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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AYLA, A FILHA DAS CAVERNAS / J. M. Auel
AYLA, A FILHA DAS CAVERNAS / J. M. Auel

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Já inteiramente despida, a menina correu para fora de uma cabana coberta com peles de animal em direção à praia pedregosa na curvatura de um pequeno rio. Nem pensou em olhar para trás. Nada em sua experiência anterior lhe dava motivos para duvidar de que a cabana e as pessoas dentro dela não estariam naquele ponto quando voltasse.

A menina atirou-se na água e sentiu as pedras e a areia escorregadiça sob os pés, depois que a margem terminou abruptamente. Mergulhou na água fria e voltou à tona com o rosto esbaforido, para, em seguida, com braçadas firmes, alcançar a borda escarpada do lado oposto. Aprendera a nadar antes que soubesse andar e, nos seus cinco anos, já se sentia perfeitamente à vontade na água. A nado, era praticamente o único meio de se atravessar um rio.

Por algum tempo, ficou de brincadeira, nadando de um lado para outro, até que se deixou ir pela correnteza, flutuando rio abaixo. No lugar onde o rio se alargava, espumando sobre rochas, levantou-se e foi em direção à margem. Andou, então, de volta à praia e se pôs a catar seixos. Acabara de pôr uma pedra sobre uma pilha, feita só das mais bonitas, quando a terra começou a tremer.Surpresa, viu a pedra rolando sozinha e, espantada, parou olhando a pequena pirâmide de seixos balançando e vindo depois abaixo. Só então percebeu que também ela estava balançando; sentia-se, no entanto, mais confusa do que apreensiva. Olhou à volta, tentando entender por que o universo com portava-se de forma tão inexplicável. Não se esperava que a terra se mexesse.

 

 

 

 

O rio, antes fluindo mansamente, revolvia-se agora em ondas picadas que iam bater nas barrancas, enquanto o leito rochoso, ao sabor das correntezas desencontradas, dragava a lama do fundo para cima. O matagal rente aos barrancos, a jusante, tremia, animado por movimentos invisíveis em suas raízes e as enormes pedras, a montante, balançavam-se numa instabilidade inteiramente inusitada. Mais além, na floresta, as majestosas coníferas, alagadas pelas torrentes, vergavam grotescamente. Um gigantesco pinheiro próximo à margem, com as raízes expostas e o centro de apoio enfraquecido pelas cachoeiras, dobrava-se na direção do outro lado do rio, até que com estrondo cedeu, para esborrachar-se no solo e formar uma ponte vacilante sobre o rio turvo, num mundo onde nada era seguro.

A menina tomou um susto com o som da árvore caindo. Seu estômago estreitou-se com um nó apertado, e o medo começou a invadir-lhe o pensamento. Tentou erguer-se, mas voltou a cair, desequilibrada com aquele tremor estonteante. Novamente tentou e deu um jeito para pôr-se de pé, mas sem firmeza e temerosa de dar uma passada.

Enquanto se dirigia para a cabana coberta de peles, num sítio atrás do rio, sentiu um surdo ribombar que cresceu num estrondo aterrorizador. Saía da fenda aberta no chão um fedor azedo de coisa úmida e podre, como se a terra estivesse dando um imenso bocejo pela manhã e soltasse fumos por sua respiração. A menina olhava sem compreender a lama, as pedras e árvores, tudo caindo por aquela garganta escancarada, enquanto a carcaça do planeta derretido se rachava em convulsões.

A cabana, pendurada na extrema beirada do abismo, oscilava enquanto a terra que ainda restava sob ela ia sendo arrastada. Sua frágil cumeeira balançava relutante; por fim, tudo ruiu e a cabana desapareceu no enorme buraco, carregando consigo a cobertura de couro e tudo o mais que abrigava. Com horror, a menina tremia de olhos arregalados, vendo aquele enorme bucho escancarar-se com seu mau hálito para engolir todas as coisas que tinham dado sentido e segurança aos cinco curtos anos de sua vida.

- Mamãeee! - gritou, quando pôde ter algum entendimento. Não sabia se o grito ecoando nos seus ouvidos era dela mesmo, em meio ao rugir trovejante de rochedos se esfacelando. Ajudando com as mãos foi subindo em direção à enorme garganta, mas a terra se levantava e a atirava ao chão. Agarrou-se, então, ao terreno, tentando encontrar, naquele mundo trêmulo e arfante, algo seguro em que pudesse apoiar-se.

Nisso, a garganta fechou-se, o rugir cessou e a terra aquietou-se, mas não a menina. Deitada, com o rosto colado ao chão úmido e solto, revolvido pelo cataclismo que convulsionara a Terra, ela estremeceu de medo. Tinha razão para isso.

Encontrava-se só na imensidão de estepes verdejantes e florestas dispersas. As geleiras ao norte haviam feito uma ponte sobre o continente, levando seu frio para lá. Um número indizível de animais, alguns inofensivos, outros, carnívoros e ferozes, rondavam as vastas pradarias. Gente mesmo era muito pouca. Ela Não tinha aonde ir e ninguém viria para cuidar dela. Estava só.

O solo tremeu de novo, assentando-se, e a menina ouviu um rumor saí do das profundezas da terra, como se esta estivesse digerindo o alimento tragado de uma só bocada. Ela, em pânico, deu um salto aterrorizada, achando que o chão fosse rachar novamente. Olhou, então, para o lugar onde a cabana estivera. Terra bruta e arbustos com raízes levantadas era o que restava ali. Aos prantos, voltou para o rio, lá ficando perto da água barrenta, encolhida num soluçar sem fim.

Mas os barrancos tímidos do rio não ofereciam segurança contra a turbulência daquele planeta. Veio outro abalo mais sério que o anterior, fazendo a terra outra vez tremer. Uma pancada de água fria sobre seu corpo nu fê-la estremecer, O pânico voltou e ela deu um pulo sobre os pés. Tinha de fugir daquele lugar monstruoso, de uma terra oscilante e famélica, mas aonde ir?

Na praia pedregosa do rio não cresciam plantas, era completamente desprovida de verde, mas os barrancos rio acima estavam cheios de arbustos com folhinhas recém-nascidas. Qualquer coisa dentro dela lhe dizia para ficar perto da água, só que aquele mato emaranhado mostrava-se impenetrável. Com os olhos úmidos e a visão turva, olhou para a floresta de pinheiros.

Tênues raios de luz filtravam-se pelas ramagens entrelaçadas que formavam um bosque de pinheiros próximo ao rio. A sombria floresta estava praticamente nua de plantas rasteiras e com muitas árvores tombadas. Umas caídas por terra e outras, curvando-se em ângulos desajeitados, escoravam- se nas vizinhas que continuaram firmemente plantadas. Além da massa de pinheiros, a floresta boreal mostrava-se escura e tão pouco convidativa quanto as galhadas dos barrancos a jusante. A menina não sabia que rumo tomar, ficando a olhar para um e outro lado, sem poder decidir-se.

Um tremor sob os pés enquanto olhava na direção rio abaixo fez com que se arrancasse do lugar. Depois de um último olhar saudoso, na vã esperança de que qualquer coisa da cabana ainda estivesse por lá, a menina correu para dentro da mata.

Premida pelos roncos da terra que ainda continuava assentando-se, a menina seguiu o curso dágua, parando apenas para beber, em sua pressa de se ver bem longe dali. Os pinheiros que haviam sucumbido no terremoto jaziam no chão e a garota tinha de ladear as crateras deixadas pelo emaranhado das raízes, ainda com terra úmida e pedras coladas em suas partes internas.

Ao entardecer, começou a ver menos sinais de turbulência. As árvores com raízes levantadas já não eram tantas, começavam a rarear os deslocamentos de pedras e a água clareava. Parou quando já não dava mais para ver o caminho que havia percorrido, deixando-se cair exausta no chão da floresta. Enquanto estivera movimentando-se, o exercício a manteve aquecida, mas agora, enterrada dentro de um grosso tapete de folhas de pinheiro, enroscada como uma bolinha e atirando punhados de folhas sobre o corpo, tremia com o ar gelado da noite.

Mesmo cansada como estava, o sono não chegou fácil. Enquanto esteve ocupada nas imediações do rio, saltando os obstáculos pelo caminho, havia conseguido afastar o medo do pensamento. Mas o pavor agora tomara conta. ela. Ficou deitada, inteiramente imóvel, de olhos bem abertos, vigiando a escuridão aumentar, até que tudo ficou escuro em derredor.

Até então, nunca havia ficado sozinha de noite e, ainda assim, sempre com um fogo por perto, mantendo a distância as trevas do desconhecido. Por fim, não conseguiu conter-se mais. Com um soluçar convulso, chorava sua angústia, botando-a para fora. Todo seu corpo se sacudia com o choro e os soluços, mas ela foi ficando mais aliviada e acabou caindo no sono. Um pequeno animal noturno veio cheirá-la, mas só por simples curiosidade.

Ela acordou gritando!

O planeta continuava ainda desassossegado e um rumor distante, saído das profundezas, trouxe de volta todo o horror na forma de pavoroso pesadelo. A menina deu um salto, querendo correr, mas os olhos abertos não enxergavam melhor do que com as pálpebras fechadas. A princípio, não conseguia lembrar-se do lugar onde se achava, O coração batia com toda força. Por que não podia ver? Onde estavam os braços amorosos que sempre estiveram perto dela consolando-a, quando acordava de noite? Aos poucos, sua consciência foi voltando e, tremendo de frio e medo, tornou a enroscar-se, enterrando-se debaixo do tapete de folhas. Os primeiros raios do amanhecer ainda a encontraram dormindo.

Vagarosamente, a luz do dia foi penetrando no interior da floresta. Quando acordou, a manhã já ia alta, mas, naquele denso sombreado, era difícil dizer. No dia anterior, quando começara a escurecer, ela se afastara do rio e agora, ao ver apenas árvores a seu redor, o pânico ameaçou voltar.

A sede fez com que prestasse atenção a um rumor de água nas proximidades. Passou então a seguir o barulho e com grande alívio deu de novo com o pequeno rio. Estava tão perdida ali como na floresta, mas o riozinho fazia com que se sentisse melhor, era qualquer coisa que lhe dava um sentido de direção e sempre poderia matar a sede, se permanecesse junto dele. Só que, na véspera, ele pôde dar-lhe alguma alegria, mas agora pouca coisa podia fazer por sua fome.

Não ignorava que se comiam folhas e raízes, mas não tinha noção de quais eram comestíveis. A primeira folha que provou era de gosto amargo e lhe deixou a boca ardendo. Cuspiu e lavou a boca, ficando hesitante em fazer novas experiências. Depois de beber mais água para sentir-se temporariamente cheia, retomou a caminhada descendo o rio. A escura floresta agora a amedrontava e ela tratou de ficar sempre perto do riacho, onde o sol era brilhante. Quando a noite caiu, cavou um lugar fora do terreno do pinheiral e ali se enroscou como na véspera.

Sua segunda noite sozinha não foi melhor do que a primeira. Tinha fome e sentia na boca do estômago um medo paralisante. Jamais tivera tanto pavor, tanta fome e se sentido tão só.

O sentimento de perda era tão doloroso que bloqueou na memória tudo que se referia ao terremoto e à sua vida anterior. Quanto ao futuro, o seu pensamento lhe dava pânico e ela se esforçava para não pensar nele. Não queria pensar no que lhe poderia acontecer ou quem iria tomar conta dela.

Vivia exclusivamente o momento, tratando apenas de vencer o obstáculo seguinte, de cruzar algum afluente do rio ou escalar um lenho atravessado no caminho. Seguir o riozinho tornou-se um fim em si mesmo, não por que isso a fosse levar a alguma parte, mas porque era a única coisa que lhe dava uma direção, um propósito, uma linha de conduta. Era melhor do que não fazer nada.

Depois de algum tempo, o vazio no estômago tornou-se uma espécie de dor anestesiada que lhe amortecia o pensamento. De vez em quando chorava, enquanto prosseguia, penosamente, o caminho com as lágrimas escorrendo e fazendo riscas brancas no rosto encardido. Seu corpinho nu estava em pastado de lama e os cabelos, outrora quase brancos, lindos, macios como seda, achavam-se emplastrados na cabeça, formando um emaranhado de folhas de pinho e barro.

A caminhada ficou mais difícil quando a floresta verdejante foi-se transformando numa vegetação menos densa, desaparecendo do chão as folhas caídas dos pinheiros e sua passagem obstruída por matos e gramúleas altas, o característico revestimento de terrenos com árvores de folhas pequenas e efêmeras. Quando chovia, ela se enroscava em algum tronco caído, ou debaixo de alguma pedra grande ou aforamento de rocha, ou então, simplesmente, continuava caminhando pela lama, deixando a chuva cair sobre ela. À noite, amontoava folhas velhas e secas, sobras de outras estações, e se metia dentro desse monte para dormir.

O enorme suprimento de água impediu a desidratação que provoca a hipotermia, isto é, o abaixamento da temperatura do corpo que pode levar à morte devido à longa exposição ao frio. Mas a menina estava cada vez mais fraca. Havia ultrapassado a sensação da fome, apenas acompanhava-a uma dor enjoada e constante e, de vez em quando, o sentimento de vertigem. Tentava não pensar nisso ou em qualquer outra coisa, a não ser no rio, simplesmente seguir o rio, nada mais do que isso.

Com o sol penetrando em seu ninho de folhas secas, acordou. Levantou-se do aconchego de seu buraco e, ainda com folhas úmidas coladas ao corpo, foi ao riacho tomar seu gole matinal. O céu azul e a luz do sol foram acolhidos com prazer após o dia chuvoso da véspera. Pouco depois, ela se botou a caminho. A margem de seu lado gradualmente tornou-se mais alta. Foi, então, que resolveu parar para tomar outro gole. Uma descida íngreme separava-a da água. Começou a descer com cuidado, mas perdeu o equilíbrio e rolou pela ribanceira, até atingir o pé do barranco.

Ali, ficou deitada, ferida, cheia de arranhões, enroscada no lamaçal perto do riacho, cansada, fraca, desgraçada demais para poder mover-se. Grossas lágrimas brotavam dos olhos, escorrendo-lhe pela face, enquanto sentidos lamentos cortavam o ar. Ninguém ouvia,O choro foi-se tornando uma lamúria, pedindo alguém para socorrê-la. Ninguém veio. Os ombros arquejavam com os soluços de seu pranto desesperado. Não tinha vontade de levantar-se, nem de prosseguir, mas que outra coisa poderia fazer? Ficar simplesmente chorando ali, no meio da lama?

Quando parou de chorar, foi deitar-se na beirada da água. Deu-se, então, conta de que tinha a boca com gosto de lama e que uma raiz a espetava, incomodando-a. Isso a fez sentar-se.

Exausta, levantou-se e foi até o riacho beber água. Outra vez, retomou a caminhada, obstinadamente, afastando os galhos do caminho, passando por cima dos troncos musgosos, ora entrando ora saindo da margem enlameada do rio.

As águas, que já estavam altas com as primeiras enchentes da primavera, haviam dobrado o volume dos afluentes. Bem antes de avistar a cachoeira que despencava na confluência de um outro rio, duas vezes mais volumoso, a menina já tinha ouvido seu rumorejar. Passando a cachoeira, as correntes dos rios se combinavam num curso de água que, depois de espuma” sobre algumas rochas, seguia por estepes e planícies verdejantes.

As águas estrondorosas da cachoeira se precipitavam por cima dos bordos da ribanceira, formando um largo lençol de águas brancas que caíam num lago espumoso, cavado no chão rochoso, criando uma nuvem de vapores e de redemoinhos feitos pelas contracorrentes no lugar da junção dos rios. Em algum tempo, num passado distante, o rio escavara mais profundamente o rochedo por trás da catarata. A plataforma saliente, por onde a água se despencava, avançava do paredão, atrás da cachoeira, formando ali uma passagem.

A menina circundou a entrada e, depois de olhar com atenção para dentro do túnel enevoado, pôs-se a caminhar por detrás daquela cortina movediça de água. Agarrava-se nas rochas úmidas, para poder firmar-se, mas o jorrar ininterrupto e constante das águas a deixava tonta. O barulho era ensurdecedor, ecoando no paredão rochoso por trás do tumulto da torrente. Olhou para o alto, cheia de medo, percebendo, aflita, que o rio estava sobre as rochas gotejantes por cima de sua cabeça, e começou a avançar vagarosamente de rastros.

Estava quase do outro lado, quando a passagem foi gradualmente se estreitando até tornar-se de novo o alto paredão. O corte sob a rocha tinha um fim e ela foi obrigada a fazer a volta e retornar a seu caminho. Ao alcançar o ponto de partida, olhando para a torrente estrepitosa, abanou a cabeça. Não, não tinha jeito.

Ao entrar no rio, a água estava fria e as correntezas muito fortes. Nadou até o meio e deixou que as correntes a arrastassem ao redor da cachoeira, quando fez uma virada na direção da margem do rio, que se alargava mais à frente. O exercício de natação deixou-a cansada, mas estava agora mais limpa, embora com os cabelos ainda formando uma moita embaraçada. Retomou a caminhada, sentindo-se refrescada, mas não por muito tempo.

Devido a primavera tardia, fazia um calor inusitado para aquela época do ano. O sol estava bom e agradável, e as árvores e arbustos começavam a espaçar-se, substituídos por campos abertos. À medida, no entanto, que a bola de fogo alteava no céu, seus raios iam consumindo as parcas reservas da criança. Por volta da tarde, ela cambaleava numa estreita faixa de areia entre o rio e um penhasco escarpado. A água cintilava, refletindo nela o brilho do sol, enquanto os arenitos quase brancos esparziam luz e calor, contribuindo para a intensa luminosidade.

Do outro lado do rio e à frente, pequeninas flores - brancas, vermelhas e amarelas - misturadas ao verde-claro de uma vegetação baixa, recém-brotada estendiam-se até o horizonte. - A menina, porém, não tinha olhos para a beleza efêmera da primavera nas estepes. Fraca e faminta, ela delirava, começando a ter alucinações.

- Eu disse que vou ter cuidado, mamãe. Vou nadar só por perto, mas para onde você vai? - murmurou. - Mãe, quando vamos comer? Estou com fome e calor. Por que você não veio quando chamei? Chamei, chamei e você não apareceu. Onde tem andado, mãe? Mama não vai embora outra vez! Fique aqui! Mãe, me espere. Não me deixe!

Ela corria na direção da miragem, enquanto a visão desaparecia, seguindo pela base do penhasco que num certo ponto começava a afastar-se da margem, tomando direção diferente a do rio. Abandonava, assim, sua fonte abastecedora. Correndo às cegas, bateu com o dedão do pé numa pedra e caiu em cheio no chão. Isso veio sacudi-la e botá-la na realidade ou, pelo menos, quase. Sentou-se extenuada, esfregando o dedo, tentando desesperadamente ordenar os pensamentos.

O penhasco era naquela parte um paredão irregular, riscado de fendas e gretas, com cavidades escuras formando cavernas. A expansão e a contração de temperaturas extremas - desde um calor causticante a um frio intenso, abaixo de zero - fragmentaram a rocha pouco consistente. A menina olhou para dentro de uma pequena cavidade à altura quase do chão mas a minúscula caverna não lhe fez grande impressão

Bem mais impressionante era a manada de auroques pastando pacificamente na relva fresca e viçosa entre o rochedo e o rio. Em sua correria cega atrás da miragem deixara de ver os enormes e ferozes animais de cor marrom-avermelhada, com dois metros de altura e chifres arqueados. Quando os enxergou, o susto botou um pouco de luz na confusão de seu cérebro. A menina recuou para mais perto do paredão de rocha, com os olhos fixos no corpanzil de um daqueles enormes touros que havia parado de pastar para ficar vigiando-a. Ela deu a volta e começou a correr.

Ao olhar para trás, por cima do ombro, suspendeu a respiração ao perceber de relance e confusamente uma cena que a fez parar em sua corrida. Uma imensa leoa, duas vezes maior do que qualquer felino dos que em épocas muito posteriores iriam habitar as savanas mais ao sul, estava à espreita da manada. A menina sufocou um grito, quando o monstruoso animal deu um salto sobre uma daquelas gigantescas vacas.

Numa confusão de garras, presas e rosnados selvagens, a leoa levou a massa do auroque ao chão e, com uma dentada poderosíssima, rasgando-lhe a garganta, deixou interrompido no ar o berro lancinante do animal O sangue esguichado manchava o focinho da leoa, respingando de vermelho sua pele fulva. As pernas do auroque continuaram pulando espasmodicamente, mesmo depois que a leoa lhe rompeu o estômago e tirou um naco quente de carne vermelha e quente.

A menina se viu tomada de total terror e correu em pânico, vigiada de perto por outro daqueles felinos. Havia cometido o pecado de entrar no território dos leões da caverna. Normalmente, esses animais teriam desdenhado uma presa tão pequena, do porte de uma criança de cinco anos, preferindo robustos auroques, enormes bisões ou veados de tamanho avantajado. Mas ela em sua fuga se aproximara demasiadamente de uma caverna onde viviam dois leõezinhos recém-nascidos.

Deixado na guarda da prole enquanto a leoa caçava, o macho com sua formidável juba rugiu avisando. A menina, ao virar a cabeça para cima, horrorizada, deu com o gigantesco gato agachado sobre a saliência de uma pedra, pronto para saltar. Ela deu um grito e escorregou, ferindo a perna no cascalho solto, junto ao rochedo. Levantou-se, e instigada por um medo ainda maior, correu de volta pelo mesmo caminho que a levara até ali.

O leão saltou, indolente, confiante no seu poder de agarrar o pequenino intruso que ousara violar o sacrossanto reduto de seus filhotes. Não tinha pressa. A menina ia devagar em comparação com suas lentas passadas. O leão parecia brincar de gato e rato.

No pânico, somente o instinto levou-a de volta à pequena cavidade que ficava à altura do chão, vista pouco antes. Com os quadris doendo, arquejante, sem poder respirar, deslizou pela abertura que mal deu para passar. Era uma gruta minúscula, rasa, pouco mais do que uma fenda na rocha. Naquele pequenino espaço, foi retorcendo-se até conseguir ficar de joelhos com as costas voltadas para a parede, querendo fundir-se com as pedras atrás dela.

O leão rugiu toda sua frustração ao chegar à frente do buraco e ver sua caça perdida. A menina tremia ao som dos bramidos, hipnotizada de terror com as patas, de garras curvas e afiadas, querendo esticar-se para dentro do buraco. Sem poder mexer-se, ela soltou um berro de dor quando viu a garra pegar-lhe a coxa, fazendo quatro profundos talhos paralelos.

Contorcendo-se para ficar fora do alcance do leão, encontrou uma pequena depressão no lado esquerdo da parede. Ali, botou as pernas, comprimindo-se tanto quanto podia e prendendo a respiração. A pata vagarosamente tornou a passar pela abertura, quase tapando toda a luz que chegava ao pequeno nicho, mas desta vez nada encontrou, O leão ficou rugindo, andando de lá para cá, na frente do buraco.

A menina permaneceu no abrigo o resto daquele dia, toda a noite e ainda a maior parte do dia seguinte. A perna inchou com uma ferida Supurada. A dor era constante e o exíguo espaço de paredes ásperas impossibilitava que ela se virasse ou se espichasse. Passou a maior parte do tempo num medo atroz, delirando de fome e dor, e com pesadelos povoados de terremotos e garras afiadas. Não foi a ferida ou a fome e nem mesmo a dolorida queimadura de sol que a fez sair de seu refúgio, mas sim a sede.

Cheia de medo, olhou para fora da fenda. Grupos espaçados de salgueiros e pinheiros projetavam enormes sombras de princípio de entardecer. A menina ficou por muito tempo olhando para a extensão de terra coberta de relva e para a água cintilando mais além, antes de conseguir coragem suficiente para sair. Lambia os lábios gretados com a língua ressequida, enquanto examinava o terreno. Apenas a relva batida pelo vento se movia. O leão tinha ido embora. A leoa, preocupada com seus filhotes e inquieta com o cheiro de uma criatura estranha tão perto de sua toca, resolveu procurar outro abrigo.

De gatinhas, a menina foi saindo do buraco e depois se levantou. Sua cabeça latejava e manchas ficavam dançando confusamente diante dos olhos. Cada passo era acompanhado de dores terríveis, e das feridas escorria um repugnante líquido verde-amarelado.

Não tinha certeza se conseguiria chegar até a água, mas a sede era irresistível. Caiu sobre os joelhos e percorreu de rastos a distância que faltava. Deitada de bruços, com o estômago colado à terra, bebeu sofregamente goles e goles de água fria. Quando, por fim, a sede ficou saciada, tentou botar-se de pé outra vez, mas havia chegado ao limite de sua resistência. Com manchas passando diante dos olhos, a cabeça rodando e tudo ficando escuro à volta, ela tombou por terra.

Voando devagar ao redor, um corvo espiava aquela forma imóvel. Baixou o vôo, querendo sentir mais de perto a presa.

 

O grupo de viajantes cruzou o rio, pouco mais adiante da cachoeira, no ponto onde as águas alargavam e espumavam sobre rochas despontando do leito pouco profundo. Eram em número de 20, contando com jovens e velhos. Antes de o terremoto lhes haver destruído a caverna, o clã fora composto de 26 pessoas. Dois homens iam à frente guiando o caminho, não muito distante das mulheres e crianças, flanqueadas por alguns homens mais idosos.

Os jovens seguiam atrás.

Vinham seguindo pela margem do rio de maior largura, desde o ponto onde o curso começava a entrelaçar-se com outros afluentes e a serpentear pelas terras planas das estepes. Eles estavam sempre com os olhos nas aves de rapina. Animais necrófagos voando normalmente significavam que ainda havia vida naquilo que lhes despertava atenção. Um bicho já ferido era presa fácil para caçadores, contanto que predadores de quatro patas também Não tivessem a mesma idéia.

Uma mulher, a meio caminho de sua gravidez, caminhava à frente do seu grupo. Viu quando os dois homens da dianteira olharam para o chão e continuaram em frente. Deve ser algum comedor de carne, pensou. O clã dificilmente comia animais carnívoros.

Tinha menos de metro e meio de altura, era troncuda, de constituição óssea avantajada, pernas arqueadas e musculosas, mas caminhava ereta sobre os pés chatos e descalços. Os braços pareciam compridos em proporção ao corpo e, tal como as pernas, eram arqueados.

Tinha largo nariz adunco e mandíbulas prognatas que se projetavam no rosto como um focinho. O queixo não existia. A testa baixa escorria para trás, formando uma cabeça longa e larga, assentada sobre o pescoço curto e grosso. Na parte de trás da cabeça havia uma protuberância óssea como um coque occipital que lhe acentuava a largura.

As pernas e ombros eram cobertos por um manto macio de pêlos castanhos e curtos que descia ao longo da espinha na parte alta das costas. O mesmo pêio engrossava na cabeça, formando quase uma mata de cabelos longos e pesados. Sua palidez de inverno já havia quase desaparecido. Os olhos marrons-escuros - grandes, redondos, inteligentes - estavam profundamente assentados sob as saliências das sobrancelhas escorridas e, naquele instante, cheios de curiosidade, quando ela apressou o passo para ver o que os homens tinham visto sem se deter em sua marcha.

Já era velha para ter o primeiro filho. Estava com quase 20 anos e até que a vida despertada dentro dela não começasse a aparecer, o clã havia pensado que fosse estéril. No entanto, o peso que carregava não tinha sido aliviado pelo fato de estar grávida. Levava um grande cesto preso às costas, onde havia trouxas amarradas: atrás, debaixo e empilhadas. Diversos sacos atados com correias penduravam-se de uma pele, embrulhando o couro maleável que vestia, de maneira a produzir dobras e bolsas para carregar coisas. Uma das sacolas era particularmente distinta, por ser feita com o couro inteiro de uma lontra, inclusive com o rabo, pés e a cabeça do animal deixados intatos.

Em vez de a pele do bicho ter sido rasgada na barriga, apenas sua garganta fora cortada de modo a fazer uma abertura para que fossem retirados os ossos, entranhas e carnes, deixando o couro parecendo com uma bolsa. A cabeça, atada por uma tira no lombo do animal, servia como tampa, e uma fibra tingida de vermelho, enfiada através de buracos perfurados ao redor da abertura do pescoço e puxada firmemente, prendia a sacola à cintura da mulher.

Quando ela botou os olhos pela primeira vez na menina, os homens haviam ficado atrás.

Estava espantadíssima com aquilo, que lhe pareceu ser um bicho sem pêlos. Ao aproximar-se mais, porém, prendeu a respiração, e em seguida se afastou, agarrando o saquinho de couro pendurado no pescoço. Um gesto instintivo para defender-se dos maus espíritos. Suas unhas cravaram-se no couro, fincando os pequenos objetos dentro do amuleto, enquanto invocava proteção. Curvou-se, então, para olhar mais de perto, hesitando avançar, sem poder acreditar muito no que pensava estar vendo.

Seus olhos não a haviam enganado. Não era nenhum bicho que estava atraindo a atenção dos pássaros, mas uma criança. Uma criança descamada e estranhíssima.

A mulher olhou ao redor, imaginando que outros enigmas ainda poderiam existir por ali.

Enquanto andava à roda da menina desmaiada, ouviu um gemido. Então, esquecendo-se de seus medos, parou, ajoelhou-se e sacudiu com brandura a criança. Ao virar o corpo para cima, a curandeira viu a inchação na perna e as marcas de garras, fazendo uma ferida purulenta.

Imediatamente, desatou o cordão que prendia a sacola de lontra à sua cinta.

Um dos homens que ia no comando olhou para trás e viu a mulher de joelhos junto da criança. Ele voltou.

- Iza! Vamos! - ordenou. - Rastros de leões. Ande, vá em frente!

- É uma criança, Brun. Está só ferida. Ainda não morreu.

Brun olhou para a menina. Esta tinha um rosto esquisitamente achatado, de fronte alta e nariz pequeno.

- Não é dos clãs - disse por meio de gestos rápidos, logo se virando para retomar o caminho.

- Brun, é uma criança. Está ferida. Vai morrer, se ficar aqui - falou Iza com olhos suplicantes, enquanto fazia sinais com as mãos.

O chefe do reduzido bando olhou para a mulher que implorava. Ele era maior do que ela, bastante musculoso, forte, com largo tórax cilíndrico e per nas grossas arqueadas. Seus traços eram semelhantes aos da mulher, embora mais pronunciados; as saliéncias supra-orbitais mais marcadas e o nariz mais alargado. As pernas, estômago, peito e a parte superior das costas cobriam-se de um pêlo duro, marrom, Não chegando a ser propriamente a pele de um animal felpudo, mas Não estava muito longe disso. Uma barba cerrada escondia- lhe as mandíbulas protuberantes e a falta de queixo. A vestimenta também era parecida com a da mulher, apenas mais simplificada. Estava cortada mais curta e amarrada de modo diferente, tendo somente algumas dobras e bolsas para guardar coisas.

Brun Não carregava nenhum peso, apenas suas armas e uma manta de pele jogada nas costas, presa por uma tira larga de couro que passava em volta de sua testa ovalada. Em sua coxa direita havia uma cicatriz escura como uma tatuagem, desenhada grosseiramente na forma de um U com as pontas abertas para os lados. Era a marca de seu totem, o bisão.

Mas ele próprio não precisava de marcas ou símbolos para mostrar sua condição de chefe. Seu comportamento e a deferência com que era tratado já deixavam patentes sua posição dentro do clã.

Tirou do ombro sua maça, feita do osso da perna dianteira de um cavalo e a colocou no chão, com o cabo apoiado na coxa. Iza sabia que seu pedido estava sendo seriamente considerado. Esperava quieta, escondendo a ansiedade, para dar-lhe tempo de pensar. Em seguida, ele pousou a pesada lança de madeira, inclinando-a no ombro com a ponta afiada virada para cima e ajeitou as boleadeiras que trazia penduradas no pescoço junto com o amuleto, de modo a equilibrar as três bolas da arma. Por fim, tirou do couro da cintura a funda, uma tira flexível feita de pele de veado, com um bojo no meio para segurar as pedras e estreitada nas pontas. Ficou alisando o couro, sentindo-lhe a maciez e pensando.

Brun não gostava de tomar decisões apressadas sobre qualquer coisa fora do usual que pudesse afetar a vida do clã, sobretudo agora, quando estavam sem moradia. Mas resistia ao impulso de simplesmente dizer Não. Eu de via saber que Iza iria querer ajudar a menina.

Até com animais ela costuma usar suas mágicas de curar, principalmente se são bichinhos novos. Vai ficar contrariada se eu Não deixar que ajude a menina. Seja dos clãs ou dos outros, pouco importa. Tudo que ela está vendo é uma criança ferida. Bem, pode ser isto que faz dela uma boa curandeira.

Mas curandeira ou Não, ela é só uma mulher. Que importância tem se ficar zangada? Isso, ela melhor do que ninguém sabe mostrar. Mas nós já temos muitos problemas sem um estranho ferido. Só que o totem da menina vai saber, bem como todos os espíritos. Será que, se Iza ficar contrariada, eles ainda vão mostrar-se com mais raiva? Se encontrarmos uma caverna... Não, quando acharmos uma caverna Iza vai ter de fazer a bebida para a

cerimônia. E se ela estiver zangada, é bem possível que cometa um erro, Não é verdade? Os espíritos com raiva podem fazer com que tudo saia errado e, com raiva, eles já estão bastante. Nada deve sair errado na cerimônia da nova caverna.

Bom, que ela leve a criança, continuou dizendo para si. Logo estará cansada de carregar um peso a mais; além disso, a menina está tão mal que nem mesmo a mágica do meu germano tem força para curá-la. Brun enfiou outra vez a funda em seu cinto, pegou as armas e encolheu os ombros. O negócio era com ela, podia ou não levar a criança se o desejasse. Ele deu as costas e começou a caminhar.

De dentro da cesta, Iza tirou uma capa de couro com a qual embrulhou a criança desacordada. Depois, suspendeu-a, prendendo a garota a seu quadril com ajuda de uma correia flexível, surpresa do pouco peso da menina em relação à altura. Ao ser suspensa, ela soltou um gemido e Iza fez-lhe uma festinha, tranquilizando-a. Em seguida, foi colocar-se atrás dos dois homens.

As outras mulheres haviam parado, mantendo distância da conversa entre Iza e Brun.

Quando viram a curandeira pegar qualquer coisa do chão para levar, suas mãos se puseram a gesticular com movimentos rápidos, intercalados de sons guturais. Elas discutiam agitadas, cheias de curiosidade. Fora a sacola de pele de lontra, estavam vestidas da mesma forma que Iza e, igualmente, carregando enormes pesos. Levavam tudo quanto o clã possuía neste mundo, aquilo que pôde ser salvo dos destroços ocasionados pelo terremoto.

Duas das sete mulheres levavam seus bebês junto do corpo, numa dobra da vestimenta que lhes permitia comodamente amamentá-los. Enquanto estavam à espera de Iza e Brun, uma delas sentiu cair-lhe um pingo quente. Imediatamente, sacou o bebê de dentro da dobra da roupa e ficou segurando-o à sua frente, até que ele acabasse de urinar. Quando Não estavam viajando, os bebês quase sempre eram envolvidos em macios cueiros de pele. Para absorver urina e fezes, havia diversos tipos de material como a la de carneiros selvagens que ficava agarrada nos espinhos das plantas à época da muda, a plumagem dos ninhos de pássaros, a felpa de plantas fibrosas, e muitas outras coisas. Mas, em viagem, era mais fácil e simples levar os bebês nus e deixar que fizessem suas necessidades no chão.

Quando começaram a caminhar outra vez, uma terceira mulher apanhou um garoto e o apoiou em seu quadril, metendo-o dentro de uma sacola de couro. Alguns momentos depois, ele estava esperneando, querendo descer ecorrer por sua própria conta. Ela deixou-o sair, sabendo que voltaria quando estivesse cansado. Logo depois da mulher que seguia iza, ia uma menina mais velha, ainda não adulta, o que não impedia, no entanto, de estar levando uma carga tão pesada quanto as outras. De vez em quando, a garota atirava um olhar para trás na direção de um rapaz, já quase homem feito, caminhando logo depois do grupo das mulheres. Ele tentava manter distância de modo a parecer que fosse um dos três caçadores guardando a retaguarda e não como se fizesse parte do grupo de crianças. Sua vontade era a de estar levando caças, tal como um dos velhos que flanqueava as mulheres e que carregava uma enorme lebre sobre o ombro, morta por uma pedra de sua funda.

Mas nem só de caça vivia o clã. As mulheres quase sempre eram quem contribuíam com a maior parte e a fonte de abastecimento delas era bem mais confiável. Mesmo com toda a carga que levavam, ainda tinham tempo durante a viagem de apanhar alimentos, e com tanta eficiência que, dificilmente, atrasavam a marcha. Uma área de hemerocales rapidamente ficava nua de seus botões e flores. Raízes tenras e suculentas eram retiradas da terra com alguns poucos golpes de seus pauzinhos de escavar, enquanto aquelas como as de tábua eram mais fáceis ainda de ser apanhadas por estar soltas nas superfícies dos terrenos alagadiços ou pantanosos.

Se não estivessem em viagem, as mulheres teriam a obrigação de guardar na lembrança o local onde se achavam certas plantas taludas, para voltar mais tarde no decorrer da estação e colher suas pontas macias, e que eram consumidas como legumes. Numa fase posterior, a mistura de pólem não amarelo com a farinha feita das fibras de velhas raízes serviria para o preparo de bolinhos fofos e sem fermento. Ao secarem os talos, colhiam-se as fibras e muitas das cestas eram feitas de resistentes talos e folhas de plantas. No momento, elas colhiam só o que encontravam, mas pouca coisa lhes passava despercebida.

Folhas frescas e tenras de trevo, brotos de alfafa e de dente-leão cardos ainda com suas folhas espinhosas, alguns frutos prematuros e amoras silvestres, nada escapava das mãos ágeis e destras das mulheres. Seus pauzinhos de escavar não paravam. Já conheciam o uso da alavanca e estavam sempre revirando troncos de madeira à procura da salamandras e rechonchudos lagartos. Também moluscos eram pescados dos rios e postos na praia para ficar ao alcance delas, e toda uma variedade de bulbos tubérculos e raízes eram apanhados do chão.

Tudo encontrava lugar certo nas dobras das vestimentas ou em algum canto vazio dos cestos. As folhas grandes serviam para fazer embrulhos, e algumas, como as de bardana, eram cozidas como legumes. Madeira seca, galhos, certos tipos de gramíneas e esterco de animais no pasto também eram recolhidos. Embora mais tarde, durante o verão, a colheita fosse mais variada, a comida era farta, sabendo-se onde procurá-la.

Depois de se porem novamente a caminho, Iza levantou os olhos ao pressentir que um dos velhos, um homem já passado dos 30, vinha em sua direção Ele não trazia consigo nem carga nem armas. Apenas o bordão que o ajudava a caminhar. Sua perna direita era aleijada e menor do que a outra, embora desse jeito de locomover-se com incrível rapidez.

Como o ombro e a parte superior do braço direito houvessem nascido atrofiados, amputaram-lhe o braço deficiente, logo abaixo do cotovelo. Tendo apenas um lado plenamente desenvolvido, sua aparência era de extrema assimetria, e a cabeça, por sua vez, era maior do que a dos outros membros do clã Trazia tais defeitos desde o nascimento e que o aleijaram para a vida.

Era germano de Iza e Brun e nascido primeiro que os outros. Teria sido o chefe, se não fossem as deficiências físicas. Usava uma vestimenta cortada ao estilo masculino e levava nas costas, tal como os outros, uma manta para ser usada externamente e que lhe servia também de pele de dormir. No entanto, diferentemente, ele tinha diversas sacolas penduradas à cinta e uma capa, parecida com o modelo usado pelas mulheres, só que com um bolso nas costas onde levava um objeto grande e abaulado.

O lado esquerdo do rosto era marcado por uma horrenda cicatriz e pela falta de olho também neste lado. Mas seu olho direito era perfeito, brilhava com inteligência e alguma coisa mais não definida. Apesar de todo este aleijão ele se movia com uma graça que lhe advinha de sua enorme sabedoria e a segurança de sua posição dentro do clâ Ele era o Mog-ur, o feiticeiro mais poderoso, mais temido e o homem mais venerado e reverenciado de todos os clãs. Estava convencido de que seu corpo disforme lhe fora dado para que servisse de intermediário com o mundo dos espíritos e não para ser o chefe do clã. Sob muitos aspectos, tinha mais poder do que qualquer chefe, e disso ele sabia. Somente os parentes próximos lembravam de seu nome de batismo e o chamavam por este.

- Creb - disse Iza cumprimentando-o, cheia de reconhecimento pela presença dele e fazendo um movimento que expressava o prazer de tê-lo em sua Companhia.

- Iza? - perguntou ele, gesticulando na direção da criança que ela carregava.

A mulher abriu sua capa e ele olhou de perto o rostinho rosado lá dentro. Os olhos se dirigiram para a perna inchada e supurando. Depois, voltaram-se novamente para os da curandeira, lendo neles o que ela queria dizer. Nisso, a criança soltou um gemido, e a expressão do rosto dele se amaciou. Creb meneou a cabeça em sinal de aprovação

- Ótimo - disse ele, numa voz áspera e gutural. Em seguida, fez um sinal significando: bastante gente morreu.

Creb ficou ao lado de Iza. Ele não tinha de obedecer às regras subentendidas que definiam a posição e o status de cada um. Podia caminhar junto de quem quisesse, inclusive do chefe, se assim o entendesse de fazer. O Mog-ur estava acima e fora da hierarquia rígida que governava o clã.

Quando Brun parou para estudar a paisagem, ele já havia posto sua gente bem longe do faro dos leões da caverna. Do outro lado do rio, tanto quanto dava para ver, a pradaria estendia-se por um terreno suavemente ondulado com uma planície verdejante ao longe.

Nada obstruía a visão da paisagem. As poucas árvores existentes eram atarracadas, transfiguradas pelas ventanias constantes em caricaturas daquilo que poderiam ter sido. Só serviam para pôr em perspectiva o campo aberto e acentuar o espaço vazio.

Próximo à linha do horizonte, nuvens de poeira se levantavam do chão com os cascos pesados de uma manada em movimento, e Brun lamentou Não poder, naquele instante, fazer sinal a seus caçadores e conduzi-los à caça dos animais. Atrás dele, apenas os topos de altos pinheiros podiam ser vistos surgindo para além da folhagem amarelecida de árvores menores, formando uma floresta eclipsada pela vastidão das estepes.

Do seu lado do rio, a pradaria terminava abruptamente, cortada a alguma distância por um penhasco que fazia uma virada afastando-se do rio. A face rochosa do íngreme paredão fundia-se com os contrafortes de majestosas montanhas encimadas de neve, avultando perto dali. Os picos gelados com refulgências rosa, magenta, violeta e vermelha refletiam o pôr-do-sol como gigantescas jóias faiscantes que coroavam os cumes soberanos. Até mesmo o chefe, homem essencialmente prático, estava comovido com o deslumbrante espetáculo.

Desviou-se do rio e conduziu o clã na direção do penhasco, onde haveria mais probabilidades da existência de cavernas. Precisavam de abrigo, porém, mais importante ainda, os espíritos protetores de seus totens também o necessitavam, se é que eles já não os haviam abandonado. Os espíritos mostravam- se zangados, o terremoto estava aí para prová-lo, ou pelo menos estavam com bastante raiva para provocar a morte de seis pessoas do clã e destruir o lar de toda sua gente. Se um lugar permanente para os espíritos dos totem não fosse encontrado, eles deixariam o clã à mercê dos outros, dos malignos, que causavam doenças e espantavam as caças. Ninguém sabia por que os espíritos estavam zangados, nem mesmo o Mog-ur, apesar de que ele conduzisse os rituais noturnos para apaziguar-lhes a cólera e tentasse diminuir as aflições do clã. Estavam todos preocupados, mas ninguém tanto quanto Brun.

O clã achava-se sob sua responsabilidade e isto o deixava enormemente tenso. Espíritos, essas forças invisíveis de desejos insondáveis, eram algo que o desconcertava. Sentia-se mais à vontade no mundo fisico, com suas caçadas e chefiando sua gente. Nenhuma das cavernas que até então havia examinado servira. A todas faltava alguma coisa que lhes era essencial e o chefe já começava a desesperar-se. Aqueles eram dias preciosos, fazendo tempo quente, quando deveriam estar armazenando comida para o próximo Inverno e eles os perdiam nessa busca de casa.

Logo se veria forçado a abrigar o clã em alguma caverna pouco satisfatória e a deixar a procura para o ano seguinte. Coisa bastante incômoda, física e emocionalmente, mas Brun esperava com toda sua força que isto não acontecesse.

Caminhavam ao longo da encosta do rochedo, enquanto as sombras do dia iam se aprofundando. Quando atingiram o ponto onde se achava uma estreita cachoeira cascateando pelas vertentes do enorme paredão, com seus vapores formando nos raios de sol um belo e tremeluzente arco-íris, Brun ordenou uma parada. Cansadas, as mulheres puseram no chão seus fardos e foram catar lenha, espalhando-se ao redor do lago e do pequeno escoadouro das águas.

Iza estendeu sua capa de pele e deitou a menina nela; depois, correu para ajudar as outras mulheres. Estava preocupada com a garota. A respiração se fazia com dificuldade e Não havia ainda despertado. Até os gemidos eram cada vez menos frequentes. Iza vinha pensando em como poderia ajudá-la e refletindo sobre as ervas secas que trazia em sua sacola de pele de lontra. Enquanto catava pedaços de madeira, examinava as plantas das redondezas. Para ela, conhecidas ou Não, tudo na natureza tinha algum valor nutritivo ou medicinal e pouca coisa ela Não podia identificar.

Ao dar com os olhos nos pés de íris, já quase em flores, que cresciam na orla alagadiça da saída das águas, foi imediatamente cavando as raízes dessa planta. Elas resolveriam uma parte do problema. As folhas dentadas de lúpulo que se enrolavam em uma das árvores deram-lhe outra idéia, mas achou melhor usar o pó de lúpulo seco que trouxera consigo, pois o frutos ali ainda não estavam amadurecidos. Retirou a casca mole e acinzentada de um amieiro que crescia perto do lago, sentindo-lhe o perfume forte. Em seguida, meteu-a numa das dobras da roupa, fazendo um sinal de aprovação com a cabeça. Mas antes de voltar, ainda colheu um punhado de folhas novas de trevo.

Depois de terem arrumado madeira e a fogueira estar armada, Grod, o homem que caminhava na frente ao lado de Brun, tirou de dentro de um chumaço de musgo um pedaço de carvão aceso, trazido no fundo do chifre de um auroque. Eles sabiam produzir fogo, mas, viajando por terras desconhecidas, era mais fácil pegar a brasa viva e acender a fogueira com esta, do que todas as noites ter de fazer fogo, muitas vezes com materiais desapropriados.

Durante a viagem, a tarefa de manter aquela brasa sempre acesa constituíra-se na grande preocupação de Grod. O carvão incandescente que acendeu a fogueira da noite anterior fora aceso pelo carvão da noite precedente àquela que, por sua vez, teve sua primeira origem na fogueira armada com destroços do terremoto na entrada da velha caverna. Para que uma nova caverna fosse aceita como residência, os rituais exigiam que se acendesse uma fogueira com o carvão que remontasse em sua história ao último lugar onde haviam morado.

O encargo da manutenção do fogo era atribuição exclusiva de um homem ocupando alta posição social. Caso a brasa se apagasse, isto era sinal certo de que os espíritos protetores os haviam abandonado, e Grod, de seu posto de segundo em comando, seria rebaixado para o posto mais inferior na hierarquia masculina. Uma humilhação por que não desejava passar. Sua tarefa, por tanto, não só era uma grande honra, mas também uma pesada responsabilidade.

Enquanto Grod, com toda atenção e cuidado, colocava o pedaço de carvão incandescente dentro de um ninho de acendalhas e soprava as chamas, as mulheres se voltaram para outros afazeres. Com uma técnica de muitas gerações, rapidamente tiraram as peles das caças que, momentos depois, estavam atravessadas por varetas verdes e pontiagudas, apoiadas sobre forquilhas e assando num fogo de labaredas. O calor alto tostava a carne, estancando seu suco, de modo que, quando o fogo se apagasse, pouca coisa de valor nutritivo tinha sido perdido nas chamas.

Com as mesmas facas afiadas de pedra que usavam para tirar a pele e cortar a carne, elas raspavam e partiam as raízes e os tubérculos. Cestas de tecidos apertadíssimos, à prova d”água, e bacias de madeira eram enchidas de água e pedras aquecidas nas fogueiras. As pedras iam esfriando e sendo levadas de volta ao fogo de onde saíam outras, até que a água fervesse e cozinhasse os legumes. Insetos carnudos iam sendo torrados num ponto crocante, e pequenos lagartos postos por inteiro para assar, com suas carapaças aos poucos ficando enegrecidas e quebradiças, deixavam entrever saborosos nacos de carne bem churrasqueados.

Ao mesmo tempo em que ajudava a fazer a comida, Iza trabalhava seus preparados. Numa bacia de madeira - que ela mesma, tempos atrás, talhara de uma tora - botou água para ferver. Lavou as raízes de íris, socou-as até ficarem como pasta e as jogou dentro da água fervendo. Numa outra bacia - uma cuia feita da imensa mandíbula de um veado - triturou as folhas de trevo, socou na palma da mão uma quantidade de pó de lúpulo, rasgou em tiras as cascas de amieiro e despejou sobre tudo isto água fervendo. Em seguida, esmigalhou entre duas pedras uma quantidade de carne-seca, guardada para alguma emergência, e misturou numa terceira bacia essa porção de proteína concentrada com a água do cozimento dos legumes.

A mulher que durante a viagem viera atrás de Iza de vez em quando lançava um olhar para seu lado, na esperança de Iza fazer algum comentário. Todos, inclusive os homens, estavam morrendo de curiosidade, embora fizessem por não demonstrá-lo. Haviam visto quando Iza pegara a criança e, agora,depois de terem acampado, estavam sempre inventando alguma razão para ficar por perto dela. Dando tratos à bola, punham-se a especular sobre como pôde acontecer de aquela criança estar ali. O que teria sido feito do resto da gente dela? E o mais estranho: o que teria dado em Brun para permitir a Iza trazer uma menina que visivelmente pertencia aos Outros.

Ebra, melhor do que ninguém, sabia das dificuldades de Brun. Era ela quem vinha massagear-lhe o pescoço e os ombros para aliviar sua tensão e era ela quem aguentava suas explosões de mau humor, aliás raras, naquele homem que era o seu companheiro. Brun chegava a ser estóico em seu autocontrole, e ela sabia que depois dessas explosões viria o arrependimento, embora jamais fosse admiti-lo. Mas até mesmo Ebra gostaria de saber por que teria ele permitido que a criança viesse, sobretudo num momento em que qualquer desvio do comportamento normal poderia provocar maior ira dos espíritos.

Por mais curiosa que estivesse, Ebra não fez perguntas a Iza e as outras mulheres não tinham status para tanto. Além disso, uma curandeira não podia ser perturbada num momento em que visivelmente trabalhava no preparo de suas mágicas, acrescendo o fato de que Iza parecia não estar muito para tagarelices. Todo o seu pensamento concentrava-se na criança por quem Creb também se mostrava interessado. Mas ele era diferente, sua presença era bem recebida por Iza.

Ela, em muda gratidão observava o feiticeiro mudar a posição da menina ainda desacordada. Por um instante, pôs-se a olhar pensativo para a criança e, em seguida, apoiou seu cajado contra uma pedra e fez uma série de gestos ondulantes sobre ela. Invocava os bons espíritos para que a ajudassem em sua recuperação. Doenças e acidentes eram manifestações misteriosas da guerra dos espíritos que faziam do corpo das pessoas seu campo de batalha.

A mágica de Iza vinha dos espíritos protetores que agiam por seu intermédio, mas nenhuma cura seria completa sem a intervenção do homem santo. A curandeira era meramente uma agente dos espíritos, já o feiticeiro entrava em relação direta com eles.

Iza ignorava por que sentia tanta preocupação por uma criança que, afinal, era completamente diferente da gente dos clã mas o fato é que desejava que a menina vivesse.

Depois de o Mog-ur ter terminado os seus passes, Iza tomou a menina nos braços e a levou até o lago ao pé da cachoeira. Aí, mergulhou-a, deixando só a cabeça de fora, retirando a sujeira e a lama empastada em seu corpinho franzino. A água fria trouxe-a de volta, mas ainda delirante. Ela se mexia, contorcendo-se, gritando e murmurando sons que nunca Iza ouvira antes. Enquanto voltavam para o acampamento, segurou-a apertada contra o corpo e foi sussurrando-lhe palavras doces, mais parecidas com carinhosos rosnados.

Delicadamente, mas com o traquejo de sua longa experiência, iza lavouas feridas com um pedaço de rabo de coelho que ia mergulhando no líquido, feito à base das raízes de íris. Em seguida, retirou a polpa dessas raízes e as colocou diretamente sobre o machucado, que cobriu com pele de coelho. Por fim, enrolou a perna com tiras macias de pele de veado para que o curativo ficasse firme sobre a ferida. Feito isto, retirou da bacia de osso, com um garfo de pau, as folhas de trevo esmigalhadas, as tiras de amieiro e as pedras quentes, pondo o líquido para esfriar ao lado da bacia de caldo quente.

Creb fez um gesto interrogativo na direção das bacias. Não estava Inquirindo propriamente, nem mesmo o Mog-ur faria perguntas diretas a uma curandeira sobre suas mágicas. O gesto era apenas de interesse e, como se tratava do seu germano, Iza não se importava. Ele, mais do que ninguém, admirava- lhe os conhecimentos médicos. Algumas ervas que ela usava também eram em pregadas por ele, só que para fins diferentes. Afora as reuniões dos clã quando encontrava outras curandeiras, essas conversas com Creb era tudo que ela mantinha em matéria de troca de idéias com um colega.

- Isso destrói os espíritos ruins que provocam as infecções - gesticulou Iza, apontando para a solução anti-séptica de íris. - O cataplasma feito com as raízes expulsa o veneno e ajuda a ferida a sarar mais depressa. - Pegou a bacia de osso e mergulhou o dedo dentro para testar a temperatura. - O trevo estimula e fortalece o coração na luta contra os maus espíritos.

As poucas palavras que ela usava em sua fala eram mais para enfatizar o que as mãos diziam. A gente dos clãs não conseguia articular os sons suficientemente para formar uma linguagem verbal plenamente desenvolvida. Comunicavam-se mais através de gestos e movimentos, mas a linguagem por meio de sinais era perfeitamente compreensiva e rica em nuanças.

- Mas trevo é comida normal. Foi o que comemos ontem - gesticulou Creb.

- Sim - disse Iza com a cabeça. - E vamos comer essa noite outra vez. A mágica está no modo de preparar. Um bom punhado de trevo fervido com pouca água extrai tudo que é preciso da planta, jogando-se as folhas depois fora.

Creb acenou com a cabeça em sinal de que estava compreendendo, e ela prosseguiu:

- A casca do amieiro serve para purificar e limpar o sangue. Enxotam os espíritos que envenenam o corpo.

- Você usou uma coisa tirada da sacola de remédios.

- Pó de lúpulo. Feito com pinhas bem maduras e cheias de fibras. Serve para acalmar e fazer a menina dormir em paz. Enquanto os espíritos estiverem lutando, ela precisa descansar.

Creb tornou a acenar com a cabeça, dizendo que compreendia. Estava familiarizado com as propriedades soporíferas do lúpulo que, usado diferentemente, podia provocar agradáveis estados de euforia. Embora estivesse sempre interessado nos tratamentos de Iza, raramente lhe prestava informações sobre seus próprios métodos de preparar poções. Tal conhecimento era restrito aos mog-urs e acólitos, não era para mulheres, ainda que se tratassem de curandeiras. Iza entendia mais de plantas do que Creb, e ele tinha medo de que ela acabasse por deduzir certas coisas. Seria bastante inconveniente, se começasse a fazer conjeturas sobre suas mágicas.

- E essa outra bacia? - perguntou ele.

- Isso é apenas um caldo. A pobrezinha está morrendo de fome. O que você acha que aconteceu com ela? De onde será que veio? E sua gente onde estará? Há dias que ela deve estar rodando por aí sozinha.

- Isso só os espíritos podem saber - falou o Mog-ur. - Você tem certeza de que sua mágica vai funcionar nela? Olhe que a menina é diferente de nossa gente.

- Deve funcionar. Os Outros são humanos também. Você se lembra da mãe contar a história daquele homem que quebrou um braço e que a mãe dela ajudou a tratar? A mágica do clã foi boa para ele. Só que os remédios para dormir fizeram com que ele levasse muito mais tempo para acordar do que se esperava.

- Foi pena você Não ter conhecido a mãe de nossa mãe. Era uma curandeira de primeira. As pessoas dos outros clãs vinham só para vê-la. Uma tristeza que tenha tão cedo deixado o mundo dos vivos, logo depois de você ter nascido. Foi ela mesma quem me falou desse homem e também o Mog-ur antes de mim. Ele ainda ficou por uns tempos com a gente, depois que sarou. Chegou até a caçar com o clã. Devia ser bom caçador, pois deixaram que participasse de uma cerimônia de caça. É fato que são humanos, mas são muito diferentes de nós. - Interrompeu o que dizia de repente. Iza era extremamente astuta, e ele não podia permitir-se falar muito; do contrário, ela poderia começar a tirar conclusões por conta própria a respeito dos rituais secretos dos homens.

Iza testou outra vez a temperatura dos líquidos nas bacias. Aninhou, então, a cabeça da menina no colo e pôs-se a dar-lhe pequeninos goles do conteúdo da cunja de osso. Foi mais fácil de dar o caldo. Enquanto murmurava coisas incoerentes, a menina tentava cuspir o remédio de gosto amargo. Mas mesmo no delírio, seu corpo faminto implorava por comida. Iza continuou a segurá-la até que a menina caiu num sono tranquilo e, em seguida, verificou-lhe as batidas do coração e o ritmo da respiração. Fizera o que podia. Se a menina não tivesse ido muito longe, teria alguma chance. Daqui por diante, tudo dependia dos espíritos e das forças internas que atuavam nela.

Iza viu quando Brun se encaminhava em sua direção, olhando-a com azedume. Ela se levantou rapidamente e correu para ajudar a servir a comida.

Depois daquelas primeiras considerações, ele se esquecera da garota, mas agora voltara a pensar nela. Embora o usual fosse desviar os olhos para Não ver quando as outras pessoas conversavam, ele Não pôde impedir-se de observar o que todo mundo no clã comentava. As especulações sobre os motivos que o levaram a permitir a Iza trazer a criança acabaram por fazer com que também ele começasse a pensar. Passou a temer que a ira dos espíritos fosse aumentar ainda mais pelo fato de haver um estranho no meio deles. Estava-se dirigindo para interceptar Iza no seu caminho, mas Creb oviu e barrou-lhe o intento.

- O que há de errado, Brun? Você parece preocupado.

- Iza tem de abandonar esta criança aqui, Mog-ur. Ela não faz parte do clã. Os espíritos não vão gostar se ela ficar com a gente, enquanto estamos procurando por uma caverna.

Nunca deveria ter permitido a Iza fazer isso.

- Não, Brun - contrapôs o Mog-ur. - Os espíritos protetores não ficarão zangados com a bondade. Você conhece Iza, ela não consegue ver nada sofrendo sem tentar ajudar.

Acha que os espíritos não conhecem também a garota? Se Não quisessem que Iza ajudasse, a menina não seria posta no caminho dela. Deve haver uma razão para isso. De qualquer forma, Brun, a menina talvez morra. Se Ursus quiser chamar a menina para o mundo dos espíritos, deixe que ele mesmo resolva. Não se intrometa agora. Com toda a certeza, ela teria morrido se não fosse trazida conosco.

Brun Não estava gostando da coisa. Havia algo na menina que o incomodava. Mas, em deferência ao maior conhecimento do Mog-ur em assuntos do outro mundo, ele condescendeu.

Depois da refeição, Creb se sentou em silêncio contemplativo, esperando que todos acabassem de comer para que ele começasse a cerimônia noturna. Enquanto isso, Iza arranjava-lhe o lugar de dormir e fazia os preparativos para a manhã do dia seguinte.

Enquanto não achassem a nova caverna, o Mog-ur proibira os casais que dormiam juntos de terem relações sexuais, de modo que os homens pudessem concentrar suas energias nos rituais e que cada um sentisse estar dando sua contribuição pessoal para levá-los rápido à nova moradia.

Isso não tinha importância para Iza. Seu companheiro foi um dos que haviam morrido no desabamento da antiga caverna. No enterro, ela o pranteara devidamente e mostrara seu pesar, e seria de mau agouro comportar-se diferentemente. Mas ela Não se sentia infeliz por ter ele partido. Não era segredo para ninguém que seu companheiro tinha sido um homem cruel e despótico. Nunca existira afeição entre os dois. Não tinha idéia do que Brun iria decidir sobre ela, agora que estava sozinha. Alguém teria de mantê-la, Não só ela mas também a criança que carregava no ventre. A única coisa que esperava é que pudesse continuar cozinhando para Creb.

Desde os tempos dela com o seu companheiro ainda vivo que o Mog-ur compartilhava com eles da mesma fogueira. Iza percebia que ele apreciava tanto seu companheiro quanto ela própria, embora Creb jamais houvesse se metido com seus problemas íntimos. Sentia-se honrada em cozinhar para o Mog-ur e, aos poucos, foi-se afeiçoando a ele tal como algumas mulheres vão criando laços de amizade com seus companheiros.

De vez em quando, tinha pena de Creb. Se ele quisesse poderia ter arrumado uma companheira. Ela sabia, porém, que mesmo com toda sua magia e sua elevada posição social, nenhuma mulher olharia sem repugnância para seu corpo disforme e sua cara marcada por hedionda cicatriz. E ela não tinha dúvida de que ele também sabia disso.

Jamais assumiu uma companheira, mantendo-se nesse assunto sempre reservado. O que só fazia engrandecê-lo. Todos, inclusive os homens, exceto talvez Brun, temiam o Mog-ur e o olhavam com reverência. Todos, menos Iza, que desde que nascera conhecia a delicadeza de seus sentimentos. Um lado da natureza do Mog-ur que ele raramente deixava transparecer.

E era justamente esse lado que naquele instante ocupava a mente do Mog-ur. Ao invés de estar meditando na cerimônia, tinha o pensamento voltado para a menina. Sempre sentira curiosidade sobre a gente dela, mas as pessoas do clã evitavam tanto quanto podiam os Outros. Esta era a primeira vez que ele via uma criança de sua espécie. Supunha que o terremoto tivesse qualquer coisa a ver com o fato de ela estar sozinha, embora fosse surpresa para ele que houvesse gente dela tão perto. Normalmente, viviam bem mais ao norte.

Creb percebeu que alguns homens já estavam começando a sair e se apoiou no seu cajado para levantar-se e ir supervisionar os preparativos. O ritual, além de ser um dever, era uma prerrogativa masculina. Só muito rara mente se permitiam às mulheres participarem da vida religiosa do clã e, da cerimônia daquela noite, estavam inteiramente excluídas. Não poderia haver maior desastre do que uma mulher assistir aos secretos ritos dos homens. Al go que não só traria um incomensurável azar, como também espantaria os espíritos protetores. O clã inteiro morreria, se tal acontecesse.

Mas o perigo disso era praticamente nenhum. Jamais passaria pela cabeça de qualquer mulher aventurar-se a chegar por perto de um ritual daquela natureza. Na verdade, aqueles eram momentos por que ansiavam, quando, enfim, iam poder relaxar, estar longe das constantes exigências dos homens e não precisar comportar-se com o devido decoro e respeito. Era duro para as mulheres terem os homens rondando à sua volta o tempo todo, especialmente se estavam nervosos e descarregando seu mau humor sobre as companheiras.

Em geral, eles passavam boa parte do tempo fora, caçando. As mulheres, por tanto, viam-se igualmente ansiosas para encontrar de uma vez a nova moradia,mas não havia muito o que pudessem fazer. Brun era quem escolhia o rumo a tomar. Ele não lhes pedia conselhos e nem elas estavam autorizadas a da-los.

As mulheres confiavam nos homens para guiá-las, assumir responsabili dades por elas e tomar todas as decisões importantes. O clã mudara tão pouco em quase cem mil anos que, agora, estava incapaz de absorver qualquer coisa nova e os avanços feitos em outras eras por exigências da adaptação haviam sido incorporados à estrutura genética. Tanto o homem como a mulher aceitavam seus papéis sem questionar, irremediavelmente impossibilitados de assumir qualquer outro. Para eles, querer mudar o tipo de relações que os regia era o mesmo que tentar fazer crescer um braço ou modificar a forma da cabeça.

Depois de os homens terem saído, as mulheres se reuniram em torno de Ebra e esperaram que Iza fosse juntar-se a elas para, finalmente, satisfazer-lhes a curiosidade. Mas Iza estava exausta e não queria afastar-se da menina. Logo que Creb saiu, ela foi deitar-se ao lado da criança, embrulhando as duas com a mesma pele. Por um instante, pôs-se a observar a garota dormindo à luz meio indistinta do fogo já quase apagado.

Que coisinha curiosa, pensou. De certo modo, bem feia. Seu rosto fica tão chato com esta testa para fora e esse toquinho de nariz. E que osso esquisito debaixo da boca, parece mais um caroço. Quantos anos terá? É mais criança do que eu havia imaginado. Ela é bastante alta, fica tudo muito enganador. Tão magrinha que posso sentir todos os ossos dela. Pobre menina. Gostaria de saber há quanto tempo está sem comida e andando sozinha por aí. Iza passou o braço em torno da garota, querendo protegê-la. A mulher que, em caso de necessidade até de animais cuidava, não poderia agir diferente com aquele ser tão miserável, que era só pele e osso. Todo o seu generoso coração estava entregue àquela pobre criança indefesa.

Enquanto os homens chegavam, o Mog-ur conservou-se afastado, esperando que todos se acomodassem, para então ir postar-se em seu lugar, atrás de uma pedra arrumada dentro de um círculo, por sua vez rodeado por um círculo maior de tochas acesas. Estavam em pleno terreno das estepes, longe do acampamento. O feiticeiro esperou que todos estivessem sentados e foi para dentro do círculo carregando um pequeno archote de madeira aromática.

Colocou a tocha no chão num espaço vazio, próximo de onde se achava seu cajado.

Ficou ereto sobre sua perna sadia, no meio do círculo e olhou, por cima das cabeças dos homens sentados, a distância, na escuridão, com um olhar vago e sonhador, como se visse com seu olho único um mundo para o qual os outros eram cegos. Envolto pela pesada capa de pele de urso que não cobria as saliências desirmanadas de seu vulto assimétrico, era uma figura imponente, se bem que fazendo uma presença estranhamente irreal. Um homem, apesar da forma desvirtuada, não propriamente um homem ou qualquer coisa semelhante, mas algo de diferente. A própria deformidade imbuía- o de uma qualidade sobrenatural que nunca se mostrava tão Intimidadora como quando ele estava à frente dos rituais religiosos.

Subitamente, num passe de mágica, mostrou uma caveira. Segurou-a com seu musculoso braço esquerdo por cima da cabeça e, vagarosamente, fez a volta ao círculo para que todos vissem aquela inconfundível forma arredondada. Os homens olhavam fixamente para a caveira, brilhando sua brancura à luz trêmula das tochas. Em seguida, Creb colocou-a no chão, em frente a seu archote e se sentou atrás deste, fechando o espaço vazio do círculo.

Um rapaz, sentado a seu lado, levantou-se e apanhou uma bacia de madeira. Tinha pouco mais de 11 anos e seu ritual de passagem havia ocorrido algum tempo antes de acontecer o terremoto. Goov fora escolhido para acólito, ainda bem menino, e frequentemente auxiliava o Mog-ur nos preparativos. Entretanto, só se permitiam aos acólitos assistirem a uma cerimônia de verdade depois de já homens feitos. A primeira vez que Goov passou a exercer sua função foi quando começaram a buscar moradia e ele ainda se sentia nervoso executando suas tarefas.

Para Goov, a descoberta de uma nova caverna representava algo de muito especial. Era sua oportunidade de aprender do próprio Mog-ur os detalhes de uma cerimônia raramente executada e de difícil descrição: os ritos que faziam de uma caverna aceitável para moradia. Em criança, sentia medo do feiticeiro, apesar de entender a honra de ser escolhido para acólito. Mas aos poucos começara a compreender que aquele homem aleijado não só era o mais competente feiticeiro de todos os clãs, mas que também tinha um coração generoso, sob aquela máscara de austeridade. Goov respeitava seu mentor.

O acólito iniciara a preparação da beberagem que se achava na bacia, tão logo Brun dera a ordem de fazer alto. A primeira coisa que fez foi apanhar duas pedras para triturar pés de datura, que esmigalhou com as folhas, talos e flores. A parte mais difícil era a de dosar a quantidade certa de cada uma dessas coisas. Depois, despejou água fervendo, deixando que as plantas ficassem em infusão até a hora da cerimônia.

Alguns instantes antes de o Mog-ur entrar no círculo, Goov despejou o chá de datura numa bacia - de uso exclusivo das cerimônias religiosas - que apertava entre as mãos, aguardando, ansioso, o sinal de aprovação do todo-poderoso feiticeiro. O Mog.ur tomou um gole, acenando em aprovação, e depois bebeu mais, para alívio de Goov, que soltou um silencioso suspiro. Em seguida, o rapaz passou a bacia diante de cada um, obedecendo à hierarquia do clã. O primeiro foi Brun. Ele segurava a bacia e controlava a quantidade que iam bebendo até que chegou sua vez, o último a tomar.

O Mog-ur esperou que seu acólito se sentasse para fazer um sinal. Imediatamente, todos passaram a bater ritmicamente no chão com a parte grossa das lanças. As pancadas surdas e monótonas foram crescendo em intensidade até que nenhum outro som era mais ouvido.

Inteiramente tomados pelas batidas sempre iguais, levantaram-se e se puseram a movimentar o corpo dentro do ritmo. O Mog-ur tinha os olhos presos na caveira, e a força desse olhar acabou atraindo a atenção dos homens para a sagrada relíquia como se por vontade dele. O senso de oportunidade era importante e, nisso, ele era um mestre.

Mantinha exatamente o tempo necessário para conservar a expectativa do ponto culminante. Um pouquinho mais e o clima de tensão estaria perdido. Olhou, então, para seu germano o homem que tinha a responsabilidade de conduzir o clã. Brum veio agachar-se diante da caveira.

- O Espírito do Bisão, Totem de Brun - começou o Mog-ur.

De fato, pronunciou apenas Brun, o resto foi dito por meio de gestos, sem verbalizar qualquer outra palavra. Tudo que se seguiu foi uma série de movimentos convencionais de uma antiga linguagem Não articulada, reservada à comunicação com os espíritos e com os outros clãs, cujos poucos sons guturais e gesticulações nem sempre conferiam com a maneira de expressar deles. Era uma prece silenciosa em que o Mog-ur implorava ao Espírito do Bisão para que os perdoasse de qualquer falta cometida que o tivesse ofendido e pediu por fim, que os ajudasse.

“Este homem sempre honrou os espíritos, Grande Bisão. Sempre zelou pelas tradições do clã. Este homem é um chefe forte, sábio, generoso, bom caçador e o sustento de sua família. Um homem controlado, digno do poderoso Bisão. Não o abandone. Conduza-o à nova casa, um lugar onde possa estar feliz. O clã pede pela ajuda do totem deste homem - disse, como conclusão. Em seguida, após a retirada de Brun, lançou um olhar na direção do segundo em comando, e Grod veio agachar-se diante da caveira do urso da caverna.

A nenhuma mulher era permitido assistir à cerimônia, porque ficariam elas sabendo que aqueles homens que se portavam sempre com uma força verdadeiramente estóica pediam e imploravam a forças invisíveis, tal como elas o faziam junto a eles.

- O Espírito do Urso Marrom, Totem de Grod - recomeçou o Mog-ur, prosseguindo com uma prece em termos semelhantes, mas endereçada ao totem de Grod. E assim foi feito com todos os outros. Depois de terminar, voltou seus olhos novamente para a caveira, enquanto as batidas surdas se faziam ouvir, numa outra expectativa de clímax.

Todos já sabiam o que estava para vir. A cerimônia jamais mudava, eraa mesma, noite após noite. Contudo, a expectativa nunca deixava de renovar-se. Esperavam pela invocação do Espírito do Ursus, o Grande Urso da Caverna e totem do próprio Mog-ur, o mais venerado de todos os espíritos.

Ursus não era somente o totem do Mog-ur. Ele pertencia a todos e era mais do que um totem. Havia sido Ursus quem fizera deles uma raça, a raça dos clãs. Ele era o espírito supremo e supremo protetor. A reverência ao Urso da Caverna era o fator comum que os unia, a força que fazia de todos os clã vivendo separadamente e com autonomia, um único povo. O povo dos Clãs do Urso da Caverna.

Quando o feiticeiro achou que já era tempo, deu o sinal. Os homens pararam de bater e foram sentar-se, mas o cadenciado das batidas estava nas suas correntes sanguíneas e continuava soando em suas cabeças.

O Mog-ur pegou, então, numa pequena sacola e tirou de dentro uma pitada de um pó (esporos secos de licopódio). Mantendo a mão por cima do pequeno archote, ele se inclinou para a frente e soprou a chama ao mesmo tempo em que despejava o pó sobre o fogo. Os esporos se incendiaram produzindo dramaticamente em torno da caveira uma cascata de fagulhas de magnésio, num violento contraste com a escuridão da noite.

A caveira brilhava como se animada de vida e, na verdade, estava, pelo menos para aqueles que tinham a percepção alterada pelos efeitos da bebida. Numa árvore perto, uma coruja soltou seu grito - como se por encomenda - elevando o esplendor fantasmagórico com o som de sua voz agourenta.

- Grande Ursus, Protetor dos Clãs! - falou o feiticeiro por meio dos gestos convencionais. - Mostre a este clã uma nova casa, tal como outrora o Urso da Caverna mostrou aos clãs como viver em cavernas e a se vestir com peles. Proteja seu clã contra a Montanha de Gelo e contra o Espírito da Neve Granular que o gerou e também contra o Espírito das Nevascas, o seu companheiro. Este clã pede ao Grande Urso da Caverna para não deixai que nenhum mal lhe suceda, enquanto estiver sem lar. Reverendíssimo espírito de todos os espíritos, os clãs aquele que é o seu povo implora ao espírito do todo-poderoso Ursus para se juntar a ele, enquanto faz a viagem de volta ao princípio.

Neste ponto, o Mog-ur passava a usar a força de seu formidável cérebro.

Todos aqueles povos primitivos sem lóbulos frontais e de fala limitada devido ao atrofiamento dos ôrgãos vocais tinham cérebros avantajados, maior do que de qualquer outra raça da mesma época ou de futuras gerações ainda por nascer. Representavam o ponto culminante de um ramo da espécie humana cujo cérebro desenvolveu-se na parte traseira da cabeça, nas regiões occipital e parietal, aquelas que controlam o órgao da visão e que respondem também pela sensação do corpo e pela memória.

E era justamente a memória que fazia deles seres extraordinários. Neles, o conhecimento Inconsciente do comportamento ancestral, dito instinto, era extremamente desenvolvido.

Armazenada na zona anterior de seus imensos cérebros, não estava apenas a memória particular do Indivíduo, ali se achava também as memórias pertencentes a seus antepassados e, em certas circunstâncias, eles podiam ainda dar um passo mais além. Podiam recordar-se de sua memória racial e de sua própria evolução E quando voltavam muito atrás em suas recordações podiam fundir esta memória, a mesma em todos eles, juntando suas mentes telepaticamente.

Mas só no tremendo cérebro da monstruosa figura do aleijado esta faculdade se achava plenamente desenvolvida. Creb, o bondoso e tímido Creb, cuja enorme cabeça fora a causa de seu aleijão, tinha, como Mog-ur, aprendido a usar o poder desse cérebro para fundir as entidades separadas, que estavam sentadas ao redor dele, numa única mente e dirigi-la.

Podia levá-las a qualquer ponto de sua herança racial e transformá-las em mentes pertencentes a seus antepassados. Ele era O Mog-ur. Seu poder era real, Não se restringia a meros truques de luzes e ingestão de alucinógenos. Isso servia apenas para criar o clima e fazê-los aceitar sua direção.

Naquela noite escura e sossegada, somente iluminada por velhas estrelas, alguns homens reviveram cenas impossíveis de ser descritas. Eles não viram apenas. Eram parte delas. Viram com os olhos, sentiram na pele, lembrando-se dos insondáveis primórdios da existência. Nas profundezas de suas mentes, eles encontraram os cérebros ainda não desenvolvidos de criaturas marinhas, flutuando em quentes ambientes calmos.

Sobreviveram à dor do primeiro ar respirado e se tornaram em anfíbios, partilhando dos dois elementos.

Porque adoravam o urso da caverna, o Mog-ur evocou neles a lembrança do mamífero primordial - o ancestral que deu origem a duas espécies e a uma legião de outras - e fundiu a unidade de suas mentes com a origem do urso. E assim, através das idades, foram sucessivamente vivenciando todos os seus antepassados e sentindo aqueles que divergiram para tomar outras formas. Isso os tornava conscientes de sua relação com toda espécie de vida na terra e o respeito que nutriam até pelos animais que matavam e comiam formava a base do parentesco espiritual com seus totem.

Suas mentes se processavam como uma só, apenas quando se aproximaram do presente se separaram nas de seus pais e, por fim, na de cada um deles. Pareceu ter durado uma eternidade e, num sentido, durou, mas de fato foi pouco o tempo transcorrido. Quando voltavam a si, levantavam-se e saíam para ir dormir um sono profundo e sem sonhos, pois sonhar mais já não era possível.

O Mog-ur foi o último. Em sua solidão, pôs-se a meditar sobre a experiência. Após certo tempo, começou a sentir uma estranha Inquietude. Eles podiam conhecer o passado com a profundidade e a grandeza que elevava a alma, mas só Creb sentia um tipo de limitação que jamais seria percebida pelos outros. Eles Não tinham a capacidade de projeção, nem mesmo pensar um pouco adiante podiam. Apenas Creb fazia uma pálida idéia dessa possibilidade.

A raça dos clãs não conseguia conceber um futuro diferente do passado, nem alternativas inovadoras para o amanhã. Todo o conhecimento e tudo o que fazia era repetição de alguma coisa já feita anteriormente. Até mesmo o armazenamento de comida necessário às mudanças de estações era resultado de experiências passadas.

Houve época, muito distante, quando a inovação se processava com facilidade. Foi no tempo em que uma pedra lascada com um bordo afiado sugeriu a alguém quebrar outra de propósito e fazer-lhe um gume cortante, ou quando a extremidade quente de um pau que alguém girava deu-lhe a idéia de girá lo por mais tempo e com mais força para saber até que ponto o calor obtido podia chegar. Mas, à medida que o número de memórias foi-se acumulando, enchendo e alargando a capacidade de armazenamento dos cérebros deles, as mudanças foram ficando mais difíceis. Não havia mais espaço para novas idéias em seus bancos de memória, as cabeças já estavam extremamente grandes. Às mulheres passaram a ter problemas de parto, e eles não podiam mais dar-se ao luxo de adquirir novos conhecimentos, aumentando-lhes ainda mais o tamanho da cabeça.

Os clã viviam de acordo com tradições inexoráveis. Todas as facetas de suas vidas, desde que nasciam até que eram chamados ao mundo dos espíritos, estavam circunscritas ao passado. Era uma tentativa de sobrevivência, inconsciente, não planejada, a não ser pela natureza, num derradeiro esforço para salvar a raça da extinção e destinada à falência. Só que Não podiam parar de mudar, resistir a isso significava auto-anular-se, era o próprio conceito da anti- sobrevivência.

Eram extremamente lentos na adaptação. Invenções se faziam ao acaso e quase sempre não as punham em prática. Se qualquer coisa de novo lhes acontecesse, a nova informação seria estocada num compartimento de reservas e a mudança se faria com grande esforço; mas, uma vez Imposta, eles se mostravam inflexíveis e seguiam à risca o novo curso. Alterá-lo novamente seria demasiadamente penoso. Mas uma raça sem espaço para aprender, para desenvolver-se, deixou de estar equipada para um meio ambiente passando por transformações fundamentais. Eles haviam perdido o momento de desenvolver-se diferentemente. Isso ficaria a cargo de uma forma mais nova de vida, de algum experimento diferente da natureza.

Enquanto se sentava sozinho, em pleno campo aberto, vendo a última das tochas crepitando e extinguindo-se lentamente, Creb lembrou-se da estranha menina que Iza encontrara e sua Inquietude aumentou ainda mais, chegando a ser quase um desconforto físico. Já haviam encontrado a espécie dela antes, mas, por seus cálculos, só recentemente, e os poucos encontros casuais não haviam sido muito agradáveis. De onde teriam vindo eles era um mistério. A gente dela estava recém-chegada à terra deles, mas, desde que haviam surgido, começaram a haver mudanças. Eram pessoas que pareciam trazer a mudança consigo.

Creb, ignorando seu mal-estar, enrolou com cuidado a caveira do ursona capa, pegou o cajado e, em seu passo coxo, foi para a cama.

 

A menina se virou, começando a debater-se, agitada.

- Mamãe - murmurava, batendo com os braços e chamando cada vez mais alto. -

Mamãe! Mani

Iza segurou-a, sussurrando-lhe baixinho. Era como um ronco surdo e suave, O calor de seu corpo e seus ruídos acalentadores penetravam no cére bro febril da menina, aquietando-a.

Ela passara a noite num sono intranquilo, acordando frequentemente a mulher com suas sacudidelas, seus murmúrios e palavras delirantes. Eram sons estranhos, diferentes daqueles expressados pela gente dos clãs. Saíam com facilidade, fluindo livremente, cada som imiscuído em outro. Impossível a Iza querer reproduzir muitos deles. Seus ouvidos não estavam condicionados àquelas sutis variações sonoras. Como, no entanto, um certo número de sons era repetido constantemente, Iza concluiu que deveria ser o nome de alguém chegado à criança e, ao notar que sua presença a acalmava, percebeu quem era esse alguém.

Ela não deve ser muito velha, não soube nem como achar comida para matar a fome, pensava Iza consigo. O que eu gostaria de saber é há quanto tempo está sozinha. O que poderia ter acontecido com o povo dela? Teria si do apanhado pelo terremoto? Será que está rodando sozinha desde essa ocasião? E como teria escapado de um leão só com alguns arranhões Iza já havia tratado de bastantes ferimentos para saber que aqueles só poderiam ter si do feitos por algum gato gigantesco. Espíritos poderosos devem protegê-la, concluiu a mulher consigo mesma.

Quando, por fim, a febre começou a ceder, com a menina banhada de Suor, a madrugada já se aproximava, embora ainda estivesse escuro. Iza aninhou-a perto de seu corpo, aumentando-lhe o calor e se certificando de que estava bem coberta. A menina acordou pouco tempo depois, querendo saber onde se encontrava, mas estava muito escuro para ver.

Sentiu a proteção daquele corpo junto ao seu e tormou a fechar os olhos, embalada já por um sono mais tranquilo.

Ao clarear o céu, fazendo aparecer as silhuetas das árvores sob os pálidos raios de luz, Iza arrastou-se em silêncio para fora da coberta. Atiçou o fogo, acrescentou mais lenha, indo em seguida ao pequeno córrego para encher sua bacia e apanhar mais cascas no tronco de salgueiro. Por um instante, deu uma parada e, agarrando o amuleto, agradeceu aos bons espíritos pela presença ali do salgueiro.

Sempre agradecia aos espíritos, não só pela onipresença dessa árvore, como também por suas propriedades analgésicas. Já nem se lembrava de quantas vezes teve de fazer chá de cascas de salgueiro para aliviar dores e sofrimentos. Conhecia outros remédios mais fortes contra dores, só que esses tiravam a dor, mas embotavam os sentidos. O salgueiro não, atacava apenas a dor e diminuía a febre.

Algumas pessoas haviam começado seus afazeres, quando Iza agachou se junto do fogo, apanhando pedras para pôr na bacia cheia de água com cascas de salgueiro. Depois de pronto, ela foi para o lugar onde se achava sua pele e colocou com cuidado a bacia numa depressão escavada no terreno. Em seguida, silenciosamente, meteu-se sob a pele, ao lado da menina. Ficou observando-a dormir, reparando que tinha a respiração normal. Iza estava intrigada com seu rosto. A queimadura de sol começara a tomar uma cor bronzeada, exceto o pequenino nariz que ainda descascava no cavalete.

A curandeira já havia visto pessoas da raça dela, mas só uma vez e a distância. As mulheres dos clã sempre corriam e se escondiam, quando as encontravam. Incidentes desagradáveis ocorridos nos poucos encontros casuais de gente dos clã com os Outros eram comentados em suas reuniões periódicas, por isso os evitavam. Às mulheres, especialmente, Não era permitido muito contato. Mas a experiência particular de seu clã não fora má. Iza lembrou-se da conversa com Creb sobre o homem que, há muito tempo, entrara cambaleando na caverna, tonto de dor, com seu braço quebrado.

Ele chegou a aprender um pouco da língua, mas seus modos eram muito estranhos.

Gostava de conversar tanto com as mulheres como com os homens e tratava a curandeira com toda a deferência, quase que com veneração Isso na o havia impedido de ganhar o respeito dos homens. Deitada de olhos abertos, com o dia já clareando, examinava a criança, deixando-se levar por suas divagações, pensando nos Outros.

Enquanto a olhava, um raio de sol que se insinuava no horizonte bateu-lhe no rosto. As pálpebras tremelicaram e a menina abriu os olhos, dando com outros enormes, castanhos, profundamente encravados debaixo das sobrancelhas, num rosto que se projetava de certo modo como um focinho.

A menina soltou um grito e apertou os olhos novamente. Iza puxou-a para perto, sentindo seu corpo magricelo tremendo de medo e se pôs a murmurar alguns sons suaves. Os ruídos que fazia tinham qualquer coisa de familiar para a criança, mais familiar, entretanto, era o calor do corpo que a aconchegava. Aos poucos, a menina foi parando de tremer. Abriu uma pontinha dos olhos e olhou de novo para Iza. Desta vez, já não gritou. Por fim, abriu-os por inteiro e fixou a cara assustadora, inteiramente desconhecida para ela.

Iza também, espantada, fixou seus olhos na menina. Nunca havia visto até então olhos cor do céu. Por um instante, pensou se a criança não seria cega. Os olhos das pessoas idosas dos clã às vezes, criavam uma película por cima e, à medida que essa película ia fazendo uma sombra cada vez mais clara, nublando os olhos, a visão ia empanando-se. Mas as pupilas da menina dilatavam-se normalmente, não havendo dúvida de que tinha visto sua figura. Essa cor de azul claro acinzentado deve ser normal nela, pensou Iza.

A menina permaneceu deitada, de olhos bem abertos, mas completamente imóvel, com medo de mexer um só músculo. Quando por fim se sentou com a ajuda de Iza, encolheu-se com a dor sentida e as lembranças dos últimos dias passaram-lhe pela cabeça aos borbotões. Com um estremecimento, lembrou-se da garra afiada do monstruoso leão riscando com sangue sua perna. Lembrou-se dos momentos em que se debateu na correnteza do rio, desde de que havia vencido seu medo e da dor na perna. Mas do que acontecera antes disso não se lembrou. Bloqueara na memória todo seu pavoroso sofrimento, Não se recordou de suas andanças solitárias, da sede e da fome sofrida, do monstruoso terremoto e das pessoas queridas que havia perdido.

Iza levou a cuia com o chá até os lábios da menina. Ela estava com sede e tomou um gole, fazendo uma careta ao sentir o gosto amargo. Mas quando novamente Iza tornou a botar a conja em sua boca, voltou a beber; estava amedrontada demais para tentar qualquer resistência. Iza balançou a cabeça em sinal de aprovação e saiu para ajudar as outras mulheres no preparo da refeição matinal. Os olhos da garota acompanharam Iza, arregalando-se ao dar com aquele acampamento repleto de gente parecida com aquela mulher.

O cheiro da comida cozinhando fez com que seu estômago desse pulos e, quando a mulher voltou com uma pequena conja cheia de caldo de carne engrossado com farinha de fibras trituradas, a menina, esfaimada, engoliu tudo sofregamente. A curandeira achava que ainda Não estava na hora de dar-lhe comida sólida. Não era necessário muita coisa para encher-lhe o estômago desacostumado de comida e Iza guardou a sobra numa sacola impermeável, para que a garota tomasse durante a viagem. Depois que terminou de comer, Iza deitou-a e retirou o curativo da perna. As feridas purgavam, mas a inchação diminuíra.

- Muito bem - disse Iza, em voz alta.

A criança deu um pulo ao ouvir pela primeira vez os sons ásperos e guturais emitidos pela mulher. Aquilo Não tinha nada a ver com palavras. Para seus ouvidos desacostumados, pareciam mais grunhidos ou roncos de animal. Mas o comportamento de Iza estava longe de ser animal, era humano e bem humano. A curandeira já tinha pronto outro cataplasma de pasta de raízes e, enquanto fazia a aplicação, um homem desengonçado, disforme, veio coxeando na direção delas.

Era a figura mais repulsiva e medonha que a menina já vira em sua vida. Num dos lados do rosto havia uma horrenda cicatriz e o lugar onde deveria existir um dos olhos achava-se coberto por um retalho de couro. Para ela, entretanto, aquela era uma gente tão estranha e tão feia que o físico desfigurado e intimidador de Creb era apenas uma questão de grau.

Ela não tinha noção de quem eram aquelas pessoas e como fora parar em seu meio, mas sabia que estava sendo tratada. Havia sido alimentada, o curativo refrescava e diminuía a dor em sua perna e, inconscientemente, sentia-se mais tranquila, sem o estado de tensão que lhe provocava um medo doloroso. Por mais estranhas que fossem tais pessoas, com elas, pelo menos, Não estaria sozinha.

O aleijado diminuiu o passo para examinar a menina melhor. Ela devolveu-lhe o olhar com franca curiosidade, o que o deixou surpreso. As crianças do clã estavam sempre com receio dele. Bem depressa, aprendiam que até os mais velhos sentiam por ele um temor respeitoso.

Além disso, as maneiras arredias do velho feiticeiro não encorajavam maiores familiaridades e o abismo aumentava mais, quando os filhos chegavam numa certa idade e as mães passavam a ameaçá-los com a figura do Mog-ur, se eles não se comportassem bem. Na época em que se aproximavam da idade adulta realmente sentiam medo dele, sobretudo as meninas. Só mais tarde, na idade madura, é que conseguiam contrabalançar o medo com o respeito. O olho bom de Creb, no lado direito do rosto, acendeu-se de interesse. Não esperava aquele destemido olhar.

- A criança está melhor, Iza? - perguntou ele, indicando a menina. Sua voz era num tom mais baixo do que a da mulher, mas, para a garota, continuava igualmente parecendo grunhidos. Ela não reparou na gesticulação da mão dele. Era uma linguagem inteiramente estranha, percebia apenas que o homem comunicava alguma coisa à mulher.

- Ela ainda está fraca por causa da falta de comida - respondeu Iza. - Mas o ferimento já está melhor. As unhadas pegaram fundo na carne, mas não deram para afetar a perna e a infecção ainda purga. Foi um leão da caverna que fez isso, Creb. Você já viu algum leão se contentar só com uns arranhões depois de ter atacado? Estou espantada que ela ainda esteja viva. Seus espíritos protetores devem ser muito fortes. Mas... o que estou dizendo? Nada sei sobre espíritos.

Realmente falar sobre espíritos não era assunto próprio para uma mulher ter com o Mog-ur, mesmo que essa fosse sua germana. Iza fez um gesto de humildade, pedindo-lhe desculpas por sua presunção Ele não tomou conhecimento e nem ela esperava que o fizesse, mas, em compensação Creb olhou para a criança ainda com maior interesse.

Também tinha pensado quase a mesma coisa, embora jamais fosse admiti-lo, a opinião de sua irmã pesava muito para ele e, no caso, veio confirmar seus pensamentos.

Rapidamente, eles levantaram o acampamento. Iza se armou com sua cesta e trouxas, içou a menina para seu quadril e foi meter-se atrás de Brun e Grod. Durante a viagem, montada na anca da mulher, a garotinha ia olhando, cheia de curiosidade à sua volta, observando tudo que Iza e os outros faziam. Ficava principalmente interessada na comida que catavam.

Iza estava sempre lhe dando para morder alguma plantinha fresca ou algum pedaço macio de raíz e isso lhe trouxe uma vaga lembrança de outra mulher que também fazia assim com ela. Mas agora punha toda sua atenção nas plantas, observando as características particulares de cada uma. Seus dias de fome fizeram nascer nela um vivo desejo de aprender como encontrar comida. A menina apontou uma planta para Iza e ficou alegre de ver que a mulher parou e foi cavar-lhe a raíz. Iza também ficou contente. A menina é viva, pensou, ela não devia conhecer isto, senão teria comido.

Já perto do meio-dia, pararam para descansar, enquanto Brun examinava nos arredores as possibilidades de uma caverna. Depois de dar o resto do caldo, trazido na sacola de couro impermeável, Iza ofereceu à menina uma tira de carne-seca para mastigar. A caverna não satisfez às exigências. Já chegando mais para a tarde, a perna da menina passou a latejar, quando começou a diminuir o efeito analgésico das cascas de salgueiro. Ela se remexia irrequieta. Iza fez-lhe uma festinha, ajeitando-a numa posição mais confortável. A menina deixou-se inteiramente entregue aos cuidados da mulher. Com total confiança e abandono, passou os braços magros em torn do pescoço de Iza, descansando a cabeça sobre seus ombros largos. A curandeira que, por tantos anos, havia vivido sem filhos, sentiu brotar-lhe uma onda de ternura pela pequena órfã. Ela ainda estava fraca e cansada, mas, embalada pelas passadas ritmadas de Iza, acabou adormecendo.

Com o pôr-do-sol já se aproximando, Iza sentia o esforço que fazia para aguentar o peso extra que levava e deu graças quando Brun ordenou alto e ela pôde enfim botar a menina no chão. A garota tinha febre, os olhos brilhavam, e as bochechas estavam coradas e quentes. Assim, quando foi catar lenha para fazer fogo, Iza procurou também plantas para renovar os curativos. Ela não sabia o que provocava infecções, mas sabia como tratá-las, bem como uma série de outras enfermidades.

Embora a arte de curar fosse expressada em termos de bruxaria e magia, nem por isso a medicina de Iza deixava de ter sua eficácia. Os velhos clãs sempre viveram da caça e da colheita de plantas. O uso empírico da flora no estado bruto feito por sucessivas gerações acabou por reunir grande número de informações sobre o assunto. E os animais, depois de mortos, tinham suas peles removidas, eram esquartejados e os órgãos observados e comparados. Então quanto preparavam as refeições, as mulheres dissecavam os bichos, prestando atenção à sua anatomia, para depois aplicar esse conhecimento às pessoas.

A mãe de Iza, como parte do treinamento da filha, lhe havia mostrado os diferentes componentes internos do animal, explicando-lhe as funções. No entanto, fazia assim apenas para lembrar Iza de coisas que ela já sabia. Iza vinha de uma linhagem de curandeiras altamente respeitadas e, por meios mais misteriosos do que a simples aprendizagem, o conhecimento médico ia passando de mãe para filha. Uma curandeira, novata ainda no ofício, mas com antecedentes ilustres, era mais considerada do que outra contando apenas com sua prática e seu saber, e havia boas razões para isso.

O conhecimento adquirido por seus ancestrais, uma longa linha de curandeiras da qual Iza descendia diretamente, achava-se armazenado em seu cérebro desde que nascera. Podia lembrar-se do que suas avós outrora souberam, e isso não era muito diferente do que lembrar-se de suas próprias experiências. Uma vez estimulado, o processo se fazia automaticamente. Conhecia a origem de suas próprias memórias, porque se lembrava de circunstâncias associadas a estas. Nunca se esquecia de nada, e podia recordar o conhecimento estocado em seu banco de memórias, mas não como ele fora aprendido por suas antepassadas. Apesar de serem filhos dos mesmos pais, nem Creb nem Brun possuíam o saber médico de Iza.

As memórias nos indivíduos dos clã se faziam diferentemente nos dois sexos. As mulheres tinham tanta necessidade de saber sobre caça, quanto os homens não precisavam do mais rudimentar conhecimento de plantas. A diferença entre o cérebro masculino e o feminino era imposta pela própria natureza, e a cultura a sedimentava. Essa era outra tentativa da natureza para limitar o tamanho da cabeça, em seu esforço de prolongar a vida daquela raça. Qual quer criança que trouxesse de seu nascimento um tipo de conhecimento característico do sexo oposto ao dela iria perdê-lo pela falta de estímulo, quando atingisse o status adulto.

Entretanto, a tentativa da natureza de salvar a raça da extinção trazia em seu próprio bojo os elementos da destruição Se os dois sexos eram essenciais à procriação, igualmente um precisava do outro no dia-a-dia; separados, não sobreviveriam por muito tempo. E estavam impossibilitados de adquirir o conhecimento, pois não tinham a memória deste.

Outra particularidade da raça dos clã era a de que os seus indivíduos

- homens e mulheres - haviam sido dotados de uma visão extremamente fina e perceptiva, embora usada de diferentes modos. O terreno, enquanto viajavam, fora gradualmente mudando e, no seu subconsciente, Iza havia guardado cada detalhe dos lugares por onde passaram, especialmente no que se referia à vegetação. Podia discernir à grande distância as menores variações da forma de uma folha ou na altura de algum talo.

Embora houvesse certas plantas, alguma árvore ou um arbusto ou flor que nunca vira antes, todos, de certa maneira, lhe eram familiares. Num recanto lá no fundo, atrás de seu enorme cérebro, ela ia buscar o conhecimento da planta, na memória que havia nascido com ela.

No entanto, com todo esse imenso reservatório de informações a seu dispor, assim mesmo, começara a ver, desde algum tempo, certos vegetais completamente desconhecidos, tão estranhos quanto a própria região por onde passavam. Teria gostado de examiná-los mais de perto. Todas as mulheres estavam também curiosas sobre a flora do lugar. Apesar de isso representar aquisição de conhecimento, esse era essencial à sua sobrevivência.

Também fazia parte da hereditariedade feminina saber como testar uma planta desconhecida. Da mesma forma que as outras mulheres, Iza se pôs a experimentar os vegetais que lhes eram estranhos. As plantas novas semelhantes àquelas já conhecidas eram postas em categorias correlatas, mas Iza sabia dos riscos que havia em tomar características semelhantes por propriedades idênticas. O procedimento num teste era simples. Primeiro, ela dava uma pequena mordida. Se o gosto fosse desagradável, cuspia imediatamente. Ao contrário, se agradável, retinha na boca uma mínima porção da planta, prestando o máximo de atenção às mudanças do paladar, se picava, queimava etc.

Se nada acontecesse, ela engolia e esperava para ver se era possível detectar alguns efeitos. No dia seguinte, dava uma mordida maior, procedendo da mesma forma anterior. Caso nenhum efeito nocivo fosse observado, depois do terceiro dia de teste, a planta passava a ser considerada comestível, inicialmente em pequenas quantidades.

Contudo, Iza quase sempre ficava mais interessada quando havia efeitos perceptíveis, pois significavam a possibilidade de a planta ter algum uso medicinal. E as outras mulheres, depois de aplicar o mesmo teste, traziam para ela qualquer coisa que lhes parecesse estranha, bem como todas as plantas com características parecidas com aquelas que sabiam ser venenosas ou tóxicas. Procedendo com cautela, Iza fazia também testes com estas, mas aplicando métodos exclusivamente seus. Como os testes levavam tempo, ela preferia, enquanto viajavam, continuar só com as plantas já conhecidas.

Perto do acampamento, encontrou uma quantidade de pés de malva, altos, de caules finos como varetas e de flores grandes de tonalidades fortes. Tais como as raízes de íris, também as dessa planta com flores multicolori das davam cataplasmas que serviam para reduzir inchações, processos inflamatórios, apressando a cura. O chá de malva não só era bom para anestesiar dores, como também servia para fazer dormir. Assim, junto com a lenha, as malvas foram colhidas.

Depois da refeição da noite, a garota, sentada contra uma enorme pedra, ficou observando as actividades das pessoas a seu redor. A comida e um curativo novo a haviam revigorado, e ela, agora, falava animada com Iza, apesar de não ter muita certeza de estar sendo entendida. As pessoas olhavam em sua direção com ar de reprovação, mas ela não compreendia o significado latente naqueles olhares. O atrofiamento dos órgãos vocais impedia a raça dos clã de ter uma articulação precisa. Os poucos sons que usavam com caráter de exclamações tinham evoluído de gritos de advertência ou de uma necessidade de chamar atenção, e a importância que atribuíam às verbalizações fazia parte de suas tradições. Os meios primitivos de comunicação - sinais de mios, gestos, posturas, os costumes estabelecidos, a intuição nascida do contato íntimo entre as pessoas e o fino discernimento de expressões, tanto do rosto como do corpo - eram bastante expressivos, mas limitados. Era, por exemplo, com a maior dificuldade que tentavam descrever algum objeto novo que ainda não conhecessem, e mais difícil ainda era a expressão do pensamento abstrato. A fluência da garota, portanto, deixava-os perplexos e desconfiados.

Eles tinham grande apego às crianças, que cercavam de terna e amorosa afeição. Só quando elas ficavam mais velhas é que a disciplina passava a ser mais rígida. Os bebês eram mimados tanto pelas mulheres como pelos homens, e a maneira que tinham para castigar uma criança era a de simplesmente não tomar conhecimento de sua pessoa. À medida que iam crescendo, começavam a tomar consciência do status das mais velhas e dos adultos, passando a imitar-lhes as atitudes e já Não querendo ser mais mimadas, coisa de bebês. Aprendiam desde cedo a se comportar dentro das estritas regras do clã, e uma delas é a de que não se devia emitir sons supérfluos, algo bastante fora de propósito. Devido à sua altura, a menina parecia-lhes mais velha do que realmente era, e todos a estavam considerando indisciplinada e mal-educada.

Iza, pelo maior contato com ela, imaginava que deveria ser mais criança do que aparentava e começava a chegar perto de sua verdadeira idade, compreendendo com indulgência seu estado de carência. Percebeu também, por seus murmúrios durante o delírio, que a gente dela devia falar com muito mais frequência e fluência do que eles. Sentia-se atraída por aquela menina que tão confiantemente a rodeara com seus bracinhos descarnados e que tinha sua vida dependendo dela. Há muito tempo para que aprenda boas maneiras, disse consigo. Iza já começava a pensar na menina como dela.

Creb, que rondava por perto enquanto Iza preparava o chá de malva, veio sentar-se próximo à garota. Estava intrigado com ela. Os preparativos para a cerimônia noturna ainda não tinham ficado prontos e ele aproveitava aqueles minutos para saber como ela ia passando. Os dois se olharam, a garotinha e o velho feiticeiro aleijado com sua assustadora fisionomia, um examinando o outro com a mesma curiosidade. Ele nunca estivera tão perto de alguém dos Outros e muito menos já vira uma criança daquela raça. A menina, por sua vez, até que acordou no meio deles, jamais soubera da existência dos clã Contudo, mais do que simplesmente características raciais, ela estava curiosa com aquela pele enrugada no rosto de Creb. Em todos os seus pouquíssimos anos de vida, jamais vira uma cicatriz tão horrenda e, num impulso,com toda a desinibição de uma criança, tocou-lhe a face, querendo sentir o que era aquilo.

Creb, surpreso, viu-se inteiramente desconcertado com o suave toque da menina. Nunca outra criança já havia estendido a mão para ele daquela maneira. Tampouco os adultos. Evitavam seu contato como se sua deformidade pegasse. Apenas Iza, que cuidava de seus achaques reumáticos, a cada inverno mais dolorosos, parecia não ter escrúpulos. O aleijão de seu corpo e a feia cicatriz do rosto Não lhe causavam repugnância, como também o poder que emanava de sua elevada posição social não lhe infundia maiores temores. Assim, aquele doce roçar da mão de uma criança tocou em alguma corda recôndita do velho coração solitário. Quis, então, comunicar-se com ela e, por instantes, ficou pensando em como abordá-la.

- Creb - disse ele, apontando para si mesmo.

Iza observava em silêncio, esperando que as flores ficassem bem encharcadas. Sentia-se contente por ver Creb se interessando pela menina e não deixou de perceber que ele tinha usado seu nome de nascença.

- Creb - repetiu ele, batendo no peito.

A menina levantou a cabeça, tentando entender. Ele queria que ela fizesse alguma coisa.

Creb disse seu nome pela terceira vez. Súbito, ela se iluminou, sentou-se direita e sorriu.

- Grub? - perguntou, enrolando o R para imitar o som.

O velho fez que sim com a cabeça. A pronúncia estava parecida. Em se guida, apontou para ela. A garota franziu a cara, sem muita certeza do que ele estava agora querendo. Creb, então, tornou a bater no peito, repetindo seu nome e batendo no dela logo em seguida. Sim, ela havia entendido, mas o largo sorriso que deu era, aos olhos dele, como uma careta, e a palavra polissilábica que lhe saiu dos lábios era não só impronunciável, mas quase incompreensível. No entanto, ele procurou fazer os mesmos movimentos de boca. Curvou-se para mais perto, tentando ouvir melhor. Ela repetiu seu nome.

- Àay-rr - disse ele, hesitando. Abanou a cabeça e tentou novamente.

- Aay-lla, Ayla? - foi a coisa mais aproximada que conseguiu dizer. E bem poucos eram aqueles no clã que poderiam chegar tão perto da pronúncia dele.

A menina deu uma risada radiante, balançando afirmativamente a cabeça. Não era exatamente o que tinha dito, mas aceitava, percebendo, apesar de muito criança, que ele não poderia pronunciar melhor seu nome.

- Ayla - repetiu ele o nome, querendo acostumar-se com o som.

- Creb? - disse a garota, puxando-lhe o braço para chamar-lhe a atenção. Depois, apontou para a mulher.

- Iza - respondeu Creb. - Iza.

- liiz-sa - repetiu ela. Estava encantada com aquele jogo de palavras.

- Iza, Jza - ficou repetindo e olhando para a mulher.Iza, solenemente cumprimentou-a com a cabeça. Os sons dos nomes eram muito importantes. Ela se inclinou e bateu no peito da menina, do mesmo jeito como fizera Creb, esperando que a menina dissesse o seu nome outra vez, O nome foi repetido por inteiro. Mas Iza simplesmente abanou a cabeça. Não compreendia. Era-lhe impossível fazer aquela combinação de sons que saía com a maior facilidade dos lábios da menina. A garota estava desanimada. Então olhando para Creb, pronunciou o seu nome à maneira dele.

- Aii.gaa? - tentou Iza.

A menina tomou a repetir o nome.

- Àii-ga? - tentava iza mais uma vez.

- Aiii não Iza. Aay-lla - falou Creb muito vagarosamente para Iza poder escutar aquela estranha combinação de sons.

- Aaay-lla - disse Iza com cuidado, esforçando-se para pronunciar a palavra do modo como Creb a emitira.

A menina sorria. Não tinha importância que seu nome Não estivesse certo. Iza se esforçava tanto para dizer o nome que Creb lhe dera que ela o aceitava como se fosse o seu. Para eles, seria Ayla. Com toda a naturalidade estendeu os braços para Iza, querendo abraçá-la.

iza a estreitou com brandura, afastando-se pouco depois. Teria ainda de ensiná-la que demonstrações de afeto em público era algo de impróprio. Mas ficara contente assim mesmo.

Ayla não se continha de alegria. Havia se sentido perdida e isolada entre aquela gente que lhe parecia tão estranha. Esforçara-se tanto para comunicar-se com a mulher que cuidava dela e saíra tão frustrada de suas tentativas que esse começo já significava muito para ela. Pelo menos tinha agora um nome para chamar a mulher e outro para ser chamada. Virou-se para o homem que dera partida ao processo de sua comunicação Ele já não lhe parecia tão feio. Estava transbordante de alegria, cheia de ternura por ele e, tal como muitas vezes havia feito com um homem de quem vagamente se lembrava, rodeou os braços em torno do pescoço de Creb e lhe puxou a cabeça para baixo para poder colar sua bochecha na dele.

O gesto de afeto deixou-o perturbado. Resistia ao impulso de corresponder ao abraço. Seria extremamente impróprio que o vissem abraçando aquela criaturinha estranha, fora dos limites do núcleo familiar, mas assim mesmo deixou que Ayla comprimisse sua bochecha firme e macia contra seu rosto barbudo, antes de delicadamente tirar-lhe os braços de seu pescoço.

Creb pegou o cajado e, com sua ajuda, levantou-Se. Enquanto ía andando, pensava na garota. Tenho de ensiná-la a falar. Ela precisa aprender a comunicar-se direito, disse consigo. Afinal, não posso confiar toda sua educação a uma mulher, mas ele sabia que o que realmente estava querendo era passar mais tempo com a menina. Sem se dar conta, já pensava nela como fazendo parte para sempre do clã.

Brun não tinha avaliado bem as implicações do fato de haver permitido Iza pegar uma menina desconhecida no meio do caminho. Isso não era culpa dele como chefe, mas sim dele como produto de sua raça. Naturalmente, não poderia prever esse encontro e igualmente suas consequências lógicas. Ela tinha sido salva, sua vida estava fora de perigo; agora, se não a quisesse no clã a única coisa que lhe restava era mandá-la embora e deixá-la novamente entregue à própria sorte. Mas sozinha não sobreviveria. Não se tratava aqui de raciocinar sobre o futuro, era simplesmente a constatação de um fato. Salvá-la, para expô-la por uma segunda vez à morte significaria comprar uma briga com Iza que, se não tinha poder pessoal, dispunha de uma legião de espíritos do seu lado. E, agora, havia também Creb, o Mog-ur, que, por sua vez, possuía poder para invocar qualquer ou todos os espíritos que bem entendesse. Espíritos, uma força poderosíssima, com a qual Brun não tinha a menor vontade de se ver às voltas. A bem da verdade, esta era justamente a possibilidade que o levava a desgostar da menina. Ele não sabia expressar isto para si mesmo, mas sentia qualquer coisa pairando no ar. Não havia percebido ainda que seu clã estava aumentado para 21 membros.

Ao examinar a perna de Ayla no dia seguinte, Iza notou que melhorara. Sob seus sábios cuidados, a infecção praticamente desaparecera, e os arra nhões, na forma de quatro riscas paralelas, estavam fechados e já curados, embora a garota fosse ficar para sempre com aquela cicatriz. Iza achou que os cataplasmas já não eram mais necessários, mas ainda fazia os chás de casca de salgueiro. Nesse dia, ao sair da pele de dormir, Ayla tentou ficar de pé com a ajuda de Iza, que a escorava, enquanto a menina ia aos poucos assentando o peso do corpo sobre a perna. Doía, mas, depois de alguns passos cautelosos, começou a sentir-se melhor.

De pé, sobre as duas pernas, a menina ainda era mais alta do que imaginara Iza. Eram pernas esguias, longas, de joelhos pontudos e retos. Iza chegou a pensar se a garota não seria aleijada. As pernas das pessoas dos clãs eram arqueadas, formando uma curva para fora. Não. A menina não tinha qualquer problema para andar, apenas estava ainda um pouco fraca. Pernas retas devem ser também normal nela, concluiu... do mesmo modo que olhos azuis.

A curandeira enrolou-se em sua capa e suspendeu Ayla para montá-la mais uma vez sobre sua anca. A perna ainda Não estava bastante boa para caminhadas maiores. Vez por outra naquele dia, Iza colocou-a no chão para que fizesse um pouco de exercício. A garota comia com gulodice, descontando todo o seu tempo de fome, e Iza já a achava mais gorda. Ficava contente de se ver livre por algum tempo daquele fardo extra, sobretudo porque a viagem mostrava-se cada vez mais difícil.

O clã havia deixado para trás o vasto terreno das estepes e os dias seguintes foram passados atravessando uma região acidentada, com os morros ficando cada vez mais íngremes. Estavam nos contrafortes de belas montanhas, cujos picos gelados e brilhantes mostravam-se a cada dia mais próximos. As coli nas eram revestidas por densas florestas, não com a vegetação perene da floresta boreal, mas com folhagens de tons magníficos de verde e com velhas ár vores de folhas largas e grossos troncos nodosos. Brun achava-se espantado. A temperatura esquentara, avançando rapidamente sobre a estação. Os homens haviam trocado suas capas por uma peça de couro mais curta que lhes deixava à mostra o torso nu. As mulheres não alteraram as vestimentas. Era mais fácil carregar suas tralhas usando o traje completo que diminuía o atrito da carga sobre o corpo.

O terreno não tinha mais qualquer semelhança com a pradaria fria do antigo cenário da outra caverna. Iza se via cada vez mais dependente do conhecimento de seu banco de memórias, à medida que iam passando por sombrios desfiladeiros ou caminhando por elevações verdejantes em pleno ambiente da floresta temperada. Os troncos escuros de cascas grossas - carvalhos, faias, nogueiras, macieiras, aceráceas - misturavam-se com outros de cascas lisas e flexíveis - salgueiros, bétulas, cárpeas, álamos - tudo em meio a frondosos amieiros e aveleiras. O ar estava impregnado de um aroma forte e penetrante que parecia elevar-se da brisa suave e quente vinda do sul. Um cheiro que Iza não conseguiu de pronto identificar. Arnentilhos ainda se colavam às folhas dos pés de bétulas e delicadas pétalas voavam ao sabor do vento, enquanto nas árvores as flores desabrochadas prometiam um outono farto em frutas.

Lutando contra um cerrado matagal e o emaranhado de plantas trepadeiras da floresta fechada, eles subiam pelas encostas mais à mostra dos rochedos. Enquanto galgavam os aforamentos, ao redor os flancos das colinas resplandeciam com folhagens de todos os matizes. O verde-escuro dos pinheiros tornou a reaparecer ao lado de abetos prateados e, um pouco mais acima, surgiam aqui e ali as manchas dos espruces azuis. As cores se entremeavam, dos tons sombrios das coníferas ao verde forte e vivo das frondes de folhas largas, até as tonalidades esmaecidas das tílias e das árvores de delicada folhagem. O musgo e a relva contribuíam com suas nuanças para o mosaico formado por luxuriante vegetação e pequenos arbustos. Lá se achavam desde as oxalis - os trevos e azedinhas - até pequeninas suculentas que se agarravam às paredes nuas das rochas. E espalhando-se por toda a mata, miríades de flores silvestres: lírios brancos, violetas amarelas, espinheiros rosa, enquanto nos altiplanos dominavam os junquilhos dourados e as gencianas azuis e amarelas. Por fim, saindo de algumas sombras, os últimos açafrões da temporada ainda corajosamente exibiam suas flores amarelas, brancas e vermelhas.

O clã fez uma parada para descansar, quando atingiu o topo de um alto aclive. Embaixo, o panorama das florestas, cobrindo os flancos montanhosos, terminava abruptamente nas estepes que se estendiam até o horizonte. De onde eles se achavam, viam diversos rebanhos pastando a distância na relva alta e amarelecida pelo sol de verão. Se os caçadores estivessem livres e desembaraçados das mulheres carregando seus pesados fardos, poderiam dar-se ao luxo de escolher que caça preferiam dentre uma enorme variedade de rebanhos e manadas. Facilmente, estariam em pouco tempo nos terrenos das estepes. O céu a leste, para o lado da pradaria, estava claro, mas rajadas de vento traziam pesadas nuvens negras, armando-se ao sul. Se continuassem a avançar, a alta cordilheira de montanhas, ao norte, era uma barreira para as nuvens que iriam descarregar toda a sua massa de chuvas sobre eles.

Brun e os homens estavam tendo uma reunião fora das fileiras das mulheres e das crianças, mas, por suas carrancas e gestos, podia-se bem imaginar do que tratavam: se deveriam ou não prosseguir no caminho. Aquele era um terreno desconhecido, e o pior, estavam-se afastando muito das planícies. Embora tivessem avistado alguns animais no pé da cordilheira, nada se comparava com os rebanhos nutridos com as gordas pastagens das campinas. Em campo aberto, os animais eram presas mais fáceis. Não tinham a floresta para encobri-los e estavam longe dos predadores que lhes disputavam a carne com o homem. Além disso, os animais nas planícies quase sempre eram gregários, andando aos bandos, diferentes dos da floresta, vivendo solitariamente ou em pequenos grupos.

Iza achava que voltariam, que todo o esforço para subir as íngremes encostas fora em vão. A massa pesada de nuvens e a chuva ameaçadora se constituíam num melancólico manto negro sobre suas desalentadas cabeças. Enquanto esperavam, Iza pôs Ayla no chão, aiviando-se de seu peso. A garota, gozando da liberdade de movimento que sua perna curada lhe permitia, e depois de tanto tempo presa ao quadril de Iza, imediatamente foi passear. Iza viu quando ela sumiu de vista por trás da ponta de um monte, pouco mais adiante. Não queria que ela se afastasse muito. A reunião poderia terminar a qualquer instante e Brun não iria olhar com bons olhos, se a menina atrasasse a partida. Foi procurá-la e, ao contornar a ponta, deparou-se com Ayla. Mas, o que viu para além do lugar onde se achava a menina fez seu coração disparar descompassadamente.

Correu de volta, ao mesmo tempo que olhava para trás por cima do ombro. Não ousou interromper Brun, esperando cheia de impaciência que os homens terminassem a reunião. Brun a havia visto. Percebeu logo, mesmo sem demonstrá-lo, que alguma coisa a incomodava. Quando a reunião por fim se desfez, Iza correu em sua direção, sentando-se na frente dele, com os olhos postos no chão, numa atitude que indicava estar querendo falar-lhe. Brun poderia ou não conceder-lhe audiência, a decisão era exclusivamente dele. Se a ignorasse, ela Não teria licença para dirigir-se a ele.

Brun pôs-se, então a imaginar o que poderia Iza estar querendo. Ele vira quando a menina saíra a passear, pouca coisa em seu clã lhe escapava. Mas naquele momento tinha problemas mais urgentes para tratar. Deve ser alguma coisa sobre a menina, pensou, franzindo a testa e sentindo vontade de dispensar Iza. Pouco importava o que o Mog-ur houvesse dito, ele não gostava da garota viajando com o clã. Ao levantar os olhos, deu com o feiticeiro observando-o a distância, mas era um rosto impassível, onde ele não pôde ler qualquer pensamento.

Voltou então os olhos para a mulher sentada a seus pés. A postura dela traía a intensa agitação que lhe ia por dentro. Iza está realmente perturbada, disse consigo. Brun não era homem sem sentimentos e tinha a germana em alta conta. Apesar de todos os problemas que teve com seu companheiro, sempre foi uma mulher que soube conduzir-se com correção Era um exemplo para as outras. Raramente vinha aborrecê-lo com ninharias. Talvez devesse deixá-la falar. Ele não era obrigado a atendê-la. Estendeu a mão e lhe bateu de leve no ombro.

Ao sentir o toque, Iza soltou a respiração sem sabê-lo a tinha mantido suspensa o tempo todo. Ele havia deixado que falasse! Custara tanto a decidir-se que já estava certa de que seria ignorada. Pôs-se de pé e apontou na direção do monte, dizendo apenas uma palavra: caverna!

 

Brun rodou nos calcanhares e caminhou na direção indicada por Iza. Ao contornar o lugar onde o morro fazia uma ponta, parou, inteiramente tomado pela vista que tinha à frente. Uma onda de emoção perpassou por todo o seu corpo. Uma caverna! E que caverna! No primeiro momento em que botou os olhos nela, o chefe soube que era exatamente o que procurava. Mas esforçava-se por se conter, não querendo deixar-se levar pela esperança. Pondo toda sua atenção procurava reparar nos detalhes e na situação da caverna. Tão concentrado estava que quase não se dava conta da menina rondando por perto.

Mesmo de onde ele se achava, a umas centenas de metros, a boca triangular da caverna, cavada na rocha marrom-acinzentada, prometia um espaço interior mais do que suficiente para acomodar o clã. A abertura que a caverna tinha do lado sul era batida pelo sol durante quase todo o dia. Como se para confirmar, um raio de sol, encontrando uma brecha nas nuvens, veio iluminar o chão avermelhado do largo terraço na parte da frente. Brun vasculhava a área, fazendo uma inspeção rápida. Um enorme penhasco ao norte e outro igual a sudeste ofereciam proteção contra os ventos. A água também estava próxima, pensou ele, somando mais um dado a favor, ao ver um riacho correndo a oeste do pé da colina. De longe, era a melhor coisa que já tinha visto. Fez sinal para Grod e Creb, reprimindo o entusiasmo enquanto os esperava. Juntos, iriam examinar a caverna de perto.

Os dois correram em sua direção seguidos por Iza, que foi buscar Ayla. A mulher também deu mais uma olhada de inspeção aprovando satisfeita, com a cabeça, antes de voltar para o grupo de pessoas gesticulando excitadas. A emoção reprimida de Brun falava por si. Sabiam que uma caverna fora encontrada e sabiam também que Brun via grandes possibilidades nela. Luminosos raios de sol vararam a sombria e tristonha atmosfera, parecendo encher de esperança o ar que se punha de acordo com os ânimos de toda aquela gente em ansiosa expectativa.

Ao se aproximar da entrada, Brun e Grod seguraram firmes em suas lanças. Não viram qualquer sinal de presença humana, mas isso não significava que a caverna estivesse desabitada. Passarinhos se lançavam pipilando e cantando numa revoada circular. Pássaros é bom sinal, pensou o Mog-ur. À medida que se acercavam, foram caminhando com mais cautela, contornando a boca de entrada, enquanto Brun e Grod procuravam por pegadas frescas e vestígios de excrementos. O que existia de mais recente era de alguns dias atrás. Os rastros e as marcas de enormes dentadas nos ossos da perna de um animal, partidos por poderosas mandíbulas, contavam sua própria história. Um bando de hienas havia usado temporariamente a caverna. Depois de atacarem um velho e grande gamo, arrastaram sua carcaça para o interior da caverna e lá terminaram à vontade e em relativa segurança seu festim.

Próximo à extremidade oeste da entrada, aninhado num emaranhado de arbustos e trepadeiras, havia um lago alimentado por uma cascata. Sua saída era um regato que escorria pela encosta até encontrar o primeiro riacho. Dei xando os outros dois à espera, Brun foi em direção à nascente, brotando da rocha, um pouco mais acima na encosta acidentada que encobria a lateral da caverna. A água, cintilando, logo ali na boca da entrada, era fresca e pura, fazendo com que Brun acrescentasse mais esse dado a favor. O lugar era bom, mas seria a própria caverna que decidiria. Os dois caçadores e o feiticeiro se prepararam para passar pela enorme e escura abertura.

Retornando para a outra extremidade do lado leste, penetraram no buraco cavado na montanha com os olhos voltados para cima e reparando na altura colossal da entrada de forma triangular. Todos os sentidos alerta, iam caminhando cautelosamente com os corpos junto às paredes. Com os olhos já acostumados à escuridão, olhavam, admirados, em derredor. Um teto em abóboda fazia arcos sobre um enorme espaço, suficientemente grande para abrigar um número bem maior do que aquele de que se compunha o clã. Passo a passo, rente à parede, iam andando e vendo se não haveria outras aber turas dando para novos recintos. Já quase ao fundo, uma segunda fonte de água escorria da parede, formando uma poça que desaparecia pouco mais adiante no chão seco e arenoso. Neste ponto, a parede fazia uma curva inesperada, levando de volta à entrada. Seguindo a parede do lado oposto, a partir da boca da caverna, a luminosidade era um pouco mais forte permitindo que eles vissem uma fenda escura delineada na parede cinza. Ao sinal de Brun, Creb parou em seus passos desajeitados e vacilantes, enquanto Grod e ele foram olhar no interior do buraco na parede. Só viram a escuridão.

- Grod! - chamou Brun por meio de um gesto, significando que estava precisando de sua ajuda.

O segundo em comando correu para fora da caverna, enquanto Brun e Creb, nervosos, aguardavam sua volta. Grod vasculhou a vegetação por perto e, em seguida, dirigiu-se a um grupo de pés de abeto prateado. Bolos de uma secreção resinosa minavam através das cascas, pondo manchas luzidias sobre os troncos. Ele deu uma olhada sob as cascas soltas. A seiva gotejava, pegajosa, das cicatrizes deixadas nos troncos. Separou, então, alguns galhos secos e mortos que continuavam ainda presos às ramagens vivas. Com uma machadinha que tirou de dentro da roupa, cortou um galho verde, rapidamente desfolhando-o. Numa das extremidades deste, enrolou capim junto com a resina e os pequenos galhos secos. Por fim, com todo o cuidado, retirou o carvão aceso do chifre de auroque que trazia pendurado na cintura e encostou a brasa junto da resina, pondo-se a soprá-la. Pouco depois, estava correndo para a caverna, levando na mão uma tocha acesa.

Com Grod segurando a luz bem no alto, e Brun, à frente, empunhando sua maça, pronto para o que desse e viesse, os dois passaram pela fenda. Em silêncio, avançaram com dificuldade por uma estreita passagem que, após alguns passos, fazia um cotovelo para dobrar na direção dos fundos, mas, antes, dando para uma segunda caverna, logo depois da virada. O espaço nesta, bem menor, era quase circular. Empilhado contra a parede do fundo, um monte de ossos brilhava sua brancura à luz trêmula da tocha. Brun chegou-se para mais perto, querendo ver melhor e, subitamente, seus olhos saltaram. Esforçava-se para poder controlar-se. Fez um sinal para Grod, e os dois rapida mente bateram em retirada.

O Mog-ur esperava ansioso, apoiando todo seu peso sobre o cajado. Ao ver Brun e Grod saírem para fora da escuridão Creb ficou surpreso. Não era normal em Brun aquela agitação. A um gesto deste, o Mog-ur seguiu os dois homens que de novo retornavam à passagem no interior da caverna. Chegando ao pequeno recinto, Grod suspendeu a tocha bem no alto. À vista da pilha de ossos, o Mog-ur estreitou os olhos. Deu uns passos à frente e caiu sobre os joelhos, enquanto seu cajado se esboroava no chão Arrastando-se em meio aos ossos, viu uma enorme forma oblonga e, pondo de lado os outros ossos, pegou uma caveira.

Não havia a menor dúvida. O alto arco frontal abobadado ia de par com aquele que carregava em sua capa. Ele se sentou, suspendendo o crânio à altura dos olhos, pondo-se a mirar, entre incrédulo e reverente, os dois buracos escuros das órbitas. Ursus usara aquela caverna e, pela quantidade de ossos, os ursos de outrora deveriam ter hibernado naquele lugar por muitos e muitos invernos. Agora, Creb compreendia a perturbação de Brun. A caverna já fora moradia do Grande Urso da Caverna. A essência da poderosa criatura, reverenciada e honrada acima de todas as outras, achava-se impregnada na própria rocha das paredes. Sorte e fortuna para o clã que fosse viver ali. Pela idade dos Ossos, era evidente que a caverna havia ficado desabitada por longos anos, como se estivesse esperando por eles.

Era a caverna perfeita, bem situada, espaçosa, com outra anexa que poderia ser usada no inverno e no verão para os rituais secretos, um recinto, por sinal, alentado pelo mistério que se constituía na vida espiritual dos clã. OMog-ur já visualizava suas cerimônias. Naquela pequena caverna estaria o seu domínio. A busca terminara, o clã encontrou um lar... só faltava a primeira caçada ser bem-sucedida.

Quando os três homens saíram da caverna, o sol brilhava, as nuvens iam em debandada, levadas por um vento cortante vindo do este. Brun viu nisso um sinal de bom presságio. Mas daria no mesmo, se as nuvens estivessem sendo estilhaçadas por raios e trovões e se despencando sobre a terra na forma do mais completo dilúvio. Veria igualmente um sinal de bom agouro. Nada podia empanar sua alegria ou dissipar seu sentimento de satisfação. Ele ficou de pé, no terraço, à porta da caverna, olhando a vista dali. À frente, atra vés da fenda formada por duas colinas, viu tremeluzindo a distância uma vasta extensão de água que se perdia na distância. Não pensava que estavam tão perto, disse subitamente compreendendo. Agora estava resolvido o problema daquela vegetação inusitada e daquela rápida mudança de temperatura.

A caverna localizava-se no sopé de uma cadeia de montanhas na ponta sul de uma península que se projetava num mar interno, situado entre terras continentais. O lugar era ligado ao continente em dois pontos. A conexão principal se fazia por um largo istmo ao norte; as terras montanhosas do leste ligavam-se por uma marnota que servia também como escoadouro para um outro mar interno, de menores proporções, na parte nordeste da península.

As montanhas ao fundo protegiam a faixa litorânea do gelado frio de inverno e dos ventos tenebrosos originados nas geleiras continentais ao norte. Os ventos da orla marítima, abrandados pelas águas tépidas do mar, criavam um estreito cinturão de clima temperado na protegida ponta sul da península, além de prover com bastante umidade e calor a floresta formada de velhas e frondosas árvores de madeira de lei, características das regiões de clima tem perado.

A caverna encontrava-se numa localização ideal. O clã usufruía do me lhor dos dois mundos. A temperatura era mais quente do que qualquer outra que predominava nas áreas por perto e havia abundância de madeira para supri-los com lenha e aquecê-los durante os gelados meses de inverno. Um enor me mar estava bem ali à mão, repleto de peixes e frutos marítimos e, ao longo da praia, os penhascos abrigavam os ninhos das aves marinhas com seus ovos. A floresta era um paraíso para aquele povo que ainda vivia da coleta de frutas, nozes, sementes, legumes e verduras. Além disso, o clã tinha fácil acesso à água potável, provinda das fontes no terreno e do rio, O mais importante, porém, é que se podia facilmente chegar às planícies, cujas extensas áreas cobertas de relva sustentavam compactas manadas de animais de pastagens que Não só lhes forneceriam carne, como também roupa e muitos outros implementos. O pequeno clã de caçadores-coletores vivia da natureza e esta era abundante.

Enquanto caminhava de volta, em direção ao clã sempre à espera, Brun quase Não via o chão em que pisava. Nem em pensamento havia vislumbrado caverna mais perfeita. Os espíritos haviam voltado outra vez. Talvez nunca ti vessem ido embora, é provável que quisessem apenas que mudássemos para esta caverna, muito melhor e mais espaçosa do que a antiga. Claro! Deve ser isso! Estavam cansados da outra e desejavam uma nova moradia, por isso provocaram o terremoto para que saíssemos de lá. Talvez as pessoas que morreram estivessem fazendo falta no mundo dos espíritos e agora, eles, para nos compensar, deram essa caverna. Deviam estar nos botando à prova, querendo testar minha capacidade de chefe. Foi por isso que eu Não conseguia resolver se devíamos ou Não voltar. Brun sentia-se feliz por ver que Não falhara em sua liderança. Se Não fosse inteiramente impróprio, teria saído correndo para contar aos outros.

Quando os três homens surgiram, Não havia necessidade de contar a ninguém que a viagem chegara ao fim. Todos sabiam. Mas só Iza e Ayla já tinham visto a caverna, e somente Iza pôde apreciá-la. Tinha certeza de que Brun iria reivindicá-la. Agora, ele Não pode mandar Ayla embora, pensou consigo mesma. Se Não fosse a menina, ele teria voltado antes de encontrar a caverna. O totem de Ayla deve ter muita força e ela, uma boa estrela. Ayla traz sorte para nós. Olhou para a garotinha sentada a seu lado, inteiramente alheia ao rebuliço que causara. Mas, se ela tem tanta sorte, por que então perdeu sua gente? Iza meneou a cabeça. Nunca vou entender os caminhos usados pelos espíritos.

Brun também estava olhando para a menina. Logo que pôs os olhos em cima de Iza e de Ayla, lembrou-se de que tinha sido Iza que lhe falara sobre a caverna e ela nunca a teria achado se Não tivesse ido atrás da garota. Havia ficado até aborrecido quando viu a menina passeando sozinha, pois dissera a todos que esperassem. Mas se Não fosse por ela ser tão indisciplinada, ele teria perdido a caverna. Por que teriam os espíritos primeiro conduzido a menina? O Mog-ur estava certo. Aliás, ele está sempre certo. Os espíritos Não ficaram zangados pelo fato de Iza ter tido dó da garota e nem estavam descontentes por Ayla estar com eles. O mais provável é que a protegessem.

Brun olhou a figura deformada do homem que deveria ter sido o chefe em seu lugar. Sorte a nossa de que meu irmão seja o nosso Mog-ur. Estranho, continuou dizendo consigo, há muitos anos que Não pensava nele como meu irmão... desde o tempo em que éramos crianças. Isso havia sido na época em que ele, ainda muito jovem, lutava consigo mesmo para adquirir o autodomí nio necessário a todo homem, sobretudo para alguém destinado a se tornar chefe. Seu irmão mais velho também tinha travado sua luta pessoal: contra o sofrimento e o ridículo de Não poder caçar, e ele parecia ter o dom de adivinhar quando Brun se achava infeliz. O olhar suave de Creb o acalmava e, mesmo até hoje, Brun sentia-se melhor quando seu irmão vinha sentar-se perto dele, oferecendo-lhe o consolo de sua compreensão silenciosa.

Todas as crianças que nasciam da mesma mãe eram germanas, mas só as crianças do mesmo sexo referiam-se umas às outras, como irmão ou irmã, esses eram termos mais íntimos e, assim mesmo, usados quando já estavam maiores e nos raros momentos em que queriam demonstrar sentimentos afetivos. Os homens Não tinham irmãos bem como as mulheres não tinham irmãs Creb era germano e irmão de Brun; Iza era apenas germana, e ela não tinha irmãsHouve tempo em que Brun sentia pena de Creb, mas há muito se esquecera das atribulações do outro, em vista de sua sabedoria e poder. Prati camente, havia deixado de vê-lo como homem. Para Brun, Creb era o grande feiticeiro, cujos sábios conselhos estava sempre procurando. Achava que o irmão não lamentava o fato de não ter sido o chefe, mas, às vezes, punha-se a imaginar se Creb não gostaria de ter tido uma companheira e crianças junto a sua fogueira. As mulheres, em certas ocasiões, podiam ser bem cansativas, mas quase sempre traziam um pouco de alegria e ternura. Creb não teve com panheira, nunca aprendeu a caçar, jamais conheceu os prazeres ou as responsabilidades normais próprias da natureza masculina, mas ele era mog-ur, o grande Mog-ur.

Brun nada sabia sobre feitiçarias e muito pouco sobre espíritos, mas era o chefe e sua companheira havia tido um magnífico filho. Ele se enchia de orgulho e prazer sempre que pensava em Broud, o menino que estava educando para um dia assumir seu lugar. Vou levá-lo na próxima caçada, resolveu subitamente, a caçada para a festa da nova caverna. Essa poderá ser também a caçada de sua passagem. Se ele conseguir matar algum animal, poderemos fazer a iniciação dele conjuntamente com a cerimônia da caverna, isso vai deixar Ebra orgulhosa. Broud já está suficientemente crescido, é forte e corajoso. Às vezes, um pouco cabeça-dura, mas já estava aprendendo a controlar seu temperamento. Brun estava necessitando de mais um caçador. Agora que já tinham uma caverna, precisavam trabalhar, prevendo o próximo inverno. O me nino achava-se com quase 12 anos, já bastante grande para entrar na idade adulta. Na nova caverna, Broud poderia, pela primeira vez, participar das memórias, pensou o pai. Elas vão ser especialmente boas. Iza fará a bebida.

Iza! O que vou fazer com ela? E com a menina? Iza já está muito ligada à garota... por mais estranha que seja. Deve ser porque passou tantos anos sem ter filhos. Mas daqui a pouco tempo vai ter o filho dela e Não tem nenhum companheiro para sustentá-la. Com a menina, serão duas crianças com quem vai ter de preocupar-se. Iza já Não é moça, mas está grávida e tem status e suas mágicas. Iza é uma honra para qualquer homem que quiser assumi-la. Se Não fosse pela garota, um dos caçadores poderia tomá-la como segunda mulher. Mas a garota, os espíritos a protegem, e eles vão ficar com muita raiva se agora eu a mandar embora. Podem fazer com que a terra trema outra vez. Brun teve um arrepio.

Sei que Iza quer ficar com a menina e foi ela quem me falou da caverna. Merece ser distinguida por isso, mas a coisa Não é simples. Se eu deixar que a garota fique, isso mostra que está sendo honrada, mas a menina não é da raça dos clã Será que nossos espíritos vão querê-la? Ela nem totem possui. Como vamos permitir que fique conosco, se Não tem totem? Ah, espíritos! Nunca vou entender deles.

- Creb! - chamou Brun.

O feiticeiro voltou-se ao ouvir o som da voz, surpreso pelo fato de Brun o estar chamando por seu nome de nascença. Quando seu irmão lhe fez sinal, dizendo que a conversa seria em particular, ele foi capengando na direção do outro.

- Essa menina... a que Iza trouxe... Bem, você sabe, Mog-ur. Ela não é da raça dos clãs - começou Brun a falar, um tanto inseguro, sem saber como principiar a conversa. Creb esperou. Foi você quem disse para que eu deixasse Ursus decidir se ele queria ou não que a menina continuasse vivendo. Parece que ele resolveu deixar que ela viva e, agora, o que vamos fazer com a garota? Ela não é da nossa raça. Não tem totem. Nossos totens não vão permi tir nem mesmo pessoas de Outro clã na cerimônia que vai preparar a caverna para eles. Só aqueles que têm espíritos vivendo aqui é que vão poder participar. A menina é muito criança, nunca irá sobreviver sozinha e você sabe que Iza quer ficar com ela... mas, e a cerimônia da caverna, como fica?

Creb já esperava por essa conversa e estava preparado.

- A menina tem totem, Brun. E um poderoso totem. Apenas não sabemos qual. Foi atacada por um leão da caverna e saiu apenas com alguns arranhões.

- Um leão da caverna? Poucos caçadores iriam conseguir escapar com tão pouca coisa.

- lião mesmo. E pense que ela ficou caminhando sozinha por longo tempo, quase morrendo de fome e não morreu. Foi posta em nosso caminho para que Iza a achasse. E não se esqueça também, Brun, de que você não impediu isso. Ela é muito criança para aguentar tanto sofrimento - prosseguiu falando o Mog-ur. - Mas minha impressão é que a menina está sendo testada pelo totem dela para ver se é digna. Seu totem não é apenas poderoso, ele tem também uma boa estrela. Nós poderíamos participar da sorte dela. Talvez até já estejamos.

- Você está se referindo à caverna?

- Foi para ela que a caverna foi mostrada primeiro. Nós já estávamos prontos a voltar. Você nos conduziu tão perto, Brum e...

- Os espíritos me conduziram, Mog-ur. Eles queriam uma nova casa.

- Claro, eles o conduziram, mas foi para a menina que mostraram em primeiro lugar. Estive pensando, Brun. Há dois bebês que ainda não têm totens conhecidos. Ainda não tive tempo. Encontrar uma caverna era mais importante. Acho que, quando a caverna for santificada, podemos fazer ao mesmo tempo uma cerimônia de totens. Isso traria sorte aos bebês e agradaria às mães.

- E o que isso tem a ver com a menina?

- Quando eu for meditar sobre os totens dos dois bebês, pedirei um para ela também. Se o totem da menina se revelar a mim, ela poderá participar da cerimônia. Isso não exige muito dela, e nós, nesta mesma ocasião poderemos aceitá-la no clã. Assim, Não existirá mais qualquer problema no fato de a garota ficar conosco.

- Aceitar a menina no clã. Mas ela não é da nossa raça. Ela é gente dos Outros. Quem falou em aceitá-la no clã? Isso não seria permitido. Ursus não gostaria. Nunca se viu uma coisa desta antes! - objetou Brun. - Eu não estava imaginando em fazê-la um de nós. Pensava apenas em que os espíritos talvez pudessem deixá-la continuar vivendo aqui, até que ficasse um pouco mais velha.

- Iza salvou-lhe a vida, Brun. Agora, Iza carrega uma parte do espírito da menina. Isso torna a garota parte de nossa gente. Ela andou perto de ir para o outro mundo, mas continua viva. É a mesma coisa que ter nascido outra vez, que ter nascido para nossa gente. - Pelas mandíbulas contraídas de Brun, Creb viu que ele estava contra sua idéia e foi logo apressando-se em falar, antes que o outro dissesse qualquer coisa. - As pessoas de um clã se juntam com as de outro clã Brun. Não existe nada de estranho nisso. Houve época em que jovens de diversos clã se juntavam para formar novos clãs. Lembra-se da última reunião de clã Dois pequenos clã não resolveram juntar-se e fazer um só? Os dois ficaram morando juntos, mas não nasceram muitas crianças, e das que nasceram foram poucas as que conseguiram passar do primeiro ano de vida. Aceitar alguém de fora não é coisa nova.

- É verdade, algumas vezes, pessoas de um clã se unem com outras de fora, mas a menina não é da nossa raça. Você nem sabe se o espírito do totem dela vai falar com você, Mog-ur. E se falar, como saberá que está entendendo o que ele diz? Se nem a menina eu consigo entender, quanto mais seu totem. Você realmente acha que pode fazer isso? Descobrir qual é o totem dela?

- Vou tentar. Pedirei a Ursus para me ajudar. Os espíritos têm a língua deles, Brun. Se a intenção for de que ela se junte a nós, o espírito protetor dela dará um jeito para se fazer entender.

Brun por um momento ficou pensativo.

- Mas mesmo que você descubra o totem dela, qual o caçador que vai querê-la? Iza e o bebê já vão ser um fardo bastante pesado e nós não temos muitos homens para caçar. Não foi só o companheiro de Iza que perdemos no terremoto. O filho da companheira da Grod morreu e ele era jovem e bom caçador. O companheiro de Aga também se foi e ela ficou com dois filhos e a mãe que está dividindo a fogueira com ela. - Uma pontinha de dor se insinuou nos olhos de Brun, à lembrança de todas essas mortes havidas no clã.

“E Oga - continuou Brun - primeiro o companheiro da mãe Morto com uma chifrada e logo depois a mãe morrendo no desmoronamento. Eu disse, então, a Ebra que a menina iria ficar conosco. Oga já está quase moça. Quando chegar o tempo, acho que vou dá-la a Broud. Isso vai deixá-lo contente. - Por um instante, Brun ficou distraído, pensando em suas responsabilidades. - Já existe muito trabalho para os homens que ficaram, sem contar com essa menina, Mog-ur. Se eu a aceitar no clã, para quem vou poder dar Iza?

- E para quem você iria dar Iza, durante esse meio tempo, até que a menina tenha idade para ir embora, Brun? - perguntou Creb. Brun parecia confuso, o irmão prosseguiu, antes que o chefe pudesse responder. - Não há necessidade de encarregar nenhum caçador do sustento de Iza e da criança, Brun. Eu sustentarei as duas.

-Você?

- Por que não? Elas são mulheres. Não há meninos para educar, pelo menos por enquanto.

Eu, como Mog-ur, tenho direito a uma parcela de cada caça, não é verdade? Nunca precisei e nunca reclamei. Mas se eu quiser, eu posso. Não seria mais fácil, se todos os caçadores dessem para mim o qui é devido ao Mog-ur? Assim, poderei sustentar Iza e a menina, ao Invés de um único caçador ficar encarregado delas. Eu estava mesmo pretendendo ter uma conversa com você sobre isso. Queria dizer-lhe que logo que encontrássemos uma caverna, eu gostaria de ter a minha própria fogueira e que me encarregaria de Iza, a não ser que outro homem queira ficar com ela. Há muitos anos venho dividindo minha fogueira com ela. Para mim, seria difícil mudar de hábito, depois de tanto tempo. Além disso, Iza me ajuda com meu reumatismo. Se a criança que nascer for menina, eu tomo conta dela também. Se for menino, bem... não adianta nos preocuparmos com isso por enquanto.

Brun ruminava a idéia. Sim. Por que Não? Facilitava para todo mundo. Mas o que levava Creb a querer fazer isso? Iza iria do mesmo jeito continuar sempre cuidando do reumatismo dele, seja lá em que fogueira ela estivesse. Por que será que um homem na idade de Creb, de repente, resolve querer chatear-se com crianças pequenas? E por que desejava tomar a responsabilidade de educar e disciplinar uma menina tão estranha? É, ele deve sentir-se responsável. Brun não gostava da idéia de receber a criança no clã; preferia que o problema nunca tivesse sido posto; e muito menos gostava da idéia de receber alguém de fora, alguém que escapava a seu controle. Talvez fosse mesmo melhor aceitá-la e educá-la direito, tal como uma mulher deve ser, prosseguia ele remoendo seu pensamento. Pode ser também que desta maneira fique mais fácil para o clã conviver com a menina. E se Creb estava querendo encarregar-se dela, não havia motivos para que ele pusesse obstáculos.

Por fim, fez um gesto concordando.

- Está bem. Se você conseguir descobrir o totem dela, nós receberemos a menina no clã, Mog-ur; e ela pode ficar vivendo em sua fogueira, pelo menos enquanto o bebê de Iza não nascer.

Pela primeira vez em toda a sua vida, Brun se viu desejando o nascimento de uma menina e não de um garoto.

Uma vez a decisão tomada, ele se sentiu aliviado. O problema do que fazer com Iza vinha aborrecendo-o, mas era uma coisa que ia sempre adiando. Tinha problemas mais importantes a tratar. A sugestão de Creb não só veio solucionar uma questão intrincada que cabia a ele, como chefe, resolver, como também veio dar solução a um problema de ordem pessoal. Por mais que tentasse, desde que Iza perdera seu companheiro, ele não achava outra saída a não ser a de recebê-la com o futuro filho em sua fogueira e, talvez, também Creb. Ele já era responsável por Broud e Ebra e, atualmente, por Oga. Mais gente criaria atritos no único lugar onde ele relaxava sua guarda e estava à vontade. E sua companheira não ficaria também muito feliz com o arranjo.

Ebra se dava bastante bem com a germana de seu companheiro, mas vivendo na mesma fogueira seria a mesma coisa? Embora nada fosse dito abertamente, Brun sabia que ela tinha ciúmes do status de Iza. Na maioria dos clãs, Ebra, na qualidade de companheira do chefe, seria a mulher com a posição mais elevada. No entanto, Iza vinha em linha direta de uma longa dinastia de curandeiras que foram sempre as mais respeitadas e prestigiosas não só de seu clã, como de todos os outros. Ela possuía status por direito seu e não devido ao companheiro. Quando Iza salvou Ayla, Brun chegou a pensar que teria de receber a menina também. Nunca poderia pensar que o Mog-ur fosse assumir a responsabilidade dele próprio e ainda a de Iza e mais duas crianças. Creb não podia caçar, mas o Mog-ur tinha suas fontes.

Uma vez o problema resolvido, Brun correu em direção a seu clã, ansiosamente aguardando pela palavra do chefe que viria confirmar o que todos já sabiam. E seus gestos, então, disseram:

- A viagem terminou, a caverna foi encontrada.

- Iza - disse Creb, enquanto ela preparava chá de casca de salgueiro para Ayla. - Esta noite, não vou comer.

A curandeira curvou a cabeça em sinal de que havia compreendido. Sabia que suas meditações sempre eram precedidas por algumas horas de jejum.

O clã estava acampado perto do rio, no sopé da pequena colina que levava à caverna. Enquanto a moradia não fosse consagrada segundo os rituais próprios à ocasião, as pessoas não poderiam mudar-se. Embora fosse inconvemiente demonstrar ansiedade, todo mundo estava sempre arranjando pretexto para chegar perto da caverna e dar uma olhada para o interior. As mulheres sempre davam jeito de colher perto da boca da entrada e os homens as se guiam, ostensivamente no propósito de vigiá-las. O clã estava nervoso, mas de ânimo elevado. A angústia sentida desde o terremoto desaparecera. Gostavam da aparência da enorme caverna. Apesar de ser difícil ver dentro da escuridão, assim mesmo dava para perceber que ela era espaçosa, com muito mais recantos e redutos do que a antiga. As mulheres, encantadas, apontavam para o manso lago de água nascente, bem junto da boca de entrada. Não precisavam nem mesmo chegar até o riacho para apanhar água. Esperavam com impaciência pela sagração da caverna, uma das poucas cerimônias religiosas de que elas podiam participar e não havia pessoa que não estivesse ansiosa para mudar-se.

O Mog-ur afastou-se do acampamento, naquele momento em grande actividade. Queria encontrar um lugar sossegado, onde pudesse pensar sem ser perturbado. Enquanto caminhava ao longo do riacho correndo ligeiro ao encontro do mar, uma brisa quente, soprada novamente do sul, descabelava-lhe a barba. Apenas umas poucas nuvens a distância perturbavam a claridade cristalina daquele fim de tarde. No chão crescia um mato espesso e exuberante, e ele tinha de avançar com cuidado, contornando obstáculos, mas pouco se dando conta disso, tão concentrado estava em seus pensamentos. Um ruído vindo de um matagal perto fez com que parasse de repente. Era um terreno desconhecido e sua defesa resumia-se no cajado que o ajudava a firmar-se sobre as pernas, no entanto em sua mão útil, dotada de força descomunal, ele tinha uma bela arma. Pronto para o que acontecesse, segurou firme o cajado, pondo-se a escutar os grunhidos e bufidos saídos do denso matagal e os sons de galhos partindo-se, na direção do mato que se mexia.

Subitamente, através daquela grossa cortina de vegetação, surgiu um bicho, com um corpanzil atarracado e apoiado sobre quatro pernas curtas e troncudas. Os caninos inferiores, pontiagudos e perigosos, projetavam-se do focinho como duas presas. O nome do animal veio-lhe à cabeça, embora jamais tivesse visto um deles em toda a sua vida. Javali, O imenso porco selvagem olhava-o inamistosamente, confuso e indeciso. Depois, ignorou-o e, enterrando o focinho na terra fofa, tormou a meter-se pelo matagal. Creb deu um suspiro de alívio, continuando sua caminhada, seguindo rio abaixo. Numa estreita faixa de areia, deteve-se. Ali, estendeu sua capa, botou a caveira do urso da caverna em cima e sentou-se de frente para ela. Depois de uma gesticulação de sentido religioso, pedindo a assistência de Ursus, limpou a mente de todos os pensamentos, concentrando-se exclusivamente nos bebês que precisavam conhecer seus totens.

As crianças sempre haviam intrigado Creb. Muitas vezes, quando se deixava ficar sentado em meio às pessoas, aparentemente perdido em seus pensamentos, observava a meninada, sem que ninguém se desse conta disso. Uma das crianças era um robusto menino, bem constituído, de uns seis meses de idade que na hora do nascimento berrara com todas as forças e assim continuava a fazê-lo, principalmente quando queria mamar. Desde o princípio, Borg estava sempre fussando a mãe, enterrando-se nos seus seios fofos e só parando depois de encontrar o mamilo, quando, com grunhidos de prazer, punha-se a mamar. Isso o fazia lembrar, pensou Creb bem-humorado, do javali que acabara de ver, grunhindo e enterrando também o focinho na terra macia. O javali era um animal digno de respeito. Inteligente, podendo fazer com seus agressivos caninos sérios estragos quando provocado, e correndo com incrível velocidade, se decidisse atacar. Nenhum caçador desdenharia tal totem que estava muito de acordo com o lugar e o seu espírito ficaria perfeitamente bem na nova caverna. É o javali, decidiu, convencido de que o próprio totem lhe havia aparecido para que ele se lembrasse de sua existência.

O Mog-ur sentia-se satisfeito com a escolha e voltou, então, sua atenção para o outro bebê. Ona, cuja mãe tinha perdido o companheiro no terremoto e que nascera pouco tempo antes da catástrofe. A menina possuía um germano, Vom, que era agora o único varão da fogueira daquela pequena família. Aga vai precisar logo de outro companheiro, disse consigo o Mog-ur, alguém que fique com ela e também com sua velha maaba. Mas isso é problema de Brun. Preciso pensar é em Ona e não na mãe.

As meninas careciam de totens mais delicados; os delas não podiam ser mais fortes do que os dos homens, do contrário seus totens destruiriam a essência que engravida e a mulher não teria filhos. Creb pensou em Iza. Por muitos anos, o totem do companheiro dela não conseguiu sobrepujar o antílope saiga de Iza... ou será que. ..? O Mog-ur frequentemente voltava a pensar nesse assunto. Iza conhecia mais mágicas do que se supunha, e ela não era feliz com o homem a quem fora dada. Sob muitos aspectos, Creb Não a culpava. Ela sempre soube conduzir-se com dignidade, mas o estado de tensão entre os dois era visível. Bem, o homem já se foi, pensou consigo. O Mog-ur é que irá sustentá-la agora, isto é, se não aparecer algum novo companheiro.

Sendo sua germana, Creb Não podia tomar Iza para companheira, seria contra todas as tradições. Por outro lado, há muito ele já havia perdido o desejo de ter uma mulher. Iza era apenas uma boa companhia, fazia tempo que vinha cozinhando para ele e cuidando de sua pessoa, e a fogueira deles iria daqui por diante ficar bem mais agradável, sem aquela constante atmosfera de animosidade. Além disso, havia Ayla para preencher mais o vazio. Creb sentiu percorrer-lhe um fluxo de suave ternura à lembrança dos bracinhos estendidos o abraçando. Mais tarde, disse para si, primeiro vamos a Ona.

Ela era um bebê sossegado, satisfeita, que costumava olhar séria para ele com seus enormes olhos redondos. Observava tudo em silêncio, com interesse, sem que nada lhe escapasse, pelo menos era o que lhe parecia. A figura de uma coruja rapidamente passou pelo pensamento do feiticeiro. Mas não seria um totem forte demais? A coruja é bicho caçador, pôs-se a conjeturar, mas só pega animais pequenos. Se uma mulher tiver um totem forte, o do companheiro terá de ser mais forte ainda. Nenhum homem com uma proteção fraca pode ter uma mulher que tenha como totem a coruja. Por outro lado, ela poderá vir a precisar de um homem com totem forte. Então é a coruja, resolveu. Todas as mulheres têm necessidade de companheiros com proteções poderosas. Seria por isso que eu nunca tornei uma companheira? Que proteção pode ria dar um pobre cabrito montês? O totem que Iza recebeu ao nascer era bem mais forte do que o meu. Há muitos anos que Creb não pensava no tímido e delicado cabrito, seu totem de nascença. Mas os cabritos, lembrou-se, habitavam essas densas florestas, tal como o javali. O feiticeiro era dos poucos que possuíam dois totens: o cabrito, o totem de Creb, e Ursus, o do Mog-ur.

O Ursus Spelaeus, os antigos ursos da caverna, enormes animais vegetarianos que tinham quase o dobro da altura de seus primos onívoros e pesavam três vezes mais do que estes, foi o maior urso que já se conheceu e um animal normalmente pacato, difícil de zangar-se. No entanto, uma ursa da espécie atacou um garoto indefeso e aleijado que, perdido em seu pensamento, aproximou-se, sem sabê-lo, perto demais do seu filhote. Foi a mãe do garoto que o encontrou - estraçalhado e coberto de sangue, com um olho e a metade do rosto saltados para fora - e quem cuidou dele, devolvendo-lhe à vida. Ela amputou, abaixo do cotovelo, o braço que já era paralítico, esmigalhado pela força brutal do gigantesco animal. Pouco tempo depois, a criança deformada e levando no rosto uma hedionda cicatriz foi escolhida para acólito pelo mog-ur que o precedeu. Ursus, disse-lhe então o mog-ur, o escolhera, o havia posto à prova e o achara digno. Seu olho ficara com Ursus como símbolo da proteção dele e suas cicatrizes eram para ser ostentadas com orgulho, elas eram a marca de seu novo totem.

Ursus nunca permitiu que uma mulher lhe absorvesse o espírito para que ele pudesse ter gerado um filho. O urso da caverna dava proteção somente àqueles que passavam por sua prova. Foram poucos os escolhidos. Seu olho foi um preço muito alto, mas ele Não se lamentava. Era o Mog-ur. Nunca outro feiticeiro tivera tamanho poder, e esse poder, Creb não duvidava, lhe fora dado por Ursus. E agora, naquele instante, estava o Mog-ur pedindo pela ajuda de seu poderoso totem.

Agarrado ao amuleto, implorava ao espírito do grande urso para que lhe revelasse o espírito do totem da criança nascida da raça dos Outros. Uma verdadeira prova à sua competência, e ele Não estava absolutamente seguro de obter resposta para sua mensagem. Concentrava-se na menina e no pouco que sabia a seu respeito. Ela é destemida, pensou. Dera-se a ele de coração aberto, sem qualquer medo dele ou da censura do clã. Raro, numa menina. Em geral, elas se escondiam atrás das mães quando ele estava por perto. Ela era uma criança curiosa e aprendia com facilidade. Um quadro começou a se esboçar, mas ele o afastou. Não. Não está direito. Ela é mulher, isso Não é totem de mulher. limpou a mente para empreender nova tentativa, mas o quadro voltava sempre. Resolveu, então, deixar que a cena tomasse corpo, talvez levasse a qualquer coisa diferente.

Visualizava um bando de leões esquentando-se preguiçosamente ao sol quente das pradarias. Havia dois filhotes. Um desses brincava saltitante na relva crescida e alta, rosnando de brincadeira e enfiando o nariz curioso nos buracos de bichinhos roedores. Era uma leoazinha que, um dia, se tornaria na principal caçadora de seu bando; seria ela quem iria levar o alimento para seu macho. Ela pulava por cima de um leão com uma enorme juba, tentando atraí-lo para sua brincadeira. Num momento, sem medo nenhum, bateu com a pata no focinho do parrudo leão. Foi um leve toque, quase uma carícia. O leão jogou-a no chão e ficou segurando-a sob a enorme pata, pondo-se a lambê-la com sua língua comprida e áspera. Os leões da caverna também criam seus filhotes com amor e disciplina, pensou o Mog-ur, querendo saber por que a cena de felicidade doméstica felina Não lhe saía da cabeça.

Novamente, tentou limpar a mente, procurando concentrar-se na menina, mas a cena Não arredava.

- Ursus - disse ele, por meio de gestos - mas um leão da caverna? Não pode ser! Uma mulher Não pode ter totem tão forte. Quem poderia ela ter por companheiro?

Nenhum homem em seu clã tinha o totem do leão da caverna e bem poucos nos outros clãs o possuíam. A figura da menina veio-lhe à mente. Alta, esquálida, braços e pernas retos, rosto chato com testa larga e saltada, pele pálida e esbranquiçada, até mesmo os olhos eram pálidos. Iria ser uma mulher feia, pensou ele com objetividade. Qual a possibilidade de um homem querê-la? A visão de sua própria figura, também repulsiva, atravessou-lhe o espírito, lembrando-se do modo como as mulheres o evitavam, principalmente quando era jovem. Talvez ela nunca tenha companheiro e se tiver de manter-se sozinha, sem um homem para protegê-la, irá precisar de um totem forte. Mas tão forte assim? Tentou lembrar-se se já existira alguma mulher nos clãs com tal totem.

Mas ela Não é de fato gente dos clãs, disse assegurando-se, e Não há dúvida de que sua proteção seja poderosa, do contrário Não estaria viva. Poderia ter sido morta por um leão. O pensamento começava a tomar forma. Um leão da caverna! Atacou e não matou... será que atacou mesmo? Estaria testando a menina? Então um outro pensamento lhe ocorreu, sentindo um frio passando pela espinha. Toda a dúvida havia desaparecido. Ele estava certo. Nem Brun poderia duvidar disso, pensou. O leão tinha marcado a menina com quatro sulcos paralelos na coxa esquerda, uma cicatriz que ela levaria pela vida afora. Na cerimônia de passagem, aquela em que o mog-ur grava no corpo do jovem a marca de seu totem, o símbolo justamente do leão da caverna era quatro linhas paralelas gravadas na coxa!

No caso do homem a marca era a mesma, só que feita na coxa direita, mas ela era mulher. Claro! Por que não pensara nisto antes? O leão sabia que seria difícil para nós aceitar o fato, por isso ele mesmo tinha feito a marca e de forma tão clara, tão inconfundível para que ninguém pudesse pôr em dúvida. Ele gravou com a marca usada por nós. O leão queria que os clãs soubessem. Desejava que ela vivesse conosco. Ele levou o povo da menina para que ela pudesse viver aqui. Por quê? Veio-lhe, então, uma sensação de desconforto, a mesma que sentira após a cerimônia no dia em que Ayla tinha sido encontrada. Se ele tivesse um conceito para expressar o que sentia, lhe daria o nome de presságio, se bem que repassado por um confuso sentimento de esperança.

O Mog-ur procurou espantar do espírito aquela estranha sensação. Nunca um totem se revelara a ele com tanta força. Devia ser isto que o desconcertava, pensou consigo. O leão da caverna é o totem dela. Escolheu-a, tal como Ursus fez comigo. Olhou para dentro das órbitas vazias da caveira à sua frente. Inteiramente rendido, maravilhava-se com os caminhos usados pelos espíritos, era só uma questão de compreendê-los. Tudo estava muito claro agora. Achava-se aliviado e ao mesmo tempo muito abatido. Por que essa menininha precisa de um poder tão forte para protegê-la?

 

Ondulando à brisa do entardecer, as folhagens negras nas árvores balançavam-se como silhuetas dançantes contra o céu escuro. O acampamento encontrava-se silencioso, já acomodado para dormir. À luz fraca dos pedaços de carvão aceso, Iza examinava o conteúdo de diversas pequenas sacolas, postas em fileiras sobre sua capa e, de vez em quando, olhava na direção de onde Creb saira. Estava preocupada com ele, sozinho, sem armas para defender-se, no meio de uma mata desconhecida. A menina já estava dormindo e, à medida que a luz se extinguia, Iza ia ficando mais preocupada.

Durante a tarde, ela fora examinar a vegetação que crescia perto da caverna. Precisava reabastecer-se e também aumentar sua farmacopéia. Sempre carregava na sacola de pele de lontra certas coisas, mas para ela; os saquinhos com plantas secas - folhas, flores, raízes, sementes e cascas - eram apenas medicamentos para primeiros socorros. Na nova caverna, teria espaço para armazenar maior quantidade e também para ter uma maior variedade. Entre tanto, nunca se afastava muito sem levar sua sacola de remédios, que fazia par te dela como a própria roupa que vestia. Até mais. Sem remédios, sentia-se nua e sem roupa.

Por fim, Iza viu o velho feiticeiro caminhando de volta. Ela deu um pulo, indo botar para aquecer a comida que havia guardado para ele. Depois, pôs água para ferver, iria preparar o chá com sua erva preferida. Ele ficou circulando por perto; e em seguida veio ajeitar-se a seu lado, enquanto Iza metia as sacolinhas dentro da sacola grande, a de pele de lontra.

- Como está a menina essa noite? - indagou Creb.

- Mais repousada. A dor praticamente desapareceu. Ela perguntou por você.

Creb grunhiu qualquer coisa, sentindo-se alegre por dentro.

- Amanhã de manhã, faça um amuleto para ela.

Iza abaixou a cabeça, dizendo que tinha compreendido e, em seguida, levantou-se apressada para ver se a comida e a água estavam no ponto. Ela precisava se mexer. Estava tão feliz que não aguentava permanecer parada. Ayla ia ficar. Creb deve ter falado com o

totem dela, pensou, emocionada, com o coração batendo forte. As mães dos bebês haviam feito os amuletos naquele dia. Elas não foram nada discretas e todo mundo acabou sabendo que os filhos iriam conhecer seus totens na cerimônia da caverna. Isso era bom agouro para os bebês, e as mães, orgulhosas, puseram-se a pavonear-se. Seria essa a razão por ter Creb passado tanto tempo fora? Deve ter sido difícil para ele. Iza tinha curiosidade de saber qual seria o totem de Ayla, mas conteve-se. De qualquer modo, ele não lhe contaria mesmo, e ela, dentro de pouco tempo, iria ficar sabendo.

Trouxe a comida para o seu germano e fez chá para ambos. Ficaram, então, sentados em silêncio, envolvidos por um clima de cálida e tranquila afeição. Quando Creb terminou, eram os únicos ainda acordados.

- Os caçadores vão sair de manhã cedo - disse ele. - Se fizerem boa caçada, a cerimônia poderá ser no dia seguinte. Você está preparada?

- Já verifiquei na minha sacola e há bastantes raízes. Estarei com tudo pronto - disse Iza, erguendo, na direção dele, um pequeno saco. Este era diferente dos Outros. Tinha o couro tingido num carregado tom vermelho-castanho, uma tinta obtida da mistura de ocre vermelho, muito refinado, com banha de urso, a mesma usada para curtir a pele de que a sacola era feita. Nenhuma outra mulher possuía qualquer objeto na sagrada cor vermelha, embora todos no clã carregassem um pedaço de ocre vermelho em seus amuletos. Aquela era a coisa mais preciosa que Iza possuía. - Amanhã de manhã eu vou me purificar.

Creb grunhiu outra vez. Esta era uma forma rotineira de os homens responderem às mulheres, dando-lhes a entender apenas que foram ouvidas, sem prestar muito interesse no que diziam. Permaneceram ainda algum tempo sem falar, até que Creb pôs no chão sua pequena caia de chá e olhou para a irmã- O Mog-ur irá manter não só vocês, mas também a menina e a criança que irá nascer, se esta for mulher. Na nova caverna você ficará na minha fogueira, Iza - disse ele. Então pegou o cajado para ajudá-lo a levantar-se e foi coxeando na direção de seu lugar de dormir.

Iza ia erguer-se, mas voltou a sentar-se inteiramente estupefata. Era a última coisa que esperava. Com o companheiro morto, sabia que algum outro homem iria ter de sustentá-la. Vinha procurando afastar do pensamento o problema relacionado com seu destino. Também, se ela se sentisse dessa ou daquela maneira, Não iria fazer a menor diferença. Brun não iria consultá-la mesmo... contudo, não conseguia impedir-se de algumas vezes ficar pensando. Dentre as possíveis opções, algumas a atraíam e, outras, achava pouco prováveis de acontecer.

Havia Droog, já que a mãe de Goov tinha morrido no terremoto e ele agora se achava sozinho. Iza respeitava Droog. Era o melhor fazedor de ferramentas do clã. Qualquer um dos outros podia tirar lascas de um bloco de pedra e fabricar machadinhas ou raspadores, mas ninguém com o talento de Droog para isso. Ele preparava a pedra de tal modo que as lascas que cortava já saíam do tamanho e da forma desejados. Suas facas, raspadeiras e qualquer ferramenta eram objetos da maior admiração Se fosse dado a ela escolher, dentre todos os homens do clã, escolheria Droog. Ele fora bom para a mãe do acólito, e a relação de ambos foi marcada por sincera afeição.

No entanto, Iza sabia que o mais provável seria que Aga fosse dada a ele. Era mais jovem e mãe de dois filhos. Vorn, o seu filho, logo estaria precisando de um caçador para se responsabilizar por sua educação e o bebê, Ona, também tinha necessidade de um homem que a sustentasse até que crescesse e fosse dada a alguém. Era possível que o fazedor de ferramentas estivesse disposto ainda a receber Aba. A velha, tanto quanto a filha, precisava também de um lugar. Assumir todas essas responsabilidades iria provocar grandes mudanças na vida do pacato e ordeiro Droog. Aga, às vezes, podia ser bem difícil. Ela não era a mesma pessoa compreensiva que fora a mãe de Goov, mas o rapaz logo também estaria tendo sua fogueira. Droog, portanto, estava precisando de uma mulher.

O próprio Goov para companheiro dela era algo inteiramente fora de cogitação Muito jovem, quase ainda uma criança, nem mesmo já havia dormido com uma mulher. Brun jamais iria dar-lhe uma mulher velha, e Iza se sentia mais como mãe de Goov do que uma possível companheira para o rapaz.

Pensou que, talvez, pudesse ir viver com Grod e Ika, numa fogueira onde já vivia também Zoug, que fora o companheiro da mãe de Grod. Quanto a Grod, era um homem rígido, lacônico, mas não cruel, e de uma lealdade para com Brun à toda prova. Iza não se importaria de viver com Grod, apesar de que, na sua fogueira, fosse ser segunda mulher. No entanto, Ika era irma de Ebra e nunca perdoara inteiramente Iza o fato de esta ter uma posição social que deveria pertencer à sua germana. Além disso, desde a morte do filho - que nem chegara a constituir sua fogueira - Ika mostrava-se desgostosa e arredia. Até mesmo Ovra, sua filha, não conseguia fazê-la esquecer de sua dor. Há muita tristeza naquela fogueira, pensou Iza.

Dificilmente poderia cogitar na fogueira de Crug. Ika, sua companheira e mãe de Borg, era uma mulher jovem, afetuosa e sincera nos seus sentimentos. Justamente este era o problema, os dois eram bastante jovens, além do que, ela, Iza, nunca se dera muito bem com Dorv, o velho que já fora companheiro da mãe de Ika e que estava dividindo a fogueira com os outros.

Com isto, sobrava Brun, mas, na sua fogueira, nem mesmo segunda mulher seria, já que era germana dele. Nâo que isso tivesse Importância, ela tinha o seu próprio status. Pelo menos Não sou aquela pobre velha que, por fim, durante o terremoto, acabou achando seu caminho para o mundo dos espíritos. Iza pensava numa mulher que viera de outro clã; seu companheiro já tinha morrido há muito tempo e ela nunca teve filhos. A Infeliz ficara de fogueira em fogueira, sempre um fardo para os outros, uma mulher, enfim, sem status e importância.

A possibilidade, no entanto, de compartilhar da fogueira de Creb e de ser sustentada por ele nunca lhe passara pela cabeça. Não havia ninguém no clã - homem ou mulher - a quem fosse mais afeiçoada. E Creb tinha a vantagem de gostar de Ayla... tenho certeza de que ele gosta, dizia ela para si. Será um arranjo perfeito, a não ser que eu tenha um filho. Todo menino precisa viver na fogueira de um homem que possa ensiná-lo a caçar, coisa que Creb não pode.

Poderia tomar remédio para perder a criança, pensou por um momento. Só assim poderia ter certeza de que não viria um menino. Apalpou a barriga e abanou a cabeça. Não, já era tarde demais. Isso poderá trazer problemas. Havia chegado à conclusão de que queria o bebê e, a despeito de sua idade, a gravidez ia progredindo bem, sem nenhuma dificuldade. Eram boas as chances de nascer um bebê normal e sadio. Criança é um bem muito precioso, não se pode renunciar a ele tão levianamente. Vou pedir a meu totem outra vez para que o bebê seja menina. Ele sabe que sempre desejei que fosse mulher. Prometi que cuidaria de mim para que o bebê que ele permitiu formar nascesse sadio, só falta agora ele conseguir uma menina.

Iza sabia que mulheres de sua idade podiam ter problemas com a gravidez, e por isso tomava remédios e comia alimentos apropriados a seu estado. Apesar de nunca ter sido mãe, a curandeira sabia mais sobre gestação, parto e cuidados com recém-nascidos do que a maioria das mulheres. tinha ajudado no parto de todas as mocinhas do clã e seus conhecimentos e os remédios que preparava estavam sempre à disposição das mulheres. Contudo, havia uma poção tão secreta, cuja fórmula era passada de mãe para filha, que ela preferia uma boa morte a ter de revelar seu segredo, sobretudo se fosse para um homem que jamais deixaria uma mulher usá-la, se ele soubesse para que era.

O segredo vinha sendo mantido, porque ninguém - fosse homem ou mulher - indagava a curandeira sobre suas mágicas. O costume de não se fazer perguntas diretas já vinha de longa data e essa tradição tornara-se praticamente uma lei. Se alguém se mostrasse interessado, ela podia expor seus conhecimentos, mas nunca falava de sua poção especial, pois, se algum homem pensasse em fazer perguntas, ela estaria na obrigação de responder-lhe. A mulher jamais poderia deixar de dar resposta ao homem e era impossível às pessoas dos clãs mentirem. A forma de comunicação, dependendo de nuanças sutis na mudança quase imperceptível na expressão do rosto, na postura e na gesticulação tornava qualquer tentativa nesse sentido imediatamente detectável. Nem mesmo um conceito para a mentira eles tinham. O que mais se aproximava dessa idéia é quando eles simplesmente deixavam de falar, e isso, quase sempre, era percebido, mas em geral aceito.

Iza jamais falava desta poção, mas ela própria já a havia usado. Era uma mágica que impedia a concepção Não permitindo que o espírito do totem do homem penetrasse nela para formar a criança. Nunca passou pela cabeça daquele que foi seu companheiro indagar o porquê de ela Não ter filhos. Simplesmente admitia como verdade que Iza tinha um totem forte demais para mulher. Muitas vezes, ele lhe disse isso, e costumava lamentar-se com os outros homens pelo fato de a essência de seu totem Não ser capaz de sobrepujar a da companheira. Iza tomava a poção porque Não queria ter filhos, era essa a maneira que tinha escolhido para envergonhar o companheiro. Queria que ele e todo o clã pensassem que o elemento gerador de vida do totem do seu homem fosse fraco demais para romper as defesas dela, apesar de por isso apanhar muito.

Mas surras supostamente eram dadas para submeter o totem dela ao dele, mas Iza percebia que ele lhe batia por prazer. No início, ainda teve esperanças de que, se não tivesse filhos, seria passada para outro homem. Mesmo antes de ter sido dada a ele, já odiava suas maneiras cheias de bazófia e empertigadas e, quando soube que seria ele o seu companheiro, Não lhe restou outra coisa sem voltar-se em desespero para a mãe Esta apenas consolo tinha para oferecer, pois podia opinar tanto sobre o assunto quanto a filha. Ele, no entanto, Não quis dispor dela. Iza era uma curandeira, a mulher ocupando a posição social mais alta na hierarquia dos clã e ter o seu controle fazia-o sentir-se másculo. Quando a força de seu totem e essa sua virilidade começaram a ser postas em dúvida pelo fato de a companheira não produzir rebentos, ele, para compensar, passou a exercer sua superioridade física.

Apesar de as surras serem admitidas, na esperança de que delas resultasse um filho, Iza percebia que Brun estava em desacordo com tal procedimento. Tinha certeza de que, se ele tivesse sido o chefe na ocasião, Brun nunca a teria dado a um tipo daquele. Na opnião de Brun, um homem Não prova sua masculinidade subjugando mulheres. A essas, não resta seNão a submissão. Era indigno para um homem bater-se com adversário mais fraco e se deixar levar pela raiva por ser provocado por uma mulher. Era dever de um homem ter autoridade sobre ela, manter a disciplina, caçar e sustentar, saber controlar-se e não mostrar sentimentos quando sofresse. A mulher podia levar alguns tabefes, se fosse preguiçosa ou faltasse com o respeito, mas não nos momentos de raiva e tampouco por prazer, apenas para disciplinar. Embora alguns batessem mais do que outros, poucos faziam disso um hábito. Somente o marido de Iza tornou essa uma prática habitual.

Depois de Creb ter-se juntado à fogueira deles, o companheiro de Iza se mostrou ainda mais relutante em dá-la a outro. Ela já Não era somente a curandeira, mas a mulher que cozinhava para o Mog-ur. Se Iza o deixasse, o Mog-ur a acompanharia. Ele queria que o resto do clã pensasse que o grande feiticeiro lhe estava passando seus segredos. Na verdade, durante todo o tempo em que compartilharam da mesma fogueira, Creb jamais foi além de uma polidez formal, e muitas vezes mal tomava conhecimento da presença dele, principalmente quando - e Iza bem o sentia - o feiticeiro notava alguma equimose de tom suspeito na irmã.

Mesmo com todas as surras, Iza Não parou de usar suas mágicas preparadas com ervas. No entanto, quando viu que estava grávida, resignou-se a seu destino. Algum espírito conseguira, por fim, vencer o seu totem e suas poções. Talvez tenha sido o dele, mas então pensava Iza, se o princípio vital do totem dele tinha conseguido finalmente vencer, por que esse espírito o havia abandonado no desabamento da caverna? Ela ainda guardava uma última esperança. Queria que fosse uma menina para diminuir um pouco o recém-adquirido prestígio dele; além disso, uma menina poderia dar continuidade à sua linhagem de curandeiras, embora já estivesse disposta a acabar com essa linha em sua pessoa. Isso era preferível do que ter um filho, enquanto vivesse na companhia de seu companheiro. Se a criança fosse homem, ele estaria justificado em suas pancadarias; mas, uma menina, sempre ficaria ainda faltando algo. Agora, mais do que nunca, desejava que nascesse mulher. Não para denegrir postumamente a imagem do companheiro, mas porque isso iria permiti-la viver com Creb.

Iza guardou a sacola e se enfiou dentro da pele, ao lado da menina que dormia tranquilamente. Ayla deve trazer sorte, pensou ela. Temos uma nova caverna, ela foi autorizada a permanecer e vamos ficar na fogueira de Creb. Talvez ele me dê sorte e eu tenha uma filha. Passou o braço em volta de Ayla, aconchegando-se bem junto do corpinho quente da garota.

No dia seguinte, após a primeira refeição Iza acenou para Ayla e foram caminhar, subindo a margem do riacho. Enquanto iam andando, a curandeira procurava por determinadas plantas. Depois de alguns minutos, viu uma clareira e se dirigiu para lá. Havia ali algumas plantas de uns 30 centímetros de altura, presas a caules muito finos de cujas pontas saíam flores em cachos parecidos com espigas. Eram marantas, e Iza colheu alguns pés. Depois, encaminhou-se para uma área alagada, perto de um remanso do riacho, onde apanhou cavalinhas e, seguindo um pouco mais adiante, encontrou alguns pés de saboeiro que também colheu. Ayla acompanhava-a, observando com interesse e morrendo de Vontade de conversar. Sua cabeça estava cheia de perguntas que gostaria de fazer e não podia.

Voltaram ao acampamento, e Ayla viu-a despejar água num balaio, tecido com as tramas muito apertadas, e jogar dentro deste as cavalinhas e pedras quentes saídas do fogo. A menina sentou-se ao lado de Iza, enquanto a observava cortando, com uma afiada faca de pedra, um pedaço redondo do couro que a curandeira tínha usado para carregá-la. Era uma pele macia e flexível, curtida com banha, mas ao mesmo tempo grossa. A faca passava através dela com a maior facilidade. Com uma outra ferramenta de pedra, aguçada na ponta, Iza fez vários furos a volta do pedaço de couro redondo. Em seguida, pegou algumas fibras duras, extraídas da casca de um pequeno arbusto, e torceu-as num cordão que enfiou nos buracos e puxou apertado, de modo a formar uma sacola. Usando uma faca feita por Droog, uma das que mais gostava, cortou um pedaço da correia que lhe prendia a roupa, mas, antes, tendo o cui dado de medi-la no pescoço de Ayla. Tudo isto não levou mais do que poucos minutos.

Depois que a água ferveu no balaio impermeável, Iza pegou-o e, junto com as outras plantas que havia colhido há pouco, voltou novamente ao riacho com Ayla. Caminharam pela margem até chegar a um lugar onde havia um declive que levava suavemente até a gua. Com uma pedra redonda, triturou as raízes de saboeiro junto com água numa enorme pedra achatada que tinha uma cavidade parecida a um pires. As raízes soltaram uma espuma cheia de saponáceo. Depois de tirar das dobras da roupa ferramentas de pedra e outros pequenos utensílios, Iza desatou a correia de sua vestimenta e se despiu. Por fim, tirou por cima da cabeça o amuleto e, com cuidado, colocou-o sobre a pedra.

Ayla ficou encantada quando viu Iza pegá-la pela mão e conduzi-la ao riacho. Ela adorava água. Mas, depois de molhada por inteiro, a mulher levantou-a e a botou sentada sobre a pedra, começando a ensaboá-la dos pés à cabeça, inclusive os cabelos duros e emaranhados. Após fazê-la mergulhar na água novamente, Iza fechou os olhos bem apertados. Ayla não entendeu, mas imitou o gesto, Iza fez que sim com a cabeça e ela compreendeu que era para fazer o mesmo. Sentiu, então, que sua cabeça estava sendo abaixada para a frente e que um líquido quente caía sobre ela. A cabeça da menina andava coçando e Iza notara minúsculos bichinhos passeando pelos cabelos, por isso agora os massageava com a infusão de cavalinhas que servia para matar piolhos. Em seguida, mais uma nova lavada nas águas do rio e outra vez Iza se pôs a esmigalhar raízes de saboeiro, desta vez com as folhas, para uma última ensaboada nos cabelos e um mergulho final no riacho. Iza passou, então, a repetir a mesma operação nela mesma, enquanto Ayla brincava na água.

Durante o tempo em que estiveram sentadas na beirada do riacho, esperando o sol secá-las, Iza esgarçou com os dentes um pequeno galho e o usou para tirar os nós dos cabelos das duas, ainda molhados. Estava espantada com a maciez e a beleza dos cabelos quase brancos de Ayla. Uma coisa fora do comum, mas bem bonita, pensou consigo, na verdade, o que ela tem de melhor. Olhava para a menina sem deixar transparecer seu pensamento. Apesar de queimada de sol, Ayla ainda era mais branca do que ela, parecendo-lhe inteiramente desprovida de atrativos com aquela pele desbotada e olhos claros. É uma gente esquisita, disse consigo, mas não há dúvida de que são humanos também, só que muito feios. Pobrezinha. Como irá fazer para encontrar um companheiro?

E se não arrumar um homem, como vai adquirir algum status? Ela poderá ficar como a velha que morreu no terremoto. Se fosse minha filha de verdade, teria seu próprio status. Será que não daria para ensinar algumas de minhas mágicas benéficas para ela? Isso lhe iria dar uma certa importância. Se eu tiver uma filha, posso ensinar às duas ao mesmo tempo, mas, se for menino, não haverá nenhuma mulher para continuar minha linhagem. O clã algum dia irá precisar de uma nova curandeira. Se Ayla aprender a fazer mágicas, eles talvez a aceitem... pode ser até que um homem vá querê-la para companheira. Se ela vai ser acolhida no clã, por que não poderia ser minha filha? Iza já pensava na menina como dela. Por enquanto, eram apenas divagações, mas os germes da idéia tinham sido plantados.

A mulher olhou para cima, o sol já estava bem mais alto, concluindo que já estava ficando tarde. Preciso acabar o amuleto dela para depois começar a fazer a bebida de raízes, pensou, subitamente lembrando-se de suas responsabilidades.

- Ayla - chamou a menina que passeava próximo ao riacho. Ayla veio correndo.

Olhando para a perna dela, Iza reparou que a água tinha amolecido a crosta da ferida que, no entanto, ia sarando depressa. Iza meteu-se rapidamente em sua roupa e foi com a menina para um pequeno monte perto da caverna, mas antes dando uma parada no acampamento para buscar o saquinho que tinha feito e seu pau de cavar. Reparara numa vala de terra vermelha, no outro lado, perto do lugar onde haviam parado quando Ayla lhes mostrou a caverna. Ao chegar ali, Iza se pôs a cavucar o chão até se soltarem torrões de ocre vermelho. Então pegou alguns pedaços e os estendeu na direção de Ayla. A memina olhava sem entender o que se esperava dela. Hesitando, tocou num deles. Iza pegou-o, meteu-o dentro do saquinho, fechando-o bem, e guardou numa dobra de sua roupa. Antes de voltar, olhou em torno, vendo pequeninas figuras se movendo lá embaixo na planície. Os homens haviam partido, cedo naquela manhã para caçar.

Em épocas bem remotas, homens ainda mais primitivos do que Brun e seus cinco caçadores aprenderam a disputar a caça com os animais carnívoros, observando-os e copiando seus métodos. Viam, por exemplo, como lobos, atacando aos bandos, podiam jogar ao chão uma presa muito maior e mais forte do que eles. Com o tempo, ao invés de garras e dentes, já usando armas e outros instrumentos, os homens perceberam que, se também fossem aos bandos, poderiam apanhar os imensos animais que dividiam com eles a natureza. E, assim, mais um passo estava dado em sua caminhada evolucionária.

Enquanto estavam à espreita de caças, para não espantá-las, eram obrigados a se manter em completo silêncio. Daí, passaram a desenvolver toda uma gesticulação que evoluiu em gestos e sinais mais complexos, já usados com outros objetivos. Os gritos de aviso começaram a ter variações de altura e tom, trazendo maior conteúdo de informações. No entanto, o ramo que deu na espécie dos clãs não desenvolveu suficientemente os mecanismos vocais para criar uma linguagem verbal plena, mas nem por isso seus homens deixaram de ser bons caçadores.

Os seis caçadores do clã puseram-se em campo aos primeiros clarões do dia. De onde eles se achavam observavam o sol enviando seus raios, como se ainda explorando o terreno, timidamente se insinuando no horizonte, para de pois assumir o pleno comando do dia. Do lado nordeste, uma imensa nuvem de poeira fina de loesse deixava entrever uma massa ondulante de pélos marrons, onde se destacavam as curvas negras de cornos bem marcados. Uma larga trilha de terra pisada, inteiramente desprovida de vegetação, ia ficando para trás, enquanto os bisões lentamente se locomoviam, desfigurando a planície verde-dourada. Agora, desembaraçados das mulheres e crianças, em pouco tempo os caçadores cobriram a distáncia que os separava do terreno das estepes.

Deixando o sopé das colinas, diminuíram o passo e foram se aproximando mansamente, sempre a favor do vento. Quando estavam perto, agacharam se em meio à relva e ficaram observando as figuras dos gigantescos animais. Enormes dorsos em corcova, afunilando-se em estreitos traseiros, suportavam massudas cabeças lanosas com imensos chifres que, nos adultos, chegavam a ter quase um metro de comprimento. O cheiro de suor de gado amontoado batia-lhes nas narinas, enquanto a terra vibrava com o movimento de milhares de cascos.

Brun, botando a mão na testa para sombrear os olhos, examinava cada um que passava, esperando pelo animal certo e o momento exato. Quem o visse naquele instante não diria que ele tinha sob controle o peso de uma tensão insuportável. Apenas o pulsar das têmporas sobre as mandíbulas cerradas traía-lhe o coração disparado e os nervos a flor da pele. Esta era a caçada mais importante de sua vida. Nem mesmo o seu primeiro animal abatido que o elevara à condição de adulto equiparava-se à caçada de cujo resultado eles dependiam para morar na nova caverna. Uma caçada bem-sucedida não só iria fornecer a carne para a festa da cerimônia como também lhes daria a certeza de que seus totens haviam de fato aprovado a moradia. Se voltassem de mãos abanando, o clã estaria na obrigação de procurar outra caverna, mais aceitável para seus espíritos protetores. Era a maneira de os totem os avisarem de que a caverna não traria sorte. Quando Brun viu a imensa manada de bisões, ficou animadíssimo. Nela, achava-se seu próprio totem incorporado.

Brun deu uma olhada na direção dos homens, ansiosamente esperando por seu sinal. Esperar tem sempre a parte mais difícil, mas qualquer movimento prematuro poderia ter consequências desastrosas e isso era possível de acontecer. Portanto, teria que se esforçar ao máximo para que nada saísse errado. Olhando a expressão preocupada no rosto de Broud, por um momento, quase se arrependeu de tê-lo trazido. Mas logo se lembrou do brilho nos olhos do garoto, cheio de orgulho, quando lhe dissera para preparar-se para a caçada da passagem. É normal que esteja nervoso, pensou Brun. Não é só sua primeira caçada, a sorte do clã está dependendo da força do seu braço.

Broud deu com o olhar de Brun e tratou imediatamente de controlar a expressão reveladora de sua agitação interior. Não fazia idéia do tamanho do bicho quando vivo que, de pé sobre as patas, ficava a uns 30 centímetros acima de sua e nem supunha que a visão de uma manada inteira pudesse ser tão assustadora. Pelo menos o primeiro ferimento de verdade teria de ser feito por ele para que a caça lhe fosse atribuída. E se eu errar? E se não acertar e o bicho escapar? A cabeça de Broud achava-se num turbilhão.

Lá se foram os seus sentimentos de superioridade, suas gabolices diante de Oga: ele treinando estocadas certeiras e ela o olhando em adoração. Ele fingia não perceber. Oga era só uma criança. É, no final das contas, só uma menina. Mas, dentro em pouco, seria mulher. Não estaria mal como companheira quando ela crescesse, dizia consigo. Vai precisar de um homem forte para protegê-la, agora que sua mãe e o companheiro dela morreram. Broud gostava dos cuidados especiais que Oga lhe dispensava, sempre correndo e pronta para obedecer a todos os seus desejos, apesar de que nem homem ainda era. Mas o que vai ela pensar de mim, se eu não conseguir acertar no animal? E se eu não puder ficar homem na cerimônia da caverna? O que Brun vai dizer? E o clã? O que irá pensar? E se tivermos de abandonar essa linda caverna já abençoada por Ursus? Broud agarrou firme sua lança e pegou no amuleto, suplicando ao grande rinoceronte peludo para lhe dar coragem e força no braço.

Não haveria muita chance de o animal escapar, se Brun ajudasse. Ele deixou que o rapaz pensasse que o destino da nova caverna estava em suas mãos. Se Broud iria algum dia ser chefe, tinha desde já de ir aprendendo a conhecer o peso da responsabilidade e do posto. Brun daria uma chance ao garoto, mas estaria por perto para, se necessário, ele próprio abater o bicho. Para o bem de Broud, esperava não precisar fazer isso. O rapaz era orgulhoso, e seria grande sua humilhação; no entanto, o chefe não tinha intenção de sacrificar a caverna em nome desse orgulho.

Brun se virou para observar a manada. Um instante depois, viu um macho, ainda jovem, extraviado do resto. Era um animal quase adulto, mas ainda imaturo e inexperiente. Brun esperava que ele se perdesse mais dos outros, aguardando por um momento em que estivesse sozinho, fora do cordão de proteção do rebanho. O sinal, então foi dado.Os homens partiram como flechas, dispersando-se para os lados, com Broud à frente. Brun, ansioso, sempre com os olhos presos no bisão desgarrado, via ao mesmo tempo os caçadores espalhando-se, guardando, entre eles, uma distância regular. A outro sinal seu, os homens pularam na direção da manada, aos gritos e berros, agitando os braços. Os assustados animais que iam pela beirada correram para juntar-se à massa da manada, fechando as brechas e empurrando os de fora para o centro. Brun se colocou entre eles e o jovem bisão obrigando-o a mudar de direção.

Enquanto os animais na periferia procuravam abrir caminho para o meio do tumulto, Brun correu atrás daquele que havia marcado. Botou cada grama de sua energia na perseguição fazendo o bicho correr tanto quanto aguentavam suas grossas e musculosas pernas. Naquele furioso redemoinho, a terra seca das estepes ia enchendo o ar de uma poeira fina, limosa, revolvida por centenas de pesados cascos. Brun franziu os olhos, tossindo, parcialnente cego pelo pó que lhe entupia as narinas e o sufocava. Ofegante, quase Não se aguentando mais, notou que Grod vinha correndo para substituí-lo na perseguição.

Com a nova investida de Grod, o animal mudou outra vez de direção. Os homens atacavam, cercando-o, de modo a trazê-lo de volta para Brun que, ainda arquejando, ia aproximando-se com passos lentos do círculo. Deu-se, então, o estouro da enorme manada que saiu em louca correria pelas estepes. O barulho que os animais ouviam de seu próprio tropel multiplicava um medo que não tinha razão de existir. Só o bisão novo havia ficado para trás, correndo em pânico de criaturas com uma fração de sua força, mas com inteligência e determinação bastante para compensar a diferença. Grod, cobrindo- o de pancadas, recusava-se a largar a luta, apesar de o coração estar prestes a estourar. O suor criava córregos pela camada de poeira que lhe cobria o corpo, dando um sombreado pardacento à sua barba. Por fim, ele baqueou no momento mesmo em que Droog veio tomar-lhe o lugar.

A resistência daqueles caçadores era grande, mas o jovem e forte bisão com uma energia inquebrantável, não se entregava. Droog era o mais alto do clã, tendo as pernas um pouquinho mais compridas do que as dos outros. Instigando o animal, sempre pela frente, num dado momento teve de partir a toda velocidade para cima do bicho, desviando-o de sua tentativa de pegar a trilha da manada em fuga. Quando Crug tomou a frente de Droog, exausto a mais não poder, o animal já estava visivelmente sem fôlego. Crug estava descansado e levantou os ímpetos do bicho, trazendo-lhe, com uma estocada em sua ilharga, um novo brotar de energias.

Quando Goov veio para o revezamento, o imenso animal peludo já estava mais vagaroso. Corria às cegas, obstinadamente, sempre seguido de perto por Goov que lhe dava estocadas, esvaindo os últimos laivos de energia. Broud viu quando Brun se aproximou e soltou um rugido, assumindo sua vez de correr atrás do bisão. As corridas, no entanto, foram poucas e curtas. O animal já tinha tido sua dose. Ele foi indo, indo, até que parou de vez, recusando-se a mexer. O couro estava escumoso, a cabeça pendente e a boca espumava. Já com sua lança preparada, o garoto aproximou-se do bisão que estava inteira mente fora de combate.

Com um julgamento fruto da experiência, Brun fez uma rápida avaliação. Não estaria o garoto nervoso demais para matar seu primeiro animal? Ou muito afoito? Será que o bicho já estava realmente esgotado? Alguns velhos bisões matreiros, às vezes paravam de repente, parecendo completamente exauridos e, no último instante, atacavam, matando ou ferido o caçador, sobretudo se este fosse inexperiente. Deveria Broud usar suas boleadeiras para primeiro tontear o animal e depois derrubá-lo? A cabeçorra do bruto estava quase arrastando no chão e as ilhargas tombadas não enganavam: o bisão estava de fato acabado. Mas, se Broud usasse as boleadeiras, seu feito já não teria tanto mérito. Brun resolveu deixar que Broud tivesse todas as honras.Rapidamente, antes que o bisão recuperasse o fôlego, Broud se encaminhou na direção daquela enorme massa peluda, empunhando a lança para cima. Com o último pensamento a seu totem, fez a arremetida final. A comprida e pesada lança cravou fundo na ilharga do animal, numa estocada rápida e mortal, a ponta endurecida a fogo trespassou o grosso couro, quebrando uma costela. O bisão uivou de dor e, mesmo com as pernas vergadas, ainda se virou tentando chifrar seu atacante. Brun percebeu a manobra, deu um salto para se postar ao lado de Broud e, usando de toda a força, partiu sua maça na cabeça do animal. O golpe veio apressar a queda. O bisão caiu junto dele, com as patas apontando os cascos para cima, já nos seus últimos estertores. Depois, ficou imóvel.

Broud, de início, mostrou-se espantado e um tanto abatido, mas logo o ar foi varado por um grito agudo exprimindo todo o seu triunfo. Ele tinha conseguido. Havia matado seu primeiro animal! Agora, era um homem!

Estava exultante. Veio, então, buscar sua lança espetada na ilharga do bisão. Ao arrancá-la, sentiu no rosto o jorrar quente do sangue, provando- lhe o sabor salgado. Com orgulho nos olhos, Brun aproximou-se e bateu no ombro do rapaz.

- Muito bem - disse, num gesto de muda eloquência. O chefe estava feliz por poder acrescentar às suas fileiras mais um caçador, um rapaz forte,orgulho e alegria de sua vida. O filho de sua companheira, o filho de seu coração.

A caverna era deles. Os ritos da cerimônia viriam sacramentá-la, mas a caça de Broud assegurou-a definitivamente. Os totens se achavam contentes. Broud segurava a lança com a ponta manchada de sangue voltada para cima, quando os outros vieram correndo juntar-se a eles, cheios de alegria, à vista do animal abatido. Brun já tinha a faca na mão, pronto para cortar a barriga e estripar o bisão antes de carregá-lo para a caverna. Retirou o fígado, cortou-o em fatias, dando um pedaço a cada caçador. Era a parte nobre, reservada só aos homens. O fígado dava força aos músculos e boa visão para caçar. Em seguida, tirou o coração para fora e enterrou-o no chão perto do animal. Era uma promessa que pagava a seu totem.

Broud, com o coração estourando de alegria, sentia o sabor de sua virilidade. Tornar-se-ia homem na cerimônia que santificaria a caverna e a ele caberia a honra de conduzir a dança dos caçadores. Tinha, doravante, o direito de participar dos rituais secretos que eram realizados no interior da pequena caverna, e o rapaz daria de bom grado a vida pelo olhar de orgulho que viu no rosto de Brun. Era o supremo momento de sua vida. Já se antevia como centro de atenções na cerimônia da caverna, depois de concluído seu ritual de passagem. Teria toda a admiração e todo o respeito do clã. Só se falaria nele e em sua bravura na caçada. Seria sua noite, e os olhos de Oga estariam brilhando cheios de muda devoção e reverente encantamento.

Os homens amarraram, acima das juntas, as quatro pernas do bisão. Grod e Droog juntaram suas lanças e Crug e Goov fizeram o mesmo, de modo a formar com elas um par de reforçadas estacas. Uma foi passada entre as pernas dianteiras e a outra, entre as traseiras, no sentido horizontal, atravessando o bicho. Brun e Broud iam lado a lado, cada um segurando num chifre e levando na outra mão a lança. Grod e Droog pegaram cada um numa das extremidades da estaca dianteira, enquanto Crug se postou do lado esquerdo e Goov do direito das pernas traseiras. A um sinal do chefe, puseram-se a caminho, carregando o animal pela relva, meio suspenso e meio arrastado. A volta foi muito mais demorada do que a ida. Apesar da força que tinham, esfalfaram-se sob aquele enorme peso, arrastando-o pela planície e, depois, subindo a colina.

Oga estava vigiando e viu quando despontaram ao longe, lá embaixo na planície. Quando estavam mais perto, o clã que já os esperava, saiu inteiro para fazer, junto deles, a última etapa do trajeto, aplaudindo-os silenciosamente. A posição de Broud, à frente dos caçadores vitoriosos, indicava seu feito. Até mesmo Ayla, que Não estava entendendo o que se passava, foi tomada por toda aquela excitação, quase palpável, pairando na atmosfera.

 

- O filho de sua companheira fez bonito, Brun. Um animal e tanto - disse Zoug, enquanto os homens punham o bisão em frente à caverna.

- Você já tem mais um caçador e pode orgulhar-se dele.

- Ele mostrou coragem e muita força no braço - disse Brun, gesticulando com uma das mãos e a outra apoiada no ombro do rapaz. Seus olhos brilhavam de orgulho. O elogio direto deixou Broud ainda mais cheio de si.

Zoug e Dorv examinavam o jovem bisão, tomados de admiração. mas um tanto saudosos das emoções de suas antigas caçadas e das vibrações senti das nos momentos de glória, esquecidos dos perigos e desapontamentos, parte também da difícil aventura que é a caça de um animal de grande porte. Já Não podendo caçar mais com os jovens, mas também Não querendo ficar do lado de fora, os dois haviam passado a manhã explorando as matas nas encostas da colina, buscando presas menores.

- Vejo que você e Dorv puseram suas fundas para funcionar. Desde a metade da subida do morro que já vinha sentindo o cheiro de carne assando- prosseguiu Brun. - Depois que estivermos instalados na caverna, vamos achar um lugar para treinar. O clã só tem a ganhar, se todos souberem usar a funda como você, Zoug. E Não vai custar muito a chegar o tempo para Vorn começar a treinar.

Brun tinha perfeita consciência do que representava a contribuição dos velhos e desejava que eles também o soubessem. Nem sempre suas caçadas eram bem-sucedidas. Muitas vezes, existia carne, graças aos esforços deles e, durante as pesadas nevascas de inverno, a carne fresca quase sempre era obtida na caça com funda. Representava nessa época do ano uma agradável mudança na alimentação do clã, constituída quase só de carne-seca, e principalmente no final da estação, quando começavam a faltar as caças abatidas no último outono.

- Sim, mas nada como um jovem bisão como este aí. Conseguimos pegar alguns coelhos e um castor gorducho. A comida já está pronta. Estávamos só esperando por vocês - falou Zoug. - Vi uma clareira num terreno plano, mais ou menos perto daqui. Lá, vai dar um bom lugar para treinar.

Zoug, que vivia com Grod desde que sua companheira morreu, vinha exercitando sua pontaria com a funda, depois que se retirou das fileiras dos caçadores de Brun. O bom domínio das boleadeiras e da funda era o que havia de mais difícil para os homens dos clãs conseguirem. Apesar de seus braços, ligeiramente arqueados e musculosos, serem dotados de tremenda força, eles podiam executar trabalhos que exigiam grande precisão e delicadeza, como o de lascar pedras. O desenvolvimento das juntas dos braços, particularmente a maneira como seus músculos e tendões se ligavam aos ossos, dava-lhes uma perfeita destreza manual em combinação com uma formidável força. Mas isso tinha também seus inconvenientes. Esse mesmo tipo de desenvolvimento de junta restringia-lhes os movimentos. Não conseguiam, por exemplo, fazer uma arcada completa com o braço, o que lhes tornava bastante difícil o gesto de arremessar objetos. O que perdiam em troca da força era, não o controle de precisão, mas a energia em seus arremessos.Suas lanças não eram como dardos que se atiram a distância, mas um tipo de estocada feita de perto e com grande força. O exercício com lanças e paus era pouca coisa mais do que desenvolver uma boa musculatura, mas o uso da funda ou das boleadeiras levava anos de prática e concentração. A funda, uma tira de couro flexível que o atirador, segurando por suas duas extremidades fazia girar por cima da cabeça para dar impulso a uma pedra posta no centro da correia, era arma que exigia grande treinamento. Zoug era vaidoso de seus tiros certeiros e agora estava também orgulhoso pelo fato de Brun tê-lo escolhido para treinar os garotos do clã.

Enquanto Zoug e Dorv vasculhavam as encostas com suas fundas, as mulheres apanhavam plantas no mesmo terreno, e um aroma apetitoso de comida no fogo enchia o ar, aguçando-lhes o apetite. Isso veio lembrá-los de que o móvel da caçada era a fome. Não tiveram de esperar muito.

Depois da comida, relaxados e inteiramente satisfeitos, rememoraram os incidentes e as emoções da caçada para prazer deles e também para o de Zoug e Dorv. Broud, radiante com seu novo status, recebendo calorosas felicitações de seus novos pares, via Vom olhando-o, estático, cheio de admiração. Até aquela manhã, os dois haviam estado em mesmo pé de igualdade, e Vom, depois de Goov ter passado para o grupo dos homens, fora seu único companheiro.

Broud se lembrou de como também ele ficava rondando os homens, de pois das caçadas, tal como agora Vom fazia. Nunca mais estaria relegado às sombras, inteiramente ignorado e bebendo avidamente as histórias que os outros contavam. Nunca mais estaria às ordens da mãe e das mulheres, chamando-o para ajudar nos serviços domésticos. Era agora um caçador. Um homem. Para que assumisse os plenos direitos do status adulto, faltava apenas um último ritual que seria celebrado conjuntamente com a cerimônia da caverna, um acontecimento que seria particularmemte memorável e auspicioso.

Quando acontecesse, estaria ocupando a posição mais baixa na hierarquia masculina, mas isso não tinha muita importância. Daqui a uns tempos mudaria; o seu lugar no clã estava preestabelecido. Era filho da companheira do chefe, algum dia seria ele o cabeça. Vorn, às vezes, tinha sido uma praga, mas ele, Broud, podia permitir-se ser magnãnimo. Encaminhou-se para o menino, percebendo os olhos de Vorn acenderem de prazer com sua aproximação.

- Vom, acho que você já está bastante crescido - disse Broud com gestos pomposos, tentando assumir uma postura de homem. - Vou fazer uma lança para você. Já é tempo de começar a treinar para caçador.

- Sim - respondeu o menino, com um movimento de cabeça. - Já estou crescido sim, Broud - prosseguiu, timidamente. Fez, então, um gesto indicando a ponta manchada de sangue da pesada lança. - Posso tocar?

Broud colocou a ponta de sua lança no chão, e Vorn, hesitante, encostou o dedo no sangue seco do bisão, jazendo agora em frente à entrada da caverna.

- Você teve medo, Broud?

- Brun diz que todos os caçadores ficam nervosos na primeira caçada

- respondeu Broud, sem admitir seus temores.

- Vorn! Até que enfim encontrei-o! Bem que eu devia ter imaginado. Seu lugar era ajudando Oga a catar lenha - disse Aga, vendo o filho que conseguira escapulir das mulheres e das crianças.

Vom seguiu a mãe, olhando por cima do ombro seu novo ídolo. Brun observava, satisfeito, o filho de sua companheira. O rapaz tem boa índole. Não se esqueceu do amigo só porque ele é ainda criança, disse consigo. Um dia Vom será caçador e Broud, chefe, e ele, então, se lembrará dessa gentileza que recebeu quando ainda criança.

Broud ficou olhando Vom ir arrastando-se atrás da mãe. E pensar que, até ontem, também sua mãe vinha buscá-lo para fazer serviços domésticos. O rapaz deu uma olhada nas mulheres que, no momento, cavavam um buraco. Seu impulso foi o de escapar de mansinho, sem que a mãe o visse, mas, então, percebeu Oga olhando em sua direção. Minha mãe não pode mais dizer o que tenho ou não de fazer. Não sou criança, sou homem. Agora, ela tem de me obedecer, pensava Broud, estufando um pouco o peito. Ela tem de... e Oga está olhando...

- Ebra! Traga água! - ordenou, imperioso e olhando arrogante para as mulheres. Estava quase esperando que sua mãe lhe mandasse catar lenha. A rigor, não seria homem enquanto não se consumassem os ritos de passagem.

Ebra suspendeu os olhos, cheia de orgulho. Ali estava o seu rapazinho que tão bem se saíra de sua missão, o seu filho que chegara ao belo status de homem. Ela deu um salto e foi até o lago perto da caverna, voltando rapidamente com a água e olhando desdenhosa para as outras, como se dissesse:estão vendo o meu filho? Olhem só que caçador corajoso e que beleza de homem!

Percebendo todo aquele entusiasmo e orgulho por ele, Broud saiu um pouco da defensiva e se dispôs a agraciar a mãe com um breve grunhido. A pronta obediência de Ebra agradou-o quase tanto como a saudação de cabeça seguida pelo olhar de adoração que ele viu em Oga, quando se virava para sair.

Oga tinha ficado profundamente abatida e triste com a morte de sua mãe, ocorrida pouco tempo depois do falecimento do companheiro dela. Como filha única, fora muito querida pelo casal. A companheira de Brun mostrava-se delicada com ela, depois que foi morar com a família do chefe. Podia sentar-se junto deles para comer e, durante a viagem, caminhara logo atrás de Ebra. Mas Brun a intimidava. Parecia ser muito mais severo do que o companheiro de sua mãe. Suas responsabilidades eram grandes e pesavam de mais sobre os seus ombros. A principal preocupação de Ebra era Brun e, viajando, ninguém teve muito tempo para pensar na pobre menina órfã. Certa noite, Broud a viu sentada, num desalento só, com os olhos fixos na fogueira. Oga se viu numa gratidão sem limites, quando o orgulhoso garoto, quase um homem, que raramente prestava atençãob nela, veio sentar-se a seu lado e passou o braço em torno de seus ombros, ouvindo-a silenciosamente chorar suas mágoas. A partir daquele momento, só teve um desejo: o de ser a companheira de Broud, quando se tornasse mulher.

Fazia um sol quente de fim de tarde, numa atmosfera inteiramente parada. Nem uma pontinha de brisa agitava a menor das folhas. O silêncio de expectativa era apenas rompido pelo zunir das moscas rodeando os restos de comida e pelo barulho dos pauzinhos das mulheres cavando um buraco na terra. Iza, com Ayla a seu lado, procurava, dentro da sacola de pele de lontra, a outra menor de cor vermelha. A menina andara atrás dela o dia inteiro, mas agora havia certos rituais que Iza tinha de levar a cabo com o Mog-ur, certos preparativos relacionados com o importante papel que desempenharia na cerimônia da caverna, pois já não havia a menor dúvida de sua realização Ela pegou a menina de cabelos louros e a levou até o grupo de mulheres cavando o buraco, próximo à entrada da caverna. Faziam um buraco que iriam forrar de pedras, no qual o fogo arderia a noite toda. Pela manhã, o bisão sem a pele e esquartejado, seria posto envolvido por folhas dentro do buraco e, depois, coberto com mais folhas e uma camada final de terra. Nesse forno de pedras, o animal assaria até o entardecer.

Que serviço lento e tedioso, a escavação! Os pauzinhos pontudos eram usados para soltar a terra para cima que ia sendo jogada com as mãos num lençol de couro, o qual era arrastado para outro ponto e aí esvaziado. Mas uma vez o buraco pronto, ele serviria para muitas vezes mais, bastando que, ocasionalmente, fosse limpo das cinzas depositadas. Enquanto as mulheres escavavam, Oga e Vorn, sob os olhares vigilantes de Ovra, a filha de Ika, catavam lenha e traziam pedras do fundo do riacho.

Com a aproximação de Iza trazendo a menina pela mão, as mulheres pararam.

- Eu preciso ir ver o Mog-ur - disse Iza falando por gestos. Em seguida, empurrou Ayla na direção delas. A menina ainda fez menção de segui-la, mas Iza abanou a cabeça,dizendo não e tornando a empurrá-la na direção das mulheres. Logo depois foi embora.

Exceto Iza e Creb, Ayla ainda não tinha tido contato com qualquer outra pessoa do clã. Sentiu-se perdida e tímida longe da presença encorajadora de Iza. Ficou presa no chão, sem jeito, olhando para os pés, de vez em quando levantando os olhos para dar uma olhada apreensiva. Contra todas as regras do decoro, todo mundo se pôs a encarar a garota magricela de pernas compridas, rosto chato e testa saliente. Todos estavam curiosos a seu respeito e aquela era a primeira oportunidade que tinham para vê-la de perto.

Por fim, Ebra quebrou o silêncio.

- Ela pode ir catar lenha - disse por gestos, dirigindo-se a Ovra e voltando imediatamente ao que estava fazendo.

Ovra ia na direção de um trecho com muitas árvores e troncos caídos. Oga e Vom pareciam grudados no chão Ovra fez um aceno impaciente e, em seguida, outro para Ayla. A menina achou ter entendido o gesto, mas não estava muito certa do que se esperava dela. Ovra, outra vez, acenou e se encaminhou para o lugar das árvores. As duas crianças mais próximas em idade de Ayla foram com certa relutãncia atrás de Ovra. A menina ficou, por um instante, vendo Oga e Vorn pegarem galhos secos, enquanto Ovra, com o seu machado de pedra, rachava uma tora de bom tamanho, caída no chão. De volta, depois de ter depositado um tronco perto do buraco, Oga começou a arrastar na direção da pilha de troncos uma tora que Ovra tinha rachado. Ayla viu a luta da menina e veio ajudá-la. Curvou-se e segurou o outra ponta. Quando as duas ficaram de pé, Ayla olhou bem dentro dos olhos negros de Oga. Por um momento, ficaram paradas, uma encarando a outra.

Tão diferentes e ao mesmo tempo tão contraditoriamente parecidas. Provinham de um mesmo tronco, mas a descendência do ancestral comum às duas havia tomado rumos divergentes, ambos dando origem a inteligências extremamente desenvolvidas, se bem que distintas. Todos os dois sapiens e, igualmente, dominantes em determinado período da história, quando entro o abismo que os separava não era muito grande. Entretanto, sutis diferenças levaram a destinos totalmente diversos. Ayla e Oga, cada qual segurando numa ponta de tora, foram carregando-a até a pilha de lenha. Ao voltarem, lado alado, as mulheres pararam outra vez de trabalhar para ficar observando-as. As duas eram quase da mesma altura, embora a mais alta tivesse quase o dobro de idade. Uma, esguia, membros retos, cabelos louros. A outra atarracada, pernas tortas e mais morenas. As mulheres faziam suas comparações, mas as garotas, como toda e qualquer criança, logo esqueceram suas diferenças. A divisão de trabalho veio facilitar as coisas e, antes que o dia tivesse terminado, já haviam arranjado um jeito de comunicar-se e de dar um pouco de graça ao serviço que faziam.

Ao entardecer, enquanto os outros comiam, elas se buscaram e sentaram-se juntas, comprazendo-se com uma camaradagem que vinha do fato de terem quase a mesma altura.

Iza ficou feliz de ver Oga aceitando Ayla e esperou que anoitecesse para buscá-la. Ao se separarem, uma olhou muito para a outra e, então, Oga deu as costas e se dirigiu para sua pele de dormir, ao lado de Ebra. Homens e mulheres ainda dormiam separados. A proibição do Mog-ur só seria suspensa depois de haverem mudado para a caverna.

Os olhos de Iza se abriram com os primeiros raios da luz do dia. Ficou ainda deitada, escutando as dissonâncias melodiosas dos pássaros, saudando o amanhecer com seus chilreios, pipilos, trinados e gorjeios. Dentro de bem pouco, pensou, quando abrir os olhos, será para uma parede de pedra. Enquanto o tempo estivesse agradável, não se importava de dormir ao relento, mas estava ansiosa por ver-se protegida dentro da caverna. O pensamento lembrou-lhe de tudo quanto tinha de fazer naquele dia e rapidamente se levantou, alvoroçada, com a lembrança da cerimônia.

Creb já estava acordado. Pareceu-lhe que ele não tinha dormido nem um pouco. Estava no mesmo lugar onde o tinha deixado na noite anterior, com os olhos parados no fogo, em silenciosa contemplação. Iza começou a pôr a água para ferver e, quando lhe trouxe o chá feito de hortelã, alfafa e urtiga, Ayla achava-se já sentada a seu lado. Para a menina, arrumou uma refeição com as sobras da comida da véspera. Os homens e as mulheres do clã iriam ficar sem comer até a hora da festa.

Mais para o meio da tarde, deliciosos aromas, saídos das diversas fogueiras em que se preparavam as comidas, enchiam o ar perto da caverna. Os utensilios e toda uma parafemália de cozinha, salvos do terremoto, foram trazidos e, agora, desempacotados. Cestas impermeáveis - magnificamente trabalhadas, com texturas diferentes e sutis desenhos feitos na própria trama - eram usadas para tirar água do lago ou como vasilhame de cozinha, ou ainda como recipiente para guardar mantimentos. As bacias e cunjas de madeira tinham finalidades semelhantes. Os ossos de costelas serviam para mexer a comida e os ossos rasos da pelve e as toras delgadas e côncavas eram usados como pratos e travessas. Os ossos da cabeça e mandíbulas faziam o papel de conchas, xícaras e tigelas. Finalmente, as cascas de bétula coladas com uma goma de bálsamo, às vezes também com uma amarração feita de tendões e nervos para reforçar, recebiam formas diferentes para aplicações diversas.

Num couro de animal, suspenso em cima do fogo por uma armação de correlas, borbulhava uma saborosa sopa. A vigilância tinha de ser constante para que o líquido não secasse muito. Enquanto o nível da sopa fervendo se mantivesse acima do nível das chamas, o calor no couro não daria para queimá-lo. Ayla observava Ika revolvendo os ossos e nacos da carne do pescoço do bisão, que cozinhavam com cebola do mato, tussilagens e outras ervas. Depois, a mulher provou e acrescentou para engrossar o caldo talos de cardo, cogumelos, raízes, brotos de lírio, agrião, folhas de serralha, inhames novos, arandos trazidos da outra caverna e hemerocales colhidas na véspera.

Raízes de taboa haviam sido esmigalhadas e limpas de suas fibras mais duras. Ao amido resultante, assentado no fundo das cestas com água fria, foram adicionados mirtilos secos e sementes moídas e torradas também trazidos com eles e, agora, pães, numa massa escura não fermentada, assavam nos formos de pedra, junto das fogueiras. Folhas de caperiçoba, anserina, trevos novos e dentes-de-leão, tudo temperado com tussilagem, cozinhavam em outra panela e um molho feito de maçãs ácidas com pétalas de rosa silvestre e mel (afortunadamente encontrado no local) apurava em outra fogueira.

Iza havia ficado agradavelmente surpresa ao ver Zoug voltando de uma ida na planície com um punhado de ptármigas. Esses pesados pássaros de vôo rasteiro eram facilmente abatidos com as pedras das fundas, sendo os preferidos de Creb. Recheados com ervas e folhas comestíveis que envolviam, inteiros, os seus próprios ovos, essas saborosas aves assavam em fornos menores. Lebres e gigantescos hamsters sem as peles eram postos em espetos sobre as brasas e montanhas de minúsculos morangos silvestres cintilavam, à luz do sol, sua forte cor vermelha.

Uma festa digna do acontecimento.

Ayla não tinha certeza se poderia esperar. Ficara o dia inteiro rondando sem destino por perto da área de preparo das comidas. Tanto Iza como Creb passaram a maior parte do tempo em algum outro lugar, e quando Iza aparecia estava sempre ocupada. Oga também trabalhava com as mulheres preparando a festa e ninguém tinha tempo e nem vontade de incomodar-se com a menina. Depois de algumas palavras mal-humoradas e umas cotoveladas não muito delicadas, Ayla tratou de estar fora do caminho das mulheres.

Logo que as sombras do fim de tarde começaram a se estender sobre o chão de terra vermelha em frente da caverna, um silêncio de expectativa baixou sobre o clã. Todos foram reunir-se em torno do grande buraco onde assavam os quartos do bisão Ebra e Ika começaram por retirar a camada de terra quente e, depois de afastarem as folhas moles e chamuscadas, surgiu o bicho numa nuvem de vapores de dar água na boca. A carne era retirada cuidadosamente, tão tenra que se desprendia fácil dos ossos. A Ebra, como companheira do chefe, coube a honra de partir e servir. Seu orgulho era visível, quando deu o primeiro pedaço ao filho.

Broud Não se fez de rogado, sem nenhuma falsa modéstia, avançou para receber sua porção. Depois dos homens servidos, seguiram-se as mulheres e, por fim, as crianças. Ayla foi a última, mas dava para todos e ainda sobrava. Um novo silêncio tornou a baixar, mas desta vez de fome, o clã faminto devorava avidamente seu banquete.

Era uma festa sem pressa, com as pessoas voltando para se servir de um pouco mais de bisão ou repetindo seus pratos favoritos. As mulheres tinham dado duro, mas sua recompensa Não estava apenas na visão do clã plenamente satisfeito: nos próximos dias não teriam que cozinhar. Em seguida, todos se puseram a descansar, preparando-se para a longa noite que tinham pela frente.

Quando as sombras começaram a alongar-se, fundindo-se com a luz acizentada da noite próxima, a atmosfera de preguiça da tarde foi gradualmente cedendo a uma outra, carregada de expectativa. A um olhar de Brun, as mulheres rapidamente limparam os restos da festa e foram tomar seus lugares em volta de uma fogueira ainda não acesa, armada à entrada da caverna. Parecia um quadro formado ao acaso, desmentindo o rígido formalismo que regia o clã. As mulheres se postaram uma junto da outra, de acordo com seus status. Os homens se reuniram do lado contrário, numa configuração obedecendo suas posições hierárquicas. O Mog-ur não se achava presente.

Brun, o que estava mais perto da entrada, fez um sinal a Grod. Este, com passos lentos e dignos, aproximou-se e retirou do chifre do auroque o carvão em brasa,o mais importante de todos os carvões, numa longa sequência que tinha começado com aquele aceso nos escombros da antiga caverna. Dar continuidade a este fogo era dar continuação à vida do clã, e reacendê-lo à entrada da caverna significava proclamá-la como deles, estabelecê-la como lugar de sua residência.

O controle do fogo foi uma invenção do homem, essencial à vida em terras de climas frios. Só o cheiro de fumaça já bastava para trazer a sensação de segurança e evocar nos espíritos a lembrança de um lar. A fumaça da fogueira, filtrando-se para dentro da caverna, subia aos altos tetos abobadados e saía para o exterior pelas fendas e rachaduras. Levaria consigo todas as forças invisíveis que poderiam ser hostis e purificaria a moradia, permeando-a com sua essência, a essência do humano.

A fogueira acesa, em si mesma, já se constituía num ritual de purificação e de tomada de posse, mas outros tantas vezes foram realizados conjuntamente com os ritos da cerimônia da caverna que o clã quase já os considerava como fazendo parte do mesmo cerimonial. Um desses, era o de familiarizar os espíritos dos totens protetores com a nova moradia, feito normalmente em particular pelo Mog-ur e na presença só dos homens. Às mulheres tinham suas próprias celebrações, por isso Iza fizera uma bebida especial para os homens.

O sucesso da caçada já dera provas de que os totens se achavam de acor do com a caverna e a festa confirmava a intenção deles de fazer dela um lugar permanente de morada, o que não impedia de, em certas ocasiões, o clã passar longas temporadas fora. Os espíritos totêmicos também viajavam, contanto que as pessoas trouxessem consigo seus amuletos para que os totens pudessem levá-las e trazê-las, quando necessário.

Já que os espíritos de qualquer maneira estariam presentes à cerimônia da caverna, frequentemente aproveitava-se para a inclusão de outras. A parte preponderante de qualquer cerimônia estava associada ao estabelecimento de uma nova moradia e ao subsequente vínculo do clã com a terra. Apesar de que cada tipo de cerimônia possuísse sua forma ritualística que era sempre a mesma, os acontecimentos celebrados divergiam de caráter, dependendo da forma de serem conduzidos os ritos.

Era o Mog-ur que, em geral de acordo com Brun, decidia como fazer a junção das diversas partes, de modo a englobar todas numa só cerimônia, mas essa era uma questão orgânica que dependia de como eles se sentissem. A cerimônia daquele dia constaria dos ritos de passagem de Broud e daqueles que dariam a conhecer os totens das crianças, já que isso tinha de ser feito e também porque eles desejavam agradar os espíritos. O tempo não era o que contava. A cerimônia poderia durar o que durasse. Estivessem eles em perigo, ou sem espírito para festejos, o simples ato de acender a fogueira já bastava para fazer a caverna deles.

Com postura grave, apropriada à magnitude da tarefa, Grod ajoelhou- se, encostou a brasa no madeirame seco e pôs-se a soprar. As pessoas, ansiosas, inclinando-se para a frente, soltaram todas ao mesmo tempo um suspiro de alívio ao ver os galhos secos começando a arder em chamas. O fogo pegou e, de repente, surgida, não se sabe de onde, uma figura assustadora, de pé junto à fogueira, como se saída do meio das labaredas crepitantes. Tinha o rosto pintado de vermelho vivo e se achava encimada por uma lúgubre caveira branca que parecia ter saído incólume das chamas, suspensa por gavinhas de trêmula energia.

Ayla, a princípio, não viu aquela assombração chamejante, mas logo começou a respirar ofegando, tremendo de medo. Sentiu que Iza apertava-lhe a mão tranquilizando-a. Pouco depois, fizeram-se ouvir as vibrações das monótonas batidas no chão feitas pelas pontas de lanças. A menina deu um salto para trás, virando a cabeça contra um tronco, quando um caçador mais à frente deu um pulo na direção das chamas no momento mesmo em que Dorv começou a fazer uma batida de som mais alto e em contraponto rítmico, num enorme instrumento de madeira abaulado.

Broud agachou-se e olhava a distância, com as mãos abrigando os olhos de um sol inexistente. Os outros caçadores pularam de seus lugares e foram juntar-se e ele na reconstituição da caçada ao bisão De tal ordem era o poder evocativo da pantominia - afinal uma expressão que vinha sento burilada por incontáveis gerações - que conseguiram recriar toda a intensidade das emoções vividas na caçada. Até mesmo a menininha de fora, com os seus cinco anos, recebia o impacto daquela representação As mulheres do clã íntimas das finas nuanças de sua linguagem, viram-se transportadas ao calor da planície poeirenta. Sentiram o trovejar da terra vibrando sob os cascos; provaram o gosto da poeira sufocante e exultaram com a caça abatida. Era um raro privilégio que lhes permitia partilhar da sacrossanta vida dos caçadores, mesmo que se tratasse de um pálido vislumbre.

Desde o início, Broud assumiu o comando da dança. Havia sido o autor da proeza e a noite era sua. O rapaz recebia as emoções vividas ali por empatia, o tremor de medo das mulheres, e reagia fazendo uma interpretação ainda mais viva e apaixonada. Era um consumado ator e nunca estava tão em seu elemento como quando se via no centro das atenções. Brincava com as emoções de sua platéia e sua representação da cena da estocada final teve um quê de erótico que levou as mulheres a estremecerem extasiadas. O Mog ur, por detrás da fogueira, observava não menos impressionado: estava sempre ouvindo conversas sobre caçadas, mas somente nessas esporádicas cerimônias tinha oportunidade de sentir de perto toda a gama das emoções vividas pelos caçadores. O rapaz é bom, pensou ele, passando para a frente da fogueira. Faz jus à marca do totem que leva. Talvez tenha o direito de se exibir um pouco.

A última cena botou Broud face a face com o poderoso mago, ao mesmo tempo em que as batidas silenciaram - uma, monótona sempre igual, e outra, fazendo um vivo contraponto staccato - depois de um floreado rítmico. O velho feiticeiro e o jovem caçador ficaram encarando-se. Também o Mog-ur sabia representar seu papel. O mestre do timing esperava, deixando que se evanescessem as emoções da dança e criando aos poucos o clima de expectativa. A enorme e desproporcionada figura, envolvida numa pesada capa de pele de urso, projetava sua sombra contra as labaredas. O rosto, pintado de ocre vermelho, estava sugerido por sua própria configuração que fazia de seus traços um borr indefinido, com o funesto olho assimétrico de um demônio.

A quietude da noite era apenas perturbada pelo crepitar da fogueira ao lado de uma suave brisa sussurrando nas árvores e o grito de uma hiena caca rejando a distância. Broud, com os olhos brilhando, ofegava. Um tanto pelo exercício da dança, um tanto pela excitação e vaidade, mas sobretudo por um medo cada vez mais premente.

Sabia o que estava por vir. Quanto mais pensava nisso, mais lutava contra o calafrio, prestes a transformar-se numa grande tremedeira. Estava na hora de o Mog-ur esculpir-lhe na carne a marca de seu totem. Havia procurado não pensar no fato, mas, agora que chegara o momento, viu-se com mais medo do que propriamente dor. O feiticeiro projetava uma aura que ainda enchia mais o rapaz de pavor.

Ele trilhava as fronteiras do mundo dos espíritos, um lugar que encerrava seres muito mais aterrorizantes do que o gigantesco bisão Este, com todo o seu tamanho e força, era pelo menos sólido, algo palpável do mundo físico, com o qual o homem podia engalfinhar-se. Já essas forças invisíveis, infinitamente mais poderosas, capazes de fazer com que a própria terra tremesse, era coisa bem diferente. Mas Broud não estava sozinho. Ele não era o único ali a reprimir um calafrio, quando as angústias vividas durante o ter remoto de repente batia-lhes na lembrança. Apenas os homens santos, os fei ticeiros, ousavam enfrentar esse plano insubstancial, e o supersticioso rapaz só desejava naquele instante que o Mog-ur terminasse o mais rapidamente possível com o que tinha a fazer.

Como se tivesse escutado o desejo de Broud, o feiticeiro levantou o braço e dirigiu os olhos à lua crescente. Em seguida, com gestos ondulantes, passou a fazer uma súplica em tons ardorosos. Sua platéia, entretanto, não estava ali no da inteiramente hipnotizado. Sua eloquência se dirigia ao etéreo, mas Não menos real mundo dos espíritos, numa gesticulação de grandes efeitos cênicos. Valia-se de truques bastante sutis de posturas e finas nuanças de gestos, superando as desvantagens que levava em sua própria língua. Conseguia ser mais expressivo com um braço só do que a maioria dos homens com dois. Quando estava chegando ao fim, ninguém duvidava de estar cercado pela essência de seu totem protetor e por uma legião de espíritos não conhecidos. O calafrio de Broud se transformara numa total tremedeira.

Com um lance inesperado que levou alguns a prenderem a respiração, o Mog-ur, num abrir de olhos, puxou da dobra da roupa uma afiada faca que segurou por cima da cabeça. Em seguida, num segundo gesto, também inteiramente de surpresa, baixou a faca e enfiou sua ponta no peito de Broud. Um pouquinho mais, o golpe seria fatal, mas o feiticeiro tinha o perfeito domínio dos movimentos. Depois, com a mão firme gravou na carne de Broud duas linhas que saíam de um mesmo ponto e faziam uma curva na mesma direção, tal como o formato dos chifres de rinocerontes.

Broud tinha os olhos fechados, mas não fez menção de esquivar-se no momento em que a faca furou-lhe a pele. O sangue veio à superfície, fazendo regatos vermelhos escorrerem pelo peito. Goov surgiu ao lado do Mog-ur, segurando uma tigela com unguento feito de gordura de bisão e cinzas vegetais. O Mog-ur untou a ferida com essa pasta, estancando o sangue. Em seguida, olhou para ver se a cicatrização estava se processando bem. A marca na pele proclamava Broud como homem, um homem para sempre sob a proteção do poderoso e imprevisível espírito do rinoceronte.

O rapaz voltou a seu lugar plenamente consciente de estar sendo o centro das atenções e vivendo toda sua glória, agora que o pior já havia passado. A coragem, a competência na caçada, o belo desempenho de sua dança evocativa, a firmeza com que enfrentara a gravação da marca do totem, tudo isto, tinha certeza, seria assunto para animadas conversas tanto entre os homens como entre as mulheres. Pensou que talvez seus feitos fossem transformar-se numa lenda, numa história a ser repetida nas reuniões dos clãs e a ser contada e recontada durante os longos e frios invernos que confinavam o clã à caverna. Se não fosse eu, a caverna não seria nossa, dizia consigo. Se não tivesse matado o bisão não estaríamos tendo agora uma cerimônia, ainda estaríamos procurando uma morada. Broud começava a pensar na caverna e em todos os outros acontecimentos como se fossem devidos exclusivamente a ele.

Ayla, fascinada e ao mesmo tempo com medo, observava o ritual, Não conseguindo evitar um estremecimento ao ver o enorme e assustador vulto esfaqueando Broud e tirando-lhe sangue. Quando Iza tomou-lhe a mão para conduzi-la à presença da lúgubre figura do feiticeiro enrolado numa pele de urso, ela retraiu o corpo, imaginando o que ele iria fazer com ela. Ága, com Ona nos braços, e Ika, com Borg, também iam ao encontro do Mog-ur e foi com alegria que Ayla viu as duas se alinharem na frente dela e de Iza.

Goov agora segurava uma cesta vermelha que de tanto carregar ocre amassado com banha animal acabou ficando com a mesma cor. O Mog-ur olhou por cima das mulheres à sua frente para o fiapo de lua no céu. Fez alguns gestos ritualísticos conclamando os espíritos a se reunirem para guar dar as crianças cujos totens iam ser revelados. Em seguida, meteu um dedo na pasta vermelha e fez um desenho no quadril do menino, numa forma espiralada lembrando o rabo de um porco. Um murmúrio baixo subiu do clã enquanto as pessoas, por meio de gestos, comentavam o acerto daquele totem.

- Ó Grande Espírito do Javali, o menino Borg está entregue à sua proteção - dizia as mãos do feiticeiro, enquanto ele fazia passar pela cabeça da criança um saquinho amarrado por um cordão de couro.

Iza inclinou a cabeça num gesto que expressava tanto submissão como o seu agrado pela escolha. Era um espírito forte e respeitável e a escolha estava muito de acordo. Em seguida, pôs-se de lado, afastando-se um pouco.

Novamente o feiticeiro tornou a invocar os espíritos e a meter o dedo na cesta que Goov segurava. Desta vez, ele desenhou com a pasta um círculo no braço de Ona.

- Ó Grande Espírito da Coruja - falavam os seus gestos - entrego a menina Ona à sua proteção - Pôs, então o amuleto no pescoço da criança.

Grunhidos dissimulados e mãos agitando-se no ar, mais uma vez, comentaram o totem forte que a menina tinha para protegê-la. Aga estava feliz. Sua filha estaria bem protegida, e isso significava que o homem dela no futuro não poderia possuir totem fraco. Só esperava que o totem não tornasse as coisas muito difíceis e deixasse sua filha engravidar.

As pessoas, cheias de curiosidade, espicharam-se para a frente, quando Aga se afastou e Iza se inclinou para pegar Ayla nos braços. A menina já não estava mais com medo. Chegara à conclusão depois de ver de perto, que aquela majestosa figura de cara pintada de vermelho não era outra senso Creb. Havia um brilho de ternura nos olhos do feiticeiro, quando ele olhou para a garota.

Para surpresa do clã os gestos de invocação dos espíritos eram diferentes. Era a gesticulação usada para dar nome às crianças no sétimo dia após o nascimento. A menina não ia apenas ter o seu totem revelado, iria ser adotada pelo clã! Depois de meter o dedo na pasta, o Mog-ur fez uma linha do meio da testa nas pessoas da raça dos clãs, no ponto onde se juntam as saliências ósseas, acima dos olhos) até a ponta do seu pequenino nariz.

- O nome da menina é Ayla - disse ele, pronunciando devagar e com cuidado para que tanto o clã como os espíritos entendessem.

Iza virou a cabeça, querendo ver a reação das pessoas. A adoção era tanto surpresa para ela quanto para os outros, e Ayla sentiu-lhe o coração batendo mais forte. Isso deve significar que ela é minha filha. A minha primeira filha, disse Iza consigo. Só a mãe carrega a criança no dia em que ela recebe o nome e é reconhecida como membro do clã. Será que estão fazendo sete dias que encontrei Ayla? Não me lembro. Tenho de perguntar a Creb, mas acho que sim. Ela agora é minha filha, quem mais poderia ser mãe dela depois disso?

Cada pessoa ia passando por Iza com Ayla nos braços como se esta fosse um bebê e repetindo o nome da menina, com maior ou menor correção de pronúncia. Iza então se virou, ficando outra vez de frente para o feiticeiro. Este olhou de novo para cima, conclamando os espíritos a reunirem-se. O clã aguardava ansioso, e o Mog-ur tinha plena consciência da expectativa que suscitava, usando-a a seu favor. Com movimentos propositadamente lentos, espichando o tempo para manter o suspense, ele retirou um pouco da pasta vermelha e pintou uma linha em cima da cicatriz deixada pela garra do leão na perna de Ayla.

O que quer isto dizer? Que totem é este? O clã estava perplexo. O feiticeiro, de novo, tornou a pegar mais um pouco de pasta e pintou uma segunda linha. Ayla sentiu que Iza tremia. Ninguém se movia, nem uma só respiração era ouvida. Na terceira linha, Brun com o rosto franzido de raiva, procurava o olhar do Mog-ur que, por sua vez, desviava o seu. Na quarta linha, o clã já sabia, mas recusava-se a acreditar. Afinal, a marca fora posta na perna errada. Quando fez os gestos de encerramento, o Mog-ur virou a cabeça e olhou francamente para Brun.

- Ó Poderoso Espírito do Leão da Caverna, a menina Ayla está entregue à sua proteção.

A gesticulação dissipou a última sombra de dúvida. Enquanto era pendurado o amuleto no pescoço de Ayla, as mãos dos membros do clã se agitavam, escandalizadas com a surpresa. Seria verdade? Poderia uma menina ter o mais forte de todos os totens masculinos? O leão da caverna?

Creb lançou a Brun, que estava furioso, um olhar firme e inflexível. Por um instante, os dois ficaram olhando-se em silêncio, como se numa guerra de nervos. Mas, para o Mog-ur, o totem de Ayla estava estruturado segundo uma lógica implacável, por mais absurdo que parecesse a proteção de um espírito tão poderoso para uma mulher. Ele apenas tinha posto à mostra aquilo que o próprio leão da caverna fizera. Brun jamais questionou as revelações anteriores do Mog-ur, mas, por alguma razão, sentia-se desta vez ludibriado pelo feiticeiro. Podia não gostar; no entanto, era obrigado a admitir que nunca vira um totem se dar a conhecer de forma tão concreta. Foi ele quem desviou primeiro o olhar, sentindo-se bastante mal com tudo aquilo.

Só a idéia de aceitar a criança no clã já fora bem difícil e agora mais essa do totem. Era demais. Algo irregular, fora do comum. Ele não gostava de ver anomalias no seu clã, sempre muito bem ordenado. Daqui por diante, nem mais um desvio, pensou, com ar decidido. Se a menina tiver de fazer parte do clã, que trate de se amoldar... com ou sem leão da caverna.

Iza estava atordoada, ainda com Ayla nos braços, baixou a cabeça em sinal de aceitação. Se o Mog-ur decretou é porque deve ser assim. Imaginava que Ayla devesse ter um totem forte, mas tanto assim? O pensamento botou-a apreensiva. Uma mulher com o totem do mais poderoso de todos os felinos? Agora, tinha certeza de que Ayla jamais arrumaria companheiro. Isso veio reforçar sua decisão de fazer da menina uma curandeira para que Ayla tivesse seu próprio status. Enquanto Creb a reconhecia, dava-lhe um nome e revelava seu totem, ela ficou carregando a garota; se isto não a tornava sua filha, ela então já não sabia de mais nada. Subitamente, Iza se lembrou de que, se tudo continuasse dando certo, dentro de pouco tempo estaria outra vez diante do Mog-ur com um bebê nos braços. Ela, que tanto tempo passara sem filhos, em breve estaria com dois.

O clã estava alvoroçado, e o assombro manifestava-se por gestos e gru nhidos. Constrangida, Iza voltou a seu lugar em meio ao espanto geral. As pessoas tentavam não olhar para ela e a menina - seria uma descortesia - mas uma pessoa fazia mais do que olhar, encarava diretamente.

A expressão de ódio no olhar de Broud para Ayla assustou Iza. Tentou botar-se entre os dois, escudando a garota contra aquele mau-olhado. Broud, de repente, havia percebido que já não era mais o centro das atenções. Ninguém mais estava falando dele. Tudo esquecido: o seu corajoso feito que lhes assegurara a caverna, sua estupenda dança e seu sangue-frio na hora da gravação da marca do totem em seu peito. O unguento anti-séptico e adstringente tinha doído mais do que o próprio corte e ainda ardia, mas havia ali alguém reparando em sua coragem? Na sua força de vontade para enfrentar a dor?

Ninguém lhe prestava a mínima atenção. Os ritos de passagem para os meninos aconteciam com certa frequência, mesmo para aqueles predestinados a chefes. Nem de leve podiam comparar-se com a fantástica e inesperada revelação do Mog-ur, sem precedentes na história deles. Broud reparou que comentavam o fato de a menina ter sido a primeira pessoa a ser conduzida à caverna. Aquela garota horrenda ter encontrado a casa deles, quem diria! Mas, e daí? Também com um leão da caverna por totem, pensava ele carregado de mau humor. Por acaso foi ela quem matou o bisão? Aquela era para ter sido a sua noite, deveria ser ele o centro das atrações, ele é que era para ser o objeto de admiração e ter o respeito do clã, mas a desgraçada da menina lhe passara uma rasteira.

Enquanto lançava olhares furiosos para Ayla, viu que Iza correu na direção do terreno ao lado do riacho e a atenção do rapaz voltou outra vez para o Mog-ur. Logo, muito em breve, ele estaria sendo admitido nos rituais secretos dos homens. Não sabia ainda o que o aguardava. Tudo que lhe fora dito era que, pela primeira vez, iria ficar sabendo do que se tratavam as memórias.

O último passo que ainda faltava para se tornar um homem.

Ao lado da fogueira, perto do riacho, Iza se despiu às pressas e pegou uma bacia de madeira e a sacola vermelha com raízes secas que havia tirado para fora. Depois de encher a bacia com água, voltou para junto da fogueira principal, onde as chamas subiam alto com nova lenha posta por Grod.

A roupa que Iza tinha usado havia encoberto, em parte, o motivo de suas prolongadas ausências durante aquele dia. Quando ela reapareceu de novo na frente do Mog-ur, estava completamente nua, tendo apenas o seu amuleto pendurado no pescoço e umas riscas vermelhas pintadas no corpo. Um grande círculo ressaltava-lhe a barriga prenhe. Os dois seios também estavam rodeados por círculos com uma risca que, saída de cima de cada um, passava pelos ombros e se ia juntar, formando um V na altura dos rins. Às duas nádegas igualmente achavam-se circundadas por círculos vermelhos. Osenigmáticos símbolos, de sentido conhecido apenas para o Mog-ur, visava à proteção dela e a dos homens. Uma mulher envolvida nos ritos religiosos era algo de perigoso, mas, para este, ela se fazia necessária.

Iza estava de pé, perto do Mog-ur, suficientemente perto para perceber gotas de suor em seu rosto que lhe vinham do calor do fogo e de sua pesada vestimenta. A um sinal imperceptível dele, Iza suspendeu a bacia para o alto e se virou de frente para o clã Era uma antiga bacia que vinha sendo conservada através de gerações e usada exclusivamente em cerimônias daquela natureza. Alguma ancestral de Iza, em tempos muito remotos, a havia cuidadosa mente talhado num pedaço de madeira e depois tinha aplainado sua superfície com pedra e areia. A essência abrasiva de talos de caperiçoba fez o acabamento final, dando-lhe um sedoso polimento. O tempo e o uso terminaram por lhe dar do lado de dentro uma pátina esbranquiçada.

Iza encheu a boca de raízes secas e mastigou-as vagarosamente, com todo o cuidado, de modo a não engolir nenhuma saliva, enquanto seus enormes dentes trituravam as fibras duras. Por fim, cuspiu a polpa mastigada dentro da bacia com água e mexeu a mistura até que ficasse uma água leitosa. Somente as curandeiras da linhagem de Iza conheciam o poder daquelas raízes. Era uma planta relativamente rara, mas não desconhecida. Quando fresca, não se notavam suas propriedades narcóticas. As raízes, depois de secas, eram postas para envelhecer durante pelo menos dois anos. Diferente mente da maioria das outras plantas, estas se penduravam para secar com as raízes voltadas para baixo e não para cima. Embora apenas mulheres curandeiras tivessem permissão para preparar a bebida, por tradição de longa data só os homens a tomavam.

Segundo uma velha lenda, passada de mãe para filha, ao lado das instruções esotéricas sobre como promover a concentração do componente forte da planta na raiz, a poderosa beberagem em algum tempo no passado fora usada só por mulheres. No entanto, os homens lhes roubaram as cerimônias com os ritos associados à bebida, além de proibirem as mulheres de tomá-la. Só Não conseguiram roubar o segredo do seu preparo. As curandeiras, donas do segredo, evitavam de tal forma revelá-lo - exceção feita às filhas - que ninguém mais sabia desta fórmula, a não ser uma mulher que pudesse reivindicar uma ascendência direta de curandeiras, cuja linhagem se perdia nas profundidades do passado. E, mesmo agora, a bebida jamais era dada, se alguma coisa de valor e qualidade correspondentes não viesse em troca.

Quando a bebida ficou pronta, Iza fez um sinal de cabeça e Goov se aproximou com a bacia de chá de figueira, preparado à maneira como ele usualmente fazia para os homens, só que desta vez seria tomado pelas mulheres. Numa postura solene, as bacias foram trocadas. O Mog-ur, então, pôs-se à frente, e os homens se retiraram para a caverna menor.

Depois de eles saírem, Iza levou a bacia com chá de figueira a cada uma das mulheres. Ela própria, muitas vezes, já havia usado a beberagem, mas com outras finalidades, como remédio para dormir ou tirar dor. Como sedativo, ela já tinha ali uma quantidade pronta para dar ás crianças, só que preparada de forma especial. As mulheres não ficavam descansadas, enquanto não soubessem que os filhos estavam bem e que não viriam procurá-las. Nas pouquíssimas ocasiões em que se permitiam o luxo de uma cerimônia, Iza tratava de fazer com que a criançada estivesse dormindo um sono seguro e tranquilo.

Em poucos instantes, as mulheres puseram os filhos entorpecidos para dormir e voltaram para a fogueira. Iza, depois de meter Ayla dentro da pele, dirigiu-se para o instrumento que Dorv havia tocado durante a dança da caçada e começou a batê-lo num ritmo vagaroso e firme, alterando o som, ora batendo com o pauzinho na borda, ora mais no centro da caixa de ressonância.

No início, as mulheres permaneceram imóveis. Estavam demasiadamente acostumadas a refrear seus movimentos na frente dos homens. Mas, aos poucos, a beberagem foi surtindo efeito e, na certeza de que eles estariam fora de vista, passaram a se mexer dentro da cadência rítmica. Ebra foi a primeira a dar um pulo sobre os pés. Dançava com passos intrincados, rodeando Iza e, à medida que as batidas aceleravam, as outras, estimuladas pelo ritmo, se juntavam. Em pouco tempo, todas dançavam ao lado de Ebra.

Num ritmo sempre mais acelerado e cada vez mais complexo, elas, que em sua vida diária eram de extrema docilidade, passaram a uma dança lasciva, movimentando-se desinibidamente, enquanto arrancavam do corpo as vestes. Nem repararam quando Iza parou e veio também juntar-se a elas. Dançavam inteiramente presas ao ritmo interno de seus próprios corpos. As emoções contidas e tão reprimidas no dia-a-dia se extravasavam em seus movimentos livres de todo constrangimento. Eram tensões convertidas em cartase de liberdade, uma forma de catarse que as ajudava a aceitar as limitações de sua existência. Com corropios, saltos e passadas frenéticas, dançaram até quase o raiar do dia, quando, exaustas, tombaram no chão e dormiram no lugar mesmo em que haviam caído.

Às primeiras luzes do dia, os homens começaram a sair da caverna. Saltando por cima dos corpos caídos, procuraram os seus lugares de dormir e, em instantes, viram-se embalados por um sono sem sonhos. Neles, a catarse se fazia pela tensão da caça, o que dava a seus ritos diferente dimensão: eram mais contidos, voltados para dentro e estavam mais arraigados ao costume, mas nem por isso menos excitantes.

Quando o sol despontou no oriente, por cima da colina, Creb veio para fora da caverna e olhou a cena a seus pés, formada por uma quantidade de corpos estendidos no chão. Em certa ocasião, observou por curiosidade celebrações das mulheres. Com muita agudeza de espírito, compreendeu a necessidade de liberação. Sabia que os homens tinham curiosidade de saber o que elas faziam que as deixava em tamanho estado de exaustão mas jamais lhes falou sobre isto. Ficariam chocados com aquela soltura de cor tamerito, tanto quanto elas se vissem as fervorosas súplicas que seus estão companheiros dirigiam aos espíritos que participavam de suas existências.

De vez em quando, o Mog-ur pensava se seria ele capaz de conduzir mentes femininas às suas origens. Nelas, a memória era diferente, mas de mesma capacidade para reviver os acontecimentos do passado distante. É possível realizar uma cerimônia em conjunto com homens e mulheres? tinha curiosidade de saber, mas não seria ele que iria descobrir isto e afrontar a ira dos espíritos. O clã seria destruído, se alguma mulher participasse dos sagrados ritos.

Creb se dirigiu ao acampamento e acomodou-se em sua pele de dormir. Uma massa de cabelos dourados na pele de Iza levou-o a reviver toda uma série de acontecimentos ocorridos a partir do instante em que ele saíra da antiga caverna, pouco antes do desabamento. Por que artes teria aquela estranha menina entrado tão depressa em seu coração? Incomodava-o a má vontade latente de Brun para com Ayla e também não lhe passara despercebido os olhares rancorosos que Broud lançara à menina. As desavenças naquele cerrado clã tinham prejudicado a cerimônia e isto o punha intranquilo.

Broud não ficará só aí, pensou Creb. O rinoceronte é um totem muito apropriado para nosso futuro chefe. Broud pode ser corajoso, mas é também um cabeça-dura e muito orgulhoso. Num momento é calmo, racional, chegando até a ser um rapaz bom e gentil; em outro, por uma bobagem qualquer, é capaz de ficar furioso, cego de raiva. Só espero que não se vire contra a garota.

Não seja idiota, disse consigo mesmo, censurando-se, o filho da companheira de Brun não vai deixar-se abalar por causa de uma simples menina, Broud agora é um homem, irá saber controlar-se.

Por fim, deitou-se, percebendo o quanto estava cansado. Desde o terremoto que a tensão nunca mais o havia largado, e agora podia finalmente relaxar. A caverna lhes pertencia. Os totens estavam lá firmemente estabelecidos e o clã poderia mudar logo que acordasse. Deu, então um bocejo, espreguiçou-se e fechou os olhos.

 

Ao entrar pela primeira vez em seus domínios, um silêncio reverente abateu-se sobre o clã, intimidado pela imensidão daquela catedral esculpida pela natureza. Mas logo foi-se acostumando à nova moradia. A lembrança da velha caverna e a ansiosa busca rapidamente passaram a ser coisas do passado e, quanto mais eles conheciam seus novos domínios, mais contentes ficavam com o achado. Passaram, então a viver a rotina de todos os verões, quentes se não muito prolongados; caça, coleta e armazenamento da comida que os manteria por todo um longo e frio inverno, que já conheciam de experiências anteriores. Eles tinham uma bela variedade à sua disposição.

Trutas prateadas reluzindo nas espumas brancas das saltitantes águas do rio eram apanhadas à mão com infinita paciência, quando, desavisadamente, os peixes ficavam sob as raízes pendentes das margens ou debaixo das pedras. Isto e gigantescos salmões, muitas vezes com um prêmio extra de caviar ou de ovas cor-de-rosa, saracoteavam nas embocaduras do rio, enquanto enormes bagres e bacalhaus moviam-se majestosamente no fundo das águas. Redes de arrastão, feitas de crina animal retorcida, colhiam em seus nós os grandes peixes, quando estes tentavam escapar ao bloqueio de seus perseguidores. Eles estavam sempre fazendo o fácil percurso de cerca de 10 quilômetros até o mar e lá se abastecendo de peixes de água salgada que punham para curtir na fumaça das fogueiras e depois eram guardados para o inverno. Os moluscos e crustáceos eram apanhados tanto por suas carapaças, que lhes serviam de colheres, cuias, conchas e xícaras, como também por suas apetitosas carnes. Nos promontórios alcantilados iam buscar ovos nos ninhos dos mais variados pássaros marítimos, e vez por outra, uma pedra bem atirada vinha aumentar-lhes a festa com alguma gaivota, maçarico ou mergulhão.Raízes, talos e folhas suculentas, abóboras, legumes, amoras, frutas, nozes, sementes, cada coisa era colhida a seu tempo, à medida que o verão avançava. Muitas folhas, flores e ervas eram postas a secar e usadas depois para chá ou como condimentos, e os torrões de sal, formados na época em que as geleiras do nordeste chupavam a umidade do ar, fazendo recuar o mar, eles os transportavam à caverna, de modo a ter sua comida temperada no inverno.

Os caçadores estavam frequentemente saindo. As planícies próximas, ricas em relvas e ervas, com apenas uns poucos e isolados grupos de árvores atar racadas, abundavam em animais de pastagem e rebanhos dos mais diversos. Gigantescos veados percorriam as estepes com seus fantásticos chifres palmados que chegavam, nos adultos, a ter uma abertura de três metros, ao lado de enormes bisões com os seus chifres de igual dimensão. Os cavalos das estepes raramente iam tão ao sul, mas burros selvagens e onagros um intermediário de asno e cavalo) estavam sempre cruzando as planícies da península, enquanto seu alentado primo, o cavalo da floresta, vivia à parte, ou em pequenos grupos nos terrenos perto da caverna. Pelas estepes também passavam ocasionalmente pequenos bandos de antiopes saigas, os parentes que alguns caprinos montanheses tinham nas planícies.

Nos terrenos entre a pradaria e as encostas, habitavam os auroques, de cor marrom-escura ou negra, os ancestrais do nosso gado doméstico, de proporções mais delicadas. Os rinocerontes da floresta, parecidos com as espécies herbívoras surgidas posteriormente em terras tropicais, mas adaptados às florestas de clima frio, avançavam um pouco sobre o território de outra variedade de rinoceronte que preferia as pastagens próximas às encostas. Ambos, com seus chifres menores, pontiagudos e eretos, e uma cabeça alinhada horizontalmente, diferiam do rinoceronte lanoso que, junto com os mamutes de pêlo alto, eram visitantes só ocasionais. Esses tinham um comprido chifre inclinado para a frente e uma cabeça voltada para baixo, muito prática para espanar a neve das pastagens durante os invernos. Suas grossas camadas subcutãneas de gordura e um manto formado por uma cabeleira fulva, crescida por cima de uma penugem macia, eram adaptações que os obrigavam a estar confinados às geladas e secas estepes do norte ou às planícies de loesse.

Somente na presença de geleiras formava-se o loesse nas estepes. Uma baixa e constante pressão atmosférica nos vastos lençóis de gelo sugava a umidade do ar, não deixando cair grande quantidade de neve nas regiões periféricas das geleiras e gerando constantes correntezas de vento. A fina poeira calcária, dita loesse, provinha das rochas causticadas na orla das geleiras e era depositada por centenas de quilômetros ao redor. Uma curta primavera derretia a escassa neve e a camada superior do permafrost, o bas tante para rápidos enraizamentos e o brotar das ervas. As plantas cresciam e secavam depressa, produzindo milhares e milhares de hectares de feno para alimentar milhões de animais que se haviam adaptado ao gelado frio do continente.

As estepes da península só recebiam os animais de pêlo alto no final do outono. Os verões eram demasiadamente quentes e, no inverno, a neve densa demais para ser posta de lado. Muitos outros, chegando o frio, tomavam rumo norte até as fronteiras das estepes de loesse, mais frias, porém mais secas. A maioria deles, com a volta do verão, estava lá outra vez. Os animais com capacidade para sobreviver de galhos, cascas de árvores ou líquens de plantas permaneciam nas encostas com florestas que lhes ofereciam proteção, mas excluíam aqueles andando em grandes manadas.

Além dos cavalos e rinocerontes das florestas, porcos selvagens e grandes variedades de veados encontravam abrigo nas paisagens florestais: o veado vermelho, vivendo em pequenas manadas; sozinhos ou então em pequenos grupos, os arredios cervos com seus chifres de três pontas; os gamos, um pouco maiores e malhados de marrom e branco; e os alces, conhecidos mais tar de na América do Norte como moose.

Mais para cima na montanha, os carneiros selvagens de grandes chifres, agarrados aos penhascos e aos floramentos nas rochas, viviam do pastoreio alpestre. Mais para o alto ainda, o ib o cabrito-montês, e a camurça cabriolavam de precipício em precipício. Pássaros de vôos dardejantes punham música e cor na floresta e muitas vezes também comida. No entanto, tinham presença mais constante nos menus as carnudas ptárgmigas e os galináceos das estepes que podiam ser abatidos com pedradas, ou também os gansos e patos apanhados em redes, quando vinham pousar nos lagos pantanosos das montanhas. Aves de rapina flutuavam vagarosamente ao sabor dos ventos, vasculhando embaixo as planícies e florestas fartas e dadivosas.

Uma infinidade de animais de tamanho menor - caçados ou caçadores - pululava nas montanhas ou na planície perto da caverna, abastecendo o homem com carne e pele. Dentre os caçadores, contavam-se: visão, lontra, carcaju, arminho, marta, raposa, zibelina, texugos e os felinos de pequeno porte que deram origem à nossa imensa legião de gatos domésticos. E como animais caçados: esquilo, porco-espinho, lebre, coelho, toupeira, rato almiscarado, nútria, castor, zorrilho, rato, arganaz, lemingue, hamsters gigantes e uma multidão de outros que jamais receberam nomes e, atualmente, extintos.

Os carnívoros de dimensões mais avantajadas eram essenciais para enfraquecer as fileiras dos pequenos predadores. Dentre os caninos: os lobos e seus parentes chamados dholes que conseguiam ainda ser mais ferozes do que eles; e dentre os felinos: lince, lobo tigrado, tigres, leopardo e, com o dobro do tamanho de qualquer um desses, o leão da caverna. Os ursos onívoros, de pêlo marrom, também caçavam nas redondezas, mas seus gigantescos primos vegetarianos, os ursos da caverna, já não se encontravam mais lá. E para completar esse quadro da vida selvagem, a onipresente hiena da caverna.

A terra era de riqueza incrível, e o homem, ali, uma insignificante fração das múltiplas formas de vida que habitaram e morreram naquele éden perdido no tempo. Faltando-lhe as experiências inatas, sem nenhum predicado natural superior, exceto o seu bem desenvolvido cérebro, ele era o mais fraco dos caçadores. Embora com toda sua manifesta vulnerabilidade, desprovido de garras e presas, perdendo em velocidade e na força dos saltos, o caçador de duas pernas havia granjeado o respeito de seus competidores de quatro patas. Bastava seu cheiro para que um animal de muitíssimo mais força se desviasse do caminho, onde quer que os dois vivessem muito tempo em estreita proximidade. Os caçadores do clã, experientes e capazes, eram tão bons na defesa como no ataque e, quando a segurança ou a vida do grupo se achava ameaçada, ou quando desejavam um bom e quente agasalho, punham-se à espreita de seus incautos espreitadores.

Era um dia luminoso, quente, em pleno despontar do verão. As folhas brotadas nas árvores projetavam suas sombras, mas ainda sem a intensidade com que o fariam mais para diante da estação. Insetos zuniam, indolentes, em volta dos ossos sobrados de outras refeições. Uma brisa fresca vinda do mar trazia consigo um vestígio de vida, e a folhagem em movimento desenhava sombras na ensolarada encosta, frente à caverna.

Terminada a luta pela moradia, as obrigações do Mog-ur se tornaram muito poucas. Tudo que se exigia dele era que, vez por outra, celebrasse uma cerimônia de caça e alguns ritos para espantar os maus espíritos e, em caso de doenças ou acidentes, sua interferência espiritual para ajudar a medicina de Iza. Os caçadores haviam partido e, com eles, algumas mulheres. Por muitos dias estariam fora. As mulheres eram levadas para que preparassem as conservas das carnes dos animais abatidos. As caças, depois de já secas, ficavam mais fáceis de ser trazidas e estocadas para o inverno. O sol quente e o constante vento na planície rapidamente curtiam as carnes cortadas em tiras. A fumaça nas fogueiras de capim e esterco tinha mais o objetivo de afugentar as moscas varejeiras, que deixavam seus ovos na carne fresca, apodrecendo-a. E as mulheres, na volta, carregariam o grosso da carga.

Quase diariamente, depois que se instalaram na caverna, Creb passava um bom tempo com Ayla, tentando ensiná-la a língua deles. Às palavras bastante elementares que usavam - normalmente a parte mais difícil para as crianças dos clã aprenderem - ela pegou com facilidade, mas o intrincado sistema de gestos e sinais estava além de sua compreensão O feiticeiro tentava fazê-la entender o significado do gesto, mas Não havia uma base comum no método de comunicação dos dois, além de Não existir ninguém ali para explicar ou interpretar. O pobre homem dava tratos à bola, mas não conseguia encontrar um jeito de fazer-se entender. Ayla, igualmente, sentia-se frustrada.

Ela sabia que alguma coisa lhe estava escapando, e desejava com todas as suas forças poder expressar mais do que as suas poucas palavras lhe permitiam. Era evidente para ela que as pessoas no clã se faziam entender através de alguma coisa, diferente das meras palavras que usavam. Só que ela não entendia como era isso. O problema estava no fato de não ver os sinais feitos com as mãos. Parecia-lhe que eram movimentos ao acaso, não intencionais. Simplesmente não fora capaz de penetrar no conceito de uma linguagem gestual, e tal possibilidade jamais lhe poderia ocorrer; estava totalmente fora do âmbito de suas experiências anteriores.

Creb começava a formar uma vaga noção do problema, embora achasse difícil acreditar no que imaginava. Deve ser porque ela não sabe que os movimentos têm significado, dizia consigo.

- Ayla - chamou-a, com um aceno.

O problema deve estar aí, pensou, enquanto iam por um caminho próximo ao riacho. Ou é isto, ou então ela não é suficientemente inteligente para compreender uma linguagem. Mas, pelo que até então ele tinha podido observar, não era falta de inteligência, por mais diferente que Ayla pudesse parecer. No entanto, a menina entendia gestos simples e, com isto, Creb compreendeu que toda a questão se resumia em ampliar-lhe a gesticulação.

De tanto os membros do clã saírem para caçadas, pescarias e coletas de plantas, a relva e os arbustos foram ficando batidos, formando-se uma trilha ao longo da mata. Os dois foram dar num lugar por que Creb tinha especial predileção. Era um espaço aberto, perto de um carvalho com as raízes levantadas, formando um banco sombreado e alto, mais cômodo para Creb sentar-se do que o chão. Para começar a lição, ele apontou na direção de uma árvore com seu cajado.

- Carvalho - respondeu, prontamente, Ayla.

Creb aprovou com a cabeça e mostrou, em seguida, o riacho.

- Água - disse a menina.

Ele tornou a fazer que sim com a cabeça e logo depois fez um gesto ao mesmo tempo em que repetia a palavra dita por Ayla. Significava água correndo, ou seja, rio.

- Água? - disse Ayla, hesitante; espantada por ele ter indicado que sua palavra estava correta e tornado a fazer a pergunta anterior. Ela começava a sentir um frio no estômago. Já havia sido a mesma coisa antes, e percebia que havia qualquer coisa que ele desejava, mas Não o entendia.

Creb fez não com a cabeça. Muitas e muitas vezes, já havia feito o mesmo tipo de exercício. Tentou novamente, agora apontando para os pés.

-Pés - falou Ayla.

- Sim - disse ele, acenando com a cabeça. Tenho de arrumar um jeito que ela também veja e Não só ouça, pensou consigo. Levantou-se, pegou a mão de Ayla e deu com ela alguns passos, deixando seu cajado para trás. Ele fez um gesto e disse a palavra pé. Pés mexendo significa caminhar, era o que tentava transmitir-lhe.

Ela se esforçava para ouvir bem, achando que poderia haver qualquer coisa no som que não estivesse pegando direito.

- Pés - falou Ayla, trêmula, certa de que não era essa a resposta pretendida.

- Não! Não e não! Pés mexendo, igual a caminhar! - repetia, olhando diretamente para ela e exagerando nos gestos. Andava com Ayla, apontando para os pés, desesperançado de que algum dia ela viesse a aprender.

Ayla sentia que as lágrimas lhe brotavam nos olhos. Pés! Pés! Sabia que estava falando a palavra correta. Por que continuava ele abanando a cabeça, sempre dizendo não? Por que não pára de mexer com a mão na frente de meu rosto? O que estou fazendo de errado?

Creb tornou a caminhar com ela; apontava-lhe os pés, mexia com a mão e dizia a palavra. Ela parou e ficou observando-o. Ele fez o gesto novamente,exagerando-o tanto que quase já significava outra coisa e repetiu mais uma vez a palavra. Tinha se curvado para a frente, olhando-a em cheio no rosto e fazendo os gestos bem em frente aos olhos dela.

O que ele quer? O que espera que eu faça? Ayla queria entendê-lo. Sabia que ele estava tentando dizer-lhe qualquer coisa. Por que não pára de mexer a mão?, perguntou-se.

Então, um raiozinho de luz passou-lhe pela cabeça. A mão dele! Ele não pára com a mão.

Hesitante, levantou a sua.

- Sim! Sim! Isso mesmo! - disse ele, com um sim entusiasmado, quase gritado. - Faça o gesto! Mexa o pé - repetiu.

A compreensão começava a fazer-se e ela observava o movimento dele, tentando copiá-lo.

Creb está dizendo sim! É isto que ele quer! O gesto, ele quer que eu faça o mesmo movimento.

A menina tornou a fazer o gesto, repetindo a palavra sem entender o significado, mas pelo menos compreendendo que aquele era o gesto que ele queria que fizesse enquanto pronunciava a palavra. Depois, Creb virou-lhe o corpo e a conduziu de volta ao carvalho, mancando mais do que nunca. Apontando para os pés de Ayla, enquanto andavam, ia fazendo a combinação de gesto com palavra.

De repente, o estalo, e ela fez a conexão. Mexer o pé, igual a caminhar. É isto o que ele quer dizer. Não era só pés. O movimento da mão com a palavra pés significa caminhar. Sua mente havia disparado. Lembrava-se agora dever sempre as pessoas fazendo sinais com as mãos. Via na mente Iza e Creb, os dois de pé, olhando um para o outro, mexendo com as mãos e dizendo poucas palavras. Então eles estavam conversando? É assim que se falam? É por isso que dizem tão pouca coisa? Então eles conversam com as mãos?

Creb se sentou. Ayla de pé, pôs-se na frente dele, tentando acalmar-se.

- Pés - disse ela, apontado para seus próprios pés.

- Sim - fez ele, curioso, com a cabeça.

Ela se virou, caminhou e quando voltou a aproximar-se, fez o gesto e disse a palavra pés.

- Sim, sim! Isso mesmo! A idéia é essa - disse ele. Conseguiu pegar. Acho que entendeu!

Por um instante, Ayla parou quieta no lugar, depois virou-se e saiu correndo. Deu uma corrida pela clareira e voltou, ficando, ofegante, parada na frente dele, esperando.

- Correr - falou ele por gesto, enquanto ela o observava com atenção. Sua gesticulação era parecida com a anterior, mas não totalmente igual.

- Correr - disse ela imitando, hesitante, o gesto.

Ela tinha compreendido!

Creb vibrava. Por enquanto, os movimentos dela eram grosseiros, não chegando nem a ter a sutileza daqueles feitos pelas crianças do clã, a idéia da linguagem, porém, tinha sido entendida. Ele fez um sim entusiasmado e quase foi derrubado do assento, quando Ayla atirou-se sobre ele, abraçando-o em sua alegria por poder comunicar-se.

O velho feiticeiro passou os olhos ao redor, quase instintivamente. Os gestos de afeição não deviam ultrapassar os limites das fogueiras de cada um. Mas estavam sozinhos e ele lhe correspondeu com um afetuoso abraço, pela primeira vez sentindo o que era o prazer de uma terna afeição.

Todo um mundo novo de compreensão abriu-se para Ayla. A menina tinha um natural pendor para representar e um talento especial para imitações que punha inteiro nos arremedos que fazia dos movimentos de Creb. No entanto, Creb tinha gestos de maneta, adaptado às suas condições físicas. Foi Iza quem teve de ensinar os detalhes mais elaborados da linguagem. Ayla aprendia como um bebê que começa primeiro expressando as coisas de que tem necessidade, só que seu aprendizado se fazia muito mais rápido. Tanto tempo se sentira frustrada em suas tentativas para comunicar-se que estava resolvida a recuperar o mais depressa possível o tempo perdido.

Quando começou a compreender melhor, a vida do clã surgiu diante de seus olhos com outras cores. Extasiada, observava, atenta, as pessoas à sua volta comunicando-se, tentando pegar o que umas diziam às outras. No início, o clã se mostrou complacente com aquela intrusão visual e tratava-a com a um bebê. Mas, com o tempo, os olhares de desaprovação lançados em sua direção deixavam bem claro que comportamento tão mal-educado não mais seria tolerado dali por diante. Ficar olhando era tão descortês quanto o ato de escutar às escondidas. A boa educação mandava que se desviassem os olhos, quando pessoas conversavam em particular. O problema estourou numa certa tarde, quando o verão já ia pela metade.

O clã se achava no interior da caverna, com as famílias reunidas em volta de suas fogueiras, depois da última refeição do dia. O sol havia mergulhado por trás do horizonte e a pálida luz de seus últimos raios delineava os contornos das copas de folhagens escuras, farfalhando com a suave brisa da noite. A fogueira à entrada da caverna, acesa para espantar os maus espíritos e animais rapaces, esquentava a atmosfera, enviando ao ar volutas de fumaça e ondas de calor que faziam as sombras escuras das árvores e arbustos ondularem ao ritimo silencioso das chamas bruxuleantes. Luzes e sombras dançavam nas paredes rochosas da caverna.

Ayla, sentada dentro do setor pertencente a Creb, circundado por pedras, não tirava os olhos da fogueira de Brun. Broud, chateado, descontava em sua mãe e Oga, fazendo valer suas prerrogativas de homem adulto. O dia tinha começado mal para ele e terminado pior.

As longas horas que passara na trilha à espreita de uma raposa foram desperdiçadas quando perdeu o tiro e o animal, cuja pele já havia solenemente prometido a Oga, fundira-se com a mata, prevenido com o zunir da funda. O olhar de compreensão de Oga só fez ferir mais seu orgulho já ferido. Ele é quem deveria perdoar as faltas dela e não o contrário.

Ebra, exasperada com as constantes interrupções, fez um leve sinal para Brun. Estavam todas cansadas de um dia trabalhoso e querendo logo terminar com os afazeres. O chefe via o que se passava, perfeitamente consciente daquelas exigências desmedidas. Era um direito de Broud, mas Brun sentia que ele poderia mostrar-se mais sensível. Não havia necessidade de botar as mulheres correndo pelas menores coisas, quando elas já estavam tão ocupadas e cansadas.

- Broud, deixe as mulheres em paz. Elas já têm muito o que fazer - gesticulou Brun, ralhando em silêncio.

A censura foi a gota d”água, sobretudo vinda de Brun e na frente de Oga. O rapaz saiu pisando duro e foi curtir sua raiva na outra extremidade da área pertencente a Brun, perto das pedras que faziam limite com a fogueira de Creb. Foi então que deu com Ayla encarando-o diretamente. O que impor tava não era o fato de Ayla - ainda que não tenha percebido direito - ter presenciado aquela sutil briga doméstica, passada na fogueira do vizinho, mas sim porque o vira sendo censurado, como se faz com uma criança. Foi um golpe mortal no seu já frágil ego. Puxa, não tem nem a delicadeza de desviar os olhos, pensou Broud. Bem, ela não é a única aqui que pode ignorar simples atos de boas maneiras. Todas as frustrações do dia explodiram e, ostensivamente, afrontando as convenções, dirigiu um olhar carregado de ódio na direção da garota que detestava.

Creb tinha consciência das disputas sem importância que ocorriam na fogueira de Brun, bem como de tudo que acontecia no clã. Quase sempre, como um barulho de fundo, as coisas iam filtrando-se a seu conhecimento, mas, quando se tratava de Ayla, ele era todo atenção. Sabia que para Broud ter conseguido vencer o condicionamento de toda uma vida e chegar a olhar para o interior da fogueira de outro homem, isso só poderia ser um ato deliberado de sua parte e carregado de uma intenção extremamente maldosa. A animosidade de Broud em relação a Ayla é muito grande, pensou o feiticeiro. Para o próprio bem da menina, já é tempo de ensiná-la algumas regras de bom comportamento.

- Ayla! - chamou, seco. A garota se sobressaltou com o tom da voz. - Não olhe para as outras pessoas - gesticulou.

Ayla estava espantada.

- Por quê?

- Não olhe. Não encare. As pessoas não gostam - tentou explicar, certo de que Broud os observava com o canto dos olhos, não se dando mesmo o trabalho de esconder o prazer que sentia por estar presenciando Ayla levar um carão. Afinal, ela é muito mimada pelo Mog-ur, pensou Broud. Se vivesse conosco, eu logo iria ensiná-la como uma mulher tem de se comportar.

- Estou olhando para aprender a falar - disse Ayla por meio de gestos, ainda surpresa e um tanto magoada.

Creb sabia muito bem por que Ayla estava espiando, mas ela precisava aprender. Talvez isso diminuísse o ódio de Broud, vendo que estava sendo repreendida por causa dele.

- Ayla, não encare - disse Creb, com expressão severa. - Responder aos homens é mau.

Olhar a fogueira dos outros é também mau. Mau! Entendeu?

Ele tinha sido ríspido. Queria falar o que tinha a dizer. Percebeu quando Brun chamou Broud e este se levantou, visivelmente em melhor estado de espírito.

Ayla sentia-se arrasada. Jamais Creb havia sido ríspido com ela. Achava justamente o contrário, que ele estava contente por vê-la querendo aprender a língua deles, e o velho agora vinha dizer-lhe que ela era má porque estava espiando as pessoas e com vontade de aprender mais. Confusa, magoada, as lágrimas encheram seus olhos, escorrendo-lhe pelas faces.

- Iza! - chamou Creb, preocupado. - Venha cá! Há alguma coisa errada com os olhos de Ayla.

As pessoas da raça dos clãs não choravam, só se lhes caísse algo dentro dos olhos, ou quando estavam resfriadas ou sofrendo de alguma doença no órgão da visão. Creb nunca vira lágrimas de tristeza. Iza veio correndo.

- Olhe isto! Os olhos dela estão cheios de água. É capaz de ter caído alguma faísca neles. É melhor dar uma olhada - insistiu ele.

Iza também estava preocupada. Levantando as pálpebras de Ayla, olhou de perto dentro dos olhos.

- Estão doendo? - perguntou. Ela não conseguia ver qualquer sinal de inflamação. Não parecia haver nada de errado com os olhos da menina, fora o fato de estarem vertendo água.

- Não. Não estão doendo - disse Ayla, choramingando. Não estava entendendo a preocupação com seus olhos, mas isso serviu para perceber que, mesmo Creb dizendo achá-la má, ambos gostavam dela. - Por que Creb está furioso, Iza? - perguntou, soluçando.

- Você precisa aprender - explicou Iza, séria, olhando para a menina - que não é educado ficar encarando. Não é educado olhar para a fogueira de outro homem e ver o que as pessoas estão dizendo. Ayla precisa aprender que, quando um homem fala, a mulher abaixa os olhos. Assim. - Ela mostrou como. - Quando um homem fala, a mulher não pergunta. Só as criancinhas fi cam olhando. Os bebês. Ayla é grande e as pessoas ficam zangadas com ela.

- Creb está zangado? Não gosta de mim? - perguntou, derretendo-se outra vez em lágrimas.

Iza se via ainda desorientada com aquele derramar de água dos olhos de Ayla, mas percebeu a confusão em que a garota se achava.

- Creb gosta de Ayla e Iza também. Creb ensina Ayla. Ele quer que Ayla aprenda. Ayla não tem de aprender só a falar. Ela precisa também aprender as maneiras do clã - disse a mulher, tomando Ayla nos braços e segurando-a com brandura, enquanto a menina chorava suas mágoas. Depois, enxugou-lhe os olhos inchados com uma pele macia e olhou dentro deles outra vez para se certificar e se tranquilizar.

- O que há com os olhos dela? - perguntou Creb. - Ela está doente?

- Ela está achando que você não gosta dela e que você está furioso. Deve ter ficado doente por isso. Talvez olhos claros como os dela sejam fracos. Não vi nada de errado com eles e ela diz que não estão doendo. Acho que a tristeza faz os seus olhos se encherem de água, Creb.

- Tristeza? Ficou tão triste assim porque pensou que eu não gostasse dela? Por causa disso ficou doente? Foi o que botou seus olhos cheios de água?

Creb estava estarrecido. Mal podia acreditar e se via atravessado por toda uma série de pensamentos desencontrados. Então Ayla estava adoentada? Mas parecia com saúde, e pessoa alguma já havia ficado doente por achar que ele não gostasse dela. Nunca ninguém, fora Iza, havia gostado dele daquela maneira. Ao contrário, todo mundo tinha medo dele. Temor e respeito foi o que sempre havia despertado e jamais uma pessoa tinha desejado que ele gostasse tanto dela, a ponto de ficar com água nos olhos. Talvez Iza tenha razão. Talvez os olhos dela sejam fracos, mas a visão é ótima, disso ele tinha certeza. De qualquer jeito, tenho de fazer com que ela entenda que é para seu próprio bem que tem de aprender a comportar-se direito. Se ela não aprender as maneiras do clã, Brun irá expulsá-la. É uma coisa que ele ainda tem direito. Mas isso não significa que eu não goste dela. Pelo contrário, admitiu consigo. Por mais estranha que seja, gosto muito dela.

Ayla, nervosa, veio caminhando na direção dele, olhando, sem jeito, para os pés. Ficou parada na sua frente, depois levantou os olhos, tristes, ainda úmidos.

- Nunca mais vou encarar as pessoas - disse ela, gesticulando. - Creb não está zangado?

- Não. Não estou zangado, Ayla. Mas agora você faz parte do clã, você pertence a mim. Você tem de aprender a língua, mas também precisa aprender as maneiras da gente. Entende?

- Eu pertenço a Creb? Creb gosta de mim?

- Sim, eu gosto de Ayla.

A menina deu um largo sorriso e abraçou-o; depois, meteu-se no colo dele, aconchegando-se a seu corpo disforme.

Creb sempre se interessou por crianças. Na função de mog-ur, raramente revelava o totem de algum garoto que a mãe logo não o achasse muito apropriado ao filho. O clã atribuía este dom a seus poderes mágicos, mas, na verdade, isto provinha de seu poder de observação e de sua grande perspicácia. Ele tomava conhecimento da criança desde o seu nascimento e estava sempre vendo tanto homens como mulheres igualmente ninando e consolando seus bebês, mas ele próprio jamais conheceu a alegria de embalar uma criança nos braços.

A menininha cansada de tantas emoções caiu no sono. Sentia-se segura com o terrível feiticeiro. Ele veio substituir no seu coração a figura de um homem de quem já não se lembrava mais, exceto em algum canto recôndito do inconsciente. Ao olhar a fisionomia tranquila e confiante daquela estranha menina em seu colo, Creb sentiu por ela um profundo amor brotando-lhe na alma. Não poderia amá-la mais se ela fosse dele de verdade.

- Iza - chamou, muito suavemente.

A mulher veio tomá-la do colo de Creb, não antes de ele tornar a abraçá-la.

- A doença fez com que ficasse cansada - disse ele, depois de Iza ter deitado Ayla. - Faça com que ela descanse amanhã e é melhor que você torne a examinar-lhe os olhos pela manhã.

- Sim - falou Iza, com a cabeça. Adorava aquele seu germano aleijado. Conhecia melhor do que ninguém a alma delicada que existia por trás daquele semblante sombrio. Sentia-se feliz por ver que ele tinha encontrado alguém para amar, alguém que também gostava dele, o que só fazia aumentar seu afeto por Ayla.

Desde os tempos de criança que iza não se lembrava de ter sido tão feliz. A única coisa a empanar a alegria era o medo de que a criança que carregava na barriga nascesse menino. Se fosse homem, teria de ser criado por um caçador. Era germana de Brun, a mãe deles fora companheira do chefe anterior. Se algo acontecesse a Broud ou se a companheira dele Não tivesse filho, a liderança do clã passaria para o filho dela, Iza, se este nascesse homem. Brun se veria forçado a dar tanto ela como o bebê para um dos caçadores, ou do contrário ele próprio teria de assumi-la. Todos os dias pedia a seu totem para que nascesse uma menina. Contudo, Não conseguia deixar de preocupar-se.

À medida que o verão avançava, graças à serena paciência de Creb e à grande força de vontade de Ayla, esta começou a entender Não só a língua, mas também os costumes da gente que a adotara. Aprender a desviar os olhos - o único jeito possível de as pessoas desfrutarem de alguma privacidade - foi apenas a primeira de muitas outras difíceis lições que teve de reter na cabeça. Mas dificil foi reprimir a curiosidade natural e seus ímpetos cheios de vida para se pôr de acordo com o comportamento sempre dócil das mulheres.

Creb e Iza também estavam aprendendo. Os dois descobriram que, quando Ayla fazia uma certa careta, arreganhando os lábios e mostrando os dentes, em geral seguida de um peculiar som aspirado, isso significava que ela estava feliz e alegre. Mas eles nunca conseguiram dominar seu nervosismo diante daquela estranha doença que fazia os olhos dela se encherem de água, nos momentos de tristeza. Iza acabou concluindo que se tratava de uma deficiência própria de olhos claros e tinha curiosidade de saber se esse era um traço normal nos Outros, ou se só os olhos de Ayla aguavam. Por precaução, lavava-lhe os olhos com um líquido claro, extraído de uma planta branco-azulada que crescia nos lugares sombrios da mata. No pé, a planta parecia morta; alimentava-se de madeiras podres e de outras matérias orgânicas, já que lhe faltava clorofila, e sua superfície cerosa ficava logo preta quando tocada. Mas Iza Não conhecia melhor remédio para doenças e inflamação nos olhos do que o líquido frio que escorria dos talos quebrados desta planta e o estava sempre aplicando em Ayla, todas as vezes que ela chorava.

Ayla, entretanto, Não chorava muito. Já que as lágrimas imediatamente despertavam a atenção dos outros, a menina fazia a maior força para controlar-se. Não só porque era uma coisa que perturbava duas pessoas de quem gostava muito, como também porque isso a diferenciava e ela desejava estar bem ajustada e ver-se aceita pelo clã. As pessoas, por sua vez, estavam aprendendo a aceitá-la, mas ainda continuavam olhando desconfiadas aquelas suas peculiaridades.

Cada vez mais, Ayla ia conhecendo o clã e aprendendo a tomá-lo tal como ele era. Embora os homens tivessem curiosidade a seu respeito, a dignidade não lhes permitia demonstrar muito interesse por uma menina, por mais fora do comum que ela fosse. Dessa forma, Ayla os ignorava tanto quanto eles fimgiam Não percebê-la. Brun era quem demonstrava mais interesse, mas o chefe a amedrontava. Um homem sério demais e Não permitia maiores familiaridades. Muito diferente de Creb. Ela não imaginava que, para o resto do clã, o Mog-ur parecesse uma figura muito mais distante e intocável do que Brun e, por seu lado, todos se achavam espantados com a intimidade que se criara entre a estranhíssima menina e o terrível feiticeiro. De quem ela particularmente desgostava era do rapaz que vivia na fogueira de Brun. Broud sempre lhe parecia mesquinho, quando a olhava.

Foi com as mulheres que se familiarizou primeiro. Passava agora mais tempo na companhia delas. Exceto quando estava na fogueira de Creb ou quando ia com Iza colher plantas medicinais, as duas em geral ficavam quase todo o tempo junto da ala feminina do clã. A princípio, Ayla se limitava a ficar rondando por perto de Iza, apenas observando os trabalhos: pelar animais, botar couros para curtir, tecer cestas e redes, esticar as tiras que cortavam em espiral numa peça única de couro, esculpir vasilhames de madeira, colher alimentos, preparar comidas, fazer conservas com carnes e vegetais para o inverno e ainda atender os desejos de qualquer homem que ordenasse um serviço. Mas depois que notaram sua vontade de aprender, Não só a ajudaram na língua, como também começaram a ensinar-lhe suas habilidades.

Ayla Não era tão forte como as mulheres e as crianças do clã - sua com pleição mais delicada Não comportava o musculoso arcabouço ósseo da raça clãnica - em compensação, era muito jeitosa e flexível. Trabalhos pesados lhe eram difíceis, mas, para sua idade, tecia muito bem cestas e cortava com mão firme as tiras de couro. Em pouco tempo, fez boa amizade com Ika que, com seu temperamento afetuoso, facilmente se fazia gostar. Ika, ao ver o interesse de Ayla por seu bebê, deixava que a menina carregasse Borg e desse passeios com ele por perto. Já Ovra mostrava-se reservada, mas tanto ela como Yka eram especialmente gentis com Ayla. A dor dessas duas - uma de mãe e outra de germana - pela perda do rapaz morto no desabamento da caverna levou-as a simpatizar com a sorte da criança que perdera toda sua família. Mas, companheiros do sexo masculino, Ayla Não os tinha.

Aquele primeiro despontar de amizade surgido entre ela e Oga havia arrefecido depois da cerimônia da caverna. Oga viu-se dividida entre Ayla e Broud. A menina recém-chegada, apesar de mais moça, poderia ter sido uma boa companhia para Oga, além de que as duas tinham a uni-las um destino parecido, mas os sentimentos de Broud em relação a Ayla Não deixavam margem a dúvidas. Assim, Oga, relutante, preferiu evitar Ayla em deferência ao homem do qual esperava tornar-se companheira. Fora os momentos em que trabalhavam juntas, raramente uma procurava a outra e, depois de Ayla ver repilidas todas as suas tentativas de aproximação, preferiu afastar-se sem fazer outros esforços neste sentido.

Ayla não gostava de brincar com Vom. Mesmo sendo um ano mais moço do que ela, a idéia de Vorn de brincadeira envolvia sempre uma quantidade de ordens para lhe dar, imitando o comportamento dos homens que Ayla ainda achava difícil de aceitar. Se tentasse rebelar-se, ela se via alvo da raiva tanto dos homens como das mulheres e, especialmente, da de Aga, mãe de Vorn. A mãe achava-se orgulhosa de ver o filho aprendendo a comportar-se como um homem e, tanto ela como o resto do clã, não ignoravam a animosidade que Broud sentia por Ayla. Algum dia, Broud seria o chefe, e Vorn, se continuasse sempre nas boas graças dele, poderia ser escolhido para o posto de segundo em comando. Àga Não perdia oportunidade para fazer seu filho crescer em importância, a ponto de implicar com a menina, quando visse Broud por perto. Também se visse ayla e Vom juntos, com Broud nas proximidades, imediatamente chamava o filho.

A capacidade de Ayla comunicar-se foi rapidamente melhorando, sobretudo depois da ajuda das mulheres. No entanto, foi por observação própria que aprendeu a exprimir determinada idéia. Sem dar tanto na vista, ela ainda continuava observando as pessoas. Era algo que Não conseguia evitar.

Certa tarde, vendo Ika brincando com Borg, percebeu a mãe fazendo um gesto para o filho, repetidas vezes. Quando os movimentos das mãos do bebê casualmente pareceram imitá-la, ela chamou a atenção das mulheres e se pôs a gabar o filho. Algum tempo depois, Ayla viu Vom correr na direção de Aga e cumprimentá-la com o mesmo gesto. E também Obra fazia o movimento ao começar uma conversa com Ika.

Naquela noite, Ayla timidamente se aproximou de Iza e lhe fez o gesto, quando esta olhou em sua direção. Os olhos de Iza arregalaram-se.

- Creb - disse ela. - Quando você ensinou Ayla a me chamar de mãe?

- Não fui eu quem ensinou, Iza - respondeu o feiticeiro. - Ela deve ter aprendido sozinha.

Iza virou-se para a menina.

- Você aprendeu isto por você mesma?

- Sim, mãe - respondeu Ayla, repetindo o gesto. Ela Não tinha muita certeza do significado daquele movimento de mão, mas fazia uma vaga idéia. Sabia que as crianças gesticulavam daquela maneira para as mulheres que gostavam delas. Apesar de a mente ter bloqueado a memória de sua mãe, seu coração Não havia esquecido. Iza veio substituir a mulher que já havia amado, mas que perdera.

E Iza, que passara tantos anos sem filhos, ficou emocionada.

- Minha filha - disse ela, abraçando Ayla, num de seus raros momentos de espontaneidade afetiva. - Minha filhinha. Sabia que ela era minha filha desde o primeiro momento, Creb. Eu Não disse? Ela foi dada a mim. Os espíritos destinaram Ayla para ser minha, tenho toda certeza disso.

Creb Não discutiu, talvez ela estivesse certa.

Depois daquela noite, os pesadelos de Ayla diminuíram, embora, vez por outra, ainda fosse acometida por algum. Dois sonhos estavam sempre voltando. Um era com ela escondida numa gruta muito pequena, tentando pôr-se a salvo de uma enorme e afiada garra. O outro, mais vago e perturbador, era a sensação da terra tremendo e um fantástico estrondo seguido de dolorosíssimo sentimento de perda. Ela acordava, gritando na sua estranha língua - cada vez menos usada - e se agarrando a Iza. Logo que chegou, sem perceber, deixava-se levar por sua língua, mas, à medida que foi aprendendo a se expressar à maneira do clã, só em sonhos lhe acontecia isto. Depois de algum tempo, nem mesmo nos sonhos, mas nunca acordava de seus pesadelos sem um profundo sentimento de desolação.

O curto e quente verão passou e agora as ligeiras geadas das manhãs de outono faziam o ar frio e picante, com o verdume da floresta já salpicado por manchas escarlates e cor de âmbar. Algumas neves prematuras, carregadas depois por fortes pancadas de chuva que desnudavam os galhos de seus mantos coloridos, prenunciavam o intenso frio que estava por chegar. Mais tarde no dia, com apenas algumas folhas mais tenazes ainda coladas aos ramos nus das árvore se arbustos, um breve interlúdio de sol brilhante trazia a última lembrança do calor de verão, antes que as ventanias impiedosas e o frio causticante viessem encerrar as actividades ao ar livre.

O clã estava inteiro do lado de fora, gozando o sol. No largo terraço em frente da caverna, as mulheres limpavam cereais trazidos da planície. Um vento fresco jogava para cima quantidade de folhas secas, dando uma imagem de vida ao que ficara do auge do verão. Tirando vantagem da atmosfera ventosa, elas atiravam com uma peneira os grãos para o alto, deixando que o vento carregasse as palhas, antes de tornar a apanhá-los de volta na peneira.

Iza, postada por trás de ayla, segurava as mãos da menina na peneira, mostrando-lhe como atirar os grãos para cima, sem jogá-los fora junto com as cascas e fiapos de palhas.

Ayla percebia em suas costas o volume duro e grande da barriga de Iza e lhe sentiu a forte contração que a obrigou de repente a parar. Pouco depois, Iza afastou-se e entrou na caverna, seguida por Ebra e Ika. A menina, apreensiva, lançou um olhar ao grupo de homens que havia cessado de conversar para acompanhar com os olhos as mulheres saindo e esperou que eles fossem ralhar com as três por largar o serviço, quando ainda havia muito o que fazer. Mas, inexplicavelmente, os homens se mostraram tolerantes. Ayla resolveu arriscar e foi atrás das outras.

Na caverna, Iza estava descansando na sua pele de dormir, ladeada por Ebra e Ika. Por que está Iza deitada no meio do dia?, perguntava-se Ayla. Será que está doente? Iza viu sua expressão preocupada e lhe fez um sinal, tranquilizando-a, mas que não serviu para diminuir muito a preocupação da menina. E mais preocupada ainda ficou, quando viu o rosto tenso de Iza na contração seguinte.

Ebra e Ika conversavam com Iza sobre coisas banais: a comida que já ti nham armazenado, a mudança de tempo, enfim, o assunto de todos os dias.

Mas Ayla já sabia bastante da língua para ler em suas expressões e posturas a ansiedade que lhes ia por dentro. Alguma coisa estava errada, ela tinha toda a certeza disso. Resolveu que nada a faria sair dali, enquanto não descobrisse o que se passava e se sentou aos pés de Iza, esperando.

Ao entardecer, chegou Ika com Borg, carregado em sua cintura, e Aga com a filha Ona. As duas mulheres sentaram-se fazendo uma visita e trazendo sua solidariedade, enquanto davam de mamar aos filhos. Ovra e Oga, quando vieram juntar-se ao grupo em torno de Iza, estavam preocupadas, mas cheias de curiosidade. Embora a filha de Ika ainda não tivesse companheiro, ela já era moça e sabia que estava apta para botar uma criança no mundo. Oga dentro em breve também seria mulher e estavam as duas interessadíssimas no desenrolar dos acontecimentos.

Quando Vorn viu Aba ir sentar-se junto da filha, quis saber o que levava todas as mulheres a se juntarem na fogueira do Mog-ur. Ficou rondando por perto, até que veio aboletar-se no colo de Aga, ao lado de sua germana, para ver o que estava acontecendo. Mas Ona ainda mamava, e Aba pegou-o e o botou no colo. Ele nada viu ali de grande interesse, apenas uma curandeira descansando, por isso levantou-se e foi embora outra vez.

Algum tempo depois, as mulheres também saíram para começar a preparar a refeição da noite. Ika permaneceu com Iza, enquanto Ebra e Oga foram cozinhar, mas não deixando de lançar, de vez em quando, um olhar discreto na direção delas. Ebra, primeiro, serviu Creb e Brun; depois, trouxe comida para Ika, Iza e Ayla. Ovra cozinhou para o companheiro de sua mãe, mas ela e Oga logo saíram, quando Grod veio juntar-se a Creb e Brun na fogueira deste. Elas Não queriam perder nada e se puseram sentadas ao lado de Ayla, que não arredara de seu lugar.

Iza apenas tomou um pouco de chá e Ayla também estava sem fome. Só beliscou a comida. Com o nó que sentia na boca do estômago, Não tinha a menor vontade de comer. O que está acontecendo com Iza? Por que não se levantou para fazer a comida de Creb? Por que o feiticeiro não está pedindo aos espíritos para que ela fique boa? Por que ele está com todos os homens na fogueira de Brun?

As contrações de Iza estavam cada vez mais dolorosas. De momento emmomento, ela parava para tomar fôlego, com a respiração curta, fazendo força para expelir, enquanto apertava as mãos das duas mulheres a seu lado. A noite avançava, com o clã inteiro de vigília. Os homens amontoavam-se ao redor da fogueira de Brun, aparentemente envolvidos em alguma conversa. Entretanto, vez por outra, um olhar disfarçado traía-lhes o verdadeiro interesse. As mulheres estavam sempre indo ver Iza, averiguando como ela ia progredindo. Às vezes,lá permaneciam por uns momentos e depois saíam. Todos esperavam, unidos em solidariedade e em ansiosa expectativa, enquanto a curandeira elaborava seu trabalho de parto.

De repente, já muito depois de ter escurecido, começou um rebuliço, dando partida a uma série de intensas actividades. Ebra estendeu um pano de couro, enquanto Ika ajudava Iza a se pôr agachada. Ela, ofegante, comprimia com força o corpo para baixo e gritava de dor. Ayla tremia, sentada entre Ovra e Oga, que, por solidariedade a Iza, também grunhia e fazia os mesmos movimentos. Iza respirou fundo e, com um prolongado esforço, acompanhado de ranger de dentes e fortes contrações musculares, veio para fora a coroa da cabeça, num jorrar de água. Num outro tremendo esforço, desprendeu-se a cabeça do bebê. O resto foi mais simples para Iza, que pariu com facilidade um corpinho contorcido e úmido de uma minúscula criança.

Com um último esforço, expeliu um bloco de tecido sangrento. Iza, então, voltou a deitar-se inteiramente exausta, enquanto Ebra pegava o bebê e lhe extraía com o dedo uma secreção mucosa da boca. Depois, botou-o sobre o estômago de Iza e bateu com força na sola de seus pés, quando se ouviu um berro alto anunciando o primeiro sopro de vida do bebê de Iza. Ebra amarrou uma tira no cordão umbilical e Cortou com os dentes a parte que ainda estava ligada à placenta. Em seguida, suspendeu o bebê para que Iza o visse. Acabado o serviço, ela se levantou e se dirigiu à sua fogueira para dar a notícia ao com panheiro e contar-lhe o sexo da criança. Sentou-se à frente de Brun com a cabeça abaixada, e depois, olhou para cima ao sentir uma pancadinha no seu ombro.

 

- Lamento informar - disse Ebra, fazendo o habitual gesto de pesar -

- que Iza teve uma menina.

A notícia, no entanto, não foi recebida com tristeza. Brun sentia-se aliviado, embora jamais fosse confessá-lo. O arranjo de Creb, sustentando a germana, especialmente depois da inclusão de Ayla no clã vinha funcionando às maravilhas, e ele, como chefe, não se mostrava propício a fazer qualquer alteração. O trabalho de educar a garota que o Mog-ur vinha realizando era dos mais louváveis, muito melhor do que ele havia esperado. Ayla estava aprendendo a comunicar-Se na língua dos clãs e também a se comportar de acordo com os costumes deles. Quanto a Creb, ele não só se sentia aliviado, como extremamente feliz. Na sua idade avançada, pela primeira vez em toda a vida, estava conhecendo os prazeres de possuir uma família terna e amorosa. E, agora, a filha de Iza vinha garantir a possibilidade de eles permanecerem todos juntos.

Pela primeira vez também, desde que se mudaram para a nova caverna, Iza podia dar um longo suspiro de alívio. Estava feliz por ter tido um parto tão bom, sendo uma mulher de certa idade. Já atendera muitas mulheres que tiveram muitíssimo mais dificuldade do que ela. Houve diversas que quase morreram, algumas de fato morreram, e uns tantos bebês também. Parecia- lhe que as cabeças das crianças eram muito grandes em comparação com as estreitas passagens que tinham que vencer por ocasião do nascimento. Sua preocupação com o parto havia sido quase tão grande como a que tinha com o sexo da criança. Para a gente dos clãs, uma tal insegurança em relação ao futuro era uma sensação insuportável.

Iza reclinou-se na sua pele de dormir, relaxando. Ika enrolou a criança num macio cueiro de pele de coelho e a colocou nos braços da mãe. Ayla até aquele instante não se havia arredado do lugar. Ansiosa e cheia de curiosidade, olhava para Iza que, ao percebê-la, fez-lhe um aceno.

- Venha cá, Ayla. Você quer ver o bebê?

Ayla se aproximou acanhada.

- Sim - disse com a cabeça.

Iza afastou a coberta para que ela pudesse ver.

A minúscula réplica de Iza tinha a cabeça coberta por uma penugem marrom e a protuberância óssea atrás ficava mais visível sem a mata densa de cabelos que iria ainda formar-se. De certa maneira, sua cabeça era mais redonda do que a dos adultos, mas, mesmo assim, ainda bastante comprida, e a testa, como os ossos sobre as sobrancelhas, também não se achavam plenamente desenvolvidos, parecendo escorregar direto para trás. Ayla tocou nas suas bochechas fofas, e o bebê instintivamente se virou na direção do dedo dela, fazendo ruídos como se estivesse mamando.

- Ela é linda - gesticulou Ayla, maravilhada com o milagre que acabara de presenciar. - Ela está tentando falar, Iza? - perguntou, quando o bebê agitou no ar suas mãozinhas fechadas.

- Ainda não. Mas logo vai querer falar e você tem de ajudar a ensinar - respondeu iza.

- Ah, vou sim. Quero ensiná-la a falar do mesmo jeito que você e Creb me ensinaram.

- Sei que vai querer, Ayla - disse Iza, tornando a cobrir o bebê.

Ayla ficou ali vigiando, enquanto Iza descansava. Ebra tinha embrulhado a placenta no pano de couro que estendera embaixo de Iza, na hora do parto, e o havia escondido num canto difícil de ser achado. Ficaria lá até que Iza pudesse ir enterrá-lo em algum lugar onde só ela saberia. Caso a criança ti vesse nascido morta, seria enterrada ao mesmo tempo e ninguém poderia mencionar o fato e tampouco a mãe dar grandes mostras de pesar; apenas alguns gestos discretos de simpatia e gentileza seriam externados.

Se tivesse nascido com vida, mas defeituosa, ou se o chefe do clã por qualquer razão, achasse que a criança era inaceitável, a tarefa da mãe era ainda mais pesada. Estaria na obrigação de levar o filho para algum lugar e ali enterrá-lo, ou então deixá-lo à sorte da natureza, o que muito provavelmente significava ser devorado por animais. Era muito difícil que uma criança defeituosa fosse deixada viver. Se mulher, quase nunca. Homem, especialmente se fosse primogênito, e se o companheiro da mãe desejasse a criança, esta poderia, se gundo o julgamento do chefe, permanecer com a mãe durante os primeiros sete dias de vida, para provar sua capacidade de sobreviver. Qualquer criança que vivesse depois do sétimo dia do nascimento, pela tradição (na prática funcionando como lei), tinha o direito de receber um nome e de ser aceita no clã.

A vida de Creb havia ficado pendente desses seus sete primeiros dias de existência. Sua mãe quase não lhe sobreviveu ao nascimento. O companheiro dela era também o chefe, e a decisão de deixar ou não viver o menino era inteiramente dele. A decisão, no entanto, foi tomada mais em benefício da mulher do que por respeito à vida do bebê, cuja cabeça deformada e membros paralíticos logo evidenciaram as lesões sofridas durante um parto extremamente difícil. A mãe estava muito fraca, perdera grande quantidade de sangue, ficando entre a vida e a morte. O companheiro Não podia exigir que ela se livrasse da criança, Não tinha forças para fazer isso. Em casos assim, ou no da morte da mãe, a tarefa passava à curandeira só que a mãe de Creb era a curandeira do clã. Assim, não houve como seNão deixá-lo na sua companhia, mas ninguém esperava que ele sobrevivesse.

A mãe tinha pouco leite e custava a sair. Quando, a despeito de tudo, o menino se agarrou à vida, uma mulher que amamentava se apiedou do bebê e deu-lhe o primeiro alimento que o susteve para a vida. E foi nestas precárias circunstâncias que começou a vida do Mog-ur, o mais venerado dentre todos os homens venerados e o mais poderoso e hábil feiticeiro de todos os clãs.

E agora ali estava ele, junto do irmão, indo os dois ao encontro de Iza. A um sinal imperioso de Brun, Ayla imediatamente se levantou, afastando-se, mas ficou observando a distância com o rabo dos olhos. Iza se sentou, desenrolou o bebê e o suspendeu na direção de Brun, tendo o cuidado de Não olhar para nenhum deles. Ambos examinaram a criança que, ao sair do calor da mãe e ser exposta ao frio da caverna, pôs-se aos berros. Tanto um como o outro tiveram o mesmo cuidado de não olhar para Iza.

- A criança é normal - anunciou Brun, com um gesto solene. - Ela pode ficar com a mãe Se viver até o dia de receber o nome, será aceita.

Na verdade, Iza Não tinha o menor receio de que Brun fosse rejeitar sua filha, mas mesmo assim não deixou de sentir alívio ao ouvir a declaração for mal do chefe. Restava-lhe apenas uma última pontinha de preocupação Só esperava que a filha Não ficasse infeliz pelo fato de a mãe não ter companheiro. Afinal, conjeturava Iza, ele ainda vivia, quando a feiticeira teve certeza de que estava esperando... mas Creb era como um companheiro, pelo menos garantia o sustento delas. Com isto, Iza afastou o pensamento da cabeça.

Nos próximos sete dias, Iza ficaria isolada, não podendo ultrapassar os limites da fogueira de Creb, a Não ser para fazer suas necessidades. Oficialmente, a existência do bebê de Iza não seria reconhecida enquanto ela estivesse em isolamento, exceção feita para aqueles que compartilhavam com ela da fogueira. Mas as mulheres do clã traziam-lhes comida, para que Iza pudesse repousar. Visitinhas rápidas e olhadelas descompromissadas ao bebê, isso podia. Depois dos sete dias, enquanto ainda estivesse sangrando, não poderia levar uma vida normal. Seus contatos estavam restritos às mulheres, tal como se dava durante os dias de menstruação.

Iza passava o tempo dando de mamar ou cuidando do bebê. Depois que se sentiu mais descansada, começou a pôr em ordem a fogueira, arrumando as diferentes áreas ali. A área de guardar comida, de cozinhar, de dormir e o lugar reservado a seus medicamentos, tudo dentro do espaço circundado por pedras que definiam a fogueira de Creb, os domínios dele dentro da caverna, agora divididos com três mulheres.

Devido à posição única do Mog-ur na hierarquia do clã, sua fogueira se achava num local privilegiado: era suficientemente perto da entrada da caver na para se beneficiar com a luz do dia e o sol do verão e, ao mesmo tempo, não tão perto para que ficasse sujeita aos inconvenientes das correntezas no inverno. A fogueira ainda tinha mais uma característica que Iza muito prezava em nome do bem-estar do Mog-ur. Havia um aforamento da rocha, prolongando-se do paredão lateral, que lhes dava uma proteção extra contra as ventanias. Mas, mesmo com esta barreira e com um fogo sempre aceso à entrada da caverna, as correntezas geladas chegavam a queimar a pele nos lugares mais expostos. A artrite e o reumatismo do pobre homem sempre pioravam no inverno, agravados pela circunstância de uma caverna fria e úmida. Iza cuidava para que houvesse uma boa camada de palha e capim sob as peles de dormir de Creb, acondicionada numa espécie de trincheira rasa que ficava num canto mais resguardado.

Dos poucos serviços que se tinha pedido aos homens para fazer além de caçar, um foi o de colocar, à entrada da caverna, uma cortina feita de couro, sustentada por estacas fincadas no chão; e outro, o de calçar a área diante da entrada com pedras trazidas do riacho, de modo que as chuvas e a neve derretida não fizessem um lamaçal ali. O chão das fogueiras particulares era de terra, com algumas esteiras espalhadas, onde as pessoas se sentavam, ou se servia comida.

Duas outras pequenas trincheiras forradas de palha e cobertas de pele achavam-se perto da de Creb. A pele que ficava por cima de cada uma delas era a mesma usada como capa pela pessoa que estava dormindo ali. Além do manto de urso de Creb, havia o de antilope saiga de Iza e uma pele branca e nova de leopardo da neve. O animal estava escondido perto da caverna, num ponto muito mais abaixo das áreas normalmente frequentadas por ele, lá nos altos das montanhas. Coube a Goov o mérito de sua caça e ele deu a pele para Creb.

Muitas pessoas no clã usavam as peles ou guardavam um pedaço de cliãre ou algum dente do animal simbolizando seu totem protetor. Creb achou que a pele do leopardo da neve seria apropriada para Ayla. Não era a de seu totem, mas guardava alguma semelhança, e ele sabia que seria muito pouco provável que algum dia os caçadores se pusessem à caça de um leão da caverna. Raramente, esses gigantescos felinos extraviavam-se dos terrenos das estepes e não representavam grande ameaça para o clã instalado numa caverna situada em encostas muito arborizadas. Eles não estavam dispostos a enfrentar uma fera daquelas, a não ser que tivessem um bom motivo para isto. Ainda durante sua gravidez, Iza havia curtido a pele e feito também um novo calçado para Ayla. A menina achava-se encantada e estava sempre procurando alguma desculpa para sair e poder usar a pele.

Iza fazia para si mesma um chá de erva-de-santa-maria que era bom para ajudar o leite a sair e aliviá-la das dores do útero que se contraía, voltando à forma normal. No princípio do ano, já se precavendo em relação ao nascimento do bebê, Iza havia colhido e posto para secar as folhas compridas e florezinhas esverdeadas dessa planta. Olhou na direção da entrada procurando por Ayla. Tinha acabado de trocar a faixa absorvente de pelica, o material que usava durante as menstruações e, agora, enquanto estivesse sangrando. Queria sair para enterrar o absorvente sujo em algum ponto lá fora, e precisava de Ayla para dar uma olhada no bebê, por alguns minutos.

Ayla, entretanto, não se encontrava em nenhum lugar perto da caverna. Caminhava ao longo do riacho procurando por pedrinhas pequenas e redondas. Iza havia comentado que queria pegar mais pedras de cozinhar, antes que as águas do riacho se congelassem, e Ayla achou que lhe agradaria se levasse algumas. Ajoelhada na praia pedregosa, procurava, perto da beirada da água, pedias que fossem de bom tamanho. Ao levantar os olhos, viu uma bolinha de pélos brancos debaixo de um arbusto. Afastando os galhos para os lados, deu com um coelho de porte médio deitado de banda. A perna estava quebrada e com crostas de sangue seco.

O animalzinho ferido, ofegando de sede, não podia mexer-se. Olhou apreensivo para a garota, quando ela o tocou, sentindo seu pêlo macio e quente. Foi um filhote de lobo, começando a exercer seus dotes de caçador, que o agarrara, mas o coelho dera um jeito de escapar. Antes que o jovem aprendiz de caçador tivesse tempo de fazer sua segunda investida, a mãe loba lançou seus uivos ao ar, chamando-o. O pequeno lobo, que não estava com muita fome, fez meia-volta e, sem muita pressa, foi atender o chamado urgente. O coelho mergulhara na mata, morto de medo, esperando não ser visto. Quando se sentiu seguro bastante, quis saltar para fora, mas não conseguiu e teve de ficar caído, a um pulo do riacho, morrendo de sede. Sua vida estava quase indo embora.

Ayla pegou o bichinho felpudo e ficou ninando-o em seus braços. Ela havia segurado o bebê de Iza enrolado numa pele de coelho e, agora, aquele ali lhe dava uma sensação parecida com a do bebê. Sentou-se no chão, embalando-o, quando reparou no sangue e na perna dobrada num estranho ângulo. Pobrezinho, está com a perna machucada, disse consigo mesma. Talvez Iza possa ajeitá-la. Certa vez, ela curou a minha. Esquecida da intenção de pegar pedras de cozinhar, levantou-se e foi com o coelho para a caverna.

Quando ayla chegou, Iza cochilava, mas acordou com o barulho dos passos. A menina, então, estendeu o coelho em sua direção, mostrando-lhe os ferimentos. Iza também ficava às vezes com pena de animaizinhos e tratava deles, mas nunca havia trazido nenhum para dentro da caverna.

- Ayla, bichos não ficam na caverna - falou ela com as mãos.

Todas as esperanças de Ayla desmoronaram. Aconchegou o coelho contra o corpo e, muito triste, inclinou a cabeça, preparando-se para sair com os olhos já meio cheios de lágrimas.

Iza percebeu-lhe o desapontamento.

- Bom, já que você trouxe, posso bem dar uma olhada nele.

Ayla se iluminou, entregando-lhe o bichinho ferido.

- Esse animal está com sede. Arrume um pouco d”água - gesticulou Iza.

Ayla imediatamente foi buscar água num enorme cantil e trouxe uma cuia cheia até a borda. Iza lascou um pedaço de madeira, fazendo uma tala, e no chão já se achavam tiras de couro para firmar a tala na perna do coelho.

- Vá encher de novo o cantil, pois já estamos quase sem água. Depois, vamos precisar de água quente, vou ter de limpar a ferida - disse, atiçando o fogo e botando algumas pedras para esquentar.

Ayla agarrou o cantil e correu até o lago. A água reanimou o coelhinho e, quando a menina voltou, ele estava mordiscando grãos e sementes que Iza lhe dera.

Creb, ao chegar mais tarde, ficou inteiramente pasmo vendo Ayla ninar um coelho no colo, enquanto Iza dava de mamar à filha. O feiticeiro percebeu a tala na perna do bicho e olhou para Iza que o observava, parecendo dizer: o que eu podia fazer? Enquanto Ayla, absorta, ocupava-se com seu boneco de verdade, os dois se puseram a conversar por meio de sinais silenciosos.

- O que deu em Ayla para trazer um coelho para dentro da caverna? - perguntou Creb.

- O bichinho estava machucado e ela trouxe para que eu tratasse dele. Ayla não sabia que nós não botamos animais na caverna. Mas os sentimentos dela não estão errados, Creb. Acho que ela tem jeito para curandeira. - Iza fez uma pausa. - Queria mesmo falar com você sobre isso. Bem, você sabe que ela Não tem muitos atrativos físicos.

Creb olhou na direção de Ayla.

- É uma menina simpática, mas você tem razão. Bonita não é - admitiu ele. - Mas o que tem isso a ver com o coelho?

- Quais as chances que Ayla tem de arrumar um companheiro? Qual quer homem que possua um totem bastante forte para o dela não vai querê-la. Ele poderá escolher a mulher que quiser. Eo que vai acontecer então, quando ficar moça? Se não tiver companheiro, não vai ter posição.

- Eu tenho pensado nisso, mas o que se há de fazer?

- Se Ayla fosse curandeira, ela teria seu próprio status - sugeriu Iza.

- E, afinal, ela é como uma filha para mim.

- Mas ela Não pertence à sua linha, Iza. Ayla não nasceu de você. Sua filha é que vai prosseguir com sua linhagem.

- Eu sei disso. Sei que tenho agora uma filha, mas por que não posso ensinar Ayla também? Ela não estava nos meus braços, quando você lhe deu um nome? E você Não revelou o totem dela na mesma ocasião Isso faz com que ela seja minha filha, ou não é. Ela foi aceita e agora é como se fosse dos clã não é verdade? - Iza se expressava com veemência, falando apressada, com medo de ouvir uma resposta desfavorável de Creb. - Acho que Ayla tem dom inato para isso. A menina mostra interesse, sempre está fazendo perguntas, quando estou preparando minhas poção curativas.

- Ela faz mais perguntas do que qualquer outra pessoa que já conheci- interpôs Creb. - Pergunta sobre tudo. Precisa aprender que não é de boa educação fazer tantas perguntas.

- Mas repare bem nela, Creb. Encontra um animal ferido e logo deseja tratar dele. Ou isso é um indício de quem tem inclinação para curandeira, ou então já não sei de mais nada.

Creb ficou em silêncio, pensativo. Depois, disse:

- Ser aceita no clã não vai mudar a natureza dela, Iza. Ayla nasceu de uma mulher dos outros, como vai poder aprender tudo o que você sabe? Não se esqueça de que ela não tem as memórias de nossa raça.

- Mas Ayla aprende depressa. Você mesmo viu isto. Veja como aprendeu rápido a falar. Ficaria surpreso se soubesse de tudo que ela já aprendeu. Depois, ela possui umas mãos muito jeitosas para curandeira... um modo delicado de pegar nas coisas. Foi ela quem segurou o coelho, enquanto eu punha a tala. O bichinho parecia confiar nela. - Iza inclinou o corpo para a frente. - Já não estamos mais jovens, Creb. O que vai acontecer com ela, depois que nós dois passarmos para o mundo dos espíritos? Quer que ela fique de fogueira em fogueira, sempre um fardo para todo mundo, sempre uma mulher ocupando a posição mais baixa do clã.

Também Creb estava preocupado com isso, mas como não via nenhuma solução para o problema, ele ia afastando-o do pensamento.

- Você realmente acredita que pode ensiná-la, Iza? - perguntou, ainda duvidando.

- Posso começar com o coelho. Deixo que ela tome conta dele e lhe vou mostrando como. Tenho certeza de que Ayla consegue aprender, Creb, mesmo sem as nossas memórias. Não existem tantos tipos diferentes de doenças e ferimentos. Ela ainda é bastante jovem, tem tempo para aprender. Não precisa ter uma memória para isso.

- Tenho que pensar no assunto, Iza - disse Creb.

Durante todo esse tempo, Ayla ficara embalando e cantarolando baixinho para o coelho. Percebeu que Iza e Creb conversavam e lembrou-se de tê lo muitas vezes visto fazendo gestos chamando os espíritos para ajudar nas mágicas de curar de Iza. A menina trouxe o bichinho felpudo para o feiticeiro.

- Creb, você quer pedir aos espíritos para curar o coelho? - disse gesticulando e botando o animal aos pés dele.

O Mog-ur olhou para o rostinho ansioso dela. Nunca havia invocado espíritos para ajudar na cura de um animal e se sentia meio tolo fazendo-o, mas não teve forças para recusar. Passou os olhos à sua volta e depois fez uns gestos rápidos.

- Agora, tenho certeza de que ele vai ficar bom - gesticulou a menina. Em seguida, vendo que Iza terminara de amamentar, perguntou: - Posso segurar o bebê? O coelhinho era um substituto amoroso e aconchegante do bebê, mas só quando ela não podia segurar na coisa verdadeira.

- Pode - disse Iza - mas cuidado com ela. Segure como eu lhe mostrei. Ayla, então, pôs-se a ninar e a cantarolar, como havia feito com o coelho.

- Qual o nome que você vai dar para ela, Creb? - indagou a menina.

Iza também estava curiosa, mas nunca perguntaria isso ao germano. Elas viviam na fogueira de Creb, eram sustentadas por ele e era seu o direito de dar nomes às crianças que nasciam em seu domínio.

- Ainda não resolvi. E você tem de aprender a não fazer tantas perguntas, Ayla - falou Creb repreendendo, mas se sentia contente por ela confiar em suas mágicas, ainda que fosse para um coelho. Virou-se, então, para Iza e acrescentou: - Acho que não faz mal se o coelho ficar aqui até que sua perna esteja curada. Ele é um bichinho inofensivo.

Iza fez um gesto de aquiescência, sentindo por dentro um calor de satisfação Tinha certeza de que Creb não se oporia a que ela preparasse Ayla para curandeira, mesmo sem ter seu consentimento explícito. Tudo o que ela realmente precisava saber era que ele não a interromperia em seu trabalho.

- Gostaria de saber como é que ela faz para tirar este som da garganta - falou Iza, ouvindo o cantarolar de Ayla e querendo mudar de assunto. - Não é desagradável, mas é esquisito.

- Esta é outra diferença entre a gente dos clã e a dos Outros - gesticulou Creb, com o ar de um professor transmitindo um fato de extrema sabedoria a um aluno embasbacado. - Do mesmo modo que a falta de memórias na raça dela. Esses sons estranhos são próprios dos Outros. Mas desde que vem aprendendo a falar direito já deixou de usá-los bastante.

Ovra chegou à fogueira de Creb trazendo a refeição da noite. Seu espanto não foi menor do que o de Creb, quando deu com o coelho lá. E mais espantada ainda ficou quando Iza lhe deu seu bebê para segurar e Ayla pegou no coelho, ninando-o como se este também fosse criança. Ovra lançou um rabo de olho para ver a reação de Creb, mas parecia que ele Não percebia nada. Mal aguentava esperar para contar à mãe. Imagine só, ninar um animal. A garota não deve estar boa da cabeça. Será que ela acha que bicho é gente?

Não muito depois, Brun veio caminhando e fez um sinal para Creb, significando que queria falar-lhe. Creb já esperava por isso. Os dois seguiram juntos na direção da fogueira da entrada, afastada da fogueira de cada um.

- Mog-ur - começou o chefe hesitando.

- Sim.

- Estive pensando, Mog-ur. . que já é tempo de prepararmos uma cerimônia para unir alguns casais aqui. Resolvi dar Ovra a Goov, e Droog concordou em assumir Aga com os filhos e permitiu também que Aga fosse viver com eles - disse Brun, sem saber muito como levantar o assunto do coelho na fogueira de Creb.

- Eu estava mesmo imaginando quando você iria decidir fazer essas uniões - respondeu Creb, sem qualquer comentário sobre o assunto que ele sabia Brun estar querendo discutir.

- Eu quis esperar. A caça estava muito boa. Não me podia dar o luxo de ficar com dois caçadores a menos. Quando você acha que será a melhor ocasião - Brun fazia o possível para não olhar na direção dos domínios de Creb, que se divertia um pouco com a falta de jeito do outro.

- Em breve vou dar o nome da filha de Iza. Podemos realizar a cerimônia na mesma ocasião.

- Vou falar com eles - disse Brun. Ele ficava, ora sobre um pé, ora sobre outro, olhando para o teto, para o chão para o fundo da caverna, para a entrada, só não olhava para o lugar onde se achava Ayla com o coelho no colo. A educação mandava que não se olhasse para dentro das fogueiras dos outros, mas se ele sabia da existência do coelho, era porque o tinha visto. Tentava pensar numa maneira aceitável de introduzir o assunto. Creb esperava.

- Por que há um coelho em sua fogueira? - disse Brun, através de uma gesticulação rápida. Estava em desvantagem e tinha consciência disso. Creb se virou e olhou de propósito para as pessoas em sua fogueira. Iza sabia perfeitamente bem o que se estava passando. Ela se ocupava com o bebê, só esperando não ter de ir participar da conversa.

Ayla, a causa de todo o rebuliço, achava-se inteiramente alheia à situação.

- É um animal inofensivo, Brun - disse Creb, com evasivas.

- Mas por que um animal dentro da caverna? - insistia Brun.

- Foi Ayla quem trouxe. O animal estava com a perna quebrada e ela queria que Iza fizesse um curativo - respondeu Creb, como se fosse o fato mais normal deste mundo.

- Nunca ninguém antes trouxe um animal para dentro da caverna - argumentou Brun, desapontado por Não conseguir encontrar uma objeção mais contundente.

- Mas que mal há? O bicho não vai ficar aqui por muito tempo, só até a perna ficar boa - retrucou Creb, com bom senso e falando calmamente.

Brun não conseguia achar uma boa razão para continuar a insistir com Creb para que ele expulsasse o animal, já que esta era sua vontade. Afinal, o bicho estava dentro dos domínios dele. Não havia nenhum costume proibindo animais em cavernas, era apenas uma coisa que nunca fora feita antes. Mas a verdadeira razão de seu incômodo Não era essa.

Havia chegado à conclusão de que o problema real estava em Ayla. Desde que Iza a trouxera com eles, começou a haver uma série de incidentes associados com a menina e todos fora do comum. Tudo que lhe dizia respeito era sem precedentes, e isso, agora, quando ela era ainda criança, mais tarde então como seria? O que não teria ele de enfrentar? Brun Não tinha nenhuma experiência daquele tipo de comportamento, nenhuma regra preestabelecida que o pudesse orientar no trato com a garota. E tampouco estava sabendo como externar suas dúvidas a Creb. Este, sentindo a inquietação do irmão tentou dar mais uma razão para que o coelho permanecesse em sua fogueira.

- Brun, a caverna designada para anfitriã de nossas reuniões tem sempre um filhote de urso - lembrou o feiticeiro.

- Mas aqui a coisa é diferente. Trata-se de Ursus. O animal está lá para o festival do urso. Antes de as pessoas habitarem cavernas, os ursos já viviam nelas, mas coelhos nunca moraram em cavernas.

- Só que o filhote é trazido. Ele não estava morando lá.

Brun não tinha nenhuma resposta para dar e o raciocínio de Creb parecia seguir um encadeamento lógico. Mas por que a menina tinha de ser a primeira a meter um bicho numa caverna? Se não fosse por ela, o problema nunca teria existido. Brun sentia que toda a base sólida de sua argumentação lhe escapulia, como se pisasse em terras pouco firmes. Resolveu, então, deixar o assunto morrer.

O dia que antecedeu à cerimônia foi frio mas ensolarado. Tinha havido algumas rajadas fortes de vento e os ossos de Creb, ultimamente, andavam doendo muito. Ele estava certo de que uma tempestade deveria estar a caminho. Antes que a neve começasse a cair para valer, queria gozar dos últimos dias claros daquele inverno e passeava pelo caminho perto do riacho. Ayla estava com ele, estreando os sapatos novos. Iza os havia feito, cortando pedaços circulares de couro de auroque que curtiu com a pelúcia debaixo e com uma camada extra de gordura para que ficassem impermeáveis. Fizera furos ao redor das beiradas, tal como para uma sacola e os uniu em torno dos tornozelos de Ayla, com a parte de pêlo voltada para dentro, de modo a esquentar melhor.

A menina estava feliz com eles e, toda vaidosa, ia jogando os pés para cima, ao lado de Creb. Sobre a roupa, levava a pele de leopardo e uma pele de coelho, macia e peluda, saía-lhe da cabeça, cobrindo as orelhas e amarrando debaixo do queixo com a pele que formara as patas do animal. De vez em quando, disparava à frente e depois voltava para caminhar ao lado de Creb, refreando suas passadas exuberantes para igualar com o andar arrastado dele. Por um momento, fez.se um silêncio agradável entre os dois, cada qual envolvido com seu próprio pensamento.

Gostaria de saber que nome poderia dar à filha de Iza, pensava Creb. Ele adorava sua germana e queria escolher um nome que fosse do agrado dela. Nenhum que possa lembrar qualquer coisa de seu companheiro. O pensamento desse homem fazia-lhe arrepiar a pele.

Os maus-tratos que infligira a Iza deixava-no ainda furioso, mas sua raiva vinha de mais longe. Lembrava-se de como, em criança, o outro escarnecia dele, chamando-o de maricas pelo fato de não poder caçar. Creb imaginava que o ridículo só parou por medo ao seu poder como Mog-ur. Fico alegre por Iza ter tido menina, pensou. Um menino seria muita homenagem para seu companheiro.

Sem aquele espinho encravado na garganta, Creb desfrutava dos prazeres da vida em família, muito mais do que imaginara possível. Ser o patriarca de sua pequena família, o responsável e o provedor dela, tudo isso lhe dava uma sensação de virilidade que jamais conhecera. Percebeu que estava sendo respeitado de maneira diferente pelos homens e se viu, para surpresa sua, interessado nas caçadas, já que tinha direito a um quinhão delas. Antes, sua preocupação centrava-se mais nas cerimônias de caças, mas, agora, tinha outras bocas a alimentar.

Tenho certeza de que Iza também está mais feliz, disse consigo, pensando nas atenções e no afeto que ela lhe dedicava: fazendo sua comida, cuidando dele e prevendo todas as suas necessidades. Em todos os sentidos, menos um, era como se ela fosse sua companheira, aquilo que mais se aproximava da idéia que Creb tinha disso. Ayla, por seu turno, era uma constante alegria. Encontrava grande interesse nas diferenças naturais que ia descobrindo nela. Educá-la era um desafio, tal como aquele que um professor de verdade sente diante de um aluno inteligente e voluntarioso, mas com suas peculiaridades. E o bebê de Iza também o deixava intrigado. Depois dos primeiros tempos, quando Iza passou a deixar a menina no seu colo e ele pôde dominar o nervosismo, ficava embevecido, observando os movimentos desordenados de suas munhecas e seus olhos perdidos, sem focalizar nada em especial. Como uma coisinha tão minúscula e pouco desenvolvida, pensou ele, poderia dar numa mulher adulta?

Ela vai assegurar a linhagem de Iza. E é uma linha digna da posição que ocupa dentro dos clãs. A mãe deles fora uma das mais renomadas curandeiras de sua época. As pessoas vinham dos outros clãs para tratar-se com ela ou buscar seus remédios. Iza era de igual valor e sua filha tinha tudo para alcançar o mesmo sucesso. Merecia um nome à altura de sua antiga e ilustre estirpe.

Pensando na linhagem de Iza, Creb lembrou-se da mulher que fora mãe da mãe deles. Sempre havia sido boa e gentil com ele. Depois que Brun nascera, ela cuidara mais dele do que sua própria mãe. Suas qualidades como curandeira também eram famosas, chegou até a curar o homem nascido da gente dos Outros, tal como Iza agora fizera com Ayla. Pena que Iza não chegou a conhecê-la. De repente, Creb interrompeu-se em suas divagações.

Pronto, aí está! Vou dar ao bebê o nome dela, disse consigo, cheio de alegria com a feliz inspiração.

Uma vez decidido o nome da criança, Creb voltou o pensamento para a cerimônia de acasalamento. Pensava em Goov, o seu devotado acólito. Uma pessoa sossegada e séria, Creb o estimava. O totem do auroque do rapaz era bastante forte para o de Ovra, que possuía o do castor. Ovra trabalhava com vontade, raramente precisando ser repreendida. Será uma boa companheira para ele. Não há razão para que não lhe dê filhos. Goov, por sua vez, é bom caçador e vai poder sustentá-la bem. Quando se tornar o mog-ur e suas obrigações o impedirem de caçar, será recompensado com o quinhão que lhe é de vido.

Iria ser um mog-ur poderoso?, perguntou-se Creb. Ele fez não com a cabeça. Por mais que gostasse do acólito, chegara à conclusão de que Goov nunca teria as qualidades que sabia ele próprio possuir. Se, por um lado, suas deficiências físicas o impediam para atos normais da vida, como caçar, ter companheira; por outro, proporcionaram-lhe tempo para pôr toda sua capacidade mental no desenvolvimento da força por que se tornara famoso.

Daí ser ele o Mog-ur. A ele cabia dirigir a mente de todos os mog-urs nas reuniões dos clãs, na mais sagrada de todas as cerimônias religiosas. No entanto, se podia realizar a simbiose das mentes dos homens de seu clã, isso já lhe era mais difícil com as mentes treinadas dos outros feiticeiros, que não se comportavam com a mesma fusão de almas. Creb pensou na próxima reunião dos clãs, mas ainda faltava muito para ela. As reuniões se realizavam a cada sete anos, e a última tinha sido no verão que antecedeu ao desmoronamento da caverna. Se viver até lá, pensou subitamente, essa será a minha última.

Creb voltou sua atenção novamente para a cerimônia de acasalamento; agora, a queiria unir Droog a Aga. Droog era um caçador experiente que há muito dera provas de sua capacidade. Sua competência como ferramenteiro ainda era até maior. Um homem tranquilo e sério, tal como Goov, o filho de sua falecida companheira. Os dois tinham o mesmo totem. Sob certos aspectos, inclusive, pareciam-se muito, e Creb não tinha dúvidas de que fora o espírito do totem de Droog que havia criado Goov. Pena a companheira de Droog ter sido chamada para o outro mundo, pensou. Entre o casal existiu uma grande afeição, e isto possivelmente não se dará com Aga. Mas ambos estão precisando de companheiros, e Aga deu provas de ser mais fértil do que a mãe de Goov. É uma união natural esta.

Creb e Ayla foram arrancados de seus pensamentos por um coelho que cruzou o caminho deles. Isso fez a menina lembrar-se do outro, o que estava na caverna, e a trouxe de volta ao que vinha pensando durante todo aquele tempo: o bebé de Iza.

- Creb, como é que o bebê entrou dentro de Iza?

- A mulher engole o espírito do totem de um homem - disse Creb distraído, ainda perdido em seus pensamentos. - Depois, o espírito dele luta contra o espírito do totem dela. Se o do homem vencer, uma parte do seu espirito fica na mulher para criar uma nova vida.

Ayla olhou à sua volta, maravilhada com a onipresença dos espíritos. Não via nenhum, mas, se Creb dissesse que eles estavam ali, ela acreditava.

- O espírito de qualquer homem pode entrar numa mulher? - perguntou, em seguida.

- Pode. Mas ele tem de ser um espírito mais forte para poder vencer o dela. Muitas vezes o totem do homem pede ajuda a outro espirito. Esse outro tem, então licença para deixar sua essência. Mas, em geral, é o espírito do companheiro da mulher aquele que luta mais. Ele é mais concentrado, mas mesmo assim, frequentemente, precisa de auxílio. Se um menino tiver o mesmo totem que o companheiro da mãe isso significa que terá sorte - explicou Creb, cuidadosamente.

- Só as mulheres têm bebés? - perguntou Ayla, excitada com o assunto.

- Sim.

- A mulher só pode ter filho depois que tem companheiro?

- Não. Às vezes, ela engole um espírito antes de ter o companheiro. Mas, se ela não arrumar um até o bebê nascer, seu filho vai ser infeliz.

- Eu posso ter um bebê? - perguntou, esperançosa.

Creb pensou no fortíssimo totem dela. Um princípio vital forte demais. Mesmo com a ajuda de outro espírito, Não era provável que fosse vencido. Mas isto ela vai descobrir daqui a algum tempo, pensou ele.

- Você ainda não tem idade bastante - disse Creb, de modo evasivo.

- Quando vou ter bastante idade?

- Quando você for mulher.

- E quando vou ser mulher?

Creb já começava a achar que aquele interrogatório jamais terminaria.

- Quando o espírito do seu totem entrar em luta pela primeira vez contra outro espírito, você irá sangrar. Isso é um sinal de que ele foi ferido. Al guma coisa da essência do espírito que lutou contra ele foi deixada em você para preparar seu corpo. Seus seios vão crescer e também algumas mudanças vão acontecer. Depois disso, o espírito de seu totem passa regularmente a lutar contra outros espíritos. Se numa ocasião que o sangue deve correr isso não acontecer, significa que o espírito que você engoliu derrotou o seu, e uma nova vida estará começando.

- Mas quando é que vou ser mulher?

- Talvez quando você tiver passado por todos os ciclos das estações umas oito ou nove vezes - respondeu Creb.

- Mas daqui a quanto tempo vai ser isso? - insistiu Ayla.

O velho feiticeiro, pacientemente, soltou um suspiro.

- Venha cá. Vou ver se consigo explicar - disse ele, pegando uma vareta e tirando uma faca de pedra de sua sacola. Duvidava que ela pudesse entender, mas isso poria fim às perguntas.

Calcular representava uma forma de abstração muito difícil para a gente dos clã A maioria não conseguia ir além de três: você, eu e o outro. Não era uma questão de inteligência. Por exemplo, Brun sabia perfeitamente se um dos 22 membros de seu clã estivesse faltando. Ele teria apenas de pensar em cada um deles individualmente e o fazia rápido, de maneira inconsciente. Mas passar do indivíduo concreto para o conceito “um”, isso significava uma dificuldade que só poucos conseguiam sobrepujar. Como pode essa pessoa ser um e aquela outra também ao mesmo tempo ser um. Não s essas pessoas diferentes? Essa era a primeira questão que normalmente eles se punham.

A incapacidade das pessoas de sintetizar e abstrair estendia-se a outras áreas da vida. Eles tinham um nome para cada coisa. Conheciam salgueiro, carvalho, pinheiro, mas não possuíam o conceito genérico para isso, ou seja, não tinham no vocabulário a palavra árvore. Cada tipo de terra, rocha e até mesmo as modalidades de neve eram nomeadas diferentemente. Eles dependiam de sua bela memória e de sua capacidade de aumentá-la. Praticamente, não se esqueciam de nada. Era uma língua repleta de cor e descrição mas desprovida quase na íntegra do pensamento abstrato. A idéia era algo de estranho à natureza, aos costumes e à forma como se desenvolveram. Dependiam do Mog-ur para situá-los em determinadas coisas que envolvessem algum tipo de cálculo: o tempo decorrido entre uma e outra reunião dos clã as idades das pessoas do clã, o tempo de isolamento após a cerimônia de acasalamento, e os primeiros sete dias da vida de uma criança. O fato de o feiticeiro poder realizar essas operações era encarado como uma de suas maiores mágicas.

Depois de sentado, Creb cravou firme a vareta entre seu pé e uma pedra.

- Iza acha que você é um pouco mais velha do que Vorn - começou ele. - Vom viveu o ano do seu nascimento, viveu o ano em que andou, depois outro ano mamando e o ano em que deixou de mamar - explicou Creb, fazendo um talho na vareta para cada ano que mencionava. - Vou fazer uma marca a mais para você. Esta é a idade que você tem atualmente. Se eu pegar os meus dedos e puser cada um em cada marca, vou cobrir todas elas com uma das mãos entende?

Ayla olhava compenetrada para as ranhuras na vareta, segurando os dedos da mão. Então se iluminou.

- Já sei, tenho tantos anos quanto isso! - disse, mostrando a mão com todos os dedos estendidos. - Mas quanto tempo vai levar para eu ter um bebê?- perguntou, mais interessada no problema da reprodução do que no de cálculos.

Creb estava estupefato. Como pôde a menina pegar a idéia da coisa tão rápido? Ela não chegou nem a perguntar quais marcas tinha de cobrir com os dedos ou o que fazer com os anos ali marcados. Isso com Goov teve de ser repetido inúmeras vezes, até que ele conseguisse entender- Creb fez mais três talhos e tapou-os com três dedos. Para ele, que usava só uma das mãos, isso havia sido particularmente difícil na ocasião em que aprendeu. Ayla olhou para sua outra mão e imediatamente suspendeu três dedos, dobrando o polegar e o mindinho.

- Quando eu tiver isso? - perguntou, estendendo oito dedos.

Creb fez um gesto afirmativo. O próximo passo de Ayla pegou-o inteiramente de surpresa. Era um conceito que até ele tinha levado anos para dominar. Ela baixou uma das mãos e suspendeu só três dedos da outra.

- Eu vou ter idade para ter um bebê quando passar esse “muito” de anos - gesticulou, segura, inteiramente confiante em sua dedução.

O espanto do velho feiticeiro não tinha limites. Era impensável que uma criança, ainda por cima menina, pudesse chegar àquela conclusão tão facilmente. Ele se via atordoado demais, mal se lembrando de fazer reparos no prognóstico dela.

- Esta quantidade provavelmente é para a primeira vez. Mas poderá ser este tanto aqui ou, ainda, mais este outro tanto - disse ele, fazendo duas outras riscas na vareta. - Ou talvez até mais. Não há como se saber ao certo.

Ayla franziu um pouco o rosto, suspendeu o indicador e depois o polegar.

- Como posso saber de mais quantidade de anos? - perguntou.

Creb a olhava desconfiado. Estavam penetrando num terreno onde até ele tinha dificuldade. Já começava a lamentar ter deixado o assunto ir tão longe. Brun não ia gostar se soubesse que a menina podia fazer aquelas poderosas mágicas, mágicas reservadas apenas aos mog-urs. Mas sua curiosidade tinha sido aguçada. Seria ela capaz de compreender conhecimentos tão avançados?

- Cubra com suas mãos todas as marcas - disse Creb. Após ela, muito compenetrada, ter botado cada dedo em cada ranhura, Creb fez outro talho e o tapou com o seu dedo mínimo.

- A marca seguinte está coberta pelo meu dedo mínimo. Depois da primeira série, você tem de pensar no primeiro dedo da mão de outra pessoa, e depois no dedo seguinte da mão dessa pessoa. Entende? - perguntou, observando-a com atenção.

Ayla nem pestanejava. Olhou para as suas mãos, depois para a dele, e então fez a careta que Creb já conhecia como sendo uma expressão de sua felicidade. Ela meneou, cheia de entusiasmo, a cabeça, dizendo que entendia. Só que daí ela deu um salto quantitativo que se achava praticamente além da capacidade de compreensão de Creb.

- E depois disso, as mãos de uma outra pessoa, e depois ainda as de uma outra pessoa, não é assim? - perguntou ela.

O impacto foi forte demais. A cabeça dele dava voltas. Com dificuldade conseguia contar até 20. Além dessa quantidade, os números se confundiam numa imensidão indistinta chamada muito. Em poucas oportunidades, depois de profunda meditação, pôde captar uma vaga idéia do conceito que Ayla entendia com a maior facilidade. O Mog-ur custou a fazer um gesto afir mativo. Subitamente, havia percebido o enorme abismo entre a mente da menina e a dele. Bastante abalado, esforçava-se para recuperar a calma.

- Diga-me, qual o nome disso? - perguntou ele, querendo mudar de assunto e suspendendo o galho que tinha usado para fazer as marcas. Ayla ficou olhando por um instante, lembrando-se.

- Salgueiro... acho que é - disse ela.

- Está certo - respondeu Creb. Colocou a mão sobre o ombro dela e a olhou diretamente nos olhos. - Ayla, seria melhor que você não mencionasse essas coisas para ninguém - disse, mostrando os talhos feitos no galho.

- Está bem, Creb - respondeu, percebendo o quanto isso era importante para ele. A menina aprendera a conhecer seus movimentos e expressões melhor do que qualquer um, à exceção de Iza.

- Já é tempo de voltarmos. - Ele desejava ficar sozinho para pensar.

- Temos mesmo de ir embora? - perguntou Ayla, com voz suplicante.

- Está tão bom aqui fora.

- Sim, nós temos - respondeu Creb, botando-se de pé com a ajuda do seu bordão. - E não é direito, Ayla, questionar um homem depois que ele tomou uma decisão - ralhou, com brandura.

- Está bem, Creb - falou a menina, inclinando a cabeça em sinal de submissão tal como lhe haviam ensinado. Havia começado a caminhar silenciosa ao lado dele, mas logo sua exuberáncia tomou conta, e Ayla passou a correr na frente. De vez em quando voltava trazendo galhos e pedras, dizendo os seus nomes para Creb e perguntando sobre aqueles que esquecera. Ele lhe respondia, vago, com dificuldade de prestar atenção, tamanho era o tumulto em sua mente.

As primeiras luzes do alvorecer dissipavam a escuridão envolvendo a caverna e o ar picante e frio cheirava a neve que estava a caminho. Iza, deitada na pele, observava os contornos do teto irem gradualmente defimindo-se e tomando forma à medida que a luz aumentava. Naquele dia, sua filha iria receber um nome e ser aceita integralmente como membro do clã, o dia em que ela seria reconhecida como um ser vivo e capaz de viver. Iza esperava, ansiosa, ver relaxado o seu período obrigatório de confinamento, apesar de que, enquanto sangrasse, o convívio com as pessoas do clã estaria restrito às mulheres.

Logo que aparecesse a primeira menstruação, exigia-se das meninas que elas passassem o período inteiro das regras longe do clã. Se fosse durante o inverno, a garota era posta numa área separada, no fundo da caverna, mas, na primavera, estaria obrigada a passar o primeiro período menstrual sozinha. E viver sozinha, era algo de assustador e muito perigoso, tratando-se de uma menina, sem armas e acostumada a ter sempre a companhia dos outros e a proteção de todo o clã. Essa era a prova que marcava a entrada da menina na vida da mulher, tal como para o rapaz, era o seu primeiro animal abatido. Só que, no caso da mulher, Não havia cerimônia celebrando-lhe a volta a casa. Não eram tão fora do comum os casos de moças Não voltarem, mesmo dispondo elas de uma fogueira acesa para espantar os animais ferozes. Seus restos eram, em geral, encontrados por algum caçador ou algum grupo de mulheres colhendo plantas. A mãe tinha licença para visitar a filha uma vez por dia. Ela lhe levava comida e consolo. Se a moça, no entanto, desaparecesse ou morresse, a mãe estava impedida de mencionar o fato, enquanto Não houvesse decorrido um certo número de dias.

As batalhas travadas pelos espíritos no interior do corpo da mulher na luta natural pela produção da vida eram vistas pelos homens como profundos mistérios. Enquanto a mulher sangrasse, a essência do totem dela estava forte, estava em luta e derrotando algum elemento primordial masculino, expulsando-lhe a essência fecundadora. Se uma mulher olhasse, nesse período, para um homem, o espírito dele estaria sendo atraído para uma batalha perdida. Daí, os totem das mulheres precisarem ser menos poderosos do que os dos homens, pois mesmo um totem fraco recebia energias da força da vida que habitava as mulheres. Elas atraíam para si a força da vida, elas eram quem produziam novas vidas.No mundo físico, o homem podia ser maior, mais forte e poderoso do que a mulher, mas, no temível mundo das forças invisíveis, as mulheres estavam potencialmente dotadas de maior força. Os homens acreditavam que a forma física - menor e mais frágil - da mulher, que lhes permitia dominá-la, era o que equilibrava a balança, mas as mulheres jamais poderiam conhecer todo o seu potencial, seNão a balança iria pender mais para um lado. Por isso mesmo estavam impedidas de ter uma participação plena na vida espiritual do clã, para se conservar ignorantes da energia que lhes dava a força da vida.

Os rapazes, já na sua cerimônia de passagem, eram avisados das funestas consequências que poderiam advir se alguma mulher presenciasse, ainda que por instantes, os seus ritos esotéricos, e muitas lendas existiam falando do tempo em que as mulheres detinham o controle da magia que possibilitava o contato com o mundo dos espíritos. Muitos rapazes, após tomar conhecimento desses fatos, passavam a olhar as mulheres sob outro prisma. Eles assumiam suas responsabilidades de homem com grande seriedade. A mulher tinha de ser protegida, sustentada e inteiramente dominada. Do contrário, a sensível balança que equilibrava as forças físicas e espirituais seria desestabilizada, ocasionando a destruição dos clãs.

Pelo fato de as forças espirituais estarem muito mais revigoradas durante a menstruação é que a mulher tinha de ser mantida isolada. Seu contato só podia ser com outras mulheres, Não lhe era permitido tocar em alimentos que fossem consumidos por homens e ela passava o tempo fazendo tarefas sem importância, como catar lenha ou curtir couros que seriam usados exclusivamente por elas. homens Não reconheciam sua existência, ignoravam-na completamente, nem mesmo repreendê-la chegavam. Se, por acaso, seus olhos dessem distraidamente com ela, olhavam como se através de sua pessoa, como se fosse invisível.

Parecia um castigo cruel. O banimento da mulher assemelhava-se com a maldição de morte, a punição máxima que era dada aos membros dos clãs, quando cometiam algum crime grave. Ao chefe, exclusivamente, cabia dar ordens ao mog-ur para que este fizesse baixar os espíritos do clã! e deitasse a maldição de morte. O mog-ur Não podia recusar-se, mesmo que isso fosse perigoso para ele, como feiticeiro e para o clã. Uma vez amaldiçoado, o criminoso passava a Não ser visto por ninguém e nenhuma pessoa lhe dirigia a palavra. Era ignorado, caía em ostracismo, deixava de existir, exatamente como se estivesse morto. O companheiro ou a companheira bem como toda a família choravam sua morte. Nenhuma comida era compartilhada com ele. Alguns abandonavam o clã e nunca mais eram vistos. A maioria, simplesmente, deixava de comer, beber, consumando a maldição na qual também o criminoso acreditava.

Em certos casos, a maldição de morte podia ser imposta por prazo limitado; ainda assim, ela resultava quase sempre na morte do criminoso que abdicava de viver durante o tempo estabelecido para o pagamento de sua pena. Se permanecesse vivo, seria admitido de volta ao clã com todas as suas prerrogativas anteriores, inclusive com o status que possuía antes.

Sua dívida para com o clã fora paga, o seu crime, portanto, estava esquecido. Mas os crimes eram raros e esta forma de punição dificilmente era aplicada. Apesar de que o banimento renegasse a mulher parcial e temporariamente da sociedade, quase todas elas bendiziam essa pausa em suas vidas, quando estariam livres das constantes exigências dos homens e fora da linha de seus olhos eternamente vigilantes.

Iza, no entanto, estava ansiando por um maior contato com a vida, o que teria após a cerimônia do nome da filha. Já estava cansada de ficar dentro dos limites da fogueira de Creb e via, saudosa, os raios de sol que escoavam através da entrada da caverna, naqueles últimos dias claros, antes de a neve chegar. Esperava com impaciência o sinal de Creb, anunciando que ele estava pronto e o clã já todo reunido. Normalmente, esta era uma cerimônia que se realizava antes da primeira refeição, logo depois de o sol aparecer, quando os totens ainda se achavam por perto, após terem guardado o clã durante a noite. Ao aceno de Creb, Iza se apressou em ir para junto dos outros, postando-se na frente do Mog-ur e, com os olhos abaixados, despiu a filha. Segurava-a no alto, enquanto o feiticeiro olhava por cima de sua cabeça e fazia os gestos de praxe invocando os espíritos para assistir aquela cerimônia.

Em seguida, Creb mergulhou a mão na bacia segurada por Goov e desenhou, com pasta de ocre vermelho, uma listra que saía do ponto onde se juntavam as saliéncias ósseas por cima das sobrancelhas e vinha até a ponta do nariz.

- Uba, o nome da menina é Uba - falou o Mog-ur. Do ensolarado pórtico frontal, açoitava um vento gelado que fez a menina nua, morta de frio, soltar um saudável berro, abafando os murmúrios de aprovação do clã.

- Uba - repetiu Iza, ninando seu corpinho tremendo em seus braços. É um nome perfeito, pensou, lamentando Não ter conhecido a Uba de quem sua filha o herdara. Os membros do clã foram passando em fila por ela, cada um repetindo o nome, de modo que eles e seus totens se fossem familiarizando com a última aquisição do clã. Iza tinha o cuidado de manter a cabeça abaixada, a fim de Não olhar sem querer os homens que vinham chegando para reconhecer sua filha. Em seguida, envolveu a criança em peles de coelhos e a meteu por dentro da sua roupa, em contato com a pele do corpo. Os berros pararam imediatamente depois que o bebê começou a mamar. Iza voltou, então, a seu lugar, junto das mulheres, deixando o espaço para a celebração dos ritos de acasalamento.

Nesta cerimônia, apenas nesta, usava-se ocre amarelo na fabricação do unguento. Goov entregou a bacia com a pasta amarela ao Mog-ur que a apoiou firme entre seu cotoco de braço e a cintura. Goov Não podia servir de acólito numa cerimônia em que era o principal protagonista. Foi tomar posição em frente ao Mog-ur e esperou Grod vir com a filha de sua companheira. Ika era um misto de emoções: orgulhosa por sua filha estar fazendo um bom casamento e triste por vê-la sair da fogueira de seu companheiro. Ovra vestia uma roupa nova, olhava para os pés, enquanto seguia de perto Grod, mas deixando transparecer no rosto, pudicamente abaixado, uma luminosa alegria. Visivelmente, sentia-se feliz com a escolha que fizeram por ela. Sentou-se no chão de pernas cruzadas, de frente para Goov, conservando sempre os olhos abaixados.

Com os gestos ritualísticos e em silêncio, o Mog-ur se dirigiu novamente aos espíritos. Em seguida, mergulhou o dedo médio na pasta amarelada e desenhou o sinal do totem de Ovra sobre a cicatriz do totem de Goov, simbolizando a união dos dois espíritos. Depois, tormou a meter o dedo na pasta, pintou a marca de Goov em cima da de Ovra, seguindo o contorno da cicatriz, mas borrando a marca dela, como sinal da supremacia masculina.

- Espírito do Aruroque, Totem de Goov, o seu sinal venceu o Espíri to do Castor, Totem de Ovra - dizia por gestos o Mog-ur. - Possa o Espírito de Ursus permitir que assim seja para sempre. Goov, você aceita esta mulher?

O rapaz respondeu batendo de leve no ombro de Ovra e fazendo-lhe sinal para que o seguisse a uma área recentemente delimitada por pedras, onde teriam sua fogueira. Ovra pulou sobre seus pés e seguiu atrás do companheiro que lhe fora dado. Ela Não tinha escolha, nem mesmo lhe fora perguntado se o aceitava. O casal permaneceria isolado por 14 dias, confinado à área da fogueira e dormindo separados. No fim deste período, os homens realizariam uma cerimônia na caverna menor, para sedimentar a união.

Nos clãs, a união de duas pessoas era um fato exclusivamente de ordem espiritual, começado com uma declaração diante de todo o clã e consumado por rituais secretos destinados só aos homens. Naquela sociedade primitiva, sexo era tão natural e irrestrito quanto o ato de dormir ou de comer. As crianças aprendiam a fazer sexo, tal como ficavam sabendo dos costumes e a executar suas tarefas, ou seja, observando os adultos. Brincavam de fazer amor do mesmo jeito que imitavam qualquer outra actividade dos mais velhos. Não era raro um menino chegar à puberdade, ainda sem ter abatido o seu primeiro animal e vivendo uma situação de meio adulto meio criança, e penetrar uma menina, antes dela ter passado pela primeira menstruação. Os hímens eram perfurados cedo, apesar de que os rapazes ficassem um pouco amedrontados, se vissem algum derramamento de sangue. Se tal acontecesse, rapidamente largavam a garota.

Todo homem, no momento em que bem entendesse, podia pegar uma mulher para satisfazer os seus desejos, à exceção - e isto fazia parte de velha tradição - da germana. Em geral, depois de o casal estar constituído, guardava-se uma certa fidelidade, apenas por mera cortesia com a propriedade de outro homem. Era muito mais malvisto se um homem deixasse de satisfazer-se do que se pegasse a mulher que estivesse mais à mão. Por seu lado, a mulher não se via impedida de fazer sutis gestos recatados, incentivando o homem e lhe dando a entender que ele a atraía. Para eles, a formação de uma nova vida se fazia graças à onipresença das essências dos totens e tanto as relações sexuais como o nascimento de crianças Não estavam associados à idéia da concepção.

A segunda cerimônia foi para unir Droog a Aga. O novo casal também ficaria em isolamento, mas aqueles que atualmente viviam na fogueira de Droog tinham liberdade para lá entrar e sair, quando assim o quisessem. Após a entrada na caverna do segundo casal, as mulheres vieram rodear Iza e o bebê.

- Iza, sua filha é simplesmente um encanto - grunhiu Ebra. - Devo confessar que fiquei um pouquinho preocupada, quando soube que você depois de tanto tempo havia ficado grávida.

- Os espíritos me protegeram - gesticulou Iza. - Um totem forte quando é vencido ajuda a fazer crianças sadias.

- Tive medo de que o totem da menina pudesse trazer efeitos negativos. Ela tem um jeito tão diferente e seu totem é tão poderoso que podia até fazer a criança nascer com defeito - comentou Aba.

- Ayla traz sorte. Ela me trouxe sorte - contradisse, imediatamente, Iza, olhando para ver se a menina tinha percebido. Ayla observava Oga segurando o bebê, andando de lá para cá, resplandecente de orgulho como se Uba fosse filha dela. Ayla não percebera o comentário de Aba, mas Iza não gostava de ver pensamentos desse tipo ventilados abertamente. - Na verdade, ela trouxe sorte para todos nós, não é?

- Mas afinal você não teve tanta sorte assim, pois Não nasceu um menino - insistiu Aba, querendo impor sua opinião.

- Mas eu queria ter menina - respondeu Iza.

- Iza! Como pode dizer uma coisa dessas!

As mulheres estavam surpresas, raramente admitiam preferir filhas.

- Ela tem razão - pulou Ika em defesa de Iza. A gente tem um filho, cuida dele, amamenta, cria e depois, mal ele acabou de crescer, desaparece. Se não morrer caçando, morre de uma outra coisa qualquer. A metade deles morre ainda rapaz. Pelo menos Ovra ainda pode viver alguns anos mais.

Todas se sentiram penalizadas com a mãe que perdera o filho no desabamento da caverna. Sabiam o quanto Ika sofrera. Ebra, diplomaticamente, mudou de assunto.

- Gostaria de saber quantos invernos nós iremos passar nesta caverna.

- As caçadas têm sido boas e nós já guardamos tanta coisa que temos um mundo de comida armazenada. Os homens vão sair hoje para caçar, provavelmente pela última vez. Só espero que haja bastante lugar no depósito, as sim vamos poder congelar as coisas - disse Ika. - Parece que os homens estão ficando impacientes. Acho melhor a gente ir fazer qualquer coisa para comer.

As mulheres, relutantes, deixaram Iza e o bebê, e foram preparar a refeição da manhã. Ayla sentou-se ao lado de Iza, e a mulher pôs um braço em redor dos ombros da menina, segurando o bebê com o outro. Iza se sentia bem. Achava-se feliz por estar do lado de fora da caverna naquele dia de início de inverno, ensolarado, frio e animado; feliz porque seu bebê nasceu com saúde e menina, e feliz ainda pela estranha garota loura a seu lado. Olhou para Uba e depois para Ayla. Minhas filhas, disse consigo, as duas são minhas filhas. Todo mundo sabe que Uba será curandeira, mas Ayla também vai ser. Vou providenciar para que isso aconteça. Quem sabe se algum dia não será uma grande curandeira...

 

O Espírito da Neve Seca tomou para companheiro o Espírito da Neve Granular, e depois de algum tempo nasceu a Montanha de Gelo, lá longe, no norte. O Espírito do Sol odiava aquela criança que crescia espalhando-se pela terra. Por isso, o Espírito do Sol guardava seu calor para que nenhuma relva desse lá. Ele estava resolvido a destruir a Montanha de Gelo, mas o Espírito da Nuvem de Tempestade, germana da Neve Granular, descobriu que o Sol queria matar a criança. No verão, quando o Sol é mais poderoso, o Espírito da Nuvem de Tempestade entrava em luta com o Sol para salvar a vida da Montanha de Gelo.

Ayla, sentada com Uba no colo, observava Dorv contar essa velha e muito conhecida lenda de todos eles. Ficava fascinada, apesar de já sabê-la de cor. Era a sua predileta, nunca se cansava de vê-la contada mais uma vez. Mas a irrequieta menininha em seu colo, com um ano e meio e já começando a andar, estava muito mais interessada nos seus longos cabelos louros que agarrava aos punhados. Ayla imediatamente desembaraçava-os da munheca de Uba, sem tirar os olhos do velho que, de pé junto da fogueira, recontava a lenda numa pantomima de grande teatralidade, enquanto todo o clã em suspenso, observava-o.

- Em alguns dias, o Sol vencia a batalha, castigando o gelo duro, transformava-o em água e sugava a vida da Montanha de Gelo. Mas, em outros, a Nuvem de Tempestade vencia, cobrindo a face do Sol, Não deixando seu calor derreter muito a Montanha de Gelo. No verão, a Montanha de Gelo passava fome e ficava toda encolhida, mas, no inverno, sua mãe comendo o alimento trazido por seu companheiro, nutria o filho, devolvendo-lhe a saúde. Todos os verões o Sol lutava para destruir a Montanha de Gelo, mas a Nuvem de Tempestade não deixava que ele derretesse os alimentos que a mãe tinha dado ao filho no inverno passado. A cada vez que começava um novo inverno, a Montanha de Gelo aparecia maior, mais espalhada e cobrindo todos os anos uma quantidade mais vasta de terra.

“Um frio muito grande sempre chegava antes dela, que surgia cada vez mais desenvolvida. Os ventos uivavam e a neve amontoava-se mais e mais à sua volta. Ia espalhando-se, chegando cada vez mais perto dos lugares onde estavam os clã As pessoas tremiam de frio e amontoavam-se junto das fogueiras, enquanto a neve caía sobre suas cabeças.

O vento, assoviando através das árvores desfolhadas, contribuía com efeitos de sonoplastia para o clima da história, fazendo correr pela espinha de Ayla um tremor de emoções solidárias.

- Os clã não sabiam o que fazer - continuou Dorv. - Por que os espíritos de nossos totens já não nos protegem mais? O que será que fizemos para que ficassem tão zangados conosco? O mog-ur decidiu, então, ele próprio, partir e ir ao encontro dos espíritos para ter uma conversa com eles. Mas o mog-ur custava a voltar. As pessoas, inquietas, esperavam sua volta, principalmente os mais jovens.

“Durc era quem estava mais impaciente. “O mog-ur nunca irá voltar”, dizia ele. “Nossos totens não gostam de frio, já devem ter ido embora e nós também deveríamos fazer o mesmo.

“Não podemos abandonar nossa casa, dizia o chefe, “Este é o lugar onde a gente dos clãs sempre viveu. É a morada de nossos antepassados. O lar dos espíritos de nossos totens. Eles não devem ter ido embora. Eles estão infelizes ao nosso lado, mas ainda estariam muito mais, se estivessem fora da casa que sempre conheceram. Não podemos partir e removê-los daqui. Depois, para onde a gente iria?”

“Nossos totens já foram embora”, insistia Durc. “Se encontrarmos uma casa melhor, eles voltarão. Podemos ir para o sul, seguindo os pássaros quando fogem do frio no outono, ou, então, em direção ao oriente, para a terra do Sol.”

“Não Temos de esperar pelo mog-ur. Quando ele voltar, dirá o que temos de fazer”, ordenou o chefe. Mas Durc não escutou o sábio conselho. Discutia, argumentava, e algumas pessoas começaram a vacilar. Por fim, decidiram partir com ele.

“Fiquem”, pediam-lhes os outros. “Esperem até o mog-ur voltar.”

“Mas Durc não lhes prestava atenção “O mog-ur nunca irá encontrar os espíritos. Ele jamais voltará. Vamos embora agora. Venham conosco encontrar um lugar onde a Montanha de Gelo não possa viver.”

“Não respondiam. “Vamos esperar.”

“Mães e seus companheiros choravam muito pelos homens e mulheres que partiam, todos certos de que estariam condenados. Esperavam pelo mog ur, mas os dias iam passando e nada de ele voltar. Já começavam a achar que teria sido melhor se também tivessem partido com Durc.

“Foi então que, certo dia, viram um estranho animal aproximando-se, sem nenhum medo do fogo. As pessoas, apavoradas, olhavam cheias de admiração Nunca haviam visto aquele animal antes. Mas quando ele chegou mais perto, qual não foi a surpresa ao perceberem que aquilo não era nenhum bicho e sim o mog-ur! Ele estava coberto com a pele de um urso aa avema. Finalmente, havia voltado. Contou, então, o que tinha aprendido com Ursus, o espírito do Grande Urso da Caverna.

“Foi com Ursus que as pessoas aprenderam a viver em cavernas, a vestir peles de animais, a caçar e coletar plantas no verão e a guardar comida para o inverno. As gentes dos clã nunca se esqueceram do que Ursus lhes ensinou, e mesmo a Montanha de Gelo tentando, Não conseguiu mais tirá-las de suas casas. Pouco importava o quanto de frio e neve a Montanha de Gelo mandasse, os clãs não se mudariam, não mais deixariam o caminho livre para ela.

“Por fim, a Montanha de Gelo desistiu. Já enfadada, parou de lutar contra o Sol. A Nuvem de Tempestade, furiosa porque ela não queria lutar, dei xou de ajudá-la. A Montanha de Gelo saiu da terra dos clãs e voltou para o seu lugar no norte, levando consigo todo o seu frio. O Sol, exultante com a vitória, foi perseguindo-a durante todo o caminho, até ela instalar-se no norte. Não havia lugar onde a Montanha de Gelo pudesse esconder-se do grande calor do Sol que a acabou derrotando. Por muitos e muitos anos não houve inverno, só longos dias de verão.“Mas a Neve Granular morria de tristeza pela perda da filha, e este grande pesar a foi enfraquecendo. A Neve Seca quis que ela tivesse outro filho e pediu auxílio ao Espirito da Nuvem de Tempestade. Esta ficou com pena de sua germana e ajudou a Neve Seca a trazer alimento para fortalecê-la. Nova mente passou a cobrir a face do Sol, enquanto a Neve Seca espargia seu espírito para a Neve Granular absorver. Ela deu à luz a uma nova Montanha de Gelo, mas as pessoas se lembravam ainda dos ensinamentos de Ursus. A Montanha de Gelo jamais iria arrancar os clãs de suas casas.

“E o que aconteceu com Durc e todos os outros que o seguiram? Alguns dizem que eles foram devorados por lobos e leões; outros, que se afogaram nas vastidões das águas, e ainda há outros que falam que alcançaram a terra do Sol, mas que este teria ficado tão zangado por ver Durc e sua gente querendo sua terra, que mandou do céu uma bola de fogo para devorar todos. Eles desapareceram e ninguém mais tornou a vê-los.

- Você viu, Vorn? - Era Aga falando com seu filho, como sempre acontecia depois de terminada a história de Durc. - Por isso é que você deve sempre atender a sua mãe, Droog, Brun e o Mog-ur. Você nunca deve desobedecer e deixar o clã, você pode desaparecer também.

- Creb - disse Ayla, dirigindo-se a ele, sentado a seu lado - você acha que Durc e seu povo não poderiam ter encontrado um novo lugar para viver? Ele desapareceu, mas ninguém viu mesmo se ele morreu, Não é? Será que ele não conseguiu viver?

- Ninguém viu quando desapareceu, mas caçar é muito difícil, quando se tem só dois ou três homens. Talvez nover pudessem matar alguns bichos pequenos, mas os animais grandes de que iriam precisar para que pudessem ter carne no inverno, esses eram muito mais difíceis e perigosos. E muitos invernos iriam passar até que chegassem à terra do Sol. Os totens gostam de ter um lugar para viver. Provavelmente,eles abandonam aqueles que ficam rondando por aí, sem ter onde morar. Você não gostaria de ser abandonada por seu totem, não é?

Instintivamente, Ayla pegou no seu amuleto.

- Mas meu totem não me abandonou, mesmo eu estando sozinha e sem casa.

- Isso era porque você estava sendo posta à prova por ele, Ayla. Ele achou um lar para você, Não é verdade? O Leão da Caverna é um totem forte, Ayla. Ele a escolheu. Talvez por isso ele tenha resolvido que você ficasse sempre sob sua proteção , mas todos os totens ficam mais felizes, quando possuem uma moradia. Se você cuidar dele, terá sua ajuda. Ele lhe dirá o que é melhor para você.

- E como vou saber, Creb? Nunca vi um Espírito de Leão da Caverna. Como a pessoa sabe quando um totem está lhe contando alguma coisa?

- Você não pode ver o espírito de seu totem, porque ele é parte de você, está dentro de você. Mas mesmo assim, ele fala com você. Apenas você tem de aprender a entendê-lo. Se tiver de tomar uma decisão ele a ajudará. Ele lhe dará um sinal, quando sua escolha for acertada.

- Que tipo de sinal?

- É difícil dizer. Em geral, é alguma coisa muito particular ou fora do comum. Pode ser uma pedra que você nunca tenha visto antes, ou alguma raíz de forma especial que faça sentido para você, coisas assim. É preciso aprender a entendê-lo com o coração e a mente, Não com os olhos e os ou vidos. Só assim você ficará sabendo. E só você pode entender seu próprio totem, ninguém vai ensiná-la como. Mas quando chegar o momento e você encontrar o sinal que seu totem lhe está dando, guarde a coisa em seu amuleto. Isso vai lhe trazer sorte.

- Você tem guardado no seu amuleto sinais mandados por seu totem, Creb? - perguntou a menina olhando para o recheado saquinho de couro que Creb levava pendurado no pescoço. E soltou Uba, que se retorcia em seu colo, querendo sair para caminhar até Iza.

- Tenho - respondeu ele, meneando a cabeça. - Um deles é um dente de urso da caverna que me foi dado, quando fui escolhido para acólito. Ele não estava cravado em nenhuma arcada dentária, mas a meus pés, por cima de umas pedras. Quando ia sentando num certo lugar, não vi que o dente estava bem ali. Está perfeito, não está nem um pouquinho gasto ou estragado. Foi o sinal usado por Ursus para indicar que minha decisão estava Correta.

- Meu totem também vai me mandar sinais?

- Ninguém sabe. Talvez, quando você tiver importantes decisões a tomar. Só vai ficar sabendo quando chegar o momento. Enquanto conservar o amuleto pendurado no pescoço, seu totem sabe onde encontrá-la. Tome cuidado para nunca perdê-lo, Ayla. Foi dado a você quando seu totem se revelou. Dentro, está parte do seu espírito, que é a coisa que ele identifica. Sem isto, ele não pode encontrar o caminho quando estiver viajando. Ele se

perderá e vai procurar sua casa no mundo dos espíritos. Também se você perder seu amuleto e não o achar depressa, você morrerá.

Ayla tremeu, sentindo o saquinho pendurado por um firme cordão de couro em seu pescoço e pensou quando iria ter também um sinal de seu totem.

- Você acha que o totem de Durc lhe deu algum sinal, quando ele resolveu ir procurar a terra do Sol?

- Não se sabe. Isso não faz parte da história.

Acho que Durc foi muito corajoso, querendo buscar uma nova casa para eles.

- Ele pode ter sido corajoso, mas foi tolo - respondeu Creb. - Abandonou seu clã e a casa dos antepassados dele, correndo um grande risco. E para quê? Para achar alguma coisa diferente. Não estava satisfeito onde estava. Há muitos rapazes que acham ter sido Durc corajoso, mas, quando vão ficando mais velhos e sabidos, aprendem que não é bem assim.

- Acho que gosto de Durc porque ele era diferente - disse Ayla. - Esta é a minha história preferida.

Ayla viu as mulheres levantando-se para começar a fazer a comida da noite e, imediatamente, ergueu-se, indo acompanhá-las. Depois que a menina saiu, Creb abanou a cabeça. Todas as vezes em que começava a acreditar que Ayla já estava aprendendo e aceitando as maneiras de ser das pessoas dos clã ela vinha ou saía com alguma coisa que o deixava pensando. Não que fizesse nada de mal ou de errado, simplesmente não era o jeito deles. Supunha-se que a lenda fosse para mostrar o erro que existe em querer mudar velhos costumes, mas o que Ayla admirava nela era o estouvamento do rapaz à procura de novidades. Será que algum dia ainda conseguiria pensar como todo mundo?, perguntava-se Creb. No entanto, ela aprende rápido, admitiu consigo mesmo.

À idade de sete ou oito anos, esperava-se que as meninas dos clãs já estivessem bem versadas nas tarefas de uma mulher adulta. Muitas ficavam menstruadas por essa época e, em breve, já teriam companheiros. Quase dois anos depois de terem encontrado Ayla - sozinha, morta de fome, sem saber procurar comida para alimentar-se - ela já havia aprendido não só como encontrar alimentos, mas também como os preparar e conservá-los. Além disso, podia executar muitos outros importantes serviços, senão de forma competente, como as mulheres mais velhas e experientes, pelo menos tão bem quanto as mais jovens.

Ela podia pelar um animal e preparar o couro para fazer roupas, capas e bolsas a serem usadas de várias maneiras. Podia cortar, de uma peça de couro, tiras em espiral de igual largura. As suas cordas, feitas de crina animal, tendões ou fibras vegetais, eram fortes e grossas ou finas e delicadas, dependendo do uso que se lhes quisesse dar. As cestas, esteiras e redes que tecia com gramíneas ou com fibras de raízes ou ainda com cascas de árvores eram de excepcional qualidade. Podia esculpir uma machadinha do nódulo de uma pedra ou fazer uma peça de gume tão afiado que até Droog ficava impressionado. Em toras de madeira talhava bacias que aplanava, num acabamento bem burlado. Sabia produzir fogo, fazendo girar nas palmas das mãos a ponta de um pau contra uma tábua até que, por combustão, o carvão aquecido desprendesse fagulhas de fogo, uma tarefa tediosa que ficava bem mais fácil quando executada por duas pessoas se revezando, de modo a manter uma pressão firme e constante no trabalho de girar o pau. O mais surpreendente, no entanto, é que estava absorvendo os conhecimentos médicos de Iza, para o que parecia ter inclinação natural Iza tinha razão, pensou Creb, ela aprende mesmo sem dispor das memórias.

Ayla cortava inhames em fatias para pôr numa panela de couro que fervia por cima de uma fogueira. Depois de separar os pedaços podres, não sobrara muita coisa de cada legume. O fundo da caverna, onde armazenavam os alimentos, era frio e seco, de modo que, quando ia chegando no final da estação, os vegetais já começavam a ficar podres e sem consistência. A sonhada primavera começou a dar suas primeiras mostras alguns dias antes, quando Ayla viu um fiapo de água por cima do bloco de gelo formado no riacho. Era uma das primeiras indicações de que em breve a água estaria ali escoando livremente. A menina mal aguentava esperar pelos verdes, pelos novos rebentos e pelo mel escorrendo das trincas feitas nos troncos de bordo. O caldo era colhido e fervido por muito tempo em enormes recipientes de pele até que se tornasse num xarope denso e viscoso ou em açúcar cristalizado. Depois, seria guardado em vasilhames feitos de madeira de vidoeiro. Do vidoeiro também escorria uma seiva doce, mas não tanto quanto a do bordo.Ela não era a única dentro da caverna impaciente e aborrecida com o longo inverno. Cedo, naquele dia, o vento havia soprado por algum tempo na direção sul, trazendo o ar quente do mar. A água derretia e pingava das estalactites suspensas no alto da entrada triangular da caverna. A temperatura caindo tornaria a congelar, engrossando os faiscantes pingentes pontudos que, a cada inverno, iam aumentando de volume, quando o vento virava, trazendo de novo do leste as rajadas frias. Mas aquele ar quente respirado pela manhã fez com que todos realmente voltassem seu pensamento para o fim do inverno.

As mulheres tagarelavam e trabalhavam. Enquanto preparavam a comida, as mãos iam conversando com gestos rápidos. No final do inverno, quando os suprimentos começavam a rarear, elas combinavam seus estoques e cozinhavam em conjunto, embora continuassem a comer separadamente, exceto em ocasiões especiais. Esta era uma temporada de muitas festas, e isso ajudava a quebrar a monotonia, apesar de que, chegando o final da estação a comilança já não podia ser tanta. Contudo, tinham bastante comida. A carne fresca de pequenas caças ou de algum velho veado que os caçadores davam um jeito de, entre uma nevasca e outra, botar dentro da caverna era sempre bem-vinda, apesar de não essencial. Mas contavam ainda com um estoque razoável de alimentos em conserva. As mulheres, ainda envolvidas pelo clima de lendas e histórias, ouviam interessadas uma que Aba contava: mas a criança nasceu deformada. A mãe saiu com ela para a floresta, como o chefe havia ordenado, só que ela não teve coragem de deixar o filho morrer. Subiu, então com o bebê numa árvore muito grande e amarrou a criança nos galhos mais altos de todos, de modo que nenhum animal pudesse pegá-la. Quando foi embora, o bebé se pôs a chorar e, de noite, tinha tanta fome que uivava como um lobo. Ninguém conseguia dormir. Mas, enquanto o menino estivesse chorando e soltando uivos, sua mãe sabia que continuava vivo.

“No dia da cerimônia de dar nome, a mãe, bem cedo de manhã subiu outra vez na árvore. E lá estava o filho, Não só vivo, como também sem nenhum dos defeitos de nascença. Ela um menino normal e cheio de saúde. O chefe Não desejava o garoto no clã, mas, já que estava vivo, o menino teria de ser aceito e teria de ter um nome. Mais tarde, depois de já crescido, o menino tornou-se o chefe do clã e nunca deixou de agradecer à mãe por lhe ter salvo a vida. Mesmo depois que ele teve companheira, jamais deixava de trazer para a mãe parte de suas caças. Também nem sequer uma vez bateu ou zangou com ela. Sempre tratou a mãe com veneração e respeito - terminou de contar Aba.

- Que criança aguentaria passar sete dias sem alimento? - perguntou Oga, olhando para Brac, seu filho, uma criança saudável que estava ali por perto dormindo. - E como o filho dela poderia tornar-se o chefe, se sua mãe não era companheira do chefe e nem pertencia a alguém que poderia chegar a esse posto?

Oga sentia-se orgulhosa de seu filho, e Broud ainda mais por ter ela dado à luz, pouco tempo depois da cerimônia deles de acasalamento. Até mesmo Brun relaxava sua postura estóica, quando o bebê estava por perto e, com os olhos eternecidos, segurava a criança que daria continuidade à sua estirpe, formada por uma longa linhagem de chefes de clã.

- Quem seria o próximo chefe, se você não tivesse Brac, Oga? - perguntou Ovra. - O que aconteceria se você Não tivesse filhos, mas só filhas? Talvez o companheiro da mãe fosse o segundo em comando, porque alguma coisa aconteceu com o chefe. - Ela estava um pouco invejosa da outra. Ainda não tivera filho, apesar de ter ficado moça e se unido a Goov antes que Broud houvesse tomado Oga.

- Mas, de qualquer modo, como um bebê que nasceu deformado de repente fica normal e cheio de saúde? - rebateu Oga.

- Imagino que essa história foi inventada por uma mulher que desejava ter tanto um filho normal que esse acabou nascendo defeituoso - disse Iza.

- Mas essa é uma velha lenda, Iza, que há muitas e muitas gerações vem sendo contada. Talvez, em tempos muito distantes, as coisas aconteciam de uma maneira que já não é mais possível. Como a gente pode saber? - falou Aba, defendendo sua história.

- Certas coisas podem ter sido diferentes em outros tempos, Aba, mas penso que Oga está certa. Um bebê que nasce deformado não pode, de repente, aparecer normal e também é muito pouco provável que ele conseguisse viver sem qualquer alimento até o dia de receber seu nome. Bom, mas essa é uma história antiga, quem sabe, talvez haja alguma coisa de verdade nela - condescendeu Iza.

Quando a comida ficou pronta, Iza levou-a para a fogueira de Creb, enquanto Ayla ia atrás fazendo perguntas à contadora de lorotas. Iza estava mais magra, Não tão forte quanto antes e era Ayla quem, na maioria das vezes, carregava Uba. As duas estavam muito ligadas. Uba seguia Ayla por toda parte e esta, por seu lado, jamais parecia aborrecer-se com a garota.

Depois da comida, Uba procurou a mãe para mamar, mas logo começou a ficar agitada. Iza tossia, incomodando a criança. Por fim, entregou Uba, irrequieta e chorosa para Ayla.

- Pegue a menina. Veja se Oga ou Aga pode dar de mamar a ela - disse Iza, irritada, dando uma série de tossidas secas.

- Você está bem, Iza? - perguntou Ayla, com olhar preocupado.

- Não passo de uma mulher velha. Velha demais para ter tido um bebê. Meu leite está secando. É só isso. Da última vez foi Aga quem deu de mamar a Uba, mas acho que agora já deu o peito para Ona e Não deve ter sobrado muito leite. Oga diz que tem leite de sobra. Esta noite leve Uba para ela. - Iza percebeu que Creb a observava com atenção e olhou na direção em que Ayla ia com Uba.

Ayla, ao aproximar-se da fogueira de Broud, passou a caminhar com cuidado, mantendo a cabeça abaixada, em atitude apropriada. À menor infração Broud faria despejar toda sua cólera em cima dela. Tinha certeza de que ele estava sempre procurando motivos para repreendê-la e ela não queria que ele lhe ordenasse levar Uba de volta por qualquer coisa que pudesse fazer. Oga se sentia feliz por dar de mamar à filha de Iza, mas, com Broud observando, não dava para conversar. Quando Uba ficou satisfeita, Ayla levou-a de volta e sentou-se com ela, ninando-a de lá para cá, cantarolando baixinho. Isso sempre parecia acalmar o bebê, enquanto ele não caísse no sono. Há muito Ayla tinha esquecido a língua que falava quando chegou ao clã mas ainda cantava para ninar Uba.

- Eu sou apenas uma mulher velha e ranzinza, Ayla - disse Iza, depois que a menina deitou Uba. - Já estava muito velha para ter tido essa criança. Meu leite está começando a secar e Uba ainda não está no tempo de ser desmamada. Ainda não passou nem pelo seu ano de aprender a caminhar. Mas pode-se dar um jeito nisso. Amanhã vou mostrar para você como se fazem comidas para bebê. Se eu puder evitar, não darei a minha filha para uma outra mulher.

- Dar Uba para outra mulher? Como você pode dar Uba para outra pessoa, ela pertence à gente!

- Ayla, também não quero dar Uba, mas ela precisa comer e não tenho o que dar. Simplesmente não podemos ficar levando a menina de uma mulher para outra, porque não tenho leite bastante. O filho de Oga ainda é bebê, por isso é que ela tem tanto leite. Mas quando Brac ficar maior, ela vai ter só para as necessidades dele. Do mesmo jeito que acontece com Aga agora. O leite de la não vai sobrar, a não ser que tenha sempre um bebê mamando nela - explicou Iza.

- Gostaria de poder dar de mamar a Uba.

- Ayla, você pode ser quase tão alta quanto as outras, mas ainda não é mulher. E nem está mostrando sinais de que tão cedo será. Só depois que se fica mulher é que se pode ser mãe e só depois de ser mãe é que se tem leite. Vamos começar a dar comida normal para Uba e ver como ela reage, mas queria que você soubesse o que terá de fazer. Comidas de bebês têm de ser preparadas de maneira especial. Tudo deve ser bastante macio. Os dentes de leite ainda não conseguem mastigar muito bem. As sementes têm de ser moídas muito finas, antes de ser cozinhadas, a carne-seca tem de ser esmigalhada até virar farinha e cozida com um pouco de água para fazer uma pasta, a carne fresca não pode ser fibrosa, e os legumes têm de ser amassados. Ainda sobraram algumas bolotas de carvalho?

- Até a última vez que olhei, havia uma pilha, mas os ratos e os esquilos roubaram uma porção e muitas estão estragadas - respondeu Ayla.

- Arrume o que você conseguir. Primeiro a gente tira o amargor delas e depois mói para misturar com a carne. Inhame também é bom para ela. Você sabe onde andam aqueles mexilhões pequeninos? São tão pequenos que se ajustam com o tamanho da boca de Uba. Ela precisa aprender a comê-los na própria concha. Estou contente por o inverno estar acabando, na primavera existe mais variedade de tudo.

Iza percebeu o rosto de Ayla, preocupado e ansioso. Mais de uma vez, principalmente neste último inverno, ela dera graças por poder contar com a ajuda sempre prestimosa da menina. Às vezes, imaginava se Ayla não lhe teria sido dada, quando ela estava ainda grávida, para que fosse a segunda mãe da criança que havia chegado tão tarde em sua vida. Mas Não era apenas a idade avançada que estava exaurindo as forças de Iza. Mesmo não admitindo que se falasse de sua saúde e nunca mencionasse a dor no peito e o sangue que ocasionalmente cuspia após acessos de tosse mais fortes, tinha certeza de que Creb estava percebendo seu verdadeiro estado de saúde. Ele também está ficando velho, pensou. Este inverno foi duro também para ele. Ficou muito tempo sentado na pequena caverna, só com uma tocha para esquentá-lo.

A cabeleira hirsuta do velho feiticeiro estava cheia de raias prateadas. A artrite, associada ao aleijão da perna, fazia do ato de andar verdadeiro martírio. Seus dentes, usados anos seguidos para segurar coisas em substituição à mão que faltava, estavam enfraquecidos e doíam. Mas Creb há muito havia aprendido a conviver com a dor e o sofrimento. Sua mente continuava tão poderosa e perceptiva como sempre o fora, e ele se preocupava com Iza. Viu quando a mulher conversava sobre comida de criança com Ayla e também reparara como o físico dela, antes forte e robusto, achava-se agora diminuído. Iza tinha o corpo descarnado e os olhos muito encovados, o que ressaltava ainda mais as saliéncias ósseas sobre os supercílios. Os braços estavam finos e os cabelos começavam a ficar grisalhos, mas o que o incomodava mais era a tosse persistente. Vou ficar feliz quando este inverno acabar de uma vez, disse consigo. Ela está precisando de calor e sol.

O inverno, por fim, soltou a terra de suas garras geladas, mas os dias quentes da primavera chegaram com chuvas torrenciais. Muito tempo depois de o gelo e a neve terem desaparecido das encostas, massas de gelo ainda continuavam despencando dos altos da montanha sobre o riacho transbordante. Lá derretiam, e o acúmulo de água fazia do terreno saturado em frente da caver na um charco escorregadio de lama sempre renovada. Somente as pedras forrando o chão da entrada mantinham a caverna relativamente seca, enquanto a água brotava de dentro da terra.

Mas não seria esse sorvedouro de lama que iria prender o clã à caverna. Depois do longo confinamento, as pessoas saíam em debandada ao encontro dos primeiros raios quentes de sol e das suaves brisas marinhas. Antes que as neves tivessem derretido completamente, elas já estavam descalças, patinhando pela lama ou caminhando pesadamente com botas empapadas. O couro dos calçados era esfregado com camadas extras de gordura, mas nem assim se mantinha seco. Naqueles dias, Iza esteve mais ocupada, tratando de gripes e resfriados, do que durante todo o inverno.

À medida que a estação avançava e o sol chupava a umidade, a paz foi voltando a reinar na vida do clã. O vagaroso e sossegado inverno, passado emtão contando-se histórias, fabricando-se utensílios, armas e outras ocupações sedentárias, mais para matar o tempo, foi substituído por uma primavera buliçosa, cheia de afazeres e actividades febris. As mulheres saíam para colher os primeiros brotos e rebentos, e os homens se exercitavam, preparando-se para a primeira grande caçada da temporada.

Uba resplandecia com a nova alimentação mamando agora mais por hábito, ou apenas para gozar ainda um pouco do calor materno. Iza tossia menos, embora estivesse fraca e sem forças para grandes incursões pelo campo. Creb, com seus passos rastejantes, retomou as caminhadas ao longo do riacho com Ayla. Ela adorava a primavera mais do que qualquer outra estação.

Já que Iza quase nunca podia afastar-se da caverna, Ayla criou o hábito de vagar pelas colinas procurando plantas para reabastecer a farmácia de Iza. Isso deixava Iza preocupada, pois as outras mulheres estavam catando plantas alimentícias que nem sempre davam no mesmo lugar que as medicinais. De vez em quando, Iza saía com Ayla, principalmente para introduzi-la no conhecimento de novas plantas ou para que aprendesse a identificar as já conhecidas no seu estágio de formação e pudesse, mais tarde, saber onde procurá las. Apesar de Ayla carregar Uba, as poucas saídas de Iza lhe eram muito cansativas e, relutante, viu-se obrigada a permitir que Ayla cada vez mais saísse sozinha.Ayla descobriu que adorava suas explorações solitárias. Estar fora da constante vigilância do clã dava-lhe uma sensação de imensa liberdade. Isso Não queria dizer que Não saísse com as mulheres, mas, sempre que dava um jeito, corria com seu serviço, de modo a lhe sobrar tempo para fazer suas incursões sozinha pela mata. Trazia Não só plantas já conhecidas, mas outras que desconhecia para que Iza as identificasse.

Brun Não se opunha de forma declarada. Compreendia a necessidade de alguém buscar as plantas para Iza preparar suas mágicas curativas. Também a ele Não passou despercebida a doença dela. Mas a pressa de Ayla em ver-se sozinha o desconcertava. Nenhuma mulher do clã sentia prazer em estar só. Iza, por exemplo, todas as vezes que saía para procurar alguma coisa mais especial, ela o fazia com certas precauções e um tanto medrosa, sempre voltando o mais rapidamente possível, se estivesse sozinha. Ayla, no entanto, jamais fugia às suas responsabilidades, sempre se comportando de forma adequada, de modo a Não haver nada que Brun pudesse apontar como errado. Era mais um sentimento - algo na atitude, na maneira de encarar as coisas, no modo de pensar, Não que fosse propriamente errado, mas diferente - que fazia Brun ficar tenso em relação a ela. Todas as vezes em que saía, voltava sempre com as dobras da roupa e as cestas cheias de plantas e, uma vez que essas coletas eram necessárias, o chefe não podia reclamar.

Vez por outra, ayla trazia mais do que simples plantas. Aquela sua excentricidade inicial, que tanto tinha surpreendido o clã, tornara-se num hábito. Apesar de que já se estivessem acostumando, as pessoas ainda se espantavam quando ela chegava com algum animal ferido ou doente para ser tratado na caverna, O coelho que encontrara pouco depois do nascimento de Uba foi apenas o primeiro de uma série de animais. A garota tinha um jeito especial para lidar com bichos. Parecia que eles sabiam que ela queria ajudá-los. E,já que estava estabelecido o precedente, Brun não se mostrava mais inclinado a modificar tal comportamento. Só uma vez não deixaram. Foi quando ela chegou com um filhote de lobo. Animais carnívoros, isso já era demais, pois eles competiam com os caçadores. Já ocorrera diversas ocasiões, quando estavam no rastro de algum animal, às vezes já ferido e pronto para ser apanhado, no último instante, surgir um carnívoro esperto arrebatando-lhes a presa. Brun não poderia permitir que Ayla tratasse de um animal que, talvez algum dia, fosse roubar caças de seu clã.

Certa vez, quando Ayla, de joelhos, escavava uma raíz, um coelho, com uma das patas traseiras ligeiramente torta, saltou do mato e veio farejar-lhe os pés. Primeiro, ela ficou muito quieta, em seguida, sem qualquer movimento brusco, estendeu a mão para acariciá-lo. Você é o coelhinho que eu ninei? E agora virou este coelhão grande e forte? Será que ainda Não aprendeu a tomar cuidado com as pessoas? Olhe que escapou por um triz. Um dia pode acabar em cima de uma fogueira, dizia, enquanto lhe alisava os pêlos macios. Alguma coisa fez assustar o coelho e ele pulou, voando numa determinada direção depois, mudando de opinião saltou para o lado de onde viera.

- Você anda tão rápido, não entendo como as pessoas conseguem pegá-lo. Como consegue dar essas viradas tão depressa?, disse Ayla, rindo, depois de o coelho haver ido embora. De repente, deu-se conta de que era a primeira vez, depois de muito tempo, que ria em voz alta. Raramente o fazia, quando se achava em meio ao clã, isso sempre atraía olhares de reprovação. Naquele dia, muitas outras coisas engraçadas ela ainda ia encontrar.

- Ayla, esta casca de cerejeira está velha. Já não presta mais - gesticulou Iza, certa manhã ainda bem cedo. - Quando você sair hoje, veja se arruma algumas que estejam novas. Há uma quantidade de cerejeiras perto da clareira atravessando o riacho. Sabe onde é? Pegue as cascas de dentro. Esta é a melhor época do ano para isso.

- Sim, mãe. Sei onde ficam - respondeu a menina.

Era uma bela manhã de primavera. O vermelho e o branco dos últimos açafrões aninhavam-se ao lado dos pés altos e graciosos dos primeiros junquilhos amarelos claros. Um tapete ralo de relva, apenas começando a brotar, era uma leve camada esverdeada de minúsculas folhinhas sobre a terra escura e úmida das clareiras e montes. Pontinhos verdes salpicavam os galhos nus dos arbustos, e as árvores, com os primeiros rebentos, retomavam sua luta pela vida, enquanto outras, de pontas brancas, eram os salgueiros botando para fora sua falsa pelúcia. Um sol suave encorajava a mais outro renascer.

Logo que se via fora da vista do clã, o andar rígido e a postura séria de Ayla se relaxavam e ela passava a caminhar com o balanço normal de seu corpo. Enquanto deslizava por uma pequena encosta e subia por outro lado, levava nos lábios um sorriso inconsciente, refletindo-lhe a liberdade dos movimentos espontâneos. Vasculhava a vegetação enquanto ia passando com aparente indiferença, mas na verdade com a cabeça trabalhando ativamente na classificação e memorização das plantas, para futuras referências.

Lá estão as ervas-do-cancro crescendo, disse consigo, enquanto passava por um vale pantanoso, onde colhera as frutinhas vermelhas desta planta no último outono. Na volta, pego suas raízes. Iza diz que são boas para o reumatismo de Creb. Tomara que as cascas de cerejeira façam bem para a tosse dela. Acho que Iza já está melhorando, mas ainda está muito magra. Uba está ficando grande e pesada, Iza não deve mais carregá-la. Se puder, talvez eu traga Uba na próxima vez. Estou muito contente porque não tivemos de dar Uba para Oga. Ela realmente está começando a falar agora. Vai ser divertido quando crescer um pouco mais e nós duas pudermos sair juntas. Olhe aqueles salgueiros! Engraçado como as folhas novas parecem com uma penugem de ver dade, mas depois ficam verdes, O céu está tão azul hoje! Posso sentir o cheiro do mar no vento. Gostaria de saber quando a gente irá pescar. Dentro de pouco tempo, a água já vai estar bastante quente para isso. Por que será que ninguém mais gosta de nadar? O mar tem gosto salgado, é diferente do riacho e nas águas do mar eu me sinto tão leve... estou doida para ir pescar. Acho que gosto mais dos peixes de água salgada, mas também gosto muito dos ovos. E adoro subir nos penhascos para pegá-los. O vento é tão gostoso lá no alto. Olhe um esquilo! Como sobe rápido numa árvore. Queria subir igual a ele.

Durante toda a metade da manhã, Ayla ficou rondando os bosques das encostas. De repente, dando.se conta de que estava ficando tarde, tomou a direção da clareira para buscar as cascas de cerejeiras pedidas por Iza. Ao aproximar-se, ouviu barulho de movimentos e, vez por outra, o som de alguma voz. Eram os homens que se encontravam na clareira e ela deu uma rápida olhada neles. Começava a voltar, mas se lembrou das cascas de cerejeiras, ficando por um momento indecisa. Os homens não vão gostar de me ver por aqui, pensou consigo. Brun pode ficar zangado e nunca mais me deixar sair sozinha. Mas Iza precisa das cascas de cerejeira. Talvez, eles vão logo embora. Mas oque será que estão fazendo? Pisando muito de leve, ela se aproximou mais e se escondeu atrás de uma grande árvore, pondo-se a espiar por entre o emaranhado da galhada sem folhas.

Os homens achavam-se ali praticando com as armas, preparando-se para uma caçada. Lembrou-se de tê-los visto fazendo suas novas lanças. Eles cortavam árvores novas, de troncos delgados, flexíveis e retos. Retiravam-lhes os galhos, faziam pontas numa das extremidades, queimando-as no fogo e, de pois, com um resistente raspador de pedra, davam o acabamento final. O calor endurecia a madeira, impedindo as pontas de partirem ou lascarem facilmente. Ela ainda se encolhia toda à lembrança da confusão que arrumara por ter tocado numa daquelas lanças.

Mulheres não tocam em armas, disseram-lhe então. Nem mesmo nos instrumentos usados para fabricar as armas. Se bem que ela não via a menor diferença na faca que cortava tiras num pedaço de couro para fazer fundas e a que cortava uma capa. A lança em que ela encostara a mão foi queimada, sob os olhares irritadíssimos do caçador que a tinha feito. Creb e Iza submeteram- na a uma longa preleção gesticulada, de modo que ficasse bem gravado em sua mente o ato abominável que praticara. As mulheres ficaram horrorizadas de ela ter pensado em fazer tal coisa e o brilho no olhar de Brun não deixava dúvida sobre o que estava pensando a respeito. Mais do que tudo, porém, odiou o prazer que viu estampado no rosto de Broud, enquanto as recriminações iam chovendo sobre ela. O rapaz simplesmente exultava.

Meio assustada, de trás da cortina de galhos, ficou observando-os no campo de treinamento. Além das lanças, havia outros tipos de armas. Num ponto mais afastado, Dorv, Grod e Crug discutiam os méritos das lanças versus as maças. Os outros estavam quase todos treinando com fundas e bolea deiras. Vorn achava-se com eles. Brun resolveu que já era tempo de lhe ensinar os primeiros manejos da funda e Zoug explicava ao garoto.

Desde os cinco anos que os homens, vez ou outra, começaram a trazer Vorn com eles para o campo de treinamento. O garoto passava a maior parte do tempo se exercitando com uma miniatura de lança que fincava na terra fofa ou em algum toco podre de madeira, só para ir começando a pegar o jeito da arma. Aquela era a primeira vez que iam ensinar-lhe a difícil arte da funda. Um poste fora cravado no chão e, não muito longe, achava-se uma pilha de pedras arredondadas, apanhadas ao longo das margens do riacho.

Zoug mostrava a Vom como segurar juntas as duas pontas da tira de couro e como colocar a pedra na pequena bolsa no centro da correia. Era uma funda já bastante gasta que Zoug ia botar fora, quando Brun lhe pediu para começar a treinar o garoto. O velho achou que ela ainda podia servir, se ele a encurtasse um pouco para adaptá-la ao tamanho de Vom.

Ayla observava e se viu interessada na lição. Estava tão concentrada nas explicações e demonstrações de Zoug quanto o menino. Em sua primeira tentativa, Vom emaranhou a funda e a pedra lhe caiu aos pés. Era difícil para ele pegar o jeito de fazer girar a arma até que esta desenvolvesse a força centrífuga necessária para arremessar a pedra. O menino sempre deixava cair a pedra antes de ter conseguido imprimir velocidade suficiente para mantê-la segura no bojo da correia.

Broud achava-se perto, observando. Vorn era o seu protegido, e Broud, por sua vez, era objeto de admiração do menino. Fora o jovem quem fizera a pequena lança que Vom carregava por toda parte, até mesmo para a cama, e fora também o rapaz quem lhe mostrara como segurar a arma, discutindo com ele o equilíbrio e as estocadas, como se Vorn fosse um igual. E agora o menino dirigia toda sua admiração para o velho caçador, fazendo Broud sentir- se afastado de suas atenções. Queria ser ele sozinho a ensinar tudo a Vorn e ficara furioso quando Brun pedira a Zoug para instruir o menino no uso da funda. Depois de diversas tentativas malsucedidas de Vom, Broud interrompeu a lição.

- Olhe, deixe eu mostrar como se faz isso - gesticulou Broud, pondo o velho caçador de lado.

Zoug deu um passo para trás, lançando um olhar penetrante ao rapaz. Todo mundo parou para ver. Brun fuzilava com os olhos. Não gostava nem um pouco do tratamento arrogante que Broud estava dando ao melhor atirador do clã. Havia pedido a Zoug, não a Broud, para treinar o menino. Uma coisa é mostrar interesse por Vom e, outra, é levar o assunto tão longe assim. O menino devia aprender com o melhor, e Broud sabia perfeitamente que esta não era sua arma por excelência. Precisava entender que um bom chefe tem de saber reconhecer a competência de cada um. E nisso, Zoug é o que tem mais capacidade, além do que terá tempo de ensinar ao menino, enquanto estivermos caçando. Broud está ficando muito dominador, orgulhoso demais. Como vou poder promovê-lo de posto, se não pode mostrar bom senso? Tem de aprender que não é tão importante só porque chegará a ser chefe, e não o será, se for só por isso.

Broud pegou a funda de Vom e apanhou uma pedra. Inseriu-a no bojo da tira e a atirou na direção do marco. A pedra caiu a uma pequena distância do poste. Este era o problema mais comum que os homens do clã tinham com a funda. Precisavam aprender a compensar suas limitações físicas que lhes impediam de fazer um arco completo com os braços. Broud estava furioso por ter perdido o tiro e se sentia um pouco tolo. Pegou outra pedra, lançando-a apressadamente, querendo provar que poderia fazer a coisa. Sabia que estava sendo observado por todos. A funda era mais curta do que as outras com que estava acostumado e a pedra saiu, desviando-se à esquerda, ainda sem atingir o poste.

- Você está querendo ensinar Vom ou está pretendendo ter algumas aulas, Broud? - gesticulou Zoug, com ar de troça. - Se quiser, ponho o poste mais perto.Broud se esforçava por dominar seu gênio. Não gostava de se ver objeto das zombarias de Zoug e estava furioso de perder os tiros, depois de toda a discussão que armara. Atirou outra pedra e, desta vez, para compensar a pequena distância das outras anteriores, botou força demais, lançando-a para além do marco.

- Se esperar até terminar a aula do garoto, tenho, o maior prazer em lhe dar uma lição, Broud - gesticulou Zoug, numa postura que expressava um sarcasmo dos mais ferinos. - Parece que está precisando. - O orgulhoso velho se sentia vingado.

- Como Vorn pode aprender com uma funda velha e estragada como essa? - esbravejou Broud, defendendo-se e atirando com desprezo ao chão a tira de couro. - Ninguém conseguiria atirar uma pedra com esse trapo velho. Vorn, vou fazer uma funda nova para você. Não pense que vai aprender atirando com este lixo velho. Ele já nem mais caçar pode.

Desta vez, Zoug zangou-se de verdade. Sair das fileiras dos caçadores na ativa era como uma punhalada no orgulho de todo homem, e Zoug, para guar dar uma certa medida dos feitos passados, dera duro, aperfeiçoando-se no tiro com funda. Ele já fora o segundo em comando, tal como o filho de sua companheira, e seu orgulho era particularmente melindroso.

- É melhor ser um homem velho do que um garoto que se julga homem - replicou Zoug, pegando a funda nos pés de Broud.

A alusão pondo em dúvida sua virilidade era demais para o rapaz. Foi a gota d’água. Ele não se aguentou mais e deu um soco no velho. Zoug, surpre endido em sua guarda, desequilibrou-se e caiu pesadamente no chão. Ficou sentado no mesmo lugar em que caiu, com as pernas estendidas, olhando, espantado, para cima. Era a última coisa que esperava.

Os caçadores dos clãs nunca agrediam fisicamente uns aos outros. Este era um castigo reservado às mulheres que não tinham inteligência para com preender reprimendas mais sutis. As energias dos jovens eram canalizadas para lutas corporais arbitradas, competições de corridas com estocadas de lanças ou disputas de caçadores com fundas e boleadeiras, o que lhes servia também para aperfeiçoar o manejo das armas de caça. A competência na caçada e a autodisciplina eram a medida de virilidade dos clãs, que dependiam da cooperação para sua sobrevivência. Broud se viu quase tão surpreso quanto Zoug com a impulsividade do gesto e, logo que compreendeu o que fizera, seu rosto ficou rubro de vergonha.

- Broud! - A palavra havia saído da boca do chefe, num som parecido a um ronco tirado do fundo do peito. Broud olhou para cima e se encolheu.Nunca tinha visto Brun tão furioso. O chefe se aproximou, pisando duro, com gestos rlgorosamente controlados e se expressando de forma abreviada.

- Esta demonstração infantil de falta de controle é indesculpável Se seu posto como caçador já não fosse o mais baixo de todos, era para onde você iria agora. Em primeiro lugar, quem lhe disse para interferir na aula do garoto? Por acaso, eu ou Zoug lhe dissemos para treinar Vorn? - Os olhos de Brun flamejavam de cólera. - Você se diz caçador? Nem homem pode dizer que é! Vorn sabe controlar-se melhor do que você. Até uma mulher tem mais autodisciplina. Você é um futuro chefe, é assim que irá conduzir os homens? Espera controlar um clã, quando nem se controlar pode? Não esteja tão seguro de seu futuro, Broud. Zoug tem razão. Você é uma criança que pensa que é homem.

Broud estava mortificado. Nunca fora humilhado de modo tão arrasador e, ainda por cima, à vista dos caçadores e de Vom. Sua vontade era correr e sumir. Jamais iria recuperar-se dessa humilhação. Antes enfrentar um leão da caverna do que a fúria de Brun. Sobretudo de Brun, que dificilmente, deixava transparecer sua raiva e poucas vezes tinha necessidade de fazê-lo. Um só olhar penetrante do chefe, o digno e capaz comandante, aquele que era senhor de uma autodisciplina inquebrantável, bastava para que todos - homens e mulheres - imediatamente se pusessem às suas ordens. Broud, submisso, curvou a cabeça.

Brun olhou na direção do sol e fez o sinal para partir. Os caçadores, que se sentiam pouco à vontade testemunhando aquele sermão duríssimo, deram graças por poder ir embora. Puseram-se atrás do chefe que, com passadas largas, voltou à caverna. Broud foi para a retaguarda com o rosto ainda pegando fogo.

Ayla agachou-se, completamente imóvel, presa ao chão, quase sem respirar. O medo de ser vista paralisava-a. Sabia ter presenciado uma cena a que nenhuma mulher poderia assistir. Broud jamais teria sido castigado daquela maneira na frente de uma mulher. Os homens, seja lá por que motivo fosse, mantinham sua confraria e estavam sempre solidários quando elas se achavam por perto. O episódio, no entanto, mostrou a Ayla um lado que nunca imaginou existir. Os homens, afinal, não eram os agentes supremos e livres que reinavam impunemente sobre tudo, como ela pensara. Também eles tinham de seguir regras e podiam ser repreendidos. Somente Brun parecia ser uma figura onipotente, pairando acima de todas as coisas. Ela não entendeu que Brun, mais do que qualquer outro, achava-se submetido a uma série de obrigações: às tradições e aos costumes, a seu senso de responsabilidade e aos insondáveis vaticínios dos espíritos que controlavam as forças da natureza.

Por muito tempo depois de os homens terem partido, Ayla ainda permaneceu em seu esconderijo, com medo de que eles voltassem. E foi apreensiva, quando, por fim, ousou sair de detrás da árvore. Apesar de não ter entendido perfeitamente aquela nova faceta que surpreendera nos homens do clã, uma coisa pelo menos compreendeu: vira Broud tão submisso quanto qualquer mulher e isso a enchia de prazer. Havia aprendido a odiar aquele arrogante rapaz que, impiedosamente, a agredia, ralhando por pequenos nadas, pudesse ela ter razão ou não, e que a fazia com frequência ostentar no corpo as marcas de seu gênio explosivo. Por mais que tentasse, jamais conseguia satisfazê-lo.

Pensando no incidente, Ayla se pôs a caminhar pela clareira, quando viu próximo ao marco de tiro a funda que Broud no seu rompante de fúria atirara ao chão. Ninguém se lembrara de levá-la. Olhou-a com receio de tocá-la. Era uma arma, e o medo de Brun fê-la tremer diante do pensamento de praticar qualquer coisa que o pusesse tão furioso com ela quanto ficara com Broud. Sua mente ia repassando a série de incidentes que acabara de presenciar e a visão da tira de couro trazia-lhe à lembrança as instruções de Zoug a Vorn e da dificuldade do garoto para pegar o manejo da arma. Seria tão difícil assim? Será que, se Zoug me ensinasse, eu Conseguiria?

Só em pensar nisso ficou apavorada e olhou em derredor para se certificar de que estava realmente sozinha e de que não havia ninguém ali vendo-a e lendo seus pensamentos. Nem Broud tinha conseguido, recordava-se. À lembrança de Broud tentando atingir o poste e dos gestos depreciativos de Zoug, a menina deu um leve sorriso.

Ele não ficaria furioso se eu fizesse uma coisa que ele não consegue? Agradava-lhe o pensamento de poder superar Broud em algo. Passou mais uma vista de olhos à sua volta, olhou receosa para a funda, depois agachou-se e a pegou. Sentiu nas mãos a maciez do couro muito manuseado e, de repente, pensou no castigo que receberia, se alguém a visse com uma funda na mão. Quase a largou outra vez, quando deu uma rápida olhada pela clareira, na direção em que os homens haviam saído. Seus olhos deram com a pilha de pedras.

Será que consigo? Brun ficaria enlouquecido se me visse. Nem sei o que faria. E Creb diria que sou muito má. Só por tocar nesta funda eu já sou má. Mas que mal pode haver em tocar num pedaço de couro? Só porque é usada para atirar pedras? Será que Brun me bateria? Broud, tenho certeza que sim. Ficaria feliz em me ver pegar nessa coisa, teria assim uma desculpa para me bater. Mas também ficaria louco da vida, se soubesse que eu vi o que aconteceu aqui. Todos eles ficariam furiosos. Será que poderiam ficar com mais raiva ainda, se eu tentasse atirar? O mal é um só, não é? Será que eu conseguiria atingir o poste com uma pedra?

Ela se dividia entre a vontade de experimentar sua pontaria e a certeza de que estava fazendo algo proibido. Ela estava errada, disso sabia. A vontade, porém, era grande. Mais uma ou menos uma Coisa má, que diferença faz?

Ninguém vai ficar sabendo, aqui não existe outra pessoa só eu. Outra vez, com os olhos culposos, deu uma olhada à sua volta. Em seguida, dirigiu-se para o monte de pedras.

Pegou uma, tentando lembrar-se das instruções de Zoug. Com cuidado, juntou as duas extremidades da correia, segurando-as firmemente. O couro fazia uma alça bamba, pendurada. Sentia-se desajeitada e sem muita certeza de como colocar a pedra no meio da velha tira de couro. Por diversas vezes, a pedra caiu no momento em que a menina começava a rodar a funda. Concentrava-se, procurando visualizar as demonstrações de Zoug. Tentou novamente, quase conseguindo dar partida, mas a funda tornou a ficar pendurada e a pedra voltou a cair.

Na vez seguinte, Ayla conseguiu dar algum impulso e a pedra foi lançada a uma certa distância. Animada, pegou outra. Depois de mais algumas partidas erradas, conseguiu lançar uma segunda pedra. As três tentativas seguintes fracassaram, mas então uma voou, caindo afastada, e já não tão longe do poste. Começava a pegar o jeito.

Quando a pilha de pedras terminou, ela tornou a juntá-las e, depois, por mais uma terceira vez. Na quarta pilha, já era capaz de atirar a maioria das pedras, deixando cair muito poucas. Olhou para o chão, havia três pedras. Pegou uma, colocou-a na funda, girou a arma sobre a cabeça e a pedra partiu como uma bala. Ouviu, então, um tilintar no poste, a pedra sendo ricocheteada, e um salto no ar extravasou as emoção da vitória.

Consegui! Acertei no poste! Foi por pura sorte, um feliz acaso, mas isso não diminuía sua alegria. A pedra seguinte voou longe, passando muito além do marco e a última caiu pouco adIante dela. Mas não importava, havia conseguido uma vez, e tinha certeza de que poderia repetir o feito.

Estava catando as pedras para empilhar novamente, quando reparou no sol já perto do horizonte. De repente, lembrou-se de que deveria estar pegando cascas de cerejeira para iza. Como pôde o tempo passar tão depressa? Será que fiquei a tarde inteira aqui? Iza e Creb devem estar preocupados. Rapidamente, meteu a funda numa dobra da roupa e correu para os pés de cerejeira. Com a faca, retirou as cascas de cima dos troncos e raspou as camadas mais internas, até conseguir soltar umas lascas finas e compridas. Voltou para a caverna o mais depressa que pôde, só diminuindo o passo perto do riacho, quando reassumiu a postura circunspecta, própria das mulheres. Tinha medo de que fossem arrumar confusão com ela por ter passado tanto tempo fora. Não desejava dar motivos para que as pessoas se pusessem ainda mais raivosas.

- Ayla, onde você andou? Estava morrendo de preocupação. Pensei até que você tivesse sido atacada por um bicho. Já ia pedir a Creb para mandar Brun procurá-la - era Iza ralhando com ela, logo que a viu chegando.

- Estava dando uma olhada por aí, para ver se havia alguma coisa nova, lá perto da clareira - respondeu Ayla, sentindo-se culpada. - Não percebi que já estava tão tarde. - Isso era verdade, mas só pela metade. - Aqui estão as cascas de cerejeira... as ervas-do-cancro estão nascendo no lugar onde deram no ano passado. Você não me disse que as raízes dessa planta são boas também para o reumatismo de Creb?

- Disse. Mas você tem de pôr a raiz de molho e fazer compressas para aliviar a dor. Com as frutas se faz chá, e o suco que se espreme delas é bom para tumores e inchações - estava Iza respondendo automaticamente, quando de repente interrompeu. - Ayla, você está querendo me distrair com essas perguntas sobre remédios? Sabe perfeitamente que não deve ficar fora tanto tempo e me deixar preocupada dessa maneira. - Sua raiva, depois de ter visto a menina, tinha passado, mas queria ter certeza de que ela não iria mais ficar tanto tempo fora sozinha. Nunca deixava de ficar preocupada quando Ayla saía.

- Não vou tornar a fazer isso outra vez, sem avisar antes, Iza. É que ficou tarde e eu não percebi.

Ao entrarem na caverna, Uba, que passara o dia procurando por Ayla, estava lá vigiando a entrada. Com suas perninhas rechonchudas e curvas, foi correndo na direção dela, mas tropeçou no momento em que ia alcançá-la. Ayla conseguiu ainda pegá-la antes que caísse, suspendendo-a e rodando com a menininha no ar.

- Será que um dia desses vou poder levar Uba comigo, Iza? Eu não ficaria muito tempo fora. Já posso ir começando a mostrar algumas coisas para ela.

- Uba é ainda muito pequena para entender. Só agora é que está começando a falar - disse Iza. Mas, vendo como as duas ficavam felizes juntas, acrescentou: - Se você não for longe, acho que de vez em quando pode levar Uba com você.

- Ah, que bom! - falou Ayla, dando um abraço em Iza, com a menina ainda no colo.

Suspendeu a garotinha, rindo em voz alta. Uba olhava-a com olhos brilhantes, cheios de adoração. - Não vai ser divertido, Uba? - disse, depois de botá-la no chão. - Mamãe deixou que você viesse comigo.

O que deu nessa menina?, pensou Iza. Há muito tempo que não a vejo tão excitada. Hoje, parece que o ar está cheio de estranhos espíritos. Primeiro, os homens voltam cedo e não fazem a roda de conversa como de costume. Cada um vai para sua fogueira e nem presta atenção nas mulheres. Não vi nenhuma recebendo pito, hoje. Até Broud chegou quase a ser delicado comigo. Agora é Ayla. Passa o dia inteiro fora e volta, excitada, abraçando todo mundo. Positivamente, não estou entendendo.

 

- Ah, você? O que deseja? - gesticulou Zoug, com impaciência. Fazia

- um calor fora do comum, pois o verão apenas estava começando.

Zoug tinha sede, sentia-se desconfortável, suava debaixo do sol quente, e o raspador com que trabalhava um enorme couro de veado estava cego. Cheio de azedume, não queria ser interrompido, sobretudo por aquela garota feia de cara achatada que se sentava de cabeça baixa, ali perto, à espera de que ele tomasse conhecimento de sua presença.

- Zoug gostaria de beber um pouco d”água? - gesticulou Ayla, depois de respeitosamente reparar na pancadinha dada em seu ombro. - Esta menina estava junto da fonte e viu o caçador trabalhando debaixo do sol. Esta menina achou que o caçador talvez estivesse com sede. Ela não desejava interromper - continuou Ayla, usando o tratamento cerimonioso devido a um caçador. Estendeu-lhe uma caia feita de vidoeiro, enquanto segurava um odre gotejando água fresca, o qual era feito do estômago de um cabrito-montês.

Zoug grunhiu afirmativamente, escondendo sua surpresa diante de tanta solicitude, enquanto Ayla despejava água na cuia para lhe dar. Ele não havia conseguido captar o olhar de nenhuma mulher e não estava querendo largar o serviço no ponto em que este se encontrava. O couro achava-se quase seco. Para que o material ficasse flexível e macio, como ele desejava, era mportante que Não interrompesse o trabalho naquele instante. Seu olhar se guiu a menina, enquanto ela foi botar o cantil com água sob uma sombra e, em seguida, voltando com um feixe de palhas e algumas raízes embebidas em água para tecer um cesto.

Apesar de que Ika sempre se mostrasse respeitosa e respondesse a seus chamados prontamente, desde que ele havia mudado para a fogueira do filho de sua companheira, poucas vezes ela procurava adivinhar-lhe os desejos como o fazia sua companheira quando ainda vivia. A primeira atenção de Ika era sempre para Grod, e Zoug sentia falta dos pequenos cuidados que só uma devotada companheira sabe dar. Vez por outra, Zoug lançava um olhar à garota sentada perto dele. Estava silenciosa, concentrada no trabalho. O Mog ur educou-a bem, pensou ele. Não reparava que ela o vigiava com o canto dos olhos, enquanto ele ia puxando, esticando e raspando o couro umedecido.Mais tarde naquele dia, Zoug foi sentar-se sozinho em frente da caverna, com os olhos parados, perdidos na distancia. Os caçadores haviam saído. Ika e mais duas outras mulheres tinham ido com eles. Zoug comera na fogueira de Goov e Ovra. Vendo Ovra, mulher feita e com companheiro, quando há bem pouco tempo não passava de uma garotinha nos braços de Ika, ele ficou pensando na passagem dos anos que havia levado suas forças, impedindo-o de acompanhar os caçadores. Saíra quase imediatamente depois de ter comido e estava lá em meio às suas divagações, quando reparou na menina encaminhando-se para ele, trazendo na mão uma cesta de vime.

- Esta menina apanhou mais framboesas do que podemos comer - falou, depois de ele ter indicado que a estava vendo. - Gostaria o caçador de comê-las para que não sejam desperdiçadas?

Zoug aceitou a cesta oferecida com um prazer que mal conseguia disfar çar. Ayla foi sentar-se em silêncio, a uma distância respeitosa, esperando Zoug saborear as doces e suculentas framboesas. Depois que terminou, ele lhe devolveu a cesta, e Ayla rapidamente se retirou. Não sei por que Broud diz que ela é insolente, pensou, observando-a ir embora. Não vejo nada de errado nela, fora o fato de ser extraordinariamente feia.

No dia seguinte, ela trouxe novamente água fresca da fonte, enquanto Zoug trabalhava e arrumou perto dele o material da cesta que estava fazendo.

Mais tarde, quando Zoug estava acabando de esfregar gordura no couro, o Mog-ur veio caminhando em sua direção.

- É um serviço duro esse de curtir couro no sol - gesticulou o Mog-ur.

- Estou fazendo novas fundas para os homens e prometi dar uma nova para Vorn. O couro para fabricar fundas tem de ficar flexível, por isso não se pode parar com o trabalho enquanto ele está secando, e a gordura também precisa ser completamente absorvida. É melhor fazer isso no sol.

- Tenho certeza de que os caçadores vão ficar satisfeitos em ter novas fundas - observou o Mog-ur. - Todos sabem que em matéria de funda você é um grande especialista. Tenho observado Vorn e você juntos. Ele tem sorte de poder contar com um professor como você. é uma técnica difícil de dominar e deve ser também uma arte fazer fundas.

Zoug curvou a cabeça, agradecendo os elogios do feiticeiro.

- Amanhã, vou cortá-las, O tamanho dos homens, eu sei qual é, agora o de Vom tem de ser ajustado para ele. Para se obter melhor pontaria e mais força no tiro, a funda precisa ser feita de acordo com o tamanho do braço.

- Iza e Ayla estão preparando a codorna que você nos trouxe outro dia, como a parte devida ao Mog-ur. Iza está ensinando a menina a fazer do jeito que eu gosto. Gostaria de comer esta noite na fogueira do Mog-ur? Ayla me pediu para convidá-lo e eu teria grande prazer com sua companhia. Às vezes, um homem gosta de falar com outro, e na minha fogueira só há mulheres.

- Zoug comerá com o Mog-ur - respondeu o velho, visivelmente feliz.

Embora festas em comum fossem frequentes e muitas vezes duas famílias se reunissem para comer juntas, principalmente no caso de parentes, era difícil o Mog-ur convidar alguém para sua fogueira. Ainda era um tanto novidade para ele ter um lugar que de fato lhe pertencia e, por outro lado, sentia prazer em poder ficar à vontade na companhia das mulheres de sua fogueira. Mas ele conhecia Zoug desde os tempos de menino e sempre o havia respeitado e gostado dele. O prazer que vira no seu rosto fê-lo pensar que já deveria ter feito isso há mais tempo. Estava contente por Ayla haver lembrado. E afinal de contas, foi Zoug quem tinha dado a codorna.

Iza não estava acostumada a companhias. Ficava preocupada, aflita, ir ritando-se por nada. Seus conhecimentos de ervas eram aplicados tanto a remédios como a temperos. Sabia como combiná-las apropriadamente e como dar um toque sutil de modo a realçar o sabor dos alimentos. A refeição ficou deliciosa e Ayla mostrava-se especialmente atenciosa, mas de forma discreta, e o Mog-ur se sentia satisfeito com as duas. Depois de os dois homens estarem bem fartos, Ayla serviu-lhes um suave chá de camomila e menta, que Iza disse ser bom para ajudar a digestão Com duas mulheres sempre prontas para adivinhar-lhes os desejos e um bebê rechonchudo e alegre que se arrastava para os seus colos, puxando-lhes as barbas, os dois se sentiram jovens outra vez, muito à vontade, conversando sobre os velhos tempos. Zoug estava reconhecido pelo convite e também um pouco invejoso daquele lar feliz do velho feiticeiro, e este, por sua vez, sentia que sua vida Não poderia ser mais agradável.

No dia seguinte, Ayla observou como Zoug mediu uma tira de couro para Vorn, prestando muita atenção enquanto ele explicava por que as extremidades tinham de ser mais estreitas e por que uma funda não podia ser nem muito curta nem muito comprida. Em seguida, viu-o meter, na correia dobrada pelo meio, uma pedra molhada, fazendo o couro esticar, formando uma espécie de bolsa no centro. Depois de ter cortado diversas outras fundas, ele estava ajuntando os retalhos, quando a menina chegou trazendo-lhe água para beber.

- Teria Zoug outros usos para estes pedaços que sobraram? O couro parece tão macio! - gesticulou Ayla.

Zoug viu-se expansivo com aquela sua admiradora tão prestativa.

- Não me vão servir para nada. Você gostaria de ficar com eles?

- Esta menina muito agradeceria. Acho que alguns pedaços estão bastante largos e podem ser aproveitados - falou, mantendo a cabeça sempre abaixada.

No outro dia, Zoug quase sentiu falta de Ayla trabalhando a seu lado e lhe trazendo água. Mas sua tarefa já se achava terminada, as armas estavam prontas. Ele a viu dirigir para os bosques, com a nova cesta de colher presa às costas e o pau de cavar na mão Deve ter ido pegar plantas para Iza, pensou. Não entendo Broud. Ele não gostava muito do rapaz, e ainda não se esquecera da agressão sofrida no princípio do verão. Por que está sempre ralhando com ela? É uma garota que trabalha bem, respeitadora, e que é uma honra para o Mog-ur. Ele é um homem feliz por ter Iza e Ayla. Lembrava-se da agradável noite passada com o grande feiticeiro e, embora sem mencionar, não se esquecera de que tinha sido Ayla quem havia pedido para convidá-lo a comer com eles. Ficou observando a garota, alta, de pernas retas, ir se afastando. Pena que seja tão feia, poderia dar algum dia uma boa companheira para qualquer homem.

Depois de ter feito uma funda com os retalhos de Zoug, para substituir a velha que por fim acabara de vez, Ayla resolveu procurar um lugar longe da caverna, onde pudesse praticar à vontade. Estava sempre com medo de alguém surpreendê-la. Pôs-se a acompanhar o curso do riacho que corria perto da caverna e depois começou a subir a montanha, seguindo um afluente do riacho, forçando a passagem através de um denso matagal.

Foi interrompida no caminho por uma íngreme parede de rocha onde as águas do riacho tributário despencavam numa nuvem de cascatas. Os rochedos salientes - cujos contornos extremamente acidentados eram suavizados por grosso e viçoso colch de musgo - dividiam as águas da cachoeira, saltando de rocha em rocha e criando diversos córregos, longos e estreitos que esparrinhavam para o alto véus de neblina. A água era coletada num lago espumoso, formado na depressão rochosa existente no pé do paredão antes de prosseguir seu caminho para encontrar o curso maior. O paredão se mostrava como uma barreira que seguia paralelamente ao riacho, mas, à medida que Ayla avançava, acompanhando-lhe a base, o rochedo, quase a prumo, inclinava-se, fazendo uma subida que, embora íngreme, era possível de ser escalada. No topo, o terreno se nivelava e ela foi dar com o curso das águas do riacho tributário, passando a segui-lo novamente rio acima.

O líquenão orvalhado punha um tom verde-acinzentado nos pinheiros e abetos que dominavam a área. Esquilos subiam velozes as altas árvores, e o musgo variegado, revestindo a camada de turfa, atapetava terra, pedras e troncos caídos, como uma coberta contínua que ia desde o amarelo ao verde-escuro. Mais adiante, a garota pôde ver os raios de sol filtrando-se através das árvores perenes. Enquanto acompanhava o curso d”água, foi vendo as árvores rareando-se, entremeadas de algumas outras, velhas, reduzidas ao tamanho de arbustos, quando, então o terreno abria-se numa clareira. Era um pequeno campo, cujo fundo chocava-se contra a rocha cinza-escura da montanha, adornada nas partes mais elevadas por algumas plantas trepadeiras.

O riacho que serpenteava num lado da clareira tinha sua nascente numa grande fonte jorrando do paredão de rocha perto de um grupo de grandes avelaneiras. A cadeia de montanhas era perfurada em suas camadas internas com muitas fendas e escoadouros filtrando as águas das geleiras que brotavam como nascentes claras e espumosas.

Ayla atravessou a clareira e foi tomar um grande gole de água fresca. Em seguida, passou a examinar os cachos de avelãs que davam aos pares ou em trincas. Encerradas dentro das carapaças verdes e espinhosas, ainda estavam por amadurecer. Ela pegou um dos cachos, tirou a parte externa e partiu com os dentes a casca dura de dentro, fazendo aparecer a frutinha branca, apenas meio desenvolvida. Sempre gostou de avelãs verdes, mais do que quando estavam maduras, caídas no chão. O gosto atiçou-lhe o apetite e ela se pôs a colher os cachos e jogá-los dentro da cesta. Nisso, atrás da folhagem espessa, percebeu um buraco escuro.

Com cuidado, afastou os galhos e deu com uma pequena caverna disfarçada pela folhagem das avelaneiras. Forçou os ramos para o lado, olhando com atenção para dentro. Depois entrou, deixando a ramagem voltar ao lugar. O sol fazia um desenho de luzes e sombras na parede, iluminando fracamente o interior. Era uma gruta com uns três metros de comprimento e a metade disso de largura. Com os braços esticados, dava quase para que ela alcançasse o teto da entrada que depois ficava numa altura correspondente mais ou menos à metade do comprimento, quando se inclinava abruptamente para encontrar o chão de terra seca no fundo.

Era apenas um pequeno buraco no paredão da montanha, mas bastante grande para que ela se locomovesse com facilidade dentro dele. Lá, achava-se escondido um punhado de avelãs estragadas e, na entrada, viu algumas titicas de esquilos, concluindo que o lugar jamais fora usado por qualquer coisa maior do que esses bichinhos. Ayla, encantada, bailava dando voltas, feliz com seu achado. A gruta parecia feita sob medida para ela.

Saiu da gruta e deu uma olhada pela clareira. Dirigiu-se, então a um pequeno caminho que subia pela rocha nua e se pôs a avançar por uma estreita passagem, serpenteando pelo aforamento na montanha. Ao longe, avistou entre a fenda formada por duas colinas as águas cintilantes do mar interno. Em baixo, pôde distinguir nitidamente uma minúscula silhueta perto da estreita faixa prateada de um riacho. Achava-se praticamente em cima da caverna do clã Descendo de volta, ela contornou o perímetro da clareira.

É perfeita, disse consigo. Dá para treinar, existe água perto para beber e, se chover, entro na gruta. E posso esconder nela minha funda. Não preciso ficar mais com medo de Iza e Creb achá-la. Até avelãs há; mais tarde posso, inclusive, colher algumas para o inverno. Os homens nunca caçam em lugares tão altos assim. Isso aqui será só meu. Correu, então, até o riacho e começou a procurar por pedras lisas e arredondadas para experimentar sua nova funda.

Sempre que podia, Ayla subia a seu esconderijo. Depois, encontrou um caminho mais íngreme, porém mais curto. Quase sempre surpreendia carneiros e cabritos monteses, ou alguma corça arredia pastando por lá. Mas logo os bichos se acostumaram com sua presença e, quando ela aparecia, dignavam-se apenas a afastar-se para os cantos da clareira.

Quando atingir o poste com uma pedra deixou de ser desafio e passou a dominar melhor a funda, a garota foi estabelecendo metas mais difíceis de ser alcançadas. Observava Zoug ensinando Vorn e aplicava depois os seus conselhos e técnicas, quando ia treinar sozinha. Era como um jogo, alguma coisa divertida e, para aumentar o interesse, começou a comparar seus progressos com os de Vorn. A funda não era a arma predileta do garoto. Cheirava a alguma invenção só para uso de gente velha. Estava mais interessado em lanças, a primitiva arma dos caçadores, e já conseguira matar alguns bichos pequenos:cobras e porcos-espinhos. Na verdade, ele não punha tanto empenho como Ayla, além de que sua dificuldade fosse muito maior do que a dela. Ao verificar que estava melhor do que Vom, ela ficou orgulhosa de si, com uma sensação de superioridade que provocou uma ligeira mudança em sua atitude, mudança que não passou despercebida por Broud.

Das mulheres, esperava-se que fossem dóceis, subservientes, desprentensiosas e humildes. O fato de ela não demonstrar medo quando ele se achava por perto foi tomado como afronta pessoal. Era uma ameaça à sua masculinidade. Ele a observava, tentando descobrir o que havia nela de diferente, e prontamente acertava-lhe socos só para surpreender-lhe alguma expressão de medo, ou fazê-la encolher-se.

Ayla procurava servi-lo com correção, executando tudo que ele ordenasse o mais rapidamente possível. Ela não sabia que seu andar exalava liberdade, uma desenvoltura que, inconscientemente, trazia de suas andanças pelos campos e florestas; e o orgulho, advindo do fato de ter aprendido algo difícil e poder fazê-lo melhor do que ninguém, que estava no seu porte e a autoconfiança cada vez mais transparecendo no rosto. Ignorava os motivos que o levavam a implicar mais com ela do que com as outras. Ele próprio não sabia por que Ayla o incomodava tanto. Era alguma coisa de indefinível, e a garota tinha tanta possibilidade de alterar a situação quanto a de modificar a cor de seus olhos.Uma das razões era certamente porque ainda se lembrava de Ayla haver usurpado os seus momentos de glória nos rituais de passagem, mas a causa verdadeira estava no fato de ela não ser da raça dos clã. Em Ayla, Não havia a subserviência criada através de incontáveis gerações. Ela vinha dos Outros. Uma raça mais jovem, original, onde tudo se fazia de forma mais dinâmica, vital e não controlada por rígidas tradições de cérebros praticamente constituídos só de memórias. O dela seguia rumos diferentes. Sua testa alta, bem desenvolvida, abrigando lóbulos frontais com capacidade de projeção dava-lhe uma compreensão inteiramente diversa. Podia aceitar o novo, modelá-lo à sua vontade, forjá-lo em idéias nem de leve suspeitadas pelos clã e pelos desígnios da natureza, a sua espécie estava destinada a suplantar a velha e agonizante raça.

Ao nível do inconsciente, Broud sentia os destinos opostos dos dois. Ayla não ameaçava só sua masculinidade. Ela representava uma ameaça à própria existência dele. O ódio por ela era o ódio que o velho tem pelo novo, que a tradição devota ao inovador, e o que está agonizando nutre pelo que está nascendo. A raça de Broud era demasiado estática, de uma imutabilidade sem esperança. Já havia alcançado o auge do desenvolvimento, não tinha mais como expandir-se. Ayla não, ela fazia parte de um novo experimento da natureza. Apesar de tentar moldar-se às mulheres do clã isso era apenas uma tintura, uma atitude astuta assumida em nome de sua sobrevivência. Ela já começava a encontrar saídas em resposta a uma profunda necessidade que buscava um meio de expressão Mesmo procurando agradar Broud em sua tirania, fazendo tudo o que podia, ela internamente começava a rebelar-se.

Em certa manhã particularmente penosa, Ayla se dirigiu ao lago para beber. Os homens achavam-se reunidos do lado oposto da entrada da caverna, fazendo planos para a próxima caçada. Ela se sentia feliz, isso significava que Broud estaria fora por algum tempo. Sentou-se junto da água com a cunja na mão, perdida em seus pensamentos. Por que será que ele é tão mesquinho comigo? Por que está sempre me criticando? Trabalho tanto quanto qualquer outra. Faço tudo o que ele quer. De que adianta pelejar tanto? Nenhum dos outros homens implica assim comigo. A única coisa que queria é que ele me deixasse em paz.

- Aiii! - gritou ela, sem querer, com o pesado soco que Broud lhe deu de surpresa.

Todos pararam e olharam na direção dela, para imediatamente depois desviar os olhos. não era próprio de uma menina já quase moça gritar em voz alta só porque levou o soco de um homem. Ela se virou para seu torturador com o rosto vermelho de vergonha.

- Você fica aí olhando para o ar, sentada à toa sem fazer nada, garota preguiçosa! - gesticulou Broud. - Eu lhe disse para trazer chá e você nã fez caso. Será que sempre preciso falar com você duas vezes?

Uma onda de raiva fez o rosto dela ficar ainda mais vermelho. Sentia-se humilhada com o grito em voz alta, com muita vergonha do clã, todo presente ali, e furiosa com Broud, o causador de tudo. Levantou-se para obedecer-lhe, mas sem a devida pressa. Devagar, com insolência, pôs-se de pé e lançou a Broud um olhar de frio desprezo, antes de ir buscar o chá. As pessoas observando pararam de respirar. Que ousadia. Como pode ser tão atrevida!

Broud explodiu. Lançou-se sobre ela, girando-lhe o corpo e dando um soco em sua cara com a mão fechada. Ela caiu no chão a seus pés e ele prosseguiu com outro soco violento. Ayla se encolhia, tentando proteger-se com os braços, enquanto ele continuava a lhe bater sem parar. Ela lutava para Não gritar, embora não se esperasse silêncio diante de tamanha agressão. A raiva de Broud crescia junto com sua violência. Queria ouvi-la gritar e, na fúria incontrolada, ia despejando um murro atrás do Outro. Ela apertava os dentes, resis tindo à dor, firme na recusa de não lhe dar tal satisfação Depois de certo tempo, já não estava em condições de gritar.

Difusamente, vendo tudo através de uma neblina vermelha, sentiu que os socos tinham parado. Percebeu que Iza a levantava e, com o corpo apoiado nela, foi cambaleando para a caverna, quase inconsciente. No seu meio torpor, sentia pontadas terríveis de dores. Tinha apenas a vaga consciência dos curativos frios que estavam sendo postos sobre sua pele, e de Iza apoiando-lhe a cabeça para que pudesse tomar um chá de gosto amargo. Depois disso, mergulhou no sono à custa da droga.

Ao acordar, os primeiros raios do amanhecer, ajudados pela luz melancólica das últimas brasas na fogueira, deixavam entrever o contorno dos objetos familiares da caverna. Ela tentou levantar-se. Todos os ossos e músculos do corpo recusavam-se a obedecê-la. Um gemido escapou-lhe dos lábios, e logo depois Iza estava a seu lado. Os olhos da mulher falavam por ela, cheios de preocupação e pena. Nunca havia visto ninguém apanhar tão brutalmente. Nem mesmo seu companheiro nos piores momentos lhe havia batido de modo tão duro. Tinha certeza de que Broud a teria matado, se não tivesse sido obrigado a parar. Uma cena que pensou jamais presenciar e esperava nunca tornar a ver.

Quando pôde recordar-se do acontecido, Ayla foi tomada de ódio e medo ao mesmo tempo. Sabia que não deveria ter sido tão insolente, mas não podia esperar uma reação tão violenta. O que será que tinha para arrastá-lo a ataques de tamanha fúria?

Brun estava furioso. Era uma raiva fria e contida que fazia com que todo o clã caminhasse nas pontas dos pés, evitando-o tanto quanto possível. Ele desaprovava o atrevimento de Ayla, mas a reação de Broud o havia chocado. É certo que a menina poderia ser castigada, só que Broud não poderia exceder-se daquela maneira. Nem mesmo quando Brun ordenara que parasse, Broud obedeceu. Foi preciso que ele, o chefe, o arrastasse para o lado. E o pior, perder o controle por causa de uma mulher. Broud se deixara levar pela provocação de uma menina, descontrolando-se e dando um espetáculo de histeria verdadeiramente feminina.

Depois do acesso de raiva que Broud teve no campo de treinamento, Brun estava certo de que o rapaz nunca mais iria deixar-se levar por seu gênio.

No entanto, ele agora tinha sido dominado por outro acesso de cólera, pior até do que o de uma criança. Sim, porque Broud já tinha a força e o corpo de um homem adulto. Pela primeira vez, Brun começou a ter sérias dúvidas sobre a prudência de fazer de Broud o chefe do clã, e isso o feria mais do que gostaria de admitir. Broud era mais do que o filho de sua companheira e o filho de seu coração. Brun não duvidava de que tinha sido seu espírito que o criara e amava Broud mais do que a própria vida. O fracasso do rapaz era como uma punhalada nele. O erro deveria ser seu. Em alguma coisa falhara, provavelmente não o tinha educado direito, nem ensinado devidamente. Havia sido condescendente demais.

Brun esperou vários dias antes de falar com Broud. Queria dar-se tempo para pensar com mais clareza. Broud, ansioso, sempre sobressaltado, pouco saía de sua fogueira e foi quase com alívio que, por fim, viu Brun acenar-lhe, apesar de o coração bater forte, enquanto seguia atrás do chefe. Não havia na da no mundo que temesse tanto quanto a raiva de Brun, mas foi justamente a ausência de raiva que tocou sua razão.

Com gestos simples e postura comedida, Brun falou exatamente o que Broud vinha pensando. Brun se culpou pelos erros de Broud, fazendo-o sentir- se mais envergonhado do que nunca. O rapaz pôde compreender todo o amor de Brun e sua angústia, de uma maneira como nunca supusera. Ali, não se achava o orgulhoso chefe a quem sempre temera, mas um homem que o amava e que se via muito desapontado por sua causa. Broud era só remorsos.

Percebeu, então, uma expressão dura e resoluta no olhar de Brun. Era algo que devia partir-lhe o coração, mas os interesses do clã vinham em primeiro lugar.

- Mais um desses rompantes, Broud, só mais um, por menor que seja, e você já não será mais o filho de minha companheira. É direito seu me substi tuir como chefe, mas antes de confiar a direção do clã a um homem que não tem autodomínio, prefiro renegá-lo e lançar sobre ele a maldição de morte. - Brun falava mantendo o rosto impassível. - Enquanto não vir um sinal que me faça crer que de fato você se tornou um homem, sua capacidade para chefiar o clã está sendo posta em dúvida. Eu o estarei observando, Broud. Mas estarei observando também os outros caçadores. E não são apenas demonstrações públicas de descontrole que estarei vendo; tenho de ter certeza de que você é realmente um homem em todos os sentidos. Se tiver de escolher algum outro para chefe, você pode ficar sabendo que seu status será para sempre o mais baixo de todos na hierarquia do clã. Será que me fiz entender?

Broud não conseguia acreditar. Renegado? Amaldiçoado à morte? Um outro escolhido para chefe? Para sempre ocupando a posição mais baixa entre os homens? Não. Brun não podia estar falando sério. Mas as mandíbulas fortemente cerradas do chefe não deixavam margens a dúvidas.

- Sim, Brun - falou Broud com a cabeça. Ele estava da cor de um cadáver.

- Os outros não precisam ficar sabendo de nada disso. Uma mudança dessas será difícil para eles aceitarem e não quero causar nenhuma preo cupação desnecessária. Mas não tenha a menor dúvida de que farei o que estou dizendo. Um chefe tem de pôr os interesses do clã sempre diante dos dele. Esta é a primeira coisa que você tem de aprender. Por isso, ter o auto- controle das ações é tão essencial a um chefe. A sobrevivência do clã é da responsabilidade dele. Um chefe tem menos liberdade do que uma mulher, Broud. Às vezes, ele é obrigado a fazer muitas coisas que não quer. Se necessário, até mesmo renegar o filho de sua companheira. Entendeu?

- Sim, Brun - respondeu Broud, não muito certo de que realmente tinha compreendido. Como um chefe tem menos liberdade do que uma mulher? Era a única pessoa que podia fazer tudo que quisesse. Que mandava em todo mundo, tanto nos homens como nas mulheres.

- Agora vá, Broud. Quero ficar sozinho.

Muitos dias se passaram antes de Ayla poder levantar-se, e muitos outros mais, até que as marcas arroxeadas em seu corpo passassem para um tom amarelado e por fim sumissem. No princípio, estava tão apreensiva e com tanto medo de Broud que, cada vez que o via, dava um pulo, assustada. Mas depois que sarou por completo, começou a perceber a mudança na atitude dele. Broud tinha deixado de implicar com ela e censurá-la por tudo e, sem dúvida alguma, a evitava. Depois que ela se esqueceu da dor, chegou quase a acreditar que a surra tinha valido a pena. Desde então, Broud resolvera deixá-la em paz e isso claramente ela percebia.

Livre das hostilidades constantes do rapaz, a vida ficou bem mais fácil para Ayla. Só então é que percebeu o estado de tensão em que vinha vivendo. Comparativamente, sentia como se dispusesse de enorme liberdade, embora sua vida continuasse tão limitada quanto a de qualquer outra mulher do clã. Caminhava cheia de entusiasmo, às vezes disparando em correrias e saltos alegres. A cabeça ia erguida e os braços balançavam livremente. Até risadas em voz alta ela dava. Seu sentimento de liberdade traduzia-se em movimentos. Iza sabia que ela estava feliz, mas era um comportamento incomum e despertava olhares reprovadores. Exuberância demais era algo impróprio.

Também para o clã ficou evidente que Broud a evitava, o que dava muito assunto para especulações e conjeturas. Ayla, juntando alguns gestos e pedaços surpreendidos de conversas, chegou à conclusão de que Brun ameaçara Broud de consequências terríveis, caso ele tomasse a bater nela, e disso ficou convencida depois que viu o rapaz ignorá-la, mesmo quando provocado. A princípio, mostrou-se apenas um tanto descuidada, dando largas a seu temperamento naturalmente expansivo, mas depois passou a fazer uma campanha sistemática, baseada em sutis gestos de insolência. Não o desrespeito atrevido que motivara a surra, mas coisinhas insignificantes, pequenas artimanhas expressamente calculadas para aborrecê-lo. Ela o odiava, queria vingar-se dele e se sentia protegida por Brun.

Era um clã pequeno, e por mais que o rapaz tentasse evitá-la, na vida diária, sempre surgiam ocasiões em que ele se via forçado a dirigir-se a ela. Mas Ayla tomou como norma de conduta nunca atendê-lo prontamente. Se sou besse que ninguém estava vendo, levantava os olhos e, com um tipo de careta de que só ela era capaz, encarava-o, deliciando-se com o esforço que o via fazer para controlar-Se. Se houvesse gente por perto, principalmente Brun, ela tratava de ser mais cuidadosa. Não tinha nenhum desejo de provocar a cólera do chefe, mas passou a desdenhar a raiva de Broud e, à medida que o verão avançava, foi cada vez se opondo a ele mais abertamente.

Somente quando ela surpreendia o olhar dele carregado de ódio e peçonha é que se punha a duvidar se realmente estaria agindo com prudência. Os olhares estavam de tal maneira impregnados de maldade que valiam quase como uma bofetada física. Broud a culpava inteiramente por aquela sua posição insustentável. Se Ayla não tivesse sido tão insolente, pensava consigo, ele não se teria posto com tanta raiva. E agora, por causa dela, tinha até uma maldição de morte pesando sobre sua vida. Mesmo se controlando, a felicidade exuberante de Ayla o irritava. Era mais do que evidente que a garota tinha um comportamento escandalosamente indecoroso. Por que os outros homens não enxergavam isso? Por que deixavam que ela passasse impune? Seu ódio era ainda maior do que antes,mas tinha cuidado para não demonstrá-lo, se Brun estivesse por perto.

A batalha entre eles se fazia nos bastidores, e cada vez disputada com mais ardor, só que a menina não era tão sutil quanto o imaginava. O clã inteiro não compreendia por que Brun permitia a coisa ir avante. Mas, seguindo o exemplo do chefe, eles também não interferiam e até permitiam à garota um certo tipo de liberdade que normalmente não admitiriam. No entanto, isso os deixava constrangidos, homens e mulheres.Brun tampouco aprovava o comportamento de Ayla. Nenhum daqueles estratagemas que ela considerava como altamente sutis lhe passava despercebido e muito menos estava gostando de ver Broud deixando a garota passar sem castigo. Insolência e insubordinação eram duas coisas inadmissíveis, sobretudo tratando-se de mulheres. Ficava chocado de ver uma menina opondo sua vontade à de um homem. Nenhuma mulher do clã chegaria a cogitar de tal coisa. Estavam todas satisfeitas em seus lugares, pois a maneira de pensar delas não era uma tintura cultural, fazia parte de sua própria condição de mulher. Por instinto, sabiam da importância que tinham para a existência dosclãs. Nem os homens estariam habilitados a fazer seus serviços como também elas Não tinham a menor possibilidade de aprender a caçar. Suas memórias Não lhes permitiam isso. Por que iria uma mulher esforçar-se e lutar para mudar uma condição que era nela natural? Seria o mesmo que tentar lutar para Não comer ou respirar. Se Brun Não estivesse absolutamente certo de Ayla ser mulher, pensaria, pelo modo de ela agir, que era homem. Não obstante, Ayla aprendera os afazeres femininos, chegando, inclusive, a mostrar vocação para curandeira.

Por mais que isso o perturbasse, Brun se impedia de interferir, pois que estava vendo o esforço que Broud vinha fazendo para aprender a controlar- se. A atitude desafiadora de Ayla ajudava Broud a dominar seu gênio, coisa essencial num futuro chefe. Apesar disso, tinha pensado seriamente em procurar um outro sucessor para ele; por outro lado, porém, Brun se mostrava indulgente no que tocava ao filho de sua companheira Broud era um caçador destemido e o chefe sentia orgulho de sua coragem. Se conseguir vencer essa sua falha, a única que se nota, dará um bom chefe, dizia consigo.

Ayla Não tinha muita consciência da atmosfera de tensão em torno dela. Não se lembrava de época mais feliz em sua vida do que aquele verão. Aproveitava de sua maior liberdade para dar seus passeios solitários, colher ervas e treinar com a funda. Não se furtava de fazer nenhuma das tarefas que lhe eram exigidas - disso Não podia eximir-se - e uma dessas era trazer plantas para Iza, o que lhe dava boa desculpa para ausentar-se. Iza nunca mais havia recuperado a saúde integralmente, embora, com o calor do verão, sua tosse houvesse diminuído. Tanto ela quanto Creb estavam preocupados com Ayla. Iza principalmente tinha certeza de que as coisas Não podiam continuar como estavam e resolveu, numa das saídas para coleta de plantas, ir com Ayla e aproveitar a oportunidade para ter uma conversa com a garota.

- Uba, venha, a mãe já está pronta - disse Ayla, pegando na garotinha e firmando-a sobre seu quadril com a capa.

Elas desceram a encosta, atravessaram o riacho e foram pela mata por uma trilha de animais que se alargara um pouco depois que as pessoas passaram a usá-la como caminho. Ao baterem numa clareira, Iza olhou a seu redor e se dirigiu para um grupo de árvores altas, de flores amarelas, lembrando ásteres.

- Isso aqui são ênulas, Ayla - disse ela. - Normalmente só dão nos campos e em lugares abertos. As folhas são grandes, ovais e pontudas na extremidade. Por cima, têm a cor verde-escura e, embaixo, são peludas. Está vendo? - Iza estava ajoelhada, segurando uma folha enquanto explicava. - Os veios no meio são grossos e carnudos. - E partiu uma para mostrar.

- Estou vendo, mãe.

- Mas o que se usa desta planta são as raízes. Elas brotam uma vez por ano, mas é melhor colher no segundo ano, quando a raíz está firme e macia. Corte em pedaços e ferva um punhado numa pequena cuja de osso, uma quantidade que dê para encher um pouco mais da metade da cuia. Espera-se esfriar e tomam duas cuias por dia. Serve para acalmar e é muito bom para doenças do pulmão que fazem cuspir sangue.

Também ajuda a suar e urinar. - Iza estava sentada no chão escavando a raiz com um pau,as mãos movendo-se rápidas, enquanto ia falando. - Pode-se também botar as raízes para secar e depois esmigalhá-las fazendo um pó. - Retirou da terra uma certa quantidade das plantas, metendo-as dentro de sua cesta.

Foram, então andando por um pequeno elevado no terreno, quando Iza tomou a parar. Uba adormecera, sentindo-se confortavelmente segura junto do corpo de Ayla.

- Está vendo aquela plantinha de flores amarelas com o centro vermelho, parecendo um funil? - disse Iza, apontando numa direção.

- Esta? - perguntou Ayla, tocando a pétala da flor.

- Sim. isso se chama mamendro negro. É uma planta muito boa, mas só as curandeiras podem usar. Não serve como alimento. Possui um veneno muito perigoso.

- Qual a parte que se usa? A raíz?

- Quase tudo. Raíz, folhas e sementes. As folhas são maiores do que as flores. Nascem alternadas no caule. Preste bem atenção Ayla. As folhas são verdes-claras e dentadas nas beiradas. Você está vendo estes pélos que passam pelo meio? - Iza encostou o dedo na penugem fina e Ayla veio olhar de perto. Ela pegou, então, uma folha e deu para a menina cheirar. - Cheire.

Era um odor extremamente narcotizante.

- Esse cheiro se conserva mesmo depois das folhas secas - continuou a explicar Iza. - Daqui a algum tempo vão estar dando uma porção de sementinhas marrons. - Cavou a terra e botou para fora uma raiz de cor castanha, grossa e enrugada, parecendo inhame. No ponto em que foi partida, surgiu seu interior branco. - Cada parte da planta tem um uso diferente. Mas todas servem para fazer remédios contra dor. Podem ser usadas para fazer chá. Mas é muito forte, não se deve abusar. Podem ser usadas também como loção para aplicar diretamente sobre a pele. Acaba com espasmos musculares, acainia, relaxa e faz dormir.

Iza colheu uma boa quantidade e se encaminhou para um lugar perto, onde cresciam malvas. Apanhou um monte de flores brotando de caules lisos. Eram rosa, vermelhas, brancas e amarelas.

- As malvas servem para aliviar irritações de pele, machucados, feridas e inflamações de garganta. As flores tiram dores, mas fazem dormir. As raízes são boas para pôr em feridas. Na sua perna, eu usei raíz de malva, Ayla.

A menina passou a mão pela coxa, sentindo a cicatriz, pensando de repente no que teria sido dela, se não fosse Iza. Ficaram, então andando por algum tempo em silêncio, gozando o calor do sol e o prazer da companhia. Mas os olhos de Iza não paravam de vasculhar o terreno. A pastagem, batendo à altura do peito, estava dourada e cheia de espigas. Iza olhou para o campo com as plantas vergando-se ao peso das espigas maduras e ondulando suavemente com a brisa quente. Vendo algo que lhe interessava, foi caminhando direto, entre os caules, até chegar a uma área de centeio, cujas espigas estavam numa cor roxa, quase preta.

- Ay - disse, apontando para um dos pés - normalmente o centeio não é assim. As espigas estão doentes, mas tivemos sorte de achá-las. Quando estão dessa maneira, a gente diz que estão com cravagem. Cheire para sentir.

Que cheiro horrível, parece peixe podre.

- Mas nessas espigas doentes existe uma mágica especial para mulher grávida. Quando o parto está custando muito, o remédio feito delas faz o bebê nascer mais depressa. Provoca contrações e serve para dar início ao trabalho de parto. Além disso, têm poder para fazer abortar. O que é muito importante, no caso de mulheres que já tiveram problemas com gravidez ou que ainda estão amamentando. A mulher Não deve ter um filho atrás do outro. É muito duro para ela. Principalmente, se acabar o leite, quem vai dar de mamar ao filho dela? Uma quantidade de crianças morre ao nascer ou no primeiro ano de vida. A mãe tem de cuidar mais daqueles que já estão vivos e com maior chance de ser criados. Existem plantas que fazem a mãe perder o bebê, se ela precisar. A cravagem ou o azevém espigado é apenas uma delas. Serve também para depois do parto. Ajuda a expulsar o sangue velho e a voltar os órgãos para o lugar. Tem gosto ruim mas não tão ruim quanto o cheiro e pode ser muito útil, quando usado com prudência. Em quantidade, pode provocar dores de barriga muito fortes, vômitos e até a morte.

- É como o meimendro. Tanto pode fazer mal como bem - comentou Ayla.

- Isso quase sempre é verdade. Às vezes, as plantas mais venenosas são as que produzem os remédios mais fortes e melhores, se você souber usá-las.

No caminho de volta ao riacho, Ayla parou e apontou para uma plantinha de flores num tom vermelho-azulado, mais ou menos de 30 centímetros de altura.

- Ali estão alguns hissopos. O chá deles é bom para tosse quando se está gripado, não é?

- Sim. E serve também para dar um sabor muito perfumado a outros chás... Por que não pega um pouco?

Ayla pegou um punhado, arrancando pelas raízes, e foi retirando as folhas miúdas enquanto caminhava.

- Ayla - falou Iza - essas plantas tornam a brotar todos os anos. Se você tirar com as raízes, no próximo verão não haverá mais delas nesse lugar. Quando não se precisa das raízes, o melhor é apanhar só as folhas.

- Não tinha pensado nisso disse Ayla, arrependida. - Daqui por diante não vou fazer mais.

- Mesmo quando se precisa das raízes, não se deve apanhar todas num único lugar. Sempre devem sobrar algumas para brotar novamente.

Elas seguiram por um outro caminho que levava também ao riacho, mas, ao chegarem numa área pantanosa, Iza apontou para mais uma variedade de plantas.

- Aquelas lá são juncos doces. Parecem um pouco com íris, mas não têm nada a ver. A loção feita com suas raízes serve para aliviar dor de queimaduras, e mastigá-las, às vezes, também ajuda na dor de dente. Mas você tem de ter muito cuidado quando for dar para uma mulher grávida. Sei de casos de mulheres que perderam filhos porque engoliram o caldo dessa planta. Se bem que uma vez eu dei de propósito e não adiantou nada. Podem também ajudar em problemas intestinais, principalmente de prisão de ventre. É fácil você ver a diferença entre uma e outra. Veja a batata que ela tem, parecendo um bulbo - disse Iza, apontando. - O cheiro dela também é muito mais for te do que o da íris.

As duas pararam e descansaram à sombra de um bordo. Ayla pegou uma das enormes folhas da árvore, enrolou-a no feitio de uma cornucópia, em brulhando a parte de baixo no polegar e tomando nela um gole de água fresca do riacho. Antes de botar fora o seu arremedo de copo, trouxe um gole para Iza.

- Ayla - começou Iza a falar, depois que acabou de beber. - Bem, você sabe, Broud é homem. Ele tem direito de mandar em você e você devia fazer tudo o que ele ordenar.

- Mas eu faço tudo que ele manda - respondeu, defendendo-se.

Iza fez que não com a cabeça.

- Mas você não faz do jeito que deveria. Você provoca, desafia. Chegará o tempo em que vai arrepender-se, Ayla. Um dia, ele será o chefe do clã Você é obrigada a fazer o que os homens mandam. Todos eles. Você é mulher, não tem escolha.

- Por que os homens têm direito de mandar nas mulheres? O que eles têm de melhor? Nem bebês podem ter! - gesticulou ela, com amargura e espírito de rebeldia.

- Porque é assim que é. Sempre foi assim nos clã e você agora faz parte de um, Ayla. Você é minha filha. Deve comportar-se como uma menina do clã.

Ayla baixou a cabeça, sentindo-se culpada. Iza tinha razão. Ela provocava Broud. O que teria acontecido, se Iza não a tivesse encontrado? Se Brun não tivesse permitido que ela ficasse? Se Creb não fizesse dela um membro do clã. Olhava para Iza, a única mãe de quem se lembrava. A mulher tinha envelhecido. Estava magra e cansada. A carne de seus braços, outrora musculosos, pendia dos ossos, e os cabelos, antes castanhos, estavam praticamente brancos. Creb que, no princípio, parecia tão mais velho do que ela, na verdade, pouco mudara. Era Iza quem parecia velha, mais ainda do que Creb. Ayla se preocupava com ela. Mas sempre que falava qualquer coisa neste sentido, Iza desconversava.

- Você tem razão. Não tenho tratado Broud como devia. Vou fazer tudo para agradá-lo.

Nesse instante, Uba, que se achava no colo de Ayla, começou a contorcer-se.

- Uba tem fome - falou com gestos, metendo a munheca rechonchuda na boca.

Iza olhou para o céu.

- Está ficando tarde e Uba precisa comer. É melhor começarmos a voltar.

Seria bom se Iza estivesse bem de saúde para sair comigo mais vezes, pensou Ayla, enquanto caminhavam, apressadas, de volta à caverna. Só assim poderíamos passar mais tempo uma com a outra, e quando ela vem eu aprendo muito mais.

Embora Ayla tivesse vontade de manter seu propósito de agradar Broud, isso se mostrou difícil de ser cumprido. Ela já se habituara a não lhe prestar atenção, sabendo que, se não corresse prontamente para servi-lo, ele mesmo faria o que queria ou então procuraria por outra mulher. Seus olhares rancorosos não lhe metiam medo, sentia-se a salvo de sua cólera. Já não o provocava mais de propósito, mas a impertinência tornara-se nela um hábito. Há muito que o olhava diretamente, ao invés de baixar a cabeça; que o ignorava, ao invés de correr para comprir suas ordens. O comportamento já fora automatizado. Seu desdém por ele o irritava mais do que as investidas provocativas. O rapaz percebia que ela não o respeitava mais. No entanto, não era o respeito que Ayla havia perdido, mas sim o medo.

A época em que os ventos frios e as pesadas nevascas forçavam o clã a ficar dentro da caverna estava de novo por chegar. Ayla detestava ver as folhas começando a mudar de cor, mas o brilhante espetáculo do Outono sempre a deixava fascinada, com suas belas colheitas de frutas e de nozes que mantinham as mulheres constantemente ocupadas. Na correria para armazenar as colheitas do final do outono, ela não teve muito tempo para subir a seu esconderijo. O tempo passara tão rapidamente que só foi perceber quando já estava próximo do fim da estação.

Por fim, a tranquilidade foi voltando, a garota, certo dia, atou sua cesta às costas, passou a mão no pau de cavar e subiu novamente até sua clareira secreta, pensando em colher aveias. Logo que chegou, encolheu os ombros, dei xando a cesta escorregar, e foi buscar a funda guardada na gruta. Havia aparelhado sua casa de brinquedo com alguns instrumentos que fabricara e lá botou também uma velha pele de dormir. Pegou uma cuia de vidoeiro que estava sobre uma tábua tosca apoiada sobre duas grandes pedras, onde também havia algumas conchas servindo de pratos, uma faca de pedra e umas pedras menores que usava para quebrar nozes. Em seguida, retirou a funda de uma cesta de vime tampada. Depois de tomar um gole de água na nascente, foi caminhando ao longo do riacho, à procura de pedras arredondadas.

Fez alguns arremessos treinando a pontaria. Vorn não acerta tanto no alvo quanto eu, pensou, satisfeita, ao ver as pedras atingirem os lugares mirados. Depois de certo tempo, cansou-se do esporte, botou a funda e as pedras para o lado e se pôs a catar as avelãs espalhadas pelo chão, sob os espessos arbustos, velhos e nododos. Pensava no quanto a vida podia ser maravilhosa. Uba crescia, forte e saudável. Iza parecia bem melhor. O sofrimento e as dores de Creb diminuíram bastante, e ela adorava os seus passeios com ele, capengando a seu lado, ao longo do riacho. A funda era outra coisa que adorava e se tinha tornado uma exímia atiradora. Acertar o poste, ou as pedras e galhos que mirava como alvo, ficara quase fácil demais; no entanto, o fato de a arma ser proibida ainda continuava fazendo dela um esporte excitante. E o melhor de tudo, Broud nunca mais voltara a incomodá-la. Enquanto enchia a cesta de aveias, achava que nada no mundo poderia vir estragar sua felicidade.

As folhas secas e marrons, apanhadas pelos ventos, se soltavam das árvores e volteavam no ar com seus parceiros invisíveis para depois cair suavemente no chão. Cobriam as nozes ainda espalhadas sob as árvores de onde haviam despencado maduras. As frutas que Não eram apanhadas para ir encher os estoques de inverno pendiam pesadas e polpudas nos galhos nus. As estepes a leste eram um mar dourado de espigas ondulando ao vento numa imitação das ondas espumosas das águas cinzentas ao sul. E as últimas ameixas e uvas, regurgitando de caldo, pediam para ser colhidas.

Os homens se achavam numa de suas reuniões usuais, planejando uma das últimas caçadas da estação. Discutiam os tipos de jornadas possíveis desde manhã cedo, e Broud, em certo momento, foi mandado para dar ordem a alguma mulher de lhes trazer água. Ele viu Ayla sentada perto da entrada da caverna, com paus e pedaços de couro espalhados a seu redor. Ela construía engradados para pendurar cachos de uva que ficariam secando até se transformarem em passas.

- Ayla! Traga água - ordenou Broud, por meio de sinais e pronto para voltar.

Ela estava num momento crítico da amarração, apoiando o engradado no colo. Se se mexesse naquele instante, o trabalho desmontaria e seria obrigada a começar tudo de novo. Ela hesitou, olhando para ver se havia alguma outra mulher por perto. Em seguida, com um suspiro, relutante, levantou-se devagar e foi procurar um odre.

O rapaz lutava contra a raiva que logo se apossara dele, vendo-a visivelmente relutante em obedecê-lo. Tentava dominar a fúria, enquanto olhava à procura de alguma outra mulher que lhe atendesse o pedido com a presteza exigida. De repente, mudou de idéia. Estreitando os olhos, encarou Ayla que acabava de sair. Quem lhe deu o direito de ser insolente? Será que Não sou um homem? Não é dever dela obedecer-me? Brun nunca me disse que eu tinha de aguentar falta de respeito. Ele Não me pode lançar a maldição de morte, só por obrigar esta menina a fazer o que se espera dela. Que espéce de chefe é esse que deixa uma mulher desafiá-lo? Alguma coisa estalava dentro dele. Ela fora longe demais no seu descaramento! Dessa vez, Não vai passar impunemente. Terá de obedecer de qualquer jeito!

Todos esses pensamentos passaram em sua cabeça na fração de segundo que ele levou para alcançá-la. No momento em que ela se ergueu, a sua pesada munheca pegou-a de surpresa, batendo-lhe em cheio. O olhar dela, atônito, imediatamente encheu-se de ódio. Ela olhou ao redor, viu que Brun observava, mas algo em seu rosto impassível lhe dizia para Não contar com qualquer assistência da parte dele. A cólera nos olhos de Broud ransformara a raiva dela em medo, mas ele também lhe havia surpreendido aquele instante de raiva que fez ressurgir seu ódio desmedido por ela. Como ousava desafiá-lo!

Rapidamente, Ayla arrastou-se para o lado, fugindo do próximo soco e correndo à caverna para buscar o odre. Broud, com as maos fechadas, seguiu-a com os olhos, lutando para manter a fúria dentro de limites controláveis. Olhou na direção dos homens, vendo Brun impassível. Nele, Não havia encorajamento, mas também Não se percebia reprovação. Ayla correu ao lago, encheu a sacola de água e a suspendeu às costas, enquanto Broud a observava, sem deixar de notar-lhe a presteza e a expressão medrosa, temendo receber novo soco. Com isso, pôde controlar melhor a raiva. Tenho sido muito mole com ela, pensou o rapaz.

Ao passar por ele, curvada com o peso da sacola, recebeu outro murro que por pouco Não a derrubou novamente. O rosto dela ficou rubro de raiva. Ela endireitou o corpo, lançou-lhe um rápido olhar carregado de ódio e diminuiu o passo. Ele foi atrás dela. Um murro no ombro obrigou-a a encolher o corpo. O clã agora observava. Ayla olhou na direção dos homens. A expressão dura de Brun preocupava-a mais do que os punhos cerrados de Broud.

- Mas faço tudo o que ele quer. Nunca deixo de cumprir as ordens

Ela correu, cobrindo o pequeno espaço que a separava deles. Ajoelhou-se e começou a despejar água numa cuja, conservando sempre a cabeça abaixada. Broud vinha atrás, sem pressa, receoso da reação de Brun.

- Crug dizia que viu uma manada indo para o norte, Broud - mencionou Brun com ar negligente, depois de o rapaz se ter juntado ao grupo.

Tudo certo, Brun não estava zangado com ele! Claro, por que iria estar? Tinha feito o que devia. Não tinha por que falar, era apenas o caso de um homem disciplinando uma mulher que estava precisando de uma lição. Seu suspiro de alívio quase chegou a ser ouvido.

Depois de os homens terem acabado de beber, Ayla voltou à caverna. A maioria das pessoas havia voltado para o que estavam fazendo, menos Creb que, de pé na entrada, observava-a.

- Creb! Broud quase me surrou outra vez - gesticulou ela, correndo em sua direção Mas o sorriso que tinha no rosto desapareceu ao levantar os olhos e vê-lo com uma expressão que nunca vira antes.

- Você recebeu apenas o que merecia - disse ele, com a cara sombria e franzida. O olhar era duríssimo. Depois, deu-lhe as costas e se encaminhou para sua fogueira.Por que Creb está furioso comigo?, perguntou-se Ayla.

Mais tarde naquele dia, timidamente Ayla aproximou-se do velho feiticeiro com os braços estendidos, prontos para abraçá-lo. Um gesto que até então nunca deixara de tocá-lo no coração Só que desta vez Não houve a me nor correspondência. Nem mesmo um encolher de ombros ele se deu o trabalho de fazer. Apenas ficou olhando a distância, frio, inteiramente arredio. Ela, então, retraiu-se.

- Não me aborreça. Vá procurar alguma coisa para fazer, menina. O Mog-ur está meditando. Ele não tem tempo para perder com mulheres insolentes - disse ele, com gestos ríspidos e impacientes.

Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Ela estava magoada e, de repente, sentiu medo do feiticeiro. Aquele Não era o velho Creb que conhecia e amava. Ali estava o Mog-ur.

Pela primeira vez, desde que fora viver com o clã, entendeu por que todos se mantinham a distância, num medo reverente ao grande Mog-ur. Ele se afastou dela. Bastou um só olhar e uns tantos gestos para lhe dar a entender o quanto a reprovava, fazendo-a sentir rejeitada de uma maneira como nunca pudera imaginar. Ele Não gostava mais dela e tudo o que queria era abraçá-lo e lhe dizer que o amava, mas tinha medo. Foi então arrastando-se na direção de Iza.

- Por que Creb está tão zangado comigo?

- Você foi avisada, Ayla, eu lhe disse que fizesse tudo o que Broud mandasse. Ele é homem. Tem direito de mandar em você - respondeu Iza, com brandura dele.

- Mas você reage. Você o desafia. Bem sabe que está sendo insolente com ele. Não se comporta com uma menina bem-educada. E isto reflete sobre mim e Creb. Ele se sente como se não a tivesse educado direito, achando que por ter dado a você muita liberdade e deixá-la agir com ele de uma determinada maneira, você acabou pensando que tinha o direito de fazer o mesmo com as outras pessoas. Brun também não está nada satisfeito com você, e Creb sabe disso. Você corre o tempo todo. Só crianças é que correm, não meninas do tamanho de uma mulher. Você faz esses barulhos na garganta. Você não se mexe rápido quando lhe mandam fazer uma coisa. Todo mundo está reprovando seu comportamento, Ayla. Você envergonhou Creb.

- Eu não sabia que era tão má assim, Iza - gesticulou Ayla. - Não estava querendo ser má, simplesmente não tinha pensado nessas coisas.

- Mas deveria. Está muito grande para se portar como criança.

- É que Broud se mostra sempre tão mesquinho comigo e ele me bateu com muita força daquela vez.

- Pouco importa se ele é ou não mesquinho. Ele pode ser mesquinho o quanto quiser. Está no seu direito. É homem. Pode bater em você quando quiser e do jeito que bem entender. Algum dia será o chefe do clã, e você deve obedecê-lo, tem de fazer exatamente o que ele diz e no momento em que ele mandar. Não há outro jeito, você não tem escolha - explicou Iza. A garota olhou para Ayla que tinha o rosto arrasado. Por que será tão difícil para ela?, perguntava-se. Sentia pena e ao mesmo tempo simpatia pela menina, com toda aquela dificuldade para aceitar simples fatos da vida. - Já está ficando tarde, ayla. Vá para a cama.

A menina foi para o seu lugar de dormir, mas levou muito tempo até conseguir pegar no sono. Mexia-se e se virava de um lado para outro, dormindo mal, até que por fim acabou vencida por um sono profundo. Acordou cedo, pegou a cesta e o pau de cavar, saindo antes da primeira refeição. Queria ficar sozinha para pensar. Subiu ao esconderijo na clareira e pegou a funda, mas não estava com muito espírito para treinar.

Tudo é culpa de Broud, pensou. Por que tem ele de ficar sempre implicando comigo? O que foi que lhe fiz? Nunca gostou de mim. E daí em ser homem, que importância há? Por que os homens são melhores? Pouco estou ligando se vai ser ou não chefe do clã. Nem tão superior ele é. Não chega nem a ser tão bom na funda quanto Zoug. Posso ser tão boa quanto ele. Já sou até melhor do que Vorn que perde muito mais tiros do que eu, e Broud, prova velmente, também deve perder de mim. Errou todos os arremessos quando foi exibir-se para Vorn.

Furiosa, pôs-se a atirar pedras com a funda. Uma foi bater numa moita, obrigando um sonolento porco-espinho a sair de seu buraco. Esse pequeno animal noturno raramente era apanhado. Todo mundo havia feito o maior espalhafato quando Vorn matou um, lembrou-se Ayla. Se eu quisesse também poderia fazer a mesma coisa. O animal subia por uma colina arenosa perto do riacho com os seus espinhos todos eriçados. Ayla ajustou uma pedra na funda, fez a pontaria e atirou. O porco-espinho no seu passo vagaroso era um alvo fácil e tombou no chão.

Ela, satisfeita consigo, correu em sua direção. Entretanto, ao tocá-lo, viu que o animal Não estava morto, apenas tonto. Sentiu-lhe o coração ainda batendo e o sangue escorrendo do ferimento na cabeça. Seu primeiro impulso foi o de levá-lo para a caverna, como fizera com tantos outros bichos. Já Não estava sentindo nenhuma satisfação, ao contrário, sentia-se horrível. Por que fui feri-lo? Eu Não queria fazer isso. Não posso levá-lo para a caverna, Iza iria logo perceber que foi alvejado com uma pedra. Já cansou de ver animais mortos por pedras atiradas com fundas.

Ficou com os olhos parados no animal. Nunca vou poder caçar, concluiu. Mesmo que matasse um animal, jamais vou poder levá-lo para casa. De que adiantou treinar tanto? Se Creb já está furioso comigo, quanto mais então se soubesse disso. E Brun, o que faria? Se Não posso nem tocar numa arma, pior ainda seria usá-la. Será que Brun me expulsará?

Ayla se via inteiramente vencida pela culpa e o medo. Para onde eu iria? Nunca vou conseguir deixar Iza, Creb e Uba. E quem tomaria conta de mim? Não quero ir embora, pensou, rompendo em lágrimas.

- Tenho sido uma menina má. Muito má mesmo, e Creb está com muita raiva de mim. Mas eu gosto dele, Não quero que fique me odiando. Oh, por que está tão furioso assim? Lágrimas rolavam por seu rostinho infeliz. Deitou-se no chão chorando todas as suas mágoas. Depois de chorar tudo que tinha para lamentar, sentou-se, enxugou o nariz com as costas da mão, enquanto os ombros se sacudiam com os soluços que de vez em quando voltavam. Nunca mais vou ser má. Quero ser boa. Vou fazer tudo que Broud quiser, seja lá o que for. E nunca mais vou tocar numa funda. Para reforçar o propósito, atirou a arma para o meio de uns arbustos e correu a pegar a cesta, descendo de volta à caverna. Iza que, andava procurando por ela, imediatamente viu sua chegada.

- Onde você esteve? Passou a manhã inteira fora e volta com a cesta vazia?

- Estive pensando, mãe - respondeu, olhando para Iza, séria, com ar convicto. - Você tem razão. Tenho sido uma menina muito má, mas daqui por diante Não serei mais. Vou fazer tudo que Broud quiser. E também vou comportar-me direito. Não correr mais e aquelas outras coisas que você falou. Acha que Creb vai voltar a gostar de mim, se eu ficar muito, muito boa mesmo?

- Tenho certeza de que vai - respondeu Iza, fazendo um carinho nela. Pobrezinha, todas as vezes que acha que Creb não gosta mais dela, fica com aquela doença que faz os olhos aguarem, pensava Iza, olhando para Ayla, ainda com o rosto riscado de lágrimas e os olhos vermelhos e inchados. Seu coração sofria pela menina. Deve ser muito difícil para Ayla, sua espécie é diferente; mas, talvez daqui para a frente, ela vá melhorar.

 

Inacreditável a mudança processada em Ayla. Era outra pessoa. Estava arrependida, dócil e pronta no atendimento das ordens de Broud. Os homens estavam convencidos de que a transformação se devia a uma boa disciplina. Com ar de quem sabia o que diziam, punham-se a acenar com as cabeças afirmativamente. Ali se achava a prova viva do que sempre afirmaram: tolerancia demais só serve para fazer as mulheres preguiçosas e insolentes. A mulher precisa de um pulso forte para guiá-la com firmeza. São seres fracos, voluntariosos, sem o autodomínio dos homens. Por isso, necessitavam deles para comandá-las e mantê-las sob controle, de modo a ser membros produtivos do clã e contribuir para sua sobrevivência.

Pouco importava o fato de Ayla Não passar de uma menina e nem ser genuinamente do clã. Já tinha praticamente idade para ser mulher, era mais alta do que qualquer um, e ainda por cima fêmea. Quando os homens levavam muito a sério suas idéias, eram as mulheres que sofriam as consequências. Os homens do clã Não desejavam ser culpados de negligência.

Broud, entretanto, por vingança, adotou em cheio a filosofia masculina. Embora o controle exercido sobre Oga fosse extremamente rígido, esse Não era nada em comparação com as agressões sofridas por Ayla. Se já era duro antes, agora tornara-se duas vezes mais duro. Sempre a estava castigando, perseguindo, importunando-a com todo tipo de serviços insignificantes que a obrigavam a largar imediatamente o que estivesse fazendo para atender suas exigências. O menor - ou nenhum - deslize era punido com murros, e ele sentia prazer nisso. A garota havia ameaçado a virilidade dele e agora pagava por seu delito. Foram tantas as vezes que ela lhe resistira, desafiara-o, e tantas as que ele se viu obrigado a conter-se para Não lhe bater. Agora chegara sua vez. Ele conseguira dobrá-la à sua vontade e iria mantê-la sempre assim.

Ayla fazia o possível para agradá-lo. Tentava até mesmo adivinhar-lhe os desejos, mas o tiro saía pela culatra, e era castigada por querer supor coisas que ele desejava. No momento em que a menina punha os pés para fora das fronteiras de Creb, ele já estava esperando e ela Não podia, sem uma boa razão, permanecer encerrada nos domínios privados do feiticeiro. Estavam na última arrancada dos preparativos para o inverno. Havia muita coisa ainda aser feita para pôr o clã a salvo do frio que rapidamente vinha se aproximando. O estoque medicinal de Iza estava basicamente formado, de modo que Não havia muita desculpa para Ayla afastar-se dos arredores da caverna. Broud cansava-a o dia inteiro e ela, de noite, caía exausta na cama.

Iza estava certa de que a mudança tinha muito menos a ver com Broud do que esse imaginava. Na verdade, achava-se ligada ao amor que Ayla devotava a Creb e Não ao medo que sentia por Broud. Iza contara a seu germano que Ayla voltara a sofrer daquela sua particularíssima doença que lhe vinha quando imaginava que ele Não gostava mais dela.

- Bom, Iza, você sabe, ela foi longe demais. Era preciso fazer com que sentisse isso. Se Broud Não tivesse voltado a lhe impor disciplina, Brun o teria feito. E poderia ser muito pior. A única coisa que Broud pode fazer é tornar a vida dela infeliz, já Brun pode expulsá-la - respondeu Creb. Mas a conversa fez com que ele se pusesse a especular sobre a força do amor, um poder mais forte do que o medo, e esse foi tema de suas meditações por vários dias. Quase imediatamente, abrandou sua atitude em relação à garota. Era tudo o que podia fazer para preservar um pouco daquele comportamento distante e indiferente que vinha mantendo até então.

As primeiras neves a cair eram desfeitas por aguaceiros que, nas frias temperaturas do entardecer, transformavam-se em chuvas geladas, às vezes misturadas com um pouco de neve. A luz da manhã encontrava as poças de água espelhadas com estilhaços de gelo - prenunciando um frio ainda mais intenso- que só iriam derreter, se os caprichos do vento o levassem a soprar do sul e o sol decidisse impor sua autoridade. Durante todo esse indeciso período de transição, dos últimos dias de Outono aos primeiros do inverno, Ayla nunca faltou com a devida obediência feminina. Condescendia em fazer qualquer dos absurdos que desse na veneta de Broud, corria a seu primeiro chamado, baixava a cabeça submissamente, Não ria, nem mesmo chegava a sorrir, mostrando-se de uma passividade total, mas isso Não lhe era fácil. Apesar de resistir, tentava convencer-se de que estava errada e forçava-se, inclusive, a ser mais dócil, só que começou a desabar sob o peso de tamanha submissão.

Emagreceu, perdeu o apetite, sempre silenciosa e submissa até mesmo quando se achava na fogueira de Creb. Nem Uba conseguia alegrá-la, em bora quase nunca deixasse de pegar a garotinha nos braços, quando à noite voltava a casa, ficando com ela, até que as duas caíssem no sono. Iza estava preocupada e, numa manhã de sol brilhante, após uma véspera chuvosa e fria, ela resolveu que já era tempo de proporcionar a Ayla uma folga antes que o inverno fechasse totalmente seu cerco.

- Ayla - disse Iza em voz alta, logo que puseram os pés do lado de fora da caverna, antes de Broud ter oportunidade de aparecer com algumas de suas exigências - estava fazendo uma vistoria nos meus medicamentos e vi que Não existe nenhum galho de amora branca que é muito bom para dor de barriga. Não vai ser difícil de você reconhecer a planta. Ela é do tipo arbusto e os galhos estão sem folhas e cobertos por amoras brancas.

O que Iza Não disse é que tinha muitos outros remédios armazenados que também serviam para dor de barriga. Broud franziu a cara ao ver Ayla entrar na caverna e pegar sua cesta de colher. Mas ele nada podia fazer, apanhar plantas para iza era bem mais importante do que botar Ayla trazendo-lhe água, chá, pedaços de carne, as pemeiras de pele que propositadamente esquecla de enrolar nas pernas, o capuz para a cabeça, alguma fruta e até pedras do riacho para quebrar nozes, pois Não simpatizava com as que estavam à mão. Enfim, qualquer bobagem inconsequente que lhe ocorresse mandá-la fazer. O rapaz se afastou num passo muito empertigado ao ver Ayla saindo da caverna com a cesta e o pau de cavar.

Ayla imediatamente foi para a floresta, agradecendo a Iza aquela chance de poder ficar sozinha. la mirando ao redor, enquanto caminhava, com a cabeça longe das amoras brancas. Não prestava a mínima atenção no caminho e nem percebeu que seus passos a levavam ao longo do pequeno riacho, subindo para os altiplanos musgosos, onde as águas despencavam em meio a um véu de neblina. Sem se dar conta, subia a encosta íngreme até que se encontrou na clareira no alto da montanha, por cima da caverna. Nunca voltara lá, desde que ferira o porco-espinho.

Perdida em pensamento, sentou-se na margem do riacho, atirando pedrinhas na água. Fazia frio. Nos lugares mais elevados, a chuva do dia anterior veio na forma de neve. Um espesso tapete branco cobria o terreno da clareira e das passagens entre as árvores, manchadas de neve. A atmosfera parada resplandecia na claridade que conjugava o brilho da neve com milhares de minúsculos cristais refletindo o sol luminoso num céu tão azul que quase parecia vermelho. Mas Ayla Não tinha olhos para a serena beleza da paisagem invernal nos seus primeiros esplendores. Essa só fazia lembrá-la de que, em breve, o clã estaria confinado à caverna e de que, até a primavera, ela não teria jeito de escapar de Broud. À medida que o sol subia no céu, blocos de neve iam des pencando inesperada e ruidosamente no chao sob as árvores.

O longo e frio inverno assomava lugubremente à frente, com Broud caçando-a dia após dia. Simplesmente nunca vou satisfazê-lo, pensou. Pouco importa o que eu fizer ou quanto eu tentar, nada vai adiantar. O que posso fazer mais do que já faço? Seus olhos casualmente bateram num caminho limpo de neve, lá estava uma couraça meio esfarrapada e alguns espinhos espalhados, era tudo o que restara do porco-espinho. Uma hiena deve tê-lo encontrado, disse consigo- Ou então um carcaju. Com uma pontada de remorso, lembrou- se do dia em que o acertara. Nunca devia ter aprendido a atirar com funda. Foi errado. Creb ficaria furioso e Broud... bem, Broud Não ficaria furioso e sim alegre se soubesse. Esta seria uma boa desculpa para me bater. Iria adorar se soubesse. Só que Não sabe e nunca irá descobrir. O pensamento lhe deu algum prazer. Era algo que ela fizera escondido de Broud e que lhe daria bons motivos para castigá-la. Sentiu vontade de fazer alguma coisa, como atirar com a funda, algo que concretizasse seu frustrado sonho de rebeldia.

Lembrou-se de ter jogado a funda debaixo de uma moita de plantas e foi procurá-la. Encontrou-a sob uns arbustos. Estava úmida, mas mesmo exposta ao tempo Não ficou estragada. Acariciava-a, gostando da sensação do couro macio e liso. Pensou na primeira vez em que havia segurado numa, sorrindo à lembrança de Broud todo encolhido diante da raiva de Brun por ele ter metido a mão em Zoug. Ela Não era a única a provocar a fúria de Broud.

Mas só comigo pode fazer o que quer, pensou, com amargura. Simplesmente porque sou mulher. Brun ficou com raiva quando ele acertou Zoug, mas em mim Broud pode bater quando e como quiser que ele pouco está ligando. Não, isso Não é de todo verdade, admitiu. Iza disse que foi Brun quem arrastou Broud para o lado para que ele parasse de me espancar. E quando Brun está por perto, ele Não me bate muito. Se ele só batesse, mas me deixasse em paz de vez em quando, eu nem me importava.

Ela continuava atirando pedrinhas à água e viu, sem perceber, que tinha posto uma na funda. Sorriu, olhando para uma folha murcha e sozinha, pendurando-se na ponta de um pequeno galho. Fez a pontaria e atirou. Satisfeita e orgulhosa, viu que a pedra arrancara a folha da árvore. Apanhou, então, mais pedras, levantou-se e se dirigiu para o meio da clareira e deu alguns tiros. Ainda posso acertar no que quero, mas e daí? Nunca cheguei nem a atirar em alguma coisa movendo-se. O porco-espinho Não conta. Estava quase parado. Não sei nem se conseguiria e nem se sou capaz de aprender a caçar... caçar de verdade. Mas de que adiantaria? Não poderia mesmo levar nada para a caverna. Tudo o que faço é facilitar o serviço para hienas, lobos e carcajus, logo para esses que roubam tanta comida nossa.

A caça e qualquer bicho que matavam eram tão importantes para o clã que as pessoas estavam sempre em guarda contra os animais predadores. Não apenas contra os grandes felinos, mas também contra manadas de lobos e de hienas que, às vezes, arrebatavam repentinamente o animal das mãos dos caça dores. Além disso, existiam tipos de hienas sorrateiras ou traiçoeiros carcajus que estavam sempre rondando por perto das carnes postas para secar, ou tentando penetrar nos depósitos de comida. Ayla Não podia aceitar a idéia de contribuir para a sobrevivência de seus competidores.

Nem mesmo ferido, Brun deixou que eu levasse para a caverna um filhote de lobo e os caçadores estão sempre matando os comedores de carne, mesmo que a gente Não tenha necessidade de suas peles. Esses bichos estão sempre nos dando trabalho. O pensamento ficou gravado nela, enquanto outra idéia começava a ganhar forma. Com exceção daqueles que são muito grandes, todos os comedores de carne podem ser mortos com funda. Lembro de que Zoug disse a Vorn que era melhor usar a funda em certas ocasiões do que chegar perto do animal.

Ayla se lembrava bem do dia em que viu Zoug exaltando as virtudes da arma, na qual era exímio atirador. É verdade que com uma funda, o caçador não precisa chegar perto de garras e presas afiadas, só que Zoug se esqueceu de dizer que, quando o caçador perde o tiro, ele, às vezes, está frente a frente com um lobo ou com um lince, sem nenhuma outra arma para apoiá-lo. Mas Zoug também deixou bem claro que seria uma imprudência aventurar- se com animais grandes.

E se eu caçasse só comedores de carne? Nunca comemos esses animais, assim não seria desperdício, mesmo que depois a carniça ficasse para os abutres. Os caçadores estão cansados de fazer isso.

Mas o que estou pensando? Ela balançou a cabeça, como para espantar um pensamento vergonhoso. Sou mulher, não me é permitido caçar. Se nem mesmo encostar amão numa arma eu posso, quanto mais isso! Mas já usei uma funda, apesar de não ser permitido, pensou, cheia de ousadia. Se matasse um carcaju, uma raposa ou qualquer outra coisa para que nunca mais venha nos roubar, estaria fazendo um benefício ao clã. Essas hienas horrorosas... é bem possível que eu mate uma delas qualquer dia desses. Imagine só o que iria acontecer. Ayla já se via caçando todos aqueles predadores cheios de ardis e manhas.

Havia treinado o tiro com funda durante todo o verão. Apesar de que fosse, então, só um esporte para ela, compreendia e respeitava qualquer arma para saber que seu verdadeiro propósito estava não em exercícios de tiro ao alvo, mas na caça em si mesma. Sentia que, se não houvesse maiores desafios, bem depressa deixaria de existir graça em atingir postes, galhos ou pedras. Ademais, o sentido da competição pela competição só apareceu no mundo depois que a Terra já estava dominada por civilizações que há muito não precisavam mais da caça como meio de subsistência. A competição no pensamento dos clãs tinha o propósito exclusivo de aprimorar um tipo de destreza ligado à sobrevivência.Embora sem se dar conta, parte de sua amargura era devida ao fato de ser obrigada a abandonar uma coisa que conseguira com o próprio esforço e que estava no ponto de desenvolver-se muito mais. Havia sentido prazer em aperfeiçoar sua técnica, em exercitar a coordenação dos olhos com as mãos e estava orgulhosa de ter aprendido tudo sozinha. Agora, pedia por maiores de safios, o desafio da caçada, mas precisava justificar-se.

Desde o começo, quando tudo era apenas brincadeira, imaginava-se caçando e depois entrando na caverna carregada de caça, sob os olhares admirados e contentes das pessoas. O porco-espinho trouxe-lhe a razão. Um sonho impossível de realizar-se. Era mulher e, como tal, proibida de caçar. A idéia de exterminar os animais que competiam com o clã deu-lhe o vago sentimento de que, se suas caças não fossem apreciadas, pelo menos lhe ficariam reconhecidos. Era uma boa justificativa para caçar.

Quanto mais pensava, mais se via convencida de que caçar carnívoros, ainda que às escondidas, seria sua solução, embora não conseguisse sobrepujar inteiramente o sentimento de culpa.

Lutava contra sua consciência. Creb e Iza lhe haviam falado muito de que era errado mulheres botarem a mão em armas, mas já fui muito mais longe do que simplesmente tocar numa arma, dizia consigo. Seria ainda pior se caçasse com uma? A menina olhou para a funda na mão e, de repente, decidiu-se, esforçando-se para vencer seu sentimento de estar fazendo uma coisa errada.

- Está decidido! Aprenderei a caçar! Mas só vou matar comedores de carne, dizia consigo, fazendo gestos enfatizando sua determinação. Cheia de entusiasmo, correu ao riacho para buscar mais pedras.

Enquanto procurava por pedras de bom tamanho, seus olhos bateram num objeto de forma bastante particular. Parecia uma pedra, mas parecia também a concha de algum molusco, possível de ser encontrada à beira-mar. Ela pegou e examinou com atenção. Era uma pedra, mas uma pedra com for mato de concha.

- Que pedra estranha, falou. Nunca vi uma assim antes. Lembrou-se, então, de algo que Creb lhe dissera e, súbito, deu o estalo em sua cabeça. A idéia era tão perturbadora que sentiu o sangue correndo e um frio perpassar-lhe pela espinha. Os joelhos se dobravam e ela tremia tanto que teve de se sentar. Empalmando a pedra que era apenas o fóssil de um gastrópode, ficou com os olhos fixos nela, inteiramente absorta.

Creb tinha dito, lembrava-se ela, que, quando uma decisão importante está para ser tomada, o totem da pessoa a ajuda. Se a decisão estiver certa, o totem manda um aviso qualquer. Ele disse também que sempre é uma coisa muito fora do comum e que ninguém sabe dizer se aquilo é de fato ou não um aviso. Só a pessoa, com sua mente e seu coração, entende o que o totem, dentro dela, está-lhe dizendo.

Ó Poderoso Leão da Caverna, isso é um aviso mandado por você? Ela se expressava em silêncio, na forma da linguagem ritualística usada para se diri gir aos totens. Está você me revelando que tomei a decisão certa? Que mesmo que eu seja uma menina, não é errado caçar?

Sentou-se quieta, com os olhos sempre presos na pedra, tentando as sumir a postura meditativa que via em Creb. Não ignorava que ela própria era considerada fora do comum por ter como totem o leão da caverna, mas nunca dera muita importância ao fato. Enfiou a mão por baixo da roupa, sentindo na coxa os quatro riscos paralelos de sua cicatriz. Mas, por que fui escolhida pelo leão da Caverna? É um totem forte demais, um totem de homem. Por que teria escolhido uma menina? Deve haver um motivo por trás disso tudo Pensou, então, na funda e como aprendera a usá-la. que será que fui apanhar a velha funda que Broud tinha jogado fora? Nenhuma mulher tocaria naquilo. O que foi que me fez fazer isso? Será que fui guiada por meu totem? Que ele estava querendo que eu aprendesse a caçar? Só os homens caçam e meu totem é de homem. Claro! Deve ser isso! Tenho um totem masculino, por isso ele quer que eu cace.

Ó Poderoso leão da Caverna. os caminhos usados pelos espíritos são desconhecidos para mim. Não sei por que você quer que eu cace, mas estou feliz por me ter enviado este aviso.

Ayla revirava a pedra na mão, até que pegou o amuleto do pescoço, desatou o nó que fechava o saquinho e pôs o fóssil dentro, junto do torrão de ocre vermelho. Amarrou novamente bem apertado e tornou a passá-lo pela cabeça, sentindo agora a diferença do peso pendurado em seu pescoço. Era como se seu totem desse sua aprovação, emprestando peso à sua decisão.

Todo o sentimento de culpa desapareceu. Estava subentendido que ela deveria caçar, o seu totem assim o desejava. Não importava o fato de ser mulher. Sou como Durc, pensou, ele abandonou seu clã, apesar de todos dizerem que estava errado. Acho que ele encontrou um bom lugar, onde a Montanha de Gelo nunca chegou e que ele formou um novo clã. Durc também deve ter tido um totem poderoso. Creb diz que a vida é muito difícil para aqueles que têm totens fortes e que estes testam antes a pessoa para saber se ela é digna de receber o que eles vão dar. Foi por isso, disse ele também, que quase morri, antes de Iza me achar. Gostaria de saber se Durc foi posto à prova por seu totem. Será que meu leão da Caverna ainda vai me testar outra vez?

Mas, às vezes, um teste pode ser muito difícil. E se eu não for digna? Como vou ficar sabendo se estou sendo testada? Qual será a coisa difícil que meu totem vai querer que eu faça? Pensou, então, naquilo que era mais difícil em sua vida, e a resposta foi quase instantânea.

Broud! Broud é o meu teste, disse, gesticulando. Que coisa poderia ser mais difícil do que ter Broud pela frente um inverno inteiro? Mas se eu for digna, vou conseguir, e meu totem me deixará caçar.

Ao entrar na caverna, havia qualquer coisa diferente no andar de Ayla que logo foi observado por Iza, embora a curandeira não soubesse definir exatamente o que fosse. Nada de impróprio apenas Ayla parecia mais à vontade, menos tensa e com um ar de aceitação que viu no seu rosto, quando Broud se aproximou. Não era de resignação, ela parecia, antes, cordata. Foi Creb, no entanto, que reparou no maior volume do amuleto da garota.

Quando o inverno chegou de fato, ele e Iza ficaram felizes por vê-la voltar ao normal, a despeito de todas as exigências de Broud. Ayla estava quase sempre cansada, mas brincava com Uba, e os sorrisos e até mesmo os risos haviam voltado. Creb imaginava que ela tivesse tomado alguma decisão e que encontrara um aviso do seu totem. Foi com alívio que ele a viu aceitando melhor sua vida no clã. Estava a par da luta que Ayla travava dentro de si, mas achava necessário Broud dobrá-la à vontade dele. Era preciso que a garota deixasse de resistir. Também ela tinha de aprender a controlar-se.Durante o inverno que marcou seu oitavo aniversário, Ayla se transformou em mulher. Não fisicamente. Seu corpo ainda continuava reto, com as formas próprias de uma menina e ainda sem aparentar nenhum vestígio das mudanças que estavam por vir. Mas foi durante essa ocasião que Ayla abandonou definitivamente sua fase infantil.

Algumas vezes, a vida lhe parecia tão insuportável que pensava se não seria melhor interrompê-la. Certas manhãs, quando abria os olhos, dando com os contornos familiares da rocha nua sobre sua cabeça, desejava voltar a dormir e nunca mais acordar. Quando, porém, achava que não iria aguentar mais, apertava o amuleto e a sensação do volume da pedra dava-lhe, de certo modo, paciência para enfrentar mais outro dia. E cada dia vivido trazia-a para mais perto do tempo em que as neves altas no chão e as rajadas geladas seriam trocadas por relvados verdes e brisas marinhas, quando ela, novamente em liberdade,poderia vagar pelos campos e florestas.

Tal como o rinoceronte lanoso, cujo espírito era o seu totem, Broud podia ser tão teimoso quanto de uma maldade imprevisível. A teimosia, por sinal, era um traço da raça; uma vez estabelecido determinado curso de ação, persistia-se neste da forma mais obstinada possível e Broud estava inteiramente dedicado a manter Ayla na linha. A provação diária dela - cascudos, imprecações, socos e constantes hostilidades - era claramente sentida por todos no clã. Muitos eram de opinião de que ela realmente estava precisando ser disciplinada e merecendo levar alguns castigos, mas poucos estavam de acordo com os extremos a que o rapaz chegara.

Brun continuava ainda preocupado com o fato de Broud ter permitido Ayla provocá-lo demasiadamente, mas já que o rapaz vinha conseguindo controlar seus ataques de fúria, considerava isso como já sendo um bom indicio de progresso. Esperava só que ele moderasse mais a maneira de tratar do assunto e, nesse meio tempo, achou que o melhor seria dar livre curso à situação. À medida que o inverno avançava, mesmo contra a vontade,viu-se respeitando cada vez mais a estranha menina; era o mesmo tipo de respeito que sentia por sua germana, ao tempo que Iza se sujeitava com resignação às surras que o companheiro lhe dava.

Tal como Iza, Ayla estava dando um belo exemplo de comportamento feminino. Aguentava tudo sem queixas, como uma mulher devia sempre fazer. Quando, às vezes, ela parava por instantes para segurar em seu amuleto, Brun e os outros viam nisso um gesto reverente às forças espirituais, tão importantes às suas vidas. Isso só fazia engrandecê-la como mulher.

O amuleto deu-lhe alguma coisa em que acreditar. Ela reverenciava as forças espirituais à maneira como as entendia. Seu totem a estava testando. Se provasse ser digna, poderia caçar. Quanto mais Broud a atormentava, maior era sua determinação de aprender a caçar quando chegasse a primavera. Seria melhor do que Broud, melhor ainda do que Zoug. O melhor caçador com funda de todo o clã, mesmo que ninguém ficasse sabendo a não ser ela. Este era o pensamento a que se agarrava e que se petrificara em sua mente, tal como as imensas agulhas de gelo que se formavam ao alto da entrada da caverna, onde o ar quente das fogueiras subia para encontrar as temperaturas geladas do exterior, e ali permanecendo como uma pesada cortina transideida durante todo o inverno.

Sem o saber, já estava se exercitando. Apesar de que isso a pusesse em maior contato com Broud, seu interesse por caçadas a arrastava para junto dos homens, quando os via sentados passando longas horas revivendo antigas caçadas ou fazendo planos para futuras. Sempre dava um jeito de ficar por perto trabalhando, principalmente quando percebia ser Dorv ou Zoug que estavam contando histórias de seus feitos com fundas. Ressuscitou seu antigo interesse por Zoug e procurava satisfazer seus desejos, acabando por criar uma sincera afeição pelo velho caçador. De certo modo, ele lhe lembrava Creb: orgulhoso, sério, sentindo-se feliz com aquela atenção e carinho, ainda que viesse da parte de uma estranha e feia menina.

Zoug não deixava de perceber o interesse dela por suas passadas glórias, ao tempo em que era o segundo em comando, tal como Grod agora. Tinha nela uma ouvinte atenta, silenciosa, sempre mantendo uma atitude de respeito, e discreta. Muitas vezes, Zoug catava Vorn para explicar-lhe alguma técnica de pegar os rastros de animais ou expor seus conhecimentos de caça, sabendo que, podendo, a menina viria sentar-se por perto, mas ele fingia não percebê-la. Se Ayla tinha prazer com suas histórias, que mal poderia haver nisso?

Se fosse mais jovem, pensava Zoug, e ainda pudesse sustentar alguém, eu tomaria a menina como companheira, quando ela ficasse mulher. Algum dia vai precisar de um homem e, feia como é, vai ter certa dificuldade para arranjar alguém. Mas é jovem, forte e respeitadora. Tenho parentes em outros clãs e, se ainda tiver forças para comparecer à próxima reunião, vou falar por ela. Não deve querer ficar aqui, quando Broud for o chefe,

Não que tenha importância o fato de ela querer ou Não, mas nisso eu lhe dou razão. Só espero já ter ido para o outro mundo, quando tal suceder. Ele nunca se esquecera da agressão de Broud e Não gostava nada do filho da companheira de Brun. Achava que o rapaz era estúpido com a menina por quem criara bastante amizade. É certo que ela precisava ser disciplinada, mas tudo tem limites, e Broud fora muito além destes. Com Zoug, a garota jamais faltara com o respeito e era obrigação de um homem, mais velho e experimentado, saber como lidar com mulheres. Sim, vou falar por ela. Se na puder ir, envio uma mensagem. Mas, se ao menos ela Não fosse tão feia.

Por mais difícil que fosse para Ayla, nem tudo se mostrava tão ruim. A lida diária transcorria com mais calma, sem muitos serviços domésticos. Até mesmo Broud, depois de tudo arrumado, Não encontrava muita coisa para poder dar suas ordens. Com o tempo, ele foi se cansando, já Não havia o menor desafio nela, de modo que suas hostilidades diminuíram um pouco. Uma outra coisa também veio contribuir para que a vida de Ayla, naquele inverno, não fosse tão insuportável.

No princípio, tentando achar razões válidas para conservar Ayla dentro dos limites da fogueira de Creb, Iza resolveu treiná-la no preparo e uso das ervas e plantas que tinham sido colhidas. Ayla estava fascinada com a arte de curar. Com tanto interesse demonstrado, Iza passou a dar-lhe aulas regularmente, inclusive achando - depois que percebeu o quanto era diferente a maneira da cabeça de sua filha adotiva funcionar - que deveria ter começado há mais tempo as lições.

Se Ayla fosse sua filha de verdade, iza teria apenas de fazê-la recordar daquilo que estava armazenado em seu cérebro, de modo a acostumá-la a fazer uso de um conhecimento que já possuía. Como Não era, Ayla tinha de esforçar-se para memorizar coisas que, em Uba, eram inatas. Iza precisava exercitar Ayla, repassar muitas vezes a mesma matéria e estar constantemente pondo-a à prova para ver se havia realmente aprendido direito. Iza extraía informações tanto da memória com que nascera, como de sua experiência, e ela própria se via surpreendida com o volume de conhecimentos que possuía. Nunca pensara sobre isso antes, simplesmente o conhecimento estava ali, pronto para quando ela precisasse. Havia momentos em que Iza se desesperava, achando que jamais iria conseguir ensinar Ayla o que sabia ou fazer dela uma boa curandeira. A garota, no entanto, nunca esmorecia, e Iza estava firme no seu intento de assegurar uma posição no clã para sua filha adotiva. As lições prosseguiam diariamente.

- O que é bom para queimaduras, Ayla?

- Deixe-me pensar. Flores de hissopos misturadas com flores de virga áureas e pinhas. Põe-se para secar e se mistura o pó em partes iguais. Faz-se então um curativo com o pó umedecido. Quando estiver seco, torna-se a jogar água fria por cima do cataplasma - respondeu sem pestanejar. Em seguida, fez uma pausa, pensando. - Também é bom, folhas e flores de hortelã-da água. Molham-se as duas e se pôe diariamente sobre a queimadura. A loção feita de capim também serve para queimaduras.

- Muito bem, tem mais alguma coisa para dizer?

Ayla procurava lembrar-se.

- Hissopos gigantes também. Esmigalham-Se as folhas e os talos frescos para fazer cataplasmas ou então as folhas secas umedecidas. E... ah sim, as flores amarelas do cardo. Elas são fervidas, deixa-se esfriar e se usa como loção.

- Isso é bom também para feridas na pele, Ayla. E não se esqueça de que cinzas de cavalinha misturadas com gordura da um bom unguento para queimaduras.

Também sob a direção de Iza, Ayla começou a aprender a cozinhar. Logo assumiu o encargo do preparo de quase todos os alimentos de Creb. A garota tinha o maior trabalho em moer bem fino tudo que fosse semente antes de botar para cozinhar para que ele, com seus dentes estragados, Não tivesse muita dificuldade de engolir. Até as nozes lhe eram servidas esmigalhadas. Iza ensinou-lhe também como preparar seus remédios de tirar dor e os cataplasmas para aliviar o reumatismo. Ayla tornou-se especialista nos medicamentos desse mal que atacava as pessoas mais velhas do clã, cujo sofrimento sempre aumentava muito quando eles se viam confinados entre as frias paredes de pedra da caverna. Naquele inverno, a garota se tornou a assistente da curandeira e seu primeiro paciente foi Creb.O inverno ia pela metade. A neve subia alguns metros de altura à entrada da caverna, fazendo uma barreira isolante que ajudava a manter o calor provindo das fogueiras no interior, mas as ventanias continuavam assoviando através do espaço deixado entre o teto e o monte de neve. Creb estava de uma rabugice fora do comum, ora silencioso, ora resmungando mal-humorado, de pois arrependido novamente, pedindo desculpas e pondo-se de novo em silêncio. Seu humor desconcertava Ayla, mas Iza imaginava saber a causa. Era uma dor de dente particularmente dolorosa.

- Creb, você Não quer que eu dê só uma olhada em seu dente? - perguntava Iza.

- Não é nada. Apenas uma dor de dente incomodando um pouco. Você acha que Não consigo aguentar uma dorzinha? Pensa que nunca senti dor antes, mulher? - respondeu ele, com impertinência.

- Sim, Creb - falou Iza, de cabeça baixa.

Imediatamente, ele se mostrou arrependido.

- Iza, sei que você está só querendo ajudar.

- Se você me deixasse dar uma olhada, talvez eu lhe pudesse dar alguma coisa. Como posso saber o que receitar, se você Não me deixa olhar?

- O que há aí para olhar? - gesticulou ele. - Um dente doente é igual a todos os outros. A única coisa que quero é que me faça um chá de casca de salgueiro - rosnou o feiticeiro, indo em seguida sentar-se em sua pele de dormir, ficando a olhar para o vazio.

Iza abanou a cabeça e foi preparar o chá.

- Mulher! - gritou Creb, poucos instantes depois. - Onde está esse chá? Por que está demorando tanto? Como posso meditar? Não consigo me concentrar - falou, com impaciência.

Iza apressava-se com uma cuia de osso, fazendo sinal a Ayla para que a acompanhasse.

- Já estou indo, Creb, mas Não acredito que chá de salgueiro vá adiantar muito. Deixe pelo menos que eu dê uma olhada.

- Está bom, está bom, Iza. Dê essa olhada de uma vez. - Abriu a boca, apontando para o dente que doía.

- Você vê, Ayla, como esse buraco preto no dente vai lá no fundo? A gengiva está inchada, o dente está completamente estragado. Acho que vai ter de ser arrancado, Creb.

- Arrancado! Você me disse que queria só dar uma olhada para poder receitar alguma coisa. Você Não tinha falado de tirar dente. Bom, me dá qualquer coisa para melhorar isso, mulher!

- Sim, Creb, aqui está seu chá de salgueiro.

Ayla observava, surpresa, a mudança.

- Pensei que você disse que chá de salgueiro Não ia adiantar muito.

- Nada vai adiantar muito. Posso dar um pedaço de raíz de capim-limão para ele mastigar, talvez melhore um pouco, mas duvido.

- Ah, curandeiras, que nem curar uma dor de dente sabem! - resmungou Creb.

- Posso tentar extrair a dor - falou Iza, com toda a naturalidade.

- Vou mastigar as raízes - disse Creb, retraindo o corpo.

No dia seguinte, aquela cara com uma horrível cicatriz e um olho vazado amanheceu inchada, conseguindo ter um aspecto ainda mais pavoroso. Ele não dormira e o olho estava vermelho.

- Iza - gemeu - faça algo para parar essa dor.

- Se você tivesse deixado eu extrair o dente ontem, hoje já estaria sem dor - respondeu ela, voltando logo a mexer as sementes que torrava numa panela, observando o espoucar fazendo os característicos ruídos de poc, poc.

- Mulher! Será que você não tem coração? Não dormi a noite inteira!

- Eu sei, Creb, você me deixou acordada o tempo todo.

- Bem, faça alguma coisa! - explodiu.

- Vou fazer, Creb. Mas agora só vou poder extrair depois que desaparecer a inchação.

- Será que só sabe pensar nisso? Extrair dente?

- Posso experimentar outra coisa, mas Não acredito que vá salvar o dente - gesticulou ela, com ar compreensivo. - Ayla, traga aquele pacote com as lascas chamuscadas da árvore que foi apanhada por um raio no verão passado. Vamos ter de furar a gengiva para diminuir a inchação antes de arrancar o dente. E vamos ver também se acabamos com essa dor de uma vez.

Creb tremia ouvindo as instruções dadas a Ayla. Depois, encolheu os ombros, afinal não podia ser muito pior do que a dor que estava sentindo, pensou ele.

Iza separou as lascas e escolheu duas.

- Ayla, quero que você esquente a ponta dessa aqui, até que fique como carvão mas não muito. Tem de ficar dura o suficiente para não partir. Pegue uma brasa na fogueira e segure a lasca junto do fogo até a madeira começar a soltar fumaça. Mas antes quero que você veja como se fura a gengiva. Se gure para mim os lábios dele para trás.

Ayla fazia como Iza lhe mandava, olhando dentro da boca escancarada de Creb as duas fileiras de dentão podres.

- Com a ponta bem fina de uma lasca, nós furamos a gengiva embaixo do dente, até começar a sangrar - disse, antes de demonstrar praticamente.

Creb tinha sua mão fechada com força, mas Não emitia nenhum som.

- Agora, enquanto o sangue fica saindo, pegue a outra lasca quente.

Ayla correu à fogueira, voltando imediatamente com uma brasa viva encostada na ponta carbonizada da lasca. Iza pegou, examinando-a com atenção Fez que sim com a cabeça e gesticulou dando ordens a Ayla para que tornasse a segurar os lábios dele para trás. Inseriu, então a ponta quente na cavidade do dente. Ayla sentiu Creb dar uma sacudidela, ouvindo um leve chiado, ao mesmo tempo em que saía um filete de fumaça do enorme buraco no dente.

- Pronto. Agora vamos esperar para ver se a dor vai passar. Se não, o dente vai ter de ser arrancado - disse Iza, depois de esfregar na gengiva de Creb uma mistura de pó de gerânio com pó de nardo. - Pena que eu não tenha nenhum daqueles cogumelos tão bons para dor de dente. O nervo fica adormecido e quase sempre é posto para fora. Nesse caso, eu não iria precisar arrancar o dente. Frescos são melhores, mas seco também funcionam. Devem ser colhidos no fim do verão. Se encontrar algum no ano que vem, vou mostrar para você, Ayla.

No dia seguinte, iza perguntou:

- Seu dente ainda está doendo, Creb?

- Está melhor, Iza - respondeu ele, esperançoso.

- Mas ainda dói? Se a dor não passou completamente vai inchar outra vez - insistiu Iza.

- Bem... sim, ainda dói - admitiu. - Mas não muito. Realmente não é muito mesmo. Por que não esperar mais um ou dois dias? Estou usando uma fórmula mágica poderosíssima. Tenho pedido a Ursus para destruir o mau espírito que está provocando a dor.

- Mas você já não pediu muitas vezes a Ursus para livrá-lo dessa dor? Acho que Ursus quer que você sacrifique seu dente, para depois ele fazer parar a dor, Mog-ur - falou Iza.

- O que você entende do Grande Ursus, mulher? - disse Creb, irritado.

- Esta mulher foi presunçosa. Esta mulher nada sabe dos caminhos usados pelos espíritos - respondeu Iza, com a cabeça baixa. Depois, olhando para o germano, falou: - Mas uma curandeira entende a dor de dente. A dor não vai sumir enquanto o dente não for extraído disse com firmeza, gesticulando.

Creb deu as costas e saiu capengando. Sentou-se na pele de dormir com os olhos cerrados.

- Iza? - chamou ele, depois de alguns minutos.

- O que é, Creb?

- Você tem razão Ursus quer que eu me livre do dente. Vá em frente, acabe logo com isso.

- Pegue isso, Creb. Beba - disse Iza, encaminhando-se para ele. - Faz com que não doa tanto. Ayla, há um pequeno pino perto do pacote de lascas e um rolo comprido de barbante. Traga aqui.

- Como é que você sabia que já devia ter a bebida preparada? - perguntou Creb.

- Eu sei, Mog-ur, que é muito difícil sacrificar um dente, mas se Ursus assim o deseja, sei que o Mog-ur o atenderá. Esse não é o sacrifício mais difícil que o Mog-ur já fez em intenção de Ursus. Sei que é muito duro viver com um totem poderoso, mas Ursus Não o teria escolhido, se você não fosse digno dele.

Creb fez que sim com a cabeça e tomou a bebida. É feito da mesma planta que uso para incentivar as memórias nos homens, pensou. Mas acho que vi Iza botando água para ferver, ela cozinha as plantas ao invés de fazer uma infusão. Fica mais forte, quando são apenas maceradas. A datura tem muitos usos, deve ser uma planta dada por Ursus. Já começava a sentir os efeitos do narcótico.

Iza disse a Ayla para manter a boca do feiticeiro aberta, enquanto, cui dadosamente, com o pino abalava os alicerces do dente dolorido. Creb teve um sobressalto, mas não doeu tanto quanto havia imaginado. Em seguida, Iza amarrou em volta do dente amolecido o barbante e mandou que Ayla atasse a outra ponta num pau fincado no chão o qual pertencia ao engradado onde se penduravam plantas para secar.

- Ayla, ponha a cabeça dele para trás, até que o cordão fique bem esticado. - Com um só movimento rápido e brusco, ela puxou o barbante. - Aqui está - disse, retirando o cordão com um enorme molar pendurado. Borrifou, então, o buraco sangrando com raiz de gerânio, passando depois um bálsamo, preparado com cascas de eucalipto e outras variedades de folhas secas. Por fim, enrolou o rosto dele com uma faixa de couro úmida.

- Tome o seu dente, Mog-ur - falou Iza, botando o molar cariado na mão de Creb. Este ainda estava inteiramente aturdido. - Terminou.

Ele pegou o dente, mas, ao se deitar, deixou-o cair.

- É para ser dado a Ursus - murmurou, embriagado.

O clã depois de Ayla ter ajudado a curandeira na cirurgia dentária de Creb, pôs-se de vigia para saber como ele ia passando. Quando viram que melhorava, sem qualquer complicação, passaram a convencer-se de que a menina não afugentava os bons espíritos. Isso veio predispô-los a favor de Ayla, quando esta aparecia com Iza para ajudá-los em suas doenças. À medida que o inverno progredia, Ayla foi aprendendo a tratar de queimaduras, machucados, feridas, gripes, infecções de garganta, problemas de estômago, dores de ouvido e diversos outros tipos de moléstias e machucados sem gravidade, que surgiam no curso normal da vida.Com o tempo, para pequenos problemas de saúde, passaram a recorrer a Ayla com a mesma facilidade que buscavam Iza. Sabiam que a menina coletava plantas e viam Iza ensinando-a.     Afinal, Iza estava envelhecendo, não se achava bem de saúde e Uba ainda era muito criança. O clã começava a acostumar-se com a presença daquela estranha menina em seu meio e a aceitar a idéia de que alguém dos Outros pudesse algum dia tornar-se a curandeira do clã.

Foi durante a época mais fria do ano, depois do solstício de inverno e antes das primeiras chuvas da primavera que Ovra entrou em trabalho de parto.

- Ainda está muito cedo - falou Iza para Ayla. - O bebê só deveria nascer na primavera. De uns tempos para cá, ela não sente nenhum movimento na barriga. Estou com medo de que o parto não corra bem e de que o bebê tenha morrido.

- Ovra queria tanto esse filho, Iza. Ficou tão feliz quando soube que estava grávida. Será que você Não pode fazer nada? - perguntou Ayla.

- Bem, a gente vai fazer o que puder, mas há coisas que estão fora do nosso alcance.

O clã inteiro estava preocupado com o trabalho de parto prematuro da companheira de Goov. As mulheres tentavam levar seu apoio moral, enquanto os homens, nervosos, esperavam rondando por perto. O clã havia perdido muitos de seus membros durante o terremoto, de modo que todo nascimento era aguardado com ansiedade. Crianças significavam mais bocas para os caçadores de Brun e mais trabalho para as mulheres; por outro lado, depois de crescidas, seriam elas quem os sustentariam em suas velhices. A continuação e sobrevivência do clã estava na dependência da sobrevivência individual. Eles precisavam uns dos outros e estavam realmente tristes com o fato de que o bebê de Ovra pudesse nascer morto.

Goov estava mais preocupado com sua companheira do que com a criança e desejava poder fazer alguma coisa. Não gostava de vê-la sofrendo, especialmente quando eram poucas as chances de um desenlace feliz. Ovra desejava muito aquele bebê, sentia-se inferiorizada em ser a única mulher no clã sem filhos. Até mesmo a curandeira, com toda a sua idade, dera à luz. Ovra ficara exultante quando soube estar grávida e Goov gostaria de poder pensar em alguma coisa que a consolasse de sua possível perda.

Droog parecia compreender o rapaz melhor do que ninguém. Ele também já se sentira de forma parecida em relação à mãe de Goov, se bem que essa teve a felicidade de ter tido um filho. No entanto, era obrigado a admitir que, depois que se acostumou, estava tendo grande prazer com a sua nova familia. Esperava, inclusive, que Vorn passasse a se interessar por ferramentas, e quanto a Ona, era a alegria de sua vida, sobretudo agora que deixara de mamar e começava, ao jeito das crianças, a imitar os adultos. Droog nunca tivera uma menina em sua fogueira e Ona era tão bebê, quando ele tomou Aga para companheira, que a garotinha era como se tivesse nascido em sua casa.

Ebra e Ika, solidárias, achavam-se sentadas ao lado de Ovra, enquanto iza preparava os medicamentos. Ika também queria muito aquele bebê e se gurava, ansiosa, a mão da filha, sofrendo com as contrações. Oga saíra para preparar a refeição da noite que iria servir a Brun, Grod e Broud. Goov foi convidado; e lka se ofereceu para ajudar, mas, como Goov não aceitou, Oga disse não haver necessidade. Faria tudo sozinha. Goov estava sem fome e foi fazer uma visita à fogueira de Droog, onde Aba o convenceu a engolir algo.Oga estava distraída, preocupada com Ovra, e lamentando não ter acei to o oferecimento de Ika. Ela não soube como aconteceu, só viu que tropeçara enquanto servia sopa quente aos homens e que deixara o caldo fervendo cair no ombro e no braço de Brun.

- Aiii! - gritou Brun ao sentir o líquido escaldando escorrer sobre ele. Pôs-se a dar saltos ao redor, cerrando firme a boca para não gritar de dor. Com a respiração suspensa, todas as cabeças se viraram em sua direção O si lêncio foi quebrado por Broud.- Oga! Sua estúpida desajeitada! - disse gesticulando muito, tentando disfarçar seu embaraço por ter sido sua companheira a responsável pelo acidente.

- Ayla, vá atender. Não posso sair agora - disse Iza, por meio de sinais.

Broud avançou para Oga com os punhos cerrados, prontos para bater.

- Não Broud - falou Brun estendendo o braço, impedindo-o. Agordura da sopa ainda se colava em sua pele e ele se esforçava para Não demonstrar dor. - Foi sem querer. Bater não vai adiantar nada.

Oga encolhia-se enroscada aos pés de Broud, tremendo de medo e vergonha.

Ayla estava apreensiva. Nunca tratara do chefe do clã e tinha um medo dele fora do comum. Correu à fogueira de Creb para pegar uma bacia de madeira. De lá, dirigiu-se à entrada da caverna, onde apanhou uma porção de neve, indo depois para a fogueira de Brun e se pondo de joelhos na frente dele.

- Iza me mandou. Ela não pode largar Ovra agora. Permitiria o chefe que esta menina cuidasse dele? - perguntou, depois de Brun ter tomado conhecimento de sua presença.

Brun acedeu com a cabeça. Ayla, como curandeira do clã, era algo que ele ainda não acreditava muito, mas, dadas as circunstâncias, não lhe restava senso aceitar. Nervosa, ela pôs a neve sobre o local queimado. Estava vermelho e inflamado. A neve aliviou a dor e ela sentiu que os nervos tensos de Brun começaram a relaxar um pouco. Voltou à fogueira de Creb onde despejou água fervendo sobre folhas secas de hortelã-d”água.

Depois de bem embebidas, jogou na vasilha um pouco de neve para esfriar rápido e retornou a seu paciente. Com a mão aplicou-lhe a loção calmante, enquanto percebia a tensão ir deixando aquele musculoso corpo, que parecia talhado em pedra. Brun já respirava com mais facilidade. A queimadura ainda doía, mas já estava mais suportável. Ele fez um sinal aprovando e a menina se pôs um pouco mais à vontade.

Parece que está aprendendo as mágicas de Iza, pensou Brun. E também está aprendendo a se comportar como uma mulher deve fazê-lo. Talvez o que lhe estivesse faltando era só um pouco de maturidade. Se acontecesse qualquer coisa a Iza antes de Uba crescer, nós estaríamos sem curandeira. Acho que Iza acertou em querer treinar a garota.

Não muito depois, Ebra chegou para anunciar a seu companheiro que o filho de Ovra havia nascido morto. Brun olhou na sua direção dando a entender que compreendera e depois abanou, pesaroso, a cabeça. Logo um menino, pensou. Ela deve estar com o coração partido, todos sabem o quanto desejava este filho. Tomara que não tenha muita dificuldade para engravidar outra vez. Quem diria que um totem de castor fosse lutar tanto? Apesar de estar com muita pena de Ovra, Brun nada comentou, pois ninguém deveria mencionar a tragédia. Ovra, porém, entendeu o motivo que levou Brun à fogueira de Goov, alguns dias depois, para dizer-lhe que tirasse o tempo que quisesse para se recuperar de sua “doença”. Embora Brun fosse muito visitado em sua fogueira pelos homens, ele quase nunca aparecia na dos outros e, se fosse, dificilmente se dirigia às mulheres. Ovra ficou-lhe agradecida pela demonstração de apreço, mas não havia nada que pudesse aliviar sua dor.

Iza insistiu para que Ayla continuasse a tratar de Brun e, depois que a queimadura sarou, o clã passou a aceitar Ayla ainda mais. Ela, por sua vez, começou a sentir-se mais à vontade na presença do chefe. Afinal, ele era um homem como qualquer outro.

 

Quando o longo inverno terminou, o ritmo de vida do clã se acelerou, de modo a se pôr de acordo com a velocidade do despertar da vida naquele mundo de terra generosa. O tempo frio não só forçava uma verdadeira hibernação como também alterava o regime metabólico das pessoas devido à redução de actividades. No inverno, ficavam mais preguiçosas, dormiam e comiam mais, criando uma camada protetora de gordura subcutânea para que pudessem resistir melhor ao frio. Com a subida da temperatura a tendência se invertia: o clã se mostrava irrequieto, ansioso para estar ao ar livre, em grande actividade.A mudança nos hábitos exigia os cuidados médicos de Iza que ministrava a todos - desde as crianças aos velhos - seu tônico de primavera um composto de folhas secas de spérula, pó de labaça (uma raíz rica em ferro) e outra raíz que colhia logo no início da primavera, parecida com a do centeio. Com o vigor renovado. o clã irrompia para fora da caverna, pronto para dar partida a um novo ciclo de estações.

O terceiro inverno na caverna não chegou a ser muito penoso. A única morte ocorrida foi a do filho de Ovra e, assim mesmo, esta não contava, pois a criança não chegou a receber nome e nem foi reconhecida oficialmente. Iza, então livre da obrigação de amamentar um bebê guloso, igualmente resistiu bem ao inverno. Creb não passou pior do que o costume.

Tanto Aga como Uka estavam novamente grávidas e, pelo fato de as duas terem sido bem-sucedidas em seus partos anteriores, o clã via esperançoso esse aumento no número de seus membros. Os primeiros legumes, rebentos e brotos estavam sendo colhidos, e se projetava a primeira grande caçada da estação, aquela que os abasteceria de carne fresca para a festa da primavera em honra aos espíritos que despertavam a vida na natureza e também para dar graças a seus totens protetores por tê-los amparado em mais um inverno.

Ayla se sentia como se tivesse motivos especiais para agradecer a seu totem. O inverno fora penoso, mas emocionante. Seu ódio por Broud era ainda até maior, mas havia aprendido a lidar com o rapaz. Ainda que ele fizesse o pior, ela suportava tudo com calma e resignação. Havia um limite que nem mesmo Broud conseguia transpor. Para isso, contribuiu também o interesse da menina pela medicina de lia. A garota adorava suas lições. Quanto mais aprendia, maior era sua vontade de saber. Estava ansiosa para sair em busca de plantas medicinais, agora que tinha uma melhor compreensão de seus usos e também porque esse era um meio de poder escapar e estar sozinha. Enquanto sopravam os ventos cortantes e caíam as pesadas nevascas, Ayla esperou pacientemente, mas, aos primeiros indícios de mudança, ela começou a se sentir inquieta, em estado de expectativa. Aguardava aquela primavera como nunca até então esperara por uma outra. Estava na ocasião de aprender a caçar.

Tão logo o tempo permitiu, a garota começou a escapar para os campos e florestas. Já não mantinha mais a funda escondida na pequena gruta, perto do seu campo de treinamento. Trazia-a com ela, metida numa dobra de roupa, ou em sua cesta de colher, debaixo das camadas de folhas. Aprender a caçar por si, sem ninguém para orientá-la, não foi tarefa fácil. Os animais eram esquivos e velozes e os alvos em movimento muito mais difíceis de ser atingidos. Quando colhiam, as mulheres sempre faziam barulho para espantar bichos que poderiam estar à espreita e esse era um hábito difícil de romper. Muitas vezes, Ayla, ao dar com uma corrida rápida que se ia camuflar numa moita, via-se furiosa consigo, pois alertara o animal de sua presença. Mas estava no firme propósito de aprender, e a prática iria ensiná-la.

Através de tentativas e erros foi começando a aprender a pegar o rastro de animais e também a entender e aplicar técnicas de caçar que conseguira filtrar dos bocados das conversas ouvidas dos homens. Seus olhos já estavam treinados em plantas, aguçados na percepção de pequenos detalhes que diferenciavam um vegetal do outro. Agora, era só uma questão de estender esse conhecimento aos animais, de saber como interpretar o excremento denunciador de um bicho, uma leve marca deixada no terreno, alguma haste tombada mais para um lado ou um pequeno galho partido. Ayla aprendeu a diferenciar os diversos rastros de animais, tornando-se uma boa conhecedora de seus hábitos e habitats. Apesar de não desprezar as espécies herbívoras, seu interesse estava principalmente concentrado nos carnívoros, e estes se constituíam na sua caça por excelência.

Observava sempre que direção os homens tomavam quando saíam para caçar. No entanto, não era Brun com os seus caçadores que a preocupava. Quase sempre estes escolhiam as estepes como o terreno de suas caçadas e ela nem de longe pensava em querer caçar nas planícies, onde estaria a descoberto. Era dos dois velhos do clã que tinha mais medo. Já havia acontecido algumas vezes de dar com Zoug e Dorv, durante as suas coletas de plantas para Iza, e seriam eles os que mais probabilidade a garota tinha de encontrar caçando em seu terreno. Precisava estar alerta para poder evitá-los. Mesmo tomando direção oposta à deles não significava estar a salvo, haveria sempre a possibilidade de os dois mudarem de rumo e surpreendê-la com a funda na mão.

Depois que pôde locomover-Se silenciosamente, ela algumas vezes os se guia para observar e aprender. Nessas ocasiões, usava de extrema cautela. Era mais perigoso ir no rastro deles do que seguir a trilha dos bichos que caçavam. Mas era um bom treino e, nessas perseguições - fosse perseguindo o rastro de homem, fosse o de animal - ela acabou aprendendo a mover-se sem fazer ruído e a fundir-Se com a sombra, quando acontecia de os dois olharem em sua direção.

Quando se tornou perita em pegar rastros. aprendeu a mover-se fortuita mente e a ter os olhos educados, capazes de distinguir uma forma dentro de um bem camuflado esconderijo; houve muitas ocasiões em que tinha certeza de que poderia atingir um pequeno animal. Sentia-se tentada, mas como não era carnívoro, deixava passar. Sua decisão de caçar referia-Se apenas aos predadores e somente para estes tinha permissão de seu totem. Os botões se transformaram em flores, as folhagens brotaram, as flores caíram e vieram os frutos, pendurando-se verdes, ainda pequenos nas árvores, mas Ayla ainda não havia matado seu primeiro animal.

- Sai Xõ, xõ! Passa!

Ayla veio para fora da caverna, querendo saber o porquê do rebuliço. Um bando de mulheres agitava os braços tocando para fora um animal pelu do, baixote e atarracado. O carcaju ia dirigir-se para a caverna, mas, ao dar com Ayla, soltou um rosnado, mudando de direção. Esquivando por entre as pernas das mulheres, o animal conseguiu escapar com um pedaço de carne entre os dentes.

- Miserável de bicho esganado! Eu tinha acabado de botar a carne para secar - gesticulou Oga desolada e furiosa. - Mal tinha virado as costas e lá estava ele. Este bicho tem rondado por aqui desde o princípio do verão e cada dia que passa está mais bravo. Só queria que Zoug acertasse nele! Foi bom que você tivesse aparecido, Ayla, ele estava em tempo de entrar na caverna. Pense só no fedor que ia deixar, se tivesse conseguido meter-se em algum canto lá dentro!

- Acho que ele é ela, Oga, e os filhotes não devem andar muito longe daqui. A esta altura já devem ser uns bichinhoS famintos e bem grandes.

- Só faltava esta! Um bando deles. - Oga falava intercalando os gestos com expressões de raiva. - Zoug e Dorv pegaram Vorn para sair com eles bem cedo esta manhã.

Preferia que, ao invés de trazerem codorna e hamsters para casa, eles pegassem esse carcaju. Esses esganados não servem para nada.

- Para uma coisa servem, Oga. As peles não deixam que seu bafo congele no inverno. Elas dão bons capuzes e gorros para a cabeça.

- Era melhor que esse danado já fosse uma pele.

Ayla tornou a entrar. Não havia nada que pudesse fazer e Iza tinha dito que começavam a faltar algumas coisas em seu estoque de remédios. A garota estava decidida a procurar a toca do carcaju. Sorriu consigo, apressou o passo e pouco depois já estava saindo da caverna com sua cesta e se encaminhando para a floresta, na direção em que o animal desaparecera.

Vasculhando o chão, percebeu a marca de uma pata com garras compridas e afiladas e, um pouco mais adiante, uma planta com o caule vergado. Estava no rastro do animal. Passados alguns segundos, ouviu o som de algo cor rendo apressado. Era surpreendentemente perto da caverna. Foi avançando, maciamente, quase sem tirar uma folha do lugar e surpreendeu o carcaju e quatro filhotes, já meio crescidos, disputando com muitos rosnados o pedaço da carne roubada. Com cuidado, tirou a funda de dentro da roupa e ajustou uma pedra na saliência da correia.

Esperou, aguardando o momento certo para o tiro. Uma mudança na direção do vento levou seu cheiro até o animal que levantou a cabeça farejando o ar, já alertado para possíveis perigos. Era o momento por que Ayla esperava. Rápida, antes que o bicho tivesse tempo de fazer qualquer movimento, ela arremessou a pedra. O carcaju tombou no chão, enquanto os filhotes pulavam, assustados pelo ricochete da pedra.

Ela saiu de trás do arbusto que a encobria e foi examinar o animal de perto. Parecia um urso. Tinha mais ou menos um metro de comprimento, contando do focinho à ponta de sua cauda cabeluda e era coberto por um pêlo duro, longo, de tom marrom escuro. Os carcajus eram animais necrófagos, ousados e agressivos, bastante ferozes para afugentar outros predadores maiores do que eles, suficientemente audaciosos para roubar as carnes-secas ou qualquer coisa que desse para carregar com os dentes e tão matreiros que eram capazes de se meter nos depósitos de comida do clã. Possuíam glândulas almiscaradas que deixavam atrás de si um odor parecido com o das fuinhas, e para o clã representavam uma praga ainda pior do que as hienas que, embora necrófagas e predadoras, não dependiam das caças dos outros.

A pedra da funda de Ayla pegou justo acima do olho, no ponto e onde mirara. Aí está um carcaju que nunca mais nos vai roubar, disse ela consigo, cheia de satisfação, quase exultando. Era o primeiro animal que podia considerar como sua primeira caça. Acho que vou dar a pele para Oga, pensou, já pegando a faca para retirar a pele do bicho. Ela vai ficar feliz por saber que este nunca mais vai incomodar. De repente, parou.

Mas o que estou fazendo? Impossível dar a pele para Oga. Não posso dá-la para ninguém, e nem mesmo guardá-la comigo. Não sou permitida de caçar. Se alguém descobrir que matei este carcaju, não sei o que poderão fazer. Ayla sentou-se ao lado do animal, com os dedos enfiados por dentro da juba espessa e alta. A alegria desaparecera.

Havia conseguido sua primeira caça, que podia não ser um bisão mortopela ponta de uma pesada lança, mas era bem mais do que o porco-espinho de Vorn. Mas não haveria nenhuma solenidade para ela, comemoratido sua entrada nas fileiras dos caçadores, nenhuma festa em sua honra, nem mesmo os olhares elogiosos e as congratulações que Vorn recebeu, quando orgulhosamente exibiu sua insignificante caça. Se fosse para a caverna levando o carca ju, tudo o que poderia esperar seriam olhares escandalizados e um bom castigo. Pouco importava o fato de ela querer ajudar o clã, de ela ter dado provas de ser capaz e de que ali estivesse uma promissora caçadora. Mulheres Não caçavam. Não matavam animais. Só os homens o faziam.Eu sabia, sempre soube durante todo esse tempo, pensou, soltando um suspiro. Já sabia antes de começar a caçar, antes até de ter pegado uma funda. Estava farta de saber que não tinha perniissão para fazer tal coisa. Nisso, o mais valente dos filhotes da carcaju morta saiu de seu esconderijo e veio, curioso, farejar o cadáver. Todos esses aí vão nos dar tanto trabalho quanto a mãe disse consigo. Já estão bem crescidos, pelo menos uns dois vão sobreviver. É melhor que eu dê um fim a esta carcaça. Se arrastá-la para longe, talvez os filhos sigam o faro. Ayla se levantou e começou a puxar pelo rabo o corpo para dentro da mata. Isso feito, pôs-se a procurar plantas para colher.

O carcaju foi apenas o primeiro de uma longa série de predadores e necrófagos a tombar com as pedras de sua funda. Martas, furões, minks, lontras, doninhas, arminhos, texugos, raposas e os pequenos felinos de pele malhada com riscas pretas e cinzentas tornaram-se belos alvos de suas fulminantes pedradas. A decisão de apanhar apenas predadores teve, sem que ela o soubesse, consequências da maior importância, pois, com isso, ela apressou seu processo de aprendizagem e pôde muito mais aprimorar sua técnica do que se tivesse caçando animais herbívoros, sempre bem mais dóceis e fáceis de ser apanhados. Os carnívoros, ao contrário, eram dotados de maior inteligência, astúcia, velocidade, além de ser ainda muito mais perigosos.

Rapidamente superou Vorn na funda, a arma que escolhera para ser a sua. Não se tratava apenas do fato de o rapaz encarar a funda como coisa própria de velho e de não se empenhar muito para chegar a ter um bom domínio da arma; é que a dificuldade de Vorn era muito maior. Faltava-lhe a constituição física de Ayla, cujos braços com maior liberdade de movimentos eram mais adaptados a arremessos. A energia de seus impulsos e o aprimoramento da coordenação motora com a visão acabaram por lhe dar velocidade, força e precisão. Há muito, já deixara de comparar-se a Vorn. Em seu pensamento, agora era Zoug que desafiava e, rapidamente, aproximava-Se da mestria do velho caçador, aliás, rapidamente, estava ficando extremamente confiante.

O verão ia chegando ao fim com toda a sua carga de calor e uma super abundância de colheitas castigadas pelas tempestades. Era um dia de extremo calor, insuportavelmente quente. Nem uma leve brisa ventilava a atmosferaparada. A tempestade da noite anterior, com uma fantástica exibição de raios caindo sobre as cristas das montanhas e granizos que eram verdadeiras pedras, havia feito o clã correr para dentro da caverna. A floresta, normalmente fria e enevoada, estava úmida e abafada. Moscas e mosquitos zuniam sem parar junto ao lamaçal viscoso dos regatos pelo abaixamento do nível das águas e transformados em poças estagnadas e charcos cobertos de algas.

Ayla seguia a pista de uma raposa vermelha. Caminhava silenciosa pela mata, próxima a uma pequena clareira. Tinha calor e suava. Não se mostrava particularmente interessada na raposa e já pensava em desistir e voltar para tomar um banho no riacho perto da caverna. Depois de cruzar um córrego com seu leito pedregoso à mostra, a garota parou para tomar um gole num lugar onde as águas ainda corriam livres entre duas enormes rochas que obrigavam o curso a se desviar para uma poça com água à altura do tornozelo.

Ao erguer-se e olhar para a frente, sua respiração ficou em suspenso. Acocorado sobre a pedra, bem perto dela, estava um lince. Ela, apreensiva, olhava para aquela cabeça de forma única, com suas inconfundíveis orelhas projetando-se com dois tufos de pêlos. O animal, por sua vez, olhava-a desconfiado, batendo o cotoco de rabo de lá para cá.

Menor do que a maioria dos felinos, o Lynce pardinus, de corpo com prido e pernas curtas, tal como os seus primos que surgiram posteriormente em latitudes mais ao norte, eram capazes de saltar distâncias superiores a quatro metros. Alimentava-se principalmente de lebres, coelhos, esquilos de porte grande e outras espécies de roedores. Se quisesse, porém, podia abater pequenos veados, e uma menina de oito anos estava perfeitamente dentro de seu alcance. Contudo, aquele era um dia quente e os humanos não faziam muito o seu gosto. Provavelmente, teria deixado a menina passar, sem opor qualquer resistência.

Enquanto encarava o bicho imóvel, também olhando fixo para ela, a pontada inicial de medo foi-se transformando em alegria e excitação Zoug não dissera a Vorn que se podia matar um lince com funda? O caçador disse que não se devia pensar em animais grandes, mas falou que uma pedra atirada com funda podia perfeitamente matar hienas, lobos e linces. Lembro-me bem que ele falou em lince, dizia consigo. Até então ela ainda não tinha caçado nenhum predador de porte médio, mas sua pretensão era a de ser a melhor caçadora com funda do clã Se Zoug podia matar um lince, ela também podia repetir a mesma façanha, e ali, bem à sua frente, havia um se constituindo num perfeito alvo. Num impulso, resolveu que já era tempo de pegar caças maiores.

Devagar, sem tirar os olhos do animal, meteu a mão dentro da dobra de seu traje de verão, procurando pela maior pedra. As palmas das mãos estavam molhadas de suor. Ayla pegou nas duas extremidades da correia, juntou-as bem apertadas, ao mesmo tempo que punha a pedra na bolsa. Então rápido, antes que perdesse a calma, mirou entre os olhos e atirou. Mas, ao levantar o braço, o lince percebeu-lhe o movimento e mexeu a cabeça no momento preciso em que ela fazia o arremesso. A pedra pegou raspando a cabeça do animal num dos lados, provocando apenas uma pontada de dor no alvo pretendido.

Antes que tivesse tempo de pegar outra pedra, viu que os músculos do animal se retesavam. Foi por puro reflexo que se atirou para o lado, no mo mento em que o lince, irritado, saltou para dar o bote. Ela foi aterrar na lama perto do córrego, dando com a mão num pesado galho encharcado de água, que de tão batido pelas enxurradas ficara limpo das folhas e ramos. Agarrou o pau e o ajeitou na mão no instante mesmo em que o lince, com as presas à mostra, saltava novamente. Brandindo o pau às cegas, com toda a força que o medo lhe dava, acertou o golpe em cheio, pondo o animal meio grogue. Es tonteado, o lince deu umas voltas, agachou-se por um momento e sacudiu a cabeça. Em seguida, sem fazer ruído, dirigiu-se para a floresta. Já tinha tido uma boa dose de pancadas na cabeça naquele dia.

Ayla, ofegante, sentou-se tremendo. Quando se levantou para ir buscar a funda era como se seus joelhos fossem de água e ela teve de sentar-se outra vez. Zoug nunca havia imaginado que alguém fosse querer caçar um perigoso animal com uma simples funda, sem nenhum outro caçador ou arma para garantir. Mas a muito que Ayla praticamente acertava todos os seus tiros, e ficara confiante demais, não se dando ao trabalho de pensar no que poderia acontecer, no caso de errar. Estava em tal estado de choque que, enquanto caminhava de volta à caverna, quase se esqueceu de apanhar a cesta de colher no lugar em que a escondera, antes de começar a seguir o rastro da raposa.

- Ayla! O que aconteceu com você? Está toda enlameada! - falou Iza, logo que a viu chegar, notando a palidez mortal do rosto da garota. Alguma coisa deve ter assustado essa menina, pensou a mulher.

Ayla não respondeu. Simplesmente abanou a cabeça e entrou na caverna. Iza sentiu que havia algo que a garota Não lhe queria dizer. Pensou em pressioná-la mas depois mudou de idéia, esperando que Ayla voluntariamente viesse contar. Ela, por seu lado, não estava bem certa se gostaria de saber.

Incomodava-lhe o fato de Ayla sair sozinha, mas alguém tinha de colher suas plantas. Isso era absolutamente necessário. Ela não podia ir. Uba ainda estava muito pequena e nenhuma das outras mulheres sabia o que procurar e nem tinha vontade de aprender. Ela se via forçada a deixar Ayla ir, mas, se a menina viesse contar-lhe algum incidente ruim, iria ainda ficar mais preocupada.

Naquela noite, Ayla mostrou-se submíssa e foi para cama cedo, mas não conseguiu dormir. Ficou deitada de olhos abertos, pensando no incidente com o lince e, na imaginação a cena lhe parecia ainda mais assustadora. Só quando já estava para amanhecer é que pôde pegar no sono.

Acordou aos gritos.

- Ayla, Ayla - ouviu Iza chamando e sacudindo seu corpo com brandura para trazê-la de volta à realidade. - O que está acontecendo?

- Sonhei que estava dentro de uma pequena caverna e que um enorme leão queria me pegar. Mas já está tudo bem, Iza.

- Há muito tempo que você não tinha desses sonhos ruins. Por que iriam voltar agora? Alguma coisa hoje botou medo em você?

Ayla respondeu que sim, baixando a cabeça, sem dar outras explicações. A escuridão da caverna iluminada apenas pelo pálido brilho das brasas não deixava ver sua expressão de culpa. Desde que encontrara o aviso enviado por seu totem que nunca mais se sentira culpada por caçar. E agora estava pensando se realmente aquilo havia sido um aviso. Talvez ela pensasse que fosse e não era. Talvez não devesse, de forma alguma, caçar. Sobretudo, animais perigosos. O que deu nela para achar que uma menina poderia caçar linces?

- Nunca gostei da idéia de você sair sozinha, Ayla. Você sempre fica muito tempo fora. Sei que gosta às vezes de sair sozinha, mas isso me preocupa. Não é natural que meninas queiram tanto ficar sozinhas. A floresta pode ser um lugar muito perigoso.

- Você tem razão iza. A floresta pode ser perigosa - gesticulou Ayla.

- Talvez da próxima vez eu leve Uba comigo ou então é capaz de Ika gostar de ir.

Iza ficou aliviada, vendo que Ayla parecia levar seus conselhos a sério. Agora, estava sempre por perto da caverna e, quando saía para buscar plantas medicinais, algum tempo depois já estava de volta. E se não arrumasse alguém para acompanhá-la, ficava nervosa. Ayla estava sempre na expectativa de dar com algum animal escondido, pronto para saltar. Começou a compreender por que as mulheres não gostavam de sair sozinhas para colher alimentos e por que a sua ânsia de sair desacompanhada causava tanto espanto. Quando era menor, não tinha consciência dos perigos. A maioria das mulheres, pelo menos uma vez, já se tinha sentido ameaçada, e apenas um ataque foi o sufi ciente para fazer a garota olhar o meio ambiente que a cercava com mais respeito. Mesmo os animais não predadores podiam ser perigosos. Javalis de afiados caninos, cavalos de cascos duros, veados de galhadas colossais, bodes e carneiros selvagens com suas chifradas mortais, todos, se provocados, eram capazes de fazer sérios estragos. Ayla não sabia como ousara pensar em querer caçar. Estava com medo de fazê-lo novamente.

Não havia ninguém com quem pudesse conversar, ninguém para lhe dizer que um pouco de medo faz aguçar os sentidos, sobretudo quando se está à espreita de caças perigosas, e ninguém para encorajá-la a sair outra vez, antes que o medo acabasse por inibi-la. Os homens compreendiam o medo. não falavam disso, mas todos, diversas vezes em suas vidas, já o haviam conhecido de perto, a começar com a primeira grande caçada que os elevara à condição de homens. Animais pequenos eram apenas para exercícios, para ganhar destreza com as armas, mas o status de adulto só lhes vinha depois de ter conhecido e superado o medo.

Para a mulher, o tempo que passava sozinha, sem contar com a proteção do clã, não deixava igualmente de ser uma prova de coragem, embora mais sutil. Sob certos aspectos, exigia-se até mais coragem para enfrentar aqueles dias e noites, quando ela se via sozinha, sabendo que, acontecesse o que acontecesse, só contava consigo. Desde que nascia, a menina sempre estava rodeada de pessoas protegendo-a. E ela não tinha nem armas para se defender e nem machos bem armados para salvá-la durante seus ritos de passagem. Tanto meminos como meninas não se transformavam em adultos enquanto não houvessem enfrentado e vencido o medo.

Durante os primeiros dias, Ayla não tinha a menor vontade de afastar-se das redondezas da caverna, mas, depois de algum tempo, começou a ficar irrequieta. No inverno, não havia outra alternativa, era obrigada, como todos os outros, a aceitar o confinamento, mas, fazendo tempo bom, sentia falta de suas caminhadas em liberdade. A ambivalência a atormentava. Se estivesse sozinha na floresta, longe da segurança do clã, ficava inquieta, apreensiva, e se perto, sentia saudade da solidão e do sentimento de liberdade que a floresta lhe dava.

Certa vez em que se achava sozinha, sua coleta de plantas levou-a na direção de seu retiro secreto e ela resolveu subir até a clareira no alto da montanha. O lugar tinha o poder de acalmá-la. Era o seu mundo particular, com sua caverna e seu prado, e até o pequeno rebanho de cabritos monteses que frequentemente pastava por lá, sentia-o como seu. Os bichos haviam ficado tão dóceis que ela quase chegava a tocar neles, antes que, aos pinotes, eles se pusessem fora do alcance. Aquele espaço aberto lhe dava a sensação de segurança que, agora, faltava à floresta, com os animais perigosamente emboscados. Havia passado o verão inteiro sem voltar lá e as lembranças tomaram conta de seu pensamento. Fora naquele lugar que aprendera por ela mesma a usar a funda, onde havia alvejado o porco-espinho e onde encontrara o aviso de seu totem.

A funda estava com ela, não ousava deixá-la na caverna, onde Iza poderia encontrá-la. Depois de algum tempo, catou algumas pedras e deu uns tan tos tiros para exercitar-se. Mas isso havia ficado demasiadamente insípido para prender sua atenção por mais tempo. Seu pensamento voltou para o incidente com o lince.

Se, naquele momento, eu tivesse uma outra pedra, dizia consigo, eu poderia ter acertado nele, logo depois que errei o primeiro tiro. Poderia tê-lo apanhado antes que ele tivesse chance de saltar. Olhou para as duas pedras que tinha na mão. Se houvesse um jeito de atirar uma depois da outra. - . Mas Zoug não falou qualquer coisa assim para Vorn? Ela remexia nas lembranças. Bem, se falou, deve ter sido quando eu não estava perto. Ficou a considerar a idéia. Se eu não parasse depois do primeiro tiro, talvez pudesse meter uma outra pedra na bolsa durante o movimento de descida e, logo em seguida, voltaria a pegar o impulso para dar o segundo tiro. Será que daria certo?

Pôs-se a fazer algumas tentativas, sentindo-se tão desajeitada como no tempo de seus primeiros arremessos. Depois, começou a desenvolver o ritmo: atirava a primeira pedra, fazendo subir rapidamente a funda quando essa abai xava, já com a outra pedra pronta, metida na bolsa com a arma ainda em movimento e dava o segundo tiro. As pedras estavam sempre caindo e mesmo de pois que conseguiu lançá-las perdera um pouco da pontaria, tanto no primeiro como no segundo tiro. Mas sentiu-se satisfeita, vendo que a coisa era possível. Depois disso, passou a treinar diariamente. Ainda se sentia apreensiva com o fato de caçar, mas a nova técnica representava outro desafio que veio renovar seu interesse pela arma.

Na virada da estação, quando as encostas das montanhas pareciam pegar fogo, sua pontaria era tão boa com duas pedras como antes o havia sido com uma. De pé, no meio do campo, atirando pedras num outro poste que fincara no chão sentia a grata sensação detarefa cumprida, sempre que ouvia o duplo tilintar das duas pedras atingindo o maro. Jamais ninguém lhe dissera que era impossível o metralhar de duas pedras com funda, simplesmente porque nunca a coisa fora feita antes, e já que ninguém lhe tinha contado, ela não podia sabê-lo, por isso o fez.

Num belo dia de final de outono, quase um ano depois de haver tomado sua decisão de caçar, Ayla resolveu subir à clareira para colher as avelãs maduras que se espalhavam pelo chão. Enquanto se aproximava do topo, ouvia o cacarejar e os berros fanhosos de uma hiena. Chegando ao terreno da clareira, deu com o hediondo animal, meio enterrado nas entranhas sangrando de um velho veado.

A cena deixou-a louca de raiva. Como ousava aquele bicho infecto em porcalhar sua clareira, atacar seu veado? Ia começar a correr na direção do animal para espantá-lo, mas pensou melhor. Também as hienas eram animais predadores, possuíam mandíbulas tão fortes que eram capazes de partir com os dentes os ossos duros da perna de muitos animais de cascos. Além disso, não largavam muito facilmente suas presas. Ela, rápido, retirou a cesta das costas, pegando a funda ali escondida. Enquanto ia na direção de um afloramento perto da pared de pedra, procurava no chão por pedras. O velho veado já estava meio devorado e o movimento dela despertou a atenção do bicho com os seus pélos desgrenhados e sujos de sangue. Era quase do tamanho do lince. O animal levantou a cabeça, farejando o ar, e se virou na direção da garota.

Ayla estava pronta. Depressa, saiu de detrás da rocha e arremessou a pedra, seguida logo de outra. Ela não sabia que a segunda era desnecessária, bastava uma para fazer o serviço. Em todo caso, era sempre bom estar prevenida. Aprendera bem a lição. Já tinha uma terceira pedra ajustada na funda e uma quarta na mão, preparada para outra série de tiros, se fosse necessário. A enor me hiena caiu no lugar mesmo em que se achava, sem fazer qualquer outro movimento. Ayla olhou em derredor, certificando-se de que não havia nenhuma mais por ali. Com cuidado, sempre com a funda na mão, encaminhou-se para o animal. No caminho, pegou a tíbia de uma perna dianteira, ainda com farrapos de carne sangrando colados ao osso. Segurou-a firme e deu uma pancada para arrebentar o crânio da hiena. Aquela ali nunca mais iria levantar.

Olhou o animal morto a seus pés e deixou cair no chão o porrete. A consciência do que havia feito foi chegando aos poucos. Matei uma hiena, disse consigo, ainda sob o impacto do acontecido. Matei uma hiena com a minha funda, não um animalzinho qualquer, mas uma hiena, um animal que me poderia ter matado. Isso não significa que já sou uma caçadora? Uma caçadora de verdade? Não era alegria o que sentia, nem as emoções de uma primeira caçada ou a satisfação por ter vencido um animal ferocíssimo, dotado de grande força. Era qualquer coisa de mais profundo e humilde. Era a consciência de que havia triunfado sobre si mesma. Chegou-lhe como uma revelação espiri tual, como uma compreensão mística do seu eu mais profundo e, muito comovida, com toda a reverência devida, dirigiu-se ao espírito de seu totem, expressando-se na velha linguagem formal do clã.

Sou apenas uma menina, Ó Grande Leão da Caverna, e os caminhos dos espíritos são estranhos para mim. Mas acho que agora já compreendo um pouco mais. O lince foi um teste para mim, até mais difícil do que o de Broud. Creb sempre diz que é difícil viver com totens fortes, mas nunca disse que as melhores dádivas que estes nos proporcionam, nós as achamos dentro de nós. Jamais me falou daquilo que sentimos quando finalmente conseguimos com preender. Sou agradecida por me ter escolhido, Grande Leão da Caverna. Espero continuar sempre digna de você.

Foi somente quando a luminosa policromia outonal perdeu seu fulgor, já com as folhas murchas caindo dos galhos à mostra, é que Ayla voltou à floresta Ela pegava a trilha dos animais que escolhia para caçar, estudando-lhes os hábitos, mas, agora, tratando-os com mais respeito, como seres vivos e também como temíveis adversários. Muitas vezes, avançando de rastos, chegando perto de sua presa e já pronta para atirar, ela se refreava, limitando-se apenas a observar. Passara a ter profundo amor pela vida, percebendo a inutilidade da morte de um animal que não representava ameaça ao clã e cuja pele não poderia usar. Mantinha-se, entretanto, em sua firme decisão de tornar-se no melhor caçador do clã Ela não sabia que já o era. A única maneira de aperfeiçoar sua técnica seria caçando. E ela o fazia.

Os resultados começaram a se fazer notados, deixando os homens bastante inquietos.

- Encontrei outro carcaju, ou melhor, o que sobrou deste. não muito longe do campo de treinamento - falou Crug.

- E havia uns pedaços de pele que pareciam ser as de um lobo. Estavam a meio caminho, depois que se começa a subida da colina - informou Goov, por sua vez.

- São sempre comedores de carne e animais ferozes. Nunca totem de mulheres - disse Broud. - Grod acha que devemos falar com o Mog-ur.

- E sempre também de tamanho pequeno ou médio, não gatos grandes. Veados, cavalos, carneiros, cabras, até mesmo javalis costumam ser apanhados pelas hienas, lobos e onças, mas que coisa é essa que está matando esses come- dores de carne? Nunca vi tantos deles mortos - observou Crug.

- Isso é o que eu gostaria de saber. Por que será que estão morrendo? não que eu me importe de ter menos alguns lobos e hienas rondando por aqui, mas é que se não somos nós... Grod, vai falar com o Mog-ur, não é? Vocês acham que pode ser algum espírito? - falou Broud, reprimindo um tremor no corpo.

- E se for um espírito, será um bom espírito que está querendo ajudar- nos ou algum espírito furioso com nossos totens? - perguntou Goov.

- Isso é com você, Goov. Você é quem levantou a questão. Como acólito do Mog-ur, o que você acha? - respondeu Crug, com outra pergunta.

- Acho que a pergunta só pode ser respondida depois de muita meditação e depois de haver uma consulta aos espíritos.

- Você até parece o Mog-ur falando, Goov. Nunca dá uma resposta direta - disse Broud, ironizando.

- Bem, Broud, qual seria a sua resposta? - contrapôs Goov. - Será que consegue dar uma mãu direta? O que está matando os animais?

- Não sou o Mog-ur e nem estou sendo educado para tal função. Por isso não me pergunte.

Ayla, que se achava trabalhando nas proximidades, reprimiu um sorriso. Com que então agora virei um espírito, só que não conseguem chegar a uma Conclusão se sou um bom ou mau espírito.

O Mog-ur aproximou-se sem que eles o percebessem. Ele havia acompanhado a discussão.

- Ainda não tenho a resposta, Broud - disse o feiticeiro. - Isso precisa ser meditado. O que posso dizer é que este não é um caminho normal usado pelos espíritos, quando eles desejam comunicar-se.

Espíritos, pôs-se a pensar o Mog-ur, podem tornar o tempo muito quen te ou muito frio, mandar nevar ou chover em grande quantidade espantar os rebanhos, enviar doenças e ordenar raios, trovões ou terremotos, mas normalmente não são responsáveis pela morte de determinados animais. Nesse mistério, deve haver algum dedo humano. Nesse momento, Ayla se levantou e foi para a caverna. O feiticeiro, pensativo, ficou observando-a. Há qualquer coisa diferente nela, está mudada. Reparou que Broud também a acompanhou com os olhos- Era um olhar frustrado, carregado de rancor. Broud também percebe a diferença, pensou Creb. Talvez seja porque Ayla não é genuinamente dos clã e este andar seja pelo fato de estar crescendo. Alguma coisa, entretanto, o incomodava por dentro, fazendo-o sentir que aquela não era bem a resposta.

Ayla havia mudado. Quanto mais se aprimorava como caçadora, mais emanava de sua pessoa um ar de confiança e uma graça imponente, inexistente nas mulheres do clã. A garota tinha o andar silencioso de um experiente caçador, o rígido controle dos músculos de seu jovem corpo, a plena confiança em seus reflexos e uma expressão sagaz nos olhos que iniperceptivelmente se toldavam sempre que Broud vinha importuná-la. Era como se não o estivesse vendo. Obedecia-o prontamente mas não havia medo nela, ainda que o rapaz a cobrisse de pancadas.

Sua serenidade, essa confiança em si mesma eram muito mais intangíveis do que a declarada rebelião de outros tempos, mas, nem por isso, menos percebida por Broud. Era como se ela condescendesse em obedecê-lo, como se soubesse de algo que ele ignorava. Broud a observava, tentando captar algum desvio sutil, alguma coisa por que pudesse castigá-la, mas aquilo lhe escapava.

Ele não podia entender como ela o conseguia, mas o fato era que todas as vezes em que tentava fazer valer sua superioridade, Ayla o fazia sentir-se por baixo e inferior a ela. Isso o dejxava frustrado, furioso, e quanto mais ele a perseguia, maior era sua sensação de não poder dominá-la. Odiava-a por isso. Mas, com o tempo, foi aos poucos deixando de importuná-la, inclusive procurando certo distanciamento dela, e fazendo-se lembrar só ocasionalmente para impor suas prerrogativas. Quando o outono terminou, seu ódio por ela fora redobrado. Algum dia iria demoli-la. Faria com que pagasse por todo o mal que causara a seu orgulho de homem. Ah sim, algum dia ela ainda iria arrepender-se.

 

O inverno chegou e com ele o decréscimo de actividades que ligavam o clã a todas as coisas vivas que acompanhavam o ciclo das estações. A vida ainda pulsava, mas em ritmo vagaroso. Pela primeira vez, Ay la se viu esperando com impaciência a entrada do inverno. A actividade intensa e a correria com os trabalhos próprios das outras estações deixavam pouco tempo para que Iza prosseguisse com suas aulas. À chegada das primeiras neves, as lições foram retomadas. O padrão de vida no interior da caverna se repetia com o mínimo de variações e, aos poucos, o inverno foi-se extinguindo novamente.

A primavera chegou atrasada e chuvosa, O degelo nas montanhas, secundado por chuvas torrenciais, encheu o riacho que, em ondas turbulentas, extravasava pelas margens e arrastava, no seu percurso para o mar, árvores e arbustos inteiros. As correntezas bloqueadas desviaram a rota normal das águas e engoliram parte do caminho feito pelo clã ao longo do riacho. Ao final da primavera, uma breve pausa de calor, suficiente apenas para um tímido desabrochar de flores nas árvores frutíferas, foi abortada pelas chuvas de granizo que saquearam os delicados botões das árvores, pondo fim ás esperanças de uma boa colheita. Então, como se a natureza, arrependida, quisesse reparar pela perda dos frutos negados, as primeiras safras do verão foram fartas e generosas em verduras, raízes, abóboras e legumes.

O clã achava-se saudoso de suas idas na primavera à orla marítima, e foi com grande alegria que viram Brun anunciar que estavam de saída para a pesca do esturjão e do bacalhau. Apesar de eles estarem frequentemente fazendo o percurso de 16 quilômetros até o mar para pegar moluscos e ovos da infinidade de pássaros que se aninhava nos penhascos, a pescaria dos peixes grandes era das poucas actividades que exigia o esforço conjunto de homens e mulheres.

Droog tinha razões especiais para querer ir. As pesadas enxurradas da primavera haviam arrastado os nódulos de pedras dos depósitos de greda nas ele vações do terreno, levando-os para as partes planas alagadas, onde ficaram encalhados. Ele já havia feito uma inspeção antes e vira diversos depósitos de aluvino. A pescaria lhe daria boa oportunidade para se reabastecer de novas ferramentas, feitas com pedra de altíssima qualidade. Era mais fácil britar a rocha no local do que transportar os pesados blocos para a caverna. Já fazia algum tempo que Droog não abastecia o clã, e as pessoas tinham de se arranjar com instrumentos grosseiros pois os bons de que gostavam eram feitos com pedras frágeis que se partiam facilmente. Todos eram capazes de fabricar ferramentas, mas poucas destas podiam ser comparadas com as feitas por Droog.

Havia um alegre clima de feriado, enquanto se faziam os preparativos. Não era sempre que o clã inteiro largava de uma só vez a caverna, e a novidade de poder acampar na praia era algo de extremamente excitante, sobretudo para as crianças. Brun havia estabelecido que um ou dois homens diariamente viriam à caverna certificar-se de que nada na ausência deles saíra do lugar. Até Creb esperava ansioso pela mudança de cenário. Raramente os seus passeios o levavam para longe da caverna.

As mulheres trabalhavam na rede, reforçando os fios que estavam enfraquecidos e fazendo uma parte nova onde utilizavam cordas feitas de fibras de trepadeiras e de cascas de árvores, gramíneas resistentes e compridas crinas de animal para dar elasticidade ao tecido. Embora fosse material firme e resistente, nervos e tendões aqui não eram usados. Tal como o couro, depois de molhados, ficavam duros e tesos, além de que também não absorviam a gordura usada para amaciar a trama.

O esturjão, um maciço peixe, atingindo muitas vezes três metros e meio de comprimento e pesando cerca de uma tonelada, emigrava do mar, onde passava a maior parte do ano, para as águas frescas dos rios e canais, quando desovava no princípio do verão. Os tentáculos carnosos, sob as laterais de sua boca desdentada, davam a esse velho peixe, parecido ao tubarão, uma aparência assustadora, embora sua alimentação consistisse de invertebrados e pequenos peixes, apanhados nas profundidades dos oceanos. O bacalhau, um peixe de menor tamanho, em geral nunca pesando mais de 12 quilos, mas, em casos extremos, chegando a mais de 90, fazia sua migração sazonal no verão para águas de menor profundidade. Normalmente, ia buscar seus alimentos no fun do dos mares. Contudo, costumava, às vezes, nadar perto da superfície e nos canais de águas limpas, quando emigravam ou estavam à busca de comida.

Durante os 14 dias de verão em que os esturjões faziam sua desova, as desembocaduras dos rios e canais estavam sempre cheias. Apesar de que os peixes que escolhessem os cursos d”água menores nunca chegassem a ter ota manho dos esturjões gigantes que subiam pelos grandes rios, aqueles que iam cair nas malhas da rede do clã já eram bastante pesados na hora de trazê-los para a praia. Quando começava a se aproximar o tempo de migrações, Brun enviava todos os dias alguém até a costa. O primeiro dos esturjões brancos havia justa mente acabado de aflorar nas águas do rio, quando ele anunciou a próxima excursão. Partiram na manhã seguinte.

Ayla acordou excitada. Já antes de fazer a primeira refeição tinha sua pele de dormir enrolada, a comida e os utensílios de cozinha embalados dentro de sua cesta de colher e, por cima de tudo, um grande pano de couro que seria usado para armar uma espécie de barraca. Iza nunca saía da caverna sem sua sacola de medicamentos e ainda a arrumava, quando Ayla foi para fora, querendo ver se já estavam todos prontos para partir.

- Depressa - disse Ayla correndo de volta, incentivando Iza a andar rápido.

- Calma, menina. O mar não vai desaparecer -respondeu Iza, depois de puxar o cordão e amarrar, apertada, a sacola.

Ayla botou sua cesta às costas e pegou Uba. Iza seguiu atrás, mas, antes de sair, ainda se virou para dar uma última olhada, tentando lembrar-se se não se esquecera de nada. Todas as vezes que ia a algum lugar, sentia como se ti vesse esquecido de alguma coisa. Bom, se for importante, Ayla pode vir apa nhar, pensou. O clã já estava quase todo do lado de fora e pouco depois que Iza tomou seu lugar, Brun deu o sinal de partida. Mal se tinham posto em caminho, Uba começou a contorcer-se querendo descer.

- Uba não é bebê! Quer andar também - gesticulou, tocada nos seus brios de criança. Com três anos e meio, Uba começava a imitar os adultos e as crianças mais velhas, já rejeitando os mimos dispensados aos bebês. Estava crescendo. Dentro de quatro anos, provavelmente, seria mulher, tinha, por tanto, muito o que aprender num curtíssimo período, e, através de um processo interno de sua maturação já começava a preparar-se para outras responsabilidades com que muito brevemente teria de arcar.

- Está bem, Uba - disse Ayla, pondo-a no chão. - Mas, fique perto de mim.

Seguiam pelo lado da montanha que margeava o riacho - desviado de seu rumo - ao longo do novo caminho que já se formara, próximo ao ponto onde as águas foram bloqueadas em seu curso. Era uma caminhada fácil e, antes do entardecer, já tinham chegado a um trecho da praia. A volta iria exigir-lhes maiores esforços. Usando pedaços de madeira e paus lançados à praia pelas ondas, armaram as cabanas, provisoriamente, num sítio fora do alcance da maré cheia. As fogueiras começaram a ser acesas e a rede mais uma vez foi vistoriada. Começariam a pescaria na manhã seguinte. Depois de estarem acampados, Ayla se dirigiu ao mar.

- Vou até a água, mãe - disse ela.

- Por que essa sua mania de ir para água, Ayla? É perigoso e você sempre vai muito lá para fora.

- É delicioso, Iza. Vou ter cuidado.

Isso acontecia sempre. Todas as vezes que Ayla ia nadar, Iza se preocupava. Ayla era a única no clã que gostava de nadar e também a única que podia fazê-lo. Para as pessoas dos clãs, com seu pesado arcabouço ósseo, nadar era difícil. não boiavam com facilidade e tinham pavor de entrar em lugares onde não dava pé. Iam na água para apanhar peixes, mas não gostavam de passar além do nível da altura do peito. Sentiam-se intranquilos. O gosto de Ayla pela água era visto como mais uma de suas peculiaridades. Havia outras.

Aos nove anos, Ayla estava mais alta do que qualquer mulher e já do tamanho de alguns dos homens, contudo não mostrava ainda qualquer sinal de estar-se aproximando da fase adulta. Iza, às vezes, perguntava-Se se ela algum dia iria parar de crescer. Sua altura e o atraso na menstruaçãO eram motivos de especulação em certos meios, já se aventando, inclusive, a possibilidade de que o forte totem dela não iria deixá-la sangrar. Muitos achavam que talvez ela fosse passar pela vida como um tipo neutro, nem homem nem totalmente mulher.

Creb aproximou-se de Iza,enquanto ela observava Ayla caminhando na direção do mar. O corpo rijo e magro, uma musculatura flexível, sem relevos na pele e as pernas longas e lépidas faziam dela uma figura desajeitada e deselegante, mas seus movimentos ágeis desmentiam a aparente falta de graça e jeito. Embora tentasse imitar a postura subserviente das mulheres do clã, faltava- lhe as pernas curtas e tortas. Por mais que tentasse andar com passos miúdos, suas pernas compridas a levavam longe, em passadas quase masculinas.

Mas não eram apenas as pernas longas que a tornavam diferente. Ayla irradiava uma confiança em si que jamais alguma mulher dos clãs possuiu. É que era uma caçadora. Nenhum homem podia comparar-se a ela em sua arma, e agora ela já sabia disso. não podia fingir submissão a uma maior superiori dade masculina que não sentia. Carecia do compromisso de uma fé cega que se constituía num dos atrativos das mulheres dos clãs. Aos olhos dos homens - com seu corpo alto e liso, desprovido de todo atributo feminino e uma atitude inconsciente de segurança, diminuindo ainda mais sua já duvidosa beleza - Ayla, além de feia, não era feminina.

- Creb - gesticulou Iza.

- Aba e Aga dizem que ela nunca vai ficar mulher. Acham que o totem de Ayla é forte demais.

- Claro que ela vai ficar mulher, Iza. Por acaso você acha que os Outros não têm filhos? Só por ter sido aceite no clã, isso não muda sua natureza. Provavelmente, é normal nas mulheres da raça dela amadurecerem mais tarde. Até mesmo algumas meninas dos clãs só se tornam mulheres depois dos 10 anos. Você não acha que as pessoas deveriam dar pelo menos esse prazo a ela antes de começar a imaginar anormalidades dessa ordem? Isso é ridículo! - falou ele, bufando e aborrecido.

Iza ficou mais tranquila, mas mesmo assim preferia que sua filha adotiva já estivesse dando os primeiros sinais de feminilidade. Ela via Ayla caminhan do com a água pela cintura e depois começando a bater os pés, dirigindo-Se com braçadas seguras para fora.

Ayla adorava boiar na água salgada e adorava também a sensação de liberdade que o mar lhe dava. não se lembrava de como aprendera a nadar, parecia que era uma coisa que sempre soube fazer. O banco de areia sob a água, após uns tantos metros, caía de repente, mas a cor mais escura e a temperatura mais fria da água lhe davam a indicação desse ponto. Virou-se de costas e pôs-se a boiar preguiçosamente, embalada pelo movimento das ondas. Depois, cuspindo um bocado de água que lhe bateu no rosto, virou o corpo, voltando para a praia. A maré estava baixando e ela fora arrastada para a desembocadura do riacho. A força das diferentes correntes a obrigava a nadar com mais energia. Com esforço, alcançou o lugar em que dava pé e caminhou de volta à praia. Antes, lavou-se na água doce do rio, sentindo a correnteza puxá-la pelas pernas e a areia do fundo escorregando-lhe sob os pés. Cansada mas refrescada, deixou-se cair perto da fogueira do lado de fora da barraca.

Depois de todos alimentados, ayla, numa expressão sonhadora, olhava a distância, pensando no que poderia haver para além das águas. Acima da arrebentação, os pássaros, grasnando e gritando, revoavam em roda, ou fazendo vertiginosos mergulhos. As carcaças descoloridas daquilo que uma vez se constituiu em viçosas árvores quebravam, com os seus contornos retorcidos, a uniformidade da praia, enquanto a vastidão azul-acinzentada cintilava sob os raios do entardecer. A cena lhe deixava um sentimento vago e irreal de algo de outro mundo. Aos poucos, o madeirame contorcido foi-se transformando em grotescas silhuetas, para por fim desaparecer na escuridão da noite sem lua.

Iza levou Uba para dentro da barraca e depois veio sentar-se perto de Ayla e Creb, junto da fogueira botando volutas de fumaça no céu estrelado.

- O que elas são, Creb? - perguntou Ayla, com voz calma, apontan do para o alto.

- Fogueiras no céu. Cada uma é a casa do espírito de alguém no outro mundo.

- Existe tanta gente assim?

- São as fogueiras de todos aqueles que foram para o mundo dos espíritos e de todos os que ainda não nasceram. São as fogueiras também dos espíritos, mas a maioria dos totens possui mais de uma. Vê aquelas ali? - disse Creb, apontando. - É a casa do Grande Ursus. E aquelas lá? - Apon tou em outra direção. - É a casa de seu totem, Ayla. O Leão da Caverna.

- Gostaria de dormir do lado de fora para ficar olhando as fogueiras no céu - disse Ayla.

- Mas não é uma boa coisa, quando está ventando e a neve caindo - interpôs Iza.

- Uba gosta também das fogueiras pequeninas - gesticulava a menina, aparecendo junto deles, no círculo de luz feito pela fogueira.

- Pensei que estivesse dormindo, Uba - falou Creb.

- não Uba quer também ficar olhando para as pequeninas fogueiras. Igual Creb e Ayla.

- Chegou o momento de todos irem dormir - gesticulou Iza. - Amanhã vai ser um dia cheio.

Bem cedo no dia seguinte, o clã estendeu a rede através do canal. Bexigas nadatórias guardadas de outras pescarias de esturjão, cuidadosamente lavadas e secas até se tornarem resistentes balões de gelatina, serviam de bóias para a rede, e pedras amarradas no centro funcionavam como pesos. Brun e Droog pegaram uma das extremidades e foram para a margem oposta. Em seguida, ao sinal do chefe, adultos e crianças começaram a entrar na água. Uba os seguiu.

- não Uba - gesticulou Iza. - Você fica. Ainda não tem idade para isso.

- Mas Ona está ajudando disse, implorando.

- Só que Ona é mais velha. Depois, você ajuda quando tivermos trazido os peixes. Por enquanto é muito perigoso para você. Até Creb ficou na praia. Fique aqui.

- Sim, mãe - respondeu a menina, visivelmente desapontada.

Vagarosamente, de modo a agitar o menos possível a água, eles foram andando, abrindo-se em leque, até formar um semicírculo. Depois pararam, esperando que a areia levantada com os movimentos voltasse a assentar. Ayla tinha os pés separados, firmando o corpo contra a forte correnteza que ondeava ao redor de suas pernas e, com os olhos presos em Brun, aguardava o sinal. Estava no meio do canal, equidistante das duas margens e no ponto mais próximo do mar. “Viu quando uma mancha escura passou deslizando a uma pequena distância dela. Os esturjões vinham a caminho. Brun levantou o braço. As respirações estavam todas suspensas. Súbito, ele o abaixou e o clã se pôs a gritar e a bater na água fazendo salpicá-la espumosamente. O que parecia ser um caos desordenado de barulhos e levantar de espumas logo se mostrou com propósito definido. O clã ia fechando o círculo e, simultaneamente, arreba nhando os peixes para a rede. Da outra margem, saíram Brun e Droog seguran do uma das pontas da rede, enquanto a barafunda armada na água impedia os peixes de voltarem ao mar. A rede ia fechando e se juntando cada vez num menor espaço, com uma massa prateada de peixes lutando desesperadamente. Alguns tentavam fazer pressão sobre as malhas, ameaçando passar pelos buracos, mas um número de mãos cada vez maior de pessoas ia segurando na rede empurrando-a para a margem, onde estavam também outras puxando, todas empenhadas na luta para encalhar na praia dezenas de peixes contorcendo-se convulsivamente.

Ayla levantou os olhos e viu Uba enterrada até os joelhos em meio aos peixes saltitantes, tentando alcançá-la do outro lado da rede.

- Uba! Afaste-se! - disse a garota por sinais.

- Ayla, Ayla! - gritou a menina, apontando para o mar. - Veja! Ona!

Ayla se virou e pôde ainda ver de relance uma cabeça negra sendo levantada pelas águas e depois desaparecer. A menina, um ano e pouco mais velha do que Uba, havia perdido o pé e estava sendo arrastada para o mar. Na confusão de puxar a rede, ela fora esquecida. Apenas Uba, da praia, cheia de admiração por sua companheira de brincadeiras, percebeu a situação de apuro em que Ona se achava e tentava desesperadamente chamar a atenção dos outros.

Ayla mergulhou de volta nas águas turvas e revolvidas do riacho. Nunca nadara tão depressa na vida. A correnteza puxando para o mar ajudava-a, mas ao mesmo tempo arrastava com a mesma força a menina na direção do lugar onde o banco de areia desaparecia repentinamente. Ayla viu-lhe mais uma vez a cabeça despontando na superfície e redobrou o esforço. Estava-se aproximando, mas tinha medo de que não desse tempo. Se Ona chegasse no ponto onde havia o desnivelamento do fundo das águas, antes que ela pudesse alcançá-la, a ressaca ali a enviaria para o alto-mar.

A água já começava a ficar salgada. Ayla podia sentir seu gosto. A cabecinha preta mais uma vez levantou-se a uns poucos metros e depois tornou a sumir de vista. Numa arremetida desesperada, Ayla mergulhou para agarrar a cabeça desaparecendo, sentindo que a temperatura da água esfriara. Percebeu então os cabelos flutuando da menina e os apertou firmemente na mão.

Ayla tinha a impressão de que seus pulmões iam estourar - não tivera tempo de pegar fôlego para dar o mergulho - e quando conseguiu chegar à superfície, trazendo sua preciosa carga, estava meio tonta. A menina achava-se inconsciente, mas ela deu um jeito para que a cabeça de Ona ficasse por cima da água. Ayla nunca experimentara nadar carregando outra pessoa, mas tinha de levar Ona à praia o quanto antes, mantendo sempre sua cabeça na super fície. Com um dos braços, Ayla apertou a menina contra o corpo, enquanto com o outro acertou a batida para nadar.

Quando chegou num ponto em que dava pé, viu que o clã inteiro se me tera na água para esperá-la. Ela suspendeu o corpo de Ona, desfalecida, e o entregou a Droog, só então percebendo o quanto estava exausta. Creb achava- se a seu lado e com surpresa viu que do outro se encontrava Brun, ajudando-a a chegar à praia. Droog ia à frente e quando ela, por fim, caiu na areia, Iza já havia espichado sobre a areia o corpinho de Ona e bombeava a água de seus pulmões.

Não era a primeira vez que alguém do clã esteve em tempo de morrer afogado. Iza sabia, portanto, o que fazer. E houve também aqueles que ficaram para sempre perdidos nas geladas profundezas das águas, só que, desta vez, o mar saíra logrado, ficando sem sua vítima. Ona começou a tossir e a balbuciar, enquanto a água lhe fluía da boca. As pálpebras tremeram.

- Minha filinha! Minha filhinha! - gritou Aga, atirando-Se ao chão. Inteiramente desvairada, segurou-a. - Pensei que estivesse morta. Estava certa de que tivesse ido embora. Oh, meu bebê, minha única filhinha!

Droog tirou Ona do colo da mãe e a segurou bem junto a seu corpo, levando-a para o acampamento. Contrariando Os costumes, Aga seguia a seu lado, acariciando a filha que pensava ter perdido.

Quando Ayla se levantou e caminhou, as pessoas a olhavam, admiradas, apontando em sua direção. Jamais alguém arrastado pelas águas havia sido, até então, salvo. Era um milagre Ona estar viva. E nunca mais também um membro do clã de Brun olharia para Ayla zombeteiramente, quando ela se deixasse levar por alguma de suas idiossincrasias. É a sorte dela., diziam. Ela sempre nos trouxe sorte. não foi ela quem encontrou a caverna?

Os peixes continuavam ainda contorcendo-se espasmodiCamente na margem. Alguns deram jeito de voltar às águas do canal, quando o clã, percebendo o que estava acontecendo, largou tudo para ir ao encontro de Ayla e Ona semimorta. A maioria, entretanto, continuava emaranhada na rede. O clã voltou ao serviço de puxá-los para a praia e, em seguida, matá-los com pauladas para que as mulheres pudessem começar a limpá-los.

- Uma fêmea! - gritou Ebra, depois de abrir a barriga de um belo espécine de esturjão. Todos correram para o enorme peixe.

- Veja só isto! - gesticulou Vorn estendendo a mão, querendo pegar um punhado das ovinhas negras. Caviar fresco era sempre uma festa. Quando aparecia a primeira fêmea, cada um corria para agarrar uma boa porção das ovas e depois ir saboreá-las sozinho. As outras encontradas seriam salgadas e postas em conserva para usos futuros, mas nunca eram tão gostosas quando na hora, saindo frescas do mar. Ebra barrou o garoto e fez sinal para Ayla.

Esta olhou em derredor, embaraçada por se ver como centro das atenções.

- Sim, Ayla, você pega primeiro - gesticulou Ebra.

Ayla levantou os olhos para Brun. Ele fez que sim com a cabeça. Timi damente, ela deu uns passos à frente e pegou um punhado do caviar reluzin do em seu negrume. Depois, endireitou o corpo e deu uma provada. Ebra fez, então, um gesto e cada um foi buscar sua porção, ficando, ali, felizes, ao redor do peixe. Haviam sido poupados de uma tragédia e o alívio que sentiam dava um clima de festa à ocasião.

Devagar, Ayla se encaminhou para sua cabana. Sabia que fora homena geada e, com pequenas mordidas, ia saboreando o rico caviar e a boa sensação de se ver aceita. Um sentimento de que ela para sempre iria lembrar-se.

Depois de ter trazido à terra e matado os peixes, os homens se puseram de la do para mais uma de suas inevitáveis reuniões de bate-papo, deixando a limpeza e o trabalho de conserva para as mulheres. Além das afiadas facas de pedra para abrir os peixes e cortar em filé a carne dos maiores, elas dispunham de um instrumento especial para o serviço de escamação. Era uma faca cega para poder ser empunhada com mais facilidade e com um entalhe na ponta, onde se colocava o indicador, de modo a controlar a pressão e permitir raspar as escamas sem danificar a pele do peixe.

Além de esturjões, a rede do clã colheu bacalhaus, carpas, algumas belas trutas e mesmo uma certa quantidade de crustáceos vinha como parte do arrastão. Os pássaros, atraídos pelo cheiro dos peixes, rondavam por perto, esperando regalar-se com as entranhas e, se possível, roubar alguns filés. Depois de os pescados serem postos para secar ao ar livre ou sobre a fumaça das fogueiras, a rede era esticada por cima destas. Com isso, não só ela secava, como punha à mostra os pontos onde precisava de consertos. Além, ainda, de impedir os pássaros de roubarem aquilo que havia sido duramente ganho.

Antes de o tempo da pescaria terminar, já estariam fartos do gosto e do cheiro de peixe, mas a primeira noite era sempre um acontecimento bem- vindo que festejavam juntos. Os peixes reservados à comemoração - sobre tudo bacalhaus de cuja carne branca e delicada particularmente gostavam de comer ainda fresca - eram arrumados em ninhos de ervas e depois de enrolados em grandes folhas verdes, eram postos sobre as brasas. Embora nada fosse explicitamente dito, Ayla sabia que a festa daquela noite era em sua honra. Via-se como destinatária dos melhores pedaços e partes das carnes que as mulheres lhe ofereciam insistentes, e um filé inteiro lhe tinha sido preparado com especiais cuidados por Aga.

O sol já desaparecera e as pessoas se dispersaram, cada qual buscando sua barraca. Iza e Aba conversavam perto da grande fogueira com as brasas extinguindo-se sob as cinzas, enquanto Ayla e Aga, sentadas em silêncio, observavam Ona e Uba brincarem. Groob, o filho de um ano de Aga, dormia em paz nos seus braços, satisfeito com o leite generoso da mãe.

- Ayla - começou Aga a dizer, hesitando. - Queria que você soubesse uma coisa. Nem sempre tenho sido boa com você.

- Aga, que bobagem, você sempre se mostrou atencosa comigo - interrompeu Ayla.

- Isso não é a mesma coisa que boa - disse Aga. - Já falei com Droog você sabe, ele passou a gostar muito de minha filha, apesar de ela ter nas cido quando eu estava com o meu primeiro companheiro. Droog nunca tinha tido na fogueira dele uma menina. Ele diz que agora você irá carregar para sempre uma parte do espírito de Ona. não entendo a maneira de os espíritos agirem, mas Droog diz que, quando um caçador salva a vida de outro, ele fica com um pedaço do espírito do homem que salvou. Os dois ficam algo assim como germanos, como se fossem irmãos. Fico feliz por você compartilhar do espírito de Ona, Ayla. Estou contente de ela estar aqui e dividir uma parte do seu espírito com você. Se eu tiver bastante sorte para ter outro filho e se nascer menina, Droog prometeu que daria a ela o seu nome.

Ayla estava espantada. Não sabia o que responder.

- Aga, isso é uma grande honra. Mas Ayla não é nome de pessoas dos clãs. - Daqui por diante, ficará sendo. - Ela se levantou, fez sinal para Ona e já ia sair, quando se voltou para dizer: - Já estou indo embora.

Os gestos expressando a frase eram os que mais se aproximavam do sentido de “até logo”. Quase nunca eram usados. As pessoas simplesmente saíam sem nada dizer. A língua igualmente não possuía nenhum termo para expressar “obrigado”. Entendiam o que fosse a gratidão, mas com diferente conotação geralmente no sentido do dever que alguém de status inferior tinha para com um outro de posição social mais elevada. Ajudavam-se uns aos outros, porque este era o modo de viver, uma obrigação de todos, necessária à sobrevivência e nenhum agradecimento era esperado ou devido. Favores especiais e recompensas comportavam o õnus da obrigação de retribuir algo de igual valor. Isso estava implícito e nenhum agradecimento se fazia necessário. Enquanto Ona vivesse, ela ou a mãe - até que a filha se tornasse maior - estaria em dívida com Ayla, a não ser que surgisse alguma ocasião, quando uma ou outra pudesse retribuir com um favor igual, de modo a guardar, por sua vez, uma parte do espírito de Ayla. O oferecimento de Aga não tinha, pois, o sentido de retribuição significava ainda mais do que isso e era a sua maneira de dizer obrigado.

Aba se levantou para sair pouco depois de a filha ter ido.

- Iza sempre diz que você traz sorte - gesticulou a velha ao passar por Ayla. - Agora, eu acredito.

Ayla veio sentar-se junto de Iza, depois de Aba ter ido embora.

- Iza,Aga me disse que vou carregar para sempre comigo uma parte do espírito de Ona, mas a única coisa que fiz foi trazê-la para a praia. E se ela respirou outra vez foi por sua causa. Você salvou a vida dela tanto quanto eu. Você também não carrega uma parte do espírito de Ona? Você deve carregar um pouco dos espíritos de todas as pessoas que já salvou, não é as sim?

- Por que você acha que uma curandeira tem um status que ninguém mais tem? É justamente porque ela carrega uma parte dos espíritos de todas as pessoas de seu clã. Dos homens e das mulheres. E através do clã dela, de todos os outros clã É a curandeira quem ajuda a botar as pessoas no mundo e quem cuida delas pela vida afora. Quando uma mulher se torna curandeira, recebe uma parte do espírito de cada um, mesmo daqueles cuja vida ainda não salvou, porque nunca se sabe quando isto vai acontecer.

“Quando uma pessoa morre - prosseguiu Iza - passando para o mundo dos espíritos, a curandeira perde uma parte de seu espírito. Há gente que acre dita que isto obriga a curandeira a botar mais empenho no seu trabalho, mas, seja como for, a maioria de nós procura sempre fazer o melhor que pode. Nem toda mulher pode ser curandeira e nem toda filha de curandeira também pode. Precisa haver uma coisa dentro da pessoa que faz com que ela queira ajudar os outros. Você tem isso, Ayla. Foi por essa razão que eu quis treiná-la. Percebi quando você quis ajudar o coelho... foi pouco depois de Uba nascer. E agora quando você foi atrás de Ona, a única coisa em que pensou foi em salvar a vida dela, sem se importar com o perigo que você mesma estava correndo. As curandeiras de minha linha são as que possuem status mais alto. Quando for curandeira, Ayla, você será da minha linha.

- Mas não sou sua filha de verdade, Iza. Você é apenas a única mãe que me lembro de ter tído. Mas não nasci de você. Como vou poder ser de sua linha? não tenho as suas memórias. Nem sei direito o que quer dizer essa coisa de memórias.

- As curandeiras de minha linha possuem o mais alto status, porque sempre foram as melhores. Minha mãe, a mãe de minha mãe e todas as outras de quem me posso lembrar sempre foram as melhores. Cada uma foi passando para a outra o que já sabiam e o que iam aprendendo. Você pertence aos clãs, Ayla. É a minha filha treinada por mim. Você saberá tudo o que eu conseguir ensiná-la. Talvez, não tudo que eu saiba, mas nem mesmo eu sei o quanto de conhecimentos tenho em minha cabeça. Mas essa quantidade que você tiver já basta, porque existe uma coisa a mais. É o dom que você tem, Ayla. Acho que você também deve vir de uma linha de curandeiras. Algum dia você também será muito boa.

“Você não tem as memórias, mas possui uma maneira de pensar e de compreender o que está fazendo os outros sofrerem. Quando se sabe o que está machucando uma pessoa, é possível ajudá-la, e sempre se encontra um meio de saber como ajudar. Nunca lhe ensinei botar neve no braço de Brun quando Oga o queimou. Talvez eu tivesse feito a mesma coisa, mas não fui eu quem lhe disse isso. É o dom que você tem, o seu talento, o que talvez valha tanto quanto as memórias... talvez, até mais. É isso que é importante. Você pertencerá à minha linha, porque será uma boa curandeira. Será digna do status que terá. Será uma das melhores.

O clã entrou numa rotina regular. Pescavam só uma vez por dia, mas já era o bastante para manter as mulheres ocupadas até o entardecer. Nada pior tornou a acontecer. Ona, no entanto, não voltou mais a ajudar no trabalho de atrair os peixes para a rede. Droog achou que ela ainda estava muito pequena, que podia esperar pelo ano seguinte. Mais para o fim do período das desovas,a quantidade de peixes diminuiu, deixando algum tempo livre para as mulheres no fim da tarde. Já havia mais do que o suficiente. Ainda ia levar algum tempo para que as carnes dos peixes secassem e, cada dia que passava, as fileiras de engradados na praia ficavam maiores.

Droog havia esquadrinhado as terras inundadas pelo riacho, buscando os nódulos de pedras arrastados das montanhas e conseguira arranjar uma certa quantidade que levou para o acampamento na praia. Durante muitas tardes, ele podia ser visto britando pedras. Certa vez, antes de estar programada a volta, Ayla viu quando Droog carregava uma trouxa da barraca para um tronco nas imediações, que ele usava como mesa de trabalho. A garota gostava de observá-lo e seguiu-o. Sentou-se de cabeça baixa na sua frente, esperando.

- Esta menina gostaria de ficar observando, se o ferramenteiro não se importar - gesticulou, depois de Droog tomar conhecimento de sua presença.

Ele grunhiu qualquer coisa, enquanto assentia com a cabeça.

A garota arrumou um lugar no tronco para acomodar-se e ficou ali em silêncio, apenas vendo.

A menina já o havia observado antes. Droog sabia que Ayla tinha realmente interesse por seu trabalho e que não atrapalhava sua concentração. Quem dera que Vom mostrasse o mesmo interesse, pensou consigo. Nenhum do jovens do clã tinha realmente talento para aquele tipo de artesanato, e Droog, como todo bom profissional gostava de participar com alguém de seus conhecimentos e passá-los adiante.

Talvez Groob venha interessar-se, pensou ele. Estava feliz por sua com panheira ter tido um filho logo após Ona ter sido desmamada. Nunca havia ti do uma fogueira tão cheia, mas não se arrependia de ter assumido Aga e as duas crianças. Inclusive a velha. não era de todo mal ter Aba por perto. Ela sempre o atendia, quando Aga estava ocupada com o bebê.

Aga não tinha a mesma compreensão que a mãe de Goov e, no começo, ele teve algum trabalho para botá-la em seu lugar. Mas Aga era jovem, tinha saúde e produzira um filho, um garoto no qual Droog depositava grandes esperanças, pensando torná-lo ainda um bom ferramenteiro. Droog aprendera a cortar pedra com o companheiro de sua mãe e compreendia, agora, o prazer que deve ter dado ao velho, quando, ainda menino, mostrouvontade de aperfeiçoar-Se naquela arte.

Ayla, desde que viera para o clã, frequentemente ficava observando-o e ele já vira algumas ferramentas feitas por ela. Possuía mãos jeitosas e boa técnica. As mulheres tinham direito de fazer instrumentos, desde que não fossem usados como armas ou para fabricá-las. não valia muito a pena ensinar uma menina, ela nunca seria perita, no verdadeiro sentido da palavra. Mas, em todo caso, Ayla levava certo jeito, fazia algumas ferramentas úteis e era melhor ter uma aprendiz mulher do que nenhum. Droog já lhe dera antes algumas explicações sobre a técnica.

O artesão abriu a trouxa, estendendo o lençol de couro que embrulhava os seus instrumentos de trabalho. Olhou para Ayla, resolvendo que ela poderia ter naquele dia algum conhecimento sobre pedras. Pegou uma peça que pusera fora na véspera. Através de longos anos de tentativas e erros, os antepassados de Droog o haviam ensinado que uma pedra dá bons instrumentos quando ela possui uma combinação certa de determinadas propriedades.

Ayla o observava com viva atenção, enquanto ele ia explicando. Em primeiro lugar, a pedra precisava ser suficientemente dura, de modo a servir para cortar, raspar e rasgar, tanto matéria vegetal como animal. Muitos dos silícios da família dos quartzos possuíam a dureza necessária, mas o sílex tinha uma qualidade que a maioria dos outros - e também uma quantidade de pedras compostas de minérios mais moles - não tinha. O sílex era frágil e se quebrava com a pressão ou se se chocasse contra alguma coisa. Ayla deu um salto para trás assustada, quando Droog, para demonstrar, bateu a pedra jaçada contra uma outra, quebrando-a em dois pedaços e pondo à mostra o interior de diferente natureza, num tom cinza-escuro.

Droog não sabia direito como explicar a terceira propriedade. Era um conhecimento que estava profundamente entranhado nele e que fora adquiri do ao longo de anos de trabalho. A propriedade que tornava possível seu tipo de artesanato estava na maneira de a pedra partir, cuja diferença era dada pela homogeneidade do sílex.

A maioria dos minerais se partia ao longo das superfícies planas, em linha paralela às estruturas dos cristais, o que significava que fraturavam sempre em determinadas direções. O sílex, por essa razão, não podia ser modelado para casos específicos. Ao se descobrir isso, o melhor era usar a obsidiana, uma lava vulcânica preta, de aspecto vítreo, embora menos resistente do que outros minerais. Por não ter uma estrutura cristalina bem definida, a obsidiana podia ser quebrada facilmente, de forma homogênea na direção pretendida...

A estrutura cristalina do sílex, apesar de bem definida, era tão ínfima que praticamente se podia considerá-la também como homogênea. Tudo dependia da habilidade daquele que a modelava e para isso não faltava talento a Droog. não obstante, os instrumentos de sílex tinham dureza suficiente para cortar grossos panos de couro, plantas extremamente fibrosas e, por ou tro lado, eram bastante moles para se fazer neles um fio tão afiado quanto o de um caco de vidro. Para demonstrar, Droog apanhou um pedaço de pedra com defeito e lhe fez um fio. Ayla não precisou tocar para saber que estava afiadíssimo. Muitas vezes, ela própria já usara facas tão amoladas quanto aquela.

Ele atirou fora a peça quebrada e estendeu sobre o colo o lençol de couro. Naquele instante, pensava nos anos de prática que tinha levado para aprimorar os conhecimentos recebidos de seus ancestrais. A ciência de um bom cortador de pedras deve começar pela seleção. Era preciso prática para distinguir as mínimas variações de cor na parte exterior da greda, aquilo que indicava o teor de qualidade e de cristalização do sílex. Levava-Se tempo para aprender que os nódulos das pedras de um determinado lugar podiam ser melhores, mais novos e menos sujeitos a ter no seu interior corpos estranhos do que a mesma pedra, tirada de uma localidade diferente. Talvez ele algum dia ainda tivesse um aprendiz de verdade que possuísse gosto para apreciar esses detalhes de maior sutileza.

Ayla achava que Droog houvesse esquecido dela, enquanto arranjava seus instrumentos e examinava com atenção as pedras. Depois, sentou-se em si lêncio, de olhos fechados, segurando o amuleto. Ela chegou a surpreender-se, quando ele voltou a falar por meio de gestos mudos.

- Os instrumentos que vou fabricar são muito importantes. Brun resolveu que faremos uma caçada de mamute. No outono, depois que as folhas ti verem caído, faremos uma viagem longa, em direção ao norte para encontrar as manadas de mamute. Vamos precisar de muita sorte nesta caçada. Os espíritos precisam estar do nosso lado. Vou fazer facas que serão usadas como ar mas e também ferramentas para serem utilizadas só na fabricação das armas da caçada. O Mog-ur usará uma poderosa mágica para dar sorte à caçada, mas primeiro as armas têm de ser feitas. Se elas ficarem boas, já é bom sinal.

Ayla não tinha certeza se Droog falava com ela ou se estava apenas expondo certos fatos, de modo a ter tudo bem claro em sua mente antes de começar o trabalho. Isso lembrou-a de que deveria ficar muito quieta, sem fazer nada que pudesse perturbar Droog, enquanto trabalhasse. Já estava quase achando que ele a mandaria embora, agora que ela sabia da importância dos instrumentos que seriam fabricados.

O que Ayla ignorava era que, desde a ocasião em que ela mostrara a Brun a caverna, Droog acreditava que a garota dava sorte e o fato de salvar Ona veio reforçar mais ainda tal convicção. Ele via a estranha menina como um tipo de pedra rara ou como um daqueles dentes que as pessoas recebem de seus totens e põem dentro dos amuletos para trazer sorte. Ele não tinha muita certeza se ela própria seria alguém de sorte, sabia apenas que Ayla dava sorte. E agora, o pedido para observá-lo justamente nesta ocasião, ele considerava como algo de extremamente promissor. Droog viu com o canto dos olhos que ela também pegara no seu amuleto, no momento em que ele apanhou o primeiro nódulo. Apesar de não saber precisar direito o seu pensamento sentia que a menina estava chamando a sorte de seu poderoso totem para assisti-lo em seu trabalho e a agradecia por isso.

Droog achava-se sentado no chão, com um pano de couro estendido sobre o colo e segurando um nódulo de sílex com a mão esquerda. Ele pegouuma pedra de forma ovalada e a remexeu na mão até encontrar o jeito certo de segurá-la. Por muito tempo, havia procurado por um martelo de pedra que tivesse exatamente o toque e a resistência daquele e fazia anos que já o pussuía. Suas inúmeras ranhuras atestavam o muito que já fora usado. Com o martelo, Droog foi quebrando a parte exterior cinza da greda, deixando exposta a camada mais escura do sílex. Parou para examinar a qualidade do nódulo. A cristalização e a cor eram boas, também não havia jaças. Começou, então, a delinear a forma básica de uma machadinha. As lascas grossas que iam saindo tinham gumes afiados e muitas seriam aproveitadas como instrumentos de corte, do jeito mesmo como saíam. A extremidade de cada lasca fazia, no ponto onde o martelo acercava o nódulo, uma forma abaulada que se estreitava com um corte transversal na outra extremidade e marcando a parte interna do sflex com uma cicatriz áspera e funda.

Droog botou de lado o martelo de pedra e pegou um instrumento de osso. Mirando com cuidado, ele batia no centro do sílex, bem junto da beirada aguçada e áspera. O martelo de isso, bastante delicado e maleável, tirava lascas mais finas, não tão abauladas e com as beiradas mais retas, além ainda de não encrespar tanto a pedra nos gumes finos e afiados.

Em poucos minutos, Droog estava com o novo instrumento pronto. Tinha uns 12 centímetros, com uma extremidade pontuda, gumes retos e cortantes, e era trabalhado em corte transversal, relativamente fino e com faces lisas, só um pouco marchetadas nos pontos de onde haviam saído as lascas. Um instrumento para ser empunhado e usado no corte de madeiras, tal como um machado ou como uma enxó para escavar gamelas em troncos, podendo ainda ser utilizado para cortar marfim de mamutes, partir ossos e tudo quanto fosse uso que se pudesse dar a um instrumento afiado e bom para martelar.

Era uma antiquíssima ferramenta. Machadinhas semelhantes àquela vinham sendo produzidas já há séculos pelos ancestrais de Droog. Uma forma das mais simples, das primeiras a ser imaginadas, e que continuava sempre útil. Ele revirava a pilha de lascas, separando aquelas com gumes largos e retos. Poderiam ser usadas como cutelos para destrinchar animais e cortar peças de couro duro. A machadinha fora apenas um exercício inicial de aquecimento. A atenção de Droog dirigia-se agora para outro nódulo de sílex, um que fora selecionado por sua cristalização particularmente boa. Este merecia uma técnica mais elaborada e difícil.

O ferramenteiro estava mais à vontade, não tão nervoso e pronto a enfrentar o próximo trabalho. Ele pôs entre as pernas um osso de pé de ele fante para usar como bigorna. Sobre a parte plana deste, ele assentou o nó dulo de pedra, segurando-o firmemente. Em seguida, pegou o martelo de pedra. Desta vez, enquanto lascava a parte externa da greda, ele, com muita aten ção, ia modelando a pedra de modo a dar ao núcleo remanescente do sílex uma forma toscamente ovalada e chata. Depois, virando uma das bandas e trocando para o martelo de osso, desbastou o topo, trabalhando na direção da beirada para o centro, fazendo toda a volta. Quando terminou, a pedra tinha um segundo oval esculpido sobre a base do primeiro.

Droog, então, parou por um instante. Envolveu o amuleto na mão, ficando de olhos fechados. Sorte e destreza eram necessárias aos decisivos passos seguintes. Espichou os braços, flexionou os dedos e pegou o martelo de osso. Ayla tinha a respiração suspensa. Ele queria remover uma pequena lâmina de uma das extremidades do topo ovalado e chato, de modo a deixar um dente com superfície perpendicular à lasca que ele queria remover. Uma plataforma de talhamento era necessária para isso, a fim de que a lasca saísse sem falhas e com os gumes afiados. Observou as duas extremidades da superfície oval, escolheu a que usaria, mirou bem e vibrou um golpe certeiro, respirando aliviado ao ver desprender-se a pequena lâmina. Droog segurou firme o núcleo em forma de disco sobre a bigorna e, avaliando com precis a distância e o ponto de impacto, usou o martelo de osso para golpear o pequeno dente ali feito. Saiu do núcleo uma lasca perfeita. Tinha uma longa forma oval, bordos afiados, com uma das faces um tanto achatada e a outra, lisa, bulbóide; era ligeiramente mais grossa na extremidade martelada, afinando-se em direção à extremidade oposta.

Droog tornou a olhar o núcleo, girou-o e dele extraiu mais uma pequena lâmina para formar uma plataforma, voltada para a extremidade da plataforma de talhamento anterior, e em seguida removeu uma segunda lasca pré- formada. Em poucos minutos, Droog havia talhado seis lascas e jogara fora o que sobrara do núcleo do silex. Todas tinham uma forma oval alongada com tendência a estreitar-se na extremidade mais fina até tornar-se uma ponta. Examinou as lascas cuidadosamente e as dispôs em fila, prontas para receber o acabamento final que faria delas as ferramentas pretendidas. De uma pedra, quase do mesmo tamanho que aquela usada para fazer uma única machadinha, ele conseguira com a nova técnica, seis instrumentos de corte, podendo variar seu formato para atender às finalidades mais diversas.

Com um pequeno instrumento de pedra redondo, ligeiramente achatado, Droog cortou, num dos lados, o gume afiado da primeira lasca, não só para definir as pontas, mas sobretudo para tirar-lhe o fio, de modo a - um cabo que não cortasse a pessoa que fosse segurá-la. Era um acabamento, não para afiar o já fino e bem amolado gume; ao contrário, visava cegar a lasca, para que a peça pudesse ser manuseada com segurança. Ele fez uma avaliação crítica do trabalho, aparou algumas lasquínhas mais e, satisfeito, botou a faca de lado para pegar outra das lascas. Pelo mesmo processo, - uma segunda faca.

A lasca seguinte escolhida por Droog era a maior e aquela provinda da parte mais próxima ao núcleo de forma ovalada. Um dos gumes era quase reto. Firmando a lasca contra a bigorna e fazendo pressão com um pequeno osso, Droog foi extraindo diversos pedacinhos da borda da lâmina, deixando nela uma série de incisões na forma de V. Cegou o lado oposto ao dentado, deu uma olhada final ao seu minisserrote, meneou a cabeça em sinal de aprovação e o botou também de lado.

Usando a mesma peça de osso, Droog retocou todo o lado cego de uma lasca menor e mais arredondada, a que deu uma forma acentuadamente convexa. Era um instrumento forte, quase cego para não quebrar facilmente com a pressão feita na raspagem de madeiras ou cantos, além de não danificar também as peles. Em outra lasca, ele fez uma profunda incisão em forma de V, no lado do fio. Esta seria especialmente útil para moldar pontas de lanças de madeira. Por fim, na última lasca - que apresentava uma ponta aguda na extremidade fina, mas com os bordos um tanto cegos e ondulados - apenas tirou-lhe todo o corte e lhe deixou a ponta. O instrumento poderia ser utilizado como sovela para furar couros ou como verruma; nesse caso, para fazer furos em madeira ou osso. Todos os instrumentos de Droog eram fabricados de modo a ser empunhados com segurança.

O artesão deu mais uma olhada na direção das ferramentas que acabara de fazer e, depois, fez um sinal a Ayla, que observava atentamente, mal ousando respirar. Ele lhe deu o raspador e uma das largas lascas afiadas que sobraram da fabricação da machadinha.

- Você pode ficar com essas. Elas podem ter alguma utilidade, se você vier conosco na caçada do mamute - gesticulou Droog.

Os olhos de Ayla brilharam. Ela pegou as ferramentas, como se fossem os presentes mais preciosos desse mundo. E eram. Será que vou ser escolhida para ir com os caçadores nessa caçada?, perguntou-se, sonhando. Ayla ainda não era mulher e, em geral, somente mulheres e crianças ainda mamando acompanhavam os caçadores. Mas Ayla tinha o tamanho de uma mulher feita e já fora em algumas pequenas caçadas no verão passado. Talvez eles me escolham, tomara que isso aconteça, disse consigo.

- Esta menina vai guardar as ferramentas até a caçada do mamute. Se ela for escolhida para acompanhar os caçadores, irá então usá-las pela primeira vez no mamute que matarão - falou Ayla.

Droog fez um grunhido e, depois, sacudiu os pedacinhos e escamas de pedra que ficaram agarrados no couro que lhe cobria o colo. Sobre este, dispôs o martelo de pedra e o de osso, a bigorna de pé de elefante, o osso e todas as ferramentas de pedra que usava para burilar. Enrolou o couro e o amarrou apertado com uma corda. Finalmente, reuniu os novos instrumentos e encaminhou-se para a cabana que dividia com as pessoas que habitavam sua fogueira. Por aquele dia chegava, embora a tarde ainda estivesse pelo meio. Em pouco tempo, produzira ferramentas de excelente qualidade e seria melhor não tentar muito a sorte.

- Iza, iza! Olhe o que Droog me deu. E ele até me deixou ficar observando, enquanto trabalhava - disse Ayla correndo na direção da curandeira, carregando numa das mãos as ferramentas e com a outra fazendo os gestos que Creb empregava para poder exprimir-se com um braço só. - Ele disse que os caçadores vão caçar um mamute no outono, por isso está fabricando as ferramentas que servem para fazer as armas especiais que vão ser usadas nessa caçada. Você acha que vou ser escolhida para ir com eles?

- Talvez, Ayla. Mas não sei por que você está tão excitada. Isso só significa muito trabalho. É uma quantidade de gordura que se tem de botar para derreter e quase toda a carne é aproveitada e posta para secar. E você não faz idéia do quanto de gordura e carne existe num mamute. Você vai ter de andar uma distância enorne e na volta carregar todas essas coisas.

- Oh, não me importo com o trabalho. Nunca vi um mamute, a não ser de longe, uma vez que estava no alto do morro. Eu tenho vontade de ir. Oh, Iza, tomara que eu vá.

- Os mamutes nunca andam muito para o sul. Eles gostam de frio. O verão aqui é quente demais e, no inverno, não podem pastar porque há muita neve. Mas há muito tempo que não como uma boa e suculenta carne de mamute. não existe nada melhor. Além disso, a gordura serve para ser usada em muitas coisas.

- Você acha que vão me levar, mãe? - gesticulou Ayla, animada.

- Brun não me falou de seus planos. Eu nem sabia que eles estavam indo. Você sabe mais do que eu, Ayla - disse Iza. - Mas se Droog falou é porque deve existir alguma possibilidade. Acho que ele está agradecido por você não ter deixado Ona morrer afogada, e a notícia e as ferramentas que lhe deu são uma maneira de dizer isso. Droog é ótima pessoa. Você tem sorte, Ayla. Ele acha que você merece seus presentes.

- Vou guardar as ferramentas até a caçada. Eu disse a ele que só iria usá-las nessa ocasião.- Boa idéia, e você disse a coisa que devia.

 

 

                                                              CONTINUA

 

 

A caçada do mamute planejada para o princípio do outono, quando os colossais animais de pele lanosa emigravam para o sul, mantinha o clã inteiro excitado. Todo mundo que fosse forte e robusto seria incluído na expedição ao norte, no extremo da península, próximo ao ponto em que esta se ligava ao continente. Durante o tempo em que estivessem fora, estariam excluídas todas as actividades correlacionadas com caças que não fossem o trabalho de esquartejar o animal e lhe preparar a carne e a gordura para serem trazidas à caverna. Não havia a menor segurança de que, chegando ao local, fossem encontrar mamutes e, no caso de achar, de que eles fossem ser bem-sucedidos. Apenas o fato de que, se tivessem sucesso, contariam com um gigantesco animal que lhes daria uma quantidade de carne suficiente para sustentá-los por meses e uma bela provisão de gordura, tão essencial à existência, fazia com que considerassem vantajosa a idéia.

 

 

 

 

No princípio do verão, os caçadores conseguiram uma provisão de caças muito maior do que a usual, de modo que havia carne suficiente para alimentar o clã por todo o inverno, isto é, se fossem parcimoniosos. não poderiam dar-se o luxo de uma caçada de mamute, se não estivessem bem abastecidos para a próxima estação de frio. No entanto, a reunião de clãs se realizaria dentro de dois anos e, naquele verão, praticamente não se caçava. Estariam viajando durante toda a estação. Primeiro, para a caverna do clã hospedeiro, onde se daria o importante acontecimento, lá permanecendo por algum tempo, participando do grande festival e, depois, a viagem de volta. A longa história desses encontros lembrou Brun de que ele devia botar por antecipação o clã armazenando os alimentos e fazendo os suprimentos que os manteriam no inverno seguinte à reunião. Foi essa a razão que o levou a decidir favoravelmente sobre a caçada do mamute. Um bom estoque para o próximo inverno, somado a uma bem-sucedida caçada os poriam na dianteira. Carne- seca, legumes, frutas e cereais, quando estocados de forma correta, poderiam facilmente aguentar dois anos.

O clima de excitação não era apenas pela caçada, havia também pairando no ar o sentimento latente, quase palpável, do medo ao sobrenatural. O sucesso da caçada dependia muito do fator sorte, e...

  

                                                                                                   

 

 

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