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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AVENTURAS DA MALETA NEGRA / A. J. Cronin
AVENTURAS DA MALETA NEGRA / A. J. Cronin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O NOVO ASSISTENTE DO DOUTOR CAMERON
O moço ficou de pé sob as arcadas da estação de Levenford, na tarde umida de setembro, perguntando a si próprio se tomaria um carro. A economia o negava, a dignidade o exigia - não a sua própria dignidade, mas a quase assustadora dignidade da sua nova profissão.
Acabou fazendo sinal ao cocheiro de cara vermelha e casaco enorme, postado junto ao único veículo que enfeitava a saída da estação, um sujo carro de quatro rodas; aliás já o bomem lhe punha em cima, lia uns bons três minutos, o olhar fixo e inquiridor.
- Quanto cobra para me levar até Arden House, a casa do doutor Cameron?
O velho Tam aproximou-se cauteloso. Não havia nele nada da alacridade de homem do sul, nada d"e perguntas tolas como: "Carro, patrão?"
O velho Tam Dewar conhecia o seu valor e nunca se vendia por menos.
- Que bagagem o senhor traz? perguntou ele, embora a bagagem fosse claramente visível: uma valise no chão e uma novíssima maleta negra que o rapaz apertava com força na sua mão grande.
Depois o cocheiro acrescentou:
- Acho que o sr. é o novo assistente do Dr. Cameron, não?
- Exatamente.
- Então para o sr. são dois shillings... doutor. O homem deu ao título uma ênfase especial, que ecoava de modo embriagador em ouvidos recem-diplomados, mas apesar disso, Finlay não perdeu a cabeça e disse severamente:
- Quero ir pelo caminho mais curto (ele jamais estivera antes em Levenford), e não pelo caminho comprido por que você está planejando me levar.
- Pelo sol que me alumia... foi protestando Tam. Seguiu-se uma discussão animada, no fim da qual
chegaram a um acordo: um shilling e um mata-bicho, com expressões de boa vontade de ambas as partes. A maleta foi jogada ao teto do carro, o velho subiu reumalicamente à boleia, e Finlay viu-se sacudido sobre o calçamento limoso de Station Road.

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PODERES DE VIDA E DE MORTE
Era Finlay um rapaz de grande ossatura, magro, com um topete de cabelo escuro, rosto de maçãs altas, e um queixo obstinado. Os olhos azuis eram calmos, curiosamente penetrantes e, contudo, apesar da sua tenacidade de escocês, tinham um brilho divertido lá no fundo.
As roupas do moço, embora novas, e tão sóbrias que chegavam a ser austeras, eram pesadas, de corte provinciano e lhe assentavam mal. Acentuavam a rusticidade do jovem doutor e lhe aumentavam a gaacherie. Mas Finlay não ligava a isso, as roupas o cobriam e aqueciam, não era mesmo? E o princípio da utilidade de preferência ao do adorno, era um dos que lhe haviam firmemente inculcado.
Seus antecedentes eram na verdade muito simples, tão simples quanto a terra da Escócia; contudo, se tinham a mesma simplicidade da terra, tinham também a sua força. O pai de Finlay, lavrador rendeiro nos arredores de Cupar, travara vima rude batalha contra a terra malévola e morrera quando o menino era pequeno; a mãe, filha de um granjeiro vizinho, ficou praticamente na miséria, mas soube tirar o máximo dos seus parcos recursos lutando duramente afim de proporcionar ao filho uma oportunidade.
Finlay aproveitara essa oportunidade, embora ela significasse trabalho e esforço até quase ao limite das suas possibilidades, - uma luta desesperada por todas as bolsas de estudo a que lhe era permitido concorrer. Mas valera a pena, - valera mil vezes a pena, depois de tudo passado - quando há uma semana atrás lhe haviam conferido o seu grau de doutor.
Era pouco, talvez; um simples diploma de médico por uma pequena universidade da Escócia. Jamais seria seu o certificado de um grande hospital de Londres, nem poderia ostenta- a distinção social de uma escola de Oxford ou Cambridcçe. Contudo fora assistente de Stockmam, trabalhara com o grande Mac Ewen, e muitas vezes vira aqueles dedos longos, nervosos, do mestre, penetrando delicadamente nos mistérios do cérebro humano. Tinha atrás de si a tradição de Lister.
Aliás não sentia nenhum pejo do seu começo de vida, antes uma áspera espécie de orgulho. Fora um caminho duro; e nem o caminho dagora seria fácil. Não comprara uma clientela já feita. Não, não!
Stirrock, o farmacêutico de Glasgow, lhe dissera dois dias atrás:
- Estão precisando de um assistente em Levenford. Se você for louco bastante para ir... clientela de cidade de campo - e pouca. O velho Cameron é duro de roer, mas no fundo é um sujeito ótimo.
E assim, lá estava ele, empoleirado naquela carriola provinciana, inexperiente criatura misteriosamente investida de poderes de vida e de morte, - um simples rapaz da Escócia que um dia poderia ser alguém, mas também poderia não ser nada.
RUDE RECEPÇÃO
O carro rodou, descendo Church Street, passou pela cíesanimadora biblioteca pública, e virou por uma rua mais sossegada, de casas grandes, afastadas umas das outras. A meio da descida, dobrou pela alameda de Arden House, sólido edifício de pedra branca, com uma cocbeirã ao lado e um gramado semi-circular à frente.
Infelizmente chovia muito quando Finlay subiu os degraus de entrada e tocou a campainha.
Passado um minuto abriu-se a porta e a governante, magra e idosa, toda vestida de preto, o encarou.
Era mulher de limpeza impecável, trazia o cabelo muito liso, e a face rude era ao mesmo tempo autoritária e bondosa, mas rabujenta. Tinha em verdade o aspecto de alguém que sente uma terrível tentação de sorrir, mas vive a defender-se de qualquer aparência leviana, com receio de perder o prestígio e a estima própria.
Durante alguns segundos a velha examinou Finiay, sua maleta, seu chapéu e até suas botinas; por fim, soerguendo de leve as sobrancelhas, reparou no luxo do cavalo e do carro.
- Veio de carro! - observou a velha severamente, como se Finlay houvesse desembarcado de um coche de gala, puxado por quatro cavalos brancos. Pausa. --- Bem, creio que é melhor entrar, continuou ela, frígida. Não se esqueça de limpar os pés.
Finlay obedientemente limpou os pés e entrou, sentindo que não estava começando bem.
- O doutor saiu, anunciou a governante. Tem-se matado de trabalho, coitado, depois que foi embora o último assistente. Mas esse não valia nada, nada mesmo!
E com uma leve inclinação de cabeça a mulher deixou o rapaz abandonado no tapete da lareira.
Finlay sorriu e correu os olhos pela grande peça confortável. Era a sala de jantar, pensou ele, reparando nas grossas cortinas vermelhas, no tapete turco, também vermelho, o fogo de carvão, e o sólido mobiliário de mogno.
Não tinha aspidistra, graças a Deus! Um grande prato com maçãs no aparador, um barrilzinho de, vidro cheio de biscoitos, whisky numa garrafa de cristal escuro; nem quadros, nem fotografias; apenas três violinos amarelos pendurados à parede.
Uma sala boa, oh! uma sala decente, onde se podia viver. O moço se esquentava ao fogo, satisfeito quando a porta se escancarou e Cameron entrou pisando forte.
- Está certo, disse o médico, sem um aperto de mão e sem uma palavra de preâmbulo. Esquentando às costas no fogo enquanto vou me matar de trabalho lá fora! com seiscentos diabos! Pensei que Stirrock dissera que você estaria aqui hoje de manhã. Janet! Janet! berrou em seguida com toda a força dos pulmões. Pelo amor de Deus traga o nosso chá!
Era homem de estatura mediana, já velho, com o rosto curtido e vermelho graças ao clima da Escócia e ao whisky da Escócia; tinha um cavanhaque
grisalho e belicoso que agora se mostrava salpicado de gotas de chuva.
Curvava-se um pouco e por isso levantava heligerantemente a cabeça. Usava polainas, calças de pano grosso e um enorme e mal assentado casaco de tweed de tom verde indefinível, com os bolsos abarrotados de coisas que iam desde uma maçã a uma sonda para operações. Rodeava-o, invariavelmente, um cheiro de remédios, de ácido fênico, e tabaco forte.
NADA DE GRANFINICES
Tomando posse de uns bons três quartos do fogo, Camerpn examinou Finlay com um olhar de viés, e pergunto abruptamente:
- Você é forte? São de corpo e espírito?
- Espero que sim! - Casado? Não!
- Graças a Deus! Sabe tocar violino? - Não!
- Nem eu.. mas sei fazê-los bem bonitos. Fuma cachimbo? - Fumo! j - Hum! Bebe whisky?
A cólera de Finlay fora crescendo durante aquele interrogatório. "Não gosto de você", pensava ele enquanto olhava para a figura singular e pouco profissional que tinha ao lado - "e nunca hei de gostar". Respondeu azedo:
- Bebo o que quero e quando quero!
A chispa de um sorriso brilhou no olhar sardónico de Cameron.
- Deve então beber coisa pior, replicou ele. Sente-se e tome seu chá.
Janet pusera a mesa silenciosa e rapidamente: bolo, bolinhos de passas, torradas, conservas, pão preto, brioches feitos em casa, queijo, figos, e por fim num prato grande trouxe presunto frio e ovos escalfados, com o grande bule de faiança escura.
- Nesta casa não há granfinices, explicou rapidamente Cameron, enquanto servia o chá.
Finlay notou que ele tinha bonitas mãos, de pele áspera mas ágeis e pequenas como mãos de mulher.
- Almoço, jantar ao meio-dia, chá reforçado e ceia... comida simples e abundante. Nós aqui fazemos com que os assistentes trabalhem, mas - com sua permissão - não os matamos de fome.
O PAI INQUIETO
Tinham acabado o chá quando Janet entrou trazendo mais água quente. E só então disse, impassível:
- Está aí um homem esperando há bem uma hora. É aquele rapaz Lachlan Mackenzie, dono do estábulo que fica no caminho de Marklea. O menino dele está passando mal e ele muito aflito.
Cameron susteve o pedaço de bolo a meio caminho da boca e soltou a sua praga favorita:
- com todos os diabos do inferno! Eu andei por Marklea hoje de manhã, passei pela porta dele. Idiota dos demónios! aposto que o garoto já está doente há dias! Será que eles pensam que eu sou de ferro ?
Mas conteve-se. E com um suspiro que parecia aliviá-lo de toda fervura, acrescentou em voz muito diferente:
- Está bem, Janet, está bem. Mande-o entrar. Imediatamente Mackenzie apareceu à porta, de
gorro na mão; era um rapaz pobre e singelo, com roupas de trabalhador do campo, muito intimidado pelo ambiente e terrivelmente nervoso sob o olhar interrogativo do médico.
- E o garoto, doutor, murmurou ele, torcendo o gorro. A mulher pensa que é crupe.
- Há quantos dias ele está passando mal, Lachlan? Aquele emprego amigável do seu nome incutiu confiança ao rapaz:
- Há dois dias, doutor... Mas nós não pensávamos que fosse crupe...
- Ai, ai, Lachlan. Crupe! - Uma pausa. - Como foi que você veio cá?
- Vim a pé, doutor-. não é longe.
- Não é longe!
Eram duas léguas de Marklea a Levenford!
Cameron esfregou lentamente a face.
- Está bem, Lachlan, não se aflija com o menino.
Vá lá para dentro com a Janet e tome o seu chá, enquanto se atrela o cabriole.
Reinou silêncio na sala depois que o rapaz saiu. Cameron mexia pensativo o chá. E quase pedindo desculpa:
- Não posso ser duro com um pobre diabo desses. É uma fraqueza que nunca pude vencer. Ele ainda me deve o último parto da mulher, e nunca me há de pagar. Mas vou atrelar o cabriole, rodar duas léguas, ver o garoto e suportar duas léguas de volta. E que é que você pensa que vou debitar no livro? Um shilling e seis pence - se não me esquecer. Aliás que mal faz esquecer? Ele nunca me há de pagar um vintém! Oh, com todos os diabos! Que vida esta para um homem que gosta de violinos!
Novo silêncio, e então Finlay arriscou:
- O senhor quer deixar que eu faça a visita? Cameron tomou um sorvo grande do chá. O clarão
satirico lhe voltou aos olhos:
- Aquela maleta que você trouxe - vi-a no sofá - novinha em folha e brilhante, com o seu estetoscópio, e todo o resto da aparelhagem dentro, completa e linda. Não admira que esteja louco por estreá-la.
Encarou Finlay bem de frente:
- Muito bem! Pode ir. Mas fique sabendo, rapaz, com uma clientela como a minha, a maleta não tem importância - o que importa é o homem!
Ergueu-se.
- Vá fazer a visita e eu vou para a sala de operações. Faça tudo que puder pelo garoto de Mackenzie. Leve um pouco de anti-toxina por precaução. Está na prateleira à direita, na sala do fundo. Aqui! deixe que eu mostro. Não quero que você ande duas léguas para descobrir que o tal crupe quer dizer difteria.
O cabriole estava esperando à entrada coih Lachlan já aboletado lá em cima e Jamie, o cocheiro, de pé com o oleado na mão. E partiram através da noite escura e chuvosa.
O PRIMEIRO CASO
Na cidade a chuva caía pesadamente, mas quando atravessaram a ponte e entraram por Knoxhill, a água caía em torrentes. O vento lhes açoitava o rosto como um furacão.
Após um quarto de hora Finlay estava encharcado; do chapéu cheio d'agua corriam pequenos regatos pelo pescoço, e a sua preciosa maleta, que ele carregava ao colo, escorria como uma foca molhada.
O rapaz tinha vontade de amaldiçoar aquele tempo, a clientela, e Cameron, mas apertou os dentes e não disse nada.
Estava péssimo, péssimo. A estrada escuríssima e as lanternas do cabriole tão cobertas de lama que Jamie tinha dificuldade em manter o cavalo no caminho. Para a direita, atrás do maciço de abetos, apareciam as luzes de Darroch, vagas, pouco amigas, e à esquerda, como um imenso animal escuro, o vulto amorfo do morro de Ardfillan.
Continuaram em silêncio através da escuridão de breu e da chuva. De súbito escutaram o bater da água em alguma praia escondida.
- É o lago, explicou Jamie. - Foram essas as únicas palavras articuladas durante aquela jornada. A estrada invisível bordejava agora aquela água raivosa e invisível também. Afinal, quase uma légua adiante, dobraram bruscamente à esquerda e pararam defronte de uma pequena vacaria cuja única janela iluminada parecia como que afundada e desamparada no grande vácuo negro e molhado. Ao se apearem os três do cabriole, a mulher de Lachlan abriu a porta. Parecia uma menina, a despeito do avental enorme de pano grosseiro e dos sapatões rústicos.
Em silêncio ajudou Finlay a tirar a capa; depois, embora continuasse sem dizer palavra, o seu olhar aflito apontava a cama na cozinha.
Finlay dirigiu-se ao leito e suas botas rangiam no pavimento de pedra.
Um menino de três anos jazia agitado debaixo de um único cobertor, com a testa porejada de suor, o rosto lívido, arquejando, sem poder respirar.
E apesar de sua inexperiência, um olhar foi bastante a Finlay: difteria! Rapidamente, com o dedo, baixou a língua da criança. Sim! a garganta inteira estava coberta por uma membrana espessa de um branco esverdeado.
- Fiz um pouco de caldo, doutor, murmurou a mãe, mas ele... mas ele não quis.
- Não pode engolir, explicou Finlay.
E porque estava nervoso, sua voz ecoava pouco simpática, até mesmo dura.
- Está assim tão mal, doutor? perguntou ela levando a mão ao peito.
"Mal!" pensou Finlay com os dedos no pulso do pequeno. "Ela nem sonha quão mal está o filho!"
Inclinando-se sobre o catre fez um exame completo e cuidadoso. Fora de qualquer dúvida a criança estava morrendo.
"Que coisa horrível", pensou ele ainda, "que o seu primeiro caso fosse uma criança moribunda".
VALENTIA DE MÃE
Finlay procurou a maleta, abriu-a, encheu a seringa maior com oito mil unidades de soro anti-dlftérico. A criança mal gemeu, quando a agulha lhe penetrou na coxa e o soro lentamente foi inoculado.
Afim de ganhar tempo Finlay foi para junto do fogo. Jamie e Lachlan estavam também na cozinha, porque era o único lugar aquecido da casa. Mantinham-se de pé, juntos, perto da porta. O médico sentia os olhos deles postos sobre si, vigilantes, na expectativa, como sobre si estavam igualmente os olhos aterrorizados da mãe.
Era ele o centro daquela sala humilde. E o pequeno estava pior. Dentro de meia hora, antes que o soro pudesse agir, estaria morto por obstrução da traqueia.
E outra onda de medo percorreu Finlay. Tinha que se resolver. Agora, imediatamente, ou seria tarde demais.
Automaticamente, olhou em torno. Sentia-se por demais jovem, totalmente inapto e inexperiente em face das .grandes forças elementares que cresciam dentro daquela sala.
Estava pálido, os lábios brancos. E disse de modo absolutamente inexpressivo:
- O menino está com difteria. A membrana está fechando a laringe. Só há uma coisa a fazer: operar. Abrir a traqueia abaixo da obstrução.
A mãe torceu as mãos e suplicou:
- Oh, não, doutor, não!
Finlay voltou-se para Jamie;
- Ponha o menino em cima da mesa.
Houve um segundo de hesitação; depois, lentamente, Jamie aproximou-se e deitou a criança quase insensível sobre a mesa de pinho muito limpa. Mas ante aquilo Lachlan fraquejou:
- Não posso mais suportar isso! não posso! gritou ele e olhou em redor de si como se procurasse uma desculpa para a própria fraqueza. vou botar o cavalo na estrebaria.
E, cambaleando, saiu.
A mãe, entretanto, dominara-se. Pálida como um espectro, com as mãos firmemente apertadas, olhava para Finlay.
- Diga o que é preciso fazer que eu faço.
- Fique aí atrás e segure a cabeça dele firme. Finlay pincelou com iodo a pele do pescoço da
criança.
Tomou uma toalha limpa e com ela cobriu-lhe os olhos ardentes. O caso não toleraria clorofórmio. Seria até loucura pensar nisso.
Jamie segurava a lâmpada bem perto.
Trincando os dentes, Finlay tomou do bisturi.
LUTA POR UMA VIDA
Fez a incisão com mão firme, mas sentia que as pernas lhe tremiam sob o peso do corpo.
A incisão fora funda, mas ainda não tinha profundidade suficiente. Tinha que ir mais fundo, mais fundo, ousadamente, e entretanto não esquecer o cuidado com a veia jugular.
Se cortasse aquela veia!
Aumentou a incisão, usando o lado cego do bisturi, procurando desesperadamente a cartilagem branca da traqueia.
A criança, despertada pela dor, debatia-se como um peixe numa rede. Deus meu! Quando é que iria encontrar a traqueia?
Estava fazendo tudo errado, atrapalhando-se bem o sabia - a criança ia morrer; e os outros diriam que ele a matara.
Rogou pragas a si próprio, mentalmente. Bagas de suor lhe caíam da testa. A respiração da criança era agora terrível, fraca, infrequente; todo o seu tórax franzino murchava e crescia a cada aspiração terrível e inútil.
As veias do pescoço estavam ingurgitadas, o pescoço lívido, a face escurecendo. "Não dura mais um minuto", pensou Finlay. "Está liquidado e eu também".
Durante um aflitivo momento teve ele a visão rápida de todas as operações a que assistira, da precisão fria e imaculada de trabalho de Mac Ewen e depois, em pavoroso contraste, coufrontou-as com a luta desesperada da criança sob o seu bisturi, numa mesa de cozinha, à luz de um lampião de querozene, enquanto o vento lá fora uivava às soltas.
"Oh! meu Deus, ajudai-me, ajudai-me agora". Sentiu os olhos úmidos. Um grande vazio o possuiu todo. E sob o bisturi que pesquisava, o canudo branco apareceu à vista.
Rápido como o pensamento fez a incisão, e imediatamente cessou o arquejar da criança.
Em vez disso uma grande golfada de ar passou pela abertura. E outra, e outra. Desapareceu a cianose e o pulso regularizou-se.
Tomado de violenta reação, Finlay sentiu que ia desmaiar. Receoso de mexer-se, ficou de cabeça baixa, afim de esconder as lagrimas que lhe saltavam dos olhos. "Acertei, pensava ele. Oh, meu Deus, afinal de contas acertei". Logo depois meteu pela incisão a cânula de traqueotomia.
Lavou o sangue das mãos, carregou a criança para a cama. A febre cairá um grau e meio. Sentou-se à beira do leito vigiando o doente, limpando o muco da cânula.
Sentia um singular, um benevolente interesse pela criança, estudava-lhe o rostinho, que já não lhe era mais o rosto de um estranho.
A BOLSA SUJA DE LAMA
De tempos em tempos a mãe alimentava o fogo, em movimentos tão silenciosos que mais parecia uma sombra na cozinha. Jamie e Lacbhmd dormiam lá em cima.
Às cinco da manhã Finlay injetou mais quatro mil unidades de soro. Às seis a criança dormia placidamente.
Às sete o médico se pôs de pé, espreguiçou-se e disse sorrindo:
- Agora ele está bem. - E explicou à mãe o processo de limpeza da cânula. - Em dez dias ele estará completamente são.
Já agora não havia terror nos olhos da rapariga, mas uma gratidão comovente e inarticulada, como a de uma criatura muda para com um Deus. O cavalo foi arreado, o cabriole trazido à porta.
Todos, de pé, tomaram uma xícara de chá. A chuva parara há muito. Às sete e meia Jamie e o médico saíram, fazendo o percurso através do pálido sol da manhã.
Coisa curiosa, Jamie já não se mostrava taciturno; dizia uma palavra qualquer a respeito disso e daquilo
- uma palavra de camaradagem, que soava agradavelmente aos ouvidos de Finlay.
Era perto de nove quando o médico, exausto, de barba grande, agarrado à bolsa suja de lama, atravessou meio carnbaleante a sala de jantar de Arden House.
Cameron estava lá, limpo como um alfinete novo, cantarolando uma canção, segundo o seu hábito exasperante de cantarolar pela manhã. E enquanto isso examinava o prato de toucinho com ovos.
Olhou Finlay de cima a baixo. Em seguida com um seco piscar de olhos, antes que o outro pudesse falar, declarou:
- Pelo menos uma coisa aconteceu: a sua bolsa já não está nova em folha.
E sentaram-se juntos para comer o pequeno almoço.
CONDUTA INDECOROSA
O BAILE EM CASA DOS SINCLAIR
Homem nenhum é herói para o seu biógrafo. É se o biógrafo for honesto, apresentará os defeitos do seu personagem paralelamente com as suas qualidades, equilibrando-lhe as virtudes com as imperfeições. Não imagineis portanto que Finlay Hyslop fosse o admirável Crichton da sociedade de Levenford, imaculado jovem esculápio que jamais se houvesse mostrado estúpido, fátuo, ou leviano. Numa só oportunidade Finlay foi essas três coisas. E é por isso que precisais ouvir falar a respeito de Miss Malcolm.
Finlay encontrou-a num baile. Reparai bem que não foi numa festinha comum, tais como as reuniões na Academia ou os assustados d"o Burgh Hall, mas no baile particular dado anualmente pelos Sinclair.
Eram os Sinclair, naturalmente, os donos dos estaleiros, cujas oficinas haviam ultrapassado em tamanho até mesmo os famosos estaleiros dos Raltrays. Eram gente da terra, ligados por parentesco ou casamento à metade dos notáveis de Winton e as suas propriedades entre Levenford e Ardfillan eram o orgulho e a inveja da região.
Todos os invernos ofereciam uma festa - um baile, para ser mais exato, - ao qual compareciam todos os que na terra eram alguma coisa. Sempre aparecia por lá um duque extraviado, um membro do parlamento nunca faltava, e infalivelmente lá se viam um ou dois "baronets", junto com um bando de "honourables"; o baile dos Sinclair era, em resumo, um acontecimento social onde os quartéis de nobreza floresciam e onde o sangue tinha mais importância do que os copos de clarete.
Como prova de liberalismo dos fidalgos recebia convite para o baile a nata dos representantes das profissões liberais no cfistrito, - os mais conceituados médicos da cidade, os advogados, e as respectivas esposas.
E, em consequência disso, chegou a Arden House um cartão enorme, com margem dourada, tão cheio de inscrições quanto uma lapide funerária, convidando para o baile os doutores Cameron e Hyslop.
- Bolas! disse Cameron, atirando o convite ao mármore da lareira. Não posso perder uma noite de sono. Você deve ir, Finlay; minha época de bailes já passou.
Finlay protestou que brilharia tanto num baile quanto um boi numa loja de louça.
- É melhor você ir, de qualquer modo, rapaz, insistiu Cameron, em tom mais positivo. Pelo menos por conveniência. Os Sinclair podem lhe pôr muito dinheiro no bolso, se lhes der na veneta. Apareça por lá ai pelas dez horas. Mostre-se bebendo em companhia do lord (os olhos de Cameron brilhavam), tome um sorvete com milady, diga ao membro do parlamento que eu achei o seu último discurso uma droga, e volte então decentemente para a cama.
UM PAR AMIGO DE OLHOS CASTANHOS
E assim lá se foi Finlay ao baile. A princípio não se divertiu; sentia-se pouco à vontade, infeliz, extremamente constrangido. Na escada havia uma enorme porção de gente de nariz romano e voz alta; no térreo, uma confusão delirante de "tartans" escoceses, cada um com as cores do seu clã e jaquetas escarlates; pairando pelo ar, sentia-se um forte sentimento de superioridade.
Ninguém tomou o menor. conhecimento da existência do nosso amigo; obstinadamente ele apelou para todo seu orgulho democrático e, gradualmente, foi se sentindo um rapaz acanhado metido num mal assentado terno de cerimónia, um rústico doutor de província que não conhecia ninguém e que ninguém desejava conhecer.
Leimbrou-se de Charles Bovary, personagem de Flaubert, o estúpido boticário ignorado por todos, e um leve rubor de vergonha lhe subiu ao rosto. Mas resolveu teimosamente vencer aquilo, encostou-se à parede da sala de baile e ficou a olhar as danças, sentindo-se pavorosamente isolado, fazendo uma força louca para sentir desprezo pelas afetações sociais ali representadas - mas só o que conseguia era desprezar a si próprio.
Foi então que descobriu dois olhos castanhos e amigos pousados sobre si. Corou mais; a dona dos olhos sorriu e ele lhe sorriu em troca.
Teve certeza de que já a vira antes, que já lhe havia sido apontada por alguém em Levenford. Recordou melhor depois. E encaminhou-se então com relativa confiança até o local onde ela estava sentada, sob um grande tufo de palmeiras.
A moça o recebeu inteiramente à vontade.
- O senhor é o doutor Hyslop, disse-lhe de um modo encantador. Conheço-o muito bem, embora não tenhamos sido apresentados. Mas creio que não tem a menor ideia de quem eu seja.
- Tenho sim! a senhora é Miss Malcolm.
E quase acrescentou: a professora - mas por sorte fechou a boca em tempo.
Ela fora realmente professora, - ensinara francês em Santa Hilda, o mais aristocrático colégio para moças de Ardfillan; depois herdara algum dinheiro, e, embora ainda nova, abandonara a profissão.
Miss Malcolm tornou a sorrir para o jovem doutor, e arranjou lugar ao seu lado. Finlay, então, sentiu-se bem. Ela era agradável, encantadora, era alguém com quem se podia conversar.
- Admiro-me de vê-la aqui, observou confidencialmente, pensando lá consigo que a posição social dela era afinal inferior até mesmo à sua.
- Eu própria me surpreendo muitas vezes de me ver aqui, concordou a moça. Tinha uma voz deliciosa, bem modulada e macia. É sempre uma maçada mas de certo modo vejo-me obrigada a vir. Matthew Sinclair é meu primo.
APRESENTAÇÕES
Valia a pena ver o rosto de Finlay: prima de Sir M.atthew Sinclair! Pertencia ao grupo deles, era parente consanguínea do cabeça do clã, e ele, pobre idiota, tomara ares protetores para com ela.
- Não está dançando? A moça não parecia absolutamente lhe haver notado a confusão; batia o compasso da música com seu delicado leque de marfim.
- Sou um péssimo dançarino, confessou Finlay, humildemente. Ela sorriu:
- Vamos experimentar?
Experimentaram. Miss Malcolm era uma dançarina magnífica. Leve nos seus braços como uma pétala de cardo da Escócia, guiando-o habilmente através dos seus passos meio incertos, e mantendo-o, com tacto, dentro do ritmo.
Passado o primeiro momento de hesitação, sentiu Finlay que estava adorando dançar.
- Foi uma maravilha! disse ele como um garoto, quando voltaram a sentar-se.
- Poderemos dançar outra vez, sugeriu ela. Mas primeiro vá me arranjar um sorvete. Chocolate, sim?
Finlay correu ao bnffet e, trabalhando virilmente com os cotovelos, trouxe-lhe um sorvete de chocolate.
A moça recebeu o refresco com o seu leve sorriso e tomou-o em silêncio. Constantemente cumprimentava pessoas que passavam. O médico a contemplava, cheio de admiração. O jeito de Miss Malcolm era em verdade delicioso, seus movimentos delicados, simples. Nada da odiosa pretensão aristocrática.
Era realmente uma grande dama. Sim, uma grande dama. E, como poderia dizer? -- também era bonita.
Seus olhos castanhos brilhavam, a dança lhe trouxera um leve rubor às faces; vestia um lindo vestido branco cheio de babados, muito singelo e juvenil.
E não era idosa. Que idade teria mesmo? Intrigado, Finlay tentou adivinhar. Trinta talvez; ou menos; e com toda a certeza não passaria nunca dos trinta e cinco.
E ele disse de repente, em voz baixa:
- É muita bondade sua incomodar-se com um idiota da minha marca. Sabe que antes de vê-la a única pessoa com quem eu tinha falado aqui era o mordomo? iE assim mesmo ele não se dignou responder-me. Limitou-se a baixar as pálpebras ante mim, como um bispo.
Ela soltou uma gargalhada. Falou depois, solenemente:
- Isso é porque o senhor não conhece ninguém aqui. Vamos endireitar essa história.
Fez sinal com a colher para um rapaz que passava:
- Psiu, Maurice! quero lhe apresentar Finlay Hyslop!
Em cinco minutos Miss Malcolm o apresentou a meia dúzia de homens, que afinal de contas não eram snobs, mas camaradas decentes - ótimos camaradas todos. Finlay já não se sentia um extranho... Era um deles.
Tornou a valsar com Miss Malcolm. Tocavam o "Danúbio Azul". Foi soberbo. A elegância, a leveza de movimentos da sua dama o encantavam.
- Você na verdade dança muito bem, disse ela como por acaso. Finlay corou, feliz.
- Por sua causa, respondeu, meio tonto. Você é que dança divinamente.
UMA MOÇA ENCANTADORA
Durante quase toda a noite Finlay dançou com Miss Malcolm. Ela o apresentou a muitos homens, porém as mulheres que lhe deu a conhecer eram por acaso, naturalmente! - velhas demais para dançar. Aliás isso não lhe importava em nada. Era com ela que queria dançar. Seus passos se combinavam perfeitamente.
Foi uma grande noite para Finlay. Saiu da concha, mostrou-se vivo, animado, galanteador.
Voltou a Levenford não às onze, como predissera Cameron, mas às quatro da manhã. Antes de deixar Sinclair House perguntou a Miss Malcolm se queria que a levasse em casa. Ela abanou graciosamente a cabeça:
- vou dormir aqui. Mas você deve me visitar quando eu estiver em casa. Sabe onde é? Naquela meia lua antiga por trás de Levenford Park. Venha à noite, quando tiver tempo. À noite, em geral, estou livre.
Na manhã seguinte, ao primeiro almoço, Finlay estava fresco como um botão de rosa e só pensando no baile.
O velho Cameron fitou-o:
- Só gente moça, observou ele sentenciosamente, pode passar a noite inteira dançando e levantar-se pela manhã sem fazer caretas ao mingau. Parece que você se divertiu à larga.
- Diverti-me maravilhosamente, concordou Finlay, cordial.
- Ai, ai! então foi assim? Foi apresentado a muita gente?
- Garradas de gente.
- Não me diga! (Mimo. Otimo. Talvez Sir Matthew o chame da primeira vez que tiver sarampo.
Finlay corou.
- com efeito, observou ele, altivo, - dancei a maior parte da noite com a prima de Sir Matthéw.
- Prima de Sir Matthéw?
- Exatamente! Miss Malcolm.
- Miss Malcolm! repetiu Cameron atónito. Mas logo ocultou o seu espanto, voltando às pressas ao salmão cfefumado. - Sim, sim, ela tem parentesco com os Sinclair. Não digo que seja prima em primeiro grau, nem coisa parecida. Mas nem por isso deixa de ser bonita.
- É bonita mesmo! E uma pequena encantadora !
Dessa vez Cameron quase teve um ataque. Engasgou-se, tossiu, mas afinal conseguiu serenar o paroxismo.
- E o diabo deste salmão, arquejou ele. Está cheio de espinhas! O que é que você estava dizendo a respeito de Miss Malcolm?
- Dizia apenas que ela é encantadora, respondeu o moço com ar distante. Tenho que visitá-la qualquer dia destes.
Cameron empurrou a cadeira para trás com decisão.
- Você vive muito ocupado para cuidar do diabo dessas coisas. Lembre-se de que é um médico que trabalha, Finlay. Não é nenhum trovador cretino.
O BILHETE PERFUMADO
Curioso que, nos dias imediatos àquela observação, Finlay viu-se esmagado de trabalho. Cameron o sobrecarregava sem dó!
Durante uma quinzena inteira não teve o rapaz um momento de lazer, durante o qual pudesse visitar Miss Malcolm.
No fim desse período recebeu um bilhete, escrito em papel de luxo, e cheirando delicadamente a verbena.
"Esperei que me viesse visitar como amigo. Agora, infelizmente, tenho que o chamar como médico. Não estou passando bem. Não é nada de sério, antes uma macacôa. Venha hoje à noite, se lhe for possível: dar-lhe-ei um bom café".
Finlay cheirou o bilhete. Que perfume embriagador! A coitadinha estava doente e ele a abandonara vergonhosamente. Procedera muito mal. Procedera pessimamente.
- Veio um chamado da casa de Miss Malcolm,
informou ele a Cameron, na hora do almoço.
As sobrancelhas de Cameron saltaram para cima, como se ele abafasse uma praga. Mas nada falou.
- Eu atendo, naturalmente, continuou Finlay calmo. - Houve uma pausa. - Passo lá para vê-la...
- À noite! berrou Cameron. E derrubando a cabeça pôs-se a tomar o caldo escocês feito um maluco.
Finlay, desde o momento que lá entrou, pôs-se a admirar a casa de Miss Malcolm.
Pois a casa de Miss Malcolm era igual a Miss Malcolm e ao papel de Miss Malcolm - encantadora, absolutamente encantadora. Não era uma "vila" longe estava de lhe caber esse nome detestável; era uma graciosa casa antiga, feita de velha pedra rósea, patinada pelo tempo.
Situava-se num crescente de terra, com uma avenida para carros à frente; suas peças eram espaçosas, fidalgas, e o mobiliário concordava com o conjunto.
Miss Malcolm viajara bastante, e nas suas viagens adquirira aqui e ali muitos objetos:
- Gosta da minha arca pintada? Na verdade é muito boa. Comprei-a numa pequena hospedaria muito engraçada, lá do Tirol.
Ou:
- Ah, esses candelabros antigos são de Quimper, claro. Comprei-os de uma velhinha bretã em Vai André.
Miss Malcolm estava na sala de visitas, reclinada numa chaise-longue, ao lado do fogo. Uma bandeja de prata antiga com xicaras de porcelana de Spode e uma cafeteira georgiana haviam sido postas ao alcance de sua mão.
- Você não tem palavra! exclamou ela, risonha. Se eu não houvesse adoecido, acho que nunca o tornaria a ver.
Finlay protestou:
- Oh, não, Miss Malcolm! Tive muita vontade de vir, mas tenho andado ocupadissimo. E agora diga: o que é que está sentindo?
- Acho que dançamos demais na noite do baile. Meu coração... não é nada, é claro... quase nada.
Muito preocupado, ele examinou o coração de Miss Malcolm. Quando a cabeça de Finlay se inclinou sobre o seu peito a moça fechou os olhos. Não havia grande coisa a descobrir - uma leve bulha, talvez, mas nenhuma lesão perceptível. Finlay endireitou-se e lhe falou com solicitude:
- Deve descansar. É isto. Descansar um pouco. "vou lhe receitar um tónico. Eu mesmo o preparo. Confie em mim, que eu cuidarei de si.
Ela agradeceu, acrescentando:
- Desde que fiz a escalada de Arosa, passei a sentir umas coisas. Mas não tenho nada, naturalmente. Sou inteiramente sadia de corpo e de espírito.
VISITAS PROFISSIONAIS
Enquanto ela lhe servia o café, conversava sobre alpinismo na Suiça - coisa que, na opinião de ambos, ele deveria adorar.
O café era delicioso, diferente do café de Janet que era bom, à moda caseira; aquele era um café fragrante, aromático, cheio de essências sensuais. Ela pediu ao moço que por favor fumasse o seu cachimbo. Miss Malcolm adorava cachimbo.
Conversaram depois sobre viagens, sobre as exóticas e fascinantes cidades do Oriente. Conversaram sobre livros. Ela falava com inteligência provocante e espirituosa. Lia muito.
Uma vez ou outra dizia alguma palavra em francês ou em alemão - uma pequena frase introduzida na conversa, singelamente. Tinha uma pronúncia perfeita e ele a olhava com admiração. Sob as luzes discretas, cercada por sua própria atmosfera, pela fragrância do café e pelo fraco e fugitivo odor de verbena, Miss Malcolm parecia linda.
É verdade que era bem magra e seus olhos castanhos, líquidos, eram grandes, cheios e até mesmo proeminentes. A pele do pescoço tinha um aspecto ressequido e o nariz, visto de certos ângulos, traía estranha agudeza. Sabia entretanto apresentar-se tão bem, animar de tal modo o rosto, que afastava a ideia de qualquer análise crítica.
As mãos de Miss Malcolm eram finas e bem cuidadas. E ela toda era elegante, tão senhora de si, tão tranquila, tão bem educada, tão grande dama!
Jamais dizia: "Ora, Dr. Hyslop, o senhor não está comendo nada. Seu café acabou?". Jamais levantava em curva o dedo miudinho, jamais discutia com ele. Finlay via nela uma criatura das mais deliciosa e estimulantes. Atraía-o imensamente. Dava-lhe o sentimento do seu próprio valor, sentimento que ele perdera no mísero buraco; Levenford.
E, junto com Miss Malcolm, começou a desprezar Levenford. Soavam dez horas quando, relutantemente, levantou-se para sair. E prometeu voltar sem falta na noite seguinte.
Quando apertaram as mãos despedindo-se, sentiu o moço uma branda pressão dos dedos dela nos seus.
Chegou a noite seguinte. E Finlay "apareceu", afim de ver Miss Malcolm. E o mesmo fez na noite imediata, e na outra.
Eram visitas profissionais - ela insistia enfaticamente nisso; tinha meios, explicou. Pedia para ser tratada como uma cliente igual às outras, e todas as noites, antes do café e da palestra, Finlay lhe escutava com a maior assiduidade o coração.
A LIÇÃO
Cerca de dez dias depois Cameron foi procurar Finlay no dispensário. Cantarolou, tartamudeou um pouco e por fim, abruptamente, disse:
- Você está visitando muito essa Miss Malcolm.
- Sim, porque? respondeu Finlay surpreso. Ela tem qualquer coisa no coração.
- No coração? repetiu secamente Cameron. Sim, sim. Então são visitas profissionais.
- Claro! retrucou Finlay indignado. Porque está me olhando assim? Não fiz nada contra a ética. Mas se o senhor quer saber a verdade, - digo-lhe que gosto imensamente de visitar Miss Malcolm. é uma senhora inteligente...
- Você estará apaixonado pela danada dessa mulher? perguntou violentamente Cameron.
Finlay corou até a raiz dos cabelos.
- Ela não tem nada de "danada de mulher"! É uma senhora! E sinto-me muitíssimo atraído por ela.
Cameron levantou as mãos, e gemeu:
- Meu Deus! e eu pensei que você tivesse juizo! Disse isso e saiu da sala.
Naquela noite, Finlay propositadamente foi à casa de Miss Malcolm. A atitude de Cameron só conseguira fazê-lo mais teimoso. Por isso apertou a mão da moça mais forte do que costumava. Disse quão agradável lhe era vê-la. Em seguida, apanhou o estetoscópio e foi auscultar-lhe o coração.
O fim desta história seria muito diferente se Miss Malcolm não houvesse perdido a cabeça. Mas, estimulada pela cordialidade nova de Finlay, Miss Malcolin excedeu-se.
Quando Finlay se curvou para lhe examinar o coração, ela lhe enlaçou o pescoço com os braços, e murmurou:
- Não o pude evitar, Finlay. Nem tenho palavras para dizer como você me agrada! e beijou-o nos lábios.
Finlay endireitou-se como se uma cobra o houvesse mordido.
E gaguejou:
- Não deve... não deve fazer isso.
Todos os seus sentimentos de ética profissional revoltavam-se contra aquilo. Os braços de uma cliente ao redor do seu pescoço! Conduta aberrante do respeito profissional. O suficiente para fazer com que um homem perca o seu pergaminho, seja riscado dos quadros para sempre.
Sentiu-se tomado de pânico. Ficou a olhá-la, deitada na chaise-longne, com os olhos líquidos erguidos para ele. Murmurou uma desculpa e saiu da sala.
Foi diretamente à procura de Cameron e contou-lhe tudo. Cameron fitou-o, naquele seu geito que tudo entendia:
- Afinal você recebeu a sua lição, meu rapaz! Não vou dizer que tenho pena. Escute! agora você está em condições de compreender. Que idade pensa que tem a sua linda Miss Malcolm?
Finlay resmungou:
- Não sei.
- Tem quarenta e dois muito bem contados! Quarenta e dois. E anda procurando homem há uns bons vinte e quatro anos. Escute! você já a viu pela manhã ?
Não, respondeu Finlay, debilmente. Ela sempre me convidou...
Para ir lá à noite! completou azedamente Caneron.
Fez uma pausa solene:
- Mas se você a visse pela manhã...
E isso foi tudo.
No dia seguinte Cameron saiu em pessoa para visitar Miss Malcolm. Foi pela manhã e não demorou lá.
E o curioso da história é que o coração enfermo de Miss Malcolm melhorou imediatamente.
AS IRMÃS SCOBIE
UM TEMA PARA A MALEDICÊNCIA
Naquela áspera manhã de setembro, enquanto Finlay esquentava as botas ao fogo antes .de calçá-las, Janet entrou no quarto com um pedaço de papel na mão.
- Um chamado para Anabel Scobie, disse ela. E entregou-lhe o papel com uma expressão singular no rosto.
Finlay recebeu o curioso bilhete, - uma tira estreita de papel que lhe pareceu haver sido cuidadosamente cortada numa certa medida; e seus olhos caíram sobre a letra angulosa e antiquada:
"Miss Beth Scobie roga ao doutor a gentileza de vir visitar sua irmã Anabel, que não está passando bem".
- Está certo, Janet, vou tomar nota do chamado.
Janet continuou ali, vendo-o registrar o chamado no livro e ardendo de vontade de lhe dizer alguma coisa acerca das irmãs Scobie.
O conflito existente entre a dignidade que ela impunha a si própria e a sua terrível tendência para falar da vida alheia, fazia-lhe tremer os cantos dos lábios caídos, - como um gato à vista de um prato proibido de creme. Erguendo os olhos subitamente, Finlay apanhou aquele olhar sedento posto em si e soltou uma gargalhada:
- Não se aflija, Janet, disse ele amigavelmente. Já ouvi falar nas irmãs Scobie.
Ela sacudiu altiva a cabeça:
Então melhor. De mim é que o senhor não ia
ouvir nada.
E de cabeça ainda erguida girou nos calcanhares e saiu do quarto no auge da indignação.
QUINZE ANOS DE SILÊNCIO
O fato é que quase todas as pessoas de Levenford conheciam a história das Scobie. Eram irmãs. Duas solteironas, muito além dos cinquenta, que moravam numa casinha de pedra cinza no fim de Levenford Crescent. Casa já antiga, perto do Green, bem à margem do estuário, batida de vento, com linda vista para os navios e o mar aberto, e a bem dizer com gosto de sal até na própria argamassa.
Parecia a casa de um lobo do mar, e com efeito o era. O capitão Scobie quando se viu viuvo, com duas filhas crescidas, reformara-se afinal, abandonando a luta com as tempestades do Atlântico. Construira a sua casa agasalhada e confortável, mas à vista, ao som e ao cheiro do mar, tão seu amado.
Abernethy Scobie era um homem baixo, tratado, jovial, que trabalhara em veleiros, pilotara os velhos navios de rodas que na década de oitenta viajavam para Calcutá, e por fim comandara o "Magnetic", o melhor navio de duas hélices que já sairá dos estaleiros Latta, para a rota do Atlântico Sul. Isto de certo modo era a história antiga, porque o capitão Scobie morrera há dezoito anos atrás. Mas suas filhas, Beth e Anabel, ainda moravam na casa batida pela espuma do mar que o pai construira na margem do estuário.
Beth era a mais velha, mulherzinha morena, ressequida e de sobrancelhas pretas e severas, sob o cabelo repuxado, liso como arame.
Anabel era dois anos mais nova, muito parecida com a irmã, só que era um tanto mais alta e mais angulosa. Em compensação, tinha um pouco de cor nas faces, e no nariz também, infelizmente, quando o vento soprava mais rijo.
Vestiam-se identicamente - duas solteironas padronizadas - usando o mesmo estilo de sapatos, de luvas, chapéus, meias ãe idêntica malha de lã e vestidos sempre negros, com uma estreita barra branca no pescoço e nos punhos.
E tinham a mesma expressão: aquele ar vazio e vagamente hostil que às vezes parece incrustado no rosto de solteironas idosas, obrigadas a conviver muito uma com a outra. Porque elas estavam sempre juntas.
Há quinze anos que não se separavam uma vez sequer. E durante esses quinze anos não haviam trocado entre si uma única palavra. Esse fato estupendo parecia incrível. Era porém verídico. E tal como outros fatos estupendos, nascera do modo mais simples, mais tolo possível. Nascera de Rufus.
UM SINGULAR JURAMENTO
Rufus era um gato, um grande gato ruivo que pertencia por igual às irmãs e era igualmente estimado por ambas. Alternavam elas entre si, à noite, a obrigação de chamá-lo no quintal, onde, como gato de juizo que era, ele costumava passear, antes de se recolher regaladamente ao borralho da cozinha para dormir.
- Rufus! Rufus, aqui, aqui! chamava Anabel uma noite. - E Beth, na noite seguinte, para não dizerem que imitava a irmã, chamava: - Bichano, bichano! Aqui, Rufus, aqui!
Isso ocorrera com regularidade de relógio, até aquela fatal noite de há quinze anos atrás. Acontecera que Beth, levantando os olhos do tricô, ou talvez fosse do croché, fitou o relógio e disse:
- Por que você ainda não chamou Rufus, Anabel? E Anabel respondeu amigavelmente:
- Porque não é minha vez. Chamei-o ontem.
- Ontem, não! contrapôs Beth. Fui eu que o chamei ontem.
- Não foi você que chamou, Beth Scobie.
- Chamei.
- Não chamou!
- Desculpe, mas chamei! Lembro-me, porque ele até se escondeu nas moitas de groselha.
- Isso foi anteontem! Lembro-me muito bem de você me contar o caso, quando entrou. Não foi ontem.
- Perdoe, mas foi ontem, sim.
Aí ambas se zangaram, e entraram a bater boca. Afinal Beth falou resolutamente:
- Pela última vez lhe pergunto, Anabel: você não vai chamar esse gato?
E Anabel, igualmente resoluta, silvou:
- Não é minha vez de chamar o gato.
Depois disso ambas se levantaram e foram para a cama. Nem uma nem outra chamou o gato.
Tudo poderia ter ficado nisso, se não sucedesse que Rufus, vendo-se inesperadamente livre, não metesse na sua estúpida cabeça felina a ideia de sair vagabundando.
Na manhã seguinte, Rufus estava perdido, - perdido de vez. E quando ficaram certas de que Rufus estava irremediavelmente desaparecido, Reth virou-se para a irmã como uma víbora a quem houvessem pisado o rabo.
- Nunca mais na vida, disse ela com veneno concentrado, hei de falar com você, enquanto não me pedir perdão de joelhos, pelo que fez.
- E eu, retorquiu Anabel exaltadissima, nunca mais hei de falar com você enquanto tiver um sopro de vida, senão depois que você se arrastar de joelhos pelo chão, rogando que eu lhe perdoe.
Muitos desses juramentos têm sido feitos no decorrer de brigas de famílias. Mas o estranho a respeito das irmãs Scobie, é que elas cumpriram o que juraram; mais estranha ainda a maneira pela qual o cumpriram.
DUAS TIRAS DE PAPEL
E assim foi que, às onze e meia daquele dia, recebendo um chamado para visitar Miss Anabel, Finlay pisou o caminho de cascalho branco no jardim das Scobie, bateu discretamente à porta e Miss Beth veio abri-la em pessoa.
Embora as irmãs recebessem um bom montepio e vivessem bem, orgulhavam-se em não empregar criadas.
Entre por aqui, por favor, disse Beth, levando-o
a sala em frente, uma peça gélidamente limpa, com mobiliário estofado de crina, quadros de marinhas na parede, algumas excelentes peças de porcelana de Satsuma num armário, e um pesado relógio de mármore tiquetaqueando na escarpa da lareira.
Na mesma voz incolor, Miss Beth acrescentou:
-? vou ver se minha irmã está pronta para o receber.
E deixou a sala.
Logo que .a velha saiu, Finlay procurou instintivamente aquecer-se à lareira. O fogão porém; estava vazio de fogo, a grelha bem raspada por trás do guarda-fogo de laca. E na prateleira, ao lado do relógio, seu olhar foi atraído por uma pilha bem arrumada de tiras de papel, exatamente iguais à outra tira em que fora escrito o bilhete chamando-o. Ao lado das tiras de papel, via-se um lápis.
Finlay ficou a olhar para os papeis e para o lápis, e uma confusa compreensão lhe atravessava o espírito. De repente descobriu duas tiras amarrotadas, atiradas na grelha por trás do guarda-fogo, e, impelido por singular curiosidade, inclinou-se e apanhou-as.
Na primeira, a lápis, estavam escritas estas palavras:
"Não estou me sentindo bem; por favor chame o médico".
A outra dizia:
"Maluquice sua pensar que está doente".
Finlay deixou cair os papeis, espantado. Então era assim que elas se entendiam!
Nesse momento um rumor fê-lo voltar-se. Beth estava na porta diante dele.
- Minha irmã vai recebê-lo, disse ela simplesmente, mas Finlay era capaz de jurar que a velha amarrotava um pedaço de papel na mão.
Subiu a escada, seguindo as instruções de Beth porque ela não o quis acompanhar -- e entrou num dos quartos da frente.
Anabel estava deitada na grande cama de ferro coberta por uma linda colcha. O linho dos lençoes e das fronhas era ótimo, mas o estado da enferma estava longe de ótimo.
Finlay levou apenas cinco minutos para descobrir que ela sofria de influenza - apresentava os primeiros sintomas, mas a coisa vinha fortíssima.
Estava com a pele seca, a temperatura alta, o pulso irregular e já se escutava um rumor suspeito lhe tomando conta da base do pulmão.
Anabel submetia-se de má vontade ao exame. Sofria daquela modéstia característica que costuma afligir as solteironas. Por fim perguntou diretamente:
- Pelo seu jeito vejo que vou ficar doente, não?
- A senhora já apanhou uma boa gripe, admitiu ele. A coisa anda epidemica por aí. Abate um pouco, mas não é grave.
"ELA E TEIMOSA"
Ante a evasiva do médico, Anabel teve um riso curto que a fez tossir:
- Quero dizer, emendou Finlay, corando, que a senhora estará boa dentro de dez a quinze dias.
- Claro que estarei.
- Enquanto isso, o melhor é chamar uma enfermeira.
Não quero enfermeira, doutor.
O olhar obstinado voltou aos olhos fundos:
- Minha irmã me trata. A coitada há de ser uma enfermeira muito sem jeito, mas não me é incomodo. Pausa. - Ela é muito teimosa, doutor. Teimosa demais e rixcnta, Deus que me perdoe. Mas tenho tolerado isso na saúde e posso tolerar na doença.
Nada mais tinha que ser dito a Anabel.
Finlay guardou o estetoscópio, fechou a bolsa e desceu a escada.
Na sala, entre a mobília estofada, as marinhas, a porcelana de Satsuma, e as pequenas pilhas de papel junto ao relógio monumental, ele se dirigiu a Beth:
-- Sua irmã está com influenza.
- Influenza? Só? Ora bem! Anabel é dessas que sempre estão se queixando.
- A senhora então não compreende? observou ele com rudeza. Sua irmã está muito doente. Vai passar muito mal antes de melhorar. Muito mal. Essa gripe não é brincadeira e ela apanhou o tipo pulmonar. Vai precisar de muitos cuidados.
Beth fez um leve gesto irónico.
- Eu posso tratar dela. E tratar bem. Embora tenha os meus receios de que ela vai ser uma péssima doente. É muito teimosa, doutor. Teimosa demais, e briguenta, Deus que me perdoe. O senhor não acreditaria se eu lhe contasse o que tenho sido obrigada a aturar. Mas o que eu pude tolerar quando ela estava sadia, posso continuar tolerando agora que ela está doente.
Finlay olhou-a atónito. Por fim disse:
- Só há uma dificuldade. - E o médico parou para limpar a garganta, encabulado. - Parece que a senhora e sua irmã não falam uma com a outra. Provavelmente não poderá tratá-la, nessas condições.
A velha sorriu o seu sorriso agudo e sem alegria.
- Dá-se um jeito! Temos atravessado bem todos estes quinze anos.
Houve um silêncio. com um encolher de ombros, Finlay aceitou a situação.
Começou a explicar pormenorizadamente o que deveria ser feito. Depois de dadas as instruções, apanhou o chapéu e saiu da casa.
"A CULPA FOI MINHA"
E assim Beth começou a tratar da irmã, guardando aquele mesmo silêncio obstinado que já durava há quinze anos. No começo foi bastante fácil.
Como Anabel ainda não estava muito doente, os bilhetes voavam de irmã para irmã, feito andorinhas. Soerguido nos travesseiros, a irmã escrevia:
"Quero caldo de carne em vez de mingau, hoje à noite".
E a enfermeira, de cara frígida, respondia:
"Está bem. Mas tome primeiro o seu remédio".
Ridículo, é claro. Mas ridículo ou não, o hábito de quinze anos era difícil de quebrar.
No fim da segunda tarde, entretanto, algo emperrou no mecanismo do velho sistema.
Anabel piorara; piorara muito; durante várias horas ficara deitada, imóvel, com um ar muito esquisito.
Agora começava a escurecer e, afundada na cama, com as faces vermelhas e os olhos sem enxergar, ela caíra num ligeiro delírio.
Dizia asneiras, pedaços de palavras e frases; mas de súbito, no meio daquela incoerência, falou - falou à irmã. Disse estas palavras:
- Estou com sede, Beth. Por favor, me dê água. Beth estremeceu, como se a houvessem trespassado com uma lança.
Anabel lhe falara. Depois de todos aqueles anos, Anabel falara em primeiro lugar. Seu rosto, seu corpo tremiam. E a velha comprimiu o peito com a mão. Depois soltou um grito:
- Sim, Anabel. vou lhe dar água. Olhe, está aqui. - Correu para a cama, amparou a cabeça da irmã com o braço e ofereceu-lhe o copo.
O som da voz de Beth pareceu arrancar Anabel da sua inconsciência. E a enferma olhou para a irmã e sorriu. Beth, então, começou a soluçar, -- soluços secos e duros que lhe rasgavam e feriam o peito magro.
- Sinto muito, Anabel. Sinto terrivelmente, disse ela em pranto. Foi culpa minha. E tudo por uma coisa à toa.
- Talvez tenha sido minha culpa, murmurou Anabel. Talvez fosse a minha vez de chamar o gato.
- Não, não, soluçou Beth. Acho que era a minha vez.
UMA ENFERMEIRA DEDICADA
Naquela noite Finlay chegou e encontrou Beth esperando-o na sala. Todo azedume da velha desaparecera e em lugar dele via-se apenas uma sincera inquietação.
- Doutor, perguntou ela logo, minha irmã está pior. Será que o senhor acha.. será que o senhor acha que ela não vai ficar boa?
Finlay cravou o olhar na marinha pendurada na parede oposta, que representava o "Magnetic" atravessando o Tail othe Bank.
- Creio que ela atravessará, se tiver sorte, naturalmente.
- Ela tem que atravessar! gritou histericamente Beth. O senhor não compreende? É que fizemos as pazes! Esta tarde ela falou comigo.
E sem dizer mais nada, rompeu em pranto.
Finlay, malgrado seu, estava comovido, comovido por aquelas lágrimas, tão estranhas à natureza dura de Beth, que pareciam águas vivas brotando da rocha nua.
Via como algo singularmente belo a reconciliação das duas irmãs, dois entes ressequidos e áridos, que haviam transformado uma rixa comum naquela selvagem animosidade, e ligado as suas vidas por um ódio sem palavras.
E refletia, tomado por aquela poética visão - se pudesse salvar Miss Anabel, como seria maravilhoso vê-las desatar as suas malignas cadeias, assistir ao renascer da afeição, e à marcha daquelas naturezas gémeas para uma velhice rica e generosa.
E tal foi a intensidade do seu pensamento que ele disse em voz alta:
- Temos que salvá-la! Mas não foi fácil.
Os dias se passavam e Anabel oscilava entre o delírio e a razão, a febre subindo, e caindo, o pulso desaparecendo, e a sua energia gradualmente indo embora.
A infecção devastava. Parecia que a gripe evoluíra para uma pneumonia secundária que seria o fim de tudo. Era esse, pelo menos, o receio de Finlay. Anabel porém era rija, feita de material resistente. Aguentou bravamente e não sofreu falta de nada.
Beth tratava-a com dedicação, mimando-a, adulando-a, procurando alegrá-la, com extraordinária ternura.
- Ande, meu bem, venha tomar o seu remédio.
- Tome um pouquinho mais deste caldinho de galinha, tão gostoso.
- Esta geleia de groselha preta vai aliviar a sua tosse.
A MUDANÇA
Por fim veio a recompensa à vigilância de Finlay e aos cuidados devotados de Beth.
Catorze dias depois da primeira visita, Finlay pôde declarar que Anabel se restabeleceria.
Ouvindo-o, Beth deixou-se cair de joelhos ao pé da cama, e enterrou a cabeça no travesseiro ao lado da irmã.
- Graças a Deus, soluçou. - Estava exausta pela inquietação e pela falta de sono. - Graças a Deus você rne foi conservada. Não sei o que seria de mim sem você.
Daquele momento em diante, Anabel marchou rapidamente para a cura. E talvez porque o período agudo da doença fora muito prolongado, a convalescença foi extraordinariamente rápida.
Dentro de dez dias já ela podia andar pelo quarto, sentar-se junto à janela e olhar a fascinante procissão dos navios que deslizavam subindo ou descendo o Firth.
com quinze dias já descera, e com mais uma semana podia sair. No fim do mês, Finlay declarou-a completamente curada.
-- com efeito, o senhor tem razão, disse ela com um sorriso satisfeito. Para falar a verdade, sinto-me melhor agora do que antes de adoecer.
Finlay lhe sorriu também e despediu-se.
- Virei vê-la ainda uma vez para lhe dar a alta definitiva. Digamos daqui a uma semana ou dez dias. Está bem?
- Está ótimo, doutor, respondeu ela com ênfase. Depois que saiu o médico, Anabel continuou a se embalar suavemente na cadeira de balanço.
- É um rapaz ótimo, ruminou ela com afeição. Um rapaz esplêndido, realmente. Mas acredite você, no final de contas não posso dizer "que foi ele que me salvou". - Fez uma pausa significativa. - Não, o que realmente me salvou, foi você falar comigo daquela maneira.
Outra pausa, vagamente triunfante.
- Você compreende, - só a ideia de que você havia cedido, Beth, falando comigo em primeiro lugar, - por pior que eu estivesse, - foi o que me levantou.
O AMARGO FIM
Beth endireitou-se no sofá, com um leve rubor lhe colorindo a face.
- Que é que está dizendo, Anabel? Foi você que falou comigo. "Por favor, me dê água", falou você tão claro quanto estou lhe falando aqui.
- Não, não, disse Anabel abanando de leve a cabeça. Lembro-me muito bem como foi. Você chegou à minha cabeceira e ajoelhou-se. Depois, com lagrimas nos olhos, disse: "Foi minha culpa, Anabel querida. Eu é que tenho a culpa de tudo".
- O que! explodiu Beth, enrijecendo o corpo todo e chispando contra a irmã o olhar de sob as negras sobrancelhas.
- Isso não! retrucou rindo Anabel, você até disse que não tivera razão em nada. "Era a minha vez!" disse você. "Era a minha vez de chamar o gato".
- Não é verdade! berrou Beth.
- Ai, o que é isso? exclamou Anabel, parando de balançar-se e lentamente enrubescendo.
- Não é verdade! repetiu Beth, furiosa. Foi você que disse que estava enganada. Admitiu que era a sua vez de chamar o gato.
- Não disse nada disso.
- Disse sim.
- Não disse. Não era a minha vez de chamar o gato.
?- Era a sua vez.
-? Não era!
E nesse gosto continuaram, continuaram até o amargo e inevitável fim.
E assim, quando Finlay apareceu no fim da semana, o silêncio reinava novamente entre as irmãs Scobie. Beth e Anabel voltavam a trocar bilhetes, exatamente como o haviam feito durante quinze anos.
Ele saiu da casa estupefacto, apertando a cabeça entre as mãos. Depois, à maneira de Cameron, invocou os céus que o cobriam:
- Meu Deus! Se um desses diabos velhos tornar a adoecer, farei o possível para que não fique boa nem que a tenha de envenenar com as minhas mãos!
DAVIE PAU DAGUA
ERUDITO E BUFÃO
Esta não é uma história alegre - não é aliás história nenhuma, porque é apenas a verdade, - a feia e impiedosa verdade, começando cortêsmente com um ataque de delirium-tremens e terminando - bem, depois veremos como é que termina.
Trata-se de um homem a quem Finlay Hyslop queria bem, um homem por nome Muir, Davie Muir, bacharel em artes pela Universidade de St. Andrews erudito, poeta, bêbedo, vencido da vida, bufão.
- Jcannie Lee mandou chamá-lo, doutor. -- Para que?
- É
por causa de Davie Pau dAgua, doutor.
- E quem, com todos os diabos, é Davie Pau DAgua?
- Oh é... é só mesmo Davie Pau dAgua.
- E que é que há com Davie Pau d"Agua?
- Oh, está bêbedo outra vez, doutor.
Finlay fitou meditativo o garoto sujo, de cabeça pelada, nariz escorrendo, roto, calças sem fundilhos, que lhe trouxera o recado do pardieiro à beira do cais, onde Jeannie Lee alugava cómodos para a escória de Levenford. Por fim disse, de mau modo:
- Se está só bêbedo não precisa de médico.
- Mas é uma bebedeira diferente, foi a resposta entendida. Ficar bêbedo como morto para Davie não é novidade. Mas desta vez deu a louca nele.
E assim Finlay, de má vontade, tocou-se para a casa de cómodos de Jeannie Lee a qual, está entendido, não era nenhum hotel mas o mais infame covil, entre os covis infames na beira do cais.
Martelou à porta escalavrada, que tinha em cima um letreiro de papelão: "Boas camas. Só para homens". Foi recebido por uma rapariga suja, enrolada num chalé a qual, apesar do letreiro proibindo o seu sexo, mostrava-se inteiramente à vontade e em casa.
- Jeannie Lee teve que sair, observou ela pregando em Finlay os olhos bonitos e atrevidos. Manda avisar que não é responsável pelo pagamento ao senhor. Disse para eu dizer ao senhor que quando Davie Muir estiver melhor, paga. Disse que...
Finlay a interrompeu:
- Não importa o que ela disse. Deixe-me ver logo o tal Davie, que eu quero cair fora daqui.
- Está bem, está bem. Não se aflija. O quarto dele é ali em cima .
A LAMENTÁVEL PROMESSA
Era um quarto pequeno nos fundos da casa. E como as casas se tocavam fundos com fundos naquele bairro super-povoado, o quarto era tão escuro que Finlay teve de ficar parado um momento, até que seus olhos se ajustassem à obscuridade.
Só então avistou Davie Muir deitado num catre. A despeito de ocupar uma daquelas "boas camas" com ô colchão estourado de palha e a coberta única feita de retalhos, Davie estava ainda vestido e calçado.
Tinha a .barba comprida, o casaco sujo de lama, o colarinho aberto no pescoço, os olhos fixos cravados no espaço, com uma espécie de horror. Ao seu redor jaziam os testemunhos da pobreza, da decadência e da miséria; uma mesa nua, uma velha mala furada, algumas garrafas vazias e alguns livros em mau estado.
A esquálida confusão do quarto, o lamentável e extremo estado do homem arrancaram de Finlay uma exclamação:
- Meu Deus! resmungou ele involuntariamente. Que imundície!
O som de sua voz levantou Davie na cama. O doente sentou-se e irrompeu numa torrente de palavras.
O rosto ficou purpurino; as veias do pescoço engrossaram até ficarem como cordas; os olhos se esbugalharam; tinha o pavoroso aspecto de uma alma torturada, na mais esquecida das profundas do inferno. E esbravejava sem parar.
Não adianta repetir o que disse Davie. A dolorosa retórica de uma imaginação enlouquecida pelo álcool, fervura expelida pela mente enferma e atormentada. Mas quando o espasmo passou, ele se deixou cair na cama, e de repente citou:
- Scilicet occidimus, nec spes est ulla salutis, Dumque loquor, vultus obruit undo. meos..
O súbito contraste entre o desalinhavado delírio e a maneira por que eram ditos aqueles versos, impressionou Finlay; arrancou de si o desejo instintivo de sair daquele quarto fétido, assim que pudesse injetar uma ampola de morfina no braço do enfermo. Em vez disso, ficou.
A NARRATIVA DE CAMERON
Durante uma hora inteira Finlay ficou com Davie Muir, velando, até que o doente caiu num sono perturbado. Tentava o médico ver sob a barba crescida e a sujeira que lhe incrustava o rosto, procurando enxergar, recriar-lhe a juventude. Não que Davie parecesse velho; o calculo de Finlay não ia além de trinta o cinco anos; o cabelo de Davie ainda era espesso e negro, mas uma experiência sem idade como que o envolvia.
Antes de partir Finlay arrumou o quarto o melhor que pôde. Apanhou um livro - era a "Eneida"; outro era "Paolo e Francesca".
Finlay suspirou. Depois esmagou com o livro um último percevejo, sacudiu as pulgas da própria roupa, escutou durante algum tempo o ronco estertoroso de Davie e saiu do quarto.
Nessa noite interrogou Cameron, mas discretamente, porque Cameron jamais soltaria uma palavra, se sentisse ares de mexerico na pergunta.
- Então você foi visitar Davie Pau dAgua, ruminava Cameron entre fumaçadas do cachimbo. Muito bem! Se lesse a história dele em letra de forma, não acreditaria.
Uma pausa. - Pobre Davie Muir! Quem o vê agora, jamais diria que foi ele o primeiro prémio do seu ano em St. Andrews, o sujeito mais inteligente que já saiu daquela velha escola. Sabia latim e grego como eu sei patuá escocês. Profetizaram para ele muita coisa, desde uma cátedra de professor em Oxford, até a almofada de Presidente da Camará dos Lordes. E agora que ele é? Redator de meia diária no "Advertiser". F de lá mesmo é despedido numa média de duas vezes por mês. Há cinco anos atrás veio para cá como professor de letras clássicas :ia Academia de Levenford. K durante uns dois anos manteve-se na cadeira. Mas acabou perdendo. Fiz então o possível para ajudá-lo, levei-o para o Loch à casa dos Policies afim de servir de preceptor ao jovem Overton. Ele tinha uma boca de ouro, encantou-os a todos durante três meses - e depois caiu de cabeça, durante o espaço de vinte e quatro horas. Arre! não suporto recordar aquilo! Fico doente de pena pelo pobre diabo. Nem aguento lhe contar mais agora.
UMA SUGESTÃO MARAVILHOSA
- É uma história comprida, então? indagou Finlay.
- Não, disse Cameron brevemente. É uma história curta. Danada de curta. Uma única palavra: Bebida! Boa noite, Finlay.
E, batendo o cachimbo, Cameron foi para a cama.
Na manhã seguinte Finlay foi novamente visitar Davie e em várias manhãs seguintes.
Fosse qualquer outro caso, não teria ido, pois não tinha o altruísmo de Cameron. Visitas pelas quais não receberia nada não interessavam à sua natureza prudente. Mas qualquer coisa o arrastava para Davie Muir, - talvez o desespero, o raro encanto patético do homem em si. Porque o encanto de Davie não padecia duvida. Erudito, sensível, persuasivo, espirituoso, era a mais deliciosa companhia deste mundo.
Pouco a pouco, Finlay foi caindo sob a influencia daquele espirito rico e vivo.
Durante uma hora inteira ficava sentado ao seu lado, escutando, conversando, rindo, esquecido das pulgas, do quarto esquálido, da pobreza espectral que os rodeava.
Chegou a gostar de Davie Muir, a admirá-lo e por fim a lhe querer bem. E assim aconteceu que uma tarde, quando Davie já estava quase inteiramente restabelecido e capaz de se pôr de pé nas pernas trémulas, Finlay resolveu-se à grande investida:
- Davie, - disse de súbito, - por que você não larga de beber? Por que não larga de vez? Eu farei o que for humanamente possível para ajudá-lo.
Davie olhou-o de viés, depois soltou uma risada curta, com o primeiro traço de amargura que mostrava a Finlay:
- É o tratamento Hyslop,   não? Você põe qualquer coisa no meu chá quando eu estiver de costas, uma coisa sem gosto e inodora. Na manhã seguinte, estou curado. Ótimo! Sugestão maravilhosa, se não por outra coisa, pelo menos pela novidade.
NO BOTEQUIM DE MARNEY
Finlay corou:
- Estava só pensando...
- Não adianta pensar, menino, interrompeu Davie em voz mais branda. E também não adianta fazer nada. Você então não acha que eu já experimentei antes? Já tentei uma dúzia de médicos - em EdinImrgh, Londres e até em Berlim. Andei por tantos sanatórios que lhes tomei horror. Sou o rei sem coroa dos reformatórios de bêbedos. Experimentei tudo. Mas não adianta, Finlay. A coisa se incrustou em mim. Faz parte de mim. Apodreceu comigo. Eu já estou podre. Podre, é o que lhe digo.
A voz de Davie crescia, à medida que ele continuava.
- Sou um bêbedo habitual, um bêbedo incurável. No momento em que for capaz de deixar esta casa, irei direto para o botequim de Marney. Lá é que é o meu lar, compreende? Tenho lá o meu canto, e eles me conhecem. Divirto o pessoal. Quando estou meio locado, conto-lhes histórias indecentes, francesas. E quando estou completamente bêbedo, provoco-lhes convulsões de riso com epigramas gregos. Pensam eles que é chinês, mas não faz mal, gostam de mim lá, e eu gosto deles. Claro que só gosto quando estou bêbedo, você entende. De qualquer modo, para lá é que irei, no momento em que você me deixar. Sento-me lá e bebo até o último penny que tiver no bolso. Beberei depois à custa dos meus amigos caldeireiros; Pat Marney me fia até que o "Advertiser" me pague. E então começa tudo outra vez. Beber, beber, beber! com sorte aguento seis meses até sofrer novo ataque que cause #57D.T..# Quando o #D.T.# chegar, descanso durante um mês. E essa minha cura de repouso. Ponho-me em forma para outros seis meses de bebida.
Seguiu-se um silêncio pesado. Afinal Finlay disse:
- Se a coisa é assim, Davie, acho que nada mais pode ser dito ou feito. - E sem outras palavras, saiu do quarto.
Claro que tudo aconteceu exatamente como Davie o predissera. As portas hospitaleiras do botequim de Marney abriram-se daí a uma hora. E Davie Muir por elas entrou.
- Alo, Davie, onde tem andado? perguntou o jovial Pat por trás do bar.
- Passei quinze dias caçando, Pat, respondeu Davie ligeiramente. Uma quinzena de caça em companhia de um amigo.
Kate Marney, mulher de Pat, de pé à porta que separava o bar da residência da família, aos fundos, sacudiu-se como um pudim ante a piada.
- Ah, mas não estamos na estação de caça, qual!
- A fauna que nós perseguíamos eram cobras, respondeu secamente Davie. Cobras verdes brilhantes, Mrs. Marney. É tremendamente difícil alvejá-las quando sobem pelas paredes. Meia pinta, Pat. Depressa!
A FILHA DE PAT MARNEY
A tarde passou-se, os estaleiros fecharam-se Os "rapazes" apareceram: rebitadores, assentadores de linha, montadorcs, operários todos, e todos satisfeitos, satisfeitíssimos por verem de volta o "nosso Davie".
Reorganizou-se a roda, o cavalheiro e a ralé. A bebida penetrava macianiente, generosamente, nos tecidos sedentos de Davie. Ele se inflamava e excedeu-se a si próprio.
Citou Homero: "Deuses, o velho oráculo está de volta", enquanto os outros ouviam de boca aberta; fê-los explodir de risos ante a versão inexpurgada do episódio do "tio Toby" e o relógio; e na hora em que se fechou o botequim, foi para casa, subiu cambaleante a escada e atirou-se à cama completamente bêbedo.
A manhã seguinte esteve linda. Davie levantou-se tarde e encaminhou-se ao Marney para um aperitivo.
Ao longo do cais soprava uma brisa fresca e o céu era de um azul luminoso e raro; o sol brilhava, quente. Gaivotas voejavam em torno da ponte, garbosas e belas. Era um dia de comover o coração.
E quando ladeava o canto do cais, Davie ouviu alguém chamá-lo. Era Kate Marney, muito bem vestida, que declarou com voz cheia de orgulho:
- Passa por mim sem falar, Mr. Muir? Olhe que vou para casa com a minha filha Rose, que vem da escola.
- Desculpe, Mrs. Marney, respondeu Davie com voz cavernosa.
A luz lhe feria os olhos. Ele se sentia inloleravelmente mal, morto por uma bebida.
Lembrava-se vagamente, de ouvir Pat falar na filha, sua filha única Rose, que fora mandada estudar longe do botequim, num colégio religioso.
Virou-se para olhá-la. E fitou-a com um olhar longo e tenso. Absorveu-lhe com a vista a clara e jovem Leleza. Depois baixou ligeiramente os olhos. E murmurou :
- A manhã está linda para um passeio. Fresca e com um sol tão bonito! Desculpe! Tenho um encontro !
Levantou a mão para tirar o chapéu. Mas se esquecera de por o chapéu. Corou e afastou-se rapidamente, seguindo direto para o botequim.
- Meia pinta, Pat.
Bebeu lentamente, com os olhos no bico dos sapatos rasgados, escutando Pat, que só falava na volta da filha:
- Já tem dezessete anos, rapaz, mas é inocente como menino novo. Você não a viu quando vinha? É mais bonita que uma flor.
- Linda, repetiu Davie em voz baixa. Mais linda do que uma rosa.
E, como para si próprio, murmurou o verso: "Do convento saiu, fresca de orvalho..." Pat escutou muito bem. com a mão na torneira da cerveja, babava-se.
- Muito apropriado esse verso, digo-lhe eu. Como pai, aprecio muitíssimo. Outro copo, meu rapaz? Beba este por conta da casa, para comemorar.
-- Mais tarde, Pat. Mais tarde. Agora não.
O PODER DO AMOR
Davie afastou-se, procurando pensar. Atravessou a estrada e ficou a esperar na calçada oposta. Dentro de uma hora, Rose e a mãe voltaram. Ela o avistou, mandou-lhe um rápido sorriso reconhecendo-o, depois desapareceu. O coração de Davie voltou a bater.
"Diabos me levem, gemeu ele intimamente. Por que não estou morto?"
Dirigiu-se ao seu quarto. Aquilo lhe acontecera. Afinal. Estava apaixonado. Ela era meiga, inocente, adorável e tinha dezessete anos.
Ele tinha trinta e quatro e era um bêbedo. Ficou sentado por muito tempo. Pensando, pensando. A sujeira e a nudez do seu quarto o enfureciam. Ergueu-se, dando um pontapé na cadeira.
E de repente bradou num furor resoluto:
E por que eu não posso? Por que? Se eu quiser,
posso fazê-lo. Nunca o quis antes. Mas agora quero.
Agarrou o chapéu e saiu quase correndo para Arden House. Irrompeu no consultório de Finlay.
Finlay, exclamou, pálido e sem fôlego. vou
fazer o que você disse. vou deixar a bebida. E agora é de vez. Você compreende? Vai me ajudar, como disse?
Toda Levenford sorriu, naturalmente, quando
 Davie apareceu num terno de Finlay, limpo e barbeado.
" Levenford ficou divertidissima quando ele se mudou
do esquálido quarto à beira do cais para um apartamento decente em Church Street.
O PASSEIO FAVORITO DE ROSE MARNEY
Levenford levou o dedo ao nariz, quando, a exigências de Finlay, Jackson, do "Advertiser", arranjou para Davie um trabalho regular na redação pagando-lhe trinta shillings por semana. Levenford sabia, é evidente, que aquilo não poderia durar. Parecia, entretanto, que Levenford devia esperar em vão. Davie levava a existência mais sossegada deste mundo, trabalhando de dia, ficando no quarto à noite.
Poucos adivinhavam que a sua compostura era meramente exterior. Intimamente Davie Muir sorvia a taça do sofrimento até as mais amargas fezes. Conheceu a agonia das enlouquecedoras noites sem sono. Quando o desejo de beber lhe apertava a garganta, ele chegava a chorar, impotente. Mas sustentava-se desesperadamente, agarrando-se à sua esperança, à sua inspiração.
E Finlay estava ao seu lado, ajudando-o como médico, como amigo, por todos os meios ao seu alcance, parecia em, verdade que David acabaria saindo vencedor.
Chegou o verão, o verão ameno e prematuro que ainda guardava a frescura da primavera, como se não quisesse deixá-la partir.
E nas lindas tardes claras, sentindo-se agora mais forte, mais seguro, Davie ia passear fora da rua, na estrada que levava para Winton Hills.
Era um passeio agradável: atravessava-se Carshake Wood até se alcançar a charneca aberta mais além.
Não era porém a beleza do sitio que para lá arrastava Davie. Arrastava-o a circunstância de ser aquele o passeio favorito de Rose Marney. Não era intenção dele alcançá-la. Estava ainda muito desconfiado, muito humilde, muito consciente dos próprios defeitos. Queria simplesmente vê-la à distância, tal como um homem que, na terra, contempla a beleza de uma estrela.
Seu amor era espiritual, idealizado. A presença distante da rapariga cantava aos seus ouvidos o cântico da inocência.
Mas uma tarde, como era inevitável, eles se encontraram.
ORGULHO FERIDO
O encontro ocorreu à beira da charneca. O sol estava se pondo num grande lago de luz. Do sopé de Winton Hills vinha um distante balido de rebanho. Quando Rose se aproximava, o coração de Davie pôs-se a bater dolorosamente, delirantemente. Cuidou que ela não o recordaria, mas tal não sucedeu.
Rose sorriu, o seu sorriso de completa candura, deteve-se. Falaram-se, comtemplaram juntos a paisagem. Depois ele a acompanhou de volta. Correu tudo absolutamente inocente e natural. Davie já não sentia nenhum embaraço, e esforçava-se por parecer interessante, espirituoso, alegre.
Fê-la rir com toda a espécie de disparates.
com súbita alegria, Davie compreendeu que Rose estava se divertindo imensamente. Mas no começo da estrada, parou.
- Deixo-a ir só agora, falou. Isto é, se não se incomoda.
Ela o encarou, surpresa:
- Mas o senhor também não vai para a cidade? Davie daria a cabeça para atravessar a cidade em
companhia de Rose. Tinha porém mais juizo do que a menina.
- Não, declarou animadamente. Tenho que falar com uma pessoa de Darroch, negocio do jornal. vou pela rua de trás.
Na sua exuberância foi ele realmente até Darroch, pisando em nuvens. Aliás poderia muito bem, - ai dele! poupar-se a essa caminhada.
Fora visto conversando com Rose, fora visto acompanhando-a em Garshakc Road; visto por Deugal Todd, o cidadão mais linguarudo de Levenford, que correu, ou antes, voou, o mais rápido que o podiam carregar os seus bentos pés, afim de espalhar a notícia de que a pequena Rose Marney fora vista numa isolada estrada do campo em companhia de Davie Muir, o libertino e bêbedo.
O escândalo chegou aos ouvidos de Pat Marney no dia imediato. Seu rosto gordo e benévolo congestionou-se de horror e de fúria. Sem uma palavra agarrou a bengala e saiu à procura de Davie. Encontraram-se naquela tarde de sábado, bem no meio de High Street, cheia de gente.
- Cachorro! berrou Marney. Cão bêbedo! Pensa que pode andar atrás da minha filha, como faz com as raparigas da rua do cais! Você, que se enchia de bebida no meu bar! Seu esponja, seu vagabundo! Pensar que se atreveu a tocar na minha filha!
E atirou-se a Davie com o bengalão, como se estivesse possuído pelo demónio. Aplicou-lhe uma dúzia de violentas bengaladas na cabeça e nos ombros antes de o deixar sem sentidos na sarjeta.
Davie ali ficou inconsciente por muito tempo mas afinal voltou a si, encontrando a ampará-lo uma meia dúzia de amigos.
Marney fora embora e todos o cobriam de injurias.
- Porco sujo da Irlanda, bater num homem como Davie!
- Coitado de Davie, está todo machucado.
- Vão buscar mais um pouco de água, depressa. Mas alguém do grupo teve ideia melhor:
-- Tome, Davie, beba isto aqui.
E antes que ele o percebesse um frasco tocava os lábios de Davie, e uma goiada de álcool forte lhe enchia a boca.
Instintivamente ele bebeu, com sede tremenda. Estava ferido, magoado, trémulo. Tornou , a beber; o whisky fluía dentro de si como um fogo divino, há muito esquecido. Esvaziou a garrafa.
DELÍRIO DO CORAÇÃO
- Está melhor, disse uma voz. Fez-lhe bem, Davíe. Venha agora sentar-se no bar de Fitter.
O bar de Fitter ficava do outro lado da rua. Levaram-no até lá com grande solicitude. Obrigaram-no a beber outra vez. Davie não pôde resistir. O whisky já o penetrara e já o possuira.
Começou a beber por iniciativa própria. Bebia selvagemente, febrilmente, loucamente. E seu orgulho ferido crescia, sufocando-o.
Pensar que Marney lhe batera - nele, Davie Muir, diplomado com distinção e louvor em St. Andrews! Pois ia mostrar a Marney, ia mostrar-lhe já!
Às seis horas deixou o.bar de Fitter, acompanhado por alguns dos outros, e saiu diretamente para o botequim de Marney.
Entrou como um tufão. Oscilante, interpelou obscenamente Pat que estava atrás do bar.
- E é você, berrou em seguida, é você que se atreve a bater num cavalheiro! Você, sórdido espécime do género porcino! Você, suíno imundo, carne que até os judeus desprezam. E por que me bateu? Simplesmente porque lhe dei a honra de falar com a sua fedelha de camisolão!
E soltou uma risada alta, endemoniada. Mas virando-se a meio, afim de observar melhor o efeito de suas palavras, parou de rir imediatamente. Rose estava de pé na porta que dava para a residência dos Marney. Emoldurada pelo umbral, mostrava-se pálida e assustada.
Nos seus olhos liam-se o horror e o nojo. Ouvira todas as palavras ditas por Davie.
Davie ficou a olhá-la estupidamente, ainda oscilante. Ali estava a sua Rose encantadora, o seu poema de inocência. E ele a chamara de fedelha de camisolão!
Ficou branco como gesso. Soltou um grito, misto de desespero e aflição. Deixou cair a cabeça, girou sobre si próprio, e saiu da sala, cego, tropeçando.
Durante três dias seguidos, ninguém ouviu falar em Davie Muir. Mas na tarde do terceiro dia, na maré alta da boca do rio, uns garotos encontraram uma coisa flutuante junto ao degrau do cais, no lado oposto à casa de cómodos.
Era o corpo afogado de Davie Muir.
"Scilicet occidimus, nec spes est ulla salutis..."
A Finlay e Jackson do "Advertiser" coube o melancólico dever de inventariar os pertences de Davie. ? Não continham nada de valor ou de importância. Mas no seu quarto de High Street, encontraram alguns versos escritos em grego.
Finlay pouco conhecia o grego mas sabia o bas- tante para compreender que aquilo eram odes escritas a Rose. Escondeu rapidamente o manuscrito dos olhos curiosos de Jackson.
E quando desciam a escada, Jackson disse a Finlay:
Creio, afinal de contas, que o pobre diabo se
afogou num acesso de deliriam tremens.
Finlay guardou silêncio por um momento, depois abanou tristemente a cabeça:
- Não, não foi isso, Jackson. Se foi deliriam não o foi da cabeça, mas do coração. E se você lhe quer dar o nome, pode chamá-lo de delirinm cordis.
LUCROS E PERDAS
VIGIA NOTURNO E FILÓSOFO
A estrada estava esburacada em Overton Terrace, pois estavam pondo novo encanamento d"agua naquela parte aristocrática da cidade; e Finlay, voltando de um chamado noturno, a que fora a pé, deteve-se indeciso, com medo da lama. De súbito uma voz o chamou:
- Boa noite, doutor.
Finlay parou e olhou para o outro lado, afim de ver onde o vigia noturno se metera na sua guarita de sentinela cercado por um montão de pás, picaretas e pesados malhos.
- Uma noite linda. Finlay emergiu da fria escuridão da noite de outubro para o clarão do braseiro de carvão de pedra. Aquecendo as mãos, observou:
- Você aqui está bem, homem. O vigia riu:
- Ai, o senhor tem razão, doutor. Nunca estive tão bem na minha vida.
- Então gosta do novo emprego?
- Se gosto! Gostar é pouco. Acho que afinal de contas a sorte acertou comigo.
Finlay não pôde deixar de exclamar:
- Sorte! - E com súbita curiosidade, indagou:
- Mas não acha muito isolado - passar a noite assim sozinho -- sem estar acostumado, como é o seu caso?
O vigia noturno abanou a cabeça com ar satisfeito.
- Ha muita coisa a fazer - nunca o senhor haveria de imaginar, doutor. Coisas com que eu nunca tinha me preocupado antes. Na verdade é interessante a gente poder ficar pensando debaixo das estrelas. Sozinho, sem mais ninguém, compreende? enquanto todo mundo está ferrado no sono.
"Antigamente eu não pensava senão no preço da cerveja, ou no vencedor do páreo das três horas. E era feliz? Qual o que! Mas agora penso em coisas diferentes: o que é que faz o orvalho cair, ou por que é que as flores cheiram muito mais à noite.
"E o que lhe digo é que essas coisas tomam conta da gente, doutor. E também é divertido! Queria que o senhor me visse cozinhando o meu jantar às duas da madrugada. Fritando toucinho e fervendo o chá, feito um cigano. Não ha melhor toucinho frito nem chá melhor do que os que eu faço aqui neste foguinho..."
- Você está ficando filósofo, homem, disse Finlay brincando. É esse o mal de que sofre.
- Talvez o senhor tenha razão, respondeu o vigia. Mas podia ter sido pior. Olhe que no começo não foi fácil. Houve tempo em que eu desejei mandar tudo para o inferno, dar para beber, fazer qualquer coisa ruim, contanto que me esquecesse. Se ha seis meses atrás viesse alguém me dizer que eu deixaria de lamentar..
Sua voz deteve-se curiosamente, como se uma lembrança, uma visão o possuísse. Sentado ali, sob as estrelas, o homem olhava na direção d"e Langloan Hill. E Finlay, acompanhando-lhe o olhar, olhou também para Langloan Hill.
DAN
Langloan Hill fica a oeste de Levenford; É um morro feio e nu, com um anel de mata rala no sopé, lembrando uma franja de cabelo num crâneo calvo. Mas a madeira dali não vale nada. O valor da colina não está por fora, está por dentro. A excavação da pedreira de Langloan, penetrando profundamente no lado sul da rocha, pôs a descoberto um dos melhores granitos, pedra magnifica, de cor rica, fácil de trabalhar apesar da sua dureza, e assim tornou famosas tanto a colina quanto a pedreira.
Certo dia da semana, (em geral na terça-feira), quando se sobe pelo caminho estreito que escala o morro vindo da estrada de Ardfillan, encontra-se a passagem impedida por uma bandeira vermelha e um cartaz que diz, em letras também vermelhas: PERIGO - EXPLOSÃO.
Na realidade há pouco perigo naquele local, e se, desobedecendo ao cartaz, a gente se adianta alguns metros, pode-se abrigar sob a cinta de carvalheiras de onde é possível observar nos seus pormenores o trabalho dos explosivos.
Naquela terça-feira especial, dia doze de março, para sermos exatos, começaram-se os preparativos para a explosão da tarde.
A manhã era fresca e ventosa; e as nuvens se amontoavam no céu claro.
Duzentos metros além, escancarava-se a boca vermelha da pedreira.
Na sua base estava em serviço um pequeno grupo de dinamiteiros. Não pareciam homens, mas pigmeus de uma idade pré-histórica.
Dan Tainsh servia como encarregado do grupo; não era entretanto o capataz da turma, pois sendo auase de todo irresponsável, não merecia confiança para tal. Era um sujeito baixo, moreno, de pescoço curto, com génio explosivo feito isca e um punho que era um coice de mula a lhe aguentar o génio.
Claro que, com esse feitio, não era Dan camarada bom para receber ordens; e assim, quando trabalhava, tacitamente se admitia que era Dan o chefe.
O fato é que cie podia ser realmente capataz, ganhando três vezes o ordenado que ganhava -- mas, apesar de seus quarenta e tantos anos, parece que Dan nunca tomara juizo. Bebia demais, chegava atrasado nas manhãs de segunda-feira. Seu espirito inquieto e turbulento estava sempre a metê-lo em complicações: sim senhor, metia-o até na cadeia de Levenford!
- Dan meteu-se em encrencas de novo!
Essa observação já era um lugar-comum entre os companheiros da pedreira, quando Dan se abstinha de comparecer no começo da semana.
- Como? alguém perguntava. E logo vinha a resposta:
- Oh, nada! A história de sempre. Brigou com um rebitador no bar de Fitter. Quase matou o desgraçado e depois se pegou com os polícias. Foram precisos três deles para o arrastarem ao xadrez, bêbedo como estava.
Assim era Dan, pronto para falar e pronto para brigar, - um homem atormentado, rude, amargamente intolerante, que na vida não parecia encontrar nada que o satisfizesse.
Naquela manhã, especialmente, o seu humor estava negro. Meteu a broca selvagemente na pedra e a língua ainda mais selvagcmente no companheiro, um rapaz chamado Green, que era novo no trabalho.
O TIRO
- Você nunca há de ser um bom canteiro, disse ele, escarninho, para o rapaz nervoso. Devia ir para casa, junto da mamãe, e abrir uma lojinha de doces e bombons. Espalhe aqui, com todos os diabos! Quer que eu engula uin balde de poeira?
Green apressadamente levantou a lata e fez como lhe mandavam.
- Agora vá apanhar a caixa de sabão, rosnou Dan. Está lá atrás, no barracão.
O jovem Green, de cara amarrada, foi apanhar a caixa de sabão, que era o nome dado por Dan à dinamite; e, com os outros homens, ficou de lado, enquanto Dan arrumava cientificamente os bastoneles, enfiando-os nos buracos.
Eram ao todo cerca de vinte buracos, pois o tiro devia ser grande. Em seguida Dan ajustou o estopim, e o grupo todo recuou para o barracão-base, a cerca de cem metros além.
- Está tudo pronto, Dan? indagou Collins, o capafaz, que estaca ocupado com umas tabelas, no barracão.
Collins era um homem magro, pouco feito para aquele ofício, de pescoço comprido e barbicha. Quando enfiava a cabeça pela janelinha do barracão, lembrava de maneira cómica um caranguejo-ermitão espiando fora da casca.
Sim, está tudo pronto, resmungou Dan. Que é
que você pensa que nós estávamos fazendo?
- E lá na frente está tudo limpo, .Toe? indagou Collins de um outro homem que estava de pé com a turma.
Joe Frew, cujo dever era pôr as bandeiras vermelhas e os cartazes e avisar o porteiro da passagem de nivel, fez um sinal afirmativo.
Tranquilizado, Collins apanhou o apito e apitou bem alto três vezes. Depois olhou para Dan. No mesmo instante Dan fez o contacto e provocou a explosão.
O MELHOR
Houve um estouro muito grande e oco, uma rápida série de explosões curtas na base da pedra, depois um profundo e prolongado estrondo. Mas no ar não se viu, como o esperaria um leigo, nenhuma chuva de lascas de pedra. Nada de espetacular. A face do rochedo simplesmente deslizou e caiu numa massa coesa, como uma massa de neve deslizando do teto de uma casa, derretida por baixo. Parecia uma coisa tão simples que "chegava a ser tola. Contudo, varias centenas de toneladas de pedra se haviam quebrado e caído.
Uma poeira terrível subiu no ar e ainda continuava suspensa, quando o último eco do estouro morreu.
- bom tiro, heim? exclamou Collins. Como era miope, tornou a espiar pela janela, primeiro para a pedreira, depois para a cara de Dan.
- Pois eu acho que foi um tiro desgraçado, praguejou Dan, de modo desagradável.
- Olhe aqui perto, apontou Frew, está cortado por baixo.
- Por baixo sim, com os infernos! concordou Dan. E voltou-se ferozmente para Green: - A culpa foi sua, seu cretino. Estava de mão amarrada? Foi o buraco que eu mandei você encher. Enfiou fundo demais e estourou a pedra por baixo. Deus que me perdoe, mas a vontade que me dá é de lhe torcer o pescoço.
Green gemeu, sob o olhar feroz de Dan:
- Fiz o melhor quepude! O senhor sabe que ainda estou aprendendo.
- Diabos o levem! É tão fácil de se ver isso quanto as suas ventas nesse focinho.
- Calma, Dan! Calma, homem! interveio Collins. Vamos todos lá, dar uma espiada.
Saiu do seu pequeno escritório. Puseram-se todos a andar em direção à pedra.
- Olhe que não está seguro, observou Frew, quando se aproximavam. A gente devia por uns dois tiros por baixo da pedra e fazer cair tudo de uma vez.
O ACIDENTE
O fato é que no trecho mais próximo, quer por inabilidade de Green, quer por qualquer falha no veio da pedra, o tiro cortara por baixo, isto é, derrubara a camada inferior da pedra, sem desalojar a superior. De maneira que ficara suspensa uma grande pestana de rocha, formando uma verdadeira caverna. Dan, em companhia dos outros, deteve-se a uns dez metros de distância e pô-se já olhar de cara fechada para aquele trabalho albardeiro. Sua longa experiência lhe dizia que a coisa era perigosa; a qualquer momento, podia ser dentro de um segundo, ou dentro de uma hora, aquelas desamparadas toneladas de pedra viriam abaixo.
- Que droga! resmungou ele entre dentes. E virouse para Collins.
Nesse momento o jovem Green, magoado pelo que lhe parecia uma acusação injusta, e ardendo por justificar-se, localizando o sítio exato em que pusera o seu cartucho, encaminhou-se diretamente para a caverna
recém-aberta.
Um grito do grupo de homens chamou a atenção de Dan, que trovejou:
- Venha cá, seu idiota! Não sabe o que está fazendo?
Green virou-se e olhou estupidamente para Dan. Parecia pregado no chão.
- Saia daí, seu cretino do diabo! tornou a berrar Dan; e correu, afim de arrastar o apavorado rapaz. E foi aí que a pedra tombou. Um grande pedaço de rocha destacou-se da massa suspensa e caiu através do ar, como uma enorme pedra de sepultura.
Dan ouviu-a, viu-a cair. com poderoso esforço arrastou Green para fora. Depois pulando de lado, tratou de safar-se.
Mas saltou com um segundo de atraso. A pedra, que pesava dez toneladas, caiu sobre a sua perna direita, esmagando-a horrivelmente.
Dan tombou de rosto no chão, gemendo. Tentou mover-se, mas não o pôde. Sua perna mutilada e inútil, estava presa péla pedra. Fora pegado pelo desabamento como numa armadilha.
O resto do grupo soltou um grito, um grito só, de horror e de medo. Collins, Joe Frew e dois outros acorreram.
- Saiam daí, com todos os diabos! gemeu Dan. Vem caindo mais pedra!
- Calma, homem, calma! dizia Collins quase chorando a sua habitual frase aplacadora e, levantando os ombros de Dan, tentou arrastá-lo para fora.
Dan tornou a gemer:
- Você não pode me tirar daqui.
A desgraçada da pedra está toda em cima de mim.
A OPORTUNA APARIÇÃO DE FINLAY
Joe Frew ajoelhou-se, afim de auxiliar Collins. Mas não adiantava. A perna de Dan estava mortalmente segura pela pedra; não havia espaço para se meter um calço forte bastante que a levantasse, e a qualquer minuto toda a superestrutura de granito poderia desabar sobre eles.
- Pelo amor de Deus, dé-me um gole, disse Dan, lambendo os beiços.
Imediatamente apareceu uma garrafa, enquanto Collins se virava para Green:
- Corra, ordenou. Corra o mais depressa que puder e traga um médico, qualquer um. Qualquer um. Cameron ou Hyslop, o quej encontrar.
Sem esperar que lhe falassem segunda vez, o apavorado rapaz deitou a correr,
E aconteceu que às onze horas daquela manhã, Finlay Hyslop voltava a Arden House porque esquecera o estetoscópio. Se não fora essa insignificante ocorrência, estaria ele longe, nas suas visitas, à chegada de Green. O fato é que deu um encontrão no rapaz de cara pálida, arquejante, que subia os degraus de entrada.
Daí a um minuto já estava no cabriole, já dera a cfireção a Jamic e puseram-se a correr pela estrada de Langloan.
Ao chegarem à pedreira, acolheu-os aquele silêncio estranho e anormal que, seja na rua, no estaleiro ou em uma casa, se associa a qualquer desastre sério.
Apanhando a maleta de instrumentos, Finlay saltou do cabriole e correu para o local onde jazia Dan. Enfiando-se por baixo da lapa, fez um rápido exame; a perna direita, do joelho para baixo, estava reduzida a uma sangrenta massa.
Só uma coisa podia ser feita: amputação.
Finlay olhou para Dan em cujo rosto lívido porejavam grandes bagas de suor, e Dan por sua vez o olhou. Quer fosse a dor, ou o whisky, pois a garrafa fora devidamente usada até à chegada de Finlay, Dan estava um pouco fora de si. E disse:
.- Vamos com isso! O senhor sabe o que tem a fazer! Arranque fora essa porcaria, mas ande ligeiro, senão leva com um pedaço de pedra na cabeça, no meio do serviço.
bom TRABALHO
Finlay não respondeu. Tirou fora o paletó, arregaçou as mangas, abriu a bolsa. Rasgou com a tesoura a calça de Dan, cortou-a fora. Derramou meia garrafa de tintura de iodo na coxa do ferido, acima do joelho esmagado, saturou a máscara de clorofórmio e aplicou-a no rosto de Dan.
- Hei de livrá-lo daqui, murmurou o rapaz. Respire com força e se esqueça de tudo.
Depois que Dan ficou sob a influência do anestésico, Finlay lhe escorou o vidro de clorofórmio contra o corpo, apertou o torniquete, calçou um par de luvas de borracha, apanhou o bisturi, e começou. Não havia tempo para indecisões, tinha que ser tudo ou nada. Deitado de bruços sob o teto baixo de rocha, Finlay trabalhava como um demónio cortando, pinçando artérias e serrando ossos. Mas num dos momentos em que depunha a serra, viu um pequeno fragmento de pedra destacar-se do teto e cair sobre o frasco de clorofórmio.
O vidro despecfaçou-se e o anestésico, até à última gota, escorreu pelo chão.
Finlay soltou uma exclamação desesperada. Mas seria impossível parar agora. com frenética rapidez continuou as ligaduras. Collins, com o olho no teto, constantemente o apressava. Finlay introduziu dois drenos, ultimou as derradeiras suturas internas e pôsse a fazer grandes pontos nos lábios da ferida.
Quando enfiava a agulha pela última vez, percebeu o olhar dilatado de Dan fixo sobre si.
- Fez bom trabalho, doutor, murmurou Dan por entre os dentes trincados. Embora eu só tenha visto o final.
O homem estava sem anestesia há uns bons cinco minutos. Quando o puxaram para fora da armadilha de pedra, ele ainda tinha os olhos fixos em Finlay. Tentou novamente falar, mas desmaiou.
A LEI DE COMPENSAÇÃO
- Como eu dizia, continuou o vigia noturno, meditativamente, se há seis meses atrás alguém me dissesse que eu não haveria de lamentar a perda da minha perna, creio que lhe quebraria os queixos, ruim e estúpido como era. Mas desse tempo para cá, não sei como, comecei a ver as coisas de outra maneira. Não posso dizer ao senhor como e por que, mas sei que me sento aqui e descanso sem nenhum desejo de tomar parte no alvoroço dos outros. Aprendi a ficar calado. Isso é que é.
Posso ficar calado e em paz comigo. Coisa que nunca fiz antes. É esquisito, mas parece que, com uma perna só, eu consigo tirar mais satisfação da vida do que tirava com as duas.
Sobreveio um silêncio; e então Finlay disse:
- Acho que, no fim de contas, Dan, a coisa é esta: tudo o que acontece é para melhor. Embora seja difícil a gente se compenetrar disso imediatamente. Lucros e perdas, talvez. O que a gente perde por um lado, ganha por outro.
Seguiu-se novo silêncio. Afinal Dan ergueu-se amparado à muleta e atirou um pouco mais de carvão ao braseiro. À distância, o apilo do ultimo trem para Overton soou fracamente, tornando ainda mais profunda a calma que se seguiu.
- Uma noite formidável! exclamou Dan finalmente, aspirando o ar puro e cortante. Acho que prefiro estar aqui do que no bar do Fitter.
Ficaram de pé um momento enquanto a beleza plácida da noite os possuía. Em seguida Finlay volveu-se na direção da cidade.
- vou embora, Dan. Espere por mim amanhã, quando eu voltar.
E em sonoras passadas desceu pela estrada, deixando Dan Tainsh em silenciosa comunhão com as estrelas.
FALTA DE IMAGINAÇÃO
UM HOMEM CALMO
Willie Craig tocou a campainha de Arden House com a sua calma habitual.
- Boa noite, Janet, disse ele na sua voz plácida e controlada. Será que o doutor está em casa?
- Qual deles o senhor procura, Mr. Craig?
- Qualquer um, não importa, Janet! Um ou outro me serve muito bem.
- Hoje é o Dr. Hyslop que está no consultório. Mas, se quiser, dou o recado ao Dr. Cameron, dizendo que o senhor veio aqui especialmente para o ver.
O homem abanou a cabeça, devagar, porque todos os movimentos de Willie eram calmos.
- Não, para mim tanto faz um ou outro, Janet. Ela o fitou aprobativamente. Janet admirava
muitissimo um homem que nunca se exaltasse; e levou o visitante para a sala de jantar, - sinal de especial deferência - para que ficasse à espera.
Willie sentou-se e, pondo as mãos no bolso, olhou com moderado interesse para o violino que estava pendurado acima da lareira. Era um homem pequeno e delgado, de cerca de trinta e sete anos, cara raspada e pálida, vestido num asseado terno cinza com colarinho de celuloide e gravata preta de nó já feito.
De profissão, Willie era padeiro e confeiteiro, nem mais nem menos. Tinha estabelecimento próprio em High Street, em cujo balcão sua esposa servia com compostura a freguesia enquanto ele animosamente trabalhava na batedeira e no forno, no porão.
As tortas de carneiro de Willie Craig eram famosas; seus bolos de groselha não tinham rival em Levenford. Mas embora gozasse ele de boa reputação e da fama de ótimo profissional, honesto na qualidade e no peso, o renome de Willie na cidade assentava em coisa ainda mais importante do que isso: Willie Craig era famoso pela sua impassibilidade.
- Sim senhor, aquilo é que é um camarada de sangue-frio! era o veredito aprovativo da cidade.
Quando por exemplo ele jogava nas finais do campeonato de "bowling" no campo de Levenford e vencia uma luta renhida pela margem de uma simples jogada, o pessoal lhe dava vivas, não tanto por causa da vitória, mas por causa da maneira pela qual essa vitória fora ganha.
Pálido, impassível, sem um cabelo fora do lugar, enquanto Gordon, seu adversário, estava quase apoplético.
O PONTO SINISTRO
Mais tarde, no "Clube Filosófico", Gordon, já um pouco bebido, comentava o caso, loquaz e indignadamente.
- Ele não é humano. Não sente as coisas igual às outras pessoas. É como um peixe dentro de um bloco de gelo. Não, tem imaginação! Esse é o mal de Willie Craig: não tem imaginação.
E assim, Willie ficou conhecido como o homem que não tinha imaginação; e com efeito parecia bastante estólido, sentado ali em Arden House, esperando para falar com Finlay Hyslop.
- Quer entrar por aqui, Mr. Craig? falou Janet aparecendo a meio da meditação tranquila de Willie.
Ele levantou-se e a acompanhou ao consultório.
- Sente-se, disse Finlay, lacónico. De que se queixa?
Estava exausto, apressado, o que lhe tornava os modos ainda mais abruptos do que de costume.
Mas Willie Craig não deu mostras de se importar com aquilo.
- É na língua, doutor. Sinto um caroço que me incomoda muito.
- Dói?
- Bem... mais ou menos...
- Deixe-me olhar.
Finlay debruçou-se através da mesa de trabalho, e deu uma olhadela na língua de Willie. Logo a examinou bem, e por fim falou em tom muito diferente:
- Há quanto tempo você sente isso?
- Oh, aí por umas seis semanas, que me lembre. Foi vindo aos poucos. Mas agora está ficando pior.
- Você fuma?
- Fumo muito.
- Cachimbo?
- Sim senhor. Cachimbo.
Seguiu-se uma pausa curta. Finlay afinal ergueu-se e foi ao armário dos instrumentos.
Apanhou uma lente poderosa e com o mais escrupuloso cuidado examinou a língua de Willie.
Via-se de um lado uma mancha feia, dura ao toque. E um ponto assim, duro e inflamado, trazia ao olhar experimentado de Finlay o mais sinistro prognóstico.
OS RECEIOS DO MÉDICO
Finlay depôs a lente e afundou-se na cadeira junto à mesa de trabalho. Sabia que havia dois modos de enfrentar a situação. A primeira um otimismo fingido; a segunda dizer a verdade.
Ficou a olhar meditativo para Willie, cuja reputação de sangue-frio conhecia muito bem.
Willie o encarou também, calmamente. "Sujeito impassível, pensou Finlay. Não tem muita imaginação a perturbá-lo. vou lhe dizer a verdade".
- Willie, falou subitamente o médico, essa coisinha na sua língua pode ser algo muito sério. E pode não ser.
Willie continuou imperturbável:
- Acho que foi para isso mesmo que eu vim cá, doutor - para saber o que era.
- E é também o que quero saber, retrucou com seriedade Finlay. Tenho que tirar um pedacinho da sua língua e mandá-lo para exame no Departamento de Patologia da Universidade. Exame microscópico, compreende, Willie? Coisa que a gente não pode fazer aqui. Não vai doer, nem vai demorar. Dentro de uns dois dias teremos o resultado e então poderei saber se é ou não aquilo que eu receio.
- E que é que o senhor receia, doutor? Baixou um silêncio desagradável sobre o consultório. Finlay sentia que deveria disfarçar. Mas fitando diretamente os olhos cinzentos e frios de Willie, mudou de ideia e respondeu em voz baixa:
- Receio que você tenha um câncer na língua.
O silêncio mal conjurado por essas palavras tornou a cair intoleravelmente.
- Compreendo, disse Willie. Isso é que é mau. E se for câncer?
Finlay fez um movimento com as mãos:
- Opera-se.
- Quer dizer que têm de tirar minha língua fora? Finlay acenou que sim:
- Mais ou menos. Mas não vamos pensar nisso antes que chegue o tempo.
Durante alguns momentos, Willie ficou a estudar o bico das botinas bem engraxadas; por fim levantou a cabeça.
- O senhor tem razão, doutor. É melhor se fazer o que deve ser feito.
CABEÇA NO AR
Finlay ergueu-se, esterilizou um instrumento, passou éter clorídrico pela língua de Willie, e habilmente arrancou fora um pequeno pedaço da mancha carmezim.
- Foi rápido, observou Willie.
Lavou a boca, apanhou o chapéu e preparou-se para ir embora.
- Vamos ver... calculou Finlay. Hoje é segundafeira. Apareça aqui quinta-feira a estas horas e eu lhe darei o resultado.
- Espero que seja bom, disse estoicamente Willie.
- E eu também, respondeu-lhe Finlay com gravidade.
- Então, boa noite, doutor.
- Boa noite.
Finlay olhou-o saindo do jardim e tomando pela estrada, fechando cuidadosamente as cancelas atrás de si. E baixinho, o médico resmungou:
- Deus do céu! Este Willie Craig é mesmo um sujeito de sangue-frio!
O sujeito de sangue-frio, o homem sem imaginação, caminhava pela rua com a cabeça no ar, o queixo erguido, os lábios apertados.
Exteriormente calmo, inteiramente calmo! Mas dentro da sua cabeça mil martelos batiam ferozmente. E nos seus ouvidos mil vozes gritavam e trovejavam. Uma palavra era repetida infindavelmente: Câncer, câncer. Sentia-se tremer e o coração se agitava tumultuoso na arca do peito. Ao dar a volta por Church Street uma tonteira o assaltou, e por um momento ele cuidou que iria desmaiar.
- Como vai, Willie? Otimo tempo para o jogo! gritou-lhe Bailie Paxton, de dentro de seu escritório, através da rua.
Willie não enxergava o homem apenas, mas uma fileira de homens, todos acenando, embaçados e grotescos, gritando-lhe; "Câncer, câncer, câncer!"
- Linda tarde, realmente, Bailie.
- Pretendo vê-lo no sábado - jogando.
- Lá estarei. Não perderia esse jogo por dinheiro nenhum.
Como, em nome de Deus, conseguira ele falar?
Ao afastar-se, um suor frio o banhou. Os músculos do rosto começaram a tremer dolorosamente. Todo o seu ser parecia dissolvido e fluido, fugindo-lhe ao controle, desafiando afinal a sua contínua vigilância.
SIMPLES PALAVRAS
Durante toda a sua vida lutara ele como um demónio contra os nervos, seus traiçoeiros nervos que tantas vezes o haviam ameaçado de infidelidade. E sempre aquela luta fora penosa até mesmo nas pequenas coisas. Aquela vez, por exemplo, em que ganhara o campeonato de "bowling", sentira=-se tão afetado intimamente pelo nervosismo e pela apreensão que mal pudera fazer a jogada final; e contudo conseguiu encobrir com a máscara da indiferença o seu terror nervoso.
Mas agora, ameaçado por aquela coisa pavorosa, como poderia encará-la? A voz berrava e lhe trombeteava novamente aos ouvidos: "câncer, câncer, câncer".
Entrou silencioso em casa - sua casa que ficava por cima da confeitaria; sentou-se numa cadeira, calçou as chinelas velhas.
- Você hoje voltou cedo do jogo, Willie, observou com bom humor Bessie, sua esposa, sem levantar os olhos das páginas do jornal local.
Fosse como fosse, diante de Bessie, ele tinha que não mostrar nada.
- Não fui ao jogo hoje à noite. Dei um passeio pela estrada.
- Hum, hum! São uns amores estes chapéus que Jenny MKechnie está anunciando. Modelos novos de primavera. com plumas e custando apenas cinco shillings e onze pencc. Estou "pensando em comprar um para mim.
Olhando o fogo, Willie fez um esforço inacreditável para dominar-se.
- Já não é sem tempo de comprar qualquer coisa para você.
Bessie endereçou um sorriso grato ao marido, satisfeita com aquela homenagem às suas qualidades de esposa económica.
- Talvez eu compre, então. E talvez não compre. Nunca fui mulher de desperdiçar dinheiro com enfeites. Não, não. Acho que a gente deve pensar no futuro. Não quero ficar metida nesta padaria a vida inteira, Willie. Uma casinha meio afastada, no caminho de Barloan, - que lhe parece - daqui a um ou dois anos?
Um ou dois anos! Aquelas quatro palavras o trespassaram, como uma espada que lhe enfiassem ferozmente no peito. Um ou dois anos! Que seria dele então!
Willie fechou os olhos, lutando contra as rápidas e lamentáveis lágrimas que subiam até eles.
Amarrotando o jornal, Bessie riu:
- Grande diferença lhe faz, seu sangue de barata. Não ha nada neste mundo que o exalte.
INSÓNIA
Willie foi deitar-se cedo.
De modo geral recolhia-se cedo, nunca depois das dez horas, pois tinha que estar na padaria às quatro da manhã, afim de cuidar da primeira fornada. Mas naquela noite deitou-se às nove horas. Contudo, não pôde dormir. Ainda estava desperto quando Bessie veio deitar-se, embora, afim de não dizer nada, ele se fingisse adormecido.
Deitado, com os olhos bem fechados, escutava numa agonia muda todos os familiares movimentos da mulher. Ouviu-a dar corda ao relógio, abafar um bocejo, guardar os grampos num pratinbo, na prateleira da lareira. Depois cuidadosamente, para não o incomodar, Bessie enfiou-se na cama.
Um quarto de hora mais tarde o brando ressonar da esposa lhe indicava que ela adormecera. Willie continuou deitado, quase sem respirar, crispando as mãos afim de controlar-se.
A escuridão do quarto pesava sobre ele como uma mortalha. Queria gritar, aliviar os nervos torturados com um brado selvagem e desesperado. Quis voltar-se para ela, para Bessie, sua esposa. Implorar-lhe a solidariedade, gritar apaixonadamente:
?- Eu não sou o que você pensa. Não sou duro. Nunca o fui. Sinto tudo de uma maneira terrível. E agora, estou apavorado, desesperadamente apavorado, como uma criança trémula. Aliás sempre houve em mim muito de criança. Sempre fui emotivo e nervoso. E é por isso que simulava não o ser. Mas agora não quero mais fingir. Não me ouve? Não compreende? Eles pensam - pensam que eu estou com um câncer. E ante aquela medonha palavra, embora não houvesse sido articulada, as vozes voltaram ao seu clamor, xombeteiras, entoando em coro:
"Câncer, câncer, câncer!"
Um paroxismo de mortal agonia o sacudiu. E enquanto a mulher dormia tranquilamente, Willie enfiou as mãos na boca afim de sufocar os soluços que o dilaceravam. Os olhos, torturados pelas lágrimas não derramadas, ardiam como fogo. Os ouvidos ressoavam com os ecos do seu desespero. E as negras horas da noite rolavam sobre ele.
Nem por um momento Willie dormiu. E nem "por um seguncfo esqueceu.
O TERROR DESCONHECIDO
Levantou-se às quatro horas, vestiu a roupa de trabalho, e foi para a padaria. Esperava que a rotina diária o aliviasse e lhe distraísse o espirito, mas tal não aconteceu.
À medida que o tempo passava sem lhe trazer alívio à inquietação, Willie ia ficando cada vez mais desesperado.
Gelado intimamente, deu conta da sua tarefa diária com aparente normalidade. Falava, respondia perguntas, ia aqui e ali. Mas era como se ficasse de lado, tremendo, sofrendo, contemplando a figura do autómato: um autómato que era ele próprio.
Já sabia que tinha mesmo um câncer. Toda vez que tinha um momento de folga ia lá em cima e, estirando a língua defronte do espelho, contemplava-a com horror.
Comédia ou tragédia? Um homem adulto mirando-se ao espelho com a língua estirada. A ideia era tão grotesca que, em outra ocasião, o teria feito rir loucamente. Mas agora Willic não tinha tempo para rir, e continuava a espiar a língua.
O inchaço estaria pior? Ou tal como antes? Talvez um pouco mais dolorido, depois de cortado pelo médico.
Doía-lhe agora quando estirava a língua. Ou era impressão ?
Coisa estranha que aquele pontinho vermelho pudesse significar morte. Terrivelmente estranha. Câncer, imagine. Câncer é uma coisa que come a gente. "Câncer, câncer, câncer", lá recomeçavam as vozes.
Depois de um último olhar furtivo ao espelho, ele desceu a escada na ponta dos pés. Na segunda noite também não pôde dormir. Ao café, a mulher olhou-o com solicitude:
- Você não tem comido estes últimos dias. Willie protestou com uma calma gelada:
- Tolice.
E, afim de provar o que dizia, repetiu o toucinho
com ovos.
Mas, embora comesse, não sentia o gosto da comida.
Todos os seus sentidos estavam agora mudos, exceto no que se referia à sua situação. Estava talvez um pouco alucinado. A imaginação, trabalhando febrilmente, levava-o longe de mais.
O fato de que sofria de um câncer para si já estava aceite, provado. E que faria então? Operava-se, dissera o médico.
Fechando os olhos e encarando o futuro, ele via exatamente o que aquilo significava. Via-se no hospital, numa caminha estreita; num rápido pensamento sofreu o tormento de vários dias. Depois, franzindo de leve o cenho, viu-se levado para a sala de operações. E o terror desconhecido daquele local lhe aumentava o horror. Que droga será que dão à gente para operar? Clorofórmio - sim, era isso. Uma droga enjoada, doce, que põe a gente como morto.
E que acontecerá durante essa morte aparente?
Lanceias aguçadas lhe cortarão a boca - sua própria boca. Cortar-lhe-iam a língua, profundamente, pela raiz.
Um soluço lhe subiu do peito, sufocando-o; e Willie levantou a mão, afim de tapar os olhos, como se quisesse expulsar a horrenda e grotesca visão de sua língua, arrancada da boca e jazendo sangrenta e medonha onde a haviam jogado.
QUASE O LIMITE
E depois da operação? Acordaria, é claro, naquela mesma cama estreita, objeto de piedade e intolerável solicitude. Um homem sem língua. Um homem que não podia falar e apenas mastigar, engrolar palavras. A enfermeira debruçada sobre ele:
- O que foi que o senhor disse?
E ele lutando, debatendo-se, para explicar, para falar.
Oh, era terrível, terrível, não podia ser suportável. Perdeu-se inteiramente naquela agonia de pensar. O tempo balançava o seu pêndulo inexorável, vencendo-lhe a consciência.
Passou a noite da quarta-feira - devia ter durado uns cem anos! - e quinta-feira chegou. Willie atingira quase o limite do sofrimento. Sofrimento tão grande como jamais ninguém sonhara; e tudo trancado, escondido dentro da sua alma.
Quinta-feira, depois do almoço, ele saiu da padaria e caminhou em direção do rio.
A maré estava alta e a água, passando por cima do cais, vinha até perto dele. Willie ficou a olhá-la estupidamente. Se desse um passo estaria liquidada toda aquela desgraça, a operação, a invalidez que viria depois.
O rio gorgolejando, chiando por cima das pedras, parecia chamá-lo. De repente ouviu uma voz atrás de si.
- Tomando um pouco de ar fresco, Willie? Era Peter Leimie que lhe sorria. Como num sonho, Willie escutou a sua voz responder:
- Lá na padaria, de tarde, faz muito calor. Ficaram parados em silêncio. Depois Peter Len-
me disse:
- vou descer um pouco pela estrada com você, se é que pretende seguir por esse caminho.
Conversaram enquanto marchavam ao longo do cais, contaram as novidades, os pequenos fatos que se comentam numa cidade pequena.
UM PEQUENO PASSEIO
Não havia fuga possível para Willie: tinha que ir.
A tarde passava. Ele tomou uma xícara de chá, subiu ao quarto, e vestiu o terno dos domingos.
Já estava resolvido: recusaria operar-se. Preferia deixar-se morrer.
Convencera-se, com súbita premonição, de que a operação não o salvaria. O câncer reaparece sempre, façam o que façam os médicos. Sim, o câncer sempre volta.
Willie teve um certo receio de que a mulher se oferecesse para sair em sua companhia; mas, com um sorriso, ela o informou de que iria dar uma corrida à chapelcira e comprar o chapéu novo. Precisava ir ligeiro, antes que Jannie fechasse a loja.
A tarde estava bonita, ele desceu a pé Church Street, cumprimentando este e aquele conhecido.
Sentia-se num ambiente irreal, como um homem que, em passos de fantasma, acompanhasse o próprio enterro.
Sua imaginação torturada, trabalhando febrilmente, fazia-o sentir que nenhuma daquelas pessoas era real, - já que nenhuma delas sabia que ele estava quase morto.
- O doutor está em casa, Janet?
Lá estava ele dizendo de novo aquela frase tola, sem sentido. Sim! Lá estava de novo sentado na sala de jantar, olhando para aquele violino ridículo e insensível que pendia da parede.
E lá estava ele novamente no consultório, de pé diante da mesa do médico, como se estivesse diante do trono de julgamento de Deus.
CONGRATULAÇÕES
Finlay fitou demoradamente Willie. A expressão do seu rosto era profunda e seria. Por fim levantando-se, estendeu solenemente a mão.
- Quero dar-lhe os parabéns, Willie Craig. Tenho aqui o resultado completo do exame. Felizmente não ha nem sinal de tumor maligno. Não é câncer, de modo nenhum, é uma simples irritação na lingua. com tratamento, desaparecerá dentro de umas duas semanas.
Willie sentiu-se cambalear. Uma grande onda de alegria o envolveu, irrompendo do próprio imo do seu ser. Poderia desmaiar no êxtase daquela alegria, daquele alívio delicioso; mas seu rosto pálido, calmo, nada mostrava.
- Fico-lhe muito grato, doutor, disse ele timidamente. Estou... satisfeitíssimo por não ser nada de ruim.
- E espero que você não tenha se amofinado muito nestes dois últimos dias, tornou Finlay. É claro que eu jamais lhe teria dito nada a respeito dos meus receios, se não tivesse certeza absoluta de que você não é um homem nervoso.
- Está tudo certo, doutor, disse Willie com os olhos no chão.
E o seu discreto, controlado sorriso, lhe brincava no rosto, enquanto ele acrescentava:
-? Dizem eles que é esse o meu defeito: não tenho imaginação.
A GAROTA CUJO PULMÃO ASSOBIAVA
A PIADA SECRETA DE CAMERON
O doutor Hyslop subia depressa: um pouco depressa demais. Já era conhecido na cidade não como "o novo assistente de Cameron", mas pelo seu próprio nome.
v - Lá vai o moço Hyslop, dizia o pessoal vendo passar o cabriole de rodas amarelas. E isso, indiscutivelmente, representava um grande passo à frente, em Levenford.
E estava fazendo amigos - Jackson do "Levenford Advertiser"; Peter Weir, filho do solicitador; "Doggy" Líndsay, o herdeiro do prefeito.
Já se falava em fazê-lo sócio do "Clube Filosófico", e o caso de Alex Deans, seu extraordinário triunfo sobre Snoddy, isso sobretudo proporcionara a Fiulay
- como dizia a gente da terra - uma ótima impressão de si próprio.
Talvez a maré estivesse subindo para seu lado com muita força e sem encontrar obstáculos.
Havia momentos em que Cameron, ao enfrentar a bem humorada arrogância do seu assistente, atirava-lhe um olhar seco, esfregava o queixo, meditativo, com o seu jeito de encobrir um sorriso, e não dizia nada.
Certo dia, na véspera de Pentecostes, um lindo dia de frio cortante e límpido, Finlay trabalhava num teste de Felding, na sala pequena ao fundo do consultório.
Essa sala que antes era chamada apenas a "saleta dos fundos", fora crismada pelo zelo científico de Finlay por "laboratório". Naquela tarde, quando Cameron lhe observara que tinha uma visita a fazer em jíewtown, Finlay dissera despreocupadamente:
- Muito bem, e eu vou fazer uns testes no laboratório.
Agora, com o cachimbo entre os dentes, espiava o liquido azul ferver na proveta sobre o bico de Bunsen, e lentamente mudar a cor de azul para vermelho-tijolo:
- Açúcar, com a breca! - exatamente como desconfiara.
Foi interrompido por Janet, que abria a porta e se pôs de pé à sua frente.
UM CHAMADO URGENTE
- Aquele moço Duncan está procurando o Dr. Cameron, anunciou ela bruscamente. Duncan é o desenhista. Casou-se há uns três anos atrás e mora num "cottage", no caminho de Knoxhill.
Finlay ergueu os olhos, aborrecido. Janet, diabos a levassem, ainda o tratava com modos muito altaneiros.
E o moço exagerou o interesse pelos tubos de exame:
- O Dr. Cameron foi a Newtown.
- Foi o que eu disse ao rapaz, retrucou meticulosamente Janet. E ele disse que o senhor também servia.
Pausa, enquanto Janet lutava contra aquela sua horrível tendência para sorrir.
- O pobre rapaz está numa aflição medonha; ele parece maluco. O senhor deve ir sem demora.
Esses Duncan são gente direita, uma família muito respeitada em Levenford. E Leeby Duncan, tia dele, foi minha colega na escola dominical. Finlay carregou o cenho.
- Pouco me incomoda que até o tio também tenha sido seu colega. Você não está vendo que estou a meio de uma experiência científica? Que é que ele quer?
- Disse que a filha está morrendo.
Na verdade, Willie Duncan estava num estado de extraordinária agitação: de pé, no hall, sem chapéu, sem capa, com um "cache-nez" atirado à toa no pescoço, e praticamente tremendo de inquietação:
- Sim! o garoto, disse ele a Finlay. Mal? oh muito mal!
O garotinho parecia que não conseguia respirar, com um chiado tão medonho no pulmão - e aquilo aparecera de repente. A mulher estava desesperada porque Mrs. Niven - logo quem! - dissera que o caso era de congestão.
Finlay novamente carregou o cenho. Não gostava nada de Mrs. Niven.
Meio parteira, meio enfermeira, meio amortalhadora, gorda, tagarela, intrometida e de todo incompetente, era a comadre de todo o distrito, entrincheirada atrás de uma formidável reputação de sagacidade: cis o que era Bella Niven a quem todos os médicos da cidade odiavam de morte.
- Daqui a pouco estou lá, disse Finlay. Vá na frente, e avise que eu já chego.
Cameron ocupara o cabriole, de forma que Finlay teve que fazer de bicicleta a maior parte da meia légua até Knoxhill.
Não é que ele se importasse com o exercício; para ser sincero, até lhe era agradável, mas achava meio deprimente pedalar por High Street abaixo, com a bolsa balançando no guidon, principalmente porque "Doggy" Lindsay e Jackson, emboscados numa das sacadas do "Elephant Castle", viram-no passar e, interpretando mal a finalidade da maleta negra, deram-lhe adeus com zombaria.
Lomond View era o nome oe um "cottage" bem tratado, que tinha à frente um pé de azevinho com cachos de fruta encarnada. Embora Finlay houvesse vindo depressa, o jovem Duncan chegara mais depressa ainda. Já estava na porta, arquejante da carreira, e dizendo com desespero:
- Falei agora mesmo com Mrs. Niven, doutor. A criança não está nada melhor.
O ENGANO DE FINLAY
Finlay subiu ao quarto e, mal entrara na alcova escura, ouviu a respiração da criança: aguda como um assobio, o que o impressionou extremamente.
Valha-me Deus! pensou ele. As coisas estão mesmo ruins.
Mas para a mãe, que em absoluto desespero estava de pé junto ao fogo recém-aceso, ele disse com bondade:
- Quer fazer o favor de puxar as cortinas para clarear um pouco o quarto?
Bella Niven, erguendo o busto formidável à cabeceira do berço, fungou com desprezo,
- Fui eu que mandei fechar as cortinas. Não vê que a luz inquieta a criança?
- Eu não sou gato, retrucou asperamente Finlay, para enxergar no escuro.
Mrs. Niven nada disse, mas tornou a fungar e aquele fungado era pior do que palavras. Procurando nervosamente satisfazer a ambos, a jovem Mrs. Duncan dirigiu-se à janela. E com a mão agitada, puxou a meio a cortina.
Finlay dirigiu-se ao berço. Na verdade, a criança estava inquieta. Tinha as faces vermelhas, remexia-se, virava-se, gemia pateticamente, agarrava as cobertas, agarrava o rosto, agarrava tudo. E através disso, continuava a respiração, aguda, ruidosa, assustadora.
Finlay tomou-lhe a temperatura: 37,7; depois examinou o peito com o estetoscópio, operação difícil, porque a criança não sossegava. Retorcia-se naquela semi-escuridão como um salmão num tanque.
Contudo, não havia dúvida quanto à respiração: assobiava medonhamente, numa nota seca, que não era exatamente pneumónica, nem pleurítica, mas qualquer coisa fora da sua experiência, - desesperada, desconhecida.
Finlay estava aflito, realmente aflito. Sentia-se em confronto com uma doença das mais obscuras. Seria pneumotórax? perguntava a si mesmo: - enfermidade rara, sobre a qual lera, mas que nunca vira.
Sim, podia ser, podia realmente ser pneumotórax, ou talvez edema agudo do pulmão, - mas para isso o ruído era por demais seco, por demais agudo. Crianças assim eram uma dificuldade, um inferno, - se ao menos pudessem falar, descrever os sintomas!
Abruptamente Finlay endireitou-se. Estava no ar, inteiramente no ar.
A OPINIÃO DO COLEGA
E quando, lentamente, Finlay começou a tirar o estetoscópio, Mrs. Niven, com o olhar apertado, interpôs, escarninha:
- Nem carece de tanta escuta e tanta apalpação. A criança está com congestão do pulmão.
Mau grado seu, Finlay começava a sentir-se intimidado. Mas olhou rancoroso para a odiosa Mrs. Niven:
- Não é congestão, respondeu apenas pelo prazer de contradizê-la.
- Quer dizer que é pior! retrucou a mulher, instantaneamente.
- Valha-me Deus! gemeu Mrs. Duncan.
Finlay voltou-se para a jovem mãe assustada, mas a Niven já o atacava novamente, antes que ele pudesse dizer uma palavra de consolo.
- Se o senhor acha que não é congestão, que acha que seja?
Finlay espremeu o cérebro e por fim disse:
- Tenho a minha própria opinião - é do pulmão!
- Do pulmão, resmungou Mrs. Niven levantando os olhos. Diz ele que é do pulmão! Como se eu não houvesse percebido que era no pulmão no momento em que pisei nesse quarto! E que é que o senhor vai fazer, agora que chegou à conclusão de que é do pulmão? vou ter que ficar aqui, vendo a coitadinha se acabando e morrer, ou posso aplicar-lhe uma cataplasma de linhaça na frente e nas costas, como teria feito há mais de uma hora se ninguém me impedisse?
- Não lhe ponha cataplasma nenhuma, senão depois que eu mandar! disse ferozmente Finlay.
- Então o que...
- Não faça coisissima nenhuma!
E Finlay segurou o braço de Mrs. Duncan:
- Preciso perguntar a opinião de outro colega. O caso é difícil. Fique calma. Não se aflija. Dentro de meia hora estarei aqui, com o doutor Cameron.
- É a coisa mais certa que ele já disse nesta meia hora, confiou ao teto Mrs. Niven.
O suor porejava na testa de Finlay quando ele atravessou a porta.
Deus meu, pensou ele fervorosamente, afinal vejo-me fora daquele quarto. Mas o chiado da respiração da criança o acompanhou de escada abaixo.
O SARCASMO DE CAMERON
Dobrado sobre o guidon da bicicleta, Finlay corria numa nuvem de poeira, sem se preocupar com a figura que faria ante "Doggy", ou ante a cidade inteira. Fez o percurso de volta até Ardlen House na metade do tempo que empregara para vir.
Cameron tomava chá; mastigava filhoses, sentado diante de um enorme fogo na sala de jantar, com o ar de quem não tivesse, neste mundo, nenhum cuidado a perturbá-lo.
- Entre, homem, entre, bradou hospitaleiramente. Chegou mesmo na hora de apanhar os filhoses ainda quentes.
Finlay forçou um sorriso, mas não o conseguiu direito.
- Não, obrigado, não estou com vontade de tomar chá. Tive um caso... um caso ruim. A filhinha de Mrs. Duncan, em Knoxhill.
- Sim, sim! - Cameron atirou-lhe o seu olhar rápido, zombeteiro, mas logo desviou a vista. -? Uma linda menina. Fui eu que a pus no mundo há dezoito meses atrás. Escute, este pedaço de queijo de Dunlop que Janet nos serviu está uma maravilha. Durante o inverno eu sou doido por filhoses quentes e queijo para o chá. Experimente, homem, os dois combinam muito bem.
Finlay mexeu-se, inquieto.
- Já lhe disse que estou atrapalhado com esse caso.
- Ora, ora! Você é um sujeito sem parelhas. Não é capaz de se deixar vencer por um caso? com efeito! Desde que sou gente nunca vi um sujeito como você para se encarniçar sobre um caso. Lembre-se do que fez com o nariz do coitado do Snoddy. Valha-me Deus! Não acredito que esteja falando a sério a respeito da garota dos Duncan. Sente-se e coma um pedaço de queijo.
Finlay corou fortemente sob a delicada sátira.
- Quero lá saber de queijo! explodiu. Não vê que preciso que o senhor vá comigo, agora, à casa dos Duncan?
Os lábios de Cameron contraíram-se. Devagarinho cortou mais uma delgada fatia de queijo e levou-a à boca na lâmina da faca.
- Bem, bem! Que é que tem a menina?
- Um assobio no pulmão. Cameron levantou as sobrancelhas.
- Nunca ouvi falar nisso.
- Pois ouve agora, disse Finlay, quase zangado. Deixou-me abarbado. Talvez seja pneumotórax, escuta-se o ar assoviando na cavidade pleural.
- Pneumotórax, repetiu Cameron como se o som lhe agradasse. É uma bonita palavra. - Sacudiu as migalhas da roupa e levantou-se. - Arre! o melhor é a gente ir ver!
UM GRAMPO DE CABELO
O cabriole os levou até Lomond View. Para os nervos irritados de Finlay era como se houvessem passado dias, indo e vindo do "cottage". Sua dignidade desaparecera. Acompanhou Cameron na escada como um cachorrinho no calcanhar do dono.
- Ora muito bem! observou jovialmente Cameron na porta do quarto da doentinha. Que barulhada é esta?
Bastava a sua presença para aplacar o ambiente.
- Pus uma cataplasma na criança, doutor, murmurou Niven para Cameron, atirando um olhar agudo a Finlay.
Cameron ignorou-lhe a presença. Olhou demoradamente a criança, aguçando o ouvido à sua respiração.
Falou-lhe com carinho. Depois, com gesto expedito e delicado, ergueu-a do berço e, desdenhando o emprego do estetoscópio, encostou-lhe o ouvido ao peito.
A cabeça do médico moveu-se para cima, para baixo, para cima outra vez. E ele parecia prestes a sorrir. Ou seria o jogo de luz e sombra na sua face enrugada? Fosse como fosse, pôs a criança de novo no berço.
E ficou algum tempo esfregando o queixo com o longo dedo ossudo, antes de se voltar para Mrs. Duncan:
- Minha filha, disse ele suavemente, será que existe nesta casa um grampo de cabelo?
- Um grampo! exclamou a moça perguntando a si própria se o médico estaria maluco, ou se fora ela quem enlouquecera de susto.
- Exatamente! tranquilizou-a Cameron.
E enquanto, com mão trémula, ela procurava o grampo na cabeça, Cameron agradeceu:
- E agora, pequena, continuou, batendo-lhe no ombro, agora saia um pouquinho. Meu colega e eu temos que discutir uma coisa.
Entre o medo e o espanto, a jovem Mrs. Duncan deixou-se empurrar brandamente para fora do quarto.
- Quanto à senhora, Mrs. Niven, disse Cameron em tom diferente, caia fora e já!
- É melhor eu ficar aqui, respondeu Mrs. Niven, desafiadoramente. Para lhe dar uma ajuda. Aqui estou e aqui fico.
A "CURA MARAVILHOSA"
Cameron levantou o cenho numa carranca súbita, severa como um juiz enforcador.
- Fora já daqui! silvou ele. Fora, sua cachorra! E, se você não sair, juro por Deus que lhe meto a ponta da botina nessas ancas de baleia.
Era demais, até mesmo para a atrevida da Niven. Ela guinchou, e um momento depois tinha se posto fora.
Cameron sorriu para o assistente:
- Não é admirável o que se pode conseguir pela gentileza e pelo que o velho Syne chamava de "a não obstrução conspícua? - Depois indagou confidencialmente: - A propósito, Finlay, você sabe o que é um "pito"?
- Um "pito"? indagou Finlay, caindo das nuvens.
- Sim, isso mesmo, um "pito". Finlay encarou-o com desagrado.
- Ótimo, observou Cameron bem humorado. Já que não sabe, vou lhe dizer. Um "pito" é uma coisinha furada, parecida com um botão, que solta um assobio fino quando a gente sopra nela. Brincadeira de criança. Vem de brinde, nos pacotes de balas de estalo e outras coisas do género. E já que estamos falando em crianças, você já reparou quanto é arteira uma criança de dezoito meses? Enfia coisas na boca, nos ouvidos e até mesmo... no nariz.
Enquanto falava, o velho debruçava-se sobre o berço com o grampo na mão. Rápida e delicadamente a parte redonda do grampo foi enfiada na narina esquerda da criança, subiu, desceu. E num instante o assobio cessou.
- bom Deus! arquejou Finlay.
- Aqui está o seu pneumotórax, observou Cameron com o "pito" na palma da mão.
A criança sorriu amigavelmente para Cameron, enlolou-se em bola e pôs-se a chupar o polegar.
Finlay ficou da cor de uma baeta. Resmungou alguns protestos envergonhados acerca da própria idiotice. E, estendendo a mão, quis apanhar o "pito". Mas Cameron, com um gesto rápido, enfiou no bolso do colete.
- Não, Finlay, meu filho, não, disse afetuosamente. Deixe que eu tome conta disto aqui. E toda vez que lhe crescer muito a grimpa, pode ficar certo de que lhe mostro o "pito".
Foi muitíssimo comentada a cura maravilhosa do pulmão "que assobiava" da menina dos Duncan. Bob Duncau a atribuía à habilidade de Cameron, enquanto Mrs. Niven responsabilizava a sua cataplasma de linhaça. Mas a jovem Mrs. Duncan tinha o confuso sentimento de que o seu grampo realizara um milagre.
O HOMEM PÕE
UMA RUDE APARIÇÃO
Embora os poetas nos afirmem que o homem é senhor do seu destino, e os novelistas nos apresentem heróis que, uma vez resolvidos de uma coisa, trincam os dentes e vão obstinadamente até o fim, por amargo que seja esse fim, - as coisas, na realidade, não acontecem dessa maneira.
A vida gosta de brincar com aqueles cavalheiros que tão esplendidamente cerram os molares; e a despeito da afirmação .contrária dos poetas, a cabeça do herói muitas vezes se curva. Seria agradável apresentar Finlay Hyslop segundo a melhor tradição vitoriana, - um jovem forte e silencioso, cujas esplêndidas promessas jamais deixassem de ser cumpridas. Porém Finlay era humano, Finlay tinha muita coisa em comum comigo ou contigo, leitor. E com grande frequência as circunstâncias brincavam com as suas mais fervorosas resoluções.
Uma bela tarde, alguns meses depois da sua chegada a Levenford, estava ele sentado no consultório, sem fazer nada, pois o giro da manhã fora árduo, e o seu almoço pesado e tardio. com as mãos nos bolsos, as pernas estiradas, refestelava-se ele na cadeira, sentindo que as virtudes soporíficas do pudim de maçã de Janet furtiva e agradavelmente o iam vencendo.
Acabara de fechar os olhos, dera dois cochiles, quando a campainha do consultório ressoou violentamente, e Charlie Bell irrompeu de sala a dentro. Sem cerimónias, Charlie foi logo dizendo:
- Vim buscar o frasco de remédio de minha mãe!
Aliás Charlie não falou propriamente assim. Falou no mais bárbaro dialeto de Levenford, deformando as palavras até torná-las incompreensíveis. Por isso mesmo não tentamos reproduzi-las, já que a fonética de Charlie desafiava a compreensão de ouvidos educados e precisava ser sacrificada por uma elocução mais normal.
Finlay despertou aborrecido, em parte por ter sido incomodado e em parte porque estava certo de haver aferrolhado a porta lateral do consultório; mas, principalmente, por causa da rudeza de Charlie Bell.
E retrucou rispidamente:
- O consultório está fechado a esta hora.
- Então para que é que deixa a porta aberta? retorquiu irritantemente Charlie.
- Não importa como esteja a porta. Estou lhe dizendo que o consultório está fechado. Volte à tarde.
- Voltar! eu! disse Charlie com desprezo. Eu nunca vou duas vezes a lugar nenhum.
FINLAY É DERRUBADO
Finlay encarou Charlie, rapagão atarracado de seus vinte e cinco anos, ombros enormes, face dura e pálida, olhos pequenos, escarninhos, cabelo ruivo, cortado baixo. Bem enterrado na cabeça trazia um boné, chamado no local "hooker", que não se dera ao trabalho de tirar e em torno do pescoço curto tinha descuidosamente atado um vistoso lenço vermelho. Aliás, todo o jeito de Charlíe era também descuidoso; desde pequenino jamais ligara a nada ou a ninguém. Como menino fora insuportável, apanhara muito, e continuara alegremente insuportável.
Tocava a campainha nas casas, quebrava as vidraças, chefiava uma quadrilha juvenil e várias vezes estivera a pique de afogar-se tomando banho nos poços mais fundos do rio LeVen. Se algum estranho aparecia na High Street em Levenford, podia-se ter a certeza de que a voz de Charlie seria a primeira a erguer-se na piada canalha: "Olha o chapéu dele!" ou "Olha as botinas"! ou a "cara", ou o quer que fosse.
Era mestre em todos os jogos, desde o futebol, jogado com uma lata vazia nas sarjetas, até a luta de boxe - oh, no boxe principalmente.
A expulsão do colégio, quando ocorreu, como era inevitável, foi para ele uma suprema felicidade. Charlie foi ser ajudante de rebitador nos estaleiros; lá aquecia os rebites e os atirava aos homens, sem esquecer de vez em quando de deixar cair um rebite em brasa no bolso de um companheiro - divertidíssima pilhéria!
Isso fora há anos atrás, é claro. Agora Charlie era ele próprio rebitador, chefe inconteste do bando que se reunia perto de Quay-Corner, proprietário de uma maltratada cadela chamada Nellie; os seus íntimos o chamavam de Chá; e ele era mais rijo, mais duro do que os rebites com os quais ferrava a quilha de ferro dos navios.
E agora, esquentando-se com o olhar fixo de Finlay, Chá atirou belicosamente a cabeça para diante.
- Pode continuar olhando! Mas ouviu o que eu estou dizendo? Estou pedindo que apronte o frasco de remédio de minha mãe.
- Já está pronto, disse Finlay em voz dura, indicando com um gesto de cabeça, por cima do ombro, a. prateleira lá atrás. Mas você não o pode receber agora. É contra as nossas regras. Tem que vir buscar na hora própria.
- Deveras? indagou Chá, respirando forte.
- Sim, respondeu Finlay, esquentado. Isso mesmo. E quando vier da outra vez, trate de se comportar um pouquinho melhor. Pode tirar o chapéu, por exemplo.
- Diabos o levem! - e Chá riu com insolência. E se por acaso eu não tirar?
Finlay ergueu-se devagar - estava no último ponto de combustão. Lentamente aproximou-se de Chá.
- Nesse caso nós lhe ensinaremos como é que se faz, retrucou ele com a voz trémula de cólera.
- Olhe para a minha cara! exclamou Chá. Parou de rir e deu às feições rudes uma caratonha agressiva.
- Então você acha que pode me ensinar alguma coisa?
- Sim! berrou Finlay.
Cerrando os punhos, atirou-se sobre Chá.
Segundo todas as regras de ética da profissão, deveria haver aqui, uma grande luta - um combate magnífico, no qual Finlay, o herói, acabasse derrubando Chá, o vilão.
Mas o que na verdade aconteceu foi muito diferente. Só foi dado um murro, um único e solitário murro.
Dois minutos depois, Finlay acordou, sentado de costas contra a parede, tonto e levemente nauseado, com o sangue lhe escorrendo estupidamente do canto da boca.
Por essa hora, Chá, com o frasco de remédio da mãe no bolso e o boné ainda mais insolentemente enviezado na cabeça ruiva, caminhava em largas passadas através de Church Street, assobiando uma musiquinha alegre.
A PRIMEIRA LIÇÃO
Finlay ficou sentado onde estava durante muito tempo; depois, com a cabeça ainda zumbindo, levantou-se. Dentro de si, tudo era escuro e amargo como fel. Sentia-se arder à lembrança da insolência de Cha e enfurecia-se ante a sua incapacidade de a afrontar. Era forte, novo, sedento de esmurrar a cara feia de Chá e contudo... Pôs-se a gemer num paroxismo de humilhação.
Ao caminhar para a pia afim de banhar o rosto, tomou a resolução de resolver aquele assunto. Chá sabia lutar, evidentemente, enquanto ele não o sabia. Jamais pensara nisso antes, como jamais tivera que enfrentar uma situação daquela espécie. E por isso mesmo, feito um cordeiro, fora se entregar aos punhos diabólicos de Chá.
Chá! como odiava aquele cachorro indecente! Tinha que fazer qualquer coisa a respeito daquilo, não podia ficar assim, de cara apanhada.
Para se aliviar soltou uma tremenda praga, depois da qual sentiu-se melhor.
Acabou de enxugar o rosto e, carregando o sobrolho, sentou-se à mesa, afim de pensar.
O resultado daquela meditação foi o encontro entre Finlay e o sargento A. F. Galt.
Arthur Galt estava no "quartel". Aliás o estimável sargento vinha pertencendo ao "quartel", sem dar mostras de envelhecer, desde época já perdida na memória de todos.
lira alto como uma vareta, de cara seca, bigode encerado, calças apertadas, peito de pombo; Archie acumulava as funções de sargento recrutador e instrutor dos voluntários.
A. sua obsessão era a boa forma física: tinha músculos pelo corpo todo, músculos que se enrijeciam feito bolas de bilhar, nos lugares mais inesperados, a uma simples palavra de ordem. E tinha medalhas - medalhas ganhas na luta livre, no salto em altura, no boxe; corria até o boato de que, nos seus bons tempos, Archie fora um dos famosos pesos-pesados do Exercito. Verdadeiro ou não esse boato, pouco importava: de qualquer maneira era indiscutível o fato de que Archie sabia boxear.
Naquela primeira tarde, na grande sala de exercícios, cheia de correntes de ar, Archie castigou duramente Finlay - não, é claro, como lhe batera Chá, mas em murros calmos e judiciosos, que sacudiam, agitavam, alcançavam toda parte, belos golpes bem dosados dos quais qualquer um, se o estimável sargento assim o quisesse, poderia mergulhar Finlay num vergonhoso sono.
No fim da aula, Galt descalçou com tristeza as suas enormes luvas.
- Não adianta, doutor, disse ele em dialeto, pois nem a África, nem a índia, nem todo o Sudão lhe haviam exterminado o patuá. é melhor o senhor continuar com a medicina. Não tem a menor ideia do que seja lutar.
- Mas posso aprender, arquejou Finlay. - O suor lhe corria pela face; o último murro o alcançara na arca do peito e o deixara sem fôlego. - Preciso aprender. Tenho um motivo.
- Hum, retrucou Archie, retorcendo o bigode encerado, com ar de dúvida.
- Foi minha primeira aula, disse Finlay, obstinado e tomando fôlego. Quero aprender. vou treinar de rijo. Virei aqui diariamente.
A sombra de um sorriso passou pelo impressionante rosto de Archie, mas imediatamente desapareceu.
- O senhor não é medroso. E isto já é alguma coisa.
O BELO LUTADOR
E assim iniciou-se a campanha. Finlay deixou de fazer o passeio a pé que diariamente o levava até ao Lea Brae. Em vez disso, ia procurar o sargento, entrava silenciosamente na sala de instrução pela porta dos fundos, já depois de escurecer.
E aprendia tudo o que o professor lhe podia ensinar.
Levava cada surra formidável. Quanto mais aprendia, maior era a dureza com que Archie o castigava. E assim, o moço descobria quanto era mole, ele, Finlay Hyslop, que sempre se orgulhara da sua rude robustez.
Iniciou um treino terrífico. Acordava cedo, dava uma corrida e tomava um banho frio antes do pequeno almoço. Sem hesitar, cortou todas as deliciosas pastelarias de Janet da sua dieta. Deliberadamente, desapiedadamente, dedicou-se à tarefa de fazer-se a si próprio duro como um prego.
Cameron, naturalmente, farejava no ar qualquer coisa. Seu olhar penetrante e cáustico demorava-se muitas vezes sobre Finlay quando ele recusava um prato à mesa ou aparecia pela manhã com a orelha ligeiramente contusa. Mas embora uma ou duas vezes estivesse prestes a sorrir, nada disse. Cameron tinha o dom do silêncio.
Ao fim de um mês, Finlay já estava boxeando bem; e ao cabo de três meses, seus progressos eram realmente extraordinários.
E uma noite, pelos fins de maio, depois de lutar rapidamente em seis rounds de três minutos, terminou o treino com um murro terrível no queixo do sargento, levando ao chão o professor.
- Agora já chega, disse Archie decidido, ao descalçar as luvas. Não vou ficar aqui apanhando de um menino que tem metade de minha idade.
- Que é que está aí resmungando? perguntou Finlay admirado, com as luvas nos quadris.
Archie tomou um gole na garrafa dagua e profissionalmente o esguichou pelo canto da boca. Depois permitiu-se o luxo de um sorriso.
- O que quero dizer é isto, doutor: já lhe ensinei tudo que sei. - E ampliou o sorriso. - Agora está em tempo de procurar alguém da sua idade para bater.
- Então já estou fazendo alguma coisa?
- Alguma coisa? Homem, você já está fazendo o diabo! nestas últimas semanas tem andado tão depressa quanto uma casa pegando fogo. Aliás eu disse que você tinha massa de bom lutador. E agora me diga; qual foi aquela razão em que falou a princípio, se mal pergunto?
Finlay ficou em silêncio por um minuto; depois contou a Arcliie o caso com Chá. E novamente um sorriso lento abriu-se no rosto rude do sargento.
- Bell - conheço muito bem aquele arruaceiro de pescoço de touro. Se há sujeito à toa no mundo, aquele é um. Mas agora o senhor já lhe tomou as medidas, e pode lhe dar uma lição de que o malandro anda muito carecido.
- Você acredita nisso sinceramente, Archie?
- Tenho certeza, homem! Não digo que já seja um campeão, mas juro por esta farda que visto, que não queria estar no couro de Chá quando o senhor saldar contas com ele.
PLANOS DE VINGANÇA
Finlay foi para casa naquela noite com a resolução no olhar. Durante as semanas de preparação, tinha conseguido mais ou menos tirar o assunto da mente, mas agora que se sabia preparado para a desforra, -a sua negra cólera contra Chá novamente fervia.
A lembrança da cena no consultório doía-lhe amargamente. E a recordação das poucas vezes em que subsequentemente encontrara Chá, o olhar atrevido de Chá cruzando-se com a sua vista propositadamente desviada, e a risada zombeteira que o seguia rua abaixo, explodiu dentro de si com violência nova, aguilhoando-o com mais força do que ele o poderia tolerar.
E enquanto subia a alameda de entrada de Arden House, dizia consigo, sanguinariamente: "Ele vai me pagar, não espero mais nem um (dia. Já sofri demais, agora tiro a minha forra".
Nesse estado de ânimo entrou no vestíbulo e lá, numa ardósia pendurada à parede para se anotarem os chamados, encontrou um de Mrs. Bell, com o endereço de sua casinhola em Quay Side: coincidência curiosa, mas não de todo extraordinária, pois Mrs. Bell era meio hipocondríaca e mais ou menos uma vez por mês tinha Finlay que aparecer por lá e tranquilizá-la quanto à origem de alguma dor vaga, ou de um sintoma indeterminado.
Aquele chamado caíra-lhe como a sopa no rnel. Iria visitar a velha no dia seguinte, que era sábado, receitava-lhe um remédio e delicadamente deixava dito que Chá fosse à tarde apanhar o frasco no consultório.
As mesmas circunstâncias, a mesma hora, o mesmo local, mas oh! como seriam diferentes os resultados! Finlay endureceu o queixo. "Dou-lhe o remédio que ele precisa, pensou, ferozmente. Dou-lhe uma dose que ele nunca mais esquece!"
O dia seguinte chegou e Finlay tocou-se direto para Quay Side numero três, no momento em que acabaram as consultas da manhã.
Era uma casinha velha e torta, com uma só chaminé, trepada bem à margem do rio, aos fundos do "Elephant Castle" e avançava um pouco na fila das outras, como se a pressão das visinhas a houvesse expulso do alinhamento.
Mrs. Bell foi recebê-lo à porta, com a cara redonda e gorda contraída numa aflição:
- Oh, doutor, doutor, protestou ela, foi para esta noite que eu chamei o senhor, e não para hoje de manhã! Por que não veio quando recebeu o meu chamado? Quase fiquei doida esta noite.
- Não se aflija, Mrs. Bell, tranquilizou-a Finlay. Num instante a pomos boa.
- Mas não sou eu, gemeu a velha. Eu, coisa nenhuma! É Chá!
UM POUCO POR CONTA
Chá! Finlay fixou a velha com o rosto alterado; depois, muito preocupado, acompanhou-a pela estreita escada de madeira, que levava a um pequeno quarto do sótão, de chão nu.
E lá, atirado num catre, enfiado numa camisa de dia que não era das mais limpas, com o célebre lenço ao pescoço, um jornal de esportes a um lado, um pacote de Woodbines do outro, estava Chá.
Recebeu Finlay com escârneo.
- Que é que você quer? O trapeiro e o garrafeiro só aparecem cá na terça-feira.
- Cala a boca, Chá, sim? aplacou-o a mãe. E mostre seu braço ao doutor.
Virou-se para Finlay:
- Feriu-se no trabalho, doutor, no fim da semana passada. Mas começou a inchar e, valha-me Deus, está ficando horroroso!
- Meu braço está ótimo, declarou rudemente Chá. E não quero nenhum doutorzinho besta metendo o bedelho nele.
- Oh Chá! Oh Chá! gemeu Mrs. Bell. Por que você não toma cuidado com essa língua malcriada?
Finlay mantinha-se de pé, de rosto rígido, procurando controlar a raiva. Por fim, articulou com dificuldade :
- Vamos ver se quer mostrar esse braço?
- Ai, com os diabos! protestou Chá. Mas de sob a colcha de retalhos tirou o braço pesadamente, como se ele fosse feito de chumbo.
Finlay lançou um olhar e seus olhos se arregalaram de surpresa. Um inchaço enorme vinha do pulso ao cotovelo, uma tumefação feia, fofa, cujo diagnóstico não padecia a menor duvida. Chá tinha uma celulite aguda no braço.
Assumindo uma atitude reservada e inteiramente profissional, Finlay iniciou o exame. Tirou a temperatura de Chá, que fez a seguinte observação quando o médico lhe enfiou o termómetro na boca:
- Que é que você pensa que eu sou - uma avestruz?
Mas apesar de toda a pretensa frieza de Chá, sua temperatura marcava 39,7.
- Tem dor de cabeça?
- Não, mentiu Chá. E não pense que vai me arranjar alguma.
UM NEGÓCIO DESAGRADÁVEL
Houve uma pausa; depois Finlay olhou para Mrs. Bell.
- Tenho que fazê-lo cheirar um pouco de clorofórmio e rasgar o abcesso, declarou, impassível.
- Nunca na vida, bradou Chá. Clorofórmio, coisa nenhuma. Se você vai me meter a faca, meta sem isso.
- Mas a dor..
- Ora vá pra o inferno! cortou Chá, com desprezo. Você sabe muito bem que está querendo é me machucar. Pois toque para diante e veja se me arranca um berro. Chegou sua vez de tirar uma forrinha.
O sangue subiu ao rosto de Finlay.
- Isso é uma mentira, e você sabe muito bem! Mas espere que hei de pô-lo melhor. E aí dou-lhe uma lição que nunca mais esquece.
Virou-se bruscamente, e abrindo a maleta, começou a preparar os instrumentos. A resposta de Chá foi assobiar "As campânulas da Escócia" com as mais satíricas variações.
Mas Chá não continuou assobiando, é claro, embora não haja duvida de que gostaria de o fazer.
Era um trabalho desgraçado abrir aquele abcesso enorme, sem anestésico; a cara rude do paciente ficou rígida, a cor de tão pálida era quase cinzenta, quando Finlay fez duas incisões profundas e rápidas e depois começou a procurar o pus.
Mas havia pouco pus, péssimo sinal; - apenas um pouco de fluido eScuro e ceroso saiu dos cortes, embora Finlay pesquisasse com um cuidado quase doloroso, antes de envolver a ferida com ataduras de gaze embebidas em iodofórmio.
UM LABOR DE ÓDIO
Quando terminou a operação, Chá puxou de trás da orelha um coto de cigarro, acendeu-o e mal olhou para o braço atado.
- Fez-me um bom picadinho aí, hem? exclamou criticamente. Mas também o que é que se podia esperar?
E logo em seguida desmaiou, ainda com o cigarro aceso na mão.
Voltou a si, é claro, mas estava longe de passar bem. Quando Finlay -veio de novo, à tarde, encontrou-o nas garras de uma septicémia aguda. A infecção passara-se para a corrente sanguínea. Chá delirava; temperatura a quarenta e meio, pulso a cento e quarenta.
Seu estado era gravíssimo. Mrs. Bell opôs-se resoluta-mente a que o transportassem para o hospital. ! - Chá não concordaria com isso! Chá não concordaria com isso! ficava ela a repetir, torcendo as mãos.
" Apesar da falta de juizo, ele é um bom filho para mim. E não vou contrariá-lo agora que ele está tão mal!
De forma que toda a responsabilidade do caso ficou sobre os ombros de Finlay.
Durante uma semana inteira batalhou ele pela vida de Chá. Odiava-o, - contudo sentia que o tinha de salvar.
Vinha três vezes por dia à casinhola de Quay Side e fazia religiosamente o curativo, com as próprias mãos; mandou um portador especial a Stirrock em Glasgow em busca de anti-toxina. Chegou a ir pessoalmente ao armazém de Pax, em High Street, afim de encomendar alimentos que mantivessem Chá vivo.
Não era obra de amor, pode-se ter certeza; à falta de expressão melhor, pode-se dizer que era obra de ódio.
Afinal, ao cabo de uma semana horrível, no oitavo dia, teve Chá a sua crise. E sentado, pela noite a fora, à cabeceira de Chá, Finlay viu claramente que o rapaz ficaria bom. com efeito, lá pela meia-noite, Chá mexeu-se e abriu os olhos fundos que a meio do rosto esquálido e barbudo se cravaram em Finlay. Olhou, oJhou, e depois movendo os lábios pálidos, zombou:
- Vê que estou melhorando, só para lhe contrariar.
Em seguida adormeceu.
Durante a convalescença, Chá ainda piorou. Quanto mais forte ficava, tanto mais atravido.
- Acho que você me escangalhou o braço para poder comigo.
Ou então:
- Acho que você teria acabado com ele se não lhe faltasse a coragem para isso.
Não que Finlay o tolerasse estoicamente. Não, senhor não! Quando Chá ficou fora de perigo, Finlay abandonou a reserva profissional e não lutou mais consigo próprio. E o jovem doutor e o jovem rebilador diziam-se as últimas, insultando-se impiedosamente até que Mrs. Bell tapava os ouvidos com as mãos e fugia do quarto, aterrorizada.
O SÁBADO DECISIVO
Afinal, quando Chá levantou-se, estava pronto para passar um mês de convalescença em Ardbeg Home, Finlay chamou-o à parte, acintosamente.
- Seu tratamento já acabou. Você está melhor e vai se restabelecer completamente à beira mar. Bem, quando voltar para casa, completamente curado, vá me procurar lá no consultório. Vai levar a maior surra da sua vida.
- ótimo! concordou Chá num desafio. É exatamente o que eu quero.
As quatro semanas passaram-se lentamente. Na verdade passaram-se com lentidão extrema.
Finlay contava os dias, um por um. Odiava Chá de tal maneira que chegava a lhe sentir a falta. Sim, sentia-lhe a falta, com efeito.
A vida chegava a ser monótona sem o sorriso escarninho e a língua malcriada de Chá. Mas ao chegar o último sábado do mês, Chá voltou e entrou pelo consultório a dentro, bronzeado, sadio, e tão forte, atarracado e sardónico quanto antigamente.
Foi direto para onde estava Finlay. Encararam-se.
Houve uma pausa.
Mas o que aconteceu depois foi terrível, de tal modo terrível que mal pode ser escrito. Finlay olhou para Chá. Chá olhou para Finlay.
Sorriram um para o outro, encabulados. E depois, num gesto simultâneo, apertaram-se as mãos, encantados.
MARY-OLHA-O-MENINO
OS REILLYS
"Mary-olha-o-menino"!
Era assim que Finlay a chamava, embora o seu nome fosse Mary Reillys. Quando passava na sua ronda, vendo-a à entrada de College Court com a enorme criança nos braços delgados, ele a saudava alegremente:
- Como vai hoje, Mary-olha-o-menino?
Os olhos dela lhe sorriam em resposta - aqueles olhos grandes e sérios que às vezes pareciam enormes no rostinho minúsculo. E endireitando o farrapo de chalé que prendia o bebé à sua pessoinha franzina e insignificante, respondia encabulada:
- Ótimo!
A família Reillys vivia em College Court, beco estreito que sai de College Street, no caminho de quem vem de High Street para Bankond Road.
Embora o nome do lugar tenha uma aparência tão simpática, sugerindo aos não-iniciados a visão de claustros ou de alguma catedral próxima, College Street é a pior zona de pardieiros de Levenford. Por causa da sua estreiteza e tortuosidade é localmente conhecida como o Vennel. E College Court é o pior recanto daquela cloaca com nome de rua, espécie de coelheira dividida em casas de apartamentos, com uma única via de acesso através de um "passadiço" umido e mal iluminado.
E em uma dessas casas, - quero dizer, num quarto único daquele miserável pardieiro, habitava a família Reillys.
Familia grande, aliás, a família Reillys.
Podia-se mesmo dizer que em relação à capacidade cubica total do seu apartamento, a família Reillys era enorme.
Compunha-se precisamente do pai, da mãe e das crianças, em número de nove. Entre estas Mary, com ( uinze anos de idade, era a mais velha e Josey, com seis meses, era o mais novo; contudo, quando Mary e Josey estavam juntos, o que sempre acontecia, a diferença entre as suas idades não era tão manifesta, pois Mary era pequena demais e o garoto demasiado grande.
A SEDE INEXTINGUÍVEL DE PADDY
Como se vê pelo nome, eram os Reillys irlandeses - imigrantes irlandeses que, chefiados pelo "maluco do Paddy", como era conhecido o pai entre os seus íntimos, viera do condado de Wexford para Levenford em busca de fortuna.
Paddy não era mau sujeito - homenzarrão de cabelo cacheado que suava como um negro trabalhando no estaleiro. Infelizmente a garganta de Paddy era tão ativa quanto os seus poros.
Paddy sofria de sede, uma sede sadia em relação à qual - ai dele! sua capacidade aquisitiva era totalmente inadequada. Em consequência disso, nos dias de pagamento, Paddy no bar do Fitter era o mais feliz dos bêbedos. Voltava depois para casa sem um vintém do salário, cantando canções irlandesas até que as lágrimas quentes e sentimentais lhe banhavam o rosto. Teresa, a mulher de Paddy, também chorava nessas ocasiões, especialmente se tivera sorte de ser levada ao botequim pelo marido. Mas quer o acompanhasse ou não, ela jamais fazia censuras à boa bisca do esposo.
- Ora, com os diabos! Um homem tem o direito de beber uma vez ou outra!
Criatura preguiçosa, relaxada e de bom génio inalterável era Teresa, com a blusa desabotoada, o cabelo rolando a meio pelas Costas, batendo língua durante todo santo dia.
Não parava de tomar chá:
- Credo em cruz, estou ressequida, preciso de uma xicrinha de chá! - E enquanto isso, tagarelava sem descanso. Ou então olhava espetacularmente o despertador descascado. - Meus santos do paraíso! Olhem só a hora! Mary, olha o menino, enquanto eu vou depressa cuidar do chá de seu pai!
Naturalmente Mary já estava olhando o menino e quase sempre era Mary que fritava o toucinho para o chá do pai. Pois Mary era quem fazia quase tudo na casa dos Reillys. Dava recados, preparava as refeições, levava as crianças à escola.
Porém acima de tudo, e mais do que tudo, ela olhava o menino. Porque Mary queria bem ao menino. Não! não lhe queria bem. Adorava-o.
Fora por ocasião do nascimento do garoto que Finlay conhecera Mary.
Em geral os filhos dos Reillys costumavam nascer como coelhos, sem nenhuma assistência ou, no máximo, com Mrs. Niven, a quase-parteira local, que, postada ao pé da cama, ordenava severamente à esfalfada Teresa que "fizesse força". Mas quando Josey eslava para nascer, as coisas correram diferentemente.
Em primeiro lugar, Josey era uma criança enorme. E em segundo lugar, Josey "apresentou-se mal" essa foi pelo menos a todo-poderosa explicação de Mrs. Niven, embora Finlay, que chegou a pedido dela, levasse o caso na troça, dizendo que o menino viera "de marcha-à-ré".
Talvez Josey tivesse premonição da própria importância e por isso fizesse uma entrada tão espetacular neste mundo. Mas qualquer que fosse a razão, só ele entre a criançada dos Reillys gozara o previlégio de ter um médico lhe assistindo ao nascimento. Como dissemos, fora Finlay Hyslop esse médico e fora Mary que o viera procurar em Arden House.
Finlay estava num mau humor terrível quando vira pela primeira vez a franzina rapariguinha que, quase sem fôlego da carreira, de pé à porta, lhe pedia que fosse ver a mãe.
Cameron estava de férias em Rothesay e, na última semana, o rapaz quase morrera de trabalhar. Grassava na cidade uma epidemia de enterite; durante três noites seguidas fora ele incomodado para atender parturientes e agora, coroando tudo, outro parto.
- Não trataram comigo esse parto, disse pois Finlay, com maus modos. - E realmente não era justo. Como todo médico que se respeita, Finlay detestava chamados de última hora para partos - casos que, na maioria, acabavam em eclampsia, em hemorragias, acidentes que poderiam ser tão facilmente evitáveis com um exame prévio.
- Mrs. Niven disse que o senhor precisa ir! arquejou Mary.
- Mrs. Niven! explodiu Finlay. Para que diabo serve Mrs. Niven?
- Não serve para nada, concordou a garota com seus olhos grandes e sérios pregados implorativamente nos dele. Mas o senhor serve muito. Ninguém pode fazer mais do que o senhor. E o senhor tem que vir acudir minha mãe. Quando eu trabalhar lhe pago. Juro que lhe pago tudo.
E para reforçar a súplica, ela lhe pôs a mãozinha magra sobre a manga do casaco.
UMA PERFEITA MÃEZINHA
Finlay estava furioso. Mas na verdade tinha que ir. Havia algo naquela menina suja e raquítica que o arrastava contra a vontade. Deixou o almoço na mesa e acompanhou-a a College Court.
E, desde o início, sentiu ele a têmpera do espírito de Mary. E quanto mais a conhecia, mais se maravilhava. Mary cuidou da mãe durante um longo e penoso "resguardo", pois Mrs. Niven não era mulher para demorar-se num lugar onde o dinheiro fosse tão curto. E cuidava igualmente do recém-nascido. Sua capacidade era realmente espantosa. Tinha ela os conhecimentos elementares de toda criança vivida na promiscuidade das casas de cómodos miseráveis -- conhecimentos sem pejo dos mistérios da vida, misturados com uma inocência que chegava a ser sublime. Aqueles grandes olhos de Madona, a meio do rostinho insignificante, continham a pureza e a sabedoria de eras perdidas. Porém mais do que isso continham um insondável depósito de amor.
Muitas vezes Finlay discutiu esse caso com o cura de St. Palrick. O padre Scanlan e o moço médico eram os melhores amigos deste mundo, pois o afastamento de Finlay do Catecismo Resumido não o impedia de estimar e respeitar o jovem padre irlandês. Jogavam golfe, juntos no clube de Levenford, com o seu campo de nove buracos e, mais tarde, quando tomavam chá na sede do clube, a conversa girava muitas vezes em torno de Mary Reilly.
- Aquela menina é maternal de nascença, dizia o padre com o seu sotaque irlandês. Absolutamente maternal. E essa força que lhe enche a vida. Foi muito acertadamente - e os seus olhos se acendiam com religioso fervor, - que lhe puseram o nome de Mary.
Finlay, é claro, como presbiteriano inabalável, nada tinha que ver com esse aspecto do caso. Tinha contudo muito que ver com Mary. Chegara realmente a querer bem àquela criança curiosa, que brilhava no seu sórdido ambiente, como uma pedra preciosa abandonada numa sarjeta.
Quando Josey fez seis meses, Finlay deteve-se na pinguela de College Court. Mary lá estava como de costume, embalando o garoto precoce, de cara redonda, com suaves movimentos ondulantes do corpo.
- A propósito, Mary, disse ele abruptamente, quero lhe dar um presente; você me ajudou tanto não se. lembra? Venha cá, diga o que é que deseja?
Os olhos graves levantaram-se para ele e lhe sorriram. Nada de pretextos nem cavilações, nem pedido de chocolate.
- Eu gostaria muito de um chalé para enrolar o garoto. E um par de sapatos para mim.
AS FÉRIAS DE VERÃO DE MARY
Finlay olhou para o frangalho de chalé de xadrez e para as botinas atrozes da pequena, estouradas, descosidas, gastas até ao forro. E, sem dizer palavra, afastou-se, comprou-lhe um chalé bem quente e um bom e forte par de botinas. Durante dois dias seguidos, Mary exibiu-se em College Court, usando o belo chalé novo, e as novas botinas, que rinchavam magnificamente, a cada passo que a pequena dava.
Mas três dias depois, na segunda-feira, Finlay encontrou-a à entrada do passadiço com o chalé velho nas costas e as botinas rasgadas nos pés.
- Que quer dizer isso, Mary? perguntou ele, severamente.
- Estão no prego, disse ela com simplicidade.
- No prego?
- Sim!
Uma cólera súbita ferveu nele:
- Deus do céu! Essa sua mãe...
- Não, não! interpôs Mary, calmamente. Fui eu. Eu mesma. Josey tinha que tomar o leite, o senhor compreende. Meu pai esteve no Fitter, sábado à noite. De forma que tive que botar as minhas coisas no prego, hoje de manhã.
Aquelas poucas palavras, ditas sem censura, compunham um quadro que não carecia de ornatos.
E acontecia sempre a mesma coisa. Tudo o que ele lhe dava seguia igual caminho.
Dinheiro, é claro, não adiantava. Ia diretamente para a bolsa da mãe.
No verão seguinte, auxiliado por Cameron, arranjou Finlay para Mary uma semana de férias à beira mar na Ardbeg Seaside House. Ela não andava forte e a mudança decerto a ajudaria a enfrentar o inverno.
Tudo eslava arrumado, os atestados assinados, os papeis em ordem; premido pelo tempo, Finlay impensadamente deu a Mary o dinheiro para a passagem do trem ao invés de comprá-la pessoalmente. Passaram-se duas semanas durante as quais Finlay frequentemente pensava em Mary, gozando o sol à beira mar.
No fim desse tempo foi a College Court, com benévolo sentimento de satisfação, afim de saber se ela gostara das férias.
Mary não estava em casa; foi Mrs. Reilly quem chegou à porta e quase deu um pulo ao vê-lo.
- Ela vai bem, vai bem, respondeu nervosamente a mulher. Claro, divertiu-se um bocado.
:- Está com melhor aspecto?
- Muito melhor, doutor. Nem parece aquela.
- Otimo, respondeu Finlay, satisfeito. Em breve saberei como ela se portou por lá. Escrevi ao médico de Ardbeg pedindo que me mandasse um relatório.
A TAREFA DE MARY
O queixo de Mrs. Reilly caiu. Fixando o olhar em Finlay, ela subitamente sacudiu as mãos e levantou a voz numa choradeira.
- Oh, doutor, doutor! foi o pai dela o culpado, só ele. Saiu para comprar a passagem, com as melhores intenções deste mundo. Mas Deus que me perdoe, lá veio a tentação do demónio. E voltou do bar do Fitter sem um vintém de cobre no bolso. Demos uma busca nos bolsos dele enquanto roncava na cama, mas não tinha consigo passagem nenhuma. Oh! doutor, doutor, valha-me Nossa Senhora, não fique zangado com a gente, tudo isto é pobreza - pelo amor de Deus!
Mary estivera tanto em Ardbeg quanto ele. Depois desse caso, Finlay jurou a si próprio que faria alguma coisa pela pequena, fosse de que maneira fosse. Aliciou o padre Scanlan, que aliás tinha toda a boa vontade em cooperar. Atormentou Cameron até irritar o velho.
Escreveu a Charlie Craig, que fora seu colega de colégio e cujo pai era proprietário de Home Farm, na Earnhead Policies. Era uma ótima granja especializada em laticínios, situada nas Orchis Hills, onde tudo era feito em grande escala.
E aí começou a ofensiva. Paddy, capturado pelo padre Scanlan, foi obrigado a assinar o documento.
Teresa, inicialmente assustada por um sermão acqrca dos tormentos do inferno, foi em seguida consolidada na resolução por conselhos espirituais. As crianças na escola foram limpas, fumigadas e vestidas com o auxílio de São Vicente de Paulo.
E finalmente Finlay venceu a própria Mary.
Adivinhando novidades, a pequena começara a evitá-lo, abandonara o seu posto na entrada do beco e levava Josey em grandes passeios pelo Prado num carrinho de criança enferrujado e tão velho, que continuava na casa dos Reillys porque nenhuma casa de penhor o aceitaria.
- Você vai para fora, Mary, comunicou-lhe Finlay. Vai para o campo, para uma granja, a melhor granja da Escócia. Vai ser moça de leiteria - uma queijeira bem grande e bem gorda, tomando litros de leite por dia.
Mary ergueu os olhos para Finlay e os baixou depois para o carrinho em ruína.
- Não, - disse ela pensativa. - Não posso ir.
Finlay agitou a cabeça:
- Você vai sim, Mary. Não quero saber de mais disparates. Você está simplesmente se matando por causa dessa sua família. Anda com a cara péssima, ultimamente. Está ouvindo?
- Estou ouvindo, sim senhor, doutor.
Os olhos dela continuavam baixos. Josey, apenas com dezoito meses, sorriu para a irmã, brincando de esconder por trás de um velho cartão postal que alguém lhe dera no Prado.
- Mas não posso ir. O senhor vê, tenho que cuidar do menino.
-- Outra pessoa pode cuidar do menino para variar. E se você não toma juízo, ele é que terá que tomar conta de você, seu tico de gente. Já é quase do seu tamanho, e você já está com dezessete anos completos.
A DÍVIDA DE MARY
Meditativamente Mary ficou a alisar um remendo na sua saia, ridiculamente rala. As botinas que calçava eram velhíssimas, como sempre; e ele podia ver que em lugar de ligas ela trazia uns cordões.
O rostinho estava pálido e fatigado do esforço de empurrar o pesado menino no escangalhado carrinho, e uma grande onda de compaixão dominou Finlay:
- Pois você vai, minha filha. Vai de qualquer jeito, nem que eu tenha de levá-la à força.
E assim Mary foi, embora derramasse amarguíssimas lágrimas antes de se violentar a dizer adeus a Josey.
Por fim, vestida para tomar o trem, com Jamie a esperá-la do lado de fora, no cabriole, ela encarou severamente a mãe:
- Escute bem, Teresa Reilly! Se a senhora deixar qualquer coisa acontecer ao menino, eu... eu nem sei o que lhe faço!
E ai, chorando lágrimas escaldantes, baixou a cabeça e saiu correndo do quarto.
Finlay recebia notícias por cartas - cartas dela, infantis, erradas, traduzindo uma grande sinceridade de coração e terminando invariavelmente com este posescrito sublinhado:
"Por favor não perca o menino de vista"!
Recebia também as cartas à maneira de relatório, que lhe mandava Charlie Craig.
Mary ia muito bem, acostumando-se depois de um período de saudade silenciosa e, por fim, quando as saudades aplacaram, começara a gostar da vida do campo. E todos lá a estimavam muito.
Engordava, comia como um animalzinho novo e as faces iam tomando um corado rico.
Para Finlay aqueles boletins mensais eram fonte de enorme orgulho. Mostrava-os ao padre Scanlan, no clube, com verdadeiro ar de proprietário. E os posescritos sempre comoviam o coração irlandês do padre.
- Eu não lhe dizia? Aquela menina tem um verdadeiro coração materno.
Os meses foram-se passando até que um ano se escoou. E um belo dia apareceu Mary, afim de passar em casa os seus quinze dias de férias.
Trouxe presentes em abundância: manteiga, ovos frescos, dois frangões, uma linda roupinha nova para José.
Estava mais gorda, mais sadia, vestida direitinho, e, contudo, continuava a antiga "Mary-olha-o-menino" que costumava ficar à entrada do beco em College Court, com o mesmo sorriso silencioso, o mesmo jeito reservado, os olhos cheios daquela expressão meditativa.
Agarrou-se com José e quase o devorou de beijos. Durante o tempo todo dás férias, praticamente não o teve longe de vista um minuto.
Finlay ao encontrá-los juntos pela vigésima vez, arriscou uma brincadeira:
- Para quê todo esse exagero, Mary, se qualquer dia você há de ter um Josey seu de verdade?
Mary olhou para o garoto e o garoto olhou-a. Depois com aquele seu sorriso débil ela disse:
- Não seria um José igual a este.
E antes de voltar a Earnhead, Mary foi procurar Finlay em Arden House:
- A propósito, doutor, acho que estou lhe devendo uma conta. Não se lembra daquele dia em que eu vim cá, quando Josey nasceu? Prometi lhe pagar assim que começasse a trabalhar.
A DOENÇA DE JOSÉ
Finlay teve que literalmente expulsá-la do consultório, antes de conseguir convencê-la de que não receberia um só penny. No dia seguinte Mary partiu para Earnhead.
O verão passou calmamente. O garoto fez o seu terceiro aniversário e medrava vigoroso; igualmente bem iam os Reillys. Paddy, graças a não sei que milagre, só quebrara a jura dez vezes e em cada uma dessas vezes, através da crise de remorsos do dia seguinte, tornava a fazer voto de abstinência, sendo portanto considerável o lucro que com isso tinha a família Reilly.
Haviam se mudado de College Court para Leven Street, onde dispunham de quatro peças decentes e de uma cozinha onde principalmente viviam.
Paddy ostentava um ar virtuoso, falava em depositar dinheiro na Caixa Económica, e realmente melhorara muitíssimo. E por essa razão, decerto, foi que levou à Feira a mulher e José.
A Feira de Levenford era famosa, divertidissima, com abundância de carroceis, cavalinhos, barracas de toda espécie.
Paddy, se fosse proceder segundo costumava, teria ido à Feira sozinho, ou junto com os companheiros, afim de exibir sua força enorme, quer na máquina de medir força, quer espalhando os cocos e derrubando os bonecos. Mas agora, do alto do seu colarinho de celuloide, dizia a Teresa:
- Vamos ver as barracas.
Ela o fitara, com grande vontade de ir:
- Mas o que é que eu faço de José, Paddy?
Ele respondeu:
- Ora, leve o garotinho também.
E assim, levaram Josey à Feira, e unicamente por impulso dos seus corações bondosos, fizeram-no comer caramelos e o sentaram alegremente na roda dos cavalinhos.
Divertiram-se enormemente. Mas, ai, o vento da noite veio soprar gelado. No dia seguinte Josey estava com pneumonia. O pânico dominou a casa, quando Finlay lhes deu essa notícia, Teresa pôs-se a andar, torcendo as suas mãos incapazes e gemendo:
- Como é que eu vou dizer a ela? Como é que eu vou dizer a ela?
Finlay declarou:
- Precisamos levar a criança para o hospital.
- Não, não! Ela nunca me perdoará se eu fizer isso! E temos que dizer a ele, temos que dizer!
Telegrafaram para Mary, que chegou naquela mesma noite.
MICRÓBIO VIRULENTO
Mary não fez recriminações nem queixas. Tinha o rosto impassível, enquanto desfazia a pequena bagagem e se instalava como enfermeira de José:
- Vim cuidar do menino.
E como cuidou! cm toda a sua experiência, Finlay jamais vira melhor enfermeira.
Fazia do menino o que queria, fazia-o alimentar-se apesar da febre, e tomar o remédio quando estava inquieto.
E, cantarolando baixinho, tinha até o poder de o fazer dormir.
A infecção era grave e José estava muito mal.
Mary sabia disso e, muitas vezes, quando lhe espiava o respirar cavo, ou quando lhe enxugava o muco dos lábios, uma expressão de angústia lhe tomava as faces.
A tosse era o pior. Mary punha os braços em torno das costas do menino, indiferente ao perigo de contágio, e o amparava até que o acesso passasse. Dedicou-se dia e noite tão absolutamente a José que Finlay se viu obrigado a protestar:
- Você acaba adoecendo também, Mary, se continuar assim. Deixe-me trazer alguém para ajudá-la.
Mas embora a pequena lhe obedecesse em tudo mais, não lhe obedeceu naquilo.
O perigo afinal foi atravessado, e Finlay pôde dizer a Mary que José ia ficar bom.
Ela se ergueu meio tonta de junto à cama, segurando a cabeça com as mãos.
Estou satisfeita, satisfeitíssima, doutor, murmurou, sorrindo-lhe debilmente. Também eu acho que já não aguentava muito. Estou me sentindo muito mal.
E caiu desmaiada aos pés do médico.
Mary apanhara a doença de José, mas o micróbio não lhe atacou os pulmões. Isso já seria bastante ruim. O que aconteceu foi pior. Assaltou-a uma meningite pneumococica, - forma fulminante de uma moléstia terrível. Não recuperou mais a consciência e dentro de dez dias estava morta. No seu delírio, já perto do fim, ela repetia sempre: "Olha o menino, Mary; olha o menino".
E foi sob esse nome de "Mary-olha-o-menino" que ela se conservou nas recordações de Finlay.
A CASA FLUTUANTE DE TAM
A VELHA CHATA
Finlay Hyslop raramente ia pescar em Marklea sem aparecer na casa flutuante de Tam. Quando o não fazia, era quase certo Tam lhe aparecer nadando silenciosamente por trás do bote, irrompendo triunfalmente à sua vista, com uma risada alta, um alo amigável. Ficava ali por um momento, escorrendo agua, trocando uma ou duas palavras acerca das novidades. Depois baixava a cabeça de cabelos pretos e molhados, e deslizava para longe, cortando a água como uma foca, até alcançar a sua casa flutuante, ancorada em Sandy Bay.
Era lá que Tam Douglas levava sua vida solitária, embora chamar a residência.de Tam de "casa flutuante" fosse um eufemismo exagerado.
Outrora fora ela uma chata carvoeira que levava o carvão de Levenford para Overton pelo canal entre o Forth e o Clyde. Quando deixara de servir como transporte, ficara a chata durante anos atirada na lama do Leven, por trás do Castle.
Em certa época, uma precária super-estrutura fora acrescentada ao casco velho, e com uma camada de tinta nas tábuas bichadas, foi ela arrastada até o lago afim de tomar parte na moda das casas flutuantes que surgiu e desapareceu como um meteoro, por volta do começo do século. Passada a moda, ninguém quis mais saber da velha chata.
Queimada do sol, batida de vento, lavada de chuva, jazia ela abandonada, esquecida, sozinha numa enseada que tinha por nome Sandy Bay. E a idade lhe transformara a primitiva feiúra em algo que era quase belo.
Ela se harmonizava com o cenário. Tinha o aspecto de uma criatura estranha e desprezada que afinal encontrava ancoragem segura.
Foi então que a ocupou Tam Douglas. Alguns diziam que Tam a comprara por uma libra, outros que a ganhara mediante a aposta de atravessar o lago a nado, - pois já então Tam era um nadador maravilhoso; a maioria, porém, dizia que Tam simplesmente escalara a borda da chata e dela tomara posse. Mas ninguém se preocupava muito com isso e a coisa sé passara há tanto tempo que perdera a importância.
O fato é que Tam, naquele tempo ainda, não era uma instituição. Era apenas um rapaz que aparecera em Marklea afim de se restabelecer de uma doença muito séria e muitíssimo misteriosa.
VIDA DE ERMITÃO
Seria um estudante? Ninguém sabia. E de que doença sofria? Alguns diziam que era febre cerebral. Embora os mais sabidos declarassem que, nesse caso, então deveria sofrer de febre cerebral desde que nascera. Porque, para falar francamente, Tam não era muito certo da bola. Simples de espirito, compreendam.
Era calado, gentil, afável, ninguém tinha uma palavra a dizer contra ele. Apenas abobado ou, como dizem por lá, "zureta". Às vezes era encontrado, por exemplo, sozinho, debaixo de um péde cerejeira brava, apanhando cerejas para geleia, como faria qualquer outra pessoa, mas conversando com a árvore. Isso mesmo, conversando com a árvore.
Ou então, na boca da noite, era encontrado na beira do lago, escutando o som das maretas na areia, e sorrindo para si próprio, como se achasse aquilo estranhamente lindo. Parecia até alguém que nunca ouvira barulho de água, antes!
Era ele originário de um lugar qualquer no conoado de Fife, perto de Kirkcaldy. Mas ninguém jamais ouvira falar em parentes seus.
- Sou sozinho no mundo, respondia Tam sorrindo, se alguém o interrogava a respeito.
Quando veio para Marklea, trouxe consigo pouco dinheiro; e esse pouco depressa foi embora: Tam não sabia lidar com dinheiro. Contudo, foi ficando.
Afeiçoara-se ao lugar. O lindo trecho de água, bosque e montanha se apossara dele, lhe escravizara o espírito simples. O lago era agora seu dono.
E foi por isso que ele se apossou da casa flutuante abandonada. E lá morando, gradualmente foi deixando de ser Tam Douglas para ser o "Tam do bote". Vivia como ermitão, cozinhava ele próprio o que comia, lavava seus pratos, remendava as meias. O cabelo ficou crescido, a barba maltratada.
com o decorrer do tempo, transformou-se num tipo popular.
Os barcos de turistas davam volta para passar perto da casa flutuante de Tam. E Tam sentia-se orgulhoso, porque os turistas ingleses o vinham contemplar.
Às vezes viam-no na coberta da barca, cortando um repolho para o jantar. E se o barco de turistas se aproximava, Tam atirava na água uma folha de repolho, displicentemente, como sem querer.
E então, tibum! Tam mergulhava de cabeça no lago, de roupa e tudo, e voltava calmamente com a folha de repolho na boca.
Os turistas apreciavam muitíssimo o espetáculo; especialmente as senhoras, e dessa maneira, Tam ganhava muitas meias-coroas.
Quanto ao mais, Tam vivia como um animal selvagem, às custas do lago.
Era um pescador maravilhoso; uma truta, ou uma posta de salmão recém-pescado, assado na brasa, na sua minúscula cozinha, era o prato mais delicioso que se poderia imaginar. Finlay já o comera várias vezes e declarava jamais ter provado um peixe igual.
No outono, chegado o tempo das nozes, das groselhas e das framboezas selvagens, Tam conhecia todos os lugares de fruta; como conhecia também todas as raízes comestíveis e as ervas medicinais.
O inverno, claro, era a pior época para Tam. com gelo na água e a geada metralhando impiedosamente o lago, ficava ele tiritando na escotilha, quase sem ter o que comer durante dias seguidos.
Deveria sofrer abominavelmente, com roupa insuficiente, e com ainda menos comida, mas ninguém ouvira Tam queixar-se. Era a criatura mais delicada, mais bondosa, mais humilde deste mundo, e seus pequenos rasgos de vaidade serviam apenas para o tornar ainda mais estimável.
Era aceito como fazendo parte do plano de coisas postas no mundo unicamente pelo Criador: ninguém se preocupava com ele, nem ele se preocupava com ninguém.
O DESAPARECIMENTO DE TAM
Na época em que Finlay Hyslop chegou a Levenford, Tam andava por perto dos cinquenta anos de idade. Contudo não o parecia; a árdua austeridade da sua vida e o exercício constante dentro e fora da límpida água do lago, deram-lhe o corpo de um atleta.
Alto como uma faia; musculoso, desempenado, com a pele de um esplêndido bronzeado, poderia servir de modelo para uma estátua de Poseidon. Tinha uma cabeça impressionante, de cabelos longos e escuros, testa nobre e mansos olhos castanhos. Mas a roupa em farrapos. A barba descuidada, os velhos sapatos de lona amarrados com barbantes, davam-lhe um toque grotesco.
Nu, Tam parecia um deus. Vestido nas suas roupas, era um espantalho.
O primeiro verão, após a chegada de Finlay, fora, conforme já se deixou ver nesta narrativa, muito quente e ensolarado. Mas o inverno imediato mostrou-se cruelmente áspero; não talvez tão severo quanto aquele famoso inverno passado, em que o lago enregelara todo, a ponto de levarem um carro puxado a cavalo por cima do gelo, até Darroch, mas na verdade muito frio e áspero. Durante uma quinzena inteira a região andou completamente coberta de neve. E todo mundo se queixava da severidade do tempo.
Era duríssimo para Finlay sair nas suas visitas, com as estradas obstruídas pela neve. E é justamente num tempo destes que o povo mais precisa de médico. Finlay diariamente teve que fazer o difícil percurso até Marklea, durante aquela gélida quinzena. Na quinta-feira da segunda semana estava ele tomando às pressas uma xícara de café na cozinha da estalagem "Marklea Arms", quando Mrs. Dow observou casualmente:
- O senhor não viu o Tam, andando pela barca, quando passou hoje pela enseada, doutor?
Segurando a chávena fumegante com ambas as mãos, entanguidas de frio, Finlay refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
Mrs. Dow continuou.
- Em geral, quando o tempo está assim, ele sempre me aparece aqui na porta dos fundos para tomar um caldo quente ou coisa semelhante. E não pense que seja caridade: Tam não toleraria receber nada de esmola. é como uma espécie de troca. Chegando a primavera, ele me traz um salmão ou uma dúzia de trutas, sem aceitar uma moeda de penny em paga.
- A senhora está então preocupada com ele?
Mrs. Dow franziu o cenho, com ar de dúvida:
- Assim, assim. Talvez me engane, mas com esta nevasca medonha, ele deve estar vivendo desgraçadamente mal. E será uma vergonha, se por acaso o pobrezinho estiver doente, sem um cristão que o auxilie.
Finlay terminou o café, e calçou as luvas.
- Bem, disse ele. vou ficar de olho quando passar por lá.
A DECISÃO DE FINLAY
Uma hora mais tarde, ao terminar suas visitas na aldeia, Finlay tomou de volta a estrada de Levenforcl. Andava naquele dia numa carriola de aluguel, com um cavalo do estábulo, pois Cameron levara Jamie e o cabriole para Overlon. Ao chegar defronte a Sandy Jiay, deteve o cavalo e escrutou os cinquenta metros de água que o separavam da barcaça de Tam.
Não viu sinal de vida. Nem siquer fumaça saía da estreita chaminé. Nada!
Finlay gritou para lá num grito longo, que parecia vibrar através da desolação da neve e da água de um azul acinzentado. Não recebeu resposta. Só havia ali imobilidade e silêncio.
Finlay praguejou impaciente. Seu impulso era continuar, chegar a Levenford, aquecer-se a um bom logo, comer seu jantar. Mas o instinto e o sentimento de piedade o detiveram.
Saltou da carriola, atravessou o cascalho coberto de neve e chegou à beira dagua.
Vários botes estavam ali em seco, botes que pertenciam ao Marklea Angling Clube, abrigados do inverno naquela praia segura.
Finlay levantou a lona que os cobria, escolheu o esquife mais leve, lançou-o à agua com algum esforço, e remou para a casa flutuante. Escalando a borda, atirou-se de cabeça e aterrou lá dentro.
Tam estava estirado no estreito beliche da minúscula cabina, cuja atmosfera era frígida como uma geladeira. Vestido nas suas roupas esfarrapadas, coberto com um tapete velho, jazia, tiritante.
- Homem, homem! bradou Finlay. Por que você não me respondeu?
Tam levantou os olhos, estonteado:
- Não ouvi. Não ouvi nada.
- Desde quando está assim?
- Por aí... uma semana, respondeu Tam castanholando os dentes.
- Uma semana! repetiu Finlay.
E aí inclinando-se mais, viu que não era apenas o frio que fazia Tam tiritar. Tam sofria de uma febre intensa.
Finlay ficou sem saber o que fazer. O homem estava doente, desesperadamente doente; sua miserável cabina era desconfortável até para um cão. E a despensa - escancarada, não continha um alimento, ou um estimulante sequer. Ao mesmo tempo seria impossível, naquele caminho bloqueado pela neve, levá-lo na carriola até o "Marklea Arms".
De súbito Finlay tomou uma resolução. Subiu à coberta, remou até a praia no esquife e subiu à carriola. Chicoteou o cavalo e meteu-se por um atalho estreito, oposto à enseada e subiu a colina que ia a Saughend1 Farm. Em cinco minutos chegara lá e batia à porta, pedindo para falar imediatamente com Mrs. Robb.
A VIUVA ROBB
Apesar da urgência de Finlay, Lizzie Robb não mostrou grande pressa em lhe atender ao chamado.
Saughend Farm era uma granja importante, não um desses sitiozinhos de nada, mas uma quinta rica e bem tratada, com ótima casa, vastos estábulos, propriedade de valor, e Lizzie Robb era sua dona. Lizzie Robb, aliás, como conhecia bem o que era seu, fazia um ótimo juizo do próprio mérito. Desde que lhe morrera o marido, Robin Robb, há três anos atrás, Lizzie gerira a granja sozinha e, para falar a verdade, geria-a com perfeição.
Era uma bela mulher, de busto amplo, rosto simpático, olhos pretos e pés bem feitos. E naqueles seus pés bonitos, Lizzie estava sempre a andar, cheia de vida e energia; pelo menos desde que o seu homem morrera, a energia de Lizzie mostrara-se inesgotável. Em Marklea diziam que ela estava ficando rabujenta. E os entendidos, cochichando por trás da mão, davam para isso uma razão convincente, - tolice, é claro, pois muito pretendente andara atrás da viuva Robb, ou atrás de sua herança, - e ela a todos, firmemente, mostrara a porta.
Naquele momento parecia que até mesmo Finlay seria posto fora, pois quando em poucas frases apressadas ele descreveu o caso e formulou o pedido, Lizzie fez má cara.
- Não sei se lhe posso fazer isso, disse ela. Estamos aqui muito ocupados para tomarmos tal trabalheira. E não temos nenhum interesse em trazer nenhum maluco aqui para Saughend.
Finlay protestou, argumentou. E por fim, muito a contragosto, Lizzie se deixou persuadir.
Deu algumas ordens ásperas. Dois homens acompanharam Finlay e trouxeram Tam até a quinta.
- Aqui! grilou Lizzie, vendo o miserável estado de Tam com evidente desfavor. Tragam-no para cima! E tomem cuidado em não sujar o meu tapete novo.
Tain olhou para a mulher como um garoto de eScola a ouvir um ralho.
- Desculpe, disse ele tiritando. Amanhã volto para o meu bote.
-- Muni, resmungou Lizzie, baixinho. E será um alívio. Por aqui, por aqui! Cuidado com o papel da parede! E, azedamente, a mulher indicava o caminho para um bom quarto, onde um fogo recém-aceso fumaçava e estalava.
Tendo-se convencido a contragosto a fazer uma caridade, decidira, ao que parecia, fazê-la então em grande estilo!
Finlay e os dois trabalhadores da quinta despiram Tain e o puseram na cama. Em seguida, Finlay examinou o doente e por fim desceu à sala onde Lizzie o esperava.
UM ESCÂNDALO MEDONHO
- É um começo de pleurisia, Mrs. Robb, anunciou cordialmente o médico. Afinal não era tão ruim quanto eu pensava. Vai ficar bom, e em poucos dias a senhora estará livre dele. é homem de uma ótima constituição, bem o sabe.
Lizzie fungou sarcasticamente:
enquanto isso, serei obrigada a largar todo o meu trabalho - e só Deus sabe quanto trabalho tenho para cuidar do seu doente!
- Não há de demorar muito, afirmou Finlay, sorrindo. No momento em que Tam se sentir melhor sairá daqui como uma bala. É muito tímido. Pelo gosto dele, por nada no mundo ficaria debaixo das telhas de uma casa.
- com efeito! comentou severamente Lizzie. - E como parecia ter dito tudo o que tinha para dizer, Finlay foi embora. Na tarde seguinte, tornou ele a aparecer em Saughend.
Lizzie foi encontrá-lo à porta:
O senhor e a sua pleurisia! explodiu, indignada. Sabe que o pobre homem estava morrendo de fome? Fazia quatro dias que não punha um triste bocado na boca, e já então estava com a febre. Finlay fez um gesto de desculpa:
Bem, a senhora sabe, é aquele modo de vida que ele leva ...
lizzie o interrompeu com vigor:
- É um escândalo, um homem viver dessa maneira! Eu não tinha a menor ideia disso, nem de longe. E o pobre morando a bem dizer à minha porta! Nunca prestei atenção a ele, senão já teria dado um jeito. A roupa, credo! Queimei-a no mesmo instante em que lhe pus a vista em cima. Aquilo não é roupa de criatura humana e o pobre é uma criatura humana. Por sinal até pessoa muito direita, se não estou enganada.
Interrompeu-se, olhando cautelosamente para Finley. Parecia que ainda iria dizer muito mais, porém dominou-se com esforço e guiou-o até o quarto lá em cima.
A princípio, Finlay nem reconheceu Tam, pois entrando no quarto caíra das nuvens. O doente estava lavado, barbeado e vestido com uma ótima camisola de flanela. Apesar da pleurisia, tinha um aspecto magnífico.
- Como é, Tam? conseguiu Finlay dizer, afinal. Você hoje está com um aspecto muito melhor!
- Estou me sentindo melhor, disse Tam no seu estilo simples. Ela tem cuidado muito de mim. mas acho que amanhã volto para o bote.
- Não volta absolutamente! protestou Lizzie com severidade, lá da porta onde estava. Você ainda está longe de ficar bom, seu maluco, e sabe disso muito bem!
Tam, com efeito, ainda não estava bem, com temperatura quase a 38 graus e ainda um leve clangor ao lado.
Lá em baixo, Finlay disse com displicência:
- A propósito, amanhã não pretendo vir a Marklea, Mrs. Robb, de forma que só aparecerei aqui depois de amanhã.
- Desculpe, disse ela cruzando as mãos severamente à cintura, parece que o senhor está esquecido de que o doente ainda está muito mal. Faça-me o favor, quer vá a Marklea ou não, de passar aqui amanhã sem falta. Até parece que, como o pobre não pode lhe pagar, o senhor vai relaxando. Pois deixe estar que eu lhe pago, e não se fala mais nisso.
COMO SE FAZ UM LAVRADOR
No dia seguinte Finlay apareceu.
Tam, com a grande tigela de caldo de carne ao alcance da mão, estava em vias de restabelecimento.
- Ela é muito boa, o senhor sabe, doutor, disse ele mansamente, mas acho melhor eu voltar para o barco amanhã.
Lizzie Robb não se dignou responder. Porém mais tarde na sala, falou firmemente a Finlay:
- Ele não pode voltar para aquele bote miserável antes de ficar completamente bom. Não está dando o menor incómodo. É um sujeito bom e decente e a voz de Lizzie tornou-se quasi sonhadora, - é mesmo um homem notável, incapaz de falar uma palavra contra alguém. Diz certas coisas de tanto sizo que o senhor não acreditaria. Sabe, doutor, que ele não fuma e nem conhece que gosto tem bebida? E pensar que durante todos esses anos tem vivido ali sozinho!
Uma onda de indignação pareceu subir-lhe à garganta. Mas logo ela continuou:
- E de presença - bem, não sei de duque nenhum que se lhe compare: é um homem bonito, bem feito, bem aprumado, como nunca vi outro.
Nesse ponto, vendo pregado em si o olhar oe Finlay, ela corou de súbito e, consciente daquele rubor, apertou os lábios com austeridade:
- Pode vir amanhã, doutor, disse com cerimónia, e o acompanhou à porta.
E assim Finlay apareceu na quinta, na manhã seguinte e no dia imediato, e no outro.
E toda vez em que ele chegava, ouvia novos elogios a Tam:
- O senhor sabe, doutor...
O tempo endireitou, a neve derreteu-se, o verde da relva tornou a aparecer. Um dia, quando Finlay chegou, encontrou Tam de pé, vestido num bom terno de lã e com aparência sólida, sensata, sadia.
- Muito bom esse seu terno, Tam, observou Finlay.
- Não é mau, respondeu Tam com o seu sorriso meigo e encabulado. Pertenceu a Mr. Rohb. o finado Mr. Robb. - E alisou as lapelas, satisfeito. -? Fica-me muito bem.
-- Já não é tempo - disse de repente Pinlay, examinando Tam metido no seu belo terno novo, com boa roupa branca, fortes botinas e um ar de grande prosperidade, - não é tempo de você voltar para a sua barca?
Tam olhou-o vago, distraído.
- Não tenho pensado muito na barca ultimamente, murmurou ele. Aqui na quinta é muito bom.
Nesse momento Lizzie irrompeu pelo quarto com ar muito satisfeito, uma cara de felicidade que não mostrava há meses. Olhou com admiração para Tam:
- Não está com bom aspecto? observou ela, com um ar de proprietária. Prometeu que ia dar um passeio comigo hoje à tarde. Quero saber a opinião dele a respeito do campo baixo de Saughend. Tenho a impressão de que ele dará bom lavrador se se resolver a isso.
E Lizie soltou uma risadinha feliz. -? Volta amanhã ainda, doutor?
- Não, respondeu gravemente Finlay, não tenho mais nada a fazer aqui, não preciso voltar.
Mas voltou, um mês depois. Foi o padrinho do casamento.
A POÇÃO PARA A TOSSE DE VOVÓ TODD
UMA PROPOSTA INÉDITA
Numa tarde folgada, estava Fiulay sentado no consultório passando a vista no "Advertiser", quando Dougal Todd, o pintor de tabuletas, o veio procurar.
- Bonita noite, começou ele, no seu estilo melancólico e beato. Espero não o estar incomodando. Na verdade passei aqui para dizer uma palavrinha ao senhor a respeito da velha minha mãe, coitadinha.
Abanou a cabeça e suspirou era um sujeito magro, alto, curvo, de maus dentes, cabelo cor de areia, espalhado sobre a cabeça calva e um nariz comprido e vermelho que sempre estava a pingar.
- O senhor compreende, disse ele com os olhinhos de viés, - a velha é fraquinha e já muito idosa; talvez não acredite, mas já inteirou os oitenta. E carece naturalmente de ver um doutor de vez em quando. Nem eu lhe negaria isso. Quero muito bem à minha velha. E além do mais, ela me ajuda, uma vez por outra, o que torna o meu auxílio ainda mais obrigatório. Pois doutor - e a voz do homem tornou-se propiciatória, confidencial -, já que minha mãe é uma velhinha doente eu não sou nada sadio, andei pensando, me lembrando de que o senhor é apenas um assistente aqui, e pensei se o senhor não poderia ir vê-la por metade do preço.
Finlay fitou a cara doentia do pintor, inteiramente atónito ante a proposta.
- vou pensar nisso, respondeu por fim, resolvendo apresentar o caso a Cameron, mais tarde.
- Isso mesmo, concordou Todd. Pense, doutor, será uma caridade com a velhinha, compreende?
Ainda se demorou um minuto, com ar hesitante e solícito, e por fim novamente declarando que a tarde estava bonita, mostrou os dentes num sorriso e desapareceu.
UM MISTÉRIO
Nessa noite, durante a ceia, Cameron disse com ênfase:
- Não faça isso! De modo nenhum! Se a velha vier procurá-lo espontaneamente, por causa do reumatismo ou de uma bronquite, é diferente. Não lhe cobre um vintém. Faça a consulta e dê-lhe grátis o remédio de que precisar. Ela há de lhe querer pagar com os poucos cobres que tiver na bolsa. É a velha mais decente e honesta que eu conheço. Mas se Dougal está de olho nela para o ajudar, dobre o preço da receita porque ele é o maior avarento, o pão-duro mais desgraçado que vive em Levenford.
Os Todds moravam em High Street "nos altos" entre a "Mungo Clothing Company". que se apossara da velha loja de Brodie, e a barbearia de Leckie.
Todd era mesquinho demais para abrir uma loja sua. Tinha o seu "arranjo", segundo dizia, um galpão de folha de zinco, atulhado de amostras e cavaletes no quintal atrás.
Talvez a avareza de Todd fosse contagiosa, porque Jessie, sua esposa, um mulherão alto e gordo, de olhar agudo, era conhecida por segura, ô igualmente Jessica, sua filha, jamais fora vista jogando fora uma bala. Quando a descobriam mastigando no recreio da escola e uma colega lhe pedia uma dentada do doce, a resposta invariável da pequena Jessica, de faces coradas, era esta:
- Oh, que pena! acabei de por na boca o último pedaço.
Disso se formou um ditado em Levenford: "Nunca peça nunca uma coisa aos Todds, que eles acabaram de botá-la na boca".
Não se nega que eram gente de bem; oh, sim, davam-se ao respeito, trabalhavam de rijo, temiam a Deus.
Durante seis dias na semana, sem uma folga, Dougal era visto no seu casaco branco, sujo, com um pincel e uma escada; no sétimo dia trajava-se decentemente de preto e escoltava a mulher e a filha até à igreja.
Morava na casa do filho, a velha Mrs. Todd, muIherzinha silenciosa e tímida, de cara enrugada e um jeitinho, uma fala pipilante de pardal.
Como é que aquela criatura modesta e bondosa pusera no mundo um filho como Dougal, era um mistério para Levenford. Durante toda a vida trabalhara ela de rijo e fizera o que podia pelo filho. Mas agora estava velha e, conforme melancolicamente observava Dougal, pouco podia fazer.
A velha ocupava um pequeno quarto do sótão, onde guardava os seus tesouros, - um frasco de xarope contra tosse, para lhe aliviar o peito e algumas pastilhas de hortelã numa latinha redonda.
Suas refeições, por permissão especial, eram tomadas lá em baixo com a família, exceto quando havia visitas; mas a maioria do tempo da velha era passado numa poltrona quebrada lá no sótão, junto a umas brasas miseráveis que ela milagrosamente conseguia manter acesas.
Em raras ocasiões, quando o tempo aquecia, realizava a velha a façanha de sair.
Dougal não encorajava essas pequenas excursões.
- Ora, ora, minha mãe, lembre-se da sua idade. A senhora devia estar pensando no descanso eterno e não em andar passeando pela cidade.
Mas falava com delicadeza. Dougal jamais falava com a velha sem ser com delicadeza.
Mas a verdade é que ele a vigiava com olho aflito mal a via tirar um segundo brioche, na hora do chá:
- Minha mãe! A senhora não devia comer Umlo na idade em que está.
E ficava inquieto por vê-la subir penosamente a escada com a minúscula cestinha de carvão, com o qual alimentava o fogo; ficava assim, contudo, não por causa da subida penosa - ai, não! mas por causa do carvão.
GARRAFADA PARA TOSSE
A despeito da sua parcimonia, Dougal não era rico - nos negócios a mesquinharia antes o atrapalhava contudo era rico em esperanças.
Assegurara a vida da mãe por bom dinheiro, e quando a velha morresse, o cobre seria de Dougal. O único mal é que, com grande sossego, a velha se recusava a morrer.
A despeito dos mais animadores estímulos: - Minha mãe, a senhora hoje não está com boa cara. ?- Ou:
- Minha mãe, a senhora não quer ir para a cama e deixar que eu chame o ministro? - a velha Mrs. Tocfd continuava brandamente a consumir alimentos, chá, carvão, como se pretendesse chegar a centenária.
Até tarde da noite Dougal e a mulher ficavam sentados, pensando na comida, no chá, no carvão, nos pesados pagamentos do seguro de vida que aumentavam de semana em semana; não diziam palavra, mas ambos devaneavam com as mais sedutoras moléstias, desde pneumonia até apoplexia, que poderiam carregar com a velha e não o faziam.
Cerca de seis semanas depois de Dougal ter ido ao consultório de Hyslop, a velha Mrs. Todd lá apareceu em pessoa. Era um dos seus passeios - que ela tanto apreciava e tão raramente gozava - uma "voltinha pela cidade".
Comprara alguma linha de que carecia na loja de Jennie MKechnie (modas e armarinhos) e divertira-se com o longo bate-papo, a regatear com Jennie.
No balcão de Low, a velha comprara um penny de balas, de aroma menos delicado que o da hortelã, mas infinitamente mais duradouras. E agora, cansada porém triunfante, foi procurar Hyslop em Arden House, no seu caminho de volta para o sótão.
- Ouvi falar tanto no senhor, que o vim procurar. Quer me dar um pouquinho de poção contra tosse, por causa da minha garganta? Fico com o fôlego muito ruim durante a noite.
Ela o fitava com os seus olhos escuros de pardal, velhinha, animosa o comovente, enrugada talvez como uma maçã guardada, mas sã até ao âmago.
Finlay simpatizou com ela imediatamente:
- Claro que lhe dou a poção, e bem forte. Ergueu-se, lembrando-se da observação de Cameron a respeito de dinheiro, e acrescentou:
Aliás não precisa a senhora procurar o farmacêutico: eu mesmo lhe preparo o remédio aqui.
- Quero uma coisa que me esquente o peito, doutor, sugeriu ela, saindo da sua timidez.
- Isto mesmo! concordou ele, cordialmente. - E deu-lhe o que tinha de melhor, uma forte concocção de clorodina, que, segundo afirmou à velha, serviria até para a rainha tomar. - E a dose são duas colheres de chá à noite, avisou ao lamber o rotulo.
- Que é que o senhor disse, doutor? indagou ela,
- explicando depois com cómica simplicidade: Fiquei surda depois que quebrei meus óculos.
Finlay soltou uma gargalhada, tão contagiosa, que logo a velha Mrs. Todd o acompanhou.
- O senhor é muito alegre, doutor, disse-lhe ela num cumprimento jovial quando Finlay a levou à porta. Ótimo! gosto de encontrar um doutor assim alegre.
VELHOS OSSOS PREGUIÇOSOS!
Na manhã seguinte, que era sábado, sentaram-se os Todd à mesa do café na cozinha.
O mingau de aveia foi tomado em silêncio, por Dougal, a mulher e Jessica. A velha Mrs. Todd não apareceu.
Depois da aveia foi servido o chá, e o ovo de Dougal, fechado numa xícara, foi trazido do fogão.
E então, com um olhar azedo para o relógio de pêndulo, Jessie observou para o marido:
- Sua mãe não pode descer em tempo para o pequeno almoço; já tenho aguentado muito, e há muito tempo. Mas agora esta por demais. Na certa o que ela quer é me ver correndo com bandejas lá para cima.
- Acho que ela nem saiu da cama hoje, acudiu Jessica tomando a deixa da mãe. Ossos velhos preguiçosos.
Dougal enfiou uma colher cheia de ovo por sob os seus lúgubres bigodes.
- É um desperdício de gás, resmungou ele com o olho no medidor, - guardar comida quente para ela.
- Escute, meu bem, disse Jessie à filha, num acesso de irritação. Dê um pulo lá em cima e ponha a velha fora da cama já e já.
Jessica deslizou da cadeira e, segurando o pão com geleia, subiu a escada aos saltos.
Silencio - silencio tanto em baixo quanto em cima. Depois um grito súbito, uma fuga assustada, e Jessica apareceu na cozinha.
- Ai, mamãe! berrou a pequena. Vovó morreu! Dougal engasgou-se, e cuspiu 110 pires o gole de
chá que tinha na boca; Jessie ficou erecta na cadeira.
- Morreu, filhinha? murmurou ela meigamente. Disse você...
- Sim, choramingou Jessica com a sabedoria que transcendia da sua idade. Foi mesmo o que eu disse. Está dura na cama, feito um pau.
Uma longa exalação, quê talvez fosse um suspiro, saiu lentamente do peito de Jessie. No mesmo momento Dougal empurrou a cadeira para trás.
- Vamos! - E fez um gesto dominador para a mulher.
Subiram as escadas às pressas. Irromperam pelo sótão. Mas de repente pararam.
A velha jazia de costas, a boca aberta, a cara chupada. Os olhos grudados, as narinas afiladas.
- Minha mãe! exclamou Dougal levantando-lhe a mão. A mão porém lhe escapou por entre os dedos, e caiu rigidamente na cama.
O FILHO ÓRFÃO
Houve uma pausa pesada de silêncio enquanto Dougal e a mulher olhavam a rígida figura estirada no leito. Afinal, por cima do ombro do marido. Jessie sussurrou respeitosamente:
- Foi o fim, Dougal! Para ela já está tudo acabado. - E, apanhando a ponta do lençol, cobriu com solenidade a face pálida da sogra.
Dougal olhou para a mulher, fungou e gemeu:
- Oh, meu Deus, meu Deus! Minha mãezinha está morta!
- Foi para os pés do Criador, Dougal, disse Jessie revirando os olhos para o céu. A gente não deve discutir a vontade de Deus.
Segurando o marido pelo braço, levou-o delicadamente para baixo. Chegando à cozinha, Dougal atirou-se numa cadeira e gemeu:
- Coitado de mim! Minha pobre mãe morreu afinal!
-- Você não tem nada de.que se acusar, Dougal, disse Jessie com firmeza. Foi para ela um bom filho, e eu também fiz por minha sogra o que pude. Era uma velhinha santa, mas cedo ou tarde tinha que ir embora. E teve um fim tão calmo. Quer tomar um gole para se acalmar?
Dougal tornou a gemer e abanou a cabeça. Mas aquilo não eram horas de economias. Jessie foi apanhar a garrafa no armário da sala e, com mostras (Te repugnância, Dougal bebeu uns bons quatro dedos.
- Agora está melhor, disse Jessie. Procure se acalmar, homem. Tem muita coisa que fazer. Precisa obter do doutor o atestado de óbito, falar com o sujeito da empresa funerária e o do seguro...
Dougal levantou a cabeça:
- É mesmo... O seguro. - E soltou um suspiro fundo. - Então o melhor é ir logo tratar disso, embora seja uma tarefa triste, tristíssima.
Foi primeiro procurar o médico, a cuja porta o recebeu Janet.
- Janet! Quero falar com o doutor! gaguejou Dougal, pois o whisky lhe intensificara a magua.
- A pobre da minha velhinha... finou-se enquanto dormia.
- Coitadinha!- exclamou involuntariamente Janet. Depois, examinando-o severamente: - Você não pode falar com o doutor agora. Saíram os dois. Mas darei o recado para o Dr. Hyslop ir lá quando chegar de Marklea. - E bateu-lhe com a porta na cara.
"Que falta de piedade, pensou Dougal. Ó senhor, senhor, que mulher sem compaixão! Pobre da rninha velhinha! Estou chorando feito uma criança".
De caminho para a empresa funerária, deteve os conhecidos na rua, afim de lhes contar, chorando, o golpe que sofrera.
Chegando à loja de Gibson, o agente funerário, encomendou o caixão, um ótimo caixão, excelente em relação ao preço, e nada caro.
Sam Gibson era um bom rapaz, amável, e prometeu-lhe um desconto de cinco por cento se pagasse à vista. E combinou mandar preparar a velha à tarde.
UM BOCADO DE DINHEIRO
Já era hora do jantar quando Dougal chegou em casa. Jessie se esforçara na cozinha. Fizera um bom bife e uma torta de rim. Via-se ainda na mesa um bom prato de creme. O whisky também estava lá.
Jessie exclamou sensatamente:
- Numa hora destas a gente precisa comer direito. com o choque, e uma coisa e outra...
Sentaram-se à mesa.
- Não sinto apetite, - protestou Dougal ao receber o prato, e logo enfiou um pedaço tenro do bife por sob o bigode, - mas acho que a gente não deve perder as forças.
E Jessie falou:
- Pensando nisso, atualmente?
a quanto monta o seguro,
- Aí por umas quinhentas libras, respondeu solenemente Dougal, enfiando o garfo numa batata apetitosa.
- Senhor, oh, senhor. É um bocado de dinheiro!
- Sim, é um bocado de dinheiro.
Tocou a campainha da porta. Era o doutor Hyslop que viera imediatamente após seu regresso de Marklea, admirado, um pouco abalado mesmo, ao saber que a velha morrera quase que imediatamente após a consulta.
Jessie o foi encontrar na entrada.
- Se o senhor não se incomoda eu não o acompanho, doutor. O choque nos abalou muito. Só a ideia de entrar no quarto da pobrezinha me deixa doente. É a porta à esquerda do patamar.
A POÇÃO DE CLORODINA
Finlay subiu sozinho até o quarto. Levantou o estore. E na mesa junto à janela, a primeira coisa que viu foi a poção de clorodina. Olhou fixo o frasco: um terço do conteúdo já fora embora. Rapidamente dirigiu-se à cama, e levantou a pálpebra da velha. Pupilas de ponta de alfinete. Tomou-lhe o pulso, e então um leve sorriso lhe iluminou o rosto. Tirou do bolso um frasco de amoníaco e pô-lo sob o nariz da velha. Durante um momento, nada aconteceu. Depois, com grande entusiasmo, a defunta espirrou. Abriu sonolenta os olhos, olhou para o médico e bocejou enquanto ele a sacudia.
- Doutor, doutor, o que é que o senhor está fazendo? Oh, mas dormi que foi uma beleza!
Debruçando-se sobre ela, Finlay lhe berrou ao ouvido:
- Quanto é que a senhora tomou do remédio?
- Duas colheradas de sopa, conforme o senhor disse.
- Não admira que dormisse, gritou ele. Mas agora acho que já está na hora de se levantar.
Arrolhou a clorodina, enfiou-a no bolso, e desceu a escada.
- Quer tomar qualquer coisa, doutor? perguntou da cozinha o choroso Dougal.
- Acho que sim, disse alegremente Finlay, embora seja essa a primeira vez em que oiço você oferecer um gole a alguém.
UM GRANDE JANTAR
O órfão abanou pateticamente a cabeça:
- É a ocasião, doutor. Pobre da minha mãezinha! Estou com o coração partido por perdê-la!
- Estamos todos sentidíssimos, ecoou piedosamente Jessie.
- Bem, à saúde, Dougal! disse Finlay.
- À sua boa saúde, doutor, respondeu tristemente Dougal. Queremos que o senhor assine o atestado. Eu tinha inscrito a pobrezinha em quatro sociedades!
Nisso ouviu-se um barulho lá em cima, e em seguida uma porta bater.
- Deus me acuda! exclamou Jessie empalidecendo. Que será?
- ótimo whisky este, Dougal, disse Finlay ainda mais cordial.
Ouviu-se o som de passos que desciam as escadas.
- Estão ouvindo? bradou de novo Jessie. Alguém está descendo a escada.
A porta abriu-se, e a velha Mrs. Todd entrou na cozinha. Jessie soltou um grito agudo.
Jesus da minha alma! exclamou Dougal derramando o bom whisky no peito da camisa.
Siderados, viram a velha puxar a cadeira para a mesa e servir-se da torta. Primeiro ela bocejou, em seguida deu uma risadinha abafada, correu os olhos pela torta, o creme e o whisky, e exclamou:
- Grande jantar o de hoje! e eu que estou quase morrendo de fome!
Pôs-se a comer, com bom apetite raro.
Finlay então partiu.
PANTOMIMA
UM ACONTECIMENTO POUCO COMUM
De modo geral, Levenford assiste a poucos teatros.
A feira anual e o seu parque de diversões eram em geral acompanhados por espetáculos em barracas onde, numa atmosfera de fumaça de querozene e de cascas de laranjas, podia a gente, por dois pence, assistir a "A Moça Transviada" ou ao "Crime no Galpão Vermelho".
Noutro extremo havia a sociedade musical "Mechanics Concerts": lá, nas noites de terça-feira, um grupo de senhoras e cavalheiros reunidos proporcionava a uma audiência igualmente refinada um programa de canto e leitura.
"O senhor Archibald Small nos deliciará agora..."
E Mr. Archibald Small adiantava-se, corando, com botinas rinchadoras e uma casaca alugada e cantava: Thora, fala-me outra vez".
Entre esses dois extremos, Levenford carecia de qualquer recreação teatral, para gáudio dos puritanos.
Imagine-se portanto a comoção quando foi anunciado que no mês de dezembro uma troupe de pantomima viria ocupar o Burgh Hall.
"Pantomima"! Destinava-se às crianças, naturalmente. Contudo, despertava uma emoção inquieta até nos mais austeros corações, e virou inteiramente a cabeça da juventude enamorada do burgo.
Até mesmo Doggy Lindsay, o filho do preboste, permitiu que fosse conhecido o seu interesse pela "Pantomima" - interesse superior, naturalmente; um interesse aliás sofisticado, porque Doggy era um "raro" chefe de uma pequena "coterie de raros" que ditava as modas de roupas e maneiras na cidade.
Era Doggy um moço de cara pastosa, com tendência para espinhas, uma risada alta e vazia e uns modos extremamente cordiais, representados, por exemplo, pela mania de dar palmadas nas costas dos amigos e chamá-los jactanciosamente de "meu velho".
"Viva a boa pinga, meu velho!" era essa com efeito a usual saudação de Doggy, quando o nosso herói se postava com ar de conhecedor à porta do "Elephant Castle".
Usava camisas vistosas, botões de punho refulgentes, e durante a "saison" um ousado sobretudo de bolsos altos e uma gola que invariavelmente subia até as orelhas cabanas de Doggy.
Gostava ele de exibir cachimbos de canos terrivelmente curvos. E uma pesada bengala. Gozava da reputação de ter conhecimentos enciclopédicos a respeito de mulheres. E durante certo tempo criara um bull-dog.
UM BOBALHÃO
Chegou a troupe - uma companhia vinda de Mancheeter, que viajara por todas aquelas selvagens regiões do norte na esperança de vir a sej: a "Borralheira" daqueles nativos.
Mas os nativos mostraram-se menos fáceis de levar do que parecia antes.
Em Paisley não foram buques, mas tomates, o que o publico atirou à "Troupe Ambulante de Samuel", e em Greenoch houvera um diluvio de ovos podres. E assim, quando Levenford foi alcançado, o moral dos artistas se mostrava oscilante.
O cómico andava com ar meio amarrotado; o coro aos sobressaltos; e Mr. Samuel secretamente meditava um negócio urgentíssimo que de repente o chamasse a Manchester.
Dois dias depois da estreia no Burgh Hall, Finlay encontrou Lindsay em High Street.
- Alo, meu velho! bradou Doggy.
Ele cultivava a amizade de Finlay por ser este um iniciado nos mistérios ocultos do corpo. Doggy era um espírito simples, cuja libido se exprimia pelo desejo de possuir um livro ilustrado de anatomia.
- Então, velho, viu os cómicos?
- Não, respondeu Finlay, - são bons?
- Bons! - Doggy atirou a cabeça para trás e estourou numa gargalhada. - Deus meu, é horrível aquilo! Medonho, péssimo, pavoroso! Mas apesar disso tudo, velho, vale a pena ver.
Ainda gargalhava, quando tomou o braço de Finlay e perguntou:
- Você viu quem é Dandini? (1)
- Não, não! Já lhe disse que não cheguei nem perto do Hall.
- Pois deve ver a Dandini, Finlay, protestou Doggy com os olhos cheios dagua. Juro por Deus que precisa ver a Dandini. vou lhe dizer como ela é, Finley!
(1) Personagem de pantomima, talvez corrupeta italianizada da figura de "Dandini" de Molière. (N. T.)
Um cavalo velho de. carro, vestido de calções. Sabe o que quero dizer; escapou por um triz do empalhador. Cinquenta anos no mínimo, quando dança parece uma tonelada de tijolos, a voz não se poderia ouvir nem debaixo de uma tigela, - oh, Deus que me perdoe, mas só de pensar nela tenho quase um ataque histérico.
E interrompeu-se, em convulsões de riso. Dominando-se em seguida, enxugou os olhos e declarou:
- Palavra, você precisa ir lá. É uma coisa que não se deve perder. Eu fico na primeira fila desde a noite da estreia. Vamos juntos esta noite. Peter Weir também irá, e Jackson do "Advertiser".
Finlay olhou indeciso para Doggy; às vezes gostava um bocado dele, e outras vezes quase o odiava. Já estava com a recusa ao convite na ponta da língua, mas uma espécie de vago interesse, que se poderá talvez chamar de curiosidade, fê-lo ceder. E falou com certa rispidez:
- Talvez apareça lá, se tiver tempo. De qualquer modo reserve uma cadeira para mim. - Então, recusando a efusiva oferta de Doggy para tomar um conhaque, foi embora cuidar da sua clientela.
Nessa noite Finlay "apareceu por lá" depois de haver consultado Cameron acerca das conveniências do ato. Cameron olhou-o divertido e concordou.
- Vá, se quiser, eu fico o resto do tempo no consultório. Não fará mal nenhum se você evitar que esse moço Lindsay cometa alguma tolice. Aquilo é um bobalhão, mas sou capaz de jurar que tem em si alguma coisa de bom.
OLHOS TRÁGICOS
Mal começara a pantomima quando Finlay se enfiou na sua cadeira; mas já a audiência, composta na maioria de jovens aprendizes do estaleiro, estava dando assobios.
Era realmente um espetáculo paupérrimo que a nervosidade dos atores tornava atroz. E havia, é claro, Dandini.
Dandini o espelho da moda, eco da corte, brilhante satélite do Príncipe!
Finlay olhou para o seu programa: Letty lê Brun, chamava-se a intérprete de Dandini. Que nome! E que mulher!
Era alta, magra, com o corpo devastado, o peito fundo, cara magra de fantasma, uma grande porção de rouge espalhado pelas faces e visível recheio nos calções.
Andava sem graça, dançava numa espécie de letargia. Não cantava propriamente uma única canção; quando o coro entoava os estribilhos, ela mal movia os lábios, - Finlay seria capaz de jurar que ela não cantava absolutamente. Mas os olhos da mulher o fascinaram, grandes olhos azuis que outrora deveriam ter sido bonitos mas que agora eram cheios de miséria e desespero. Cada vez que ela era obrigada a rir - e isso acontecia com frequência - os olhos trágicos estremeciam na face estóica e imóvel.
A coisa piorou à medida que o espetáculo foi continuando: assobios, miados de gato, e por fim apupos. Doggy estava em êxtase, apertando o braço de Finlay, quase morrendo de rir na cadeira.
Ela não é uma coisa louca? Não é um assombro?
A coisa mais engraçada desde os tempos de vovó?
Falava como se se tratasse de uma nova estrela e fosse ele o empresário que a houvesse descoberto.
Mas Finlay nem sequer sorria. Lá no seu íntimo, qualquer coisa se nauseava ante aquele espetáculo do rebaixamento de uma alma. Por fim, a meio de um furacão de aplausos zombeteiros, o pano caiu. Finlay quase deu um grito de alívio. Mas Doggy ainda não dera a festa por acabada.
- Agora vamos para os bastidores, informou ele com um piscar de olho.
Qualquer coisa mais subtil, uma sátira mais refinada lhes fora reservada em continuação ao grosseiro espetáculo da fuzilaria de ovos.
NOS BASTIDORES
Finlay quis protestar, mas já estavam a caminho, Doggy, Jackson e Weir. Seguiu-os portanto ao longo dos corredores cheios de correntes de ar do Burgh Hall, subiram um pequeno lance de degraus que estalavam, e chegaram ao camarim de Letty lê Brun.
Era ali o vestiário do Burgh Hall vagamente subdividido com papel de parede rasgado. A maioria dos elementos da companhia já partira, satisfeitos por poderem escapulir para os seus quartos de pensão, assim que se viam livres do espetáculo.
Letty porém ainda estava lá, sentada junto a uma mesa sobrecarregada, abotoando lentamente o vestido. O exame mais próximo revelava quão devastado pelo tempo tinha ela o rosto. Tirara a pintura oleosa, mas dois pontos vermelhos ainda lhe manchavam a face e sombras escuras lhe rodeavam os grandes olhos azuis. A mulher examinou mudamente os rapazes.
- Então, moços, disse ela por fim, e não sem uma certa dignidade - o que desejam?
Doggy deu um passo à frente, com uma exagerada simulação de galanteria - oh, aquele Doggy Lindsay era mesmo um sujeito cínico!
- Miss lê Brun, disse ele com ligeiro sorriso, ficamos iinpressionadissimos com o seu trabalho desta noite; viemos cumprimentá-la e perguntar-lhe se nos dará a honra de cear conosco.
Silêncio, enquanto o jovem Weir, por Irás, lutava contra frouxos de riso.
- Esta noite não posso, rapazes. Estou muito fatigada.
- Oh, Miss lê Brun, insistiu Doggy - apenas uma ceiazinha! É impossível que uma atriz da experiência da senhora esteja cansada assim.
Ela os encarou a todos com o seu olhar triste e quase tranquilo.
"Sabe muito bem que eles a estão levando na troça, pensou Fiiilay com um aperto no coração. E recebe as zombarias feito uma rainha".
- Poderei ir amanhã, se vocês insistirem no convite.
Doggy ficou radiante:
- Formidável! Formidável! - E indicou a hora e o local da ceia.
E então, cortando o silêncio que se seguiu com seu brilho habitual, estendeu à mulher a sua cigarreira de ouro.
Ela porém abanou a cabeça:
- Não, não, obrigada. - Sorriu de leve. - Sofro um pigarro de fumante.
Seguiu-se outra pausa embaraçosa. A coisa não estava ficando tão engraçada quanto eles haviam esperado. Mas Doggy não perdeu o aprumo:
- Bem. Miss lê Brun, talvez o melhor seja nós lhe dizermos "au revoir". Esperamo-la amanhã à noite. E receba novamente os nossos cumprimentos pelo seu maravilhoso trabalho.
Letty novamente sorriu em silêncio, enquanto os rapazes saíam.
SEIS MESES DE VIDA
Na manhã seguinte, por cima da mesa do almoço, Cameron atirou a Finlay um bilhete que acabava de chegar, e disse secamente:
- Olhe aí! E melhor atender você a este chamado, uma vez que se interessa tanto por teatro.
O bilhete pedia que o médico fosse visitar Letty lê Brun na pensão.
E assim, antes de meio-dia, Finlay foi bater em Church Street, numero sete.
Fora cedo, impelido por uma estranha curiosidade o uma estranha vergonha. E algo dessa emoção deveria lhe aparecer no rosto quando entrou no quarto, pois Letty lhe sorriu quase como se o quisesse tranquilizar.
- Não se amofine, disse ela um pouco despida da sua habitual impassibilidade. Eu queria que o senhor viesse. Compreendi-o quando vocês saíram: o senhor era o único que não estava querendo rir à minha custa.
Letty estava na cama, rodeada por alguns objetos evidentemente de sua propriedade - uma fotografia numa moldura de prata amassada, uma garrafa de cristal com água Florida, um pequeno relógio de viagem francês, já muito estragado, mas que fora outrora uma boa peça. Reinava no quarto, com efeito, um ar de curioso refinamento, que só poderia partir dela própria. Finlay apercebeu-se profundamente daquilo, e na sua voz havia um constrangimento singular quando lhe perguntou o que sentia. Ela o mandou sentar com um gesto, e ficou um momento atirada sobre o travesseiro, antes de responder.
- Quero que me diga quanto tempo ainda tenho de vida.
Valia a pena ver o rosto de Finlay; e talvez esse espetáculo divertisse a mulher, pois ela sorriu de leve antes de continuar:
- Estou com tísica, - desculpe, acho que o senhor prefere que eu diga tuberculose. Queria que me auscultasse o pulmão e me dissesse quanto tempo ainda posso aguentar.
Finlay teve vontade de praguejar contra si próprio e a sua estupidez.
Fora cego. Todos os sintomas estavam ali, o rubor doentio, a emaciação, a respiração curta - tudo.
Estava explicado o mistério daquela estranha, patética fadiga na representação da noite anterior. Erguendo-se às pressas, Finlay, sem uma palavra, tomou o estetoscópio.
Levou bastante tempo auscultando-lhe o peito embora houvesse pouca necessidade dessa demora no exame, tão evidentes eram as lesões.
O pulmão direito já se fora todo e o esquerdo estava tomado por ativos focos o"a moléstia.
Ao terminar, Finlay guardou silêncio.
- Vamos, animou-o Letty. Não tenha medo de me dizer.
Por fim, com grande confusão, ele declarou: -? Talvez ainda lhe restem uns seis meses.
- Bondade sua, disse ela, estudando-lhe o rosto. O que o senhor na verdade quer dizer são seis semanas.
Finlay não respondeu. Uma grande onda de piedade o possuía.
Olhou a mulher, tentando reconstituir-lhe o rosto devastado. Não era na verdade velha; a doença e não a idade é que a havia envelhecido.
Seus olhos eram extraordinariamente bonitos. Devera ter sido antigamente uma linda mulher, e evidentemente uma mulher de bom gosto. E agora reduzida a trabalhar em uma troupe grotesca de decima ordem, vitima das graçolas de todos os rústicos de provincial.
A CEIA
Mau grado seu, formulou o que estava pensando em palavras desajeitadas.
- Não se preocupe com a tal ceia desta noite. Evidentemente não está em condições de comparecer.
- Oh, mas quero ir! Faz muito tempo que não recebo um convite para cear. E acho que ainda demorarei mais a receber outro.
- A senhora não vê...
- Vejo, sim. Mas deixá-los gozar da brincadeira, se o desejam. Não é isto a vida - uma brincadeira? - ela ficou a olhar pela janela. Depois, como se recuperasse os sentidos, tirou a bolsa de sob o travesseiro e perguntou-lhe quanto custara a consulta. Fii- lay corou violentamente. A pobreza da atriz era tão evidente! Contudo, apesar da sua rudeza, havia bastante tacto naquele rapaz.
Teve que respirar com força, para dizer o preço
- não era alto e o recebeu em silêncio.
Quando ele saía, ela disse:
- Espero vê-lo hoje à noite.
Durante o dia inteiro Finlay não a pôde tirar da lembrança. Apanhou-se a desejar que chegasse a noite. Queria revê-la, ajudá-la se pudesse, resolver o desorientador problema que ela representava. Mas num outro sentido, também receava a chegada da noite. Temia vê-la magoada pelas intoleráveis ridicularias de Doggy.
Onze horas da noite chegaram afinal, - a hora marcada para a ceia. O local escolhido era um pequeno restaurante de Church Street, recém-aberto por um homem chamado William Scott, lugar bastante decente, frequentado principalmente por viajantes comerciais, e que, graças talvez a um certo refinamento em toalhas e cristais, fora apelidado "grã-fino" pelos habitantes de Levenforo". Claro que o "grã-fino" fechava muito antes das onze, mas Doggy, que conhecia tudo e todo mundo, convencera Scott a lhe servir uma boa ceia, diante de um ótimo fogo, na sala pequena do restaurante. A tal sala era aliás uma peça muito agradável, com tapete e piano que, nos dias de dança, era empurrado para a sala grande, mas que nos outros dias permanecia ao canto da saleta, junto às cortinas de pelúcia vermelha.
GLÓRIAS PASSADAS
Finlay chegou cedo mas não muito antes dos outros. Doggy irrompeu pela sala com ares importantes como se escoltasse uma pessoa de sangue real.
- Dandini! exclamou ele num floreio vocal. Cá está Dandini!
Jackson e Weir provavelmente tinham sido ensaiados por Doggy, porque abriram lugar a Letty com exagerada deferência quando ela se aproximou do fogo.
Letty trajava com grande simplicidade um vestido azul marinho e, talvez porque descansara a tarde inteira, parecia melhor, com o rosto menos devastado.
Sentaram-se imediatamente à mesa da ceia; esta se compunha de uma excelente sopa de tomate seguida por um frango frio e uma ótima língua com geleia. E então Doggy, com ar de conhecedor, estourou a rolha de uma garrafa de champanha, enchendo, magnificente, a taça de Letty.
- A senhora naturalmente toma champanha, não? indagou ele piscando o olho a Weir.
Letty devera ter visto a piscadela, mas fingiu ignorá-lo. E respondeu simplesmente:
- Eu costumava tomar Vetwe Cliquol. Mas já não o provo há muito tempo.
- Ora vamos, Miss lê Brun, observou Doggy. Não acredito nisso. Vocês, estrelas de pantomima, devem se tratar muito bem, creio eu.
Com grande serenidade ela respondeu:
- Não. Nessas tournées comemos horrivelmente mal. Já faz uma semana que não tomo uma refeição que preste. Eis por que estou apreciando tanto esta ceia. - Bebeu um gole da champanha. - É muito bom.
- Ah, Miss lê Brun! Bem se vê que a senhora é uma "connaisseuse", zombou Doggy. Deve ter comparecido a muitas ceias. Vamos lá, fale-nos de todas as ceias de meia-noite que lhe foram oferecidas!
Letty olhou sonhadoramente para o fogo e estendeu a mão, como se quisesse apanhar um pouco do seu calor.
- Sim, fui muitas vezes convidada para ceiar. No "RomanoV, varias vezes, no "Gattis", também, e no "Café Royal".
Doggy sorriu. A coisa afinal estava ficando boa. Ela mordia a isca. Dentro de um minuto tê-la-ia fazendo discurso. Encheu-lhe novamente a taça.
- Isso quando a senhora trabalhava em Londres?
- Sim... Em Londres.
- Naturalmente a senhora trabalhou - bem, em troupes maiores do que esta, não, Miss lê Brun? Uma artista do seu género... - Finlay rilhava os dentes, vendo a estupidez de Doggy, mas antes que pudesse interferir, Letty abanou a cabeça:
- Não! Esta é a primeira troupe em que trabalho - atirou um olhar para Finlay - e também a última.
- Talvez a grande ópera fosse a sua especialidade? sugeriu perversamente Doggy.
Desta vez Letty baixou a cabeça, concordando.
- Sim, a grande ópera.
INVERTEM-SE OS PAPEIS
Era demais, demais. Grande ópera! Eles não puderam mais. O jovem Weir engasgou-se, sufocando uma risada; até mesmo o estólido Jackson deu o seu risinho. Mas Doggy enguliu o riso com medo de estragar a brincadeira.
- Desculpe os rapazes, Miss lê Brun. Parece que ficam de cabeça virada com um pouquinho de champanha. A senhora estava nos falando a respeito de ópera, Miss lê Brun. De grande ópera, Miss lê Brun, Letty o fitou com seus olhos tristes e tranquilos.
- O senhor deixe de me chamar por esse nome ridículo. Ele faz parte do cerimonial da troupe. Meu verdadeiro nome é Grey - Letty Grey, nome muito comum na Austrália, minha terra, mas que eu usava quando cantora.
Seguiu-se um pequeno silêncio curioso. Então Jackson, que tinha orgulho da sua memória de jornalista, e trazia de cor a história das celebridades, soltou um assobio fino, zombeteiro.
- Letty Grey! A senhora não está querendo dizer que é a própria Letty Grey!
- Se não quiser, não acredite.
- Mas Letty Grey era famosa. Veio da Austrália para cantar no Covent Garden. Cantou "Isolda", "Aida", e "La Boheme". Triunfou em "Madame Butterfly".
Há dez anos atrás, Letty Grey era a predileta de Londres.
- E agora está aqui. Jackson encarava-a, incrédulo.
- Não acredito no que me diz, declarou ele brutalmente. Letty Grey cantava e a senhora não canta coisissima nenhuma.
Letty esvaziou a taça. E a champanha, subindo-lhe à cabeça, deu-lhe um fulgor desacostumado aos olhos, e lhe tornou as faces ainda mais coradas.
- O senhor nunca me ouviu cantar! - E agora havia na sua voz um estranho desdém. - Já faz anos que não canto.
E ela tornou a olhar para Finlay:
- Ele poderá lhe dizer por quê. Mas estou com ideia de cantar agora. vou cantar para os cavalheiros, afim de pagar a minha ceia.
Letty agora parecia uma rainha, falando para um punhado de rústicos.
Doggy e Weir a olhavam de boca aberta, enquanto a mulher se levantava e caminhava para o piano.
A ÚLTIMA CANÇÃO
Letty abriu o piano e tocou com os dedos no teclado. Fez uma pausa, uma longa e dramática pausa. Depois, atirando a cabeça para trás, encheu amplamente o peito e começou a cantar.
Cantava em alemão, um "lied" de Schubert. Sua voz por um momento incerta, como um instrumento ha muito fora de uso, encheu depois a pequena sala com uma pureza quase divina.
E a voz subia, subia sempre, erguendo-se consigo, fazendo vibrar o próprio ar com sua celestial harmonia.
Quando a canção terminou, seguiu-se um mortal silêncio. Jackson encarava Letty, como se houvesse
visto um fantasma, e nos olhos de Weir luvvia uma expressão de amarga vergonha.
Ela porém os esquecera. Respirando rapidamente, curvada sobre o piano, tocava com aquela expressão distante e sonhadora no rosto.
E então, como se cantasse para si apenas, tornou a erguer a voz - O Cântico de Amor de "Isolda". Ao terminar, os moços estavam como petrificados. Até que. enfim Doggy se mexeu.
- Meu Deus! murmurou ele, humildemente. Foi maravilhoso!
Letty virou-se para os rapazes com leve sorriso nos lábios e disse:
- Deixem-me cantar "Allan Water".
Finlay, que lhe olhava o rosto e o arquejar da respiração, saltou da cadeira, e gritou:
- Não, não! Pelo amor de Deus, não cante mais. Ela porém começou. As comoventes palavras da
velha canção escocesa fluíram numa beleza inacreditável.
"On lhe banks o f Allan Water, When the sweet spring time had fled".
Havia lágrimas nos olhos de Finlay; Doggy mergulhou a cabeça entre as mãos. E escutavam, como que enfeitiçados, a voz da mulher que se ergueu no segundo verso, até que o último agudo interrompeu-se subitamente e falhou. Letty girou na banqueta; uma leve espuma escarlate lhe chegara aos lábios. Olhou os rapazes estupidamente; e depois caiu desamparada para um lado.
Finlay apanhou-a antes que ela atingisse o chão. E enquanto os outros se erguiam da mesa, estonteados, Jackson arquejou:
- Que houve?
- Hemoptise. Traga um pouco de água fria depressa.
E carregou-a para o sofá lá no extremo da sala. Doggy, de pé, balbuciava:
- Tudo por culpa minha! Só por culpa minha! Oh, meu Deus! Que poderei fazer por ela?
- Vá buscar um carro, seu idiota, disse Finlay. Temos que levá-la para um hospital.
Quando chegaram ao Cottage Hospital, Letty já recuperara a consciência. Chegou até a melhorar um pouco nos dias imediatos, mas novamente se afundou. Ainda viveu três semanas.
Sentia-se absolutamente tranquila. Não sofria dores; tinha tudo que desejasse.
Doggy zelava por isso. Pagou tudo. Levava-lhe flores todos os dias, grandes ramos de flores que iluminavam as feições devastadas de Letty, com aquele seu sorriso fugitivo. Doggy estava presente quando Letty morreu; e quando numa fria tarde de janeiro o moço deixou de vez o hospital, estava escrita no seu rosto uma nova e estranha firmeza.
Letty Grey foi enterrada no cemitério de Leveníord.
Todas as semanas Doggy vai até lá com sua grande bengala e o seu cachimbo. Perdeu o espalhafato, a risada oca, e até mesmo diminuiu o seu amor ao brandy.
Mas é muito mais homem agora do que antes.
A CURA DRÁSTICA DE FINLAY
A MANCHA NA PAISAGEM
Muitas vezes Finlay sentia necessidade de fazer algum exercício depois de passar um dia inteiro rodando no cabriole; e à tarde, então, ia a pé até o Lea Brae.
Naquela época, antes que alguns burgueses endinheirados começassem a manchar o morro com seus vilinos, era aquele um dos favoritos passeios de Levenford, pela encosta suave que descia até ao Firth.
Do alto, a vista era magnífica. Nas plácidas tardes de verão, com o sol se escondendo por trás das colinas de Ardfillan, o amplo estuário em baixo, e a gaze leve da fumaça dum navio se desfazendo no horizonte, era um sítio onde a alma da gente repousava. Contudo o Lea Brae para Finlay ficara estragado, por causa de Sam Forrest e da sua cadeira de rodas.
Lá se ia Sam para o alto, vermelho, gorducho, refestelado nas almofadas, feito um lorde, enquanto o coitado do Peter Lennie arquejava atrás, empurrando a cadeira. Quando por fim chegava em cima, enquanto Peter tomava fôlego e enxugava o suor da testa, Sam majestosamente abandonava a pequena alavanca de metal da direção, tirava do bolso um pedaço de fumo, cortava-o com uma enorme dentada, e ficava a mascar, feito um boi a remoer, olhando solenemente não para a vista, mas para a encosta aos seus pés, como se dissesse: "Aqui, meus amigos! Foi aqui o local onde a coisa terrível aconteceu".
A história datava de mais de cinco anos.
Nesse tempo Peter Lennie era um moço vivo, dos seus vinte e sete anos, modesto e serviçal, proprietário de um armazém em College Street, ao qual, com uma certa ousadia tímida, ele batizara por "O Empório de Lennie".
Segundo as regras da ficção, todos os homens pequenos e mansos devem ser casados com mulherões dominadoras; mas na realidade isso só raramente acontece. E Retta Lennie era pequena, magra e tímida como o marido.
Em consequência eram muitas vezes logrados em negócios. Apesar disso, porém, as coisas caminhavam bem, o futuro se apresentava promissor e eles viviam confortávelmente com os dois filhos, numa casa meio afastada da estrada de Barloan, que é um bairro afidalgado ao qual aspiram todos os negociantes de Levenford.
A BICICLETA TANDEM DE PETER
Mas acontecia que no humilde comerciante Peter Lennie se abrigavam insuspeitáveis impulsos de aventura. Havia momenlos em que, deitado meditativamente no leito, ao lado de Retta, nas manhãs de domingo, ele ficava a olhar para o teto, de sobrolho carregado e de repente declarava - enquanto Retta o fitava com admiração:
- índia! (ou podia ser China). É um lugar que a gente qualquer dia tem que conhecer.
Talvez fosse a sua ousadia romântica que o levara à compra de uma bicicleta tandem, pois embora naquele momento a moda de "bicicletas para dois" estivesse no auge, na sua maneira ordinária, Peter jamais teria feito coisa tão atrevida.
Mas comprou mesmo o tandem, um lustroso instrumento de movimento, máquina astuciosa, dotada de pneumáticos de borracha, que lhe custou um dinheirão, e que, ao ser tirada da embalagem, fez com que Retta exclamasse, incrédula:
- Oh, Peter!
- com isto a gente pode passear, observou ele procurando falar com displicência. Ver lugares novos. Fica fácil!
Entretanto não foi tão fácil. Houve por exemplo a dificuldade com os calções de Retta. Era ela uma mulherzinha modesta e Peter levou uma semana gastando sólidos argumentos e persuasão afim de a convencer a se expor em plena luz do dia naqueles trajes que poderiam ser elegantes, mas que pareciam impróprios.
Quanto a Peter, usava uma jaqueta tipo Norfolk, com cinto ousadamente desabotoado, de modo que só por rodar no tandem tomava ele um ar tremendamente profissional. E assim, depois de convenientemente trajados, Peter e Retta dedicaram-se a dominar a máquina.
Praticavam timidamente, ao anoitecer, nas vielas sossegadas em torno de Barloan, e levaram uma divertida quantidade de tombos.
Oh, foi engraçadissimo. Retta, de calções, ficava muitíssimo atraente. Peter gostava de levantá-la, de faces coradas, risonha, graciosamente atirada na poeira do chão.
Recomeçaram assim o período de namoro. E quando finalmente, desafiando todas as leis de gravitação, deram a volta a Harloan Toll, sem um tombo, concordaram em que jamais a vida se mostrara mais excitante para qualquer um deles.
E Peter exibindo significativamente um mapa rural adquirido há pouco, resolveu que, no domingo, dariam o seu primeiro passeio de verdade.
AOS PÉS DO BRAE
O domingo amanheceu lindo; o céu claro e as estradas secas. Partiram, Peter ousadamente dobrado sobre o guidon da frente e Retta virilmente pedalando atrás. Desceram High Street conscientes dos olhares de admiração e até mesmo de inveja que provocavam.
Clim, clim, clim, clim, tocava a campainha do tandem. Grande momento! Clim, clim, clim, clim!
Dobraram à esquerda - calma, Retta, calma! agora a ponte; deram as costas à subida de Knox Hill, depois mergulharam na crista de Lea Brae.
Desciam agora o Brae, depressa, cada vez mais depressa. O vento assobiava atrás deles, - nunca tinham corrido tanto quanto daquela vez.
Era formidável, maravilhoso, mas oh, céus! era rápido demais I Muito mais rápido do que qualquer um dos dois o desejaria.
Passada a primeira exaltação, Retta ficou pálida.
- Freia, Peter, freia! gritava ela.
Nervosamente Peter se atirou aos freios, o tandem tremeu todo e Retta quase passou por cima da cabeça do marido.
Ante isso, ele se atrapalhou inteiramente, soltou os freios e tentou manter os pés fora dos pedais. A máquina deixou de derrapar, tomou o freio nos dentes, e tocou-se colina abaixo feito um foguete maluco. Ao pé do Brae estava Sam Forrest. Sam andara procurando destroços de madeira na praia d"o Lea; era essa, com efeito, uma das duas ocupações de Sam, sendo a outra escorar com grande afinco a esquina do botequim Fitters Arnis.
Na verdade Sam tão raramente se afastava do Fitters Arms, que a parede não corria o mínimo perigo de cair.
Em suma: o fato é que Sam era um malandro, sujeito grandalhão, gordo e inútil, com a mulher que ganhava a vida lavando roupa e a casa cheia de crianças barulhentas que não ganhavam nada.
Sam, como um passarinho fascinado, viu a bicicleta aproximar-se. Vinha tão rapidamente que durante um segundo Sam duvidou do testemunho dos seus olhos. A noite anterior, que era de sábado, fora pesadíssima para Sam e o seu cérebro ainda estava um pouco confuso.
Para baixo, para baixo, para baixo, lá vinha o tandem feito uma bala. Peter, com o rosto congestionado de horror, fez um último esforço para deter a máquina, colidiu com o meio fio, pulou através da estrada e esmagou-se por cima de Sam.
Falando a verdade, a bicicleta o atingiu bem no meio das costas quando Sam se voltava afim de correr. Ouviu-se um berro desesperado soltado pela vítima, um ruido de ferro velho, enquanto as peças do tandem se desarticulavam, - e depois seguiu-se um grande silêncio.
Por fim, Peter e Retta levantaram-se do fosso. Entreolharam-se incrédulos como se quisessem dizer: "E" impossível: nós não podemos estar vivos".
Estupefacto, Peter sorriu levemente para Retta, e Retta, que se sentia prestes a desmaiar, também lhe sorriu fracamente. Mas de repente lembraram-se!
- E Sam?
Ah, coitado de Sam que jazia gemendo no chão! Correram para ele:
- Está ferido? perguntou Peter.
- Estou morto, gemeu o outro. Vocês me mataram, seus assassinos.
TERRÍVEIS PALAVRAS
Medonho silêncio, pontuado pelos gemidos de Sam. Nervosamente, Peter tentava levantar o homem:
- Deixem-me! Deixem-me! berrou Sam. Vocês estão me arrancando aos pedaços!
Retta ficou mais pálida do que nunca.
- Levante-se, Sam, por favor, implorou ela. - Conheciam-no muito bem, pois na semana passada recusara-se a lhe vender fiado.
Contudo, Sam não se levantava. A menor tentativa de o soerguer provocava-lhe terríveis convulsões, e suas grandes pernas gordas pareciam agora tão incapazes de o sustentar quanto se fossem feitas de manjar branco.
Já então Retta e Peter estavam em total desespero; viam em Sam um cadáver mutilado e a si próprios sentados palidamente no banco dos réus, enquanto o juiz punha severamente o gorro preto.
Entretanto nesse momento apareceu auxílio sob a forma da carroça de Raffty. Raffty, o homem da manteiga e dos ovos, para quem o domingo, depois da missa da madrugada - era um dia como qualquer outro, descera até Ardfillan afim de apanhar ovos. E com o seu auxílio, Sam foi colocado entre os ovos e levado à sua casa no Yennel.
Alguns ovos foram esmagados na ocasião, mas lietta e Peter não se incomodaram com isso; protestavam apaixonadamente que pagariam. Oh, sim, pagariam. Nada importava, uma vez que Sam voltasse a salvo para casa.
Por fim lá estava Sam na sua cama, cercado pela prole curiosa e amparado pelas agudas lamentações da esposa.
- O médico! choramingava ela. Precisamos de um médico!
- Sim, sim, gaguejou Peter. vou trazer um médico!
Onde é que estava com o juízo? Claro que precisavam de um médico. Desceu correndo a escada suja e saiu como um pé de vento à procura dum médico mais próximo. Nessa época o Dr. Snoddy ainda não se casara com a rica Mrs. Innes, nem se mudara para o bairro salubre de Knox Hill.
Sua residência ainda se localizava com precária distinção na High Street, adjacente ao Vennel...
E foi Snoddy que veio tratar de Sam.
Sam jazia de costas, de olhos fechados e boca aberta. Nenhum mártir jamais sofreu tanto quanto Sam durante o exame do médico.
Seus gemidos reuniram uma multidão em torno da casa, na crença de que ele novamente estava surrando a mulher; quando porém a verdade emergiu, foi enorme a piedade por Sam.
O médico, embora intrigado, sentia-se impressionado com o estado de Sam. Nenhum osso quebrado, não conseguia descobrir nenhuma lesão interna, mas qualquer coisa de grave deveria existir, uma vez que eram tão evidentes os sofrimentos do acidentado.
Snoddy era um homenzinho pomposo, pernóstico, com uma convicção tremenda da própria dignidade; e, afinal, com grandes exibições de sapiência, articulou a famosa declaração:
- Foi na espinha.
Sam repetiu-lhe as palavras com um gemido cavo. E o horror fremiu através da própria espinha de Peter.
- O senhor compreende, sussurrou ele. Fomos nós os culpados; e assumimos toda a responsabilidade. Ele terá tudo que for necessário. E do melhor! Do melhor!
A CADEIRA DE RODAS DE SAM
Isso foi o começo. Era necessário alimento para o doente, alimento bom e forte. E o alimento foi fornecido. Estimulantes - Peter cuidava em que o brandy fosse do melhor. Uma cama própria e Retta foi em pessoa adquirir a cama. Toalhas, lençóis, louça, geleia, chá, camisolas, açúcar, tudo isso se encaminhava discretamente para a casa do enfermo. Mais tarde, o fumo para lhe aplacar os nervos maltratados e também algum dinheirinho porque Mrs. Forrest, presa à cabeceira de Sam, não podia dar conta das lavagens como antes.
- Leve isto até à casa de Sam, era a ordem que mais se ouvia no armazém.
Snoddy, naturalmente, continuava as suas visitas, regular como um relógio. E finalmente chegou o dia em que, chamando Peter de lado, ele articulou a fatal palavra - "paralisia".
A vida de Sam estava salva, porém nunca mais teria ele novamente o uso das pernas.
- Nunca! gaguejou Peter. Não compreendo. Snoddy soltou a sua risadinha solene.
- Pois vá ver o pobre diabo tentando andar, e então há de compreender.
Foi um golpe esmagador para Peter e Retta. Ficaram a falar naquilo até tarde da noite, infindàvelmente. Mas não havia saída.
Retta chorou um pouco e o próprio Peter não estava longe das lágrimas, mas tinham que se habituar ao fato. Eram culpados, tinham portanto que pagar; e Sam, coitado! o seu quinhão era ainda mais duro que o deles.
Foi comprada uma cadeira de rodas - Peter suou quando viu o preço - e Sam com a sua cadeira passou a ocupar um lugar na sociedade de Levenford.
No terreno plano, o filho mais velho do inválido, que tinha quatorze anos, podia empurrá-lo facilmente e "chegar até ao Empório", tornou-se uma excursão favorita de Sam. Ficava ele do lado de fora da loja, aquentando-se ao sol, mandando buscar fumo, ou uma torta, ou ameixas secas, das quais era grande apreciador. Agora, naturalmente não se poderia pensar em recusar-lhe crédito. O crédito de Sam era ilimitado - e sem prejuízo da contribuição semanal que lhe pagava Peter.
Passados os primeiros nove dias de admiração pela cadeira de rodas de Sam, Levenford o esqueceu.
Pouca gente reparou quando Peter e Retta abandonaram a confortável casinha de Barloan e mudaram-se para os quartos dos altos do Empório; nem quando a garota deles abandonou as lições de música, ou quando o menino repentinamente deixou a escola para se empregar no escritório de Gillespie.
O cabelo de Peter, que ia ficando grisalho, uma ruga preocupada que se afundava na testa de Retta, evocavam pouco interesse e ainda menor compaixão.
Como dizia Sam, às vezes, com uma patética sacudidela da cabeça:
- Eles, pelo menos, ainda têm as pernas.
E foi essa com efeito a frase que Sam usou para com Finlay naquela fatídica tarde de verão de primeiro de julho.
A EXPERIÊNCIA DE FINLAY
Era uma linda tarde, muito clara e a vista se apresentava com todo o esplendor. Finlay deteve-se no Brae procurando recolher a calma da paisagem. Naquela noite o consultório o atormentara, o dia fora fatigante, e o seu humor estava péssimo.
Aos poucos o efeito apaziguador do panorama o atingiu: Finlay acendeu o cachimbo e começou a sentir-se em paz. E aí foi que subindo a crista do Brae apareceu Sam na sua cadeira de rodas.
Finlay soltou uma praga. Conhecia há muito tempo a história de Peter e Sam e o fato de ver o homenzarrão gordo e forte, grudado como um parasita ao magro e faminto Lennie, o exasperava imensamente.
Ficou vendo-os aproximarem-se, observando irrilado a fraqueza física de Peter; quando os dois chegaram ao alto, Finlay fez alguns comentários cáusticos a respeito das dificuldades de empurrar morro acima um bloco de matéria inerte.
Sam suspirou:
- Ele não pode se queixar. Tem pelo menos o uso das duas pernas!
E aí, instintivamente, Finlay olhou para as pernas de Sam estiradas na cadeira.
Eram, por um acaso singular, um fortíssimo par de pernas. Gordas como todo o resto da pessoa de Sam, avolumando-se dentro das calças de sarja azul.
"Curioso, pensou Finlay, que não houvesse a menor atrofia naqueles membros paralíticos. Curiosíssimo!"
Ficou a olhar e a olhar para as pernas de Sam, com crescente penetração e depois, com terrível intensidade, encarou o homem, que de nada desconfiava. "Meu Deus! pensou ele imediatamente. E imagine-se... imagine-se se durante aqueles anos...
E como estava de pé ao lado da cadeira, bem à margem da encosta, com um impulso súbito e diabólico, levantou a sola do sapato e deu um tremendo empurrão à cadeira.
Sem uma palavra de aviso, a cadeira disparou morro abaixo.
Peter ficou de boca aberta olhando para a corrida, como um homem petrificado ante a repetição de uma pavorosa ocorrência; depois soltou um grito nervoso.
Sam, urrando como um touro, procurava controlar a cadeira que entretanto não tinha freios e tomando velocidade na estrada, atirou-se em frenética rapidez contra uma cerca e jogou Sam violentamente num tufo de espinheiros.
Durante dois segundos, ficou Sam escondido no tufo verde de espinhos; e aí, miraculosamente, levantou-se. Praguejando enfurecido pôs-se de pé e correu para Finlay, de encosta acima.
- com todos os diabos! urrou ele brandindo os punhos. com todos os diabos, pra que é que fez isto?
- Para ver se você podia andar! gritou-lhe Finlay em resposta, e o seu murro alcançou Sam em primeiro lugar.
Peter e Retta voltaram para a casa de Barloan, a cadeira de rodas foi vendida e Sam voltou ao seu antigo ofício - escorar a parede do Fitters Arms.
Mas toda vez que Finlay passa por perto, ele pragueja e cospe longe.
OS GERÂNIOS TORNAM A FLORIR
OS GERÂNIOS VERMELHOS DE CAMERON
Coisa curiosa: o primeiro sinal de maluquice de Alex Deans foi no jardim de Arden House.
Alex era um jardineiro que trabalhava por dia. Seu estabelecimento com a tabuleta "Alexandre Deans, mudas e sementes" ficava bem à vista, à mão direita da linha, quando se vinha no trem de Ardfillan entrando na estação de Levenford.
E Alex aparecia, regular como um relógio, afim de conservar o jardim de Cameron tratado e bonito, como de fato o trazia e mais a uma outra dúzia de jardins do burgo.
Nesse dia estava ele plantando o canteiro da frente do gramado quando Cameron aproximou-se, fazendo ranger o saibro da áléa.
- bom dia, Alex! disse o doutor por cima do ombro. - Mas logo chegou-se e exclamou: - Valha-me Deus, homem, que é que você está fazendo?
Alex estava plantando calceolarias no grande canteiro redondo - massas de calceolarias amarelas.
- Você não sabe que eu não posso tolerar essa coisa amarela? berrou Cameron. Onde estão os meus gerânios encarnados, os meus lindos "Maravilhas Escarlates"?
Aqueles gerânios eram uma instituição em Arden House onde, com efeito, o jardim se transformava através de um solene ritual; a lenta procissão das estações trazia consigo a mesma procissão de plantas favoritas, ano atrás de ano, sendo as flores lembradas e esperadas com ansiedade, adoradas.
E Cameron estimava especialmente os gerânios vermelhos; as vivas flores escarlates destacando-se sobre o gramado curto e verde de Arden House, eram uma feição já característica do verão de Levenford; passantes detinham-se abertamente no meio da estrada afim de as admirar, proporcionando a Cameron uma ingénua e infalível satisfação.
- Estou lhe perguntando, berrou novamente Cameron, onde estão os meus gerânios vermelhos?
Alex pôs-se de pé, - baixo, atarracado, em mangas de camisa, a face crestada pelo tempo, as mãos enormes encrustadas de terra seca.
Sem olhar para o médico, mantendo a vista obstinadamente presa ao chão, Alex disse:
- Amarelo é uma cor bonita! O senhor não faz ideia! Lembra-me a gema do ovo! e soltou uma risadinha abafada.
POBRE ALEX
Cameron estava atónito.
Deans era um homenzinho excelente, sério, respeitoso, firme como uma rocha; já fazia perto de quinze anos que trabalhava para Arden House.
Bêbedo, pensou Cameron; mas qualquer coisa parecia não concordar com essa ideia. Contudo, como estava com muita pressa, o velho médico não pôde deter-se mais no assunto. Contentou-se em dizer com grande calma:
- Arranque essas calceolarias, homem! E plante logo os gerânios. - Dito isso, saiu pelo portão.
Quando entretanto voltou da visita ao doente, Alex fora embora - e no canteiro de frente do gramado continuavam plantadas as calceolarias amarelas.
Isso foi o começo. Em breve a cidade zumbia de murmúrios que comentavam a estranha conduta de Alex Deans.
Atravessara ele High Street em pleno domingo, de camisa e suspensórios.
Na tarde anterior pedira um fósforo a Bailie Paxton e, esquecendo-se do cachimbo apagado, ficara a olhar a pequena chama crescer e apagar-se com infantil prazer. Ele, que fora antes homem tão pacato, agora discutia ferozmente, estupidamente, e chegava a trocar bofetões por qualquer ninharia.
Sua linguagem também piorara muito. Os vizinhos ouviram-no praguejar e descompor a sua irmã Annie, que lhe tomava conta da casa; e certa vez, ao jantar, quando Annie lhe pôs à frente um prato de born caldo escocês, de que ele gostava muito, Alex agarrou o prato, furioso, e o atirou pela janela. Foi cair aos pés de Bella Niven, e ela, pode-se ter certeza, deu bem com a língua nos dentes.
Mas o climax do caso ocorreu seis semanas mais tarde, quando Annie Deans trouxe a Arden House um bilhete do doutor Snoddy, de Knoxhill.
O bilhete era para Cameron e dizia apenas:
"Venha aqui imediatamente. Quero que você ateste a insanidade de um louco perigoso".
Era a tarde de primeiro de setembro, dia escuro e úmido, que Cameron gostava de chamar "tempo de cortar a faca"; - naquele dia, aliás, em voz baixa, Cameron chamou o tempo por um nome muito pior, pois estava nas garras do seu velho inimigo, a asma.
Não se deitara, repousava na poltrona do escritório, com uma manta de xadrez sobre os joelhos, um violino meio pronto no colo, e uma inalação balsâmica ao alcance da mão. Finlay sentava-se na cadeira oposta, falando a respeito da ronda matinal que fizera sozinho.
- Santo Deus! Santo Deus! exclamou Cameron depois de receber o bilhete das mãos de Janet, de descobrir os óculos na testa, e de ler a peremptória mensagem. Pobre Àlex, estou desolado! - E esboçou um gesto de afastar o cobertor.
Janet, porém, observou indignada:
- O senhor não vai por o pé fora de casa num
dia como o de hoje.
Ele a olhou por cima dos óculos e por fim cedeu, com um suspiro fundo.
- Muito bem, muito bem, Janet. Talvez você tenha razão. Diga a Annie que o doutor Hyslop irá atender.
PIOR QUE MAL
Quando Janet saiu, Cameron entregou o bilhete a Finlay, que o leu duas vezes.
- Pelo menos é positivo!
- Isso é característico de Snoddy, refletiu Carnerón. Você deve saber que a lei exige dois atestados médicos independentes, para que um homem seja oficialmente considerado louco. acredite, é este o único motivo que fez com que Snoddy chamasse por mim.
É um sujeito que, neste mundo, só serve a si próprio. Tornou a espirrar e fez uma careta para o fogo.
- Você há de concordar, Finlay, que eu raramente falo mal do meu próximo. Mas Snoddy - arre! aquele homem é devorado pelo egoísmo.
- E por que Deans se trata com um homem como Snoddy? perguntou Finlay irritado ao levantar-se afim de sair.
- Oh, bem, explicou Cameron, Alex também trabalha na casa dele e ademais mora pertinho de Snoddy.
E segurou o bálsamo com um gesto cómico.
- A gente não pode fazer monopólio, você bem o sabe. E, pensando nisso, tome muito cuidado consigo quando estiver tratando do caso com Snoddy.
Jamie já o esperava do lado de fora com o cabriole. Ajustou a coberta do oleado em torno de Finlay e saíram através da neblina.
- Tempo de cortar com a faca, disse Jamie por fim; ele usava todas as locuções do amo.
- Isso mesmo, concordou Finlay enterrando a cabeça no peito para se livrar da neblina.
- Estou muito sentido com o caso de Alex Deans, exclamou subitamente o cocheiro, com os olhos sombriamente postos no caminho. Ele e eu nos dávamos muito bem.
Pausa.
- E Annie, continuou fingidamente Jamie. Ela e eu também somos muito amigos.
Ouvindo aquilo, Finlay recordou certos mexericos. Ora muito amigos! O fato é que Jamie e Annie andavam saindo juntos há uns bons cinco anos.
- Sinto muito, Jamie, disse Finlay convencionalmente. Talvez as coisas não estejam tão mal quanto você pensa.
- Mal! resmungou Jamie. Estão pior do que mal. O pobre diabo está doido varrido. Não posso acreditar. Se mandarem Alex para o asilo do Barnsheugh, - valha-me Deus! aquilo ali é o fim de tudo.
Silêncio.
UM MÉDICO CONVENCIDO
Já o cabriole saíra de High Street, tomando a estrada que ia do Leven em direção à via-férrea.
Uma fileira de casas velhas surgiu da neblina. O cabriole parou na última do grupo, - uma casa com dois acres e pico de terreno, formando um jardim que ia da casa até o cais, terra que o desditoso Alex laboriosamente reivindicara e enriquecera.
Na sala de visitas, no térreo, o doutor Snoddy esperava, com a irritação fácil do homem convencido da própria importância, e que, quando é necessária uma espera, prefere que sejam os outros que o esperem.
De pé, no tapete do fogão, com as mãos sobre as abas do fraque, ele se aquecia ao fogo e curtia a raiva.
No momento em que entrou Hyslop, Snoddy exclamou :
- O senhor é muito vagaroso, moço, danadamente vagaroso. Se fosse meu assistente, eu lhe ensinaria a andar mais depressa.
Ocorreu a Finlay observar que não era assistente de Snoddy; mas lembrando-se do aviso de Cameron, calou, a boca.
Snoddy girou o pince-nez de ouro:
- Cameron não pode vir?
- Nãol
- Entregando os pontos, heim?
- Não o creio.
- Ah! Seu tratamento deteve a moléstia! Finlay não respondeu e os dois homens se encararam. ""
Snoddy via um rapaz alto, de ossatura rude, de calmos olhos cinzentos, roupa grosseira, nenhumas maneiras, e a cara enfarruscada pela neblina.
E Finlay via um homenzinho idoso, pretensioso, de cabelos cor de areia, de lábios abotoados, sobrolho irado, extremamente bem vestido; muito afetado, ares condescendentes, e a testa alta e calva irradiando a consciência da própria superioridade.
Sem duvida nenhuma Samuel Snoddy fazia um altíssimo conceito de si próprio. Não era um nativo de Levenforõ - segundo explicava vagamente, viera das fronteiras - mas casara-se com uma senhora de Levenford, um pouco mais velha do que ele, a viuva de Peter Innes, corretor de navios aposentado.
Depois do seu casamento com Mrs. Innes, a natural presunção de Snoddy se transformara em arrogância. Ele cultivava o "condado", tinha um carro de quatro rodas e a sua clientela, embora perdesse em quantidade, melhorara em qualidade; parece que ele desdenhava entrar numa casa onde não houvesse criados a anunciá-lo.
Não se pode dizer que fosse um sujeito típico, mas era-o, assim mesmo. E agora, depois de completar o condescendente exame que fazia no jovem Hyslop, declarou:
- Bem, não lhe vou tomar tempo. Sabe o que é preciso. Já vi o pobre diabo lá em cima. Está completamente louco. O senhor não encontrará dificuldades. Dê-me o certificado, que quero ir embora.
O SEXTO SENTIDO DE FINLAY
Finlay apertou os lábios para não soltar a resposta malcriada que lhe subira à língua. - vou lá em cima.
E enquanto subia, escutou Snoddy gritar:
- Quer andar depressa? Sou um homem muito ocupado e tenho que comparecer a um jantar hoje a noite.
Alex Deans estava de cama, claro que como medida de segurança. A irmã sentava-se ao seu lado, e os olhos vermelhos lhe traíam o pranto.
Imediatamente após a entrada de Finlay ela ergueu-se sem dizer palavra e ficou ao pé da cama.
O silêncio da mulher era tão desesperado, tão sombria e trágica a atmosfera do quarto, que Finlay sentiu um arrepio que era quase de medo.
Olhou para Alex e a princípio quase não o reconheceu. A modificação não era excessiva - viu o mesmo Alex, mas como que borrado, alterado, as feições embrutecidas de uma maneira estranha e subtil.
O rosto de Alex parecia inchado, as narinas espessas, os lábios grossos, a pele cor de cera, salvo uma leve mancha rosa que se espalhava pelo nariz.
Toda a aparência dele era pesada, apática. Finlay lhe falou. Alex resmungou qualquer disparate, mas tão embrulhado que se tornou ininteligível.
Finlay dirigiu-se a Annie:
- Há quanto tempo ele está assim?
- Mais ou menos dois dias. Mas antes estava furioso.
- Como? que quer dizer?
- Nada... respondeu ela com extrema relutância. Atirou-se a mim... completamente louco. ele que sempre foi tão bom comigo.
O homem na cama mexeu-se, inquieto, e resmungou:
- vou matar vocês todos. Envenenaram as plantas. Jamie, dá-me a trolha. Tenho que cavar... cavar... cavar para os vermes!
Ao silêncio se seguiu àquelas palavras loucas. Palavras de lunático. Talvez! Contudo, Finlay ainda não estava convencido.
É possível que Snoddy houvesse despertado um demónio contraditório dentro do rapaz, firmando a sua resolução de não aceitar opinião prévia. Mas talvez fosse algo mais profundo.
Lá no seu íntimo um sexto sentido o avisava, pondo-o alerta - uma singular e impressiva intuição. Ergueu a mão de Alex - estava seca e áspera, com os dedos levemente inchados nas extremidades. Tomoulhe a temperatura, estava abaixo do normal. Comprimiu-lhe a face edematosa - a inchação era firme, sem elasticidade, e não conservava a marca da pressão.
Finlay pensou profundamente, afastando a resposta óbvia, tateando no escuro em busca de remo tas formas de compreensão.
E de repente uma grande lucidez irrompeu em Finlay, varrendo-o numa onda de inexprimível ação.
Descobrira, descobrira! Tinha vontade de saltar de alegria. Mixedema - era isso! Deans não estava louco! Era um caso claro de deficiência da tireóide!
Cada sinal, cada sintoma, correspondia exatamente, acomodava-se no todo como os pedaços de um quebra-cabeças.
A memória falha, o lento processo mental, a progressiva deterioração do intelecto; as explosões de irritabilidade e violência homicida; a fala engrolada, a pele seca, os dedos espatulados e inchados, a face pouco elástica.
Oh, era sublime o triunfo do quadro completo!
TOLICES DA MODA
Controlando-se com dificuldade, Finlay levantou-se. E quando com gesto deliberado, empurrou a cadeira de encontro à parede, Annie falou temerosa:
- Ali na mesa há papel e tinta, doutor-.. ao lado dos jornais.
- Temos tempo, Annie, respondeu ele. Não estou com vontade de escrever agora.
Sorriu de leve para a mulher e desceu a escada. Entrou na sala e, em voz propositadamente contida, disse:
- Sinto muito, doutor Snoddy! Mas não posso dar o tal atestado para Alex Deans.
Snoddy o encarou siderado. Caiu-lhe o queixo, os olhos se esbugalharam, e o rosto liso e rosado lentamente coloriu-se dum rubro vivo. E ele arquejou:
- Será que o senhor também ficou maluco?
- Espero sinceramente que não!
- Então por que é que não quer assinar o atestado?
- Porque, na minha opinião, Deans não está louco. Considero-o um caso bem claro de mixedema.
Snoddy parecia prestes a ter um ataque. Mas a ideia da posição que ocupava o galvanizou.
- Divina Providência! Está então opondo sua opinião à minha! Pois eu não vi o homem? Não lhe dei o atestado - eu próprio? É um louco, um louco furioso e homicida.
Finlay manteve a voz em tom baixo.
- Não é o que eu acho. Na minha opinião a doença mental de Deans decorre da doença do corpo. Seria um crime mandá-lo para o asilo, antes de experimentarmos um tratamento completo de tireóide.
- Um crime! explodiu Snoddy. Seu meninote insolente! Você e sua tireóide! Atreve-se a sustentar isso e a vir me dar lições?
- Não estou querendo lhe dar lição nenhuma, doutor Snoddy, disse Finlay.
Estava muito pálido - e a despeito do aviso que lhe dera Canieron, sentia que cada vez se complicava mais. Contudo, mantinha a voz calma.
- Declaro simplesmente que me recuso a assinar o atestado e explico os meus motivos. E como o cliente não é meu e nada mais me resta a fazer, dou-lhe muito boa noite.
Abriu a porta, enquanto Snoddy berrava:
- vou lhe dar um ensino, a você e às suas tolices de última moda! Deans não ficará sem o atestado. vou cobri-lo de ridículo perante a cidade inteira.
Finlay rodou para casa, de rosto carregado.
Assim que se defrontaram com Arden House atirou ele as rédeas para Jamie, apeou-se dum salto e correu ao andar de cima. Não encontrou Cameron só - Dan Gillespie, o escritor, aparecera para uma prosa; Finlay porém não se incomodou e disse bruscamente :
- Fiz a tal coisa.
- Quer dizer que assinou o atestado de Alex?
- Não! Tive um pega - um pega dos diabos com Snoddy!
Cameron carregou o sobrolho;
- O senhor compreende, a coisa foi assim, disse Finlay apressado. E irrompeu com a história toda do caso.
A LUTA DE FINLAY
À medida que Finlay falava, abrandava a expressão severa de Cameron. Seu olhar em nenhum momento deixou o moço; de vez em quando baixava ele a cabeça, como se concordasse, ou seus olhos se acendiam; fez duas rápidas perguntas e finalmente falou com ênfase:
- Muito bem feito, homem! Muito bem feito. Parece-me um diagnóstico brilhante.
Gillespie, com a cara comprida de legista ardendo de curiosidade, perguntou:
- Que tireóide é essa de que vocês estão falando?
-É uma glândula, Dan, - respondeu Cameron sorrindo. Uma glândula que fica por baixo do seu pomo de Adão. Quando ela funciona direitinho você nem lhe toma conhecimento da existência. Mas se parar.. - e estalou os dedos de modo expressivo. Houve uma pausa.
- E não há remédio? indagou Gillespie.
- Sim, temos um remédio, disse lentamente Cameron. Extrato de tireóide, ministrado por via oral. E é o que Alex Deans vai tomar!
- Mas, e Snoddy? protestou Gillespie.
- Eu apoio o meu rapaz contra até um milheiro de Snoddys, protestou Cameron, zangado. E deixe-me dizer-lhe que não gosto nada desse cavalheiro. Mas não vou interferir, escute bem. Não, não! não vou pôr o pé na casa dos Deans. vou entretanto fazer com que Hyslop leve adiante o caso, e por Deus! hei de cuidar em que não lhe façam uma ursada.
Atirou fora a manta e berrou:
- Janet! Janet! Traga-me cá Annie Deans o mais depressa que o cabriole possa rodar!
E aconteceu então que Snoddy abandonou o caso e Hyslop o tomou. Cameron, que detestava escândalos, por seu gosto manteria o caso em silêncio, mas Snoddy, o tonto, espalhou pelo mundo inteiro o insulto que sofrera.
Fora posto na rua por Annie Deans, porque cumprira um dever sagrado. Aquele camaradinha, Hyslop, era um charlatão. Iria dar cabo do coitado do Deans, isso era certo. Um crime de morte, nada mais.
O caso tornou-se o comentário predileto da cidade. E muitos achavam que Snoddy fora injuriado. À medida que se passavam os dias, aumentava a animosidade contra Finlay - uma animosidade latente e amarga.
Ele nada dizia a respeito do caso, desafiando assim a cidade -? e já se dizia à boca pequena que o rapaz tinha algo a esconder. Senão, por que mantinha ele a casa de Deans impenetrável, trazendo Alex em isolamento absoluto?
Gritavam coisas atrás dele, quando Finlay saía em visita à clientela.
O rapaz conhecia bem o que era o rancor de uma pequena comunidade. Mas através de tudo não perdeu a cabeça e obstinadamente continuou de boca fechada.
OS GERÂNIOS TORNAM A FLORIR
Guardava silêncio até mesmo ante Cameron, fingindo não ver o olhar interrogador que de tempos em tempos o velho lhe atirava. Enfrentava a coisa sozinho.
E então, num dia áspero de novembro, uma quartafeira por sinal, indagou ele de Cameron se poderia ter uma hora de folga à tarde. Cameron acedeu:
- Para fazer o quê?
Finlay respondeu com uma secura que se casava bem com a do outro, embora parecesse lutar intimamente com uma pilhéria secreta.
- Estou pensando em dar um passeio - umas voltas pela cidade com um amigo. - Levantou-se da mesa de almoço sem dar mais palavra.
Naquela mesma tarde, quando Cameron rondava pelo jardim com a sua faca de podar, escancarou-se o portão e dois vultos apareceram. Atónito, o velho médico ficou a olhar aqueles dois aproximarem-se.
- Bem, disse singelamente Finlay, cá está de volta o seu jardineiro.
Era Alex, era o velho Alex, magro e forte, com o seu habitual sorriso desconfiado. Nos seus olhos havia a expressão do homem que atravessara o inferno, mas continuavam a antiga firmeza e a antiga honestidade.
- Como vai você, homem! indagou mecanicamente Cameron.
- vou muito bem, disse timidamente Alex. Só a mão me dói.
- Alex teve que apertar a mão de umas quinhentas pessoas, explicou alegremente Finlay enquanto nós atravessávamos a cidade.
Jamie reunira-se ao grupo e a sua gravidade natural fora substituída por violenta exultação.
- Quinhentas! bradou ele para Cameron, com o rosto agitado pela alegria e o excitamento. Acho que foram mais de cinco mil! Meu Deus, que tarde! Acompanhei estes dois desde Railway Road: subimos High Street, pasamos a encruzilhada, descemos Church Street, e o senhor precisava ver o ajuntamento e a cara do pessoal! Meu Deus, quase que soltaram vivas no Cross! E na esquina de College Street encontraram-se cara a cara com Snoddy. Ah, Jesus Cristo! bramia Jamie, só queria que o senhor visse a cara dele! Por Deus que está no céu, quase que o homem caiu morto no chão.
E Jamie irrompeu numa gargalhada que até parecia a de uma hiena.
- Vai-te embora, Jamie, disse severamente Cameron, lutando contra o seu próprio riso.
- Vá e leve Alex para que Janet lhe dê chá. Quando saíram os dois, Cameron segurou o braço
de Finlay.
"E" agora", pensou Finlay. Era o momento, o grande momento no qual Cameron o iria elogiar.
Contudo, enquanto se dirigiam para casa, Cameron falou apenas o seguinte:
- Graças a Deus, não deixarei de ter os meus gerânios este verão!
Mas havia na sua voz uma rara expressão de carinho.
A ESPOSA DO HERÓI
A ESPANTOSA CARREIRA DE NED
Durante alguns dias Levenford não falou em outra coisa senão no match. Claro que naquela zona o pessoal é "maluco" por futebol. Têm uma tradição, compreende-se.
Naqueles velhos tempos em que um "center-forward" usava suíças e os calções do "goal-keeper" abotoavam abaixo dos joelhos, o time de Levenford compunha-se de campeões. O fato de haverem eles dormido sobre esse louros homéricos - dormido até o ponto de ocuparem apenas um lugar no fim da Segunda Divisão, não significava nada. Levenford era ainda Levenford. E agora, na primeira rodada da Copa da Escócia, iriam enfrentar os Glasgow Rovers no seu próprio campo.
Os Glasgow Rovers, que ocupavam um lugar de frente na Primeira Divisão, o time craque do país c no nosso campo!
Nos estaleiros, nas ruas, nas lojas, em toda parte, desde o Clube Filosófico até o bar de Fitter, a animação parecia uma loucura.
Pessoas completamente estranhas interpelavam-se no Cross;
- Será que a gente aguenta? gaguejava um.
E o outro respondia, sinceramente emocionado:
- Bem! Pelo menos nós temos o Ned!
Ned Sutherland era o homem a quem se referiam
- Sutherland, o idolo, o prodígio, o sem rival! Sutherland, o objeto do solene aforismo de Bailie Paxton:
"Ele tem mais tutano no dedo mínimo do que o time inteiro tem na cabeça".
Sutherland, o formidável! Viva Ned!
Ned não era jovem; sua idade, mantida oculta como idade de mulher, era incerta. Mas aqueles que o conheciam atribuiam-lhe uns quarenta, pois, segundo sabiamente opinavam, Ned já era profissional de futebol há uns bons vinte anos. Mas não em Levenford, oh, Senhor, não!
A extraordinária carreira de Ned levara-o para muito longe da sua cidade natal; primeiro para Glasgow, onde a sua estreia pusera em delírio sessenta mil pessoas; depois para Newcastle, de lá para Leedes, depois para Bkmingham - oh, Ned estivera em toda parte sem jamais se demorar muito, note-se, mas sendo sempre o centro de atração, sempre o ídolo das multidões.
No ano anterior, entretanto, depois de um curto intervalo durante o qual os grandes clubes, com inacreditável estupidez, não tomaram conhecimento do "passe livre" de Ned, voltara ele magnificamente para Levenford, em plena forma, segundo o afirmava, para que o clube da terra recuperasse o seu lugar no mapa!
O PREÇO DA GRANDEZA
Não se pode negar que havia boatos a respeito de Ned, boatos sórdidos que são o preço da grandeza.
Murmurava-se, por exemplo, que Ned gostava do copo, que Newcastle estimara ver-se livre dele e Leedes não sentira nada a sua ausência.
Eram uma vergonha, um escândalo, uma iniquidade, as mentiras que sobre ele se espalharam.
Que mal fazia se Ned gostava de seu trago? Ainda jogava melhor quando bebia, o que acontecia frequentemente. Que importava se uma bebedeira ocasional lhe acompanhava o crescimento da grandeza, se fora pródigo no seu vagabundear? Não era, afinal, o famoso filho de Levenford?
Fora os caluniadores! assim bradava Levenford que, quando Ned voltou, o apertou de encontro ao seu coração.
Ned era um homenzarrão já calvo no alto da cabeça, de rosto liso e pálido, olhar úmido e ameno.
Não tinha o aspecto de um jogador de futebol, mas antes o de um fazedor de brindes em banquetes de cidade. Na aparência era um pouco "dandy"; o terno que usava era invariavelmente de sarja azul,
- limpo e bem escovado; no dedo mínimo usava um anel pesado com uma pedra de cor; a cadeia do relógio estendia-se entre os dois bolsos do colete, e carregava a fila de medalhas que ele conquistara; os seus sapatos, - especialmente os seus sapatos - eram lustrosos como espelhos.
Naturalmente, Ned não engraxava pessoalmente os seus sapatos. Embora a maioria dos jogadores do time de Levenford ocupasse emprego nos estaleiros e na fundição, Ned, como convinha à sua arte superior, não trabalhava absolutamente. Os sapatos eram engraxados por sua esposa.
E agora que mencionamos Mrs. Sutherland, chegamos ao ponto a respeito do qual estão todos de acordo.
A ORGULHOSA JACTÂNCIA
Era uma pena, uma pena enorme que amulher de Ned fosse um tal peso morto a entravar o marido e não só .a esposa, como os seus cinco filhos. Santo Deus! fazia dó pensar que Ned se amarrara tão jovem, -- vendo-se forçado a arrastar atrás de si a mulher e o crescente batalhão de filhos, durante as suas famosas viagens.
Era essa, claro, a razão de seu declínio, cabendo pois toda a culpa desse declínio à mulher que era a esposa de Ned.
Como dizia sabiamente Bailie Paxton, com um significativo gesto de repugnância: - Não poderia ela ter tomado mais cuidado consigo?
O fato concreto é que Levenford tinha Mrs. Sutherland num conceito muito precário, - pobre e desmazelada criatura, sempre de olhos baixos. Se fora bonita outrora, e alguns diziam que ela o fora, Senhor! estava muito longe disso hoje.
Não admirava que Ned se envergonhasse dela, principalmente nas tardes de sábado quando, emergindo da sua obscuridade, aparecia ela junto ao campo à espera do marido.
- Vejam só, ela jamais vinha assistir ao jogo, ficava simplesmente a esperar lá fora até que Ned recebesse o seu dinheiro. Esperar pelo homem para lhe tirar o ordenado do bolso. Não era deplorável, Deus do céu?
Deve-se admitir que algumas pessoas a apoiavam. Certa vez no Clube Filosófico, quando o assunto era discutido, o doutor Cameron que, para estranheza de todos, parecia gostar da mulher, explodiu com azedume:
- com aqueles cinco fedelhos a alimentar, o jeito que ela tem mesmo é sair atrás dele pelos botequins, enquanto lhe for possível!
Mas Cameron sempre fora um herético, com as ideias mais esquisitas a respeito das coisas e das pessoas. E a popularidade de Ned, segundo fora dito muito bem, estava bastante acima das maluquices alheias.
E com efeito, à medida que o dia do jogo gradualmente se aproximava, essa popularidade ia ficando mais perto da glória.
Ned tornou-se uma espécie de Deus. Quando descia High Street, em Levenford, com os polegares nas cavas do colete, as medalhas dançando, o seu sorriso liso e jovial reconhecendo um aqui outro ali, quase que era ovacionado. No Cross, já uma multidão o cercava, - multidão que lhe bebia cada palavra que saía dos seus brandos e amigáveis lábios.
E foi também no Cross que se realizou o memorável encontro com o Preboste Weir.
- Bem, Ned, meu rapaz, disse o Preboste estendendo a mão, afabilíssimo. Haveremos de ganhar, pois não?
Os olhos de Ned brilharam forte. Sem se desconcertar, ele sacudiu a mão do Preboste e solenemente soltou a frase que ficou famosa:
- Se os Rovers vencerem, Preboste, será por cima do meu cadáver.
O OLHO MACHUCADO
Certa noite, uma semana antes do jogo, Mrs. Sutherland veio à casa do médico.
Já era tarde. O funcionamento vespertino do consultório terminara. E, com grande humildade, Mrs. Sutherland procurou Hyslop, cuja obrigação era atender os casos fora de hora.
- Peço-lhe muitas desculpas por vir incomodálo, doutor, começou ela. - E estava de pé, imóvel, limpa e pobremente vestida, segurando as luvas remendadas nas mãos gastas.
Era uma mulher bonita, ou antes, fora outrora uma mulher bonita. Pois agora tinha como que um ar murcho; uma esquisita transparência no rosto e no jeito, algo de tão exausto e tão esgotado que impressionou Finlay.
- Foi loucura minha vir cá, tornou a dizer ela, e calou-se.
Finlay, colocando uma cadeira ao lado da mesa, convidou-a a sentar-se.
A mulher agradeceu com um sorriso débil.
- Não é costume meu preocupar-me estupidamente comigo própria, doutor. Na verdade eu não devia ter vindo cá. O fato é que custei tanto a me convencer a vir, que quase não venho.
Um sorriso hesitante; Finlay jamais vira um sorriso tão humilde.
- Mas a verdade é que eu acho que não estou enxergando nada de um dos meus olhos.
Finlay soltou a caneta.
- Quer dizer que está cega de um dos olhos?
Ela baixou a cabeça concordando, e acrescemtou:
- Sim, do olho esquerdo. Seguiu-se um rápido silêncio.
- Dor de cabeça? perguntou o médico.
- Bem, às vezes tenho dor de cabeça muito forte, admitiu ela.
Finlay continuou a interrogá-la o mais gentilmente e menos solenemente possível. Depois, erguendo-se, apanhou o oftalmoscópio e, apagando as luzes do consultório, examinou-lhe os olhos.
Teve alguma dificuldade em alcançar a retina. Mas por fim, conseguiu uma visão perfeita. E, a despeito de si próprio, enrijeceu-se. Estava horrorizado. Esperara uma coisa ruim, - claro que esperara uma coisa ruim, - mas não aquilo. A retina esquerda estava sobrecarregada de pigmento que só podia ser melanina. Finlay tornou a examiná-la lentamente, cuidadosamente: não era possível duvida nenhuma.
Tornou a acender as luzes, tentando disfarçar a expressão do rosto.
- A senhora recebeu alguma pancada no rosto, ultimamente? indagou ele, sem olhar a mulher, mas espiando-lhe o reflexo no espelho da lareira. E a consulente respondeu com rapidez:
- Talvez eu tenha batido no guarda-roupa... escorreguei no mês passado, creio que foi isso.
Finlay nada disse, mas tentou dar às próprias feições um ar tranquilizador.
- Eu gostaria que o doutor Cameron a examinasse, declarou ele por fim. A senhora se incomoda?
Ela pôs no rapaz o olhar silencioso.
- Então a coisa é grave?
- Bem... disse Finlay atrapalhado - vamos ver o que diz o doutor Cameron.
Queria acrescentar qualquer coisa, mas não encontrava as palavras, e deixou lamentavelmente o quarto.
A BRUTAL VERDADE
Cameron estava no seu escritório, alisando as costas de um violino com lixa fina e cantarolando a sua cantiguinha infernal.
- Mrs. Sutherland está no consultório, avisou Hyslop.
Cameron respondeu, sem erguer o olhar:
- É uma boa criatura. Conheci-a quando ainda era garota, antes de se desgraçar com aquele jogador bêbedo. Que foi que a trouxe aqui?
- Creio que ela tem um sarcoma melanotico, respondeu lentamente Finlay.
Cameron parou de cantarolar e depôs cuidadosamente o violino. Seu olhar pregou-se no rosto de Hyslop e nele se demorou muito tempo. Ergueu-se:
- vou até lá.
Entraram juntos no consultório.
- Então, Jenny, que é isso que me disseram a seu respeito, rapariga? - A voz de Cameron era suave, como se falasse com uma criança.
O exame que fez foi ainda mais demorado e minucioso do que o de Finlay. Ao cabo dele, um olhar rápido passou entre os dois médicos, um olhar que confirmava o diagnóstico, um olhar que significava a morte de Jenny
Quando acabou de vestir-se, Cameron segurou-lhe o braço.
- Escute, Jenny, será que esse seu marido pode vir aqui pela manhã falar comigo e com Finlay?
Ela o encarou com aquela singular perspicácia das mulheres que têm levado uma vida de dificuldades :
- Então estou sofrendo de alguma coisa grave, doutor?
Silêncio.
O que há de melhor na humanidade lia-se no rosto de Cameron e na sua voz quando ele respondeu:
- É sério sim, Jenny.
E, curioso, ela se mostrava mais calma do que ele:
- O que significa isso, doutor?
Mas Cameron, apesar de toda a sua coragem, não lhe pôde dizer toda a brutal verdade. Como poderia dizer-lhe que estava com os dias contados, ferida pela mais pavorosa doença conhecida dos homens, uma formação incrivelmente maligna, que, partindo do olho, espalha-se pelo corpo como uma chama
- destruindo, corrompendo e estrangulando? Não há esperança, não há tratamento, nada senão encarar a morte certa e imediata!
Seis dias, na pior hipótese, seis semanas na melhor, eram essas as probabilidades de vida de Jenny Sutherland.
- Você terá que ir para o hospital, rapariga, contemporizou o velho.
Ela porém respondeu rapidamente:
- Não posso deixar as crianças. E Ned - com esse grande jogo se aproximando, ficaria muito abalado; não pode ser, de modo nenhum, nenhum.
Interrompeu-se, calou-se e afinal perguntou:
- Posso pelo menos esperar até depois do jogo?
- Bem. Sim, Jenny, acho que você pode esperar.
Jenny lhe examinou o rosto compassivo e apanhou algo do que significava aquela concessão de Cameron. Mordeu o lábio com forca. Guardou silêncio. Por fim, com a maior lentidão, disse:
- Compreendo, doutor. Compreendo agora. O senhor quer dizer que de qualquer modo não fará grande diferença, não- é?
Os olhos dele baixaram-se e ela compreendeu.
O GRANDE DIA
A manhã do sensacional jogo surgiu com neblina mas pouco depois do meio-dia o sol clareou, magnífico. A cidade estava silenciosa, numa tensão terrível.
Às onze horas, receosas de não conseguirem lugar, havia pessoas que já se haviam dirigido ao campo. Mas Ned, não, é claro! Ned estava na cama, repousando, conforme o fazia sempre antes de um jogo. Tinha um ritual muito particular, que naquele dia ficara mais particular ainda.
Às dez horas Jenny trouxe-lhe o pequeno almoço
- uma grande bandeja com porridge, dois ovos quentes, e um excelente bolo de aveia feito por ela especialmente. Depois a mulher se dirigiu à cozinha afim de preparar o chá com duas torradas, que eram o almoço leve de Ned nos dias de jogo. E enquanto ela estava junto ao fogão, ouviu a voz do marido a queixar-se:
- Traga-me outro ovo junto com a sopa. Acho que vou precisar.
Ela escutou, fez um pequeno movimento de desânimo, e em seguida foi procurar o marido e desculpou-se:
- É pena, Ned, mas hoje de manhã lhe dei o último ovo que havia em casa.
Ele a encarou:
- Então mande comprar outro.
- Mando, se você me der o dinheiro, Ned".
- Dinheiro I Meu Deus! Sempre essa história de dinheiro! Você não pode comprar fiado?
Jenny abanou lentamente a cabeça:
- Você sabe que há muito tempo não nos fiam.
- Santo Deus! explodiu ele. Bonita dona de casa é você! Lindo será o meu estado, indo para o jogo a morrer de fome. Então traga-me a sopa depressa e bastantes torradas. E pelo amor de Deus veja se faz com que essa sua meninada cale a boca. Já quase me rebentam os ouvidos hoje de manhã.
Jenny voltou em silêncio à cozinha, e com um gesto de aviso imobilizou as duas crianças menores que lá estavam; os maiores tinham mudado a roupa cedo e haviam ido brincar no parque, afim de não incomodarem o pai.
Jenny trouxe a sopa ao marido e ficou de pé ao lado da cama enquanto ele sorvia o caldo, ruidosamente. Entre uma colherada e outra ergueu ele os olhos para a esposa e perguntou com azedume:
- Que é que tem você, com essa cara de enterro? Só Deus saberá por quê, mas já faz bem uns quatro dias que não lhe vejo um sorriso.
Ela arranjou um sorriso - um vago, incerto sinvulacro de sorriso.
-- Para falar a verdade, não tenho me sentido bem ultimamente.
- Está ótimo! Comece com as suas queixas, mesmo na hora de um jogo importante como este! com os diabos! esse seu costume de viver chorando e gemendo põe um homem estúpido.
- Não estou me queixando, Ned, disse ela às pressas.
- Então vá buscar a embrocação e me dê uma esfregadela.
A ESPINHA DORSAL DO TIME
Jenny trouxe a embrocação e enquanto ele se deitava estirando as pernas musculosas, ela começou a massagem do costume.
- Mais força! Mais força! exigia Ned. Esforce-se um pouco! Faça com que isso penetre por baixo da pele.
Custou a Jenny um esforço tremendo concluir a massagem. Muito antes de terminar, um suor de fraqueza lhe banhava o corpo todo. Mas por fim ele rosnou:
- Já chega, já chega. Embora de pouco me tenha servido. Agora traga a água para a minha barba e veja que esteja fervendo.
Ned levantou-se, barbeou-se, vestiu-se cuidadosamente.
Ouviu-se a campainha da porta.
- E Bailie Paxton, anunciou Jenny. Veio com o cabriole para levar você até o campo.
Um lento sorriso satisfeito derramou-se pelo rosto de Ned.
- Está bem. Diga a ele que já desço.
E enquanto o marido tirava o chapéu do cabide, Jenny o olhou, amparando-se à lareira. Havia no seu rosto muita tristeza e uma singular obstinação.
- Faço votos para que jogue bem, Ned, murmurou ela.
Quantas vezes já dissera aquelas palavras, e em quantos lugares? mas nunca, nunca, como agora!
Ele fez um rápido gesto com a cabeça e saiu.
O jogo começou às duas e meia e, muito antes da hora, o campo já estava cheio, a ponto de sufocar. Centenas de pessoas não puderam entrar e outras centenas pularam a barreira e foram se sentar junto do gramado.
A banda de música da cidade tocava no centro das arquibancadas, a bandeira agitava-se alegremente à brisa, e a multidão estava possuída de uma exaltação recalcada. Foi aí que os Rovers pisaram o campo, garbosos nas suas camisas azuis.
Um brado se ergueu, pois dois trens cheios de torcedores haviam acompanhado o time de Glasgow. Mas a ovação não foi nada, ante o alarido que rebentou no ar quando Ned saiu com os seus homens do vestiário. Dizem que foi ouvido até em Overton, a uns bons cinco quilómetros de distância.
Foi jogada a moeda e Ned tirou o lado melhor.
Outro vivorio; depois um silêncio mortal, quando os Rovers deram o primeiro chute. Começara afinal o grande, o glorioso jogo.
Logo de saída foram os Rovers atacando.
Eram eles habilissimos, e jogavam um futebol de tanta classe que gelava os corações dos torcedores locais. Rapidíssimos, monopolizavam a bola, chutavam-na com precisão mortal de uma ala à outra.
E como se isso ainda não bastasse, os jogadores de Levenford mostravam-se nervosos e tolhidos, produzindo menos do que podiam, perdendo bolas à toa. Todos, menos Ned!
Oh, Ned estava soberbo! Sua posição era de center-half, mas naquele dia ele aparecia em toda parte, u escora, a verdadeira espinha dorsal do time.
Ned não era rápido, nunca fora veloz, mas sua previsão substituía a velocidade, ou antes, produzia mais ainda. Uma vez atrás da outra, salvou ele a situação, aliviando a pressão sobre o goal de Levenford com algum movimento astuto, um passe de lado, um passe curto, um chute para fora do campo.
Ned era o melhor homem no campo, um jogador nato, formidável. Parecia uma torre, aquele calvo gladiador de calções entre os vinte e um homens.
A ÚNICA ESPERANÇA
Tinha que acontecer, é claro: um homem sozinho não poderia rebater aquele diabólico ataque. Antes que tocasse o apito do meio-tempo, os Rovers marcaram goal. Não por culpa de Ned. O back direito de Levenford perdeu a bola e, rápido como o pensamento, o extrema esquerda dos Rovers deu um chute direto para a rede.
A tristeza se abateu sobre a torcida de Levenford. Se o escore houvesse continuado em branco, o time local teria iniciado o segundo tempo com muito maior confiança. Mas agora, ai deles, já com um tento perdido e o vento contrário, até os mais otimistas admitiam que as perspectivas não eram risonhas.
Havia uma única probabilidade, uma única esperança - Ned - e a lembrança das suas enfáticas palavras: "Se os Rovers vencerem, será por cima do meu cadáver".
Começou o segundo tempo; e os preciosos momentos puseram-se a correr.
Levenford jogava melhor, conseguiu dois corners em rápida sucessão; combinaram-se bem para o ataque e apossaram-se da bola a despeito do vento. Mas os Rovers não lhes davam uma folga. É verdade que os visitantes haviam perdido um pouco da sua capacidade de ataque. Jogando num lugarejo, longe de casa, desinteressavam-se um pouco, à medida que o jogo se adiantava e parecia quase que eles se satisfariam em manter o escore de um a zero.
Compreendendo rapidamente essa atitude meramente defensiva, a multidão berrava estímulos aos seus favoritos.
O ar estava cheio de uma espécie de frenesi, que, partindo da torcida, alcançava os jogadores de Levenford. E eles atiravam-se ao jogo com novo entusiasmo.
Fizeram uma pressão furiosa em torno do goal dos Rovers; não conseguiram contudo alterar o placard.
Outro cornei-, e Ned, apanhando a bola, lindamente chutou-a de encontro à trave. E a torcida gemeu numa mistura de êxtase e desespero.
A luz do dia ia escurecendo, o tempo correndo mais depressa - vinte, dez, apenas cinco minutos para acabar.
Sobre a torcida ululante ia baixando lentamente um amargo sentimento. A derrota pairava no ar, a dolorosa amargura da derrota. E então na linha dos médios, Ned Sutherland apanhou a bola. Ficou com ela e ganhou terreno, abrindo caminho com indescritível destreza por entre a massa dos jogadores.
- Passa, Ned, passa! gritava a torcida, na esperança de o ver executar uma abertura dos lados.
Ned porém não passou. com a bola nos pés e a cabeça baixa, ele investia como um touro.
O GOAL DE PENALTY
Aí a multidão de torcedores realmente ululou, compreendendo o que Ned estava tentando fazer sozinho.
O back esquerdo dos Rovers também entendeu, mas já com Ned dentro da área de penalty e pronto para chutar. Atirou-se a Ned num encontrão brutal.
Ned caiu com uma pancada surda e em dez mil gargantas irrompeu o grito frenético:
- Penalty! penalty! penalty!
Sem hesitar, o arbitro apontou para o local.
A despeito dos protestos dos Rovers, ele ia conceder - sim ia conceder um penalty a Levenford!
Ned levantou-se. Não estava machucado. Aquela simulação perfeita de uma séria contusão fazia parte da sua arte. E agora era ele próprio que iria cobrar o penalty.
Uma calma mortal imobilizou a turba, enquanto Ned punha a bola em posição.
Ele o fazia friamente, impessoalmente, como se nada entendesse da aflitiva espectativa que o cercava. Nenhuma pessoa respirava enquanto Ned batia com a ponta do pé no chão, tirava a mira do goal e corria três passos rápidos para trás.
E aí, fogo! A bola aninhou-se na rede.
- Goal! gritou a multidão extasiada, e no mesmo instante o juiz apitou o final.
Levenford empatara. Ned salvara o jogo. Seguiu-se um pandemónio. Atiravam-se loucamente para o ar chapéus, guarda-chuvas e bengalas.
Gritando, uivando, berrando, delirante, a torcida invadiu o campo.
Ned foi arrancado do chão, posto aos ombros dos torcedores, e carregado por eles até ao vestiário.
O HERÓI CHEGA AO LAR
Naquele momento Mrs. Sutherland estava sentada na cozinha da casa silenciosa.
Quisera muito acompanhar Ned ao campo; mas o simples esforço de enfiar o casaco provara-lhe que seria inútil a tentativa. com o rosto na mão, tinha ela o olhar perdido à distância. com certeza Ned voltaria diretamente para casa, decerto veria um pouco da mortal tristeza que ela estampava no rosto. Tinha um desejo desesperado de aliviar o peso que a esmagava, contando tudo ao marido. Jurara a si própria não lhe contar nada até o jogo. Mas agora tinha que dizer.
Era uma coisa por demais terrível para afrontá-la sozinha!
Jenny sabia que estava morrendo; os poucos dias decorridos após a sua visita a Hyslop tinham-lhe acarretado uma rápida quebra de forças; o flanco doía-lhe e a vista estava pior.
Uma hora passou-se e nem sinal de Ned. Jenny mexeu-se, levantou-se e meteu na cama as crianças menores.
Sentou-se novamente. E ele que não vinha. As outras crianças chegaram e por elas Jenny soube o resultado do jogo.
Bateram oito horas, bateram nove. Já agora até o mais velho dos meninos estava dormindo. Jenny sentia-se terrivelmente mal; e cuidava em verdade que estava morrendo. A sopa que ela preparara para o marido já não prestava e o fogo apagara-se por falta de carvão. Desesperada, a mulher levantou-se e se arrastou até a cama.
Era quase meia-noite quando o marido entrou.
Jenny não dormia - a dor do lado não o permitia; e ouviu os passos lentos e incertos seguidos pelo bater da porta.
Ned estava bêbedo, como de costume; não. pior do que de costume, porquê naquela noite, com bebida à vontade, ele ultrapassara muito o seu grau habitual de bebedeira.
Entrou no quarto de dormir e acendeu o gás.
Cheio de whisky, de elogios, de triunfo, da consciência de sua inefável habilidade, pôs-se a olhar a mulher deitada na cama; depois, sempre a olhá-la, encostou-se Queria contar a Jenny quão formidável era ele, que maravilhoso goal conquistara. Queria repetir a nobre e heróica frase que pusera em circulação: Que os Rovers só venceriam por cima do seu cadáver.
Tentou articular as palavras mas, naturalmente, saiu-lhe tudo embrulhado. O que ele conseguiu dizer foi:
- vou... vou vencer... vou vencer... por cima... do seu cadáver.
E riu satisfeitíssimo.
O FIM DE UM ASSISTENTE
O ACIDENTE DE MATTTIE
Finlay Hyslop viu pela primeira vez Mattie Lennox, de Marklea, quando ela lhe apareceu, certa manhã de inverno, com a grande queimadura no ombro.
Era uma feia queimadura de segundo grau que atingia parcialmente o dorso e fora rudemente tratada com óleo de rícino e um farrapo limpo de algodão. A despeito do óleo, o trapo grudara, de forma que fora difícil ao médico limpar e fazer novo curativo na ferida; para a paciente, então, fora dolorosíssimo.
- Quando aconteceu isto? Pelo aspecto foi ontem à noite, não?
Vendo-a curvar-se, Finlay soltou um estalo impaciente com a língua -- detestava provocar dor nos outros - e acrescentou:
- A senhora devia ter vindo mais cedo!
Ela se sentava erecta e corajosa na dura cadeira do consultório, com o corpete descido, pondo à mostra os seios jovens, a pele leitosa, desfigurada pela horrenda ferida.
Não teria mais de dezenove anos, e era bonita, espessos cabelos castanhos e lindos olhos castanhos também. Contudo, tinha o rosto pálido, os lábios estreitamente apertados, a expressão contida e sofredora.
Hyslop olhava-a com curiosidade, e quando começou a envolvê-la com o rolo de atadura, perguntou:
- Como lhe aconteceu isto? Ela respondeu laconicamente:
- Derrubei a lâmpada em cima de mim, ao carregá-la.
Finlay olhou-a atónito:
- Mas, menina, você não carregava a lâmpada às costas.
A moça não respondeu e apertou ainda mais os lábios, mantendo no chão os olhos magoados. Instintivamente Finlay olhou através da sala para o irmão dela, Hughie, rapazinho de doze anos, que a trouxera na carreta puxada por um poney.
Hughie, encontrando o olhar do médico, irrompeu :
- Não foi ela! Foi ele que atirou a lâmpada nela!
- Cale a boca, Hughie! - Mattie virara-se apaixonadamente para o irmão. - A queimadura não foi em mim? Pois sou eu que falo o que for preciso.
Contudo não falou muito mais, exceto para perguntar a Hyslop como cuidaria da queimadura no futuro e para lhe agradecer polidamente ao pagar-lhe a consulta.
UM PAR ESTRANHO
À janela Fiulay viu-os descer a avenida; e pensou: é um par estranho!
O menino, com o seu casaco de tricô azul, bem grosso, botinas de pregos, apertava estreitamente a mão de Mattie, a qual, trajada com singular dignidade no feio vestido feito em casa, levava a cabeça erguida, como se afrontasse simultaneamente com sensibilidade e orgulho, o olhar concentrado de um universo hostil.
Viu-os subirem à velha carriola, descascada pelo sol, de arreios remendados com cordão, rodas cheias de lama e falripas de palha ainda presas aos cubos.
E partiram em silêncio para a jornada de duas léguas, de volta a Marklea.
Passaram-se três meses antes que Finlay ouvisse novamente falar na família Lennox.
Chegara a primavera, uma primavera maravilhosa, com grandes escaldadelas de sol e quentes aguaceiros fecundos que faziam desabrochar em flores os bosques de Marklea e, como sugeriu, esperançoso, Cameron, - prometiam uma subida precoce do salmão no lago.
Já duas vezes fora o velho pescar para além de Marklea e voltara de cada ocasião com um belo peixe. Agora chegara a vez de Finlay e, às nove horas daquela manhã de quinta-feira, carregava ele o anzol para o cabriole, um pacote de sanduíches preparado por Janet e, animado como um colegial, preparava-se para sair.
E então, mesmo no momento da partida, Cameron lhe disse como por acaso:
- A propósito, Finlay, a respeito do bote, - há vários em Marklea; tome qualquer um, exceto o de Rab Lennox.
A curiosidade de Finlay foi despertada. Como porém tinha pressa de sair, contentou-se em fazer um gesto de aquiescência. Contudo, no fim da tarde, acabada a pescaria, quando tomava um bom chá reforçado no Marklea Arms, recordou-se da observação de Cameron.
O sol tinha estado forte demais para uma boa pescaria. O lago, muito sossegado; ele porém apanhara um salmonete de mais de dois quilos e estava bastante satisfeito com a vida. Algo dessa satisfação refletia-se nas suas maneiras, pois ele sorriu para Mrs. Dow, a .proprietária da taberna, enquanto perguntava:
- A propósito: quem é um tal Rab Lennox em quem ouvi falar?
No rosto da mulher não apareceu nenhum sorriso em resposta. Ela parou a limpeza da mesa, olhou-o
- Finlay enchia o cachimbo ante o fogo estralejante
- e disse brevemente:
- Não é muito boa bisca.
UM FREGUÊS INDESEJÁVEL
Elspeth Dow não era mulher de falatórios, mas uma senhora benquista, proprietária do Marklea Arms há uns bons quinze anos.
Finlay encontrou dificuldade em fazê-la falar; mas por fim, alisando pensativamente o avental branco, ela lhe contou alguma coisa a respeito de Rab Lennox,
Morava ele perto das docas, na última casa da aldeia, um pequeno cottage branco na ponta de uma ruela que teria no máximo trinta casas.
Exercia todos os ofícios, e não exercia nenhum. A tabuleta que tinha pintada à porta informava que alugava botes. Mas as pessoas direitas informavam outra coisa. Enquanto aparentemente Rab passava o tempo fumando industriosamente à beira do cais, à espera de um turista descuidado que lhe alugasse o bote de fundo chato, sabia-se que o homem exercia outras atividades.
Era o mais atrevido caçador e pescador furtivo da região, capaz de apanhar quanto quisesse de salmão e truta, ou abater faisão e galo silvestre - e até mesmo um gamo vermelho no morro!
Também criava cachorros e em negócios era sempre ele que fazia a pechincha. Pretendia ser grande entendido em cavalos e quando havia corridas em Lanark ou Bogside, Lennox desaparecia, regular como um relógio, e ficava fora todo o fim de semana.
Mas isto não era o pior. Acreditava-se que ele dava os seus passeios até à ilha, senão como é que podia viver bebido como uma esponja se, por ordem expressa de Elspeth, não lhe era permitido pôr o pé no bar do Marklea Arms? Pois bebido como uma esponja andava sempre ele durante todo o santo ano, raramente bêbedo de verdade, mas ainda mais raramente sóbrio.
- É um homenzarrão vermelho, grande feito um touro, de bocarra preta e uns olhinhos de porco, afundados debaixo de umas sobrancelhas ruivas. Assim é que ele é, concluiu Mrs. Dow com um gesto de repugnância. Quem olha para Rab pensa que Deus juntou um porco e um touro e lhes deu forma humana. Deus que me perdoe destas palavras, mas não quero ter a salvação se forem mentira.
A mulher de Rab morrera há sete anos atrás. Era uma moça de Inveraray, criatura altiva e meiga e muito acima de Rab. Era viuva com uma filha única e algum dinheirinho; casara com ele do pé para a mão, a bem dizer, pois Rab, quando moço, tinha uns modos dominadores e ousados, aos quais poucas mulheres sabiam resistir. E todos .poderiam calcular que a mulher bem cedo tivera motivo para queixas daqueles modos dominadores, embora ela jamais houvesse falado nisso a ninguém. O seu dinheiro depressa foi embora e não fora ela quem o gastara. A coitadinha murchava como uma flor abandonada e morrera logo depois do nascimento de Hughie.
Mattie, a filha, era a imagem da mãe, linda e boa rapariga, que tomava conta da casa do padrasto, enfrentando dificuldades quase insuperáveis. Não eram só os maus tratos de Rab, ainda que, quanto mais bêbado, mais os espancasse, a ela e ao filho. Era pior do que isso.
Ele não lhe tirava o olho de cima. Se lhe batia neste minuto, estava a agradá-la no minuto seguinte. E mais que tudo, proibira a entrada na casa a Neil Taggart, que trabalhava na polícia, rapaz decente, respeitado; e todo mundo sabia que Neil e Mattie eram loucos um pelo outro.
UM CHAMADO A MEIA-NOITE
Mrs. Dow descaiu os cantos da boca. Nada se podia tirar de Mattie, naturalmente. A menina era altiva, altiva de verdade, e tal como a mãe, preferiria norder a língua a consentir que uma queixa lhe atravessasse os lábios. Mas o que aconteceria com aquele animal bêbedo e a linda rapariga, não poderia ser nada de bom, ou Elspeth Dow se enganava muito.
Nesse outono, Finlay passou em Marklea parte das suas férias de dez dias. Gostava daquele lugar e a pesca, com o fim do cardume de trutas que subiam o Fruin, era inusitadamente boa,
No Marklea Arms, Mrs. Dow o tratava muito bem, à sua maneira discreta, e o jovem Taggart o levava na lancha da policia nas horas melhores da pesca.
Era Neil Taggart o homem mais taciturno que já nascera neste mundo; capaz de viajar um dia inteiro sem articular mais de dez sílabas.
Não era génio mau que o emudecia assim, mas a reserva dum homem calado que vivera dentro do silêncio da natureza, e o assimilara.
Tinha muita sensibilidade, também; mudava de cor rapidamente e nos seus olhos pardos havia uma expressão distante, um pouco daquela curiosa brandura que caracteriza a raça escocesa.
Finlay adivinhava que Neil andava perturbado e infeliz. Mas entre ambos, o nome de Mattie Lennox jamais fora dito.
O último dia de pesca começou e terminou. Nessa noite, tendo já em mente a sua partida matinal para Levenford, Finlay foi deitar-se pouco depois das nove.
Adormeceu imediatamente, mas duas horas depois uma pancada forte na porta o acordou. Sentou-se na cama e gritou:
- Que é que houve?
- É Hughie Lennox que precisa do senhor, disse a voz de Mary, a ajudante de cozinha. Tentei mandá-lo embora, mas o pequeno diz que precisa falar com o senhor!
Finlay pulou da cama. com a facilidade da prática, vestiu-se e desceu a escada no espaço de três minutos.
Hughie Lennox estava na porta dos fundos do albergue. Embora a noite fosse quente e estrelada, o garoto tremia.
- Foi meu pai, gaguejou ele em resposta à pergunta de Finlay. O senhor tem que ir lá comigo.
- Mas que foi que aconteceu? insistiu Finlay.
- Não sei... não sei... gemeu Hughie. Tenho que ficar do lado de fora nas noites em que ele vai à ilha... porque ele me espanca quando volta... - E o pequeno puxava o braço de Finlay freneticamente.
CINCO PALAVRAS
Desceram os dois a deserta rua da aldeia e entraram pela cozinha da casa de Rab Lennox. E lá, Finlay deteve-se gelado ante o que via. Agachada no canto da cozinha, com o rosto branco de cal, descalça, vestida apenas com a camisola, estava Mattie.
Esparramado no chão de pedra, com um fio de sangue lhe saindo das narinas e uma contusão roxa no meio da testa, estava Rab Lennox.
Bastou um olhar ao grande vulto estirado, ao rosto mosqueado, à boca frouxa e aberta, para que o médico compreendesse: Rab Lennox estava morto.
Finlay ajoelhou-se junto ao corpo e, nauseado pelo fartum de bebida que lhe saía da boca entreaberta, correu-lhe rapidamente a mão pelo crânio; o couro cabeludo estava inteiro, mas atrás, na região do occipital, sentiu uma mossa.
Pensou rapidamente. Recebendo uma pancada na cabeça, o homem caíra de costas e fraturara a base do crânio.
Os olhos de Hyslop percorreram a sala; sim, ao lado de Mattie estava um grande atiçador de cabo.
redondo. Erguendo-se, o moço olhou pensativo para o aterrorizado Hughie.
- Vá correndo, Hughie, disse ele com calma. Vá e traga Bell, o polícia, Neil Taggart, e Mrs. Dow. Traga todo mundo que puder.
Obedientemente, Hughie correu para fora de casa. Finlay encaminhou-se para Mattie.
- O que foi que a obrigou a fazer isso, Mattie? perguntou em voz baixa.
Ela não deu mostras de o escutar. Como um animal açoitado, agachava-se ali, com o lábio superior tremendo, os braços cruzados em redor do peito.
Finlay rodeou-lhe os ombros com o braço, e repetiu a pergunta.
Mattie ergueu afinal os olhos, estupidamente. E depois de um tempo enorme disse:
- Ele veio atrás de mim!
Cinco palavras - mas era o bastante!
Finlay reparou então que a fina camisola de algodão que a moça vestia, estava rasgada no pescoço.
Silêncio.
Finlay tomou o atiçador, limpou-o cuidadosamente e de novo o guardou na grelha. Virou-se então para Mattie e, lentamente, tão lentamente que cada palavra pudesse penetrar naquele espirito esmagado pelo choque, falou:
- Não abra a boca, minha filha. É só o que você precisa fazer.
ESCONDENDO UM CRIME
Quando se aproximou o som dos passos, Finlay ajoelhou-se junto ao corpo.
E lá estava quando eles entraram de rojão Bell, Taggart e uma dúzia de outros. Ainda ajoelhado, o médico os encarou penalizado, com a mão sobre o coração do morto.
- Chegaram tarde, meus amigos, disse ele, abadando a cabeça. Pensei que vocês pudessem me auxiliar, mas o homem morreu no minuto em que atravessavam a porta.
- Que é que houve, doutor? perguntou Bell em voz sacudida.
- Um ataque! respondeu Finlay resolutamente. Veio para casa embriagado, teve uma vertigem e caiu de testa no chão. Foi assim que Mattie o encontrou. Aliás foi como eu próprio o encontrei. E ele resmungou até morrer: "Levei uma queda... levei uma queda... levei uma queda..." - Coitado!
Houve um murmúrio. E por fim Bell disse com solenidade:
- Bem, foi uma coisa de repente que o pegou bêbedo. Mas o que eu digo...
Finlay levantou-se e declarou abertamente a Taggart:
- Amanhã às nove horas eu lhe dou o atestado de óbito, Neil. Enquanto isso, pelo amor de Deus, cuide de Mattie; a pobre rapariga está inteiramente fora de si.
Levantou-se um coro compassivo e Mrs. Dow correu para a moça com o seu chalé.
Na manhã seguinte Finlay estava de volta a Levenford e dirigiu-se diretamente para o consultório. Na segunda batida das nove, apareceram Neil e Mattie.
Finlay escreveu o atestado: "Hemorragia cerebral" em letra clara e redonda.
Enquanto escrevia, pensava, sombrio: "Estou dando um atestado falso - estou escondendo um crime. Por este ato também me torno criminoso; posso ter o registro cassado, se for descoberto, e até preso". E passou o mataborrão cuidadosamente. Nem uma palavra fora dita por Neil ou Mattie. Mantinham-se de pé ante Finlay, como duas crianças. Mas, no fim, Mattie irrompeu num pranto desadorado. Segurou a mão de Finlay e apertou-a de encontro às faces.
- Oh doutor, doutor! soluçava ela, sem poder dizer mais nada.
- Compreendo o que você está sentindo, Mattie, disse Finlay. Mas agora já está tudo bem.
Apertou a mão de Neil que lhe esmagou os dedos como um torno. E os dois partiram.
A PILHÉRIA DE CAMERON
Finlay encaminhou-se para Arden House; marchava pesadamente, de cabeça baixa, como um homem exausto, e rumou direto para o quarto de Cameron. Agora, realmente, é que a consciência do ato que praticara o oprimia como um peso.
Cameron, que aproveitava um momento de ócio, fumando um cachimbo antes de iniciar a ronda matinal, ergueu os olhos rapidamente.
- Onde está o peixe, homem? Onde está todo o salmão que você ia me trazer?
Finlay abanou a cabeça.
- Não lhe trouxe peixe nenhum. Trouxe-lhe o meu pedido de demissão.
E antes que o outro pudesse dizer uma palavra, contou-lhe tudo que fizera, acrescentando rudemente, ao terminar:
- Dou o fora no momento em que o senhor quiser, não me importo. Não lamento o que fiz. Tinha que o fazer.
Cameron, de cabeça baixa, bateu a cinza do cachimbo. E só quando o brilho suspeito dos seus olhos desapareceu, foi que ele se endireitou.
- Homem, Finlay, resmungou ele em cfialeto, como o fazia sempre que estava profundamente comovido, - eu sabia que você não prestava. Mas que fosse tão ruim assim, isso não sabia, não.
Uma pausa.
- Na verdade, já há dias que eu vinha pensando que você não me servia como assistente. Por isso receio muito que só haja uma coisa a fazer - uma vez que você se demite.
Pausa ainda mais longa.
- Que tal lhe parece começar como meu sócio? E sorrindo com o rosto todo, Cameron estendeu-lhe a mão.

 

 

                                                                  A. J. Cronin

 

 

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