impressionantes, de paixões fortes demais para estarem no mundo real e de romances dramáticos demais para serem verdade.


– Irc.

O rosto de Caroline se torceu de nojo, mas ela se aproximou da cabeça de abutre preservada em álcool. De todos os artefatos eruditos atulhados na coleção do museu em Montagu House, esse grotesco espécime só não era mais popular do que a múmia egípcia e o porco com cara de ciclope conservado em salmoura.

Hayden sorriu com a fascinação e a repulsa infantis. Era revoltante pensar que ela provavelmente estaria casada dali a um ano. Não aprovava que meninas tão novas fossem oferecidas a pretendentes, e não só porque o casamento precoce de sua própria mãe tivesse sido tão trágico.

– Agora temos que ver as peças de mármore – arrulhou Henrietta, puxando a filha da multidão que observava o abutre.

Por duas vezes Hayden já desviara a atenção delas para que esquecessem os mármores de Elgin. Ele se lembrava perfeitamente de como a tia vestira Caroline para sua apresentação da Ilíada e imaginava por que Henrietta se mantinha tão inflexível quanto a ver as peças de mármore. Pouco tinha a ver com o fato de serem uma mostra magnífica da arte grega.

– Não creio que a Srta. Welbourne fosse considerar apropriado a Caroline ver as esculturas em mármore – disse ele.

– Sou mãe dela; a decisão cabe a mim. Contudo, a Srta. Welbourne a instruiu a vê-las. Falou tão bem desses trabalhos que também tive vontade de revê-los.

– Se ela foi tão categórica, deveria ter nos acompanhado na visita.

Ele só descobrira que a Srta. Welbourne tinha optado por tirar folga naquele dia quando chegara para pegar as damas. Ela o deixara à mercê de Henrietta, enquanto se divertia na cidade, sabe lá Deus fazendo o quê. Teve ímpetos de mandar chamá-la e ordenar que entrasse em sua carruagem imediatamente e que escolhesse outro maldito dia para descansar.

A tia o arrebanhava na direção que desejava que ele seguisse.

– A Srta. Welbourne disse que as esculturas estão em um pequeno prédio à parte. É por aqui, não?

Saíram de Montagu House, enfrentaram a chuva e entraram no anexo que abrigava as esculturas que lorde Elgin retirara do grande Parthenon em Atenas.

– Você não deve ficar chocada, Caroline – instruiu Henrietta. – Grandes artistas tomam liberdades que podem parecer escandalosas, mas a arte ocupa um plano mais elevado da experiência. Além disso, essas peças são muito antigas, de uma época anterior à era cristã.

Hayden suspeitava de que, na verdade, a intenção da tia era causar espanto em Caroline. Essa história de plano mais elevado era lorota. As figuras masculinas no salão estavam praticamente nuas. Sua tia estava realizando uma forma disfarçada de iniciação e a presença dele era inadequada.

Tia Henrietta queria isso também. Ela desejava que a filha visse as estátuas e ficasse se perguntando o que haveria por baixo das vestimentas do futuro marido ao seu lado.

Se a Srta. Welbourne tivesse vindo, poderia ter dado uma aula de arte para Caroline, enquanto ele se manteria à sombra. Conjecturou se Henrietta tinha decretado que a preceptora ficasse em casa, para que ele não tivesse essa opção. O mais provável era que a Srta. Welbourne houvesse desconfiado do plano e dado uma mãozinha para sua tia.

Ele pretendia conversar com a Srta. Welbourne a esse respeito. Muito em breve.

Pararam em frente às métopas que mostravam a batalha entre os lápitas e os centauros. Hayden contou a história exibida ali. Henrietta analisou os aspectos artísticos.

Caroline olhava com curiosidade para os corpos masculinos nus. Seguiu-se um silêncio curto e constrangedor durante o qual Hayden se esforçou para manter toda a compostura.

O cenho de Caroline se franziu.

– Estão todas quebradas. É como se tivessem cortado fora as cabeças e os braços com espadas. Não imagino por que essas obras estão em exposição, muito menos por que são famosas.

Hayden quase respondeu que não era assim que os corpos ficavam quando decepados. A imagem bizarra invadiu sua cabeça e sua alma se entristeceu. Voltou a atenção para as damas a fim de conseguir controlar a sensação ruim.

– Trata-se da escultura das formas, querida. É por isso que são tão apreciadas – disse Henrietta. – Os dorsos, coxas e quadris...

– Não gosto nada disso.

– Outras pessoas compartilham suas críticas, Caroline – disse Hayden. – Muitos só começam a apreciar a arte grega depois de um tempo. Já ouvi dizer que as mulheres passam a gostar mais desses mármores conforme vão ficando mais velhas.

Ele indicou o caminho dessa vez, para fora do anexo.

– É uma pena a Srta. Welbourne ter ido visitar amigos em vez de nos acompanhar – comentou Hayden. – Tenho certeza de que ela seria capaz de explicar os aspectos artísticos para além do meu nível de sensibilidade.

– Ela não tirou folga para visitar amigos – disse Caroline. – Ela pretendia ficar em casa para cuidar de assuntos pessoais. Escrever cartas, coisas assim.

Isso não melhorou seu humor. Ele passaria mais algumas horas nesse passeio, enquanto a Srta. Welbourne escapava de suas funções para escrever cartas. Cartas de amor, era provável, para o falecido Benjamin Longworth.

Ela só se alegrava quando o nome de Ben era mencionado. Transformava-se em outra mulher. A lembrança de seu antigo amor a remoçava como por encanto. Isso era doentio! Também era um amor construído sobre mentiras. Mais uma vez Ben tinha agido por impulso, sem medir as consequências.

Ben nunca pretendera se casar com Alexia Welbourne, independentemente do que ela havia sido levada a acreditar. Estava atraído por uma jovem abastada e de família aristocrática muito antes da viagem para a Grécia. A própria ideia de lutar na guerra tinha sido uma forma de executar atos heroicos que impressionariam a tal jovem rica e inatingível.

Henrietta interrompeu seus pensamentos sugerindo que visitassem a biblioteca do museu. Hayden vislumbrou mais uma hora bancando o professor.

Quando abriu a porta, avistou um rosto familiar. Seu irmão Elliot estava sentado a uma mesa, examinando um grande manuscrito. Elliot retornara à cidade na noite anterior, vindo das bibliotecas de Cambridge, e já estava ali.

– Espere aqui, tia Henrietta.

Hayden deixou as duas na porta e andou na direção do irmão. Elliot estava tão absorto que foi preciso tocar seu ombro para chamar sua atenção.

A basta cabeleira escura foi jogada para trás. Elliot olhou através dos óculos. Sua mente refez seu caminho de volta do lugar aonde o manuscrito o levara.

– Hayden. Que surpresa!

– Será, com certeza. Venha comigo. Se fizer alguma objeção, vai se ver comigo.

Confuso, Elliot se levantou e o seguiu sem apresentar resistência.

– Vejam quem encontrei estragando os olhos em um denso tomo latino – anunciou Hayden.

Saudações cordiais se seguiram. Elliot vivia perdido no passado histórico, mas podia ser bem charmoso, quando queria. Caroline ficou envaidecida com os elogios de como estava crescida e bonita e como logo seria assediada por vários pretendentes depois de sua apresentação à sociedade.

– As damas gostariam de conhecer a biblioteca e saber de suas preciosidades, Elliot.

– Ficaria feliz em mostrar-lhes a coleção. Há muitas raridades que são ao mesmo tempo belas e instrutivas. Há também os projetos do arquiteto Robert Smirke para o novo prédio do museu, que está em construção.

– Que ideia esplêndida – disse Hayden. – Deixo-as em suas hábeis mãos.

Henrietta não ficou nada satisfeita.

– Mas, Hayden, achei que você...

– Tenho um compromisso esta tarde e logo teria que me despedir de vocês, de qualquer forma. Agora podem apreciar a biblioteca sem pressa. Elliot é muito mais qualificado para dar essa aula do que eu. Mostre-lhes tudo. Elas têm o dia inteiro.

Ele concluiu sua fuga. Seria improvável que a tia e a prima aparecessem em casa antes do jantar. Ele deixou a carruagem esperando por elas e saiu para procurar um cabriolé de aluguel.

Ele não mentira. Realmente tinha compromissos nesta tarde. Mas não nas próximas horas. Tinha que ir a outro lugar antes de seguir para o centro financeiro e tratar de negócios.


Ela emergiu de um sonho. Mesmo ao flutuar rumo à consciência, sabia que tinha tirado uma soneca sem querer. Algo a puxara de volta à superfície. Não fora um som. Uma sensação de perigo a arrancara do sono.

Abriu os olhos. A primeira coisa que viu foram outros olhos, de um azul tão escuro que surpreendiam. Avistá-los causou um eco em sua alma: tinha acabado de vê-los no sonho que agora se apagava nas brumas das memórias mais profundas.

As visões e odores do mundo real afastaram rapidamente o sono que restava, deixando-a cara a cara com lorde Hayden Rothwell.

Ele parecia muito alto em pé diante dela. E muito sério também, com uma pequena ruga a lhe marcar o cenho. Provavelmente desaprovava que criados dormissem no sofá da biblioteca.

Ela deu um salto e se sentou.

– Sua tia já voltou?

– Deixei-a com meu irmão Elliot na biblioteca.

Ele pairava sobre ela. Essa proximidade a deixava nervosa.

Isso a incomodava. Mesmo nas ocasiões em que conversavam informalmente, mesmo quando se deixava encantar por ele, esquecendo o motivo de odiá-lo tanto, aquela inquietação incômoda persistia.

Ela não deveria ter que tolerar isso hoje.

– Dei ordens a Falkner para que ninguém entrasse neste recinto.

– Os criados nunca imaginariam que tal ordem me incluiria. Na cabeça deles, sou o patrão desta casa e dono de tudo aqui dentro.

Ele não se moveu, como se enfatizasse que seu poder sobre “tudo aqui dentro” significasse que era dono dela também.

– É assim que pretende aproveitar as folgas que me persuadiu a lhe conceder? Lendo perto da lareira?

– Este é meu dia. Sou livre para fazer o que quiser. Se esperava um relatório, deveria ter me dito.

Ela queria que Hayden fosse embora. Ele estava estragando tudo.

– Então, por algumas horas, viverá aqui como outrora e tratará esta casa como se fosse seu lar de novo. Não havia compreendido o significado real da palavra “livre” quando a usou.

As palavras atingiram o coração de Alexia, ressoando em toda a sua verdade. Ele a compreendia melhor do que ela mesma. Entendia por que essas horas tinham sido tão deliciosas.

Tinha mais um motivo para odiar aquele homem agora. Levantou seu olhar para ele.

– Por que está aqui?

– Para vê-la.

Seu olhar mudou. Viu-a da cabeça aos pés, com o velho vestido verde e o grosso xale de lã. Alexia deveria ficar constrangida por suas vestimentas simples, mas naquele momento elas pareceram convenientes e... seguras.

– Também vim para conversarmos, de forma que entenda o que preciso que faça.

– Conheço minhas funções.

– Parece que não. Esperava que acompanhasse minha prima hoje.

– Como ela estaria acompanhada do senhor e da mãe, não havia necessidade que eu fosse. Sua tia concordou.

– Nós dois sabemos por que minha tia não quis que a senhorita fosse conosco. Assim ela poderia empurrar a menina mais facilmente para cima de mim.

– As intenções de sua tia em relação ao senhor não me dizem respeito. Escolhi este dia de folga com cuidado, de forma a não interferir nas aulas de Caroline.

– Acho que escolheu este dia para me evitar.

Mais uma vez, suas palavras ressoaram dentro dela.

– Talvez sim. O senhor tem sido uma presença mais constante nesta casa do que eu esperava. Para mim é muito árduo reunir as forças necessárias para manter a elegância.

A expressão dele se fechou de uma forma que ela conhecia bem. Ela estava sendo novamente ousada demais. Mas não se incomodava. Era seu dia de folga e isso significava, antes de qualquer coisa, que poderia ficar livre dele.

– De agora em diante, quando eu acompanhar minha prima e minha tia, a senhorita irá conosco.

– Não recebo ordens suas sobre minhas obrigações. Cabe à sua tia decidir, não ao senhor.

– A senhorita estará lá – disse ele com firmeza.

Ela cerrou os dentes e olhou para o fogo, ignorando Hayden o máximo possível. Mas ele já devia estar de partida. Depois de ter decretado a nova lei, não havia motivo para permanecer ali.

Ele não foi embora, mas, pelo menos, se afastou. Infelizmente, ficou mais perto da lareira, assumindo uma posição que exigia que ela olhasse para ele. Alto, forte e moreno, ele penetrava seu campo de visão e sua mente.

– A senhorita estava sorrindo enquanto dormia – disse ele. – Estava sonhando com ele, Ben?

– Não sei.

Um par de olhos a encarou das profundezas de sua memória.

– Acho que não, mas talvez sim – concluiu ela.

– Ele era meu amigo e tenho uma dívida com ele, mas...

– Espero que nunca tenha uma dívida comigo, pois sei muito bem como faz o ressarcimento.

Ela alcançou seu intento com essa frase. A reação dele fez sua nuca formigar. No entanto, junto com a precaução vinha uma enxurrada das outras sensações que aquele homem sempre lhe provocava.

– Ele morreu há três anos – disse Hayden. – Talvez devesse esquecer essa fixação.

A raiva lhe subiu à cabeça, fazendo-a deixar a prudência de lado. Levantou-se.

– Minhas lembranças são muito caras para mim, mas não são uma fixação.

– Na noite em que Caroline fez a apresentação da Ilíada, a senhorita falou do seu amor no presente do indicativo.

– Tenho certeza de que não fiz isso.

– Fez, sim, e está perdendo seu tempo.

– O senhor está sendo impertinente. Esta conversa seria despropositada mesmo que fosse um amigo íntimo, o que certamente não é. Não toleraria essas especulações intrometidas de um parente, imagine do senhor.

Ele se aproximou dela. Ela quase deu um passo para trás, mas sua raiva ignorava a prudência.

– A senhorita não terá um futuro, a menos que o deixe ir embora.

Alexia teve que vergar o pescoço para olhar para Hayden. Ele mais uma vez tentava impor sua presença e sua vontade. Gostava de fazer isso. Alexia queria poder bater nele pelo que lhe causara. Sua pulsação se acelerou e suas têmporas pareciam explodir.

– Como ousa falar do meu futuro? O senhor, entre todos os homens? Ele já era pouco promissor o bastante há um mês. Eu não tinha fortuna nem beleza, mas, pelo menos, tinha uma casa e uma família. É ultrajante de sua parte tocar neste assunto comigo.

Ele aceitou suas acusações sem comentários. Alexia percebeu a raiva em seus olhos, que se equiparava à sua própria. Mais do que nunca era necessário ter cautela, no entanto, Alexia a jogou pelos ares.

– Existem homens que veem além da fortuna. E sua beleza é suficiente.

Considerando sua expressão intensa e séria, a voz dele soou muito calma.

– Agora o senhor está sendo cruel.

– Seus olhos são magníficos. Hipnotizantes. E refletem seu espírito indomável.

O elogio a deixou sem palavras. A raiva enfraqueceu. Em um esforço de reunir os pensamentos espalhados com o choque, ela ficou tentando desesperadamente se recompor.

Hayden deu mais um passo em direção a ela. Alexia não percebera sua aproximação antes, mas ele estava muito perto. Perto demais. Olhou dentro dos olhos dele. Era ela a hipnotizada agora.

Um toque aveludado em seu queixo. Ele a estava tocando. Um tremor pulsou sob os dedos dele e se espalhou para o colo de Alexia. Ela deveria...

– Sua pele é maravilhosa – disse ele, afagando-a de leve.

O toque suave, tão surpreendente e íntimo, deixou-a sem fôlego. O olhar dele baixou.

– E sua boca, Srta. Welbourne, sua boca é tão linda que duvido que um dia a senhorita possa entender quanto.

Ele olhou nos olhos dela outra vez e de novo a surpreendeu. Seu olhar queimava, cheio do perigo que percebera desde a primeira vez que o vira.

Com os olhos arregalados de espanto, ela notou a decisão repentina de Hayden. Foi tão absurdo que ela não acreditou em seus instintos.

A boca de lorde Hayden encontrou a de Alexia. Quente, firme, autoritário, o beijo levou a uma sequência de susto e maravilhamento. Sua cabeça era uma confusão só. Em algum lugar no meio de suas reações caóticas, a Alexia prática dava ordens sensatas sobre o que fazer, mas ela estava deslumbrada demais para obedecer.

Ela reagiu sem acanhamento. Sentindo que um calor premente percorria seu corpo todo, pulsando e fervilhando em seus seios, seu ventre e mais abaixo. A excitação se tornou física, ameaçando tomá-la por completo. Correntes de prazer a seduziam a ponto de abandonar-se.

As sensações a encantaram. Ele a abraçou e ela se rendeu. Era uma intimidade tão deliciosa que Alexia gemeu silenciosamente em agradecimento. A força que a segurava, o corpo firme pressionando o seu, o calor intenso da boca beijando seus lábios, seu pescoço, seu peito... Uma Alexia nem um pouco sensata se revelou no estímulo sensual e acolheu a torrente de paixão.

Os beijos pararam. Dedos firmes e viris seguravam seu rosto. Ela abriu os olhos e encontrou lorde Hayden observando-a. O desejo transformava a severidade dele. Mesmo sua rigidez ficava sedutora.

Ele a beijou de novo e uma batalha começou a ser travada dentro de Alexia. Ela vira muitas coisas em seus olhos. Os pensamentos que fervilhavam na mente dele. Também percebeu a impressão que dava naquele momento: era uma mulher se submetendo a um homem de quem não gostava e em quem não confiava. Uma solteirona solitária aceitando as atenções de um qualquer.

Alexia recobrou um pouco do equilíbrio perdido, mas não queria abrir mão de se sentir tão viva. Não queria perder aquele contato físico. Mesmo quando suas mãos empurraram o peito dele, tentando se soltar, grande parte dela queria se fundir nele, não importando quem ele era, nem a vergonha que adviria.

Ela viu e sentiu cada instante a seguir – o relaxamento da pegada dele, o lento desmanchar de seu abraço, o afastamento de seu toque – e seu corpo reagiu a cada perda.

Alexia se afastou rapidamente rumo à janela. Incapaz de encará-lo, olhou para fora. Tentou se aprumar para parecer normal quando saísse da biblioteca. Assim que seu bom senso retornou, uma forte sensação de humilhação a invadiu.

Esperava que lorde Hayden tivesse a bondade de sair. Ele não teve. Ela pensou que ele pelo menos iria se desculpar. Ele nada disse. Sentiu que ele a olhava. Isso só piorou as coisas. Se ele fosse embora, ela poderia maldizer sua própria fraqueza e a crueldade dele. Enquanto ficasse, ela continuaria trêmula e envergonhada, perturbada demais para se recompor.

– Isso não foi muito honroso de sua parte, lorde Hayden.

– Não.

Ele não parecia arrependido. Seu tom parecia dizer: Talvez não, mas eu faço o que quero.

– Sei por que fez isso – disse ela. – Sei o que deve estar pensando a meu respeito.

– Então a senhorita sabe muita coisa.

A voz de lorde Hayden Rothwell soou mais próxima. Alexia percebeu que ele tinha vindo em sua direção. Parara a menos de um metro dela. Para seu espanto, a excitação e o perigo começaram a enfeitiçá-la de novo. Seu coração começou a bater mais pesado e mais lento.

– O que penso da senhorita? Como não tenho certeza, uma explicação sua seria muito útil.

Um homem decente teria se desculpado e ido embora.

– Ben e eu não éramos tão íntimos. O senhor interpretou mal.

– Não estava pensando nisso, de forma alguma. Meu único pensamento foi que a senhorita precisava ser beijada.

Ela se virou determinada a colocar um fim na maneira como brincava com ela. Seu coração falhou ao vê-lo, mas ela conseguiu pôr aquela excitação de adolescente em seu devido lugar.

– Não pelo senhor. Não sou a criada de quem o lorde pode se aproveitar. Peço-lhe que se lembre disso no futuro.

Ele a olhou direto nos olhos, como sempre, só que agora seu olhar refletia aqueles beijos. Agora seria sempre assim. Dar liberdades a um homem criava uma familiaridade que minava de uma vez por todas qualquer formalidade.

– Não tentei agarrá-la, só a beijei. E não foi de forma tão ousada quanto a senhorita teria permitido.

O rosto dela estava fervendo.

– Agora o senhor está me insultando.

– Não, estou sendo honesto. Mas vou deixá-la a sós, para que finja o contrário.

Com um leve cumprimento, Hayden se dirigiu para a porta.

– Lorde Rothwell, espero que no futuro demonstre o respeito que meu emprego junto a sua prima exige.

Ele parou à porta e virou-se.

– Ainda não me decidi.

– Então permita-me ajudá-lo a se decidir. Não gostei de seu beijo e não deve fazer isso de novo.

Ele abriu a porta.

– Gostou, sim. Acha que um homem não consegue perceber a verdade?


CONTINUA

Uma sombra penetrou cedo na casa junto com o visitante inesperado. Alexia se sentiu perturbada mesmo antes de ver quem era.
Ela descia a escada carregando sua cesta de costura e parou nos degraus ao notar as vozes que conversavam baixo no hall. Mesmo sem entender direito as palavras, compreendeu o tom firme de quem faz exigências. Percebeu que a forma respeitosa como o empregado se opunha de nada servia. Falkner, o mordomo, foi chamado. Diante de um poder silencioso e determinado, as barreiras da casa cediam.
Um mau pressentimento tomou conta de Alexia, como no dia em que aquele homem havia chegado para contar à família sobre Benjamin. Já tivera essa sensação vezes suficientes para saber que não deveria ignorá-la. Más notícias mudam o mundo em um segundo. Mudam o ar. O coração humano pressente que o sofrimento está chegando com tanta certeza quanto um cavalo percebe uma tempestade que se aproxima.
Não conseguiu se mover. Ia se juntar às primas no jardim, para aproveitar o sol da tarde com sua cesta de costura, mas a ideia lhe fugiu da mente.
Um par de pernas surgiu andando na sua direção. Pernas compridas, calça preta e botas elegantes. Elas seguiram o mordomo rumo à escada. Falkner tinha no rosto a expressão de um serviçal que houvesse recebido ordens de um rei.
O tronco do visitante começou a entrar em seu campo de visão, logo seguido dos ombros e da cabeça. Como se sentisse que alguém o observava, ele olhou para cima, para o patamar onde ela se encontrava.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/AS_REGRAS_DA_SEDU_O.jpg

 

Imediatamente Alexia entendeu a submissão de Falkner. A atitude, o rosto e o porte do visitante intimidariam até quem não conhecesse sua posição social. O cabelo escuro, desarrumado de um jeito que parecia não ter sido penteado naquela manhã, emoldurava o belo rosto de traços angulares e fortes, como se fossem entalhados. Sinais de cansaço obscureciam o azul profundo de seus olhos. Um autocontrole forçado retesava seu maxilar quadrado e sua boca bem desenhada. Lorde Hayden Rothwell, irmão do quarto marquês de Easterbrook, era a imagem do homem exausto mas determinado a cumprir sua dura tarefa. Certamente não viera em resposta aos muitos convites que Timothy havia deixado para Easterbrook em sua residência ao longo do último ano.

Ao se aproximarem, Falkner cruzou os olhos com os dela, expressando seu desânimo. O mordomo também pressentia a tempestade.

Lorde Hayden parou no mesmo patamar da escada em que ela se encontrava e fez um gesto quase imperceptível, cumprimentando-a. Já haviam sido apresentados, mas ele não lhe dirigiu a palavra. Em vez disso, ao levantar o rosto, mediu-a dos pés à cabeça. A avaliação foi tão completa, tão estranhamente interessada, que ela sentiu que corava.

A expressão daquele rosto anguloso se alterou levemente. Como se uma estátua tivesse ganhado vida, os olhos do homem se suavizaram e sua boca relaxou. De súbito, a compaixão o serenava.

Mas, em um piscar de olhos, seu porte severo voltou, expulsando a candura. Alexia, no entanto, vira o bastante para sentir o coração pesar. Reconheceu pena no olhar que ele lhe dirigira. A chegada desse homem não anunciava nada de bom.

– Está levando lorde Hayden para a sala de visitas ou para a biblioteca, Falkner?

Ela estava sendo indelicada, mas não se importava. Com o passar dos anos, aprendera que imaginar más notícias era pior do que efetivamente ouvi-las. Não tinha a menor intenção de ficar esperando, submissa e preocupada.

– Para a sala de visitas, Srta. Welbourne.

Lorde Hayden percebeu suas intenções.

– Por favor, não perturbe a Srta. Longworth com minha presença. Não se trata de uma visita social.

– Não a incomodaremos se não for seu desejo. Contudo, é possível que demore algum tempo até que o Sr. Longworth possa recebê-lo. Podemos ao menos nos encarregar de que o senhor fique à vontade.

Não esperou por aprovação. Deu meia-volta e foi subindo a escada, indicando o caminho para o segundo andar.

Ao chegar à sala de visitas, deixou a cesta de costura de lado e cuidou para que ele ficasse confortável, conforme prometera. Ainda que ele não quisesse, ela se portaria educadamente, como uma anfitriã.

– O tempo está bastante agradável para janeiro, não acha? – perguntou ela após ele ter concordado em se sentar no sofá novo, de um tecido estampado em tons azuis. – O dia até agora está maravilhoso.

As sobrancelhas dele se arquearam um pouco diante da infeliz ênfase no “até agora”.

– Sim, tem feito um calor atípico nos últimos dias – disse ele.

– Acho dias assim cruéis, por mais que os aprecie.

– Cruéis?

– Eles me fazem acreditar que a primavera está se aproximando, quando ainda teremos alguns meses de frio e umidade pela frente.

Por um segundo, uma luz travessa brilhou nos olhos dele.

– Pode não passar de uma ilusão – falou o homem –, mas prefiro me deleitar nessa calidez e me preocupar com o frio apenas quando ele chegar.

A frase pareceu quase imprópria. Ela mudou de assunto fazendo uma observação sobre os feriados recentes. Ele concordava com tudo o que ela dizia. Com muita dificuldade, ela ia levando adiante a desajeitada conversa.

A mente dele não estava ali, mas na reunião com Timothy. O ar na sala de visitas foi ficando pesado. A presença daquele homem fazia pensar que o juízo final estava próximo.

Ela não aguentava mais.

– Meu primo está doente, lorde Hayden. Talvez não consiga se recompor o bastante para recebê-lo. A conversa não pode esperar mais um dia?

– Não.

Foi tudo o que obteve dele. Essa única palavra, dita de modo simples, direto e firme.

Ele voltou sua atenção para longe da conversa, para o nada. E continuou assim, como antes, na escada. Ela se perguntou se ele a consideraria presunçosa por recebê-lo. Não era a dona da casa, apenas uma mera prima. Mas a culpa não era dela se ele estava confinado ali com uma substituta. Fora ele quem não permitira que Roselyn fosse informada de sua presença.

– Talvez, senhor, se eu levasse uma mensagem para meu primo a respeito de sua visita, ele pudesse...

A voz dela foi se dissipando quando ele a encarou como um vigário faz para silenciar uma criança tagarela na igreja.

Ela não se importou com a expressão em seus olhos, que deixava claro que ele percebera o que ela estava fazendo. Hayden Rothwell tinha a reputação de ser inteligente, ríspido e arrogante. Até o momento, ela não poderia discordar dessa avaliação.

Mas também ela não tivera muito tato ao tocar no assunto. Então tentou uma nova abordagem. Como ele era conhecido por sua sagacidade nos negócios, mudou o rumo da conversa para esse tema, tentando deixá-lo mais receptivo a outras perguntas.

– Teve alguma notícia do centro financeiro hoje, lorde Hayden? A crise nos bancos continua?

– Temo que permanecerá por algum tempo, Srta. Welbourne. É de se esperar quando as pessoas têm medo.

– O senhor tem negócios com o banco do meu primo, não é verdade? Está tudo bem por lá, espero.

– Há uma hora, quando saí do centro financeiro da cidade, o Darfield e Longworth permanecia sólido.

– Graças a Deus. Não houve uma corrida ao banco, então. Com tantas outras instituições passando por problemas, fiquei preocupada.

Uma sombra perceptível em seu olhar demonstrava que ele parecia se divertir.

– Não, não houve corrida ao banco.

Isso a aliviou. Várias das grandes instituições financeiras londrinas tinham enfrentado dificuldades no mês anterior. Os jornais estavam cheios de boatos sobre a quebra de pequenos bancos. Aonde quer que se fosse, só se falava em fracasso, ruína e falência. Ela suspeitava de que a atual doença de Timothy se devesse à preocupação com o futuro de seu banco.

– A senhorita tem dinheiro lá? – questionou, parecendo realmente interessado.

– Uma ninharia. Minha preocupação é com meus primos.

Ela conseguira atrair sua atenção com as perguntas sobre a situação financeira do banco. Até bem demais. Ele a olhou de novo, mais demoradamente dessa vez, com uma arrogância casual que demonstrava que ele se sentia nesse direito, algo que homens em posição inferior não ousariam. Aquela avaliação só seria feita por um homem que tivesse plena consciência de seu valor e que, por isso, dispensava algumas regras de etiqueta.

A atenção dele se concentrou intensamente nos olhos dela, observando-a de forma tão perspicaz que ela precisou piscar para se recompor. Lenta e deliberadamente, ele analisou o restante do corpo de Alexia. Ela enrubesceu e uma comichão desconfortável percorreu toda a sua pele. Ele a perturbou de tal maneira que lhe fez lembrar a sensação causada anos atrás pelo olhar de outro homem.

Ficou embaraçada diante da própria reação. Não se julgava alguém que se deixasse abalar por um homem bonito. Não era tola como a jovem Irene. Em silêncio, se censurou por agir como uma solteirona ávida pela atenção de um homem.

Nada na expressão dele indicava que houvesse notado o desconforto dela. Nem ela teve qualquer ilusão de que o interesse do homem fosse desse tipo. Ela sabia o que ele estava pensando. Com seu cabelo castanho e o rosto comum, ela não causava grande impressão. Sem dúvida ele também percebera como os módicos recursos financeiros afetavam sua aparência. Seu vestido não só estava fora de moda como também tinha discretos remendos. O lorde provavelmente estaria vendo cada ponto deles.

– Srta. Welbourne, creio que fomos apresentados no culto a Benjamin – disse ele. – A senhorita é a prima que veio de Yorkshire, não?

Seu orgulho foi atingido por um doloroso golpe. Ele não sabia quem ela era ao entrar naquela sala de visitas. Se não lembrava que já haviam sido apresentados, ele deveria achar incomum o fato de tê-lo recebido, assim como certamente a considerara bastante ousada em sua conversa.

O choque foi seguido pela irritação. A raiva que sentia não era dele, apesar de abrangê-lo mesmo assim, mas tinha origem na situação que a tinha tornado tão esquecível.

– Sim, nos conhecemos no culto em homenagem a Benjamin.

O nome e a lembrança fizeram ecoar uma antiga dor. Tinha sido um culto, não um funeral. O corpo de Benjamin não estava presente, mas perdido no mar. Fazia quatro anos que ele partira da Inglaterra e ela ainda sentia sua falta.

De repente, lorde Hayden não pareceu tão rígido. Uma expressão mais sociável suavizou suas feições belamente esculpidas.

– Eu o tinha como um amigo – disse ele. – Nós nos conhecemos na infância. Sua casa não fica longe das terras de Easterbrook em Oxfordshire.

Timothy sempre mencionava os laços entre Easterbrook e sua família, devidos ao fato de serem vizinhos. Não era uma ligação tão próxima a ponto de que respondessem aos convites de Timothy, é claro. No entanto, se a amizade tinha sido entre Benjamin e Hayden Rothwell, isso explicava algumas coisas, como o motivo da presença de lorde Hayden no culto.

– O senhor também lutou na Grécia, não? – perguntou ela, feliz por tocar em um assunto que o deixava menos severo e que mencionava o querido Benjamin.

– Sim, fui um dos admiradores da Grécia que aderiu à causa deles contra a Turquia. Participei da guerra no início, na mesma época que seu primo. Mas, ao contrário dele e de Byron, tive a sorte de sair vivo dessa aventura.

Ela imaginou Benjamin, sempre otimista, um homem tão cheio de vida e alegria que isso o tornava imprudente. Viu-o lutando como um herói pela liberdade do povo, tendo atrás de si a paisagem de um antigo templo nas montanhas. Ela cultivava essa imagem dele. Como lorde Hayden tinha estado lá com Benjamin, ela já não se importava tanto que ele a tivesse olhado dos pés à cabeça.

Ele estava fazendo de novo, só que agora não era seu vestido que analisava. Era seu rosto e... ela.

– Perdoe-me, Srta. Welbourne. Não quero parecer inconveniente, mas seus olhos têm uma cor incomum. Parecem violeta. É a luz aqui ou já lhe disseram isso antes?

– Não é a luz. A cor dos meus olhos é a única característica marcante que possuo.

Ele não discordou, o que ela considerou deselegante. Ele refletiu sobre a resposta dela e sobre a sua própria.

– Ele falou da senhorita com respeito e afeição. Benjamin, na Grécia. Não disse seu nome. Olhos violeta, no entanto... lembro-me dessa referência. Não percebi no culto que seus olhos tinham essa cor ou teria lhe dito, o que poderia ter-lhe trazido algum consolo naquele momento.

O coração dela se inundou com uma emoção suave e perfeita, apesar da dolorosa saudade que a provocara. Mal pôde se conter e seus olhos se umedeceram. Benjamin falara dela nos dias antes de sua morte. Fizera confidências a esse homem sentado com ela na sala de visitas. Lorde Hayden sabia de seu amor e de seus planos. Alexia tinha certeza disso.

Não ligava mais para o motivo que o trouxera ali. Sua gratidão pela pequena indicação de que Benjamin realmente gostava dela, de que pretendia se casar com ela, foi tão intensa que Alexia seria capaz de perdoá-lo por qualquer coisa naquele instante.

Passou a encará-lo de forma mais amigável. Tratava-se de um belo homem, agora que se permitia reparar. Não era totalmente rígido também. A dureza em volta da boca era culpa das características de sua família. Não se podia culpá-lo se seus ossos lhe davam uma aparência severa em vez de alegre.

– Obrigada por me contar isso. Ainda sinto muitas saudades de meu primo. Emociona-me saber que ele pensava em mim quando estava distante.

Desejou que ele repetisse as palavras exatas que Ben tinha dito. Mas, se ele pretendera fazê-lo, suas intenções foram frustradas. Timothy escolheu aquele exato momento para surgir na sala de visitas.

Timothy parecia bastante adoentado, com o rosto vermelho e os olhos apáticos. Alexia se perguntou se ele não estaria febril. Contudo, seu criado o deixara apresentável, com seu cabelo cor de areia e rosto ansioso despontando sobre casacos e colarinho que demostravam sua tendência a certa extravagância no vestir.

– Rothwell.

– Obrigado por me receber, Longworth.

Alexia se levantou de imediato, despedindo-se. Seu coração ainda estava repleto de felicidade por saber que Benjamin mencionara seus olhos aos seus amigos solteiros na Grécia. Todavia, não conseguia ignorar que um clima de más notícias iminentes impregnara a atmosfera da casa.


Segurando sua cesta, Alexia adentrou o jardim para se juntar às primas. A beleza da hera e do buxo não chegava aos pés de sua exuberância nos dias gloriosos de verão, mas o sol espantava o pior do frio e a falta de vento tornava o jardim um local hospitaleiro.

Roselyn e Irene aguardavam à mesa de ferro, com dois chapéus e sacolas com fitas e aviamentos. Alexia decidiu não mencionar o visitante. Talvez o mau pressentimento que ainda pairava em sua alegria recente fosse apenas uma impressão passageira.

– Você demorou – reclamou Irene, segurando um dos chapéus. – Ainda acho que este aqui não tem salvação e que deveria comprar um novo. Timothy disse que eu poderia.

– Nosso irmão é gastador demais – disse Roselyn. – Se não quisermos que sua apresentação à sociedade nos leve à falência, teremos que ser mais controladas.

– Não é Timothy quem fala em controlar o dinheiro, só você. Nem terei uma grande apresentação, não importa quantos chapéus eu compre – falou e um tom petulante surgiu em sua voz: – Não serei convidada para os melhores bailes. Todos os meus amigos já disseram isso.

– Pelo menos você terá uma apresentação – disse Roselyn. – Certamente é melhor ser irmã de um banqueiro importante do que de um proprietário rural empobrecido. Deveria agradecer a Deus por nossos irmãos terem investido nesse negócio. Se voltássemos para Oxfordshire, você se contentaria com um chapéu novo por ano e o escolheria com mais zelo, em vez de comprar três que não combinassem com você.

Alexia se sentou entre elas, tentando encerrar a discussão. Sendo a mais nova das irmãs Longworths, Irene não entendia a boa sorte que lhes coubera quando, oito anos antes, seu irmão Benjamin decidira investir no banco. A garota só via o que tinha perdido em termos de status, o que não contrabalançava com o luxo que ganhara.

Roselyn, agora com 25 anos, se lembrava muito bem do tempo em que haviam sido obrigados a vender as terras da família em Oxfordshire por causa de dívidas. Em função disso, ela não tivera uma apresentação formal aos homens solteiros na juventude e agora suas chances de se casar eram mínimas. Quando o recente sucesso do banco produziu uma longa fila de pretendentes, ela se mostrou descrente e exigente demais. Alexia suspeitava de que Roselyn se ressentia de que o interesse por ela só surgira após o enriquecimento da família.

– Podemos trocar a fita de cetim rosa por essa amarela – disse Alexia. – E olhe aqui, posso aparar as bordas, para deixar o arco mais perto do seu rosto.

– Vou odiar. Não gosto de chapéus reformados, mesmo que a reforma seja feita por alguém tão habilidoso como você. Fique com ele, se quiser. Pode ficar com o vestido que faz conjunto com ele também, então não terá mais que usar este de cintura alta. Vou avisar à minha criada que ele vai ficar para você, assim ela não o pedirá.

Alexia olhou fixamente para o conjunto de fitas brilhantes e coloridas que cintilava à luz do sol. Irene não era cruel por natureza, apenas jovem e, devido à mão aberta de seu irmão, mimada.

Um silêncio pesado pairou no ar. Irene pegou o chapéu, o avaliou com atenção e o jogou no chão.

– Peça desculpas – ordenou Roselyn em tom ameaçador. – Não vou pensar duas vezes antes de mandá-la morar no interior. Londres está virando sua cabeça e isso não é nada admirável. Está se esquecendo de quem é.

– Ela não está se esquecendo de nada – disse Alexia em um rompante.

Logo em seguida desejou não ter dito aquilo, mas não conseguira conter sua mágoa e seu ressentimento. Respirou fundo, com calma.

– Eu também não me esqueço de quem sou. Só você, por ser tão boa. Todos sabem que dependo desta família, que sou uma parenta pobre que deveria ficar grata por receber aquilo que minhas jovens primas jogam fora. Cada garfada que como é fruto da caridade de seu irmão.

– Oh, Alexia, eu não quis dizer isso... – falou Irene com o rosto contorcido de arrependimento.

– Não é verdade – replicou Roselyn para Alexia. – Você é uma de nós.

– É verdade. Concordei com esta situação anos atrás. Não me importo.

O fato era que se importava. Tentava ignorar, mas isso a desgastava. A humildade e a gratidão que sua situação exigia às vezes lhe escapavam, principalmente porque de início não se sentira obrigada a tê-las.

Sua mudança fora inevitável quando a propriedade da família passou para um primo de segundo grau. Não houve convite para viverem com esse herdeiro, como seu pai supusera. Assim, com 18 anos recém-completados, Alexia fora forçada a escrever para os Longworths, primos pelo lado de sua mãe, pedindo que a deixassem morar com eles. Não levara nada consigo além de vinte libras por ano e seu talento para reformar chapéus.

Benjamin, o primo mais velho, nunca permitira que ela se sentisse um problema para a família, apesar de sua chegada haver coincidido com o início de um novo empreendimento dele, que lhe deixara pouca folga nas despesas daquele primeiro ano. Com o sorriso largo e o bom humor de Benjamin, ela jamais sentia que devesse se mostrar apenas discreta e obediente. Mas depois da morte dele, a realidade de sua dependência ficara clara. Ben dava a ela os mesmos cuidados que oferecia a suas irmãs, ao passo que Timothy a enxergava com outros olhos. Agora ela não passava de conselheira nas visitas às modistas de Londres. Timothy a via como o fardo que ela era, enquanto Benjamin a vira como...

Uma memória de amor cuidadosamente preservada, um eco de emoção profunda e pungente, fez seu coração doer. Ele a vira como uma prima querida e uma cara amiga, o que no último ano tinha evoluído para algo mais. Se o que lorde Hayden dissera era verdade, então ela não se enganara. Se Ben tivesse voltado da Grécia, teria se casado com ela.

Pegou o chapéu.

– Obrigada, Irene. Vou ficar feliz em usá-lo. Pensando melhor: fita azul. Nem rosa nem amarelo vão tão bem com minha cor de cabelo e o tom de minha pele.

Roselyn cruzou os olhos com os de Alexia como que se desculpando. Alexia respondeu também com o olhar: Nasci filha de um cavalheiro, mas aqui estou, com quase 26 anos, sem dinheiro nem futuro. É assim que o mundo funciona. Não tenha pena de mim, eu lhe imploro.

– Quem está lá? – perguntou Irene, interrompendo a conversa silenciosa. – Lá em cima, na janela da sala de visitas.

Roselyn se virou a tempo de ver o cabelo escuro e os ombros largos antes que o homem se afastasse do vidro.

– Temos visita? Falkner deveria ter me chamado.

Alexia começou a retirar a fita rosa.

– Ele pediu para se encontrar com Timothy e não quis que você fosse incomodada.

– Mas Timothy está doente.

– Ele se levantou da cama mesmo assim.

Alexia sentiu a atenção de Roselyn sobre ela enquanto se ocupava do chapéu.

– Quem é? – perguntou Roselyn.

– Rothwell.

– Lorde Elliot Rothwell, o historiador? O que é que ele...

– O irmão dele, lorde Hayden Rothwell.

Os olhos de Irene se arregalaram. Ela deu um pulo e bateu palmas.

– Ele está aqui? Acho que vou desmaiar. Ele é tããão atraente.

Roselyn franziu a testa e olhou para a janela.

– Ai, meu Deus!


– Você andou bebendo, Longworth – disse Hayden. – Está sóbrio o suficiente para ouvir e se lembrar do que vou dizer?

Longworth se espalhou confortavelmente no sofá azul.

– Sóbrio até demais.

Hayden examinou Timothy Longworth. Sim, estava sóbrio o bastante, o que era bom, já que o que tinha para lhe dizer não poderia esperar. A chance de sucesso do plano diminuía a cada hora que passava.

– Passei os últimos dois dias com Darfield, enquanto você se escondia em sua cama, bebendo – disse ele. – O banco pode sobreviver à crise atual, se você seguir minhas instruções.

– Eu disse a Darfield que sobreviveria. Ele é covarde como uma velhota e teme que as reservas estejam muito baixas, mas eu lhe garanti nossa solidez.

– Só sobreviverá porque tomei ontem a decisão de manter os depósitos da família com você. Isso bastou para deter uma corrida ao banco que começou esta manhã.

– Houve uma corrida? – perguntou Longworth, tendo a decência de parecer preocupado. – Eu deveria ter estado lá, sei disso.

– É lógico que deveria.

– Mas o pior já passou, não é verdade? O perigo foi evitado, como disse.

– Por pouco. Apesar de ter vencido as dificuldades hoje, o banco está em sério perigo. Além disso, estou reavaliando minha decisão. É uma escolha difícil, porque, se eu tirar o dinheiro da família, o banco vai à falência. Se isso acontecer, você vai para a forca.

Longworth ficou quieto, uma estátua feita de indiferença.

Hayden não gostava da ideia de estar metido com Timothy Longworth. Tinha sido para ajudar um bom amigo que ele havia assegurado o crescimento do banco com títulos e dinheiro da família. Não se sentia obrigado a salvar o pescoço do irmão mais novo dele.

Longworth abriu um sorriso largo. Isso o fez parecer mais com Benjamin, apesar de mais claro, um contraste com os olhos e o cabelo escuros de Ben. Era uma semelhança que Hayden preferia não perceber naquele momento.

– É claro que deve estar falando metaforicamente quando diz “forca”. Apesar de “arruinado” não ser muito melhor do que isso, não é a morte.

– Quando digo “forca”, é isso que quero dizer. Cadafalso. Nó corrediço. Morte.

– Bancos abrem falência o tempo todo. Cinco faliram nos últimos quinze dias só em Londres e dezenas no interior. Não é crime. É o que acontece nas crises financeiras.

– Não é a falência do banco que vai levá-lo à cadeia, mas o que a contabilidade revelará depois.

– Nada me compromete, posso garantir.

A paciência de Hayden se esgotou rápido. Tinha passado a noite em claro ao lado de Darfield, tentando pôr ordem na bagunça oculta da contabilidade do banco. A fúria que ele contivera a duras penas quando descobrira o pior agora ameaçava romper as frágeis paredes que a controlavam.

– Decidi deixar o dinheiro da família com você, Longworth, mas estou preocupado com minha tia e a filha dela. Os 3% delas é tudo o que têm e elas dependem desses rendimentos. Como seu administrador, não poderia pôr isso em risco. Então, essa parte, essa pequena parte, eu decidi sacar.

Longworth ergueu a cabeça como se essa introdução não lhe dissesse nada, mas o primeiro sinal de pânico faiscou em seus olhos.

– Imagine o meu choque quando vi que os títulos da dívida pública delas tinham sido vendidos e que minha assinatura, como administrador de minha tia, tinha sido falsificada para isso.

Gotas de suor surgiram na testa de Longworth.

– Espere um instante. Está insinuando que eu falsifiquei...

– Tenho provas de que você, por várias vezes, cometeu o crime de falsificação de documentos. Você forjou assinaturas para vender títulos também. Depois continuou a pagar os rendimentos, para que ninguém suspeitasse, mas roubou dezenas de milhares de libras.

– Roubei coisa nenhuma! Estou chocado e ofendido com essa notícia. Darfield é quem deve ter feito isso.

Hayden partiu para cima de Longworth e o agarrou pelo colarinho, suspendendo-o do sofá.

– Não ouse manchar a honra daquele bom homem. Juro que, se mentir para mim agora, vou lavar as mãos e deixá-lo ir para o buraco.

Longworth levantou os braços para cobrir o rosto, protegendo-se do golpe que previa. O medo dele ao mesmo tempo deteve Hayden e lhe causou repugnância. Jogou Longworth de volta no sofá.

Timothy se curvou com o rosto nas mãos. Um silêncio pesado perpassou a sala, carregado da raiva de Hayden e do desespero palpável de Longworth.

– Você contou a alguém?

A voz de Longworth falhou de emoção.

– Só Darfield sabe e ele teme o que isso possa causar aos outros bancos, levando em consideração o clima atual no centro financeiro de Londres.

Hayden havia imaginado esse horror muitas vezes nos últimos dois dias. Os títulos – sólidas apólices que eram a base do crédito e da geração de rendimentos de mulheres leigas e seus filhos – eram supostamente seguros. Os bancos somente os mantinham pelos clientes. Não se pressupunha jamais que o dinheiro ficasse vulnerável.

Timothy Longworth rompera uma confiança sagrada ao falsificar assinaturas e se apossar desse capital. Se isso viesse a público, o pânico atual seria multiplicado por dez.

– O que lhe passou pela cabeça, Longworth?

– Fiz isso pelo banco. Estávamos vulneráveis, com as reservas baixas demais. Fiz isso para proteger os depósitos...

– Mentira! – Hayden só percebeu que havia gritado porque Longworth se sobressaltou. – Você fez isso para comprar esta casa, este casaco e as carruagens que servem para você passear com sua amante cara.

Timothy começou a chorar. Envergonhado pelo outro, Hayden se virou e olhou pela janela.

No jardim, um par de olhos violeta se voltou na sua direção, depois retornou para as fitas e a palhinha. Olhos como violetas em sombra fresca e de formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Era assim que Benjamin descrevera a Srta. Welbourne, em uma noite de embriaguez na Grécia. O tom não fora totalmente respeitoso, mas havia afeição em sua voz, então Hayden não mentira para ela. Contudo, ao ver a reação da moça – os olhos rasos d’água e como seu rosto se suavizou de forma tão doce –, desejou não ter dito nem uma palavra.

Não era um rosto belo, mas os olhos tornavam isso irrelevante. Sua cor incomum cativava primeiro, depois se notava como eles refletiam uma alma intensa e uma mente inteligente. Mostravam também experiência, como se aquela mulher compreendesse bem demais as realidades da vida. Ao se sentar sob a contemplação implacável daqueles olhos, ele se esquecera por alguns minutos da horrível missão que o trouxera àquela casa.

Uma boca que parece uma rosa, com néctar tão doce. Aparentemente, Ben tinha tocado em mais do que o coração da Srta. Welbourne. Não era nem um pouco de surpreender. Um homem cheio de vida como Benjamin Longworth conseguia mexer com muitas mulheres.

Roselyn e Irene Longworth, irmãs de Benjamin, estavam sentadas ao sol com a Srta. Welbourne. A mais velha era uma bela mulher de pele clara, cabelo louro-escuro e rosto doce. Destacava-se por sua beleza, mas era muito orgulhosa. O cabelo da mais nova era longo e claro; o corpo, esguio e o jeito, ainda infantil.

Sentiu alguém de pé ao seu lado. Longworth havia se levantado do sofá. Também observava as três moças no jardim.

– Ai, meu Deus, quando elas ficarem sabendo...

– Juro que elas nunca saberão a verdade da minha boca. Se conseguirmos salvar seu pescoço, você poderá contar quantas mentiras quiser. Um falsificador e ladrão deve ser capaz de inventar umas boas.

– Salvar, me salvar? Mas há uma forma? Obrigado, de qualquer jeito... Como quer que seja...

Hayden esperou enquanto Longworth se recompunha.

– Quanto, Longworth?

Ele deu de ombros.

– Umas vinte mil libras, talvez. Não fiz de propósito. De verdade. Na primeira vez, deveria ter sido um empréstimo de pouco valor, para cobrir uma dívida inesperada...

– Não quero saber quanto você roubou, mas quanto tem.

– Quanto eu tenho?

– Sua única chance é cobrir tudo, cada centavo. Com o que tiver e com as notas promissórias que assinar.

– Isso significaria contar a todos!

– Se eles não sofrerem prejuízos...

– Bastaria um deles dar com a língua nos dentes para eu ir...

– Para a forca. Sim. Uma fraude já seria o bastante. Você terá de confiar que o reembolso os satisfará e que eles entendam que só mantendo-se em silêncio poderão reaver o dinheiro. Posso falar por você e isso talvez ajude.

– Pagar a todos? Vou ficar falido. Totalmente falido!

– Mas vai escapar vivo.

Longworth agarrou o peitoril da janela para controlar a tontura. Olhou para fora de novo e seus olhos se umedeceram.

– O que vou dizer a elas? E Alexia... Se ficarmos reduzidos à renda dos aluguéis rurais, se eu tiver que pagar as dívidas tirando recursos deles também, não poderei mais sustentá-la.

Diante de mais um pensamento terrível, seu rosto desabou. Hayden imaginou o motivo:

– Você roubou os míseros recursos dela também? Não verifiquei as contas menores.

Longworth enrubesceu.

– Você não passa de um canalha, Longworth. Ajoelhe-se e agradeça a Deus por eu ter uma dívida de gratidão e honra com seu irmão.

Timothy não estava mais ouvindo. Seus olhos se anuviaram ao pensar no futuro.

– Irene ia ser apresentada à sociedade e...

Hayden não deu ouvidos aos lamentos do outro. Imaginara uma forma de salvar a vida de Longworth e evitar revelações que deixariam o atual pânico fora de controle. Mas não poderia poupar Longworth da ruína que essa solução geraria.

Passara a noite em claro fazendo cálculos e pensando nas consequências morais do caso. De repente uma profunda exaustão tomou conta dele.

– Sente-se – ordenou ele ao dono da casa. – Vou lhe dizer a quantia necessária e definiremos como você irá devolvê-la.


CAPÍTULO 2

Falido.

A palavra pairou no ar. A sala ficou em silêncio.

O sangue de Alexia congelou nas veias. Tim parecia muito doente agora. Ele se recolhera a seu quarto após a saída de lorde Hayden, mas se levantara da cama novamente de noite. Mandara chamá-la e a suas irmãs na biblioteca e lhes informara do desastre.

– Mas como, Tim? – perguntou Roselyn. – Um homem não vai disto – ela fez um gesto mostrando a exuberância da casa ao redor – à pobreza em um dia.

Os olhos dele se estreitaram e a amargura endureceu sua voz.

– Isso acontece se lorde Hayden decidir que sim.

– Lorde Hayden? O que ele tem a ver com isso? – perguntou Alexia.

Timothy olhou fixo para o chão. Parecia sem forças.

– Ele retirou o dinheiro de sua família do banco. Nossas reservas não foram suficientes para compensar a retirada e tive que penhorar tudo o que tenho. Darfield também terá de fazer isso, mas ele possui mais dinheiro do que eu. Ele pagou parte das minhas obrigações e, em troca, ficou com a minha cota no banco. Ainda assim, não foi suficiente.

Alexia controlou a fúria que fervia dentro dela. Que diferença faria para Rothwell onde todo aquele dinheiro ficava? Ele tinha que ter percebido o que isso causaria a Timothy, a todos eles. Havia entrado naquela casa ciente de que destruiria o futuro dos Longworths.

– Vamos dar um jeito – disse Roselyn, com firmeza. – Sabemos como levar uma vida mais simples. Vamos dispensar alguns empregados e comeremos carne somente duas vezes por semana. Vamos...

– Você não ouviu? – rosnou Timothy. – Eu disse que estou falido. Não haverá empregados, nem carne alguma. Não tenho nada. Não temos nada.

Roselyn o encarou, boquiaberta. Irene, que ouvia com expressão confusa, teve um sobressalto como se alguém a tivesse esbofeteado.

– Isso quer dizer que não vou ser apresentada à sociedade?

Timothy deu uma risada cruel.

– Querida, você não pode ser apresentada à sociedade londrina se não estiver em Londres. O canalha está tomando esta casa. Ela pertence a Rothwell agora. Vamos voltar para o pouco que temos em Oxfordshire e morrer à mingua por lá.

Irene começou a chorar. Roselyn ficou muda com o impacto da notícia. A gargalhada de Timothy foi se transformando em algo entre um cacarejo e um choramingo.

Alexia sentiu o medo se apoderar dela. Timothy não olhara para ela uma vez sequer desde que entrara na sala. E evitava seu olhar agora. Um pânico silencioso tamborilava em seu peito, querendo se avolumar.

Roselyn recobrou a voz:

– Timothy, podemos viver no campo de novo. Ainda temos a casa e algumas terras. Não será ruim. Nunca passamos fome.

– Será pior do que antes, Rose. Terei dívidas a pagar. Boa parte dos aluguéis irá para isso.

O tamborilar acelerou, espalhando-se por suas veias. Sentia calor e frio alternadamente. O destino que temia desde a morte do pai finalmente a encontrara. Era com dificuldade que mantinha a compostura.

Ela não deixaria Timothy pronunciar sua sentença com todas as palavras. Seria injusto e uma péssima retribuição à família que lhe tinha dado um lar.

Levantou-se.

– Se sua situação vai mudar de forma drástica, não precisarão do fardo de ter mais uma boca para alimentar. Tenho algum dinheiro guardado que poderá me manter até encontrar um emprego. Vou me recolher ao meu quarto para permitir que conversem abertamente sobre seus planos.

Os olhos de Roselyn se umedeceram.

– Não seja boba, Alexia. Seu lugar é conosco.

– Não estou sendo boba, estou sendo prática. Não vou forçar Timothy a dizer que devo ir embora.

– Diga-lhe que não tem que ir, Tim. Ela é tão sensata que vai ser uma ajuda, não um fardo. Ele não quer que você nos deixe, Alexia.

Timothy não respondeu. Nem levantou os olhos.

– Timothy – chamou Roselyn, em tom de repreensão.

– Gastarei tudo o que tenho para manter vocês duas, Rose – disse ele, finalmente se voltando para Alexia. – Sinto muito.

Alexia forçou um sorriso trêmulo e saiu da biblioteca. Fechou a porta atrás de si, deixando Irene e Roselyn aos prantos e Timothy envergonhado. Subiu as escadas correndo e maldizendo, a cada degrau, o homem responsável por aquela tragédia.

Hayden Rothwell era um canalha. Um monstro. Era um daqueles homens que viviam no luxo e destruíam a vida dos outros em um piscar de olhos. Ele não precisava ter retirado todo o dinheiro de uma só vez. Era tão duro e frio como parecia. Não tinha compaixão: esmagaria pessoas sob as botas, se desejasse. Ela o odiava.

Jogou-se na cama e enterrou o rosto no travesseiro de penas, onde destilou todo o seu veneno em Rothwell enquanto chorava. Estava tomada pelo pânico.

Falida. Não podia crer que estava passando por isso de novo. Seu pai falira dois anos antes de morrer. Muito provavelmente tinha sido esta a razão pela qual não fora acolhida por seu herdeiro. O destino agora lhe pregava uma peça estúpida, fazendo-a reviver toda a preocupação e o medo de antes.

A duras penas, foi tentando novamente se centrar. Já havia se perguntado algumas vezes o que faria caso se encontrasse naquela situação. Sempre soubera que isso poderia acontecer. Desesperada, procurou se lembrar dos planos feitos naquelas noites terríveis quando, no escuro, a precariedade da situação em que vivia se avultava sobre ela.

Poderia virar preceptora, se conseguisse boas referências. Tinha linhagem e educação para isso, ainda que tal função oferecesse uma vida horrível.

Também poderia procurar trabalho em uma chapelaria. Tinha jeito para fazer chapéus e gostava dessa atividade. Só que trabalhar em uma loja desse tipo seria a pior das humilhações. Não nascera para essas coisas, mesmo que essa ideia tivesse mais apelo do que ficar presa dia e noite cuidando da filha de outra mulher.

Também poderia se casar, apesar de no momento não ter pretendentes. Ela nem sequer pensara nisso depois de Benjamin. Seu coração era dele e sempre seria. A menina escondida em sua alma encarava com pesar a ideia de casar-se em troca de segurança. Depois de ter conhecido um grande amor, um casamento assim seria horrível. Contudo, sem beleza nem fortuna para atrair um marido, aquele era um assunto com que muito provavelmente não teria de lidar.

Enumerar opções lhe deu um pouco de confiança, ainda que baseada em cenários que não a agradassem tanto. Contava com vinte libras por ano e não iria morrer de fome. Poderia construir seu futuro se deixasse de lado o orgulho. Na verdade, tinha bastante experiência nesse campo.

Olhou em volta do quarto, para os móveis, à luz difusa da lamparina. Não era um cômodo grande. Nem tinha os tecidos luxuosos dos quartos de Irene e Roselyn ou as cadeiras e camas novas que elas haviam comprado no ano anterior. Mas era o seu espaço e tinha sido seu lar desde que Tim se mudara com elas de Cheapside, logo depois de Ben zarpar para a Grécia, fazia quatro anos.

Fechou os olhos e se perguntou quanto tempo demoraria até que Hayden Rothwell a jogasse no olho da rua.


Três dias depois, Alexia estava sentada na sala de café da manhã, lendo os anúncios no Times. A casa reverberava de silêncio. Não que os empregados antes fizessem barulho, mas sua ausência era perceptível. Somente Falkner permanecia, enquanto procurava outro emprego apropriado. Ela podia ouvi-lo na sala de jantar, embalando as porcelanas que Timothy tinha vendido na véspera.

Muito pouco dos luxos adquiridos nos últimos anos voltariam para Oxford-shire com suas primas. Rothwell ficaria com os móveis. Tudo o mais seria vendido. Naquele exato momento, os homens estavam na cocheira negociando o preço das carruagens.

Roselyn entrou no cômodo e se sentou ao lado de Alexia, que serviu café para as duas.

– O que está lendo? – quis saber Roselyn.

– Quartos para alugar.

– Piccadilly não seria ruim, se não fosse tão longe.

– Acho que não terei como evitar ficar longe, Rose.

Rose tinha a aparência de uma mulher que havia chorado um mês sem parar. As olheiras e o vermelho dos olhos eram evidentes.

– Deveria ter me casado com um daqueles homens interessados no meu dinheiro. Teria sido bem feito para eles meu irmão ficar em tantas dificuldades a ponto de precisar vender as vasilhas de metal. Até as vasilhas, meu Deus!

Alexia não conteve uma risada. Roselyn riu também. As duas riram até lágrimas rolarem pelas faces.

– Oh, céus, como é bom rir – disse Rose, sem fôlego. – É tudo tão dramático que chega a ser ridículo. Fico esperando Tim vender minha camisola enquanto durmo.

– Espero que ele não esteja acompanhado por um oficial de justiça nesse dia. Daria ainda mais motivo de fofoca para toda a cidade.

Roselyn riu de novo, com ar triste.

– Vou sentir sua falta, Alexia. O que vai fazer?

– Pedi uma carta de referência à Sra. Harper, já que ela é, das suas amigas, a que me conhece melhor. Procurei uma agência de empregos e me candidatei a vagas de preceptora. Espero que seja aqui na cidade mesmo.

– Você tem que nos mandar notícias de onde estiver, sempre. E prometer que vai nos visitar.

– É claro.

Os olhos de Rose se encheram de lágrimas. Ela abraçou Alexia vigorosamente. Enquanto aproveitava o carinho que logo não mais teria, Alexia viu Falkner chegar à soleira da porta.

– O que foi? – perguntou.

Falkner olhou para ela com o mesmo olhar de três dias atrás. O olhar que dizia que uma tempestade se aproximava.

– Ele está aqui. Lorde Hayden Rothwell. Pediu para ver a casa.

Do jeito que Falkner torceu o nariz, Alexia suspeitou que Rothwell não tivesse “pedido” coisa alguma.

– Não o receberei – disse Rose. – Mande-o embora.

– Ele não perguntou pela senhorita, mas por seu irmão, que saiu. Então pediu que eu lhe mostrasse onde esperar.

– Diga-lhe que não. Eu o proíbo. Logo a casa será toda dele – gemeu Roselyn.

O prazo para entrega da casa não fora determinado, o que era motivo de preocupação para Alexia.

– Você não está sendo sensata, Rose. Não vale a pena enfurecer o homem neste momento. Nem é obrigação de Falkner nos servir. Vou atender o visitante para lhe poupar o trabalho.


Lorde Hayden esperava no hall, rodeado por paredes que já se encontravam despidas de quadros. Quando Alexia entrou, ele estava inclinado, examinando uma mesa de canto marchetada, sem dúvida calculando seu valor.

Ela não esperou por sua atenção nem por suas saudações.

– Senhor, meu primo Timothy não está na propriedade. Creio que esteja cuidando da venda dos cavalos. A Srta. Longworth está indisposta. Posso ajudar no assunto que o trouxe aqui?

Ele se aprumou e voltou seu olhar para ela. A contragosto, ela admitiu que ele estava maravilhoso naquele dia, vestido com roupas de montaria, um paletó azul e colete de seda estampado em tons de cinza. Seu porte, expressão e vestimenta anunciavam ao mundo que sabia que era bonito, inteligente e podre de rico. Era de muito mau gosto ir assim a uma casa que estava sendo destituída de seus bens e de sua dignidade.

– Esperava que um criado viesse...

– Não há mais criados. A família não pode mais mantê-los. Falkner vai ficar até conseguir outro emprego, mas não está mais trabalhando. Creio que o senhor não tem alternativa a não ser falar comigo.

Ouviu sua própria voz soar ríspida e pouco amigável. As pálpebras dele baixaram o bastante para indicar que percebia a falta de respeito.

– Acredito que não tenhamos mesmo alternativa, Srta. Welbourne. Meu objetivo ao vir sem ser convidado é muito simples. Tenho uma tia que está interessada nesta casa. Ela me pediu para verificar se seria apropriada para ela e sua filha nesta temporada.

– O senhor quer conhecer a casa para poder descrevê-la a prováveis moradores?

– Se a Srta. Longworth me fizer essa gentileza, sim.

– O coração dela é cheio de gentileza na maioria das vezes. Contudo, ela está ocupada demais para atender seu pedido. Ser levada à falência e ser destituída de seus bens é algo que deixa qualquer mulher sem tempo algum.

O queixo dele se retraiu o suficiente para dar-lhe uma pequena satisfação. A vitória foi breve. Ele pousou o chapéu na mesa de marchetaria.

– Então, terei que achar o caminho sozinho. Quando disse que minha tia estava interessada, não me referi a uma mera curiosidade, mas a um interesse patrimonial. Esta casa já pertence a minha tia, Srta. Welbourne. Timothy Longworth assinou os documentos ontem. Se fiz um pedido, foi apenas para ser cortês com a família dele.

A notícia a deixou estupefata. A casa já tinha sido vendida. Que rapidez! Começou a calcular o que isso significaria para os planos dela e para Roselyn e Irene.

– Peço desculpas, senhor. A venda da casa não havia sido comunicada nem à Srta. Longworth nem a mim. Vou lhe mostrar a casa, se estiver bem assim.

Ele assentiu e ela começou a árdua tarefa. Mostrou-lhe a sala de jantar, onde seus olhos de lince não perderam nenhum detalhe. Ela o notou medindo espaços mentalmente e o ouviu contando cadeiras.

O resto do primeiro andar foi rápido. Ele não abriu gavetas nem armários na despensa. Alexia imaginou que soubesse que já estava tudo vazio.

– A sala de café da manhã é logo atrás desta porta – disse ela, ao voltarem para o corredor. – Minha prima Roselyn está lá. Peço que aceite minha descrição em vez de ir conferir por si mesmo. Temo que ela fique muito aborrecida ao vê-lo.

– Por que ela ficaria aborrecida com a minha presença?

– Timothy nos contou tudo. Roselyn sabe que o senhor levou o banco à beira da falência e nos deixou nesta situação.

Um sorriso implacável lhe surgiu no canto da boca. A crueldade do homem era mesmo ímpar. Ele percebeu o olhar dela fitando-o. Não parecia constrangido por ela ter visto esse sorriso cínico.

– Srta. Welbourne, não preciso ver a sala de café da manhã. Sinto muito por sua prima, mas as questões de altas finanças estão em um plano diferente da vida cotidiana. As explicações de Timothy Longworth foram simplificadas, com certeza porque ele as estava dando a damas.

– Elas podem ter sido simples, mas foram claras, assim como suas consequências. Há uma semana, meus primos viviam no luxo em Londres e em breve viverão na pobreza no interior. Timothy está falido, teve de vender sua parte na sociedade do banco e, ainda assim, continuará arcando com dívidas. Algum desses fatos está incorreto, senhor?

– Não, estão todos corretos – respondeu ele, balançando a cabeça.

Ela não podia crer em sua indiferença. O homem poderia pelo menos parecer um pouco constrangido. Em vez disso, agia como se isso fosse normal.

– Podemos subir? – perguntou ele.

Ela mostrou o caminho para o andar de cima, entrando na biblioteca. Ele não se apressou ao passar os olhos pelos livros nas estantes, enquanto ela aguardava.

– A senhorita vai com eles para Oxfordshire? – perguntou ele.

– Não me permitiria ser um fardo para essa família agora.

A atenção dele permaneceu nos livros.

– O que vai fazer?

– Tenho tudo acertado para meu futuro. Fiz planos e listei minhas expectativas e oportunidades.

Ele recolocou um livro na estante e rapidamente passou os olhos pelo tapete, a escrivaninha e os sofás, andando na direção dela em seguida.

– Quais oportunidades está vislumbrando?

Ela o conduziu aos outros cômodos no andar.

– Minha primeira opção é ser preceptora na cidade. A segunda é ser preceptora em outro lugar.

– Muito sensato.

– A sensatez é algo bastante conveniente diante da ameaça da fome, concorda?

Os cômodos do terceiro andar não eram tão espaçosos quanto os de uso comum. O corredor mais estreito os aproximava. Ao mostrar-lhe os quartos, ela notava a presença forte e masculina ao seu lado. Parecia muito inadequado esse estranho estar lá.

– E se não achar emprego como preceptora?

A pergunta casual veio algum tempo após sua última troca de palavras.

– A outra opção é me tornar chapeleira.

– Uma fabricante de chapéus?

– Tenho muito talento nessa área. Daqui a alguns anos, se vir uma mulher pobre usando um belo chapéu habilmente fabricado apenas com uma cesta velha, penas de pardal e maçãs secas, esta serei eu.

A curiosidade dele fizera com que Alexia deixasse de esconder sua irritação. Parecia inverossímil que o homem que causara tanto sofrimento quisesse saber detalhes. Ela escancarou a porta do quarto de Irene.

– A quarta opção é me tornar cortesã. Há quem diga que uma mulher deveria preferir morrer de fome a isso, mas suspeito que essas pessoas não tenham de fato se visto diante dessa necessidade, como talvez aconteça comigo.

Esse comentário lhe valeu um olhar duro. Além do desconforto por ela estar ridicularizando o fato de ele não sentir qualquer culpa, Alexia também percebeu a ousadia de um olhar masculino que avaliava suas possibilidades na quarta opção da lista.

Alexia enrubesceu. O calor percorreu sua pele, avivando-a e a atingindo bem no íntimo, afetando-a de uma forma chocante. Teve uma incontrolável e traiçoeira consciência dos muitos recantos do próprio corpo. A sensação a estarreceu ao mesmo tempo que a estimulou deliciosamente.

Ela precisou dar um passo atrás, para fora do quarto e para longe das vistas dele, de modo a escapar do rápido aumento na pulsação que a proximidade de Hayden lhe causava. Nos poucos segundos antes de ele voltar para junto dela, Alexia fez um esforço para se lembrar da raiva, a fim de aplacar seu chocante arroubo de sensualidade.

Ela continuou a lhe dar alfinetadas, de forma que ele soubesse que ela não se importava com o que pensava. Queria que aquele homem percebesse o sofrimento que sua ambição tinha causado.

– Minha quinta opção é virar ladra. Refleti muito sobre o que deveria vir antes, a libertinagem ou o roubo. Decidi que, apesar de a primeira opção ser um trabalho mais árduo, é uma forma de comércio honesto, enquanto ser ladra é pura maldade. – Ela parou por um momento, mas não resistiu a acrescentar: – Não importa como seja feito ou se é considerado legal ou não.

Ele parou e invadiu seu caminho, forçando-a a se deter também.

– A senhorita fala de maneira muito franca.

A presença dele se impunha à sua frente no corredor estreito. O olhar demandou sua total atenção. Certo poder se fez sentir, um poder masculino, dominador e desafiador. A intuição dela dizia para se afastar. A excitação ronronava baixa e profundamente. Ela ignorou ambas as reações e se manteve firme.

– Foi o senhor que me perguntou sobre meu futuro, apesar de não lhe fazer a menor diferença o que acontecerá com qualquer um de nós.

Sua raiva vinha em um crescendo desde que tinham deixado o hall. O frio autocontrole daquele homem durante a volta pela casa só tinha posto mais lenha na fogueira.

Ela o olhou de frente.

– O senhor destruiu a vida de pessoas boas e decentes. Não precisava ter retirado todos os seus negócios do banco de Timothy, arruinando-o deliberadamente. Não sei como consegue colocar a cabeça no travesseiro à noite e dormir.

Seus olhos azul-escuros ficaram negros nas luzes opacas do corredor. Seu queixo se enrijeceu. Ele estava com raiva. Que bom, ela também.

– Durmo muito bem, obrigada. E, sem o devido conhecimento sobre as questões financeiras, sua visão se torna bastante limitada. Sinto muito pela Srta. Longworth e sua irmã, e pela senhorita também, mas não vou me desculpar por ter cumprido meu dever como julguei adequado.

O tom dele a deixou embasbacada. Tranquilo, porém firme, ele punha um ponto final na discussão. Ela recuou, mas não por essa razão: estava perdendo o ar. Esse homem não se importava com os outros. Se se importasse, não estaria fazendo esse reconhecimento da casa.

Ela o guiou ao andar de cima, onde ficavam os quartos mais altos, mas ele parou do lado de fora de uma porta, perto do patamar da escada.

– O que é este cômodo?

– É um quartinho, sem utilidade específica. No passado, foi o quarto de vestir do quarto ao lado. Bem, lá em cima...

Ele girou a maçaneta e abriu a porta. Entrou no pequeno cômodo e observou cada detalhe. Os dois livros ao lado da cama, o armário pequeno quase vazio, as cartas ordenadas sobre a escrivaninha, tudo chamou sua atenção. Pegou um chapéu que estava pousado sobre uma cadeira perto da janela.

– É o seu quarto – falou.

Era verdade. E a presença dele ali, investigando seus pertences, criava uma intimidade que a deixou desconfortável. Ver aquele homem tocando seus objetos pessoais era quase como tê-lo tocando-a. Essa proximidade física tornava sua excitação ainda mais chocante e embaraçosa.

– Por enquanto, é o meu quarto.

Ele ignorou a farpa. Examinou o chapéu, girando-o de um lado para outro. Era o que ela havia começado a refazer no jardim três dias antes. Ninguém o reconheceria. Tinha refeito a borda, forrando-o de musselina creme finamente trabalhada, e enfeitado-o com fitas azuis. Ainda não decidira se iria acrescentar algum enfeite de musselina perto da copa.

– A senhorita tem talento.

– Como eu disse, ser chapeleira é apenas a opção número três. Se uma dama trabalhar em uma loja desse tipo, não pode mais se dizer uma dama, não é verdade?

Ele pousou o chapéu com cuidado.

– Não, não pode. No entanto, é algo mais respeitável do que ser cortesã ou ladra, embora bem menos lucrativo. Sua lista está na ordem correta se seu objetivo for a respeitabilidade.

Ela ainda o odiava no momento em que terminaram a visita. Contudo, já não poderia dizer que ele lhe era um completo estranho. Entrar nos quartos juntos, vendo os artefatos da vida cotidiana da família e com tanta proximidade – excessiva até – nos andares mais altos tinha criado uma familiaridade inoportuna.

Sua suscetibilidade à presença dele a deixara em desvantagem. Ela queria acreditar que era superior a essas reações, principalmente com esse homem, que certamente acreditava agradar a todas as mulheres. Ressentia-se de ter passado uma hora inteira na sua companhia.

Voltaram para o hall, onde ele pegou seu chapéu. Ela retomou o motivo de ter concordado em recebê-lo:

– Lorde Hayden, Timothy está com a cabeça nas nuvens. Ele não está contando todos os detalhes a suas irmãs. Se não for muita ousadia...

– A senhorita já foi bastante ousada sem pedir permissão, Srta. Welbourne. A essa altura, não é preciso fazer cerimônia.

Ela realmente tinha sido ousada e tagarela. Permitira que a raiva vencesse o bom senso. Na verdade, não tinha sido muito prática na situação em que mais necessitara dessa virtude.

– Qual é a sua pergunta?

– Já informou a Timothy quando os Longworths têm que esvaziar a casa?

– Ainda não. – Ele lhe dirigiu um olhar desconcertantemente franco. – Quando a senhorita acha que seria razoável?

– Nunca.

– Isso não é razoável.

– Quinze dias. Por favor, dê-lhes mais duas semanas.

– Que seja. Os Longworths podem ficar até lá. – Ele estreitou os olhos em sua direção. – Quanto à senhorita...

Ai, meu Deus. Ela havia despertado o demônio com sua língua grande. Ele ia pô-la no olho da rua imediatamente.

– Minha tia tem paixão por chapéus.

Ela piscou.

– Chapéus? Sua tia?

– Ela ama chapéus. E paga preços exorbitantes por eles. Sei disso porque sou administrador de sua fortuna e pago suas contas.

Era um assunto estranho para se falar na saída. Ele pareceu um pouco tolo.

– Bem, chapéus costumam ser caros – falou Alexia.

– Os que ela compra também são bem feios.

Ela sorriu e assentiu, desejando que partisse logo. Queria contar a Roselyn que teriam mais duas semanas de prazo.

– Preceptora, a senhorita disse. Sua primeira opção. Tem estudos para ser uma preceptora qualificada?

– Estava ajudando a preparar minha prima mais nova para ser apresentada à sociedade. Possuo as habilidades e os talentos necessários.

– Música? A senhorita toca algum instrumento?

– Sou adequada para ser preceptora de moças. Minha própria educação foi requintada. Nem sempre fui como me vê agora.

– Isso é óbvio. Se tivesse sido sempre como hoje, não teria coragem de falar comigo da forma rude e direta como fez.

O rosto dela enrubesceu intensamente. Não porque Alexia fora rude e Hayden notara, mas porque a atenção que ele lhe estava dispensando começava a acender nela aquela excitação estúpida de novo.

– Srta. Welbourne, minha tia, Lady Wallingford, vai tomar posse desta casa porque vai apresentar sua filha à sociedade em breve. Minha prima Caroline precisa de uma preceptora e minha tia, de uma dama de companhia. Tia Henrietta é... bem... Digamos que seria aconselhável ter uma influência sensata na casa.

– Uma influência que a impedisse de comprar chapéus feios?

– Exatamente. Como a situação combina com sua primeira opção na lista, estaria interessada no emprego? Como foi tão sincera comigo, creio que também diria à minha tia quando um chapéu for ridículo.

Ele estava pedindo que ela ficasse naquela casa em que tinha sido um membro da família, só que agora como criada. Ele estava pedindo que servisse ao homem que arruinara os Longworths e destruíra sua frágil sensação de segurança. Ele estava pedindo que ela ajudasse sua jovem prima a ser apresentada à sociedade, uma oportunidade que fora negada a Irene.

É claro que lorde Hayden não enxergava nada disso. Ela era apenas uma solução conveniente para compor o quadro de empregados de sua tia. Tinha uma combinação singular de habilidades que a tornava perfeita para o cargo. Mesmo que houvesse notado como isso era ultrajante, aquele homem não se importaria.

Ela quis recusar a proposta imediatamente. Esteve prestes a dizer algo muito mais direto e rude do que havia feito até o momento.

Mordeu a língua. Não poderia se dar ao luxo de dizer impropérios agora.

– Vou pensar na sua oferta, senhor.


CAPÍTULO 3

– Ouvi um boato sobre você ontem à noite no White’s.

A declaração inesperada ecoou pelo salão e fez com que Hayden errasse a bola que vinha em direção a ele.

– Sua função é marcar os pontos, Suttonly, não ajudar Chalgrove me distraindo.

– Marcar os pontos é um tédio. Se eu o distrair, você perde e então é a minha vez de jogar.

Hayden sabia que o egoísmo era um traço da personalidade do visconde Suttonly desde que haviam ficado amigos, na universidade. Mas ele não era só isso e Hayden aceitava o lado ruim que vinha junto com o bom. O mesmo homem esguio e vaidoso que estava languidamente posicionado no centro da quadra, interferindo nos saques e nas jogadas, era capaz de demonstrar grande generosidade quando queria.

Chalgrove se adiantou para ficar em posição de saque.

– Você sabia que não teríamos um quarto jogador hoje e que precisaríamos nos revezar.

– Você quer dizer que Rothwell e eu teríamos que nos revezar. Você sempre ganha, então sempre continua jogando.

Suttonly levantou seu rosto longo e de feições finas e tentou em vão olhar Chalgrove de cima, mas o outro era um palmo maior do que ele. O cabelo dourado de Suttonly tinha sofrido a tortura dos ferros quentes naquela manhã. Os cachos perfeitamente desalinhados não iam sobreviver ao jogo.

– É ele quem tem permissão para usar esta quadra – lembrou Hayden.

Se não fosse pela paixão de Chalgrove pelo tênis e por sua vitória inesperada em uma jogatina contra o rei três anos antes, eles nem sequer estariam ali. Em pagamento por aquela dívida de jogo, Chalgrove tinha pedido permissão para usar a antiga quadra de tênis de Hampton Court quando quisesse. Como o esporte saíra de moda e ninguém mais queria ir lá, o rei teve grande satisfação em conceder esse favor real.

Suttonly foi expressar seu tédio nas linhas laterais. Chalgrove assumiu a ofensiva. Hayden percebeu que perderia em breve.

O conde de Chalgrove parecia muito robusto e moreno quando comparado à brandura loura de Suttonly. Mas, durante o jogo, seu corpo musculoso se mostrava surpreendentemente ágil. Atleta nato, seus saques poderosos combinavam bem com a habilidade para mandar a bola de couro na direção dos telheiros e outros pontos difíceis para os adversários.

Hayden observou a bola ricochetear acima da cabeça do outro e cair.

– Bola fora, Rothwell – anunciou Suttonly.

O visconde deu alguns passos à frente e bateu de leve com sua raquete na cabeça de Hayden.

Hayden assumiu a posição de marcador. Apesar de uma parte de sua mente se manter na contagem de pontos, o restante dela se voltou para os negócios com Timothy Longworth. Sua família estaria partindo de Londres em breve, mas não tinha chegado nenhuma carta da Srta. Welbourne falando do emprego que ele lhe oferecera. Não gostava de pensar no preço de seu orgulho. Ela acabaria morando em algum apartamentinho de uma rua violenta, levando uma vida miserável.

Sua falta de senso prático significava que agora ele teria que procurar outra preceptora e dama de companhia. Tia Henrietta chegaria a Londres em poucos dias. Não podia mais esperar a resposta da Srta. Welbourne.

Chalgrove precisou de menos tempo para despachar Suttonly. Depois eles se retiraram para as salas do clube acima da quadra. Chalgrove tinha trazido criados e bebidas geladas. Enquanto lanchavam, Suttonly tocou de novo no assunto da fofoca que corria solta pela cidade.

– Andam dizendo que...

– Não estou interessado – disse Hayden.

– Mas eu estou – disse Chalgrove. – É raro ouvir uma boa fofoca sobre você, Rothwell. Normalmente é sobre quanto dinheiro ganhou nesse ou naquele investimento. Falando nisso, não há nada que queira contar a dois velhos colegas de escola? Ou está esperando que a tempestade passe para lançar o próximo navio?

Suttonly não gostava de ter a atenção roubada de si.

– Andam dizendo – repetiu ele com firmeza – que você arruinou Timothy Longworth.

Isso impressionou até Chalgrove.

– É mesmo? Não sabia que ele estava arruinado, muito menos que você era o responsável.

– Se você viesse à cidade, tomaria ciência do que acontece no mundo – repreendeu-o Suttonly com indolente superioridade antes de se virar novamente para Rothwell e dizer: – O que aconteceu com Longworth? Ele está vendendo tudo tão rápido que o pessoal anda brincando que ele é até capaz de fazer liquidação das irmãs. Você era muito amigo do irmão dele. Ele deve tê-lo enraivecido muito para que decidisse arruiná-lo.

– Eu não o arruinei. A mudança na sorte do homem é problema dele. Quanto aos meus planos, há um acordo sendo firmado em relação a um empreendimento na América do Sul. É muito arriscado, mas vou enviar os documentos a vocês dois. Suponho que guardarão o sigilo de sempre.

– Pode contar comigo – disse Suttonly, fisgando um pedaço de presunto do prato de frios. – Redija os papéis e me avise quando estiverem prontos para a assinatura.

– Nas Américas? Isso não vai ser igual ao esquema de McGregor anos atrás, não é? – implicou Chalgrove. – Você não vai emitir títulos de um país que não existe, como ele fez, não é?

– Se ele fizesse isso, provavelmente encontraria um jeito de compensar os clientes da forma mais sábia possível – disse Suttonly. – Por meu pai morto e os filhos que ainda não tenho, Rothwell, ainda bem que tive a esperteza de ficar seu amigo nos tempos de escola.

– O esquema de McGregor estava fadado ao fracasso. Ele não vai poder fazer novas vítimas de suas fraudes para sempre a fim de pagar as vítimas anteriores. Um dia o castelo de cartas vai desmoronar – disse Hayden.

Hayden Rothwell gostaria que todos – Suttonly, em especial – aprendessem a ser mais desconfiados em relação a investimentos. Se Hayden fosse McGregor, Suttonly teria empenhado sua fortuna para comprar títulos do país fictício de Poyais, nas Américas. Como todos os outros, ele nem teria se dado o trabalho de consultar primeiro um mapa para achar a localização do país.

– Suspeito que haja alguma falcatrua no cerne da crise atual – disse Chalgrove.

Suas sobrancelhas franzidas preocuparam Hayden. Chalgrove não vinha mais para a cidade, porque no ano anterior herdara um imóvel no campo que precisava desesperadamente de cuidados.

– Você perdeu muito dinheiro? – questionou Hayden.

– Não muito, mas o bastante. Tinha uns negócios pequenos com um banco do interior que era correspondente do Pole, Thornton and Company de Londres. Quando eles faliram em dezembro, nosso estabelecimento foi junto – disse ele, dando de ombros, mas não com indiferença. – Muitos homens com negócios bons e sólidos abriram falência por conta disso. Ainda vai haver muito problema antes que esse pânico acabe.

– Mas não há nada que se possa fazer a respeito, não é? – cortou Suttonly, suspirando. – Não vamos ficar nos lamentando pelo que não podemos mudar. Apesar de todas as preocupações, a cidade ainda está movimentada e divertida e se aproxima a época em que as jovens serão apresentadas à sociedade. Chalgrove, prometa que vai permanecer na cidade este ano. Fiquei meio entediado na última apresentação e espero evitar esse estado de ânimo desta vez. Você pode procurar uma noiva rica para resolver seus problemas. Se ela for bonita, pode ser até que você se apaixone.

– Chalgrove não é um tolo romântico como você – disse Hayden. – Você ficou entediado porque está envelhecendo e tem menos chances de se entregar às tolices românticas agora.

– Você se entedia muito facilmente, de qualquer forma – disse Chalgrove. – A vida seria mais gratificante se tivesse algo constante que lhe interessasse.

– Você quer dizer estudar matemática, como ele? Pegar no pesado nas minhas terras, como você? Rezo para nunca ficar velho assim. Quanto a me entregar a tolices românticas, pretendo nunca deixar de fazê-lo. A paixão torna a vida excitante nos poucos meses que dura – disse ele, sacando o relógio do bolso. – Só posso ficar para mais uma partida, Chalgrove. Vou começar sacando desta vez.


– Ouvi boatos sobre você na noite passada, no clube.

Era a tarde seguinte e Hayden levantou os olhos do livro que estava lendo. Havia vencido poucas páginas. Sua mente estava ocupada, pensando em outros assuntos. A chegada inesperada de seu irmão Christian à biblioteca o distraiu ainda mais.

Christian raramente passava a tarde na biblioteca. Seu breve comentário ao se acomodar em uma cadeira acolchoada perto de Hayden explicava o motivo de aquela tarde ser diferente. Era perturbador saber de dois boatos a seu respeito em menos de dois dias. Hayden era o tipo de homem de hábitos regulares e personalidade calma que raramente interessava aos fofoqueiros.

– Não estou flertando com a Sra. Jameson, apesar do que ela anda contando aos amigos – disse Hayden.

– Não era esse tipo de boato, o que nunca me interessaria. Se um dia você se casar, nunca será com uma mulher daquelas.

O “se um dia” dito com tanta propriedade sugeria que seu irmão duvidava da possibilidade de Hayden vir a se casar. O “uma mulher daquelas” não era uma crítica à viúva em questão, mas deixava claro que Christian conhecia bem o gosto de Hayden, muito mais do que o próprio.

Eles se davam bem, tanto que Hayden continuava morando na casa de Easterbrook, em Grosvenor Square. No entanto, as suposições de Christian de que conhecia os irmãos mais novos melhor do que eles mesmos e as suspeitas de Hayden de que isso talvez fosse verdade eram algo irritante.

– O boato tinha a ver com dinheiro. E com seu relacionamento com o banco Darfield e Longworth.

Hayden pôs o livro de lado.

– Você é contra minha decisão de deixar nossas contas lá?

A interferência de Christian infringia um acordo que haviam feito quando ele voltara à Grã-Bretanha depois de ter viajado durante dois anos por sabe lá Deus onde. Apesar de recém-saído da faculdade, Hayden cuidara das finanças da família nesse momento de necessidade. Christian poderia ter assumido a tarefa ao voltar, mas pediu que Hayden continuasse.

– Não faço objeções à sua decisão. Só estou curioso se você realmente confia que o banco não vá falir.

– Se isso acontecer, uso meu próprio dinheiro para compensar quaisquer perdas que você ou os outros sofram. Se necessário, volto até às mesas de jogos.

Os olhos escuros de Christian cintilaram com uma expressão de frieza. A aura de autoridade que ele exalava de repente se fez notar. Era algo que derivava mais do que de seu título de nobreza ou do status de irmão mais velho. Algo havia ocorrido durante aqueles dois anos no exterior que se tornara a fonte desse poder contido e sóbrio.

Christian nunca falara muito de seu tempo fora e das aventuras que tinha vivido. Hayden percebera de imediato como as experiências o tinham mudado. Seu irmão mais velho deixara a Inglaterra como um marquês recém-empossado, instruído e zeloso. Voltara experiente demais, amadurecido demais e um tanto estranho.

– Não peço que aposte sua própria fortuna em suas decisões. Só quero saber se tomou essa decisão em particular com base em seu brilhantismo financeiro de sempre, ou se foi dominado pela emoção.

– Nunca teria deixado as contas lá se achasse que o banco não sobreviveria.

Hayden considerou a conversa encerrada e retomou a leitura.

– Não foi o fato de você ter deixado as contas lá – disse Christian depois de um longo silêncio. – Não era esse o boato.

– Então qual foi o boato que você ouviu?

– Que você de alguma forma arruinou Longworth e o forçou a vender sua parte no banco. Que manipulou a situação para ele falir.

– Mas como você verificou se retirei nossos depósitos e viu que não, já sabe que esse boato não é verdadeiro.

– Ninguém me disse que você o tinha arruinado retirando o dinheiro. Disseram que você manipulou a situação para que Longworth falisse, o que é bem diferente. Não entendo o motivo. Os Longworths são uma família tradicional no nosso condado. E, para começo de conversa, você contribuiu para o enriquecimento deles e foi amigo de Benjamin.

Hayden instintivamente levou uma das mãos ao peito. Ele não sentia a cicatriz por baixo das roupas, mas pensar em Ben sempre fazia com que se lembrasse da dor que a causara. Qualquer ajuda que tivesse dado a Benjamin Longworth já tinha sido mais do que compensada na Grécia. Isso significava que a balança tinha pendido de novo, para o outro lado, na noite em que Ben morreu.

Ele tinha errado com o amigo naquela noite no navio ao não forçá-lo a descer, quando era óbvio que Ben estava bêbado. Pior ainda, tratava-se de um amigo que havia salvado sua vida.

– Está preocupado com minha honra, irmão mais velho?

– Eu deveria estar?

Hayden o fitou.

Christian não baixou o olhar, agindo de forma plácida e paciente. Eles eram muito parecidos, mas qualquer pessoa que entrasse na biblioteca não perceberia isso de imediato. O cabelo escuro de Christian era longo, até mesmo para a moda atual. Suas ondas atingiam os ombros do robe de seda preto que ele vestira ao se levantar naquela manhã. Também não era um robe comum. Ele ostentava uma estampa e um corte exóticos, quase orientais, e era menos estruturado do que os modelos masculinos comuns. A típica falta de formalidade de Christian em casa também fazia com que não usasse uma camisa por baixo do robe, de forma que sob ele não se via uma gola, apenas pele.

Hayden pensou em como o irmão mais velho parecia empertigado e arrumado enquanto o pai deles era vivo. Ele tinha sido tão irrepreensivelmente correto todos aqueles anos. Então, meses depois de assumir o título, desaparecera para depois voltar com aquela desconcertante aparência mundana.

– Os homens fracassam nos negócios o tempo todo – falou Hayden. – É como uma justa. Um homem entra no torneio sabendo que pode perder seu cavalo. Fracassar é sempre um risco.

– Não para você. Não com a mente e os instintos de que dispõe ao entrar na disputa. Se o jovem Longworth tivesse sido outro cavaleiro, e não um mero escudeiro, sua analogia poderia funcionar. No entanto...

– Como você optou por não entrar na competição, fique fora disso.

Hayden engoliu seu crescente rancor. Na verdade, esse sentimento não se dirigia a Christian, mas à sua tendência irritante de incitar o lado negro da alma das pessoas.

– A ruína de Longworth se deve unicamente à sua falta de bom senso. Minha honra está intacta.

Christian pareceu aceitar isso.

– Você tem um lado impiedoso. Nesse ponto, somos bem parecidos. É preciso manter a vigilância para controlar isso, como tenho certeza de que você sabe.

– Cuide da salvação de sua própria alma. Não preciso de ajuda com a minha.

– Todos nós precisamos de ajuda. Contudo, se você diz que não se deixou levar por esses sentimentos, aceitarei que a ruína de Longworth foi obra dele mesmo.

A questão tinha sido definitivamente essa, mas, para evitar maiores consequências além da mera ruína, Hayden tinha sido forçado a conduzir o canalha por muitas reuniões, confissões e promessas nos últimos dias. Com certeza, no clube, na noite anterior, um dos homens que ouvira essas promessas tinha aludido ao papel de Hayden.

Christian se levantou para ir embora.

– É uma pena pelas irmãs. Às vezes as encontro na cidade. A mais velha é estonteante. Se não fosse por sua amizade com o falecido irmão, estaria tentado a ficar com ela.

– Tirar vantagem da má sorte da moça e garantir que o fracasso fosse completo seria algo altamente desonroso, não acha?

Christian deu de ombros.

– Na Inglaterra, sim. Bem, como disse, é preciso manter a vigilância.


A bandeja de prata brilhou à luz da tarde que penetrava pela janela. O cartão sobre ela surpreendeu Hayden.

A Srta. Welbourne estava lá.

Ele passou o polegar sobre o papel e sentiu o alto-relevo de ótima qualidade. Imaginou a moça tirando dinheiro de sua renda magra e decidindo que o cartão que ostentaria seu nome deveria ser digno de uma dama, não importava o sacrifício.

– Vou recebê-la.

A visita dela lhe provocou remorsos. Sua descoberta a respeito do roubo de Longworth atingira muitos inocentes.

É claro que a Srta. Welbourne tinha sido atingida bem antes da descoberta. Entre suas deliberações, enquanto tentava ler na biblioteca, havia algumas em relação a ela. Precisava elaborar uma estratégia para devolver os recursos da moça sem que ela soubesse que tinham sido retirados por Longworth.

Sua palavra de honra o impedia de lhe explicar o que tinha acontecido. Duvidava que ela lhe seria grata por saber a verdade, mesmo que pudesse revelá-la. Isso destruiria sua ligação com as pessoas que considerava sua família. Havia também a hipótese de ela se sentir tão traída a ponto de querer ser a primeira a mandar Longworth para a cadeia.

Abriu as portas da sala de visitas e viu a Srta. Welbourne com sua dama de companhia. Ela trouxera a prima mais jovem. Os olhos de Irene Longworth estavam fixos no relicário medieval cravejado de pedras preciosas que Christian tinha colocado em uma mesa ao lado da janela.

O olhar da jovem se voltou para Hayden quando ele entrou e nele permaneceu enquanto se cumprimentavam. Ele reconheceu sua expressão muda e embasbacada. Estava cansado de vê-la em outras moças ingênuas. Preferia a expressão madura e autocontrolada que a Srta. Welbourne dirigiu a ele.

– Irene, por que não vai olhar os quadros? – sugeriu a Srta. Welbourne. – Ela se interessa por arte, lorde Hayden, e pensei em dar-lhe a oportunidade de ver parte da coleção de Easterbrook hoje.

Com o consentimento de Hayden, a garota começou a caminhar próxima às paredes, examinando as obras.

– Foi muita gentileza sua trazê-la, se tem tanto interesse por arte – disse ele. – Pensei que talvez o motivo real fosse me lembrar do que ela perdeu.

– Esse foi um dos motivos, mas a oportunidade de ver parte da famosa coleção de Easterbrook foi outro. Além disso, quando ela for para Oxfordshire, fará diferença poder falar da visita que fez a esta casa. Algumas pessoas com posses muito superiores às dela nunca terão essa oportunidade.

A Srta. Welbourne falava com a mesma franqueza que marcara as conversas dos dois desde o início. Ocorreu-lhe que seria tratado da mesma forma se não tivesse arruinado Longworth.

Ele gostava disso. Algo nele fazia com que a maioria das mulheres assumisse uma atitude irritantemente fútil. A falta de medo e de nervosismo por parte dela era revigorante. Criava pequenos e encantadores desafios. Sua postura durante o tour pela casa o provocara de muitas formas e carregara o ar entre eles com muito mais do que contrariedade.

Ela sentira o mesmo, ele tinha certeza, só que não gostava dessa sensação. Talvez nem a entendesse direito.

– Além disso, precisava trazer alguém comigo, não é verdade? – disse ela. – Não temos mais criadas, nem mesmo um lacaio. Como Irene sempre sonhou em vir a um baile aqui, um sonho que Roselyn e eu tentamos controlar mesmo nos bons tempos, pensei que ela pelo menos poderia ver suas obras de arte.

A garota obviamente tinha sido instruída a se manter distante e discreta. Ela se reclinou em direção a um quadro de Poussin do outro lado da sala.

Hayden chamou um lacaio.

– Leve a Srta. Longworth até a governanta – ordenou ao homem quando ele chegou. – Diga-lhe para guiar a moça pelo salão de baile e pela galeria.

Mal se contendo de alegria, Irene seguiu o criado. A Srta. Welbourne observou sua saída.

– É muita generosidade de sua parte.

– Se ver esta sala de visitas a ajudará em Oxfordshire, descrever o salão de baile só pode melhorar ainda mais sua posição.

Ele se sentou em uma cadeira que lhe permitia ver de frente o rosto da Srta. Welbourne.

– Como a senhorita precisava trazer alguém consigo, entendo que o objetivo desta visita seja um assunto seu, não dela – comentou Rothwell.

O olhar de Alexia se inflamou. Aquela mulher não gostava muito dele, isso estava bem claro.

Um arco lilás no chapéu de Alexia fazia sobressair ainda mais a cor de seus olhos. Era um chapéu simples, mas parecia muito caro com aquela borda, a copa de seda celestial e rosas enfeitando o arco. Talvez ela mesma tivesse feito o chapéu. Como o cartão de visita, ele demonstrava sua posição, mesmo que essa posição lhe tivesse escapado por entre os dedos.

– Considerei a oferta que me fez na casa de meu primo em sua última visita – disse ela. – Gostaria de conversar sobre isso e ver se conseguimos chegar a um acordo.

Tinham-se passado doze dias desde a oferta. Com a mudança iminente da casa, parecia que ela finalmente tinha se decidido pela praticidade.

Ele decidiu facilitar as coisas para ela sendo breve.

– O salário será o normal para a situação e...

Ela levantou o indicador, detendo-o. Seu tutor costumava fazer isso quando ele era garoto.

– Aceito o salário normal. No entanto, como estarei ocupando dois cargos, o de preceptora e o de dama de companhia, acredito que deveria receber dois ordenados, sobretudo levando-se em conta que o senhor não terá os gastos de manter mais um criado na casa. Além disso, gostaria que o salário fosse pago mensalmente. Vou querer mandar parte do dinheiro para Rose e Irene. Não quero que elas precisem esperar muito para terem algum desafogo.

Ela estava a dois dias de ser despejada, mas fazia exigências desmedidas, como se pudesse apresentar as melhores referências da Inglaterra, em vez de nenhuma. A julgar por sua repetida menção ao problema financeiro dos Longworths, ela esperava que a culpa dele lhe desse alguma vantagem nas negociações.

Fascinado, ele colocou o cotovelo no braço da cadeira e descansou o queixo no punho fechado.

– Acredito que o pagamento mensal possa ser providenciado. Quanto ao salário, a senhorita não passará todo o tempo desempenhando cada um dos papéis. Isso é impossível, portanto o pagamento integral por dois cargos não se justifica.

– Um e meio, então. O senhor tem que admitir que é justo.

Ele quase deu uma risada.

– Bastante justo para a senhorita. Está certo, um e meio.

Ela teve um gesto de alívio, passando a mão sobre a lã fina da roupa. Era um movimento nervoso que revelava que não estava tão contida quando parecia. O vestido era bem mais elegante do que o que ele a vira usar antes. Muito distinto, com um bordado azul ao longo de toda a borda da saia e um casaco que trazia um delicado acabamento em pele. Ele imaginou que as roupas não eram dela. A Srta. Longworth provavelmente as tinha emprestado a ela para a visita à casa do marquês de Easterbrook.

– Quanto à minha relação com sua tia e sua prima – continuou ela –, vivi naquela casa como um membro da família e seria difícil pensar em mim como uma... bem, de outra forma. Gostaria que meu cargo principal fosse o de dama de companhia de sua tia e que meus deveres de preceptora ficassem em segundo lugar. Isso em nada afetaria meu trabalho em relação a sua prima.

Seu tom, comportamento e a forma como continuava a lembrá-lo da mudança na sua situação, que ela acreditava ser culpa dele, deveriam enraivecê-lo. Nada disso.

Alexia Welbourne havia chegado àquela casa vestida como a dama que nascera para ser, mas sairia dali como empregada. Ela sabia disso, mesmo tendo gaguejado ao tentar pronunciar a palavra. Porém, não era uma mulher que desconhecesse seu lugar. Era só uma mulher lutando para manter seus últimos fios de dignidade ao sair pela porta em uma condição diferente da que entrara.

Ele sentia muito por ela, mas manifestar esse sentimento seria um insulto para uma mulher como Alexia.

– Minha tia tem muito bom coração, Srta. Welbourne. O perigo não é ser tratada como criada, mas passar rapidamente a ser tratada como irmã. No entanto, explicarei a sutileza do modo como deseja ser considerada. Tenho certeza de que ela compreenderá. Bem, se não há mais nada a tratar...

O dedo se levantou novamente.

– Algo mais, Srta. Welbourne?

– Só mais um pequeno detalhe.

– Não imagino o que possa ser.

Os lábios dela se franziram diante do tom sarcástico. Belos lábios. Mais para cheios. E um nariz levemente arrebitado, que chamava atenção para a boca.

Uma boca que parece uma rosa. Mas não um botão de rosa. Não era pequena nem curvada, nem mesmo quando o franzido a estreitava. Era uma rosa em plena floração, prometendo o néctar que Ben descrevera.

– Como ambos sabemos, minha situação mudará muito, mesmo continuando a viver na mesma casa – disse ela.

Sua voz provocava pensamentos sobre esse néctar e seu gosto. O caminho rumo aos ardis impiedosos sobre os quais Christian o advertira havia pouco.

De formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Ele a viu de novo no vestido sem atrativos que usara ao guiá-lo no reconhecimento da casa. De um marfim amarelado pelo uso e sem enfeites, que provavelmente haviam sido retirados para adornar outras vestimentas. A moda tinha mudado muito nos últimos anos e sua cintura alta anunciava seus poucos recursos. No entanto, o vestido ressaltava seu busto e revelava suas formas e curvas tentadoras.

Sua mente voou para recuperar a lembrança dela em pé perto dele no corredor do último andar, usando o vestido cor de marfim. As faíscas de raiva nos olhos dela ao confrontá-lo fizeram seu sangue correr mais rápido nas veias outra vez, queimando-o por dentro. Sua imaginação começou a tirar aquele vestido para ver o que tinha por baixo...

– Isso é aceitável, senhor?

A pergunta dela o tirou de sua fantasia erótica.

– Aceita essa última condição? – perguntou ela.

Se pelo menos ele soubesse do que ela estava falando, mas não tinha a menor ideia de como deveria responder.

Assumiu a posição que costumava ocupar em negociações de investimentos quando algo inesperado era proposto.

– Quero pensar melhor sobre isso antes de dar uma resposta.

Suas sobrancelhas se elevaram só um pouquinho, mas o bastante para expressar o que ela pensava disso.

– Não vejo por que isso exigiria tanta ponderação.

– Sou um homem muito ponderado.

– Que admirável! E tais ponderações levariam muito tempo? Estarão concluídas em dois dias, para que eu saiba onde ficar na casa?

Ela usou uma voz cuidadosa e gentil, do tipo usado com um tio velho meio gagá. Ele não estava acostumado a ter ninguém – muito menos uma mulher – tratando-o como se fosse burro.

– Por que não explica esse pedido com mais detalhes, para que eu possa pensar enquanto fala?

– Não consigo pensar em outra forma de explicar isso. Está claro como água. Qual parte não entendeu?

Será que ela havia percebido por onde sua mente andara? Vira nos olhos dele? Estava deixando-o confuso como punição? Será que o pedido era complicado de atender? Ela não teria pedido para vender toda a prataria da casa, imaginava ele.

– Acho que minha tia pode ser convencida a aceitar sua condição.

– Então podemos dizer que chegamos a um acordo – disse ela, imensamente satisfeita com a conclusão da conversa e passando a alça da bolsa pelo braço. – Estou de saída. Estarei na casa para dar as boas-vindas a Lady Wallingford e sua prima quando elas chegarem.

Ele a acompanhou para que procurassem Irene. Encontraram-na na galeria com a governanta. Christian estava lá também, apontando para algum detalhe na pintura que observavam. Ele tinha finalmente se vestido e, fora o cabelo longo de aspecto primitivo, parecia um lorde inglês bem-apessoado.

– Christian, esta é a Srta. Welbourne. Este é meu irmão Christian, marquês de Easterbrook.

– Estava explicando para sua prima que este não é um Correggio original, mas uma cópia de um quadro que está em Parma, Srta. Welbourne – disse Christian.

A Srta. Welbourne olhou para o quadro. Ele retratava a princesa Io delicadamente voluptuosa e sensual, suspensa no ar por Júpiter, que tinha se transformado em nuvem. Como Io estava nua, aquele provavelmente não era um quadro que Christian devesse ter estimulado Irene a examinar.

– É adorável, mesmo sendo uma cópia – disse a Srta. Welbourne, segura de si o bastante para não revelar embaraço com o assunto.

Hayden o considerava adorável também. Observando agora, o corpo de Io parecia um pouco com a imagem que ele fizera do corpo da Srta. Welbourne. Arredondado nos lugares certos. Curvas e maciez à espera.

Hayden mostrou o caminho para que as mulheres saíssem com a governanta. Irene começou a cobrir a Srta. Welbourne de perguntas imediatamente, esquecendo-se de que seus sussurros seriam ouvidos na galeria.

– Você vai aceitar a função?

– Sim.

– Ele aceitou suas condições?

– Sim, vamos embora.

– Todas elas? Até mesmo a folga e o uso da carruagem?

Hayden se perguntou se tinha ouvido direito.

– Função? – disse uma voz baixinho sobre o ombro dele.

Ele virou o rosto e deu com Christian também observando as duas.

– Ela vai trabalhar como dama de companhia de tia Henrietta e preceptora de Caroline.

– Ah, entendo. As únicas mulheres que já fizeram negócios comigo foram minhas amantes. Daí minha confusão. Ela tem belos olhos... de uma cor inusitada.

Hayden observava as fitas do chapéu de Alexia flutuarem, a bainha do vestido se arrastar e seus quadris esbeltos se moverem.

– Ela queria se certificar do que se esperava dela no serviço doméstico. Nossa conversa tratou desse tipo de coisas.

– Como folga e uso da carruagem, você quer dizer.

Hayden ignorou a implicância. A Srta. Welbourne se virou para sussurrar algo no ouvido de Irene. Seu perfil apareceu por baixo da aba do chapéu. Um olho violeta, um nariz levemente arrebitado e uma boca carnuda expressiva formaram uma silhueta colorida contra o vestido marrom da governanta.

A porta se abriu e as mulheres desapareceram.

Hayden se virou e pegou seu irmão mais velho observando-o. Christian deu meia-volta e partiu.

– Vigilância, Hayden, vigilância.


CAPÍTULO 4

Alexia caminhava ao lado de Roselyn em ritmo de enterro. Estavam fazendo uma revista silenciosa de cômodo em cômodo para que Rose verificasse se nada fora esquecido.

Uma carruagem alugada esperava na rua. Ela levaria os Longworths até uma estalagem nos arredores de Londres. Lá seriam transferidos para a triste carroça que saíra antes do amanhecer, oculta pela escuridão, carregando os poucos bens que ainda lhes pertenciam.

Rose espiou a sala de visitas.

– Ouso dizer que a tia de Rothwell encontrará tudo em ordem. Espero que ela e a filha sejam felizes aqui.

A frase teria soado generosa, não fosse por seu tom amargo.

Alexia nada disse para reconfortá-la. Já usara todas as palavras de consolo que poderia conceber. Tinha até mesmo prometido a Irene lhe dar uma festa de apresentação à sociedade no ano seguinte, o que era o mais próximo de uma mentira deslavada que já dissera. Seu coração estava em prantos por todos eles. Rose e Irene, Timothy e ela própria.

Rose se voltou para ela. Com os olhos soltando faíscas pelos olhos, ela permitiu que toda a sua raiva viesse à tona.

– Você tem que me prometer não se afeiçoar a elas. Não quero saber se são boas ou não. Tem que me prometer...

Alexia a abraçou. O corpo de Rose começou a tremer e ela caiu no choro. Passou rápido. Rose engoliu as lágrimas e se recompôs, tudo em uma única inspiração profunda.

– Oxfordshire não é tão longe assim – disse Alexia.

Tal pensamento tinha sido repetido por todos eles muitas vezes na última semana.

– Vamos nos ver com frequência, tenho certeza – continuou.

Ela não estava tão certa disso, mas talvez fosse possível. Afinal, ela poderia usar uma carruagem, não? E tinha um dia de folga.

– Vamos subir para buscar Timothy – disse Roselyn.

Encontraram Timothy em seu quarto, estendido na cama, doente. Doente, não, percebeu Alexia. Ela avistou um decantador lascado debaixo da mesinha de cabeceira.

– A carruagem está esperando, Timothy – disse Rose.

– Para o diabo com a carruagem.

Tim nem sequer moveu o braço que se estendia sobre a testa.

– Para o diabo com os canalhas que esperam para ver esta cena – prosseguiu ele. – Para o diabo com a vida.

Rose pareceu exausta. Fora obrigada a assumir quase todas as providências necessárias nos últimos dias. Depois que vendeu o que podia, Timothy se tornara um inútil.

Alexia se curvou sobre a cama.

– Já se entregou à infelicidade por muito tempo, primo. Suas irmãs precisam que você volte a si. Permita-lhes sair pela porta com dignidade, não carregando o irmão em frangalhos entre elas.

Ele não reagiu nem se moveu. Ela tocou seu braço.

– Venha, Tim. Isso não é do seu feitio. Levante-se pelo bem de Irene, ao menos.

Depois de uma longa demora, ele fez um esforço para se levantar. Rose alisou seu casaco e fez o que pôde para deixar sua gravata apresentável. Timothy parecia tão triste e desamparado que Alexia teve vontade de chorar.

– Pegou as coisas dele no sótão, Rose? – disse ele em tom abafado. – Os baús de Ben e tudo o mais?

A expressão de Rose foi de desespero quando respondeu:

– Arrumamos tudo às carreiras... Como pude ser tão relapsa? Não tem mais espaço na carruagem e...

– Não se preocupe. Cuidarei do que possa ter ficado para trás – disse Alexia. – Podem ter certeza de que os baús continuarão aqui enquanto eu estiver e os levarei quando for embora. Vou achar um jeito de devolvê-los a vocês.

– Você é tão boa, Alexia – disse Rose com visível alívio.

Alexia não se importava de assumir a responsabilidade pelos pertences de Ben. Assim, parte dele ficaria com ela na casa. Ela poderia resistir melhor à adversidade da vida que iria enfrentar se pudesse se lembrar daqueles baús no sótão.

– Detesto deixá-la aqui – disse Tim olhando para o chão. – Odeio a ideia de ver você se sujeitar a ele. Esta foi a jogada mais cruel: ele ser capaz de se deleitar com sua queda de posição social.

Alexia não achava que lorde Hayden se deleitaria com isso, já que aparentemente não pensou duas vezes antes de praticar seus atos. Em poucos dias, ela seria uma criada conveniente e nada mais. Ele provavelmente esqueceria até seu nome.

– Não me importo com o que ele pense, Tim. Não me afeta em nada.

Essa afirmação pelo menos era verdade. Ela já sabia que, na vida, quando se desce um degrau, o motivo não importa. O estrago no orgulho era o mesmo, independentemente da causa. A pessoa podia enfrentar isso com elegância ou com amargura. Ela estava lutando para assumir a primeira postura, como fizera no passado.

Tim caminhava sem firmeza, mas Roselyn e Alexia o conduziram para o andar de baixo, até a porta. Irene esperava com ar sombrio pela partida solene. Com certeza os vizinhos espiariam de suas janelas para ver a cortina descer no último ato do fracasso encenado na Hill Street nas duas últimas semanas.

– Eu o odeio – disse Irene. – Não faz diferença se ele é bonito e se me deixou ver o salão de baile. Tenho certeza de que o irmão dele ficaria chocado em saber o que aconteceu. Eu deveria ter contado tudo a Easterbrook enquanto estávamos na galeria.

Alexia deu um beijo de despedida em Irene.

– Não ocupe seu coração com ódio, Irene.

– Você não precisa disso – falou Roselyn. – Eu odiarei Hayden Rothwell o bastante por todos nós, querida.

Seu rosto se fechou em uma máscara de orgulho. Ela pegou a irmã pela mão.

– Vamos embora – chamou.

Timothy abriu a porta. Ele não apreciou a atitude da irmã ao saírem. Na verdade, não as estava enxergando. Virou-se para a porta aberta e ficou lá, parado indolentemente por um tempo. Seu rosto enrubesceu de emoção.

Alexia manteve a mão no braço dele.

– Você é filho de um cavalheiro, Timothy. Nem isso pode mudar esse fato.

A expressão dele retomou a serenidade e ele se empertigou um pouco.

– Para o diabo com ele – grunhiu.

Deu um passo para fora e seguiu Roselyn e Irene rumo à obscuridade.

Alexia fechou a porta antes que a carruagem partisse. Secou as lágrimas que teimavam em rolar de seus olhos. Não ousava sucumbir ao impulso de se enraivecer com a injustiça da vida. Tinha que aprontar a casa para a chegada da tia e da prima de lorde Hayden.

Também precisava preparar seu orgulho para o momento em que as duas mulheres entrassem pela porta da frente.


– Foi tão gentil de sua parte nos acompanhar, Hayden, mesmo que nosso deslocamento seja só por algumas ruas da casa de Easterbrook. Não tenho muita habilidade para lidar com essas mudanças complicadas.

– Fico feliz em ajudar. A situação exigia pulso firme.

– Como sempre, tê-lo conduzindo as rédeas nos transmite confiança e tranquilidade. Não sei o que faríamos sem você.

O pulso firme em questão não tinha a ver com controlar os cavalos que puxavam a carruagem de Easterbrook por Mayfair. Nem com a enorme gama de detalhes relacionados à mudança de tia Henrietta para Londres. Disso tudo Hayden dera conta com facilidade.

Na verdade, era Henrietta, viúva de Sir Nigel Wallingford, que demandava pulso firme. Ela exigia mais da sua atenção do que os mais complicados investimentos financeiros que ele administrava.

Após a morte do marido, ao tomar conhecimento de que sua renda ficaria bem reduzida, ela assentira como se compreendesse a situação, mas depois não alterara em nada seus gastos. Sendo seu administrador, Hayden cumpria o penoso ritual de ir até Surrey para ralhar com ela por causa das contas altas, reprimendas que a tia aceitava com constrangimento, mas depois alegremente ignorava.

Ele a observou enquanto se sentava junto à filha na frente dele na carruagem. Um chapéu gigantesco cobria a maior parte do cabelo muito louro. Sua aba ampla e pontuda ficava o tempo todo batendo no queixo de Caroline. O maior laço vermelho da história da chapelaria apequenava a copa alta. Uma pluma extravagante traçava um amplo arco e tocava o delicado maxilar de Henrietta. A mulher era baixa e franzina, com rosto pequeno e traços finos, e o chapéu parecia um peso prestes a curvá-la.

Sem dúvida, Henrietta achava que o chapéu era magnífico e valia cada centavo gasto nele, mas não percebia como a envelhecia. Sendo irmã mais nova de sua falecida mãe, aos 36 anos, tia Henrietta ainda possuía feições joviais, mas, usando aquele chapéu, aparentava ter 50.

– Você tem absoluta certeza de que essa preceptora fala um francês impecável? – perguntou ela. – Caroline precisa de alguém muito competente.

– A Srta. Welbourne é bem instruída em todas as matérias necessárias.

Na verdade, não tinha certeza se a Srta. Welbourne sabia francês. Mas, se alegava ter a formação exigida para desempenhar seu novo papel, então deveria ser capaz de demonstrar isso. Ele suspeitava de que ela poderia aprender francês em quinze dias se ainda não soubesse.

– Espero que ela não seja igual à Sra. Braxton – murmurou Caroline.

Uma menina quieta e pálida, Caroline raramente falava. Hayden suspeitava de que a criança que ele via não era a Caroline de verdade, mas uma menina desbotada e enrijecida pela presença da mãe.

– Estou certa de que a Srta. Welbourne será muito diferente de sua última preceptora – disse Henrietta. – Hayden teve que lhe prometer algumas concessões incomuns para persuadi-la a nos ajudar.

Os olhos verde-claros de Henrietta brilharam com o feliz otimismo que a fazia parecer sonhadora e distraída o tempo todo.

– Estamos na cidade agora, querida. É um mundo bem diferente. A Sra. Braxton não serviria. Foi por isso que Hayden encontrou essa casa e a estimável Srta. Welbourne para nós.

Ela concedeu a Hayden um daqueles sorrisos. Um dos sorrisos agradecidos e afetuosos que diziam que ele era a âncora de seu navio sem leme. Ela confiava totalmente no sobrinho, dependia dele em excesso e esperava que ele atendesse a seus caprichos. Provocava um desastre atrás do outro e depois, com pesar, encaminhava o problema para ele resolver, porque ele era tão incrivelmente competente nisso.

Ele não tinha dúvida de que sua tia agia com ele de forma semelhante à que costumava agir com seu finado marido. Sua aparência adorável, as voltas que dava nos assuntos tentando evitar dar explicações, suas tentativas de amansá-lo com elogios – estas eram as marcas de uma mulher que manipulava um homem. Ele gostava de tia Henrietta e até a considerava divertida. No entanto, ser seu administrador por seis anos tinha lhe ensinado certos aspectos do relacionamento diário com uma mulher que vinham com o casamento. Nenhum deles o tinha estimulado a procurar uma esposa.

– Aí está – anunciou Henrietta quando a carruagem parou na Hill Street. – Pedi que o cocheiro passasse por aqui anteontem para me mostrar. A casa é bem bonita e de bom tamanho, não acha, Caroline? Mas não fica em uma praça. Tinha esperanças de que ficasse. Porém, se Hayden diz que é adequada para nós, assim será.

Hayden conhecia bem as esperanças dela. Seu irmão Christian também. Tia Henrietta não dera atenção aos detalhes da mudança para Londres até que ficara difícil demais encontrar um local adequado para alugar. Christian desconfiava de que a tia deles tinha outro motivo para tamanha negligência. Ele estava certo de que ela contava com que ficasse sem lugar para morar, quando então pediria para apresentar sua filha à sociedade no lar de Easterbrook.

Três semanas antes, Christian havia decretado sumariamente que isso não aconteceria, de jeito nenhum. Ele ofereceria o baile de apresentação de Caroline à sociedade, mas não viveria sob o mesmo teto que sua tia intrometida e frívola.

A residência dos Longworths resolvera então um problema iminente. Também dera a Timothy oportunidade de reembolsar Henrietta pelos títulos roubados sem que ela ficasse sabendo do golpe. Henrietta acreditava que Hayden os havia vendido para comprar a casa.

Ao descer da carruagem, Hayden pensou no restante do plano. Com sorte, Caroline ficaria logo comprometida com um rapaz da primeira leva de pretendentes e Henrietta voltaria para sua casa, em Surrey. A casa de Londres seria vendida e os títulos roubados, substituídos por novos. Se a divina Providência realmente sorrisse para ele, após Caroline se casar, sua tia procuraria um marido e Hayden passaria para ele a responsabilidade de controlá-la.

Hayden deu a mão para ajudar a tia e a prima a descerem. Ao entrarem, todos os criados se perfilaram no hall para saudar a nova patroa.

Henrietta examinou a criadagem. Hayden mantivera Falkner, mas o restante do pessoal era novo.

Ele deu um passo à frente quando sua tia se aproximou da Srta. Welbourne e apresentou as duas mulheres – o que não fizera com o mordomo ou com a governanta. Era do seu interesse que elas se dessem bem. Com sorte, a Srta. Welbourne reduziria as demandas de Henrietta por ele.

Tia Henrietta examinou em detalhes a nova dama de companhia. A Srta. Welbourne passou com elegância pela avaliação.

– Esta é minha filha, Caroline – disse Henrietta, instigando a garota a dar um passo à frente. – Nosso atraso em vir à cidade significa que seus últimos retoques precisam de atenção. Imagino que você seja adequada para fazer isso.

– Sou, sim, Lady Wallingford.

– Soube que começou a desempenhar suas funções recentemente e que é prima da família que viveu aqui por último.

Hayden não imaginava que Henrietta soubesse disso. Ela estava na cidade havia somente dois dias. A cor dos olhos da Srta. Welbourne se intensificou, mas ela não demonstrou qualquer outra reação.

– Sim, senhora.

– Vamos conversar um pouco sobre isso. Contudo, não tenho motivos para duvidar da confiança que meu sobrinho deposita na senhorita.

– Obrigada, senhora.

Henrietta seguiu em frente, cumprimentando as empregadas, o lacaio e o cozinheiro. Hayden observava o ritual em um canto do cômodo. Observava principalmente a Srta. Welbourne.

Os olhos dela não vacilaram desde que entraram na casa. Ele percebeu que seu olhar estava pregado em um ponto na parede por trás dele. Mesmo quando Henrietta falou com ela, seus olhos violeta não se moveram. Ela estava resistindo bem àquela provação, mas na verdade não a estava vendo.

Admirou sua atitude e a leve altivez que ela emanava. Alexia podia estar entre os criados, mas só um tolo não veria a diferença. Com certeza sua tia havia percebido isso de imediato, por isso lhe fizera aquela pequena provocação.

O olhar da Srta. Welbourne se moveu sutilmente em direção a ele. Raiva e orgulho se estamparam em seu rosto. Não ouse ter pena de mim, expressou uma olhada rápida. Você mais do que todos os homens não tem esse direito.

O ressentimento dela parecia prestes a desmanchar sua pose. Ele andou em sua direção e fez um gesto para que se aproximasse, tirando-a da fila de empregados.

– Parece que a senhorita tem tudo sob controle. É admirável.

Ele se referia a ela, não aos empregados. Ela pareceu entender. Sua expressão voltou à passividade. Seu olhar se dirigiu para o mesmo lugar de antes, atrás dele na parede.

– Falkner cuidou para que os outros ficassem preparados – disse ela, baixo.

– Acha que consegue lidar com ela? – falou Rothwell, olhando para sua jovem prima.

A Srta. Welbourne olhou para o final da fila também, só que parou para observar Henrietta e não Caroline. Mais especificamente, o chapéu de Henrietta.

– Acho que merecia os dois salários – disse ela.

– Andei pensando que talvez a senhorita valha muito mais para mim.

Ao falar, o tom soou meio malicioso. Se ela percebeu, não teve qualquer reação. Provavelmente porque o sentido oculto tinha ficado somente na cabeça dele, um reflexo de maquinações que não fariam nada bem a sua reputação.

– Acho que tem razão. Mas fiquei satisfeita com nossa última reunião e não espero mais por ora.

– Fico aliviado. Só há uma carruagem, como vê, e minha tia vai querer usá-la de vez em quando. Se a senhorita tiver várias folgas em vez de uma só, isso criaria um sério incômodo para ela.

Ela não pôde resistir e sorriu ao lembrar que o havia derrotado nisso. Sua boca rosa relaxou e revelou seu bem-vindo potencial de sensualidade. Os lábios se afastaram o bastante para provocar pensamentos inapropriados na cabeça dele.

Os olhos de Alexia por fim se voltaram para ele, para partilhar a piada. Ele lhe devolveu um olhar profundo, que exigiu sua relutante atenção. Mas Hayden deixou que o momento se prolongasse demais. A janela se fechou, como se Alexia houvesse notado o perigo nos olhos dele. Ela se empertigou.

De repente, corpos se movimentaram em volta deles. Os criados haviam sido dispensados. O chapéu de Henrietta se intrometeu entre ele e a Srta. Welbourne.

– Hayden, informei ao cozinheiro que você jantará conosco amanhã. Easterbrook e Elliot também.

– Elliot está em Cambridge e Christian tem um compromisso amanhã.

Ele começou a acrescentar suas próprias desculpas, mas ver violetas e rosas deteve suas palavras. A Srta. Welbourne estava falando com Caroline, assumindo suas funções.

– Ficarei feliz em aceitar, se minha presença apenas não for tediosa demais.

– Tediosa, nunca! Não venho a Londres há anos e estaria perdida sem a sua ajuda abrindo caminho para a sociedade. Quase me esqueci do que Caroline deve ver e fazer. Precisamos de você para fazer uma lista de locais que devemos visitar e dos passeios que nós não podemos perder.

Ele desconfiou que ela o incluíra no “nós”. Antes que o jantar do dia seguinte se encerrasse, Henrietta teria sua agenda completamente preenchida com formas como ele poderia “ajudar”.

Era tudo culpa da Srta. Welbourne. Ela o distraíra e ele baixara a guarda. Se ela o deixara à mercê de Henrietta somente com um sorriso, era uma sorte ela o odiar e não sorrir com frequência.

Ele se despediu e recebeu um adeus frio da Srta. Welbourne em meio às despedidas efusivas de Henrietta. Ao deixar a casa, Henrietta estava seguindo a governanta para ver os outros cômodos e Caroline se esgueirava à procura da sala de música.

O que significava que a Srta. Welbourne tinha sido a única a de fato vê-lo partir.


Paciência. Alexia disse para si mesma. Lembre-se do seu lugar. Engula as palavras antes de expressar o que você pensa.

Ela se sentou à mesa da sala de jantar com Lady Wallingford, Caroline e lorde Hayden. Manter-se em silêncio durante esses jantares se mostrou uma tarefa fácil, porque Lady Wallingford não parava de falar com o sobrinho. Nas duas últimas refeições em que tinha estado presente, ela o persuadira a contar todas as fofocas que corriam pela cidade, com descrições completas dos personagens importantes. Esta noite ela o estava pressionando a levá-la ao Museu Britânico.

Lorde Hayden olhava com frequência em direção a Alexia, como se esperasse que ela interrompesse a conversa e o salvasse de sua tia. Ela não se mostrou inclinada a fazer isso. Era uma criada, afinal de contas. Não lhe cabia fazê-lo, não era verdade? Ele estava sendo óbvio demais também. Parecia ignorar a tia todas as vezes que desviava a atenção daquela forma.

Ele tratava a tia com uma firmeza afetuosa que sugeria que a considerava distraída demais para ser responsabilizada por seus excessos. Aparentemente não apreciava por completo a sua personalidade. Em apenas uma semana, Alexia descobrira que as maneiras frívolas e despretensiosas de Lady Wallingford escondiam um tipo muito feminino de astúcia.

– Será mais instrutivo para Caroline se você nos levar, Hayden – disse Lady Wallingford. – Sou ignorante em história antiga e nunca conseguiria explicar a importância dos artefatos. – Ela lhe deu um sorriso que derreteria aço. – E Caroline não conhece muito bem você e seus irmãos. Nem você a conhece, agora que ela não é mais uma criança.

Caroline ficou vermelha até as orelhas. O olhar astuto da sua mãe lhe deu uma deixa. Caroline forçou um sorriso esperançoso.

– Seria maravilhoso visitar o museu com você, Hayden. Se puder dispor de tempo para nós.

Alguns minutos depois, Lady Wallingford pegou o sobrinho em sua rede. Na semana seguinte ele iria acompanhá-las ao museu.

Alexia se divertia vendo a nova patroa manipular esse homem orgulhoso e severo. Ele nem parecia perceber o maior desejo da tia, que era o de fisgá-lo de vez.

– Agora temos que decidir sobre a modista que fará o vestido da apresentação de Caroline – disse Lady Wallingford. – Ouvi falar que existe uma madame Tissot que é uma maravilha e também que a Sra. Waterman serviria. O que nos aconselha, Hayden?

– Eu não entendo disso, mas a Srta. Welbourne as ajudará, espero.

Todos os olhares se voltaram para ela, vencendo suas intenções de permanecer uma mera sombra no canto da mesa.

– Se eu tivesse que escolher, com certeza seria madame Tissot – disse ela.

A Sra. Waterman tinha sido a modista escolhida para fazer o guarda-roupa de Irene Longworth para sua apresentação. Caroline agora vivia na casa de Irene e até dormia na cama de Irene. Por nada neste mundo Alexia permitiria que também ficasse com os vestidos feitos para Irene, se pudesse impedir.

A rispidez de sua reação advertiu-lhe que ela ainda não tinha definido sua situação. Os ressentimentos afloravam em ocasiões como essas. Ter que partilhar a refeição com lorde Hayden também deixava parte de sua alma fervilhando. Aceitar sua atenção arrogante, combater sua aura dominadora, parecia uma perspectiva cruel. Ela esperava que ele demonstrasse mais força de caráter no futuro e declinasse os convites da tia para jantar.

– Antes que encomende qualquer vestido, precisamos ter uma conversinha, tia Henrietta.

– É claro – concordou Lady Wallingford, sua expressão tornando-se obediente e respeitosa. – A própria Caroline insistiu em limitações estritas de custo. Ela é muito mais sensata do que eu nessa área, não é, querida? O homem que se casar com ela vai achar bem mais fácil controlar seus gastos do que os da maioria das outras moças.

Caroline enrubesceu de novo. Seu primo não percebia a isca que pairava acima dele, apenas deu um sorriso vago em aprovação.

A refeição terminou e, com a agenda de lorde Hayden adequadamente preenchida, todos se dirigiram para a sala de estar. Ao chegar à porta, Lady Wallingford anunciou um novo plano.

– Hayden, você daria licença a mim e a Caroline por um instante? Ela tem uma surpresa para você e preciso ajudá-la. A Srta. Welbourne vai entretê-lo enquanto preparamos um passatempo.

E assim Alexia se viu sozinha, sentada em frente a lorde Hayden na sala de estar, em uma situação parecida com a de sua primeira conversa.

– Pode me dar uma dica sobre qual será esse passatempo? – perguntou ele, esticando as pernas de maneira muito informal.

Ela não era nenhuma parenta dele; dispensava tal atitude de familiaridade.

– É um mistério para mim.

– A senhorita é a preceptora dela.

– Acho que isso foi planejado antes da chegada delas. Que eu saiba, não houve ensaios ao longo da última semana.

Ele a olhou daquela forma direta e desconcertante que adotara.

– Então não deve mesmo ter havido nenhum. Tenho certeza de que nada lhe escapa, Srta. Welbourne. Por exemplo, já deve ter percebido que a querida tia Henrietta tem planos para Caroline e eu que vão além de visitas a museus.

– É verdade? Que afortunado!

A consciência dele das intenções de Henrietta arrasaram suas fantasias. Ela tivera esperanças de vê-lo nadar arrogantemente contra a correnteza só para no fim morrer na praia, sob os saltos de Henrietta.

– Ajudaria muito se desestimulasse esses planos.

– Não imagino como. Além disso, vocês formariam um belo casal.

– A senhorita pretende se aliar a tia Henrietta contra mim, não é?

– Nós, mulheres, somos como irmãs nesses assuntos, senhor. E realmente gostamos de ver o poderoso perder.

– A senhorita fala como se eu não tivesse chance – disse ele rindo.

– Tenho esperanças de vê-lo estripado, descamado e na frigideira até junho.

O humor fez os olhos de Hayden brilharem. A diversão o transformara. Não parecia mais tão rígido. Forte, sim, mas não rígido.

– Um peixe? Está me comparando a um peixe? Poupe-me alguma dignidade, Srta. Welbourne. Uma raposa caindo na armadilha, um touro vencido por um toureiro. Há muitas analogias à disposição, mas um peixe é cruel demais.

Ela sorriu sem querer.

– Achei a imagem muito convincente.

Apesar de ainda sorrir, ainda... atraente, a conduta dele ficou mais séria.

– Se a senhorita se recusa a desestimular minha tia, então está certo. Mas faça o que puder para evitar que a garota aceite as ideias da mãe. Não gostaria de vê-la magoada ou desencorajando pretendentes por conta desse esquema. Não há a menor possibilidade de eu me casar com minha prima.

– Por que não?

O sorriso dele foi firme o bastante para dar a entender que Alexia tinha ido longe demais. Não havia novidade nisso e ela não retirou a pergunta.

– Ela é uma criança – disse ele.

– Todas elas são. As igrejas estão cheias de noivas meninas, já que se considera encalhada uma mulher solteira de 22 anos.

– Não pretendo me casar no futuro próximo, menos ainda com uma criança. Essas meninas têm ideias muito frívolas e românticas, o que obriga os homens a fingir fraqueza e sentimentalidade. Além do mais, ela é minha prima. Sei que esses arranjos são comuns, mas são uma prática doentia que não aprovo.

Doentia?

– Benjamin Longworth era meu primo. Não gosto da ideia de que meu amor por ele seja doentio.

Hayden empalideceu.

– É claro que não. Desculpe-me, Srta. Longworth. Às vezes sou muito sem jeito ao expressar minhas ideias.

Seguiu-se um silêncio breve e desconcertante.

– É claro que não tínhamos convivência quando éramos mais jovens – disse ela. – Ele não me conheceu quando eu era garota...

– Sim, exatamente. Então entende por que um casamento com Caroline é... impossível.

Ele encerrou o assunto se levantando e caminhando sem rumo pela sala.

– Quando a senhorita conheceu Benjamin?

A pergunta foi feita casualmente, enquanto ele examinava uma cena doméstica pintada por Chardin. O quadro tinha vindo com vários outros após a partida dos Longworths, um empréstimo da coleção de Easterbrook para cobrir as paredes vazias.

– Quando me juntei a eles aqui em Londres. Eles viviam em Cheapside na época. Escrevi-lhes sobre minha situação depois que meu pai morreu e Ben me respondeu dizendo que deveria vir. Ele foi muito gentil.

Gentil e alegre. O mundo se iluminava quando Ben estava por perto. Ele inspirava uma leveza de espírito, muito diferente do homem que estava em sua companhia no momento, que a deixava com raiva e na defensiva o tempo todo.

– O senhor disse que se conheceram quando eram garotos. Como ele era quando jovem?

– A maturidade não mudou sua personalidade. Ele era igualmente impulsivo e despreocupado quando garoto. E fazia muitas travessuras.

– Quer dizer que ele foi um menino levado.

– De uma forma positiva. Todavia... O garoto, assim como o homem, não pesava as consequências de seus atos.

– É porque Ben vivia o momento. Ele não planejava nada. Contava com a sorte de que tudo desse certo no fim.

Ela amava isso nele. Amava como se sentia livre e quase inconsequente na presença de Ben. A vida a forçara a se tornar tediosa e sensata, até que os sorrisos dele a aqueceram em seu último ano juntos.

Ele lhe devolvera a juventude por um curto espaço de tempo e ela ainda ocultava aquela garota renascida e cheia de vida no mesmo lugar em que guardava as lembranças de Benjamin.

Rothwell tinha se virado e estava olhando para ela. Ele parecia rígido de novo e seus olhos azul-escuros demonstravam quão profundamente ele a avaliava. Ben nunca olhava para as pessoas daquela forma.

Ela sustentou o olhar. Foi um erro. A conexão a deixou em desvantagem, assim como acontecera no hall na semana anterior, quando ele chegara com a tia. O olhar dele era penetrante demais, enxergava demais. Ela sentiu como se ele estivesse lendo seu coração.

Alexia reagiu como acontecia com frequência diante desse homem. Parecia com a forma como Ben a fazia sentir, só que com tintas mais intensas. A atenção que ele lhe dispensava flertava com o perigo. O estímulo que lhe provocava causava tremores de medo.

Ela estremeceu. Disse a si mesma que estava com os pés firmes no chão. Mas a verdade sussurrava o contrário em seu coração. Ela era impotente para desviar o olhar, para rejeitar aquela excitação.

– Imagino que a vida não era enfadonha quando vivia nesta casa – disse ele.

Ela se sentiu corar. Era como se ele tivesse visto aqueles beijos roubados nas suas lembranças e agora se referisse a eles.

Ele parecia prestes a falar de novo, mas foi interrompido. Um lacaio apareceu para dizer que eles eram aguardados na biblioteca.

– Parece que o passatempo está pronto – disse lorde Hayden.

Ele a acompanhou até a outra sala. A proximidade do corpo dele a fez pensar na volta de reconhecimento que haviam feito pela casa. E isso não ajudou em nada a combater o estranho poder que ele exercia sobre ela.

– Gosto de falar sobre Benjamin com o senhor – disse ela ao entrarem na biblioteca. – Espero que algum dia me divirta com casos sobre seu tempo na Grécia ou a juventude dele.

– Certamente, Srta. Welbourne.

Um pequeno palco armado aguardava por eles na biblioteca. Duas colunas baixas flanqueavam um pano azul esticado no chão. Um tecido branco pendia ao fundo, preso nas prateleiras de livros. O cenário improvisado mostrava uma pintura de montanha e de um templo com colunas.

Lady Wallingford estava de pé ao lado. Ela indicou que eles se sentassem em duas cadeiras dispostas diante do pano azul.

Ela bateu palmas para chamar atenção. Outra palma e a representação começou.

Caroline surgiu de trás do cenário. Estava usando uma roupa ao estilo grego, que deixava seus braços de fora e mostrava um pouco de seu quadril e muito da sua pele no pescoço e colo. A mãe prendera seu cabelo para cima, dando-lhe um ar mais maduro, e até maquiara levemente seu rosto jovem.

Caroline estava muito bonita, muito adulta – quase infame.

Alexia esticou o olhar para lorde Hayden, para ver sua reação. Pegou-o discretamente olhando de volta para ela.

– E eu que achava que as tinha sob controle, Srta. Welbourne – sussurrou ele. – Parece que minha tia não pretende esperar até junho para me fritar.

A bela isca de Lady Wallingford se posicionou entre as duas colunas e começou a recitar uma passagem da Ilíada.


CAPÍTULO 5

Usando um vestido velho e envolta num longo xale de lã, Alexia se refugiou na biblioteca. Acendeu a lareira, deitou-se no sofá ao lado e apoiou na barriga um livro aberto.

Silêncio. Liberdade. Um fogo aconchegante e horas de privacidade. Fechou os olhos e saboreou a sensação de retorno a um mundo que conhecia bem. A chuva que batia suavemente no vidro das janelas só melhorou a sensação.

Tinha sido brilhante pedir a lorde Hayden uma folga por semana. Ousado também. Nunca imaginou que seu pedido pudesse ser atendido; ficou até espantada quando lorde Hayden cedeu. Talvez ele de fato se sentisse um pouco culpado em relação aos Longworths. Não havia outra explicação.

Era um ponto a favor dele, mas ela não desperdiçaria tempo avaliando seu caráter. Planejava aproveitar ao máximo essas horas sem Lady Wallingford e Caroline – principalmente, sem o próprio lorde Hayden. Ele estava sempre pelo caminho, fazendo visitas de dia ou jantando à noite. O homem era jovem, solteiro e rico. Com certeza tinha coisas melhores para fazer do que visitar a tia.

Ela sorriu para si mesma. Sem dúvida que tinha. Entretanto, sua tia possuía a excepcional capacidade de requisitar sua presença e faltava nele a habilidade necessária para escapar de suas maquinações. Alexia desconfiava de que sua analogia com o peixe tinha sido inapropriada. Rothwell não estava sendo seduzido com uma isca. Henrietta fixara um anel no nariz dele e o estava lenta e implacavelmente levando para o matadouro.

Ela riu ao pensar nessa imagem. Contudo, enquanto um minotauro era arrastado pela corda de Henrietta, a fantasia se transformou. De repente, ela o viu de pé ao lado da jovem Caroline numa igreja.

Seu júbilo se desfez e ela examinou a cena em sua cabeça. Não seria um casamento com amor. Ela duvidava se havia algum romantismo nele. Caroline imaginaria que sim, pois era jovem e impressionável. Quando essa ilusão se desvanecesse, já teriam se adaptado um ao outro. Caroline teria o que a maioria das mulheres almejava: segurança, apoio e, quem sabe, gentileza.

O quadro mudou de novo e Rothwell não estava mais na igreja. Em vez dele, surgiu Benjamin. E Alexia já não observava tudo olhando de cima: estava ao lado dele. Por um instante, a alegria encheu seu coração, como se a cena fosse real.

Ela afastou a imagem da cabeça com um arrependimento melancólico. A vida nem sempre era como se desejava. Às vezes era preciso se contentar com menos do que fora sonhado.

O livro chamou sua atenção. Normalmente leria Walter Scott em seu quarto, onde ninguém poderia ver. Não era o tipo de literatura séria esperada de uma preceptora. Não tinha sido incluído na lista que ela dera a Caroline como parte de suas lições.

Embrulhada e aconchegada, permitiu-se a libertação temporária de viver em um mundo de homens arrojados e mulheres impressionantes, de paixões fortes demais para estarem no mundo real e de romances dramáticos demais para serem verdade.


– Irc.

O rosto de Caroline se torceu de nojo, mas ela se aproximou da cabeça de abutre preservada em álcool. De todos os artefatos eruditos atulhados na coleção do museu em Montagu House, esse grotesco espécime só não era mais popular do que a múmia egípcia e o porco com cara de ciclope conservado em salmoura.

Hayden sorriu com a fascinação e a repulsa infantis. Era revoltante pensar que ela provavelmente estaria casada dali a um ano. Não aprovava que meninas tão novas fossem oferecidas a pretendentes, e não só porque o casamento precoce de sua própria mãe tivesse sido tão trágico.

– Agora temos que ver as peças de mármore – arrulhou Henrietta, puxando a filha da multidão que observava o abutre.

Por duas vezes Hayden já desviara a atenção delas para que esquecessem os mármores de Elgin. Ele se lembrava perfeitamente de como a tia vestira Caroline para sua apresentação da Ilíada e imaginava por que Henrietta se mantinha tão inflexível quanto a ver as peças de mármore. Pouco tinha a ver com o fato de serem uma mostra magnífica da arte grega.

– Não creio que a Srta. Welbourne fosse considerar apropriado a Caroline ver as esculturas em mármore – disse ele.

– Sou mãe dela; a decisão cabe a mim. Contudo, a Srta. Welbourne a instruiu a vê-las. Falou tão bem desses trabalhos que também tive vontade de revê-los.

– Se ela foi tão categórica, deveria ter nos acompanhado na visita.

Ele só descobrira que a Srta. Welbourne tinha optado por tirar folga naquele dia quando chegara para pegar as damas. Ela o deixara à mercê de Henrietta, enquanto se divertia na cidade, sabe lá Deus fazendo o quê. Teve ímpetos de mandar chamá-la e ordenar que entrasse em sua carruagem imediatamente e que escolhesse outro maldito dia para descansar.

A tia o arrebanhava na direção que desejava que ele seguisse.

– A Srta. Welbourne disse que as esculturas estão em um pequeno prédio à parte. É por aqui, não?

Saíram de Montagu House, enfrentaram a chuva e entraram no anexo que abrigava as esculturas que lorde Elgin retirara do grande Parthenon em Atenas.

– Você não deve ficar chocada, Caroline – instruiu Henrietta. – Grandes artistas tomam liberdades que podem parecer escandalosas, mas a arte ocupa um plano mais elevado da experiência. Além disso, essas peças são muito antigas, de uma época anterior à era cristã.

Hayden suspeitava de que, na verdade, a intenção da tia era causar espanto em Caroline. Essa história de plano mais elevado era lorota. As figuras masculinas no salão estavam praticamente nuas. Sua tia estava realizando uma forma disfarçada de iniciação e a presença dele era inadequada.

Tia Henrietta queria isso também. Ela desejava que a filha visse as estátuas e ficasse se perguntando o que haveria por baixo das vestimentas do futuro marido ao seu lado.

Se a Srta. Welbourne tivesse vindo, poderia ter dado uma aula de arte para Caroline, enquanto ele se manteria à sombra. Conjecturou se Henrietta tinha decretado que a preceptora ficasse em casa, para que ele não tivesse essa opção. O mais provável era que a Srta. Welbourne houvesse desconfiado do plano e dado uma mãozinha para sua tia.

Ele pretendia conversar com a Srta. Welbourne a esse respeito. Muito em breve.

Pararam em frente às métopas que mostravam a batalha entre os lápitas e os centauros. Hayden contou a história exibida ali. Henrietta analisou os aspectos artísticos.

Caroline olhava com curiosidade para os corpos masculinos nus. Seguiu-se um silêncio curto e constrangedor durante o qual Hayden se esforçou para manter toda a compostura.

O cenho de Caroline se franziu.

– Estão todas quebradas. É como se tivessem cortado fora as cabeças e os braços com espadas. Não imagino por que essas obras estão em exposição, muito menos por que são famosas.

Hayden quase respondeu que não era assim que os corpos ficavam quando decepados. A imagem bizarra invadiu sua cabeça e sua alma se entristeceu. Voltou a atenção para as damas a fim de conseguir controlar a sensação ruim.

– Trata-se da escultura das formas, querida. É por isso que são tão apreciadas – disse Henrietta. – Os dorsos, coxas e quadris...

– Não gosto nada disso.

– Outras pessoas compartilham suas críticas, Caroline – disse Hayden. – Muitos só começam a apreciar a arte grega depois de um tempo. Já ouvi dizer que as mulheres passam a gostar mais desses mármores conforme vão ficando mais velhas.

Ele indicou o caminho dessa vez, para fora do anexo.

– É uma pena a Srta. Welbourne ter ido visitar amigos em vez de nos acompanhar – comentou Hayden. – Tenho certeza de que ela seria capaz de explicar os aspectos artísticos para além do meu nível de sensibilidade.

– Ela não tirou folga para visitar amigos – disse Caroline. – Ela pretendia ficar em casa para cuidar de assuntos pessoais. Escrever cartas, coisas assim.

Isso não melhorou seu humor. Ele passaria mais algumas horas nesse passeio, enquanto a Srta. Welbourne escapava de suas funções para escrever cartas. Cartas de amor, era provável, para o falecido Benjamin Longworth.

Ela só se alegrava quando o nome de Ben era mencionado. Transformava-se em outra mulher. A lembrança de seu antigo amor a remoçava como por encanto. Isso era doentio! Também era um amor construído sobre mentiras. Mais uma vez Ben tinha agido por impulso, sem medir as consequências.

Ben nunca pretendera se casar com Alexia Welbourne, independentemente do que ela havia sido levada a acreditar. Estava atraído por uma jovem abastada e de família aristocrática muito antes da viagem para a Grécia. A própria ideia de lutar na guerra tinha sido uma forma de executar atos heroicos que impressionariam a tal jovem rica e inatingível.

Henrietta interrompeu seus pensamentos sugerindo que visitassem a biblioteca do museu. Hayden vislumbrou mais uma hora bancando o professor.

Quando abriu a porta, avistou um rosto familiar. Seu irmão Elliot estava sentado a uma mesa, examinando um grande manuscrito. Elliot retornara à cidade na noite anterior, vindo das bibliotecas de Cambridge, e já estava ali.

– Espere aqui, tia Henrietta.

Hayden deixou as duas na porta e andou na direção do irmão. Elliot estava tão absorto que foi preciso tocar seu ombro para chamar sua atenção.

A basta cabeleira escura foi jogada para trás. Elliot olhou através dos óculos. Sua mente refez seu caminho de volta do lugar aonde o manuscrito o levara.

– Hayden. Que surpresa!

– Será, com certeza. Venha comigo. Se fizer alguma objeção, vai se ver comigo.

Confuso, Elliot se levantou e o seguiu sem apresentar resistência.

– Vejam quem encontrei estragando os olhos em um denso tomo latino – anunciou Hayden.

Saudações cordiais se seguiram. Elliot vivia perdido no passado histórico, mas podia ser bem charmoso, quando queria. Caroline ficou envaidecida com os elogios de como estava crescida e bonita e como logo seria assediada por vários pretendentes depois de sua apresentação à sociedade.

– As damas gostariam de conhecer a biblioteca e saber de suas preciosidades, Elliot.

– Ficaria feliz em mostrar-lhes a coleção. Há muitas raridades que são ao mesmo tempo belas e instrutivas. Há também os projetos do arquiteto Robert Smirke para o novo prédio do museu, que está em construção.

– Que ideia esplêndida – disse Hayden. – Deixo-as em suas hábeis mãos.

Henrietta não ficou nada satisfeita.

– Mas, Hayden, achei que você...

– Tenho um compromisso esta tarde e logo teria que me despedir de vocês, de qualquer forma. Agora podem apreciar a biblioteca sem pressa. Elliot é muito mais qualificado para dar essa aula do que eu. Mostre-lhes tudo. Elas têm o dia inteiro.

Ele concluiu sua fuga. Seria improvável que a tia e a prima aparecessem em casa antes do jantar. Ele deixou a carruagem esperando por elas e saiu para procurar um cabriolé de aluguel.

Ele não mentira. Realmente tinha compromissos nesta tarde. Mas não nas próximas horas. Tinha que ir a outro lugar antes de seguir para o centro financeiro e tratar de negócios.


Ela emergiu de um sonho. Mesmo ao flutuar rumo à consciência, sabia que tinha tirado uma soneca sem querer. Algo a puxara de volta à superfície. Não fora um som. Uma sensação de perigo a arrancara do sono.

Abriu os olhos. A primeira coisa que viu foram outros olhos, de um azul tão escuro que surpreendiam. Avistá-los causou um eco em sua alma: tinha acabado de vê-los no sonho que agora se apagava nas brumas das memórias mais profundas.

As visões e odores do mundo real afastaram rapidamente o sono que restava, deixando-a cara a cara com lorde Hayden Rothwell.

Ele parecia muito alto em pé diante dela. E muito sério também, com uma pequena ruga a lhe marcar o cenho. Provavelmente desaprovava que criados dormissem no sofá da biblioteca.

Ela deu um salto e se sentou.

– Sua tia já voltou?

– Deixei-a com meu irmão Elliot na biblioteca.

Ele pairava sobre ela. Essa proximidade a deixava nervosa.

Isso a incomodava. Mesmo nas ocasiões em que conversavam informalmente, mesmo quando se deixava encantar por ele, esquecendo o motivo de odiá-lo tanto, aquela inquietação incômoda persistia.

Ela não deveria ter que tolerar isso hoje.

– Dei ordens a Falkner para que ninguém entrasse neste recinto.

– Os criados nunca imaginariam que tal ordem me incluiria. Na cabeça deles, sou o patrão desta casa e dono de tudo aqui dentro.

Ele não se moveu, como se enfatizasse que seu poder sobre “tudo aqui dentro” significasse que era dono dela também.

– É assim que pretende aproveitar as folgas que me persuadiu a lhe conceder? Lendo perto da lareira?

– Este é meu dia. Sou livre para fazer o que quiser. Se esperava um relatório, deveria ter me dito.

Ela queria que Hayden fosse embora. Ele estava estragando tudo.

– Então, por algumas horas, viverá aqui como outrora e tratará esta casa como se fosse seu lar de novo. Não havia compreendido o significado real da palavra “livre” quando a usou.

As palavras atingiram o coração de Alexia, ressoando em toda a sua verdade. Ele a compreendia melhor do que ela mesma. Entendia por que essas horas tinham sido tão deliciosas.

Tinha mais um motivo para odiar aquele homem agora. Levantou seu olhar para ele.

– Por que está aqui?

– Para vê-la.

Seu olhar mudou. Viu-a da cabeça aos pés, com o velho vestido verde e o grosso xale de lã. Alexia deveria ficar constrangida por suas vestimentas simples, mas naquele momento elas pareceram convenientes e... seguras.

– Também vim para conversarmos, de forma que entenda o que preciso que faça.

– Conheço minhas funções.

– Parece que não. Esperava que acompanhasse minha prima hoje.

– Como ela estaria acompanhada do senhor e da mãe, não havia necessidade que eu fosse. Sua tia concordou.

– Nós dois sabemos por que minha tia não quis que a senhorita fosse conosco. Assim ela poderia empurrar a menina mais facilmente para cima de mim.

– As intenções de sua tia em relação ao senhor não me dizem respeito. Escolhi este dia de folga com cuidado, de forma a não interferir nas aulas de Caroline.

– Acho que escolheu este dia para me evitar.

Mais uma vez, suas palavras ressoaram dentro dela.

– Talvez sim. O senhor tem sido uma presença mais constante nesta casa do que eu esperava. Para mim é muito árduo reunir as forças necessárias para manter a elegância.

A expressão dele se fechou de uma forma que ela conhecia bem. Ela estava sendo novamente ousada demais. Mas não se incomodava. Era seu dia de folga e isso significava, antes de qualquer coisa, que poderia ficar livre dele.

– De agora em diante, quando eu acompanhar minha prima e minha tia, a senhorita irá conosco.

– Não recebo ordens suas sobre minhas obrigações. Cabe à sua tia decidir, não ao senhor.

– A senhorita estará lá – disse ele com firmeza.

Ela cerrou os dentes e olhou para o fogo, ignorando Hayden o máximo possível. Mas ele já devia estar de partida. Depois de ter decretado a nova lei, não havia motivo para permanecer ali.

Ele não foi embora, mas, pelo menos, se afastou. Infelizmente, ficou mais perto da lareira, assumindo uma posição que exigia que ela olhasse para ele. Alto, forte e moreno, ele penetrava seu campo de visão e sua mente.

– A senhorita estava sorrindo enquanto dormia – disse ele. – Estava sonhando com ele, Ben?

– Não sei.

Um par de olhos a encarou das profundezas de sua memória.

– Acho que não, mas talvez sim – concluiu ela.

– Ele era meu amigo e tenho uma dívida com ele, mas...

– Espero que nunca tenha uma dívida comigo, pois sei muito bem como faz o ressarcimento.

Ela alcançou seu intento com essa frase. A reação dele fez sua nuca formigar. No entanto, junto com a precaução vinha uma enxurrada das outras sensações que aquele homem sempre lhe provocava.

– Ele morreu há três anos – disse Hayden. – Talvez devesse esquecer essa fixação.

A raiva lhe subiu à cabeça, fazendo-a deixar a prudência de lado. Levantou-se.

– Minhas lembranças são muito caras para mim, mas não são uma fixação.

– Na noite em que Caroline fez a apresentação da Ilíada, a senhorita falou do seu amor no presente do indicativo.

– Tenho certeza de que não fiz isso.

– Fez, sim, e está perdendo seu tempo.

– O senhor está sendo impertinente. Esta conversa seria despropositada mesmo que fosse um amigo íntimo, o que certamente não é. Não toleraria essas especulações intrometidas de um parente, imagine do senhor.

Ele se aproximou dela. Ela quase deu um passo para trás, mas sua raiva ignorava a prudência.

– A senhorita não terá um futuro, a menos que o deixe ir embora.

Alexia teve que vergar o pescoço para olhar para Hayden. Ele mais uma vez tentava impor sua presença e sua vontade. Gostava de fazer isso. Alexia queria poder bater nele pelo que lhe causara. Sua pulsação se acelerou e suas têmporas pareciam explodir.

– Como ousa falar do meu futuro? O senhor, entre todos os homens? Ele já era pouco promissor o bastante há um mês. Eu não tinha fortuna nem beleza, mas, pelo menos, tinha uma casa e uma família. É ultrajante de sua parte tocar neste assunto comigo.

Ele aceitou suas acusações sem comentários. Alexia percebeu a raiva em seus olhos, que se equiparava à sua própria. Mais do que nunca era necessário ter cautela, no entanto, Alexia a jogou pelos ares.

– Existem homens que veem além da fortuna. E sua beleza é suficiente.

Considerando sua expressão intensa e séria, a voz dele soou muito calma.

– Agora o senhor está sendo cruel.

– Seus olhos são magníficos. Hipnotizantes. E refletem seu espírito indomável.

O elogio a deixou sem palavras. A raiva enfraqueceu. Em um esforço de reunir os pensamentos espalhados com o choque, ela ficou tentando desesperadamente se recompor.

Hayden deu mais um passo em direção a ela. Alexia não percebera sua aproximação antes, mas ele estava muito perto. Perto demais. Olhou dentro dos olhos dele. Era ela a hipnotizada agora.

Um toque aveludado em seu queixo. Ele a estava tocando. Um tremor pulsou sob os dedos dele e se espalhou para o colo de Alexia. Ela deveria...

– Sua pele é maravilhosa – disse ele, afagando-a de leve.

O toque suave, tão surpreendente e íntimo, deixou-a sem fôlego. O olhar dele baixou.

– E sua boca, Srta. Welbourne, sua boca é tão linda que duvido que um dia a senhorita possa entender quanto.

Ele olhou nos olhos dela outra vez e de novo a surpreendeu. Seu olhar queimava, cheio do perigo que percebera desde a primeira vez que o vira.

Com os olhos arregalados de espanto, ela notou a decisão repentina de Hayden. Foi tão absurdo que ela não acreditou em seus instintos.

A boca de lorde Hayden encontrou a de Alexia. Quente, firme, autoritário, o beijo levou a uma sequência de susto e maravilhamento. Sua cabeça era uma confusão só. Em algum lugar no meio de suas reações caóticas, a Alexia prática dava ordens sensatas sobre o que fazer, mas ela estava deslumbrada demais para obedecer.

Ela reagiu sem acanhamento. Sentindo que um calor premente percorria seu corpo todo, pulsando e fervilhando em seus seios, seu ventre e mais abaixo. A excitação se tornou física, ameaçando tomá-la por completo. Correntes de prazer a seduziam a ponto de abandonar-se.

As sensações a encantaram. Ele a abraçou e ela se rendeu. Era uma intimidade tão deliciosa que Alexia gemeu silenciosamente em agradecimento. A força que a segurava, o corpo firme pressionando o seu, o calor intenso da boca beijando seus lábios, seu pescoço, seu peito... Uma Alexia nem um pouco sensata se revelou no estímulo sensual e acolheu a torrente de paixão.

Os beijos pararam. Dedos firmes e viris seguravam seu rosto. Ela abriu os olhos e encontrou lorde Hayden observando-a. O desejo transformava a severidade dele. Mesmo sua rigidez ficava sedutora.

Ele a beijou de novo e uma batalha começou a ser travada dentro de Alexia. Ela vira muitas coisas em seus olhos. Os pensamentos que fervilhavam na mente dele. Também percebeu a impressão que dava naquele momento: era uma mulher se submetendo a um homem de quem não gostava e em quem não confiava. Uma solteirona solitária aceitando as atenções de um qualquer.

Alexia recobrou um pouco do equilíbrio perdido, mas não queria abrir mão de se sentir tão viva. Não queria perder aquele contato físico. Mesmo quando suas mãos empurraram o peito dele, tentando se soltar, grande parte dela queria se fundir nele, não importando quem ele era, nem a vergonha que adviria.

Ela viu e sentiu cada instante a seguir – o relaxamento da pegada dele, o lento desmanchar de seu abraço, o afastamento de seu toque – e seu corpo reagiu a cada perda.

Alexia se afastou rapidamente rumo à janela. Incapaz de encará-lo, olhou para fora. Tentou se aprumar para parecer normal quando saísse da biblioteca. Assim que seu bom senso retornou, uma forte sensação de humilhação a invadiu.

Esperava que lorde Hayden tivesse a bondade de sair. Ele não teve. Ela pensou que ele pelo menos iria se desculpar. Ele nada disse. Sentiu que ele a olhava. Isso só piorou as coisas. Se ele fosse embora, ela poderia maldizer sua própria fraqueza e a crueldade dele. Enquanto ficasse, ela continuaria trêmula e envergonhada, perturbada demais para se recompor.

– Isso não foi muito honroso de sua parte, lorde Hayden.

– Não.

Ele não parecia arrependido. Seu tom parecia dizer: Talvez não, mas eu faço o que quero.

– Sei por que fez isso – disse ela. – Sei o que deve estar pensando a meu respeito.

– Então a senhorita sabe muita coisa.

A voz de lorde Hayden Rothwell soou mais próxima. Alexia percebeu que ele tinha vindo em sua direção. Parara a menos de um metro dela. Para seu espanto, a excitação e o perigo começaram a enfeitiçá-la de novo. Seu coração começou a bater mais pesado e mais lento.

– O que penso da senhorita? Como não tenho certeza, uma explicação sua seria muito útil.

Um homem decente teria se desculpado e ido embora.

– Ben e eu não éramos tão íntimos. O senhor interpretou mal.

– Não estava pensando nisso, de forma alguma. Meu único pensamento foi que a senhorita precisava ser beijada.

Ela se virou determinada a colocar um fim na maneira como brincava com ela. Seu coração falhou ao vê-lo, mas ela conseguiu pôr aquela excitação de adolescente em seu devido lugar.

– Não pelo senhor. Não sou a criada de quem o lorde pode se aproveitar. Peço-lhe que se lembre disso no futuro.

Ele a olhou direto nos olhos, como sempre, só que agora seu olhar refletia aqueles beijos. Agora seria sempre assim. Dar liberdades a um homem criava uma familiaridade que minava de uma vez por todas qualquer formalidade.

– Não tentei agarrá-la, só a beijei. E não foi de forma tão ousada quanto a senhorita teria permitido.

O rosto dela estava fervendo.

– Agora o senhor está me insultando.

– Não, estou sendo honesto. Mas vou deixá-la a sós, para que finja o contrário.

Com um leve cumprimento, Hayden se dirigiu para a porta.

– Lorde Rothwell, espero que no futuro demonstre o respeito que meu emprego junto a sua prima exige.

Ele parou à porta e virou-se.

– Ainda não me decidi.

– Então permita-me ajudá-lo a se decidir. Não gostei de seu beijo e não deve fazer isso de novo.

Ele abriu a porta.

– Gostou, sim. Acha que um homem não consegue perceber a verdade?


CONTINUA

Uma sombra penetrou cedo na casa junto com o visitante inesperado. Alexia se sentiu perturbada mesmo antes de ver quem era.
Ela descia a escada carregando sua cesta de costura e parou nos degraus ao notar as vozes que conversavam baixo no hall. Mesmo sem entender direito as palavras, compreendeu o tom firme de quem faz exigências. Percebeu que a forma respeitosa como o empregado se opunha de nada servia. Falkner, o mordomo, foi chamado. Diante de um poder silencioso e determinado, as barreiras da casa cediam.
Um mau pressentimento tomou conta de Alexia, como no dia em que aquele homem havia chegado para contar à família sobre Benjamin. Já tivera essa sensação vezes suficientes para saber que não deveria ignorá-la. Más notícias mudam o mundo em um segundo. Mudam o ar. O coração humano pressente que o sofrimento está chegando com tanta certeza quanto um cavalo percebe uma tempestade que se aproxima.
Não conseguiu se mover. Ia se juntar às primas no jardim, para aproveitar o sol da tarde com sua cesta de costura, mas a ideia lhe fugiu da mente.
Um par de pernas surgiu andando na sua direção. Pernas compridas, calça preta e botas elegantes. Elas seguiram o mordomo rumo à escada. Falkner tinha no rosto a expressão de um serviçal que houvesse recebido ordens de um rei.
O tronco do visitante começou a entrar em seu campo de visão, logo seguido dos ombros e da cabeça. Como se sentisse que alguém o observava, ele olhou para cima, para o patamar onde ela se encontrava.

 

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Imediatamente Alexia entendeu a submissão de Falkner. A atitude, o rosto e o porte do visitante intimidariam até quem não conhecesse sua posição social. O cabelo escuro, desarrumado de um jeito que parecia não ter sido penteado naquela manhã, emoldurava o belo rosto de traços angulares e fortes, como se fossem entalhados. Sinais de cansaço obscureciam o azul profundo de seus olhos. Um autocontrole forçado retesava seu maxilar quadrado e sua boca bem desenhada. Lorde Hayden Rothwell, irmão do quarto marquês de Easterbrook, era a imagem do homem exausto mas determinado a cumprir sua dura tarefa. Certamente não viera em resposta aos muitos convites que Timothy havia deixado para Easterbrook em sua residência ao longo do último ano.

Ao se aproximarem, Falkner cruzou os olhos com os dela, expressando seu desânimo. O mordomo também pressentia a tempestade.

Lorde Hayden parou no mesmo patamar da escada em que ela se encontrava e fez um gesto quase imperceptível, cumprimentando-a. Já haviam sido apresentados, mas ele não lhe dirigiu a palavra. Em vez disso, ao levantar o rosto, mediu-a dos pés à cabeça. A avaliação foi tão completa, tão estranhamente interessada, que ela sentiu que corava.

A expressão daquele rosto anguloso se alterou levemente. Como se uma estátua tivesse ganhado vida, os olhos do homem se suavizaram e sua boca relaxou. De súbito, a compaixão o serenava.

Mas, em um piscar de olhos, seu porte severo voltou, expulsando a candura. Alexia, no entanto, vira o bastante para sentir o coração pesar. Reconheceu pena no olhar que ele lhe dirigira. A chegada desse homem não anunciava nada de bom.

– Está levando lorde Hayden para a sala de visitas ou para a biblioteca, Falkner?

Ela estava sendo indelicada, mas não se importava. Com o passar dos anos, aprendera que imaginar más notícias era pior do que efetivamente ouvi-las. Não tinha a menor intenção de ficar esperando, submissa e preocupada.

– Para a sala de visitas, Srta. Welbourne.

Lorde Hayden percebeu suas intenções.

– Por favor, não perturbe a Srta. Longworth com minha presença. Não se trata de uma visita social.

– Não a incomodaremos se não for seu desejo. Contudo, é possível que demore algum tempo até que o Sr. Longworth possa recebê-lo. Podemos ao menos nos encarregar de que o senhor fique à vontade.

Não esperou por aprovação. Deu meia-volta e foi subindo a escada, indicando o caminho para o segundo andar.

Ao chegar à sala de visitas, deixou a cesta de costura de lado e cuidou para que ele ficasse confortável, conforme prometera. Ainda que ele não quisesse, ela se portaria educadamente, como uma anfitriã.

– O tempo está bastante agradável para janeiro, não acha? – perguntou ela após ele ter concordado em se sentar no sofá novo, de um tecido estampado em tons azuis. – O dia até agora está maravilhoso.

As sobrancelhas dele se arquearam um pouco diante da infeliz ênfase no “até agora”.

– Sim, tem feito um calor atípico nos últimos dias – disse ele.

– Acho dias assim cruéis, por mais que os aprecie.

– Cruéis?

– Eles me fazem acreditar que a primavera está se aproximando, quando ainda teremos alguns meses de frio e umidade pela frente.

Por um segundo, uma luz travessa brilhou nos olhos dele.

– Pode não passar de uma ilusão – falou o homem –, mas prefiro me deleitar nessa calidez e me preocupar com o frio apenas quando ele chegar.

A frase pareceu quase imprópria. Ela mudou de assunto fazendo uma observação sobre os feriados recentes. Ele concordava com tudo o que ela dizia. Com muita dificuldade, ela ia levando adiante a desajeitada conversa.

A mente dele não estava ali, mas na reunião com Timothy. O ar na sala de visitas foi ficando pesado. A presença daquele homem fazia pensar que o juízo final estava próximo.

Ela não aguentava mais.

– Meu primo está doente, lorde Hayden. Talvez não consiga se recompor o bastante para recebê-lo. A conversa não pode esperar mais um dia?

– Não.

Foi tudo o que obteve dele. Essa única palavra, dita de modo simples, direto e firme.

Ele voltou sua atenção para longe da conversa, para o nada. E continuou assim, como antes, na escada. Ela se perguntou se ele a consideraria presunçosa por recebê-lo. Não era a dona da casa, apenas uma mera prima. Mas a culpa não era dela se ele estava confinado ali com uma substituta. Fora ele quem não permitira que Roselyn fosse informada de sua presença.

– Talvez, senhor, se eu levasse uma mensagem para meu primo a respeito de sua visita, ele pudesse...

A voz dela foi se dissipando quando ele a encarou como um vigário faz para silenciar uma criança tagarela na igreja.

Ela não se importou com a expressão em seus olhos, que deixava claro que ele percebera o que ela estava fazendo. Hayden Rothwell tinha a reputação de ser inteligente, ríspido e arrogante. Até o momento, ela não poderia discordar dessa avaliação.

Mas também ela não tivera muito tato ao tocar no assunto. Então tentou uma nova abordagem. Como ele era conhecido por sua sagacidade nos negócios, mudou o rumo da conversa para esse tema, tentando deixá-lo mais receptivo a outras perguntas.

– Teve alguma notícia do centro financeiro hoje, lorde Hayden? A crise nos bancos continua?

– Temo que permanecerá por algum tempo, Srta. Welbourne. É de se esperar quando as pessoas têm medo.

– O senhor tem negócios com o banco do meu primo, não é verdade? Está tudo bem por lá, espero.

– Há uma hora, quando saí do centro financeiro da cidade, o Darfield e Longworth permanecia sólido.

– Graças a Deus. Não houve uma corrida ao banco, então. Com tantas outras instituições passando por problemas, fiquei preocupada.

Uma sombra perceptível em seu olhar demonstrava que ele parecia se divertir.

– Não, não houve corrida ao banco.

Isso a aliviou. Várias das grandes instituições financeiras londrinas tinham enfrentado dificuldades no mês anterior. Os jornais estavam cheios de boatos sobre a quebra de pequenos bancos. Aonde quer que se fosse, só se falava em fracasso, ruína e falência. Ela suspeitava de que a atual doença de Timothy se devesse à preocupação com o futuro de seu banco.

– A senhorita tem dinheiro lá? – questionou, parecendo realmente interessado.

– Uma ninharia. Minha preocupação é com meus primos.

Ela conseguira atrair sua atenção com as perguntas sobre a situação financeira do banco. Até bem demais. Ele a olhou de novo, mais demoradamente dessa vez, com uma arrogância casual que demonstrava que ele se sentia nesse direito, algo que homens em posição inferior não ousariam. Aquela avaliação só seria feita por um homem que tivesse plena consciência de seu valor e que, por isso, dispensava algumas regras de etiqueta.

A atenção dele se concentrou intensamente nos olhos dela, observando-a de forma tão perspicaz que ela precisou piscar para se recompor. Lenta e deliberadamente, ele analisou o restante do corpo de Alexia. Ela enrubesceu e uma comichão desconfortável percorreu toda a sua pele. Ele a perturbou de tal maneira que lhe fez lembrar a sensação causada anos atrás pelo olhar de outro homem.

Ficou embaraçada diante da própria reação. Não se julgava alguém que se deixasse abalar por um homem bonito. Não era tola como a jovem Irene. Em silêncio, se censurou por agir como uma solteirona ávida pela atenção de um homem.

Nada na expressão dele indicava que houvesse notado o desconforto dela. Nem ela teve qualquer ilusão de que o interesse do homem fosse desse tipo. Ela sabia o que ele estava pensando. Com seu cabelo castanho e o rosto comum, ela não causava grande impressão. Sem dúvida ele também percebera como os módicos recursos financeiros afetavam sua aparência. Seu vestido não só estava fora de moda como também tinha discretos remendos. O lorde provavelmente estaria vendo cada ponto deles.

– Srta. Welbourne, creio que fomos apresentados no culto a Benjamin – disse ele. – A senhorita é a prima que veio de Yorkshire, não?

Seu orgulho foi atingido por um doloroso golpe. Ele não sabia quem ela era ao entrar naquela sala de visitas. Se não lembrava que já haviam sido apresentados, ele deveria achar incomum o fato de tê-lo recebido, assim como certamente a considerara bastante ousada em sua conversa.

O choque foi seguido pela irritação. A raiva que sentia não era dele, apesar de abrangê-lo mesmo assim, mas tinha origem na situação que a tinha tornado tão esquecível.

– Sim, nos conhecemos no culto em homenagem a Benjamin.

O nome e a lembrança fizeram ecoar uma antiga dor. Tinha sido um culto, não um funeral. O corpo de Benjamin não estava presente, mas perdido no mar. Fazia quatro anos que ele partira da Inglaterra e ela ainda sentia sua falta.

De repente, lorde Hayden não pareceu tão rígido. Uma expressão mais sociável suavizou suas feições belamente esculpidas.

– Eu o tinha como um amigo – disse ele. – Nós nos conhecemos na infância. Sua casa não fica longe das terras de Easterbrook em Oxfordshire.

Timothy sempre mencionava os laços entre Easterbrook e sua família, devidos ao fato de serem vizinhos. Não era uma ligação tão próxima a ponto de que respondessem aos convites de Timothy, é claro. No entanto, se a amizade tinha sido entre Benjamin e Hayden Rothwell, isso explicava algumas coisas, como o motivo da presença de lorde Hayden no culto.

– O senhor também lutou na Grécia, não? – perguntou ela, feliz por tocar em um assunto que o deixava menos severo e que mencionava o querido Benjamin.

– Sim, fui um dos admiradores da Grécia que aderiu à causa deles contra a Turquia. Participei da guerra no início, na mesma época que seu primo. Mas, ao contrário dele e de Byron, tive a sorte de sair vivo dessa aventura.

Ela imaginou Benjamin, sempre otimista, um homem tão cheio de vida e alegria que isso o tornava imprudente. Viu-o lutando como um herói pela liberdade do povo, tendo atrás de si a paisagem de um antigo templo nas montanhas. Ela cultivava essa imagem dele. Como lorde Hayden tinha estado lá com Benjamin, ela já não se importava tanto que ele a tivesse olhado dos pés à cabeça.

Ele estava fazendo de novo, só que agora não era seu vestido que analisava. Era seu rosto e... ela.

– Perdoe-me, Srta. Welbourne. Não quero parecer inconveniente, mas seus olhos têm uma cor incomum. Parecem violeta. É a luz aqui ou já lhe disseram isso antes?

– Não é a luz. A cor dos meus olhos é a única característica marcante que possuo.

Ele não discordou, o que ela considerou deselegante. Ele refletiu sobre a resposta dela e sobre a sua própria.

– Ele falou da senhorita com respeito e afeição. Benjamin, na Grécia. Não disse seu nome. Olhos violeta, no entanto... lembro-me dessa referência. Não percebi no culto que seus olhos tinham essa cor ou teria lhe dito, o que poderia ter-lhe trazido algum consolo naquele momento.

O coração dela se inundou com uma emoção suave e perfeita, apesar da dolorosa saudade que a provocara. Mal pôde se conter e seus olhos se umedeceram. Benjamin falara dela nos dias antes de sua morte. Fizera confidências a esse homem sentado com ela na sala de visitas. Lorde Hayden sabia de seu amor e de seus planos. Alexia tinha certeza disso.

Não ligava mais para o motivo que o trouxera ali. Sua gratidão pela pequena indicação de que Benjamin realmente gostava dela, de que pretendia se casar com ela, foi tão intensa que Alexia seria capaz de perdoá-lo por qualquer coisa naquele instante.

Passou a encará-lo de forma mais amigável. Tratava-se de um belo homem, agora que se permitia reparar. Não era totalmente rígido também. A dureza em volta da boca era culpa das características de sua família. Não se podia culpá-lo se seus ossos lhe davam uma aparência severa em vez de alegre.

– Obrigada por me contar isso. Ainda sinto muitas saudades de meu primo. Emociona-me saber que ele pensava em mim quando estava distante.

Desejou que ele repetisse as palavras exatas que Ben tinha dito. Mas, se ele pretendera fazê-lo, suas intenções foram frustradas. Timothy escolheu aquele exato momento para surgir na sala de visitas.

Timothy parecia bastante adoentado, com o rosto vermelho e os olhos apáticos. Alexia se perguntou se ele não estaria febril. Contudo, seu criado o deixara apresentável, com seu cabelo cor de areia e rosto ansioso despontando sobre casacos e colarinho que demostravam sua tendência a certa extravagância no vestir.

– Rothwell.

– Obrigado por me receber, Longworth.

Alexia se levantou de imediato, despedindo-se. Seu coração ainda estava repleto de felicidade por saber que Benjamin mencionara seus olhos aos seus amigos solteiros na Grécia. Todavia, não conseguia ignorar que um clima de más notícias iminentes impregnara a atmosfera da casa.


Segurando sua cesta, Alexia adentrou o jardim para se juntar às primas. A beleza da hera e do buxo não chegava aos pés de sua exuberância nos dias gloriosos de verão, mas o sol espantava o pior do frio e a falta de vento tornava o jardim um local hospitaleiro.

Roselyn e Irene aguardavam à mesa de ferro, com dois chapéus e sacolas com fitas e aviamentos. Alexia decidiu não mencionar o visitante. Talvez o mau pressentimento que ainda pairava em sua alegria recente fosse apenas uma impressão passageira.

– Você demorou – reclamou Irene, segurando um dos chapéus. – Ainda acho que este aqui não tem salvação e que deveria comprar um novo. Timothy disse que eu poderia.

– Nosso irmão é gastador demais – disse Roselyn. – Se não quisermos que sua apresentação à sociedade nos leve à falência, teremos que ser mais controladas.

– Não é Timothy quem fala em controlar o dinheiro, só você. Nem terei uma grande apresentação, não importa quantos chapéus eu compre – falou e um tom petulante surgiu em sua voz: – Não serei convidada para os melhores bailes. Todos os meus amigos já disseram isso.

– Pelo menos você terá uma apresentação – disse Roselyn. – Certamente é melhor ser irmã de um banqueiro importante do que de um proprietário rural empobrecido. Deveria agradecer a Deus por nossos irmãos terem investido nesse negócio. Se voltássemos para Oxfordshire, você se contentaria com um chapéu novo por ano e o escolheria com mais zelo, em vez de comprar três que não combinassem com você.

Alexia se sentou entre elas, tentando encerrar a discussão. Sendo a mais nova das irmãs Longworths, Irene não entendia a boa sorte que lhes coubera quando, oito anos antes, seu irmão Benjamin decidira investir no banco. A garota só via o que tinha perdido em termos de status, o que não contrabalançava com o luxo que ganhara.

Roselyn, agora com 25 anos, se lembrava muito bem do tempo em que haviam sido obrigados a vender as terras da família em Oxfordshire por causa de dívidas. Em função disso, ela não tivera uma apresentação formal aos homens solteiros na juventude e agora suas chances de se casar eram mínimas. Quando o recente sucesso do banco produziu uma longa fila de pretendentes, ela se mostrou descrente e exigente demais. Alexia suspeitava de que Roselyn se ressentia de que o interesse por ela só surgira após o enriquecimento da família.

– Podemos trocar a fita de cetim rosa por essa amarela – disse Alexia. – E olhe aqui, posso aparar as bordas, para deixar o arco mais perto do seu rosto.

– Vou odiar. Não gosto de chapéus reformados, mesmo que a reforma seja feita por alguém tão habilidoso como você. Fique com ele, se quiser. Pode ficar com o vestido que faz conjunto com ele também, então não terá mais que usar este de cintura alta. Vou avisar à minha criada que ele vai ficar para você, assim ela não o pedirá.

Alexia olhou fixamente para o conjunto de fitas brilhantes e coloridas que cintilava à luz do sol. Irene não era cruel por natureza, apenas jovem e, devido à mão aberta de seu irmão, mimada.

Um silêncio pesado pairou no ar. Irene pegou o chapéu, o avaliou com atenção e o jogou no chão.

– Peça desculpas – ordenou Roselyn em tom ameaçador. – Não vou pensar duas vezes antes de mandá-la morar no interior. Londres está virando sua cabeça e isso não é nada admirável. Está se esquecendo de quem é.

– Ela não está se esquecendo de nada – disse Alexia em um rompante.

Logo em seguida desejou não ter dito aquilo, mas não conseguira conter sua mágoa e seu ressentimento. Respirou fundo, com calma.

– Eu também não me esqueço de quem sou. Só você, por ser tão boa. Todos sabem que dependo desta família, que sou uma parenta pobre que deveria ficar grata por receber aquilo que minhas jovens primas jogam fora. Cada garfada que como é fruto da caridade de seu irmão.

– Oh, Alexia, eu não quis dizer isso... – falou Irene com o rosto contorcido de arrependimento.

– Não é verdade – replicou Roselyn para Alexia. – Você é uma de nós.

– É verdade. Concordei com esta situação anos atrás. Não me importo.

O fato era que se importava. Tentava ignorar, mas isso a desgastava. A humildade e a gratidão que sua situação exigia às vezes lhe escapavam, principalmente porque de início não se sentira obrigada a tê-las.

Sua mudança fora inevitável quando a propriedade da família passou para um primo de segundo grau. Não houve convite para viverem com esse herdeiro, como seu pai supusera. Assim, com 18 anos recém-completados, Alexia fora forçada a escrever para os Longworths, primos pelo lado de sua mãe, pedindo que a deixassem morar com eles. Não levara nada consigo além de vinte libras por ano e seu talento para reformar chapéus.

Benjamin, o primo mais velho, nunca permitira que ela se sentisse um problema para a família, apesar de sua chegada haver coincidido com o início de um novo empreendimento dele, que lhe deixara pouca folga nas despesas daquele primeiro ano. Com o sorriso largo e o bom humor de Benjamin, ela jamais sentia que devesse se mostrar apenas discreta e obediente. Mas depois da morte dele, a realidade de sua dependência ficara clara. Ben dava a ela os mesmos cuidados que oferecia a suas irmãs, ao passo que Timothy a enxergava com outros olhos. Agora ela não passava de conselheira nas visitas às modistas de Londres. Timothy a via como o fardo que ela era, enquanto Benjamin a vira como...

Uma memória de amor cuidadosamente preservada, um eco de emoção profunda e pungente, fez seu coração doer. Ele a vira como uma prima querida e uma cara amiga, o que no último ano tinha evoluído para algo mais. Se o que lorde Hayden dissera era verdade, então ela não se enganara. Se Ben tivesse voltado da Grécia, teria se casado com ela.

Pegou o chapéu.

– Obrigada, Irene. Vou ficar feliz em usá-lo. Pensando melhor: fita azul. Nem rosa nem amarelo vão tão bem com minha cor de cabelo e o tom de minha pele.

Roselyn cruzou os olhos com os de Alexia como que se desculpando. Alexia respondeu também com o olhar: Nasci filha de um cavalheiro, mas aqui estou, com quase 26 anos, sem dinheiro nem futuro. É assim que o mundo funciona. Não tenha pena de mim, eu lhe imploro.

– Quem está lá? – perguntou Irene, interrompendo a conversa silenciosa. – Lá em cima, na janela da sala de visitas.

Roselyn se virou a tempo de ver o cabelo escuro e os ombros largos antes que o homem se afastasse do vidro.

– Temos visita? Falkner deveria ter me chamado.

Alexia começou a retirar a fita rosa.

– Ele pediu para se encontrar com Timothy e não quis que você fosse incomodada.

– Mas Timothy está doente.

– Ele se levantou da cama mesmo assim.

Alexia sentiu a atenção de Roselyn sobre ela enquanto se ocupava do chapéu.

– Quem é? – perguntou Roselyn.

– Rothwell.

– Lorde Elliot Rothwell, o historiador? O que é que ele...

– O irmão dele, lorde Hayden Rothwell.

Os olhos de Irene se arregalaram. Ela deu um pulo e bateu palmas.

– Ele está aqui? Acho que vou desmaiar. Ele é tããão atraente.

Roselyn franziu a testa e olhou para a janela.

– Ai, meu Deus!


– Você andou bebendo, Longworth – disse Hayden. – Está sóbrio o suficiente para ouvir e se lembrar do que vou dizer?

Longworth se espalhou confortavelmente no sofá azul.

– Sóbrio até demais.

Hayden examinou Timothy Longworth. Sim, estava sóbrio o bastante, o que era bom, já que o que tinha para lhe dizer não poderia esperar. A chance de sucesso do plano diminuía a cada hora que passava.

– Passei os últimos dois dias com Darfield, enquanto você se escondia em sua cama, bebendo – disse ele. – O banco pode sobreviver à crise atual, se você seguir minhas instruções.

– Eu disse a Darfield que sobreviveria. Ele é covarde como uma velhota e teme que as reservas estejam muito baixas, mas eu lhe garanti nossa solidez.

– Só sobreviverá porque tomei ontem a decisão de manter os depósitos da família com você. Isso bastou para deter uma corrida ao banco que começou esta manhã.

– Houve uma corrida? – perguntou Longworth, tendo a decência de parecer preocupado. – Eu deveria ter estado lá, sei disso.

– É lógico que deveria.

– Mas o pior já passou, não é verdade? O perigo foi evitado, como disse.

– Por pouco. Apesar de ter vencido as dificuldades hoje, o banco está em sério perigo. Além disso, estou reavaliando minha decisão. É uma escolha difícil, porque, se eu tirar o dinheiro da família, o banco vai à falência. Se isso acontecer, você vai para a forca.

Longworth ficou quieto, uma estátua feita de indiferença.

Hayden não gostava da ideia de estar metido com Timothy Longworth. Tinha sido para ajudar um bom amigo que ele havia assegurado o crescimento do banco com títulos e dinheiro da família. Não se sentia obrigado a salvar o pescoço do irmão mais novo dele.

Longworth abriu um sorriso largo. Isso o fez parecer mais com Benjamin, apesar de mais claro, um contraste com os olhos e o cabelo escuros de Ben. Era uma semelhança que Hayden preferia não perceber naquele momento.

– É claro que deve estar falando metaforicamente quando diz “forca”. Apesar de “arruinado” não ser muito melhor do que isso, não é a morte.

– Quando digo “forca”, é isso que quero dizer. Cadafalso. Nó corrediço. Morte.

– Bancos abrem falência o tempo todo. Cinco faliram nos últimos quinze dias só em Londres e dezenas no interior. Não é crime. É o que acontece nas crises financeiras.

– Não é a falência do banco que vai levá-lo à cadeia, mas o que a contabilidade revelará depois.

– Nada me compromete, posso garantir.

A paciência de Hayden se esgotou rápido. Tinha passado a noite em claro ao lado de Darfield, tentando pôr ordem na bagunça oculta da contabilidade do banco. A fúria que ele contivera a duras penas quando descobrira o pior agora ameaçava romper as frágeis paredes que a controlavam.

– Decidi deixar o dinheiro da família com você, Longworth, mas estou preocupado com minha tia e a filha dela. Os 3% delas é tudo o que têm e elas dependem desses rendimentos. Como seu administrador, não poderia pôr isso em risco. Então, essa parte, essa pequena parte, eu decidi sacar.

Longworth ergueu a cabeça como se essa introdução não lhe dissesse nada, mas o primeiro sinal de pânico faiscou em seus olhos.

– Imagine o meu choque quando vi que os títulos da dívida pública delas tinham sido vendidos e que minha assinatura, como administrador de minha tia, tinha sido falsificada para isso.

Gotas de suor surgiram na testa de Longworth.

– Espere um instante. Está insinuando que eu falsifiquei...

– Tenho provas de que você, por várias vezes, cometeu o crime de falsificação de documentos. Você forjou assinaturas para vender títulos também. Depois continuou a pagar os rendimentos, para que ninguém suspeitasse, mas roubou dezenas de milhares de libras.

– Roubei coisa nenhuma! Estou chocado e ofendido com essa notícia. Darfield é quem deve ter feito isso.

Hayden partiu para cima de Longworth e o agarrou pelo colarinho, suspendendo-o do sofá.

– Não ouse manchar a honra daquele bom homem. Juro que, se mentir para mim agora, vou lavar as mãos e deixá-lo ir para o buraco.

Longworth levantou os braços para cobrir o rosto, protegendo-se do golpe que previa. O medo dele ao mesmo tempo deteve Hayden e lhe causou repugnância. Jogou Longworth de volta no sofá.

Timothy se curvou com o rosto nas mãos. Um silêncio pesado perpassou a sala, carregado da raiva de Hayden e do desespero palpável de Longworth.

– Você contou a alguém?

A voz de Longworth falhou de emoção.

– Só Darfield sabe e ele teme o que isso possa causar aos outros bancos, levando em consideração o clima atual no centro financeiro de Londres.

Hayden havia imaginado esse horror muitas vezes nos últimos dois dias. Os títulos – sólidas apólices que eram a base do crédito e da geração de rendimentos de mulheres leigas e seus filhos – eram supostamente seguros. Os bancos somente os mantinham pelos clientes. Não se pressupunha jamais que o dinheiro ficasse vulnerável.

Timothy Longworth rompera uma confiança sagrada ao falsificar assinaturas e se apossar desse capital. Se isso viesse a público, o pânico atual seria multiplicado por dez.

– O que lhe passou pela cabeça, Longworth?

– Fiz isso pelo banco. Estávamos vulneráveis, com as reservas baixas demais. Fiz isso para proteger os depósitos...

– Mentira! – Hayden só percebeu que havia gritado porque Longworth se sobressaltou. – Você fez isso para comprar esta casa, este casaco e as carruagens que servem para você passear com sua amante cara.

Timothy começou a chorar. Envergonhado pelo outro, Hayden se virou e olhou pela janela.

No jardim, um par de olhos violeta se voltou na sua direção, depois retornou para as fitas e a palhinha. Olhos como violetas em sombra fresca e de formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Era assim que Benjamin descrevera a Srta. Welbourne, em uma noite de embriaguez na Grécia. O tom não fora totalmente respeitoso, mas havia afeição em sua voz, então Hayden não mentira para ela. Contudo, ao ver a reação da moça – os olhos rasos d’água e como seu rosto se suavizou de forma tão doce –, desejou não ter dito nem uma palavra.

Não era um rosto belo, mas os olhos tornavam isso irrelevante. Sua cor incomum cativava primeiro, depois se notava como eles refletiam uma alma intensa e uma mente inteligente. Mostravam também experiência, como se aquela mulher compreendesse bem demais as realidades da vida. Ao se sentar sob a contemplação implacável daqueles olhos, ele se esquecera por alguns minutos da horrível missão que o trouxera àquela casa.

Uma boca que parece uma rosa, com néctar tão doce. Aparentemente, Ben tinha tocado em mais do que o coração da Srta. Welbourne. Não era nem um pouco de surpreender. Um homem cheio de vida como Benjamin Longworth conseguia mexer com muitas mulheres.

Roselyn e Irene Longworth, irmãs de Benjamin, estavam sentadas ao sol com a Srta. Welbourne. A mais velha era uma bela mulher de pele clara, cabelo louro-escuro e rosto doce. Destacava-se por sua beleza, mas era muito orgulhosa. O cabelo da mais nova era longo e claro; o corpo, esguio e o jeito, ainda infantil.

Sentiu alguém de pé ao seu lado. Longworth havia se levantado do sofá. Também observava as três moças no jardim.

– Ai, meu Deus, quando elas ficarem sabendo...

– Juro que elas nunca saberão a verdade da minha boca. Se conseguirmos salvar seu pescoço, você poderá contar quantas mentiras quiser. Um falsificador e ladrão deve ser capaz de inventar umas boas.

– Salvar, me salvar? Mas há uma forma? Obrigado, de qualquer jeito... Como quer que seja...

Hayden esperou enquanto Longworth se recompunha.

– Quanto, Longworth?

Ele deu de ombros.

– Umas vinte mil libras, talvez. Não fiz de propósito. De verdade. Na primeira vez, deveria ter sido um empréstimo de pouco valor, para cobrir uma dívida inesperada...

– Não quero saber quanto você roubou, mas quanto tem.

– Quanto eu tenho?

– Sua única chance é cobrir tudo, cada centavo. Com o que tiver e com as notas promissórias que assinar.

– Isso significaria contar a todos!

– Se eles não sofrerem prejuízos...

– Bastaria um deles dar com a língua nos dentes para eu ir...

– Para a forca. Sim. Uma fraude já seria o bastante. Você terá de confiar que o reembolso os satisfará e que eles entendam que só mantendo-se em silêncio poderão reaver o dinheiro. Posso falar por você e isso talvez ajude.

– Pagar a todos? Vou ficar falido. Totalmente falido!

– Mas vai escapar vivo.

Longworth agarrou o peitoril da janela para controlar a tontura. Olhou para fora de novo e seus olhos se umedeceram.

– O que vou dizer a elas? E Alexia... Se ficarmos reduzidos à renda dos aluguéis rurais, se eu tiver que pagar as dívidas tirando recursos deles também, não poderei mais sustentá-la.

Diante de mais um pensamento terrível, seu rosto desabou. Hayden imaginou o motivo:

– Você roubou os míseros recursos dela também? Não verifiquei as contas menores.

Longworth enrubesceu.

– Você não passa de um canalha, Longworth. Ajoelhe-se e agradeça a Deus por eu ter uma dívida de gratidão e honra com seu irmão.

Timothy não estava mais ouvindo. Seus olhos se anuviaram ao pensar no futuro.

– Irene ia ser apresentada à sociedade e...

Hayden não deu ouvidos aos lamentos do outro. Imaginara uma forma de salvar a vida de Longworth e evitar revelações que deixariam o atual pânico fora de controle. Mas não poderia poupar Longworth da ruína que essa solução geraria.

Passara a noite em claro fazendo cálculos e pensando nas consequências morais do caso. De repente uma profunda exaustão tomou conta dele.

– Sente-se – ordenou ele ao dono da casa. – Vou lhe dizer a quantia necessária e definiremos como você irá devolvê-la.


CAPÍTULO 2

Falido.

A palavra pairou no ar. A sala ficou em silêncio.

O sangue de Alexia congelou nas veias. Tim parecia muito doente agora. Ele se recolhera a seu quarto após a saída de lorde Hayden, mas se levantara da cama novamente de noite. Mandara chamá-la e a suas irmãs na biblioteca e lhes informara do desastre.

– Mas como, Tim? – perguntou Roselyn. – Um homem não vai disto – ela fez um gesto mostrando a exuberância da casa ao redor – à pobreza em um dia.

Os olhos dele se estreitaram e a amargura endureceu sua voz.

– Isso acontece se lorde Hayden decidir que sim.

– Lorde Hayden? O que ele tem a ver com isso? – perguntou Alexia.

Timothy olhou fixo para o chão. Parecia sem forças.

– Ele retirou o dinheiro de sua família do banco. Nossas reservas não foram suficientes para compensar a retirada e tive que penhorar tudo o que tenho. Darfield também terá de fazer isso, mas ele possui mais dinheiro do que eu. Ele pagou parte das minhas obrigações e, em troca, ficou com a minha cota no banco. Ainda assim, não foi suficiente.

Alexia controlou a fúria que fervia dentro dela. Que diferença faria para Rothwell onde todo aquele dinheiro ficava? Ele tinha que ter percebido o que isso causaria a Timothy, a todos eles. Havia entrado naquela casa ciente de que destruiria o futuro dos Longworths.

– Vamos dar um jeito – disse Roselyn, com firmeza. – Sabemos como levar uma vida mais simples. Vamos dispensar alguns empregados e comeremos carne somente duas vezes por semana. Vamos...

– Você não ouviu? – rosnou Timothy. – Eu disse que estou falido. Não haverá empregados, nem carne alguma. Não tenho nada. Não temos nada.

Roselyn o encarou, boquiaberta. Irene, que ouvia com expressão confusa, teve um sobressalto como se alguém a tivesse esbofeteado.

– Isso quer dizer que não vou ser apresentada à sociedade?

Timothy deu uma risada cruel.

– Querida, você não pode ser apresentada à sociedade londrina se não estiver em Londres. O canalha está tomando esta casa. Ela pertence a Rothwell agora. Vamos voltar para o pouco que temos em Oxfordshire e morrer à mingua por lá.

Irene começou a chorar. Roselyn ficou muda com o impacto da notícia. A gargalhada de Timothy foi se transformando em algo entre um cacarejo e um choramingo.

Alexia sentiu o medo se apoderar dela. Timothy não olhara para ela uma vez sequer desde que entrara na sala. E evitava seu olhar agora. Um pânico silencioso tamborilava em seu peito, querendo se avolumar.

Roselyn recobrou a voz:

– Timothy, podemos viver no campo de novo. Ainda temos a casa e algumas terras. Não será ruim. Nunca passamos fome.

– Será pior do que antes, Rose. Terei dívidas a pagar. Boa parte dos aluguéis irá para isso.

O tamborilar acelerou, espalhando-se por suas veias. Sentia calor e frio alternadamente. O destino que temia desde a morte do pai finalmente a encontrara. Era com dificuldade que mantinha a compostura.

Ela não deixaria Timothy pronunciar sua sentença com todas as palavras. Seria injusto e uma péssima retribuição à família que lhe tinha dado um lar.

Levantou-se.

– Se sua situação vai mudar de forma drástica, não precisarão do fardo de ter mais uma boca para alimentar. Tenho algum dinheiro guardado que poderá me manter até encontrar um emprego. Vou me recolher ao meu quarto para permitir que conversem abertamente sobre seus planos.

Os olhos de Roselyn se umedeceram.

– Não seja boba, Alexia. Seu lugar é conosco.

– Não estou sendo boba, estou sendo prática. Não vou forçar Timothy a dizer que devo ir embora.

– Diga-lhe que não tem que ir, Tim. Ela é tão sensata que vai ser uma ajuda, não um fardo. Ele não quer que você nos deixe, Alexia.

Timothy não respondeu. Nem levantou os olhos.

– Timothy – chamou Roselyn, em tom de repreensão.

– Gastarei tudo o que tenho para manter vocês duas, Rose – disse ele, finalmente se voltando para Alexia. – Sinto muito.

Alexia forçou um sorriso trêmulo e saiu da biblioteca. Fechou a porta atrás de si, deixando Irene e Roselyn aos prantos e Timothy envergonhado. Subiu as escadas correndo e maldizendo, a cada degrau, o homem responsável por aquela tragédia.

Hayden Rothwell era um canalha. Um monstro. Era um daqueles homens que viviam no luxo e destruíam a vida dos outros em um piscar de olhos. Ele não precisava ter retirado todo o dinheiro de uma só vez. Era tão duro e frio como parecia. Não tinha compaixão: esmagaria pessoas sob as botas, se desejasse. Ela o odiava.

Jogou-se na cama e enterrou o rosto no travesseiro de penas, onde destilou todo o seu veneno em Rothwell enquanto chorava. Estava tomada pelo pânico.

Falida. Não podia crer que estava passando por isso de novo. Seu pai falira dois anos antes de morrer. Muito provavelmente tinha sido esta a razão pela qual não fora acolhida por seu herdeiro. O destino agora lhe pregava uma peça estúpida, fazendo-a reviver toda a preocupação e o medo de antes.

A duras penas, foi tentando novamente se centrar. Já havia se perguntado algumas vezes o que faria caso se encontrasse naquela situação. Sempre soubera que isso poderia acontecer. Desesperada, procurou se lembrar dos planos feitos naquelas noites terríveis quando, no escuro, a precariedade da situação em que vivia se avultava sobre ela.

Poderia virar preceptora, se conseguisse boas referências. Tinha linhagem e educação para isso, ainda que tal função oferecesse uma vida horrível.

Também poderia procurar trabalho em uma chapelaria. Tinha jeito para fazer chapéus e gostava dessa atividade. Só que trabalhar em uma loja desse tipo seria a pior das humilhações. Não nascera para essas coisas, mesmo que essa ideia tivesse mais apelo do que ficar presa dia e noite cuidando da filha de outra mulher.

Também poderia se casar, apesar de no momento não ter pretendentes. Ela nem sequer pensara nisso depois de Benjamin. Seu coração era dele e sempre seria. A menina escondida em sua alma encarava com pesar a ideia de casar-se em troca de segurança. Depois de ter conhecido um grande amor, um casamento assim seria horrível. Contudo, sem beleza nem fortuna para atrair um marido, aquele era um assunto com que muito provavelmente não teria de lidar.

Enumerar opções lhe deu um pouco de confiança, ainda que baseada em cenários que não a agradassem tanto. Contava com vinte libras por ano e não iria morrer de fome. Poderia construir seu futuro se deixasse de lado o orgulho. Na verdade, tinha bastante experiência nesse campo.

Olhou em volta do quarto, para os móveis, à luz difusa da lamparina. Não era um cômodo grande. Nem tinha os tecidos luxuosos dos quartos de Irene e Roselyn ou as cadeiras e camas novas que elas haviam comprado no ano anterior. Mas era o seu espaço e tinha sido seu lar desde que Tim se mudara com elas de Cheapside, logo depois de Ben zarpar para a Grécia, fazia quatro anos.

Fechou os olhos e se perguntou quanto tempo demoraria até que Hayden Rothwell a jogasse no olho da rua.


Três dias depois, Alexia estava sentada na sala de café da manhã, lendo os anúncios no Times. A casa reverberava de silêncio. Não que os empregados antes fizessem barulho, mas sua ausência era perceptível. Somente Falkner permanecia, enquanto procurava outro emprego apropriado. Ela podia ouvi-lo na sala de jantar, embalando as porcelanas que Timothy tinha vendido na véspera.

Muito pouco dos luxos adquiridos nos últimos anos voltariam para Oxford-shire com suas primas. Rothwell ficaria com os móveis. Tudo o mais seria vendido. Naquele exato momento, os homens estavam na cocheira negociando o preço das carruagens.

Roselyn entrou no cômodo e se sentou ao lado de Alexia, que serviu café para as duas.

– O que está lendo? – quis saber Roselyn.

– Quartos para alugar.

– Piccadilly não seria ruim, se não fosse tão longe.

– Acho que não terei como evitar ficar longe, Rose.

Rose tinha a aparência de uma mulher que havia chorado um mês sem parar. As olheiras e o vermelho dos olhos eram evidentes.

– Deveria ter me casado com um daqueles homens interessados no meu dinheiro. Teria sido bem feito para eles meu irmão ficar em tantas dificuldades a ponto de precisar vender as vasilhas de metal. Até as vasilhas, meu Deus!

Alexia não conteve uma risada. Roselyn riu também. As duas riram até lágrimas rolarem pelas faces.

– Oh, céus, como é bom rir – disse Rose, sem fôlego. – É tudo tão dramático que chega a ser ridículo. Fico esperando Tim vender minha camisola enquanto durmo.

– Espero que ele não esteja acompanhado por um oficial de justiça nesse dia. Daria ainda mais motivo de fofoca para toda a cidade.

Roselyn riu de novo, com ar triste.

– Vou sentir sua falta, Alexia. O que vai fazer?

– Pedi uma carta de referência à Sra. Harper, já que ela é, das suas amigas, a que me conhece melhor. Procurei uma agência de empregos e me candidatei a vagas de preceptora. Espero que seja aqui na cidade mesmo.

– Você tem que nos mandar notícias de onde estiver, sempre. E prometer que vai nos visitar.

– É claro.

Os olhos de Rose se encheram de lágrimas. Ela abraçou Alexia vigorosamente. Enquanto aproveitava o carinho que logo não mais teria, Alexia viu Falkner chegar à soleira da porta.

– O que foi? – perguntou.

Falkner olhou para ela com o mesmo olhar de três dias atrás. O olhar que dizia que uma tempestade se aproximava.

– Ele está aqui. Lorde Hayden Rothwell. Pediu para ver a casa.

Do jeito que Falkner torceu o nariz, Alexia suspeitou que Rothwell não tivesse “pedido” coisa alguma.

– Não o receberei – disse Rose. – Mande-o embora.

– Ele não perguntou pela senhorita, mas por seu irmão, que saiu. Então pediu que eu lhe mostrasse onde esperar.

– Diga-lhe que não. Eu o proíbo. Logo a casa será toda dele – gemeu Roselyn.

O prazo para entrega da casa não fora determinado, o que era motivo de preocupação para Alexia.

– Você não está sendo sensata, Rose. Não vale a pena enfurecer o homem neste momento. Nem é obrigação de Falkner nos servir. Vou atender o visitante para lhe poupar o trabalho.


Lorde Hayden esperava no hall, rodeado por paredes que já se encontravam despidas de quadros. Quando Alexia entrou, ele estava inclinado, examinando uma mesa de canto marchetada, sem dúvida calculando seu valor.

Ela não esperou por sua atenção nem por suas saudações.

– Senhor, meu primo Timothy não está na propriedade. Creio que esteja cuidando da venda dos cavalos. A Srta. Longworth está indisposta. Posso ajudar no assunto que o trouxe aqui?

Ele se aprumou e voltou seu olhar para ela. A contragosto, ela admitiu que ele estava maravilhoso naquele dia, vestido com roupas de montaria, um paletó azul e colete de seda estampado em tons de cinza. Seu porte, expressão e vestimenta anunciavam ao mundo que sabia que era bonito, inteligente e podre de rico. Era de muito mau gosto ir assim a uma casa que estava sendo destituída de seus bens e de sua dignidade.

– Esperava que um criado viesse...

– Não há mais criados. A família não pode mais mantê-los. Falkner vai ficar até conseguir outro emprego, mas não está mais trabalhando. Creio que o senhor não tem alternativa a não ser falar comigo.

Ouviu sua própria voz soar ríspida e pouco amigável. As pálpebras dele baixaram o bastante para indicar que percebia a falta de respeito.

– Acredito que não tenhamos mesmo alternativa, Srta. Welbourne. Meu objetivo ao vir sem ser convidado é muito simples. Tenho uma tia que está interessada nesta casa. Ela me pediu para verificar se seria apropriada para ela e sua filha nesta temporada.

– O senhor quer conhecer a casa para poder descrevê-la a prováveis moradores?

– Se a Srta. Longworth me fizer essa gentileza, sim.

– O coração dela é cheio de gentileza na maioria das vezes. Contudo, ela está ocupada demais para atender seu pedido. Ser levada à falência e ser destituída de seus bens é algo que deixa qualquer mulher sem tempo algum.

O queixo dele se retraiu o suficiente para dar-lhe uma pequena satisfação. A vitória foi breve. Ele pousou o chapéu na mesa de marchetaria.

– Então, terei que achar o caminho sozinho. Quando disse que minha tia estava interessada, não me referi a uma mera curiosidade, mas a um interesse patrimonial. Esta casa já pertence a minha tia, Srta. Welbourne. Timothy Longworth assinou os documentos ontem. Se fiz um pedido, foi apenas para ser cortês com a família dele.

A notícia a deixou estupefata. A casa já tinha sido vendida. Que rapidez! Começou a calcular o que isso significaria para os planos dela e para Roselyn e Irene.

– Peço desculpas, senhor. A venda da casa não havia sido comunicada nem à Srta. Longworth nem a mim. Vou lhe mostrar a casa, se estiver bem assim.

Ele assentiu e ela começou a árdua tarefa. Mostrou-lhe a sala de jantar, onde seus olhos de lince não perderam nenhum detalhe. Ela o notou medindo espaços mentalmente e o ouviu contando cadeiras.

O resto do primeiro andar foi rápido. Ele não abriu gavetas nem armários na despensa. Alexia imaginou que soubesse que já estava tudo vazio.

– A sala de café da manhã é logo atrás desta porta – disse ela, ao voltarem para o corredor. – Minha prima Roselyn está lá. Peço que aceite minha descrição em vez de ir conferir por si mesmo. Temo que ela fique muito aborrecida ao vê-lo.

– Por que ela ficaria aborrecida com a minha presença?

– Timothy nos contou tudo. Roselyn sabe que o senhor levou o banco à beira da falência e nos deixou nesta situação.

Um sorriso implacável lhe surgiu no canto da boca. A crueldade do homem era mesmo ímpar. Ele percebeu o olhar dela fitando-o. Não parecia constrangido por ela ter visto esse sorriso cínico.

– Srta. Welbourne, não preciso ver a sala de café da manhã. Sinto muito por sua prima, mas as questões de altas finanças estão em um plano diferente da vida cotidiana. As explicações de Timothy Longworth foram simplificadas, com certeza porque ele as estava dando a damas.

– Elas podem ter sido simples, mas foram claras, assim como suas consequências. Há uma semana, meus primos viviam no luxo em Londres e em breve viverão na pobreza no interior. Timothy está falido, teve de vender sua parte na sociedade do banco e, ainda assim, continuará arcando com dívidas. Algum desses fatos está incorreto, senhor?

– Não, estão todos corretos – respondeu ele, balançando a cabeça.

Ela não podia crer em sua indiferença. O homem poderia pelo menos parecer um pouco constrangido. Em vez disso, agia como se isso fosse normal.

– Podemos subir? – perguntou ele.

Ela mostrou o caminho para o andar de cima, entrando na biblioteca. Ele não se apressou ao passar os olhos pelos livros nas estantes, enquanto ela aguardava.

– A senhorita vai com eles para Oxfordshire? – perguntou ele.

– Não me permitiria ser um fardo para essa família agora.

A atenção dele permaneceu nos livros.

– O que vai fazer?

– Tenho tudo acertado para meu futuro. Fiz planos e listei minhas expectativas e oportunidades.

Ele recolocou um livro na estante e rapidamente passou os olhos pelo tapete, a escrivaninha e os sofás, andando na direção dela em seguida.

– Quais oportunidades está vislumbrando?

Ela o conduziu aos outros cômodos no andar.

– Minha primeira opção é ser preceptora na cidade. A segunda é ser preceptora em outro lugar.

– Muito sensato.

– A sensatez é algo bastante conveniente diante da ameaça da fome, concorda?

Os cômodos do terceiro andar não eram tão espaçosos quanto os de uso comum. O corredor mais estreito os aproximava. Ao mostrar-lhe os quartos, ela notava a presença forte e masculina ao seu lado. Parecia muito inadequado esse estranho estar lá.

– E se não achar emprego como preceptora?

A pergunta casual veio algum tempo após sua última troca de palavras.

– A outra opção é me tornar chapeleira.

– Uma fabricante de chapéus?

– Tenho muito talento nessa área. Daqui a alguns anos, se vir uma mulher pobre usando um belo chapéu habilmente fabricado apenas com uma cesta velha, penas de pardal e maçãs secas, esta serei eu.

A curiosidade dele fizera com que Alexia deixasse de esconder sua irritação. Parecia inverossímil que o homem que causara tanto sofrimento quisesse saber detalhes. Ela escancarou a porta do quarto de Irene.

– A quarta opção é me tornar cortesã. Há quem diga que uma mulher deveria preferir morrer de fome a isso, mas suspeito que essas pessoas não tenham de fato se visto diante dessa necessidade, como talvez aconteça comigo.

Esse comentário lhe valeu um olhar duro. Além do desconforto por ela estar ridicularizando o fato de ele não sentir qualquer culpa, Alexia também percebeu a ousadia de um olhar masculino que avaliava suas possibilidades na quarta opção da lista.

Alexia enrubesceu. O calor percorreu sua pele, avivando-a e a atingindo bem no íntimo, afetando-a de uma forma chocante. Teve uma incontrolável e traiçoeira consciência dos muitos recantos do próprio corpo. A sensação a estarreceu ao mesmo tempo que a estimulou deliciosamente.

Ela precisou dar um passo atrás, para fora do quarto e para longe das vistas dele, de modo a escapar do rápido aumento na pulsação que a proximidade de Hayden lhe causava. Nos poucos segundos antes de ele voltar para junto dela, Alexia fez um esforço para se lembrar da raiva, a fim de aplacar seu chocante arroubo de sensualidade.

Ela continuou a lhe dar alfinetadas, de forma que ele soubesse que ela não se importava com o que pensava. Queria que aquele homem percebesse o sofrimento que sua ambição tinha causado.

– Minha quinta opção é virar ladra. Refleti muito sobre o que deveria vir antes, a libertinagem ou o roubo. Decidi que, apesar de a primeira opção ser um trabalho mais árduo, é uma forma de comércio honesto, enquanto ser ladra é pura maldade. – Ela parou por um momento, mas não resistiu a acrescentar: – Não importa como seja feito ou se é considerado legal ou não.

Ele parou e invadiu seu caminho, forçando-a a se deter também.

– A senhorita fala de maneira muito franca.

A presença dele se impunha à sua frente no corredor estreito. O olhar demandou sua total atenção. Certo poder se fez sentir, um poder masculino, dominador e desafiador. A intuição dela dizia para se afastar. A excitação ronronava baixa e profundamente. Ela ignorou ambas as reações e se manteve firme.

– Foi o senhor que me perguntou sobre meu futuro, apesar de não lhe fazer a menor diferença o que acontecerá com qualquer um de nós.

Sua raiva vinha em um crescendo desde que tinham deixado o hall. O frio autocontrole daquele homem durante a volta pela casa só tinha posto mais lenha na fogueira.

Ela o olhou de frente.

– O senhor destruiu a vida de pessoas boas e decentes. Não precisava ter retirado todos os seus negócios do banco de Timothy, arruinando-o deliberadamente. Não sei como consegue colocar a cabeça no travesseiro à noite e dormir.

Seus olhos azul-escuros ficaram negros nas luzes opacas do corredor. Seu queixo se enrijeceu. Ele estava com raiva. Que bom, ela também.

– Durmo muito bem, obrigada. E, sem o devido conhecimento sobre as questões financeiras, sua visão se torna bastante limitada. Sinto muito pela Srta. Longworth e sua irmã, e pela senhorita também, mas não vou me desculpar por ter cumprido meu dever como julguei adequado.

O tom dele a deixou embasbacada. Tranquilo, porém firme, ele punha um ponto final na discussão. Ela recuou, mas não por essa razão: estava perdendo o ar. Esse homem não se importava com os outros. Se se importasse, não estaria fazendo esse reconhecimento da casa.

Ela o guiou ao andar de cima, onde ficavam os quartos mais altos, mas ele parou do lado de fora de uma porta, perto do patamar da escada.

– O que é este cômodo?

– É um quartinho, sem utilidade específica. No passado, foi o quarto de vestir do quarto ao lado. Bem, lá em cima...

Ele girou a maçaneta e abriu a porta. Entrou no pequeno cômodo e observou cada detalhe. Os dois livros ao lado da cama, o armário pequeno quase vazio, as cartas ordenadas sobre a escrivaninha, tudo chamou sua atenção. Pegou um chapéu que estava pousado sobre uma cadeira perto da janela.

– É o seu quarto – falou.

Era verdade. E a presença dele ali, investigando seus pertences, criava uma intimidade que a deixou desconfortável. Ver aquele homem tocando seus objetos pessoais era quase como tê-lo tocando-a. Essa proximidade física tornava sua excitação ainda mais chocante e embaraçosa.

– Por enquanto, é o meu quarto.

Ele ignorou a farpa. Examinou o chapéu, girando-o de um lado para outro. Era o que ela havia começado a refazer no jardim três dias antes. Ninguém o reconheceria. Tinha refeito a borda, forrando-o de musselina creme finamente trabalhada, e enfeitado-o com fitas azuis. Ainda não decidira se iria acrescentar algum enfeite de musselina perto da copa.

– A senhorita tem talento.

– Como eu disse, ser chapeleira é apenas a opção número três. Se uma dama trabalhar em uma loja desse tipo, não pode mais se dizer uma dama, não é verdade?

Ele pousou o chapéu com cuidado.

– Não, não pode. No entanto, é algo mais respeitável do que ser cortesã ou ladra, embora bem menos lucrativo. Sua lista está na ordem correta se seu objetivo for a respeitabilidade.

Ela ainda o odiava no momento em que terminaram a visita. Contudo, já não poderia dizer que ele lhe era um completo estranho. Entrar nos quartos juntos, vendo os artefatos da vida cotidiana da família e com tanta proximidade – excessiva até – nos andares mais altos tinha criado uma familiaridade inoportuna.

Sua suscetibilidade à presença dele a deixara em desvantagem. Ela queria acreditar que era superior a essas reações, principalmente com esse homem, que certamente acreditava agradar a todas as mulheres. Ressentia-se de ter passado uma hora inteira na sua companhia.

Voltaram para o hall, onde ele pegou seu chapéu. Ela retomou o motivo de ter concordado em recebê-lo:

– Lorde Hayden, Timothy está com a cabeça nas nuvens. Ele não está contando todos os detalhes a suas irmãs. Se não for muita ousadia...

– A senhorita já foi bastante ousada sem pedir permissão, Srta. Welbourne. A essa altura, não é preciso fazer cerimônia.

Ela realmente tinha sido ousada e tagarela. Permitira que a raiva vencesse o bom senso. Na verdade, não tinha sido muito prática na situação em que mais necessitara dessa virtude.

– Qual é a sua pergunta?

– Já informou a Timothy quando os Longworths têm que esvaziar a casa?

– Ainda não. – Ele lhe dirigiu um olhar desconcertantemente franco. – Quando a senhorita acha que seria razoável?

– Nunca.

– Isso não é razoável.

– Quinze dias. Por favor, dê-lhes mais duas semanas.

– Que seja. Os Longworths podem ficar até lá. – Ele estreitou os olhos em sua direção. – Quanto à senhorita...

Ai, meu Deus. Ela havia despertado o demônio com sua língua grande. Ele ia pô-la no olho da rua imediatamente.

– Minha tia tem paixão por chapéus.

Ela piscou.

– Chapéus? Sua tia?

– Ela ama chapéus. E paga preços exorbitantes por eles. Sei disso porque sou administrador de sua fortuna e pago suas contas.

Era um assunto estranho para se falar na saída. Ele pareceu um pouco tolo.

– Bem, chapéus costumam ser caros – falou Alexia.

– Os que ela compra também são bem feios.

Ela sorriu e assentiu, desejando que partisse logo. Queria contar a Roselyn que teriam mais duas semanas de prazo.

– Preceptora, a senhorita disse. Sua primeira opção. Tem estudos para ser uma preceptora qualificada?

– Estava ajudando a preparar minha prima mais nova para ser apresentada à sociedade. Possuo as habilidades e os talentos necessários.

– Música? A senhorita toca algum instrumento?

– Sou adequada para ser preceptora de moças. Minha própria educação foi requintada. Nem sempre fui como me vê agora.

– Isso é óbvio. Se tivesse sido sempre como hoje, não teria coragem de falar comigo da forma rude e direta como fez.

O rosto dela enrubesceu intensamente. Não porque Alexia fora rude e Hayden notara, mas porque a atenção que ele lhe estava dispensando começava a acender nela aquela excitação estúpida de novo.

– Srta. Welbourne, minha tia, Lady Wallingford, vai tomar posse desta casa porque vai apresentar sua filha à sociedade em breve. Minha prima Caroline precisa de uma preceptora e minha tia, de uma dama de companhia. Tia Henrietta é... bem... Digamos que seria aconselhável ter uma influência sensata na casa.

– Uma influência que a impedisse de comprar chapéus feios?

– Exatamente. Como a situação combina com sua primeira opção na lista, estaria interessada no emprego? Como foi tão sincera comigo, creio que também diria à minha tia quando um chapéu for ridículo.

Ele estava pedindo que ela ficasse naquela casa em que tinha sido um membro da família, só que agora como criada. Ele estava pedindo que servisse ao homem que arruinara os Longworths e destruíra sua frágil sensação de segurança. Ele estava pedindo que ela ajudasse sua jovem prima a ser apresentada à sociedade, uma oportunidade que fora negada a Irene.

É claro que lorde Hayden não enxergava nada disso. Ela era apenas uma solução conveniente para compor o quadro de empregados de sua tia. Tinha uma combinação singular de habilidades que a tornava perfeita para o cargo. Mesmo que houvesse notado como isso era ultrajante, aquele homem não se importaria.

Ela quis recusar a proposta imediatamente. Esteve prestes a dizer algo muito mais direto e rude do que havia feito até o momento.

Mordeu a língua. Não poderia se dar ao luxo de dizer impropérios agora.

– Vou pensar na sua oferta, senhor.


CAPÍTULO 3

– Ouvi um boato sobre você ontem à noite no White’s.

A declaração inesperada ecoou pelo salão e fez com que Hayden errasse a bola que vinha em direção a ele.

– Sua função é marcar os pontos, Suttonly, não ajudar Chalgrove me distraindo.

– Marcar os pontos é um tédio. Se eu o distrair, você perde e então é a minha vez de jogar.

Hayden sabia que o egoísmo era um traço da personalidade do visconde Suttonly desde que haviam ficado amigos, na universidade. Mas ele não era só isso e Hayden aceitava o lado ruim que vinha junto com o bom. O mesmo homem esguio e vaidoso que estava languidamente posicionado no centro da quadra, interferindo nos saques e nas jogadas, era capaz de demonstrar grande generosidade quando queria.

Chalgrove se adiantou para ficar em posição de saque.

– Você sabia que não teríamos um quarto jogador hoje e que precisaríamos nos revezar.

– Você quer dizer que Rothwell e eu teríamos que nos revezar. Você sempre ganha, então sempre continua jogando.

Suttonly levantou seu rosto longo e de feições finas e tentou em vão olhar Chalgrove de cima, mas o outro era um palmo maior do que ele. O cabelo dourado de Suttonly tinha sofrido a tortura dos ferros quentes naquela manhã. Os cachos perfeitamente desalinhados não iam sobreviver ao jogo.

– É ele quem tem permissão para usar esta quadra – lembrou Hayden.

Se não fosse pela paixão de Chalgrove pelo tênis e por sua vitória inesperada em uma jogatina contra o rei três anos antes, eles nem sequer estariam ali. Em pagamento por aquela dívida de jogo, Chalgrove tinha pedido permissão para usar a antiga quadra de tênis de Hampton Court quando quisesse. Como o esporte saíra de moda e ninguém mais queria ir lá, o rei teve grande satisfação em conceder esse favor real.

Suttonly foi expressar seu tédio nas linhas laterais. Chalgrove assumiu a ofensiva. Hayden percebeu que perderia em breve.

O conde de Chalgrove parecia muito robusto e moreno quando comparado à brandura loura de Suttonly. Mas, durante o jogo, seu corpo musculoso se mostrava surpreendentemente ágil. Atleta nato, seus saques poderosos combinavam bem com a habilidade para mandar a bola de couro na direção dos telheiros e outros pontos difíceis para os adversários.

Hayden observou a bola ricochetear acima da cabeça do outro e cair.

– Bola fora, Rothwell – anunciou Suttonly.

O visconde deu alguns passos à frente e bateu de leve com sua raquete na cabeça de Hayden.

Hayden assumiu a posição de marcador. Apesar de uma parte de sua mente se manter na contagem de pontos, o restante dela se voltou para os negócios com Timothy Longworth. Sua família estaria partindo de Londres em breve, mas não tinha chegado nenhuma carta da Srta. Welbourne falando do emprego que ele lhe oferecera. Não gostava de pensar no preço de seu orgulho. Ela acabaria morando em algum apartamentinho de uma rua violenta, levando uma vida miserável.

Sua falta de senso prático significava que agora ele teria que procurar outra preceptora e dama de companhia. Tia Henrietta chegaria a Londres em poucos dias. Não podia mais esperar a resposta da Srta. Welbourne.

Chalgrove precisou de menos tempo para despachar Suttonly. Depois eles se retiraram para as salas do clube acima da quadra. Chalgrove tinha trazido criados e bebidas geladas. Enquanto lanchavam, Suttonly tocou de novo no assunto da fofoca que corria solta pela cidade.

– Andam dizendo que...

– Não estou interessado – disse Hayden.

– Mas eu estou – disse Chalgrove. – É raro ouvir uma boa fofoca sobre você, Rothwell. Normalmente é sobre quanto dinheiro ganhou nesse ou naquele investimento. Falando nisso, não há nada que queira contar a dois velhos colegas de escola? Ou está esperando que a tempestade passe para lançar o próximo navio?

Suttonly não gostava de ter a atenção roubada de si.

– Andam dizendo – repetiu ele com firmeza – que você arruinou Timothy Longworth.

Isso impressionou até Chalgrove.

– É mesmo? Não sabia que ele estava arruinado, muito menos que você era o responsável.

– Se você viesse à cidade, tomaria ciência do que acontece no mundo – repreendeu-o Suttonly com indolente superioridade antes de se virar novamente para Rothwell e dizer: – O que aconteceu com Longworth? Ele está vendendo tudo tão rápido que o pessoal anda brincando que ele é até capaz de fazer liquidação das irmãs. Você era muito amigo do irmão dele. Ele deve tê-lo enraivecido muito para que decidisse arruiná-lo.

– Eu não o arruinei. A mudança na sorte do homem é problema dele. Quanto aos meus planos, há um acordo sendo firmado em relação a um empreendimento na América do Sul. É muito arriscado, mas vou enviar os documentos a vocês dois. Suponho que guardarão o sigilo de sempre.

– Pode contar comigo – disse Suttonly, fisgando um pedaço de presunto do prato de frios. – Redija os papéis e me avise quando estiverem prontos para a assinatura.

– Nas Américas? Isso não vai ser igual ao esquema de McGregor anos atrás, não é? – implicou Chalgrove. – Você não vai emitir títulos de um país que não existe, como ele fez, não é?

– Se ele fizesse isso, provavelmente encontraria um jeito de compensar os clientes da forma mais sábia possível – disse Suttonly. – Por meu pai morto e os filhos que ainda não tenho, Rothwell, ainda bem que tive a esperteza de ficar seu amigo nos tempos de escola.

– O esquema de McGregor estava fadado ao fracasso. Ele não vai poder fazer novas vítimas de suas fraudes para sempre a fim de pagar as vítimas anteriores. Um dia o castelo de cartas vai desmoronar – disse Hayden.

Hayden Rothwell gostaria que todos – Suttonly, em especial – aprendessem a ser mais desconfiados em relação a investimentos. Se Hayden fosse McGregor, Suttonly teria empenhado sua fortuna para comprar títulos do país fictício de Poyais, nas Américas. Como todos os outros, ele nem teria se dado o trabalho de consultar primeiro um mapa para achar a localização do país.

– Suspeito que haja alguma falcatrua no cerne da crise atual – disse Chalgrove.

Suas sobrancelhas franzidas preocuparam Hayden. Chalgrove não vinha mais para a cidade, porque no ano anterior herdara um imóvel no campo que precisava desesperadamente de cuidados.

– Você perdeu muito dinheiro? – questionou Hayden.

– Não muito, mas o bastante. Tinha uns negócios pequenos com um banco do interior que era correspondente do Pole, Thornton and Company de Londres. Quando eles faliram em dezembro, nosso estabelecimento foi junto – disse ele, dando de ombros, mas não com indiferença. – Muitos homens com negócios bons e sólidos abriram falência por conta disso. Ainda vai haver muito problema antes que esse pânico acabe.

– Mas não há nada que se possa fazer a respeito, não é? – cortou Suttonly, suspirando. – Não vamos ficar nos lamentando pelo que não podemos mudar. Apesar de todas as preocupações, a cidade ainda está movimentada e divertida e se aproxima a época em que as jovens serão apresentadas à sociedade. Chalgrove, prometa que vai permanecer na cidade este ano. Fiquei meio entediado na última apresentação e espero evitar esse estado de ânimo desta vez. Você pode procurar uma noiva rica para resolver seus problemas. Se ela for bonita, pode ser até que você se apaixone.

– Chalgrove não é um tolo romântico como você – disse Hayden. – Você ficou entediado porque está envelhecendo e tem menos chances de se entregar às tolices românticas agora.

– Você se entedia muito facilmente, de qualquer forma – disse Chalgrove. – A vida seria mais gratificante se tivesse algo constante que lhe interessasse.

– Você quer dizer estudar matemática, como ele? Pegar no pesado nas minhas terras, como você? Rezo para nunca ficar velho assim. Quanto a me entregar a tolices românticas, pretendo nunca deixar de fazê-lo. A paixão torna a vida excitante nos poucos meses que dura – disse ele, sacando o relógio do bolso. – Só posso ficar para mais uma partida, Chalgrove. Vou começar sacando desta vez.


– Ouvi boatos sobre você na noite passada, no clube.

Era a tarde seguinte e Hayden levantou os olhos do livro que estava lendo. Havia vencido poucas páginas. Sua mente estava ocupada, pensando em outros assuntos. A chegada inesperada de seu irmão Christian à biblioteca o distraiu ainda mais.

Christian raramente passava a tarde na biblioteca. Seu breve comentário ao se acomodar em uma cadeira acolchoada perto de Hayden explicava o motivo de aquela tarde ser diferente. Era perturbador saber de dois boatos a seu respeito em menos de dois dias. Hayden era o tipo de homem de hábitos regulares e personalidade calma que raramente interessava aos fofoqueiros.

– Não estou flertando com a Sra. Jameson, apesar do que ela anda contando aos amigos – disse Hayden.

– Não era esse tipo de boato, o que nunca me interessaria. Se um dia você se casar, nunca será com uma mulher daquelas.

O “se um dia” dito com tanta propriedade sugeria que seu irmão duvidava da possibilidade de Hayden vir a se casar. O “uma mulher daquelas” não era uma crítica à viúva em questão, mas deixava claro que Christian conhecia bem o gosto de Hayden, muito mais do que o próprio.

Eles se davam bem, tanto que Hayden continuava morando na casa de Easterbrook, em Grosvenor Square. No entanto, as suposições de Christian de que conhecia os irmãos mais novos melhor do que eles mesmos e as suspeitas de Hayden de que isso talvez fosse verdade eram algo irritante.

– O boato tinha a ver com dinheiro. E com seu relacionamento com o banco Darfield e Longworth.

Hayden pôs o livro de lado.

– Você é contra minha decisão de deixar nossas contas lá?

A interferência de Christian infringia um acordo que haviam feito quando ele voltara à Grã-Bretanha depois de ter viajado durante dois anos por sabe lá Deus onde. Apesar de recém-saído da faculdade, Hayden cuidara das finanças da família nesse momento de necessidade. Christian poderia ter assumido a tarefa ao voltar, mas pediu que Hayden continuasse.

– Não faço objeções à sua decisão. Só estou curioso se você realmente confia que o banco não vá falir.

– Se isso acontecer, uso meu próprio dinheiro para compensar quaisquer perdas que você ou os outros sofram. Se necessário, volto até às mesas de jogos.

Os olhos escuros de Christian cintilaram com uma expressão de frieza. A aura de autoridade que ele exalava de repente se fez notar. Era algo que derivava mais do que de seu título de nobreza ou do status de irmão mais velho. Algo havia ocorrido durante aqueles dois anos no exterior que se tornara a fonte desse poder contido e sóbrio.

Christian nunca falara muito de seu tempo fora e das aventuras que tinha vivido. Hayden percebera de imediato como as experiências o tinham mudado. Seu irmão mais velho deixara a Inglaterra como um marquês recém-empossado, instruído e zeloso. Voltara experiente demais, amadurecido demais e um tanto estranho.

– Não peço que aposte sua própria fortuna em suas decisões. Só quero saber se tomou essa decisão em particular com base em seu brilhantismo financeiro de sempre, ou se foi dominado pela emoção.

– Nunca teria deixado as contas lá se achasse que o banco não sobreviveria.

Hayden considerou a conversa encerrada e retomou a leitura.

– Não foi o fato de você ter deixado as contas lá – disse Christian depois de um longo silêncio. – Não era esse o boato.

– Então qual foi o boato que você ouviu?

– Que você de alguma forma arruinou Longworth e o forçou a vender sua parte no banco. Que manipulou a situação para ele falir.

– Mas como você verificou se retirei nossos depósitos e viu que não, já sabe que esse boato não é verdadeiro.

– Ninguém me disse que você o tinha arruinado retirando o dinheiro. Disseram que você manipulou a situação para que Longworth falisse, o que é bem diferente. Não entendo o motivo. Os Longworths são uma família tradicional no nosso condado. E, para começo de conversa, você contribuiu para o enriquecimento deles e foi amigo de Benjamin.

Hayden instintivamente levou uma das mãos ao peito. Ele não sentia a cicatriz por baixo das roupas, mas pensar em Ben sempre fazia com que se lembrasse da dor que a causara. Qualquer ajuda que tivesse dado a Benjamin Longworth já tinha sido mais do que compensada na Grécia. Isso significava que a balança tinha pendido de novo, para o outro lado, na noite em que Ben morreu.

Ele tinha errado com o amigo naquela noite no navio ao não forçá-lo a descer, quando era óbvio que Ben estava bêbado. Pior ainda, tratava-se de um amigo que havia salvado sua vida.

– Está preocupado com minha honra, irmão mais velho?

– Eu deveria estar?

Hayden o fitou.

Christian não baixou o olhar, agindo de forma plácida e paciente. Eles eram muito parecidos, mas qualquer pessoa que entrasse na biblioteca não perceberia isso de imediato. O cabelo escuro de Christian era longo, até mesmo para a moda atual. Suas ondas atingiam os ombros do robe de seda preto que ele vestira ao se levantar naquela manhã. Também não era um robe comum. Ele ostentava uma estampa e um corte exóticos, quase orientais, e era menos estruturado do que os modelos masculinos comuns. A típica falta de formalidade de Christian em casa também fazia com que não usasse uma camisa por baixo do robe, de forma que sob ele não se via uma gola, apenas pele.

Hayden pensou em como o irmão mais velho parecia empertigado e arrumado enquanto o pai deles era vivo. Ele tinha sido tão irrepreensivelmente correto todos aqueles anos. Então, meses depois de assumir o título, desaparecera para depois voltar com aquela desconcertante aparência mundana.

– Os homens fracassam nos negócios o tempo todo – falou Hayden. – É como uma justa. Um homem entra no torneio sabendo que pode perder seu cavalo. Fracassar é sempre um risco.

– Não para você. Não com a mente e os instintos de que dispõe ao entrar na disputa. Se o jovem Longworth tivesse sido outro cavaleiro, e não um mero escudeiro, sua analogia poderia funcionar. No entanto...

– Como você optou por não entrar na competição, fique fora disso.

Hayden engoliu seu crescente rancor. Na verdade, esse sentimento não se dirigia a Christian, mas à sua tendência irritante de incitar o lado negro da alma das pessoas.

– A ruína de Longworth se deve unicamente à sua falta de bom senso. Minha honra está intacta.

Christian pareceu aceitar isso.

– Você tem um lado impiedoso. Nesse ponto, somos bem parecidos. É preciso manter a vigilância para controlar isso, como tenho certeza de que você sabe.

– Cuide da salvação de sua própria alma. Não preciso de ajuda com a minha.

– Todos nós precisamos de ajuda. Contudo, se você diz que não se deixou levar por esses sentimentos, aceitarei que a ruína de Longworth foi obra dele mesmo.

A questão tinha sido definitivamente essa, mas, para evitar maiores consequências além da mera ruína, Hayden tinha sido forçado a conduzir o canalha por muitas reuniões, confissões e promessas nos últimos dias. Com certeza, no clube, na noite anterior, um dos homens que ouvira essas promessas tinha aludido ao papel de Hayden.

Christian se levantou para ir embora.

– É uma pena pelas irmãs. Às vezes as encontro na cidade. A mais velha é estonteante. Se não fosse por sua amizade com o falecido irmão, estaria tentado a ficar com ela.

– Tirar vantagem da má sorte da moça e garantir que o fracasso fosse completo seria algo altamente desonroso, não acha?

Christian deu de ombros.

– Na Inglaterra, sim. Bem, como disse, é preciso manter a vigilância.


A bandeja de prata brilhou à luz da tarde que penetrava pela janela. O cartão sobre ela surpreendeu Hayden.

A Srta. Welbourne estava lá.

Ele passou o polegar sobre o papel e sentiu o alto-relevo de ótima qualidade. Imaginou a moça tirando dinheiro de sua renda magra e decidindo que o cartão que ostentaria seu nome deveria ser digno de uma dama, não importava o sacrifício.

– Vou recebê-la.

A visita dela lhe provocou remorsos. Sua descoberta a respeito do roubo de Longworth atingira muitos inocentes.

É claro que a Srta. Welbourne tinha sido atingida bem antes da descoberta. Entre suas deliberações, enquanto tentava ler na biblioteca, havia algumas em relação a ela. Precisava elaborar uma estratégia para devolver os recursos da moça sem que ela soubesse que tinham sido retirados por Longworth.

Sua palavra de honra o impedia de lhe explicar o que tinha acontecido. Duvidava que ela lhe seria grata por saber a verdade, mesmo que pudesse revelá-la. Isso destruiria sua ligação com as pessoas que considerava sua família. Havia também a hipótese de ela se sentir tão traída a ponto de querer ser a primeira a mandar Longworth para a cadeia.

Abriu as portas da sala de visitas e viu a Srta. Welbourne com sua dama de companhia. Ela trouxera a prima mais jovem. Os olhos de Irene Longworth estavam fixos no relicário medieval cravejado de pedras preciosas que Christian tinha colocado em uma mesa ao lado da janela.

O olhar da jovem se voltou para Hayden quando ele entrou e nele permaneceu enquanto se cumprimentavam. Ele reconheceu sua expressão muda e embasbacada. Estava cansado de vê-la em outras moças ingênuas. Preferia a expressão madura e autocontrolada que a Srta. Welbourne dirigiu a ele.

– Irene, por que não vai olhar os quadros? – sugeriu a Srta. Welbourne. – Ela se interessa por arte, lorde Hayden, e pensei em dar-lhe a oportunidade de ver parte da coleção de Easterbrook hoje.

Com o consentimento de Hayden, a garota começou a caminhar próxima às paredes, examinando as obras.

– Foi muita gentileza sua trazê-la, se tem tanto interesse por arte – disse ele. – Pensei que talvez o motivo real fosse me lembrar do que ela perdeu.

– Esse foi um dos motivos, mas a oportunidade de ver parte da famosa coleção de Easterbrook foi outro. Além disso, quando ela for para Oxfordshire, fará diferença poder falar da visita que fez a esta casa. Algumas pessoas com posses muito superiores às dela nunca terão essa oportunidade.

A Srta. Welbourne falava com a mesma franqueza que marcara as conversas dos dois desde o início. Ocorreu-lhe que seria tratado da mesma forma se não tivesse arruinado Longworth.

Ele gostava disso. Algo nele fazia com que a maioria das mulheres assumisse uma atitude irritantemente fútil. A falta de medo e de nervosismo por parte dela era revigorante. Criava pequenos e encantadores desafios. Sua postura durante o tour pela casa o provocara de muitas formas e carregara o ar entre eles com muito mais do que contrariedade.

Ela sentira o mesmo, ele tinha certeza, só que não gostava dessa sensação. Talvez nem a entendesse direito.

– Além disso, precisava trazer alguém comigo, não é verdade? – disse ela. – Não temos mais criadas, nem mesmo um lacaio. Como Irene sempre sonhou em vir a um baile aqui, um sonho que Roselyn e eu tentamos controlar mesmo nos bons tempos, pensei que ela pelo menos poderia ver suas obras de arte.

A garota obviamente tinha sido instruída a se manter distante e discreta. Ela se reclinou em direção a um quadro de Poussin do outro lado da sala.

Hayden chamou um lacaio.

– Leve a Srta. Longworth até a governanta – ordenou ao homem quando ele chegou. – Diga-lhe para guiar a moça pelo salão de baile e pela galeria.

Mal se contendo de alegria, Irene seguiu o criado. A Srta. Welbourne observou sua saída.

– É muita generosidade de sua parte.

– Se ver esta sala de visitas a ajudará em Oxfordshire, descrever o salão de baile só pode melhorar ainda mais sua posição.

Ele se sentou em uma cadeira que lhe permitia ver de frente o rosto da Srta. Welbourne.

– Como a senhorita precisava trazer alguém consigo, entendo que o objetivo desta visita seja um assunto seu, não dela – comentou Rothwell.

O olhar de Alexia se inflamou. Aquela mulher não gostava muito dele, isso estava bem claro.

Um arco lilás no chapéu de Alexia fazia sobressair ainda mais a cor de seus olhos. Era um chapéu simples, mas parecia muito caro com aquela borda, a copa de seda celestial e rosas enfeitando o arco. Talvez ela mesma tivesse feito o chapéu. Como o cartão de visita, ele demonstrava sua posição, mesmo que essa posição lhe tivesse escapado por entre os dedos.

– Considerei a oferta que me fez na casa de meu primo em sua última visita – disse ela. – Gostaria de conversar sobre isso e ver se conseguimos chegar a um acordo.

Tinham-se passado doze dias desde a oferta. Com a mudança iminente da casa, parecia que ela finalmente tinha se decidido pela praticidade.

Ele decidiu facilitar as coisas para ela sendo breve.

– O salário será o normal para a situação e...

Ela levantou o indicador, detendo-o. Seu tutor costumava fazer isso quando ele era garoto.

– Aceito o salário normal. No entanto, como estarei ocupando dois cargos, o de preceptora e o de dama de companhia, acredito que deveria receber dois ordenados, sobretudo levando-se em conta que o senhor não terá os gastos de manter mais um criado na casa. Além disso, gostaria que o salário fosse pago mensalmente. Vou querer mandar parte do dinheiro para Rose e Irene. Não quero que elas precisem esperar muito para terem algum desafogo.

Ela estava a dois dias de ser despejada, mas fazia exigências desmedidas, como se pudesse apresentar as melhores referências da Inglaterra, em vez de nenhuma. A julgar por sua repetida menção ao problema financeiro dos Longworths, ela esperava que a culpa dele lhe desse alguma vantagem nas negociações.

Fascinado, ele colocou o cotovelo no braço da cadeira e descansou o queixo no punho fechado.

– Acredito que o pagamento mensal possa ser providenciado. Quanto ao salário, a senhorita não passará todo o tempo desempenhando cada um dos papéis. Isso é impossível, portanto o pagamento integral por dois cargos não se justifica.

– Um e meio, então. O senhor tem que admitir que é justo.

Ele quase deu uma risada.

– Bastante justo para a senhorita. Está certo, um e meio.

Ela teve um gesto de alívio, passando a mão sobre a lã fina da roupa. Era um movimento nervoso que revelava que não estava tão contida quando parecia. O vestido era bem mais elegante do que o que ele a vira usar antes. Muito distinto, com um bordado azul ao longo de toda a borda da saia e um casaco que trazia um delicado acabamento em pele. Ele imaginou que as roupas não eram dela. A Srta. Longworth provavelmente as tinha emprestado a ela para a visita à casa do marquês de Easterbrook.

– Quanto à minha relação com sua tia e sua prima – continuou ela –, vivi naquela casa como um membro da família e seria difícil pensar em mim como uma... bem, de outra forma. Gostaria que meu cargo principal fosse o de dama de companhia de sua tia e que meus deveres de preceptora ficassem em segundo lugar. Isso em nada afetaria meu trabalho em relação a sua prima.

Seu tom, comportamento e a forma como continuava a lembrá-lo da mudança na sua situação, que ela acreditava ser culpa dele, deveriam enraivecê-lo. Nada disso.

Alexia Welbourne havia chegado àquela casa vestida como a dama que nascera para ser, mas sairia dali como empregada. Ela sabia disso, mesmo tendo gaguejado ao tentar pronunciar a palavra. Porém, não era uma mulher que desconhecesse seu lugar. Era só uma mulher lutando para manter seus últimos fios de dignidade ao sair pela porta em uma condição diferente da que entrara.

Ele sentia muito por ela, mas manifestar esse sentimento seria um insulto para uma mulher como Alexia.

– Minha tia tem muito bom coração, Srta. Welbourne. O perigo não é ser tratada como criada, mas passar rapidamente a ser tratada como irmã. No entanto, explicarei a sutileza do modo como deseja ser considerada. Tenho certeza de que ela compreenderá. Bem, se não há mais nada a tratar...

O dedo se levantou novamente.

– Algo mais, Srta. Welbourne?

– Só mais um pequeno detalhe.

– Não imagino o que possa ser.

Os lábios dela se franziram diante do tom sarcástico. Belos lábios. Mais para cheios. E um nariz levemente arrebitado, que chamava atenção para a boca.

Uma boca que parece uma rosa. Mas não um botão de rosa. Não era pequena nem curvada, nem mesmo quando o franzido a estreitava. Era uma rosa em plena floração, prometendo o néctar que Ben descrevera.

– Como ambos sabemos, minha situação mudará muito, mesmo continuando a viver na mesma casa – disse ela.

Sua voz provocava pensamentos sobre esse néctar e seu gosto. O caminho rumo aos ardis impiedosos sobre os quais Christian o advertira havia pouco.

De formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Ele a viu de novo no vestido sem atrativos que usara ao guiá-lo no reconhecimento da casa. De um marfim amarelado pelo uso e sem enfeites, que provavelmente haviam sido retirados para adornar outras vestimentas. A moda tinha mudado muito nos últimos anos e sua cintura alta anunciava seus poucos recursos. No entanto, o vestido ressaltava seu busto e revelava suas formas e curvas tentadoras.

Sua mente voou para recuperar a lembrança dela em pé perto dele no corredor do último andar, usando o vestido cor de marfim. As faíscas de raiva nos olhos dela ao confrontá-lo fizeram seu sangue correr mais rápido nas veias outra vez, queimando-o por dentro. Sua imaginação começou a tirar aquele vestido para ver o que tinha por baixo...

– Isso é aceitável, senhor?

A pergunta dela o tirou de sua fantasia erótica.

– Aceita essa última condição? – perguntou ela.

Se pelo menos ele soubesse do que ela estava falando, mas não tinha a menor ideia de como deveria responder.

Assumiu a posição que costumava ocupar em negociações de investimentos quando algo inesperado era proposto.

– Quero pensar melhor sobre isso antes de dar uma resposta.

Suas sobrancelhas se elevaram só um pouquinho, mas o bastante para expressar o que ela pensava disso.

– Não vejo por que isso exigiria tanta ponderação.

– Sou um homem muito ponderado.

– Que admirável! E tais ponderações levariam muito tempo? Estarão concluídas em dois dias, para que eu saiba onde ficar na casa?

Ela usou uma voz cuidadosa e gentil, do tipo usado com um tio velho meio gagá. Ele não estava acostumado a ter ninguém – muito menos uma mulher – tratando-o como se fosse burro.

– Por que não explica esse pedido com mais detalhes, para que eu possa pensar enquanto fala?

– Não consigo pensar em outra forma de explicar isso. Está claro como água. Qual parte não entendeu?

Será que ela havia percebido por onde sua mente andara? Vira nos olhos dele? Estava deixando-o confuso como punição? Será que o pedido era complicado de atender? Ela não teria pedido para vender toda a prataria da casa, imaginava ele.

– Acho que minha tia pode ser convencida a aceitar sua condição.

– Então podemos dizer que chegamos a um acordo – disse ela, imensamente satisfeita com a conclusão da conversa e passando a alça da bolsa pelo braço. – Estou de saída. Estarei na casa para dar as boas-vindas a Lady Wallingford e sua prima quando elas chegarem.

Ele a acompanhou para que procurassem Irene. Encontraram-na na galeria com a governanta. Christian estava lá também, apontando para algum detalhe na pintura que observavam. Ele tinha finalmente se vestido e, fora o cabelo longo de aspecto primitivo, parecia um lorde inglês bem-apessoado.

– Christian, esta é a Srta. Welbourne. Este é meu irmão Christian, marquês de Easterbrook.

– Estava explicando para sua prima que este não é um Correggio original, mas uma cópia de um quadro que está em Parma, Srta. Welbourne – disse Christian.

A Srta. Welbourne olhou para o quadro. Ele retratava a princesa Io delicadamente voluptuosa e sensual, suspensa no ar por Júpiter, que tinha se transformado em nuvem. Como Io estava nua, aquele provavelmente não era um quadro que Christian devesse ter estimulado Irene a examinar.

– É adorável, mesmo sendo uma cópia – disse a Srta. Welbourne, segura de si o bastante para não revelar embaraço com o assunto.

Hayden o considerava adorável também. Observando agora, o corpo de Io parecia um pouco com a imagem que ele fizera do corpo da Srta. Welbourne. Arredondado nos lugares certos. Curvas e maciez à espera.

Hayden mostrou o caminho para que as mulheres saíssem com a governanta. Irene começou a cobrir a Srta. Welbourne de perguntas imediatamente, esquecendo-se de que seus sussurros seriam ouvidos na galeria.

– Você vai aceitar a função?

– Sim.

– Ele aceitou suas condições?

– Sim, vamos embora.

– Todas elas? Até mesmo a folga e o uso da carruagem?

Hayden se perguntou se tinha ouvido direito.

– Função? – disse uma voz baixinho sobre o ombro dele.

Ele virou o rosto e deu com Christian também observando as duas.

– Ela vai trabalhar como dama de companhia de tia Henrietta e preceptora de Caroline.

– Ah, entendo. As únicas mulheres que já fizeram negócios comigo foram minhas amantes. Daí minha confusão. Ela tem belos olhos... de uma cor inusitada.

Hayden observava as fitas do chapéu de Alexia flutuarem, a bainha do vestido se arrastar e seus quadris esbeltos se moverem.

– Ela queria se certificar do que se esperava dela no serviço doméstico. Nossa conversa tratou desse tipo de coisas.

– Como folga e uso da carruagem, você quer dizer.

Hayden ignorou a implicância. A Srta. Welbourne se virou para sussurrar algo no ouvido de Irene. Seu perfil apareceu por baixo da aba do chapéu. Um olho violeta, um nariz levemente arrebitado e uma boca carnuda expressiva formaram uma silhueta colorida contra o vestido marrom da governanta.

A porta se abriu e as mulheres desapareceram.

Hayden se virou e pegou seu irmão mais velho observando-o. Christian deu meia-volta e partiu.

– Vigilância, Hayden, vigilância.


CAPÍTULO 4

Alexia caminhava ao lado de Roselyn em ritmo de enterro. Estavam fazendo uma revista silenciosa de cômodo em cômodo para que Rose verificasse se nada fora esquecido.

Uma carruagem alugada esperava na rua. Ela levaria os Longworths até uma estalagem nos arredores de Londres. Lá seriam transferidos para a triste carroça que saíra antes do amanhecer, oculta pela escuridão, carregando os poucos bens que ainda lhes pertenciam.

Rose espiou a sala de visitas.

– Ouso dizer que a tia de Rothwell encontrará tudo em ordem. Espero que ela e a filha sejam felizes aqui.

A frase teria soado generosa, não fosse por seu tom amargo.

Alexia nada disse para reconfortá-la. Já usara todas as palavras de consolo que poderia conceber. Tinha até mesmo prometido a Irene lhe dar uma festa de apresentação à sociedade no ano seguinte, o que era o mais próximo de uma mentira deslavada que já dissera. Seu coração estava em prantos por todos eles. Rose e Irene, Timothy e ela própria.

Rose se voltou para ela. Com os olhos soltando faíscas pelos olhos, ela permitiu que toda a sua raiva viesse à tona.

– Você tem que me prometer não se afeiçoar a elas. Não quero saber se são boas ou não. Tem que me prometer...

Alexia a abraçou. O corpo de Rose começou a tremer e ela caiu no choro. Passou rápido. Rose engoliu as lágrimas e se recompôs, tudo em uma única inspiração profunda.

– Oxfordshire não é tão longe assim – disse Alexia.

Tal pensamento tinha sido repetido por todos eles muitas vezes na última semana.

– Vamos nos ver com frequência, tenho certeza – continuou.

Ela não estava tão certa disso, mas talvez fosse possível. Afinal, ela poderia usar uma carruagem, não? E tinha um dia de folga.

– Vamos subir para buscar Timothy – disse Roselyn.

Encontraram Timothy em seu quarto, estendido na cama, doente. Doente, não, percebeu Alexia. Ela avistou um decantador lascado debaixo da mesinha de cabeceira.

– A carruagem está esperando, Timothy – disse Rose.

– Para o diabo com a carruagem.

Tim nem sequer moveu o braço que se estendia sobre a testa.

– Para o diabo com os canalhas que esperam para ver esta cena – prosseguiu ele. – Para o diabo com a vida.

Rose pareceu exausta. Fora obrigada a assumir quase todas as providências necessárias nos últimos dias. Depois que vendeu o que podia, Timothy se tornara um inútil.

Alexia se curvou sobre a cama.

– Já se entregou à infelicidade por muito tempo, primo. Suas irmãs precisam que você volte a si. Permita-lhes sair pela porta com dignidade, não carregando o irmão em frangalhos entre elas.

Ele não reagiu nem se moveu. Ela tocou seu braço.

– Venha, Tim. Isso não é do seu feitio. Levante-se pelo bem de Irene, ao menos.

Depois de uma longa demora, ele fez um esforço para se levantar. Rose alisou seu casaco e fez o que pôde para deixar sua gravata apresentável. Timothy parecia tão triste e desamparado que Alexia teve vontade de chorar.

– Pegou as coisas dele no sótão, Rose? – disse ele em tom abafado. – Os baús de Ben e tudo o mais?

A expressão de Rose foi de desespero quando respondeu:

– Arrumamos tudo às carreiras... Como pude ser tão relapsa? Não tem mais espaço na carruagem e...

– Não se preocupe. Cuidarei do que possa ter ficado para trás – disse Alexia. – Podem ter certeza de que os baús continuarão aqui enquanto eu estiver e os levarei quando for embora. Vou achar um jeito de devolvê-los a vocês.

– Você é tão boa, Alexia – disse Rose com visível alívio.

Alexia não se importava de assumir a responsabilidade pelos pertences de Ben. Assim, parte dele ficaria com ela na casa. Ela poderia resistir melhor à adversidade da vida que iria enfrentar se pudesse se lembrar daqueles baús no sótão.

– Detesto deixá-la aqui – disse Tim olhando para o chão. – Odeio a ideia de ver você se sujeitar a ele. Esta foi a jogada mais cruel: ele ser capaz de se deleitar com sua queda de posição social.

Alexia não achava que lorde Hayden se deleitaria com isso, já que aparentemente não pensou duas vezes antes de praticar seus atos. Em poucos dias, ela seria uma criada conveniente e nada mais. Ele provavelmente esqueceria até seu nome.

– Não me importo com o que ele pense, Tim. Não me afeta em nada.

Essa afirmação pelo menos era verdade. Ela já sabia que, na vida, quando se desce um degrau, o motivo não importa. O estrago no orgulho era o mesmo, independentemente da causa. A pessoa podia enfrentar isso com elegância ou com amargura. Ela estava lutando para assumir a primeira postura, como fizera no passado.

Tim caminhava sem firmeza, mas Roselyn e Alexia o conduziram para o andar de baixo, até a porta. Irene esperava com ar sombrio pela partida solene. Com certeza os vizinhos espiariam de suas janelas para ver a cortina descer no último ato do fracasso encenado na Hill Street nas duas últimas semanas.

– Eu o odeio – disse Irene. – Não faz diferença se ele é bonito e se me deixou ver o salão de baile. Tenho certeza de que o irmão dele ficaria chocado em saber o que aconteceu. Eu deveria ter contado tudo a Easterbrook enquanto estávamos na galeria.

Alexia deu um beijo de despedida em Irene.

– Não ocupe seu coração com ódio, Irene.

– Você não precisa disso – falou Roselyn. – Eu odiarei Hayden Rothwell o bastante por todos nós, querida.

Seu rosto se fechou em uma máscara de orgulho. Ela pegou a irmã pela mão.

– Vamos embora – chamou.

Timothy abriu a porta. Ele não apreciou a atitude da irmã ao saírem. Na verdade, não as estava enxergando. Virou-se para a porta aberta e ficou lá, parado indolentemente por um tempo. Seu rosto enrubesceu de emoção.

Alexia manteve a mão no braço dele.

– Você é filho de um cavalheiro, Timothy. Nem isso pode mudar esse fato.

A expressão dele retomou a serenidade e ele se empertigou um pouco.

– Para o diabo com ele – grunhiu.

Deu um passo para fora e seguiu Roselyn e Irene rumo à obscuridade.

Alexia fechou a porta antes que a carruagem partisse. Secou as lágrimas que teimavam em rolar de seus olhos. Não ousava sucumbir ao impulso de se enraivecer com a injustiça da vida. Tinha que aprontar a casa para a chegada da tia e da prima de lorde Hayden.

Também precisava preparar seu orgulho para o momento em que as duas mulheres entrassem pela porta da frente.


– Foi tão gentil de sua parte nos acompanhar, Hayden, mesmo que nosso deslocamento seja só por algumas ruas da casa de Easterbrook. Não tenho muita habilidade para lidar com essas mudanças complicadas.

– Fico feliz em ajudar. A situação exigia pulso firme.

– Como sempre, tê-lo conduzindo as rédeas nos transmite confiança e tranquilidade. Não sei o que faríamos sem você.

O pulso firme em questão não tinha a ver com controlar os cavalos que puxavam a carruagem de Easterbrook por Mayfair. Nem com a enorme gama de detalhes relacionados à mudança de tia Henrietta para Londres. Disso tudo Hayden dera conta com facilidade.

Na verdade, era Henrietta, viúva de Sir Nigel Wallingford, que demandava pulso firme. Ela exigia mais da sua atenção do que os mais complicados investimentos financeiros que ele administrava.

Após a morte do marido, ao tomar conhecimento de que sua renda ficaria bem reduzida, ela assentira como se compreendesse a situação, mas depois não alterara em nada seus gastos. Sendo seu administrador, Hayden cumpria o penoso ritual de ir até Surrey para ralhar com ela por causa das contas altas, reprimendas que a tia aceitava com constrangimento, mas depois alegremente ignorava.

Ele a observou enquanto se sentava junto à filha na frente dele na carruagem. Um chapéu gigantesco cobria a maior parte do cabelo muito louro. Sua aba ampla e pontuda ficava o tempo todo batendo no queixo de Caroline. O maior laço vermelho da história da chapelaria apequenava a copa alta. Uma pluma extravagante traçava um amplo arco e tocava o delicado maxilar de Henrietta. A mulher era baixa e franzina, com rosto pequeno e traços finos, e o chapéu parecia um peso prestes a curvá-la.

Sem dúvida, Henrietta achava que o chapéu era magnífico e valia cada centavo gasto nele, mas não percebia como a envelhecia. Sendo irmã mais nova de sua falecida mãe, aos 36 anos, tia Henrietta ainda possuía feições joviais, mas, usando aquele chapéu, aparentava ter 50.

– Você tem absoluta certeza de que essa preceptora fala um francês impecável? – perguntou ela. – Caroline precisa de alguém muito competente.

– A Srta. Welbourne é bem instruída em todas as matérias necessárias.

Na verdade, não tinha certeza se a Srta. Welbourne sabia francês. Mas, se alegava ter a formação exigida para desempenhar seu novo papel, então deveria ser capaz de demonstrar isso. Ele suspeitava de que ela poderia aprender francês em quinze dias se ainda não soubesse.

– Espero que ela não seja igual à Sra. Braxton – murmurou Caroline.

Uma menina quieta e pálida, Caroline raramente falava. Hayden suspeitava de que a criança que ele via não era a Caroline de verdade, mas uma menina desbotada e enrijecida pela presença da mãe.

– Estou certa de que a Srta. Welbourne será muito diferente de sua última preceptora – disse Henrietta. – Hayden teve que lhe prometer algumas concessões incomuns para persuadi-la a nos ajudar.

Os olhos verde-claros de Henrietta brilharam com o feliz otimismo que a fazia parecer sonhadora e distraída o tempo todo.

– Estamos na cidade agora, querida. É um mundo bem diferente. A Sra. Braxton não serviria. Foi por isso que Hayden encontrou essa casa e a estimável Srta. Welbourne para nós.

Ela concedeu a Hayden um daqueles sorrisos. Um dos sorrisos agradecidos e afetuosos que diziam que ele era a âncora de seu navio sem leme. Ela confiava totalmente no sobrinho, dependia dele em excesso e esperava que ele atendesse a seus caprichos. Provocava um desastre atrás do outro e depois, com pesar, encaminhava o problema para ele resolver, porque ele era tão incrivelmente competente nisso.

Ele não tinha dúvida de que sua tia agia com ele de forma semelhante à que costumava agir com seu finado marido. Sua aparência adorável, as voltas que dava nos assuntos tentando evitar dar explicações, suas tentativas de amansá-lo com elogios – estas eram as marcas de uma mulher que manipulava um homem. Ele gostava de tia Henrietta e até a considerava divertida. No entanto, ser seu administrador por seis anos tinha lhe ensinado certos aspectos do relacionamento diário com uma mulher que vinham com o casamento. Nenhum deles o tinha estimulado a procurar uma esposa.

– Aí está – anunciou Henrietta quando a carruagem parou na Hill Street. – Pedi que o cocheiro passasse por aqui anteontem para me mostrar. A casa é bem bonita e de bom tamanho, não acha, Caroline? Mas não fica em uma praça. Tinha esperanças de que ficasse. Porém, se Hayden diz que é adequada para nós, assim será.

Hayden conhecia bem as esperanças dela. Seu irmão Christian também. Tia Henrietta não dera atenção aos detalhes da mudança para Londres até que ficara difícil demais encontrar um local adequado para alugar. Christian desconfiava de que a tia deles tinha outro motivo para tamanha negligência. Ele estava certo de que ela contava com que ficasse sem lugar para morar, quando então pediria para apresentar sua filha à sociedade no lar de Easterbrook.

Três semanas antes, Christian havia decretado sumariamente que isso não aconteceria, de jeito nenhum. Ele ofereceria o baile de apresentação de Caroline à sociedade, mas não viveria sob o mesmo teto que sua tia intrometida e frívola.

A residência dos Longworths resolvera então um problema iminente. Também dera a Timothy oportunidade de reembolsar Henrietta pelos títulos roubados sem que ela ficasse sabendo do golpe. Henrietta acreditava que Hayden os havia vendido para comprar a casa.

Ao descer da carruagem, Hayden pensou no restante do plano. Com sorte, Caroline ficaria logo comprometida com um rapaz da primeira leva de pretendentes e Henrietta voltaria para sua casa, em Surrey. A casa de Londres seria vendida e os títulos roubados, substituídos por novos. Se a divina Providência realmente sorrisse para ele, após Caroline se casar, sua tia procuraria um marido e Hayden passaria para ele a responsabilidade de controlá-la.

Hayden deu a mão para ajudar a tia e a prima a descerem. Ao entrarem, todos os criados se perfilaram no hall para saudar a nova patroa.

Henrietta examinou a criadagem. Hayden mantivera Falkner, mas o restante do pessoal era novo.

Ele deu um passo à frente quando sua tia se aproximou da Srta. Welbourne e apresentou as duas mulheres – o que não fizera com o mordomo ou com a governanta. Era do seu interesse que elas se dessem bem. Com sorte, a Srta. Welbourne reduziria as demandas de Henrietta por ele.

Tia Henrietta examinou em detalhes a nova dama de companhia. A Srta. Welbourne passou com elegância pela avaliação.

– Esta é minha filha, Caroline – disse Henrietta, instigando a garota a dar um passo à frente. – Nosso atraso em vir à cidade significa que seus últimos retoques precisam de atenção. Imagino que você seja adequada para fazer isso.

– Sou, sim, Lady Wallingford.

– Soube que começou a desempenhar suas funções recentemente e que é prima da família que viveu aqui por último.

Hayden não imaginava que Henrietta soubesse disso. Ela estava na cidade havia somente dois dias. A cor dos olhos da Srta. Welbourne se intensificou, mas ela não demonstrou qualquer outra reação.

– Sim, senhora.

– Vamos conversar um pouco sobre isso. Contudo, não tenho motivos para duvidar da confiança que meu sobrinho deposita na senhorita.

– Obrigada, senhora.

Henrietta seguiu em frente, cumprimentando as empregadas, o lacaio e o cozinheiro. Hayden observava o ritual em um canto do cômodo. Observava principalmente a Srta. Welbourne.

Os olhos dela não vacilaram desde que entraram na casa. Ele percebeu que seu olhar estava pregado em um ponto na parede por trás dele. Mesmo quando Henrietta falou com ela, seus olhos violeta não se moveram. Ela estava resistindo bem àquela provação, mas na verdade não a estava vendo.

Admirou sua atitude e a leve altivez que ela emanava. Alexia podia estar entre os criados, mas só um tolo não veria a diferença. Com certeza sua tia havia percebido isso de imediato, por isso lhe fizera aquela pequena provocação.

O olhar da Srta. Welbourne se moveu sutilmente em direção a ele. Raiva e orgulho se estamparam em seu rosto. Não ouse ter pena de mim, expressou uma olhada rápida. Você mais do que todos os homens não tem esse direito.

O ressentimento dela parecia prestes a desmanchar sua pose. Ele andou em sua direção e fez um gesto para que se aproximasse, tirando-a da fila de empregados.

– Parece que a senhorita tem tudo sob controle. É admirável.

Ele se referia a ela, não aos empregados. Ela pareceu entender. Sua expressão voltou à passividade. Seu olhar se dirigiu para o mesmo lugar de antes, atrás dele na parede.

– Falkner cuidou para que os outros ficassem preparados – disse ela, baixo.

– Acha que consegue lidar com ela? – falou Rothwell, olhando para sua jovem prima.

A Srta. Welbourne olhou para o final da fila também, só que parou para observar Henrietta e não Caroline. Mais especificamente, o chapéu de Henrietta.

– Acho que merecia os dois salários – disse ela.

– Andei pensando que talvez a senhorita valha muito mais para mim.

Ao falar, o tom soou meio malicioso. Se ela percebeu, não teve qualquer reação. Provavelmente porque o sentido oculto tinha ficado somente na cabeça dele, um reflexo de maquinações que não fariam nada bem a sua reputação.

– Acho que tem razão. Mas fiquei satisfeita com nossa última reunião e não espero mais por ora.

– Fico aliviado. Só há uma carruagem, como vê, e minha tia vai querer usá-la de vez em quando. Se a senhorita tiver várias folgas em vez de uma só, isso criaria um sério incômodo para ela.

Ela não pôde resistir e sorriu ao lembrar que o havia derrotado nisso. Sua boca rosa relaxou e revelou seu bem-vindo potencial de sensualidade. Os lábios se afastaram o bastante para provocar pensamentos inapropriados na cabeça dele.

Os olhos de Alexia por fim se voltaram para ele, para partilhar a piada. Ele lhe devolveu um olhar profundo, que exigiu sua relutante atenção. Mas Hayden deixou que o momento se prolongasse demais. A janela se fechou, como se Alexia houvesse notado o perigo nos olhos dele. Ela se empertigou.

De repente, corpos se movimentaram em volta deles. Os criados haviam sido dispensados. O chapéu de Henrietta se intrometeu entre ele e a Srta. Welbourne.

– Hayden, informei ao cozinheiro que você jantará conosco amanhã. Easterbrook e Elliot também.

– Elliot está em Cambridge e Christian tem um compromisso amanhã.

Ele começou a acrescentar suas próprias desculpas, mas ver violetas e rosas deteve suas palavras. A Srta. Welbourne estava falando com Caroline, assumindo suas funções.

– Ficarei feliz em aceitar, se minha presença apenas não for tediosa demais.

– Tediosa, nunca! Não venho a Londres há anos e estaria perdida sem a sua ajuda abrindo caminho para a sociedade. Quase me esqueci do que Caroline deve ver e fazer. Precisamos de você para fazer uma lista de locais que devemos visitar e dos passeios que nós não podemos perder.

Ele desconfiou que ela o incluíra no “nós”. Antes que o jantar do dia seguinte se encerrasse, Henrietta teria sua agenda completamente preenchida com formas como ele poderia “ajudar”.

Era tudo culpa da Srta. Welbourne. Ela o distraíra e ele baixara a guarda. Se ela o deixara à mercê de Henrietta somente com um sorriso, era uma sorte ela o odiar e não sorrir com frequência.

Ele se despediu e recebeu um adeus frio da Srta. Welbourne em meio às despedidas efusivas de Henrietta. Ao deixar a casa, Henrietta estava seguindo a governanta para ver os outros cômodos e Caroline se esgueirava à procura da sala de música.

O que significava que a Srta. Welbourne tinha sido a única a de fato vê-lo partir.


Paciência. Alexia disse para si mesma. Lembre-se do seu lugar. Engula as palavras antes de expressar o que você pensa.

Ela se sentou à mesa da sala de jantar com Lady Wallingford, Caroline e lorde Hayden. Manter-se em silêncio durante esses jantares se mostrou uma tarefa fácil, porque Lady Wallingford não parava de falar com o sobrinho. Nas duas últimas refeições em que tinha estado presente, ela o persuadira a contar todas as fofocas que corriam pela cidade, com descrições completas dos personagens importantes. Esta noite ela o estava pressionando a levá-la ao Museu Britânico.

Lorde Hayden olhava com frequência em direção a Alexia, como se esperasse que ela interrompesse a conversa e o salvasse de sua tia. Ela não se mostrou inclinada a fazer isso. Era uma criada, afinal de contas. Não lhe cabia fazê-lo, não era verdade? Ele estava sendo óbvio demais também. Parecia ignorar a tia todas as vezes que desviava a atenção daquela forma.

Ele tratava a tia com uma firmeza afetuosa que sugeria que a considerava distraída demais para ser responsabilizada por seus excessos. Aparentemente não apreciava por completo a sua personalidade. Em apenas uma semana, Alexia descobrira que as maneiras frívolas e despretensiosas de Lady Wallingford escondiam um tipo muito feminino de astúcia.

– Será mais instrutivo para Caroline se você nos levar, Hayden – disse Lady Wallingford. – Sou ignorante em história antiga e nunca conseguiria explicar a importância dos artefatos. – Ela lhe deu um sorriso que derreteria aço. – E Caroline não conhece muito bem você e seus irmãos. Nem você a conhece, agora que ela não é mais uma criança.

Caroline ficou vermelha até as orelhas. O olhar astuto da sua mãe lhe deu uma deixa. Caroline forçou um sorriso esperançoso.

– Seria maravilhoso visitar o museu com você, Hayden. Se puder dispor de tempo para nós.

Alguns minutos depois, Lady Wallingford pegou o sobrinho em sua rede. Na semana seguinte ele iria acompanhá-las ao museu.

Alexia se divertia vendo a nova patroa manipular esse homem orgulhoso e severo. Ele nem parecia perceber o maior desejo da tia, que era o de fisgá-lo de vez.

– Agora temos que decidir sobre a modista que fará o vestido da apresentação de Caroline – disse Lady Wallingford. – Ouvi falar que existe uma madame Tissot que é uma maravilha e também que a Sra. Waterman serviria. O que nos aconselha, Hayden?

– Eu não entendo disso, mas a Srta. Welbourne as ajudará, espero.

Todos os olhares se voltaram para ela, vencendo suas intenções de permanecer uma mera sombra no canto da mesa.

– Se eu tivesse que escolher, com certeza seria madame Tissot – disse ela.

A Sra. Waterman tinha sido a modista escolhida para fazer o guarda-roupa de Irene Longworth para sua apresentação. Caroline agora vivia na casa de Irene e até dormia na cama de Irene. Por nada neste mundo Alexia permitiria que também ficasse com os vestidos feitos para Irene, se pudesse impedir.

A rispidez de sua reação advertiu-lhe que ela ainda não tinha definido sua situação. Os ressentimentos afloravam em ocasiões como essas. Ter que partilhar a refeição com lorde Hayden também deixava parte de sua alma fervilhando. Aceitar sua atenção arrogante, combater sua aura dominadora, parecia uma perspectiva cruel. Ela esperava que ele demonstrasse mais força de caráter no futuro e declinasse os convites da tia para jantar.

– Antes que encomende qualquer vestido, precisamos ter uma conversinha, tia Henrietta.

– É claro – concordou Lady Wallingford, sua expressão tornando-se obediente e respeitosa. – A própria Caroline insistiu em limitações estritas de custo. Ela é muito mais sensata do que eu nessa área, não é, querida? O homem que se casar com ela vai achar bem mais fácil controlar seus gastos do que os da maioria das outras moças.

Caroline enrubesceu de novo. Seu primo não percebia a isca que pairava acima dele, apenas deu um sorriso vago em aprovação.

A refeição terminou e, com a agenda de lorde Hayden adequadamente preenchida, todos se dirigiram para a sala de estar. Ao chegar à porta, Lady Wallingford anunciou um novo plano.

– Hayden, você daria licença a mim e a Caroline por um instante? Ela tem uma surpresa para você e preciso ajudá-la. A Srta. Welbourne vai entretê-lo enquanto preparamos um passatempo.

E assim Alexia se viu sozinha, sentada em frente a lorde Hayden na sala de estar, em uma situação parecida com a de sua primeira conversa.

– Pode me dar uma dica sobre qual será esse passatempo? – perguntou ele, esticando as pernas de maneira muito informal.

Ela não era nenhuma parenta dele; dispensava tal atitude de familiaridade.

– É um mistério para mim.

– A senhorita é a preceptora dela.

– Acho que isso foi planejado antes da chegada delas. Que eu saiba, não houve ensaios ao longo da última semana.

Ele a olhou daquela forma direta e desconcertante que adotara.

– Então não deve mesmo ter havido nenhum. Tenho certeza de que nada lhe escapa, Srta. Welbourne. Por exemplo, já deve ter percebido que a querida tia Henrietta tem planos para Caroline e eu que vão além de visitas a museus.

– É verdade? Que afortunado!

A consciência dele das intenções de Henrietta arrasaram suas fantasias. Ela tivera esperanças de vê-lo nadar arrogantemente contra a correnteza só para no fim morrer na praia, sob os saltos de Henrietta.

– Ajudaria muito se desestimulasse esses planos.

– Não imagino como. Além disso, vocês formariam um belo casal.

– A senhorita pretende se aliar a tia Henrietta contra mim, não é?

– Nós, mulheres, somos como irmãs nesses assuntos, senhor. E realmente gostamos de ver o poderoso perder.

– A senhorita fala como se eu não tivesse chance – disse ele rindo.

– Tenho esperanças de vê-lo estripado, descamado e na frigideira até junho.

O humor fez os olhos de Hayden brilharem. A diversão o transformara. Não parecia mais tão rígido. Forte, sim, mas não rígido.

– Um peixe? Está me comparando a um peixe? Poupe-me alguma dignidade, Srta. Welbourne. Uma raposa caindo na armadilha, um touro vencido por um toureiro. Há muitas analogias à disposição, mas um peixe é cruel demais.

Ela sorriu sem querer.

– Achei a imagem muito convincente.

Apesar de ainda sorrir, ainda... atraente, a conduta dele ficou mais séria.

– Se a senhorita se recusa a desestimular minha tia, então está certo. Mas faça o que puder para evitar que a garota aceite as ideias da mãe. Não gostaria de vê-la magoada ou desencorajando pretendentes por conta desse esquema. Não há a menor possibilidade de eu me casar com minha prima.

– Por que não?

O sorriso dele foi firme o bastante para dar a entender que Alexia tinha ido longe demais. Não havia novidade nisso e ela não retirou a pergunta.

– Ela é uma criança – disse ele.

– Todas elas são. As igrejas estão cheias de noivas meninas, já que se considera encalhada uma mulher solteira de 22 anos.

– Não pretendo me casar no futuro próximo, menos ainda com uma criança. Essas meninas têm ideias muito frívolas e românticas, o que obriga os homens a fingir fraqueza e sentimentalidade. Além do mais, ela é minha prima. Sei que esses arranjos são comuns, mas são uma prática doentia que não aprovo.

Doentia?

– Benjamin Longworth era meu primo. Não gosto da ideia de que meu amor por ele seja doentio.

Hayden empalideceu.

– É claro que não. Desculpe-me, Srta. Longworth. Às vezes sou muito sem jeito ao expressar minhas ideias.

Seguiu-se um silêncio breve e desconcertante.

– É claro que não tínhamos convivência quando éramos mais jovens – disse ela. – Ele não me conheceu quando eu era garota...

– Sim, exatamente. Então entende por que um casamento com Caroline é... impossível.

Ele encerrou o assunto se levantando e caminhando sem rumo pela sala.

– Quando a senhorita conheceu Benjamin?

A pergunta foi feita casualmente, enquanto ele examinava uma cena doméstica pintada por Chardin. O quadro tinha vindo com vários outros após a partida dos Longworths, um empréstimo da coleção de Easterbrook para cobrir as paredes vazias.

– Quando me juntei a eles aqui em Londres. Eles viviam em Cheapside na época. Escrevi-lhes sobre minha situação depois que meu pai morreu e Ben me respondeu dizendo que deveria vir. Ele foi muito gentil.

Gentil e alegre. O mundo se iluminava quando Ben estava por perto. Ele inspirava uma leveza de espírito, muito diferente do homem que estava em sua companhia no momento, que a deixava com raiva e na defensiva o tempo todo.

– O senhor disse que se conheceram quando eram garotos. Como ele era quando jovem?

– A maturidade não mudou sua personalidade. Ele era igualmente impulsivo e despreocupado quando garoto. E fazia muitas travessuras.

– Quer dizer que ele foi um menino levado.

– De uma forma positiva. Todavia... O garoto, assim como o homem, não pesava as consequências de seus atos.

– É porque Ben vivia o momento. Ele não planejava nada. Contava com a sorte de que tudo desse certo no fim.

Ela amava isso nele. Amava como se sentia livre e quase inconsequente na presença de Ben. A vida a forçara a se tornar tediosa e sensata, até que os sorrisos dele a aqueceram em seu último ano juntos.

Ele lhe devolvera a juventude por um curto espaço de tempo e ela ainda ocultava aquela garota renascida e cheia de vida no mesmo lugar em que guardava as lembranças de Benjamin.

Rothwell tinha se virado e estava olhando para ela. Ele parecia rígido de novo e seus olhos azul-escuros demonstravam quão profundamente ele a avaliava. Ben nunca olhava para as pessoas daquela forma.

Ela sustentou o olhar. Foi um erro. A conexão a deixou em desvantagem, assim como acontecera no hall na semana anterior, quando ele chegara com a tia. O olhar dele era penetrante demais, enxergava demais. Ela sentiu como se ele estivesse lendo seu coração.

Alexia reagiu como acontecia com frequência diante desse homem. Parecia com a forma como Ben a fazia sentir, só que com tintas mais intensas. A atenção que ele lhe dispensava flertava com o perigo. O estímulo que lhe provocava causava tremores de medo.

Ela estremeceu. Disse a si mesma que estava com os pés firmes no chão. Mas a verdade sussurrava o contrário em seu coração. Ela era impotente para desviar o olhar, para rejeitar aquela excitação.

– Imagino que a vida não era enfadonha quando vivia nesta casa – disse ele.

Ela se sentiu corar. Era como se ele tivesse visto aqueles beijos roubados nas suas lembranças e agora se referisse a eles.

Ele parecia prestes a falar de novo, mas foi interrompido. Um lacaio apareceu para dizer que eles eram aguardados na biblioteca.

– Parece que o passatempo está pronto – disse lorde Hayden.

Ele a acompanhou até a outra sala. A proximidade do corpo dele a fez pensar na volta de reconhecimento que haviam feito pela casa. E isso não ajudou em nada a combater o estranho poder que ele exercia sobre ela.

– Gosto de falar sobre Benjamin com o senhor – disse ela ao entrarem na biblioteca. – Espero que algum dia me divirta com casos sobre seu tempo na Grécia ou a juventude dele.

– Certamente, Srta. Welbourne.

Um pequeno palco armado aguardava por eles na biblioteca. Duas colunas baixas flanqueavam um pano azul esticado no chão. Um tecido branco pendia ao fundo, preso nas prateleiras de livros. O cenário improvisado mostrava uma pintura de montanha e de um templo com colunas.

Lady Wallingford estava de pé ao lado. Ela indicou que eles se sentassem em duas cadeiras dispostas diante do pano azul.

Ela bateu palmas para chamar atenção. Outra palma e a representação começou.

Caroline surgiu de trás do cenário. Estava usando uma roupa ao estilo grego, que deixava seus braços de fora e mostrava um pouco de seu quadril e muito da sua pele no pescoço e colo. A mãe prendera seu cabelo para cima, dando-lhe um ar mais maduro, e até maquiara levemente seu rosto jovem.

Caroline estava muito bonita, muito adulta – quase infame.

Alexia esticou o olhar para lorde Hayden, para ver sua reação. Pegou-o discretamente olhando de volta para ela.

– E eu que achava que as tinha sob controle, Srta. Welbourne – sussurrou ele. – Parece que minha tia não pretende esperar até junho para me fritar.

A bela isca de Lady Wallingford se posicionou entre as duas colunas e começou a recitar uma passagem da Ilíada.


CAPÍTULO 5

Usando um vestido velho e envolta num longo xale de lã, Alexia se refugiou na biblioteca. Acendeu a lareira, deitou-se no sofá ao lado e apoiou na barriga um livro aberto.

Silêncio. Liberdade. Um fogo aconchegante e horas de privacidade. Fechou os olhos e saboreou a sensação de retorno a um mundo que conhecia bem. A chuva que batia suavemente no vidro das janelas só melhorou a sensação.

Tinha sido brilhante pedir a lorde Hayden uma folga por semana. Ousado também. Nunca imaginou que seu pedido pudesse ser atendido; ficou até espantada quando lorde Hayden cedeu. Talvez ele de fato se sentisse um pouco culpado em relação aos Longworths. Não havia outra explicação.

Era um ponto a favor dele, mas ela não desperdiçaria tempo avaliando seu caráter. Planejava aproveitar ao máximo essas horas sem Lady Wallingford e Caroline – principalmente, sem o próprio lorde Hayden. Ele estava sempre pelo caminho, fazendo visitas de dia ou jantando à noite. O homem era jovem, solteiro e rico. Com certeza tinha coisas melhores para fazer do que visitar a tia.

Ela sorriu para si mesma. Sem dúvida que tinha. Entretanto, sua tia possuía a excepcional capacidade de requisitar sua presença e faltava nele a habilidade necessária para escapar de suas maquinações. Alexia desconfiava de que sua analogia com o peixe tinha sido inapropriada. Rothwell não estava sendo seduzido com uma isca. Henrietta fixara um anel no nariz dele e o estava lenta e implacavelmente levando para o matadouro.

Ela riu ao pensar nessa imagem. Contudo, enquanto um minotauro era arrastado pela corda de Henrietta, a fantasia se transformou. De repente, ela o viu de pé ao lado da jovem Caroline numa igreja.

Seu júbilo se desfez e ela examinou a cena em sua cabeça. Não seria um casamento com amor. Ela duvidava se havia algum romantismo nele. Caroline imaginaria que sim, pois era jovem e impressionável. Quando essa ilusão se desvanecesse, já teriam se adaptado um ao outro. Caroline teria o que a maioria das mulheres almejava: segurança, apoio e, quem sabe, gentileza.

O quadro mudou de novo e Rothwell não estava mais na igreja. Em vez dele, surgiu Benjamin. E Alexia já não observava tudo olhando de cima: estava ao lado dele. Por um instante, a alegria encheu seu coração, como se a cena fosse real.

Ela afastou a imagem da cabeça com um arrependimento melancólico. A vida nem sempre era como se desejava. Às vezes era preciso se contentar com menos do que fora sonhado.

O livro chamou sua atenção. Normalmente leria Walter Scott em seu quarto, onde ninguém poderia ver. Não era o tipo de literatura séria esperada de uma preceptora. Não tinha sido incluído na lista que ela dera a Caroline como parte de suas lições.

Embrulhada e aconchegada, permitiu-se a libertação temporária de viver em um mundo de homens arrojados e mulheres impressionantes, de paixões fortes demais para estarem no mundo real e de romances dramáticos demais para serem verdade.


– Irc.

O rosto de Caroline se torceu de nojo, mas ela se aproximou da cabeça de abutre preservada em álcool. De todos os artefatos eruditos atulhados na coleção do museu em Montagu House, esse grotesco espécime só não era mais popular do que a múmia egípcia e o porco com cara de ciclope conservado em salmoura.

Hayden sorriu com a fascinação e a repulsa infantis. Era revoltante pensar que ela provavelmente estaria casada dali a um ano. Não aprovava que meninas tão novas fossem oferecidas a pretendentes, e não só porque o casamento precoce de sua própria mãe tivesse sido tão trágico.

– Agora temos que ver as peças de mármore – arrulhou Henrietta, puxando a filha da multidão que observava o abutre.

Por duas vezes Hayden já desviara a atenção delas para que esquecessem os mármores de Elgin. Ele se lembrava perfeitamente de como a tia vestira Caroline para sua apresentação da Ilíada e imaginava por que Henrietta se mantinha tão inflexível quanto a ver as peças de mármore. Pouco tinha a ver com o fato de serem uma mostra magnífica da arte grega.

– Não creio que a Srta. Welbourne fosse considerar apropriado a Caroline ver as esculturas em mármore – disse ele.

– Sou mãe dela; a decisão cabe a mim. Contudo, a Srta. Welbourne a instruiu a vê-las. Falou tão bem desses trabalhos que também tive vontade de revê-los.

– Se ela foi tão categórica, deveria ter nos acompanhado na visita.

Ele só descobrira que a Srta. Welbourne tinha optado por tirar folga naquele dia quando chegara para pegar as damas. Ela o deixara à mercê de Henrietta, enquanto se divertia na cidade, sabe lá Deus fazendo o quê. Teve ímpetos de mandar chamá-la e ordenar que entrasse em sua carruagem imediatamente e que escolhesse outro maldito dia para descansar.

A tia o arrebanhava na direção que desejava que ele seguisse.

– A Srta. Welbourne disse que as esculturas estão em um pequeno prédio à parte. É por aqui, não?

Saíram de Montagu House, enfrentaram a chuva e entraram no anexo que abrigava as esculturas que lorde Elgin retirara do grande Parthenon em Atenas.

– Você não deve ficar chocada, Caroline – instruiu Henrietta. – Grandes artistas tomam liberdades que podem parecer escandalosas, mas a arte ocupa um plano mais elevado da experiência. Além disso, essas peças são muito antigas, de uma época anterior à era cristã.

Hayden suspeitava de que, na verdade, a intenção da tia era causar espanto em Caroline. Essa história de plano mais elevado era lorota. As figuras masculinas no salão estavam praticamente nuas. Sua tia estava realizando uma forma disfarçada de iniciação e a presença dele era inadequada.

Tia Henrietta queria isso também. Ela desejava que a filha visse as estátuas e ficasse se perguntando o que haveria por baixo das vestimentas do futuro marido ao seu lado.

Se a Srta. Welbourne tivesse vindo, poderia ter dado uma aula de arte para Caroline, enquanto ele se manteria à sombra. Conjecturou se Henrietta tinha decretado que a preceptora ficasse em casa, para que ele não tivesse essa opção. O mais provável era que a Srta. Welbourne houvesse desconfiado do plano e dado uma mãozinha para sua tia.

Ele pretendia conversar com a Srta. Welbourne a esse respeito. Muito em breve.

Pararam em frente às métopas que mostravam a batalha entre os lápitas e os centauros. Hayden contou a história exibida ali. Henrietta analisou os aspectos artísticos.

Caroline olhava com curiosidade para os corpos masculinos nus. Seguiu-se um silêncio curto e constrangedor durante o qual Hayden se esforçou para manter toda a compostura.

O cenho de Caroline se franziu.

– Estão todas quebradas. É como se tivessem cortado fora as cabeças e os braços com espadas. Não imagino por que essas obras estão em exposição, muito menos por que são famosas.

Hayden quase respondeu que não era assim que os corpos ficavam quando decepados. A imagem bizarra invadiu sua cabeça e sua alma se entristeceu. Voltou a atenção para as damas a fim de conseguir controlar a sensação ruim.

– Trata-se da escultura das formas, querida. É por isso que são tão apreciadas – disse Henrietta. – Os dorsos, coxas e quadris...

– Não gosto nada disso.

– Outras pessoas compartilham suas críticas, Caroline – disse Hayden. – Muitos só começam a apreciar a arte grega depois de um tempo. Já ouvi dizer que as mulheres passam a gostar mais desses mármores conforme vão ficando mais velhas.

Ele indicou o caminho dessa vez, para fora do anexo.

– É uma pena a Srta. Welbourne ter ido visitar amigos em vez de nos acompanhar – comentou Hayden. – Tenho certeza de que ela seria capaz de explicar os aspectos artísticos para além do meu nível de sensibilidade.

– Ela não tirou folga para visitar amigos – disse Caroline. – Ela pretendia ficar em casa para cuidar de assuntos pessoais. Escrever cartas, coisas assim.

Isso não melhorou seu humor. Ele passaria mais algumas horas nesse passeio, enquanto a Srta. Welbourne escapava de suas funções para escrever cartas. Cartas de amor, era provável, para o falecido Benjamin Longworth.

Ela só se alegrava quando o nome de Ben era mencionado. Transformava-se em outra mulher. A lembrança de seu antigo amor a remoçava como por encanto. Isso era doentio! Também era um amor construído sobre mentiras. Mais uma vez Ben tinha agido por impulso, sem medir as consequências.

Ben nunca pretendera se casar com Alexia Welbourne, independentemente do que ela havia sido levada a acreditar. Estava atraído por uma jovem abastada e de família aristocrática muito antes da viagem para a Grécia. A própria ideia de lutar na guerra tinha sido uma forma de executar atos heroicos que impressionariam a tal jovem rica e inatingível.

Henrietta interrompeu seus pensamentos sugerindo que visitassem a biblioteca do museu. Hayden vislumbrou mais uma hora bancando o professor.

Quando abriu a porta, avistou um rosto familiar. Seu irmão Elliot estava sentado a uma mesa, examinando um grande manuscrito. Elliot retornara à cidade na noite anterior, vindo das bibliotecas de Cambridge, e já estava ali.

– Espere aqui, tia Henrietta.

Hayden deixou as duas na porta e andou na direção do irmão. Elliot estava tão absorto que foi preciso tocar seu ombro para chamar sua atenção.

A basta cabeleira escura foi jogada para trás. Elliot olhou através dos óculos. Sua mente refez seu caminho de volta do lugar aonde o manuscrito o levara.

– Hayden. Que surpresa!

– Será, com certeza. Venha comigo. Se fizer alguma objeção, vai se ver comigo.

Confuso, Elliot se levantou e o seguiu sem apresentar resistência.

– Vejam quem encontrei estragando os olhos em um denso tomo latino – anunciou Hayden.

Saudações cordiais se seguiram. Elliot vivia perdido no passado histórico, mas podia ser bem charmoso, quando queria. Caroline ficou envaidecida com os elogios de como estava crescida e bonita e como logo seria assediada por vários pretendentes depois de sua apresentação à sociedade.

– As damas gostariam de conhecer a biblioteca e saber de suas preciosidades, Elliot.

– Ficaria feliz em mostrar-lhes a coleção. Há muitas raridades que são ao mesmo tempo belas e instrutivas. Há também os projetos do arquiteto Robert Smirke para o novo prédio do museu, que está em construção.

– Que ideia esplêndida – disse Hayden. – Deixo-as em suas hábeis mãos.

Henrietta não ficou nada satisfeita.

– Mas, Hayden, achei que você...

– Tenho um compromisso esta tarde e logo teria que me despedir de vocês, de qualquer forma. Agora podem apreciar a biblioteca sem pressa. Elliot é muito mais qualificado para dar essa aula do que eu. Mostre-lhes tudo. Elas têm o dia inteiro.

Ele concluiu sua fuga. Seria improvável que a tia e a prima aparecessem em casa antes do jantar. Ele deixou a carruagem esperando por elas e saiu para procurar um cabriolé de aluguel.

Ele não mentira. Realmente tinha compromissos nesta tarde. Mas não nas próximas horas. Tinha que ir a outro lugar antes de seguir para o centro financeiro e tratar de negócios.


Ela emergiu de um sonho. Mesmo ao flutuar rumo à consciência, sabia que tinha tirado uma soneca sem querer. Algo a puxara de volta à superfície. Não fora um som. Uma sensação de perigo a arrancara do sono.

Abriu os olhos. A primeira coisa que viu foram outros olhos, de um azul tão escuro que surpreendiam. Avistá-los causou um eco em sua alma: tinha acabado de vê-los no sonho que agora se apagava nas brumas das memórias mais profundas.

As visões e odores do mundo real afastaram rapidamente o sono que restava, deixando-a cara a cara com lorde Hayden Rothwell.

Ele parecia muito alto em pé diante dela. E muito sério também, com uma pequena ruga a lhe marcar o cenho. Provavelmente desaprovava que criados dormissem no sofá da biblioteca.

Ela deu um salto e se sentou.

– Sua tia já voltou?

– Deixei-a com meu irmão Elliot na biblioteca.

Ele pairava sobre ela. Essa proximidade a deixava nervosa.

Isso a incomodava. Mesmo nas ocasiões em que conversavam informalmente, mesmo quando se deixava encantar por ele, esquecendo o motivo de odiá-lo tanto, aquela inquietação incômoda persistia.

Ela não deveria ter que tolerar isso hoje.

– Dei ordens a Falkner para que ninguém entrasse neste recinto.

– Os criados nunca imaginariam que tal ordem me incluiria. Na cabeça deles, sou o patrão desta casa e dono de tudo aqui dentro.

Ele não se moveu, como se enfatizasse que seu poder sobre “tudo aqui dentro” significasse que era dono dela também.

– É assim que pretende aproveitar as folgas que me persuadiu a lhe conceder? Lendo perto da lareira?

– Este é meu dia. Sou livre para fazer o que quiser. Se esperava um relatório, deveria ter me dito.

Ela queria que Hayden fosse embora. Ele estava estragando tudo.

– Então, por algumas horas, viverá aqui como outrora e tratará esta casa como se fosse seu lar de novo. Não havia compreendido o significado real da palavra “livre” quando a usou.

As palavras atingiram o coração de Alexia, ressoando em toda a sua verdade. Ele a compreendia melhor do que ela mesma. Entendia por que essas horas tinham sido tão deliciosas.

Tinha mais um motivo para odiar aquele homem agora. Levantou seu olhar para ele.

– Por que está aqui?

– Para vê-la.

Seu olhar mudou. Viu-a da cabeça aos pés, com o velho vestido verde e o grosso xale de lã. Alexia deveria ficar constrangida por suas vestimentas simples, mas naquele momento elas pareceram convenientes e... seguras.

– Também vim para conversarmos, de forma que entenda o que preciso que faça.

– Conheço minhas funções.

– Parece que não. Esperava que acompanhasse minha prima hoje.

– Como ela estaria acompanhada do senhor e da mãe, não havia necessidade que eu fosse. Sua tia concordou.

– Nós dois sabemos por que minha tia não quis que a senhorita fosse conosco. Assim ela poderia empurrar a menina mais facilmente para cima de mim.

– As intenções de sua tia em relação ao senhor não me dizem respeito. Escolhi este dia de folga com cuidado, de forma a não interferir nas aulas de Caroline.

– Acho que escolheu este dia para me evitar.

Mais uma vez, suas palavras ressoaram dentro dela.

– Talvez sim. O senhor tem sido uma presença mais constante nesta casa do que eu esperava. Para mim é muito árduo reunir as forças necessárias para manter a elegância.

A expressão dele se fechou de uma forma que ela conhecia bem. Ela estava sendo novamente ousada demais. Mas não se incomodava. Era seu dia de folga e isso significava, antes de qualquer coisa, que poderia ficar livre dele.

– De agora em diante, quando eu acompanhar minha prima e minha tia, a senhorita irá conosco.

– Não recebo ordens suas sobre minhas obrigações. Cabe à sua tia decidir, não ao senhor.

– A senhorita estará lá – disse ele com firmeza.

Ela cerrou os dentes e olhou para o fogo, ignorando Hayden o máximo possível. Mas ele já devia estar de partida. Depois de ter decretado a nova lei, não havia motivo para permanecer ali.

Ele não foi embora, mas, pelo menos, se afastou. Infelizmente, ficou mais perto da lareira, assumindo uma posição que exigia que ela olhasse para ele. Alto, forte e moreno, ele penetrava seu campo de visão e sua mente.

– A senhorita estava sorrindo enquanto dormia – disse ele. – Estava sonhando com ele, Ben?

– Não sei.

Um par de olhos a encarou das profundezas de sua memória.

– Acho que não, mas talvez sim – concluiu ela.

– Ele era meu amigo e tenho uma dívida com ele, mas...

– Espero que nunca tenha uma dívida comigo, pois sei muito bem como faz o ressarcimento.

Ela alcançou seu intento com essa frase. A reação dele fez sua nuca formigar. No entanto, junto com a precaução vinha uma enxurrada das outras sensações que aquele homem sempre lhe provocava.

– Ele morreu há três anos – disse Hayden. – Talvez devesse esquecer essa fixação.

A raiva lhe subiu à cabeça, fazendo-a deixar a prudência de lado. Levantou-se.

– Minhas lembranças são muito caras para mim, mas não são uma fixação.

– Na noite em que Caroline fez a apresentação da Ilíada, a senhorita falou do seu amor no presente do indicativo.

– Tenho certeza de que não fiz isso.

– Fez, sim, e está perdendo seu tempo.

– O senhor está sendo impertinente. Esta conversa seria despropositada mesmo que fosse um amigo íntimo, o que certamente não é. Não toleraria essas especulações intrometidas de um parente, imagine do senhor.

Ele se aproximou dela. Ela quase deu um passo para trás, mas sua raiva ignorava a prudência.

– A senhorita não terá um futuro, a menos que o deixe ir embora.

Alexia teve que vergar o pescoço para olhar para Hayden. Ele mais uma vez tentava impor sua presença e sua vontade. Gostava de fazer isso. Alexia queria poder bater nele pelo que lhe causara. Sua pulsação se acelerou e suas têmporas pareciam explodir.

– Como ousa falar do meu futuro? O senhor, entre todos os homens? Ele já era pouco promissor o bastante há um mês. Eu não tinha fortuna nem beleza, mas, pelo menos, tinha uma casa e uma família. É ultrajante de sua parte tocar neste assunto comigo.

Ele aceitou suas acusações sem comentários. Alexia percebeu a raiva em seus olhos, que se equiparava à sua própria. Mais do que nunca era necessário ter cautela, no entanto, Alexia a jogou pelos ares.

– Existem homens que veem além da fortuna. E sua beleza é suficiente.

Considerando sua expressão intensa e séria, a voz dele soou muito calma.

– Agora o senhor está sendo cruel.

– Seus olhos são magníficos. Hipnotizantes. E refletem seu espírito indomável.

O elogio a deixou sem palavras. A raiva enfraqueceu. Em um esforço de reunir os pensamentos espalhados com o choque, ela ficou tentando desesperadamente se recompor.

Hayden deu mais um passo em direção a ela. Alexia não percebera sua aproximação antes, mas ele estava muito perto. Perto demais. Olhou dentro dos olhos dele. Era ela a hipnotizada agora.

Um toque aveludado em seu queixo. Ele a estava tocando. Um tremor pulsou sob os dedos dele e se espalhou para o colo de Alexia. Ela deveria...

– Sua pele é maravilhosa – disse ele, afagando-a de leve.

O toque suave, tão surpreendente e íntimo, deixou-a sem fôlego. O olhar dele baixou.

– E sua boca, Srta. Welbourne, sua boca é tão linda que duvido que um dia a senhorita possa entender quanto.

Ele olhou nos olhos dela outra vez e de novo a surpreendeu. Seu olhar queimava, cheio do perigo que percebera desde a primeira vez que o vira.

Com os olhos arregalados de espanto, ela notou a decisão repentina de Hayden. Foi tão absurdo que ela não acreditou em seus instintos.

A boca de lorde Hayden encontrou a de Alexia. Quente, firme, autoritário, o beijo levou a uma sequência de susto e maravilhamento. Sua cabeça era uma confusão só. Em algum lugar no meio de suas reações caóticas, a Alexia prática dava ordens sensatas sobre o que fazer, mas ela estava deslumbrada demais para obedecer.

Ela reagiu sem acanhamento. Sentindo que um calor premente percorria seu corpo todo, pulsando e fervilhando em seus seios, seu ventre e mais abaixo. A excitação se tornou física, ameaçando tomá-la por completo. Correntes de prazer a seduziam a ponto de abandonar-se.

As sensações a encantaram. Ele a abraçou e ela se rendeu. Era uma intimidade tão deliciosa que Alexia gemeu silenciosamente em agradecimento. A força que a segurava, o corpo firme pressionando o seu, o calor intenso da boca beijando seus lábios, seu pescoço, seu peito... Uma Alexia nem um pouco sensata se revelou no estímulo sensual e acolheu a torrente de paixão.

Os beijos pararam. Dedos firmes e viris seguravam seu rosto. Ela abriu os olhos e encontrou lorde Hayden observando-a. O desejo transformava a severidade dele. Mesmo sua rigidez ficava sedutora.

Ele a beijou de novo e uma batalha começou a ser travada dentro de Alexia. Ela vira muitas coisas em seus olhos. Os pensamentos que fervilhavam na mente dele. Também percebeu a impressão que dava naquele momento: era uma mulher se submetendo a um homem de quem não gostava e em quem não confiava. Uma solteirona solitária aceitando as atenções de um qualquer.

Alexia recobrou um pouco do equilíbrio perdido, mas não queria abrir mão de se sentir tão viva. Não queria perder aquele contato físico. Mesmo quando suas mãos empurraram o peito dele, tentando se soltar, grande parte dela queria se fundir nele, não importando quem ele era, nem a vergonha que adviria.

Ela viu e sentiu cada instante a seguir – o relaxamento da pegada dele, o lento desmanchar de seu abraço, o afastamento de seu toque – e seu corpo reagiu a cada perda.

Alexia se afastou rapidamente rumo à janela. Incapaz de encará-lo, olhou para fora. Tentou se aprumar para parecer normal quando saísse da biblioteca. Assim que seu bom senso retornou, uma forte sensação de humilhação a invadiu.

Esperava que lorde Hayden tivesse a bondade de sair. Ele não teve. Ela pensou que ele pelo menos iria se desculpar. Ele nada disse. Sentiu que ele a olhava. Isso só piorou as coisas. Se ele fosse embora, ela poderia maldizer sua própria fraqueza e a crueldade dele. Enquanto ficasse, ela continuaria trêmula e envergonhada, perturbada demais para se recompor.

– Isso não foi muito honroso de sua parte, lorde Hayden.

– Não.

Ele não parecia arrependido. Seu tom parecia dizer: Talvez não, mas eu faço o que quero.

– Sei por que fez isso – disse ela. – Sei o que deve estar pensando a meu respeito.

– Então a senhorita sabe muita coisa.

A voz de lorde Hayden Rothwell soou mais próxima. Alexia percebeu que ele tinha vindo em sua direção. Parara a menos de um metro dela. Para seu espanto, a excitação e o perigo começaram a enfeitiçá-la de novo. Seu coração começou a bater mais pesado e mais lento.

– O que penso da senhorita? Como não tenho certeza, uma explicação sua seria muito útil.

Um homem decente teria se desculpado e ido embora.

– Ben e eu não éramos tão íntimos. O senhor interpretou mal.

– Não estava pensando nisso, de forma alguma. Meu único pensamento foi que a senhorita precisava ser beijada.

Ela se virou determinada a colocar um fim na maneira como brincava com ela. Seu coração falhou ao vê-lo, mas ela conseguiu pôr aquela excitação de adolescente em seu devido lugar.

– Não pelo senhor. Não sou a criada de quem o lorde pode se aproveitar. Peço-lhe que se lembre disso no futuro.

Ele a olhou direto nos olhos, como sempre, só que agora seu olhar refletia aqueles beijos. Agora seria sempre assim. Dar liberdades a um homem criava uma familiaridade que minava de uma vez por todas qualquer formalidade.

– Não tentei agarrá-la, só a beijei. E não foi de forma tão ousada quanto a senhorita teria permitido.

O rosto dela estava fervendo.

– Agora o senhor está me insultando.

– Não, estou sendo honesto. Mas vou deixá-la a sós, para que finja o contrário.

Com um leve cumprimento, Hayden se dirigiu para a porta.

– Lorde Rothwell, espero que no futuro demonstre o respeito que meu emprego junto a sua prima exige.

Ele parou à porta e virou-se.

– Ainda não me decidi.

– Então permita-me ajudá-lo a se decidir. Não gostei de seu beijo e não deve fazer isso de novo.

Ele abriu a porta.

– Gostou, sim. Acha que um homem não consegue perceber a verdade?


CONTINUA

Uma sombra penetrou cedo na casa junto com o visitante inesperado. Alexia se sentiu perturbada mesmo antes de ver quem era.
Ela descia a escada carregando sua cesta de costura e parou nos degraus ao notar as vozes que conversavam baixo no hall. Mesmo sem entender direito as palavras, compreendeu o tom firme de quem faz exigências. Percebeu que a forma respeitosa como o empregado se opunha de nada servia. Falkner, o mordomo, foi chamado. Diante de um poder silencioso e determinado, as barreiras da casa cediam.
Um mau pressentimento tomou conta de Alexia, como no dia em que aquele homem havia chegado para contar à família sobre Benjamin. Já tivera essa sensação vezes suficientes para saber que não deveria ignorá-la. Más notícias mudam o mundo em um segundo. Mudam o ar. O coração humano pressente que o sofrimento está chegando com tanta certeza quanto um cavalo percebe uma tempestade que se aproxima.
Não conseguiu se mover. Ia se juntar às primas no jardim, para aproveitar o sol da tarde com sua cesta de costura, mas a ideia lhe fugiu da mente.
Um par de pernas surgiu andando na sua direção. Pernas compridas, calça preta e botas elegantes. Elas seguiram o mordomo rumo à escada. Falkner tinha no rosto a expressão de um serviçal que houvesse recebido ordens de um rei.
O tronco do visitante começou a entrar em seu campo de visão, logo seguido dos ombros e da cabeça. Como se sentisse que alguém o observava, ele olhou para cima, para o patamar onde ela se encontrava.

 

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Imediatamente Alexia entendeu a submissão de Falkner. A atitude, o rosto e o porte do visitante intimidariam até quem não conhecesse sua posição social. O cabelo escuro, desarrumado de um jeito que parecia não ter sido penteado naquela manhã, emoldurava o belo rosto de traços angulares e fortes, como se fossem entalhados. Sinais de cansaço obscureciam o azul profundo de seus olhos. Um autocontrole forçado retesava seu maxilar quadrado e sua boca bem desenhada. Lorde Hayden Rothwell, irmão do quarto marquês de Easterbrook, era a imagem do homem exausto mas determinado a cumprir sua dura tarefa. Certamente não viera em resposta aos muitos convites que Timothy havia deixado para Easterbrook em sua residência ao longo do último ano.

Ao se aproximarem, Falkner cruzou os olhos com os dela, expressando seu desânimo. O mordomo também pressentia a tempestade.

Lorde Hayden parou no mesmo patamar da escada em que ela se encontrava e fez um gesto quase imperceptível, cumprimentando-a. Já haviam sido apresentados, mas ele não lhe dirigiu a palavra. Em vez disso, ao levantar o rosto, mediu-a dos pés à cabeça. A avaliação foi tão completa, tão estranhamente interessada, que ela sentiu que corava.

A expressão daquele rosto anguloso se alterou levemente. Como se uma estátua tivesse ganhado vida, os olhos do homem se suavizaram e sua boca relaxou. De súbito, a compaixão o serenava.

Mas, em um piscar de olhos, seu porte severo voltou, expulsando a candura. Alexia, no entanto, vira o bastante para sentir o coração pesar. Reconheceu pena no olhar que ele lhe dirigira. A chegada desse homem não anunciava nada de bom.

– Está levando lorde Hayden para a sala de visitas ou para a biblioteca, Falkner?

Ela estava sendo indelicada, mas não se importava. Com o passar dos anos, aprendera que imaginar más notícias era pior do que efetivamente ouvi-las. Não tinha a menor intenção de ficar esperando, submissa e preocupada.

– Para a sala de visitas, Srta. Welbourne.

Lorde Hayden percebeu suas intenções.

– Por favor, não perturbe a Srta. Longworth com minha presença. Não se trata de uma visita social.

– Não a incomodaremos se não for seu desejo. Contudo, é possível que demore algum tempo até que o Sr. Longworth possa recebê-lo. Podemos ao menos nos encarregar de que o senhor fique à vontade.

Não esperou por aprovação. Deu meia-volta e foi subindo a escada, indicando o caminho para o segundo andar.

Ao chegar à sala de visitas, deixou a cesta de costura de lado e cuidou para que ele ficasse confortável, conforme prometera. Ainda que ele não quisesse, ela se portaria educadamente, como uma anfitriã.

– O tempo está bastante agradável para janeiro, não acha? – perguntou ela após ele ter concordado em se sentar no sofá novo, de um tecido estampado em tons azuis. – O dia até agora está maravilhoso.

As sobrancelhas dele se arquearam um pouco diante da infeliz ênfase no “até agora”.

– Sim, tem feito um calor atípico nos últimos dias – disse ele.

– Acho dias assim cruéis, por mais que os aprecie.

– Cruéis?

– Eles me fazem acreditar que a primavera está se aproximando, quando ainda teremos alguns meses de frio e umidade pela frente.

Por um segundo, uma luz travessa brilhou nos olhos dele.

– Pode não passar de uma ilusão – falou o homem –, mas prefiro me deleitar nessa calidez e me preocupar com o frio apenas quando ele chegar.

A frase pareceu quase imprópria. Ela mudou de assunto fazendo uma observação sobre os feriados recentes. Ele concordava com tudo o que ela dizia. Com muita dificuldade, ela ia levando adiante a desajeitada conversa.

A mente dele não estava ali, mas na reunião com Timothy. O ar na sala de visitas foi ficando pesado. A presença daquele homem fazia pensar que o juízo final estava próximo.

Ela não aguentava mais.

– Meu primo está doente, lorde Hayden. Talvez não consiga se recompor o bastante para recebê-lo. A conversa não pode esperar mais um dia?

– Não.

Foi tudo o que obteve dele. Essa única palavra, dita de modo simples, direto e firme.

Ele voltou sua atenção para longe da conversa, para o nada. E continuou assim, como antes, na escada. Ela se perguntou se ele a consideraria presunçosa por recebê-lo. Não era a dona da casa, apenas uma mera prima. Mas a culpa não era dela se ele estava confinado ali com uma substituta. Fora ele quem não permitira que Roselyn fosse informada de sua presença.

– Talvez, senhor, se eu levasse uma mensagem para meu primo a respeito de sua visita, ele pudesse...

A voz dela foi se dissipando quando ele a encarou como um vigário faz para silenciar uma criança tagarela na igreja.

Ela não se importou com a expressão em seus olhos, que deixava claro que ele percebera o que ela estava fazendo. Hayden Rothwell tinha a reputação de ser inteligente, ríspido e arrogante. Até o momento, ela não poderia discordar dessa avaliação.

Mas também ela não tivera muito tato ao tocar no assunto. Então tentou uma nova abordagem. Como ele era conhecido por sua sagacidade nos negócios, mudou o rumo da conversa para esse tema, tentando deixá-lo mais receptivo a outras perguntas.

– Teve alguma notícia do centro financeiro hoje, lorde Hayden? A crise nos bancos continua?

– Temo que permanecerá por algum tempo, Srta. Welbourne. É de se esperar quando as pessoas têm medo.

– O senhor tem negócios com o banco do meu primo, não é verdade? Está tudo bem por lá, espero.

– Há uma hora, quando saí do centro financeiro da cidade, o Darfield e Longworth permanecia sólido.

– Graças a Deus. Não houve uma corrida ao banco, então. Com tantas outras instituições passando por problemas, fiquei preocupada.

Uma sombra perceptível em seu olhar demonstrava que ele parecia se divertir.

– Não, não houve corrida ao banco.

Isso a aliviou. Várias das grandes instituições financeiras londrinas tinham enfrentado dificuldades no mês anterior. Os jornais estavam cheios de boatos sobre a quebra de pequenos bancos. Aonde quer que se fosse, só se falava em fracasso, ruína e falência. Ela suspeitava de que a atual doença de Timothy se devesse à preocupação com o futuro de seu banco.

– A senhorita tem dinheiro lá? – questionou, parecendo realmente interessado.

– Uma ninharia. Minha preocupação é com meus primos.

Ela conseguira atrair sua atenção com as perguntas sobre a situação financeira do banco. Até bem demais. Ele a olhou de novo, mais demoradamente dessa vez, com uma arrogância casual que demonstrava que ele se sentia nesse direito, algo que homens em posição inferior não ousariam. Aquela avaliação só seria feita por um homem que tivesse plena consciência de seu valor e que, por isso, dispensava algumas regras de etiqueta.

A atenção dele se concentrou intensamente nos olhos dela, observando-a de forma tão perspicaz que ela precisou piscar para se recompor. Lenta e deliberadamente, ele analisou o restante do corpo de Alexia. Ela enrubesceu e uma comichão desconfortável percorreu toda a sua pele. Ele a perturbou de tal maneira que lhe fez lembrar a sensação causada anos atrás pelo olhar de outro homem.

Ficou embaraçada diante da própria reação. Não se julgava alguém que se deixasse abalar por um homem bonito. Não era tola como a jovem Irene. Em silêncio, se censurou por agir como uma solteirona ávida pela atenção de um homem.

Nada na expressão dele indicava que houvesse notado o desconforto dela. Nem ela teve qualquer ilusão de que o interesse do homem fosse desse tipo. Ela sabia o que ele estava pensando. Com seu cabelo castanho e o rosto comum, ela não causava grande impressão. Sem dúvida ele também percebera como os módicos recursos financeiros afetavam sua aparência. Seu vestido não só estava fora de moda como também tinha discretos remendos. O lorde provavelmente estaria vendo cada ponto deles.

– Srta. Welbourne, creio que fomos apresentados no culto a Benjamin – disse ele. – A senhorita é a prima que veio de Yorkshire, não?

Seu orgulho foi atingido por um doloroso golpe. Ele não sabia quem ela era ao entrar naquela sala de visitas. Se não lembrava que já haviam sido apresentados, ele deveria achar incomum o fato de tê-lo recebido, assim como certamente a considerara bastante ousada em sua conversa.

O choque foi seguido pela irritação. A raiva que sentia não era dele, apesar de abrangê-lo mesmo assim, mas tinha origem na situação que a tinha tornado tão esquecível.

– Sim, nos conhecemos no culto em homenagem a Benjamin.

O nome e a lembrança fizeram ecoar uma antiga dor. Tinha sido um culto, não um funeral. O corpo de Benjamin não estava presente, mas perdido no mar. Fazia quatro anos que ele partira da Inglaterra e ela ainda sentia sua falta.

De repente, lorde Hayden não pareceu tão rígido. Uma expressão mais sociável suavizou suas feições belamente esculpidas.

– Eu o tinha como um amigo – disse ele. – Nós nos conhecemos na infância. Sua casa não fica longe das terras de Easterbrook em Oxfordshire.

Timothy sempre mencionava os laços entre Easterbrook e sua família, devidos ao fato de serem vizinhos. Não era uma ligação tão próxima a ponto de que respondessem aos convites de Timothy, é claro. No entanto, se a amizade tinha sido entre Benjamin e Hayden Rothwell, isso explicava algumas coisas, como o motivo da presença de lorde Hayden no culto.

– O senhor também lutou na Grécia, não? – perguntou ela, feliz por tocar em um assunto que o deixava menos severo e que mencionava o querido Benjamin.

– Sim, fui um dos admiradores da Grécia que aderiu à causa deles contra a Turquia. Participei da guerra no início, na mesma época que seu primo. Mas, ao contrário dele e de Byron, tive a sorte de sair vivo dessa aventura.

Ela imaginou Benjamin, sempre otimista, um homem tão cheio de vida e alegria que isso o tornava imprudente. Viu-o lutando como um herói pela liberdade do povo, tendo atrás de si a paisagem de um antigo templo nas montanhas. Ela cultivava essa imagem dele. Como lorde Hayden tinha estado lá com Benjamin, ela já não se importava tanto que ele a tivesse olhado dos pés à cabeça.

Ele estava fazendo de novo, só que agora não era seu vestido que analisava. Era seu rosto e... ela.

– Perdoe-me, Srta. Welbourne. Não quero parecer inconveniente, mas seus olhos têm uma cor incomum. Parecem violeta. É a luz aqui ou já lhe disseram isso antes?

– Não é a luz. A cor dos meus olhos é a única característica marcante que possuo.

Ele não discordou, o que ela considerou deselegante. Ele refletiu sobre a resposta dela e sobre a sua própria.

– Ele falou da senhorita com respeito e afeição. Benjamin, na Grécia. Não disse seu nome. Olhos violeta, no entanto... lembro-me dessa referência. Não percebi no culto que seus olhos tinham essa cor ou teria lhe dito, o que poderia ter-lhe trazido algum consolo naquele momento.

O coração dela se inundou com uma emoção suave e perfeita, apesar da dolorosa saudade que a provocara. Mal pôde se conter e seus olhos se umedeceram. Benjamin falara dela nos dias antes de sua morte. Fizera confidências a esse homem sentado com ela na sala de visitas. Lorde Hayden sabia de seu amor e de seus planos. Alexia tinha certeza disso.

Não ligava mais para o motivo que o trouxera ali. Sua gratidão pela pequena indicação de que Benjamin realmente gostava dela, de que pretendia se casar com ela, foi tão intensa que Alexia seria capaz de perdoá-lo por qualquer coisa naquele instante.

Passou a encará-lo de forma mais amigável. Tratava-se de um belo homem, agora que se permitia reparar. Não era totalmente rígido também. A dureza em volta da boca era culpa das características de sua família. Não se podia culpá-lo se seus ossos lhe davam uma aparência severa em vez de alegre.

– Obrigada por me contar isso. Ainda sinto muitas saudades de meu primo. Emociona-me saber que ele pensava em mim quando estava distante.

Desejou que ele repetisse as palavras exatas que Ben tinha dito. Mas, se ele pretendera fazê-lo, suas intenções foram frustradas. Timothy escolheu aquele exato momento para surgir na sala de visitas.

Timothy parecia bastante adoentado, com o rosto vermelho e os olhos apáticos. Alexia se perguntou se ele não estaria febril. Contudo, seu criado o deixara apresentável, com seu cabelo cor de areia e rosto ansioso despontando sobre casacos e colarinho que demostravam sua tendência a certa extravagância no vestir.

– Rothwell.

– Obrigado por me receber, Longworth.

Alexia se levantou de imediato, despedindo-se. Seu coração ainda estava repleto de felicidade por saber que Benjamin mencionara seus olhos aos seus amigos solteiros na Grécia. Todavia, não conseguia ignorar que um clima de más notícias iminentes impregnara a atmosfera da casa.


Segurando sua cesta, Alexia adentrou o jardim para se juntar às primas. A beleza da hera e do buxo não chegava aos pés de sua exuberância nos dias gloriosos de verão, mas o sol espantava o pior do frio e a falta de vento tornava o jardim um local hospitaleiro.

Roselyn e Irene aguardavam à mesa de ferro, com dois chapéus e sacolas com fitas e aviamentos. Alexia decidiu não mencionar o visitante. Talvez o mau pressentimento que ainda pairava em sua alegria recente fosse apenas uma impressão passageira.

– Você demorou – reclamou Irene, segurando um dos chapéus. – Ainda acho que este aqui não tem salvação e que deveria comprar um novo. Timothy disse que eu poderia.

– Nosso irmão é gastador demais – disse Roselyn. – Se não quisermos que sua apresentação à sociedade nos leve à falência, teremos que ser mais controladas.

– Não é Timothy quem fala em controlar o dinheiro, só você. Nem terei uma grande apresentação, não importa quantos chapéus eu compre – falou e um tom petulante surgiu em sua voz: – Não serei convidada para os melhores bailes. Todos os meus amigos já disseram isso.

– Pelo menos você terá uma apresentação – disse Roselyn. – Certamente é melhor ser irmã de um banqueiro importante do que de um proprietário rural empobrecido. Deveria agradecer a Deus por nossos irmãos terem investido nesse negócio. Se voltássemos para Oxfordshire, você se contentaria com um chapéu novo por ano e o escolheria com mais zelo, em vez de comprar três que não combinassem com você.

Alexia se sentou entre elas, tentando encerrar a discussão. Sendo a mais nova das irmãs Longworths, Irene não entendia a boa sorte que lhes coubera quando, oito anos antes, seu irmão Benjamin decidira investir no banco. A garota só via o que tinha perdido em termos de status, o que não contrabalançava com o luxo que ganhara.

Roselyn, agora com 25 anos, se lembrava muito bem do tempo em que haviam sido obrigados a vender as terras da família em Oxfordshire por causa de dívidas. Em função disso, ela não tivera uma apresentação formal aos homens solteiros na juventude e agora suas chances de se casar eram mínimas. Quando o recente sucesso do banco produziu uma longa fila de pretendentes, ela se mostrou descrente e exigente demais. Alexia suspeitava de que Roselyn se ressentia de que o interesse por ela só surgira após o enriquecimento da família.

– Podemos trocar a fita de cetim rosa por essa amarela – disse Alexia. – E olhe aqui, posso aparar as bordas, para deixar o arco mais perto do seu rosto.

– Vou odiar. Não gosto de chapéus reformados, mesmo que a reforma seja feita por alguém tão habilidoso como você. Fique com ele, se quiser. Pode ficar com o vestido que faz conjunto com ele também, então não terá mais que usar este de cintura alta. Vou avisar à minha criada que ele vai ficar para você, assim ela não o pedirá.

Alexia olhou fixamente para o conjunto de fitas brilhantes e coloridas que cintilava à luz do sol. Irene não era cruel por natureza, apenas jovem e, devido à mão aberta de seu irmão, mimada.

Um silêncio pesado pairou no ar. Irene pegou o chapéu, o avaliou com atenção e o jogou no chão.

– Peça desculpas – ordenou Roselyn em tom ameaçador. – Não vou pensar duas vezes antes de mandá-la morar no interior. Londres está virando sua cabeça e isso não é nada admirável. Está se esquecendo de quem é.

– Ela não está se esquecendo de nada – disse Alexia em um rompante.

Logo em seguida desejou não ter dito aquilo, mas não conseguira conter sua mágoa e seu ressentimento. Respirou fundo, com calma.

– Eu também não me esqueço de quem sou. Só você, por ser tão boa. Todos sabem que dependo desta família, que sou uma parenta pobre que deveria ficar grata por receber aquilo que minhas jovens primas jogam fora. Cada garfada que como é fruto da caridade de seu irmão.

– Oh, Alexia, eu não quis dizer isso... – falou Irene com o rosto contorcido de arrependimento.

– Não é verdade – replicou Roselyn para Alexia. – Você é uma de nós.

– É verdade. Concordei com esta situação anos atrás. Não me importo.

O fato era que se importava. Tentava ignorar, mas isso a desgastava. A humildade e a gratidão que sua situação exigia às vezes lhe escapavam, principalmente porque de início não se sentira obrigada a tê-las.

Sua mudança fora inevitável quando a propriedade da família passou para um primo de segundo grau. Não houve convite para viverem com esse herdeiro, como seu pai supusera. Assim, com 18 anos recém-completados, Alexia fora forçada a escrever para os Longworths, primos pelo lado de sua mãe, pedindo que a deixassem morar com eles. Não levara nada consigo além de vinte libras por ano e seu talento para reformar chapéus.

Benjamin, o primo mais velho, nunca permitira que ela se sentisse um problema para a família, apesar de sua chegada haver coincidido com o início de um novo empreendimento dele, que lhe deixara pouca folga nas despesas daquele primeiro ano. Com o sorriso largo e o bom humor de Benjamin, ela jamais sentia que devesse se mostrar apenas discreta e obediente. Mas depois da morte dele, a realidade de sua dependência ficara clara. Ben dava a ela os mesmos cuidados que oferecia a suas irmãs, ao passo que Timothy a enxergava com outros olhos. Agora ela não passava de conselheira nas visitas às modistas de Londres. Timothy a via como o fardo que ela era, enquanto Benjamin a vira como...

Uma memória de amor cuidadosamente preservada, um eco de emoção profunda e pungente, fez seu coração doer. Ele a vira como uma prima querida e uma cara amiga, o que no último ano tinha evoluído para algo mais. Se o que lorde Hayden dissera era verdade, então ela não se enganara. Se Ben tivesse voltado da Grécia, teria se casado com ela.

Pegou o chapéu.

– Obrigada, Irene. Vou ficar feliz em usá-lo. Pensando melhor: fita azul. Nem rosa nem amarelo vão tão bem com minha cor de cabelo e o tom de minha pele.

Roselyn cruzou os olhos com os de Alexia como que se desculpando. Alexia respondeu também com o olhar: Nasci filha de um cavalheiro, mas aqui estou, com quase 26 anos, sem dinheiro nem futuro. É assim que o mundo funciona. Não tenha pena de mim, eu lhe imploro.

– Quem está lá? – perguntou Irene, interrompendo a conversa silenciosa. – Lá em cima, na janela da sala de visitas.

Roselyn se virou a tempo de ver o cabelo escuro e os ombros largos antes que o homem se afastasse do vidro.

– Temos visita? Falkner deveria ter me chamado.

Alexia começou a retirar a fita rosa.

– Ele pediu para se encontrar com Timothy e não quis que você fosse incomodada.

– Mas Timothy está doente.

– Ele se levantou da cama mesmo assim.

Alexia sentiu a atenção de Roselyn sobre ela enquanto se ocupava do chapéu.

– Quem é? – perguntou Roselyn.

– Rothwell.

– Lorde Elliot Rothwell, o historiador? O que é que ele...

– O irmão dele, lorde Hayden Rothwell.

Os olhos de Irene se arregalaram. Ela deu um pulo e bateu palmas.

– Ele está aqui? Acho que vou desmaiar. Ele é tããão atraente.

Roselyn franziu a testa e olhou para a janela.

– Ai, meu Deus!


– Você andou bebendo, Longworth – disse Hayden. – Está sóbrio o suficiente para ouvir e se lembrar do que vou dizer?

Longworth se espalhou confortavelmente no sofá azul.

– Sóbrio até demais.

Hayden examinou Timothy Longworth. Sim, estava sóbrio o bastante, o que era bom, já que o que tinha para lhe dizer não poderia esperar. A chance de sucesso do plano diminuía a cada hora que passava.

– Passei os últimos dois dias com Darfield, enquanto você se escondia em sua cama, bebendo – disse ele. – O banco pode sobreviver à crise atual, se você seguir minhas instruções.

– Eu disse a Darfield que sobreviveria. Ele é covarde como uma velhota e teme que as reservas estejam muito baixas, mas eu lhe garanti nossa solidez.

– Só sobreviverá porque tomei ontem a decisão de manter os depósitos da família com você. Isso bastou para deter uma corrida ao banco que começou esta manhã.

– Houve uma corrida? – perguntou Longworth, tendo a decência de parecer preocupado. – Eu deveria ter estado lá, sei disso.

– É lógico que deveria.

– Mas o pior já passou, não é verdade? O perigo foi evitado, como disse.

– Por pouco. Apesar de ter vencido as dificuldades hoje, o banco está em sério perigo. Além disso, estou reavaliando minha decisão. É uma escolha difícil, porque, se eu tirar o dinheiro da família, o banco vai à falência. Se isso acontecer, você vai para a forca.

Longworth ficou quieto, uma estátua feita de indiferença.

Hayden não gostava da ideia de estar metido com Timothy Longworth. Tinha sido para ajudar um bom amigo que ele havia assegurado o crescimento do banco com títulos e dinheiro da família. Não se sentia obrigado a salvar o pescoço do irmão mais novo dele.

Longworth abriu um sorriso largo. Isso o fez parecer mais com Benjamin, apesar de mais claro, um contraste com os olhos e o cabelo escuros de Ben. Era uma semelhança que Hayden preferia não perceber naquele momento.

– É claro que deve estar falando metaforicamente quando diz “forca”. Apesar de “arruinado” não ser muito melhor do que isso, não é a morte.

– Quando digo “forca”, é isso que quero dizer. Cadafalso. Nó corrediço. Morte.

– Bancos abrem falência o tempo todo. Cinco faliram nos últimos quinze dias só em Londres e dezenas no interior. Não é crime. É o que acontece nas crises financeiras.

– Não é a falência do banco que vai levá-lo à cadeia, mas o que a contabilidade revelará depois.

– Nada me compromete, posso garantir.

A paciência de Hayden se esgotou rápido. Tinha passado a noite em claro ao lado de Darfield, tentando pôr ordem na bagunça oculta da contabilidade do banco. A fúria que ele contivera a duras penas quando descobrira o pior agora ameaçava romper as frágeis paredes que a controlavam.

– Decidi deixar o dinheiro da família com você, Longworth, mas estou preocupado com minha tia e a filha dela. Os 3% delas é tudo o que têm e elas dependem desses rendimentos. Como seu administrador, não poderia pôr isso em risco. Então, essa parte, essa pequena parte, eu decidi sacar.

Longworth ergueu a cabeça como se essa introdução não lhe dissesse nada, mas o primeiro sinal de pânico faiscou em seus olhos.

– Imagine o meu choque quando vi que os títulos da dívida pública delas tinham sido vendidos e que minha assinatura, como administrador de minha tia, tinha sido falsificada para isso.

Gotas de suor surgiram na testa de Longworth.

– Espere um instante. Está insinuando que eu falsifiquei...

– Tenho provas de que você, por várias vezes, cometeu o crime de falsificação de documentos. Você forjou assinaturas para vender títulos também. Depois continuou a pagar os rendimentos, para que ninguém suspeitasse, mas roubou dezenas de milhares de libras.

– Roubei coisa nenhuma! Estou chocado e ofendido com essa notícia. Darfield é quem deve ter feito isso.

Hayden partiu para cima de Longworth e o agarrou pelo colarinho, suspendendo-o do sofá.

– Não ouse manchar a honra daquele bom homem. Juro que, se mentir para mim agora, vou lavar as mãos e deixá-lo ir para o buraco.

Longworth levantou os braços para cobrir o rosto, protegendo-se do golpe que previa. O medo dele ao mesmo tempo deteve Hayden e lhe causou repugnância. Jogou Longworth de volta no sofá.

Timothy se curvou com o rosto nas mãos. Um silêncio pesado perpassou a sala, carregado da raiva de Hayden e do desespero palpável de Longworth.

– Você contou a alguém?

A voz de Longworth falhou de emoção.

– Só Darfield sabe e ele teme o que isso possa causar aos outros bancos, levando em consideração o clima atual no centro financeiro de Londres.

Hayden havia imaginado esse horror muitas vezes nos últimos dois dias. Os títulos – sólidas apólices que eram a base do crédito e da geração de rendimentos de mulheres leigas e seus filhos – eram supostamente seguros. Os bancos somente os mantinham pelos clientes. Não se pressupunha jamais que o dinheiro ficasse vulnerável.

Timothy Longworth rompera uma confiança sagrada ao falsificar assinaturas e se apossar desse capital. Se isso viesse a público, o pânico atual seria multiplicado por dez.

– O que lhe passou pela cabeça, Longworth?

– Fiz isso pelo banco. Estávamos vulneráveis, com as reservas baixas demais. Fiz isso para proteger os depósitos...

– Mentira! – Hayden só percebeu que havia gritado porque Longworth se sobressaltou. – Você fez isso para comprar esta casa, este casaco e as carruagens que servem para você passear com sua amante cara.

Timothy começou a chorar. Envergonhado pelo outro, Hayden se virou e olhou pela janela.

No jardim, um par de olhos violeta se voltou na sua direção, depois retornou para as fitas e a palhinha. Olhos como violetas em sombra fresca e de formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Era assim que Benjamin descrevera a Srta. Welbourne, em uma noite de embriaguez na Grécia. O tom não fora totalmente respeitoso, mas havia afeição em sua voz, então Hayden não mentira para ela. Contudo, ao ver a reação da moça – os olhos rasos d’água e como seu rosto se suavizou de forma tão doce –, desejou não ter dito nem uma palavra.

Não era um rosto belo, mas os olhos tornavam isso irrelevante. Sua cor incomum cativava primeiro, depois se notava como eles refletiam uma alma intensa e uma mente inteligente. Mostravam também experiência, como se aquela mulher compreendesse bem demais as realidades da vida. Ao se sentar sob a contemplação implacável daqueles olhos, ele se esquecera por alguns minutos da horrível missão que o trouxera àquela casa.

Uma boca que parece uma rosa, com néctar tão doce. Aparentemente, Ben tinha tocado em mais do que o coração da Srta. Welbourne. Não era nem um pouco de surpreender. Um homem cheio de vida como Benjamin Longworth conseguia mexer com muitas mulheres.

Roselyn e Irene Longworth, irmãs de Benjamin, estavam sentadas ao sol com a Srta. Welbourne. A mais velha era uma bela mulher de pele clara, cabelo louro-escuro e rosto doce. Destacava-se por sua beleza, mas era muito orgulhosa. O cabelo da mais nova era longo e claro; o corpo, esguio e o jeito, ainda infantil.

Sentiu alguém de pé ao seu lado. Longworth havia se levantado do sofá. Também observava as três moças no jardim.

– Ai, meu Deus, quando elas ficarem sabendo...

– Juro que elas nunca saberão a verdade da minha boca. Se conseguirmos salvar seu pescoço, você poderá contar quantas mentiras quiser. Um falsificador e ladrão deve ser capaz de inventar umas boas.

– Salvar, me salvar? Mas há uma forma? Obrigado, de qualquer jeito... Como quer que seja...

Hayden esperou enquanto Longworth se recompunha.

– Quanto, Longworth?

Ele deu de ombros.

– Umas vinte mil libras, talvez. Não fiz de propósito. De verdade. Na primeira vez, deveria ter sido um empréstimo de pouco valor, para cobrir uma dívida inesperada...

– Não quero saber quanto você roubou, mas quanto tem.

– Quanto eu tenho?

– Sua única chance é cobrir tudo, cada centavo. Com o que tiver e com as notas promissórias que assinar.

– Isso significaria contar a todos!

– Se eles não sofrerem prejuízos...

– Bastaria um deles dar com a língua nos dentes para eu ir...

– Para a forca. Sim. Uma fraude já seria o bastante. Você terá de confiar que o reembolso os satisfará e que eles entendam que só mantendo-se em silêncio poderão reaver o dinheiro. Posso falar por você e isso talvez ajude.

– Pagar a todos? Vou ficar falido. Totalmente falido!

– Mas vai escapar vivo.

Longworth agarrou o peitoril da janela para controlar a tontura. Olhou para fora de novo e seus olhos se umedeceram.

– O que vou dizer a elas? E Alexia... Se ficarmos reduzidos à renda dos aluguéis rurais, se eu tiver que pagar as dívidas tirando recursos deles também, não poderei mais sustentá-la.

Diante de mais um pensamento terrível, seu rosto desabou. Hayden imaginou o motivo:

– Você roubou os míseros recursos dela também? Não verifiquei as contas menores.

Longworth enrubesceu.

– Você não passa de um canalha, Longworth. Ajoelhe-se e agradeça a Deus por eu ter uma dívida de gratidão e honra com seu irmão.

Timothy não estava mais ouvindo. Seus olhos se anuviaram ao pensar no futuro.

– Irene ia ser apresentada à sociedade e...

Hayden não deu ouvidos aos lamentos do outro. Imaginara uma forma de salvar a vida de Longworth e evitar revelações que deixariam o atual pânico fora de controle. Mas não poderia poupar Longworth da ruína que essa solução geraria.

Passara a noite em claro fazendo cálculos e pensando nas consequências morais do caso. De repente uma profunda exaustão tomou conta dele.

– Sente-se – ordenou ele ao dono da casa. – Vou lhe dizer a quantia necessária e definiremos como você irá devolvê-la.


CAPÍTULO 2

Falido.

A palavra pairou no ar. A sala ficou em silêncio.

O sangue de Alexia congelou nas veias. Tim parecia muito doente agora. Ele se recolhera a seu quarto após a saída de lorde Hayden, mas se levantara da cama novamente de noite. Mandara chamá-la e a suas irmãs na biblioteca e lhes informara do desastre.

– Mas como, Tim? – perguntou Roselyn. – Um homem não vai disto – ela fez um gesto mostrando a exuberância da casa ao redor – à pobreza em um dia.

Os olhos dele se estreitaram e a amargura endureceu sua voz.

– Isso acontece se lorde Hayden decidir que sim.

– Lorde Hayden? O que ele tem a ver com isso? – perguntou Alexia.

Timothy olhou fixo para o chão. Parecia sem forças.

– Ele retirou o dinheiro de sua família do banco. Nossas reservas não foram suficientes para compensar a retirada e tive que penhorar tudo o que tenho. Darfield também terá de fazer isso, mas ele possui mais dinheiro do que eu. Ele pagou parte das minhas obrigações e, em troca, ficou com a minha cota no banco. Ainda assim, não foi suficiente.

Alexia controlou a fúria que fervia dentro dela. Que diferença faria para Rothwell onde todo aquele dinheiro ficava? Ele tinha que ter percebido o que isso causaria a Timothy, a todos eles. Havia entrado naquela casa ciente de que destruiria o futuro dos Longworths.

– Vamos dar um jeito – disse Roselyn, com firmeza. – Sabemos como levar uma vida mais simples. Vamos dispensar alguns empregados e comeremos carne somente duas vezes por semana. Vamos...

– Você não ouviu? – rosnou Timothy. – Eu disse que estou falido. Não haverá empregados, nem carne alguma. Não tenho nada. Não temos nada.

Roselyn o encarou, boquiaberta. Irene, que ouvia com expressão confusa, teve um sobressalto como se alguém a tivesse esbofeteado.

– Isso quer dizer que não vou ser apresentada à sociedade?

Timothy deu uma risada cruel.

– Querida, você não pode ser apresentada à sociedade londrina se não estiver em Londres. O canalha está tomando esta casa. Ela pertence a Rothwell agora. Vamos voltar para o pouco que temos em Oxfordshire e morrer à mingua por lá.

Irene começou a chorar. Roselyn ficou muda com o impacto da notícia. A gargalhada de Timothy foi se transformando em algo entre um cacarejo e um choramingo.

Alexia sentiu o medo se apoderar dela. Timothy não olhara para ela uma vez sequer desde que entrara na sala. E evitava seu olhar agora. Um pânico silencioso tamborilava em seu peito, querendo se avolumar.

Roselyn recobrou a voz:

– Timothy, podemos viver no campo de novo. Ainda temos a casa e algumas terras. Não será ruim. Nunca passamos fome.

– Será pior do que antes, Rose. Terei dívidas a pagar. Boa parte dos aluguéis irá para isso.

O tamborilar acelerou, espalhando-se por suas veias. Sentia calor e frio alternadamente. O destino que temia desde a morte do pai finalmente a encontrara. Era com dificuldade que mantinha a compostura.

Ela não deixaria Timothy pronunciar sua sentença com todas as palavras. Seria injusto e uma péssima retribuição à família que lhe tinha dado um lar.

Levantou-se.

– Se sua situação vai mudar de forma drástica, não precisarão do fardo de ter mais uma boca para alimentar. Tenho algum dinheiro guardado que poderá me manter até encontrar um emprego. Vou me recolher ao meu quarto para permitir que conversem abertamente sobre seus planos.

Os olhos de Roselyn se umedeceram.

– Não seja boba, Alexia. Seu lugar é conosco.

– Não estou sendo boba, estou sendo prática. Não vou forçar Timothy a dizer que devo ir embora.

– Diga-lhe que não tem que ir, Tim. Ela é tão sensata que vai ser uma ajuda, não um fardo. Ele não quer que você nos deixe, Alexia.

Timothy não respondeu. Nem levantou os olhos.

– Timothy – chamou Roselyn, em tom de repreensão.

– Gastarei tudo o que tenho para manter vocês duas, Rose – disse ele, finalmente se voltando para Alexia. – Sinto muito.

Alexia forçou um sorriso trêmulo e saiu da biblioteca. Fechou a porta atrás de si, deixando Irene e Roselyn aos prantos e Timothy envergonhado. Subiu as escadas correndo e maldizendo, a cada degrau, o homem responsável por aquela tragédia.

Hayden Rothwell era um canalha. Um monstro. Era um daqueles homens que viviam no luxo e destruíam a vida dos outros em um piscar de olhos. Ele não precisava ter retirado todo o dinheiro de uma só vez. Era tão duro e frio como parecia. Não tinha compaixão: esmagaria pessoas sob as botas, se desejasse. Ela o odiava.

Jogou-se na cama e enterrou o rosto no travesseiro de penas, onde destilou todo o seu veneno em Rothwell enquanto chorava. Estava tomada pelo pânico.

Falida. Não podia crer que estava passando por isso de novo. Seu pai falira dois anos antes de morrer. Muito provavelmente tinha sido esta a razão pela qual não fora acolhida por seu herdeiro. O destino agora lhe pregava uma peça estúpida, fazendo-a reviver toda a preocupação e o medo de antes.

A duras penas, foi tentando novamente se centrar. Já havia se perguntado algumas vezes o que faria caso se encontrasse naquela situação. Sempre soubera que isso poderia acontecer. Desesperada, procurou se lembrar dos planos feitos naquelas noites terríveis quando, no escuro, a precariedade da situação em que vivia se avultava sobre ela.

Poderia virar preceptora, se conseguisse boas referências. Tinha linhagem e educação para isso, ainda que tal função oferecesse uma vida horrível.

Também poderia procurar trabalho em uma chapelaria. Tinha jeito para fazer chapéus e gostava dessa atividade. Só que trabalhar em uma loja desse tipo seria a pior das humilhações. Não nascera para essas coisas, mesmo que essa ideia tivesse mais apelo do que ficar presa dia e noite cuidando da filha de outra mulher.

Também poderia se casar, apesar de no momento não ter pretendentes. Ela nem sequer pensara nisso depois de Benjamin. Seu coração era dele e sempre seria. A menina escondida em sua alma encarava com pesar a ideia de casar-se em troca de segurança. Depois de ter conhecido um grande amor, um casamento assim seria horrível. Contudo, sem beleza nem fortuna para atrair um marido, aquele era um assunto com que muito provavelmente não teria de lidar.

Enumerar opções lhe deu um pouco de confiança, ainda que baseada em cenários que não a agradassem tanto. Contava com vinte libras por ano e não iria morrer de fome. Poderia construir seu futuro se deixasse de lado o orgulho. Na verdade, tinha bastante experiência nesse campo.

Olhou em volta do quarto, para os móveis, à luz difusa da lamparina. Não era um cômodo grande. Nem tinha os tecidos luxuosos dos quartos de Irene e Roselyn ou as cadeiras e camas novas que elas haviam comprado no ano anterior. Mas era o seu espaço e tinha sido seu lar desde que Tim se mudara com elas de Cheapside, logo depois de Ben zarpar para a Grécia, fazia quatro anos.

Fechou os olhos e se perguntou quanto tempo demoraria até que Hayden Rothwell a jogasse no olho da rua.


Três dias depois, Alexia estava sentada na sala de café da manhã, lendo os anúncios no Times. A casa reverberava de silêncio. Não que os empregados antes fizessem barulho, mas sua ausência era perceptível. Somente Falkner permanecia, enquanto procurava outro emprego apropriado. Ela podia ouvi-lo na sala de jantar, embalando as porcelanas que Timothy tinha vendido na véspera.

Muito pouco dos luxos adquiridos nos últimos anos voltariam para Oxford-shire com suas primas. Rothwell ficaria com os móveis. Tudo o mais seria vendido. Naquele exato momento, os homens estavam na cocheira negociando o preço das carruagens.

Roselyn entrou no cômodo e se sentou ao lado de Alexia, que serviu café para as duas.

– O que está lendo? – quis saber Roselyn.

– Quartos para alugar.

– Piccadilly não seria ruim, se não fosse tão longe.

– Acho que não terei como evitar ficar longe, Rose.

Rose tinha a aparência de uma mulher que havia chorado um mês sem parar. As olheiras e o vermelho dos olhos eram evidentes.

– Deveria ter me casado com um daqueles homens interessados no meu dinheiro. Teria sido bem feito para eles meu irmão ficar em tantas dificuldades a ponto de precisar vender as vasilhas de metal. Até as vasilhas, meu Deus!

Alexia não conteve uma risada. Roselyn riu também. As duas riram até lágrimas rolarem pelas faces.

– Oh, céus, como é bom rir – disse Rose, sem fôlego. – É tudo tão dramático que chega a ser ridículo. Fico esperando Tim vender minha camisola enquanto durmo.

– Espero que ele não esteja acompanhado por um oficial de justiça nesse dia. Daria ainda mais motivo de fofoca para toda a cidade.

Roselyn riu de novo, com ar triste.

– Vou sentir sua falta, Alexia. O que vai fazer?

– Pedi uma carta de referência à Sra. Harper, já que ela é, das suas amigas, a que me conhece melhor. Procurei uma agência de empregos e me candidatei a vagas de preceptora. Espero que seja aqui na cidade mesmo.

– Você tem que nos mandar notícias de onde estiver, sempre. E prometer que vai nos visitar.

– É claro.

Os olhos de Rose se encheram de lágrimas. Ela abraçou Alexia vigorosamente. Enquanto aproveitava o carinho que logo não mais teria, Alexia viu Falkner chegar à soleira da porta.

– O que foi? – perguntou.

Falkner olhou para ela com o mesmo olhar de três dias atrás. O olhar que dizia que uma tempestade se aproximava.

– Ele está aqui. Lorde Hayden Rothwell. Pediu para ver a casa.

Do jeito que Falkner torceu o nariz, Alexia suspeitou que Rothwell não tivesse “pedido” coisa alguma.

– Não o receberei – disse Rose. – Mande-o embora.

– Ele não perguntou pela senhorita, mas por seu irmão, que saiu. Então pediu que eu lhe mostrasse onde esperar.

– Diga-lhe que não. Eu o proíbo. Logo a casa será toda dele – gemeu Roselyn.

O prazo para entrega da casa não fora determinado, o que era motivo de preocupação para Alexia.

– Você não está sendo sensata, Rose. Não vale a pena enfurecer o homem neste momento. Nem é obrigação de Falkner nos servir. Vou atender o visitante para lhe poupar o trabalho.


Lorde Hayden esperava no hall, rodeado por paredes que já se encontravam despidas de quadros. Quando Alexia entrou, ele estava inclinado, examinando uma mesa de canto marchetada, sem dúvida calculando seu valor.

Ela não esperou por sua atenção nem por suas saudações.

– Senhor, meu primo Timothy não está na propriedade. Creio que esteja cuidando da venda dos cavalos. A Srta. Longworth está indisposta. Posso ajudar no assunto que o trouxe aqui?

Ele se aprumou e voltou seu olhar para ela. A contragosto, ela admitiu que ele estava maravilhoso naquele dia, vestido com roupas de montaria, um paletó azul e colete de seda estampado em tons de cinza. Seu porte, expressão e vestimenta anunciavam ao mundo que sabia que era bonito, inteligente e podre de rico. Era de muito mau gosto ir assim a uma casa que estava sendo destituída de seus bens e de sua dignidade.

– Esperava que um criado viesse...

– Não há mais criados. A família não pode mais mantê-los. Falkner vai ficar até conseguir outro emprego, mas não está mais trabalhando. Creio que o senhor não tem alternativa a não ser falar comigo.

Ouviu sua própria voz soar ríspida e pouco amigável. As pálpebras dele baixaram o bastante para indicar que percebia a falta de respeito.

– Acredito que não tenhamos mesmo alternativa, Srta. Welbourne. Meu objetivo ao vir sem ser convidado é muito simples. Tenho uma tia que está interessada nesta casa. Ela me pediu para verificar se seria apropriada para ela e sua filha nesta temporada.

– O senhor quer conhecer a casa para poder descrevê-la a prováveis moradores?

– Se a Srta. Longworth me fizer essa gentileza, sim.

– O coração dela é cheio de gentileza na maioria das vezes. Contudo, ela está ocupada demais para atender seu pedido. Ser levada à falência e ser destituída de seus bens é algo que deixa qualquer mulher sem tempo algum.

O queixo dele se retraiu o suficiente para dar-lhe uma pequena satisfação. A vitória foi breve. Ele pousou o chapéu na mesa de marchetaria.

– Então, terei que achar o caminho sozinho. Quando disse que minha tia estava interessada, não me referi a uma mera curiosidade, mas a um interesse patrimonial. Esta casa já pertence a minha tia, Srta. Welbourne. Timothy Longworth assinou os documentos ontem. Se fiz um pedido, foi apenas para ser cortês com a família dele.

A notícia a deixou estupefata. A casa já tinha sido vendida. Que rapidez! Começou a calcular o que isso significaria para os planos dela e para Roselyn e Irene.

– Peço desculpas, senhor. A venda da casa não havia sido comunicada nem à Srta. Longworth nem a mim. Vou lhe mostrar a casa, se estiver bem assim.

Ele assentiu e ela começou a árdua tarefa. Mostrou-lhe a sala de jantar, onde seus olhos de lince não perderam nenhum detalhe. Ela o notou medindo espaços mentalmente e o ouviu contando cadeiras.

O resto do primeiro andar foi rápido. Ele não abriu gavetas nem armários na despensa. Alexia imaginou que soubesse que já estava tudo vazio.

– A sala de café da manhã é logo atrás desta porta – disse ela, ao voltarem para o corredor. – Minha prima Roselyn está lá. Peço que aceite minha descrição em vez de ir conferir por si mesmo. Temo que ela fique muito aborrecida ao vê-lo.

– Por que ela ficaria aborrecida com a minha presença?

– Timothy nos contou tudo. Roselyn sabe que o senhor levou o banco à beira da falência e nos deixou nesta situação.

Um sorriso implacável lhe surgiu no canto da boca. A crueldade do homem era mesmo ímpar. Ele percebeu o olhar dela fitando-o. Não parecia constrangido por ela ter visto esse sorriso cínico.

– Srta. Welbourne, não preciso ver a sala de café da manhã. Sinto muito por sua prima, mas as questões de altas finanças estão em um plano diferente da vida cotidiana. As explicações de Timothy Longworth foram simplificadas, com certeza porque ele as estava dando a damas.

– Elas podem ter sido simples, mas foram claras, assim como suas consequências. Há uma semana, meus primos viviam no luxo em Londres e em breve viverão na pobreza no interior. Timothy está falido, teve de vender sua parte na sociedade do banco e, ainda assim, continuará arcando com dívidas. Algum desses fatos está incorreto, senhor?

– Não, estão todos corretos – respondeu ele, balançando a cabeça.

Ela não podia crer em sua indiferença. O homem poderia pelo menos parecer um pouco constrangido. Em vez disso, agia como se isso fosse normal.

– Podemos subir? – perguntou ele.

Ela mostrou o caminho para o andar de cima, entrando na biblioteca. Ele não se apressou ao passar os olhos pelos livros nas estantes, enquanto ela aguardava.

– A senhorita vai com eles para Oxfordshire? – perguntou ele.

– Não me permitiria ser um fardo para essa família agora.

A atenção dele permaneceu nos livros.

– O que vai fazer?

– Tenho tudo acertado para meu futuro. Fiz planos e listei minhas expectativas e oportunidades.

Ele recolocou um livro na estante e rapidamente passou os olhos pelo tapete, a escrivaninha e os sofás, andando na direção dela em seguida.

– Quais oportunidades está vislumbrando?

Ela o conduziu aos outros cômodos no andar.

– Minha primeira opção é ser preceptora na cidade. A segunda é ser preceptora em outro lugar.

– Muito sensato.

– A sensatez é algo bastante conveniente diante da ameaça da fome, concorda?

Os cômodos do terceiro andar não eram tão espaçosos quanto os de uso comum. O corredor mais estreito os aproximava. Ao mostrar-lhe os quartos, ela notava a presença forte e masculina ao seu lado. Parecia muito inadequado esse estranho estar lá.

– E se não achar emprego como preceptora?

A pergunta casual veio algum tempo após sua última troca de palavras.

– A outra opção é me tornar chapeleira.

– Uma fabricante de chapéus?

– Tenho muito talento nessa área. Daqui a alguns anos, se vir uma mulher pobre usando um belo chapéu habilmente fabricado apenas com uma cesta velha, penas de pardal e maçãs secas, esta serei eu.

A curiosidade dele fizera com que Alexia deixasse de esconder sua irritação. Parecia inverossímil que o homem que causara tanto sofrimento quisesse saber detalhes. Ela escancarou a porta do quarto de Irene.

– A quarta opção é me tornar cortesã. Há quem diga que uma mulher deveria preferir morrer de fome a isso, mas suspeito que essas pessoas não tenham de fato se visto diante dessa necessidade, como talvez aconteça comigo.

Esse comentário lhe valeu um olhar duro. Além do desconforto por ela estar ridicularizando o fato de ele não sentir qualquer culpa, Alexia também percebeu a ousadia de um olhar masculino que avaliava suas possibilidades na quarta opção da lista.

Alexia enrubesceu. O calor percorreu sua pele, avivando-a e a atingindo bem no íntimo, afetando-a de uma forma chocante. Teve uma incontrolável e traiçoeira consciência dos muitos recantos do próprio corpo. A sensação a estarreceu ao mesmo tempo que a estimulou deliciosamente.

Ela precisou dar um passo atrás, para fora do quarto e para longe das vistas dele, de modo a escapar do rápido aumento na pulsação que a proximidade de Hayden lhe causava. Nos poucos segundos antes de ele voltar para junto dela, Alexia fez um esforço para se lembrar da raiva, a fim de aplacar seu chocante arroubo de sensualidade.

Ela continuou a lhe dar alfinetadas, de forma que ele soubesse que ela não se importava com o que pensava. Queria que aquele homem percebesse o sofrimento que sua ambição tinha causado.

– Minha quinta opção é virar ladra. Refleti muito sobre o que deveria vir antes, a libertinagem ou o roubo. Decidi que, apesar de a primeira opção ser um trabalho mais árduo, é uma forma de comércio honesto, enquanto ser ladra é pura maldade. – Ela parou por um momento, mas não resistiu a acrescentar: – Não importa como seja feito ou se é considerado legal ou não.

Ele parou e invadiu seu caminho, forçando-a a se deter também.

– A senhorita fala de maneira muito franca.

A presença dele se impunha à sua frente no corredor estreito. O olhar demandou sua total atenção. Certo poder se fez sentir, um poder masculino, dominador e desafiador. A intuição dela dizia para se afastar. A excitação ronronava baixa e profundamente. Ela ignorou ambas as reações e se manteve firme.

– Foi o senhor que me perguntou sobre meu futuro, apesar de não lhe fazer a menor diferença o que acontecerá com qualquer um de nós.

Sua raiva vinha em um crescendo desde que tinham deixado o hall. O frio autocontrole daquele homem durante a volta pela casa só tinha posto mais lenha na fogueira.

Ela o olhou de frente.

– O senhor destruiu a vida de pessoas boas e decentes. Não precisava ter retirado todos os seus negócios do banco de Timothy, arruinando-o deliberadamente. Não sei como consegue colocar a cabeça no travesseiro à noite e dormir.

Seus olhos azul-escuros ficaram negros nas luzes opacas do corredor. Seu queixo se enrijeceu. Ele estava com raiva. Que bom, ela também.

– Durmo muito bem, obrigada. E, sem o devido conhecimento sobre as questões financeiras, sua visão se torna bastante limitada. Sinto muito pela Srta. Longworth e sua irmã, e pela senhorita também, mas não vou me desculpar por ter cumprido meu dever como julguei adequado.

O tom dele a deixou embasbacada. Tranquilo, porém firme, ele punha um ponto final na discussão. Ela recuou, mas não por essa razão: estava perdendo o ar. Esse homem não se importava com os outros. Se se importasse, não estaria fazendo esse reconhecimento da casa.

Ela o guiou ao andar de cima, onde ficavam os quartos mais altos, mas ele parou do lado de fora de uma porta, perto do patamar da escada.

– O que é este cômodo?

– É um quartinho, sem utilidade específica. No passado, foi o quarto de vestir do quarto ao lado. Bem, lá em cima...

Ele girou a maçaneta e abriu a porta. Entrou no pequeno cômodo e observou cada detalhe. Os dois livros ao lado da cama, o armário pequeno quase vazio, as cartas ordenadas sobre a escrivaninha, tudo chamou sua atenção. Pegou um chapéu que estava pousado sobre uma cadeira perto da janela.

– É o seu quarto – falou.

Era verdade. E a presença dele ali, investigando seus pertences, criava uma intimidade que a deixou desconfortável. Ver aquele homem tocando seus objetos pessoais era quase como tê-lo tocando-a. Essa proximidade física tornava sua excitação ainda mais chocante e embaraçosa.

– Por enquanto, é o meu quarto.

Ele ignorou a farpa. Examinou o chapéu, girando-o de um lado para outro. Era o que ela havia começado a refazer no jardim três dias antes. Ninguém o reconheceria. Tinha refeito a borda, forrando-o de musselina creme finamente trabalhada, e enfeitado-o com fitas azuis. Ainda não decidira se iria acrescentar algum enfeite de musselina perto da copa.

– A senhorita tem talento.

– Como eu disse, ser chapeleira é apenas a opção número três. Se uma dama trabalhar em uma loja desse tipo, não pode mais se dizer uma dama, não é verdade?

Ele pousou o chapéu com cuidado.

– Não, não pode. No entanto, é algo mais respeitável do que ser cortesã ou ladra, embora bem menos lucrativo. Sua lista está na ordem correta se seu objetivo for a respeitabilidade.

Ela ainda o odiava no momento em que terminaram a visita. Contudo, já não poderia dizer que ele lhe era um completo estranho. Entrar nos quartos juntos, vendo os artefatos da vida cotidiana da família e com tanta proximidade – excessiva até – nos andares mais altos tinha criado uma familiaridade inoportuna.

Sua suscetibilidade à presença dele a deixara em desvantagem. Ela queria acreditar que era superior a essas reações, principalmente com esse homem, que certamente acreditava agradar a todas as mulheres. Ressentia-se de ter passado uma hora inteira na sua companhia.

Voltaram para o hall, onde ele pegou seu chapéu. Ela retomou o motivo de ter concordado em recebê-lo:

– Lorde Hayden, Timothy está com a cabeça nas nuvens. Ele não está contando todos os detalhes a suas irmãs. Se não for muita ousadia...

– A senhorita já foi bastante ousada sem pedir permissão, Srta. Welbourne. A essa altura, não é preciso fazer cerimônia.

Ela realmente tinha sido ousada e tagarela. Permitira que a raiva vencesse o bom senso. Na verdade, não tinha sido muito prática na situação em que mais necessitara dessa virtude.

– Qual é a sua pergunta?

– Já informou a Timothy quando os Longworths têm que esvaziar a casa?

– Ainda não. – Ele lhe dirigiu um olhar desconcertantemente franco. – Quando a senhorita acha que seria razoável?

– Nunca.

– Isso não é razoável.

– Quinze dias. Por favor, dê-lhes mais duas semanas.

– Que seja. Os Longworths podem ficar até lá. – Ele estreitou os olhos em sua direção. – Quanto à senhorita...

Ai, meu Deus. Ela havia despertado o demônio com sua língua grande. Ele ia pô-la no olho da rua imediatamente.

– Minha tia tem paixão por chapéus.

Ela piscou.

– Chapéus? Sua tia?

– Ela ama chapéus. E paga preços exorbitantes por eles. Sei disso porque sou administrador de sua fortuna e pago suas contas.

Era um assunto estranho para se falar na saída. Ele pareceu um pouco tolo.

– Bem, chapéus costumam ser caros – falou Alexia.

– Os que ela compra também são bem feios.

Ela sorriu e assentiu, desejando que partisse logo. Queria contar a Roselyn que teriam mais duas semanas de prazo.

– Preceptora, a senhorita disse. Sua primeira opção. Tem estudos para ser uma preceptora qualificada?

– Estava ajudando a preparar minha prima mais nova para ser apresentada à sociedade. Possuo as habilidades e os talentos necessários.

– Música? A senhorita toca algum instrumento?

– Sou adequada para ser preceptora de moças. Minha própria educação foi requintada. Nem sempre fui como me vê agora.

– Isso é óbvio. Se tivesse sido sempre como hoje, não teria coragem de falar comigo da forma rude e direta como fez.

O rosto dela enrubesceu intensamente. Não porque Alexia fora rude e Hayden notara, mas porque a atenção que ele lhe estava dispensando começava a acender nela aquela excitação estúpida de novo.

– Srta. Welbourne, minha tia, Lady Wallingford, vai tomar posse desta casa porque vai apresentar sua filha à sociedade em breve. Minha prima Caroline precisa de uma preceptora e minha tia, de uma dama de companhia. Tia Henrietta é... bem... Digamos que seria aconselhável ter uma influência sensata na casa.

– Uma influência que a impedisse de comprar chapéus feios?

– Exatamente. Como a situação combina com sua primeira opção na lista, estaria interessada no emprego? Como foi tão sincera comigo, creio que também diria à minha tia quando um chapéu for ridículo.

Ele estava pedindo que ela ficasse naquela casa em que tinha sido um membro da família, só que agora como criada. Ele estava pedindo que servisse ao homem que arruinara os Longworths e destruíra sua frágil sensação de segurança. Ele estava pedindo que ela ajudasse sua jovem prima a ser apresentada à sociedade, uma oportunidade que fora negada a Irene.

É claro que lorde Hayden não enxergava nada disso. Ela era apenas uma solução conveniente para compor o quadro de empregados de sua tia. Tinha uma combinação singular de habilidades que a tornava perfeita para o cargo. Mesmo que houvesse notado como isso era ultrajante, aquele homem não se importaria.

Ela quis recusar a proposta imediatamente. Esteve prestes a dizer algo muito mais direto e rude do que havia feito até o momento.

Mordeu a língua. Não poderia se dar ao luxo de dizer impropérios agora.

– Vou pensar na sua oferta, senhor.


CAPÍTULO 3

– Ouvi um boato sobre você ontem à noite no White’s.

A declaração inesperada ecoou pelo salão e fez com que Hayden errasse a bola que vinha em direção a ele.

– Sua função é marcar os pontos, Suttonly, não ajudar Chalgrove me distraindo.

– Marcar os pontos é um tédio. Se eu o distrair, você perde e então é a minha vez de jogar.

Hayden sabia que o egoísmo era um traço da personalidade do visconde Suttonly desde que haviam ficado amigos, na universidade. Mas ele não era só isso e Hayden aceitava o lado ruim que vinha junto com o bom. O mesmo homem esguio e vaidoso que estava languidamente posicionado no centro da quadra, interferindo nos saques e nas jogadas, era capaz de demonstrar grande generosidade quando queria.

Chalgrove se adiantou para ficar em posição de saque.

– Você sabia que não teríamos um quarto jogador hoje e que precisaríamos nos revezar.

– Você quer dizer que Rothwell e eu teríamos que nos revezar. Você sempre ganha, então sempre continua jogando.

Suttonly levantou seu rosto longo e de feições finas e tentou em vão olhar Chalgrove de cima, mas o outro era um palmo maior do que ele. O cabelo dourado de Suttonly tinha sofrido a tortura dos ferros quentes naquela manhã. Os cachos perfeitamente desalinhados não iam sobreviver ao jogo.

– É ele quem tem permissão para usar esta quadra – lembrou Hayden.

Se não fosse pela paixão de Chalgrove pelo tênis e por sua vitória inesperada em uma jogatina contra o rei três anos antes, eles nem sequer estariam ali. Em pagamento por aquela dívida de jogo, Chalgrove tinha pedido permissão para usar a antiga quadra de tênis de Hampton Court quando quisesse. Como o esporte saíra de moda e ninguém mais queria ir lá, o rei teve grande satisfação em conceder esse favor real.

Suttonly foi expressar seu tédio nas linhas laterais. Chalgrove assumiu a ofensiva. Hayden percebeu que perderia em breve.

O conde de Chalgrove parecia muito robusto e moreno quando comparado à brandura loura de Suttonly. Mas, durante o jogo, seu corpo musculoso se mostrava surpreendentemente ágil. Atleta nato, seus saques poderosos combinavam bem com a habilidade para mandar a bola de couro na direção dos telheiros e outros pontos difíceis para os adversários.

Hayden observou a bola ricochetear acima da cabeça do outro e cair.

– Bola fora, Rothwell – anunciou Suttonly.

O visconde deu alguns passos à frente e bateu de leve com sua raquete na cabeça de Hayden.

Hayden assumiu a posição de marcador. Apesar de uma parte de sua mente se manter na contagem de pontos, o restante dela se voltou para os negócios com Timothy Longworth. Sua família estaria partindo de Londres em breve, mas não tinha chegado nenhuma carta da Srta. Welbourne falando do emprego que ele lhe oferecera. Não gostava de pensar no preço de seu orgulho. Ela acabaria morando em algum apartamentinho de uma rua violenta, levando uma vida miserável.

Sua falta de senso prático significava que agora ele teria que procurar outra preceptora e dama de companhia. Tia Henrietta chegaria a Londres em poucos dias. Não podia mais esperar a resposta da Srta. Welbourne.

Chalgrove precisou de menos tempo para despachar Suttonly. Depois eles se retiraram para as salas do clube acima da quadra. Chalgrove tinha trazido criados e bebidas geladas. Enquanto lanchavam, Suttonly tocou de novo no assunto da fofoca que corria solta pela cidade.

– Andam dizendo que...

– Não estou interessado – disse Hayden.

– Mas eu estou – disse Chalgrove. – É raro ouvir uma boa fofoca sobre você, Rothwell. Normalmente é sobre quanto dinheiro ganhou nesse ou naquele investimento. Falando nisso, não há nada que queira contar a dois velhos colegas de escola? Ou está esperando que a tempestade passe para lançar o próximo navio?

Suttonly não gostava de ter a atenção roubada de si.

– Andam dizendo – repetiu ele com firmeza – que você arruinou Timothy Longworth.

Isso impressionou até Chalgrove.

– É mesmo? Não sabia que ele estava arruinado, muito menos que você era o responsável.

– Se você viesse à cidade, tomaria ciência do que acontece no mundo – repreendeu-o Suttonly com indolente superioridade antes de se virar novamente para Rothwell e dizer: – O que aconteceu com Longworth? Ele está vendendo tudo tão rápido que o pessoal anda brincando que ele é até capaz de fazer liquidação das irmãs. Você era muito amigo do irmão dele. Ele deve tê-lo enraivecido muito para que decidisse arruiná-lo.

– Eu não o arruinei. A mudança na sorte do homem é problema dele. Quanto aos meus planos, há um acordo sendo firmado em relação a um empreendimento na América do Sul. É muito arriscado, mas vou enviar os documentos a vocês dois. Suponho que guardarão o sigilo de sempre.

– Pode contar comigo – disse Suttonly, fisgando um pedaço de presunto do prato de frios. – Redija os papéis e me avise quando estiverem prontos para a assinatura.

– Nas Américas? Isso não vai ser igual ao esquema de McGregor anos atrás, não é? – implicou Chalgrove. – Você não vai emitir títulos de um país que não existe, como ele fez, não é?

– Se ele fizesse isso, provavelmente encontraria um jeito de compensar os clientes da forma mais sábia possível – disse Suttonly. – Por meu pai morto e os filhos que ainda não tenho, Rothwell, ainda bem que tive a esperteza de ficar seu amigo nos tempos de escola.

– O esquema de McGregor estava fadado ao fracasso. Ele não vai poder fazer novas vítimas de suas fraudes para sempre a fim de pagar as vítimas anteriores. Um dia o castelo de cartas vai desmoronar – disse Hayden.

Hayden Rothwell gostaria que todos – Suttonly, em especial – aprendessem a ser mais desconfiados em relação a investimentos. Se Hayden fosse McGregor, Suttonly teria empenhado sua fortuna para comprar títulos do país fictício de Poyais, nas Américas. Como todos os outros, ele nem teria se dado o trabalho de consultar primeiro um mapa para achar a localização do país.

– Suspeito que haja alguma falcatrua no cerne da crise atual – disse Chalgrove.

Suas sobrancelhas franzidas preocuparam Hayden. Chalgrove não vinha mais para a cidade, porque no ano anterior herdara um imóvel no campo que precisava desesperadamente de cuidados.

– Você perdeu muito dinheiro? – questionou Hayden.

– Não muito, mas o bastante. Tinha uns negócios pequenos com um banco do interior que era correspondente do Pole, Thornton and Company de Londres. Quando eles faliram em dezembro, nosso estabelecimento foi junto – disse ele, dando de ombros, mas não com indiferença. – Muitos homens com negócios bons e sólidos abriram falência por conta disso. Ainda vai haver muito problema antes que esse pânico acabe.

– Mas não há nada que se possa fazer a respeito, não é? – cortou Suttonly, suspirando. – Não vamos ficar nos lamentando pelo que não podemos mudar. Apesar de todas as preocupações, a cidade ainda está movimentada e divertida e se aproxima a época em que as jovens serão apresentadas à sociedade. Chalgrove, prometa que vai permanecer na cidade este ano. Fiquei meio entediado na última apresentação e espero evitar esse estado de ânimo desta vez. Você pode procurar uma noiva rica para resolver seus problemas. Se ela for bonita, pode ser até que você se apaixone.

– Chalgrove não é um tolo romântico como você – disse Hayden. – Você ficou entediado porque está envelhecendo e tem menos chances de se entregar às tolices românticas agora.

– Você se entedia muito facilmente, de qualquer forma – disse Chalgrove. – A vida seria mais gratificante se tivesse algo constante que lhe interessasse.

– Você quer dizer estudar matemática, como ele? Pegar no pesado nas minhas terras, como você? Rezo para nunca ficar velho assim. Quanto a me entregar a tolices românticas, pretendo nunca deixar de fazê-lo. A paixão torna a vida excitante nos poucos meses que dura – disse ele, sacando o relógio do bolso. – Só posso ficar para mais uma partida, Chalgrove. Vou começar sacando desta vez.


– Ouvi boatos sobre você na noite passada, no clube.

Era a tarde seguinte e Hayden levantou os olhos do livro que estava lendo. Havia vencido poucas páginas. Sua mente estava ocupada, pensando em outros assuntos. A chegada inesperada de seu irmão Christian à biblioteca o distraiu ainda mais.

Christian raramente passava a tarde na biblioteca. Seu breve comentário ao se acomodar em uma cadeira acolchoada perto de Hayden explicava o motivo de aquela tarde ser diferente. Era perturbador saber de dois boatos a seu respeito em menos de dois dias. Hayden era o tipo de homem de hábitos regulares e personalidade calma que raramente interessava aos fofoqueiros.

– Não estou flertando com a Sra. Jameson, apesar do que ela anda contando aos amigos – disse Hayden.

– Não era esse tipo de boato, o que nunca me interessaria. Se um dia você se casar, nunca será com uma mulher daquelas.

O “se um dia” dito com tanta propriedade sugeria que seu irmão duvidava da possibilidade de Hayden vir a se casar. O “uma mulher daquelas” não era uma crítica à viúva em questão, mas deixava claro que Christian conhecia bem o gosto de Hayden, muito mais do que o próprio.

Eles se davam bem, tanto que Hayden continuava morando na casa de Easterbrook, em Grosvenor Square. No entanto, as suposições de Christian de que conhecia os irmãos mais novos melhor do que eles mesmos e as suspeitas de Hayden de que isso talvez fosse verdade eram algo irritante.

– O boato tinha a ver com dinheiro. E com seu relacionamento com o banco Darfield e Longworth.

Hayden pôs o livro de lado.

– Você é contra minha decisão de deixar nossas contas lá?

A interferência de Christian infringia um acordo que haviam feito quando ele voltara à Grã-Bretanha depois de ter viajado durante dois anos por sabe lá Deus onde. Apesar de recém-saído da faculdade, Hayden cuidara das finanças da família nesse momento de necessidade. Christian poderia ter assumido a tarefa ao voltar, mas pediu que Hayden continuasse.

– Não faço objeções à sua decisão. Só estou curioso se você realmente confia que o banco não vá falir.

– Se isso acontecer, uso meu próprio dinheiro para compensar quaisquer perdas que você ou os outros sofram. Se necessário, volto até às mesas de jogos.

Os olhos escuros de Christian cintilaram com uma expressão de frieza. A aura de autoridade que ele exalava de repente se fez notar. Era algo que derivava mais do que de seu título de nobreza ou do status de irmão mais velho. Algo havia ocorrido durante aqueles dois anos no exterior que se tornara a fonte desse poder contido e sóbrio.

Christian nunca falara muito de seu tempo fora e das aventuras que tinha vivido. Hayden percebera de imediato como as experiências o tinham mudado. Seu irmão mais velho deixara a Inglaterra como um marquês recém-empossado, instruído e zeloso. Voltara experiente demais, amadurecido demais e um tanto estranho.

– Não peço que aposte sua própria fortuna em suas decisões. Só quero saber se tomou essa decisão em particular com base em seu brilhantismo financeiro de sempre, ou se foi dominado pela emoção.

– Nunca teria deixado as contas lá se achasse que o banco não sobreviveria.

Hayden considerou a conversa encerrada e retomou a leitura.

– Não foi o fato de você ter deixado as contas lá – disse Christian depois de um longo silêncio. – Não era esse o boato.

– Então qual foi o boato que você ouviu?

– Que você de alguma forma arruinou Longworth e o forçou a vender sua parte no banco. Que manipulou a situação para ele falir.

– Mas como você verificou se retirei nossos depósitos e viu que não, já sabe que esse boato não é verdadeiro.

– Ninguém me disse que você o tinha arruinado retirando o dinheiro. Disseram que você manipulou a situação para que Longworth falisse, o que é bem diferente. Não entendo o motivo. Os Longworths são uma família tradicional no nosso condado. E, para começo de conversa, você contribuiu para o enriquecimento deles e foi amigo de Benjamin.

Hayden instintivamente levou uma das mãos ao peito. Ele não sentia a cicatriz por baixo das roupas, mas pensar em Ben sempre fazia com que se lembrasse da dor que a causara. Qualquer ajuda que tivesse dado a Benjamin Longworth já tinha sido mais do que compensada na Grécia. Isso significava que a balança tinha pendido de novo, para o outro lado, na noite em que Ben morreu.

Ele tinha errado com o amigo naquela noite no navio ao não forçá-lo a descer, quando era óbvio que Ben estava bêbado. Pior ainda, tratava-se de um amigo que havia salvado sua vida.

– Está preocupado com minha honra, irmão mais velho?

– Eu deveria estar?

Hayden o fitou.

Christian não baixou o olhar, agindo de forma plácida e paciente. Eles eram muito parecidos, mas qualquer pessoa que entrasse na biblioteca não perceberia isso de imediato. O cabelo escuro de Christian era longo, até mesmo para a moda atual. Suas ondas atingiam os ombros do robe de seda preto que ele vestira ao se levantar naquela manhã. Também não era um robe comum. Ele ostentava uma estampa e um corte exóticos, quase orientais, e era menos estruturado do que os modelos masculinos comuns. A típica falta de formalidade de Christian em casa também fazia com que não usasse uma camisa por baixo do robe, de forma que sob ele não se via uma gola, apenas pele.

Hayden pensou em como o irmão mais velho parecia empertigado e arrumado enquanto o pai deles era vivo. Ele tinha sido tão irrepreensivelmente correto todos aqueles anos. Então, meses depois de assumir o título, desaparecera para depois voltar com aquela desconcertante aparência mundana.

– Os homens fracassam nos negócios o tempo todo – falou Hayden. – É como uma justa. Um homem entra no torneio sabendo que pode perder seu cavalo. Fracassar é sempre um risco.

– Não para você. Não com a mente e os instintos de que dispõe ao entrar na disputa. Se o jovem Longworth tivesse sido outro cavaleiro, e não um mero escudeiro, sua analogia poderia funcionar. No entanto...

– Como você optou por não entrar na competição, fique fora disso.

Hayden engoliu seu crescente rancor. Na verdade, esse sentimento não se dirigia a Christian, mas à sua tendência irritante de incitar o lado negro da alma das pessoas.

– A ruína de Longworth se deve unicamente à sua falta de bom senso. Minha honra está intacta.

Christian pareceu aceitar isso.

– Você tem um lado impiedoso. Nesse ponto, somos bem parecidos. É preciso manter a vigilância para controlar isso, como tenho certeza de que você sabe.

– Cuide da salvação de sua própria alma. Não preciso de ajuda com a minha.

– Todos nós precisamos de ajuda. Contudo, se você diz que não se deixou levar por esses sentimentos, aceitarei que a ruína de Longworth foi obra dele mesmo.

A questão tinha sido definitivamente essa, mas, para evitar maiores consequências além da mera ruína, Hayden tinha sido forçado a conduzir o canalha por muitas reuniões, confissões e promessas nos últimos dias. Com certeza, no clube, na noite anterior, um dos homens que ouvira essas promessas tinha aludido ao papel de Hayden.

Christian se levantou para ir embora.

– É uma pena pelas irmãs. Às vezes as encontro na cidade. A mais velha é estonteante. Se não fosse por sua amizade com o falecido irmão, estaria tentado a ficar com ela.

– Tirar vantagem da má sorte da moça e garantir que o fracasso fosse completo seria algo altamente desonroso, não acha?

Christian deu de ombros.

– Na Inglaterra, sim. Bem, como disse, é preciso manter a vigilância.


A bandeja de prata brilhou à luz da tarde que penetrava pela janela. O cartão sobre ela surpreendeu Hayden.

A Srta. Welbourne estava lá.

Ele passou o polegar sobre o papel e sentiu o alto-relevo de ótima qualidade. Imaginou a moça tirando dinheiro de sua renda magra e decidindo que o cartão que ostentaria seu nome deveria ser digno de uma dama, não importava o sacrifício.

– Vou recebê-la.

A visita dela lhe provocou remorsos. Sua descoberta a respeito do roubo de Longworth atingira muitos inocentes.

É claro que a Srta. Welbourne tinha sido atingida bem antes da descoberta. Entre suas deliberações, enquanto tentava ler na biblioteca, havia algumas em relação a ela. Precisava elaborar uma estratégia para devolver os recursos da moça sem que ela soubesse que tinham sido retirados por Longworth.

Sua palavra de honra o impedia de lhe explicar o que tinha acontecido. Duvidava que ela lhe seria grata por saber a verdade, mesmo que pudesse revelá-la. Isso destruiria sua ligação com as pessoas que considerava sua família. Havia também a hipótese de ela se sentir tão traída a ponto de querer ser a primeira a mandar Longworth para a cadeia.

Abriu as portas da sala de visitas e viu a Srta. Welbourne com sua dama de companhia. Ela trouxera a prima mais jovem. Os olhos de Irene Longworth estavam fixos no relicário medieval cravejado de pedras preciosas que Christian tinha colocado em uma mesa ao lado da janela.

O olhar da jovem se voltou para Hayden quando ele entrou e nele permaneceu enquanto se cumprimentavam. Ele reconheceu sua expressão muda e embasbacada. Estava cansado de vê-la em outras moças ingênuas. Preferia a expressão madura e autocontrolada que a Srta. Welbourne dirigiu a ele.

– Irene, por que não vai olhar os quadros? – sugeriu a Srta. Welbourne. – Ela se interessa por arte, lorde Hayden, e pensei em dar-lhe a oportunidade de ver parte da coleção de Easterbrook hoje.

Com o consentimento de Hayden, a garota começou a caminhar próxima às paredes, examinando as obras.

– Foi muita gentileza sua trazê-la, se tem tanto interesse por arte – disse ele. – Pensei que talvez o motivo real fosse me lembrar do que ela perdeu.

– Esse foi um dos motivos, mas a oportunidade de ver parte da famosa coleção de Easterbrook foi outro. Além disso, quando ela for para Oxfordshire, fará diferença poder falar da visita que fez a esta casa. Algumas pessoas com posses muito superiores às dela nunca terão essa oportunidade.

A Srta. Welbourne falava com a mesma franqueza que marcara as conversas dos dois desde o início. Ocorreu-lhe que seria tratado da mesma forma se não tivesse arruinado Longworth.

Ele gostava disso. Algo nele fazia com que a maioria das mulheres assumisse uma atitude irritantemente fútil. A falta de medo e de nervosismo por parte dela era revigorante. Criava pequenos e encantadores desafios. Sua postura durante o tour pela casa o provocara de muitas formas e carregara o ar entre eles com muito mais do que contrariedade.

Ela sentira o mesmo, ele tinha certeza, só que não gostava dessa sensação. Talvez nem a entendesse direito.

– Além disso, precisava trazer alguém comigo, não é verdade? – disse ela. – Não temos mais criadas, nem mesmo um lacaio. Como Irene sempre sonhou em vir a um baile aqui, um sonho que Roselyn e eu tentamos controlar mesmo nos bons tempos, pensei que ela pelo menos poderia ver suas obras de arte.

A garota obviamente tinha sido instruída a se manter distante e discreta. Ela se reclinou em direção a um quadro de Poussin do outro lado da sala.

Hayden chamou um lacaio.

– Leve a Srta. Longworth até a governanta – ordenou ao homem quando ele chegou. – Diga-lhe para guiar a moça pelo salão de baile e pela galeria.

Mal se contendo de alegria, Irene seguiu o criado. A Srta. Welbourne observou sua saída.

– É muita generosidade de sua parte.

– Se ver esta sala de visitas a ajudará em Oxfordshire, descrever o salão de baile só pode melhorar ainda mais sua posição.

Ele se sentou em uma cadeira que lhe permitia ver de frente o rosto da Srta. Welbourne.

– Como a senhorita precisava trazer alguém consigo, entendo que o objetivo desta visita seja um assunto seu, não dela – comentou Rothwell.

O olhar de Alexia se inflamou. Aquela mulher não gostava muito dele, isso estava bem claro.

Um arco lilás no chapéu de Alexia fazia sobressair ainda mais a cor de seus olhos. Era um chapéu simples, mas parecia muito caro com aquela borda, a copa de seda celestial e rosas enfeitando o arco. Talvez ela mesma tivesse feito o chapéu. Como o cartão de visita, ele demonstrava sua posição, mesmo que essa posição lhe tivesse escapado por entre os dedos.

– Considerei a oferta que me fez na casa de meu primo em sua última visita – disse ela. – Gostaria de conversar sobre isso e ver se conseguimos chegar a um acordo.

Tinham-se passado doze dias desde a oferta. Com a mudança iminente da casa, parecia que ela finalmente tinha se decidido pela praticidade.

Ele decidiu facilitar as coisas para ela sendo breve.

– O salário será o normal para a situação e...

Ela levantou o indicador, detendo-o. Seu tutor costumava fazer isso quando ele era garoto.

– Aceito o salário normal. No entanto, como estarei ocupando dois cargos, o de preceptora e o de dama de companhia, acredito que deveria receber dois ordenados, sobretudo levando-se em conta que o senhor não terá os gastos de manter mais um criado na casa. Além disso, gostaria que o salário fosse pago mensalmente. Vou querer mandar parte do dinheiro para Rose e Irene. Não quero que elas precisem esperar muito para terem algum desafogo.

Ela estava a dois dias de ser despejada, mas fazia exigências desmedidas, como se pudesse apresentar as melhores referências da Inglaterra, em vez de nenhuma. A julgar por sua repetida menção ao problema financeiro dos Longworths, ela esperava que a culpa dele lhe desse alguma vantagem nas negociações.

Fascinado, ele colocou o cotovelo no braço da cadeira e descansou o queixo no punho fechado.

– Acredito que o pagamento mensal possa ser providenciado. Quanto ao salário, a senhorita não passará todo o tempo desempenhando cada um dos papéis. Isso é impossível, portanto o pagamento integral por dois cargos não se justifica.

– Um e meio, então. O senhor tem que admitir que é justo.

Ele quase deu uma risada.

– Bastante justo para a senhorita. Está certo, um e meio.

Ela teve um gesto de alívio, passando a mão sobre a lã fina da roupa. Era um movimento nervoso que revelava que não estava tão contida quando parecia. O vestido era bem mais elegante do que o que ele a vira usar antes. Muito distinto, com um bordado azul ao longo de toda a borda da saia e um casaco que trazia um delicado acabamento em pele. Ele imaginou que as roupas não eram dela. A Srta. Longworth provavelmente as tinha emprestado a ela para a visita à casa do marquês de Easterbrook.

– Quanto à minha relação com sua tia e sua prima – continuou ela –, vivi naquela casa como um membro da família e seria difícil pensar em mim como uma... bem, de outra forma. Gostaria que meu cargo principal fosse o de dama de companhia de sua tia e que meus deveres de preceptora ficassem em segundo lugar. Isso em nada afetaria meu trabalho em relação a sua prima.

Seu tom, comportamento e a forma como continuava a lembrá-lo da mudança na sua situação, que ela acreditava ser culpa dele, deveriam enraivecê-lo. Nada disso.

Alexia Welbourne havia chegado àquela casa vestida como a dama que nascera para ser, mas sairia dali como empregada. Ela sabia disso, mesmo tendo gaguejado ao tentar pronunciar a palavra. Porém, não era uma mulher que desconhecesse seu lugar. Era só uma mulher lutando para manter seus últimos fios de dignidade ao sair pela porta em uma condição diferente da que entrara.

Ele sentia muito por ela, mas manifestar esse sentimento seria um insulto para uma mulher como Alexia.

– Minha tia tem muito bom coração, Srta. Welbourne. O perigo não é ser tratada como criada, mas passar rapidamente a ser tratada como irmã. No entanto, explicarei a sutileza do modo como deseja ser considerada. Tenho certeza de que ela compreenderá. Bem, se não há mais nada a tratar...

O dedo se levantou novamente.

– Algo mais, Srta. Welbourne?

– Só mais um pequeno detalhe.

– Não imagino o que possa ser.

Os lábios dela se franziram diante do tom sarcástico. Belos lábios. Mais para cheios. E um nariz levemente arrebitado, que chamava atenção para a boca.

Uma boca que parece uma rosa. Mas não um botão de rosa. Não era pequena nem curvada, nem mesmo quando o franzido a estreitava. Era uma rosa em plena floração, prometendo o néctar que Ben descrevera.

– Como ambos sabemos, minha situação mudará muito, mesmo continuando a viver na mesma casa – disse ela.

Sua voz provocava pensamentos sobre esse néctar e seu gosto. O caminho rumo aos ardis impiedosos sobre os quais Christian o advertira havia pouco.

De formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Ele a viu de novo no vestido sem atrativos que usara ao guiá-lo no reconhecimento da casa. De um marfim amarelado pelo uso e sem enfeites, que provavelmente haviam sido retirados para adornar outras vestimentas. A moda tinha mudado muito nos últimos anos e sua cintura alta anunciava seus poucos recursos. No entanto, o vestido ressaltava seu busto e revelava suas formas e curvas tentadoras.

Sua mente voou para recuperar a lembrança dela em pé perto dele no corredor do último andar, usando o vestido cor de marfim. As faíscas de raiva nos olhos dela ao confrontá-lo fizeram seu sangue correr mais rápido nas veias outra vez, queimando-o por dentro. Sua imaginação começou a tirar aquele vestido para ver o que tinha por baixo...

– Isso é aceitável, senhor?

A pergunta dela o tirou de sua fantasia erótica.

– Aceita essa última condição? – perguntou ela.

Se pelo menos ele soubesse do que ela estava falando, mas não tinha a menor ideia de como deveria responder.

Assumiu a posição que costumava ocupar em negociações de investimentos quando algo inesperado era proposto.

– Quero pensar melhor sobre isso antes de dar uma resposta.

Suas sobrancelhas se elevaram só um pouquinho, mas o bastante para expressar o que ela pensava disso.

– Não vejo por que isso exigiria tanta ponderação.

– Sou um homem muito ponderado.

– Que admirável! E tais ponderações levariam muito tempo? Estarão concluídas em dois dias, para que eu saiba onde ficar na casa?

Ela usou uma voz cuidadosa e gentil, do tipo usado com um tio velho meio gagá. Ele não estava acostumado a ter ninguém – muito menos uma mulher – tratando-o como se fosse burro.

– Por que não explica esse pedido com mais detalhes, para que eu possa pensar enquanto fala?

– Não consigo pensar em outra forma de explicar isso. Está claro como água. Qual parte não entendeu?

Será que ela havia percebido por onde sua mente andara? Vira nos olhos dele? Estava deixando-o confuso como punição? Será que o pedido era complicado de atender? Ela não teria pedido para vender toda a prataria da casa, imaginava ele.

– Acho que minha tia pode ser convencida a aceitar sua condição.

– Então podemos dizer que chegamos a um acordo – disse ela, imensamente satisfeita com a conclusão da conversa e passando a alça da bolsa pelo braço. – Estou de saída. Estarei na casa para dar as boas-vindas a Lady Wallingford e sua prima quando elas chegarem.

Ele a acompanhou para que procurassem Irene. Encontraram-na na galeria com a governanta. Christian estava lá também, apontando para algum detalhe na pintura que observavam. Ele tinha finalmente se vestido e, fora o cabelo longo de aspecto primitivo, parecia um lorde inglês bem-apessoado.

– Christian, esta é a Srta. Welbourne. Este é meu irmão Christian, marquês de Easterbrook.

– Estava explicando para sua prima que este não é um Correggio original, mas uma cópia de um quadro que está em Parma, Srta. Welbourne – disse Christian.

A Srta. Welbourne olhou para o quadro. Ele retratava a princesa Io delicadamente voluptuosa e sensual, suspensa no ar por Júpiter, que tinha se transformado em nuvem. Como Io estava nua, aquele provavelmente não era um quadro que Christian devesse ter estimulado Irene a examinar.

– É adorável, mesmo sendo uma cópia – disse a Srta. Welbourne, segura de si o bastante para não revelar embaraço com o assunto.

Hayden o considerava adorável também. Observando agora, o corpo de Io parecia um pouco com a imagem que ele fizera do corpo da Srta. Welbourne. Arredondado nos lugares certos. Curvas e maciez à espera.

Hayden mostrou o caminho para que as mulheres saíssem com a governanta. Irene começou a cobrir a Srta. Welbourne de perguntas imediatamente, esquecendo-se de que seus sussurros seriam ouvidos na galeria.

– Você vai aceitar a função?

– Sim.

– Ele aceitou suas condições?

– Sim, vamos embora.

– Todas elas? Até mesmo a folga e o uso da carruagem?

Hayden se perguntou se tinha ouvido direito.

– Função? – disse uma voz baixinho sobre o ombro dele.

Ele virou o rosto e deu com Christian também observando as duas.

– Ela vai trabalhar como dama de companhia de tia Henrietta e preceptora de Caroline.

– Ah, entendo. As únicas mulheres que já fizeram negócios comigo foram minhas amantes. Daí minha confusão. Ela tem belos olhos... de uma cor inusitada.

Hayden observava as fitas do chapéu de Alexia flutuarem, a bainha do vestido se arrastar e seus quadris esbeltos se moverem.

– Ela queria se certificar do que se esperava dela no serviço doméstico. Nossa conversa tratou desse tipo de coisas.

– Como folga e uso da carruagem, você quer dizer.

Hayden ignorou a implicância. A Srta. Welbourne se virou para sussurrar algo no ouvido de Irene. Seu perfil apareceu por baixo da aba do chapéu. Um olho violeta, um nariz levemente arrebitado e uma boca carnuda expressiva formaram uma silhueta colorida contra o vestido marrom da governanta.

A porta se abriu e as mulheres desapareceram.

Hayden se virou e pegou seu irmão mais velho observando-o. Christian deu meia-volta e partiu.

– Vigilância, Hayden, vigilância.


CAPÍTULO 4

Alexia caminhava ao lado de Roselyn em ritmo de enterro. Estavam fazendo uma revista silenciosa de cômodo em cômodo para que Rose verificasse se nada fora esquecido.

Uma carruagem alugada esperava na rua. Ela levaria os Longworths até uma estalagem nos arredores de Londres. Lá seriam transferidos para a triste carroça que saíra antes do amanhecer, oculta pela escuridão, carregando os poucos bens que ainda lhes pertenciam.

Rose espiou a sala de visitas.

– Ouso dizer que a tia de Rothwell encontrará tudo em ordem. Espero que ela e a filha sejam felizes aqui.

A frase teria soado generosa, não fosse por seu tom amargo.

Alexia nada disse para reconfortá-la. Já usara todas as palavras de consolo que poderia conceber. Tinha até mesmo prometido a Irene lhe dar uma festa de apresentação à sociedade no ano seguinte, o que era o mais próximo de uma mentira deslavada que já dissera. Seu coração estava em prantos por todos eles. Rose e Irene, Timothy e ela própria.

Rose se voltou para ela. Com os olhos soltando faíscas pelos olhos, ela permitiu que toda a sua raiva viesse à tona.

– Você tem que me prometer não se afeiçoar a elas. Não quero saber se são boas ou não. Tem que me prometer...

Alexia a abraçou. O corpo de Rose começou a tremer e ela caiu no choro. Passou rápido. Rose engoliu as lágrimas e se recompôs, tudo em uma única inspiração profunda.

– Oxfordshire não é tão longe assim – disse Alexia.

Tal pensamento tinha sido repetido por todos eles muitas vezes na última semana.

– Vamos nos ver com frequência, tenho certeza – continuou.

Ela não estava tão certa disso, mas talvez fosse possível. Afinal, ela poderia usar uma carruagem, não? E tinha um dia de folga.

– Vamos subir para buscar Timothy – disse Roselyn.

Encontraram Timothy em seu quarto, estendido na cama, doente. Doente, não, percebeu Alexia. Ela avistou um decantador lascado debaixo da mesinha de cabeceira.

– A carruagem está esperando, Timothy – disse Rose.

– Para o diabo com a carruagem.

Tim nem sequer moveu o braço que se estendia sobre a testa.

– Para o diabo com os canalhas que esperam para ver esta cena – prosseguiu ele. – Para o diabo com a vida.

Rose pareceu exausta. Fora obrigada a assumir quase todas as providências necessárias nos últimos dias. Depois que vendeu o que podia, Timothy se tornara um inútil.

Alexia se curvou sobre a cama.

– Já se entregou à infelicidade por muito tempo, primo. Suas irmãs precisam que você volte a si. Permita-lhes sair pela porta com dignidade, não carregando o irmão em frangalhos entre elas.

Ele não reagiu nem se moveu. Ela tocou seu braço.

– Venha, Tim. Isso não é do seu feitio. Levante-se pelo bem de Irene, ao menos.

Depois de uma longa demora, ele fez um esforço para se levantar. Rose alisou seu casaco e fez o que pôde para deixar sua gravata apresentável. Timothy parecia tão triste e desamparado que Alexia teve vontade de chorar.

– Pegou as coisas dele no sótão, Rose? – disse ele em tom abafado. – Os baús de Ben e tudo o mais?

A expressão de Rose foi de desespero quando respondeu:

– Arrumamos tudo às carreiras... Como pude ser tão relapsa? Não tem mais espaço na carruagem e...

– Não se preocupe. Cuidarei do que possa ter ficado para trás – disse Alexia. – Podem ter certeza de que os baús continuarão aqui enquanto eu estiver e os levarei quando for embora. Vou achar um jeito de devolvê-los a vocês.

– Você é tão boa, Alexia – disse Rose com visível alívio.

Alexia não se importava de assumir a responsabilidade pelos pertences de Ben. Assim, parte dele ficaria com ela na casa. Ela poderia resistir melhor à adversidade da vida que iria enfrentar se pudesse se lembrar daqueles baús no sótão.

– Detesto deixá-la aqui – disse Tim olhando para o chão. – Odeio a ideia de ver você se sujeitar a ele. Esta foi a jogada mais cruel: ele ser capaz de se deleitar com sua queda de posição social.

Alexia não achava que lorde Hayden se deleitaria com isso, já que aparentemente não pensou duas vezes antes de praticar seus atos. Em poucos dias, ela seria uma criada conveniente e nada mais. Ele provavelmente esqueceria até seu nome.

– Não me importo com o que ele pense, Tim. Não me afeta em nada.

Essa afirmação pelo menos era verdade. Ela já sabia que, na vida, quando se desce um degrau, o motivo não importa. O estrago no orgulho era o mesmo, independentemente da causa. A pessoa podia enfrentar isso com elegância ou com amargura. Ela estava lutando para assumir a primeira postura, como fizera no passado.

Tim caminhava sem firmeza, mas Roselyn e Alexia o conduziram para o andar de baixo, até a porta. Irene esperava com ar sombrio pela partida solene. Com certeza os vizinhos espiariam de suas janelas para ver a cortina descer no último ato do fracasso encenado na Hill Street nas duas últimas semanas.

– Eu o odeio – disse Irene. – Não faz diferença se ele é bonito e se me deixou ver o salão de baile. Tenho certeza de que o irmão dele ficaria chocado em saber o que aconteceu. Eu deveria ter contado tudo a Easterbrook enquanto estávamos na galeria.

Alexia deu um beijo de despedida em Irene.

– Não ocupe seu coração com ódio, Irene.

– Você não precisa disso – falou Roselyn. – Eu odiarei Hayden Rothwell o bastante por todos nós, querida.

Seu rosto se fechou em uma máscara de orgulho. Ela pegou a irmã pela mão.

– Vamos embora – chamou.

Timothy abriu a porta. Ele não apreciou a atitude da irmã ao saírem. Na verdade, não as estava enxergando. Virou-se para a porta aberta e ficou lá, parado indolentemente por um tempo. Seu rosto enrubesceu de emoção.

Alexia manteve a mão no braço dele.

– Você é filho de um cavalheiro, Timothy. Nem isso pode mudar esse fato.

A expressão dele retomou a serenidade e ele se empertigou um pouco.

– Para o diabo com ele – grunhiu.

Deu um passo para fora e seguiu Roselyn e Irene rumo à obscuridade.

Alexia fechou a porta antes que a carruagem partisse. Secou as lágrimas que teimavam em rolar de seus olhos. Não ousava sucumbir ao impulso de se enraivecer com a injustiça da vida. Tinha que aprontar a casa para a chegada da tia e da prima de lorde Hayden.

Também precisava preparar seu orgulho para o momento em que as duas mulheres entrassem pela porta da frente.


– Foi tão gentil de sua parte nos acompanhar, Hayden, mesmo que nosso deslocamento seja só por algumas ruas da casa de Easterbrook. Não tenho muita habilidade para lidar com essas mudanças complicadas.

– Fico feliz em ajudar. A situação exigia pulso firme.

– Como sempre, tê-lo conduzindo as rédeas nos transmite confiança e tranquilidade. Não sei o que faríamos sem você.

O pulso firme em questão não tinha a ver com controlar os cavalos que puxavam a carruagem de Easterbrook por Mayfair. Nem com a enorme gama de detalhes relacionados à mudança de tia Henrietta para Londres. Disso tudo Hayden dera conta com facilidade.

Na verdade, era Henrietta, viúva de Sir Nigel Wallingford, que demandava pulso firme. Ela exigia mais da sua atenção do que os mais complicados investimentos financeiros que ele administrava.

Após a morte do marido, ao tomar conhecimento de que sua renda ficaria bem reduzida, ela assentira como se compreendesse a situação, mas depois não alterara em nada seus gastos. Sendo seu administrador, Hayden cumpria o penoso ritual de ir até Surrey para ralhar com ela por causa das contas altas, reprimendas que a tia aceitava com constrangimento, mas depois alegremente ignorava.

Ele a observou enquanto se sentava junto à filha na frente dele na carruagem. Um chapéu gigantesco cobria a maior parte do cabelo muito louro. Sua aba ampla e pontuda ficava o tempo todo batendo no queixo de Caroline. O maior laço vermelho da história da chapelaria apequenava a copa alta. Uma pluma extravagante traçava um amplo arco e tocava o delicado maxilar de Henrietta. A mulher era baixa e franzina, com rosto pequeno e traços finos, e o chapéu parecia um peso prestes a curvá-la.

Sem dúvida, Henrietta achava que o chapéu era magnífico e valia cada centavo gasto nele, mas não percebia como a envelhecia. Sendo irmã mais nova de sua falecida mãe, aos 36 anos, tia Henrietta ainda possuía feições joviais, mas, usando aquele chapéu, aparentava ter 50.

– Você tem absoluta certeza de que essa preceptora fala um francês impecável? – perguntou ela. – Caroline precisa de alguém muito competente.

– A Srta. Welbourne é bem instruída em todas as matérias necessárias.

Na verdade, não tinha certeza se a Srta. Welbourne sabia francês. Mas, se alegava ter a formação exigida para desempenhar seu novo papel, então deveria ser capaz de demonstrar isso. Ele suspeitava de que ela poderia aprender francês em quinze dias se ainda não soubesse.

– Espero que ela não seja igual à Sra. Braxton – murmurou Caroline.

Uma menina quieta e pálida, Caroline raramente falava. Hayden suspeitava de que a criança que ele via não era a Caroline de verdade, mas uma menina desbotada e enrijecida pela presença da mãe.

– Estou certa de que a Srta. Welbourne será muito diferente de sua última preceptora – disse Henrietta. – Hayden teve que lhe prometer algumas concessões incomuns para persuadi-la a nos ajudar.

Os olhos verde-claros de Henrietta brilharam com o feliz otimismo que a fazia parecer sonhadora e distraída o tempo todo.

– Estamos na cidade agora, querida. É um mundo bem diferente. A Sra. Braxton não serviria. Foi por isso que Hayden encontrou essa casa e a estimável Srta. Welbourne para nós.

Ela concedeu a Hayden um daqueles sorrisos. Um dos sorrisos agradecidos e afetuosos que diziam que ele era a âncora de seu navio sem leme. Ela confiava totalmente no sobrinho, dependia dele em excesso e esperava que ele atendesse a seus caprichos. Provocava um desastre atrás do outro e depois, com pesar, encaminhava o problema para ele resolver, porque ele era tão incrivelmente competente nisso.

Ele não tinha dúvida de que sua tia agia com ele de forma semelhante à que costumava agir com seu finado marido. Sua aparência adorável, as voltas que dava nos assuntos tentando evitar dar explicações, suas tentativas de amansá-lo com elogios – estas eram as marcas de uma mulher que manipulava um homem. Ele gostava de tia Henrietta e até a considerava divertida. No entanto, ser seu administrador por seis anos tinha lhe ensinado certos aspectos do relacionamento diário com uma mulher que vinham com o casamento. Nenhum deles o tinha estimulado a procurar uma esposa.

– Aí está – anunciou Henrietta quando a carruagem parou na Hill Street. – Pedi que o cocheiro passasse por aqui anteontem para me mostrar. A casa é bem bonita e de bom tamanho, não acha, Caroline? Mas não fica em uma praça. Tinha esperanças de que ficasse. Porém, se Hayden diz que é adequada para nós, assim será.

Hayden conhecia bem as esperanças dela. Seu irmão Christian também. Tia Henrietta não dera atenção aos detalhes da mudança para Londres até que ficara difícil demais encontrar um local adequado para alugar. Christian desconfiava de que a tia deles tinha outro motivo para tamanha negligência. Ele estava certo de que ela contava com que ficasse sem lugar para morar, quando então pediria para apresentar sua filha à sociedade no lar de Easterbrook.

Três semanas antes, Christian havia decretado sumariamente que isso não aconteceria, de jeito nenhum. Ele ofereceria o baile de apresentação de Caroline à sociedade, mas não viveria sob o mesmo teto que sua tia intrometida e frívola.

A residência dos Longworths resolvera então um problema iminente. Também dera a Timothy oportunidade de reembolsar Henrietta pelos títulos roubados sem que ela ficasse sabendo do golpe. Henrietta acreditava que Hayden os havia vendido para comprar a casa.

Ao descer da carruagem, Hayden pensou no restante do plano. Com sorte, Caroline ficaria logo comprometida com um rapaz da primeira leva de pretendentes e Henrietta voltaria para sua casa, em Surrey. A casa de Londres seria vendida e os títulos roubados, substituídos por novos. Se a divina Providência realmente sorrisse para ele, após Caroline se casar, sua tia procuraria um marido e Hayden passaria para ele a responsabilidade de controlá-la.

Hayden deu a mão para ajudar a tia e a prima a descerem. Ao entrarem, todos os criados se perfilaram no hall para saudar a nova patroa.

Henrietta examinou a criadagem. Hayden mantivera Falkner, mas o restante do pessoal era novo.

Ele deu um passo à frente quando sua tia se aproximou da Srta. Welbourne e apresentou as duas mulheres – o que não fizera com o mordomo ou com a governanta. Era do seu interesse que elas se dessem bem. Com sorte, a Srta. Welbourne reduziria as demandas de Henrietta por ele.

Tia Henrietta examinou em detalhes a nova dama de companhia. A Srta. Welbourne passou com elegância pela avaliação.

– Esta é minha filha, Caroline – disse Henrietta, instigando a garota a dar um passo à frente. – Nosso atraso em vir à cidade significa que seus últimos retoques precisam de atenção. Imagino que você seja adequada para fazer isso.

– Sou, sim, Lady Wallingford.

– Soube que começou a desempenhar suas funções recentemente e que é prima da família que viveu aqui por último.

Hayden não imaginava que Henrietta soubesse disso. Ela estava na cidade havia somente dois dias. A cor dos olhos da Srta. Welbourne se intensificou, mas ela não demonstrou qualquer outra reação.

– Sim, senhora.

– Vamos conversar um pouco sobre isso. Contudo, não tenho motivos para duvidar da confiança que meu sobrinho deposita na senhorita.

– Obrigada, senhora.

Henrietta seguiu em frente, cumprimentando as empregadas, o lacaio e o cozinheiro. Hayden observava o ritual em um canto do cômodo. Observava principalmente a Srta. Welbourne.

Os olhos dela não vacilaram desde que entraram na casa. Ele percebeu que seu olhar estava pregado em um ponto na parede por trás dele. Mesmo quando Henrietta falou com ela, seus olhos violeta não se moveram. Ela estava resistindo bem àquela provação, mas na verdade não a estava vendo.

Admirou sua atitude e a leve altivez que ela emanava. Alexia podia estar entre os criados, mas só um tolo não veria a diferença. Com certeza sua tia havia percebido isso de imediato, por isso lhe fizera aquela pequena provocação.

O olhar da Srta. Welbourne se moveu sutilmente em direção a ele. Raiva e orgulho se estamparam em seu rosto. Não ouse ter pena de mim, expressou uma olhada rápida. Você mais do que todos os homens não tem esse direito.

O ressentimento dela parecia prestes a desmanchar sua pose. Ele andou em sua direção e fez um gesto para que se aproximasse, tirando-a da fila de empregados.

– Parece que a senhorita tem tudo sob controle. É admirável.

Ele se referia a ela, não aos empregados. Ela pareceu entender. Sua expressão voltou à passividade. Seu olhar se dirigiu para o mesmo lugar de antes, atrás dele na parede.

– Falkner cuidou para que os outros ficassem preparados – disse ela, baixo.

– Acha que consegue lidar com ela? – falou Rothwell, olhando para sua jovem prima.

A Srta. Welbourne olhou para o final da fila também, só que parou para observar Henrietta e não Caroline. Mais especificamente, o chapéu de Henrietta.

– Acho que merecia os dois salários – disse ela.

– Andei pensando que talvez a senhorita valha muito mais para mim.

Ao falar, o tom soou meio malicioso. Se ela percebeu, não teve qualquer reação. Provavelmente porque o sentido oculto tinha ficado somente na cabeça dele, um reflexo de maquinações que não fariam nada bem a sua reputação.

– Acho que tem razão. Mas fiquei satisfeita com nossa última reunião e não espero mais por ora.

– Fico aliviado. Só há uma carruagem, como vê, e minha tia vai querer usá-la de vez em quando. Se a senhorita tiver várias folgas em vez de uma só, isso criaria um sério incômodo para ela.

Ela não pôde resistir e sorriu ao lembrar que o havia derrotado nisso. Sua boca rosa relaxou e revelou seu bem-vindo potencial de sensualidade. Os lábios se afastaram o bastante para provocar pensamentos inapropriados na cabeça dele.

Os olhos de Alexia por fim se voltaram para ele, para partilhar a piada. Ele lhe devolveu um olhar profundo, que exigiu sua relutante atenção. Mas Hayden deixou que o momento se prolongasse demais. A janela se fechou, como se Alexia houvesse notado o perigo nos olhos dele. Ela se empertigou.

De repente, corpos se movimentaram em volta deles. Os criados haviam sido dispensados. O chapéu de Henrietta se intrometeu entre ele e a Srta. Welbourne.

– Hayden, informei ao cozinheiro que você jantará conosco amanhã. Easterbrook e Elliot também.

– Elliot está em Cambridge e Christian tem um compromisso amanhã.

Ele começou a acrescentar suas próprias desculpas, mas ver violetas e rosas deteve suas palavras. A Srta. Welbourne estava falando com Caroline, assumindo suas funções.

– Ficarei feliz em aceitar, se minha presença apenas não for tediosa demais.

– Tediosa, nunca! Não venho a Londres há anos e estaria perdida sem a sua ajuda abrindo caminho para a sociedade. Quase me esqueci do que Caroline deve ver e fazer. Precisamos de você para fazer uma lista de locais que devemos visitar e dos passeios que nós não podemos perder.

Ele desconfiou que ela o incluíra no “nós”. Antes que o jantar do dia seguinte se encerrasse, Henrietta teria sua agenda completamente preenchida com formas como ele poderia “ajudar”.

Era tudo culpa da Srta. Welbourne. Ela o distraíra e ele baixara a guarda. Se ela o deixara à mercê de Henrietta somente com um sorriso, era uma sorte ela o odiar e não sorrir com frequência.

Ele se despediu e recebeu um adeus frio da Srta. Welbourne em meio às despedidas efusivas de Henrietta. Ao deixar a casa, Henrietta estava seguindo a governanta para ver os outros cômodos e Caroline se esgueirava à procura da sala de música.

O que significava que a Srta. Welbourne tinha sido a única a de fato vê-lo partir.


Paciência. Alexia disse para si mesma. Lembre-se do seu lugar. Engula as palavras antes de expressar o que você pensa.

Ela se sentou à mesa da sala de jantar com Lady Wallingford, Caroline e lorde Hayden. Manter-se em silêncio durante esses jantares se mostrou uma tarefa fácil, porque Lady Wallingford não parava de falar com o sobrinho. Nas duas últimas refeições em que tinha estado presente, ela o persuadira a contar todas as fofocas que corriam pela cidade, com descrições completas dos personagens importantes. Esta noite ela o estava pressionando a levá-la ao Museu Britânico.

Lorde Hayden olhava com frequência em direção a Alexia, como se esperasse que ela interrompesse a conversa e o salvasse de sua tia. Ela não se mostrou inclinada a fazer isso. Era uma criada, afinal de contas. Não lhe cabia fazê-lo, não era verdade? Ele estava sendo óbvio demais também. Parecia ignorar a tia todas as vezes que desviava a atenção daquela forma.

Ele tratava a tia com uma firmeza afetuosa que sugeria que a considerava distraída demais para ser responsabilizada por seus excessos. Aparentemente não apreciava por completo a sua personalidade. Em apenas uma semana, Alexia descobrira que as maneiras frívolas e despretensiosas de Lady Wallingford escondiam um tipo muito feminino de astúcia.

– Será mais instrutivo para Caroline se você nos levar, Hayden – disse Lady Wallingford. – Sou ignorante em história antiga e nunca conseguiria explicar a importância dos artefatos. – Ela lhe deu um sorriso que derreteria aço. – E Caroline não conhece muito bem você e seus irmãos. Nem você a conhece, agora que ela não é mais uma criança.

Caroline ficou vermelha até as orelhas. O olhar astuto da sua mãe lhe deu uma deixa. Caroline forçou um sorriso esperançoso.

– Seria maravilhoso visitar o museu com você, Hayden. Se puder dispor de tempo para nós.

Alguns minutos depois, Lady Wallingford pegou o sobrinho em sua rede. Na semana seguinte ele iria acompanhá-las ao museu.

Alexia se divertia vendo a nova patroa manipular esse homem orgulhoso e severo. Ele nem parecia perceber o maior desejo da tia, que era o de fisgá-lo de vez.

– Agora temos que decidir sobre a modista que fará o vestido da apresentação de Caroline – disse Lady Wallingford. – Ouvi falar que existe uma madame Tissot que é uma maravilha e também que a Sra. Waterman serviria. O que nos aconselha, Hayden?

– Eu não entendo disso, mas a Srta. Welbourne as ajudará, espero.

Todos os olhares se voltaram para ela, vencendo suas intenções de permanecer uma mera sombra no canto da mesa.

– Se eu tivesse que escolher, com certeza seria madame Tissot – disse ela.

A Sra. Waterman tinha sido a modista escolhida para fazer o guarda-roupa de Irene Longworth para sua apresentação. Caroline agora vivia na casa de Irene e até dormia na cama de Irene. Por nada neste mundo Alexia permitiria que também ficasse com os vestidos feitos para Irene, se pudesse impedir.

A rispidez de sua reação advertiu-lhe que ela ainda não tinha definido sua situação. Os ressentimentos afloravam em ocasiões como essas. Ter que partilhar a refeição com lorde Hayden também deixava parte de sua alma fervilhando. Aceitar sua atenção arrogante, combater sua aura dominadora, parecia uma perspectiva cruel. Ela esperava que ele demonstrasse mais força de caráter no futuro e declinasse os convites da tia para jantar.

– Antes que encomende qualquer vestido, precisamos ter uma conversinha, tia Henrietta.

– É claro – concordou Lady Wallingford, sua expressão tornando-se obediente e respeitosa. – A própria Caroline insistiu em limitações estritas de custo. Ela é muito mais sensata do que eu nessa área, não é, querida? O homem que se casar com ela vai achar bem mais fácil controlar seus gastos do que os da maioria das outras moças.

Caroline enrubesceu de novo. Seu primo não percebia a isca que pairava acima dele, apenas deu um sorriso vago em aprovação.

A refeição terminou e, com a agenda de lorde Hayden adequadamente preenchida, todos se dirigiram para a sala de estar. Ao chegar à porta, Lady Wallingford anunciou um novo plano.

– Hayden, você daria licença a mim e a Caroline por um instante? Ela tem uma surpresa para você e preciso ajudá-la. A Srta. Welbourne vai entretê-lo enquanto preparamos um passatempo.

E assim Alexia se viu sozinha, sentada em frente a lorde Hayden na sala de estar, em uma situação parecida com a de sua primeira conversa.

– Pode me dar uma dica sobre qual será esse passatempo? – perguntou ele, esticando as pernas de maneira muito informal.

Ela não era nenhuma parenta dele; dispensava tal atitude de familiaridade.

– É um mistério para mim.

– A senhorita é a preceptora dela.

– Acho que isso foi planejado antes da chegada delas. Que eu saiba, não houve ensaios ao longo da última semana.

Ele a olhou daquela forma direta e desconcertante que adotara.

– Então não deve mesmo ter havido nenhum. Tenho certeza de que nada lhe escapa, Srta. Welbourne. Por exemplo, já deve ter percebido que a querida tia Henrietta tem planos para Caroline e eu que vão além de visitas a museus.

– É verdade? Que afortunado!

A consciência dele das intenções de Henrietta arrasaram suas fantasias. Ela tivera esperanças de vê-lo nadar arrogantemente contra a correnteza só para no fim morrer na praia, sob os saltos de Henrietta.

– Ajudaria muito se desestimulasse esses planos.

– Não imagino como. Além disso, vocês formariam um belo casal.

– A senhorita pretende se aliar a tia Henrietta contra mim, não é?

– Nós, mulheres, somos como irmãs nesses assuntos, senhor. E realmente gostamos de ver o poderoso perder.

– A senhorita fala como se eu não tivesse chance – disse ele rindo.

– Tenho esperanças de vê-lo estripado, descamado e na frigideira até junho.

O humor fez os olhos de Hayden brilharem. A diversão o transformara. Não parecia mais tão rígido. Forte, sim, mas não rígido.

– Um peixe? Está me comparando a um peixe? Poupe-me alguma dignidade, Srta. Welbourne. Uma raposa caindo na armadilha, um touro vencido por um toureiro. Há muitas analogias à disposição, mas um peixe é cruel demais.

Ela sorriu sem querer.

– Achei a imagem muito convincente.

Apesar de ainda sorrir, ainda... atraente, a conduta dele ficou mais séria.

– Se a senhorita se recusa a desestimular minha tia, então está certo. Mas faça o que puder para evitar que a garota aceite as ideias da mãe. Não gostaria de vê-la magoada ou desencorajando pretendentes por conta desse esquema. Não há a menor possibilidade de eu me casar com minha prima.

– Por que não?

O sorriso dele foi firme o bastante para dar a entender que Alexia tinha ido longe demais. Não havia novidade nisso e ela não retirou a pergunta.

– Ela é uma criança – disse ele.

– Todas elas são. As igrejas estão cheias de noivas meninas, já que se considera encalhada uma mulher solteira de 22 anos.

– Não pretendo me casar no futuro próximo, menos ainda com uma criança. Essas meninas têm ideias muito frívolas e românticas, o que obriga os homens a fingir fraqueza e sentimentalidade. Além do mais, ela é minha prima. Sei que esses arranjos são comuns, mas são uma prática doentia que não aprovo.

Doentia?

– Benjamin Longworth era meu primo. Não gosto da ideia de que meu amor por ele seja doentio.

Hayden empalideceu.

– É claro que não. Desculpe-me, Srta. Longworth. Às vezes sou muito sem jeito ao expressar minhas ideias.

Seguiu-se um silêncio breve e desconcertante.

– É claro que não tínhamos convivência quando éramos mais jovens – disse ela. – Ele não me conheceu quando eu era garota...

– Sim, exatamente. Então entende por que um casamento com Caroline é... impossível.

Ele encerrou o assunto se levantando e caminhando sem rumo pela sala.

– Quando a senhorita conheceu Benjamin?

A pergunta foi feita casualmente, enquanto ele examinava uma cena doméstica pintada por Chardin. O quadro tinha vindo com vários outros após a partida dos Longworths, um empréstimo da coleção de Easterbrook para cobrir as paredes vazias.

– Quando me juntei a eles aqui em Londres. Eles viviam em Cheapside na época. Escrevi-lhes sobre minha situação depois que meu pai morreu e Ben me respondeu dizendo que deveria vir. Ele foi muito gentil.

Gentil e alegre. O mundo se iluminava quando Ben estava por perto. Ele inspirava uma leveza de espírito, muito diferente do homem que estava em sua companhia no momento, que a deixava com raiva e na defensiva o tempo todo.

– O senhor disse que se conheceram quando eram garotos. Como ele era quando jovem?

– A maturidade não mudou sua personalidade. Ele era igualmente impulsivo e despreocupado quando garoto. E fazia muitas travessuras.

– Quer dizer que ele foi um menino levado.

– De uma forma positiva. Todavia... O garoto, assim como o homem, não pesava as consequências de seus atos.

– É porque Ben vivia o momento. Ele não planejava nada. Contava com a sorte de que tudo desse certo no fim.

Ela amava isso nele. Amava como se sentia livre e quase inconsequente na presença de Ben. A vida a forçara a se tornar tediosa e sensata, até que os sorrisos dele a aqueceram em seu último ano juntos.

Ele lhe devolvera a juventude por um curto espaço de tempo e ela ainda ocultava aquela garota renascida e cheia de vida no mesmo lugar em que guardava as lembranças de Benjamin.

Rothwell tinha se virado e estava olhando para ela. Ele parecia rígido de novo e seus olhos azul-escuros demonstravam quão profundamente ele a avaliava. Ben nunca olhava para as pessoas daquela forma.

Ela sustentou o olhar. Foi um erro. A conexão a deixou em desvantagem, assim como acontecera no hall na semana anterior, quando ele chegara com a tia. O olhar dele era penetrante demais, enxergava demais. Ela sentiu como se ele estivesse lendo seu coração.

Alexia reagiu como acontecia com frequência diante desse homem. Parecia com a forma como Ben a fazia sentir, só que com tintas mais intensas. A atenção que ele lhe dispensava flertava com o perigo. O estímulo que lhe provocava causava tremores de medo.

Ela estremeceu. Disse a si mesma que estava com os pés firmes no chão. Mas a verdade sussurrava o contrário em seu coração. Ela era impotente para desviar o olhar, para rejeitar aquela excitação.

– Imagino que a vida não era enfadonha quando vivia nesta casa – disse ele.

Ela se sentiu corar. Era como se ele tivesse visto aqueles beijos roubados nas suas lembranças e agora se referisse a eles.

Ele parecia prestes a falar de novo, mas foi interrompido. Um lacaio apareceu para dizer que eles eram aguardados na biblioteca.

– Parece que o passatempo está pronto – disse lorde Hayden.

Ele a acompanhou até a outra sala. A proximidade do corpo dele a fez pensar na volta de reconhecimento que haviam feito pela casa. E isso não ajudou em nada a combater o estranho poder que ele exercia sobre ela.

– Gosto de falar sobre Benjamin com o senhor – disse ela ao entrarem na biblioteca. – Espero que algum dia me divirta com casos sobre seu tempo na Grécia ou a juventude dele.

– Certamente, Srta. Welbourne.

Um pequeno palco armado aguardava por eles na biblioteca. Duas colunas baixas flanqueavam um pano azul esticado no chão. Um tecido branco pendia ao fundo, preso nas prateleiras de livros. O cenário improvisado mostrava uma pintura de montanha e de um templo com colunas.

Lady Wallingford estava de pé ao lado. Ela indicou que eles se sentassem em duas cadeiras dispostas diante do pano azul.

Ela bateu palmas para chamar atenção. Outra palma e a representação começou.

Caroline surgiu de trás do cenário. Estava usando uma roupa ao estilo grego, que deixava seus braços de fora e mostrava um pouco de seu quadril e muito da sua pele no pescoço e colo. A mãe prendera seu cabelo para cima, dando-lhe um ar mais maduro, e até maquiara levemente seu rosto jovem.

Caroline estava muito bonita, muito adulta – quase infame.

Alexia esticou o olhar para lorde Hayden, para ver sua reação. Pegou-o discretamente olhando de volta para ela.

– E eu que achava que as tinha sob controle, Srta. Welbourne – sussurrou ele. – Parece que minha tia não pretende esperar até junho para me fritar.

A bela isca de Lady Wallingford se posicionou entre as duas colunas e começou a recitar uma passagem da Ilíada.


CAPÍTULO 5

Usando um vestido velho e envolta num longo xale de lã, Alexia se refugiou na biblioteca. Acendeu a lareira, deitou-se no sofá ao lado e apoiou na barriga um livro aberto.

Silêncio. Liberdade. Um fogo aconchegante e horas de privacidade. Fechou os olhos e saboreou a sensação de retorno a um mundo que conhecia bem. A chuva que batia suavemente no vidro das janelas só melhorou a sensação.

Tinha sido brilhante pedir a lorde Hayden uma folga por semana. Ousado também. Nunca imaginou que seu pedido pudesse ser atendido; ficou até espantada quando lorde Hayden cedeu. Talvez ele de fato se sentisse um pouco culpado em relação aos Longworths. Não havia outra explicação.

Era um ponto a favor dele, mas ela não desperdiçaria tempo avaliando seu caráter. Planejava aproveitar ao máximo essas horas sem Lady Wallingford e Caroline – principalmente, sem o próprio lorde Hayden. Ele estava sempre pelo caminho, fazendo visitas de dia ou jantando à noite. O homem era jovem, solteiro e rico. Com certeza tinha coisas melhores para fazer do que visitar a tia.

Ela sorriu para si mesma. Sem dúvida que tinha. Entretanto, sua tia possuía a excepcional capacidade de requisitar sua presença e faltava nele a habilidade necessária para escapar de suas maquinações. Alexia desconfiava de que sua analogia com o peixe tinha sido inapropriada. Rothwell não estava sendo seduzido com uma isca. Henrietta fixara um anel no nariz dele e o estava lenta e implacavelmente levando para o matadouro.

Ela riu ao pensar nessa imagem. Contudo, enquanto um minotauro era arrastado pela corda de Henrietta, a fantasia se transformou. De repente, ela o viu de pé ao lado da jovem Caroline numa igreja.

Seu júbilo se desfez e ela examinou a cena em sua cabeça. Não seria um casamento com amor. Ela duvidava se havia algum romantismo nele. Caroline imaginaria que sim, pois era jovem e impressionável. Quando essa ilusão se desvanecesse, já teriam se adaptado um ao outro. Caroline teria o que a maioria das mulheres almejava: segurança, apoio e, quem sabe, gentileza.

O quadro mudou de novo e Rothwell não estava mais na igreja. Em vez dele, surgiu Benjamin. E Alexia já não observava tudo olhando de cima: estava ao lado dele. Por um instante, a alegria encheu seu coração, como se a cena fosse real.

Ela afastou a imagem da cabeça com um arrependimento melancólico. A vida nem sempre era como se desejava. Às vezes era preciso se contentar com menos do que fora sonhado.

O livro chamou sua atenção. Normalmente leria Walter Scott em seu quarto, onde ninguém poderia ver. Não era o tipo de literatura séria esperada de uma preceptora. Não tinha sido incluído na lista que ela dera a Caroline como parte de suas lições.

Embrulhada e aconchegada, permitiu-se a libertação temporária de viver em um mundo de homens arrojados e mulheres impressionantes, de paixões fortes demais para estarem no mundo real e de romances dramáticos demais para serem verdade.


– Irc.

O rosto de Caroline se torceu de nojo, mas ela se aproximou da cabeça de abutre preservada em álcool. De todos os artefatos eruditos atulhados na coleção do museu em Montagu House, esse grotesco espécime só não era mais popular do que a múmia egípcia e o porco com cara de ciclope conservado em salmoura.

Hayden sorriu com a fascinação e a repulsa infantis. Era revoltante pensar que ela provavelmente estaria casada dali a um ano. Não aprovava que meninas tão novas fossem oferecidas a pretendentes, e não só porque o casamento precoce de sua própria mãe tivesse sido tão trágico.

– Agora temos que ver as peças de mármore – arrulhou Henrietta, puxando a filha da multidão que observava o abutre.

Por duas vezes Hayden já desviara a atenção delas para que esquecessem os mármores de Elgin. Ele se lembrava perfeitamente de como a tia vestira Caroline para sua apresentação da Ilíada e imaginava por que Henrietta se mantinha tão inflexível quanto a ver as peças de mármore. Pouco tinha a ver com o fato de serem uma mostra magnífica da arte grega.

– Não creio que a Srta. Welbourne fosse considerar apropriado a Caroline ver as esculturas em mármore – disse ele.

– Sou mãe dela; a decisão cabe a mim. Contudo, a Srta. Welbourne a instruiu a vê-las. Falou tão bem desses trabalhos que também tive vontade de revê-los.

– Se ela foi tão categórica, deveria ter nos acompanhado na visita.

Ele só descobrira que a Srta. Welbourne tinha optado por tirar folga naquele dia quando chegara para pegar as damas. Ela o deixara à mercê de Henrietta, enquanto se divertia na cidade, sabe lá Deus fazendo o quê. Teve ímpetos de mandar chamá-la e ordenar que entrasse em sua carruagem imediatamente e que escolhesse outro maldito dia para descansar.

A tia o arrebanhava na direção que desejava que ele seguisse.

– A Srta. Welbourne disse que as esculturas estão em um pequeno prédio à parte. É por aqui, não?

Saíram de Montagu House, enfrentaram a chuva e entraram no anexo que abrigava as esculturas que lorde Elgin retirara do grande Parthenon em Atenas.

– Você não deve ficar chocada, Caroline – instruiu Henrietta. – Grandes artistas tomam liberdades que podem parecer escandalosas, mas a arte ocupa um plano mais elevado da experiência. Além disso, essas peças são muito antigas, de uma época anterior à era cristã.

Hayden suspeitava de que, na verdade, a intenção da tia era causar espanto em Caroline. Essa história de plano mais elevado era lorota. As figuras masculinas no salão estavam praticamente nuas. Sua tia estava realizando uma forma disfarçada de iniciação e a presença dele era inadequada.

Tia Henrietta queria isso também. Ela desejava que a filha visse as estátuas e ficasse se perguntando o que haveria por baixo das vestimentas do futuro marido ao seu lado.

Se a Srta. Welbourne tivesse vindo, poderia ter dado uma aula de arte para Caroline, enquanto ele se manteria à sombra. Conjecturou se Henrietta tinha decretado que a preceptora ficasse em casa, para que ele não tivesse essa opção. O mais provável era que a Srta. Welbourne houvesse desconfiado do plano e dado uma mãozinha para sua tia.

Ele pretendia conversar com a Srta. Welbourne a esse respeito. Muito em breve.

Pararam em frente às métopas que mostravam a batalha entre os lápitas e os centauros. Hayden contou a história exibida ali. Henrietta analisou os aspectos artísticos.

Caroline olhava com curiosidade para os corpos masculinos nus. Seguiu-se um silêncio curto e constrangedor durante o qual Hayden se esforçou para manter toda a compostura.

O cenho de Caroline se franziu.

– Estão todas quebradas. É como se tivessem cortado fora as cabeças e os braços com espadas. Não imagino por que essas obras estão em exposição, muito menos por que são famosas.

Hayden quase respondeu que não era assim que os corpos ficavam quando decepados. A imagem bizarra invadiu sua cabeça e sua alma se entristeceu. Voltou a atenção para as damas a fim de conseguir controlar a sensação ruim.

– Trata-se da escultura das formas, querida. É por isso que são tão apreciadas – disse Henrietta. – Os dorsos, coxas e quadris...

– Não gosto nada disso.

– Outras pessoas compartilham suas críticas, Caroline – disse Hayden. – Muitos só começam a apreciar a arte grega depois de um tempo. Já ouvi dizer que as mulheres passam a gostar mais desses mármores conforme vão ficando mais velhas.

Ele indicou o caminho dessa vez, para fora do anexo.

– É uma pena a Srta. Welbourne ter ido visitar amigos em vez de nos acompanhar – comentou Hayden. – Tenho certeza de que ela seria capaz de explicar os aspectos artísticos para além do meu nível de sensibilidade.

– Ela não tirou folga para visitar amigos – disse Caroline. – Ela pretendia ficar em casa para cuidar de assuntos pessoais. Escrever cartas, coisas assim.

Isso não melhorou seu humor. Ele passaria mais algumas horas nesse passeio, enquanto a Srta. Welbourne escapava de suas funções para escrever cartas. Cartas de amor, era provável, para o falecido Benjamin Longworth.

Ela só se alegrava quando o nome de Ben era mencionado. Transformava-se em outra mulher. A lembrança de seu antigo amor a remoçava como por encanto. Isso era doentio! Também era um amor construído sobre mentiras. Mais uma vez Ben tinha agido por impulso, sem medir as consequências.

Ben nunca pretendera se casar com Alexia Welbourne, independentemente do que ela havia sido levada a acreditar. Estava atraído por uma jovem abastada e de família aristocrática muito antes da viagem para a Grécia. A própria ideia de lutar na guerra tinha sido uma forma de executar atos heroicos que impressionariam a tal jovem rica e inatingível.

Henrietta interrompeu seus pensamentos sugerindo que visitassem a biblioteca do museu. Hayden vislumbrou mais uma hora bancando o professor.

Quando abriu a porta, avistou um rosto familiar. Seu irmão Elliot estava sentado a uma mesa, examinando um grande manuscrito. Elliot retornara à cidade na noite anterior, vindo das bibliotecas de Cambridge, e já estava ali.

– Espere aqui, tia Henrietta.

Hayden deixou as duas na porta e andou na direção do irmão. Elliot estava tão absorto que foi preciso tocar seu ombro para chamar sua atenção.

A basta cabeleira escura foi jogada para trás. Elliot olhou através dos óculos. Sua mente refez seu caminho de volta do lugar aonde o manuscrito o levara.

– Hayden. Que surpresa!

– Será, com certeza. Venha comigo. Se fizer alguma objeção, vai se ver comigo.

Confuso, Elliot se levantou e o seguiu sem apresentar resistência.

– Vejam quem encontrei estragando os olhos em um denso tomo latino – anunciou Hayden.

Saudações cordiais se seguiram. Elliot vivia perdido no passado histórico, mas podia ser bem charmoso, quando queria. Caroline ficou envaidecida com os elogios de como estava crescida e bonita e como logo seria assediada por vários pretendentes depois de sua apresentação à sociedade.

– As damas gostariam de conhecer a biblioteca e saber de suas preciosidades, Elliot.

– Ficaria feliz em mostrar-lhes a coleção. Há muitas raridades que são ao mesmo tempo belas e instrutivas. Há também os projetos do arquiteto Robert Smirke para o novo prédio do museu, que está em construção.

– Que ideia esplêndida – disse Hayden. – Deixo-as em suas hábeis mãos.

Henrietta não ficou nada satisfeita.

– Mas, Hayden, achei que você...

– Tenho um compromisso esta tarde e logo teria que me despedir de vocês, de qualquer forma. Agora podem apreciar a biblioteca sem pressa. Elliot é muito mais qualificado para dar essa aula do que eu. Mostre-lhes tudo. Elas têm o dia inteiro.

Ele concluiu sua fuga. Seria improvável que a tia e a prima aparecessem em casa antes do jantar. Ele deixou a carruagem esperando por elas e saiu para procurar um cabriolé de aluguel.

Ele não mentira. Realmente tinha compromissos nesta tarde. Mas não nas próximas horas. Tinha que ir a outro lugar antes de seguir para o centro financeiro e tratar de negócios.


Ela emergiu de um sonho. Mesmo ao flutuar rumo à consciência, sabia que tinha tirado uma soneca sem querer. Algo a puxara de volta à superfície. Não fora um som. Uma sensação de perigo a arrancara do sono.

Abriu os olhos. A primeira coisa que viu foram outros olhos, de um azul tão escuro que surpreendiam. Avistá-los causou um eco em sua alma: tinha acabado de vê-los no sonho que agora se apagava nas brumas das memórias mais profundas.

As visões e odores do mundo real afastaram rapidamente o sono que restava, deixando-a cara a cara com lorde Hayden Rothwell.

Ele parecia muito alto em pé diante dela. E muito sério também, com uma pequena ruga a lhe marcar o cenho. Provavelmente desaprovava que criados dormissem no sofá da biblioteca.

Ela deu um salto e se sentou.

– Sua tia já voltou?

– Deixei-a com meu irmão Elliot na biblioteca.

Ele pairava sobre ela. Essa proximidade a deixava nervosa.

Isso a incomodava. Mesmo nas ocasiões em que conversavam informalmente, mesmo quando se deixava encantar por ele, esquecendo o motivo de odiá-lo tanto, aquela inquietação incômoda persistia.

Ela não deveria ter que tolerar isso hoje.

– Dei ordens a Falkner para que ninguém entrasse neste recinto.

– Os criados nunca imaginariam que tal ordem me incluiria. Na cabeça deles, sou o patrão desta casa e dono de tudo aqui dentro.

Ele não se moveu, como se enfatizasse que seu poder sobre “tudo aqui dentro” significasse que era dono dela também.

– É assim que pretende aproveitar as folgas que me persuadiu a lhe conceder? Lendo perto da lareira?

– Este é meu dia. Sou livre para fazer o que quiser. Se esperava um relatório, deveria ter me dito.

Ela queria que Hayden fosse embora. Ele estava estragando tudo.

– Então, por algumas horas, viverá aqui como outrora e tratará esta casa como se fosse seu lar de novo. Não havia compreendido o significado real da palavra “livre” quando a usou.

As palavras atingiram o coração de Alexia, ressoando em toda a sua verdade. Ele a compreendia melhor do que ela mesma. Entendia por que essas horas tinham sido tão deliciosas.

Tinha mais um motivo para odiar aquele homem agora. Levantou seu olhar para ele.

– Por que está aqui?

– Para vê-la.

Seu olhar mudou. Viu-a da cabeça aos pés, com o velho vestido verde e o grosso xale de lã. Alexia deveria ficar constrangida por suas vestimentas simples, mas naquele momento elas pareceram convenientes e... seguras.

– Também vim para conversarmos, de forma que entenda o que preciso que faça.

– Conheço minhas funções.

– Parece que não. Esperava que acompanhasse minha prima hoje.

– Como ela estaria acompanhada do senhor e da mãe, não havia necessidade que eu fosse. Sua tia concordou.

– Nós dois sabemos por que minha tia não quis que a senhorita fosse conosco. Assim ela poderia empurrar a menina mais facilmente para cima de mim.

– As intenções de sua tia em relação ao senhor não me dizem respeito. Escolhi este dia de folga com cuidado, de forma a não interferir nas aulas de Caroline.

– Acho que escolheu este dia para me evitar.

Mais uma vez, suas palavras ressoaram dentro dela.

– Talvez sim. O senhor tem sido uma presença mais constante nesta casa do que eu esperava. Para mim é muito árduo reunir as forças necessárias para manter a elegância.

A expressão dele se fechou de uma forma que ela conhecia bem. Ela estava sendo novamente ousada demais. Mas não se incomodava. Era seu dia de folga e isso significava, antes de qualquer coisa, que poderia ficar livre dele.

– De agora em diante, quando eu acompanhar minha prima e minha tia, a senhorita irá conosco.

– Não recebo ordens suas sobre minhas obrigações. Cabe à sua tia decidir, não ao senhor.

– A senhorita estará lá – disse ele com firmeza.

Ela cerrou os dentes e olhou para o fogo, ignorando Hayden o máximo possível. Mas ele já devia estar de partida. Depois de ter decretado a nova lei, não havia motivo para permanecer ali.

Ele não foi embora, mas, pelo menos, se afastou. Infelizmente, ficou mais perto da lareira, assumindo uma posição que exigia que ela olhasse para ele. Alto, forte e moreno, ele penetrava seu campo de visão e sua mente.

– A senhorita estava sorrindo enquanto dormia – disse ele. – Estava sonhando com ele, Ben?

– Não sei.

Um par de olhos a encarou das profundezas de sua memória.

– Acho que não, mas talvez sim – concluiu ela.

– Ele era meu amigo e tenho uma dívida com ele, mas...

– Espero que nunca tenha uma dívida comigo, pois sei muito bem como faz o ressarcimento.

Ela alcançou seu intento com essa frase. A reação dele fez sua nuca formigar. No entanto, junto com a precaução vinha uma enxurrada das outras sensações que aquele homem sempre lhe provocava.

– Ele morreu há três anos – disse Hayden. – Talvez devesse esquecer essa fixação.

A raiva lhe subiu à cabeça, fazendo-a deixar a prudência de lado. Levantou-se.

– Minhas lembranças são muito caras para mim, mas não são uma fixação.

– Na noite em que Caroline fez a apresentação da Ilíada, a senhorita falou do seu amor no presente do indicativo.

– Tenho certeza de que não fiz isso.

– Fez, sim, e está perdendo seu tempo.

– O senhor está sendo impertinente. Esta conversa seria despropositada mesmo que fosse um amigo íntimo, o que certamente não é. Não toleraria essas especulações intrometidas de um parente, imagine do senhor.

Ele se aproximou dela. Ela quase deu um passo para trás, mas sua raiva ignorava a prudência.

– A senhorita não terá um futuro, a menos que o deixe ir embora.

Alexia teve que vergar o pescoço para olhar para Hayden. Ele mais uma vez tentava impor sua presença e sua vontade. Gostava de fazer isso. Alexia queria poder bater nele pelo que lhe causara. Sua pulsação se acelerou e suas têmporas pareciam explodir.

– Como ousa falar do meu futuro? O senhor, entre todos os homens? Ele já era pouco promissor o bastante há um mês. Eu não tinha fortuna nem beleza, mas, pelo menos, tinha uma casa e uma família. É ultrajante de sua parte tocar neste assunto comigo.

Ele aceitou suas acusações sem comentários. Alexia percebeu a raiva em seus olhos, que se equiparava à sua própria. Mais do que nunca era necessário ter cautela, no entanto, Alexia a jogou pelos ares.

– Existem homens que veem além da fortuna. E sua beleza é suficiente.

Considerando sua expressão intensa e séria, a voz dele soou muito calma.

– Agora o senhor está sendo cruel.

– Seus olhos são magníficos. Hipnotizantes. E refletem seu espírito indomável.

O elogio a deixou sem palavras. A raiva enfraqueceu. Em um esforço de reunir os pensamentos espalhados com o choque, ela ficou tentando desesperadamente se recompor.

Hayden deu mais um passo em direção a ela. Alexia não percebera sua aproximação antes, mas ele estava muito perto. Perto demais. Olhou dentro dos olhos dele. Era ela a hipnotizada agora.

Um toque aveludado em seu queixo. Ele a estava tocando. Um tremor pulsou sob os dedos dele e se espalhou para o colo de Alexia. Ela deveria...

– Sua pele é maravilhosa – disse ele, afagando-a de leve.

O toque suave, tão surpreendente e íntimo, deixou-a sem fôlego. O olhar dele baixou.

– E sua boca, Srta. Welbourne, sua boca é tão linda que duvido que um dia a senhorita possa entender quanto.

Ele olhou nos olhos dela outra vez e de novo a surpreendeu. Seu olhar queimava, cheio do perigo que percebera desde a primeira vez que o vira.

Com os olhos arregalados de espanto, ela notou a decisão repentina de Hayden. Foi tão absurdo que ela não acreditou em seus instintos.

A boca de lorde Hayden encontrou a de Alexia. Quente, firme, autoritário, o beijo levou a uma sequência de susto e maravilhamento. Sua cabeça era uma confusão só. Em algum lugar no meio de suas reações caóticas, a Alexia prática dava ordens sensatas sobre o que fazer, mas ela estava deslumbrada demais para obedecer.

Ela reagiu sem acanhamento. Sentindo que um calor premente percorria seu corpo todo, pulsando e fervilhando em seus seios, seu ventre e mais abaixo. A excitação se tornou física, ameaçando tomá-la por completo. Correntes de prazer a seduziam a ponto de abandonar-se.

As sensações a encantaram. Ele a abraçou e ela se rendeu. Era uma intimidade tão deliciosa que Alexia gemeu silenciosamente em agradecimento. A força que a segurava, o corpo firme pressionando o seu, o calor intenso da boca beijando seus lábios, seu pescoço, seu peito... Uma Alexia nem um pouco sensata se revelou no estímulo sensual e acolheu a torrente de paixão.

Os beijos pararam. Dedos firmes e viris seguravam seu rosto. Ela abriu os olhos e encontrou lorde Hayden observando-a. O desejo transformava a severidade dele. Mesmo sua rigidez ficava sedutora.

Ele a beijou de novo e uma batalha começou a ser travada dentro de Alexia. Ela vira muitas coisas em seus olhos. Os pensamentos que fervilhavam na mente dele. Também percebeu a impressão que dava naquele momento: era uma mulher se submetendo a um homem de quem não gostava e em quem não confiava. Uma solteirona solitária aceitando as atenções de um qualquer.

Alexia recobrou um pouco do equilíbrio perdido, mas não queria abrir mão de se sentir tão viva. Não queria perder aquele contato físico. Mesmo quando suas mãos empurraram o peito dele, tentando se soltar, grande parte dela queria se fundir nele, não importando quem ele era, nem a vergonha que adviria.

Ela viu e sentiu cada instante a seguir – o relaxamento da pegada dele, o lento desmanchar de seu abraço, o afastamento de seu toque – e seu corpo reagiu a cada perda.

Alexia se afastou rapidamente rumo à janela. Incapaz de encará-lo, olhou para fora. Tentou se aprumar para parecer normal quando saísse da biblioteca. Assim que seu bom senso retornou, uma forte sensação de humilhação a invadiu.

Esperava que lorde Hayden tivesse a bondade de sair. Ele não teve. Ela pensou que ele pelo menos iria se desculpar. Ele nada disse. Sentiu que ele a olhava. Isso só piorou as coisas. Se ele fosse embora, ela poderia maldizer sua própria fraqueza e a crueldade dele. Enquanto ficasse, ela continuaria trêmula e envergonhada, perturbada demais para se recompor.

– Isso não foi muito honroso de sua parte, lorde Hayden.

– Não.

Ele não parecia arrependido. Seu tom parecia dizer: Talvez não, mas eu faço o que quero.

– Sei por que fez isso – disse ela. – Sei o que deve estar pensando a meu respeito.

– Então a senhorita sabe muita coisa.

A voz de lorde Hayden Rothwell soou mais próxima. Alexia percebeu que ele tinha vindo em sua direção. Parara a menos de um metro dela. Para seu espanto, a excitação e o perigo começaram a enfeitiçá-la de novo. Seu coração começou a bater mais pesado e mais lento.

– O que penso da senhorita? Como não tenho certeza, uma explicação sua seria muito útil.

Um homem decente teria se desculpado e ido embora.

– Ben e eu não éramos tão íntimos. O senhor interpretou mal.

– Não estava pensando nisso, de forma alguma. Meu único pensamento foi que a senhorita precisava ser beijada.

Ela se virou determinada a colocar um fim na maneira como brincava com ela. Seu coração falhou ao vê-lo, mas ela conseguiu pôr aquela excitação de adolescente em seu devido lugar.

– Não pelo senhor. Não sou a criada de quem o lorde pode se aproveitar. Peço-lhe que se lembre disso no futuro.

Ele a olhou direto nos olhos, como sempre, só que agora seu olhar refletia aqueles beijos. Agora seria sempre assim. Dar liberdades a um homem criava uma familiaridade que minava de uma vez por todas qualquer formalidade.

– Não tentei agarrá-la, só a beijei. E não foi de forma tão ousada quanto a senhorita teria permitido.

O rosto dela estava fervendo.

– Agora o senhor está me insultando.

– Não, estou sendo honesto. Mas vou deixá-la a sós, para que finja o contrário.

Com um leve cumprimento, Hayden se dirigiu para a porta.

– Lorde Rothwell, espero que no futuro demonstre o respeito que meu emprego junto a sua prima exige.

Ele parou à porta e virou-se.

– Ainda não me decidi.

– Então permita-me ajudá-lo a se decidir. Não gostei de seu beijo e não deve fazer isso de novo.

Ele abriu a porta.

– Gostou, sim. Acha que um homem não consegue perceber a verdade?


CONTINUA

Uma sombra penetrou cedo na casa junto com o visitante inesperado. Alexia se sentiu perturbada mesmo antes de ver quem era.
Ela descia a escada carregando sua cesta de costura e parou nos degraus ao notar as vozes que conversavam baixo no hall. Mesmo sem entender direito as palavras, compreendeu o tom firme de quem faz exigências. Percebeu que a forma respeitosa como o empregado se opunha de nada servia. Falkner, o mordomo, foi chamado. Diante de um poder silencioso e determinado, as barreiras da casa cediam.
Um mau pressentimento tomou conta de Alexia, como no dia em que aquele homem havia chegado para contar à família sobre Benjamin. Já tivera essa sensação vezes suficientes para saber que não deveria ignorá-la. Más notícias mudam o mundo em um segundo. Mudam o ar. O coração humano pressente que o sofrimento está chegando com tanta certeza quanto um cavalo percebe uma tempestade que se aproxima.
Não conseguiu se mover. Ia se juntar às primas no jardim, para aproveitar o sol da tarde com sua cesta de costura, mas a ideia lhe fugiu da mente.
Um par de pernas surgiu andando na sua direção. Pernas compridas, calça preta e botas elegantes. Elas seguiram o mordomo rumo à escada. Falkner tinha no rosto a expressão de um serviçal que houvesse recebido ordens de um rei.
O tronco do visitante começou a entrar em seu campo de visão, logo seguido dos ombros e da cabeça. Como se sentisse que alguém o observava, ele olhou para cima, para o patamar onde ela se encontrava.

 

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Imediatamente Alexia entendeu a submissão de Falkner. A atitude, o rosto e o porte do visitante intimidariam até quem não conhecesse sua posição social. O cabelo escuro, desarrumado de um jeito que parecia não ter sido penteado naquela manhã, emoldurava o belo rosto de traços angulares e fortes, como se fossem entalhados. Sinais de cansaço obscureciam o azul profundo de seus olhos. Um autocontrole forçado retesava seu maxilar quadrado e sua boca bem desenhada. Lorde Hayden Rothwell, irmão do quarto marquês de Easterbrook, era a imagem do homem exausto mas determinado a cumprir sua dura tarefa. Certamente não viera em resposta aos muitos convites que Timothy havia deixado para Easterbrook em sua residência ao longo do último ano.

Ao se aproximarem, Falkner cruzou os olhos com os dela, expressando seu desânimo. O mordomo também pressentia a tempestade.

Lorde Hayden parou no mesmo patamar da escada em que ela se encontrava e fez um gesto quase imperceptível, cumprimentando-a. Já haviam sido apresentados, mas ele não lhe dirigiu a palavra. Em vez disso, ao levantar o rosto, mediu-a dos pés à cabeça. A avaliação foi tão completa, tão estranhamente interessada, que ela sentiu que corava.

A expressão daquele rosto anguloso se alterou levemente. Como se uma estátua tivesse ganhado vida, os olhos do homem se suavizaram e sua boca relaxou. De súbito, a compaixão o serenava.

Mas, em um piscar de olhos, seu porte severo voltou, expulsando a candura. Alexia, no entanto, vira o bastante para sentir o coração pesar. Reconheceu pena no olhar que ele lhe dirigira. A chegada desse homem não anunciava nada de bom.

– Está levando lorde Hayden para a sala de visitas ou para a biblioteca, Falkner?

Ela estava sendo indelicada, mas não se importava. Com o passar dos anos, aprendera que imaginar más notícias era pior do que efetivamente ouvi-las. Não tinha a menor intenção de ficar esperando, submissa e preocupada.

– Para a sala de visitas, Srta. Welbourne.

Lorde Hayden percebeu suas intenções.

– Por favor, não perturbe a Srta. Longworth com minha presença. Não se trata de uma visita social.

– Não a incomodaremos se não for seu desejo. Contudo, é possível que demore algum tempo até que o Sr. Longworth possa recebê-lo. Podemos ao menos nos encarregar de que o senhor fique à vontade.

Não esperou por aprovação. Deu meia-volta e foi subindo a escada, indicando o caminho para o segundo andar.

Ao chegar à sala de visitas, deixou a cesta de costura de lado e cuidou para que ele ficasse confortável, conforme prometera. Ainda que ele não quisesse, ela se portaria educadamente, como uma anfitriã.

– O tempo está bastante agradável para janeiro, não acha? – perguntou ela após ele ter concordado em se sentar no sofá novo, de um tecido estampado em tons azuis. – O dia até agora está maravilhoso.

As sobrancelhas dele se arquearam um pouco diante da infeliz ênfase no “até agora”.

– Sim, tem feito um calor atípico nos últimos dias – disse ele.

– Acho dias assim cruéis, por mais que os aprecie.

– Cruéis?

– Eles me fazem acreditar que a primavera está se aproximando, quando ainda teremos alguns meses de frio e umidade pela frente.

Por um segundo, uma luz travessa brilhou nos olhos dele.

– Pode não passar de uma ilusão – falou o homem –, mas prefiro me deleitar nessa calidez e me preocupar com o frio apenas quando ele chegar.

A frase pareceu quase imprópria. Ela mudou de assunto fazendo uma observação sobre os feriados recentes. Ele concordava com tudo o que ela dizia. Com muita dificuldade, ela ia levando adiante a desajeitada conversa.

A mente dele não estava ali, mas na reunião com Timothy. O ar na sala de visitas foi ficando pesado. A presença daquele homem fazia pensar que o juízo final estava próximo.

Ela não aguentava mais.

– Meu primo está doente, lorde Hayden. Talvez não consiga se recompor o bastante para recebê-lo. A conversa não pode esperar mais um dia?

– Não.

Foi tudo o que obteve dele. Essa única palavra, dita de modo simples, direto e firme.

Ele voltou sua atenção para longe da conversa, para o nada. E continuou assim, como antes, na escada. Ela se perguntou se ele a consideraria presunçosa por recebê-lo. Não era a dona da casa, apenas uma mera prima. Mas a culpa não era dela se ele estava confinado ali com uma substituta. Fora ele quem não permitira que Roselyn fosse informada de sua presença.

– Talvez, senhor, se eu levasse uma mensagem para meu primo a respeito de sua visita, ele pudesse...

A voz dela foi se dissipando quando ele a encarou como um vigário faz para silenciar uma criança tagarela na igreja.

Ela não se importou com a expressão em seus olhos, que deixava claro que ele percebera o que ela estava fazendo. Hayden Rothwell tinha a reputação de ser inteligente, ríspido e arrogante. Até o momento, ela não poderia discordar dessa avaliação.

Mas também ela não tivera muito tato ao tocar no assunto. Então tentou uma nova abordagem. Como ele era conhecido por sua sagacidade nos negócios, mudou o rumo da conversa para esse tema, tentando deixá-lo mais receptivo a outras perguntas.

– Teve alguma notícia do centro financeiro hoje, lorde Hayden? A crise nos bancos continua?

– Temo que permanecerá por algum tempo, Srta. Welbourne. É de se esperar quando as pessoas têm medo.

– O senhor tem negócios com o banco do meu primo, não é verdade? Está tudo bem por lá, espero.

– Há uma hora, quando saí do centro financeiro da cidade, o Darfield e Longworth permanecia sólido.

– Graças a Deus. Não houve uma corrida ao banco, então. Com tantas outras instituições passando por problemas, fiquei preocupada.

Uma sombra perceptível em seu olhar demonstrava que ele parecia se divertir.

– Não, não houve corrida ao banco.

Isso a aliviou. Várias das grandes instituições financeiras londrinas tinham enfrentado dificuldades no mês anterior. Os jornais estavam cheios de boatos sobre a quebra de pequenos bancos. Aonde quer que se fosse, só se falava em fracasso, ruína e falência. Ela suspeitava de que a atual doença de Timothy se devesse à preocupação com o futuro de seu banco.

– A senhorita tem dinheiro lá? – questionou, parecendo realmente interessado.

– Uma ninharia. Minha preocupação é com meus primos.

Ela conseguira atrair sua atenção com as perguntas sobre a situação financeira do banco. Até bem demais. Ele a olhou de novo, mais demoradamente dessa vez, com uma arrogância casual que demonstrava que ele se sentia nesse direito, algo que homens em posição inferior não ousariam. Aquela avaliação só seria feita por um homem que tivesse plena consciência de seu valor e que, por isso, dispensava algumas regras de etiqueta.

A atenção dele se concentrou intensamente nos olhos dela, observando-a de forma tão perspicaz que ela precisou piscar para se recompor. Lenta e deliberadamente, ele analisou o restante do corpo de Alexia. Ela enrubesceu e uma comichão desconfortável percorreu toda a sua pele. Ele a perturbou de tal maneira que lhe fez lembrar a sensação causada anos atrás pelo olhar de outro homem.

Ficou embaraçada diante da própria reação. Não se julgava alguém que se deixasse abalar por um homem bonito. Não era tola como a jovem Irene. Em silêncio, se censurou por agir como uma solteirona ávida pela atenção de um homem.

Nada na expressão dele indicava que houvesse notado o desconforto dela. Nem ela teve qualquer ilusão de que o interesse do homem fosse desse tipo. Ela sabia o que ele estava pensando. Com seu cabelo castanho e o rosto comum, ela não causava grande impressão. Sem dúvida ele também percebera como os módicos recursos financeiros afetavam sua aparência. Seu vestido não só estava fora de moda como também tinha discretos remendos. O lorde provavelmente estaria vendo cada ponto deles.

– Srta. Welbourne, creio que fomos apresentados no culto a Benjamin – disse ele. – A senhorita é a prima que veio de Yorkshire, não?

Seu orgulho foi atingido por um doloroso golpe. Ele não sabia quem ela era ao entrar naquela sala de visitas. Se não lembrava que já haviam sido apresentados, ele deveria achar incomum o fato de tê-lo recebido, assim como certamente a considerara bastante ousada em sua conversa.

O choque foi seguido pela irritação. A raiva que sentia não era dele, apesar de abrangê-lo mesmo assim, mas tinha origem na situação que a tinha tornado tão esquecível.

– Sim, nos conhecemos no culto em homenagem a Benjamin.

O nome e a lembrança fizeram ecoar uma antiga dor. Tinha sido um culto, não um funeral. O corpo de Benjamin não estava presente, mas perdido no mar. Fazia quatro anos que ele partira da Inglaterra e ela ainda sentia sua falta.

De repente, lorde Hayden não pareceu tão rígido. Uma expressão mais sociável suavizou suas feições belamente esculpidas.

– Eu o tinha como um amigo – disse ele. – Nós nos conhecemos na infância. Sua casa não fica longe das terras de Easterbrook em Oxfordshire.

Timothy sempre mencionava os laços entre Easterbrook e sua família, devidos ao fato de serem vizinhos. Não era uma ligação tão próxima a ponto de que respondessem aos convites de Timothy, é claro. No entanto, se a amizade tinha sido entre Benjamin e Hayden Rothwell, isso explicava algumas coisas, como o motivo da presença de lorde Hayden no culto.

– O senhor também lutou na Grécia, não? – perguntou ela, feliz por tocar em um assunto que o deixava menos severo e que mencionava o querido Benjamin.

– Sim, fui um dos admiradores da Grécia que aderiu à causa deles contra a Turquia. Participei da guerra no início, na mesma época que seu primo. Mas, ao contrário dele e de Byron, tive a sorte de sair vivo dessa aventura.

Ela imaginou Benjamin, sempre otimista, um homem tão cheio de vida e alegria que isso o tornava imprudente. Viu-o lutando como um herói pela liberdade do povo, tendo atrás de si a paisagem de um antigo templo nas montanhas. Ela cultivava essa imagem dele. Como lorde Hayden tinha estado lá com Benjamin, ela já não se importava tanto que ele a tivesse olhado dos pés à cabeça.

Ele estava fazendo de novo, só que agora não era seu vestido que analisava. Era seu rosto e... ela.

– Perdoe-me, Srta. Welbourne. Não quero parecer inconveniente, mas seus olhos têm uma cor incomum. Parecem violeta. É a luz aqui ou já lhe disseram isso antes?

– Não é a luz. A cor dos meus olhos é a única característica marcante que possuo.

Ele não discordou, o que ela considerou deselegante. Ele refletiu sobre a resposta dela e sobre a sua própria.

– Ele falou da senhorita com respeito e afeição. Benjamin, na Grécia. Não disse seu nome. Olhos violeta, no entanto... lembro-me dessa referência. Não percebi no culto que seus olhos tinham essa cor ou teria lhe dito, o que poderia ter-lhe trazido algum consolo naquele momento.

O coração dela se inundou com uma emoção suave e perfeita, apesar da dolorosa saudade que a provocara. Mal pôde se conter e seus olhos se umedeceram. Benjamin falara dela nos dias antes de sua morte. Fizera confidências a esse homem sentado com ela na sala de visitas. Lorde Hayden sabia de seu amor e de seus planos. Alexia tinha certeza disso.

Não ligava mais para o motivo que o trouxera ali. Sua gratidão pela pequena indicação de que Benjamin realmente gostava dela, de que pretendia se casar com ela, foi tão intensa que Alexia seria capaz de perdoá-lo por qualquer coisa naquele instante.

Passou a encará-lo de forma mais amigável. Tratava-se de um belo homem, agora que se permitia reparar. Não era totalmente rígido também. A dureza em volta da boca era culpa das características de sua família. Não se podia culpá-lo se seus ossos lhe davam uma aparência severa em vez de alegre.

– Obrigada por me contar isso. Ainda sinto muitas saudades de meu primo. Emociona-me saber que ele pensava em mim quando estava distante.

Desejou que ele repetisse as palavras exatas que Ben tinha dito. Mas, se ele pretendera fazê-lo, suas intenções foram frustradas. Timothy escolheu aquele exato momento para surgir na sala de visitas.

Timothy parecia bastante adoentado, com o rosto vermelho e os olhos apáticos. Alexia se perguntou se ele não estaria febril. Contudo, seu criado o deixara apresentável, com seu cabelo cor de areia e rosto ansioso despontando sobre casacos e colarinho que demostravam sua tendência a certa extravagância no vestir.

– Rothwell.

– Obrigado por me receber, Longworth.

Alexia se levantou de imediato, despedindo-se. Seu coração ainda estava repleto de felicidade por saber que Benjamin mencionara seus olhos aos seus amigos solteiros na Grécia. Todavia, não conseguia ignorar que um clima de más notícias iminentes impregnara a atmosfera da casa.


Segurando sua cesta, Alexia adentrou o jardim para se juntar às primas. A beleza da hera e do buxo não chegava aos pés de sua exuberância nos dias gloriosos de verão, mas o sol espantava o pior do frio e a falta de vento tornava o jardim um local hospitaleiro.

Roselyn e Irene aguardavam à mesa de ferro, com dois chapéus e sacolas com fitas e aviamentos. Alexia decidiu não mencionar o visitante. Talvez o mau pressentimento que ainda pairava em sua alegria recente fosse apenas uma impressão passageira.

– Você demorou – reclamou Irene, segurando um dos chapéus. – Ainda acho que este aqui não tem salvação e que deveria comprar um novo. Timothy disse que eu poderia.

– Nosso irmão é gastador demais – disse Roselyn. – Se não quisermos que sua apresentação à sociedade nos leve à falência, teremos que ser mais controladas.

– Não é Timothy quem fala em controlar o dinheiro, só você. Nem terei uma grande apresentação, não importa quantos chapéus eu compre – falou e um tom petulante surgiu em sua voz: – Não serei convidada para os melhores bailes. Todos os meus amigos já disseram isso.

– Pelo menos você terá uma apresentação – disse Roselyn. – Certamente é melhor ser irmã de um banqueiro importante do que de um proprietário rural empobrecido. Deveria agradecer a Deus por nossos irmãos terem investido nesse negócio. Se voltássemos para Oxfordshire, você se contentaria com um chapéu novo por ano e o escolheria com mais zelo, em vez de comprar três que não combinassem com você.

Alexia se sentou entre elas, tentando encerrar a discussão. Sendo a mais nova das irmãs Longworths, Irene não entendia a boa sorte que lhes coubera quando, oito anos antes, seu irmão Benjamin decidira investir no banco. A garota só via o que tinha perdido em termos de status, o que não contrabalançava com o luxo que ganhara.

Roselyn, agora com 25 anos, se lembrava muito bem do tempo em que haviam sido obrigados a vender as terras da família em Oxfordshire por causa de dívidas. Em função disso, ela não tivera uma apresentação formal aos homens solteiros na juventude e agora suas chances de se casar eram mínimas. Quando o recente sucesso do banco produziu uma longa fila de pretendentes, ela se mostrou descrente e exigente demais. Alexia suspeitava de que Roselyn se ressentia de que o interesse por ela só surgira após o enriquecimento da família.

– Podemos trocar a fita de cetim rosa por essa amarela – disse Alexia. – E olhe aqui, posso aparar as bordas, para deixar o arco mais perto do seu rosto.

– Vou odiar. Não gosto de chapéus reformados, mesmo que a reforma seja feita por alguém tão habilidoso como você. Fique com ele, se quiser. Pode ficar com o vestido que faz conjunto com ele também, então não terá mais que usar este de cintura alta. Vou avisar à minha criada que ele vai ficar para você, assim ela não o pedirá.

Alexia olhou fixamente para o conjunto de fitas brilhantes e coloridas que cintilava à luz do sol. Irene não era cruel por natureza, apenas jovem e, devido à mão aberta de seu irmão, mimada.

Um silêncio pesado pairou no ar. Irene pegou o chapéu, o avaliou com atenção e o jogou no chão.

– Peça desculpas – ordenou Roselyn em tom ameaçador. – Não vou pensar duas vezes antes de mandá-la morar no interior. Londres está virando sua cabeça e isso não é nada admirável. Está se esquecendo de quem é.

– Ela não está se esquecendo de nada – disse Alexia em um rompante.

Logo em seguida desejou não ter dito aquilo, mas não conseguira conter sua mágoa e seu ressentimento. Respirou fundo, com calma.

– Eu também não me esqueço de quem sou. Só você, por ser tão boa. Todos sabem que dependo desta família, que sou uma parenta pobre que deveria ficar grata por receber aquilo que minhas jovens primas jogam fora. Cada garfada que como é fruto da caridade de seu irmão.

– Oh, Alexia, eu não quis dizer isso... – falou Irene com o rosto contorcido de arrependimento.

– Não é verdade – replicou Roselyn para Alexia. – Você é uma de nós.

– É verdade. Concordei com esta situação anos atrás. Não me importo.

O fato era que se importava. Tentava ignorar, mas isso a desgastava. A humildade e a gratidão que sua situação exigia às vezes lhe escapavam, principalmente porque de início não se sentira obrigada a tê-las.

Sua mudança fora inevitável quando a propriedade da família passou para um primo de segundo grau. Não houve convite para viverem com esse herdeiro, como seu pai supusera. Assim, com 18 anos recém-completados, Alexia fora forçada a escrever para os Longworths, primos pelo lado de sua mãe, pedindo que a deixassem morar com eles. Não levara nada consigo além de vinte libras por ano e seu talento para reformar chapéus.

Benjamin, o primo mais velho, nunca permitira que ela se sentisse um problema para a família, apesar de sua chegada haver coincidido com o início de um novo empreendimento dele, que lhe deixara pouca folga nas despesas daquele primeiro ano. Com o sorriso largo e o bom humor de Benjamin, ela jamais sentia que devesse se mostrar apenas discreta e obediente. Mas depois da morte dele, a realidade de sua dependência ficara clara. Ben dava a ela os mesmos cuidados que oferecia a suas irmãs, ao passo que Timothy a enxergava com outros olhos. Agora ela não passava de conselheira nas visitas às modistas de Londres. Timothy a via como o fardo que ela era, enquanto Benjamin a vira como...

Uma memória de amor cuidadosamente preservada, um eco de emoção profunda e pungente, fez seu coração doer. Ele a vira como uma prima querida e uma cara amiga, o que no último ano tinha evoluído para algo mais. Se o que lorde Hayden dissera era verdade, então ela não se enganara. Se Ben tivesse voltado da Grécia, teria se casado com ela.

Pegou o chapéu.

– Obrigada, Irene. Vou ficar feliz em usá-lo. Pensando melhor: fita azul. Nem rosa nem amarelo vão tão bem com minha cor de cabelo e o tom de minha pele.

Roselyn cruzou os olhos com os de Alexia como que se desculpando. Alexia respondeu também com o olhar: Nasci filha de um cavalheiro, mas aqui estou, com quase 26 anos, sem dinheiro nem futuro. É assim que o mundo funciona. Não tenha pena de mim, eu lhe imploro.

– Quem está lá? – perguntou Irene, interrompendo a conversa silenciosa. – Lá em cima, na janela da sala de visitas.

Roselyn se virou a tempo de ver o cabelo escuro e os ombros largos antes que o homem se afastasse do vidro.

– Temos visita? Falkner deveria ter me chamado.

Alexia começou a retirar a fita rosa.

– Ele pediu para se encontrar com Timothy e não quis que você fosse incomodada.

– Mas Timothy está doente.

– Ele se levantou da cama mesmo assim.

Alexia sentiu a atenção de Roselyn sobre ela enquanto se ocupava do chapéu.

– Quem é? – perguntou Roselyn.

– Rothwell.

– Lorde Elliot Rothwell, o historiador? O que é que ele...

– O irmão dele, lorde Hayden Rothwell.

Os olhos de Irene se arregalaram. Ela deu um pulo e bateu palmas.

– Ele está aqui? Acho que vou desmaiar. Ele é tããão atraente.

Roselyn franziu a testa e olhou para a janela.

– Ai, meu Deus!


– Você andou bebendo, Longworth – disse Hayden. – Está sóbrio o suficiente para ouvir e se lembrar do que vou dizer?

Longworth se espalhou confortavelmente no sofá azul.

– Sóbrio até demais.

Hayden examinou Timothy Longworth. Sim, estava sóbrio o bastante, o que era bom, já que o que tinha para lhe dizer não poderia esperar. A chance de sucesso do plano diminuía a cada hora que passava.

– Passei os últimos dois dias com Darfield, enquanto você se escondia em sua cama, bebendo – disse ele. – O banco pode sobreviver à crise atual, se você seguir minhas instruções.

– Eu disse a Darfield que sobreviveria. Ele é covarde como uma velhota e teme que as reservas estejam muito baixas, mas eu lhe garanti nossa solidez.

– Só sobreviverá porque tomei ontem a decisão de manter os depósitos da família com você. Isso bastou para deter uma corrida ao banco que começou esta manhã.

– Houve uma corrida? – perguntou Longworth, tendo a decência de parecer preocupado. – Eu deveria ter estado lá, sei disso.

– É lógico que deveria.

– Mas o pior já passou, não é verdade? O perigo foi evitado, como disse.

– Por pouco. Apesar de ter vencido as dificuldades hoje, o banco está em sério perigo. Além disso, estou reavaliando minha decisão. É uma escolha difícil, porque, se eu tirar o dinheiro da família, o banco vai à falência. Se isso acontecer, você vai para a forca.

Longworth ficou quieto, uma estátua feita de indiferença.

Hayden não gostava da ideia de estar metido com Timothy Longworth. Tinha sido para ajudar um bom amigo que ele havia assegurado o crescimento do banco com títulos e dinheiro da família. Não se sentia obrigado a salvar o pescoço do irmão mais novo dele.

Longworth abriu um sorriso largo. Isso o fez parecer mais com Benjamin, apesar de mais claro, um contraste com os olhos e o cabelo escuros de Ben. Era uma semelhança que Hayden preferia não perceber naquele momento.

– É claro que deve estar falando metaforicamente quando diz “forca”. Apesar de “arruinado” não ser muito melhor do que isso, não é a morte.

– Quando digo “forca”, é isso que quero dizer. Cadafalso. Nó corrediço. Morte.

– Bancos abrem falência o tempo todo. Cinco faliram nos últimos quinze dias só em Londres e dezenas no interior. Não é crime. É o que acontece nas crises financeiras.

– Não é a falência do banco que vai levá-lo à cadeia, mas o que a contabilidade revelará depois.

– Nada me compromete, posso garantir.

A paciência de Hayden se esgotou rápido. Tinha passado a noite em claro ao lado de Darfield, tentando pôr ordem na bagunça oculta da contabilidade do banco. A fúria que ele contivera a duras penas quando descobrira o pior agora ameaçava romper as frágeis paredes que a controlavam.

– Decidi deixar o dinheiro da família com você, Longworth, mas estou preocupado com minha tia e a filha dela. Os 3% delas é tudo o que têm e elas dependem desses rendimentos. Como seu administrador, não poderia pôr isso em risco. Então, essa parte, essa pequena parte, eu decidi sacar.

Longworth ergueu a cabeça como se essa introdução não lhe dissesse nada, mas o primeiro sinal de pânico faiscou em seus olhos.

– Imagine o meu choque quando vi que os títulos da dívida pública delas tinham sido vendidos e que minha assinatura, como administrador de minha tia, tinha sido falsificada para isso.

Gotas de suor surgiram na testa de Longworth.

– Espere um instante. Está insinuando que eu falsifiquei...

– Tenho provas de que você, por várias vezes, cometeu o crime de falsificação de documentos. Você forjou assinaturas para vender títulos também. Depois continuou a pagar os rendimentos, para que ninguém suspeitasse, mas roubou dezenas de milhares de libras.

– Roubei coisa nenhuma! Estou chocado e ofendido com essa notícia. Darfield é quem deve ter feito isso.

Hayden partiu para cima de Longworth e o agarrou pelo colarinho, suspendendo-o do sofá.

– Não ouse manchar a honra daquele bom homem. Juro que, se mentir para mim agora, vou lavar as mãos e deixá-lo ir para o buraco.

Longworth levantou os braços para cobrir o rosto, protegendo-se do golpe que previa. O medo dele ao mesmo tempo deteve Hayden e lhe causou repugnância. Jogou Longworth de volta no sofá.

Timothy se curvou com o rosto nas mãos. Um silêncio pesado perpassou a sala, carregado da raiva de Hayden e do desespero palpável de Longworth.

– Você contou a alguém?

A voz de Longworth falhou de emoção.

– Só Darfield sabe e ele teme o que isso possa causar aos outros bancos, levando em consideração o clima atual no centro financeiro de Londres.

Hayden havia imaginado esse horror muitas vezes nos últimos dois dias. Os títulos – sólidas apólices que eram a base do crédito e da geração de rendimentos de mulheres leigas e seus filhos – eram supostamente seguros. Os bancos somente os mantinham pelos clientes. Não se pressupunha jamais que o dinheiro ficasse vulnerável.

Timothy Longworth rompera uma confiança sagrada ao falsificar assinaturas e se apossar desse capital. Se isso viesse a público, o pânico atual seria multiplicado por dez.

– O que lhe passou pela cabeça, Longworth?

– Fiz isso pelo banco. Estávamos vulneráveis, com as reservas baixas demais. Fiz isso para proteger os depósitos...

– Mentira! – Hayden só percebeu que havia gritado porque Longworth se sobressaltou. – Você fez isso para comprar esta casa, este casaco e as carruagens que servem para você passear com sua amante cara.

Timothy começou a chorar. Envergonhado pelo outro, Hayden se virou e olhou pela janela.

No jardim, um par de olhos violeta se voltou na sua direção, depois retornou para as fitas e a palhinha. Olhos como violetas em sombra fresca e de formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Era assim que Benjamin descrevera a Srta. Welbourne, em uma noite de embriaguez na Grécia. O tom não fora totalmente respeitoso, mas havia afeição em sua voz, então Hayden não mentira para ela. Contudo, ao ver a reação da moça – os olhos rasos d’água e como seu rosto se suavizou de forma tão doce –, desejou não ter dito nem uma palavra.

Não era um rosto belo, mas os olhos tornavam isso irrelevante. Sua cor incomum cativava primeiro, depois se notava como eles refletiam uma alma intensa e uma mente inteligente. Mostravam também experiência, como se aquela mulher compreendesse bem demais as realidades da vida. Ao se sentar sob a contemplação implacável daqueles olhos, ele se esquecera por alguns minutos da horrível missão que o trouxera àquela casa.

Uma boca que parece uma rosa, com néctar tão doce. Aparentemente, Ben tinha tocado em mais do que o coração da Srta. Welbourne. Não era nem um pouco de surpreender. Um homem cheio de vida como Benjamin Longworth conseguia mexer com muitas mulheres.

Roselyn e Irene Longworth, irmãs de Benjamin, estavam sentadas ao sol com a Srta. Welbourne. A mais velha era uma bela mulher de pele clara, cabelo louro-escuro e rosto doce. Destacava-se por sua beleza, mas era muito orgulhosa. O cabelo da mais nova era longo e claro; o corpo, esguio e o jeito, ainda infantil.

Sentiu alguém de pé ao seu lado. Longworth havia se levantado do sofá. Também observava as três moças no jardim.

– Ai, meu Deus, quando elas ficarem sabendo...

– Juro que elas nunca saberão a verdade da minha boca. Se conseguirmos salvar seu pescoço, você poderá contar quantas mentiras quiser. Um falsificador e ladrão deve ser capaz de inventar umas boas.

– Salvar, me salvar? Mas há uma forma? Obrigado, de qualquer jeito... Como quer que seja...

Hayden esperou enquanto Longworth se recompunha.

– Quanto, Longworth?

Ele deu de ombros.

– Umas vinte mil libras, talvez. Não fiz de propósito. De verdade. Na primeira vez, deveria ter sido um empréstimo de pouco valor, para cobrir uma dívida inesperada...

– Não quero saber quanto você roubou, mas quanto tem.

– Quanto eu tenho?

– Sua única chance é cobrir tudo, cada centavo. Com o que tiver e com as notas promissórias que assinar.

– Isso significaria contar a todos!

– Se eles não sofrerem prejuízos...

– Bastaria um deles dar com a língua nos dentes para eu ir...

– Para a forca. Sim. Uma fraude já seria o bastante. Você terá de confiar que o reembolso os satisfará e que eles entendam que só mantendo-se em silêncio poderão reaver o dinheiro. Posso falar por você e isso talvez ajude.

– Pagar a todos? Vou ficar falido. Totalmente falido!

– Mas vai escapar vivo.

Longworth agarrou o peitoril da janela para controlar a tontura. Olhou para fora de novo e seus olhos se umedeceram.

– O que vou dizer a elas? E Alexia... Se ficarmos reduzidos à renda dos aluguéis rurais, se eu tiver que pagar as dívidas tirando recursos deles também, não poderei mais sustentá-la.

Diante de mais um pensamento terrível, seu rosto desabou. Hayden imaginou o motivo:

– Você roubou os míseros recursos dela também? Não verifiquei as contas menores.

Longworth enrubesceu.

– Você não passa de um canalha, Longworth. Ajoelhe-se e agradeça a Deus por eu ter uma dívida de gratidão e honra com seu irmão.

Timothy não estava mais ouvindo. Seus olhos se anuviaram ao pensar no futuro.

– Irene ia ser apresentada à sociedade e...

Hayden não deu ouvidos aos lamentos do outro. Imaginara uma forma de salvar a vida de Longworth e evitar revelações que deixariam o atual pânico fora de controle. Mas não poderia poupar Longworth da ruína que essa solução geraria.

Passara a noite em claro fazendo cálculos e pensando nas consequências morais do caso. De repente uma profunda exaustão tomou conta dele.

– Sente-se – ordenou ele ao dono da casa. – Vou lhe dizer a quantia necessária e definiremos como você irá devolvê-la.


CAPÍTULO 2

Falido.

A palavra pairou no ar. A sala ficou em silêncio.

O sangue de Alexia congelou nas veias. Tim parecia muito doente agora. Ele se recolhera a seu quarto após a saída de lorde Hayden, mas se levantara da cama novamente de noite. Mandara chamá-la e a suas irmãs na biblioteca e lhes informara do desastre.

– Mas como, Tim? – perguntou Roselyn. – Um homem não vai disto – ela fez um gesto mostrando a exuberância da casa ao redor – à pobreza em um dia.

Os olhos dele se estreitaram e a amargura endureceu sua voz.

– Isso acontece se lorde Hayden decidir que sim.

– Lorde Hayden? O que ele tem a ver com isso? – perguntou Alexia.

Timothy olhou fixo para o chão. Parecia sem forças.

– Ele retirou o dinheiro de sua família do banco. Nossas reservas não foram suficientes para compensar a retirada e tive que penhorar tudo o que tenho. Darfield também terá de fazer isso, mas ele possui mais dinheiro do que eu. Ele pagou parte das minhas obrigações e, em troca, ficou com a minha cota no banco. Ainda assim, não foi suficiente.

Alexia controlou a fúria que fervia dentro dela. Que diferença faria para Rothwell onde todo aquele dinheiro ficava? Ele tinha que ter percebido o que isso causaria a Timothy, a todos eles. Havia entrado naquela casa ciente de que destruiria o futuro dos Longworths.

– Vamos dar um jeito – disse Roselyn, com firmeza. – Sabemos como levar uma vida mais simples. Vamos dispensar alguns empregados e comeremos carne somente duas vezes por semana. Vamos...

– Você não ouviu? – rosnou Timothy. – Eu disse que estou falido. Não haverá empregados, nem carne alguma. Não tenho nada. Não temos nada.

Roselyn o encarou, boquiaberta. Irene, que ouvia com expressão confusa, teve um sobressalto como se alguém a tivesse esbofeteado.

– Isso quer dizer que não vou ser apresentada à sociedade?

Timothy deu uma risada cruel.

– Querida, você não pode ser apresentada à sociedade londrina se não estiver em Londres. O canalha está tomando esta casa. Ela pertence a Rothwell agora. Vamos voltar para o pouco que temos em Oxfordshire e morrer à mingua por lá.

Irene começou a chorar. Roselyn ficou muda com o impacto da notícia. A gargalhada de Timothy foi se transformando em algo entre um cacarejo e um choramingo.

Alexia sentiu o medo se apoderar dela. Timothy não olhara para ela uma vez sequer desde que entrara na sala. E evitava seu olhar agora. Um pânico silencioso tamborilava em seu peito, querendo se avolumar.

Roselyn recobrou a voz:

– Timothy, podemos viver no campo de novo. Ainda temos a casa e algumas terras. Não será ruim. Nunca passamos fome.

– Será pior do que antes, Rose. Terei dívidas a pagar. Boa parte dos aluguéis irá para isso.

O tamborilar acelerou, espalhando-se por suas veias. Sentia calor e frio alternadamente. O destino que temia desde a morte do pai finalmente a encontrara. Era com dificuldade que mantinha a compostura.

Ela não deixaria Timothy pronunciar sua sentença com todas as palavras. Seria injusto e uma péssima retribuição à família que lhe tinha dado um lar.

Levantou-se.

– Se sua situação vai mudar de forma drástica, não precisarão do fardo de ter mais uma boca para alimentar. Tenho algum dinheiro guardado que poderá me manter até encontrar um emprego. Vou me recolher ao meu quarto para permitir que conversem abertamente sobre seus planos.

Os olhos de Roselyn se umedeceram.

– Não seja boba, Alexia. Seu lugar é conosco.

– Não estou sendo boba, estou sendo prática. Não vou forçar Timothy a dizer que devo ir embora.

– Diga-lhe que não tem que ir, Tim. Ela é tão sensata que vai ser uma ajuda, não um fardo. Ele não quer que você nos deixe, Alexia.

Timothy não respondeu. Nem levantou os olhos.

– Timothy – chamou Roselyn, em tom de repreensão.

– Gastarei tudo o que tenho para manter vocês duas, Rose – disse ele, finalmente se voltando para Alexia. – Sinto muito.

Alexia forçou um sorriso trêmulo e saiu da biblioteca. Fechou a porta atrás de si, deixando Irene e Roselyn aos prantos e Timothy envergonhado. Subiu as escadas correndo e maldizendo, a cada degrau, o homem responsável por aquela tragédia.

Hayden Rothwell era um canalha. Um monstro. Era um daqueles homens que viviam no luxo e destruíam a vida dos outros em um piscar de olhos. Ele não precisava ter retirado todo o dinheiro de uma só vez. Era tão duro e frio como parecia. Não tinha compaixão: esmagaria pessoas sob as botas, se desejasse. Ela o odiava.

Jogou-se na cama e enterrou o rosto no travesseiro de penas, onde destilou todo o seu veneno em Rothwell enquanto chorava. Estava tomada pelo pânico.

Falida. Não podia crer que estava passando por isso de novo. Seu pai falira dois anos antes de morrer. Muito provavelmente tinha sido esta a razão pela qual não fora acolhida por seu herdeiro. O destino agora lhe pregava uma peça estúpida, fazendo-a reviver toda a preocupação e o medo de antes.

A duras penas, foi tentando novamente se centrar. Já havia se perguntado algumas vezes o que faria caso se encontrasse naquela situação. Sempre soubera que isso poderia acontecer. Desesperada, procurou se lembrar dos planos feitos naquelas noites terríveis quando, no escuro, a precariedade da situação em que vivia se avultava sobre ela.

Poderia virar preceptora, se conseguisse boas referências. Tinha linhagem e educação para isso, ainda que tal função oferecesse uma vida horrível.

Também poderia procurar trabalho em uma chapelaria. Tinha jeito para fazer chapéus e gostava dessa atividade. Só que trabalhar em uma loja desse tipo seria a pior das humilhações. Não nascera para essas coisas, mesmo que essa ideia tivesse mais apelo do que ficar presa dia e noite cuidando da filha de outra mulher.

Também poderia se casar, apesar de no momento não ter pretendentes. Ela nem sequer pensara nisso depois de Benjamin. Seu coração era dele e sempre seria. A menina escondida em sua alma encarava com pesar a ideia de casar-se em troca de segurança. Depois de ter conhecido um grande amor, um casamento assim seria horrível. Contudo, sem beleza nem fortuna para atrair um marido, aquele era um assunto com que muito provavelmente não teria de lidar.

Enumerar opções lhe deu um pouco de confiança, ainda que baseada em cenários que não a agradassem tanto. Contava com vinte libras por ano e não iria morrer de fome. Poderia construir seu futuro se deixasse de lado o orgulho. Na verdade, tinha bastante experiência nesse campo.

Olhou em volta do quarto, para os móveis, à luz difusa da lamparina. Não era um cômodo grande. Nem tinha os tecidos luxuosos dos quartos de Irene e Roselyn ou as cadeiras e camas novas que elas haviam comprado no ano anterior. Mas era o seu espaço e tinha sido seu lar desde que Tim se mudara com elas de Cheapside, logo depois de Ben zarpar para a Grécia, fazia quatro anos.

Fechou os olhos e se perguntou quanto tempo demoraria até que Hayden Rothwell a jogasse no olho da rua.


Três dias depois, Alexia estava sentada na sala de café da manhã, lendo os anúncios no Times. A casa reverberava de silêncio. Não que os empregados antes fizessem barulho, mas sua ausência era perceptível. Somente Falkner permanecia, enquanto procurava outro emprego apropriado. Ela podia ouvi-lo na sala de jantar, embalando as porcelanas que Timothy tinha vendido na véspera.

Muito pouco dos luxos adquiridos nos últimos anos voltariam para Oxford-shire com suas primas. Rothwell ficaria com os móveis. Tudo o mais seria vendido. Naquele exato momento, os homens estavam na cocheira negociando o preço das carruagens.

Roselyn entrou no cômodo e se sentou ao lado de Alexia, que serviu café para as duas.

– O que está lendo? – quis saber Roselyn.

– Quartos para alugar.

– Piccadilly não seria ruim, se não fosse tão longe.

– Acho que não terei como evitar ficar longe, Rose.

Rose tinha a aparência de uma mulher que havia chorado um mês sem parar. As olheiras e o vermelho dos olhos eram evidentes.

– Deveria ter me casado com um daqueles homens interessados no meu dinheiro. Teria sido bem feito para eles meu irmão ficar em tantas dificuldades a ponto de precisar vender as vasilhas de metal. Até as vasilhas, meu Deus!

Alexia não conteve uma risada. Roselyn riu também. As duas riram até lágrimas rolarem pelas faces.

– Oh, céus, como é bom rir – disse Rose, sem fôlego. – É tudo tão dramático que chega a ser ridículo. Fico esperando Tim vender minha camisola enquanto durmo.

– Espero que ele não esteja acompanhado por um oficial de justiça nesse dia. Daria ainda mais motivo de fofoca para toda a cidade.

Roselyn riu de novo, com ar triste.

– Vou sentir sua falta, Alexia. O que vai fazer?

– Pedi uma carta de referência à Sra. Harper, já que ela é, das suas amigas, a que me conhece melhor. Procurei uma agência de empregos e me candidatei a vagas de preceptora. Espero que seja aqui na cidade mesmo.

– Você tem que nos mandar notícias de onde estiver, sempre. E prometer que vai nos visitar.

– É claro.

Os olhos de Rose se encheram de lágrimas. Ela abraçou Alexia vigorosamente. Enquanto aproveitava o carinho que logo não mais teria, Alexia viu Falkner chegar à soleira da porta.

– O que foi? – perguntou.

Falkner olhou para ela com o mesmo olhar de três dias atrás. O olhar que dizia que uma tempestade se aproximava.

– Ele está aqui. Lorde Hayden Rothwell. Pediu para ver a casa.

Do jeito que Falkner torceu o nariz, Alexia suspeitou que Rothwell não tivesse “pedido” coisa alguma.

– Não o receberei – disse Rose. – Mande-o embora.

– Ele não perguntou pela senhorita, mas por seu irmão, que saiu. Então pediu que eu lhe mostrasse onde esperar.

– Diga-lhe que não. Eu o proíbo. Logo a casa será toda dele – gemeu Roselyn.

O prazo para entrega da casa não fora determinado, o que era motivo de preocupação para Alexia.

– Você não está sendo sensata, Rose. Não vale a pena enfurecer o homem neste momento. Nem é obrigação de Falkner nos servir. Vou atender o visitante para lhe poupar o trabalho.


Lorde Hayden esperava no hall, rodeado por paredes que já se encontravam despidas de quadros. Quando Alexia entrou, ele estava inclinado, examinando uma mesa de canto marchetada, sem dúvida calculando seu valor.

Ela não esperou por sua atenção nem por suas saudações.

– Senhor, meu primo Timothy não está na propriedade. Creio que esteja cuidando da venda dos cavalos. A Srta. Longworth está indisposta. Posso ajudar no assunto que o trouxe aqui?

Ele se aprumou e voltou seu olhar para ela. A contragosto, ela admitiu que ele estava maravilhoso naquele dia, vestido com roupas de montaria, um paletó azul e colete de seda estampado em tons de cinza. Seu porte, expressão e vestimenta anunciavam ao mundo que sabia que era bonito, inteligente e podre de rico. Era de muito mau gosto ir assim a uma casa que estava sendo destituída de seus bens e de sua dignidade.

– Esperava que um criado viesse...

– Não há mais criados. A família não pode mais mantê-los. Falkner vai ficar até conseguir outro emprego, mas não está mais trabalhando. Creio que o senhor não tem alternativa a não ser falar comigo.

Ouviu sua própria voz soar ríspida e pouco amigável. As pálpebras dele baixaram o bastante para indicar que percebia a falta de respeito.

– Acredito que não tenhamos mesmo alternativa, Srta. Welbourne. Meu objetivo ao vir sem ser convidado é muito simples. Tenho uma tia que está interessada nesta casa. Ela me pediu para verificar se seria apropriada para ela e sua filha nesta temporada.

– O senhor quer conhecer a casa para poder descrevê-la a prováveis moradores?

– Se a Srta. Longworth me fizer essa gentileza, sim.

– O coração dela é cheio de gentileza na maioria das vezes. Contudo, ela está ocupada demais para atender seu pedido. Ser levada à falência e ser destituída de seus bens é algo que deixa qualquer mulher sem tempo algum.

O queixo dele se retraiu o suficiente para dar-lhe uma pequena satisfação. A vitória foi breve. Ele pousou o chapéu na mesa de marchetaria.

– Então, terei que achar o caminho sozinho. Quando disse que minha tia estava interessada, não me referi a uma mera curiosidade, mas a um interesse patrimonial. Esta casa já pertence a minha tia, Srta. Welbourne. Timothy Longworth assinou os documentos ontem. Se fiz um pedido, foi apenas para ser cortês com a família dele.

A notícia a deixou estupefata. A casa já tinha sido vendida. Que rapidez! Começou a calcular o que isso significaria para os planos dela e para Roselyn e Irene.

– Peço desculpas, senhor. A venda da casa não havia sido comunicada nem à Srta. Longworth nem a mim. Vou lhe mostrar a casa, se estiver bem assim.

Ele assentiu e ela começou a árdua tarefa. Mostrou-lhe a sala de jantar, onde seus olhos de lince não perderam nenhum detalhe. Ela o notou medindo espaços mentalmente e o ouviu contando cadeiras.

O resto do primeiro andar foi rápido. Ele não abriu gavetas nem armários na despensa. Alexia imaginou que soubesse que já estava tudo vazio.

– A sala de café da manhã é logo atrás desta porta – disse ela, ao voltarem para o corredor. – Minha prima Roselyn está lá. Peço que aceite minha descrição em vez de ir conferir por si mesmo. Temo que ela fique muito aborrecida ao vê-lo.

– Por que ela ficaria aborrecida com a minha presença?

– Timothy nos contou tudo. Roselyn sabe que o senhor levou o banco à beira da falência e nos deixou nesta situação.

Um sorriso implacável lhe surgiu no canto da boca. A crueldade do homem era mesmo ímpar. Ele percebeu o olhar dela fitando-o. Não parecia constrangido por ela ter visto esse sorriso cínico.

– Srta. Welbourne, não preciso ver a sala de café da manhã. Sinto muito por sua prima, mas as questões de altas finanças estão em um plano diferente da vida cotidiana. As explicações de Timothy Longworth foram simplificadas, com certeza porque ele as estava dando a damas.

– Elas podem ter sido simples, mas foram claras, assim como suas consequências. Há uma semana, meus primos viviam no luxo em Londres e em breve viverão na pobreza no interior. Timothy está falido, teve de vender sua parte na sociedade do banco e, ainda assim, continuará arcando com dívidas. Algum desses fatos está incorreto, senhor?

– Não, estão todos corretos – respondeu ele, balançando a cabeça.

Ela não podia crer em sua indiferença. O homem poderia pelo menos parecer um pouco constrangido. Em vez disso, agia como se isso fosse normal.

– Podemos subir? – perguntou ele.

Ela mostrou o caminho para o andar de cima, entrando na biblioteca. Ele não se apressou ao passar os olhos pelos livros nas estantes, enquanto ela aguardava.

– A senhorita vai com eles para Oxfordshire? – perguntou ele.

– Não me permitiria ser um fardo para essa família agora.

A atenção dele permaneceu nos livros.

– O que vai fazer?

– Tenho tudo acertado para meu futuro. Fiz planos e listei minhas expectativas e oportunidades.

Ele recolocou um livro na estante e rapidamente passou os olhos pelo tapete, a escrivaninha e os sofás, andando na direção dela em seguida.

– Quais oportunidades está vislumbrando?

Ela o conduziu aos outros cômodos no andar.

– Minha primeira opção é ser preceptora na cidade. A segunda é ser preceptora em outro lugar.

– Muito sensato.

– A sensatez é algo bastante conveniente diante da ameaça da fome, concorda?

Os cômodos do terceiro andar não eram tão espaçosos quanto os de uso comum. O corredor mais estreito os aproximava. Ao mostrar-lhe os quartos, ela notava a presença forte e masculina ao seu lado. Parecia muito inadequado esse estranho estar lá.

– E se não achar emprego como preceptora?

A pergunta casual veio algum tempo após sua última troca de palavras.

– A outra opção é me tornar chapeleira.

– Uma fabricante de chapéus?

– Tenho muito talento nessa área. Daqui a alguns anos, se vir uma mulher pobre usando um belo chapéu habilmente fabricado apenas com uma cesta velha, penas de pardal e maçãs secas, esta serei eu.

A curiosidade dele fizera com que Alexia deixasse de esconder sua irritação. Parecia inverossímil que o homem que causara tanto sofrimento quisesse saber detalhes. Ela escancarou a porta do quarto de Irene.

– A quarta opção é me tornar cortesã. Há quem diga que uma mulher deveria preferir morrer de fome a isso, mas suspeito que essas pessoas não tenham de fato se visto diante dessa necessidade, como talvez aconteça comigo.

Esse comentário lhe valeu um olhar duro. Além do desconforto por ela estar ridicularizando o fato de ele não sentir qualquer culpa, Alexia também percebeu a ousadia de um olhar masculino que avaliava suas possibilidades na quarta opção da lista.

Alexia enrubesceu. O calor percorreu sua pele, avivando-a e a atingindo bem no íntimo, afetando-a de uma forma chocante. Teve uma incontrolável e traiçoeira consciência dos muitos recantos do próprio corpo. A sensação a estarreceu ao mesmo tempo que a estimulou deliciosamente.

Ela precisou dar um passo atrás, para fora do quarto e para longe das vistas dele, de modo a escapar do rápido aumento na pulsação que a proximidade de Hayden lhe causava. Nos poucos segundos antes de ele voltar para junto dela, Alexia fez um esforço para se lembrar da raiva, a fim de aplacar seu chocante arroubo de sensualidade.

Ela continuou a lhe dar alfinetadas, de forma que ele soubesse que ela não se importava com o que pensava. Queria que aquele homem percebesse o sofrimento que sua ambição tinha causado.

– Minha quinta opção é virar ladra. Refleti muito sobre o que deveria vir antes, a libertinagem ou o roubo. Decidi que, apesar de a primeira opção ser um trabalho mais árduo, é uma forma de comércio honesto, enquanto ser ladra é pura maldade. – Ela parou por um momento, mas não resistiu a acrescentar: – Não importa como seja feito ou se é considerado legal ou não.

Ele parou e invadiu seu caminho, forçando-a a se deter também.

– A senhorita fala de maneira muito franca.

A presença dele se impunha à sua frente no corredor estreito. O olhar demandou sua total atenção. Certo poder se fez sentir, um poder masculino, dominador e desafiador. A intuição dela dizia para se afastar. A excitação ronronava baixa e profundamente. Ela ignorou ambas as reações e se manteve firme.

– Foi o senhor que me perguntou sobre meu futuro, apesar de não lhe fazer a menor diferença o que acontecerá com qualquer um de nós.

Sua raiva vinha em um crescendo desde que tinham deixado o hall. O frio autocontrole daquele homem durante a volta pela casa só tinha posto mais lenha na fogueira.

Ela o olhou de frente.

– O senhor destruiu a vida de pessoas boas e decentes. Não precisava ter retirado todos os seus negócios do banco de Timothy, arruinando-o deliberadamente. Não sei como consegue colocar a cabeça no travesseiro à noite e dormir.

Seus olhos azul-escuros ficaram negros nas luzes opacas do corredor. Seu queixo se enrijeceu. Ele estava com raiva. Que bom, ela também.

– Durmo muito bem, obrigada. E, sem o devido conhecimento sobre as questões financeiras, sua visão se torna bastante limitada. Sinto muito pela Srta. Longworth e sua irmã, e pela senhorita também, mas não vou me desculpar por ter cumprido meu dever como julguei adequado.

O tom dele a deixou embasbacada. Tranquilo, porém firme, ele punha um ponto final na discussão. Ela recuou, mas não por essa razão: estava perdendo o ar. Esse homem não se importava com os outros. Se se importasse, não estaria fazendo esse reconhecimento da casa.

Ela o guiou ao andar de cima, onde ficavam os quartos mais altos, mas ele parou do lado de fora de uma porta, perto do patamar da escada.

– O que é este cômodo?

– É um quartinho, sem utilidade específica. No passado, foi o quarto de vestir do quarto ao lado. Bem, lá em cima...

Ele girou a maçaneta e abriu a porta. Entrou no pequeno cômodo e observou cada detalhe. Os dois livros ao lado da cama, o armário pequeno quase vazio, as cartas ordenadas sobre a escrivaninha, tudo chamou sua atenção. Pegou um chapéu que estava pousado sobre uma cadeira perto da janela.

– É o seu quarto – falou.

Era verdade. E a presença dele ali, investigando seus pertences, criava uma intimidade que a deixou desconfortável. Ver aquele homem tocando seus objetos pessoais era quase como tê-lo tocando-a. Essa proximidade física tornava sua excitação ainda mais chocante e embaraçosa.

– Por enquanto, é o meu quarto.

Ele ignorou a farpa. Examinou o chapéu, girando-o de um lado para outro. Era o que ela havia começado a refazer no jardim três dias antes. Ninguém o reconheceria. Tinha refeito a borda, forrando-o de musselina creme finamente trabalhada, e enfeitado-o com fitas azuis. Ainda não decidira se iria acrescentar algum enfeite de musselina perto da copa.

– A senhorita tem talento.

– Como eu disse, ser chapeleira é apenas a opção número três. Se uma dama trabalhar em uma loja desse tipo, não pode mais se dizer uma dama, não é verdade?

Ele pousou o chapéu com cuidado.

– Não, não pode. No entanto, é algo mais respeitável do que ser cortesã ou ladra, embora bem menos lucrativo. Sua lista está na ordem correta se seu objetivo for a respeitabilidade.

Ela ainda o odiava no momento em que terminaram a visita. Contudo, já não poderia dizer que ele lhe era um completo estranho. Entrar nos quartos juntos, vendo os artefatos da vida cotidiana da família e com tanta proximidade – excessiva até – nos andares mais altos tinha criado uma familiaridade inoportuna.

Sua suscetibilidade à presença dele a deixara em desvantagem. Ela queria acreditar que era superior a essas reações, principalmente com esse homem, que certamente acreditava agradar a todas as mulheres. Ressentia-se de ter passado uma hora inteira na sua companhia.

Voltaram para o hall, onde ele pegou seu chapéu. Ela retomou o motivo de ter concordado em recebê-lo:

– Lorde Hayden, Timothy está com a cabeça nas nuvens. Ele não está contando todos os detalhes a suas irmãs. Se não for muita ousadia...

– A senhorita já foi bastante ousada sem pedir permissão, Srta. Welbourne. A essa altura, não é preciso fazer cerimônia.

Ela realmente tinha sido ousada e tagarela. Permitira que a raiva vencesse o bom senso. Na verdade, não tinha sido muito prática na situação em que mais necessitara dessa virtude.

– Qual é a sua pergunta?

– Já informou a Timothy quando os Longworths têm que esvaziar a casa?

– Ainda não. – Ele lhe dirigiu um olhar desconcertantemente franco. – Quando a senhorita acha que seria razoável?

– Nunca.

– Isso não é razoável.

– Quinze dias. Por favor, dê-lhes mais duas semanas.

– Que seja. Os Longworths podem ficar até lá. – Ele estreitou os olhos em sua direção. – Quanto à senhorita...

Ai, meu Deus. Ela havia despertado o demônio com sua língua grande. Ele ia pô-la no olho da rua imediatamente.

– Minha tia tem paixão por chapéus.

Ela piscou.

– Chapéus? Sua tia?

– Ela ama chapéus. E paga preços exorbitantes por eles. Sei disso porque sou administrador de sua fortuna e pago suas contas.

Era um assunto estranho para se falar na saída. Ele pareceu um pouco tolo.

– Bem, chapéus costumam ser caros – falou Alexia.

– Os que ela compra também são bem feios.

Ela sorriu e assentiu, desejando que partisse logo. Queria contar a Roselyn que teriam mais duas semanas de prazo.

– Preceptora, a senhorita disse. Sua primeira opção. Tem estudos para ser uma preceptora qualificada?

– Estava ajudando a preparar minha prima mais nova para ser apresentada à sociedade. Possuo as habilidades e os talentos necessários.

– Música? A senhorita toca algum instrumento?

– Sou adequada para ser preceptora de moças. Minha própria educação foi requintada. Nem sempre fui como me vê agora.

– Isso é óbvio. Se tivesse sido sempre como hoje, não teria coragem de falar comigo da forma rude e direta como fez.

O rosto dela enrubesceu intensamente. Não porque Alexia fora rude e Hayden notara, mas porque a atenção que ele lhe estava dispensando começava a acender nela aquela excitação estúpida de novo.

– Srta. Welbourne, minha tia, Lady Wallingford, vai tomar posse desta casa porque vai apresentar sua filha à sociedade em breve. Minha prima Caroline precisa de uma preceptora e minha tia, de uma dama de companhia. Tia Henrietta é... bem... Digamos que seria aconselhável ter uma influência sensata na casa.

– Uma influência que a impedisse de comprar chapéus feios?

– Exatamente. Como a situação combina com sua primeira opção na lista, estaria interessada no emprego? Como foi tão sincera comigo, creio que também diria à minha tia quando um chapéu for ridículo.

Ele estava pedindo que ela ficasse naquela casa em que tinha sido um membro da família, só que agora como criada. Ele estava pedindo que servisse ao homem que arruinara os Longworths e destruíra sua frágil sensação de segurança. Ele estava pedindo que ela ajudasse sua jovem prima a ser apresentada à sociedade, uma oportunidade que fora negada a Irene.

É claro que lorde Hayden não enxergava nada disso. Ela era apenas uma solução conveniente para compor o quadro de empregados de sua tia. Tinha uma combinação singular de habilidades que a tornava perfeita para o cargo. Mesmo que houvesse notado como isso era ultrajante, aquele homem não se importaria.

Ela quis recusar a proposta imediatamente. Esteve prestes a dizer algo muito mais direto e rude do que havia feito até o momento.

Mordeu a língua. Não poderia se dar ao luxo de dizer impropérios agora.

– Vou pensar na sua oferta, senhor.


CAPÍTULO 3

– Ouvi um boato sobre você ontem à noite no White’s.

A declaração inesperada ecoou pelo salão e fez com que Hayden errasse a bola que vinha em direção a ele.

– Sua função é marcar os pontos, Suttonly, não ajudar Chalgrove me distraindo.

– Marcar os pontos é um tédio. Se eu o distrair, você perde e então é a minha vez de jogar.

Hayden sabia que o egoísmo era um traço da personalidade do visconde Suttonly desde que haviam ficado amigos, na universidade. Mas ele não era só isso e Hayden aceitava o lado ruim que vinha junto com o bom. O mesmo homem esguio e vaidoso que estava languidamente posicionado no centro da quadra, interferindo nos saques e nas jogadas, era capaz de demonstrar grande generosidade quando queria.

Chalgrove se adiantou para ficar em posição de saque.

– Você sabia que não teríamos um quarto jogador hoje e que precisaríamos nos revezar.

– Você quer dizer que Rothwell e eu teríamos que nos revezar. Você sempre ganha, então sempre continua jogando.

Suttonly levantou seu rosto longo e de feições finas e tentou em vão olhar Chalgrove de cima, mas o outro era um palmo maior do que ele. O cabelo dourado de Suttonly tinha sofrido a tortura dos ferros quentes naquela manhã. Os cachos perfeitamente desalinhados não iam sobreviver ao jogo.

– É ele quem tem permissão para usar esta quadra – lembrou Hayden.

Se não fosse pela paixão de Chalgrove pelo tênis e por sua vitória inesperada em uma jogatina contra o rei três anos antes, eles nem sequer estariam ali. Em pagamento por aquela dívida de jogo, Chalgrove tinha pedido permissão para usar a antiga quadra de tênis de Hampton Court quando quisesse. Como o esporte saíra de moda e ninguém mais queria ir lá, o rei teve grande satisfação em conceder esse favor real.

Suttonly foi expressar seu tédio nas linhas laterais. Chalgrove assumiu a ofensiva. Hayden percebeu que perderia em breve.

O conde de Chalgrove parecia muito robusto e moreno quando comparado à brandura loura de Suttonly. Mas, durante o jogo, seu corpo musculoso se mostrava surpreendentemente ágil. Atleta nato, seus saques poderosos combinavam bem com a habilidade para mandar a bola de couro na direção dos telheiros e outros pontos difíceis para os adversários.

Hayden observou a bola ricochetear acima da cabeça do outro e cair.

– Bola fora, Rothwell – anunciou Suttonly.

O visconde deu alguns passos à frente e bateu de leve com sua raquete na cabeça de Hayden.

Hayden assumiu a posição de marcador. Apesar de uma parte de sua mente se manter na contagem de pontos, o restante dela se voltou para os negócios com Timothy Longworth. Sua família estaria partindo de Londres em breve, mas não tinha chegado nenhuma carta da Srta. Welbourne falando do emprego que ele lhe oferecera. Não gostava de pensar no preço de seu orgulho. Ela acabaria morando em algum apartamentinho de uma rua violenta, levando uma vida miserável.

Sua falta de senso prático significava que agora ele teria que procurar outra preceptora e dama de companhia. Tia Henrietta chegaria a Londres em poucos dias. Não podia mais esperar a resposta da Srta. Welbourne.

Chalgrove precisou de menos tempo para despachar Suttonly. Depois eles se retiraram para as salas do clube acima da quadra. Chalgrove tinha trazido criados e bebidas geladas. Enquanto lanchavam, Suttonly tocou de novo no assunto da fofoca que corria solta pela cidade.

– Andam dizendo que...

– Não estou interessado – disse Hayden.

– Mas eu estou – disse Chalgrove. – É raro ouvir uma boa fofoca sobre você, Rothwell. Normalmente é sobre quanto dinheiro ganhou nesse ou naquele investimento. Falando nisso, não há nada que queira contar a dois velhos colegas de escola? Ou está esperando que a tempestade passe para lançar o próximo navio?

Suttonly não gostava de ter a atenção roubada de si.

– Andam dizendo – repetiu ele com firmeza – que você arruinou Timothy Longworth.

Isso impressionou até Chalgrove.

– É mesmo? Não sabia que ele estava arruinado, muito menos que você era o responsável.

– Se você viesse à cidade, tomaria ciência do que acontece no mundo – repreendeu-o Suttonly com indolente superioridade antes de se virar novamente para Rothwell e dizer: – O que aconteceu com Longworth? Ele está vendendo tudo tão rápido que o pessoal anda brincando que ele é até capaz de fazer liquidação das irmãs. Você era muito amigo do irmão dele. Ele deve tê-lo enraivecido muito para que decidisse arruiná-lo.

– Eu não o arruinei. A mudança na sorte do homem é problema dele. Quanto aos meus planos, há um acordo sendo firmado em relação a um empreendimento na América do Sul. É muito arriscado, mas vou enviar os documentos a vocês dois. Suponho que guardarão o sigilo de sempre.

– Pode contar comigo – disse Suttonly, fisgando um pedaço de presunto do prato de frios. – Redija os papéis e me avise quando estiverem prontos para a assinatura.

– Nas Américas? Isso não vai ser igual ao esquema de McGregor anos atrás, não é? – implicou Chalgrove. – Você não vai emitir títulos de um país que não existe, como ele fez, não é?

– Se ele fizesse isso, provavelmente encontraria um jeito de compensar os clientes da forma mais sábia possível – disse Suttonly. – Por meu pai morto e os filhos que ainda não tenho, Rothwell, ainda bem que tive a esperteza de ficar seu amigo nos tempos de escola.

– O esquema de McGregor estava fadado ao fracasso. Ele não vai poder fazer novas vítimas de suas fraudes para sempre a fim de pagar as vítimas anteriores. Um dia o castelo de cartas vai desmoronar – disse Hayden.

Hayden Rothwell gostaria que todos – Suttonly, em especial – aprendessem a ser mais desconfiados em relação a investimentos. Se Hayden fosse McGregor, Suttonly teria empenhado sua fortuna para comprar títulos do país fictício de Poyais, nas Américas. Como todos os outros, ele nem teria se dado o trabalho de consultar primeiro um mapa para achar a localização do país.

– Suspeito que haja alguma falcatrua no cerne da crise atual – disse Chalgrove.

Suas sobrancelhas franzidas preocuparam Hayden. Chalgrove não vinha mais para a cidade, porque no ano anterior herdara um imóvel no campo que precisava desesperadamente de cuidados.

– Você perdeu muito dinheiro? – questionou Hayden.

– Não muito, mas o bastante. Tinha uns negócios pequenos com um banco do interior que era correspondente do Pole, Thornton and Company de Londres. Quando eles faliram em dezembro, nosso estabelecimento foi junto – disse ele, dando de ombros, mas não com indiferença. – Muitos homens com negócios bons e sólidos abriram falência por conta disso. Ainda vai haver muito problema antes que esse pânico acabe.

– Mas não há nada que se possa fazer a respeito, não é? – cortou Suttonly, suspirando. – Não vamos ficar nos lamentando pelo que não podemos mudar. Apesar de todas as preocupações, a cidade ainda está movimentada e divertida e se aproxima a época em que as jovens serão apresentadas à sociedade. Chalgrove, prometa que vai permanecer na cidade este ano. Fiquei meio entediado na última apresentação e espero evitar esse estado de ânimo desta vez. Você pode procurar uma noiva rica para resolver seus problemas. Se ela for bonita, pode ser até que você se apaixone.

– Chalgrove não é um tolo romântico como você – disse Hayden. – Você ficou entediado porque está envelhecendo e tem menos chances de se entregar às tolices românticas agora.

– Você se entedia muito facilmente, de qualquer forma – disse Chalgrove. – A vida seria mais gratificante se tivesse algo constante que lhe interessasse.

– Você quer dizer estudar matemática, como ele? Pegar no pesado nas minhas terras, como você? Rezo para nunca ficar velho assim. Quanto a me entregar a tolices românticas, pretendo nunca deixar de fazê-lo. A paixão torna a vida excitante nos poucos meses que dura – disse ele, sacando o relógio do bolso. – Só posso ficar para mais uma partida, Chalgrove. Vou começar sacando desta vez.


– Ouvi boatos sobre você na noite passada, no clube.

Era a tarde seguinte e Hayden levantou os olhos do livro que estava lendo. Havia vencido poucas páginas. Sua mente estava ocupada, pensando em outros assuntos. A chegada inesperada de seu irmão Christian à biblioteca o distraiu ainda mais.

Christian raramente passava a tarde na biblioteca. Seu breve comentário ao se acomodar em uma cadeira acolchoada perto de Hayden explicava o motivo de aquela tarde ser diferente. Era perturbador saber de dois boatos a seu respeito em menos de dois dias. Hayden era o tipo de homem de hábitos regulares e personalidade calma que raramente interessava aos fofoqueiros.

– Não estou flertando com a Sra. Jameson, apesar do que ela anda contando aos amigos – disse Hayden.

– Não era esse tipo de boato, o que nunca me interessaria. Se um dia você se casar, nunca será com uma mulher daquelas.

O “se um dia” dito com tanta propriedade sugeria que seu irmão duvidava da possibilidade de Hayden vir a se casar. O “uma mulher daquelas” não era uma crítica à viúva em questão, mas deixava claro que Christian conhecia bem o gosto de Hayden, muito mais do que o próprio.

Eles se davam bem, tanto que Hayden continuava morando na casa de Easterbrook, em Grosvenor Square. No entanto, as suposições de Christian de que conhecia os irmãos mais novos melhor do que eles mesmos e as suspeitas de Hayden de que isso talvez fosse verdade eram algo irritante.

– O boato tinha a ver com dinheiro. E com seu relacionamento com o banco Darfield e Longworth.

Hayden pôs o livro de lado.

– Você é contra minha decisão de deixar nossas contas lá?

A interferência de Christian infringia um acordo que haviam feito quando ele voltara à Grã-Bretanha depois de ter viajado durante dois anos por sabe lá Deus onde. Apesar de recém-saído da faculdade, Hayden cuidara das finanças da família nesse momento de necessidade. Christian poderia ter assumido a tarefa ao voltar, mas pediu que Hayden continuasse.

– Não faço objeções à sua decisão. Só estou curioso se você realmente confia que o banco não vá falir.

– Se isso acontecer, uso meu próprio dinheiro para compensar quaisquer perdas que você ou os outros sofram. Se necessário, volto até às mesas de jogos.

Os olhos escuros de Christian cintilaram com uma expressão de frieza. A aura de autoridade que ele exalava de repente se fez notar. Era algo que derivava mais do que de seu título de nobreza ou do status de irmão mais velho. Algo havia ocorrido durante aqueles dois anos no exterior que se tornara a fonte desse poder contido e sóbrio.

Christian nunca falara muito de seu tempo fora e das aventuras que tinha vivido. Hayden percebera de imediato como as experiências o tinham mudado. Seu irmão mais velho deixara a Inglaterra como um marquês recém-empossado, instruído e zeloso. Voltara experiente demais, amadurecido demais e um tanto estranho.

– Não peço que aposte sua própria fortuna em suas decisões. Só quero saber se tomou essa decisão em particular com base em seu brilhantismo financeiro de sempre, ou se foi dominado pela emoção.

– Nunca teria deixado as contas lá se achasse que o banco não sobreviveria.

Hayden considerou a conversa encerrada e retomou a leitura.

– Não foi o fato de você ter deixado as contas lá – disse Christian depois de um longo silêncio. – Não era esse o boato.

– Então qual foi o boato que você ouviu?

– Que você de alguma forma arruinou Longworth e o forçou a vender sua parte no banco. Que manipulou a situação para ele falir.

– Mas como você verificou se retirei nossos depósitos e viu que não, já sabe que esse boato não é verdadeiro.

– Ninguém me disse que você o tinha arruinado retirando o dinheiro. Disseram que você manipulou a situação para que Longworth falisse, o que é bem diferente. Não entendo o motivo. Os Longworths são uma família tradicional no nosso condado. E, para começo de conversa, você contribuiu para o enriquecimento deles e foi amigo de Benjamin.

Hayden instintivamente levou uma das mãos ao peito. Ele não sentia a cicatriz por baixo das roupas, mas pensar em Ben sempre fazia com que se lembrasse da dor que a causara. Qualquer ajuda que tivesse dado a Benjamin Longworth já tinha sido mais do que compensada na Grécia. Isso significava que a balança tinha pendido de novo, para o outro lado, na noite em que Ben morreu.

Ele tinha errado com o amigo naquela noite no navio ao não forçá-lo a descer, quando era óbvio que Ben estava bêbado. Pior ainda, tratava-se de um amigo que havia salvado sua vida.

– Está preocupado com minha honra, irmão mais velho?

– Eu deveria estar?

Hayden o fitou.

Christian não baixou o olhar, agindo de forma plácida e paciente. Eles eram muito parecidos, mas qualquer pessoa que entrasse na biblioteca não perceberia isso de imediato. O cabelo escuro de Christian era longo, até mesmo para a moda atual. Suas ondas atingiam os ombros do robe de seda preto que ele vestira ao se levantar naquela manhã. Também não era um robe comum. Ele ostentava uma estampa e um corte exóticos, quase orientais, e era menos estruturado do que os modelos masculinos comuns. A típica falta de formalidade de Christian em casa também fazia com que não usasse uma camisa por baixo do robe, de forma que sob ele não se via uma gola, apenas pele.

Hayden pensou em como o irmão mais velho parecia empertigado e arrumado enquanto o pai deles era vivo. Ele tinha sido tão irrepreensivelmente correto todos aqueles anos. Então, meses depois de assumir o título, desaparecera para depois voltar com aquela desconcertante aparência mundana.

– Os homens fracassam nos negócios o tempo todo – falou Hayden. – É como uma justa. Um homem entra no torneio sabendo que pode perder seu cavalo. Fracassar é sempre um risco.

– Não para você. Não com a mente e os instintos de que dispõe ao entrar na disputa. Se o jovem Longworth tivesse sido outro cavaleiro, e não um mero escudeiro, sua analogia poderia funcionar. No entanto...

– Como você optou por não entrar na competição, fique fora disso.

Hayden engoliu seu crescente rancor. Na verdade, esse sentimento não se dirigia a Christian, mas à sua tendência irritante de incitar o lado negro da alma das pessoas.

– A ruína de Longworth se deve unicamente à sua falta de bom senso. Minha honra está intacta.

Christian pareceu aceitar isso.

– Você tem um lado impiedoso. Nesse ponto, somos bem parecidos. É preciso manter a vigilância para controlar isso, como tenho certeza de que você sabe.

– Cuide da salvação de sua própria alma. Não preciso de ajuda com a minha.

– Todos nós precisamos de ajuda. Contudo, se você diz que não se deixou levar por esses sentimentos, aceitarei que a ruína de Longworth foi obra dele mesmo.

A questão tinha sido definitivamente essa, mas, para evitar maiores consequências além da mera ruína, Hayden tinha sido forçado a conduzir o canalha por muitas reuniões, confissões e promessas nos últimos dias. Com certeza, no clube, na noite anterior, um dos homens que ouvira essas promessas tinha aludido ao papel de Hayden.

Christian se levantou para ir embora.

– É uma pena pelas irmãs. Às vezes as encontro na cidade. A mais velha é estonteante. Se não fosse por sua amizade com o falecido irmão, estaria tentado a ficar com ela.

– Tirar vantagem da má sorte da moça e garantir que o fracasso fosse completo seria algo altamente desonroso, não acha?

Christian deu de ombros.

– Na Inglaterra, sim. Bem, como disse, é preciso manter a vigilância.


A bandeja de prata brilhou à luz da tarde que penetrava pela janela. O cartão sobre ela surpreendeu Hayden.

A Srta. Welbourne estava lá.

Ele passou o polegar sobre o papel e sentiu o alto-relevo de ótima qualidade. Imaginou a moça tirando dinheiro de sua renda magra e decidindo que o cartão que ostentaria seu nome deveria ser digno de uma dama, não importava o sacrifício.

– Vou recebê-la.

A visita dela lhe provocou remorsos. Sua descoberta a respeito do roubo de Longworth atingira muitos inocentes.

É claro que a Srta. Welbourne tinha sido atingida bem antes da descoberta. Entre suas deliberações, enquanto tentava ler na biblioteca, havia algumas em relação a ela. Precisava elaborar uma estratégia para devolver os recursos da moça sem que ela soubesse que tinham sido retirados por Longworth.

Sua palavra de honra o impedia de lhe explicar o que tinha acontecido. Duvidava que ela lhe seria grata por saber a verdade, mesmo que pudesse revelá-la. Isso destruiria sua ligação com as pessoas que considerava sua família. Havia também a hipótese de ela se sentir tão traída a ponto de querer ser a primeira a mandar Longworth para a cadeia.

Abriu as portas da sala de visitas e viu a Srta. Welbourne com sua dama de companhia. Ela trouxera a prima mais jovem. Os olhos de Irene Longworth estavam fixos no relicário medieval cravejado de pedras preciosas que Christian tinha colocado em uma mesa ao lado da janela.

O olhar da jovem se voltou para Hayden quando ele entrou e nele permaneceu enquanto se cumprimentavam. Ele reconheceu sua expressão muda e embasbacada. Estava cansado de vê-la em outras moças ingênuas. Preferia a expressão madura e autocontrolada que a Srta. Welbourne dirigiu a ele.

– Irene, por que não vai olhar os quadros? – sugeriu a Srta. Welbourne. – Ela se interessa por arte, lorde Hayden, e pensei em dar-lhe a oportunidade de ver parte da coleção de Easterbrook hoje.

Com o consentimento de Hayden, a garota começou a caminhar próxima às paredes, examinando as obras.

– Foi muita gentileza sua trazê-la, se tem tanto interesse por arte – disse ele. – Pensei que talvez o motivo real fosse me lembrar do que ela perdeu.

– Esse foi um dos motivos, mas a oportunidade de ver parte da famosa coleção de Easterbrook foi outro. Além disso, quando ela for para Oxfordshire, fará diferença poder falar da visita que fez a esta casa. Algumas pessoas com posses muito superiores às dela nunca terão essa oportunidade.

A Srta. Welbourne falava com a mesma franqueza que marcara as conversas dos dois desde o início. Ocorreu-lhe que seria tratado da mesma forma se não tivesse arruinado Longworth.

Ele gostava disso. Algo nele fazia com que a maioria das mulheres assumisse uma atitude irritantemente fútil. A falta de medo e de nervosismo por parte dela era revigorante. Criava pequenos e encantadores desafios. Sua postura durante o tour pela casa o provocara de muitas formas e carregara o ar entre eles com muito mais do que contrariedade.

Ela sentira o mesmo, ele tinha certeza, só que não gostava dessa sensação. Talvez nem a entendesse direito.

– Além disso, precisava trazer alguém comigo, não é verdade? – disse ela. – Não temos mais criadas, nem mesmo um lacaio. Como Irene sempre sonhou em vir a um baile aqui, um sonho que Roselyn e eu tentamos controlar mesmo nos bons tempos, pensei que ela pelo menos poderia ver suas obras de arte.

A garota obviamente tinha sido instruída a se manter distante e discreta. Ela se reclinou em direção a um quadro de Poussin do outro lado da sala.

Hayden chamou um lacaio.

– Leve a Srta. Longworth até a governanta – ordenou ao homem quando ele chegou. – Diga-lhe para guiar a moça pelo salão de baile e pela galeria.

Mal se contendo de alegria, Irene seguiu o criado. A Srta. Welbourne observou sua saída.

– É muita generosidade de sua parte.

– Se ver esta sala de visitas a ajudará em Oxfordshire, descrever o salão de baile só pode melhorar ainda mais sua posição.

Ele se sentou em uma cadeira que lhe permitia ver de frente o rosto da Srta. Welbourne.

– Como a senhorita precisava trazer alguém consigo, entendo que o objetivo desta visita seja um assunto seu, não dela – comentou Rothwell.

O olhar de Alexia se inflamou. Aquela mulher não gostava muito dele, isso estava bem claro.

Um arco lilás no chapéu de Alexia fazia sobressair ainda mais a cor de seus olhos. Era um chapéu simples, mas parecia muito caro com aquela borda, a copa de seda celestial e rosas enfeitando o arco. Talvez ela mesma tivesse feito o chapéu. Como o cartão de visita, ele demonstrava sua posição, mesmo que essa posição lhe tivesse escapado por entre os dedos.

– Considerei a oferta que me fez na casa de meu primo em sua última visita – disse ela. – Gostaria de conversar sobre isso e ver se conseguimos chegar a um acordo.

Tinham-se passado doze dias desde a oferta. Com a mudança iminente da casa, parecia que ela finalmente tinha se decidido pela praticidade.

Ele decidiu facilitar as coisas para ela sendo breve.

– O salário será o normal para a situação e...

Ela levantou o indicador, detendo-o. Seu tutor costumava fazer isso quando ele era garoto.

– Aceito o salário normal. No entanto, como estarei ocupando dois cargos, o de preceptora e o de dama de companhia, acredito que deveria receber dois ordenados, sobretudo levando-se em conta que o senhor não terá os gastos de manter mais um criado na casa. Além disso, gostaria que o salário fosse pago mensalmente. Vou querer mandar parte do dinheiro para Rose e Irene. Não quero que elas precisem esperar muito para terem algum desafogo.

Ela estava a dois dias de ser despejada, mas fazia exigências desmedidas, como se pudesse apresentar as melhores referências da Inglaterra, em vez de nenhuma. A julgar por sua repetida menção ao problema financeiro dos Longworths, ela esperava que a culpa dele lhe desse alguma vantagem nas negociações.

Fascinado, ele colocou o cotovelo no braço da cadeira e descansou o queixo no punho fechado.

– Acredito que o pagamento mensal possa ser providenciado. Quanto ao salário, a senhorita não passará todo o tempo desempenhando cada um dos papéis. Isso é impossível, portanto o pagamento integral por dois cargos não se justifica.

– Um e meio, então. O senhor tem que admitir que é justo.

Ele quase deu uma risada.

– Bastante justo para a senhorita. Está certo, um e meio.

Ela teve um gesto de alívio, passando a mão sobre a lã fina da roupa. Era um movimento nervoso que revelava que não estava tão contida quando parecia. O vestido era bem mais elegante do que o que ele a vira usar antes. Muito distinto, com um bordado azul ao longo de toda a borda da saia e um casaco que trazia um delicado acabamento em pele. Ele imaginou que as roupas não eram dela. A Srta. Longworth provavelmente as tinha emprestado a ela para a visita à casa do marquês de Easterbrook.

– Quanto à minha relação com sua tia e sua prima – continuou ela –, vivi naquela casa como um membro da família e seria difícil pensar em mim como uma... bem, de outra forma. Gostaria que meu cargo principal fosse o de dama de companhia de sua tia e que meus deveres de preceptora ficassem em segundo lugar. Isso em nada afetaria meu trabalho em relação a sua prima.

Seu tom, comportamento e a forma como continuava a lembrá-lo da mudança na sua situação, que ela acreditava ser culpa dele, deveriam enraivecê-lo. Nada disso.

Alexia Welbourne havia chegado àquela casa vestida como a dama que nascera para ser, mas sairia dali como empregada. Ela sabia disso, mesmo tendo gaguejado ao tentar pronunciar a palavra. Porém, não era uma mulher que desconhecesse seu lugar. Era só uma mulher lutando para manter seus últimos fios de dignidade ao sair pela porta em uma condição diferente da que entrara.

Ele sentia muito por ela, mas manifestar esse sentimento seria um insulto para uma mulher como Alexia.

– Minha tia tem muito bom coração, Srta. Welbourne. O perigo não é ser tratada como criada, mas passar rapidamente a ser tratada como irmã. No entanto, explicarei a sutileza do modo como deseja ser considerada. Tenho certeza de que ela compreenderá. Bem, se não há mais nada a tratar...

O dedo se levantou novamente.

– Algo mais, Srta. Welbourne?

– Só mais um pequeno detalhe.

– Não imagino o que possa ser.

Os lábios dela se franziram diante do tom sarcástico. Belos lábios. Mais para cheios. E um nariz levemente arrebitado, que chamava atenção para a boca.

Uma boca que parece uma rosa. Mas não um botão de rosa. Não era pequena nem curvada, nem mesmo quando o franzido a estreitava. Era uma rosa em plena floração, prometendo o néctar que Ben descrevera.

– Como ambos sabemos, minha situação mudará muito, mesmo continuando a viver na mesma casa – disse ela.

Sua voz provocava pensamentos sobre esse néctar e seu gosto. O caminho rumo aos ardis impiedosos sobre os quais Christian o advertira havia pouco.

De formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Ele a viu de novo no vestido sem atrativos que usara ao guiá-lo no reconhecimento da casa. De um marfim amarelado pelo uso e sem enfeites, que provavelmente haviam sido retirados para adornar outras vestimentas. A moda tinha mudado muito nos últimos anos e sua cintura alta anunciava seus poucos recursos. No entanto, o vestido ressaltava seu busto e revelava suas formas e curvas tentadoras.

Sua mente voou para recuperar a lembrança dela em pé perto dele no corredor do último andar, usando o vestido cor de marfim. As faíscas de raiva nos olhos dela ao confrontá-lo fizeram seu sangue correr mais rápido nas veias outra vez, queimando-o por dentro. Sua imaginação começou a tirar aquele vestido para ver o que tinha por baixo...

– Isso é aceitável, senhor?

A pergunta dela o tirou de sua fantasia erótica.

– Aceita essa última condição? – perguntou ela.

Se pelo menos ele soubesse do que ela estava falando, mas não tinha a menor ideia de como deveria responder.

Assumiu a posição que costumava ocupar em negociações de investimentos quando algo inesperado era proposto.

– Quero pensar melhor sobre isso antes de dar uma resposta.

Suas sobrancelhas se elevaram só um pouquinho, mas o bastante para expressar o que ela pensava disso.

– Não vejo por que isso exigiria tanta ponderação.

– Sou um homem muito ponderado.

– Que admirável! E tais ponderações levariam muito tempo? Estarão concluídas em dois dias, para que eu saiba onde ficar na casa?

Ela usou uma voz cuidadosa e gentil, do tipo usado com um tio velho meio gagá. Ele não estava acostumado a ter ninguém – muito menos uma mulher – tratando-o como se fosse burro.

– Por que não explica esse pedido com mais detalhes, para que eu possa pensar enquanto fala?

– Não consigo pensar em outra forma de explicar isso. Está claro como água. Qual parte não entendeu?

Será que ela havia percebido por onde sua mente andara? Vira nos olhos dele? Estava deixando-o confuso como punição? Será que o pedido era complicado de atender? Ela não teria pedido para vender toda a prataria da casa, imaginava ele.

– Acho que minha tia pode ser convencida a aceitar sua condição.

– Então podemos dizer que chegamos a um acordo – disse ela, imensamente satisfeita com a conclusão da conversa e passando a alça da bolsa pelo braço. – Estou de saída. Estarei na casa para dar as boas-vindas a Lady Wallingford e sua prima quando elas chegarem.

Ele a acompanhou para que procurassem Irene. Encontraram-na na galeria com a governanta. Christian estava lá também, apontando para algum detalhe na pintura que observavam. Ele tinha finalmente se vestido e, fora o cabelo longo de aspecto primitivo, parecia um lorde inglês bem-apessoado.

– Christian, esta é a Srta. Welbourne. Este é meu irmão Christian, marquês de Easterbrook.

– Estava explicando para sua prima que este não é um Correggio original, mas uma cópia de um quadro que está em Parma, Srta. Welbourne – disse Christian.

A Srta. Welbourne olhou para o quadro. Ele retratava a princesa Io delicadamente voluptuosa e sensual, suspensa no ar por Júpiter, que tinha se transformado em nuvem. Como Io estava nua, aquele provavelmente não era um quadro que Christian devesse ter estimulado Irene a examinar.

– É adorável, mesmo sendo uma cópia – disse a Srta. Welbourne, segura de si o bastante para não revelar embaraço com o assunto.

Hayden o considerava adorável também. Observando agora, o corpo de Io parecia um pouco com a imagem que ele fizera do corpo da Srta. Welbourne. Arredondado nos lugares certos. Curvas e maciez à espera.

Hayden mostrou o caminho para que as mulheres saíssem com a governanta. Irene começou a cobrir a Srta. Welbourne de perguntas imediatamente, esquecendo-se de que seus sussurros seriam ouvidos na galeria.

– Você vai aceitar a função?

– Sim.

– Ele aceitou suas condições?

– Sim, vamos embora.

– Todas elas? Até mesmo a folga e o uso da carruagem?

Hayden se perguntou se tinha ouvido direito.

– Função? – disse uma voz baixinho sobre o ombro dele.

Ele virou o rosto e deu com Christian também observando as duas.

– Ela vai trabalhar como dama de companhia de tia Henrietta e preceptora de Caroline.

– Ah, entendo. As únicas mulheres que já fizeram negócios comigo foram minhas amantes. Daí minha confusão. Ela tem belos olhos... de uma cor inusitada.

Hayden observava as fitas do chapéu de Alexia flutuarem, a bainha do vestido se arrastar e seus quadris esbeltos se moverem.

– Ela queria se certificar do que se esperava dela no serviço doméstico. Nossa conversa tratou desse tipo de coisas.

– Como folga e uso da carruagem, você quer dizer.

Hayden ignorou a implicância. A Srta. Welbourne se virou para sussurrar algo no ouvido de Irene. Seu perfil apareceu por baixo da aba do chapéu. Um olho violeta, um nariz levemente arrebitado e uma boca carnuda expressiva formaram uma silhueta colorida contra o vestido marrom da governanta.

A porta se abriu e as mulheres desapareceram.

Hayden se virou e pegou seu irmão mais velho observando-o. Christian deu meia-volta e partiu.

– Vigilância, Hayden, vigilância.


CAPÍTULO 4

Alexia caminhava ao lado de Roselyn em ritmo de enterro. Estavam fazendo uma revista silenciosa de cômodo em cômodo para que Rose verificasse se nada fora esquecido.

Uma carruagem alugada esperava na rua. Ela levaria os Longworths até uma estalagem nos arredores de Londres. Lá seriam transferidos para a triste carroça que saíra antes do amanhecer, oculta pela escuridão, carregando os poucos bens que ainda lhes pertenciam.

Rose espiou a sala de visitas.

– Ouso dizer que a tia de Rothwell encontrará tudo em ordem. Espero que ela e a filha sejam felizes aqui.

A frase teria soado generosa, não fosse por seu tom amargo.

Alexia nada disse para reconfortá-la. Já usara todas as palavras de consolo que poderia conceber. Tinha até mesmo prometido a Irene lhe dar uma festa de apresentação à sociedade no ano seguinte, o que era o mais próximo de uma mentira deslavada que já dissera. Seu coração estava em prantos por todos eles. Rose e Irene, Timothy e ela própria.

Rose se voltou para ela. Com os olhos soltando faíscas pelos olhos, ela permitiu que toda a sua raiva viesse à tona.

– Você tem que me prometer não se afeiçoar a elas. Não quero saber se são boas ou não. Tem que me prometer...

Alexia a abraçou. O corpo de Rose começou a tremer e ela caiu no choro. Passou rápido. Rose engoliu as lágrimas e se recompôs, tudo em uma única inspiração profunda.

– Oxfordshire não é tão longe assim – disse Alexia.

Tal pensamento tinha sido repetido por todos eles muitas vezes na última semana.

– Vamos nos ver com frequência, tenho certeza – continuou.

Ela não estava tão certa disso, mas talvez fosse possível. Afinal, ela poderia usar uma carruagem, não? E tinha um dia de folga.

– Vamos subir para buscar Timothy – disse Roselyn.

Encontraram Timothy em seu quarto, estendido na cama, doente. Doente, não, percebeu Alexia. Ela avistou um decantador lascado debaixo da mesinha de cabeceira.

– A carruagem está esperando, Timothy – disse Rose.

– Para o diabo com a carruagem.

Tim nem sequer moveu o braço que se estendia sobre a testa.

– Para o diabo com os canalhas que esperam para ver esta cena – prosseguiu ele. – Para o diabo com a vida.

Rose pareceu exausta. Fora obrigada a assumir quase todas as providências necessárias nos últimos dias. Depois que vendeu o que podia, Timothy se tornara um inútil.

Alexia se curvou sobre a cama.

– Já se entregou à infelicidade por muito tempo, primo. Suas irmãs precisam que você volte a si. Permita-lhes sair pela porta com dignidade, não carregando o irmão em frangalhos entre elas.

Ele não reagiu nem se moveu. Ela tocou seu braço.

– Venha, Tim. Isso não é do seu feitio. Levante-se pelo bem de Irene, ao menos.

Depois de uma longa demora, ele fez um esforço para se levantar. Rose alisou seu casaco e fez o que pôde para deixar sua gravata apresentável. Timothy parecia tão triste e desamparado que Alexia teve vontade de chorar.

– Pegou as coisas dele no sótão, Rose? – disse ele em tom abafado. – Os baús de Ben e tudo o mais?

A expressão de Rose foi de desespero quando respondeu:

– Arrumamos tudo às carreiras... Como pude ser tão relapsa? Não tem mais espaço na carruagem e...

– Não se preocupe. Cuidarei do que possa ter ficado para trás – disse Alexia. – Podem ter certeza de que os baús continuarão aqui enquanto eu estiver e os levarei quando for embora. Vou achar um jeito de devolvê-los a vocês.

– Você é tão boa, Alexia – disse Rose com visível alívio.

Alexia não se importava de assumir a responsabilidade pelos pertences de Ben. Assim, parte dele ficaria com ela na casa. Ela poderia resistir melhor à adversidade da vida que iria enfrentar se pudesse se lembrar daqueles baús no sótão.

– Detesto deixá-la aqui – disse Tim olhando para o chão. – Odeio a ideia de ver você se sujeitar a ele. Esta foi a jogada mais cruel: ele ser capaz de se deleitar com sua queda de posição social.

Alexia não achava que lorde Hayden se deleitaria com isso, já que aparentemente não pensou duas vezes antes de praticar seus atos. Em poucos dias, ela seria uma criada conveniente e nada mais. Ele provavelmente esqueceria até seu nome.

– Não me importo com o que ele pense, Tim. Não me afeta em nada.

Essa afirmação pelo menos era verdade. Ela já sabia que, na vida, quando se desce um degrau, o motivo não importa. O estrago no orgulho era o mesmo, independentemente da causa. A pessoa podia enfrentar isso com elegância ou com amargura. Ela estava lutando para assumir a primeira postura, como fizera no passado.

Tim caminhava sem firmeza, mas Roselyn e Alexia o conduziram para o andar de baixo, até a porta. Irene esperava com ar sombrio pela partida solene. Com certeza os vizinhos espiariam de suas janelas para ver a cortina descer no último ato do fracasso encenado na Hill Street nas duas últimas semanas.

– Eu o odeio – disse Irene. – Não faz diferença se ele é bonito e se me deixou ver o salão de baile. Tenho certeza de que o irmão dele ficaria chocado em saber o que aconteceu. Eu deveria ter contado tudo a Easterbrook enquanto estávamos na galeria.

Alexia deu um beijo de despedida em Irene.

– Não ocupe seu coração com ódio, Irene.

– Você não precisa disso – falou Roselyn. – Eu odiarei Hayden Rothwell o bastante por todos nós, querida.

Seu rosto se fechou em uma máscara de orgulho. Ela pegou a irmã pela mão.

– Vamos embora – chamou.

Timothy abriu a porta. Ele não apreciou a atitude da irmã ao saírem. Na verdade, não as estava enxergando. Virou-se para a porta aberta e ficou lá, parado indolentemente por um tempo. Seu rosto enrubesceu de emoção.

Alexia manteve a mão no braço dele.

– Você é filho de um cavalheiro, Timothy. Nem isso pode mudar esse fato.

A expressão dele retomou a serenidade e ele se empertigou um pouco.

– Para o diabo com ele – grunhiu.

Deu um passo para fora e seguiu Roselyn e Irene rumo à obscuridade.

Alexia fechou a porta antes que a carruagem partisse. Secou as lágrimas que teimavam em rolar de seus olhos. Não ousava sucumbir ao impulso de se enraivecer com a injustiça da vida. Tinha que aprontar a casa para a chegada da tia e da prima de lorde Hayden.

Também precisava preparar seu orgulho para o momento em que as duas mulheres entrassem pela porta da frente.


– Foi tão gentil de sua parte nos acompanhar, Hayden, mesmo que nosso deslocamento seja só por algumas ruas da casa de Easterbrook. Não tenho muita habilidade para lidar com essas mudanças complicadas.

– Fico feliz em ajudar. A situação exigia pulso firme.

– Como sempre, tê-lo conduzindo as rédeas nos transmite confiança e tranquilidade. Não sei o que faríamos sem você.

O pulso firme em questão não tinha a ver com controlar os cavalos que puxavam a carruagem de Easterbrook por Mayfair. Nem com a enorme gama de detalhes relacionados à mudança de tia Henrietta para Londres. Disso tudo Hayden dera conta com facilidade.

Na verdade, era Henrietta, viúva de Sir Nigel Wallingford, que demandava pulso firme. Ela exigia mais da sua atenção do que os mais complicados investimentos financeiros que ele administrava.

Após a morte do marido, ao tomar conhecimento de que sua renda ficaria bem reduzida, ela assentira como se compreendesse a situação, mas depois não alterara em nada seus gastos. Sendo seu administrador, Hayden cumpria o penoso ritual de ir até Surrey para ralhar com ela por causa das contas altas, reprimendas que a tia aceitava com constrangimento, mas depois alegremente ignorava.

Ele a observou enquanto se sentava junto à filha na frente dele na carruagem. Um chapéu gigantesco cobria a maior parte do cabelo muito louro. Sua aba ampla e pontuda ficava o tempo todo batendo no queixo de Caroline. O maior laço vermelho da história da chapelaria apequenava a copa alta. Uma pluma extravagante traçava um amplo arco e tocava o delicado maxilar de Henrietta. A mulher era baixa e franzina, com rosto pequeno e traços finos, e o chapéu parecia um peso prestes a curvá-la.

Sem dúvida, Henrietta achava que o chapéu era magnífico e valia cada centavo gasto nele, mas não percebia como a envelhecia. Sendo irmã mais nova de sua falecida mãe, aos 36 anos, tia Henrietta ainda possuía feições joviais, mas, usando aquele chapéu, aparentava ter 50.

– Você tem absoluta certeza de que essa preceptora fala um francês impecável? – perguntou ela. – Caroline precisa de alguém muito competente.

– A Srta. Welbourne é bem instruída em todas as matérias necessárias.

Na verdade, não tinha certeza se a Srta. Welbourne sabia francês. Mas, se alegava ter a formação exigida para desempenhar seu novo papel, então deveria ser capaz de demonstrar isso. Ele suspeitava de que ela poderia aprender francês em quinze dias se ainda não soubesse.

– Espero que ela não seja igual à Sra. Braxton – murmurou Caroline.

Uma menina quieta e pálida, Caroline raramente falava. Hayden suspeitava de que a criança que ele via não era a Caroline de verdade, mas uma menina desbotada e enrijecida pela presença da mãe.

– Estou certa de que a Srta. Welbourne será muito diferente de sua última preceptora – disse Henrietta. – Hayden teve que lhe prometer algumas concessões incomuns para persuadi-la a nos ajudar.

Os olhos verde-claros de Henrietta brilharam com o feliz otimismo que a fazia parecer sonhadora e distraída o tempo todo.

– Estamos na cidade agora, querida. É um mundo bem diferente. A Sra. Braxton não serviria. Foi por isso que Hayden encontrou essa casa e a estimável Srta. Welbourne para nós.

Ela concedeu a Hayden um daqueles sorrisos. Um dos sorrisos agradecidos e afetuosos que diziam que ele era a âncora de seu navio sem leme. Ela confiava totalmente no sobrinho, dependia dele em excesso e esperava que ele atendesse a seus caprichos. Provocava um desastre atrás do outro e depois, com pesar, encaminhava o problema para ele resolver, porque ele era tão incrivelmente competente nisso.

Ele não tinha dúvida de que sua tia agia com ele de forma semelhante à que costumava agir com seu finado marido. Sua aparência adorável, as voltas que dava nos assuntos tentando evitar dar explicações, suas tentativas de amansá-lo com elogios – estas eram as marcas de uma mulher que manipulava um homem. Ele gostava de tia Henrietta e até a considerava divertida. No entanto, ser seu administrador por seis anos tinha lhe ensinado certos aspectos do relacionamento diário com uma mulher que vinham com o casamento. Nenhum deles o tinha estimulado a procurar uma esposa.

– Aí está – anunciou Henrietta quando a carruagem parou na Hill Street. – Pedi que o cocheiro passasse por aqui anteontem para me mostrar. A casa é bem bonita e de bom tamanho, não acha, Caroline? Mas não fica em uma praça. Tinha esperanças de que ficasse. Porém, se Hayden diz que é adequada para nós, assim será.

Hayden conhecia bem as esperanças dela. Seu irmão Christian também. Tia Henrietta não dera atenção aos detalhes da mudança para Londres até que ficara difícil demais encontrar um local adequado para alugar. Christian desconfiava de que a tia deles tinha outro motivo para tamanha negligência. Ele estava certo de que ela contava com que ficasse sem lugar para morar, quando então pediria para apresentar sua filha à sociedade no lar de Easterbrook.

Três semanas antes, Christian havia decretado sumariamente que isso não aconteceria, de jeito nenhum. Ele ofereceria o baile de apresentação de Caroline à sociedade, mas não viveria sob o mesmo teto que sua tia intrometida e frívola.

A residência dos Longworths resolvera então um problema iminente. Também dera a Timothy oportunidade de reembolsar Henrietta pelos títulos roubados sem que ela ficasse sabendo do golpe. Henrietta acreditava que Hayden os havia vendido para comprar a casa.

Ao descer da carruagem, Hayden pensou no restante do plano. Com sorte, Caroline ficaria logo comprometida com um rapaz da primeira leva de pretendentes e Henrietta voltaria para sua casa, em Surrey. A casa de Londres seria vendida e os títulos roubados, substituídos por novos. Se a divina Providência realmente sorrisse para ele, após Caroline se casar, sua tia procuraria um marido e Hayden passaria para ele a responsabilidade de controlá-la.

Hayden deu a mão para ajudar a tia e a prima a descerem. Ao entrarem, todos os criados se perfilaram no hall para saudar a nova patroa.

Henrietta examinou a criadagem. Hayden mantivera Falkner, mas o restante do pessoal era novo.

Ele deu um passo à frente quando sua tia se aproximou da Srta. Welbourne e apresentou as duas mulheres – o que não fizera com o mordomo ou com a governanta. Era do seu interesse que elas se dessem bem. Com sorte, a Srta. Welbourne reduziria as demandas de Henrietta por ele.

Tia Henrietta examinou em detalhes a nova dama de companhia. A Srta. Welbourne passou com elegância pela avaliação.

– Esta é minha filha, Caroline – disse Henrietta, instigando a garota a dar um passo à frente. – Nosso atraso em vir à cidade significa que seus últimos retoques precisam de atenção. Imagino que você seja adequada para fazer isso.

– Sou, sim, Lady Wallingford.

– Soube que começou a desempenhar suas funções recentemente e que é prima da família que viveu aqui por último.

Hayden não imaginava que Henrietta soubesse disso. Ela estava na cidade havia somente dois dias. A cor dos olhos da Srta. Welbourne se intensificou, mas ela não demonstrou qualquer outra reação.

– Sim, senhora.

– Vamos conversar um pouco sobre isso. Contudo, não tenho motivos para duvidar da confiança que meu sobrinho deposita na senhorita.

– Obrigada, senhora.

Henrietta seguiu em frente, cumprimentando as empregadas, o lacaio e o cozinheiro. Hayden observava o ritual em um canto do cômodo. Observava principalmente a Srta. Welbourne.

Os olhos dela não vacilaram desde que entraram na casa. Ele percebeu que seu olhar estava pregado em um ponto na parede por trás dele. Mesmo quando Henrietta falou com ela, seus olhos violeta não se moveram. Ela estava resistindo bem àquela provação, mas na verdade não a estava vendo.

Admirou sua atitude e a leve altivez que ela emanava. Alexia podia estar entre os criados, mas só um tolo não veria a diferença. Com certeza sua tia havia percebido isso de imediato, por isso lhe fizera aquela pequena provocação.

O olhar da Srta. Welbourne se moveu sutilmente em direção a ele. Raiva e orgulho se estamparam em seu rosto. Não ouse ter pena de mim, expressou uma olhada rápida. Você mais do que todos os homens não tem esse direito.

O ressentimento dela parecia prestes a desmanchar sua pose. Ele andou em sua direção e fez um gesto para que se aproximasse, tirando-a da fila de empregados.

– Parece que a senhorita tem tudo sob controle. É admirável.

Ele se referia a ela, não aos empregados. Ela pareceu entender. Sua expressão voltou à passividade. Seu olhar se dirigiu para o mesmo lugar de antes, atrás dele na parede.

– Falkner cuidou para que os outros ficassem preparados – disse ela, baixo.

– Acha que consegue lidar com ela? – falou Rothwell, olhando para sua jovem prima.

A Srta. Welbourne olhou para o final da fila também, só que parou para observar Henrietta e não Caroline. Mais especificamente, o chapéu de Henrietta.

– Acho que merecia os dois salários – disse ela.

– Andei pensando que talvez a senhorita valha muito mais para mim.

Ao falar, o tom soou meio malicioso. Se ela percebeu, não teve qualquer reação. Provavelmente porque o sentido oculto tinha ficado somente na cabeça dele, um reflexo de maquinações que não fariam nada bem a sua reputação.

– Acho que tem razão. Mas fiquei satisfeita com nossa última reunião e não espero mais por ora.

– Fico aliviado. Só há uma carruagem, como vê, e minha tia vai querer usá-la de vez em quando. Se a senhorita tiver várias folgas em vez de uma só, isso criaria um sério incômodo para ela.

Ela não pôde resistir e sorriu ao lembrar que o havia derrotado nisso. Sua boca rosa relaxou e revelou seu bem-vindo potencial de sensualidade. Os lábios se afastaram o bastante para provocar pensamentos inapropriados na cabeça dele.

Os olhos de Alexia por fim se voltaram para ele, para partilhar a piada. Ele lhe devolveu um olhar profundo, que exigiu sua relutante atenção. Mas Hayden deixou que o momento se prolongasse demais. A janela se fechou, como se Alexia houvesse notado o perigo nos olhos dele. Ela se empertigou.

De repente, corpos se movimentaram em volta deles. Os criados haviam sido dispensados. O chapéu de Henrietta se intrometeu entre ele e a Srta. Welbourne.

– Hayden, informei ao cozinheiro que você jantará conosco amanhã. Easterbrook e Elliot também.

– Elliot está em Cambridge e Christian tem um compromisso amanhã.

Ele começou a acrescentar suas próprias desculpas, mas ver violetas e rosas deteve suas palavras. A Srta. Welbourne estava falando com Caroline, assumindo suas funções.

– Ficarei feliz em aceitar, se minha presença apenas não for tediosa demais.

– Tediosa, nunca! Não venho a Londres há anos e estaria perdida sem a sua ajuda abrindo caminho para a sociedade. Quase me esqueci do que Caroline deve ver e fazer. Precisamos de você para fazer uma lista de locais que devemos visitar e dos passeios que nós não podemos perder.

Ele desconfiou que ela o incluíra no “nós”. Antes que o jantar do dia seguinte se encerrasse, Henrietta teria sua agenda completamente preenchida com formas como ele poderia “ajudar”.

Era tudo culpa da Srta. Welbourne. Ela o distraíra e ele baixara a guarda. Se ela o deixara à mercê de Henrietta somente com um sorriso, era uma sorte ela o odiar e não sorrir com frequência.

Ele se despediu e recebeu um adeus frio da Srta. Welbourne em meio às despedidas efusivas de Henrietta. Ao deixar a casa, Henrietta estava seguindo a governanta para ver os outros cômodos e Caroline se esgueirava à procura da sala de música.

O que significava que a Srta. Welbourne tinha sido a única a de fato vê-lo partir.


Paciência. Alexia disse para si mesma. Lembre-se do seu lugar. Engula as palavras antes de expressar o que você pensa.

Ela se sentou à mesa da sala de jantar com Lady Wallingford, Caroline e lorde Hayden. Manter-se em silêncio durante esses jantares se mostrou uma tarefa fácil, porque Lady Wallingford não parava de falar com o sobrinho. Nas duas últimas refeições em que tinha estado presente, ela o persuadira a contar todas as fofocas que corriam pela cidade, com descrições completas dos personagens importantes. Esta noite ela o estava pressionando a levá-la ao Museu Britânico.

Lorde Hayden olhava com frequência em direção a Alexia, como se esperasse que ela interrompesse a conversa e o salvasse de sua tia. Ela não se mostrou inclinada a fazer isso. Era uma criada, afinal de contas. Não lhe cabia fazê-lo, não era verdade? Ele estava sendo óbvio demais também. Parecia ignorar a tia todas as vezes que desviava a atenção daquela forma.

Ele tratava a tia com uma firmeza afetuosa que sugeria que a considerava distraída demais para ser responsabilizada por seus excessos. Aparentemente não apreciava por completo a sua personalidade. Em apenas uma semana, Alexia descobrira que as maneiras frívolas e despretensiosas de Lady Wallingford escondiam um tipo muito feminino de astúcia.

– Será mais instrutivo para Caroline se você nos levar, Hayden – disse Lady Wallingford. – Sou ignorante em história antiga e nunca conseguiria explicar a importância dos artefatos. – Ela lhe deu um sorriso que derreteria aço. – E Caroline não conhece muito bem você e seus irmãos. Nem você a conhece, agora que ela não é mais uma criança.

Caroline ficou vermelha até as orelhas. O olhar astuto da sua mãe lhe deu uma deixa. Caroline forçou um sorriso esperançoso.

– Seria maravilhoso visitar o museu com você, Hayden. Se puder dispor de tempo para nós.

Alguns minutos depois, Lady Wallingford pegou o sobrinho em sua rede. Na semana seguinte ele iria acompanhá-las ao museu.

Alexia se divertia vendo a nova patroa manipular esse homem orgulhoso e severo. Ele nem parecia perceber o maior desejo da tia, que era o de fisgá-lo de vez.

– Agora temos que decidir sobre a modista que fará o vestido da apresentação de Caroline – disse Lady Wallingford. – Ouvi falar que existe uma madame Tissot que é uma maravilha e também que a Sra. Waterman serviria. O que nos aconselha, Hayden?

– Eu não entendo disso, mas a Srta. Welbourne as ajudará, espero.

Todos os olhares se voltaram para ela, vencendo suas intenções de permanecer uma mera sombra no canto da mesa.

– Se eu tivesse que escolher, com certeza seria madame Tissot – disse ela.

A Sra. Waterman tinha sido a modista escolhida para fazer o guarda-roupa de Irene Longworth para sua apresentação. Caroline agora vivia na casa de Irene e até dormia na cama de Irene. Por nada neste mundo Alexia permitiria que também ficasse com os vestidos feitos para Irene, se pudesse impedir.

A rispidez de sua reação advertiu-lhe que ela ainda não tinha definido sua situação. Os ressentimentos afloravam em ocasiões como essas. Ter que partilhar a refeição com lorde Hayden também deixava parte de sua alma fervilhando. Aceitar sua atenção arrogante, combater sua aura dominadora, parecia uma perspectiva cruel. Ela esperava que ele demonstrasse mais força de caráter no futuro e declinasse os convites da tia para jantar.

– Antes que encomende qualquer vestido, precisamos ter uma conversinha, tia Henrietta.

– É claro – concordou Lady Wallingford, sua expressão tornando-se obediente e respeitosa. – A própria Caroline insistiu em limitações estritas de custo. Ela é muito mais sensata do que eu nessa área, não é, querida? O homem que se casar com ela vai achar bem mais fácil controlar seus gastos do que os da maioria das outras moças.

Caroline enrubesceu de novo. Seu primo não percebia a isca que pairava acima dele, apenas deu um sorriso vago em aprovação.

A refeição terminou e, com a agenda de lorde Hayden adequadamente preenchida, todos se dirigiram para a sala de estar. Ao chegar à porta, Lady Wallingford anunciou um novo plano.

– Hayden, você daria licença a mim e a Caroline por um instante? Ela tem uma surpresa para você e preciso ajudá-la. A Srta. Welbourne vai entretê-lo enquanto preparamos um passatempo.

E assim Alexia se viu sozinha, sentada em frente a lorde Hayden na sala de estar, em uma situação parecida com a de sua primeira conversa.

– Pode me dar uma dica sobre qual será esse passatempo? – perguntou ele, esticando as pernas de maneira muito informal.

Ela não era nenhuma parenta dele; dispensava tal atitude de familiaridade.

– É um mistério para mim.

– A senhorita é a preceptora dela.

– Acho que isso foi planejado antes da chegada delas. Que eu saiba, não houve ensaios ao longo da última semana.

Ele a olhou daquela forma direta e desconcertante que adotara.

– Então não deve mesmo ter havido nenhum. Tenho certeza de que nada lhe escapa, Srta. Welbourne. Por exemplo, já deve ter percebido que a querida tia Henrietta tem planos para Caroline e eu que vão além de visitas a museus.

– É verdade? Que afortunado!

A consciência dele das intenções de Henrietta arrasaram suas fantasias. Ela tivera esperanças de vê-lo nadar arrogantemente contra a correnteza só para no fim morrer na praia, sob os saltos de Henrietta.

– Ajudaria muito se desestimulasse esses planos.

– Não imagino como. Além disso, vocês formariam um belo casal.

– A senhorita pretende se aliar a tia Henrietta contra mim, não é?

– Nós, mulheres, somos como irmãs nesses assuntos, senhor. E realmente gostamos de ver o poderoso perder.

– A senhorita fala como se eu não tivesse chance – disse ele rindo.

– Tenho esperanças de vê-lo estripado, descamado e na frigideira até junho.

O humor fez os olhos de Hayden brilharem. A diversão o transformara. Não parecia mais tão rígido. Forte, sim, mas não rígido.

– Um peixe? Está me comparando a um peixe? Poupe-me alguma dignidade, Srta. Welbourne. Uma raposa caindo na armadilha, um touro vencido por um toureiro. Há muitas analogias à disposição, mas um peixe é cruel demais.

Ela sorriu sem querer.

– Achei a imagem muito convincente.

Apesar de ainda sorrir, ainda... atraente, a conduta dele ficou mais séria.

– Se a senhorita se recusa a desestimular minha tia, então está certo. Mas faça o que puder para evitar que a garota aceite as ideias da mãe. Não gostaria de vê-la magoada ou desencorajando pretendentes por conta desse esquema. Não há a menor possibilidade de eu me casar com minha prima.

– Por que não?

O sorriso dele foi firme o bastante para dar a entender que Alexia tinha ido longe demais. Não havia novidade nisso e ela não retirou a pergunta.

– Ela é uma criança – disse ele.

– Todas elas são. As igrejas estão cheias de noivas meninas, já que se considera encalhada uma mulher solteira de 22 anos.

– Não pretendo me casar no futuro próximo, menos ainda com uma criança. Essas meninas têm ideias muito frívolas e românticas, o que obriga os homens a fingir fraqueza e sentimentalidade. Além do mais, ela é minha prima. Sei que esses arranjos são comuns, mas são uma prática doentia que não aprovo.

Doentia?

– Benjamin Longworth era meu primo. Não gosto da ideia de que meu amor por ele seja doentio.

Hayden empalideceu.

– É claro que não. Desculpe-me, Srta. Longworth. Às vezes sou muito sem jeito ao expressar minhas ideias.

Seguiu-se um silêncio breve e desconcertante.

– É claro que não tínhamos convivência quando éramos mais jovens – disse ela. – Ele não me conheceu quando eu era garota...

– Sim, exatamente. Então entende por que um casamento com Caroline é... impossível.

Ele encerrou o assunto se levantando e caminhando sem rumo pela sala.

– Quando a senhorita conheceu Benjamin?

A pergunta foi feita casualmente, enquanto ele examinava uma cena doméstica pintada por Chardin. O quadro tinha vindo com vários outros após a partida dos Longworths, um empréstimo da coleção de Easterbrook para cobrir as paredes vazias.

– Quando me juntei a eles aqui em Londres. Eles viviam em Cheapside na época. Escrevi-lhes sobre minha situação depois que meu pai morreu e Ben me respondeu dizendo que deveria vir. Ele foi muito gentil.

Gentil e alegre. O mundo se iluminava quando Ben estava por perto. Ele inspirava uma leveza de espírito, muito diferente do homem que estava em sua companhia no momento, que a deixava com raiva e na defensiva o tempo todo.

– O senhor disse que se conheceram quando eram garotos. Como ele era quando jovem?

– A maturidade não mudou sua personalidade. Ele era igualmente impulsivo e despreocupado quando garoto. E fazia muitas travessuras.

– Quer dizer que ele foi um menino levado.

– De uma forma positiva. Todavia... O garoto, assim como o homem, não pesava as consequências de seus atos.

– É porque Ben vivia o momento. Ele não planejava nada. Contava com a sorte de que tudo desse certo no fim.

Ela amava isso nele. Amava como se sentia livre e quase inconsequente na presença de Ben. A vida a forçara a se tornar tediosa e sensata, até que os sorrisos dele a aqueceram em seu último ano juntos.

Ele lhe devolvera a juventude por um curto espaço de tempo e ela ainda ocultava aquela garota renascida e cheia de vida no mesmo lugar em que guardava as lembranças de Benjamin.

Rothwell tinha se virado e estava olhando para ela. Ele parecia rígido de novo e seus olhos azul-escuros demonstravam quão profundamente ele a avaliava. Ben nunca olhava para as pessoas daquela forma.

Ela sustentou o olhar. Foi um erro. A conexão a deixou em desvantagem, assim como acontecera no hall na semana anterior, quando ele chegara com a tia. O olhar dele era penetrante demais, enxergava demais. Ela sentiu como se ele estivesse lendo seu coração.

Alexia reagiu como acontecia com frequência diante desse homem. Parecia com a forma como Ben a fazia sentir, só que com tintas mais intensas. A atenção que ele lhe dispensava flertava com o perigo. O estímulo que lhe provocava causava tremores de medo.

Ela estremeceu. Disse a si mesma que estava com os pés firmes no chão. Mas a verdade sussurrava o contrário em seu coração. Ela era impotente para desviar o olhar, para rejeitar aquela excitação.

– Imagino que a vida não era enfadonha quando vivia nesta casa – disse ele.

Ela se sentiu corar. Era como se ele tivesse visto aqueles beijos roubados nas suas lembranças e agora se referisse a eles.

Ele parecia prestes a falar de novo, mas foi interrompido. Um lacaio apareceu para dizer que eles eram aguardados na biblioteca.

– Parece que o passatempo está pronto – disse lorde Hayden.

Ele a acompanhou até a outra sala. A proximidade do corpo dele a fez pensar na volta de reconhecimento que haviam feito pela casa. E isso não ajudou em nada a combater o estranho poder que ele exercia sobre ela.

– Gosto de falar sobre Benjamin com o senhor – disse ela ao entrarem na biblioteca. – Espero que algum dia me divirta com casos sobre seu tempo na Grécia ou a juventude dele.

– Certamente, Srta. Welbourne.

Um pequeno palco armado aguardava por eles na biblioteca. Duas colunas baixas flanqueavam um pano azul esticado no chão. Um tecido branco pendia ao fundo, preso nas prateleiras de livros. O cenário improvisado mostrava uma pintura de montanha e de um templo com colunas.

Lady Wallingford estava de pé ao lado. Ela indicou que eles se sentassem em duas cadeiras dispostas diante do pano azul.

Ela bateu palmas para chamar atenção. Outra palma e a representação começou.

Caroline surgiu de trás do cenário. Estava usando uma roupa ao estilo grego, que deixava seus braços de fora e mostrava um pouco de seu quadril e muito da sua pele no pescoço e colo. A mãe prendera seu cabelo para cima, dando-lhe um ar mais maduro, e até maquiara levemente seu rosto jovem.

Caroline estava muito bonita, muito adulta – quase infame.

Alexia esticou o olhar para lorde Hayden, para ver sua reação. Pegou-o discretamente olhando de volta para ela.

– E eu que achava que as tinha sob controle, Srta. Welbourne – sussurrou ele. – Parece que minha tia não pretende esperar até junho para me fritar.

A bela isca de Lady Wallingford se posicionou entre as duas colunas e começou a recitar uma passagem da Ilíada.


CAPÍTULO 5

Usando um vestido velho e envolta num longo xale de lã, Alexia se refugiou na biblioteca. Acendeu a lareira, deitou-se no sofá ao lado e apoiou na barriga um livro aberto.

Silêncio. Liberdade. Um fogo aconchegante e horas de privacidade. Fechou os olhos e saboreou a sensação de retorno a um mundo que conhecia bem. A chuva que batia suavemente no vidro das janelas só melhorou a sensação.

Tinha sido brilhante pedir a lorde Hayden uma folga por semana. Ousado também. Nunca imaginou que seu pedido pudesse ser atendido; ficou até espantada quando lorde Hayden cedeu. Talvez ele de fato se sentisse um pouco culpado em relação aos Longworths. Não havia outra explicação.

Era um ponto a favor dele, mas ela não desperdiçaria tempo avaliando seu caráter. Planejava aproveitar ao máximo essas horas sem Lady Wallingford e Caroline – principalmente, sem o próprio lorde Hayden. Ele estava sempre pelo caminho, fazendo visitas de dia ou jantando à noite. O homem era jovem, solteiro e rico. Com certeza tinha coisas melhores para fazer do que visitar a tia.

Ela sorriu para si mesma. Sem dúvida que tinha. Entretanto, sua tia possuía a excepcional capacidade de requisitar sua presença e faltava nele a habilidade necessária para escapar de suas maquinações. Alexia desconfiava de que sua analogia com o peixe tinha sido inapropriada. Rothwell não estava sendo seduzido com uma isca. Henrietta fixara um anel no nariz dele e o estava lenta e implacavelmente levando para o matadouro.

Ela riu ao pensar nessa imagem. Contudo, enquanto um minotauro era arrastado pela corda de Henrietta, a fantasia se transformou. De repente, ela o viu de pé ao lado da jovem Caroline numa igreja.

Seu júbilo se desfez e ela examinou a cena em sua cabeça. Não seria um casamento com amor. Ela duvidava se havia algum romantismo nele. Caroline imaginaria que sim, pois era jovem e impressionável. Quando essa ilusão se desvanecesse, já teriam se adaptado um ao outro. Caroline teria o que a maioria das mulheres almejava: segurança, apoio e, quem sabe, gentileza.

O quadro mudou de novo e Rothwell não estava mais na igreja. Em vez dele, surgiu Benjamin. E Alexia já não observava tudo olhando de cima: estava ao lado dele. Por um instante, a alegria encheu seu coração, como se a cena fosse real.

Ela afastou a imagem da cabeça com um arrependimento melancólico. A vida nem sempre era como se desejava. Às vezes era preciso se contentar com menos do que fora sonhado.

O livro chamou sua atenção. Normalmente leria Walter Scott em seu quarto, onde ninguém poderia ver. Não era o tipo de literatura séria esperada de uma preceptora. Não tinha sido incluído na lista que ela dera a Caroline como parte de suas lições.

Embrulhada e aconchegada, permitiu-se a libertação temporária de viver em um mundo de homens arrojados e mulheres impressionantes, de paixões fortes demais para estarem no mundo real e de romances dramáticos demais para serem verdade.


– Irc.

O rosto de Caroline se torceu de nojo, mas ela se aproximou da cabeça de abutre preservada em álcool. De todos os artefatos eruditos atulhados na coleção do museu em Montagu House, esse grotesco espécime só não era mais popular do que a múmia egípcia e o porco com cara de ciclope conservado em salmoura.

Hayden sorriu com a fascinação e a repulsa infantis. Era revoltante pensar que ela provavelmente estaria casada dali a um ano. Não aprovava que meninas tão novas fossem oferecidas a pretendentes, e não só porque o casamento precoce de sua própria mãe tivesse sido tão trágico.

– Agora temos que ver as peças de mármore – arrulhou Henrietta, puxando a filha da multidão que observava o abutre.

Por duas vezes Hayden já desviara a atenção delas para que esquecessem os mármores de Elgin. Ele se lembrava perfeitamente de como a tia vestira Caroline para sua apresentação da Ilíada e imaginava por que Henrietta se mantinha tão inflexível quanto a ver as peças de mármore. Pouco tinha a ver com o fato de serem uma mostra magnífica da arte grega.

– Não creio que a Srta. Welbourne fosse considerar apropriado a Caroline ver as esculturas em mármore – disse ele.

– Sou mãe dela; a decisão cabe a mim. Contudo, a Srta. Welbourne a instruiu a vê-las. Falou tão bem desses trabalhos que também tive vontade de revê-los.

– Se ela foi tão categórica, deveria ter nos acompanhado na visita.

Ele só descobrira que a Srta. Welbourne tinha optado por tirar folga naquele dia quando chegara para pegar as damas. Ela o deixara à mercê de Henrietta, enquanto se divertia na cidade, sabe lá Deus fazendo o quê. Teve ímpetos de mandar chamá-la e ordenar que entrasse em sua carruagem imediatamente e que escolhesse outro maldito dia para descansar.

A tia o arrebanhava na direção que desejava que ele seguisse.

– A Srta. Welbourne disse que as esculturas estão em um pequeno prédio à parte. É por aqui, não?

Saíram de Montagu House, enfrentaram a chuva e entraram no anexo que abrigava as esculturas que lorde Elgin retirara do grande Parthenon em Atenas.

– Você não deve ficar chocada, Caroline – instruiu Henrietta. – Grandes artistas tomam liberdades que podem parecer escandalosas, mas a arte ocupa um plano mais elevado da experiência. Além disso, essas peças são muito antigas, de uma época anterior à era cristã.

Hayden suspeitava de que, na verdade, a intenção da tia era causar espanto em Caroline. Essa história de plano mais elevado era lorota. As figuras masculinas no salão estavam praticamente nuas. Sua tia estava realizando uma forma disfarçada de iniciação e a presença dele era inadequada.

Tia Henrietta queria isso também. Ela desejava que a filha visse as estátuas e ficasse se perguntando o que haveria por baixo das vestimentas do futuro marido ao seu lado.

Se a Srta. Welbourne tivesse vindo, poderia ter dado uma aula de arte para Caroline, enquanto ele se manteria à sombra. Conjecturou se Henrietta tinha decretado que a preceptora ficasse em casa, para que ele não tivesse essa opção. O mais provável era que a Srta. Welbourne houvesse desconfiado do plano e dado uma mãozinha para sua tia.

Ele pretendia conversar com a Srta. Welbourne a esse respeito. Muito em breve.

Pararam em frente às métopas que mostravam a batalha entre os lápitas e os centauros. Hayden contou a história exibida ali. Henrietta analisou os aspectos artísticos.

Caroline olhava com curiosidade para os corpos masculinos nus. Seguiu-se um silêncio curto e constrangedor durante o qual Hayden se esforçou para manter toda a compostura.

O cenho de Caroline se franziu.

– Estão todas quebradas. É como se tivessem cortado fora as cabeças e os braços com espadas. Não imagino por que essas obras estão em exposição, muito menos por que são famosas.

Hayden quase respondeu que não era assim que os corpos ficavam quando decepados. A imagem bizarra invadiu sua cabeça e sua alma se entristeceu. Voltou a atenção para as damas a fim de conseguir controlar a sensação ruim.

– Trata-se da escultura das formas, querida. É por isso que são tão apreciadas – disse Henrietta. – Os dorsos, coxas e quadris...

– Não gosto nada disso.

– Outras pessoas compartilham suas críticas, Caroline – disse Hayden. – Muitos só começam a apreciar a arte grega depois de um tempo. Já ouvi dizer que as mulheres passam a gostar mais desses mármores conforme vão ficando mais velhas.

Ele indicou o caminho dessa vez, para fora do anexo.

– É uma pena a Srta. Welbourne ter ido visitar amigos em vez de nos acompanhar – comentou Hayden. – Tenho certeza de que ela seria capaz de explicar os aspectos artísticos para além do meu nível de sensibilidade.

– Ela não tirou folga para visitar amigos – disse Caroline. – Ela pretendia ficar em casa para cuidar de assuntos pessoais. Escrever cartas, coisas assim.

Isso não melhorou seu humor. Ele passaria mais algumas horas nesse passeio, enquanto a Srta. Welbourne escapava de suas funções para escrever cartas. Cartas de amor, era provável, para o falecido Benjamin Longworth.

Ela só se alegrava quando o nome de Ben era mencionado. Transformava-se em outra mulher. A lembrança de seu antigo amor a remoçava como por encanto. Isso era doentio! Também era um amor construído sobre mentiras. Mais uma vez Ben tinha agido por impulso, sem medir as consequências.

Ben nunca pretendera se casar com Alexia Welbourne, independentemente do que ela havia sido levada a acreditar. Estava atraído por uma jovem abastada e de família aristocrática muito antes da viagem para a Grécia. A própria ideia de lutar na guerra tinha sido uma forma de executar atos heroicos que impressionariam a tal jovem rica e inatingível.

Henrietta interrompeu seus pensamentos sugerindo que visitassem a biblioteca do museu. Hayden vislumbrou mais uma hora bancando o professor.

Quando abriu a porta, avistou um rosto familiar. Seu irmão Elliot estava sentado a uma mesa, examinando um grande manuscrito. Elliot retornara à cidade na noite anterior, vindo das bibliotecas de Cambridge, e já estava ali.

– Espere aqui, tia Henrietta.

Hayden deixou as duas na porta e andou na direção do irmão. Elliot estava tão absorto que foi preciso tocar seu ombro para chamar sua atenção.

A basta cabeleira escura foi jogada para trás. Elliot olhou através dos óculos. Sua mente refez seu caminho de volta do lugar aonde o manuscrito o levara.

– Hayden. Que surpresa!

– Será, com certeza. Venha comigo. Se fizer alguma objeção, vai se ver comigo.

Confuso, Elliot se levantou e o seguiu sem apresentar resistência.

– Vejam quem encontrei estragando os olhos em um denso tomo latino – anunciou Hayden.

Saudações cordiais se seguiram. Elliot vivia perdido no passado histórico, mas podia ser bem charmoso, quando queria. Caroline ficou envaidecida com os elogios de como estava crescida e bonita e como logo seria assediada por vários pretendentes depois de sua apresentação à sociedade.

– As damas gostariam de conhecer a biblioteca e saber de suas preciosidades, Elliot.

– Ficaria feliz em mostrar-lhes a coleção. Há muitas raridades que são ao mesmo tempo belas e instrutivas. Há também os projetos do arquiteto Robert Smirke para o novo prédio do museu, que está em construção.

– Que ideia esplêndida – disse Hayden. – Deixo-as em suas hábeis mãos.

Henrietta não ficou nada satisfeita.

– Mas, Hayden, achei que você...

– Tenho um compromisso esta tarde e logo teria que me despedir de vocês, de qualquer forma. Agora podem apreciar a biblioteca sem pressa. Elliot é muito mais qualificado para dar essa aula do que eu. Mostre-lhes tudo. Elas têm o dia inteiro.

Ele concluiu sua fuga. Seria improvável que a tia e a prima aparecessem em casa antes do jantar. Ele deixou a carruagem esperando por elas e saiu para procurar um cabriolé de aluguel.

Ele não mentira. Realmente tinha compromissos nesta tarde. Mas não nas próximas horas. Tinha que ir a outro lugar antes de seguir para o centro financeiro e tratar de negócios.


Ela emergiu de um sonho. Mesmo ao flutuar rumo à consciência, sabia que tinha tirado uma soneca sem querer. Algo a puxara de volta à superfície. Não fora um som. Uma sensação de perigo a arrancara do sono.

Abriu os olhos. A primeira coisa que viu foram outros olhos, de um azul tão escuro que surpreendiam. Avistá-los causou um eco em sua alma: tinha acabado de vê-los no sonho que agora se apagava nas brumas das memórias mais profundas.

As visões e odores do mundo real afastaram rapidamente o sono que restava, deixando-a cara a cara com lorde Hayden Rothwell.

Ele parecia muito alto em pé diante dela. E muito sério também, com uma pequena ruga a lhe marcar o cenho. Provavelmente desaprovava que criados dormissem no sofá da biblioteca.

Ela deu um salto e se sentou.

– Sua tia já voltou?

– Deixei-a com meu irmão Elliot na biblioteca.

Ele pairava sobre ela. Essa proximidade a deixava nervosa.

Isso a incomodava. Mesmo nas ocasiões em que conversavam informalmente, mesmo quando se deixava encantar por ele, esquecendo o motivo de odiá-lo tanto, aquela inquietação incômoda persistia.

Ela não deveria ter que tolerar isso hoje.

– Dei ordens a Falkner para que ninguém entrasse neste recinto.

– Os criados nunca imaginariam que tal ordem me incluiria. Na cabeça deles, sou o patrão desta casa e dono de tudo aqui dentro.

Ele não se moveu, como se enfatizasse que seu poder sobre “tudo aqui dentro” significasse que era dono dela também.

– É assim que pretende aproveitar as folgas que me persuadiu a lhe conceder? Lendo perto da lareira?

– Este é meu dia. Sou livre para fazer o que quiser. Se esperava um relatório, deveria ter me dito.

Ela queria que Hayden fosse embora. Ele estava estragando tudo.

– Então, por algumas horas, viverá aqui como outrora e tratará esta casa como se fosse seu lar de novo. Não havia compreendido o significado real da palavra “livre” quando a usou.

As palavras atingiram o coração de Alexia, ressoando em toda a sua verdade. Ele a compreendia melhor do que ela mesma. Entendia por que essas horas tinham sido tão deliciosas.

Tinha mais um motivo para odiar aquele homem agora. Levantou seu olhar para ele.

– Por que está aqui?

– Para vê-la.

Seu olhar mudou. Viu-a da cabeça aos pés, com o velho vestido verde e o grosso xale de lã. Alexia deveria ficar constrangida por suas vestimentas simples, mas naquele momento elas pareceram convenientes e... seguras.

– Também vim para conversarmos, de forma que entenda o que preciso que faça.

– Conheço minhas funções.

– Parece que não. Esperava que acompanhasse minha prima hoje.

– Como ela estaria acompanhada do senhor e da mãe, não havia necessidade que eu fosse. Sua tia concordou.

– Nós dois sabemos por que minha tia não quis que a senhorita fosse conosco. Assim ela poderia empurrar a menina mais facilmente para cima de mim.

– As intenções de sua tia em relação ao senhor não me dizem respeito. Escolhi este dia de folga com cuidado, de forma a não interferir nas aulas de Caroline.

– Acho que escolheu este dia para me evitar.

Mais uma vez, suas palavras ressoaram dentro dela.

– Talvez sim. O senhor tem sido uma presença mais constante nesta casa do que eu esperava. Para mim é muito árduo reunir as forças necessárias para manter a elegância.

A expressão dele se fechou de uma forma que ela conhecia bem. Ela estava sendo novamente ousada demais. Mas não se incomodava. Era seu dia de folga e isso significava, antes de qualquer coisa, que poderia ficar livre dele.

– De agora em diante, quando eu acompanhar minha prima e minha tia, a senhorita irá conosco.

– Não recebo ordens suas sobre minhas obrigações. Cabe à sua tia decidir, não ao senhor.

– A senhorita estará lá – disse ele com firmeza.

Ela cerrou os dentes e olhou para o fogo, ignorando Hayden o máximo possível. Mas ele já devia estar de partida. Depois de ter decretado a nova lei, não havia motivo para permanecer ali.

Ele não foi embora, mas, pelo menos, se afastou. Infelizmente, ficou mais perto da lareira, assumindo uma posição que exigia que ela olhasse para ele. Alto, forte e moreno, ele penetrava seu campo de visão e sua mente.

– A senhorita estava sorrindo enquanto dormia – disse ele. – Estava sonhando com ele, Ben?

– Não sei.

Um par de olhos a encarou das profundezas de sua memória.

– Acho que não, mas talvez sim – concluiu ela.

– Ele era meu amigo e tenho uma dívida com ele, mas...

– Espero que nunca tenha uma dívida comigo, pois sei muito bem como faz o ressarcimento.

Ela alcançou seu intento com essa frase. A reação dele fez sua nuca formigar. No entanto, junto com a precaução vinha uma enxurrada das outras sensações que aquele homem sempre lhe provocava.

– Ele morreu há três anos – disse Hayden. – Talvez devesse esquecer essa fixação.

A raiva lhe subiu à cabeça, fazendo-a deixar a prudência de lado. Levantou-se.

– Minhas lembranças são muito caras para mim, mas não são uma fixação.

– Na noite em que Caroline fez a apresentação da Ilíada, a senhorita falou do seu amor no presente do indicativo.

– Tenho certeza de que não fiz isso.

– Fez, sim, e está perdendo seu tempo.

– O senhor está sendo impertinente. Esta conversa seria despropositada mesmo que fosse um amigo íntimo, o que certamente não é. Não toleraria essas especulações intrometidas de um parente, imagine do senhor.

Ele se aproximou dela. Ela quase deu um passo para trás, mas sua raiva ignorava a prudência.

– A senhorita não terá um futuro, a menos que o deixe ir embora.

Alexia teve que vergar o pescoço para olhar para Hayden. Ele mais uma vez tentava impor sua presença e sua vontade. Gostava de fazer isso. Alexia queria poder bater nele pelo que lhe causara. Sua pulsação se acelerou e suas têmporas pareciam explodir.

– Como ousa falar do meu futuro? O senhor, entre todos os homens? Ele já era pouco promissor o bastante há um mês. Eu não tinha fortuna nem beleza, mas, pelo menos, tinha uma casa e uma família. É ultrajante de sua parte tocar neste assunto comigo.

Ele aceitou suas acusações sem comentários. Alexia percebeu a raiva em seus olhos, que se equiparava à sua própria. Mais do que nunca era necessário ter cautela, no entanto, Alexia a jogou pelos ares.

– Existem homens que veem além da fortuna. E sua beleza é suficiente.

Considerando sua expressão intensa e séria, a voz dele soou muito calma.

– Agora o senhor está sendo cruel.

– Seus olhos são magníficos. Hipnotizantes. E refletem seu espírito indomável.

O elogio a deixou sem palavras. A raiva enfraqueceu. Em um esforço de reunir os pensamentos espalhados com o choque, ela ficou tentando desesperadamente se recompor.

Hayden deu mais um passo em direção a ela. Alexia não percebera sua aproximação antes, mas ele estava muito perto. Perto demais. Olhou dentro dos olhos dele. Era ela a hipnotizada agora.

Um toque aveludado em seu queixo. Ele a estava tocando. Um tremor pulsou sob os dedos dele e se espalhou para o colo de Alexia. Ela deveria...

– Sua pele é maravilhosa – disse ele, afagando-a de leve.

O toque suave, tão surpreendente e íntimo, deixou-a sem fôlego. O olhar dele baixou.

– E sua boca, Srta. Welbourne, sua boca é tão linda que duvido que um dia a senhorita possa entender quanto.

Ele olhou nos olhos dela outra vez e de novo a surpreendeu. Seu olhar queimava, cheio do perigo que percebera desde a primeira vez que o vira.

Com os olhos arregalados de espanto, ela notou a decisão repentina de Hayden. Foi tão absurdo que ela não acreditou em seus instintos.

A boca de lorde Hayden encontrou a de Alexia. Quente, firme, autoritário, o beijo levou a uma sequência de susto e maravilhamento. Sua cabeça era uma confusão só. Em algum lugar no meio de suas reações caóticas, a Alexia prática dava ordens sensatas sobre o que fazer, mas ela estava deslumbrada demais para obedecer.

Ela reagiu sem acanhamento. Sentindo que um calor premente percorria seu corpo todo, pulsando e fervilhando em seus seios, seu ventre e mais abaixo. A excitação se tornou física, ameaçando tomá-la por completo. Correntes de prazer a seduziam a ponto de abandonar-se.

As sensações a encantaram. Ele a abraçou e ela se rendeu. Era uma intimidade tão deliciosa que Alexia gemeu silenciosamente em agradecimento. A força que a segurava, o corpo firme pressionando o seu, o calor intenso da boca beijando seus lábios, seu pescoço, seu peito... Uma Alexia nem um pouco sensata se revelou no estímulo sensual e acolheu a torrente de paixão.

Os beijos pararam. Dedos firmes e viris seguravam seu rosto. Ela abriu os olhos e encontrou lorde Hayden observando-a. O desejo transformava a severidade dele. Mesmo sua rigidez ficava sedutora.

Ele a beijou de novo e uma batalha começou a ser travada dentro de Alexia. Ela vira muitas coisas em seus olhos. Os pensamentos que fervilhavam na mente dele. Também percebeu a impressão que dava naquele momento: era uma mulher se submetendo a um homem de quem não gostava e em quem não confiava. Uma solteirona solitária aceitando as atenções de um qualquer.

Alexia recobrou um pouco do equilíbrio perdido, mas não queria abrir mão de se sentir tão viva. Não queria perder aquele contato físico. Mesmo quando suas mãos empurraram o peito dele, tentando se soltar, grande parte dela queria se fundir nele, não importando quem ele era, nem a vergonha que adviria.

Ela viu e sentiu cada instante a seguir – o relaxamento da pegada dele, o lento desmanchar de seu abraço, o afastamento de seu toque – e seu corpo reagiu a cada perda.

Alexia se afastou rapidamente rumo à janela. Incapaz de encará-lo, olhou para fora. Tentou se aprumar para parecer normal quando saísse da biblioteca. Assim que seu bom senso retornou, uma forte sensação de humilhação a invadiu.

Esperava que lorde Hayden tivesse a bondade de sair. Ele não teve. Ela pensou que ele pelo menos iria se desculpar. Ele nada disse. Sentiu que ele a olhava. Isso só piorou as coisas. Se ele fosse embora, ela poderia maldizer sua própria fraqueza e a crueldade dele. Enquanto ficasse, ela continuaria trêmula e envergonhada, perturbada demais para se recompor.

– Isso não foi muito honroso de sua parte, lorde Hayden.

– Não.

Ele não parecia arrependido. Seu tom parecia dizer: Talvez não, mas eu faço o que quero.

– Sei por que fez isso – disse ela. – Sei o que deve estar pensando a meu respeito.

– Então a senhorita sabe muita coisa.

A voz de lorde Hayden Rothwell soou mais próxima. Alexia percebeu que ele tinha vindo em sua direção. Parara a menos de um metro dela. Para seu espanto, a excitação e o perigo começaram a enfeitiçá-la de novo. Seu coração começou a bater mais pesado e mais lento.

– O que penso da senhorita? Como não tenho certeza, uma explicação sua seria muito útil.

Um homem decente teria se desculpado e ido embora.

– Ben e eu não éramos tão íntimos. O senhor interpretou mal.

– Não estava pensando nisso, de forma alguma. Meu único pensamento foi que a senhorita precisava ser beijada.

Ela se virou determinada a colocar um fim na maneira como brincava com ela. Seu coração falhou ao vê-lo, mas ela conseguiu pôr aquela excitação de adolescente em seu devido lugar.

– Não pelo senhor. Não sou a criada de quem o lorde pode se aproveitar. Peço-lhe que se lembre disso no futuro.

Ele a olhou direto nos olhos, como sempre, só que agora seu olhar refletia aqueles beijos. Agora seria sempre assim. Dar liberdades a um homem criava uma familiaridade que minava de uma vez por todas qualquer formalidade.

– Não tentei agarrá-la, só a beijei. E não foi de forma tão ousada quanto a senhorita teria permitido.

O rosto dela estava fervendo.

– Agora o senhor está me insultando.

– Não, estou sendo honesto. Mas vou deixá-la a sós, para que finja o contrário.

Com um leve cumprimento, Hayden se dirigiu para a porta.

– Lorde Rothwell, espero que no futuro demonstre o respeito que meu emprego junto a sua prima exige.

Ele parou à porta e virou-se.

– Ainda não me decidi.

– Então permita-me ajudá-lo a se decidir. Não gostei de seu beijo e não deve fazer isso de novo.

Ele abriu a porta.

– Gostou, sim. Acha que um homem não consegue perceber a verdade?


CONTINUA

Uma sombra penetrou cedo na casa junto com o visitante inesperado. Alexia se sentiu perturbada mesmo antes de ver quem era.
Ela descia a escada carregando sua cesta de costura e parou nos degraus ao notar as vozes que conversavam baixo no hall. Mesmo sem entender direito as palavras, compreendeu o tom firme de quem faz exigências. Percebeu que a forma respeitosa como o empregado se opunha de nada servia. Falkner, o mordomo, foi chamado. Diante de um poder silencioso e determinado, as barreiras da casa cediam.
Um mau pressentimento tomou conta de Alexia, como no dia em que aquele homem havia chegado para contar à família sobre Benjamin. Já tivera essa sensação vezes suficientes para saber que não deveria ignorá-la. Más notícias mudam o mundo em um segundo. Mudam o ar. O coração humano pressente que o sofrimento está chegando com tanta certeza quanto um cavalo percebe uma tempestade que se aproxima.
Não conseguiu se mover. Ia se juntar às primas no jardim, para aproveitar o sol da tarde com sua cesta de costura, mas a ideia lhe fugiu da mente.
Um par de pernas surgiu andando na sua direção. Pernas compridas, calça preta e botas elegantes. Elas seguiram o mordomo rumo à escada. Falkner tinha no rosto a expressão de um serviçal que houvesse recebido ordens de um rei.
O tronco do visitante começou a entrar em seu campo de visão, logo seguido dos ombros e da cabeça. Como se sentisse que alguém o observava, ele olhou para cima, para o patamar onde ela se encontrava.

 

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Imediatamente Alexia entendeu a submissão de Falkner. A atitude, o rosto e o porte do visitante intimidariam até quem não conhecesse sua posição social. O cabelo escuro, desarrumado de um jeito que parecia não ter sido penteado naquela manhã, emoldurava o belo rosto de traços angulares e fortes, como se fossem entalhados. Sinais de cansaço obscureciam o azul profundo de seus olhos. Um autocontrole forçado retesava seu maxilar quadrado e sua boca bem desenhada. Lorde Hayden Rothwell, irmão do quarto marquês de Easterbrook, era a imagem do homem exausto mas determinado a cumprir sua dura tarefa. Certamente não viera em resposta aos muitos convites que Timothy havia deixado para Easterbrook em sua residência ao longo do último ano.

Ao se aproximarem, Falkner cruzou os olhos com os dela, expressando seu desânimo. O mordomo também pressentia a tempestade.

Lorde Hayden parou no mesmo patamar da escada em que ela se encontrava e fez um gesto quase imperceptível, cumprimentando-a. Já haviam sido apresentados, mas ele não lhe dirigiu a palavra. Em vez disso, ao levantar o rosto, mediu-a dos pés à cabeça. A avaliação foi tão completa, tão estranhamente interessada, que ela sentiu que corava.

A expressão daquele rosto anguloso se alterou levemente. Como se uma estátua tivesse ganhado vida, os olhos do homem se suavizaram e sua boca relaxou. De súbito, a compaixão o serenava.

Mas, em um piscar de olhos, seu porte severo voltou, expulsando a candura. Alexia, no entanto, vira o bastante para sentir o coração pesar. Reconheceu pena no olhar que ele lhe dirigira. A chegada desse homem não anunciava nada de bom.

– Está levando lorde Hayden para a sala de visitas ou para a biblioteca, Falkner?

Ela estava sendo indelicada, mas não se importava. Com o passar dos anos, aprendera que imaginar más notícias era pior do que efetivamente ouvi-las. Não tinha a menor intenção de ficar esperando, submissa e preocupada.

– Para a sala de visitas, Srta. Welbourne.

Lorde Hayden percebeu suas intenções.

– Por favor, não perturbe a Srta. Longworth com minha presença. Não se trata de uma visita social.

– Não a incomodaremos se não for seu desejo. Contudo, é possível que demore algum tempo até que o Sr. Longworth possa recebê-lo. Podemos ao menos nos encarregar de que o senhor fique à vontade.

Não esperou por aprovação. Deu meia-volta e foi subindo a escada, indicando o caminho para o segundo andar.

Ao chegar à sala de visitas, deixou a cesta de costura de lado e cuidou para que ele ficasse confortável, conforme prometera. Ainda que ele não quisesse, ela se portaria educadamente, como uma anfitriã.

– O tempo está bastante agradável para janeiro, não acha? – perguntou ela após ele ter concordado em se sentar no sofá novo, de um tecido estampado em tons azuis. – O dia até agora está maravilhoso.

As sobrancelhas dele se arquearam um pouco diante da infeliz ênfase no “até agora”.

– Sim, tem feito um calor atípico nos últimos dias – disse ele.

– Acho dias assim cruéis, por mais que os aprecie.

– Cruéis?

– Eles me fazem acreditar que a primavera está se aproximando, quando ainda teremos alguns meses de frio e umidade pela frente.

Por um segundo, uma luz travessa brilhou nos olhos dele.

– Pode não passar de uma ilusão – falou o homem –, mas prefiro me deleitar nessa calidez e me preocupar com o frio apenas quando ele chegar.

A frase pareceu quase imprópria. Ela mudou de assunto fazendo uma observação sobre os feriados recentes. Ele concordava com tudo o que ela dizia. Com muita dificuldade, ela ia levando adiante a desajeitada conversa.

A mente dele não estava ali, mas na reunião com Timothy. O ar na sala de visitas foi ficando pesado. A presença daquele homem fazia pensar que o juízo final estava próximo.

Ela não aguentava mais.

– Meu primo está doente, lorde Hayden. Talvez não consiga se recompor o bastante para recebê-lo. A conversa não pode esperar mais um dia?

– Não.

Foi tudo o que obteve dele. Essa única palavra, dita de modo simples, direto e firme.

Ele voltou sua atenção para longe da conversa, para o nada. E continuou assim, como antes, na escada. Ela se perguntou se ele a consideraria presunçosa por recebê-lo. Não era a dona da casa, apenas uma mera prima. Mas a culpa não era dela se ele estava confinado ali com uma substituta. Fora ele quem não permitira que Roselyn fosse informada de sua presença.

– Talvez, senhor, se eu levasse uma mensagem para meu primo a respeito de sua visita, ele pudesse...

A voz dela foi se dissipando quando ele a encarou como um vigário faz para silenciar uma criança tagarela na igreja.

Ela não se importou com a expressão em seus olhos, que deixava claro que ele percebera o que ela estava fazendo. Hayden Rothwell tinha a reputação de ser inteligente, ríspido e arrogante. Até o momento, ela não poderia discordar dessa avaliação.

Mas também ela não tivera muito tato ao tocar no assunto. Então tentou uma nova abordagem. Como ele era conhecido por sua sagacidade nos negócios, mudou o rumo da conversa para esse tema, tentando deixá-lo mais receptivo a outras perguntas.

– Teve alguma notícia do centro financeiro hoje, lorde Hayden? A crise nos bancos continua?

– Temo que permanecerá por algum tempo, Srta. Welbourne. É de se esperar quando as pessoas têm medo.

– O senhor tem negócios com o banco do meu primo, não é verdade? Está tudo bem por lá, espero.

– Há uma hora, quando saí do centro financeiro da cidade, o Darfield e Longworth permanecia sólido.

– Graças a Deus. Não houve uma corrida ao banco, então. Com tantas outras instituições passando por problemas, fiquei preocupada.

Uma sombra perceptível em seu olhar demonstrava que ele parecia se divertir.

– Não, não houve corrida ao banco.

Isso a aliviou. Várias das grandes instituições financeiras londrinas tinham enfrentado dificuldades no mês anterior. Os jornais estavam cheios de boatos sobre a quebra de pequenos bancos. Aonde quer que se fosse, só se falava em fracasso, ruína e falência. Ela suspeitava de que a atual doença de Timothy se devesse à preocupação com o futuro de seu banco.

– A senhorita tem dinheiro lá? – questionou, parecendo realmente interessado.

– Uma ninharia. Minha preocupação é com meus primos.

Ela conseguira atrair sua atenção com as perguntas sobre a situação financeira do banco. Até bem demais. Ele a olhou de novo, mais demoradamente dessa vez, com uma arrogância casual que demonstrava que ele se sentia nesse direito, algo que homens em posição inferior não ousariam. Aquela avaliação só seria feita por um homem que tivesse plena consciência de seu valor e que, por isso, dispensava algumas regras de etiqueta.

A atenção dele se concentrou intensamente nos olhos dela, observando-a de forma tão perspicaz que ela precisou piscar para se recompor. Lenta e deliberadamente, ele analisou o restante do corpo de Alexia. Ela enrubesceu e uma comichão desconfortável percorreu toda a sua pele. Ele a perturbou de tal maneira que lhe fez lembrar a sensação causada anos atrás pelo olhar de outro homem.

Ficou embaraçada diante da própria reação. Não se julgava alguém que se deixasse abalar por um homem bonito. Não era tola como a jovem Irene. Em silêncio, se censurou por agir como uma solteirona ávida pela atenção de um homem.

Nada na expressão dele indicava que houvesse notado o desconforto dela. Nem ela teve qualquer ilusão de que o interesse do homem fosse desse tipo. Ela sabia o que ele estava pensando. Com seu cabelo castanho e o rosto comum, ela não causava grande impressão. Sem dúvida ele também percebera como os módicos recursos financeiros afetavam sua aparência. Seu vestido não só estava fora de moda como também tinha discretos remendos. O lorde provavelmente estaria vendo cada ponto deles.

– Srta. Welbourne, creio que fomos apresentados no culto a Benjamin – disse ele. – A senhorita é a prima que veio de Yorkshire, não?

Seu orgulho foi atingido por um doloroso golpe. Ele não sabia quem ela era ao entrar naquela sala de visitas. Se não lembrava que já haviam sido apresentados, ele deveria achar incomum o fato de tê-lo recebido, assim como certamente a considerara bastante ousada em sua conversa.

O choque foi seguido pela irritação. A raiva que sentia não era dele, apesar de abrangê-lo mesmo assim, mas tinha origem na situação que a tinha tornado tão esquecível.

– Sim, nos conhecemos no culto em homenagem a Benjamin.

O nome e a lembrança fizeram ecoar uma antiga dor. Tinha sido um culto, não um funeral. O corpo de Benjamin não estava presente, mas perdido no mar. Fazia quatro anos que ele partira da Inglaterra e ela ainda sentia sua falta.

De repente, lorde Hayden não pareceu tão rígido. Uma expressão mais sociável suavizou suas feições belamente esculpidas.

– Eu o tinha como um amigo – disse ele. – Nós nos conhecemos na infância. Sua casa não fica longe das terras de Easterbrook em Oxfordshire.

Timothy sempre mencionava os laços entre Easterbrook e sua família, devidos ao fato de serem vizinhos. Não era uma ligação tão próxima a ponto de que respondessem aos convites de Timothy, é claro. No entanto, se a amizade tinha sido entre Benjamin e Hayden Rothwell, isso explicava algumas coisas, como o motivo da presença de lorde Hayden no culto.

– O senhor também lutou na Grécia, não? – perguntou ela, feliz por tocar em um assunto que o deixava menos severo e que mencionava o querido Benjamin.

– Sim, fui um dos admiradores da Grécia que aderiu à causa deles contra a Turquia. Participei da guerra no início, na mesma época que seu primo. Mas, ao contrário dele e de Byron, tive a sorte de sair vivo dessa aventura.

Ela imaginou Benjamin, sempre otimista, um homem tão cheio de vida e alegria que isso o tornava imprudente. Viu-o lutando como um herói pela liberdade do povo, tendo atrás de si a paisagem de um antigo templo nas montanhas. Ela cultivava essa imagem dele. Como lorde Hayden tinha estado lá com Benjamin, ela já não se importava tanto que ele a tivesse olhado dos pés à cabeça.

Ele estava fazendo de novo, só que agora não era seu vestido que analisava. Era seu rosto e... ela.

– Perdoe-me, Srta. Welbourne. Não quero parecer inconveniente, mas seus olhos têm uma cor incomum. Parecem violeta. É a luz aqui ou já lhe disseram isso antes?

– Não é a luz. A cor dos meus olhos é a única característica marcante que possuo.

Ele não discordou, o que ela considerou deselegante. Ele refletiu sobre a resposta dela e sobre a sua própria.

– Ele falou da senhorita com respeito e afeição. Benjamin, na Grécia. Não disse seu nome. Olhos violeta, no entanto... lembro-me dessa referência. Não percebi no culto que seus olhos tinham essa cor ou teria lhe dito, o que poderia ter-lhe trazido algum consolo naquele momento.

O coração dela se inundou com uma emoção suave e perfeita, apesar da dolorosa saudade que a provocara. Mal pôde se conter e seus olhos se umedeceram. Benjamin falara dela nos dias antes de sua morte. Fizera confidências a esse homem sentado com ela na sala de visitas. Lorde Hayden sabia de seu amor e de seus planos. Alexia tinha certeza disso.

Não ligava mais para o motivo que o trouxera ali. Sua gratidão pela pequena indicação de que Benjamin realmente gostava dela, de que pretendia se casar com ela, foi tão intensa que Alexia seria capaz de perdoá-lo por qualquer coisa naquele instante.

Passou a encará-lo de forma mais amigável. Tratava-se de um belo homem, agora que se permitia reparar. Não era totalmente rígido também. A dureza em volta da boca era culpa das características de sua família. Não se podia culpá-lo se seus ossos lhe davam uma aparência severa em vez de alegre.

– Obrigada por me contar isso. Ainda sinto muitas saudades de meu primo. Emociona-me saber que ele pensava em mim quando estava distante.

Desejou que ele repetisse as palavras exatas que Ben tinha dito. Mas, se ele pretendera fazê-lo, suas intenções foram frustradas. Timothy escolheu aquele exato momento para surgir na sala de visitas.

Timothy parecia bastante adoentado, com o rosto vermelho e os olhos apáticos. Alexia se perguntou se ele não estaria febril. Contudo, seu criado o deixara apresentável, com seu cabelo cor de areia e rosto ansioso despontando sobre casacos e colarinho que demostravam sua tendência a certa extravagância no vestir.

– Rothwell.

– Obrigado por me receber, Longworth.

Alexia se levantou de imediato, despedindo-se. Seu coração ainda estava repleto de felicidade por saber que Benjamin mencionara seus olhos aos seus amigos solteiros na Grécia. Todavia, não conseguia ignorar que um clima de más notícias iminentes impregnara a atmosfera da casa.


Segurando sua cesta, Alexia adentrou o jardim para se juntar às primas. A beleza da hera e do buxo não chegava aos pés de sua exuberância nos dias gloriosos de verão, mas o sol espantava o pior do frio e a falta de vento tornava o jardim um local hospitaleiro.

Roselyn e Irene aguardavam à mesa de ferro, com dois chapéus e sacolas com fitas e aviamentos. Alexia decidiu não mencionar o visitante. Talvez o mau pressentimento que ainda pairava em sua alegria recente fosse apenas uma impressão passageira.

– Você demorou – reclamou Irene, segurando um dos chapéus. – Ainda acho que este aqui não tem salvação e que deveria comprar um novo. Timothy disse que eu poderia.

– Nosso irmão é gastador demais – disse Roselyn. – Se não quisermos que sua apresentação à sociedade nos leve à falência, teremos que ser mais controladas.

– Não é Timothy quem fala em controlar o dinheiro, só você. Nem terei uma grande apresentação, não importa quantos chapéus eu compre – falou e um tom petulante surgiu em sua voz: – Não serei convidada para os melhores bailes. Todos os meus amigos já disseram isso.

– Pelo menos você terá uma apresentação – disse Roselyn. – Certamente é melhor ser irmã de um banqueiro importante do que de um proprietário rural empobrecido. Deveria agradecer a Deus por nossos irmãos terem investido nesse negócio. Se voltássemos para Oxfordshire, você se contentaria com um chapéu novo por ano e o escolheria com mais zelo, em vez de comprar três que não combinassem com você.

Alexia se sentou entre elas, tentando encerrar a discussão. Sendo a mais nova das irmãs Longworths, Irene não entendia a boa sorte que lhes coubera quando, oito anos antes, seu irmão Benjamin decidira investir no banco. A garota só via o que tinha perdido em termos de status, o que não contrabalançava com o luxo que ganhara.

Roselyn, agora com 25 anos, se lembrava muito bem do tempo em que haviam sido obrigados a vender as terras da família em Oxfordshire por causa de dívidas. Em função disso, ela não tivera uma apresentação formal aos homens solteiros na juventude e agora suas chances de se casar eram mínimas. Quando o recente sucesso do banco produziu uma longa fila de pretendentes, ela se mostrou descrente e exigente demais. Alexia suspeitava de que Roselyn se ressentia de que o interesse por ela só surgira após o enriquecimento da família.

– Podemos trocar a fita de cetim rosa por essa amarela – disse Alexia. – E olhe aqui, posso aparar as bordas, para deixar o arco mais perto do seu rosto.

– Vou odiar. Não gosto de chapéus reformados, mesmo que a reforma seja feita por alguém tão habilidoso como você. Fique com ele, se quiser. Pode ficar com o vestido que faz conjunto com ele também, então não terá mais que usar este de cintura alta. Vou avisar à minha criada que ele vai ficar para você, assim ela não o pedirá.

Alexia olhou fixamente para o conjunto de fitas brilhantes e coloridas que cintilava à luz do sol. Irene não era cruel por natureza, apenas jovem e, devido à mão aberta de seu irmão, mimada.

Um silêncio pesado pairou no ar. Irene pegou o chapéu, o avaliou com atenção e o jogou no chão.

– Peça desculpas – ordenou Roselyn em tom ameaçador. – Não vou pensar duas vezes antes de mandá-la morar no interior. Londres está virando sua cabeça e isso não é nada admirável. Está se esquecendo de quem é.

– Ela não está se esquecendo de nada – disse Alexia em um rompante.

Logo em seguida desejou não ter dito aquilo, mas não conseguira conter sua mágoa e seu ressentimento. Respirou fundo, com calma.

– Eu também não me esqueço de quem sou. Só você, por ser tão boa. Todos sabem que dependo desta família, que sou uma parenta pobre que deveria ficar grata por receber aquilo que minhas jovens primas jogam fora. Cada garfada que como é fruto da caridade de seu irmão.

– Oh, Alexia, eu não quis dizer isso... – falou Irene com o rosto contorcido de arrependimento.

– Não é verdade – replicou Roselyn para Alexia. – Você é uma de nós.

– É verdade. Concordei com esta situação anos atrás. Não me importo.

O fato era que se importava. Tentava ignorar, mas isso a desgastava. A humildade e a gratidão que sua situação exigia às vezes lhe escapavam, principalmente porque de início não se sentira obrigada a tê-las.

Sua mudança fora inevitável quando a propriedade da família passou para um primo de segundo grau. Não houve convite para viverem com esse herdeiro, como seu pai supusera. Assim, com 18 anos recém-completados, Alexia fora forçada a escrever para os Longworths, primos pelo lado de sua mãe, pedindo que a deixassem morar com eles. Não levara nada consigo além de vinte libras por ano e seu talento para reformar chapéus.

Benjamin, o primo mais velho, nunca permitira que ela se sentisse um problema para a família, apesar de sua chegada haver coincidido com o início de um novo empreendimento dele, que lhe deixara pouca folga nas despesas daquele primeiro ano. Com o sorriso largo e o bom humor de Benjamin, ela jamais sentia que devesse se mostrar apenas discreta e obediente. Mas depois da morte dele, a realidade de sua dependência ficara clara. Ben dava a ela os mesmos cuidados que oferecia a suas irmãs, ao passo que Timothy a enxergava com outros olhos. Agora ela não passava de conselheira nas visitas às modistas de Londres. Timothy a via como o fardo que ela era, enquanto Benjamin a vira como...

Uma memória de amor cuidadosamente preservada, um eco de emoção profunda e pungente, fez seu coração doer. Ele a vira como uma prima querida e uma cara amiga, o que no último ano tinha evoluído para algo mais. Se o que lorde Hayden dissera era verdade, então ela não se enganara. Se Ben tivesse voltado da Grécia, teria se casado com ela.

Pegou o chapéu.

– Obrigada, Irene. Vou ficar feliz em usá-lo. Pensando melhor: fita azul. Nem rosa nem amarelo vão tão bem com minha cor de cabelo e o tom de minha pele.

Roselyn cruzou os olhos com os de Alexia como que se desculpando. Alexia respondeu também com o olhar: Nasci filha de um cavalheiro, mas aqui estou, com quase 26 anos, sem dinheiro nem futuro. É assim que o mundo funciona. Não tenha pena de mim, eu lhe imploro.

– Quem está lá? – perguntou Irene, interrompendo a conversa silenciosa. – Lá em cima, na janela da sala de visitas.

Roselyn se virou a tempo de ver o cabelo escuro e os ombros largos antes que o homem se afastasse do vidro.

– Temos visita? Falkner deveria ter me chamado.

Alexia começou a retirar a fita rosa.

– Ele pediu para se encontrar com Timothy e não quis que você fosse incomodada.

– Mas Timothy está doente.

– Ele se levantou da cama mesmo assim.

Alexia sentiu a atenção de Roselyn sobre ela enquanto se ocupava do chapéu.

– Quem é? – perguntou Roselyn.

– Rothwell.

– Lorde Elliot Rothwell, o historiador? O que é que ele...

– O irmão dele, lorde Hayden Rothwell.

Os olhos de Irene se arregalaram. Ela deu um pulo e bateu palmas.

– Ele está aqui? Acho que vou desmaiar. Ele é tããão atraente.

Roselyn franziu a testa e olhou para a janela.

– Ai, meu Deus!


– Você andou bebendo, Longworth – disse Hayden. – Está sóbrio o suficiente para ouvir e se lembrar do que vou dizer?

Longworth se espalhou confortavelmente no sofá azul.

– Sóbrio até demais.

Hayden examinou Timothy Longworth. Sim, estava sóbrio o bastante, o que era bom, já que o que tinha para lhe dizer não poderia esperar. A chance de sucesso do plano diminuía a cada hora que passava.

– Passei os últimos dois dias com Darfield, enquanto você se escondia em sua cama, bebendo – disse ele. – O banco pode sobreviver à crise atual, se você seguir minhas instruções.

– Eu disse a Darfield que sobreviveria. Ele é covarde como uma velhota e teme que as reservas estejam muito baixas, mas eu lhe garanti nossa solidez.

– Só sobreviverá porque tomei ontem a decisão de manter os depósitos da família com você. Isso bastou para deter uma corrida ao banco que começou esta manhã.

– Houve uma corrida? – perguntou Longworth, tendo a decência de parecer preocupado. – Eu deveria ter estado lá, sei disso.

– É lógico que deveria.

– Mas o pior já passou, não é verdade? O perigo foi evitado, como disse.

– Por pouco. Apesar de ter vencido as dificuldades hoje, o banco está em sério perigo. Além disso, estou reavaliando minha decisão. É uma escolha difícil, porque, se eu tirar o dinheiro da família, o banco vai à falência. Se isso acontecer, você vai para a forca.

Longworth ficou quieto, uma estátua feita de indiferença.

Hayden não gostava da ideia de estar metido com Timothy Longworth. Tinha sido para ajudar um bom amigo que ele havia assegurado o crescimento do banco com títulos e dinheiro da família. Não se sentia obrigado a salvar o pescoço do irmão mais novo dele.

Longworth abriu um sorriso largo. Isso o fez parecer mais com Benjamin, apesar de mais claro, um contraste com os olhos e o cabelo escuros de Ben. Era uma semelhança que Hayden preferia não perceber naquele momento.

– É claro que deve estar falando metaforicamente quando diz “forca”. Apesar de “arruinado” não ser muito melhor do que isso, não é a morte.

– Quando digo “forca”, é isso que quero dizer. Cadafalso. Nó corrediço. Morte.

– Bancos abrem falência o tempo todo. Cinco faliram nos últimos quinze dias só em Londres e dezenas no interior. Não é crime. É o que acontece nas crises financeiras.

– Não é a falência do banco que vai levá-lo à cadeia, mas o que a contabilidade revelará depois.

– Nada me compromete, posso garantir.

A paciência de Hayden se esgotou rápido. Tinha passado a noite em claro ao lado de Darfield, tentando pôr ordem na bagunça oculta da contabilidade do banco. A fúria que ele contivera a duras penas quando descobrira o pior agora ameaçava romper as frágeis paredes que a controlavam.

– Decidi deixar o dinheiro da família com você, Longworth, mas estou preocupado com minha tia e a filha dela. Os 3% delas é tudo o que têm e elas dependem desses rendimentos. Como seu administrador, não poderia pôr isso em risco. Então, essa parte, essa pequena parte, eu decidi sacar.

Longworth ergueu a cabeça como se essa introdução não lhe dissesse nada, mas o primeiro sinal de pânico faiscou em seus olhos.

– Imagine o meu choque quando vi que os títulos da dívida pública delas tinham sido vendidos e que minha assinatura, como administrador de minha tia, tinha sido falsificada para isso.

Gotas de suor surgiram na testa de Longworth.

– Espere um instante. Está insinuando que eu falsifiquei...

– Tenho provas de que você, por várias vezes, cometeu o crime de falsificação de documentos. Você forjou assinaturas para vender títulos também. Depois continuou a pagar os rendimentos, para que ninguém suspeitasse, mas roubou dezenas de milhares de libras.

– Roubei coisa nenhuma! Estou chocado e ofendido com essa notícia. Darfield é quem deve ter feito isso.

Hayden partiu para cima de Longworth e o agarrou pelo colarinho, suspendendo-o do sofá.

– Não ouse manchar a honra daquele bom homem. Juro que, se mentir para mim agora, vou lavar as mãos e deixá-lo ir para o buraco.

Longworth levantou os braços para cobrir o rosto, protegendo-se do golpe que previa. O medo dele ao mesmo tempo deteve Hayden e lhe causou repugnância. Jogou Longworth de volta no sofá.

Timothy se curvou com o rosto nas mãos. Um silêncio pesado perpassou a sala, carregado da raiva de Hayden e do desespero palpável de Longworth.

– Você contou a alguém?

A voz de Longworth falhou de emoção.

– Só Darfield sabe e ele teme o que isso possa causar aos outros bancos, levando em consideração o clima atual no centro financeiro de Londres.

Hayden havia imaginado esse horror muitas vezes nos últimos dois dias. Os títulos – sólidas apólices que eram a base do crédito e da geração de rendimentos de mulheres leigas e seus filhos – eram supostamente seguros. Os bancos somente os mantinham pelos clientes. Não se pressupunha jamais que o dinheiro ficasse vulnerável.

Timothy Longworth rompera uma confiança sagrada ao falsificar assinaturas e se apossar desse capital. Se isso viesse a público, o pânico atual seria multiplicado por dez.

– O que lhe passou pela cabeça, Longworth?

– Fiz isso pelo banco. Estávamos vulneráveis, com as reservas baixas demais. Fiz isso para proteger os depósitos...

– Mentira! – Hayden só percebeu que havia gritado porque Longworth se sobressaltou. – Você fez isso para comprar esta casa, este casaco e as carruagens que servem para você passear com sua amante cara.

Timothy começou a chorar. Envergonhado pelo outro, Hayden se virou e olhou pela janela.

No jardim, um par de olhos violeta se voltou na sua direção, depois retornou para as fitas e a palhinha. Olhos como violetas em sombra fresca e de formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Era assim que Benjamin descrevera a Srta. Welbourne, em uma noite de embriaguez na Grécia. O tom não fora totalmente respeitoso, mas havia afeição em sua voz, então Hayden não mentira para ela. Contudo, ao ver a reação da moça – os olhos rasos d’água e como seu rosto se suavizou de forma tão doce –, desejou não ter dito nem uma palavra.

Não era um rosto belo, mas os olhos tornavam isso irrelevante. Sua cor incomum cativava primeiro, depois se notava como eles refletiam uma alma intensa e uma mente inteligente. Mostravam também experiência, como se aquela mulher compreendesse bem demais as realidades da vida. Ao se sentar sob a contemplação implacável daqueles olhos, ele se esquecera por alguns minutos da horrível missão que o trouxera àquela casa.

Uma boca que parece uma rosa, com néctar tão doce. Aparentemente, Ben tinha tocado em mais do que o coração da Srta. Welbourne. Não era nem um pouco de surpreender. Um homem cheio de vida como Benjamin Longworth conseguia mexer com muitas mulheres.

Roselyn e Irene Longworth, irmãs de Benjamin, estavam sentadas ao sol com a Srta. Welbourne. A mais velha era uma bela mulher de pele clara, cabelo louro-escuro e rosto doce. Destacava-se por sua beleza, mas era muito orgulhosa. O cabelo da mais nova era longo e claro; o corpo, esguio e o jeito, ainda infantil.

Sentiu alguém de pé ao seu lado. Longworth havia se levantado do sofá. Também observava as três moças no jardim.

– Ai, meu Deus, quando elas ficarem sabendo...

– Juro que elas nunca saberão a verdade da minha boca. Se conseguirmos salvar seu pescoço, você poderá contar quantas mentiras quiser. Um falsificador e ladrão deve ser capaz de inventar umas boas.

– Salvar, me salvar? Mas há uma forma? Obrigado, de qualquer jeito... Como quer que seja...

Hayden esperou enquanto Longworth se recompunha.

– Quanto, Longworth?

Ele deu de ombros.

– Umas vinte mil libras, talvez. Não fiz de propósito. De verdade. Na primeira vez, deveria ter sido um empréstimo de pouco valor, para cobrir uma dívida inesperada...

– Não quero saber quanto você roubou, mas quanto tem.

– Quanto eu tenho?

– Sua única chance é cobrir tudo, cada centavo. Com o que tiver e com as notas promissórias que assinar.

– Isso significaria contar a todos!

– Se eles não sofrerem prejuízos...

– Bastaria um deles dar com a língua nos dentes para eu ir...

– Para a forca. Sim. Uma fraude já seria o bastante. Você terá de confiar que o reembolso os satisfará e que eles entendam que só mantendo-se em silêncio poderão reaver o dinheiro. Posso falar por você e isso talvez ajude.

– Pagar a todos? Vou ficar falido. Totalmente falido!

– Mas vai escapar vivo.

Longworth agarrou o peitoril da janela para controlar a tontura. Olhou para fora de novo e seus olhos se umedeceram.

– O que vou dizer a elas? E Alexia... Se ficarmos reduzidos à renda dos aluguéis rurais, se eu tiver que pagar as dívidas tirando recursos deles também, não poderei mais sustentá-la.

Diante de mais um pensamento terrível, seu rosto desabou. Hayden imaginou o motivo:

– Você roubou os míseros recursos dela também? Não verifiquei as contas menores.

Longworth enrubesceu.

– Você não passa de um canalha, Longworth. Ajoelhe-se e agradeça a Deus por eu ter uma dívida de gratidão e honra com seu irmão.

Timothy não estava mais ouvindo. Seus olhos se anuviaram ao pensar no futuro.

– Irene ia ser apresentada à sociedade e...

Hayden não deu ouvidos aos lamentos do outro. Imaginara uma forma de salvar a vida de Longworth e evitar revelações que deixariam o atual pânico fora de controle. Mas não poderia poupar Longworth da ruína que essa solução geraria.

Passara a noite em claro fazendo cálculos e pensando nas consequências morais do caso. De repente uma profunda exaustão tomou conta dele.

– Sente-se – ordenou ele ao dono da casa. – Vou lhe dizer a quantia necessária e definiremos como você irá devolvê-la.


CAPÍTULO 2

Falido.

A palavra pairou no ar. A sala ficou em silêncio.

O sangue de Alexia congelou nas veias. Tim parecia muito doente agora. Ele se recolhera a seu quarto após a saída de lorde Hayden, mas se levantara da cama novamente de noite. Mandara chamá-la e a suas irmãs na biblioteca e lhes informara do desastre.

– Mas como, Tim? – perguntou Roselyn. – Um homem não vai disto – ela fez um gesto mostrando a exuberância da casa ao redor – à pobreza em um dia.

Os olhos dele se estreitaram e a amargura endureceu sua voz.

– Isso acontece se lorde Hayden decidir que sim.

– Lorde Hayden? O que ele tem a ver com isso? – perguntou Alexia.

Timothy olhou fixo para o chão. Parecia sem forças.

– Ele retirou o dinheiro de sua família do banco. Nossas reservas não foram suficientes para compensar a retirada e tive que penhorar tudo o que tenho. Darfield também terá de fazer isso, mas ele possui mais dinheiro do que eu. Ele pagou parte das minhas obrigações e, em troca, ficou com a minha cota no banco. Ainda assim, não foi suficiente.

Alexia controlou a fúria que fervia dentro dela. Que diferença faria para Rothwell onde todo aquele dinheiro ficava? Ele tinha que ter percebido o que isso causaria a Timothy, a todos eles. Havia entrado naquela casa ciente de que destruiria o futuro dos Longworths.

– Vamos dar um jeito – disse Roselyn, com firmeza. – Sabemos como levar uma vida mais simples. Vamos dispensar alguns empregados e comeremos carne somente duas vezes por semana. Vamos...

– Você não ouviu? – rosnou Timothy. – Eu disse que estou falido. Não haverá empregados, nem carne alguma. Não tenho nada. Não temos nada.

Roselyn o encarou, boquiaberta. Irene, que ouvia com expressão confusa, teve um sobressalto como se alguém a tivesse esbofeteado.

– Isso quer dizer que não vou ser apresentada à sociedade?

Timothy deu uma risada cruel.

– Querida, você não pode ser apresentada à sociedade londrina se não estiver em Londres. O canalha está tomando esta casa. Ela pertence a Rothwell agora. Vamos voltar para o pouco que temos em Oxfordshire e morrer à mingua por lá.

Irene começou a chorar. Roselyn ficou muda com o impacto da notícia. A gargalhada de Timothy foi se transformando em algo entre um cacarejo e um choramingo.

Alexia sentiu o medo se apoderar dela. Timothy não olhara para ela uma vez sequer desde que entrara na sala. E evitava seu olhar agora. Um pânico silencioso tamborilava em seu peito, querendo se avolumar.

Roselyn recobrou a voz:

– Timothy, podemos viver no campo de novo. Ainda temos a casa e algumas terras. Não será ruim. Nunca passamos fome.

– Será pior do que antes, Rose. Terei dívidas a pagar. Boa parte dos aluguéis irá para isso.

O tamborilar acelerou, espalhando-se por suas veias. Sentia calor e frio alternadamente. O destino que temia desde a morte do pai finalmente a encontrara. Era com dificuldade que mantinha a compostura.

Ela não deixaria Timothy pronunciar sua sentença com todas as palavras. Seria injusto e uma péssima retribuição à família que lhe tinha dado um lar.

Levantou-se.

– Se sua situação vai mudar de forma drástica, não precisarão do fardo de ter mais uma boca para alimentar. Tenho algum dinheiro guardado que poderá me manter até encontrar um emprego. Vou me recolher ao meu quarto para permitir que conversem abertamente sobre seus planos.

Os olhos de Roselyn se umedeceram.

– Não seja boba, Alexia. Seu lugar é conosco.

– Não estou sendo boba, estou sendo prática. Não vou forçar Timothy a dizer que devo ir embora.

– Diga-lhe que não tem que ir, Tim. Ela é tão sensata que vai ser uma ajuda, não um fardo. Ele não quer que você nos deixe, Alexia.

Timothy não respondeu. Nem levantou os olhos.

– Timothy – chamou Roselyn, em tom de repreensão.

– Gastarei tudo o que tenho para manter vocês duas, Rose – disse ele, finalmente se voltando para Alexia. – Sinto muito.

Alexia forçou um sorriso trêmulo e saiu da biblioteca. Fechou a porta atrás de si, deixando Irene e Roselyn aos prantos e Timothy envergonhado. Subiu as escadas correndo e maldizendo, a cada degrau, o homem responsável por aquela tragédia.

Hayden Rothwell era um canalha. Um monstro. Era um daqueles homens que viviam no luxo e destruíam a vida dos outros em um piscar de olhos. Ele não precisava ter retirado todo o dinheiro de uma só vez. Era tão duro e frio como parecia. Não tinha compaixão: esmagaria pessoas sob as botas, se desejasse. Ela o odiava.

Jogou-se na cama e enterrou o rosto no travesseiro de penas, onde destilou todo o seu veneno em Rothwell enquanto chorava. Estava tomada pelo pânico.

Falida. Não podia crer que estava passando por isso de novo. Seu pai falira dois anos antes de morrer. Muito provavelmente tinha sido esta a razão pela qual não fora acolhida por seu herdeiro. O destino agora lhe pregava uma peça estúpida, fazendo-a reviver toda a preocupação e o medo de antes.

A duras penas, foi tentando novamente se centrar. Já havia se perguntado algumas vezes o que faria caso se encontrasse naquela situação. Sempre soubera que isso poderia acontecer. Desesperada, procurou se lembrar dos planos feitos naquelas noites terríveis quando, no escuro, a precariedade da situação em que vivia se avultava sobre ela.

Poderia virar preceptora, se conseguisse boas referências. Tinha linhagem e educação para isso, ainda que tal função oferecesse uma vida horrível.

Também poderia procurar trabalho em uma chapelaria. Tinha jeito para fazer chapéus e gostava dessa atividade. Só que trabalhar em uma loja desse tipo seria a pior das humilhações. Não nascera para essas coisas, mesmo que essa ideia tivesse mais apelo do que ficar presa dia e noite cuidando da filha de outra mulher.

Também poderia se casar, apesar de no momento não ter pretendentes. Ela nem sequer pensara nisso depois de Benjamin. Seu coração era dele e sempre seria. A menina escondida em sua alma encarava com pesar a ideia de casar-se em troca de segurança. Depois de ter conhecido um grande amor, um casamento assim seria horrível. Contudo, sem beleza nem fortuna para atrair um marido, aquele era um assunto com que muito provavelmente não teria de lidar.

Enumerar opções lhe deu um pouco de confiança, ainda que baseada em cenários que não a agradassem tanto. Contava com vinte libras por ano e não iria morrer de fome. Poderia construir seu futuro se deixasse de lado o orgulho. Na verdade, tinha bastante experiência nesse campo.

Olhou em volta do quarto, para os móveis, à luz difusa da lamparina. Não era um cômodo grande. Nem tinha os tecidos luxuosos dos quartos de Irene e Roselyn ou as cadeiras e camas novas que elas haviam comprado no ano anterior. Mas era o seu espaço e tinha sido seu lar desde que Tim se mudara com elas de Cheapside, logo depois de Ben zarpar para a Grécia, fazia quatro anos.

Fechou os olhos e se perguntou quanto tempo demoraria até que Hayden Rothwell a jogasse no olho da rua.


Três dias depois, Alexia estava sentada na sala de café da manhã, lendo os anúncios no Times. A casa reverberava de silêncio. Não que os empregados antes fizessem barulho, mas sua ausência era perceptível. Somente Falkner permanecia, enquanto procurava outro emprego apropriado. Ela podia ouvi-lo na sala de jantar, embalando as porcelanas que Timothy tinha vendido na véspera.

Muito pouco dos luxos adquiridos nos últimos anos voltariam para Oxford-shire com suas primas. Rothwell ficaria com os móveis. Tudo o mais seria vendido. Naquele exato momento, os homens estavam na cocheira negociando o preço das carruagens.

Roselyn entrou no cômodo e se sentou ao lado de Alexia, que serviu café para as duas.

– O que está lendo? – quis saber Roselyn.

– Quartos para alugar.

– Piccadilly não seria ruim, se não fosse tão longe.

– Acho que não terei como evitar ficar longe, Rose.

Rose tinha a aparência de uma mulher que havia chorado um mês sem parar. As olheiras e o vermelho dos olhos eram evidentes.

– Deveria ter me casado com um daqueles homens interessados no meu dinheiro. Teria sido bem feito para eles meu irmão ficar em tantas dificuldades a ponto de precisar vender as vasilhas de metal. Até as vasilhas, meu Deus!

Alexia não conteve uma risada. Roselyn riu também. As duas riram até lágrimas rolarem pelas faces.

– Oh, céus, como é bom rir – disse Rose, sem fôlego. – É tudo tão dramático que chega a ser ridículo. Fico esperando Tim vender minha camisola enquanto durmo.

– Espero que ele não esteja acompanhado por um oficial de justiça nesse dia. Daria ainda mais motivo de fofoca para toda a cidade.

Roselyn riu de novo, com ar triste.

– Vou sentir sua falta, Alexia. O que vai fazer?

– Pedi uma carta de referência à Sra. Harper, já que ela é, das suas amigas, a que me conhece melhor. Procurei uma agência de empregos e me candidatei a vagas de preceptora. Espero que seja aqui na cidade mesmo.

– Você tem que nos mandar notícias de onde estiver, sempre. E prometer que vai nos visitar.

– É claro.

Os olhos de Rose se encheram de lágrimas. Ela abraçou Alexia vigorosamente. Enquanto aproveitava o carinho que logo não mais teria, Alexia viu Falkner chegar à soleira da porta.

– O que foi? – perguntou.

Falkner olhou para ela com o mesmo olhar de três dias atrás. O olhar que dizia que uma tempestade se aproximava.

– Ele está aqui. Lorde Hayden Rothwell. Pediu para ver a casa.

Do jeito que Falkner torceu o nariz, Alexia suspeitou que Rothwell não tivesse “pedido” coisa alguma.

– Não o receberei – disse Rose. – Mande-o embora.

– Ele não perguntou pela senhorita, mas por seu irmão, que saiu. Então pediu que eu lhe mostrasse onde esperar.

– Diga-lhe que não. Eu o proíbo. Logo a casa será toda dele – gemeu Roselyn.

O prazo para entrega da casa não fora determinado, o que era motivo de preocupação para Alexia.

– Você não está sendo sensata, Rose. Não vale a pena enfurecer o homem neste momento. Nem é obrigação de Falkner nos servir. Vou atender o visitante para lhe poupar o trabalho.


Lorde Hayden esperava no hall, rodeado por paredes que já se encontravam despidas de quadros. Quando Alexia entrou, ele estava inclinado, examinando uma mesa de canto marchetada, sem dúvida calculando seu valor.

Ela não esperou por sua atenção nem por suas saudações.

– Senhor, meu primo Timothy não está na propriedade. Creio que esteja cuidando da venda dos cavalos. A Srta. Longworth está indisposta. Posso ajudar no assunto que o trouxe aqui?

Ele se aprumou e voltou seu olhar para ela. A contragosto, ela admitiu que ele estava maravilhoso naquele dia, vestido com roupas de montaria, um paletó azul e colete de seda estampado em tons de cinza. Seu porte, expressão e vestimenta anunciavam ao mundo que sabia que era bonito, inteligente e podre de rico. Era de muito mau gosto ir assim a uma casa que estava sendo destituída de seus bens e de sua dignidade.

– Esperava que um criado viesse...

– Não há mais criados. A família não pode mais mantê-los. Falkner vai ficar até conseguir outro emprego, mas não está mais trabalhando. Creio que o senhor não tem alternativa a não ser falar comigo.

Ouviu sua própria voz soar ríspida e pouco amigável. As pálpebras dele baixaram o bastante para indicar que percebia a falta de respeito.

– Acredito que não tenhamos mesmo alternativa, Srta. Welbourne. Meu objetivo ao vir sem ser convidado é muito simples. Tenho uma tia que está interessada nesta casa. Ela me pediu para verificar se seria apropriada para ela e sua filha nesta temporada.

– O senhor quer conhecer a casa para poder descrevê-la a prováveis moradores?

– Se a Srta. Longworth me fizer essa gentileza, sim.

– O coração dela é cheio de gentileza na maioria das vezes. Contudo, ela está ocupada demais para atender seu pedido. Ser levada à falência e ser destituída de seus bens é algo que deixa qualquer mulher sem tempo algum.

O queixo dele se retraiu o suficiente para dar-lhe uma pequena satisfação. A vitória foi breve. Ele pousou o chapéu na mesa de marchetaria.

– Então, terei que achar o caminho sozinho. Quando disse que minha tia estava interessada, não me referi a uma mera curiosidade, mas a um interesse patrimonial. Esta casa já pertence a minha tia, Srta. Welbourne. Timothy Longworth assinou os documentos ontem. Se fiz um pedido, foi apenas para ser cortês com a família dele.

A notícia a deixou estupefata. A casa já tinha sido vendida. Que rapidez! Começou a calcular o que isso significaria para os planos dela e para Roselyn e Irene.

– Peço desculpas, senhor. A venda da casa não havia sido comunicada nem à Srta. Longworth nem a mim. Vou lhe mostrar a casa, se estiver bem assim.

Ele assentiu e ela começou a árdua tarefa. Mostrou-lhe a sala de jantar, onde seus olhos de lince não perderam nenhum detalhe. Ela o notou medindo espaços mentalmente e o ouviu contando cadeiras.

O resto do primeiro andar foi rápido. Ele não abriu gavetas nem armários na despensa. Alexia imaginou que soubesse que já estava tudo vazio.

– A sala de café da manhã é logo atrás desta porta – disse ela, ao voltarem para o corredor. – Minha prima Roselyn está lá. Peço que aceite minha descrição em vez de ir conferir por si mesmo. Temo que ela fique muito aborrecida ao vê-lo.

– Por que ela ficaria aborrecida com a minha presença?

– Timothy nos contou tudo. Roselyn sabe que o senhor levou o banco à beira da falência e nos deixou nesta situação.

Um sorriso implacável lhe surgiu no canto da boca. A crueldade do homem era mesmo ímpar. Ele percebeu o olhar dela fitando-o. Não parecia constrangido por ela ter visto esse sorriso cínico.

– Srta. Welbourne, não preciso ver a sala de café da manhã. Sinto muito por sua prima, mas as questões de altas finanças estão em um plano diferente da vida cotidiana. As explicações de Timothy Longworth foram simplificadas, com certeza porque ele as estava dando a damas.

– Elas podem ter sido simples, mas foram claras, assim como suas consequências. Há uma semana, meus primos viviam no luxo em Londres e em breve viverão na pobreza no interior. Timothy está falido, teve de vender sua parte na sociedade do banco e, ainda assim, continuará arcando com dívidas. Algum desses fatos está incorreto, senhor?

– Não, estão todos corretos – respondeu ele, balançando a cabeça.

Ela não podia crer em sua indiferença. O homem poderia pelo menos parecer um pouco constrangido. Em vez disso, agia como se isso fosse normal.

– Podemos subir? – perguntou ele.

Ela mostrou o caminho para o andar de cima, entrando na biblioteca. Ele não se apressou ao passar os olhos pelos livros nas estantes, enquanto ela aguardava.

– A senhorita vai com eles para Oxfordshire? – perguntou ele.

– Não me permitiria ser um fardo para essa família agora.

A atenção dele permaneceu nos livros.

– O que vai fazer?

– Tenho tudo acertado para meu futuro. Fiz planos e listei minhas expectativas e oportunidades.

Ele recolocou um livro na estante e rapidamente passou os olhos pelo tapete, a escrivaninha e os sofás, andando na direção dela em seguida.

– Quais oportunidades está vislumbrando?

Ela o conduziu aos outros cômodos no andar.

– Minha primeira opção é ser preceptora na cidade. A segunda é ser preceptora em outro lugar.

– Muito sensato.

– A sensatez é algo bastante conveniente diante da ameaça da fome, concorda?

Os cômodos do terceiro andar não eram tão espaçosos quanto os de uso comum. O corredor mais estreito os aproximava. Ao mostrar-lhe os quartos, ela notava a presença forte e masculina ao seu lado. Parecia muito inadequado esse estranho estar lá.

– E se não achar emprego como preceptora?

A pergunta casual veio algum tempo após sua última troca de palavras.

– A outra opção é me tornar chapeleira.

– Uma fabricante de chapéus?

– Tenho muito talento nessa área. Daqui a alguns anos, se vir uma mulher pobre usando um belo chapéu habilmente fabricado apenas com uma cesta velha, penas de pardal e maçãs secas, esta serei eu.

A curiosidade dele fizera com que Alexia deixasse de esconder sua irritação. Parecia inverossímil que o homem que causara tanto sofrimento quisesse saber detalhes. Ela escancarou a porta do quarto de Irene.

– A quarta opção é me tornar cortesã. Há quem diga que uma mulher deveria preferir morrer de fome a isso, mas suspeito que essas pessoas não tenham de fato se visto diante dessa necessidade, como talvez aconteça comigo.

Esse comentário lhe valeu um olhar duro. Além do desconforto por ela estar ridicularizando o fato de ele não sentir qualquer culpa, Alexia também percebeu a ousadia de um olhar masculino que avaliava suas possibilidades na quarta opção da lista.

Alexia enrubesceu. O calor percorreu sua pele, avivando-a e a atingindo bem no íntimo, afetando-a de uma forma chocante. Teve uma incontrolável e traiçoeira consciência dos muitos recantos do próprio corpo. A sensação a estarreceu ao mesmo tempo que a estimulou deliciosamente.

Ela precisou dar um passo atrás, para fora do quarto e para longe das vistas dele, de modo a escapar do rápido aumento na pulsação que a proximidade de Hayden lhe causava. Nos poucos segundos antes de ele voltar para junto dela, Alexia fez um esforço para se lembrar da raiva, a fim de aplacar seu chocante arroubo de sensualidade.

Ela continuou a lhe dar alfinetadas, de forma que ele soubesse que ela não se importava com o que pensava. Queria que aquele homem percebesse o sofrimento que sua ambição tinha causado.

– Minha quinta opção é virar ladra. Refleti muito sobre o que deveria vir antes, a libertinagem ou o roubo. Decidi que, apesar de a primeira opção ser um trabalho mais árduo, é uma forma de comércio honesto, enquanto ser ladra é pura maldade. – Ela parou por um momento, mas não resistiu a acrescentar: – Não importa como seja feito ou se é considerado legal ou não.

Ele parou e invadiu seu caminho, forçando-a a se deter também.

– A senhorita fala de maneira muito franca.

A presença dele se impunha à sua frente no corredor estreito. O olhar demandou sua total atenção. Certo poder se fez sentir, um poder masculino, dominador e desafiador. A intuição dela dizia para se afastar. A excitação ronronava baixa e profundamente. Ela ignorou ambas as reações e se manteve firme.

– Foi o senhor que me perguntou sobre meu futuro, apesar de não lhe fazer a menor diferença o que acontecerá com qualquer um de nós.

Sua raiva vinha em um crescendo desde que tinham deixado o hall. O frio autocontrole daquele homem durante a volta pela casa só tinha posto mais lenha na fogueira.

Ela o olhou de frente.

– O senhor destruiu a vida de pessoas boas e decentes. Não precisava ter retirado todos os seus negócios do banco de Timothy, arruinando-o deliberadamente. Não sei como consegue colocar a cabeça no travesseiro à noite e dormir.

Seus olhos azul-escuros ficaram negros nas luzes opacas do corredor. Seu queixo se enrijeceu. Ele estava com raiva. Que bom, ela também.

– Durmo muito bem, obrigada. E, sem o devido conhecimento sobre as questões financeiras, sua visão se torna bastante limitada. Sinto muito pela Srta. Longworth e sua irmã, e pela senhorita também, mas não vou me desculpar por ter cumprido meu dever como julguei adequado.

O tom dele a deixou embasbacada. Tranquilo, porém firme, ele punha um ponto final na discussão. Ela recuou, mas não por essa razão: estava perdendo o ar. Esse homem não se importava com os outros. Se se importasse, não estaria fazendo esse reconhecimento da casa.

Ela o guiou ao andar de cima, onde ficavam os quartos mais altos, mas ele parou do lado de fora de uma porta, perto do patamar da escada.

– O que é este cômodo?

– É um quartinho, sem utilidade específica. No passado, foi o quarto de vestir do quarto ao lado. Bem, lá em cima...

Ele girou a maçaneta e abriu a porta. Entrou no pequeno cômodo e observou cada detalhe. Os dois livros ao lado da cama, o armário pequeno quase vazio, as cartas ordenadas sobre a escrivaninha, tudo chamou sua atenção. Pegou um chapéu que estava pousado sobre uma cadeira perto da janela.

– É o seu quarto – falou.

Era verdade. E a presença dele ali, investigando seus pertences, criava uma intimidade que a deixou desconfortável. Ver aquele homem tocando seus objetos pessoais era quase como tê-lo tocando-a. Essa proximidade física tornava sua excitação ainda mais chocante e embaraçosa.

– Por enquanto, é o meu quarto.

Ele ignorou a farpa. Examinou o chapéu, girando-o de um lado para outro. Era o que ela havia começado a refazer no jardim três dias antes. Ninguém o reconheceria. Tinha refeito a borda, forrando-o de musselina creme finamente trabalhada, e enfeitado-o com fitas azuis. Ainda não decidira se iria acrescentar algum enfeite de musselina perto da copa.

– A senhorita tem talento.

– Como eu disse, ser chapeleira é apenas a opção número três. Se uma dama trabalhar em uma loja desse tipo, não pode mais se dizer uma dama, não é verdade?

Ele pousou o chapéu com cuidado.

– Não, não pode. No entanto, é algo mais respeitável do que ser cortesã ou ladra, embora bem menos lucrativo. Sua lista está na ordem correta se seu objetivo for a respeitabilidade.

Ela ainda o odiava no momento em que terminaram a visita. Contudo, já não poderia dizer que ele lhe era um completo estranho. Entrar nos quartos juntos, vendo os artefatos da vida cotidiana da família e com tanta proximidade – excessiva até – nos andares mais altos tinha criado uma familiaridade inoportuna.

Sua suscetibilidade à presença dele a deixara em desvantagem. Ela queria acreditar que era superior a essas reações, principalmente com esse homem, que certamente acreditava agradar a todas as mulheres. Ressentia-se de ter passado uma hora inteira na sua companhia.

Voltaram para o hall, onde ele pegou seu chapéu. Ela retomou o motivo de ter concordado em recebê-lo:

– Lorde Hayden, Timothy está com a cabeça nas nuvens. Ele não está contando todos os detalhes a suas irmãs. Se não for muita ousadia...

– A senhorita já foi bastante ousada sem pedir permissão, Srta. Welbourne. A essa altura, não é preciso fazer cerimônia.

Ela realmente tinha sido ousada e tagarela. Permitira que a raiva vencesse o bom senso. Na verdade, não tinha sido muito prática na situação em que mais necessitara dessa virtude.

– Qual é a sua pergunta?

– Já informou a Timothy quando os Longworths têm que esvaziar a casa?

– Ainda não. – Ele lhe dirigiu um olhar desconcertantemente franco. – Quando a senhorita acha que seria razoável?

– Nunca.

– Isso não é razoável.

– Quinze dias. Por favor, dê-lhes mais duas semanas.

– Que seja. Os Longworths podem ficar até lá. – Ele estreitou os olhos em sua direção. – Quanto à senhorita...

Ai, meu Deus. Ela havia despertado o demônio com sua língua grande. Ele ia pô-la no olho da rua imediatamente.

– Minha tia tem paixão por chapéus.

Ela piscou.

– Chapéus? Sua tia?

– Ela ama chapéus. E paga preços exorbitantes por eles. Sei disso porque sou administrador de sua fortuna e pago suas contas.

Era um assunto estranho para se falar na saída. Ele pareceu um pouco tolo.

– Bem, chapéus costumam ser caros – falou Alexia.

– Os que ela compra também são bem feios.

Ela sorriu e assentiu, desejando que partisse logo. Queria contar a Roselyn que teriam mais duas semanas de prazo.

– Preceptora, a senhorita disse. Sua primeira opção. Tem estudos para ser uma preceptora qualificada?

– Estava ajudando a preparar minha prima mais nova para ser apresentada à sociedade. Possuo as habilidades e os talentos necessários.

– Música? A senhorita toca algum instrumento?

– Sou adequada para ser preceptora de moças. Minha própria educação foi requintada. Nem sempre fui como me vê agora.

– Isso é óbvio. Se tivesse sido sempre como hoje, não teria coragem de falar comigo da forma rude e direta como fez.

O rosto dela enrubesceu intensamente. Não porque Alexia fora rude e Hayden notara, mas porque a atenção que ele lhe estava dispensando começava a acender nela aquela excitação estúpida de novo.

– Srta. Welbourne, minha tia, Lady Wallingford, vai tomar posse desta casa porque vai apresentar sua filha à sociedade em breve. Minha prima Caroline precisa de uma preceptora e minha tia, de uma dama de companhia. Tia Henrietta é... bem... Digamos que seria aconselhável ter uma influência sensata na casa.

– Uma influência que a impedisse de comprar chapéus feios?

– Exatamente. Como a situação combina com sua primeira opção na lista, estaria interessada no emprego? Como foi tão sincera comigo, creio que também diria à minha tia quando um chapéu for ridículo.

Ele estava pedindo que ela ficasse naquela casa em que tinha sido um membro da família, só que agora como criada. Ele estava pedindo que servisse ao homem que arruinara os Longworths e destruíra sua frágil sensação de segurança. Ele estava pedindo que ela ajudasse sua jovem prima a ser apresentada à sociedade, uma oportunidade que fora negada a Irene.

É claro que lorde Hayden não enxergava nada disso. Ela era apenas uma solução conveniente para compor o quadro de empregados de sua tia. Tinha uma combinação singular de habilidades que a tornava perfeita para o cargo. Mesmo que houvesse notado como isso era ultrajante, aquele homem não se importaria.

Ela quis recusar a proposta imediatamente. Esteve prestes a dizer algo muito mais direto e rude do que havia feito até o momento.

Mordeu a língua. Não poderia se dar ao luxo de dizer impropérios agora.

– Vou pensar na sua oferta, senhor.


CAPÍTULO 3

– Ouvi um boato sobre você ontem à noite no White’s.

A declaração inesperada ecoou pelo salão e fez com que Hayden errasse a bola que vinha em direção a ele.

– Sua função é marcar os pontos, Suttonly, não ajudar Chalgrove me distraindo.

– Marcar os pontos é um tédio. Se eu o distrair, você perde e então é a minha vez de jogar.

Hayden sabia que o egoísmo era um traço da personalidade do visconde Suttonly desde que haviam ficado amigos, na universidade. Mas ele não era só isso e Hayden aceitava o lado ruim que vinha junto com o bom. O mesmo homem esguio e vaidoso que estava languidamente posicionado no centro da quadra, interferindo nos saques e nas jogadas, era capaz de demonstrar grande generosidade quando queria.

Chalgrove se adiantou para ficar em posição de saque.

– Você sabia que não teríamos um quarto jogador hoje e que precisaríamos nos revezar.

– Você quer dizer que Rothwell e eu teríamos que nos revezar. Você sempre ganha, então sempre continua jogando.

Suttonly levantou seu rosto longo e de feições finas e tentou em vão olhar Chalgrove de cima, mas o outro era um palmo maior do que ele. O cabelo dourado de Suttonly tinha sofrido a tortura dos ferros quentes naquela manhã. Os cachos perfeitamente desalinhados não iam sobreviver ao jogo.

– É ele quem tem permissão para usar esta quadra – lembrou Hayden.

Se não fosse pela paixão de Chalgrove pelo tênis e por sua vitória inesperada em uma jogatina contra o rei três anos antes, eles nem sequer estariam ali. Em pagamento por aquela dívida de jogo, Chalgrove tinha pedido permissão para usar a antiga quadra de tênis de Hampton Court quando quisesse. Como o esporte saíra de moda e ninguém mais queria ir lá, o rei teve grande satisfação em conceder esse favor real.

Suttonly foi expressar seu tédio nas linhas laterais. Chalgrove assumiu a ofensiva. Hayden percebeu que perderia em breve.

O conde de Chalgrove parecia muito robusto e moreno quando comparado à brandura loura de Suttonly. Mas, durante o jogo, seu corpo musculoso se mostrava surpreendentemente ágil. Atleta nato, seus saques poderosos combinavam bem com a habilidade para mandar a bola de couro na direção dos telheiros e outros pontos difíceis para os adversários.

Hayden observou a bola ricochetear acima da cabeça do outro e cair.

– Bola fora, Rothwell – anunciou Suttonly.

O visconde deu alguns passos à frente e bateu de leve com sua raquete na cabeça de Hayden.

Hayden assumiu a posição de marcador. Apesar de uma parte de sua mente se manter na contagem de pontos, o restante dela se voltou para os negócios com Timothy Longworth. Sua família estaria partindo de Londres em breve, mas não tinha chegado nenhuma carta da Srta. Welbourne falando do emprego que ele lhe oferecera. Não gostava de pensar no preço de seu orgulho. Ela acabaria morando em algum apartamentinho de uma rua violenta, levando uma vida miserável.

Sua falta de senso prático significava que agora ele teria que procurar outra preceptora e dama de companhia. Tia Henrietta chegaria a Londres em poucos dias. Não podia mais esperar a resposta da Srta. Welbourne.

Chalgrove precisou de menos tempo para despachar Suttonly. Depois eles se retiraram para as salas do clube acima da quadra. Chalgrove tinha trazido criados e bebidas geladas. Enquanto lanchavam, Suttonly tocou de novo no assunto da fofoca que corria solta pela cidade.

– Andam dizendo que...

– Não estou interessado – disse Hayden.

– Mas eu estou – disse Chalgrove. – É raro ouvir uma boa fofoca sobre você, Rothwell. Normalmente é sobre quanto dinheiro ganhou nesse ou naquele investimento. Falando nisso, não há nada que queira contar a dois velhos colegas de escola? Ou está esperando que a tempestade passe para lançar o próximo navio?

Suttonly não gostava de ter a atenção roubada de si.

– Andam dizendo – repetiu ele com firmeza – que você arruinou Timothy Longworth.

Isso impressionou até Chalgrove.

– É mesmo? Não sabia que ele estava arruinado, muito menos que você era o responsável.

– Se você viesse à cidade, tomaria ciência do que acontece no mundo – repreendeu-o Suttonly com indolente superioridade antes de se virar novamente para Rothwell e dizer: – O que aconteceu com Longworth? Ele está vendendo tudo tão rápido que o pessoal anda brincando que ele é até capaz de fazer liquidação das irmãs. Você era muito amigo do irmão dele. Ele deve tê-lo enraivecido muito para que decidisse arruiná-lo.

– Eu não o arruinei. A mudança na sorte do homem é problema dele. Quanto aos meus planos, há um acordo sendo firmado em relação a um empreendimento na América do Sul. É muito arriscado, mas vou enviar os documentos a vocês dois. Suponho que guardarão o sigilo de sempre.

– Pode contar comigo – disse Suttonly, fisgando um pedaço de presunto do prato de frios. – Redija os papéis e me avise quando estiverem prontos para a assinatura.

– Nas Américas? Isso não vai ser igual ao esquema de McGregor anos atrás, não é? – implicou Chalgrove. – Você não vai emitir títulos de um país que não existe, como ele fez, não é?

– Se ele fizesse isso, provavelmente encontraria um jeito de compensar os clientes da forma mais sábia possível – disse Suttonly. – Por meu pai morto e os filhos que ainda não tenho, Rothwell, ainda bem que tive a esperteza de ficar seu amigo nos tempos de escola.

– O esquema de McGregor estava fadado ao fracasso. Ele não vai poder fazer novas vítimas de suas fraudes para sempre a fim de pagar as vítimas anteriores. Um dia o castelo de cartas vai desmoronar – disse Hayden.

Hayden Rothwell gostaria que todos – Suttonly, em especial – aprendessem a ser mais desconfiados em relação a investimentos. Se Hayden fosse McGregor, Suttonly teria empenhado sua fortuna para comprar títulos do país fictício de Poyais, nas Américas. Como todos os outros, ele nem teria se dado o trabalho de consultar primeiro um mapa para achar a localização do país.

– Suspeito que haja alguma falcatrua no cerne da crise atual – disse Chalgrove.

Suas sobrancelhas franzidas preocuparam Hayden. Chalgrove não vinha mais para a cidade, porque no ano anterior herdara um imóvel no campo que precisava desesperadamente de cuidados.

– Você perdeu muito dinheiro? – questionou Hayden.

– Não muito, mas o bastante. Tinha uns negócios pequenos com um banco do interior que era correspondente do Pole, Thornton and Company de Londres. Quando eles faliram em dezembro, nosso estabelecimento foi junto – disse ele, dando de ombros, mas não com indiferença. – Muitos homens com negócios bons e sólidos abriram falência por conta disso. Ainda vai haver muito problema antes que esse pânico acabe.

– Mas não há nada que se possa fazer a respeito, não é? – cortou Suttonly, suspirando. – Não vamos ficar nos lamentando pelo que não podemos mudar. Apesar de todas as preocupações, a cidade ainda está movimentada e divertida e se aproxima a época em que as jovens serão apresentadas à sociedade. Chalgrove, prometa que vai permanecer na cidade este ano. Fiquei meio entediado na última apresentação e espero evitar esse estado de ânimo desta vez. Você pode procurar uma noiva rica para resolver seus problemas. Se ela for bonita, pode ser até que você se apaixone.

– Chalgrove não é um tolo romântico como você – disse Hayden. – Você ficou entediado porque está envelhecendo e tem menos chances de se entregar às tolices românticas agora.

– Você se entedia muito facilmente, de qualquer forma – disse Chalgrove. – A vida seria mais gratificante se tivesse algo constante que lhe interessasse.

– Você quer dizer estudar matemática, como ele? Pegar no pesado nas minhas terras, como você? Rezo para nunca ficar velho assim. Quanto a me entregar a tolices românticas, pretendo nunca deixar de fazê-lo. A paixão torna a vida excitante nos poucos meses que dura – disse ele, sacando o relógio do bolso. – Só posso ficar para mais uma partida, Chalgrove. Vou começar sacando desta vez.


– Ouvi boatos sobre você na noite passada, no clube.

Era a tarde seguinte e Hayden levantou os olhos do livro que estava lendo. Havia vencido poucas páginas. Sua mente estava ocupada, pensando em outros assuntos. A chegada inesperada de seu irmão Christian à biblioteca o distraiu ainda mais.

Christian raramente passava a tarde na biblioteca. Seu breve comentário ao se acomodar em uma cadeira acolchoada perto de Hayden explicava o motivo de aquela tarde ser diferente. Era perturbador saber de dois boatos a seu respeito em menos de dois dias. Hayden era o tipo de homem de hábitos regulares e personalidade calma que raramente interessava aos fofoqueiros.

– Não estou flertando com a Sra. Jameson, apesar do que ela anda contando aos amigos – disse Hayden.

– Não era esse tipo de boato, o que nunca me interessaria. Se um dia você se casar, nunca será com uma mulher daquelas.

O “se um dia” dito com tanta propriedade sugeria que seu irmão duvidava da possibilidade de Hayden vir a se casar. O “uma mulher daquelas” não era uma crítica à viúva em questão, mas deixava claro que Christian conhecia bem o gosto de Hayden, muito mais do que o próprio.

Eles se davam bem, tanto que Hayden continuava morando na casa de Easterbrook, em Grosvenor Square. No entanto, as suposições de Christian de que conhecia os irmãos mais novos melhor do que eles mesmos e as suspeitas de Hayden de que isso talvez fosse verdade eram algo irritante.

– O boato tinha a ver com dinheiro. E com seu relacionamento com o banco Darfield e Longworth.

Hayden pôs o livro de lado.

– Você é contra minha decisão de deixar nossas contas lá?

A interferência de Christian infringia um acordo que haviam feito quando ele voltara à Grã-Bretanha depois de ter viajado durante dois anos por sabe lá Deus onde. Apesar de recém-saído da faculdade, Hayden cuidara das finanças da família nesse momento de necessidade. Christian poderia ter assumido a tarefa ao voltar, mas pediu que Hayden continuasse.

– Não faço objeções à sua decisão. Só estou curioso se você realmente confia que o banco não vá falir.

– Se isso acontecer, uso meu próprio dinheiro para compensar quaisquer perdas que você ou os outros sofram. Se necessário, volto até às mesas de jogos.

Os olhos escuros de Christian cintilaram com uma expressão de frieza. A aura de autoridade que ele exalava de repente se fez notar. Era algo que derivava mais do que de seu título de nobreza ou do status de irmão mais velho. Algo havia ocorrido durante aqueles dois anos no exterior que se tornara a fonte desse poder contido e sóbrio.

Christian nunca falara muito de seu tempo fora e das aventuras que tinha vivido. Hayden percebera de imediato como as experiências o tinham mudado. Seu irmão mais velho deixara a Inglaterra como um marquês recém-empossado, instruído e zeloso. Voltara experiente demais, amadurecido demais e um tanto estranho.

– Não peço que aposte sua própria fortuna em suas decisões. Só quero saber se tomou essa decisão em particular com base em seu brilhantismo financeiro de sempre, ou se foi dominado pela emoção.

– Nunca teria deixado as contas lá se achasse que o banco não sobreviveria.

Hayden considerou a conversa encerrada e retomou a leitura.

– Não foi o fato de você ter deixado as contas lá – disse Christian depois de um longo silêncio. – Não era esse o boato.

– Então qual foi o boato que você ouviu?

– Que você de alguma forma arruinou Longworth e o forçou a vender sua parte no banco. Que manipulou a situação para ele falir.

– Mas como você verificou se retirei nossos depósitos e viu que não, já sabe que esse boato não é verdadeiro.

– Ninguém me disse que você o tinha arruinado retirando o dinheiro. Disseram que você manipulou a situação para que Longworth falisse, o que é bem diferente. Não entendo o motivo. Os Longworths são uma família tradicional no nosso condado. E, para começo de conversa, você contribuiu para o enriquecimento deles e foi amigo de Benjamin.

Hayden instintivamente levou uma das mãos ao peito. Ele não sentia a cicatriz por baixo das roupas, mas pensar em Ben sempre fazia com que se lembrasse da dor que a causara. Qualquer ajuda que tivesse dado a Benjamin Longworth já tinha sido mais do que compensada na Grécia. Isso significava que a balança tinha pendido de novo, para o outro lado, na noite em que Ben morreu.

Ele tinha errado com o amigo naquela noite no navio ao não forçá-lo a descer, quando era óbvio que Ben estava bêbado. Pior ainda, tratava-se de um amigo que havia salvado sua vida.

– Está preocupado com minha honra, irmão mais velho?

– Eu deveria estar?

Hayden o fitou.

Christian não baixou o olhar, agindo de forma plácida e paciente. Eles eram muito parecidos, mas qualquer pessoa que entrasse na biblioteca não perceberia isso de imediato. O cabelo escuro de Christian era longo, até mesmo para a moda atual. Suas ondas atingiam os ombros do robe de seda preto que ele vestira ao se levantar naquela manhã. Também não era um robe comum. Ele ostentava uma estampa e um corte exóticos, quase orientais, e era menos estruturado do que os modelos masculinos comuns. A típica falta de formalidade de Christian em casa também fazia com que não usasse uma camisa por baixo do robe, de forma que sob ele não se via uma gola, apenas pele.

Hayden pensou em como o irmão mais velho parecia empertigado e arrumado enquanto o pai deles era vivo. Ele tinha sido tão irrepreensivelmente correto todos aqueles anos. Então, meses depois de assumir o título, desaparecera para depois voltar com aquela desconcertante aparência mundana.

– Os homens fracassam nos negócios o tempo todo – falou Hayden. – É como uma justa. Um homem entra no torneio sabendo que pode perder seu cavalo. Fracassar é sempre um risco.

– Não para você. Não com a mente e os instintos de que dispõe ao entrar na disputa. Se o jovem Longworth tivesse sido outro cavaleiro, e não um mero escudeiro, sua analogia poderia funcionar. No entanto...

– Como você optou por não entrar na competição, fique fora disso.

Hayden engoliu seu crescente rancor. Na verdade, esse sentimento não se dirigia a Christian, mas à sua tendência irritante de incitar o lado negro da alma das pessoas.

– A ruína de Longworth se deve unicamente à sua falta de bom senso. Minha honra está intacta.

Christian pareceu aceitar isso.

– Você tem um lado impiedoso. Nesse ponto, somos bem parecidos. É preciso manter a vigilância para controlar isso, como tenho certeza de que você sabe.

– Cuide da salvação de sua própria alma. Não preciso de ajuda com a minha.

– Todos nós precisamos de ajuda. Contudo, se você diz que não se deixou levar por esses sentimentos, aceitarei que a ruína de Longworth foi obra dele mesmo.

A questão tinha sido definitivamente essa, mas, para evitar maiores consequências além da mera ruína, Hayden tinha sido forçado a conduzir o canalha por muitas reuniões, confissões e promessas nos últimos dias. Com certeza, no clube, na noite anterior, um dos homens que ouvira essas promessas tinha aludido ao papel de Hayden.

Christian se levantou para ir embora.

– É uma pena pelas irmãs. Às vezes as encontro na cidade. A mais velha é estonteante. Se não fosse por sua amizade com o falecido irmão, estaria tentado a ficar com ela.

– Tirar vantagem da má sorte da moça e garantir que o fracasso fosse completo seria algo altamente desonroso, não acha?

Christian deu de ombros.

– Na Inglaterra, sim. Bem, como disse, é preciso manter a vigilância.


A bandeja de prata brilhou à luz da tarde que penetrava pela janela. O cartão sobre ela surpreendeu Hayden.

A Srta. Welbourne estava lá.

Ele passou o polegar sobre o papel e sentiu o alto-relevo de ótima qualidade. Imaginou a moça tirando dinheiro de sua renda magra e decidindo que o cartão que ostentaria seu nome deveria ser digno de uma dama, não importava o sacrifício.

– Vou recebê-la.

A visita dela lhe provocou remorsos. Sua descoberta a respeito do roubo de Longworth atingira muitos inocentes.

É claro que a Srta. Welbourne tinha sido atingida bem antes da descoberta. Entre suas deliberações, enquanto tentava ler na biblioteca, havia algumas em relação a ela. Precisava elaborar uma estratégia para devolver os recursos da moça sem que ela soubesse que tinham sido retirados por Longworth.

Sua palavra de honra o impedia de lhe explicar o que tinha acontecido. Duvidava que ela lhe seria grata por saber a verdade, mesmo que pudesse revelá-la. Isso destruiria sua ligação com as pessoas que considerava sua família. Havia também a hipótese de ela se sentir tão traída a ponto de querer ser a primeira a mandar Longworth para a cadeia.

Abriu as portas da sala de visitas e viu a Srta. Welbourne com sua dama de companhia. Ela trouxera a prima mais jovem. Os olhos de Irene Longworth estavam fixos no relicário medieval cravejado de pedras preciosas que Christian tinha colocado em uma mesa ao lado da janela.

O olhar da jovem se voltou para Hayden quando ele entrou e nele permaneceu enquanto se cumprimentavam. Ele reconheceu sua expressão muda e embasbacada. Estava cansado de vê-la em outras moças ingênuas. Preferia a expressão madura e autocontrolada que a Srta. Welbourne dirigiu a ele.

– Irene, por que não vai olhar os quadros? – sugeriu a Srta. Welbourne. – Ela se interessa por arte, lorde Hayden, e pensei em dar-lhe a oportunidade de ver parte da coleção de Easterbrook hoje.

Com o consentimento de Hayden, a garota começou a caminhar próxima às paredes, examinando as obras.

– Foi muita gentileza sua trazê-la, se tem tanto interesse por arte – disse ele. – Pensei que talvez o motivo real fosse me lembrar do que ela perdeu.

– Esse foi um dos motivos, mas a oportunidade de ver parte da famosa coleção de Easterbrook foi outro. Além disso, quando ela for para Oxfordshire, fará diferença poder falar da visita que fez a esta casa. Algumas pessoas com posses muito superiores às dela nunca terão essa oportunidade.

A Srta. Welbourne falava com a mesma franqueza que marcara as conversas dos dois desde o início. Ocorreu-lhe que seria tratado da mesma forma se não tivesse arruinado Longworth.

Ele gostava disso. Algo nele fazia com que a maioria das mulheres assumisse uma atitude irritantemente fútil. A falta de medo e de nervosismo por parte dela era revigorante. Criava pequenos e encantadores desafios. Sua postura durante o tour pela casa o provocara de muitas formas e carregara o ar entre eles com muito mais do que contrariedade.

Ela sentira o mesmo, ele tinha certeza, só que não gostava dessa sensação. Talvez nem a entendesse direito.

– Além disso, precisava trazer alguém comigo, não é verdade? – disse ela. – Não temos mais criadas, nem mesmo um lacaio. Como Irene sempre sonhou em vir a um baile aqui, um sonho que Roselyn e eu tentamos controlar mesmo nos bons tempos, pensei que ela pelo menos poderia ver suas obras de arte.

A garota obviamente tinha sido instruída a se manter distante e discreta. Ela se reclinou em direção a um quadro de Poussin do outro lado da sala.

Hayden chamou um lacaio.

– Leve a Srta. Longworth até a governanta – ordenou ao homem quando ele chegou. – Diga-lhe para guiar a moça pelo salão de baile e pela galeria.

Mal se contendo de alegria, Irene seguiu o criado. A Srta. Welbourne observou sua saída.

– É muita generosidade de sua parte.

– Se ver esta sala de visitas a ajudará em Oxfordshire, descrever o salão de baile só pode melhorar ainda mais sua posição.

Ele se sentou em uma cadeira que lhe permitia ver de frente o rosto da Srta. Welbourne.

– Como a senhorita precisava trazer alguém consigo, entendo que o objetivo desta visita seja um assunto seu, não dela – comentou Rothwell.

O olhar de Alexia se inflamou. Aquela mulher não gostava muito dele, isso estava bem claro.

Um arco lilás no chapéu de Alexia fazia sobressair ainda mais a cor de seus olhos. Era um chapéu simples, mas parecia muito caro com aquela borda, a copa de seda celestial e rosas enfeitando o arco. Talvez ela mesma tivesse feito o chapéu. Como o cartão de visita, ele demonstrava sua posição, mesmo que essa posição lhe tivesse escapado por entre os dedos.

– Considerei a oferta que me fez na casa de meu primo em sua última visita – disse ela. – Gostaria de conversar sobre isso e ver se conseguimos chegar a um acordo.

Tinham-se passado doze dias desde a oferta. Com a mudança iminente da casa, parecia que ela finalmente tinha se decidido pela praticidade.

Ele decidiu facilitar as coisas para ela sendo breve.

– O salário será o normal para a situação e...

Ela levantou o indicador, detendo-o. Seu tutor costumava fazer isso quando ele era garoto.

– Aceito o salário normal. No entanto, como estarei ocupando dois cargos, o de preceptora e o de dama de companhia, acredito que deveria receber dois ordenados, sobretudo levando-se em conta que o senhor não terá os gastos de manter mais um criado na casa. Além disso, gostaria que o salário fosse pago mensalmente. Vou querer mandar parte do dinheiro para Rose e Irene. Não quero que elas precisem esperar muito para terem algum desafogo.

Ela estava a dois dias de ser despejada, mas fazia exigências desmedidas, como se pudesse apresentar as melhores referências da Inglaterra, em vez de nenhuma. A julgar por sua repetida menção ao problema financeiro dos Longworths, ela esperava que a culpa dele lhe desse alguma vantagem nas negociações.

Fascinado, ele colocou o cotovelo no braço da cadeira e descansou o queixo no punho fechado.

– Acredito que o pagamento mensal possa ser providenciado. Quanto ao salário, a senhorita não passará todo o tempo desempenhando cada um dos papéis. Isso é impossível, portanto o pagamento integral por dois cargos não se justifica.

– Um e meio, então. O senhor tem que admitir que é justo.

Ele quase deu uma risada.

– Bastante justo para a senhorita. Está certo, um e meio.

Ela teve um gesto de alívio, passando a mão sobre a lã fina da roupa. Era um movimento nervoso que revelava que não estava tão contida quando parecia. O vestido era bem mais elegante do que o que ele a vira usar antes. Muito distinto, com um bordado azul ao longo de toda a borda da saia e um casaco que trazia um delicado acabamento em pele. Ele imaginou que as roupas não eram dela. A Srta. Longworth provavelmente as tinha emprestado a ela para a visita à casa do marquês de Easterbrook.

– Quanto à minha relação com sua tia e sua prima – continuou ela –, vivi naquela casa como um membro da família e seria difícil pensar em mim como uma... bem, de outra forma. Gostaria que meu cargo principal fosse o de dama de companhia de sua tia e que meus deveres de preceptora ficassem em segundo lugar. Isso em nada afetaria meu trabalho em relação a sua prima.

Seu tom, comportamento e a forma como continuava a lembrá-lo da mudança na sua situação, que ela acreditava ser culpa dele, deveriam enraivecê-lo. Nada disso.

Alexia Welbourne havia chegado àquela casa vestida como a dama que nascera para ser, mas sairia dali como empregada. Ela sabia disso, mesmo tendo gaguejado ao tentar pronunciar a palavra. Porém, não era uma mulher que desconhecesse seu lugar. Era só uma mulher lutando para manter seus últimos fios de dignidade ao sair pela porta em uma condição diferente da que entrara.

Ele sentia muito por ela, mas manifestar esse sentimento seria um insulto para uma mulher como Alexia.

– Minha tia tem muito bom coração, Srta. Welbourne. O perigo não é ser tratada como criada, mas passar rapidamente a ser tratada como irmã. No entanto, explicarei a sutileza do modo como deseja ser considerada. Tenho certeza de que ela compreenderá. Bem, se não há mais nada a tratar...

O dedo se levantou novamente.

– Algo mais, Srta. Welbourne?

– Só mais um pequeno detalhe.

– Não imagino o que possa ser.

Os lábios dela se franziram diante do tom sarcástico. Belos lábios. Mais para cheios. E um nariz levemente arrebitado, que chamava atenção para a boca.

Uma boca que parece uma rosa. Mas não um botão de rosa. Não era pequena nem curvada, nem mesmo quando o franzido a estreitava. Era uma rosa em plena floração, prometendo o néctar que Ben descrevera.

– Como ambos sabemos, minha situação mudará muito, mesmo continuando a viver na mesma casa – disse ela.

Sua voz provocava pensamentos sobre esse néctar e seu gosto. O caminho rumo aos ardis impiedosos sobre os quais Christian o advertira havia pouco.

De formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Ele a viu de novo no vestido sem atrativos que usara ao guiá-lo no reconhecimento da casa. De um marfim amarelado pelo uso e sem enfeites, que provavelmente haviam sido retirados para adornar outras vestimentas. A moda tinha mudado muito nos últimos anos e sua cintura alta anunciava seus poucos recursos. No entanto, o vestido ressaltava seu busto e revelava suas formas e curvas tentadoras.

Sua mente voou para recuperar a lembrança dela em pé perto dele no corredor do último andar, usando o vestido cor de marfim. As faíscas de raiva nos olhos dela ao confrontá-lo fizeram seu sangue correr mais rápido nas veias outra vez, queimando-o por dentro. Sua imaginação começou a tirar aquele vestido para ver o que tinha por baixo...

– Isso é aceitável, senhor?

A pergunta dela o tirou de sua fantasia erótica.

– Aceita essa última condição? – perguntou ela.

Se pelo menos ele soubesse do que ela estava falando, mas não tinha a menor ideia de como deveria responder.

Assumiu a posição que costumava ocupar em negociações de investimentos quando algo inesperado era proposto.

– Quero pensar melhor sobre isso antes de dar uma resposta.

Suas sobrancelhas se elevaram só um pouquinho, mas o bastante para expressar o que ela pensava disso.

– Não vejo por que isso exigiria tanta ponderação.

– Sou um homem muito ponderado.

– Que admirável! E tais ponderações levariam muito tempo? Estarão concluídas em dois dias, para que eu saiba onde ficar na casa?

Ela usou uma voz cuidadosa e gentil, do tipo usado com um tio velho meio gagá. Ele não estava acostumado a ter ninguém – muito menos uma mulher – tratando-o como se fosse burro.

– Por que não explica esse pedido com mais detalhes, para que eu possa pensar enquanto fala?

– Não consigo pensar em outra forma de explicar isso. Está claro como água. Qual parte não entendeu?

Será que ela havia percebido por onde sua mente andara? Vira nos olhos dele? Estava deixando-o confuso como punição? Será que o pedido era complicado de atender? Ela não teria pedido para vender toda a prataria da casa, imaginava ele.

– Acho que minha tia pode ser convencida a aceitar sua condição.

– Então podemos dizer que chegamos a um acordo – disse ela, imensamente satisfeita com a conclusão da conversa e passando a alça da bolsa pelo braço. – Estou de saída. Estarei na casa para dar as boas-vindas a Lady Wallingford e sua prima quando elas chegarem.

Ele a acompanhou para que procurassem Irene. Encontraram-na na galeria com a governanta. Christian estava lá também, apontando para algum detalhe na pintura que observavam. Ele tinha finalmente se vestido e, fora o cabelo longo de aspecto primitivo, parecia um lorde inglês bem-apessoado.

– Christian, esta é a Srta. Welbourne. Este é meu irmão Christian, marquês de Easterbrook.

– Estava explicando para sua prima que este não é um Correggio original, mas uma cópia de um quadro que está em Parma, Srta. Welbourne – disse Christian.

A Srta. Welbourne olhou para o quadro. Ele retratava a princesa Io delicadamente voluptuosa e sensual, suspensa no ar por Júpiter, que tinha se transformado em nuvem. Como Io estava nua, aquele provavelmente não era um quadro que Christian devesse ter estimulado Irene a examinar.

– É adorável, mesmo sendo uma cópia – disse a Srta. Welbourne, segura de si o bastante para não revelar embaraço com o assunto.

Hayden o considerava adorável também. Observando agora, o corpo de Io parecia um pouco com a imagem que ele fizera do corpo da Srta. Welbourne. Arredondado nos lugares certos. Curvas e maciez à espera.

Hayden mostrou o caminho para que as mulheres saíssem com a governanta. Irene começou a cobrir a Srta. Welbourne de perguntas imediatamente, esquecendo-se de que seus sussurros seriam ouvidos na galeria.

– Você vai aceitar a função?

– Sim.

– Ele aceitou suas condições?

– Sim, vamos embora.

– Todas elas? Até mesmo a folga e o uso da carruagem?

Hayden se perguntou se tinha ouvido direito.

– Função? – disse uma voz baixinho sobre o ombro dele.

Ele virou o rosto e deu com Christian também observando as duas.

– Ela vai trabalhar como dama de companhia de tia Henrietta e preceptora de Caroline.

– Ah, entendo. As únicas mulheres que já fizeram negócios comigo foram minhas amantes. Daí minha confusão. Ela tem belos olhos... de uma cor inusitada.

Hayden observava as fitas do chapéu de Alexia flutuarem, a bainha do vestido se arrastar e seus quadris esbeltos se moverem.

– Ela queria se certificar do que se esperava dela no serviço doméstico. Nossa conversa tratou desse tipo de coisas.

– Como folga e uso da carruagem, você quer dizer.

Hayden ignorou a implicância. A Srta. Welbourne se virou para sussurrar algo no ouvido de Irene. Seu perfil apareceu por baixo da aba do chapéu. Um olho violeta, um nariz levemente arrebitado e uma boca carnuda expressiva formaram uma silhueta colorida contra o vestido marrom da governanta.

A porta se abriu e as mulheres desapareceram.

Hayden se virou e pegou seu irmão mais velho observando-o. Christian deu meia-volta e partiu.

– Vigilância, Hayden, vigilância.


CAPÍTULO 4

Alexia caminhava ao lado de Roselyn em ritmo de enterro. Estavam fazendo uma revista silenciosa de cômodo em cômodo para que Rose verificasse se nada fora esquecido.

Uma carruagem alugada esperava na rua. Ela levaria os Longworths até uma estalagem nos arredores de Londres. Lá seriam transferidos para a triste carroça que saíra antes do amanhecer, oculta pela escuridão, carregando os poucos bens que ainda lhes pertenciam.

Rose espiou a sala de visitas.

– Ouso dizer que a tia de Rothwell encontrará tudo em ordem. Espero que ela e a filha sejam felizes aqui.

A frase teria soado generosa, não fosse por seu tom amargo.

Alexia nada disse para reconfortá-la. Já usara todas as palavras de consolo que poderia conceber. Tinha até mesmo prometido a Irene lhe dar uma festa de apresentação à sociedade no ano seguinte, o que era o mais próximo de uma mentira deslavada que já dissera. Seu coração estava em prantos por todos eles. Rose e Irene, Timothy e ela própria.

Rose se voltou para ela. Com os olhos soltando faíscas pelos olhos, ela permitiu que toda a sua raiva viesse à tona.

– Você tem que me prometer não se afeiçoar a elas. Não quero saber se são boas ou não. Tem que me prometer...

Alexia a abraçou. O corpo de Rose começou a tremer e ela caiu no choro. Passou rápido. Rose engoliu as lágrimas e se recompôs, tudo em uma única inspiração profunda.

– Oxfordshire não é tão longe assim – disse Alexia.

Tal pensamento tinha sido repetido por todos eles muitas vezes na última semana.

– Vamos nos ver com frequência, tenho certeza – continuou.

Ela não estava tão certa disso, mas talvez fosse possível. Afinal, ela poderia usar uma carruagem, não? E tinha um dia de folga.

– Vamos subir para buscar Timothy – disse Roselyn.

Encontraram Timothy em seu quarto, estendido na cama, doente. Doente, não, percebeu Alexia. Ela avistou um decantador lascado debaixo da mesinha de cabeceira.

– A carruagem está esperando, Timothy – disse Rose.

– Para o diabo com a carruagem.

Tim nem sequer moveu o braço que se estendia sobre a testa.

– Para o diabo com os canalhas que esperam para ver esta cena – prosseguiu ele. – Para o diabo com a vida.

Rose pareceu exausta. Fora obrigada a assumir quase todas as providências necessárias nos últimos dias. Depois que vendeu o que podia, Timothy se tornara um inútil.

Alexia se curvou sobre a cama.

– Já se entregou à infelicidade por muito tempo, primo. Suas irmãs precisam que você volte a si. Permita-lhes sair pela porta com dignidade, não carregando o irmão em frangalhos entre elas.

Ele não reagiu nem se moveu. Ela tocou seu braço.

– Venha, Tim. Isso não é do seu feitio. Levante-se pelo bem de Irene, ao menos.

Depois de uma longa demora, ele fez um esforço para se levantar. Rose alisou seu casaco e fez o que pôde para deixar sua gravata apresentável. Timothy parecia tão triste e desamparado que Alexia teve vontade de chorar.

– Pegou as coisas dele no sótão, Rose? – disse ele em tom abafado. – Os baús de Ben e tudo o mais?

A expressão de Rose foi de desespero quando respondeu:

– Arrumamos tudo às carreiras... Como pude ser tão relapsa? Não tem mais espaço na carruagem e...

– Não se preocupe. Cuidarei do que possa ter ficado para trás – disse Alexia. – Podem ter certeza de que os baús continuarão aqui enquanto eu estiver e os levarei quando for embora. Vou achar um jeito de devolvê-los a vocês.

– Você é tão boa, Alexia – disse Rose com visível alívio.

Alexia não se importava de assumir a responsabilidade pelos pertences de Ben. Assim, parte dele ficaria com ela na casa. Ela poderia resistir melhor à adversidade da vida que iria enfrentar se pudesse se lembrar daqueles baús no sótão.

– Detesto deixá-la aqui – disse Tim olhando para o chão. – Odeio a ideia de ver você se sujeitar a ele. Esta foi a jogada mais cruel: ele ser capaz de se deleitar com sua queda de posição social.

Alexia não achava que lorde Hayden se deleitaria com isso, já que aparentemente não pensou duas vezes antes de praticar seus atos. Em poucos dias, ela seria uma criada conveniente e nada mais. Ele provavelmente esqueceria até seu nome.

– Não me importo com o que ele pense, Tim. Não me afeta em nada.

Essa afirmação pelo menos era verdade. Ela já sabia que, na vida, quando se desce um degrau, o motivo não importa. O estrago no orgulho era o mesmo, independentemente da causa. A pessoa podia enfrentar isso com elegância ou com amargura. Ela estava lutando para assumir a primeira postura, como fizera no passado.

Tim caminhava sem firmeza, mas Roselyn e Alexia o conduziram para o andar de baixo, até a porta. Irene esperava com ar sombrio pela partida solene. Com certeza os vizinhos espiariam de suas janelas para ver a cortina descer no último ato do fracasso encenado na Hill Street nas duas últimas semanas.

– Eu o odeio – disse Irene. – Não faz diferença se ele é bonito e se me deixou ver o salão de baile. Tenho certeza de que o irmão dele ficaria chocado em saber o que aconteceu. Eu deveria ter contado tudo a Easterbrook enquanto estávamos na galeria.

Alexia deu um beijo de despedida em Irene.

– Não ocupe seu coração com ódio, Irene.

– Você não precisa disso – falou Roselyn. – Eu odiarei Hayden Rothwell o bastante por todos nós, querida.

Seu rosto se fechou em uma máscara de orgulho. Ela pegou a irmã pela mão.

– Vamos embora – chamou.

Timothy abriu a porta. Ele não apreciou a atitude da irmã ao saírem. Na verdade, não as estava enxergando. Virou-se para a porta aberta e ficou lá, parado indolentemente por um tempo. Seu rosto enrubesceu de emoção.

Alexia manteve a mão no braço dele.

– Você é filho de um cavalheiro, Timothy. Nem isso pode mudar esse fato.

A expressão dele retomou a serenidade e ele se empertigou um pouco.

– Para o diabo com ele – grunhiu.

Deu um passo para fora e seguiu Roselyn e Irene rumo à obscuridade.

Alexia fechou a porta antes que a carruagem partisse. Secou as lágrimas que teimavam em rolar de seus olhos. Não ousava sucumbir ao impulso de se enraivecer com a injustiça da vida. Tinha que aprontar a casa para a chegada da tia e da prima de lorde Hayden.

Também precisava preparar seu orgulho para o momento em que as duas mulheres entrassem pela porta da frente.


– Foi tão gentil de sua parte nos acompanhar, Hayden, mesmo que nosso deslocamento seja só por algumas ruas da casa de Easterbrook. Não tenho muita habilidade para lidar com essas mudanças complicadas.

– Fico feliz em ajudar. A situação exigia pulso firme.

– Como sempre, tê-lo conduzindo as rédeas nos transmite confiança e tranquilidade. Não sei o que faríamos sem você.

O pulso firme em questão não tinha a ver com controlar os cavalos que puxavam a carruagem de Easterbrook por Mayfair. Nem com a enorme gama de detalhes relacionados à mudança de tia Henrietta para Londres. Disso tudo Hayden dera conta com facilidade.

Na verdade, era Henrietta, viúva de Sir Nigel Wallingford, que demandava pulso firme. Ela exigia mais da sua atenção do que os mais complicados investimentos financeiros que ele administrava.

Após a morte do marido, ao tomar conhecimento de que sua renda ficaria bem reduzida, ela assentira como se compreendesse a situação, mas depois não alterara em nada seus gastos. Sendo seu administrador, Hayden cumpria o penoso ritual de ir até Surrey para ralhar com ela por causa das contas altas, reprimendas que a tia aceitava com constrangimento, mas depois alegremente ignorava.

Ele a observou enquanto se sentava junto à filha na frente dele na carruagem. Um chapéu gigantesco cobria a maior parte do cabelo muito louro. Sua aba ampla e pontuda ficava o tempo todo batendo no queixo de Caroline. O maior laço vermelho da história da chapelaria apequenava a copa alta. Uma pluma extravagante traçava um amplo arco e tocava o delicado maxilar de Henrietta. A mulher era baixa e franzina, com rosto pequeno e traços finos, e o chapéu parecia um peso prestes a curvá-la.

Sem dúvida, Henrietta achava que o chapéu era magnífico e valia cada centavo gasto nele, mas não percebia como a envelhecia. Sendo irmã mais nova de sua falecida mãe, aos 36 anos, tia Henrietta ainda possuía feições joviais, mas, usando aquele chapéu, aparentava ter 50.

– Você tem absoluta certeza de que essa preceptora fala um francês impecável? – perguntou ela. – Caroline precisa de alguém muito competente.

– A Srta. Welbourne é bem instruída em todas as matérias necessárias.

Na verdade, não tinha certeza se a Srta. Welbourne sabia francês. Mas, se alegava ter a formação exigida para desempenhar seu novo papel, então deveria ser capaz de demonstrar isso. Ele suspeitava de que ela poderia aprender francês em quinze dias se ainda não soubesse.

– Espero que ela não seja igual à Sra. Braxton – murmurou Caroline.

Uma menina quieta e pálida, Caroline raramente falava. Hayden suspeitava de que a criança que ele via não era a Caroline de verdade, mas uma menina desbotada e enrijecida pela presença da mãe.

– Estou certa de que a Srta. Welbourne será muito diferente de sua última preceptora – disse Henrietta. – Hayden teve que lhe prometer algumas concessões incomuns para persuadi-la a nos ajudar.

Os olhos verde-claros de Henrietta brilharam com o feliz otimismo que a fazia parecer sonhadora e distraída o tempo todo.

– Estamos na cidade agora, querida. É um mundo bem diferente. A Sra. Braxton não serviria. Foi por isso que Hayden encontrou essa casa e a estimável Srta. Welbourne para nós.

Ela concedeu a Hayden um daqueles sorrisos. Um dos sorrisos agradecidos e afetuosos que diziam que ele era a âncora de seu navio sem leme. Ela confiava totalmente no sobrinho, dependia dele em excesso e esperava que ele atendesse a seus caprichos. Provocava um desastre atrás do outro e depois, com pesar, encaminhava o problema para ele resolver, porque ele era tão incrivelmente competente nisso.

Ele não tinha dúvida de que sua tia agia com ele de forma semelhante à que costumava agir com seu finado marido. Sua aparência adorável, as voltas que dava nos assuntos tentando evitar dar explicações, suas tentativas de amansá-lo com elogios – estas eram as marcas de uma mulher que manipulava um homem. Ele gostava de tia Henrietta e até a considerava divertida. No entanto, ser seu administrador por seis anos tinha lhe ensinado certos aspectos do relacionamento diário com uma mulher que vinham com o casamento. Nenhum deles o tinha estimulado a procurar uma esposa.

– Aí está – anunciou Henrietta quando a carruagem parou na Hill Street. – Pedi que o cocheiro passasse por aqui anteontem para me mostrar. A casa é bem bonita e de bom tamanho, não acha, Caroline? Mas não fica em uma praça. Tinha esperanças de que ficasse. Porém, se Hayden diz que é adequada para nós, assim será.

Hayden conhecia bem as esperanças dela. Seu irmão Christian também. Tia Henrietta não dera atenção aos detalhes da mudança para Londres até que ficara difícil demais encontrar um local adequado para alugar. Christian desconfiava de que a tia deles tinha outro motivo para tamanha negligência. Ele estava certo de que ela contava com que ficasse sem lugar para morar, quando então pediria para apresentar sua filha à sociedade no lar de Easterbrook.

Três semanas antes, Christian havia decretado sumariamente que isso não aconteceria, de jeito nenhum. Ele ofereceria o baile de apresentação de Caroline à sociedade, mas não viveria sob o mesmo teto que sua tia intrometida e frívola.

A residência dos Longworths resolvera então um problema iminente. Também dera a Timothy oportunidade de reembolsar Henrietta pelos títulos roubados sem que ela ficasse sabendo do golpe. Henrietta acreditava que Hayden os havia vendido para comprar a casa.

Ao descer da carruagem, Hayden pensou no restante do plano. Com sorte, Caroline ficaria logo comprometida com um rapaz da primeira leva de pretendentes e Henrietta voltaria para sua casa, em Surrey. A casa de Londres seria vendida e os títulos roubados, substituídos por novos. Se a divina Providência realmente sorrisse para ele, após Caroline se casar, sua tia procuraria um marido e Hayden passaria para ele a responsabilidade de controlá-la.

Hayden deu a mão para ajudar a tia e a prima a descerem. Ao entrarem, todos os criados se perfilaram no hall para saudar a nova patroa.

Henrietta examinou a criadagem. Hayden mantivera Falkner, mas o restante do pessoal era novo.

Ele deu um passo à frente quando sua tia se aproximou da Srta. Welbourne e apresentou as duas mulheres – o que não fizera com o mordomo ou com a governanta. Era do seu interesse que elas se dessem bem. Com sorte, a Srta. Welbourne reduziria as demandas de Henrietta por ele.

Tia Henrietta examinou em detalhes a nova dama de companhia. A Srta. Welbourne passou com elegância pela avaliação.

– Esta é minha filha, Caroline – disse Henrietta, instigando a garota a dar um passo à frente. – Nosso atraso em vir à cidade significa que seus últimos retoques precisam de atenção. Imagino que você seja adequada para fazer isso.

– Sou, sim, Lady Wallingford.

– Soube que começou a desempenhar suas funções recentemente e que é prima da família que viveu aqui por último.

Hayden não imaginava que Henrietta soubesse disso. Ela estava na cidade havia somente dois dias. A cor dos olhos da Srta. Welbourne se intensificou, mas ela não demonstrou qualquer outra reação.

– Sim, senhora.

– Vamos conversar um pouco sobre isso. Contudo, não tenho motivos para duvidar da confiança que meu sobrinho deposita na senhorita.

– Obrigada, senhora.

Henrietta seguiu em frente, cumprimentando as empregadas, o lacaio e o cozinheiro. Hayden observava o ritual em um canto do cômodo. Observava principalmente a Srta. Welbourne.

Os olhos dela não vacilaram desde que entraram na casa. Ele percebeu que seu olhar estava pregado em um ponto na parede por trás dele. Mesmo quando Henrietta falou com ela, seus olhos violeta não se moveram. Ela estava resistindo bem àquela provação, mas na verdade não a estava vendo.

Admirou sua atitude e a leve altivez que ela emanava. Alexia podia estar entre os criados, mas só um tolo não veria a diferença. Com certeza sua tia havia percebido isso de imediato, por isso lhe fizera aquela pequena provocação.

O olhar da Srta. Welbourne se moveu sutilmente em direção a ele. Raiva e orgulho se estamparam em seu rosto. Não ouse ter pena de mim, expressou uma olhada rápida. Você mais do que todos os homens não tem esse direito.

O ressentimento dela parecia prestes a desmanchar sua pose. Ele andou em sua direção e fez um gesto para que se aproximasse, tirando-a da fila de empregados.

– Parece que a senhorita tem tudo sob controle. É admirável.

Ele se referia a ela, não aos empregados. Ela pareceu entender. Sua expressão voltou à passividade. Seu olhar se dirigiu para o mesmo lugar de antes, atrás dele na parede.

– Falkner cuidou para que os outros ficassem preparados – disse ela, baixo.

– Acha que consegue lidar com ela? – falou Rothwell, olhando para sua jovem prima.

A Srta. Welbourne olhou para o final da fila também, só que parou para observar Henrietta e não Caroline. Mais especificamente, o chapéu de Henrietta.

– Acho que merecia os dois salários – disse ela.

– Andei pensando que talvez a senhorita valha muito mais para mim.

Ao falar, o tom soou meio malicioso. Se ela percebeu, não teve qualquer reação. Provavelmente porque o sentido oculto tinha ficado somente na cabeça dele, um reflexo de maquinações que não fariam nada bem a sua reputação.

– Acho que tem razão. Mas fiquei satisfeita com nossa última reunião e não espero mais por ora.

– Fico aliviado. Só há uma carruagem, como vê, e minha tia vai querer usá-la de vez em quando. Se a senhorita tiver várias folgas em vez de uma só, isso criaria um sério incômodo para ela.

Ela não pôde resistir e sorriu ao lembrar que o havia derrotado nisso. Sua boca rosa relaxou e revelou seu bem-vindo potencial de sensualidade. Os lábios se afastaram o bastante para provocar pensamentos inapropriados na cabeça dele.

Os olhos de Alexia por fim se voltaram para ele, para partilhar a piada. Ele lhe devolveu um olhar profundo, que exigiu sua relutante atenção. Mas Hayden deixou que o momento se prolongasse demais. A janela se fechou, como se Alexia houvesse notado o perigo nos olhos dele. Ela se empertigou.

De repente, corpos se movimentaram em volta deles. Os criados haviam sido dispensados. O chapéu de Henrietta se intrometeu entre ele e a Srta. Welbourne.

– Hayden, informei ao cozinheiro que você jantará conosco amanhã. Easterbrook e Elliot também.

– Elliot está em Cambridge e Christian tem um compromisso amanhã.

Ele começou a acrescentar suas próprias desculpas, mas ver violetas e rosas deteve suas palavras. A Srta. Welbourne estava falando com Caroline, assumindo suas funções.

– Ficarei feliz em aceitar, se minha presença apenas não for tediosa demais.

– Tediosa, nunca! Não venho a Londres há anos e estaria perdida sem a sua ajuda abrindo caminho para a sociedade. Quase me esqueci do que Caroline deve ver e fazer. Precisamos de você para fazer uma lista de locais que devemos visitar e dos passeios que nós não podemos perder.

Ele desconfiou que ela o incluíra no “nós”. Antes que o jantar do dia seguinte se encerrasse, Henrietta teria sua agenda completamente preenchida com formas como ele poderia “ajudar”.

Era tudo culpa da Srta. Welbourne. Ela o distraíra e ele baixara a guarda. Se ela o deixara à mercê de Henrietta somente com um sorriso, era uma sorte ela o odiar e não sorrir com frequência.

Ele se despediu e recebeu um adeus frio da Srta. Welbourne em meio às despedidas efusivas de Henrietta. Ao deixar a casa, Henrietta estava seguindo a governanta para ver os outros cômodos e Caroline se esgueirava à procura da sala de música.

O que significava que a Srta. Welbourne tinha sido a única a de fato vê-lo partir.


Paciência. Alexia disse para si mesma. Lembre-se do seu lugar. Engula as palavras antes de expressar o que você pensa.

Ela se sentou à mesa da sala de jantar com Lady Wallingford, Caroline e lorde Hayden. Manter-se em silêncio durante esses jantares se mostrou uma tarefa fácil, porque Lady Wallingford não parava de falar com o sobrinho. Nas duas últimas refeições em que tinha estado presente, ela o persuadira a contar todas as fofocas que corriam pela cidade, com descrições completas dos personagens importantes. Esta noite ela o estava pressionando a levá-la ao Museu Britânico.

Lorde Hayden olhava com frequência em direção a Alexia, como se esperasse que ela interrompesse a conversa e o salvasse de sua tia. Ela não se mostrou inclinada a fazer isso. Era uma criada, afinal de contas. Não lhe cabia fazê-lo, não era verdade? Ele estava sendo óbvio demais também. Parecia ignorar a tia todas as vezes que desviava a atenção daquela forma.

Ele tratava a tia com uma firmeza afetuosa que sugeria que a considerava distraída demais para ser responsabilizada por seus excessos. Aparentemente não apreciava por completo a sua personalidade. Em apenas uma semana, Alexia descobrira que as maneiras frívolas e despretensiosas de Lady Wallingford escondiam um tipo muito feminino de astúcia.

– Será mais instrutivo para Caroline se você nos levar, Hayden – disse Lady Wallingford. – Sou ignorante em história antiga e nunca conseguiria explicar a importância dos artefatos. – Ela lhe deu um sorriso que derreteria aço. – E Caroline não conhece muito bem você e seus irmãos. Nem você a conhece, agora que ela não é mais uma criança.

Caroline ficou vermelha até as orelhas. O olhar astuto da sua mãe lhe deu uma deixa. Caroline forçou um sorriso esperançoso.

– Seria maravilhoso visitar o museu com você, Hayden. Se puder dispor de tempo para nós.

Alguns minutos depois, Lady Wallingford pegou o sobrinho em sua rede. Na semana seguinte ele iria acompanhá-las ao museu.

Alexia se divertia vendo a nova patroa manipular esse homem orgulhoso e severo. Ele nem parecia perceber o maior desejo da tia, que era o de fisgá-lo de vez.

– Agora temos que decidir sobre a modista que fará o vestido da apresentação de Caroline – disse Lady Wallingford. – Ouvi falar que existe uma madame Tissot que é uma maravilha e também que a Sra. Waterman serviria. O que nos aconselha, Hayden?

– Eu não entendo disso, mas a Srta. Welbourne as ajudará, espero.

Todos os olhares se voltaram para ela, vencendo suas intenções de permanecer uma mera sombra no canto da mesa.

– Se eu tivesse que escolher, com certeza seria madame Tissot – disse ela.

A Sra. Waterman tinha sido a modista escolhida para fazer o guarda-roupa de Irene Longworth para sua apresentação. Caroline agora vivia na casa de Irene e até dormia na cama de Irene. Por nada neste mundo Alexia permitiria que também ficasse com os vestidos feitos para Irene, se pudesse impedir.

A rispidez de sua reação advertiu-lhe que ela ainda não tinha definido sua situação. Os ressentimentos afloravam em ocasiões como essas. Ter que partilhar a refeição com lorde Hayden também deixava parte de sua alma fervilhando. Aceitar sua atenção arrogante, combater sua aura dominadora, parecia uma perspectiva cruel. Ela esperava que ele demonstrasse mais força de caráter no futuro e declinasse os convites da tia para jantar.

– Antes que encomende qualquer vestido, precisamos ter uma conversinha, tia Henrietta.

– É claro – concordou Lady Wallingford, sua expressão tornando-se obediente e respeitosa. – A própria Caroline insistiu em limitações estritas de custo. Ela é muito mais sensata do que eu nessa área, não é, querida? O homem que se casar com ela vai achar bem mais fácil controlar seus gastos do que os da maioria das outras moças.

Caroline enrubesceu de novo. Seu primo não percebia a isca que pairava acima dele, apenas deu um sorriso vago em aprovação.

A refeição terminou e, com a agenda de lorde Hayden adequadamente preenchida, todos se dirigiram para a sala de estar. Ao chegar à porta, Lady Wallingford anunciou um novo plano.

– Hayden, você daria licença a mim e a Caroline por um instante? Ela tem uma surpresa para você e preciso ajudá-la. A Srta. Welbourne vai entretê-lo enquanto preparamos um passatempo.

E assim Alexia se viu sozinha, sentada em frente a lorde Hayden na sala de estar, em uma situação parecida com a de sua primeira conversa.

– Pode me dar uma dica sobre qual será esse passatempo? – perguntou ele, esticando as pernas de maneira muito informal.

Ela não era nenhuma parenta dele; dispensava tal atitude de familiaridade.

– É um mistério para mim.

– A senhorita é a preceptora dela.

– Acho que isso foi planejado antes da chegada delas. Que eu saiba, não houve ensaios ao longo da última semana.

Ele a olhou daquela forma direta e desconcertante que adotara.

– Então não deve mesmo ter havido nenhum. Tenho certeza de que nada lhe escapa, Srta. Welbourne. Por exemplo, já deve ter percebido que a querida tia Henrietta tem planos para Caroline e eu que vão além de visitas a museus.

– É verdade? Que afortunado!

A consciência dele das intenções de Henrietta arrasaram suas fantasias. Ela tivera esperanças de vê-lo nadar arrogantemente contra a correnteza só para no fim morrer na praia, sob os saltos de Henrietta.

– Ajudaria muito se desestimulasse esses planos.

– Não imagino como. Além disso, vocês formariam um belo casal.

– A senhorita pretende se aliar a tia Henrietta contra mim, não é?

– Nós, mulheres, somos como irmãs nesses assuntos, senhor. E realmente gostamos de ver o poderoso perder.

– A senhorita fala como se eu não tivesse chance – disse ele rindo.

– Tenho esperanças de vê-lo estripado, descamado e na frigideira até junho.

O humor fez os olhos de Hayden brilharem. A diversão o transformara. Não parecia mais tão rígido. Forte, sim, mas não rígido.

– Um peixe? Está me comparando a um peixe? Poupe-me alguma dignidade, Srta. Welbourne. Uma raposa caindo na armadilha, um touro vencido por um toureiro. Há muitas analogias à disposição, mas um peixe é cruel demais.

Ela sorriu sem querer.

– Achei a imagem muito convincente.

Apesar de ainda sorrir, ainda... atraente, a conduta dele ficou mais séria.

– Se a senhorita se recusa a desestimular minha tia, então está certo. Mas faça o que puder para evitar que a garota aceite as ideias da mãe. Não gostaria de vê-la magoada ou desencorajando pretendentes por conta desse esquema. Não há a menor possibilidade de eu me casar com minha prima.

– Por que não?

O sorriso dele foi firme o bastante para dar a entender que Alexia tinha ido longe demais. Não havia novidade nisso e ela não retirou a pergunta.

– Ela é uma criança – disse ele.

– Todas elas são. As igrejas estão cheias de noivas meninas, já que se considera encalhada uma mulher solteira de 22 anos.

– Não pretendo me casar no futuro próximo, menos ainda com uma criança. Essas meninas têm ideias muito frívolas e românticas, o que obriga os homens a fingir fraqueza e sentimentalidade. Além do mais, ela é minha prima. Sei que esses arranjos são comuns, mas são uma prática doentia que não aprovo.

Doentia?

– Benjamin Longworth era meu primo. Não gosto da ideia de que meu amor por ele seja doentio.

Hayden empalideceu.

– É claro que não. Desculpe-me, Srta. Longworth. Às vezes sou muito sem jeito ao expressar minhas ideias.

Seguiu-se um silêncio breve e desconcertante.

– É claro que não tínhamos convivência quando éramos mais jovens – disse ela. – Ele não me conheceu quando eu era garota...

– Sim, exatamente. Então entende por que um casamento com Caroline é... impossível.

Ele encerrou o assunto se levantando e caminhando sem rumo pela sala.

– Quando a senhorita conheceu Benjamin?

A pergunta foi feita casualmente, enquanto ele examinava uma cena doméstica pintada por Chardin. O quadro tinha vindo com vários outros após a partida dos Longworths, um empréstimo da coleção de Easterbrook para cobrir as paredes vazias.

– Quando me juntei a eles aqui em Londres. Eles viviam em Cheapside na época. Escrevi-lhes sobre minha situação depois que meu pai morreu e Ben me respondeu dizendo que deveria vir. Ele foi muito gentil.

Gentil e alegre. O mundo se iluminava quando Ben estava por perto. Ele inspirava uma leveza de espírito, muito diferente do homem que estava em sua companhia no momento, que a deixava com raiva e na defensiva o tempo todo.

– O senhor disse que se conheceram quando eram garotos. Como ele era quando jovem?

– A maturidade não mudou sua personalidade. Ele era igualmente impulsivo e despreocupado quando garoto. E fazia muitas travessuras.

– Quer dizer que ele foi um menino levado.

– De uma forma positiva. Todavia... O garoto, assim como o homem, não pesava as consequências de seus atos.

– É porque Ben vivia o momento. Ele não planejava nada. Contava com a sorte de que tudo desse certo no fim.

Ela amava isso nele. Amava como se sentia livre e quase inconsequente na presença de Ben. A vida a forçara a se tornar tediosa e sensata, até que os sorrisos dele a aqueceram em seu último ano juntos.

Ele lhe devolvera a juventude por um curto espaço de tempo e ela ainda ocultava aquela garota renascida e cheia de vida no mesmo lugar em que guardava as lembranças de Benjamin.

Rothwell tinha se virado e estava olhando para ela. Ele parecia rígido de novo e seus olhos azul-escuros demonstravam quão profundamente ele a avaliava. Ben nunca olhava para as pessoas daquela forma.

Ela sustentou o olhar. Foi um erro. A conexão a deixou em desvantagem, assim como acontecera no hall na semana anterior, quando ele chegara com a tia. O olhar dele era penetrante demais, enxergava demais. Ela sentiu como se ele estivesse lendo seu coração.

Alexia reagiu como acontecia com frequência diante desse homem. Parecia com a forma como Ben a fazia sentir, só que com tintas mais intensas. A atenção que ele lhe dispensava flertava com o perigo. O estímulo que lhe provocava causava tremores de medo.

Ela estremeceu. Disse a si mesma que estava com os pés firmes no chão. Mas a verdade sussurrava o contrário em seu coração. Ela era impotente para desviar o olhar, para rejeitar aquela excitação.

– Imagino que a vida não era enfadonha quando vivia nesta casa – disse ele.

Ela se sentiu corar. Era como se ele tivesse visto aqueles beijos roubados nas suas lembranças e agora se referisse a eles.

Ele parecia prestes a falar de novo, mas foi interrompido. Um lacaio apareceu para dizer que eles eram aguardados na biblioteca.

– Parece que o passatempo está pronto – disse lorde Hayden.

Ele a acompanhou até a outra sala. A proximidade do corpo dele a fez pensar na volta de reconhecimento que haviam feito pela casa. E isso não ajudou em nada a combater o estranho poder que ele exercia sobre ela.

– Gosto de falar sobre Benjamin com o senhor – disse ela ao entrarem na biblioteca. – Espero que algum dia me divirta com casos sobre seu tempo na Grécia ou a juventude dele.

– Certamente, Srta. Welbourne.

Um pequeno palco armado aguardava por eles na biblioteca. Duas colunas baixas flanqueavam um pano azul esticado no chão. Um tecido branco pendia ao fundo, preso nas prateleiras de livros. O cenário improvisado mostrava uma pintura de montanha e de um templo com colunas.

Lady Wallingford estava de pé ao lado. Ela indicou que eles se sentassem em duas cadeiras dispostas diante do pano azul.

Ela bateu palmas para chamar atenção. Outra palma e a representação começou.

Caroline surgiu de trás do cenário. Estava usando uma roupa ao estilo grego, que deixava seus braços de fora e mostrava um pouco de seu quadril e muito da sua pele no pescoço e colo. A mãe prendera seu cabelo para cima, dando-lhe um ar mais maduro, e até maquiara levemente seu rosto jovem.

Caroline estava muito bonita, muito adulta – quase infame.

Alexia esticou o olhar para lorde Hayden, para ver sua reação. Pegou-o discretamente olhando de volta para ela.

– E eu que achava que as tinha sob controle, Srta. Welbourne – sussurrou ele. – Parece que minha tia não pretende esperar até junho para me fritar.

A bela isca de Lady Wallingford se posicionou entre as duas colunas e começou a recitar uma passagem da Ilíada.


CAPÍTULO 5

Usando um vestido velho e envolta num longo xale de lã, Alexia se refugiou na biblioteca. Acendeu a lareira, deitou-se no sofá ao lado e apoiou na barriga um livro aberto.

Silêncio. Liberdade. Um fogo aconchegante e horas de privacidade. Fechou os olhos e saboreou a sensação de retorno a um mundo que conhecia bem. A chuva que batia suavemente no vidro das janelas só melhorou a sensação.

Tinha sido brilhante pedir a lorde Hayden uma folga por semana. Ousado também. Nunca imaginou que seu pedido pudesse ser atendido; ficou até espantada quando lorde Hayden cedeu. Talvez ele de fato se sentisse um pouco culpado em relação aos Longworths. Não havia outra explicação.

Era um ponto a favor dele, mas ela não desperdiçaria tempo avaliando seu caráter. Planejava aproveitar ao máximo essas horas sem Lady Wallingford e Caroline – principalmente, sem o próprio lorde Hayden. Ele estava sempre pelo caminho, fazendo visitas de dia ou jantando à noite. O homem era jovem, solteiro e rico. Com certeza tinha coisas melhores para fazer do que visitar a tia.

Ela sorriu para si mesma. Sem dúvida que tinha. Entretanto, sua tia possuía a excepcional capacidade de requisitar sua presença e faltava nele a habilidade necessária para escapar de suas maquinações. Alexia desconfiava de que sua analogia com o peixe tinha sido inapropriada. Rothwell não estava sendo seduzido com uma isca. Henrietta fixara um anel no nariz dele e o estava lenta e implacavelmente levando para o matadouro.

Ela riu ao pensar nessa imagem. Contudo, enquanto um minotauro era arrastado pela corda de Henrietta, a fantasia se transformou. De repente, ela o viu de pé ao lado da jovem Caroline numa igreja.

Seu júbilo se desfez e ela examinou a cena em sua cabeça. Não seria um casamento com amor. Ela duvidava se havia algum romantismo nele. Caroline imaginaria que sim, pois era jovem e impressionável. Quando essa ilusão se desvanecesse, já teriam se adaptado um ao outro. Caroline teria o que a maioria das mulheres almejava: segurança, apoio e, quem sabe, gentileza.

O quadro mudou de novo e Rothwell não estava mais na igreja. Em vez dele, surgiu Benjamin. E Alexia já não observava tudo olhando de cima: estava ao lado dele. Por um instante, a alegria encheu seu coração, como se a cena fosse real.

Ela afastou a imagem da cabeça com um arrependimento melancólico. A vida nem sempre era como se desejava. Às vezes era preciso se contentar com menos do que fora sonhado.

O livro chamou sua atenção. Normalmente leria Walter Scott em seu quarto, onde ninguém poderia ver. Não era o tipo de literatura séria esperada de uma preceptora. Não tinha sido incluído na lista que ela dera a Caroline como parte de suas lições.

Embrulhada e aconchegada, permitiu-se a libertação temporária de viver em um mundo de homens arrojados e mulheres impressionantes, de paixões fortes demais para estarem no mundo real e de romances dramáticos demais para serem verdade.


– Irc.

O rosto de Caroline se torceu de nojo, mas ela se aproximou da cabeça de abutre preservada em álcool. De todos os artefatos eruditos atulhados na coleção do museu em Montagu House, esse grotesco espécime só não era mais popular do que a múmia egípcia e o porco com cara de ciclope conservado em salmoura.

Hayden sorriu com a fascinação e a repulsa infantis. Era revoltante pensar que ela provavelmente estaria casada dali a um ano. Não aprovava que meninas tão novas fossem oferecidas a pretendentes, e não só porque o casamento precoce de sua própria mãe tivesse sido tão trágico.

– Agora temos que ver as peças de mármore – arrulhou Henrietta, puxando a filha da multidão que observava o abutre.

Por duas vezes Hayden já desviara a atenção delas para que esquecessem os mármores de Elgin. Ele se lembrava perfeitamente de como a tia vestira Caroline para sua apresentação da Ilíada e imaginava por que Henrietta se mantinha tão inflexível quanto a ver as peças de mármore. Pouco tinha a ver com o fato de serem uma mostra magnífica da arte grega.

– Não creio que a Srta. Welbourne fosse considerar apropriado a Caroline ver as esculturas em mármore – disse ele.

– Sou mãe dela; a decisão cabe a mim. Contudo, a Srta. Welbourne a instruiu a vê-las. Falou tão bem desses trabalhos que também tive vontade de revê-los.

– Se ela foi tão categórica, deveria ter nos acompanhado na visita.

Ele só descobrira que a Srta. Welbourne tinha optado por tirar folga naquele dia quando chegara para pegar as damas. Ela o deixara à mercê de Henrietta, enquanto se divertia na cidade, sabe lá Deus fazendo o quê. Teve ímpetos de mandar chamá-la e ordenar que entrasse em sua carruagem imediatamente e que escolhesse outro maldito dia para descansar.

A tia o arrebanhava na direção que desejava que ele seguisse.

– A Srta. Welbourne disse que as esculturas estão em um pequeno prédio à parte. É por aqui, não?

Saíram de Montagu House, enfrentaram a chuva e entraram no anexo que abrigava as esculturas que lorde Elgin retirara do grande Parthenon em Atenas.

– Você não deve ficar chocada, Caroline – instruiu Henrietta. – Grandes artistas tomam liberdades que podem parecer escandalosas, mas a arte ocupa um plano mais elevado da experiência. Além disso, essas peças são muito antigas, de uma época anterior à era cristã.

Hayden suspeitava de que, na verdade, a intenção da tia era causar espanto em Caroline. Essa história de plano mais elevado era lorota. As figuras masculinas no salão estavam praticamente nuas. Sua tia estava realizando uma forma disfarçada de iniciação e a presença dele era inadequada.

Tia Henrietta queria isso também. Ela desejava que a filha visse as estátuas e ficasse se perguntando o que haveria por baixo das vestimentas do futuro marido ao seu lado.

Se a Srta. Welbourne tivesse vindo, poderia ter dado uma aula de arte para Caroline, enquanto ele se manteria à sombra. Conjecturou se Henrietta tinha decretado que a preceptora ficasse em casa, para que ele não tivesse essa opção. O mais provável era que a Srta. Welbourne houvesse desconfiado do plano e dado uma mãozinha para sua tia.

Ele pretendia conversar com a Srta. Welbourne a esse respeito. Muito em breve.

Pararam em frente às métopas que mostravam a batalha entre os lápitas e os centauros. Hayden contou a história exibida ali. Henrietta analisou os aspectos artísticos.

Caroline olhava com curiosidade para os corpos masculinos nus. Seguiu-se um silêncio curto e constrangedor durante o qual Hayden se esforçou para manter toda a compostura.

O cenho de Caroline se franziu.

– Estão todas quebradas. É como se tivessem cortado fora as cabeças e os braços com espadas. Não imagino por que essas obras estão em exposição, muito menos por que são famosas.

Hayden quase respondeu que não era assim que os corpos ficavam quando decepados. A imagem bizarra invadiu sua cabeça e sua alma se entristeceu. Voltou a atenção para as damas a fim de conseguir controlar a sensação ruim.

– Trata-se da escultura das formas, querida. É por isso que são tão apreciadas – disse Henrietta. – Os dorsos, coxas e quadris...

– Não gosto nada disso.

– Outras pessoas compartilham suas críticas, Caroline – disse Hayden. – Muitos só começam a apreciar a arte grega depois de um tempo. Já ouvi dizer que as mulheres passam a gostar mais desses mármores conforme vão ficando mais velhas.

Ele indicou o caminho dessa vez, para fora do anexo.

– É uma pena a Srta. Welbourne ter ido visitar amigos em vez de nos acompanhar – comentou Hayden. – Tenho certeza de que ela seria capaz de explicar os aspectos artísticos para além do meu nível de sensibilidade.

– Ela não tirou folga para visitar amigos – disse Caroline. – Ela pretendia ficar em casa para cuidar de assuntos pessoais. Escrever cartas, coisas assim.

Isso não melhorou seu humor. Ele passaria mais algumas horas nesse passeio, enquanto a Srta. Welbourne escapava de suas funções para escrever cartas. Cartas de amor, era provável, para o falecido Benjamin Longworth.

Ela só se alegrava quando o nome de Ben era mencionado. Transformava-se em outra mulher. A lembrança de seu antigo amor a remoçava como por encanto. Isso era doentio! Também era um amor construído sobre mentiras. Mais uma vez Ben tinha agido por impulso, sem medir as consequências.

Ben nunca pretendera se casar com Alexia Welbourne, independentemente do que ela havia sido levada a acreditar. Estava atraído por uma jovem abastada e de família aristocrática muito antes da viagem para a Grécia. A própria ideia de lutar na guerra tinha sido uma forma de executar atos heroicos que impressionariam a tal jovem rica e inatingível.

Henrietta interrompeu seus pensamentos sugerindo que visitassem a biblioteca do museu. Hayden vislumbrou mais uma hora bancando o professor.

Quando abriu a porta, avistou um rosto familiar. Seu irmão Elliot estava sentado a uma mesa, examinando um grande manuscrito. Elliot retornara à cidade na noite anterior, vindo das bibliotecas de Cambridge, e já estava ali.

– Espere aqui, tia Henrietta.

Hayden deixou as duas na porta e andou na direção do irmão. Elliot estava tão absorto que foi preciso tocar seu ombro para chamar sua atenção.

A basta cabeleira escura foi jogada para trás. Elliot olhou através dos óculos. Sua mente refez seu caminho de volta do lugar aonde o manuscrito o levara.

– Hayden. Que surpresa!

– Será, com certeza. Venha comigo. Se fizer alguma objeção, vai se ver comigo.

Confuso, Elliot se levantou e o seguiu sem apresentar resistência.

– Vejam quem encontrei estragando os olhos em um denso tomo latino – anunciou Hayden.

Saudações cordiais se seguiram. Elliot vivia perdido no passado histórico, mas podia ser bem charmoso, quando queria. Caroline ficou envaidecida com os elogios de como estava crescida e bonita e como logo seria assediada por vários pretendentes depois de sua apresentação à sociedade.

– As damas gostariam de conhecer a biblioteca e saber de suas preciosidades, Elliot.

– Ficaria feliz em mostrar-lhes a coleção. Há muitas raridades que são ao mesmo tempo belas e instrutivas. Há também os projetos do arquiteto Robert Smirke para o novo prédio do museu, que está em construção.

– Que ideia esplêndida – disse Hayden. – Deixo-as em suas hábeis mãos.

Henrietta não ficou nada satisfeita.

– Mas, Hayden, achei que você...

– Tenho um compromisso esta tarde e logo teria que me despedir de vocês, de qualquer forma. Agora podem apreciar a biblioteca sem pressa. Elliot é muito mais qualificado para dar essa aula do que eu. Mostre-lhes tudo. Elas têm o dia inteiro.

Ele concluiu sua fuga. Seria improvável que a tia e a prima aparecessem em casa antes do jantar. Ele deixou a carruagem esperando por elas e saiu para procurar um cabriolé de aluguel.

Ele não mentira. Realmente tinha compromissos nesta tarde. Mas não nas próximas horas. Tinha que ir a outro lugar antes de seguir para o centro financeiro e tratar de negócios.


Ela emergiu de um sonho. Mesmo ao flutuar rumo à consciência, sabia que tinha tirado uma soneca sem querer. Algo a puxara de volta à superfície. Não fora um som. Uma sensação de perigo a arrancara do sono.

Abriu os olhos. A primeira coisa que viu foram outros olhos, de um azul tão escuro que surpreendiam. Avistá-los causou um eco em sua alma: tinha acabado de vê-los no sonho que agora se apagava nas brumas das memórias mais profundas.

As visões e odores do mundo real afastaram rapidamente o sono que restava, deixando-a cara a cara com lorde Hayden Rothwell.

Ele parecia muito alto em pé diante dela. E muito sério também, com uma pequena ruga a lhe marcar o cenho. Provavelmente desaprovava que criados dormissem no sofá da biblioteca.

Ela deu um salto e se sentou.

– Sua tia já voltou?

– Deixei-a com meu irmão Elliot na biblioteca.

Ele pairava sobre ela. Essa proximidade a deixava nervosa.

Isso a incomodava. Mesmo nas ocasiões em que conversavam informalmente, mesmo quando se deixava encantar por ele, esquecendo o motivo de odiá-lo tanto, aquela inquietação incômoda persistia.

Ela não deveria ter que tolerar isso hoje.

– Dei ordens a Falkner para que ninguém entrasse neste recinto.

– Os criados nunca imaginariam que tal ordem me incluiria. Na cabeça deles, sou o patrão desta casa e dono de tudo aqui dentro.

Ele não se moveu, como se enfatizasse que seu poder sobre “tudo aqui dentro” significasse que era dono dela também.

– É assim que pretende aproveitar as folgas que me persuadiu a lhe conceder? Lendo perto da lareira?

– Este é meu dia. Sou livre para fazer o que quiser. Se esperava um relatório, deveria ter me dito.

Ela queria que Hayden fosse embora. Ele estava estragando tudo.

– Então, por algumas horas, viverá aqui como outrora e tratará esta casa como se fosse seu lar de novo. Não havia compreendido o significado real da palavra “livre” quando a usou.

As palavras atingiram o coração de Alexia, ressoando em toda a sua verdade. Ele a compreendia melhor do que ela mesma. Entendia por que essas horas tinham sido tão deliciosas.

Tinha mais um motivo para odiar aquele homem agora. Levantou seu olhar para ele.

– Por que está aqui?

– Para vê-la.

Seu olhar mudou. Viu-a da cabeça aos pés, com o velho vestido verde e o grosso xale de lã. Alexia deveria ficar constrangida por suas vestimentas simples, mas naquele momento elas pareceram convenientes e... seguras.

– Também vim para conversarmos, de forma que entenda o que preciso que faça.

– Conheço minhas funções.

– Parece que não. Esperava que acompanhasse minha prima hoje.

– Como ela estaria acompanhada do senhor e da mãe, não havia necessidade que eu fosse. Sua tia concordou.

– Nós dois sabemos por que minha tia não quis que a senhorita fosse conosco. Assim ela poderia empurrar a menina mais facilmente para cima de mim.

– As intenções de sua tia em relação ao senhor não me dizem respeito. Escolhi este dia de folga com cuidado, de forma a não interferir nas aulas de Caroline.

– Acho que escolheu este dia para me evitar.

Mais uma vez, suas palavras ressoaram dentro dela.

– Talvez sim. O senhor tem sido uma presença mais constante nesta casa do que eu esperava. Para mim é muito árduo reunir as forças necessárias para manter a elegância.

A expressão dele se fechou de uma forma que ela conhecia bem. Ela estava sendo novamente ousada demais. Mas não se incomodava. Era seu dia de folga e isso significava, antes de qualquer coisa, que poderia ficar livre dele.

– De agora em diante, quando eu acompanhar minha prima e minha tia, a senhorita irá conosco.

– Não recebo ordens suas sobre minhas obrigações. Cabe à sua tia decidir, não ao senhor.

– A senhorita estará lá – disse ele com firmeza.

Ela cerrou os dentes e olhou para o fogo, ignorando Hayden o máximo possível. Mas ele já devia estar de partida. Depois de ter decretado a nova lei, não havia motivo para permanecer ali.

Ele não foi embora, mas, pelo menos, se afastou. Infelizmente, ficou mais perto da lareira, assumindo uma posição que exigia que ela olhasse para ele. Alto, forte e moreno, ele penetrava seu campo de visão e sua mente.

– A senhorita estava sorrindo enquanto dormia – disse ele. – Estava sonhando com ele, Ben?

– Não sei.

Um par de olhos a encarou das profundezas de sua memória.

– Acho que não, mas talvez sim – concluiu ela.

– Ele era meu amigo e tenho uma dívida com ele, mas...

– Espero que nunca tenha uma dívida comigo, pois sei muito bem como faz o ressarcimento.

Ela alcançou seu intento com essa frase. A reação dele fez sua nuca formigar. No entanto, junto com a precaução vinha uma enxurrada das outras sensações que aquele homem sempre lhe provocava.

– Ele morreu há três anos – disse Hayden. – Talvez devesse esquecer essa fixação.

A raiva lhe subiu à cabeça, fazendo-a deixar a prudência de lado. Levantou-se.

– Minhas lembranças são muito caras para mim, mas não são uma fixação.

– Na noite em que Caroline fez a apresentação da Ilíada, a senhorita falou do seu amor no presente do indicativo.

– Tenho certeza de que não fiz isso.

– Fez, sim, e está perdendo seu tempo.

– O senhor está sendo impertinente. Esta conversa seria despropositada mesmo que fosse um amigo íntimo, o que certamente não é. Não toleraria essas especulações intrometidas de um parente, imagine do senhor.

Ele se aproximou dela. Ela quase deu um passo para trás, mas sua raiva ignorava a prudência.

– A senhorita não terá um futuro, a menos que o deixe ir embora.

Alexia teve que vergar o pescoço para olhar para Hayden. Ele mais uma vez tentava impor sua presença e sua vontade. Gostava de fazer isso. Alexia queria poder bater nele pelo que lhe causara. Sua pulsação se acelerou e suas têmporas pareciam explodir.

– Como ousa falar do meu futuro? O senhor, entre todos os homens? Ele já era pouco promissor o bastante há um mês. Eu não tinha fortuna nem beleza, mas, pelo menos, tinha uma casa e uma família. É ultrajante de sua parte tocar neste assunto comigo.

Ele aceitou suas acusações sem comentários. Alexia percebeu a raiva em seus olhos, que se equiparava à sua própria. Mais do que nunca era necessário ter cautela, no entanto, Alexia a jogou pelos ares.

– Existem homens que veem além da fortuna. E sua beleza é suficiente.

Considerando sua expressão intensa e séria, a voz dele soou muito calma.

– Agora o senhor está sendo cruel.

– Seus olhos são magníficos. Hipnotizantes. E refletem seu espírito indomável.

O elogio a deixou sem palavras. A raiva enfraqueceu. Em um esforço de reunir os pensamentos espalhados com o choque, ela ficou tentando desesperadamente se recompor.

Hayden deu mais um passo em direção a ela. Alexia não percebera sua aproximação antes, mas ele estava muito perto. Perto demais. Olhou dentro dos olhos dele. Era ela a hipnotizada agora.

Um toque aveludado em seu queixo. Ele a estava tocando. Um tremor pulsou sob os dedos dele e se espalhou para o colo de Alexia. Ela deveria...

– Sua pele é maravilhosa – disse ele, afagando-a de leve.

O toque suave, tão surpreendente e íntimo, deixou-a sem fôlego. O olhar dele baixou.

– E sua boca, Srta. Welbourne, sua boca é tão linda que duvido que um dia a senhorita possa entender quanto.

Ele olhou nos olhos dela outra vez e de novo a surpreendeu. Seu olhar queimava, cheio do perigo que percebera desde a primeira vez que o vira.

Com os olhos arregalados de espanto, ela notou a decisão repentina de Hayden. Foi tão absurdo que ela não acreditou em seus instintos.

A boca de lorde Hayden encontrou a de Alexia. Quente, firme, autoritário, o beijo levou a uma sequência de susto e maravilhamento. Sua cabeça era uma confusão só. Em algum lugar no meio de suas reações caóticas, a Alexia prática dava ordens sensatas sobre o que fazer, mas ela estava deslumbrada demais para obedecer.

Ela reagiu sem acanhamento. Sentindo que um calor premente percorria seu corpo todo, pulsando e fervilhando em seus seios, seu ventre e mais abaixo. A excitação se tornou física, ameaçando tomá-la por completo. Correntes de prazer a seduziam a ponto de abandonar-se.

As sensações a encantaram. Ele a abraçou e ela se rendeu. Era uma intimidade tão deliciosa que Alexia gemeu silenciosamente em agradecimento. A força que a segurava, o corpo firme pressionando o seu, o calor intenso da boca beijando seus lábios, seu pescoço, seu peito... Uma Alexia nem um pouco sensata se revelou no estímulo sensual e acolheu a torrente de paixão.

Os beijos pararam. Dedos firmes e viris seguravam seu rosto. Ela abriu os olhos e encontrou lorde Hayden observando-a. O desejo transformava a severidade dele. Mesmo sua rigidez ficava sedutora.

Ele a beijou de novo e uma batalha começou a ser travada dentro de Alexia. Ela vira muitas coisas em seus olhos. Os pensamentos que fervilhavam na mente dele. Também percebeu a impressão que dava naquele momento: era uma mulher se submetendo a um homem de quem não gostava e em quem não confiava. Uma solteirona solitária aceitando as atenções de um qualquer.

Alexia recobrou um pouco do equilíbrio perdido, mas não queria abrir mão de se sentir tão viva. Não queria perder aquele contato físico. Mesmo quando suas mãos empurraram o peito dele, tentando se soltar, grande parte dela queria se fundir nele, não importando quem ele era, nem a vergonha que adviria.

Ela viu e sentiu cada instante a seguir – o relaxamento da pegada dele, o lento desmanchar de seu abraço, o afastamento de seu toque – e seu corpo reagiu a cada perda.

Alexia se afastou rapidamente rumo à janela. Incapaz de encará-lo, olhou para fora. Tentou se aprumar para parecer normal quando saísse da biblioteca. Assim que seu bom senso retornou, uma forte sensação de humilhação a invadiu.

Esperava que lorde Hayden tivesse a bondade de sair. Ele não teve. Ela pensou que ele pelo menos iria se desculpar. Ele nada disse. Sentiu que ele a olhava. Isso só piorou as coisas. Se ele fosse embora, ela poderia maldizer sua própria fraqueza e a crueldade dele. Enquanto ficasse, ela continuaria trêmula e envergonhada, perturbada demais para se recompor.

– Isso não foi muito honroso de sua parte, lorde Hayden.

– Não.

Ele não parecia arrependido. Seu tom parecia dizer: Talvez não, mas eu faço o que quero.

– Sei por que fez isso – disse ela. – Sei o que deve estar pensando a meu respeito.

– Então a senhorita sabe muita coisa.

A voz de lorde Hayden Rothwell soou mais próxima. Alexia percebeu que ele tinha vindo em sua direção. Parara a menos de um metro dela. Para seu espanto, a excitação e o perigo começaram a enfeitiçá-la de novo. Seu coração começou a bater mais pesado e mais lento.

– O que penso da senhorita? Como não tenho certeza, uma explicação sua seria muito útil.

Um homem decente teria se desculpado e ido embora.

– Ben e eu não éramos tão íntimos. O senhor interpretou mal.

– Não estava pensando nisso, de forma alguma. Meu único pensamento foi que a senhorita precisava ser beijada.

Ela se virou determinada a colocar um fim na maneira como brincava com ela. Seu coração falhou ao vê-lo, mas ela conseguiu pôr aquela excitação de adolescente em seu devido lugar.

– Não pelo senhor. Não sou a criada de quem o lorde pode se aproveitar. Peço-lhe que se lembre disso no futuro.

Ele a olhou direto nos olhos, como sempre, só que agora seu olhar refletia aqueles beijos. Agora seria sempre assim. Dar liberdades a um homem criava uma familiaridade que minava de uma vez por todas qualquer formalidade.

– Não tentei agarrá-la, só a beijei. E não foi de forma tão ousada quanto a senhorita teria permitido.

O rosto dela estava fervendo.

– Agora o senhor está me insultando.

– Não, estou sendo honesto. Mas vou deixá-la a sós, para que finja o contrário.

Com um leve cumprimento, Hayden se dirigiu para a porta.

– Lorde Rothwell, espero que no futuro demonstre o respeito que meu emprego junto a sua prima exige.

Ele parou à porta e virou-se.

– Ainda não me decidi.

– Então permita-me ajudá-lo a se decidir. Não gostei de seu beijo e não deve fazer isso de novo.

Ele abriu a porta.

– Gostou, sim. Acha que um homem não consegue perceber a verdade?


CONTINUA

Uma sombra penetrou cedo na casa junto com o visitante inesperado. Alexia se sentiu perturbada mesmo antes de ver quem era.
Ela descia a escada carregando sua cesta de costura e parou nos degraus ao notar as vozes que conversavam baixo no hall. Mesmo sem entender direito as palavras, compreendeu o tom firme de quem faz exigências. Percebeu que a forma respeitosa como o empregado se opunha de nada servia. Falkner, o mordomo, foi chamado. Diante de um poder silencioso e determinado, as barreiras da casa cediam.
Um mau pressentimento tomou conta de Alexia, como no dia em que aquele homem havia chegado para contar à família sobre Benjamin. Já tivera essa sensação vezes suficientes para saber que não deveria ignorá-la. Más notícias mudam o mundo em um segundo. Mudam o ar. O coração humano pressente que o sofrimento está chegando com tanta certeza quanto um cavalo percebe uma tempestade que se aproxima.
Não conseguiu se mover. Ia se juntar às primas no jardim, para aproveitar o sol da tarde com sua cesta de costura, mas a ideia lhe fugiu da mente.
Um par de pernas surgiu andando na sua direção. Pernas compridas, calça preta e botas elegantes. Elas seguiram o mordomo rumo à escada. Falkner tinha no rosto a expressão de um serviçal que houvesse recebido ordens de um rei.
O tronco do visitante começou a entrar em seu campo de visão, logo seguido dos ombros e da cabeça. Como se sentisse que alguém o observava, ele olhou para cima, para o patamar onde ela se encontrava.

 

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Imediatamente Alexia entendeu a submissão de Falkner. A atitude, o rosto e o porte do visitante intimidariam até quem não conhecesse sua posição social. O cabelo escuro, desarrumado de um jeito que parecia não ter sido penteado naquela manhã, emoldurava o belo rosto de traços angulares e fortes, como se fossem entalhados. Sinais de cansaço obscureciam o azul profundo de seus olhos. Um autocontrole forçado retesava seu maxilar quadrado e sua boca bem desenhada. Lorde Hayden Rothwell, irmão do quarto marquês de Easterbrook, era a imagem do homem exausto mas determinado a cumprir sua dura tarefa. Certamente não viera em resposta aos muitos convites que Timothy havia deixado para Easterbrook em sua residência ao longo do último ano.

Ao se aproximarem, Falkner cruzou os olhos com os dela, expressando seu desânimo. O mordomo também pressentia a tempestade.

Lorde Hayden parou no mesmo patamar da escada em que ela se encontrava e fez um gesto quase imperceptível, cumprimentando-a. Já haviam sido apresentados, mas ele não lhe dirigiu a palavra. Em vez disso, ao levantar o rosto, mediu-a dos pés à cabeça. A avaliação foi tão completa, tão estranhamente interessada, que ela sentiu que corava.

A expressão daquele rosto anguloso se alterou levemente. Como se uma estátua tivesse ganhado vida, os olhos do homem se suavizaram e sua boca relaxou. De súbito, a compaixão o serenava.

Mas, em um piscar de olhos, seu porte severo voltou, expulsando a candura. Alexia, no entanto, vira o bastante para sentir o coração pesar. Reconheceu pena no olhar que ele lhe dirigira. A chegada desse homem não anunciava nada de bom.

– Está levando lorde Hayden para a sala de visitas ou para a biblioteca, Falkner?

Ela estava sendo indelicada, mas não se importava. Com o passar dos anos, aprendera que imaginar más notícias era pior do que efetivamente ouvi-las. Não tinha a menor intenção de ficar esperando, submissa e preocupada.

– Para a sala de visitas, Srta. Welbourne.

Lorde Hayden percebeu suas intenções.

– Por favor, não perturbe a Srta. Longworth com minha presença. Não se trata de uma visita social.

– Não a incomodaremos se não for seu desejo. Contudo, é possível que demore algum tempo até que o Sr. Longworth possa recebê-lo. Podemos ao menos nos encarregar de que o senhor fique à vontade.

Não esperou por aprovação. Deu meia-volta e foi subindo a escada, indicando o caminho para o segundo andar.

Ao chegar à sala de visitas, deixou a cesta de costura de lado e cuidou para que ele ficasse confortável, conforme prometera. Ainda que ele não quisesse, ela se portaria educadamente, como uma anfitriã.

– O tempo está bastante agradável para janeiro, não acha? – perguntou ela após ele ter concordado em se sentar no sofá novo, de um tecido estampado em tons azuis. – O dia até agora está maravilhoso.

As sobrancelhas dele se arquearam um pouco diante da infeliz ênfase no “até agora”.

– Sim, tem feito um calor atípico nos últimos dias – disse ele.

– Acho dias assim cruéis, por mais que os aprecie.

– Cruéis?

– Eles me fazem acreditar que a primavera está se aproximando, quando ainda teremos alguns meses de frio e umidade pela frente.

Por um segundo, uma luz travessa brilhou nos olhos dele.

– Pode não passar de uma ilusão – falou o homem –, mas prefiro me deleitar nessa calidez e me preocupar com o frio apenas quando ele chegar.

A frase pareceu quase imprópria. Ela mudou de assunto fazendo uma observação sobre os feriados recentes. Ele concordava com tudo o que ela dizia. Com muita dificuldade, ela ia levando adiante a desajeitada conversa.

A mente dele não estava ali, mas na reunião com Timothy. O ar na sala de visitas foi ficando pesado. A presença daquele homem fazia pensar que o juízo final estava próximo.

Ela não aguentava mais.

– Meu primo está doente, lorde Hayden. Talvez não consiga se recompor o bastante para recebê-lo. A conversa não pode esperar mais um dia?

– Não.

Foi tudo o que obteve dele. Essa única palavra, dita de modo simples, direto e firme.

Ele voltou sua atenção para longe da conversa, para o nada. E continuou assim, como antes, na escada. Ela se perguntou se ele a consideraria presunçosa por recebê-lo. Não era a dona da casa, apenas uma mera prima. Mas a culpa não era dela se ele estava confinado ali com uma substituta. Fora ele quem não permitira que Roselyn fosse informada de sua presença.

– Talvez, senhor, se eu levasse uma mensagem para meu primo a respeito de sua visita, ele pudesse...

A voz dela foi se dissipando quando ele a encarou como um vigário faz para silenciar uma criança tagarela na igreja.

Ela não se importou com a expressão em seus olhos, que deixava claro que ele percebera o que ela estava fazendo. Hayden Rothwell tinha a reputação de ser inteligente, ríspido e arrogante. Até o momento, ela não poderia discordar dessa avaliação.

Mas também ela não tivera muito tato ao tocar no assunto. Então tentou uma nova abordagem. Como ele era conhecido por sua sagacidade nos negócios, mudou o rumo da conversa para esse tema, tentando deixá-lo mais receptivo a outras perguntas.

– Teve alguma notícia do centro financeiro hoje, lorde Hayden? A crise nos bancos continua?

– Temo que permanecerá por algum tempo, Srta. Welbourne. É de se esperar quando as pessoas têm medo.

– O senhor tem negócios com o banco do meu primo, não é verdade? Está tudo bem por lá, espero.

– Há uma hora, quando saí do centro financeiro da cidade, o Darfield e Longworth permanecia sólido.

– Graças a Deus. Não houve uma corrida ao banco, então. Com tantas outras instituições passando por problemas, fiquei preocupada.

Uma sombra perceptível em seu olhar demonstrava que ele parecia se divertir.

– Não, não houve corrida ao banco.

Isso a aliviou. Várias das grandes instituições financeiras londrinas tinham enfrentado dificuldades no mês anterior. Os jornais estavam cheios de boatos sobre a quebra de pequenos bancos. Aonde quer que se fosse, só se falava em fracasso, ruína e falência. Ela suspeitava de que a atual doença de Timothy se devesse à preocupação com o futuro de seu banco.

– A senhorita tem dinheiro lá? – questionou, parecendo realmente interessado.

– Uma ninharia. Minha preocupação é com meus primos.

Ela conseguira atrair sua atenção com as perguntas sobre a situação financeira do banco. Até bem demais. Ele a olhou de novo, mais demoradamente dessa vez, com uma arrogância casual que demonstrava que ele se sentia nesse direito, algo que homens em posição inferior não ousariam. Aquela avaliação só seria feita por um homem que tivesse plena consciência de seu valor e que, por isso, dispensava algumas regras de etiqueta.

A atenção dele se concentrou intensamente nos olhos dela, observando-a de forma tão perspicaz que ela precisou piscar para se recompor. Lenta e deliberadamente, ele analisou o restante do corpo de Alexia. Ela enrubesceu e uma comichão desconfortável percorreu toda a sua pele. Ele a perturbou de tal maneira que lhe fez lembrar a sensação causada anos atrás pelo olhar de outro homem.

Ficou embaraçada diante da própria reação. Não se julgava alguém que se deixasse abalar por um homem bonito. Não era tola como a jovem Irene. Em silêncio, se censurou por agir como uma solteirona ávida pela atenção de um homem.

Nada na expressão dele indicava que houvesse notado o desconforto dela. Nem ela teve qualquer ilusão de que o interesse do homem fosse desse tipo. Ela sabia o que ele estava pensando. Com seu cabelo castanho e o rosto comum, ela não causava grande impressão. Sem dúvida ele também percebera como os módicos recursos financeiros afetavam sua aparência. Seu vestido não só estava fora de moda como também tinha discretos remendos. O lorde provavelmente estaria vendo cada ponto deles.

– Srta. Welbourne, creio que fomos apresentados no culto a Benjamin – disse ele. – A senhorita é a prima que veio de Yorkshire, não?

Seu orgulho foi atingido por um doloroso golpe. Ele não sabia quem ela era ao entrar naquela sala de visitas. Se não lembrava que já haviam sido apresentados, ele deveria achar incomum o fato de tê-lo recebido, assim como certamente a considerara bastante ousada em sua conversa.

O choque foi seguido pela irritação. A raiva que sentia não era dele, apesar de abrangê-lo mesmo assim, mas tinha origem na situação que a tinha tornado tão esquecível.

– Sim, nos conhecemos no culto em homenagem a Benjamin.

O nome e a lembrança fizeram ecoar uma antiga dor. Tinha sido um culto, não um funeral. O corpo de Benjamin não estava presente, mas perdido no mar. Fazia quatro anos que ele partira da Inglaterra e ela ainda sentia sua falta.

De repente, lorde Hayden não pareceu tão rígido. Uma expressão mais sociável suavizou suas feições belamente esculpidas.

– Eu o tinha como um amigo – disse ele. – Nós nos conhecemos na infância. Sua casa não fica longe das terras de Easterbrook em Oxfordshire.

Timothy sempre mencionava os laços entre Easterbrook e sua família, devidos ao fato de serem vizinhos. Não era uma ligação tão próxima a ponto de que respondessem aos convites de Timothy, é claro. No entanto, se a amizade tinha sido entre Benjamin e Hayden Rothwell, isso explicava algumas coisas, como o motivo da presença de lorde Hayden no culto.

– O senhor também lutou na Grécia, não? – perguntou ela, feliz por tocar em um assunto que o deixava menos severo e que mencionava o querido Benjamin.

– Sim, fui um dos admiradores da Grécia que aderiu à causa deles contra a Turquia. Participei da guerra no início, na mesma época que seu primo. Mas, ao contrário dele e de Byron, tive a sorte de sair vivo dessa aventura.

Ela imaginou Benjamin, sempre otimista, um homem tão cheio de vida e alegria que isso o tornava imprudente. Viu-o lutando como um herói pela liberdade do povo, tendo atrás de si a paisagem de um antigo templo nas montanhas. Ela cultivava essa imagem dele. Como lorde Hayden tinha estado lá com Benjamin, ela já não se importava tanto que ele a tivesse olhado dos pés à cabeça.

Ele estava fazendo de novo, só que agora não era seu vestido que analisava. Era seu rosto e... ela.

– Perdoe-me, Srta. Welbourne. Não quero parecer inconveniente, mas seus olhos têm uma cor incomum. Parecem violeta. É a luz aqui ou já lhe disseram isso antes?

– Não é a luz. A cor dos meus olhos é a única característica marcante que possuo.

Ele não discordou, o que ela considerou deselegante. Ele refletiu sobre a resposta dela e sobre a sua própria.

– Ele falou da senhorita com respeito e afeição. Benjamin, na Grécia. Não disse seu nome. Olhos violeta, no entanto... lembro-me dessa referência. Não percebi no culto que seus olhos tinham essa cor ou teria lhe dito, o que poderia ter-lhe trazido algum consolo naquele momento.

O coração dela se inundou com uma emoção suave e perfeita, apesar da dolorosa saudade que a provocara. Mal pôde se conter e seus olhos se umedeceram. Benjamin falara dela nos dias antes de sua morte. Fizera confidências a esse homem sentado com ela na sala de visitas. Lorde Hayden sabia de seu amor e de seus planos. Alexia tinha certeza disso.

Não ligava mais para o motivo que o trouxera ali. Sua gratidão pela pequena indicação de que Benjamin realmente gostava dela, de que pretendia se casar com ela, foi tão intensa que Alexia seria capaz de perdoá-lo por qualquer coisa naquele instante.

Passou a encará-lo de forma mais amigável. Tratava-se de um belo homem, agora que se permitia reparar. Não era totalmente rígido também. A dureza em volta da boca era culpa das características de sua família. Não se podia culpá-lo se seus ossos lhe davam uma aparência severa em vez de alegre.

– Obrigada por me contar isso. Ainda sinto muitas saudades de meu primo. Emociona-me saber que ele pensava em mim quando estava distante.

Desejou que ele repetisse as palavras exatas que Ben tinha dito. Mas, se ele pretendera fazê-lo, suas intenções foram frustradas. Timothy escolheu aquele exato momento para surgir na sala de visitas.

Timothy parecia bastante adoentado, com o rosto vermelho e os olhos apáticos. Alexia se perguntou se ele não estaria febril. Contudo, seu criado o deixara apresentável, com seu cabelo cor de areia e rosto ansioso despontando sobre casacos e colarinho que demostravam sua tendência a certa extravagância no vestir.

– Rothwell.

– Obrigado por me receber, Longworth.

Alexia se levantou de imediato, despedindo-se. Seu coração ainda estava repleto de felicidade por saber que Benjamin mencionara seus olhos aos seus amigos solteiros na Grécia. Todavia, não conseguia ignorar que um clima de más notícias iminentes impregnara a atmosfera da casa.


Segurando sua cesta, Alexia adentrou o jardim para se juntar às primas. A beleza da hera e do buxo não chegava aos pés de sua exuberância nos dias gloriosos de verão, mas o sol espantava o pior do frio e a falta de vento tornava o jardim um local hospitaleiro.

Roselyn e Irene aguardavam à mesa de ferro, com dois chapéus e sacolas com fitas e aviamentos. Alexia decidiu não mencionar o visitante. Talvez o mau pressentimento que ainda pairava em sua alegria recente fosse apenas uma impressão passageira.

– Você demorou – reclamou Irene, segurando um dos chapéus. – Ainda acho que este aqui não tem salvação e que deveria comprar um novo. Timothy disse que eu poderia.

– Nosso irmão é gastador demais – disse Roselyn. – Se não quisermos que sua apresentação à sociedade nos leve à falência, teremos que ser mais controladas.

– Não é Timothy quem fala em controlar o dinheiro, só você. Nem terei uma grande apresentação, não importa quantos chapéus eu compre – falou e um tom petulante surgiu em sua voz: – Não serei convidada para os melhores bailes. Todos os meus amigos já disseram isso.

– Pelo menos você terá uma apresentação – disse Roselyn. – Certamente é melhor ser irmã de um banqueiro importante do que de um proprietário rural empobrecido. Deveria agradecer a Deus por nossos irmãos terem investido nesse negócio. Se voltássemos para Oxfordshire, você se contentaria com um chapéu novo por ano e o escolheria com mais zelo, em vez de comprar três que não combinassem com você.

Alexia se sentou entre elas, tentando encerrar a discussão. Sendo a mais nova das irmãs Longworths, Irene não entendia a boa sorte que lhes coubera quando, oito anos antes, seu irmão Benjamin decidira investir no banco. A garota só via o que tinha perdido em termos de status, o que não contrabalançava com o luxo que ganhara.

Roselyn, agora com 25 anos, se lembrava muito bem do tempo em que haviam sido obrigados a vender as terras da família em Oxfordshire por causa de dívidas. Em função disso, ela não tivera uma apresentação formal aos homens solteiros na juventude e agora suas chances de se casar eram mínimas. Quando o recente sucesso do banco produziu uma longa fila de pretendentes, ela se mostrou descrente e exigente demais. Alexia suspeitava de que Roselyn se ressentia de que o interesse por ela só surgira após o enriquecimento da família.

– Podemos trocar a fita de cetim rosa por essa amarela – disse Alexia. – E olhe aqui, posso aparar as bordas, para deixar o arco mais perto do seu rosto.

– Vou odiar. Não gosto de chapéus reformados, mesmo que a reforma seja feita por alguém tão habilidoso como você. Fique com ele, se quiser. Pode ficar com o vestido que faz conjunto com ele também, então não terá mais que usar este de cintura alta. Vou avisar à minha criada que ele vai ficar para você, assim ela não o pedirá.

Alexia olhou fixamente para o conjunto de fitas brilhantes e coloridas que cintilava à luz do sol. Irene não era cruel por natureza, apenas jovem e, devido à mão aberta de seu irmão, mimada.

Um silêncio pesado pairou no ar. Irene pegou o chapéu, o avaliou com atenção e o jogou no chão.

– Peça desculpas – ordenou Roselyn em tom ameaçador. – Não vou pensar duas vezes antes de mandá-la morar no interior. Londres está virando sua cabeça e isso não é nada admirável. Está se esquecendo de quem é.

– Ela não está se esquecendo de nada – disse Alexia em um rompante.

Logo em seguida desejou não ter dito aquilo, mas não conseguira conter sua mágoa e seu ressentimento. Respirou fundo, com calma.

– Eu também não me esqueço de quem sou. Só você, por ser tão boa. Todos sabem que dependo desta família, que sou uma parenta pobre que deveria ficar grata por receber aquilo que minhas jovens primas jogam fora. Cada garfada que como é fruto da caridade de seu irmão.

– Oh, Alexia, eu não quis dizer isso... – falou Irene com o rosto contorcido de arrependimento.

– Não é verdade – replicou Roselyn para Alexia. – Você é uma de nós.

– É verdade. Concordei com esta situação anos atrás. Não me importo.

O fato era que se importava. Tentava ignorar, mas isso a desgastava. A humildade e a gratidão que sua situação exigia às vezes lhe escapavam, principalmente porque de início não se sentira obrigada a tê-las.

Sua mudança fora inevitável quando a propriedade da família passou para um primo de segundo grau. Não houve convite para viverem com esse herdeiro, como seu pai supusera. Assim, com 18 anos recém-completados, Alexia fora forçada a escrever para os Longworths, primos pelo lado de sua mãe, pedindo que a deixassem morar com eles. Não levara nada consigo além de vinte libras por ano e seu talento para reformar chapéus.

Benjamin, o primo mais velho, nunca permitira que ela se sentisse um problema para a família, apesar de sua chegada haver coincidido com o início de um novo empreendimento dele, que lhe deixara pouca folga nas despesas daquele primeiro ano. Com o sorriso largo e o bom humor de Benjamin, ela jamais sentia que devesse se mostrar apenas discreta e obediente. Mas depois da morte dele, a realidade de sua dependência ficara clara. Ben dava a ela os mesmos cuidados que oferecia a suas irmãs, ao passo que Timothy a enxergava com outros olhos. Agora ela não passava de conselheira nas visitas às modistas de Londres. Timothy a via como o fardo que ela era, enquanto Benjamin a vira como...

Uma memória de amor cuidadosamente preservada, um eco de emoção profunda e pungente, fez seu coração doer. Ele a vira como uma prima querida e uma cara amiga, o que no último ano tinha evoluído para algo mais. Se o que lorde Hayden dissera era verdade, então ela não se enganara. Se Ben tivesse voltado da Grécia, teria se casado com ela.

Pegou o chapéu.

– Obrigada, Irene. Vou ficar feliz em usá-lo. Pensando melhor: fita azul. Nem rosa nem amarelo vão tão bem com minha cor de cabelo e o tom de minha pele.

Roselyn cruzou os olhos com os de Alexia como que se desculpando. Alexia respondeu também com o olhar: Nasci filha de um cavalheiro, mas aqui estou, com quase 26 anos, sem dinheiro nem futuro. É assim que o mundo funciona. Não tenha pena de mim, eu lhe imploro.

– Quem está lá? – perguntou Irene, interrompendo a conversa silenciosa. – Lá em cima, na janela da sala de visitas.

Roselyn se virou a tempo de ver o cabelo escuro e os ombros largos antes que o homem se afastasse do vidro.

– Temos visita? Falkner deveria ter me chamado.

Alexia começou a retirar a fita rosa.

– Ele pediu para se encontrar com Timothy e não quis que você fosse incomodada.

– Mas Timothy está doente.

– Ele se levantou da cama mesmo assim.

Alexia sentiu a atenção de Roselyn sobre ela enquanto se ocupava do chapéu.

– Quem é? – perguntou Roselyn.

– Rothwell.

– Lorde Elliot Rothwell, o historiador? O que é que ele...

– O irmão dele, lorde Hayden Rothwell.

Os olhos de Irene se arregalaram. Ela deu um pulo e bateu palmas.

– Ele está aqui? Acho que vou desmaiar. Ele é tããão atraente.

Roselyn franziu a testa e olhou para a janela.

– Ai, meu Deus!


– Você andou bebendo, Longworth – disse Hayden. – Está sóbrio o suficiente para ouvir e se lembrar do que vou dizer?

Longworth se espalhou confortavelmente no sofá azul.

– Sóbrio até demais.

Hayden examinou Timothy Longworth. Sim, estava sóbrio o bastante, o que era bom, já que o que tinha para lhe dizer não poderia esperar. A chance de sucesso do plano diminuía a cada hora que passava.

– Passei os últimos dois dias com Darfield, enquanto você se escondia em sua cama, bebendo – disse ele. – O banco pode sobreviver à crise atual, se você seguir minhas instruções.

– Eu disse a Darfield que sobreviveria. Ele é covarde como uma velhota e teme que as reservas estejam muito baixas, mas eu lhe garanti nossa solidez.

– Só sobreviverá porque tomei ontem a decisão de manter os depósitos da família com você. Isso bastou para deter uma corrida ao banco que começou esta manhã.

– Houve uma corrida? – perguntou Longworth, tendo a decência de parecer preocupado. – Eu deveria ter estado lá, sei disso.

– É lógico que deveria.

– Mas o pior já passou, não é verdade? O perigo foi evitado, como disse.

– Por pouco. Apesar de ter vencido as dificuldades hoje, o banco está em sério perigo. Além disso, estou reavaliando minha decisão. É uma escolha difícil, porque, se eu tirar o dinheiro da família, o banco vai à falência. Se isso acontecer, você vai para a forca.

Longworth ficou quieto, uma estátua feita de indiferença.

Hayden não gostava da ideia de estar metido com Timothy Longworth. Tinha sido para ajudar um bom amigo que ele havia assegurado o crescimento do banco com títulos e dinheiro da família. Não se sentia obrigado a salvar o pescoço do irmão mais novo dele.

Longworth abriu um sorriso largo. Isso o fez parecer mais com Benjamin, apesar de mais claro, um contraste com os olhos e o cabelo escuros de Ben. Era uma semelhança que Hayden preferia não perceber naquele momento.

– É claro que deve estar falando metaforicamente quando diz “forca”. Apesar de “arruinado” não ser muito melhor do que isso, não é a morte.

– Quando digo “forca”, é isso que quero dizer. Cadafalso. Nó corrediço. Morte.

– Bancos abrem falência o tempo todo. Cinco faliram nos últimos quinze dias só em Londres e dezenas no interior. Não é crime. É o que acontece nas crises financeiras.

– Não é a falência do banco que vai levá-lo à cadeia, mas o que a contabilidade revelará depois.

– Nada me compromete, posso garantir.

A paciência de Hayden se esgotou rápido. Tinha passado a noite em claro ao lado de Darfield, tentando pôr ordem na bagunça oculta da contabilidade do banco. A fúria que ele contivera a duras penas quando descobrira o pior agora ameaçava romper as frágeis paredes que a controlavam.

– Decidi deixar o dinheiro da família com você, Longworth, mas estou preocupado com minha tia e a filha dela. Os 3% delas é tudo o que têm e elas dependem desses rendimentos. Como seu administrador, não poderia pôr isso em risco. Então, essa parte, essa pequena parte, eu decidi sacar.

Longworth ergueu a cabeça como se essa introdução não lhe dissesse nada, mas o primeiro sinal de pânico faiscou em seus olhos.

– Imagine o meu choque quando vi que os títulos da dívida pública delas tinham sido vendidos e que minha assinatura, como administrador de minha tia, tinha sido falsificada para isso.

Gotas de suor surgiram na testa de Longworth.

– Espere um instante. Está insinuando que eu falsifiquei...

– Tenho provas de que você, por várias vezes, cometeu o crime de falsificação de documentos. Você forjou assinaturas para vender títulos também. Depois continuou a pagar os rendimentos, para que ninguém suspeitasse, mas roubou dezenas de milhares de libras.

– Roubei coisa nenhuma! Estou chocado e ofendido com essa notícia. Darfield é quem deve ter feito isso.

Hayden partiu para cima de Longworth e o agarrou pelo colarinho, suspendendo-o do sofá.

– Não ouse manchar a honra daquele bom homem. Juro que, se mentir para mim agora, vou lavar as mãos e deixá-lo ir para o buraco.

Longworth levantou os braços para cobrir o rosto, protegendo-se do golpe que previa. O medo dele ao mesmo tempo deteve Hayden e lhe causou repugnância. Jogou Longworth de volta no sofá.

Timothy se curvou com o rosto nas mãos. Um silêncio pesado perpassou a sala, carregado da raiva de Hayden e do desespero palpável de Longworth.

– Você contou a alguém?

A voz de Longworth falhou de emoção.

– Só Darfield sabe e ele teme o que isso possa causar aos outros bancos, levando em consideração o clima atual no centro financeiro de Londres.

Hayden havia imaginado esse horror muitas vezes nos últimos dois dias. Os títulos – sólidas apólices que eram a base do crédito e da geração de rendimentos de mulheres leigas e seus filhos – eram supostamente seguros. Os bancos somente os mantinham pelos clientes. Não se pressupunha jamais que o dinheiro ficasse vulnerável.

Timothy Longworth rompera uma confiança sagrada ao falsificar assinaturas e se apossar desse capital. Se isso viesse a público, o pânico atual seria multiplicado por dez.

– O que lhe passou pela cabeça, Longworth?

– Fiz isso pelo banco. Estávamos vulneráveis, com as reservas baixas demais. Fiz isso para proteger os depósitos...

– Mentira! – Hayden só percebeu que havia gritado porque Longworth se sobressaltou. – Você fez isso para comprar esta casa, este casaco e as carruagens que servem para você passear com sua amante cara.

Timothy começou a chorar. Envergonhado pelo outro, Hayden se virou e olhou pela janela.

No jardim, um par de olhos violeta se voltou na sua direção, depois retornou para as fitas e a palhinha. Olhos como violetas em sombra fresca e de formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Era assim que Benjamin descrevera a Srta. Welbourne, em uma noite de embriaguez na Grécia. O tom não fora totalmente respeitoso, mas havia afeição em sua voz, então Hayden não mentira para ela. Contudo, ao ver a reação da moça – os olhos rasos d’água e como seu rosto se suavizou de forma tão doce –, desejou não ter dito nem uma palavra.

Não era um rosto belo, mas os olhos tornavam isso irrelevante. Sua cor incomum cativava primeiro, depois se notava como eles refletiam uma alma intensa e uma mente inteligente. Mostravam também experiência, como se aquela mulher compreendesse bem demais as realidades da vida. Ao se sentar sob a contemplação implacável daqueles olhos, ele se esquecera por alguns minutos da horrível missão que o trouxera àquela casa.

Uma boca que parece uma rosa, com néctar tão doce. Aparentemente, Ben tinha tocado em mais do que o coração da Srta. Welbourne. Não era nem um pouco de surpreender. Um homem cheio de vida como Benjamin Longworth conseguia mexer com muitas mulheres.

Roselyn e Irene Longworth, irmãs de Benjamin, estavam sentadas ao sol com a Srta. Welbourne. A mais velha era uma bela mulher de pele clara, cabelo louro-escuro e rosto doce. Destacava-se por sua beleza, mas era muito orgulhosa. O cabelo da mais nova era longo e claro; o corpo, esguio e o jeito, ainda infantil.

Sentiu alguém de pé ao seu lado. Longworth havia se levantado do sofá. Também observava as três moças no jardim.

– Ai, meu Deus, quando elas ficarem sabendo...

– Juro que elas nunca saberão a verdade da minha boca. Se conseguirmos salvar seu pescoço, você poderá contar quantas mentiras quiser. Um falsificador e ladrão deve ser capaz de inventar umas boas.

– Salvar, me salvar? Mas há uma forma? Obrigado, de qualquer jeito... Como quer que seja...

Hayden esperou enquanto Longworth se recompunha.

– Quanto, Longworth?

Ele deu de ombros.

– Umas vinte mil libras, talvez. Não fiz de propósito. De verdade. Na primeira vez, deveria ter sido um empréstimo de pouco valor, para cobrir uma dívida inesperada...

– Não quero saber quanto você roubou, mas quanto tem.

– Quanto eu tenho?

– Sua única chance é cobrir tudo, cada centavo. Com o que tiver e com as notas promissórias que assinar.

– Isso significaria contar a todos!

– Se eles não sofrerem prejuízos...

– Bastaria um deles dar com a língua nos dentes para eu ir...

– Para a forca. Sim. Uma fraude já seria o bastante. Você terá de confiar que o reembolso os satisfará e que eles entendam que só mantendo-se em silêncio poderão reaver o dinheiro. Posso falar por você e isso talvez ajude.

– Pagar a todos? Vou ficar falido. Totalmente falido!

– Mas vai escapar vivo.

Longworth agarrou o peitoril da janela para controlar a tontura. Olhou para fora de novo e seus olhos se umedeceram.

– O que vou dizer a elas? E Alexia... Se ficarmos reduzidos à renda dos aluguéis rurais, se eu tiver que pagar as dívidas tirando recursos deles também, não poderei mais sustentá-la.

Diante de mais um pensamento terrível, seu rosto desabou. Hayden imaginou o motivo:

– Você roubou os míseros recursos dela também? Não verifiquei as contas menores.

Longworth enrubesceu.

– Você não passa de um canalha, Longworth. Ajoelhe-se e agradeça a Deus por eu ter uma dívida de gratidão e honra com seu irmão.

Timothy não estava mais ouvindo. Seus olhos se anuviaram ao pensar no futuro.

– Irene ia ser apresentada à sociedade e...

Hayden não deu ouvidos aos lamentos do outro. Imaginara uma forma de salvar a vida de Longworth e evitar revelações que deixariam o atual pânico fora de controle. Mas não poderia poupar Longworth da ruína que essa solução geraria.

Passara a noite em claro fazendo cálculos e pensando nas consequências morais do caso. De repente uma profunda exaustão tomou conta dele.

– Sente-se – ordenou ele ao dono da casa. – Vou lhe dizer a quantia necessária e definiremos como você irá devolvê-la.


CAPÍTULO 2

Falido.

A palavra pairou no ar. A sala ficou em silêncio.

O sangue de Alexia congelou nas veias. Tim parecia muito doente agora. Ele se recolhera a seu quarto após a saída de lorde Hayden, mas se levantara da cama novamente de noite. Mandara chamá-la e a suas irmãs na biblioteca e lhes informara do desastre.

– Mas como, Tim? – perguntou Roselyn. – Um homem não vai disto – ela fez um gesto mostrando a exuberância da casa ao redor – à pobreza em um dia.

Os olhos dele se estreitaram e a amargura endureceu sua voz.

– Isso acontece se lorde Hayden decidir que sim.

– Lorde Hayden? O que ele tem a ver com isso? – perguntou Alexia.

Timothy olhou fixo para o chão. Parecia sem forças.

– Ele retirou o dinheiro de sua família do banco. Nossas reservas não foram suficientes para compensar a retirada e tive que penhorar tudo o que tenho. Darfield também terá de fazer isso, mas ele possui mais dinheiro do que eu. Ele pagou parte das minhas obrigações e, em troca, ficou com a minha cota no banco. Ainda assim, não foi suficiente.

Alexia controlou a fúria que fervia dentro dela. Que diferença faria para Rothwell onde todo aquele dinheiro ficava? Ele tinha que ter percebido o que isso causaria a Timothy, a todos eles. Havia entrado naquela casa ciente de que destruiria o futuro dos Longworths.

– Vamos dar um jeito – disse Roselyn, com firmeza. – Sabemos como levar uma vida mais simples. Vamos dispensar alguns empregados e comeremos carne somente duas vezes por semana. Vamos...

– Você não ouviu? – rosnou Timothy. – Eu disse que estou falido. Não haverá empregados, nem carne alguma. Não tenho nada. Não temos nada.

Roselyn o encarou, boquiaberta. Irene, que ouvia com expressão confusa, teve um sobressalto como se alguém a tivesse esbofeteado.

– Isso quer dizer que não vou ser apresentada à sociedade?

Timothy deu uma risada cruel.

– Querida, você não pode ser apresentada à sociedade londrina se não estiver em Londres. O canalha está tomando esta casa. Ela pertence a Rothwell agora. Vamos voltar para o pouco que temos em Oxfordshire e morrer à mingua por lá.

Irene começou a chorar. Roselyn ficou muda com o impacto da notícia. A gargalhada de Timothy foi se transformando em algo entre um cacarejo e um choramingo.

Alexia sentiu o medo se apoderar dela. Timothy não olhara para ela uma vez sequer desde que entrara na sala. E evitava seu olhar agora. Um pânico silencioso tamborilava em seu peito, querendo se avolumar.

Roselyn recobrou a voz:

– Timothy, podemos viver no campo de novo. Ainda temos a casa e algumas terras. Não será ruim. Nunca passamos fome.

– Será pior do que antes, Rose. Terei dívidas a pagar. Boa parte dos aluguéis irá para isso.

O tamborilar acelerou, espalhando-se por suas veias. Sentia calor e frio alternadamente. O destino que temia desde a morte do pai finalmente a encontrara. Era com dificuldade que mantinha a compostura.

Ela não deixaria Timothy pronunciar sua sentença com todas as palavras. Seria injusto e uma péssima retribuição à família que lhe tinha dado um lar.

Levantou-se.

– Se sua situação vai mudar de forma drástica, não precisarão do fardo de ter mais uma boca para alimentar. Tenho algum dinheiro guardado que poderá me manter até encontrar um emprego. Vou me recolher ao meu quarto para permitir que conversem abertamente sobre seus planos.

Os olhos de Roselyn se umedeceram.

– Não seja boba, Alexia. Seu lugar é conosco.

– Não estou sendo boba, estou sendo prática. Não vou forçar Timothy a dizer que devo ir embora.

– Diga-lhe que não tem que ir, Tim. Ela é tão sensata que vai ser uma ajuda, não um fardo. Ele não quer que você nos deixe, Alexia.

Timothy não respondeu. Nem levantou os olhos.

– Timothy – chamou Roselyn, em tom de repreensão.

– Gastarei tudo o que tenho para manter vocês duas, Rose – disse ele, finalmente se voltando para Alexia. – Sinto muito.

Alexia forçou um sorriso trêmulo e saiu da biblioteca. Fechou a porta atrás de si, deixando Irene e Roselyn aos prantos e Timothy envergonhado. Subiu as escadas correndo e maldizendo, a cada degrau, o homem responsável por aquela tragédia.

Hayden Rothwell era um canalha. Um monstro. Era um daqueles homens que viviam no luxo e destruíam a vida dos outros em um piscar de olhos. Ele não precisava ter retirado todo o dinheiro de uma só vez. Era tão duro e frio como parecia. Não tinha compaixão: esmagaria pessoas sob as botas, se desejasse. Ela o odiava.

Jogou-se na cama e enterrou o rosto no travesseiro de penas, onde destilou todo o seu veneno em Rothwell enquanto chorava. Estava tomada pelo pânico.

Falida. Não podia crer que estava passando por isso de novo. Seu pai falira dois anos antes de morrer. Muito provavelmente tinha sido esta a razão pela qual não fora acolhida por seu herdeiro. O destino agora lhe pregava uma peça estúpida, fazendo-a reviver toda a preocupação e o medo de antes.

A duras penas, foi tentando novamente se centrar. Já havia se perguntado algumas vezes o que faria caso se encontrasse naquela situação. Sempre soubera que isso poderia acontecer. Desesperada, procurou se lembrar dos planos feitos naquelas noites terríveis quando, no escuro, a precariedade da situação em que vivia se avultava sobre ela.

Poderia virar preceptora, se conseguisse boas referências. Tinha linhagem e educação para isso, ainda que tal função oferecesse uma vida horrível.

Também poderia procurar trabalho em uma chapelaria. Tinha jeito para fazer chapéus e gostava dessa atividade. Só que trabalhar em uma loja desse tipo seria a pior das humilhações. Não nascera para essas coisas, mesmo que essa ideia tivesse mais apelo do que ficar presa dia e noite cuidando da filha de outra mulher.

Também poderia se casar, apesar de no momento não ter pretendentes. Ela nem sequer pensara nisso depois de Benjamin. Seu coração era dele e sempre seria. A menina escondida em sua alma encarava com pesar a ideia de casar-se em troca de segurança. Depois de ter conhecido um grande amor, um casamento assim seria horrível. Contudo, sem beleza nem fortuna para atrair um marido, aquele era um assunto com que muito provavelmente não teria de lidar.

Enumerar opções lhe deu um pouco de confiança, ainda que baseada em cenários que não a agradassem tanto. Contava com vinte libras por ano e não iria morrer de fome. Poderia construir seu futuro se deixasse de lado o orgulho. Na verdade, tinha bastante experiência nesse campo.

Olhou em volta do quarto, para os móveis, à luz difusa da lamparina. Não era um cômodo grande. Nem tinha os tecidos luxuosos dos quartos de Irene e Roselyn ou as cadeiras e camas novas que elas haviam comprado no ano anterior. Mas era o seu espaço e tinha sido seu lar desde que Tim se mudara com elas de Cheapside, logo depois de Ben zarpar para a Grécia, fazia quatro anos.

Fechou os olhos e se perguntou quanto tempo demoraria até que Hayden Rothwell a jogasse no olho da rua.


Três dias depois, Alexia estava sentada na sala de café da manhã, lendo os anúncios no Times. A casa reverberava de silêncio. Não que os empregados antes fizessem barulho, mas sua ausência era perceptível. Somente Falkner permanecia, enquanto procurava outro emprego apropriado. Ela podia ouvi-lo na sala de jantar, embalando as porcelanas que Timothy tinha vendido na véspera.

Muito pouco dos luxos adquiridos nos últimos anos voltariam para Oxford-shire com suas primas. Rothwell ficaria com os móveis. Tudo o mais seria vendido. Naquele exato momento, os homens estavam na cocheira negociando o preço das carruagens.

Roselyn entrou no cômodo e se sentou ao lado de Alexia, que serviu café para as duas.

– O que está lendo? – quis saber Roselyn.

– Quartos para alugar.

– Piccadilly não seria ruim, se não fosse tão longe.

– Acho que não terei como evitar ficar longe, Rose.

Rose tinha a aparência de uma mulher que havia chorado um mês sem parar. As olheiras e o vermelho dos olhos eram evidentes.

– Deveria ter me casado com um daqueles homens interessados no meu dinheiro. Teria sido bem feito para eles meu irmão ficar em tantas dificuldades a ponto de precisar vender as vasilhas de metal. Até as vasilhas, meu Deus!

Alexia não conteve uma risada. Roselyn riu também. As duas riram até lágrimas rolarem pelas faces.

– Oh, céus, como é bom rir – disse Rose, sem fôlego. – É tudo tão dramático que chega a ser ridículo. Fico esperando Tim vender minha camisola enquanto durmo.

– Espero que ele não esteja acompanhado por um oficial de justiça nesse dia. Daria ainda mais motivo de fofoca para toda a cidade.

Roselyn riu de novo, com ar triste.

– Vou sentir sua falta, Alexia. O que vai fazer?

– Pedi uma carta de referência à Sra. Harper, já que ela é, das suas amigas, a que me conhece melhor. Procurei uma agência de empregos e me candidatei a vagas de preceptora. Espero que seja aqui na cidade mesmo.

– Você tem que nos mandar notícias de onde estiver, sempre. E prometer que vai nos visitar.

– É claro.

Os olhos de Rose se encheram de lágrimas. Ela abraçou Alexia vigorosamente. Enquanto aproveitava o carinho que logo não mais teria, Alexia viu Falkner chegar à soleira da porta.

– O que foi? – perguntou.

Falkner olhou para ela com o mesmo olhar de três dias atrás. O olhar que dizia que uma tempestade se aproximava.

– Ele está aqui. Lorde Hayden Rothwell. Pediu para ver a casa.

Do jeito que Falkner torceu o nariz, Alexia suspeitou que Rothwell não tivesse “pedido” coisa alguma.

– Não o receberei – disse Rose. – Mande-o embora.

– Ele não perguntou pela senhorita, mas por seu irmão, que saiu. Então pediu que eu lhe mostrasse onde esperar.

– Diga-lhe que não. Eu o proíbo. Logo a casa será toda dele – gemeu Roselyn.

O prazo para entrega da casa não fora determinado, o que era motivo de preocupação para Alexia.

– Você não está sendo sensata, Rose. Não vale a pena enfurecer o homem neste momento. Nem é obrigação de Falkner nos servir. Vou atender o visitante para lhe poupar o trabalho.


Lorde Hayden esperava no hall, rodeado por paredes que já se encontravam despidas de quadros. Quando Alexia entrou, ele estava inclinado, examinando uma mesa de canto marchetada, sem dúvida calculando seu valor.

Ela não esperou por sua atenção nem por suas saudações.

– Senhor, meu primo Timothy não está na propriedade. Creio que esteja cuidando da venda dos cavalos. A Srta. Longworth está indisposta. Posso ajudar no assunto que o trouxe aqui?

Ele se aprumou e voltou seu olhar para ela. A contragosto, ela admitiu que ele estava maravilhoso naquele dia, vestido com roupas de montaria, um paletó azul e colete de seda estampado em tons de cinza. Seu porte, expressão e vestimenta anunciavam ao mundo que sabia que era bonito, inteligente e podre de rico. Era de muito mau gosto ir assim a uma casa que estava sendo destituída de seus bens e de sua dignidade.

– Esperava que um criado viesse...

– Não há mais criados. A família não pode mais mantê-los. Falkner vai ficar até conseguir outro emprego, mas não está mais trabalhando. Creio que o senhor não tem alternativa a não ser falar comigo.

Ouviu sua própria voz soar ríspida e pouco amigável. As pálpebras dele baixaram o bastante para indicar que percebia a falta de respeito.

– Acredito que não tenhamos mesmo alternativa, Srta. Welbourne. Meu objetivo ao vir sem ser convidado é muito simples. Tenho uma tia que está interessada nesta casa. Ela me pediu para verificar se seria apropriada para ela e sua filha nesta temporada.

– O senhor quer conhecer a casa para poder descrevê-la a prováveis moradores?

– Se a Srta. Longworth me fizer essa gentileza, sim.

– O coração dela é cheio de gentileza na maioria das vezes. Contudo, ela está ocupada demais para atender seu pedido. Ser levada à falência e ser destituída de seus bens é algo que deixa qualquer mulher sem tempo algum.

O queixo dele se retraiu o suficiente para dar-lhe uma pequena satisfação. A vitória foi breve. Ele pousou o chapéu na mesa de marchetaria.

– Então, terei que achar o caminho sozinho. Quando disse que minha tia estava interessada, não me referi a uma mera curiosidade, mas a um interesse patrimonial. Esta casa já pertence a minha tia, Srta. Welbourne. Timothy Longworth assinou os documentos ontem. Se fiz um pedido, foi apenas para ser cortês com a família dele.

A notícia a deixou estupefata. A casa já tinha sido vendida. Que rapidez! Começou a calcular o que isso significaria para os planos dela e para Roselyn e Irene.

– Peço desculpas, senhor. A venda da casa não havia sido comunicada nem à Srta. Longworth nem a mim. Vou lhe mostrar a casa, se estiver bem assim.

Ele assentiu e ela começou a árdua tarefa. Mostrou-lhe a sala de jantar, onde seus olhos de lince não perderam nenhum detalhe. Ela o notou medindo espaços mentalmente e o ouviu contando cadeiras.

O resto do primeiro andar foi rápido. Ele não abriu gavetas nem armários na despensa. Alexia imaginou que soubesse que já estava tudo vazio.

– A sala de café da manhã é logo atrás desta porta – disse ela, ao voltarem para o corredor. – Minha prima Roselyn está lá. Peço que aceite minha descrição em vez de ir conferir por si mesmo. Temo que ela fique muito aborrecida ao vê-lo.

– Por que ela ficaria aborrecida com a minha presença?

– Timothy nos contou tudo. Roselyn sabe que o senhor levou o banco à beira da falência e nos deixou nesta situação.

Um sorriso implacável lhe surgiu no canto da boca. A crueldade do homem era mesmo ímpar. Ele percebeu o olhar dela fitando-o. Não parecia constrangido por ela ter visto esse sorriso cínico.

– Srta. Welbourne, não preciso ver a sala de café da manhã. Sinto muito por sua prima, mas as questões de altas finanças estão em um plano diferente da vida cotidiana. As explicações de Timothy Longworth foram simplificadas, com certeza porque ele as estava dando a damas.

– Elas podem ter sido simples, mas foram claras, assim como suas consequências. Há uma semana, meus primos viviam no luxo em Londres e em breve viverão na pobreza no interior. Timothy está falido, teve de vender sua parte na sociedade do banco e, ainda assim, continuará arcando com dívidas. Algum desses fatos está incorreto, senhor?

– Não, estão todos corretos – respondeu ele, balançando a cabeça.

Ela não podia crer em sua indiferença. O homem poderia pelo menos parecer um pouco constrangido. Em vez disso, agia como se isso fosse normal.

– Podemos subir? – perguntou ele.

Ela mostrou o caminho para o andar de cima, entrando na biblioteca. Ele não se apressou ao passar os olhos pelos livros nas estantes, enquanto ela aguardava.

– A senhorita vai com eles para Oxfordshire? – perguntou ele.

– Não me permitiria ser um fardo para essa família agora.

A atenção dele permaneceu nos livros.

– O que vai fazer?

– Tenho tudo acertado para meu futuro. Fiz planos e listei minhas expectativas e oportunidades.

Ele recolocou um livro na estante e rapidamente passou os olhos pelo tapete, a escrivaninha e os sofás, andando na direção dela em seguida.

– Quais oportunidades está vislumbrando?

Ela o conduziu aos outros cômodos no andar.

– Minha primeira opção é ser preceptora na cidade. A segunda é ser preceptora em outro lugar.

– Muito sensato.

– A sensatez é algo bastante conveniente diante da ameaça da fome, concorda?

Os cômodos do terceiro andar não eram tão espaçosos quanto os de uso comum. O corredor mais estreito os aproximava. Ao mostrar-lhe os quartos, ela notava a presença forte e masculina ao seu lado. Parecia muito inadequado esse estranho estar lá.

– E se não achar emprego como preceptora?

A pergunta casual veio algum tempo após sua última troca de palavras.

– A outra opção é me tornar chapeleira.

– Uma fabricante de chapéus?

– Tenho muito talento nessa área. Daqui a alguns anos, se vir uma mulher pobre usando um belo chapéu habilmente fabricado apenas com uma cesta velha, penas de pardal e maçãs secas, esta serei eu.

A curiosidade dele fizera com que Alexia deixasse de esconder sua irritação. Parecia inverossímil que o homem que causara tanto sofrimento quisesse saber detalhes. Ela escancarou a porta do quarto de Irene.

– A quarta opção é me tornar cortesã. Há quem diga que uma mulher deveria preferir morrer de fome a isso, mas suspeito que essas pessoas não tenham de fato se visto diante dessa necessidade, como talvez aconteça comigo.

Esse comentário lhe valeu um olhar duro. Além do desconforto por ela estar ridicularizando o fato de ele não sentir qualquer culpa, Alexia também percebeu a ousadia de um olhar masculino que avaliava suas possibilidades na quarta opção da lista.

Alexia enrubesceu. O calor percorreu sua pele, avivando-a e a atingindo bem no íntimo, afetando-a de uma forma chocante. Teve uma incontrolável e traiçoeira consciência dos muitos recantos do próprio corpo. A sensação a estarreceu ao mesmo tempo que a estimulou deliciosamente.

Ela precisou dar um passo atrás, para fora do quarto e para longe das vistas dele, de modo a escapar do rápido aumento na pulsação que a proximidade de Hayden lhe causava. Nos poucos segundos antes de ele voltar para junto dela, Alexia fez um esforço para se lembrar da raiva, a fim de aplacar seu chocante arroubo de sensualidade.

Ela continuou a lhe dar alfinetadas, de forma que ele soubesse que ela não se importava com o que pensava. Queria que aquele homem percebesse o sofrimento que sua ambição tinha causado.

– Minha quinta opção é virar ladra. Refleti muito sobre o que deveria vir antes, a libertinagem ou o roubo. Decidi que, apesar de a primeira opção ser um trabalho mais árduo, é uma forma de comércio honesto, enquanto ser ladra é pura maldade. – Ela parou por um momento, mas não resistiu a acrescentar: – Não importa como seja feito ou se é considerado legal ou não.

Ele parou e invadiu seu caminho, forçando-a a se deter também.

– A senhorita fala de maneira muito franca.

A presença dele se impunha à sua frente no corredor estreito. O olhar demandou sua total atenção. Certo poder se fez sentir, um poder masculino, dominador e desafiador. A intuição dela dizia para se afastar. A excitação ronronava baixa e profundamente. Ela ignorou ambas as reações e se manteve firme.

– Foi o senhor que me perguntou sobre meu futuro, apesar de não lhe fazer a menor diferença o que acontecerá com qualquer um de nós.

Sua raiva vinha em um crescendo desde que tinham deixado o hall. O frio autocontrole daquele homem durante a volta pela casa só tinha posto mais lenha na fogueira.

Ela o olhou de frente.

– O senhor destruiu a vida de pessoas boas e decentes. Não precisava ter retirado todos os seus negócios do banco de Timothy, arruinando-o deliberadamente. Não sei como consegue colocar a cabeça no travesseiro à noite e dormir.

Seus olhos azul-escuros ficaram negros nas luzes opacas do corredor. Seu queixo se enrijeceu. Ele estava com raiva. Que bom, ela também.

– Durmo muito bem, obrigada. E, sem o devido conhecimento sobre as questões financeiras, sua visão se torna bastante limitada. Sinto muito pela Srta. Longworth e sua irmã, e pela senhorita também, mas não vou me desculpar por ter cumprido meu dever como julguei adequado.

O tom dele a deixou embasbacada. Tranquilo, porém firme, ele punha um ponto final na discussão. Ela recuou, mas não por essa razão: estava perdendo o ar. Esse homem não se importava com os outros. Se se importasse, não estaria fazendo esse reconhecimento da casa.

Ela o guiou ao andar de cima, onde ficavam os quartos mais altos, mas ele parou do lado de fora de uma porta, perto do patamar da escada.

– O que é este cômodo?

– É um quartinho, sem utilidade específica. No passado, foi o quarto de vestir do quarto ao lado. Bem, lá em cima...

Ele girou a maçaneta e abriu a porta. Entrou no pequeno cômodo e observou cada detalhe. Os dois livros ao lado da cama, o armário pequeno quase vazio, as cartas ordenadas sobre a escrivaninha, tudo chamou sua atenção. Pegou um chapéu que estava pousado sobre uma cadeira perto da janela.

– É o seu quarto – falou.

Era verdade. E a presença dele ali, investigando seus pertences, criava uma intimidade que a deixou desconfortável. Ver aquele homem tocando seus objetos pessoais era quase como tê-lo tocando-a. Essa proximidade física tornava sua excitação ainda mais chocante e embaraçosa.

– Por enquanto, é o meu quarto.

Ele ignorou a farpa. Examinou o chapéu, girando-o de um lado para outro. Era o que ela havia começado a refazer no jardim três dias antes. Ninguém o reconheceria. Tinha refeito a borda, forrando-o de musselina creme finamente trabalhada, e enfeitado-o com fitas azuis. Ainda não decidira se iria acrescentar algum enfeite de musselina perto da copa.

– A senhorita tem talento.

– Como eu disse, ser chapeleira é apenas a opção número três. Se uma dama trabalhar em uma loja desse tipo, não pode mais se dizer uma dama, não é verdade?

Ele pousou o chapéu com cuidado.

– Não, não pode. No entanto, é algo mais respeitável do que ser cortesã ou ladra, embora bem menos lucrativo. Sua lista está na ordem correta se seu objetivo for a respeitabilidade.

Ela ainda o odiava no momento em que terminaram a visita. Contudo, já não poderia dizer que ele lhe era um completo estranho. Entrar nos quartos juntos, vendo os artefatos da vida cotidiana da família e com tanta proximidade – excessiva até – nos andares mais altos tinha criado uma familiaridade inoportuna.

Sua suscetibilidade à presença dele a deixara em desvantagem. Ela queria acreditar que era superior a essas reações, principalmente com esse homem, que certamente acreditava agradar a todas as mulheres. Ressentia-se de ter passado uma hora inteira na sua companhia.

Voltaram para o hall, onde ele pegou seu chapéu. Ela retomou o motivo de ter concordado em recebê-lo:

– Lorde Hayden, Timothy está com a cabeça nas nuvens. Ele não está contando todos os detalhes a suas irmãs. Se não for muita ousadia...

– A senhorita já foi bastante ousada sem pedir permissão, Srta. Welbourne. A essa altura, não é preciso fazer cerimônia.

Ela realmente tinha sido ousada e tagarela. Permitira que a raiva vencesse o bom senso. Na verdade, não tinha sido muito prática na situação em que mais necessitara dessa virtude.

– Qual é a sua pergunta?

– Já informou a Timothy quando os Longworths têm que esvaziar a casa?

– Ainda não. – Ele lhe dirigiu um olhar desconcertantemente franco. – Quando a senhorita acha que seria razoável?

– Nunca.

– Isso não é razoável.

– Quinze dias. Por favor, dê-lhes mais duas semanas.

– Que seja. Os Longworths podem ficar até lá. – Ele estreitou os olhos em sua direção. – Quanto à senhorita...

Ai, meu Deus. Ela havia despertado o demônio com sua língua grande. Ele ia pô-la no olho da rua imediatamente.

– Minha tia tem paixão por chapéus.

Ela piscou.

– Chapéus? Sua tia?

– Ela ama chapéus. E paga preços exorbitantes por eles. Sei disso porque sou administrador de sua fortuna e pago suas contas.

Era um assunto estranho para se falar na saída. Ele pareceu um pouco tolo.

– Bem, chapéus costumam ser caros – falou Alexia.

– Os que ela compra também são bem feios.

Ela sorriu e assentiu, desejando que partisse logo. Queria contar a Roselyn que teriam mais duas semanas de prazo.

– Preceptora, a senhorita disse. Sua primeira opção. Tem estudos para ser uma preceptora qualificada?

– Estava ajudando a preparar minha prima mais nova para ser apresentada à sociedade. Possuo as habilidades e os talentos necessários.

– Música? A senhorita toca algum instrumento?

– Sou adequada para ser preceptora de moças. Minha própria educação foi requintada. Nem sempre fui como me vê agora.

– Isso é óbvio. Se tivesse sido sempre como hoje, não teria coragem de falar comigo da forma rude e direta como fez.

O rosto dela enrubesceu intensamente. Não porque Alexia fora rude e Hayden notara, mas porque a atenção que ele lhe estava dispensando começava a acender nela aquela excitação estúpida de novo.

– Srta. Welbourne, minha tia, Lady Wallingford, vai tomar posse desta casa porque vai apresentar sua filha à sociedade em breve. Minha prima Caroline precisa de uma preceptora e minha tia, de uma dama de companhia. Tia Henrietta é... bem... Digamos que seria aconselhável ter uma influência sensata na casa.

– Uma influência que a impedisse de comprar chapéus feios?

– Exatamente. Como a situação combina com sua primeira opção na lista, estaria interessada no emprego? Como foi tão sincera comigo, creio que também diria à minha tia quando um chapéu for ridículo.

Ele estava pedindo que ela ficasse naquela casa em que tinha sido um membro da família, só que agora como criada. Ele estava pedindo que servisse ao homem que arruinara os Longworths e destruíra sua frágil sensação de segurança. Ele estava pedindo que ela ajudasse sua jovem prima a ser apresentada à sociedade, uma oportunidade que fora negada a Irene.

É claro que lorde Hayden não enxergava nada disso. Ela era apenas uma solução conveniente para compor o quadro de empregados de sua tia. Tinha uma combinação singular de habilidades que a tornava perfeita para o cargo. Mesmo que houvesse notado como isso era ultrajante, aquele homem não se importaria.

Ela quis recusar a proposta imediatamente. Esteve prestes a dizer algo muito mais direto e rude do que havia feito até o momento.

Mordeu a língua. Não poderia se dar ao luxo de dizer impropérios agora.

– Vou pensar na sua oferta, senhor.


CAPÍTULO 3

– Ouvi um boato sobre você ontem à noite no White’s.

A declaração inesperada ecoou pelo salão e fez com que Hayden errasse a bola que vinha em direção a ele.

– Sua função é marcar os pontos, Suttonly, não ajudar Chalgrove me distraindo.

– Marcar os pontos é um tédio. Se eu o distrair, você perde e então é a minha vez de jogar.

Hayden sabia que o egoísmo era um traço da personalidade do visconde Suttonly desde que haviam ficado amigos, na universidade. Mas ele não era só isso e Hayden aceitava o lado ruim que vinha junto com o bom. O mesmo homem esguio e vaidoso que estava languidamente posicionado no centro da quadra, interferindo nos saques e nas jogadas, era capaz de demonstrar grande generosidade quando queria.

Chalgrove se adiantou para ficar em posição de saque.

– Você sabia que não teríamos um quarto jogador hoje e que precisaríamos nos revezar.

– Você quer dizer que Rothwell e eu teríamos que nos revezar. Você sempre ganha, então sempre continua jogando.

Suttonly levantou seu rosto longo e de feições finas e tentou em vão olhar Chalgrove de cima, mas o outro era um palmo maior do que ele. O cabelo dourado de Suttonly tinha sofrido a tortura dos ferros quentes naquela manhã. Os cachos perfeitamente desalinhados não iam sobreviver ao jogo.

– É ele quem tem permissão para usar esta quadra – lembrou Hayden.

Se não fosse pela paixão de Chalgrove pelo tênis e por sua vitória inesperada em uma jogatina contra o rei três anos antes, eles nem sequer estariam ali. Em pagamento por aquela dívida de jogo, Chalgrove tinha pedido permissão para usar a antiga quadra de tênis de Hampton Court quando quisesse. Como o esporte saíra de moda e ninguém mais queria ir lá, o rei teve grande satisfação em conceder esse favor real.

Suttonly foi expressar seu tédio nas linhas laterais. Chalgrove assumiu a ofensiva. Hayden percebeu que perderia em breve.

O conde de Chalgrove parecia muito robusto e moreno quando comparado à brandura loura de Suttonly. Mas, durante o jogo, seu corpo musculoso se mostrava surpreendentemente ágil. Atleta nato, seus saques poderosos combinavam bem com a habilidade para mandar a bola de couro na direção dos telheiros e outros pontos difíceis para os adversários.

Hayden observou a bola ricochetear acima da cabeça do outro e cair.

– Bola fora, Rothwell – anunciou Suttonly.

O visconde deu alguns passos à frente e bateu de leve com sua raquete na cabeça de Hayden.

Hayden assumiu a posição de marcador. Apesar de uma parte de sua mente se manter na contagem de pontos, o restante dela se voltou para os negócios com Timothy Longworth. Sua família estaria partindo de Londres em breve, mas não tinha chegado nenhuma carta da Srta. Welbourne falando do emprego que ele lhe oferecera. Não gostava de pensar no preço de seu orgulho. Ela acabaria morando em algum apartamentinho de uma rua violenta, levando uma vida miserável.

Sua falta de senso prático significava que agora ele teria que procurar outra preceptora e dama de companhia. Tia Henrietta chegaria a Londres em poucos dias. Não podia mais esperar a resposta da Srta. Welbourne.

Chalgrove precisou de menos tempo para despachar Suttonly. Depois eles se retiraram para as salas do clube acima da quadra. Chalgrove tinha trazido criados e bebidas geladas. Enquanto lanchavam, Suttonly tocou de novo no assunto da fofoca que corria solta pela cidade.

– Andam dizendo que...

– Não estou interessado – disse Hayden.

– Mas eu estou – disse Chalgrove. – É raro ouvir uma boa fofoca sobre você, Rothwell. Normalmente é sobre quanto dinheiro ganhou nesse ou naquele investimento. Falando nisso, não há nada que queira contar a dois velhos colegas de escola? Ou está esperando que a tempestade passe para lançar o próximo navio?

Suttonly não gostava de ter a atenção roubada de si.

– Andam dizendo – repetiu ele com firmeza – que você arruinou Timothy Longworth.

Isso impressionou até Chalgrove.

– É mesmo? Não sabia que ele estava arruinado, muito menos que você era o responsável.

– Se você viesse à cidade, tomaria ciência do que acontece no mundo – repreendeu-o Suttonly com indolente superioridade antes de se virar novamente para Rothwell e dizer: – O que aconteceu com Longworth? Ele está vendendo tudo tão rápido que o pessoal anda brincando que ele é até capaz de fazer liquidação das irmãs. Você era muito amigo do irmão dele. Ele deve tê-lo enraivecido muito para que decidisse arruiná-lo.

– Eu não o arruinei. A mudança na sorte do homem é problema dele. Quanto aos meus planos, há um acordo sendo firmado em relação a um empreendimento na América do Sul. É muito arriscado, mas vou enviar os documentos a vocês dois. Suponho que guardarão o sigilo de sempre.

– Pode contar comigo – disse Suttonly, fisgando um pedaço de presunto do prato de frios. – Redija os papéis e me avise quando estiverem prontos para a assinatura.

– Nas Américas? Isso não vai ser igual ao esquema de McGregor anos atrás, não é? – implicou Chalgrove. – Você não vai emitir títulos de um país que não existe, como ele fez, não é?

– Se ele fizesse isso, provavelmente encontraria um jeito de compensar os clientes da forma mais sábia possível – disse Suttonly. – Por meu pai morto e os filhos que ainda não tenho, Rothwell, ainda bem que tive a esperteza de ficar seu amigo nos tempos de escola.

– O esquema de McGregor estava fadado ao fracasso. Ele não vai poder fazer novas vítimas de suas fraudes para sempre a fim de pagar as vítimas anteriores. Um dia o castelo de cartas vai desmoronar – disse Hayden.

Hayden Rothwell gostaria que todos – Suttonly, em especial – aprendessem a ser mais desconfiados em relação a investimentos. Se Hayden fosse McGregor, Suttonly teria empenhado sua fortuna para comprar títulos do país fictício de Poyais, nas Américas. Como todos os outros, ele nem teria se dado o trabalho de consultar primeiro um mapa para achar a localização do país.

– Suspeito que haja alguma falcatrua no cerne da crise atual – disse Chalgrove.

Suas sobrancelhas franzidas preocuparam Hayden. Chalgrove não vinha mais para a cidade, porque no ano anterior herdara um imóvel no campo que precisava desesperadamente de cuidados.

– Você perdeu muito dinheiro? – questionou Hayden.

– Não muito, mas o bastante. Tinha uns negócios pequenos com um banco do interior que era correspondente do Pole, Thornton and Company de Londres. Quando eles faliram em dezembro, nosso estabelecimento foi junto – disse ele, dando de ombros, mas não com indiferença. – Muitos homens com negócios bons e sólidos abriram falência por conta disso. Ainda vai haver muito problema antes que esse pânico acabe.

– Mas não há nada que se possa fazer a respeito, não é? – cortou Suttonly, suspirando. – Não vamos ficar nos lamentando pelo que não podemos mudar. Apesar de todas as preocupações, a cidade ainda está movimentada e divertida e se aproxima a época em que as jovens serão apresentadas à sociedade. Chalgrove, prometa que vai permanecer na cidade este ano. Fiquei meio entediado na última apresentação e espero evitar esse estado de ânimo desta vez. Você pode procurar uma noiva rica para resolver seus problemas. Se ela for bonita, pode ser até que você se apaixone.

– Chalgrove não é um tolo romântico como você – disse Hayden. – Você ficou entediado porque está envelhecendo e tem menos chances de se entregar às tolices românticas agora.

– Você se entedia muito facilmente, de qualquer forma – disse Chalgrove. – A vida seria mais gratificante se tivesse algo constante que lhe interessasse.

– Você quer dizer estudar matemática, como ele? Pegar no pesado nas minhas terras, como você? Rezo para nunca ficar velho assim. Quanto a me entregar a tolices românticas, pretendo nunca deixar de fazê-lo. A paixão torna a vida excitante nos poucos meses que dura – disse ele, sacando o relógio do bolso. – Só posso ficar para mais uma partida, Chalgrove. Vou começar sacando desta vez.


– Ouvi boatos sobre você na noite passada, no clube.

Era a tarde seguinte e Hayden levantou os olhos do livro que estava lendo. Havia vencido poucas páginas. Sua mente estava ocupada, pensando em outros assuntos. A chegada inesperada de seu irmão Christian à biblioteca o distraiu ainda mais.

Christian raramente passava a tarde na biblioteca. Seu breve comentário ao se acomodar em uma cadeira acolchoada perto de Hayden explicava o motivo de aquela tarde ser diferente. Era perturbador saber de dois boatos a seu respeito em menos de dois dias. Hayden era o tipo de homem de hábitos regulares e personalidade calma que raramente interessava aos fofoqueiros.

– Não estou flertando com a Sra. Jameson, apesar do que ela anda contando aos amigos – disse Hayden.

– Não era esse tipo de boato, o que nunca me interessaria. Se um dia você se casar, nunca será com uma mulher daquelas.

O “se um dia” dito com tanta propriedade sugeria que seu irmão duvidava da possibilidade de Hayden vir a se casar. O “uma mulher daquelas” não era uma crítica à viúva em questão, mas deixava claro que Christian conhecia bem o gosto de Hayden, muito mais do que o próprio.

Eles se davam bem, tanto que Hayden continuava morando na casa de Easterbrook, em Grosvenor Square. No entanto, as suposições de Christian de que conhecia os irmãos mais novos melhor do que eles mesmos e as suspeitas de Hayden de que isso talvez fosse verdade eram algo irritante.

– O boato tinha a ver com dinheiro. E com seu relacionamento com o banco Darfield e Longworth.

Hayden pôs o livro de lado.

– Você é contra minha decisão de deixar nossas contas lá?

A interferência de Christian infringia um acordo que haviam feito quando ele voltara à Grã-Bretanha depois de ter viajado durante dois anos por sabe lá Deus onde. Apesar de recém-saído da faculdade, Hayden cuidara das finanças da família nesse momento de necessidade. Christian poderia ter assumido a tarefa ao voltar, mas pediu que Hayden continuasse.

– Não faço objeções à sua decisão. Só estou curioso se você realmente confia que o banco não vá falir.

– Se isso acontecer, uso meu próprio dinheiro para compensar quaisquer perdas que você ou os outros sofram. Se necessário, volto até às mesas de jogos.

Os olhos escuros de Christian cintilaram com uma expressão de frieza. A aura de autoridade que ele exalava de repente se fez notar. Era algo que derivava mais do que de seu título de nobreza ou do status de irmão mais velho. Algo havia ocorrido durante aqueles dois anos no exterior que se tornara a fonte desse poder contido e sóbrio.

Christian nunca falara muito de seu tempo fora e das aventuras que tinha vivido. Hayden percebera de imediato como as experiências o tinham mudado. Seu irmão mais velho deixara a Inglaterra como um marquês recém-empossado, instruído e zeloso. Voltara experiente demais, amadurecido demais e um tanto estranho.

– Não peço que aposte sua própria fortuna em suas decisões. Só quero saber se tomou essa decisão em particular com base em seu brilhantismo financeiro de sempre, ou se foi dominado pela emoção.

– Nunca teria deixado as contas lá se achasse que o banco não sobreviveria.

Hayden considerou a conversa encerrada e retomou a leitura.

– Não foi o fato de você ter deixado as contas lá – disse Christian depois de um longo silêncio. – Não era esse o boato.

– Então qual foi o boato que você ouviu?

– Que você de alguma forma arruinou Longworth e o forçou a vender sua parte no banco. Que manipulou a situação para ele falir.

– Mas como você verificou se retirei nossos depósitos e viu que não, já sabe que esse boato não é verdadeiro.

– Ninguém me disse que você o tinha arruinado retirando o dinheiro. Disseram que você manipulou a situação para que Longworth falisse, o que é bem diferente. Não entendo o motivo. Os Longworths são uma família tradicional no nosso condado. E, para começo de conversa, você contribuiu para o enriquecimento deles e foi amigo de Benjamin.

Hayden instintivamente levou uma das mãos ao peito. Ele não sentia a cicatriz por baixo das roupas, mas pensar em Ben sempre fazia com que se lembrasse da dor que a causara. Qualquer ajuda que tivesse dado a Benjamin Longworth já tinha sido mais do que compensada na Grécia. Isso significava que a balança tinha pendido de novo, para o outro lado, na noite em que Ben morreu.

Ele tinha errado com o amigo naquela noite no navio ao não forçá-lo a descer, quando era óbvio que Ben estava bêbado. Pior ainda, tratava-se de um amigo que havia salvado sua vida.

– Está preocupado com minha honra, irmão mais velho?

– Eu deveria estar?

Hayden o fitou.

Christian não baixou o olhar, agindo de forma plácida e paciente. Eles eram muito parecidos, mas qualquer pessoa que entrasse na biblioteca não perceberia isso de imediato. O cabelo escuro de Christian era longo, até mesmo para a moda atual. Suas ondas atingiam os ombros do robe de seda preto que ele vestira ao se levantar naquela manhã. Também não era um robe comum. Ele ostentava uma estampa e um corte exóticos, quase orientais, e era menos estruturado do que os modelos masculinos comuns. A típica falta de formalidade de Christian em casa também fazia com que não usasse uma camisa por baixo do robe, de forma que sob ele não se via uma gola, apenas pele.

Hayden pensou em como o irmão mais velho parecia empertigado e arrumado enquanto o pai deles era vivo. Ele tinha sido tão irrepreensivelmente correto todos aqueles anos. Então, meses depois de assumir o título, desaparecera para depois voltar com aquela desconcertante aparência mundana.

– Os homens fracassam nos negócios o tempo todo – falou Hayden. – É como uma justa. Um homem entra no torneio sabendo que pode perder seu cavalo. Fracassar é sempre um risco.

– Não para você. Não com a mente e os instintos de que dispõe ao entrar na disputa. Se o jovem Longworth tivesse sido outro cavaleiro, e não um mero escudeiro, sua analogia poderia funcionar. No entanto...

– Como você optou por não entrar na competição, fique fora disso.

Hayden engoliu seu crescente rancor. Na verdade, esse sentimento não se dirigia a Christian, mas à sua tendência irritante de incitar o lado negro da alma das pessoas.

– A ruína de Longworth se deve unicamente à sua falta de bom senso. Minha honra está intacta.

Christian pareceu aceitar isso.

– Você tem um lado impiedoso. Nesse ponto, somos bem parecidos. É preciso manter a vigilância para controlar isso, como tenho certeza de que você sabe.

– Cuide da salvação de sua própria alma. Não preciso de ajuda com a minha.

– Todos nós precisamos de ajuda. Contudo, se você diz que não se deixou levar por esses sentimentos, aceitarei que a ruína de Longworth foi obra dele mesmo.

A questão tinha sido definitivamente essa, mas, para evitar maiores consequências além da mera ruína, Hayden tinha sido forçado a conduzir o canalha por muitas reuniões, confissões e promessas nos últimos dias. Com certeza, no clube, na noite anterior, um dos homens que ouvira essas promessas tinha aludido ao papel de Hayden.

Christian se levantou para ir embora.

– É uma pena pelas irmãs. Às vezes as encontro na cidade. A mais velha é estonteante. Se não fosse por sua amizade com o falecido irmão, estaria tentado a ficar com ela.

– Tirar vantagem da má sorte da moça e garantir que o fracasso fosse completo seria algo altamente desonroso, não acha?

Christian deu de ombros.

– Na Inglaterra, sim. Bem, como disse, é preciso manter a vigilância.


A bandeja de prata brilhou à luz da tarde que penetrava pela janela. O cartão sobre ela surpreendeu Hayden.

A Srta. Welbourne estava lá.

Ele passou o polegar sobre o papel e sentiu o alto-relevo de ótima qualidade. Imaginou a moça tirando dinheiro de sua renda magra e decidindo que o cartão que ostentaria seu nome deveria ser digno de uma dama, não importava o sacrifício.

– Vou recebê-la.

A visita dela lhe provocou remorsos. Sua descoberta a respeito do roubo de Longworth atingira muitos inocentes.

É claro que a Srta. Welbourne tinha sido atingida bem antes da descoberta. Entre suas deliberações, enquanto tentava ler na biblioteca, havia algumas em relação a ela. Precisava elaborar uma estratégia para devolver os recursos da moça sem que ela soubesse que tinham sido retirados por Longworth.

Sua palavra de honra o impedia de lhe explicar o que tinha acontecido. Duvidava que ela lhe seria grata por saber a verdade, mesmo que pudesse revelá-la. Isso destruiria sua ligação com as pessoas que considerava sua família. Havia também a hipótese de ela se sentir tão traída a ponto de querer ser a primeira a mandar Longworth para a cadeia.

Abriu as portas da sala de visitas e viu a Srta. Welbourne com sua dama de companhia. Ela trouxera a prima mais jovem. Os olhos de Irene Longworth estavam fixos no relicário medieval cravejado de pedras preciosas que Christian tinha colocado em uma mesa ao lado da janela.

O olhar da jovem se voltou para Hayden quando ele entrou e nele permaneceu enquanto se cumprimentavam. Ele reconheceu sua expressão muda e embasbacada. Estava cansado de vê-la em outras moças ingênuas. Preferia a expressão madura e autocontrolada que a Srta. Welbourne dirigiu a ele.

– Irene, por que não vai olhar os quadros? – sugeriu a Srta. Welbourne. – Ela se interessa por arte, lorde Hayden, e pensei em dar-lhe a oportunidade de ver parte da coleção de Easterbrook hoje.

Com o consentimento de Hayden, a garota começou a caminhar próxima às paredes, examinando as obras.

– Foi muita gentileza sua trazê-la, se tem tanto interesse por arte – disse ele. – Pensei que talvez o motivo real fosse me lembrar do que ela perdeu.

– Esse foi um dos motivos, mas a oportunidade de ver parte da famosa coleção de Easterbrook foi outro. Além disso, quando ela for para Oxfordshire, fará diferença poder falar da visita que fez a esta casa. Algumas pessoas com posses muito superiores às dela nunca terão essa oportunidade.

A Srta. Welbourne falava com a mesma franqueza que marcara as conversas dos dois desde o início. Ocorreu-lhe que seria tratado da mesma forma se não tivesse arruinado Longworth.

Ele gostava disso. Algo nele fazia com que a maioria das mulheres assumisse uma atitude irritantemente fútil. A falta de medo e de nervosismo por parte dela era revigorante. Criava pequenos e encantadores desafios. Sua postura durante o tour pela casa o provocara de muitas formas e carregara o ar entre eles com muito mais do que contrariedade.

Ela sentira o mesmo, ele tinha certeza, só que não gostava dessa sensação. Talvez nem a entendesse direito.

– Além disso, precisava trazer alguém comigo, não é verdade? – disse ela. – Não temos mais criadas, nem mesmo um lacaio. Como Irene sempre sonhou em vir a um baile aqui, um sonho que Roselyn e eu tentamos controlar mesmo nos bons tempos, pensei que ela pelo menos poderia ver suas obras de arte.

A garota obviamente tinha sido instruída a se manter distante e discreta. Ela se reclinou em direção a um quadro de Poussin do outro lado da sala.

Hayden chamou um lacaio.

– Leve a Srta. Longworth até a governanta – ordenou ao homem quando ele chegou. – Diga-lhe para guiar a moça pelo salão de baile e pela galeria.

Mal se contendo de alegria, Irene seguiu o criado. A Srta. Welbourne observou sua saída.

– É muita generosidade de sua parte.

– Se ver esta sala de visitas a ajudará em Oxfordshire, descrever o salão de baile só pode melhorar ainda mais sua posição.

Ele se sentou em uma cadeira que lhe permitia ver de frente o rosto da Srta. Welbourne.

– Como a senhorita precisava trazer alguém consigo, entendo que o objetivo desta visita seja um assunto seu, não dela – comentou Rothwell.

O olhar de Alexia se inflamou. Aquela mulher não gostava muito dele, isso estava bem claro.

Um arco lilás no chapéu de Alexia fazia sobressair ainda mais a cor de seus olhos. Era um chapéu simples, mas parecia muito caro com aquela borda, a copa de seda celestial e rosas enfeitando o arco. Talvez ela mesma tivesse feito o chapéu. Como o cartão de visita, ele demonstrava sua posição, mesmo que essa posição lhe tivesse escapado por entre os dedos.

– Considerei a oferta que me fez na casa de meu primo em sua última visita – disse ela. – Gostaria de conversar sobre isso e ver se conseguimos chegar a um acordo.

Tinham-se passado doze dias desde a oferta. Com a mudança iminente da casa, parecia que ela finalmente tinha se decidido pela praticidade.

Ele decidiu facilitar as coisas para ela sendo breve.

– O salário será o normal para a situação e...

Ela levantou o indicador, detendo-o. Seu tutor costumava fazer isso quando ele era garoto.

– Aceito o salário normal. No entanto, como estarei ocupando dois cargos, o de preceptora e o de dama de companhia, acredito que deveria receber dois ordenados, sobretudo levando-se em conta que o senhor não terá os gastos de manter mais um criado na casa. Além disso, gostaria que o salário fosse pago mensalmente. Vou querer mandar parte do dinheiro para Rose e Irene. Não quero que elas precisem esperar muito para terem algum desafogo.

Ela estava a dois dias de ser despejada, mas fazia exigências desmedidas, como se pudesse apresentar as melhores referências da Inglaterra, em vez de nenhuma. A julgar por sua repetida menção ao problema financeiro dos Longworths, ela esperava que a culpa dele lhe desse alguma vantagem nas negociações.

Fascinado, ele colocou o cotovelo no braço da cadeira e descansou o queixo no punho fechado.

– Acredito que o pagamento mensal possa ser providenciado. Quanto ao salário, a senhorita não passará todo o tempo desempenhando cada um dos papéis. Isso é impossível, portanto o pagamento integral por dois cargos não se justifica.

– Um e meio, então. O senhor tem que admitir que é justo.

Ele quase deu uma risada.

– Bastante justo para a senhorita. Está certo, um e meio.

Ela teve um gesto de alívio, passando a mão sobre a lã fina da roupa. Era um movimento nervoso que revelava que não estava tão contida quando parecia. O vestido era bem mais elegante do que o que ele a vira usar antes. Muito distinto, com um bordado azul ao longo de toda a borda da saia e um casaco que trazia um delicado acabamento em pele. Ele imaginou que as roupas não eram dela. A Srta. Longworth provavelmente as tinha emprestado a ela para a visita à casa do marquês de Easterbrook.

– Quanto à minha relação com sua tia e sua prima – continuou ela –, vivi naquela casa como um membro da família e seria difícil pensar em mim como uma... bem, de outra forma. Gostaria que meu cargo principal fosse o de dama de companhia de sua tia e que meus deveres de preceptora ficassem em segundo lugar. Isso em nada afetaria meu trabalho em relação a sua prima.

Seu tom, comportamento e a forma como continuava a lembrá-lo da mudança na sua situação, que ela acreditava ser culpa dele, deveriam enraivecê-lo. Nada disso.

Alexia Welbourne havia chegado àquela casa vestida como a dama que nascera para ser, mas sairia dali como empregada. Ela sabia disso, mesmo tendo gaguejado ao tentar pronunciar a palavra. Porém, não era uma mulher que desconhecesse seu lugar. Era só uma mulher lutando para manter seus últimos fios de dignidade ao sair pela porta em uma condição diferente da que entrara.

Ele sentia muito por ela, mas manifestar esse sentimento seria um insulto para uma mulher como Alexia.

– Minha tia tem muito bom coração, Srta. Welbourne. O perigo não é ser tratada como criada, mas passar rapidamente a ser tratada como irmã. No entanto, explicarei a sutileza do modo como deseja ser considerada. Tenho certeza de que ela compreenderá. Bem, se não há mais nada a tratar...

O dedo se levantou novamente.

– Algo mais, Srta. Welbourne?

– Só mais um pequeno detalhe.

– Não imagino o que possa ser.

Os lábios dela se franziram diante do tom sarcástico. Belos lábios. Mais para cheios. E um nariz levemente arrebitado, que chamava atenção para a boca.

Uma boca que parece uma rosa. Mas não um botão de rosa. Não era pequena nem curvada, nem mesmo quando o franzido a estreitava. Era uma rosa em plena floração, prometendo o néctar que Ben descrevera.

– Como ambos sabemos, minha situação mudará muito, mesmo continuando a viver na mesma casa – disse ela.

Sua voz provocava pensamentos sobre esse néctar e seu gosto. O caminho rumo aos ardis impiedosos sobre os quais Christian o advertira havia pouco.

De formato encantador, que fazem pensar em glórias ocultas. Ele a viu de novo no vestido sem atrativos que usara ao guiá-lo no reconhecimento da casa. De um marfim amarelado pelo uso e sem enfeites, que provavelmente haviam sido retirados para adornar outras vestimentas. A moda tinha mudado muito nos últimos anos e sua cintura alta anunciava seus poucos recursos. No entanto, o vestido ressaltava seu busto e revelava suas formas e curvas tentadoras.

Sua mente voou para recuperar a lembrança dela em pé perto dele no corredor do último andar, usando o vestido cor de marfim. As faíscas de raiva nos olhos dela ao confrontá-lo fizeram seu sangue correr mais rápido nas veias outra vez, queimando-o por dentro. Sua imaginação começou a tirar aquele vestido para ver o que tinha por baixo...

– Isso é aceitável, senhor?

A pergunta dela o tirou de sua fantasia erótica.

– Aceita essa última condição? – perguntou ela.

Se pelo menos ele soubesse do que ela estava falando, mas não tinha a menor ideia de como deveria responder.

Assumiu a posição que costumava ocupar em negociações de investimentos quando algo inesperado era proposto.

– Quero pensar melhor sobre isso antes de dar uma resposta.

Suas sobrancelhas se elevaram só um pouquinho, mas o bastante para expressar o que ela pensava disso.

– Não vejo por que isso exigiria tanta ponderação.

– Sou um homem muito ponderado.

– Que admirável! E tais ponderações levariam muito tempo? Estarão concluídas em dois dias, para que eu saiba onde ficar na casa?

Ela usou uma voz cuidadosa e gentil, do tipo usado com um tio velho meio gagá. Ele não estava acostumado a ter ninguém – muito menos uma mulher – tratando-o como se fosse burro.

– Por que não explica esse pedido com mais detalhes, para que eu possa pensar enquanto fala?

– Não consigo pensar em outra forma de explicar isso. Está claro como água. Qual parte não entendeu?

Será que ela havia percebido por onde sua mente andara? Vira nos olhos dele? Estava deixando-o confuso como punição? Será que o pedido era complicado de atender? Ela não teria pedido para vender toda a prataria da casa, imaginava ele.

– Acho que minha tia pode ser convencida a aceitar sua condição.

– Então podemos dizer que chegamos a um acordo – disse ela, imensamente satisfeita com a conclusão da conversa e passando a alça da bolsa pelo braço. – Estou de saída. Estarei na casa para dar as boas-vindas a Lady Wallingford e sua prima quando elas chegarem.

Ele a acompanhou para que procurassem Irene. Encontraram-na na galeria com a governanta. Christian estava lá também, apontando para algum detalhe na pintura que observavam. Ele tinha finalmente se vestido e, fora o cabelo longo de aspecto primitivo, parecia um lorde inglês bem-apessoado.

– Christian, esta é a Srta. Welbourne. Este é meu irmão Christian, marquês de Easterbrook.

– Estava explicando para sua prima que este não é um Correggio original, mas uma cópia de um quadro que está em Parma, Srta. Welbourne – disse Christian.

A Srta. Welbourne olhou para o quadro. Ele retratava a princesa Io delicadamente voluptuosa e sensual, suspensa no ar por Júpiter, que tinha se transformado em nuvem. Como Io estava nua, aquele provavelmente não era um quadro que Christian devesse ter estimulado Irene a examinar.

– É adorável, mesmo sendo uma cópia – disse a Srta. Welbourne, segura de si o bastante para não revelar embaraço com o assunto.

Hayden o considerava adorável também. Observando agora, o corpo de Io parecia um pouco com a imagem que ele fizera do corpo da Srta. Welbourne. Arredondado nos lugares certos. Curvas e maciez à espera.

Hayden mostrou o caminho para que as mulheres saíssem com a governanta. Irene começou a cobrir a Srta. Welbourne de perguntas imediatamente, esquecendo-se de que seus sussurros seriam ouvidos na galeria.

– Você vai aceitar a função?

– Sim.

– Ele aceitou suas condições?

– Sim, vamos embora.

– Todas elas? Até mesmo a folga e o uso da carruagem?

Hayden se perguntou se tinha ouvido direito.

– Função? – disse uma voz baixinho sobre o ombro dele.

Ele virou o rosto e deu com Christian também observando as duas.

– Ela vai trabalhar como dama de companhia de tia Henrietta e preceptora de Caroline.

– Ah, entendo. As únicas mulheres que já fizeram negócios comigo foram minhas amantes. Daí minha confusão. Ela tem belos olhos... de uma cor inusitada.

Hayden observava as fitas do chapéu de Alexia flutuarem, a bainha do vestido se arrastar e seus quadris esbeltos se moverem.

– Ela queria se certificar do que se esperava dela no serviço doméstico. Nossa conversa tratou desse tipo de coisas.

– Como folga e uso da carruagem, você quer dizer.

Hayden ignorou a implicância. A Srta. Welbourne se virou para sussurrar algo no ouvido de Irene. Seu perfil apareceu por baixo da aba do chapéu. Um olho violeta, um nariz levemente arrebitado e uma boca carnuda expressiva formaram uma silhueta colorida contra o vestido marrom da governanta.

A porta se abriu e as mulheres desapareceram.

Hayden se virou e pegou seu irmão mais velho observando-o. Christian deu meia-volta e partiu.

– Vigilância, Hayden, vigilância.


CAPÍTULO 4

Alexia caminhava ao lado de Roselyn em ritmo de enterro. Estavam fazendo uma revista silenciosa de cômodo em cômodo para que Rose verificasse se nada fora esquecido.

Uma carruagem alugada esperava na rua. Ela levaria os Longworths até uma estalagem nos arredores de Londres. Lá seriam transferidos para a triste carroça que saíra antes do amanhecer, oculta pela escuridão, carregando os poucos bens que ainda lhes pertenciam.

Rose espiou a sala de visitas.

– Ouso dizer que a tia de Rothwell encontrará tudo em ordem. Espero que ela e a filha sejam felizes aqui.

A frase teria soado generosa, não fosse por seu tom amargo.

Alexia nada disse para reconfortá-la. Já usara todas as palavras de consolo que poderia conceber. Tinha até mesmo prometido a Irene lhe dar uma festa de apresentação à sociedade no ano seguinte, o que era o mais próximo de uma mentira deslavada que já dissera. Seu coração estava em prantos por todos eles. Rose e Irene, Timothy e ela própria.

Rose se voltou para ela. Com os olhos soltando faíscas pelos olhos, ela permitiu que toda a sua raiva viesse à tona.

– Você tem que me prometer não se afeiçoar a elas. Não quero saber se são boas ou não. Tem que me prometer...

Alexia a abraçou. O corpo de Rose começou a tremer e ela caiu no choro. Passou rápido. Rose engoliu as lágrimas e se recompôs, tudo em uma única inspiração profunda.

– Oxfordshire não é tão longe assim – disse Alexia.

Tal pensamento tinha sido repetido por todos eles muitas vezes na última semana.

– Vamos nos ver com frequência, tenho certeza – continuou.

Ela não estava tão certa disso, mas talvez fosse possível. Afinal, ela poderia usar uma carruagem, não? E tinha um dia de folga.

– Vamos subir para buscar Timothy – disse Roselyn.

Encontraram Timothy em seu quarto, estendido na cama, doente. Doente, não, percebeu Alexia. Ela avistou um decantador lascado debaixo da mesinha de cabeceira.

– A carruagem está esperando, Timothy – disse Rose.

– Para o diabo com a carruagem.

Tim nem sequer moveu o braço que se estendia sobre a testa.

– Para o diabo com os canalhas que esperam para ver esta cena – prosseguiu ele. – Para o diabo com a vida.

Rose pareceu exausta. Fora obrigada a assumir quase todas as providências necessárias nos últimos dias. Depois que vendeu o que podia, Timothy se tornara um inútil.

Alexia se curvou sobre a cama.

– Já se entregou à infelicidade por muito tempo, primo. Suas irmãs precisam que você volte a si. Permita-lhes sair pela porta com dignidade, não carregando o irmão em frangalhos entre elas.

Ele não reagiu nem se moveu. Ela tocou seu braço.

– Venha, Tim. Isso não é do seu feitio. Levante-se pelo bem de Irene, ao menos.

Depois de uma longa demora, ele fez um esforço para se levantar. Rose alisou seu casaco e fez o que pôde para deixar sua gravata apresentável. Timothy parecia tão triste e desamparado que Alexia teve vontade de chorar.

– Pegou as coisas dele no sótão, Rose? – disse ele em tom abafado. – Os baús de Ben e tudo o mais?

A expressão de Rose foi de desespero quando respondeu:

– Arrumamos tudo às carreiras... Como pude ser tão relapsa? Não tem mais espaço na carruagem e...

– Não se preocupe. Cuidarei do que possa ter ficado para trás – disse Alexia. – Podem ter certeza de que os baús continuarão aqui enquanto eu estiver e os levarei quando for embora. Vou achar um jeito de devolvê-los a vocês.

– Você é tão boa, Alexia – disse Rose com visível alívio.

Alexia não se importava de assumir a responsabilidade pelos pertences de Ben. Assim, parte dele ficaria com ela na casa. Ela poderia resistir melhor à adversidade da vida que iria enfrentar se pudesse se lembrar daqueles baús no sótão.

– Detesto deixá-la aqui – disse Tim olhando para o chão. – Odeio a ideia de ver você se sujeitar a ele. Esta foi a jogada mais cruel: ele ser capaz de se deleitar com sua queda de posição social.

Alexia não achava que lorde Hayden se deleitaria com isso, já que aparentemente não pensou duas vezes antes de praticar seus atos. Em poucos dias, ela seria uma criada conveniente e nada mais. Ele provavelmente esqueceria até seu nome.

– Não me importo com o que ele pense, Tim. Não me afeta em nada.

Essa afirmação pelo menos era verdade. Ela já sabia que, na vida, quando se desce um degrau, o motivo não importa. O estrago no orgulho era o mesmo, independentemente da causa. A pessoa podia enfrentar isso com elegância ou com amargura. Ela estava lutando para assumir a primeira postura, como fizera no passado.

Tim caminhava sem firmeza, mas Roselyn e Alexia o conduziram para o andar de baixo, até a porta. Irene esperava com ar sombrio pela partida solene. Com certeza os vizinhos espiariam de suas janelas para ver a cortina descer no último ato do fracasso encenado na Hill Street nas duas últimas semanas.

– Eu o odeio – disse Irene. – Não faz diferença se ele é bonito e se me deixou ver o salão de baile. Tenho certeza de que o irmão dele ficaria chocado em saber o que aconteceu. Eu deveria ter contado tudo a Easterbrook enquanto estávamos na galeria.

Alexia deu um beijo de despedida em Irene.

– Não ocupe seu coração com ódio, Irene.

– Você não precisa disso – falou Roselyn. – Eu odiarei Hayden Rothwell o bastante por todos nós, querida.

Seu rosto se fechou em uma máscara de orgulho. Ela pegou a irmã pela mão.

– Vamos embora – chamou.

Timothy abriu a porta. Ele não apreciou a atitude da irmã ao saírem. Na verdade, não as estava enxergando. Virou-se para a porta aberta e ficou lá, parado indolentemente por um tempo. Seu rosto enrubesceu de emoção.

Alexia manteve a mão no braço dele.

– Você é filho de um cavalheiro, Timothy. Nem isso pode mudar esse fato.

A expressão dele retomou a serenidade e ele se empertigou um pouco.

– Para o diabo com ele – grunhiu.

Deu um passo para fora e seguiu Roselyn e Irene rumo à obscuridade.

Alexia fechou a porta antes que a carruagem partisse. Secou as lágrimas que teimavam em rolar de seus olhos. Não ousava sucumbir ao impulso de se enraivecer com a injustiça da vida. Tinha que aprontar a casa para a chegada da tia e da prima de lorde Hayden.

Também precisava preparar seu orgulho para o momento em que as duas mulheres entrassem pela porta da frente.


– Foi tão gentil de sua parte nos acompanhar, Hayden, mesmo que nosso deslocamento seja só por algumas ruas da casa de Easterbrook. Não tenho muita habilidade para lidar com essas mudanças complicadas.

– Fico feliz em ajudar. A situação exigia pulso firme.

– Como sempre, tê-lo conduzindo as rédeas nos transmite confiança e tranquilidade. Não sei o que faríamos sem você.

O pulso firme em questão não tinha a ver com controlar os cavalos que puxavam a carruagem de Easterbrook por Mayfair. Nem com a enorme gama de detalhes relacionados à mudança de tia Henrietta para Londres. Disso tudo Hayden dera conta com facilidade.

Na verdade, era Henrietta, viúva de Sir Nigel Wallingford, que demandava pulso firme. Ela exigia mais da sua atenção do que os mais complicados investimentos financeiros que ele administrava.

Após a morte do marido, ao tomar conhecimento de que sua renda ficaria bem reduzida, ela assentira como se compreendesse a situação, mas depois não alterara em nada seus gastos. Sendo seu administrador, Hayden cumpria o penoso ritual de ir até Surrey para ralhar com ela por causa das contas altas, reprimendas que a tia aceitava com constrangimento, mas depois alegremente ignorava.

Ele a observou enquanto se sentava junto à filha na frente dele na carruagem. Um chapéu gigantesco cobria a maior parte do cabelo muito louro. Sua aba ampla e pontuda ficava o tempo todo batendo no queixo de Caroline. O maior laço vermelho da história da chapelaria apequenava a copa alta. Uma pluma extravagante traçava um amplo arco e tocava o delicado maxilar de Henrietta. A mulher era baixa e franzina, com rosto pequeno e traços finos, e o chapéu parecia um peso prestes a curvá-la.

Sem dúvida, Henrietta achava que o chapéu era magnífico e valia cada centavo gasto nele, mas não percebia como a envelhecia. Sendo irmã mais nova de sua falecida mãe, aos 36 anos, tia Henrietta ainda possuía feições joviais, mas, usando aquele chapéu, aparentava ter 50.

– Você tem absoluta certeza de que essa preceptora fala um francês impecável? – perguntou ela. – Caroline precisa de alguém muito competente.

– A Srta. Welbourne é bem instruída em todas as matérias necessárias.

Na verdade, não tinha certeza se a Srta. Welbourne sabia francês. Mas, se alegava ter a formação exigida para desempenhar seu novo papel, então deveria ser capaz de demonstrar isso. Ele suspeitava de que ela poderia aprender francês em quinze dias se ainda não soubesse.

– Espero que ela não seja igual à Sra. Braxton – murmurou Caroline.

Uma menina quieta e pálida, Caroline raramente falava. Hayden suspeitava de que a criança que ele via não era a Caroline de verdade, mas uma menina desbotada e enrijecida pela presença da mãe.

– Estou certa de que a Srta. Welbourne será muito diferente de sua última preceptora – disse Henrietta. – Hayden teve que lhe prometer algumas concessões incomuns para persuadi-la a nos ajudar.

Os olhos verde-claros de Henrietta brilharam com o feliz otimismo que a fazia parecer sonhadora e distraída o tempo todo.

– Estamos na cidade agora, querida. É um mundo bem diferente. A Sra. Braxton não serviria. Foi por isso que Hayden encontrou essa casa e a estimável Srta. Welbourne para nós.

Ela concedeu a Hayden um daqueles sorrisos. Um dos sorrisos agradecidos e afetuosos que diziam que ele era a âncora de seu navio sem leme. Ela confiava totalmente no sobrinho, dependia dele em excesso e esperava que ele atendesse a seus caprichos. Provocava um desastre atrás do outro e depois, com pesar, encaminhava o problema para ele resolver, porque ele era tão incrivelmente competente nisso.

Ele não tinha dúvida de que sua tia agia com ele de forma semelhante à que costumava agir com seu finado marido. Sua aparência adorável, as voltas que dava nos assuntos tentando evitar dar explicações, suas tentativas de amansá-lo com elogios – estas eram as marcas de uma mulher que manipulava um homem. Ele gostava de tia Henrietta e até a considerava divertida. No entanto, ser seu administrador por seis anos tinha lhe ensinado certos aspectos do relacionamento diário com uma mulher que vinham com o casamento. Nenhum deles o tinha estimulado a procurar uma esposa.

– Aí está – anunciou Henrietta quando a carruagem parou na Hill Street. – Pedi que o cocheiro passasse por aqui anteontem para me mostrar. A casa é bem bonita e de bom tamanho, não acha, Caroline? Mas não fica em uma praça. Tinha esperanças de que ficasse. Porém, se Hayden diz que é adequada para nós, assim será.

Hayden conhecia bem as esperanças dela. Seu irmão Christian também. Tia Henrietta não dera atenção aos detalhes da mudança para Londres até que ficara difícil demais encontrar um local adequado para alugar. Christian desconfiava de que a tia deles tinha outro motivo para tamanha negligência. Ele estava certo de que ela contava com que ficasse sem lugar para morar, quando então pediria para apresentar sua filha à sociedade no lar de Easterbrook.

Três semanas antes, Christian havia decretado sumariamente que isso não aconteceria, de jeito nenhum. Ele ofereceria o baile de apresentação de Caroline à sociedade, mas não viveria sob o mesmo teto que sua tia intrometida e frívola.

A residência dos Longworths resolvera então um problema iminente. Também dera a Timothy oportunidade de reembolsar Henrietta pelos títulos roubados sem que ela ficasse sabendo do golpe. Henrietta acreditava que Hayden os havia vendido para comprar a casa.

Ao descer da carruagem, Hayden pensou no restante do plano. Com sorte, Caroline ficaria logo comprometida com um rapaz da primeira leva de pretendentes e Henrietta voltaria para sua casa, em Surrey. A casa de Londres seria vendida e os títulos roubados, substituídos por novos. Se a divina Providência realmente sorrisse para ele, após Caroline se casar, sua tia procuraria um marido e Hayden passaria para ele a responsabilidade de controlá-la.

Hayden deu a mão para ajudar a tia e a prima a descerem. Ao entrarem, todos os criados se perfilaram no hall para saudar a nova patroa.

Henrietta examinou a criadagem. Hayden mantivera Falkner, mas o restante do pessoal era novo.

Ele deu um passo à frente quando sua tia se aproximou da Srta. Welbourne e apresentou as duas mulheres – o que não fizera com o mordomo ou com a governanta. Era do seu interesse que elas se dessem bem. Com sorte, a Srta. Welbourne reduziria as demandas de Henrietta por ele.

Tia Henrietta examinou em detalhes a nova dama de companhia. A Srta. Welbourne passou com elegância pela avaliação.

– Esta é minha filha, Caroline – disse Henrietta, instigando a garota a dar um passo à frente. – Nosso atraso em vir à cidade significa que seus últimos retoques precisam de atenção. Imagino que você seja adequada para fazer isso.

– Sou, sim, Lady Wallingford.

– Soube que começou a desempenhar suas funções recentemente e que é prima da família que viveu aqui por último.

Hayden não imaginava que Henrietta soubesse disso. Ela estava na cidade havia somente dois dias. A cor dos olhos da Srta. Welbourne se intensificou, mas ela não demonstrou qualquer outra reação.

– Sim, senhora.

– Vamos conversar um pouco sobre isso. Contudo, não tenho motivos para duvidar da confiança que meu sobrinho deposita na senhorita.

– Obrigada, senhora.

Henrietta seguiu em frente, cumprimentando as empregadas, o lacaio e o cozinheiro. Hayden observava o ritual em um canto do cômodo. Observava principalmente a Srta. Welbourne.

Os olhos dela não vacilaram desde que entraram na casa. Ele percebeu que seu olhar estava pregado em um ponto na parede por trás dele. Mesmo quando Henrietta falou com ela, seus olhos violeta não se moveram. Ela estava resistindo bem àquela provação, mas na verdade não a estava vendo.

Admirou sua atitude e a leve altivez que ela emanava. Alexia podia estar entre os criados, mas só um tolo não veria a diferença. Com certeza sua tia havia percebido isso de imediato, por isso lhe fizera aquela pequena provocação.

O olhar da Srta. Welbourne se moveu sutilmente em direção a ele. Raiva e orgulho se estamparam em seu rosto. Não ouse ter pena de mim, expressou uma olhada rápida. Você mais do que todos os homens não tem esse direito.

O ressentimento dela parecia prestes a desmanchar sua pose. Ele andou em sua direção e fez um gesto para que se aproximasse, tirando-a da fila de empregados.

– Parece que a senhorita tem tudo sob controle. É admirável.

Ele se referia a ela, não aos empregados. Ela pareceu entender. Sua expressão voltou à passividade. Seu olhar se dirigiu para o mesmo lugar de antes, atrás dele na parede.

– Falkner cuidou para que os outros ficassem preparados – disse ela, baixo.

– Acha que consegue lidar com ela? – falou Rothwell, olhando para sua jovem prima.

A Srta. Welbourne olhou para o final da fila também, só que parou para observar Henrietta e não Caroline. Mais especificamente, o chapéu de Henrietta.

– Acho que merecia os dois salários – disse ela.

– Andei pensando que talvez a senhorita valha muito mais para mim.

Ao falar, o tom soou meio malicioso. Se ela percebeu, não teve qualquer reação. Provavelmente porque o sentido oculto tinha ficado somente na cabeça dele, um reflexo de maquinações que não fariam nada bem a sua reputação.

– Acho que tem razão. Mas fiquei satisfeita com nossa última reunião e não espero mais por ora.

– Fico aliviado. Só há uma carruagem, como vê, e minha tia vai querer usá-la de vez em quando. Se a senhorita tiver várias folgas em vez de uma só, isso criaria um sério incômodo para ela.

Ela não pôde resistir e sorriu ao lembrar que o havia derrotado nisso. Sua boca rosa relaxou e revelou seu bem-vindo potencial de sensualidade. Os lábios se afastaram o bastante para provocar pensamentos inapropriados na cabeça dele.

Os olhos de Alexia por fim se voltaram para ele, para partilhar a piada. Ele lhe devolveu um olhar profundo, que exigiu sua relutante atenção. Mas Hayden deixou que o momento se prolongasse demais. A janela se fechou, como se Alexia houvesse notado o perigo nos olhos dele. Ela se empertigou.

De repente, corpos se movimentaram em volta deles. Os criados haviam sido dispensados. O chapéu de Henrietta se intrometeu entre ele e a Srta. Welbourne.

– Hayden, informei ao cozinheiro que você jantará conosco amanhã. Easterbrook e Elliot também.

– Elliot está em Cambridge e Christian tem um compromisso amanhã.

Ele começou a acrescentar suas próprias desculpas, mas ver violetas e rosas deteve suas palavras. A Srta. Welbourne estava falando com Caroline, assumindo suas funções.

– Ficarei feliz em aceitar, se minha presença apenas não for tediosa demais.

– Tediosa, nunca! Não venho a Londres há anos e estaria perdida sem a sua ajuda abrindo caminho para a sociedade. Quase me esqueci do que Caroline deve ver e fazer. Precisamos de você para fazer uma lista de locais que devemos visitar e dos passeios que nós não podemos perder.

Ele desconfiou que ela o incluíra no “nós”. Antes que o jantar do dia seguinte se encerrasse, Henrietta teria sua agenda completamente preenchida com formas como ele poderia “ajudar”.

Era tudo culpa da Srta. Welbourne. Ela o distraíra e ele baixara a guarda. Se ela o deixara à mercê de Henrietta somente com um sorriso, era uma sorte ela o odiar e não sorrir com frequência.

Ele se despediu e recebeu um adeus frio da Srta. Welbourne em meio às despedidas efusivas de Henrietta. Ao deixar a casa, Henrietta estava seguindo a governanta para ver os outros cômodos e Caroline se esgueirava à procura da sala de música.

O que significava que a Srta. Welbourne tinha sido a única a de fato vê-lo partir.


Paciência. Alexia disse para si mesma. Lembre-se do seu lugar. Engula as palavras antes de expressar o que você pensa.

Ela se sentou à mesa da sala de jantar com Lady Wallingford, Caroline e lorde Hayden. Manter-se em silêncio durante esses jantares se mostrou uma tarefa fácil, porque Lady Wallingford não parava de falar com o sobrinho. Nas duas últimas refeições em que tinha estado presente, ela o persuadira a contar todas as fofocas que corriam pela cidade, com descrições completas dos personagens importantes. Esta noite ela o estava pressionando a levá-la ao Museu Britânico.

Lorde Hayden olhava com frequência em direção a Alexia, como se esperasse que ela interrompesse a conversa e o salvasse de sua tia. Ela não se mostrou inclinada a fazer isso. Era uma criada, afinal de contas. Não lhe cabia fazê-lo, não era verdade? Ele estava sendo óbvio demais também. Parecia ignorar a tia todas as vezes que desviava a atenção daquela forma.

Ele tratava a tia com uma firmeza afetuosa que sugeria que a considerava distraída demais para ser responsabilizada por seus excessos. Aparentemente não apreciava por completo a sua personalidade. Em apenas uma semana, Alexia descobrira que as maneiras frívolas e despretensiosas de Lady Wallingford escondiam um tipo muito feminino de astúcia.

– Será mais instrutivo para Caroline se você nos levar, Hayden – disse Lady Wallingford. – Sou ignorante em história antiga e nunca conseguiria explicar a importância dos artefatos. – Ela lhe deu um sorriso que derreteria aço. – E Caroline não conhece muito bem você e seus irmãos. Nem você a conhece, agora que ela não é mais uma criança.

Caroline ficou vermelha até as orelhas. O olhar astuto da sua mãe lhe deu uma deixa. Caroline forçou um sorriso esperançoso.

– Seria maravilhoso visitar o museu com você, Hayden. Se puder dispor de tempo para nós.

Alguns minutos depois, Lady Wallingford pegou o sobrinho em sua rede. Na semana seguinte ele iria acompanhá-las ao museu.

Alexia se divertia vendo a nova patroa manipular esse homem orgulhoso e severo. Ele nem parecia perceber o maior desejo da tia, que era o de fisgá-lo de vez.

– Agora temos que decidir sobre a modista que fará o vestido da apresentação de Caroline – disse Lady Wallingford. – Ouvi falar que existe uma madame Tissot que é uma maravilha e também que a Sra. Waterman serviria. O que nos aconselha, Hayden?

– Eu não entendo disso, mas a Srta. Welbourne as ajudará, espero.

Todos os olhares se voltaram para ela, vencendo suas intenções de permanecer uma mera sombra no canto da mesa.

– Se eu tivesse que escolher, com certeza seria madame Tissot – disse ela.

A Sra. Waterman tinha sido a modista escolhida para fazer o guarda-roupa de Irene Longworth para sua apresentação. Caroline agora vivia na casa de Irene e até dormia na cama de Irene. Por nada neste mundo Alexia permitiria que também ficasse com os vestidos feitos para Irene, se pudesse impedir.

A rispidez de sua reação advertiu-lhe que ela ainda não tinha definido sua situação. Os ressentimentos afloravam em ocasiões como essas. Ter que partilhar a refeição com lorde Hayden também deixava parte de sua alma fervilhando. Aceitar sua atenção arrogante, combater sua aura dominadora, parecia uma perspectiva cruel. Ela esperava que ele demonstrasse mais força de caráter no futuro e declinasse os convites da tia para jantar.

– Antes que encomende qualquer vestido, precisamos ter uma conversinha, tia Henrietta.

– É claro – concordou Lady Wallingford, sua expressão tornando-se obediente e respeitosa. – A própria Caroline insistiu em limitações estritas de custo. Ela é muito mais sensata do que eu nessa área, não é, querida? O homem que se casar com ela vai achar bem mais fácil controlar seus gastos do que os da maioria das outras moças.

Caroline enrubesceu de novo. Seu primo não percebia a isca que pairava acima dele, apenas deu um sorriso vago em aprovação.

A refeição terminou e, com a agenda de lorde Hayden adequadamente preenchida, todos se dirigiram para a sala de estar. Ao chegar à porta, Lady Wallingford anunciou um novo plano.

– Hayden, você daria licença a mim e a Caroline por um instante? Ela tem uma surpresa para você e preciso ajudá-la. A Srta. Welbourne vai entretê-lo enquanto preparamos um passatempo.

E assim Alexia se viu sozinha, sentada em frente a lorde Hayden na sala de estar, em uma situação parecida com a de sua primeira conversa.

– Pode me dar uma dica sobre qual será esse passatempo? – perguntou ele, esticando as pernas de maneira muito informal.

Ela não era nenhuma parenta dele; dispensava tal atitude de familiaridade.

– É um mistério para mim.

– A senhorita é a preceptora dela.

– Acho que isso foi planejado antes da chegada delas. Que eu saiba, não houve ensaios ao longo da última semana.

Ele a olhou daquela forma direta e desconcertante que adotara.

– Então não deve mesmo ter havido nenhum. Tenho certeza de que nada lhe escapa, Srta. Welbourne. Por exemplo, já deve ter percebido que a querida tia Henrietta tem planos para Caroline e eu que vão além de visitas a museus.

– É verdade? Que afortunado!

A consciência dele das intenções de Henrietta arrasaram suas fantasias. Ela tivera esperanças de vê-lo nadar arrogantemente contra a correnteza só para no fim morrer na praia, sob os saltos de Henrietta.

– Ajudaria muito se desestimulasse esses planos.

– Não imagino como. Além disso, vocês formariam um belo casal.

– A senhorita pretende se aliar a tia Henrietta contra mim, não é?

– Nós, mulheres, somos como irmãs nesses assuntos, senhor. E realmente gostamos de ver o poderoso perder.

– A senhorita fala como se eu não tivesse chance – disse ele rindo.

– Tenho esperanças de vê-lo estripado, descamado e na frigideira até junho.

O humor fez os olhos de Hayden brilharem. A diversão o transformara. Não parecia mais tão rígido. Forte, sim, mas não rígido.

– Um peixe? Está me comparando a um peixe? Poupe-me alguma dignidade, Srta. Welbourne. Uma raposa caindo na armadilha, um touro vencido por um toureiro. Há muitas analogias à disposição, mas um peixe é cruel demais.

Ela sorriu sem querer.

– Achei a imagem muito convincente.

Apesar de ainda sorrir, ainda... atraente, a conduta dele ficou mais séria.

– Se a senhorita se recusa a desestimular minha tia, então está certo. Mas faça o que puder para evitar que a garota aceite as ideias da mãe. Não gostaria de vê-la magoada ou desencorajando pretendentes por conta desse esquema. Não há a menor possibilidade de eu me casar com minha prima.

– Por que não?

O sorriso dele foi firme o bastante para dar a entender que Alexia tinha ido longe demais. Não havia novidade nisso e ela não retirou a pergunta.

– Ela é uma criança – disse ele.

– Todas elas são. As igrejas estão cheias de noivas meninas, já que se considera encalhada uma mulher solteira de 22 anos.

– Não pretendo me casar no futuro próximo, menos ainda com uma criança. Essas meninas têm ideias muito frívolas e românticas, o que obriga os homens a fingir fraqueza e sentimentalidade. Além do mais, ela é minha prima. Sei que esses arranjos são comuns, mas são uma prática doentia que não aprovo.

Doentia?

– Benjamin Longworth era meu primo. Não gosto da ideia de que meu amor por ele seja doentio.

Hayden empalideceu.

– É claro que não. Desculpe-me, Srta. Longworth. Às vezes sou muito sem jeito ao expressar minhas ideias.

Seguiu-se um silêncio breve e desconcertante.

– É claro que não tínhamos convivência quando éramos mais jovens – disse ela. – Ele não me conheceu quando eu era garota...

– Sim, exatamente. Então entende por que um casamento com Caroline é... impossível.

Ele encerrou o assunto se levantando e caminhando sem rumo pela sala.

– Quando a senhorita conheceu Benjamin?

A pergunta foi feita casualmente, enquanto ele examinava uma cena doméstica pintada por Chardin. O quadro tinha vindo com vários outros após a partida dos Longworths, um empréstimo da coleção de Easterbrook para cobrir as paredes vazias.

– Quando me juntei a eles aqui em Londres. Eles viviam em Cheapside na época. Escrevi-lhes sobre minha situação depois que meu pai morreu e Ben me respondeu dizendo que deveria vir. Ele foi muito gentil.

Gentil e alegre. O mundo se iluminava quando Ben estava por perto. Ele inspirava uma leveza de espírito, muito diferente do homem que estava em sua companhia no momento, que a deixava com raiva e na defensiva o tempo todo.

– O senhor disse que se conheceram quando eram garotos. Como ele era quando jovem?

– A maturidade não mudou sua personalidade. Ele era igualmente impulsivo e despreocupado quando garoto. E fazia muitas travessuras.

– Quer dizer que ele foi um menino levado.

– De uma forma positiva. Todavia... O garoto, assim como o homem, não pesava as consequências de seus atos.

– É porque Ben vivia o momento. Ele não planejava nada. Contava com a sorte de que tudo desse certo no fim.

Ela amava isso nele. Amava como se sentia livre e quase inconsequente na presença de Ben. A vida a forçara a se tornar tediosa e sensata, até que os sorrisos dele a aqueceram em seu último ano juntos.

Ele lhe devolvera a juventude por um curto espaço de tempo e ela ainda ocultava aquela garota renascida e cheia de vida no mesmo lugar em que guardava as lembranças de Benjamin.

Rothwell tinha se virado e estava olhando para ela. Ele parecia rígido de novo e seus olhos azul-escuros demonstravam quão profundamente ele a avaliava. Ben nunca olhava para as pessoas daquela forma.

Ela sustentou o olhar. Foi um erro. A conexão a deixou em desvantagem, assim como acontecera no hall na semana anterior, quando ele chegara com a tia. O olhar dele era penetrante demais, enxergava demais. Ela sentiu como se ele estivesse lendo seu coração.

Alexia reagiu como acontecia com frequência diante desse homem. Parecia com a forma como Ben a fazia sentir, só que com tintas mais intensas. A atenção que ele lhe dispensava flertava com o perigo. O estímulo que lhe provocava causava tremores de medo.

Ela estremeceu. Disse a si mesma que estava com os pés firmes no chão. Mas a verdade sussurrava o contrário em seu coração. Ela era impotente para desviar o olhar, para rejeitar aquela excitação.

– Imagino que a vida não era enfadonha quando vivia nesta casa – disse ele.

Ela se sentiu corar. Era como se ele tivesse visto aqueles beijos roubados nas suas lembranças e agora se referisse a eles.

Ele parecia prestes a falar de novo, mas foi interrompido. Um lacaio apareceu para dizer que eles eram aguardados na biblioteca.

– Parece que o passatempo está pronto – disse lorde Hayden.

Ele a acompanhou até a outra sala. A proximidade do corpo dele a fez pensar na volta de reconhecimento que haviam feito pela casa. E isso não ajudou em nada a combater o estranho poder que ele exercia sobre ela.

– Gosto de falar sobre Benjamin com o senhor – disse ela ao entrarem na biblioteca. – Espero que algum dia me divirta com casos sobre seu tempo na Grécia ou a juventude dele.

– Certamente, Srta. Welbourne.

Um pequeno palco armado aguardava por eles na biblioteca. Duas colunas baixas flanqueavam um pano azul esticado no chão. Um tecido branco pendia ao fundo, preso nas prateleiras de livros. O cenário improvisado mostrava uma pintura de montanha e de um templo com colunas.

Lady Wallingford estava de pé ao lado. Ela indicou que eles se sentassem em duas cadeiras dispostas diante do pano azul.

Ela bateu palmas para chamar atenção. Outra palma e a representação começou.

Caroline surgiu de trás do cenário. Estava usando uma roupa ao estilo grego, que deixava seus braços de fora e mostrava um pouco de seu quadril e muito da sua pele no pescoço e colo. A mãe prendera seu cabelo para cima, dando-lhe um ar mais maduro, e até maquiara levemente seu rosto jovem.

Caroline estava muito bonita, muito adulta – quase infame.

Alexia esticou o olhar para lorde Hayden, para ver sua reação. Pegou-o discretamente olhando de volta para ela.

– E eu que achava que as tinha sob controle, Srta. Welbourne – sussurrou ele. – Parece que minha tia não pretende esperar até junho para me fritar.

A bela isca de Lady Wallingford se posicionou entre as duas colunas e começou a recitar uma passagem da Ilíada.


CAPÍTULO 5

Usando um vestido velho e envolta num longo xale de lã, Alexia se refugiou na biblioteca. Acendeu a lareira, deitou-se no sofá ao lado e apoiou na barriga um livro aberto.

Silêncio. Liberdade. Um fogo aconchegante e horas de privacidade. Fechou os olhos e saboreou a sensação de retorno a um mundo que conhecia bem. A chuva que batia suavemente no vidro das janelas só melhorou a sensação.

Tinha sido brilhante pedir a lorde Hayden uma folga por semana. Ousado também. Nunca imaginou que seu pedido pudesse ser atendido; ficou até espantada quando lorde Hayden cedeu. Talvez ele de fato se sentisse um pouco culpado em relação aos Longworths. Não havia outra explicação.

Era um ponto a favor dele, mas ela não desperdiçaria tempo avaliando seu caráter. Planejava aproveitar ao máximo essas horas sem Lady Wallingford e Caroline – principalmente, sem o próprio lorde Hayden. Ele estava sempre pelo caminho, fazendo visitas de dia ou jantando à noite. O homem era jovem, solteiro e rico. Com certeza tinha coisas melhores para fazer do que visitar a tia.

Ela sorriu para si mesma. Sem dúvida que tinha. Entretanto, sua tia possuía a excepcional capacidade de requisitar sua presença e faltava nele a habilidade necessária para escapar de suas maquinações. Alexia desconfiava de que sua analogia com o peixe tinha sido inapropriada. Rothwell não estava sendo seduzido com uma isca. Henrietta fixara um anel no nariz dele e o estava lenta e implacavelmente levando para o matadouro.

Ela riu ao pensar nessa imagem. Contudo, enquanto um minotauro era arrastado pela corda de Henrietta, a fantasia se transformou. De repente, ela o viu de pé ao lado da jovem Caroline numa igreja.

Seu júbilo se desfez e ela examinou a cena em sua cabeça. Não seria um casamento com amor. Ela duvidava se havia algum romantismo nele. Caroline imaginaria que sim, pois era jovem e impressionável. Quando essa ilusão se desvanecesse, já teriam se adaptado um ao outro. Caroline teria o que a maioria das mulheres almejava: segurança, apoio e, quem sabe, gentileza.

O quadro mudou de novo e Rothwell não estava mais na igreja. Em vez dele, surgiu Benjamin. E Alexia já não observava tudo olhando de cima: estava ao lado dele. Por um instante, a alegria encheu seu coração, como se a cena fosse real.

Ela afastou a imagem da cabeça com um arrependimento melancólico. A vida nem sempre era como se desejava. Às vezes era preciso se contentar com menos do que fora sonhado.

O livro chamou sua atenção. Normalmente leria Walter Scott em seu quarto, onde ninguém poderia ver. Não era o tipo de literatura séria esperada de uma preceptora. Não tinha sido incluído na lista que ela dera a Caroline como parte de suas lições.

Embrulhada e aconchegada, permitiu-se a libertação temporária de viver em um mundo de homens arrojados e mulheres impressionantes, de paixões fortes demais para estarem no mundo real e de romances dramáticos demais para serem verdade.


– Irc.

O rosto de Caroline se torceu de nojo, mas ela se aproximou da cabeça de abutre preservada em álcool. De todos os artefatos eruditos atulhados na coleção do museu em Montagu House, esse grotesco espécime só não era mais popular do que a múmia egípcia e o porco com cara de ciclope conservado em salmoura.

Hayden sorriu com a fascinação e a repulsa infantis. Era revoltante pensar que ela provavelmente estaria casada dali a um ano. Não aprovava que meninas tão novas fossem oferecidas a pretendentes, e não só porque o casamento precoce de sua própria mãe tivesse sido tão trágico.

– Agora temos que ver as peças de mármore – arrulhou Henrietta, puxando a filha da multidão que observava o abutre.

Por duas vezes Hayden já desviara a atenção delas para que esquecessem os mármores de Elgin. Ele se lembrava perfeitamente de como a tia vestira Caroline para sua apresentação da Ilíada e imaginava por que Henrietta se mantinha tão inflexível quanto a ver as peças de mármore. Pouco tinha a ver com o fato de serem uma mostra magnífica da arte grega.

– Não creio que a Srta. Welbourne fosse considerar apropriado a Caroline ver as esculturas em mármore – disse ele.

– Sou mãe dela; a decisão cabe a mim. Contudo, a Srta. Welbourne a instruiu a vê-las. Falou tão bem desses trabalhos que também tive vontade de revê-los.

– Se ela foi tão categórica, deveria ter nos acompanhado na visita.

Ele só descobrira que a Srta. Welbourne tinha optado por tirar folga naquele dia quando chegara para pegar as damas. Ela o deixara à mercê de Henrietta, enquanto se divertia na cidade, sabe lá Deus fazendo o quê. Teve ímpetos de mandar chamá-la e ordenar que entrasse em sua carruagem imediatamente e que escolhesse outro maldito dia para descansar.

A tia o arrebanhava na direção que desejava que ele seguisse.

– A Srta. Welbourne disse que as esculturas estão em um pequeno prédio à parte. É por aqui, não?

Saíram de Montagu House, enfrentaram a chuva e entraram no anexo que abrigava as esculturas que lorde Elgin retirara do grande Parthenon em Atenas.

– Você não deve ficar chocada, Caroline – instruiu Henrietta. – Grandes artistas tomam liberdades que podem parecer escandalosas, mas a arte ocupa um plano mais elevado da experiência. Além disso, essas peças são muito antigas, de uma época anterior à era cristã.

Hayden suspeitava de que, na verdade, a intenção da tia era causar espanto em Caroline. Essa história de plano mais elevado era lorota. As figuras masculinas no salão estavam praticamente nuas. Sua tia estava realizando uma forma disfarçada de iniciação e a presença dele era inadequada.

Tia Henrietta queria isso também. Ela desejava que a filha visse as estátuas e ficasse se perguntando o que haveria por baixo das vestimentas do futuro marido ao seu lado.

Se a Srta. Welbourne tivesse vindo, poderia ter dado uma aula de arte para Caroline, enquanto ele se manteria à sombra. Conjecturou se Henrietta tinha decretado que a preceptora ficasse em casa, para que ele não tivesse essa opção. O mais provável era que a Srta. Welbourne houvesse desconfiado do plano e dado uma mãozinha para sua tia.

Ele pretendia conversar com a Srta. Welbourne a esse respeito. Muito em breve.

Pararam em frente às métopas que mostravam a batalha entre os lápitas e os centauros. Hayden contou a história exibida ali. Henrietta analisou os aspectos artísticos.

Caroline olhava com curiosidade para os corpos masculinos nus. Seguiu-se um silêncio curto e constrangedor durante o qual Hayden se esforçou para manter toda a compostura.

O cenho de Caroline se franziu.

– Estão todas quebradas. É como se tivessem cortado fora as cabeças e os braços com espadas. Não imagino por que essas obras estão em exposição, muito menos por que são famosas.

Hayden quase respondeu que não era assim que os corpos ficavam quando decepados. A imagem bizarra invadiu sua cabeça e sua alma se entristeceu. Voltou a atenção para as damas a fim de conseguir controlar a sensação ruim.

– Trata-se da escultura das formas, querida. É por isso que são tão apreciadas – disse Henrietta. – Os dorsos, coxas e quadris...

– Não gosto nada disso.

– Outras pessoas compartilham suas críticas, Caroline – disse Hayden. – Muitos só começam a apreciar a arte grega depois de um tempo. Já ouvi dizer que as mulheres passam a gostar mais desses mármores conforme vão ficando mais velhas.

Ele indicou o caminho dessa vez, para fora do anexo.

– É uma pena a Srta. Welbourne ter ido visitar amigos em vez de nos acompanhar – comentou Hayden. – Tenho certeza de que ela seria capaz de explicar os aspectos artísticos para além do meu nível de sensibilidade.

– Ela não tirou folga para visitar amigos – disse Caroline. – Ela pretendia ficar em casa para cuidar de assuntos pessoais. Escrever cartas, coisas assim.

Isso não melhorou seu humor. Ele passaria mais algumas horas nesse passeio, enquanto a Srta. Welbourne escapava de suas funções para escrever cartas. Cartas de amor, era provável, para o falecido Benjamin Longworth.

Ela só se alegrava quando o nome de Ben era mencionado. Transformava-se em outra mulher. A lembrança de seu antigo amor a remoçava como por encanto. Isso era doentio! Também era um amor construído sobre mentiras. Mais uma vez Ben tinha agido por impulso, sem medir as consequências.

Ben nunca pretendera se casar com Alexia Welbourne, independentemente do que ela havia sido levada a acreditar. Estava atraído por uma jovem abastada e de família aristocrática muito antes da viagem para a Grécia. A própria ideia de lutar na guerra tinha sido uma forma de executar atos heroicos que impressionariam a tal jovem rica e inatingível.

Henrietta interrompeu seus pensamentos sugerindo que visitassem a biblioteca do museu. Hayden vislumbrou mais uma hora bancando o professor.

Quando abriu a porta, avistou um rosto familiar. Seu irmão Elliot estava sentado a uma mesa, examinando um grande manuscrito. Elliot retornara à cidade na noite anterior, vindo das bibliotecas de Cambridge, e já estava ali.

– Espere aqui, tia Henrietta.

Hayden deixou as duas na porta e andou na direção do irmão. Elliot estava tão absorto que foi preciso tocar seu ombro para chamar sua atenção.

A basta cabeleira escura foi jogada para trás. Elliot olhou através dos óculos. Sua mente refez seu caminho de volta do lugar aonde o manuscrito o levara.

– Hayden. Que surpresa!

– Será, com certeza. Venha comigo. Se fizer alguma objeção, vai se ver comigo.

Confuso, Elliot se levantou e o seguiu sem apresentar resistência.

– Vejam quem encontrei estragando os olhos em um denso tomo latino – anunciou Hayden.

Saudações cordiais se seguiram. Elliot vivia perdido no passado histórico, mas podia ser bem charmoso, quando queria. Caroline ficou envaidecida com os elogios de como estava crescida e bonita e como logo seria assediada por vários pretendentes depois de sua apresentação à sociedade.

– As damas gostariam de conhecer a biblioteca e saber de suas preciosidades, Elliot.

– Ficaria feliz em mostrar-lhes a coleção. Há muitas raridades que são ao mesmo tempo belas e instrutivas. Há também os projetos do arquiteto Robert Smirke para o novo prédio do museu, que está em construção.

– Que ideia esplêndida – disse Hayden. – Deixo-as em suas hábeis mãos.

Henrietta não ficou nada satisfeita.

– Mas, Hayden, achei que você...

– Tenho um compromisso esta tarde e logo teria que me despedir de vocês, de qualquer forma. Agora podem apreciar a biblioteca sem pressa. Elliot é muito mais qualificado para dar essa aula do que eu. Mostre-lhes tudo. Elas têm o dia inteiro.

Ele concluiu sua fuga. Seria improvável que a tia e a prima aparecessem em casa antes do jantar. Ele deixou a carruagem esperando por elas e saiu para procurar um cabriolé de aluguel.

Ele não mentira. Realmente tinha compromissos nesta tarde. Mas não nas próximas horas. Tinha que ir a outro lugar antes de seguir para o centro financeiro e tratar de negócios.


Ela emergiu de um sonho. Mesmo ao flutuar rumo à consciência, sabia que tinha tirado uma soneca sem querer. Algo a puxara de volta à superfície. Não fora um som. Uma sensação de perigo a arrancara do sono.

Abriu os olhos. A primeira coisa que viu foram outros olhos, de um azul tão escuro que surpreendiam. Avistá-los causou um eco em sua alma: tinha acabado de vê-los no sonho que agora se apagava nas brumas das memórias mais profundas.

As visões e odores do mundo real afastaram rapidamente o sono que restava, deixando-a cara a cara com lorde Hayden Rothwell.

Ele parecia muito alto em pé diante dela. E muito sério também, com uma pequena ruga a lhe marcar o cenho. Provavelmente desaprovava que criados dormissem no sofá da biblioteca.

Ela deu um salto e se sentou.

– Sua tia já voltou?

– Deixei-a com meu irmão Elliot na biblioteca.

Ele pairava sobre ela. Essa proximidade a deixava nervosa.

Isso a incomodava. Mesmo nas ocasiões em que conversavam informalmente, mesmo quando se deixava encantar por ele, esquecendo o motivo de odiá-lo tanto, aquela inquietação incômoda persistia.

Ela não deveria ter que tolerar isso hoje.

– Dei ordens a Falkner para que ninguém entrasse neste recinto.

– Os criados nunca imaginariam que tal ordem me incluiria. Na cabeça deles, sou o patrão desta casa e dono de tudo aqui dentro.

Ele não se moveu, como se enfatizasse que seu poder sobre “tudo aqui dentro” significasse que era dono dela também.

– É assim que pretende aproveitar as folgas que me persuadiu a lhe conceder? Lendo perto da lareira?

– Este é meu dia. Sou livre para fazer o que quiser. Se esperava um relatório, deveria ter me dito.

Ela queria que Hayden fosse embora. Ele estava estragando tudo.

– Então, por algumas horas, viverá aqui como outrora e tratará esta casa como se fosse seu lar de novo. Não havia compreendido o significado real da palavra “livre” quando a usou.

As palavras atingiram o coração de Alexia, ressoando em toda a sua verdade. Ele a compreendia melhor do que ela mesma. Entendia por que essas horas tinham sido tão deliciosas.

Tinha mais um motivo para odiar aquele homem agora. Levantou seu olhar para ele.

– Por que está aqui?

– Para vê-la.

Seu olhar mudou. Viu-a da cabeça aos pés, com o velho vestido verde e o grosso xale de lã. Alexia deveria ficar constrangida por suas vestimentas simples, mas naquele momento elas pareceram convenientes e... seguras.

– Também vim para conversarmos, de forma que entenda o que preciso que faça.

– Conheço minhas funções.

– Parece que não. Esperava que acompanhasse minha prima hoje.

– Como ela estaria acompanhada do senhor e da mãe, não havia necessidade que eu fosse. Sua tia concordou.

– Nós dois sabemos por que minha tia não quis que a senhorita fosse conosco. Assim ela poderia empurrar a menina mais facilmente para cima de mim.

– As intenções de sua tia em relação ao senhor não me dizem respeito. Escolhi este dia de folga com cuidado, de forma a não interferir nas aulas de Caroline.

– Acho que escolheu este dia para me evitar.

Mais uma vez, suas palavras ressoaram dentro dela.

– Talvez sim. O senhor tem sido uma presença mais constante nesta casa do que eu esperava. Para mim é muito árduo reunir as forças necessárias para manter a elegância.

A expressão dele se fechou de uma forma que ela conhecia bem. Ela estava sendo novamente ousada demais. Mas não se incomodava. Era seu dia de folga e isso significava, antes de qualquer coisa, que poderia ficar livre dele.

– De agora em diante, quando eu acompanhar minha prima e minha tia, a senhorita irá conosco.

– Não recebo ordens suas sobre minhas obrigações. Cabe à sua tia decidir, não ao senhor.

– A senhorita estará lá – disse ele com firmeza.

Ela cerrou os dentes e olhou para o fogo, ignorando Hayden o máximo possível. Mas ele já devia estar de partida. Depois de ter decretado a nova lei, não havia motivo para permanecer ali.

Ele não foi embora, mas, pelo menos, se afastou. Infelizmente, ficou mais perto da lareira, assumindo uma posição que exigia que ela olhasse para ele. Alto, forte e moreno, ele penetrava seu campo de visão e sua mente.

– A senhorita estava sorrindo enquanto dormia – disse ele. – Estava sonhando com ele, Ben?

– Não sei.

Um par de olhos a encarou das profundezas de sua memória.

– Acho que não, mas talvez sim – concluiu ela.

– Ele era meu amigo e tenho uma dívida com ele, mas...

– Espero que nunca tenha uma dívida comigo, pois sei muito bem como faz o ressarcimento.

Ela alcançou seu intento com essa frase. A reação dele fez sua nuca formigar. No entanto, junto com a precaução vinha uma enxurrada das outras sensações que aquele homem sempre lhe provocava.

– Ele morreu há três anos – disse Hayden. – Talvez devesse esquecer essa fixação.

A raiva lhe subiu à cabeça, fazendo-a deixar a prudência de lado. Levantou-se.

– Minhas lembranças são muito caras para mim, mas não são uma fixação.

– Na noite em que Caroline fez a apresentação da Ilíada, a senhorita falou do seu amor no presente do indicativo.

– Tenho certeza de que não fiz isso.

– Fez, sim, e está perdendo seu tempo.

– O senhor está sendo impertinente. Esta conversa seria despropositada mesmo que fosse um amigo íntimo, o que certamente não é. Não toleraria essas especulações intrometidas de um parente, imagine do senhor.

Ele se aproximou dela. Ela quase deu um passo para trás, mas sua raiva ignorava a prudência.

– A senhorita não terá um futuro, a menos que o deixe ir embora.

Alexia teve que vergar o pescoço para olhar para Hayden. Ele mais uma vez tentava impor sua presença e sua vontade. Gostava de fazer isso. Alexia queria poder bater nele pelo que lhe causara. Sua pulsação se acelerou e suas têmporas pareciam explodir.

– Como ousa falar do meu futuro? O senhor, entre todos os homens? Ele já era pouco promissor o bastante há um mês. Eu não tinha fortuna nem beleza, mas, pelo menos, tinha uma casa e uma família. É ultrajante de sua parte tocar neste assunto comigo.

Ele aceitou suas acusações sem comentários. Alexia percebeu a raiva em seus olhos, que se equiparava à sua própria. Mais do que nunca era necessário ter cautela, no entanto, Alexia a jogou pelos ares.

– Existem homens que veem além da fortuna. E sua beleza é suficiente.

Considerando sua expressão intensa e séria, a voz dele soou muito calma.

– Agora o senhor está sendo cruel.

– Seus olhos são magníficos. Hipnotizantes. E refletem seu espírito indomável.

O elogio a deixou sem palavras. A raiva enfraqueceu. Em um esforço de reunir os pensamentos espalhados com o choque, ela ficou tentando desesperadamente se recompor.

Hayden deu mais um passo em direção a ela. Alexia não percebera sua aproximação antes, mas ele estava muito perto. Perto demais. Olhou dentro dos olhos dele. Era ela a hipnotizada agora.

Um toque aveludado em seu queixo. Ele a estava tocando. Um tremor pulsou sob os dedos dele e se espalhou para o colo de Alexia. Ela deveria...

– Sua pele é maravilhosa – disse ele, afagando-a de leve.

O toque suave, tão surpreendente e íntimo, deixou-a sem fôlego. O olhar dele baixou.

– E sua boca, Srta. Welbourne, sua boca é tão linda que duvido que um dia a senhorita possa entender quanto.

Ele olhou nos olhos dela outra vez e de novo a surpreendeu. Seu olhar queimava, cheio do perigo que percebera desde a primeira vez que o vira.

Com os olhos arregalados de espanto, ela notou a decisão repentina de Hayden. Foi tão absurdo que ela não acreditou em seus instintos.

A boca de lorde Hayden encontrou a de Alexia. Quente, firme, autoritário, o beijo levou a uma sequência de susto e maravilhamento. Sua cabeça era uma confusão só. Em algum lugar no meio de suas reações caóticas, a Alexia prática dava ordens sensatas sobre o que fazer, mas ela estava deslumbrada demais para obedecer.

Ela reagiu sem acanhamento. Sentindo que um calor premente percorria seu corpo todo, pulsando e fervilhando em seus seios, seu ventre e mais abaixo. A excitação se tornou física, ameaçando tomá-la por completo. Correntes de prazer a seduziam a ponto de abandonar-se.

As sensações a encantaram. Ele a abraçou e ela se rendeu. Era uma intimidade tão deliciosa que Alexia gemeu silenciosamente em agradecimento. A força que a segurava, o corpo firme pressionando o seu, o calor intenso da boca beijando seus lábios, seu pescoço, seu peito... Uma Alexia nem um pouco sensata se revelou no estímulo sensual e acolheu a torrente de paixão.

Os beijos pararam. Dedos firmes e viris seguravam seu rosto. Ela abriu os olhos e encontrou lorde Hayden observando-a. O desejo transformava a severidade dele. Mesmo sua rigidez ficava sedutora.

Ele a beijou de novo e uma batalha começou a ser travada dentro de Alexia. Ela vira muitas coisas em seus olhos. Os pensamentos que fervilhavam na mente dele. Também percebeu a impressão que dava naquele momento: era uma mulher se submetendo a um homem de quem não gostava e em quem não confiava. Uma solteirona solitária aceitando as atenções de um qualquer.

Alexia recobrou um pouco do equilíbrio perdido, mas não queria abrir mão de se sentir tão viva. Não queria perder aquele contato físico. Mesmo quando suas mãos empurraram o peito dele, tentando se soltar, grande parte dela queria se fundir nele, não importando quem ele era, nem a vergonha que adviria.

Ela viu e sentiu cada instante a seguir – o relaxamento da pegada dele, o lento desmanchar de seu abraço, o afastamento de seu toque – e seu corpo reagiu a cada perda.

Alexia se afastou rapidamente rumo à janela. Incapaz de encará-lo, olhou para fora. Tentou se aprumar para parecer normal quando saísse da biblioteca. Assim que seu bom senso retornou, uma forte sensação de humilhação a invadiu.

Esperava que lorde Hayden tivesse a bondade de sair. Ele não teve. Ela pensou que ele pelo menos iria se desculpar. Ele nada disse. Sentiu que ele a olhava. Isso só piorou as coisas. Se ele fosse embora, ela poderia maldizer sua própria fraqueza e a crueldade dele. Enquanto ficasse, ela continuaria trêmula e envergonhada, perturbada demais para se recompor.

– Isso não foi muito honroso de sua parte, lorde Hayden.

– Não.

Ele não parecia arrependido. Seu tom parecia dizer: Talvez não, mas eu faço o que quero.

– Sei por que fez isso – disse ela. – Sei o que deve estar pensando a meu respeito.

– Então a senhorita sabe muita coisa.

A voz de lorde Hayden Rothwell soou mais próxima. Alexia percebeu que ele tinha vindo em sua direção. Parara a menos de um metro dela. Para seu espanto, a excitação e o perigo começaram a enfeitiçá-la de novo. Seu coração começou a bater mais pesado e mais lento.

– O que penso da senhorita? Como não tenho certeza, uma explicação sua seria muito útil.

Um homem decente teria se desculpado e ido embora.

– Ben e eu não éramos tão íntimos. O senhor interpretou mal.

– Não estava pensando nisso, de forma alguma. Meu único pensamento foi que a senhorita precisava ser beijada.

Ela se virou determinada a colocar um fim na maneira como brincava com ela. Seu coração falhou ao vê-lo, mas ela conseguiu pôr aquela excitação de adolescente em seu devido lugar.

– Não pelo senhor. Não sou a criada de quem o lorde pode se aproveitar. Peço-lhe que se lembre disso no futuro.

Ele a olhou direto nos olhos, como sempre, só que agora seu olhar refletia aqueles beijos. Agora seria sempre assim. Dar liberdades a um homem criava uma familiaridade que minava de uma vez por todas qualquer formalidade.

– Não tentei agarrá-la, só a beijei. E não foi de forma tão ousada quanto a senhorita teria permitido.

O rosto dela estava fervendo.

– Agora o senhor está me insultando.

– Não, estou sendo honesto. Mas vou deixá-la a sós, para que finja o contrário.

Com um leve cumprimento, Hayden se dirigiu para a porta.

– Lorde Rothwell, espero que no futuro demonstre o respeito que meu emprego junto a sua prima exige.

Ele parou à porta e virou-se.

– Ainda não me decidi.

– Então permita-me ajudá-lo a se decidir. Não gostei de seu beijo e não deve fazer isso de novo.

Ele abriu a porta.

– Gostou, sim. Acha que um homem não consegue perceber a verdade?

 


CONTINUA