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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BALADA DA INFÂNCIA / A. J. Cronin
BALADA DA INFÂNCIA / A. J. Cronin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

- Todos os dias, às seis horas, enchia a casa uma atmosfera de expectativa, que tornava mais bela a tarde longa. vaga. sonhadora...
Quando eu fui para a sala, a minha mãe, na cozinha, ao fazer os preparativos para a ceia, principiava uma canção. Era qualquer coisa acerca da filha de um moleiro que adoecera e morrera. Entoava essas canções de forma tão animada e com uma jovialidade tão natural que elas tomavam um acento de pura alegria. Empoleirei-me no genuflexório para chegar à janela; embora devesse entrar para a escola na semana seguinte, ainda precisava daquele recurso.
O caminho para a estação estava deserto a essa hora: apenas à porta da forja se via um cão a dormir, deitado à sombra do plátano. Para lá do embarcadoiro e dos seus canteiros de cravos e calceolárias amarelas, abria-se a larga extensão vazia da costa, e, mais além, no estuário do Clyde, descia um vapor de rodas, de chaminé branca. Por fim apareceu um vulto, não o esperado mas igualmente meu conhecido: o da minha amiga Maggie, ou, como a denominavam os rapazes "maus", a Doida Maggie, pequena de treze anos, alta e desajeitada, que trazia vasilhas de leite da herdade de Snoddie e estava a esgueirar-se entre os varões da cancela fechada da passagem de nível. Era, de facto, o caminho mais curto, mas rigorosamente proibido, e eu observei-a com ar de censura enquanto ela entrava na rua, iniciando a sua tarefa nocturna da distribuição do leite. Ao passar pela nossa casa, uma das quatro vivendas bonitas do quarteirão, viu-me à janela e, com um chocalhar de latas, agitou o braço e saudou-me.
Comecei a acenar, retribuindo, mas nesse momento ouviu-se um apito. Desviando os olhos de Maggie, descobri um fumozinho, atrás do qual serpenteava lentamente, na curva da linha férrea, uma espécie de cobra acastanhada. Com dificuldade, como se fatigada, veio arquejando até ao pequenino cais. No ano de 1900 só os comboios mais ronceiros da Companhia Britânica do Norte paravam na aldeia de Ardencaple.

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Como muitas vezes acontecia, meu pai foi o único passageiro que se apeou. Saltou rapidamente, com o passo de quem aprecia regressar a penates: figura ágil que dava, mesmo ao longe, uma impressão de elegância inconfundível. Trazia o seu fato castanho, sapatos também castanhos, chapéu de feltro da mesma cor, de aba revirada, e sobretudo curto de tom mais claro. Quando se aproximava, o cão ergueu a cabeça e, alheio aos inconvenientes de uma aldeia, levantou poeira com a cauda. Notei então, com ansiedade crescente, que o Pai sobraçava um embrulho. Não raramente, quando visitava a sua clientela de Winton, trazia-nos - a mim e à mãe - qualquer surpresa para a ceia, e que nunca deixava de nos entusiasmar: cachos de uvas, postas de salmão, alguma bebida exótica, tudo coisas que indicavam não ser ele próprio inimigo de boas especialidades, as quais, é claro, fugiam à modesta norma da nossa vida diária. E, quando as exibia, olhava-nos, com uma sobrancelha alçada, gozando secretamente o nosso espanto.
A porta abriu-se e a Mãe, tirando o avental, correu ao encontro dele e abraçou-o, acto com que eu não concordava muito mas que era infalível. O Pai despiu o sobretudo, pendurou-o num cabide (tinha muito cuidado com a sua roupa), e depois entrou na cozinha, ergueu-me com modo despreocupado e tornou a sentar-me. A Mãe trouxe para a mesa a terrina. Era sopa à escocesa, que o Pai muito apreciava mas da qual, quando não me obrigavam a ingerir tudo, eu só comia as ervilhas, dispondo-as primeiro em círculo na borda do prato. A seguir, havia carne cozida. Contra o costume da terra (e isto constituía apenas uma das faltas de conformação com os usos da comunidade em que vivíamos), tomávamos à noite a nossa refeição principal, pois o Pai, nas suas andanças de todo o dia, raras vezes tinha oportunidade de levar à boca mais do que uma sanduíche. Entretanto, com ar muito diferente do habitual, e até um tanto constrangido, principiou a desembrulhar vagarosamente o pacote.
- Ora bem, Grace - disse ele. - Está tudo resolvido.
A Mãe começara a servir a sopa. Muito pálida, parou.
- Pode lá ser, Conor!
O Pai olhou-a com um sorriso afectuoso, ainda que cómico, e afagou as pontas do bigodinho louro.
- Tive o encontro final com Hagemann esta tarde. Assinámos o nosso contrato. Ele embarca esta noite para a Holanda.
- Oh, Con, não estás a falar a sério!
- Vê. Tens diante dos teus olhos a primeira amostra.
Colocou sobre a mesa um frasco redondo, sentou-se pacificamente, tirou o prato de sopa das mãos trémulas da mãe e pegou na colher. Pensei que ela - coisa absurda- ia chorar. Como não se aguentasse nas pernas, deixou-se cair na cadeira. Perturbado, com a vaga impressão de que sucedera algo de terrível para a paz do nosso lar, eu não desviava a vista daquele frasco. Continha um pó amarelado e no vidro estava colado um rótulo com uma bandeira encarnada, azul e branca. Com grande esforço, a Mãe passou-me a sopa.
- Mas, Conor - argumentou - tens prosperado tanto com os Murchisons!
- Diz antes que os tenho feito prosperar.
- Evidentemente. Contudo, são tão boas pessoas...
- Não tenho nada contra os Murchisons, querida Grace, mas já estou farto de gastar a sola das botas para lhes vender farinha. Consagrei-lhes cinco anos da minha vida. Aliás, foram simpáticos comigo.O velho Murchison aconselhou-me a aceitar a representação.
- Vivemos agora tão bem... em tanta segurança e conforto...
O Pai ergueu a sobrancelha, mas nessa ocasião não era para apresentar belos cachos de uvas. Aquele frasco misterioso devia ser explosivo.
- Nunca se consegue nada permanecendo confortável e seguro. Trata de ser boazinha e come, que eu depois te contarei os pormenores. -Inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão.
- Estou muito transtornada - disse a Mãe, que se levantou e trouxe a carne para a mesa.
Sem reparar que eu não tocara na sopa, tirou-me o prato. O Pai, com o seu ar invariável de distinção, trinchou a carne com toda a calma e elegância. Era um bonito homem, esbelto, de cabelo ruivo, tez corada, olhos castanhos claros e dentes brancos que brilhavam por baixo do bigode retorcido. Eu admirava-o deveras e muitas vezes ficava deslumbrado com os seus triunfos imprevistos e audaciosos, em que jamais mostrava sinais de medo ou fadiga. Mas não o amava, na verdadeira acepção do termo. Pertencia por inteiro à minha mãe; merecia esse epíteto deplorável de "menino da sua mamã", por ser brando, tímido, atrasado por uma série de doenças que começaram com a papeira e acabaram na difteria (ainda podia sentir o gosto da glicerina fenicada com que o doutor Duthie costumava pincelar-me a garganta), e forçado por imperiosas circunstâncias sentimentais da nossa existência a ligar-me mais à Mãe e à casa. Mas quem não teria sido assim com semelhante mãe? Por esse tempo não contava ela mais de vinte e quatro anos, com o rosto pequeno e meigo, feições regulares, cabelo macio, castanho, olhos de um azul pro fundo e todos os movimentos de uma graça natural, que pareciam explicar o seu nome próprio. Acima de tudo, porém, era aquele olhar dulcíssimo que mais me cativava.
Nesse momento, de queixo apoiado na mão, ela escutava meu pai, que fora o único a fazer honras à carne.
- Deves concordar... - dizia ele. - Passa-me a mostarda, se fazes favor. Obrigado. Deves concordar que eu não podia perder esta oportunidade. Estamos em vésperas de alterações revolucionárias na indústria da panificação. O velho método da levedura tem os seus dias con-ta-dos. - Quando o Pai queria impressionar separava bem as sílabas.
- Mas o nosso pão, Conor, é bastante bom. O Pai, mastigando com gosto, abanou a cabeça.
- Não sabes quantas vezes tenho visto a levedura azedar, borbulhando para fora das masseiras. E uma fornada inteira de pão fica completamente estragada. O novo processo tornará o pão melhor e mais barato. Pensa nesta oportunidade, Grace, com as minhas relações; porque eu conheço todos os padeiros de Oeste. Serei o primeiro neste terreno. E trabalharei por minha conta.
A Mãe ia ficando persuadida.
- Estás bem seguro do senhor Hagemann? O Pai acenou com a cabeça, de boca cheia.
- É um homem às direitas. Posso importar de Roterdão nas condições mais favoráveis. Além disso ele adianta-me metade do dinheiro, para me dar um empurrãozinho. Faria isso se não confiasse em mim?
Um débil clarão de esperança surgiu nos olhos da Mãe, substituindo-se à anterior expressão de ansiedade. Finda a ceia, não se levantou para retirar a loiça da mesa. Nem o Pai seguiu o seu costume de me dedicar meia hora (período com frequência prolongado pelas minhas importunações) antes de eu ir para a cama. Exceptuando o curto passeio que ocasionalmente dava, para depois se deitar, o Pai quase nunca saía à noite.
Depois de um longo dia passado entre os amigos, parecia perfeitamente satisfeito por se encontrar, como ele dizia, junto da sua lareira. Além disso, nada o estimulava a sair. Embora tivesse poucos conhecimentos nunca desejara, digamo-lo, um amigo na aldeia. Ardencaple era para ele, como para todos nós, um campo hostil.
O nosso convívio à noite tinha, em parte, aspecto pedagógico; fora o Pai quem me ensinara as primeiras letras e me instruíra, lendo em voz alta (para benefício mútuo), certos artigos menos conhecidos do seu volume dilecto, a Enciclopédia Pears; mas o que principalmente desejava, em especial durante a minha doença, era fazer-me passar o tempo. Com espantosa fertilidade de imaginação, inventava e contava séries intermináveis de aliciantes aventuras, nas quais um protagonista infantil, precisamente da minha idade, pequenino e débil, porém dotado de incrível intrepidez, praticava acções de bravura extraordinária em ilhas desertas ou nas selvas tropicais, entre tribos primitivas e selvagens antropófagos. De vez em quando intercalava observações relacionadas com acessórios e atavios dos componentes femininos das tribos, e esses apartes, cujo significado eu não compreendia, destinavam-se à minha mãe, que se fartava de rir.
Nessa noite, contudo, os meus pais continuaram absortos na conversa e eu percebi que passara a hora de ele me regalar com as histórias de canibais. Encontrando o seu olhar, durante um silêncio, perguntei de súbito, no tom de pessoa injustamente esquecida:
- 0 que tem aquele frasco ?
- É fermento, Laurence. Para ser mais rigoroso: Real Fermento Holandês de Hagemann.
- Fermento? - repeti, boquiaberto.
Assim mesmo. Uma substância fungiforme composta de inúmeras células vivas. Sim, uma forma de vida, bem se pode dizer, um organismo que germina, cresce, torna o amido em açúcar, o açúcar em álcool e gás carbónico, e assim faz levedar aquilo que é o esteio da vida. Preparado - continuou o Pai, muito contente- numa solução mineral salina, moderna técnica bastante superior à do antigo sistema da massa levedada, oferece a única possibilidade de introduzir um processo completamente novo que reorganizará a indústria da panificação escocesa.
Dir-se-ia que o Pai é que descobrira o fermento e, por muito tempo, julguei que de facto fora ele. A sua exposição, evidentemente estudada com antecedência, deixou-me quase sem fala. A Mãe parecia da mesma forma achar aquilo excessivo (pelo menos para mim, em semelhante ocasião). Levantou-se e, se bem que o relógio da prateleira do fogão me assegurasse ainda não ser o momento de me deitar, mandou-me ir para a cama num tom que não admitia réplica.
Recolher ao leito era em geral uma operação lenta, demorada por todos os pretextos que eu inventava para deter a Mãe, e complicada por toda a espécie de rituais por mim criados para me defender e que, embora não valha a pena enumerar, podem ser imaginados pelo meu primeiro gesto, que era verificar se não se encontrava alguma cobra escondida debaixo da cama. Naquela noite, contudo, a vinda do frasco de fermento distraiu-me de todas estas cerimónias e abreviou tudo da maneira mais desagradável.
Mesmo depois de estar deitado e de a Mãe me ter dado boa noite, deixando como de costume a porta entreaberta, a tal estranha substância, misterioso invasor da nossa casa, continuou a "fermentar" no meu espírito. Eu não conseguia adormecer. Quando estava de olhos fechados, vi o fermento crescer, crescer, sair do frasco, elevar-se numa nuvem avermelhada e pairar sobre a nossa residência, tomando a forma do génio da garrafa, conforme uma das histórias que meu pai contara. Seria o começo de um sonho ou singular visão do futuro?
Apesar de falarem em voz baixa, a conversa de meus pais entrava-me em fragmentos pela porta entreaberta do quarto exíguo. De vez em quando chegavam-me aos ouvidos frases impressionantes como "partir desta maldita aldeia", "retomares a tua música", "ele", pode ir para Rockcliff, como Terence..." E, finalmente, pouco antes de pegar no sono, ouvi o Pai declarar, em tom grave e decidido".
- Demonstraremos à tua família, Gracie, e à minha também, que não podem continuar a tratar-nos assim. Um dia se reconciliarão contigo. E será em breve.
II
Durante semanas eu desejara ir para a escola, aventura habilmente urdida para mim, nos termos mais ternos, pelo meu pai, e diferida somente pela minha susceptibilidade aos bacilos mais vulgares. Mas, agora que chegara o dia, o meu estado de espírito avizinhava-se do pânico. Quando a Mãe me dava os últimos retoques, abotoando-me as calças novas de sarja azul escura e ajeitando-me a camisola, roguei, de lágrimas nos olhos, que não me mandasse para a escola. Riu-se e beijou-me.
- Vais muito bem com a Maggie. Olha, aqui tens a tua sacola nova. Põe aos ombros, como um verdadeiro estudante.
A sacola, embora vazia, reanimou-me um pouco. Começava a sentir-me com mais coragem quando uma pancada à porta das traseiras me fez sobressaltar.
Maggie estava no limiar, com o seu aspecto habitual, humilde e cabisbaixo e as madeixas emaranhadas caindo-lhe sobre os olhos, que tinham aquela expressão triste e suplicante dos novilhos das Highlands. Era filha da lavadeira da aldeia, mulher desalinhada, cujo marido há muito fugira à sua língua viperina e que, lastimando a sorte dessa vergôntea abandonada, fazia dela, no entanto, sua escrava. Vestida com uma saia velha de mescia que minha mãe lhe dera e com as meias passajadas no joelho, Maggie tinha poucos sinais exteriores de graça. Sabendo-se pouco inteligente e com um ar acabrunhado que revelava excesso de trabalho e mau tratamento em casa, era arreliada impiedosamente pelos berros de Doida Maggie dos garotos da terra, que todavia se acautelavam dela, pois tinha um braço forte e boa pontaria com um calhau redondo apanhado na praia e sempre disponível na algibeira. Mas a mim servia tanto de amiga como de mentora. Confiava nela plenamente, tal como minha mãe, que gostava de Maggie e a beneficiava. Apesar das inúmeras obrigações que lhe eram impostas (depois das horas da escola raras vezes a víamos sem uma trouxa de roupa ou a sua armadura de vasilhas de leite, as quais, terminada a distribuição, tinha de escaldar e arear na quinta, antes do trabalho final de dar de comer às galinhas), apesar disso havia sido, nos longos dias das férias de Verão, uma espécie de aia para mim, levando-me a passeio, à tarde, durante o período da minha convalescença. A nossa romagem favorita era ao comprido da praia, passando, de caminho, por uma casita isolada, quase em ruínas, com uma caniçada verde apodrecida, e que tinha o nome mal aplicado de Roseiral. Para minha eterna humilhação, parece haver sido lá o lugar onde nasci. Como tão momentoso evento pudera acontecer num edifício assim decrépito era coisa que eu não compreendia; contudo, devia ser verdade, porque, depois de passarmos o Roseiral, Maggie lançava-se numa espantosa mas irresistível narração (sem dúvida escutada à mãe dela) de como eu viera ao mundo numa noite escura e medonha, em que chovia a cântaros e a maré subira tanto que o meu pai, ao ir aflito em procura do doutor Duthie, estivera em risco de não poder chegar à aldeia.
- E para mais, comentava Maggie, dirigindo-me um olhar de comiseração - o menino nasceu ao contrário.
- Ao contrário? Como?
- Não foi de cabeça. Os pés é que vieram primeiro.
- E isso era mau ? - Inquiri, petrificado.
- Fez um gesto afirmativo.
Depois desta revelação vexatória, Maggie reanimou-me conduzi ndo-me um pouco mais além, ao longo do estuário, até Erskine Rocks, onde, pedindo-me que não o dissesse a minha mãe (a qual ficaria horrorizada ao saber que o seu querido filho estragava o estômago com semelhante "porcaria") apanhámos mexilhões, que Maggie assou na casca, numa fogueira de detritos lançados à costa. Só pela novidade é que essa refeição me seduziu, sendo eu, como era, um superalimentado; mas, quanto a Maggie, a quem minguava a comida, isso constituía um sustento abençoado. Para sobremesa, depois de tirar as botas amolgadas e as meias pretas (com buracos, apesar de passajadas), ela patinhou nas águas sujas do braço de mar,enterrando os dedos dos pés na areia lamacenta, e descobriu amêijoas pequeninas, que devorou como se fossem ostras, mesmo cruas e ainda palpitantes.
- Olha que estão vivas, Maggie!-protestei, impressionado com a ideia do que esses inocentes bivalves deviam sofrer sob os dentes aguçados da rapariga.
- Não sentem nada, assegurou-me tranquilamente. É questão de as comer depressa. E agora vamos brincar à "loja".
Maggie inventava todo o género de jogos e possuía todas as habilidades da gente do campo. Sabia fazer assobios de raminhos de salgueiro, tecer complicadas tranças de palha, de uma forma que os meus dedos não conseguiam executar, e construir barquinhos de papel que púnhamos a navegar no regato de Gielston. Também sabia cantar, e em voz rouca, mas afinada, entoava canções em voga, como Adeus, Dolly e A Madressilva e a Abellia.
Mas o jogo de que ela gostava mais era sem dúvida o da "loja". Disso nunca se cansava. Depois de dispormos na praia os nossos diversos símbolos, bocadinhos de conchas, sementes de funcho, pontas de folhas de bardana e algas, cada qual representando uma mercadoria diferente, Maggie assumia os ares e responsabilidade de proprietária enquanto eu fazia de freguês. Isto dava a Maggie, tão pobre e desprezada, uma sensação de desafogo e até de abastança. Olhando para a sua "loja", com o sentimento orgulhoso de posse, contando o seu fornecimento de coisas boas, como chá, açúcar, café, farinha, manteiga, presunto e, é claro, pastilhas de hortelã-pimenta, esquecia-se dos dias em que matava a fome com amêijoas, um nabo cru, apanhado num dos campos de Snoddie, ou mesmo frutos de roseira brava e bagas de espinheiro.
Juntos éramos felizes. Eu sentia a sua amizade e, erguendo subitamente a vista durante o nosso jogo, des-cobri-lhe os olhos cravados em mim, com a expressão admirada de quem é atraído por qualquer singularidade incompreensível. Percebi então de que se tratava, quando ela por fim, num tom meio intrigado meio lastimoso, monologou deste modo:
- Quando olho para si, Laurie, ainda me custa a crer. Quero dizer que... o menino não parece muito diferente de nós. E também os seus paizinhos, tão boas pessoas... quem havia de dizer que fossem... isso.
Pendi a cabeça,Maggie, nos seus despropósitos bem intencionados, já uma vez pusera a nu um dos opróbrios que afligiram os meus primeiros anos e que, sem mais fingimentos, precisa de ser confessado. Eu era ai de mim! - católico apostólico romano! Um rapaz amarrado de pés e mãos ao carro triunfal do Papa, miserável acólito do Mulher de Escarlata, queimador de velas e de incenso, virtual osculador do dedo grande do pé de São Pedro. Além disto, eu e os meus pais éramos os únicos adeptos dessa religião vilipendiada e, pior ainda, os únicos que jamais se tinham estabelecido na aldeia de Ardencaple, reservada exclusivamente aos protestantes. Estávamos tão deslocados naquela estreita comunidade como o estaria uma família de zulos. Éramos, portanto, uns proscritos.
Fosse qual fosse a atitude do público para com meu pai (a qual ele mais gostava de exacerbar do que de apaziguar), eu por mim não sofria nada, salvo a costumada curiosidade compassiva que despertam todas as extravagâncias. Contudo, nessa manhã de segunda-feira em que enfrentava a perspectiva da escola primária, isso contribuía para me aumentar a depressão moral. E quando, após as últimas recomendações da minha mãe, a Maggie me agarrou firmemente na mão e nos pusemos a caminho, senti-me dominado pelo nervosismo.
Na forja ferravam um cavalo, no meio de uma bela nuvem de fumo dos cascos queimados, mas eu mal reparei. As montras da mercearia, contra as quais costumava apoiar o nariz para observar a rica exposição de guloseímas, hortelã-pimenta, geleias e bolos, passaram-me então despercebidas. Foi uma via dolorosa, tornada mais angustiante pela recitação de Maggie, em voz baixa, dos tremendos castigos aplicados pelo mestre-escola, senhor Rankin.
- É coxo
- acrescentou ela, abanando a cabeça.
- Esteve para ser padre, nem mais nem menos! Mas, com a chibata, é um terror.
Embora seguíssemos devagar, não tardou que alcançássemos a escola.
Era um prédio pequeno e antigo, de tijolos vermelhos, com um pátio, à frente, de terra batida e pedras, onde eu, se não fosse Maggie, teria certamente dado às de Vila-diogo. Nesse recinto travava-se uma batalha movimentada. Os rapazes corriam, lutavam, gritavam; as raparigas saltavam à corda e guinchavam; viam-se ehapéus pelo ar, botas ferradas erguiam-se e contundiam, ferindo lume nas pedras, tudo no meio de um barulho ensurdecedor. de repente, dando fé da minha presença, o maior dos rapazes "maus" soltou um berro:
- Olhem quem ali vem! O Papazinho!
Esta súbita elevação ao trono do Vaticano, em vez de me incutir coragem, produziu efeito contrário. Num momento vi-me rodeado de uma multidão que pretendia de mim mais do que a bênção apostólica.Mas desse e outros perigos Maggie me defendeu, afastando a turba com os cotovelos afiados estendidos combativamente, até que um som metálico sufocou o tumulto e o mestre--escola apareceu, de sineta na mão, nos degraus da porta.
Era sem dúvida Rankin, com a sua perna direita deformada e tristemente mais curta do que a outra, suportada por um taco de doze polegadas fixo a uma estranha botinha por um estribo de ferro e coberto na parte terminal por uma tira de borracha. Com espanto meu, não me causou impressão alarmante. Apesar das explosões inesperadas de cólera e do bater com os nós dos dedos na secretária, era na realidade um homenzinho inferiorizado, brando, insípido. Orçava pelos cinquenta anos, usava óculos de aros de aço e barbicha pontiaguda. Trajava sempre de preto, a rabona lustrosa e a gravata (no colarinho de gutapercha, sobre peitilho postiço). Na sua mocidade estudara para sacerdote, mas, em virtude do referido aleijão e tendência para gaguejar, falhara na carreira e tornara-se por fim um exemplo melancólico daquele supremo malogro escocês, o padre gorado que se transforma em mestre-escola.
Não foi, contudo, a ele que me entregaram. Desviando-se da corrente tumultuosa, Maggie confiou-me finalmente à professora adjunta da primeira classe, onde, com outros vinte alunos alguns mais novos que eu, recebi uma ardósia e me sentei num dos bancos da frente. Senti-me melhor depois de reconhecer na nossa mestra (rapariga de aspecto afectuoso, de olhos castanhos meigos, e sorriso animador) uma das filhas do senhor Archibald Grant, dono da mercearia. A irmã mais nova, Polly, nunca deixava de me oferecer um rebuçado quando eu ia ao estabelecimento fazer qualquer compra por mandado da minha mãe.
- Alegro-me por os ver de volta depois das férias, e saúdo os nossos estudantes.
- começou Miss Grant, estremeci de comoção imaginando que o seu sorriso me era dedicado.
- Lady Meikle fará hoje a sua visita habitualdo dia da abertura da escola, e espero que todos se portem o melhor possível. Agora vou fazer a chamada. Cada um que responda na altura em que ouvir o seu nome.
Quando ela disse "Laurence Carrol", imitei os outros com um "Presente", mas tão a medo como se duvidasse da minha identidade. No entanto, foi aceite, e depois de todos responderem, Miss Grant fechou o livro das inscrições e preparou-nos para o trabalho. A aula era de diferentes graus. Em breve uma secção zumbia na recitação da tabuada. Outra copiava do quadro somas nas suas ardósias, enquanto uma terceira se esforçava com as letras maiúsculas do alfabeto. Tudo isto me pareceu tão manifesta brincadeira de crianças que as minhas apreensões anteriores começaram a dissipar-se e a ser substituídas por uma segura consciência do meu próprio valor. Que infantis! Não sabiam distinguir um B de um D! E qual, daqueles pequenos mais velhos, mergulhara, como eu, nos mistérios da Enciclopédia Pears, com a gravura do caminhante no frontispício, a anunciar que por cinco anos não usara outro sabonete? Rodeado de tais demonstrações da ignorância pueril, experimentava o poder do meu conhecimento superior e a elegância do meu fato novo. Queria provar os meus talentos, brilhar...
Mal havia principiado o ruído característico dos lápis a raspar nas lousas quando a porta se abriu e soou esta ordem:
- Meninos, de pé. Enquanto nos levantávamos, o senhor Rankin apareceu e, com muita deferência, introduziu na sala uma senhora baixinha, tesa, empertigada, de busto tão saliente e agressivo que, juntamente com o tufo de plumas no chapéu, lhe dava notável semelhança com uma pomba de papo de vento. Olhei-a receoso. Lady Meikle era viúva de um fabricante de espartilhos de Winton, o qual, escudado no inocente mas intrigante anúncio: "Senhoras, só usamos a mais bela barba de baleia natural" colocado em todas estações de caminho de ferro, obtivera riqueza considerável e, após uma temporada como presidente do município de Levenford, ascendera à dignidade de cavaleiro, distinção que o animara a adquirir uma grande propriedade no termo de Ardencaple, para onde se retirou. Aí teria vagar de satisfazer a sua mania de cultivar orquídeas e plantas tropicais, enquanto a esposa não perderia tempo em assumir os deveres e afirmar as prerrogativas de uma senhora dessa categoria, se bem que, com as suas maneiras terra-à-terra e lapsos do dialecto escocês, não fosse (e francamente o confessava) indicada para semelhantes funções. Contudo Lady Barba de Baleia, como meu pai a chamava, era uma mulher digna, generosa para o povo de Ardencaple (concorrera para a construção do edifício novo da Junta de Freguesia) e caritativa para com todo o resto da comarca. Tinha uma noção característica do humor negro e uma forte ostentação de sentimentos, visto que mandara fazer, para o chorado marido, um jazigo monumental, cheio de vasos horríveis. Mantinha, e tornara famosa, a colecção de orquídeas que ele iniciara antes da sua morte. Por mais estranho que pareça, mesmo sem haver trocado uma palavra com tão ilustre personagem, eu tinha boas razões para estar familiarizado com toda a sua propriedade, matas e cursos de água, e a alameda de uma milha de extensão que serpeava através do parque, entre rododendros gigantescos, até à residência majestosa, com a sua enorme estufa adjacente.
- Meninos, sentem-se.
- Adiantou-se, impotente.
- Esta sala está sufocante. Abra uma janela.
Miss Grant apressou-se a obedecer, enquanto a dama, sem nos perder de vista, conversava com o professor; este, curvado para a frente, recuava a perna deformada, escondendo-a em parte atrás da sã (posição que cedo verifiquei ser a habitual) e emitia submissos murmúrios de concordância. Depois a visitante dirigiu-nos a palavra, em escocês, abrindo muito as vogais:
- Meninos, são novos e despreocupados, mas espero e rogo que não tenham feito nenhuma maldade nem enveredado pelo mau caminho. Devem saber o interesse que tomo por esta terra, e, por isso mesmo, peço que dêem atenção ao que vou dizer.
Continuou neste teor por algum tempo, exortando-nos a trabalhar com afinco, a nos afeiçoarmos e a observar sempre uma atitude elevada no nosso comportamento moral, pois, se assim não fosse, isso nos custaria muito, no presente e no futuro. Terminado o discurso, premiu os lábios e contemplou-nos com um sorriso grave mas ao mesmo tempo meio irónico, no qual se poderia discernir uma nota de astúcia.
- Até agora não sabem nada. Solo virgem, eis o que são. Solo virgem. Mas eu hei-de experimentar-lhes a inteligência natural para ver se têm espírito prático ou queda para o que pretendem. Um lápis, Miss Grant.
O lápis, amarelo, foi-lhe logo apresentado e ela, segurando-o por instantes defronte de nós, arremessou-o ao chão, num gesto teatral. Ficámos ofegantes.
- Suponham que não possuem mãos, disse de maneira que nos causou um calafrio.
- Nenhum tem mãos! Mas eu quero que apanhem o lápis.
Fosse o que fosse que lhe sugeriu esta experiência extravagante (talvez houvesse visitado uma das suas muitas obras de caridade, o Lar do Paralítico, em Ard-fillan), o resultado foi silêncio, um silêncio mortal. Toda a aula parecia estupefacta. De repente, tive uma inspiração. Levantei-me,sem pensar na minha temeridade, avancei um passo incerto sob o olhar da assistência e, prostrando-me diante do lápis amarelo, agarrei-o com os dentes. Mas o lápis era redondo e macio. Escapou-se-me dos fracos incisivos e rolou para a frente, no soalho empoeirado e desigual. Fui atrás dele, rastejando, de cara rente ao chão, como um índio que segue uma pista. De novo tentei, e tornei a falhar. A perseguição continuou. Todos os olhares se mantinham fixos em mim. O lápis encontrara agora uma fenda entre duas tábuas do soalho. Com o queixo obriguei-o a uma posição favorável e vi-o rolar devagarinho até a uma greta mais funda, junto do quadro, donde já havia tombado pó de giz. Eu, porém, começara a irritar-me. Esten dendo a língua, suguei o objecto para fora da sua prisão e, antes de ele voltar a rolar, cravei-lhe os dentes. A classe toda soltou um murmúrio prolongado de aplauso quando, sujo de giz e de nariz esfolado, me pus de pé, exibindo o lápis atravessado na boca.
- Muito bem!
- exclamou Lady Barba de Baleia, dando palmas entusiásticas. Em seguida colocou a mão na minha cabeça, e declarou:
- És um rapazinho muito inteligente.
Corei até às orelhas, impando de orgulho. Ser elogiado assim por tão grande dama, na presença dos professores e, acima de tudo, dos outros colegas! E isto acontecera no meu primeiro dia de escola! Um rapazinho muito inteligente... Uma bela façanha para contar, à minha mãe.
Enquanto Miss Grant me escovava, Lady Meikle, com ar de frenólogo, conservava a mão benevolente sobre o meu crânio.
- Quantos anos tens ?
- Seis.
- Estás pequeno para a idade.
- Estou, sim. Dispunha-me a falar-lhe da doença, quase fatal, que me impedira o crescimento, talvez para sempre, mas, sem me dar tempo a isso, ela continuou, em tom protector:
- Deves comer papas de aveia, e com muito leite. Não desnatado, repara bem. E nunca torças o nariz àquilo que é o esteio da nossa vida. Sabes o que é o esteio da nossa vida?
- Sim, sim, senhora. Triunfante, consciente dos meus conhecimentos superiores, recordando-me de que meu pai empregara a mesma expressão a propósito do frasco que trouxera, olhei-a com vivacidade e respondi em voz clara, alta, confiante:
- É o Real Fermento Holandês de Hagemann!
Na aula elevou-se um sussurro tímido, que cresceu e rebentou numa gargalhada estrondosa. Inteiramente des-coroçoado, vi o rosto da minha protectora alterar-se, vi os sinais de aplauso substituídos por uma expressão carrancuda. A mão que me afagava a cabeça contraiu-se num apertão forte.
- Atreves-te a troçar comigo, rapazinho?
- Não, senhora, não!
Observou-me detidamente, por muito tempo, enquanto eu me sentia gelar cá por dentro. Depois, repudiando-me, afastou a mão, com tanta força que me impeliu para a frente e me obrigou a retomar o meu lugar.
- Vai-te! Enganei-me a teu respeito. Não passas de um idiota.
Humilhado, desfavorecido para sempre, tornado de novo num proscrito, sentei-me e fiquei toda a manhã de cabeça pendida.
No regresso a casa, procurando a mão da minha verdadeira protectora, piscava os olhos para soltar as lágrimas. E murmurei com voz lastimosa:
- Não vale a pena, Maggie. Não presto para nada, sou apenas um idiota.
- Fazemos um lindo par, respondeu Maggie, satírica e desalentada, como se também houvesse tido uma manhã má na sua própria aula.
III
Apesar das dúvidas de minha mãe quanto ao fermento e da humilhação pública que ele me havia causado, o negócio do Real Holandês iniciou-se de modo auspicioso.
Evidentemente que a oportunidade estava ali, e meu pai, inteligente e cheio de clarividência, era o homem mais indicado para a aproveitar.
O seu conhecimento da indústria de panificação, as relações que travara por todo o Oeste da Escócia durante os cinco anos de viajante da firma Murchison, a sua personalidade simpática e trato lhano, que o tornavam popular, e, acima de tudo, a arrogância com que despia o casaco e punha um avental para demonstrar a excelência do novo processo, tudo isto concorria para lhe firmar o êxito.
A solidez do triunfo provou-se cinco meses depois, numa digressão da família a Swinton, quando o Pai, depois de nos mostrar, com orgulho, o seu novo escritório no prédio Caledónia, nos levou de tarde ao Teatro Real, à exibição de Aladino, e, em seguida, ao famoso restaurante O Cardo. Sempre fora um mãos rotas, e nesse Natal mostrou-se ainda mais generoso. Além de um sobretudo novo de Inverno, que não me interessou muito, recebi um trenó magnífico, equipado com um guiador. E minha mãe teve, num dia daquele Dezembro, vindo de Winton, numa carroça puxada por dois cavalos, algo que ela desejava desde o seu casamento, uma dádiva inesperada (visto que o Pai não transpirara nada do seu intento), que a encheu de imensa alegria: um piano vertical. Não era nenhum desses móveis pequenos, amarelados, com guarnições de pelúcia, como o que havia na nossa escola e que soavam como banjos velhos, mas um instrumento de um negro luzídio, sólido, novinho em folha, ostentando o nome mágico de Bluthner, com dois candelabros doirados e teclas de marfim reluzente, que a um simples toque emitia acordes vibrantes e profundos.
A Mãe, ainda deslumbrada, sentou-se no banco giratório que viera com o piano e, enquanto eu me postava junto dela, correu as mãos pelo teclado com uma agilidade que me. espantou, observando ao mesmo tempo:
- Oh, meu Deus, Laurie, como tenho os dedos entorpecidos!
Deteve-se um instante, para conciliar as ideias, e então principiou a tocar. Tão vívida tenho na memória esta cena que até me recordo do que ela tocou. Foi a Danse des Écharpes, da Chaminade. Dizer que fiquei boquiaberto e fascinado não é exagero, não só pelos sons deliciosos que me chegavam aos ouvidos como pelo facto de que antes nunca lhe escutara uma única nota de piano. Por lealdade para com meu pai, incapaz até aí de se permitir essa despesa, minha mãe jamais aflorara esse assunto na minha presença. Como era possível que, após tantos anos de silêncio, repentinamente revelasse esse talento insuspeitado e perfeito e me encantasse com um caudal cintilante de música?
Os dois carregadores, que tinham recebido, cada qual, um xelim e já estavam de boné na cabeça, pararam no corredor, enlevados com os acordes. Quando a Mãe acabou, juntaram os seus aplausos aos meus. Ela riu-se alegremente, abanando a cabeça.
- Oh, não, Laurie! Estou muito enferrujada. Mas depressa voltarei a desembaraçar-me.
Nesta observação havia mais um enigma a acrescentar aos outros ainda por decifrar e que complicavam e perturbavam os meus primeiros anos: quando pedia à Mãe que mos explicasse, limitava-se a sorrir e a dar qualquer resposta evasiva. Entretanto, nada podia desviar-me desta nova alegria. 0 Pai não era dado à música e, embora condescendente, não se importava na realidade com o piano; isto bem podia (porque eu começava a conhecer o Pai) ter de certa maneira demorado aquela aquisição. As suas preferências iam para uma boa banda de instrumentos de sopro, e por isso se fornecera de vários cilindros fonográficos, sistema Edison-Bell, das famosas marchas de Sousa. Mas para a minha mãe, particularmente na nossa situação de apartheid, o esplêndido Bluthner era uma consolação e um requinte. Todas as tardes, depois de concluir o trabalho doméstico e de verificar que estava tudo limpo e arrumado, sentava-se ao piano e "praticava", inclinando-se para a frente de vez em quando, pois era um pouco míope, a fim de estudar uma passagem difícil; e, antes de recomeçar, afastava para o lado uma madeixa de cabelo castanho e sedoso que lhe pendia sobre a testa. Não raramente, quando regressava da escola, e sempre que o tempo estava chuvoso, eu entrava em silêncio na sala e instalava-me junto da janela, a escutar. Em breve soube os nomes das músicas de que mais gostava: Polonaise em mi bemol de Chopin, Rapsódia Húngara de Liszt, Momento Musical de Schubert, e a minha grande favorita, para o que talvez contribuía o nome, a Sonata ao Luar de Beethoven. Esta, acima de todas as outras, incitava-me a uma precoce melancolia, criando visões em que, sob um luar brilhante, me via pleiteando causas perdidas em terras longínquas e obtendo recompensas de alma satisfeita numa campa isolada de herói, da qual, ressuscitado, eu corria à cozinha a fim de pôr a cafeteira ao lume e fazer torradas para o chá...
Foi um Inverno feliz que nenhum facto subsequente pôde destruir. O nosso barquinho, com todas as velas desfraldadas, navegava a um vento de feição, seguindo alegremente a sua rota solitária mas segura. O Pai enriquecia. Na escola, eu transitara de classe e, embora lastimando a falta de Miss Grant, tive a grata surpresa de ser aluno do senhor Rankin. Este, tão injustamente condenado por Maggie (os seus ímpetos eram devidos mais a nervosismo do que a mau temperamento) podia ter falhado no púlpito mas, como professor, parecia excelente. 0 sistema que usava valia mais que a média do ensino ministrado pelos mestres-escolas de aldeia e, além disso, ele possuía a habilidade de apresentar as coisas de uma forma agradável. Com admiração minha, começou a interessar-se pelo seu novo pupilo. O falso conceito da nossa inferioridade, tão divulgada na terra, talvez obrasse em meu favor; ou quem sabe se, embora nunca o tornasse evidente, o seu propósito fosse converter-me, como quem torce um ferro em brasa? Em qualquer caso, obtive mais benefícios do que merecia daquele homenzinho desprezado e repudiado.
Quão depressa passaram aqueles meses! Quase nem dei pela aproximação da Primavera, até que o Pai, que tinha aquilo a que chamava "tendência para bronquite", apanhou uma constipação tremenda em Março, devido ao seu desrespeito sardónico de irlandês pelo aforismo escocês "Não dispas o sobretudo antes de Maio findar". Ele, porém, despiu-o quando o plátano da forja começava a reverdecer. Num instante chegámos aos dias floridos de Abril. Soprava aragem de Oeste, levando nas suas asas a notícia da nossa prosperidade crescente. Não teria sido esta a causa da visita sub-reptícia de meu primo Terence, rapaz de dezasseis anos, que desde muito novo fora dotado de uma pituitária sensível aos mais ligeiros eflúvios da abastança?
Terence era invulgarmente bem parecido, alto, arrogante, possuidor, em alta percentagem, do encanto inato dos Carrolls. A sua casa, que eu nunca vira, ficava em Lochbridge, apenas a vinte milhas de distância, onde o pai possuía um estabelecimento com o nome curioso de Caves de Lomond. Conquanto eu não percebesse as implicações da misteriosa palavra "Caves", além do seu significado de profundezas subterrâneas, a grande distinção de Terry, invejável a meus olhos, era ele ser aluno interno do famoso Colégio Rockcliff, de Dublim. Agora, porque estávamos nas férias da Páscoa, ei-lo chegando à nossa casa numa bicicleta nova e cintilante. Vestia calças de flanela cinzenta bem vincadas, das quais negligentemente tirou as molas de ciclista, casaco azul do colégio e chapéu de palha posto à banda, cuja fita também ostentava as cores escolares. Um olímpico, directamente vindo do Parnaso... as Caves?... pensei, maravilhado.
A Mãe, hospitaleira por natureza, e há muito tempo ansiosa de visitas, ficou encantada ao ver Terence, embora confusa por ser apanhada desprevenida.
- Meu filho, se ao menos me houvesses avisado de que vinhas, ter-te-ia preparado um bom almoço. - Olhou para o relógio, que marcava vinte minutos para as três. - Diz-me o que te posso arranjar agora.
- Na realidade, tia Grace, eu já almocei. - Percebi que o tratamento de tia agradara à minha mãe. Contudo, petiscarei qualquer coisa.
- Diz-me então o que te apetece.
- Não desgostaria de ovos cozidos, se é que tem em casa...
- Claro que tenho. Quantos queres?
- Poderá ser meia dúzia, tia Grace? - Sugeriu Terence, um pouco a medo.
Quinze minutos depois estava sentado à mesa, elegantemente a contas com seis ovos cozidos e várias fatias de pão barradas de manteiga, enquanto nos ia relatando, com grande à-vontade e um acento em que havia laivos da melhor pronúncia de Dublim, o seu notável triunfo no período findo, a conquista do primeiro lugar numa corrida de cem jardas efectuada no colégio. Seria impossível não o admirar, e assim fizemos, embora a Mãe parecesse um tanto maçada quando, pela terceira vez, Terence repetiu:
- A maneira como os deixei para trás no último arranque bem podia tê-los feito desistir.
Foi até por sugestão da Mãe que, depois, Terence me levou a dar um breve passeio enquanto meu pai não voltava. Já no caminho para a aldeia, agarrei-lhe na mão e exclamei enlevado:
- Oh, primo Terry, como eu gostaria de estar contigo no Rockcliff!
Terence fitou-me e, exibindo um palito, começou distraidamente a esgaravatar os dentes.
- Não digas nada á tua mãe, que foi tão amável, mas um daqueles ovos já não estava lá muito bom.
E Terence deu um leve arroto para justificar as suas palavras.
- Lastimo, Terry. Mas ouviste o que eu disse acerca de Rockcliff?
Meneou indolentemente a cabeça, com o propósito de me desanimar.
- Meu pobre pequeno, não aguentarias a severidade daquele ensino. Rockcliff matar-te-ia logo. Santo Deus, que é aquilo que ali vai?
Voltei-me. Era Maggie, numa das suas missões servis, com uma trouxa de roupa à cabeça, mal vestida, desgrenhada, acenando-me de modo amigável para mostrar que me tinha visto. Senti um calafrio. Dar a entender a Terence que.conhecia Maggie? Não, isso era inadmissível. Virei-lhe as costas, e assim cometi o primeiro dos dois grandes actos de apostasia da minha infância.
- Não faço ideia de quem seja, resmunguei, numa fraca imitação das maneiras de meu primo.
E prosseguimos o nosso caminho, deixando Maggie como que petrificada, ainda de braço no ar.
Ao fundo da rua, Terence deteve-se diante da montra da mercearia, onde, numa prateleira de vidro, se exibia uma das tortas de maçã do fabrico especial de Grant. Para além, no interior do estabelecimento, de costas voltadas para nós, estava Polly Grant debruçada sobre um livro e com os cotovelos apoiados ao balcão. A sua atitude, que nos oferecia uma notável vista daquela parte arredondada do corpo que geralmente se usa para o descansar sentado, pareceu divertir bastante o primo . Apoiando-se em atitude atlética na vidraça, por cima da torta de maçã para a inconsciente; Parece bem boa, comentou.
- Ah, sim, é óptima, Terry.
- Muito redondinha.
- São sempre redondas.Para minha surpresa, Terence
desatou a rir, eu, perturbada na sua leitura, endireitou-se e virou-se nós. Encontrando o olhar do meu primo, ruborizou-e fechou o livro, com um estalo violento.
- Devemos fazer qualquer coisa para adoçar a boca,
pois dos ovos, volveu Terence.
- Aposto que você tem aqui conta aberta.
- Pois temos. Venho cá muitas vezes buscar mercadoria para a minha mãe, e eles tomam nota.
- Suponhamos então que vais buscar a torta e que põem na conta, propôs ele com todo o desembaraço.
- Partiremos depois ao meio. Obedeci com entusiasmo. Polly parecia transtornada. Até se esqueceu de me oferecer o rebuçado habitual.
- Quem é aquele rapaz que está contigo ?
- perguntou, ainda corada.
- O meu primo Terence
- respondi com orgulho.
- Então diz-lhe da minha parte que é um grande descarado.
É claro que nem pensei em entregar semelhante recado ao meu primo, o qual, quando saí com a torta, sugeriu que fôssemos até a um recanto sombrio do prado conhecido na região por Baldio.
Aí se instalou confortavelmente, encostando-se a um castanheiro, e abriu o saco de papel, donde se evolou o aroma apetitoso do bolo saído há pouco do forno.
- Vista de perto não é tão grande como julguei
- Observou, inspeccionando a torta, que a mim se afigurava muito maior do que na montra. Media pelo menos nove polegadas de diâmetro, destilava deliciosa calda e era coberta de açúcar.
- Não tens por acaso um canivete?
- Não. Terry. Não me dão licença para usar, com medo de que me corte.
- É pena - disse Terence, pensativo.
- Não se pode dividir isto sem ficarmos todos besuntados.
Seguiu-se uma pausa, durante a qual Terence, de cenho carregado, pareceu ponderar no assunto, enquanto a perspectiva daquele saboroso recheio me fazia crescer água na boca.
- Só há uma solução, declarou por fim. Tirar à sorte, e comê-la quem ganhar.És suficientemente "desportivista" para não ficar aborrecido, se perderes?
- Se tu és, eu também sou, Terry.
- Óptimo!
- Extraiu do bolso uma moeda.
- Se for caras, ganho, se for cunhos, perdes.
Escolhe tu, dou-te essa vantagem. Cunhos, arrisquei timidamente. Descobriu a moeda.
- É cunhos, que pena! Não me ouviste dizer que, se fosse cunhos, perdias? Bem, para a outra vez pode ser que tenhas mais sorte.
De certa maneira, embora os meus olhos pestanejassem, não me senti muito infeliz por ter perdido. Observando Terence a comer a torta vagarosamente, com todos os sinais da maior satisfação, eu reservei para mim o papel de gozar com a vista, e fi-lo até à última migalha.
- Era boa, Terry?
- Regular. Mas suculenta de mais para o teu estômago.
Sem mudar a sua posição de reclinado no tronco, Terence puxou do bolso uma cigarreira de aço, tirou daí um cigarro de ponta dourada e acendeu-o perante o meu olhar reverente.
- Terry, disse eu; é tão bom ter-te cá! Por que não vens mais vezes? E por que não posso ir visitar-te?
Deitou uma baforada de fumo pelo nariz.
- Questões de família...
- Agarrei-me a este intróito.
- Fala-me disso, Terry.
Ele ponderou, meio hesitante, como se fosse anuir, e em seguida esboçou um gesto de negação.
- És muito novo para te afligires com este género de assuntos.
- Mas não me aflijo, Terry. Há muitas coisas que não compreendo, em especial a razão por que não conheço os nossos parentes.
Olhou-me de revés. Não veria quanto me sentia ansioso por ter notícias dos membros desconhecidos da nossa família?
-Então nenhum dos parentes da tua mãe os visitou, a vocês?
- Não, Terry. Só um dos irmãos da minha mãe, o que está na Universidade, o mais novo, chamado Stephen. E apenas uma vez em todo este tempo.
Seguiu-se nova pausa.
- Pois bem, disse por fim Terence, em tom sentencioso. É um pouco delicado, confesso. As relações são tensas. Mas como é natural que mais dia menos dia te venham a dizer, não há prejuízo nenhum em saberes já.
Deitou-se para trás, puxando fumaças do cigarro, enquanto eu esperava atento. E então começou:
- Em primeiro lugar. Falava num tom quase de acusação, que me impressionavam, se não fosse a Companhia Caledoniana dos Caminhos de Ferro, não estarias hoje aí sentado. De facto, não existirias.
Esta declaração imprevista deixou-me atordoado. Olhei para ele, cheio de medo. Terence continuou:
- Todas as tardes, quando regressava do seu trabalho em Winton, o tio Con tinha de mudar de comboio em Levenford e tomar o transporte local para Lochbridge, onde residia naquela época. Se não fosse isso, nunca teria conhecido a tua mãe.
Tal contingência pareceu-me tão incrível que ainda mais alarmado fiquei. Notando quanto eu estava atento, e divertindo-se com isso, Terry recomeçou com ar indiferente e um grande à-vontade.
- Em geral Conor entrava na sala de espera, munido do Winton News, porque o comboio de Caley vinha sempre atrasado. Mas, nessa tarde, encontrou qualquer coisa, ou melhor, encontrou alguém que valia a pena contemplar.
- A Mãe!
- exclamei, tomando fôlego.
- Ainda não era, Laurie. Não te apresses. Nesse momento tratava-se apenas de Grace Wallace, de dezassete anos encantadores.Carregou o cenho, numa expressão de censura. Chegava ali regularmente, com a sua pasta de músicas, para receber o irmão, estudante que regressava no comboio de Caley, vindo do Colégio de Drinton. - Interrompeu-sè e prosseguiu: - Ora o teu futuro pai sempre fora sensível, se me permites que o diga, às raparigas bonitas. Esta, contudo, era diferente. Embora estivesse morto por lhe falar, receava melindrá-la. Uma tarde, porém, levantou-se e dirigiu-lhe a palavra. E nesse instante, Laurie, bradou Terry espectacularmente, olharam um para o outro... e o mal estava feito.
- Que mal ? - murmurei a custo.
- Os pais dela eram presbiterianos ferrenhos e Grace a menina querida do seu progenitor, o qual, para cúmulo, tinha costela escocesa que remontava a William Wallace, se é que já ouviste mencionar este nome. Rapariga adorável, estimada por todos, ajudava a mãe nas lides da casa, cantava como um anjo no coro da igreja e nunca dera um passo em falso.
- Terry abanou a cabeça, condoído. Quando descobriram que ela se enamorara de um irlandês adventício, para mais católico, e irmão de um taberneiro e, ainda, de um padre, não queiras saber o barulho que fizeram. Houve súplicas e lágrimas. Durante semanas tentaram tudo o que é possível a um mortal para os separar. Não deu resultado. No fim, sem uma palavra, e embora Conor nem uma nota de cinco libras possuísse, foram ambos ao Registo Civil. Grace sabia que os parentes nunca mais lhe falariam e Conor sabia que seria banido pelos seus por não casar na igreja; mas não se importaram e casaram.
- Ainda bem, Terry
- exclamei, aliviado, pois escutara a sua narrativa com certo receio.
Terence soltou uma gargalhada.
- Pelo menos tiveram-te como filho legítimo. Por um momento observou-me como se tentasse ler-me no rosto, no qual só havia palidez. Talvez o que me contara não constituísse novidade para mim, pois suspeitava vagamente da situação melindrosa de meus pais. Contudo senti-me repentinamente deprimido e mais ainda pelo facto de Terence tratar com aquela ligeireza um assunto que me afectava tanto.
- Agora já sabes,rematou. - Mas não digas que te falei nisto.
- Não direi, Terry, prometi, com ar entorpecido. Considerava-me menos feliz do que esperara e, para me animar, disse: - Com que então tenho dois tios?
- Três, do nosso lado. Meu pai, que é o teu tio Bernard, de Lochbridge, e o reverendo Simon, de Port Cregan, sem falar do tio Leo, de Winton, embora deste pouco se saiba. - Pôs-se de pé e ajudou-me a fazer o mesmo. - É altura de regressar. Preciso de uma caixa de fósforos, de maneira que paramos na mercearia.
-Vamos a correr.
Partiu veloz, determinado a mostrar-me o seu estilo. Eu não estava com disposição para corridas, mas sen-frffie extremamente combativo para com esse primo tão cheio de talentos. Corri o mais que pude, e tanto que Terry, olhando por cima do ombro, se viu obrigado a perder a compostura a fim de alargar as passadas. Talvez que a torta de maçã e os ovos cozidos o incomodassem, ou talvez que a narração que nos fizera das suas proezas nos desportos de Rockcliff fosse alindada par nma habilidade inata para o exagero. O certo é que mão me venceu; quando alcançámos a mercearia de Gcant eu estava precisamente a seu lado. Depois de tomarmos fôlego, Terence olhou-me pela primeira vez com certo respeito.
- És rápido. Nunca pensei. É claro, não tomei isto a sério.
Enquanto eu ficava do lado de fora, à espera, ele entrou na loja e gastou muito tempo a escolher fósforos. Polly, que o atendia, não parecia desagradada com a sua reaparição nem com o seu gosto exigente quanto a fósforos. Observando através da montra, afigurou-se-me que Terry fazia rir a rapariga. Aquilo era do seu feitio livre, despreocupado. Poderia Terence realmente amar alguém... e deixar abandonado um pobre fedelha como eu? Senti um nó na garganta.
A minha tristeza persistiu todo o percurso até casa, aumentando durante o jantar de galinha, que estava deliciosa e a Mãe preparara, mas que eu mal provei. O Pai, que se achava nos seus dias de melhor disposição, deu mostras de profunda amizade pelo sobrinho e presenteou-o com uma libra, que Terry parecia já esperar e que talvez houvesse sido o objectivo da sua visita. Por fim, acendendo a lâmpada de carboneto da bicicleta, meu primo montou na máquina e partiu para Lochbridge.
Quando ele desapareceu da vista, entrei eu na cozinha.
- Mãe, disse aproximando-me, pode ser que eu não valha muito, mas ao menos sou "desportivista".
- Sim? - retorquiu ela, sem entusiasmo.
- Não sei de que me servirá que sejas isso.
- Mas é uma coisa boa. O Terry disse que era quando tirámos à sorte para ver quem comia a torta de maça.
- Torta de maçã ? - A Mãe voltou-se com as mãos cobertas de espuma de sabão.
- Por isso te faltou apetite para jantar!
- Não, mãe, eu não comi uma só migalha do bolo. Terry comeu-o todo.
- E donde veio essa torta famosa? - A Mãe observava-me agora com atenção.
- Comprei-a e mandei pôr na nossa conta.
- O quê ? Na nossa conta!Ficou estupefacta. Mas o Pai, que estivera a ouvira conversa, interveio:
- Como foi que Terry tirou à sorte?
- Fez tudo correctamente, pai. Combinámos como devia ser. Ele disse: se sair caras ganho eu, se for cunhos tu perdes.
O Pai teve um ataque de riso tão forte e prolongado que lhe provocou tosse.
- Ai, o maroto! - dizia, quase sufocado.
- Bem se vê que é um Carrol.
- Não acho graça nenhuma -> declarou friamente a Mãe.
- Amanhã de manhã falar-te-ei a sério acerca disso, Laurence. Agora vai já para a cama.
Despi-me com lentidão e tristeza.
Aquela tarde, começada tão alegremente, acabara por me trazer amargura. Sentia-me deprimido, com um peso na consciência. Eu não repudiara abertamente a Maggie, a querida Maggie, minha amiga e protectora, e por causa de um primo que me ligava tanta importância como, vamos lá, a uma caixa de fósforos? E, acima de tudo, o mistério que envolvia meus pais e que Terry me desvendara, o isolamento em que nos víamos obrigados a viver, aca-brunhava-me deveras. Escondi a cara no travesseiro e deixei correr as lágrimas.
IV
Nesse ano o Outono veio mais cedo. As folhas da minha árvore preferida, franjadas de ouro e escarlate, haviam começado a desprender-se, tecendo um tapete principesco à porta da forja. Os nevoeiros matinais, arrastando-se do estuário, deixavam cristais de orvalho nas ervas aveludadas dos campos de Snoddie. O ar suave dava uma sensação de mudança e de qualquer coisa intangível que me fazia sonhar com lugares distantes, estranhos reinos desconhecidos onde eu, contudo, achava que podia ter estado em épocas remotas.
Mas eis-nos num domingo, dia que me arrastava a considerações mais práticas quando eu acordava e sentia o cheiro característico de ovos e toucinho frito.
O Pai, por tradição e crença, era o que se pode chamar católico declarado, no que persistia teimosamente, a despeito de certas reservas suas, pouco ortodoxas,como praticante, porém, devia ser classificado de tíbio. Se o sol brilhava ao sétimo dia e o tempo prometia manter-se bom, o Pai alugava o potro e o veículo do fazendeiro Snoddie e ia até S. Patrício, a igreja católica mais próxima, situada em Drinton, a nove milhas de distância. A Mãe, apesar da sua educação evangélica, acompanhava-o de boa vontade, era-lhe tão afeiçoada que, estou persuadido, iria com ele mesmo a um templo hindu, só essa fosse a fé do marido. É claro que me levavam consigo, e eu, como minha mãe, sustinha a respiração perante o amadorismo de meu pai no segurar das rédeas, uma temeridade mal disfarçada com fingída perícia, o que não convencia nenhum de nós e ainda menos o cavalo. Este, com um mover rápido dos cascos quando meu pai dobrava rente uma esquina, virava o pescoço e olhava para ele com indignação e espanto. Às vezes aparecia nas estradas algum raro automóvel, geralmente um Argèle encarnado, vindo de Lochbridge, o qual, passando rápido por nós numa nuvem de poeira, só por milagre nos não atropelava. Então a Mãe, agarrando as abas largas do chapéu, exclamava formalizada:
- Oh, meu Deus, que máquinas horríveis!
- Não, Gracie,replicava o Pai, muito calmo, segurando o cavalo assustadiço - é uma invenção extraordinária. Não desfaças nesses carros que eu ainda hei-de ter um.
- Eles é que nos desfazem, murmurava a Mãe ao meu ouvido.
Mas havia domingos em que o Pai pressentia que Deus não desejava que elé expusesse a família aos azares da estrada. Lendo-lhe no rosto, quando o Pai inspeccionava o céu pardacento e farejava o ar que prometia chuva, percebia que esse domingo seria para mim de grande excitação. E, na verdade, após o almoço, que ele tomava em roupão, o Pai virou-se para a Mãe e disse:
- Talvez, minha filha, devesses fazer umas sanduíches para mim e para o pequeno.
Em geral tratava-a por "minha filha" quando queria a satisfação de qualquer serviço.
Foi ao andar superior e voltou com o seu traje habitual das nossas expedições, fato de golfe, cinzento, amplo, botas fortes, meias altas, capa inteira de borracha com um buraco para enfiar a cabeça e presa ao pescoço com fecho de metal. Saímos, subindo a rua da Estação e atravessámos a aldeia, onde os sinos da igreja paroquial começavam a tanger. Em resposta a este apelo, os "indígenas", como o pai insistia em apoiá-los, dirigiam-se para o templo, numa onda vagarosa e solene, quase todos vestidos de preto e munidos com as suas Bíblias.
- Escaravelhos negros! - Tal foi a exclamação proferida a meu lado.
Tenho a certeza de que o Pai escolhera de propósito esse momento para, como católico intruso, mostrar o seu público desdém pelas convenções do rito escocês. Era a sua maneira de desafiar os preconceitos da aldeia que circulavam em nosso desfavor. Hoje em dia, quando um liberalismo esclarecido procura promover a unidade das igrejas, é difícil conceber a má vontade que noutros tempos se levantava contra os católicos, em especial os irlandeses, no Oeste da Escócia. Esses descendentes de indesejáveis refugiados famélicos, muitos dos quais não tinham ainda conseguido elevar-se acima do nível da classe operária, eram sempre designados por "desprezíveis Irlandeses" e execrados por todos, tanto por causa da sua nacionalidade como da sua religião, a que se referiam em termos tais como: "Meretriz Romana, Bebedora do Cálix da Abominação, Prostituta Sentada sobre as Sete Colinas do Pecado". Eu próprio tremera ao soletrar a notícia de um sermão que seria pregado na igreja paroquial da aldeia, com este tema: "Roma, o Assento da Besta, segundo o Apocalipse, 18-19."
Mas o temperamento do Pai, muito diferente do meu, era combativo; divertia-o provocar os olhares indignados e os lábios franzidos e o não ligar importância à reprovação geral que a nossa aparição suscitava. Naquele dia, como de costume, cortou a aldeia a passo elástico, quase garboso, de cabeça erguida, ar distante e um sorriso desdenhoso nos lábios, que ele de vez em quando comprimia simulando assobiar. Para mim, trotando a seu lado e temendo algum desaire, a provação era torturante, somente aliviada um pouco pelos olhares invejosos e disfarçados dos outros rapazes para quem o domingo era uma penitência, preenchida com duas horas de sermão, um dia de tédio excruciante em que o simples levantar da voz constituía uma profanação, o rir representava um crime, e a passagem do comboio ronceiro (conhecido como "rebenta-domingos" por desafiar a santidade do dia) significava um exemplo publicamente proclamado do mal que estava levando o mundo à perdição.
Comecei a respirar mais à vontade quando atingimos o último marco da aldeia, a serração de Macintyre, e chegámos ao campo raso. Aí, passámos pela entrada da propriedade de Meikle, portão nobre com altas colunas, cada qual sobrepujada de uma águia de bronze e ladeada de dois cubelos iguais de pedra, no estilo grandioso do país. A alameda subia serpeando, entre rododendros através do parque, aparentemente até ao infinito. A vista desta quinta magnífica e privilegiada já me causara um tremor preliminar, que se intensificou quando o pai, a uns duzentos passos abaixo da estrada real, lançou um olhar cauteloso derredor e, fazendo-me sinal para que o seguisse, se introduziu por uma abertura da sebe. Encontrávamo-nos agora nos terrenos arborizados, rigorosamente defesos, de Lady Barba de Baleia. Eu tremia só a este pensamento. O Pai, todavia, imperturbável sempre, seguiu o seu caminho sob as faias (cujos frutos nos estalavam debaixo das botas) e conduziu-me a uma encosta coberta de fetos. Depois, circundou uma plantação de pinheirinhos novos e penetrou numa mata mais cerrada, cheia de árvores grandes e pequenas, que murmuravam ao som de água corrente. Era o rio Gielston, estritamente reservado, notável pela abundância das suas trutas.
Chegado à margem do rio, logo abaixo das quedas de água, a primeira coisa que o Pai fez foi tirar de sob a capa um saco de lona e armar as várias secções da cana de pesca. Ajustado o molinete e enfiada a linha, começou por atirá-la à parte espumante do cimo do poço. Em pequeno, quando vivíamos perto das margens do Loch Lomond, pescara entusiasmado em todos os arroios que alimentam o lago, e agora, enquanto eu observava atento e me era permitido pegar uma vez por utra na cana, comunicava-me também aquele mesmo dor.
Gostaria de enaltecer as qualidades piscatórias, do ai, contar que ele usava plumas ou, pelo menos, mostrar as verdadeiras. Mas não era assim. Pescava com minhocas, que Maggie procurara na quinta e que eu ia apanhando, fervilhantes e escorregadias, de uma lata de cacau que trazia no bolso. O objectivo do Pai era apanhar peixe, e ele seguia o mesmo sistema que utilizara na juventude. Nesse dia, porém, dir-se-ia que não estávamos com sorte.
- Nem sequer mordem o isco, exclamou, maçado, mas sem se dar por vencido. - Contudo, aqui, deve haver trutas... Deixemos a linha na água e vamos almoçar.
As sanduíches da mãe eram sempre boas, em especial de tomate. Sentámo-nos numa pequena clareira, debaixo de um vidoeiro, que espalhava suave claridade de verde prateado. O rio esparrinhava e cintilava através das ervas altas e dos caniços. O rumor das árvores incutia-nos uma sensação assustadora de isolamento. De tempos a tempos a voz de gaio, manifestando-se de súbito, fazia-me estremecer. Como em todas as nossas excursões eu tinha um medo horrível de que o couteiro os apanhasse, ou, pior ainda, que surgisse a dona da propriedade, aquela mulherzinha que troçara de mim o meu primeiro dia de escola e a quem, no íntimo, eu designava apenas, e com ódio, pelo pronome de ela. Era o pensamento que me estragava a alegria. O Pai, vez de propósito, para me experimentar, fingia de vez em quando alarmar-se. "Caluda! Aí vem ela!", o que e causava calafrios, enquanto ele abanava a cabeça, como se a escarnecer das minhas aflições.
Terminado o nosso piquenique, o Pai estendeu-se, com mãos por baixo da cabeça e o chapéu desabado sobre olhos. Tinha o olhar levemente amortecido, que pronunciava a sesta, o que me foi confirmado quando lhe vi estas palavras:
- Vai apanhar framboesas.
As framboesas cresciam silvestres por toda a parte da mata. Não havia necessidade de ir muito longe, tínhamo-las ali à mão em grande quantidade. Logo que me encontrei entre o enredado da vegetação, escondido e seguro, despertou em mim o espírito de aventura. Já não era o fedelho, como me considerava o Terry, mas transformara-me, de repente, no herói das histórias de meu pai. Colhendo framboesas maduras, besuntando as mãos e a cara com o suco avermelhado, senti-me numa ilha deserta, numa floresta virgem, matando a fome e extinguindo a sede ardente no oásis, para onde fora levado ao dorso de um camelo.
De súbito, uma série de ruídos, como de chafurdar na água, levou-me a correr para o lado do Pai. Estava este de pé, na margem do rio, tenso no esforço que fazia de segurar com ambas as mãos a cana incrivelmente curvada em arco, enquanto um peixe enorme se debatia furioso à superfície líquida, torcendo-se e mergulhando, saltando no ar e tornando a cair com um chape retumbante.
A luta demorou minutos intermináveis. A água refervia e eu experimentava uma angústia imensa, com medo de que a vítima nos escapasse. Por fim, lentamente, o ambicionado peixe cedeu, esgotado e vencido, doirado pela turfa em que embatera, e o pai, com um puxão rápido mas delicado, lançou-o na vertente pedregosa.
- Que beleza! - exclamei.
- Uma linda truta!
- replicou o Pai. Também ele respirava com dificuldade.
- Pesa pelo menos cinco libras.
Depois de nos acalmarmos, e de ter admirado o troféu em todos os aspectos, o Pai resolveu que já chegava por aquele dia, tanto mais que o sol agora vencera as nuvens. Mas o que ele estava era morto por mostrar o peixe à Mãe, que muitas vezes troçava do tamanho da nossa pescaria. Abaixou-se, passou uma corda rija através das guelras da truta, ergueu o peixe até à altura do cinto e ali o amarrou fortemente.
- Olhos não vêem, coração não pena - observou risonho, pondo a capa. - Vamo-nos embora, Laurie. - Não, por aí não...
O Pai, encantado com o seu êxito, achava-se na melhor disposição. Com o peixe oculto sob a capa embaraçosa mas necessária, ele decidira, como percebi, evitar o longo desvio pela mata. Sem fazer caso dos meus protestos, declarou que íamos tomar o caminho mais curto, pelos campos, depois de atravessar o passeio principal subjacente à casa. Limitei-me, pois, a segui-lo.
- Tarde de domingo - murmurou,tranquilizando--me, quando nos aproximávamos dos arbustos que ladeavam a rua. - Não há vivalma por aqui.
- Mas olhe! - bradei, apontando para o estandarte com o leão que flutuava sobre a residência. Içaram a bandeira. Ela está lá.
- Naturalmente deitou-se a dormir depois do jantar.
Mal havia pronunciado estas palavras quando, emergindo de trás de um grupo de rododendros, quase esbarrávamos com um vulto baixo e rechonchudo, vestido de cassa leve, o qual, debaixo da sombrinha guarnecida de rendas, nos fitava com indignada surpresa. Eu, por um pouco, desmaiava. Era ela. Quis ser audacioso, mas as pernas recusaram-se-me a obedecer. O Pai, por seu lado, após o sobressalto involuntário e uma perda momentânea da cor das faces, tratava de disfarçar a sua perturbação. Tirou o chapéu e cumprimentou.
- Minha senhora... - Fez uma pausa e tossiu docilmente. Compreendi que dava tratos à imaginação para nos livrar do percalço. - Espero que não considere isto como um abuso. Se me permite explicar...
- Decerto - replicou, misturando a suspeita com o manifesto desagrado. - Que faz na minha propriedade? Fale.
- Com todo o gosto, declarou o Pai, um pouco ao acaso. Então, com extraordinária perícia manual, e sem desfazer as. dobras da capa, exibiu um dos seus cartões comerciais, que tirara do bolso interior do casaco.
- Dê-me licença que me apresente - acrescentou, delicado e insinuante, impingindo o bilhete à desconfiada senhora, que teimava em não o aceitar. - A verdade é que o meu sócio, Mynheer Hagemann, de Roterdão... está aqui o nome dele, neste bilhete... se interessa pela floricultura. É holandês,e,como sabe, todos os holandeses são jardineiros.Ao conversarmos há dias, aconteceu mencionar-lhe a sua famosa colecção de orquídeas, minha senhora...e ele pediu...insistiu mesmo que lhe arranjasse uma autorização. Tencionava vir a Winton no próximo mês. E assim, se quisesse ter a bondade...
Calou-se. Houve um silêncio. Os olhos de Lady Barba de Baleia, passando de meu pai para mim, fitaram-me demoradamente e eu compreendi que fora reconhecido. Por fim ela pôs as lunetas, que trazia suspensas ao pescoço por um fio de ouro, e examinou o bilhete.
- Real Fermento Holandês de Hagemann. - De novo os seus olhos me procuraram. - Intimamente ligado àquilo que é o esteio da nossa vida...
- Sim, minha senhora - redarguiu o Pai, com a modéstia e a segurança de quem conduzira a sua causa a bom termo. Ali de pé, quase satisfeito, não tinha consciência das misteriosas gotas de água que lhe escorriam para o chão, onde formavam já um charco razoável, mesmo a seus pés. Eu sentia-me desolado. Teria ela visto? E que iria fazer, nesse caso?
- Com que então o seu sócio interessa-se por orquídeas... - Meditou um instante. - Pensei que os holandeses só cultivavam túlipas.
- Decerto, túlipas, minha senhora. Campos cheios delas. Mas também orquídeas.
Fiquei esperançado quando vi nos lábios de Lady Meike a sombra de um sorriso. Infelizmente era ilusão.
- Venha daí - disse ela em tom categórico. Mostrar-lhe-ei a minha colecção e pode depois descrevê-la ao seu caprichoso Mynheer.
- Contudo, minha senhora, era só uma autorização... protestou o Pai. - Não queremos incomodá-la num domingo.
- É o melhor dia, meu caro senhor, realmente o melhor. Quero ver como ambos reagirão perante as minhas orquídeas.
- Pela primeira vez, o Pai pareceu desanimado, e ficou mudo. No entanto, não havia outra alternativa. A dama levou-nos pela alameda, depois pelo terraço fronteiro à residência imponente, até que chegámos à estufa, grande construção de vidro, de estilo vitoriano, com uma armação de ferro pintado de branco e anexa à ala mais afastada da casa. Entrámos nesse palácio de cristal através de uma dupla porta de vidro, que a dona fechou atrás de nós, e, saudados por um bafejo de ar húmido, achámo-nos imediatamente nos trópicos. Erguiam-se palmeiras até ao teoto alto, de mistura com fetos arbóreos, que estendiam a copa enorme muito acima da minha cabeça; bananeiras com cachos de frutos em miniatura; estranhas trepadeiras enroscadas; iúcas espinhosas; nenúfares do tamanho de bandejas, flutuando num tanque; tufos de plantas luxuriantes, de que eu nem podia adivinhar o nome; e, no meio de tudo isto, de tons singulares, cintilando como aves exóticas, estavam as orquídeas.
- No meu estado normal sentir-me-ia arrebatado por essa grandiosa materialização de tantos dos meus sonhos. Mas, mesmo assim, a minha inquietação ficou meio esquecida. Eu olhava pasmado, seguindo lentamente a nossa guia, a qual, divagando de uma forma que não era de todo desagradável, apresentava os seus espécimes a meu Pai. Havia ali calor, muito calor. Eu já começava a transpirar. Por toda a parte se viam tubos donde se elevava vapor, e pareceu-me que o Pai era obrigado a parar, examinar e escutar sempre que se aproximava mais dos tubos. Olhando directamente para ele, pela primeira vez desde que entrámos, compreendi que estava aflito por causa do seu fato pesado de lã. Escorriam-Ihe grossas gotas de suor pelo rosto, que, embora ainda não tivesse a cor dos tomates que a Mãe pusera nas sanduíches, adquirira no entanto o tom do ruibarbo cozido.
- Talvez esteja aqui um pouco abafado. Por que não tira a sua capa?
- Muito obrigado, minha senhora - respondeu apressadamente o Pai. - Não me sinto mal assim. Até gosto do ar quente.
- Então depare nesta cataleia tão rara. Pode ver de mais perto, se se inclinar sobre os tubos.
Ao contrário das outras orquídeas, cujo aroma me passara despercebido, aquela cataleia tinha um odor muito especial. Cheirava, em suma, quando o Pai se inclinou, a peixe...
Novo terror me dominou. A nossa truta, habituada às águas frígidas do oceano, não se adaptava de bom grado a esse clima equatorial.
- Linda... belíssima... - O Pai já nem sabia o que estava a dizer, enquanto disfarçadamente limpava a testa encharcada, com as costas da mão.
- Meu caro senhor - disse, muito solícita, o nosso algoz de saias - está positivamente a transpirar. Insisto em que tire essa capa tão pesada.
- Não... não vale a pena - respondeu o Pai em voz sufocada. - Estamos muito gratos, mas... um compromisso importante... já é tarde... temos de nos retirar...
- Que disparate! Nem pense nisso. Ainda não viu senão metade dos meus tesouros.
E enquanto a nossa temperatura subia e aumentavam as emanações ardentes, a terrível mulherzinha fez-nos completar o lento e sufocante circuito da estufa, forçando-nos ainda a trepar a escada de ferro pintada de branco que se elevava em caracol até ao tecto onde, intensificado pela sua ascensão, o calor mortal produzia uma miragem em que o panorama que fôramos induzidos a apreciar assumia o aspecto de um mar verde e túrgido com frias ondas tentadoras, nas quais o Pai, pelo menos, de boa vontade mergulharia. Por fim, ela abriu a porta envidraçada e, enquanto parávamos exaustos no abençoado ar livre, dirigiu, primeiro a mim e depois a meu pai, um sorriso de certo modo amável.
- Não se esqueça de transmitir os meus cumprimentos ao seu amigo holandês - disse quase com benevolência.
- E, por esta vez, pode ficar com o peixe.
O Pai desceu em profundo silêncio toda a alameda. Nem me atrevia a olhar para ele. Como devia ser terrível a sua humilhação, o enorme vexame de um homem que, até aí, eu julgara capaz de vencer tudo e se via agora na mais embaraçosa e aflitiva das situações! De súbito, estremeci. O Pai estava a rir; sim, ria a bom rir, às gargalhadas. Pensei que nunca mais acabaria. Vol-tando-se para mim, com um olhar de cumplicidade, deu-me uma palmada nas costas.
- A velhota levou a melhor! Palavra que fiquei a gostar dela!
Com estas poucas palavras se recompôs. A minha fé nele havia-se restaurado. 0 Pai era sempre assim; tinha a habilidade de transformar a derrota em vitória. Mas, um pouco antes de chegarmos a casa, pôs um. dedo nos lábios e piscou-me o olho esquerdo.
- Apesar de tudo, não se diz nada à tua mãe.
V
Fiz as pazes com Maggie, acto de reparação pelo qual mais tarde abençoei minha mãe.
Consultando-a sobre os meios mais apropriados para a reconciliação, sugeriu-me que despendesse o meu dinheiro semanal na compra de qualquer coisa que fosse mais do agrado da minha atraiçoada amiga. Por conseguinte gastei, na loja de Luckie Grant, metade dessa quantia em rebuçados e a outra metade em bonecos de decalcar, e levei esses presentes a casa de Maggie, situada no outro lado da linha férrea.
Encontrei-a sentada junto de um fogo mortiço, na cozinha pequena, escura e lajeada, que cheirava a água de lavagens. Estava com uma inflamação de garganta e tinha em volta do pescoço uma meia de lá presa com alfinete de ama. Talvez por causa disso, recebeu-me com gentileza, e tão grande que não pude conter e chorei de remorso. Por esta fraqueza, Maggie admoestou-me em tom brando, com palavras que ainda tenho nos ouvidos:
- Oh, Laurie, está cada vez mais chorão! Tem o saquinho das lágrimas sempre pronto.
A mãe de Maggie saíra, o que me deu grande alívio, não só porque importunava de contínuo a filha
mas também porque, chamando-me embora "querido" e outras expressões que eu sabia serem falsas, pretendia tirar nabos da púcara em relação às coisas da minha casa, pois fazia perguntas insidiosas, tais como: se os meus pais viviam em boa harmonia, quanto pagara o Pai pelo chapéu novo da Mãe, e por que motivo comíamos peixe à sexta-feira.
Toda a tarde eu e Maggie ficámos sentados à mesa da cozinha, entregues à decalcomania e a chupar rebuçados. Para festejar a nossa amizade restabelecida, dei-lhe uma medalhinha que afirmei ser capaz de lhe curar a doença de garganta, era um S. Cristóvão de prata, do tamanho e forma de uma moeda de meio xelim, mas não me atrevi a invocar a qualidade religiosa da oferta e aleguei ser apenas um amuleto. Maggie, que apreciava objectos desse género, gostou bastante e, quando nos separámos, repetidamente me declarou que íamos de novo ser amigos.
Apesar disto, não a tornei a ver muitas vezes nesse Inverno. A minha pobre amiga nunoa tinha momentos disponíveis. Entretanto, quando fazia em casa os meus exercícios escolares, fiquei ciente, escutando com um ouvido a conversa de meus pais, que estavam a preparar boas coisas para Maggie e para a melhoria da sua situação.
Desde que vivíamos com mais desafogo, o Pai insistia com a Mãe para que tivesse uma pessoa que a ajudasse na lida caseira. Nunca gostara de a ver esfregar ou varrer, embora deva confessar que raramente se oferecia para a auxiliar nesses serviços. A Mãe, creio-o firmemente, sentia prazer no trabalho e gozava a satisfação de possuir um lar ordenado, limpo, reluzente. Tinha o que os Escoceses chamam orgulho na casa, e eu lembro-me bem de como, nessas dias em que ela lavava a cozinha e as prateleiras dos armários, eu tirava os sapatos e, em peúgas, passava sobre jornais espalhados no chão. Por isso ela punha objecções à sugestão do Pai, mas por fim duas circunstâncias a induziram a mudar de ideias: o piano novo, que lhe exigia maior cuidado na conservação das mãos, e Maggie, agora com catorze anos e que deixava a escola no fim do mês.
A Mãe era de coração sensível. Tinha pena de Maggie, a quem se afeiçoara. Fez uma proposta ao Pai, que imediatamente a aceitou e da qual me tornei instrumento quando a Mãe me ordenou:
- Laurie, se vires a Maggie diz-lhe que desejo falar com a mãe dela.
No dia seguinte, quando à hora do almoço Maggie se deteve à nossa porta a fim de prevenir que a sua progenitora viria no sábado à noite, minha mãe aproveitou a ocasião para a sondar. Não assisti à entrevista, mas a expressão da rapariga, à partida, era de orgulho e felicidade. E quando, à tarde, a vi na escola, apresentava um ar diferente, importante, superior, enquanto, interrompendo-se apenas para me dirigir um sorriso, confidenciava às outras pequenas da sua classe que, livre da tirania das eternas vasilhas de leite, ia ser nossa criada, ter o seu quartinho, um vestido novo e um bom ordenado.
O outro dia foi sábado. De tarde, conforme era costume todas as semanas, a Mae envergou o seu fato cor de peito-de-rola, e, levando-me pela mão, encaminhou-se para a aldeia, com aqueles modos francos e amigáveis que invariavelmente assumia em tais circunstâncias e que em nada se pareciam com os que o marido afectava. A atitude do Pai em público era na verdade indesculpável. Penso que fora desconsiderado, de qualquer forma desconhecida para mim, nos seus primeiros tempos, em Rosebank, e os insultos não os esquecia facilmente. A Mãe, pelo contrário, mostrava-se amável para todos, perdoava tudo, procurava granjear amizades, e queria sempre aplanar a susceptibilidade do marido, desfazer preconceitos e acabar com situações hostis. Essas saídas ao sábado, embora ostensivamente para fazer compras, tinham outro objectivo, e durante o nosso passeio, enquanto correspondia prontamente às saudações dos seus poucos conhecidos, a Mãe, respirando uma atmosfera de bons sentimentos, mantinha comigo animada conversa acerca de todos os assuntos e dava assim ao povo da aldeia uma forte impressão dos nossos instintos sociais.
Na referida tarde, gastou meia hora agradável na loja de Miss Todd, escolhendo um vestido escuro e também um par de meias e sapatos para Maggie. Depois, conversou com Polly Grant, que nunca deixava de perguntar pelo meu primo Terence, e, ao sair da mercearia, recebeu um cumprimento da senhora Duthie, mulher do médico. As coisas iam correndo bem. Mas não ficou por aqui. Quando regressávamos a casa, encontrámos Rankin, que atravessou a rua com dificuldade para nos vir falar.
- Tem um momento disponível, senhora Carroll? A Mãe, naturalmente, dispunha de tantos momentos quantos fossem precisos. Rankin, solteirão, era sempre tímido perante as mulheres. Respirou fundo, o que percebi ser o prelúdio de um longo discurso tão cheio de gaguez como aquela que,sem dúvida, o prejudicara na oratória sagrada.
- Tem um filho brilhante, minha senhora. Algumas das suas redacções são notáveis. Leio-as a toda a classe. Mas não é disso que pretendo agora falar-lhe. Trata-se do seguinte. Lady Meikle está a organizar um concerto de caridade, em benefício do Asilo das Crianças, que deverá efectuar-se no dia cinco do próximo mês, e eu lembrei-me... nós lembrámo-nos de que talvez a senhora acedesse a tocar um solo de piano. Eu... nós ficaríamos muito honrados e gratos se nos desse a sua colaboração.
Olhei para minha mãe. Corava até à raiz dos cabelos e, por momentos, não soube que responder.
- Oh, mãe, diga que sim! - exclamei. - Sabe tocar tão bem!
- Aceito o convite - proferiu ela vagarosamente. - Tocarei.
No trajecto para casa, a Mãe, em geral tão faladora, guardou silêncio completo. Contudo, pelo seu próprio mutismo, compreendi quanto se sentia contente por essa prova de estima há tanto tempo esperada.
O Pai estava na cozinha a preparar uma infusão de ervas. A sua constipação não desaparecera inteiramente e ele resolvera medicar-se a si mesmo. Parecia abatido, numa disposição muito longe de ser favorável. Quando a Mãe revelou a grande novidade, ele olhou-a com fixidez. Palpitou-me que repeliria esse precioso convite, para se desforrar da gente da terra.
- Naturalmente mandaste-os à fava.
- Não, Conor. - A Mãe abanou a cabeça com ar decidido. - É uma coisa agradável. Significa que estão, enfim, a aceitar-nos.
- Vieram ter contigo porque precisam de ti.
Mas a Mãe já sabia que ele ia objectar e estava resolvida a levar a sua avante. Contradisse todos os argumentos, discutiu e, por fim, o Pai não só concordou como se mostrou ufano com a ideia. Compreendendo que Lady Meikle estava "por trás daquilo", sentiu-se inclinado (como velho conquistador) a atribuir o convite à influência que tinha sobre a dama em resultado daquele memorável encontro.
- Como vês, filho - disse-me com ar de cumplicidade - ela não nos esqueceu.
Esse olhar jocoso do Pai foi como um selo aposto aos novos moldes da nossa existência. Estávamos a progredir na sociedade. 0 Pai prosperava, a Mãe ia tocar no concerto, eu fora elogiado pelo meu professor, por causa das redacções semanais, e, para coroar tudo, o povo da aldeia começava a gostar de nós. Que feliz eu era e que belo futuro se me deparava ao longe!
Nessa noite, quando estávamos sentados junto do lume, cada qual ocupado à sua maneira, retiniu a sineta da porta. Era um som raro. Ergui a vista da Enciclopédia Pears, perguntando a mim mesmo, um tanto alarmado, quem viria tomar de assalto a nossa pequena fortaleza. Mas a Mãe, continuando a fazer malha tranquilamente, limitou-se a dizer:
- Deve ser a mãe da Maggie. Vai abrir, Laurie, e manda-a entrar.
Fui à porta e voltei daí a instantes.
- Ela diz que não entra.
A Mãe pareceu surpreendida. Todavia, envolvendo o seu trabalho de malha, em que espetou as agulhas, levantou-se imediatamente. Segui-a até meio caminho da porta. Já eu suspeitava de que nem tudo corria bem; entretanto não esperava a violência nem a malignidade do ataque.
- A senhora não terá a minha Maggie! A Mãe pareceu desconcertada.
- Se é questão de um pouco mais de dinheiro... estou pronta a...
- Nem com todo o dinheiro comprará a minha Maggie.
Estaria embriagada? Não. Espreitando através do escuro, vi um rosto de possessa, contorcido pela raiva e pela aversão. Não tentarei reproduzir os insultos estúpidos e maldosos que lançou sobre a Mãe. Quando pela primeira vez considerei esta fase da minha infância, empenhei-me em não dizer mal de ninguém. A mãe de Maggie, porém, era uma criatura tão corroída pelo infortúnio que se sustentava só de ódios: Maggie sempre fora a sua escrava, a válvula de descarga das suas invejas, o testemunho vivo do seu mau tratamento. Não admitia a ideia de que ela se escapasse para uma existência mais feliz e mais confortável. Minha mãe tremia sob um novo chorrilho de ofensas, no meio das quais, após as palavras "a senhora e as suas medalhinhas papistas", eu vi que ela atirava qualquer coisa para o chão, um pequeno disco de prata que veio rolando até aos meus pés: o amuleto que eu oferecera a Maggie. Ao apanhá-lo, descobri a presença do Pai, que se aproximara silenciosamente, segurando ainda o Herald
- o que, de certo modo, lhe amplificava o ar de calma estudada.
- Boa mulher. - Falava com moderação, sem rancor.
- Vossemecê já disse bastante. Todos aqui gostamos muito da sua filha. Tudo quanto fizemos ou nos propusemos fazer foi com a melhor das intenções. Mas, já que tão claramente manifesta desagrado e desconfiança, não temos remédio senão conformarmo-nos com os seus desejos. E agora faça favor de se ir embora.
Ficou calada. Esperava invectivas e preparava-se para isso, não para ouvir a nossa digna resignação. Antes de ela voltar a si do espanto, o Pai fechou a porta com toda a serenidade.
Como eu o admirei naquela ocasião! Sabia-o capaz de grandes rompantes, de ostentações contundentes e desdenhosas e afinal vi-o reduzir o incidente a uma discussão vulgar. Nós mesmos, sem razão, ficámos silenciosos o resto da noite. Por causa da Mãe, o Pai estava evidentemente irritado, e até acendeu um cigarro: não era fumador, por falta de propensão para isso, ou talvez porque se orgulhava da brancura dos dentes e não quisesse maculá-la, mas em certos e raros momentos de contensão recorria ao tabaco. E agora, soprando baforadas com a inexperiência de um principiante, semicerrava um olho para evitar que o fumo o molestasse e arregalava o outro para minha mãe, desejoso de a serenar,tanto a ela como a si mesmo.
No dia seguinte, na escola, a notícia da situação de Maggie havia já atingido a cerca do recreio, e eu pude observar que atormentavam a rapariga. Maggie, no entanto, embora desanimada, conseguiu resistir e ripostava como lhe era possível. Depois das lições, esperou por mim e, pegando-me na mão, desceu comigo a rua.
- Apesar de tudo, continuamos amigos, Laurie. E qualquer dia hei-de trabalhar para a sua mãe.
Mas a Mãe estava ainda transtornada. Não tinha ânimo de se treinar para o concerto. Na noite, porém, do último dia do mês, após haver feito a ceia, sentou-se ao piano enquanto esperava pelo regresso do marido. Eu achava-me no meu posto, à janela, tão mergulhado, contudo, em pensamentos que o apito do comboio me pareceu soar de outro mundo. A pouco e pouco tomei consciência de que o Pai já vinha há muito tempo da estação, a caminho de casa, e por fim ouvi o estalo familiar da porta. A Mãe foi logo ao seu encontro. Lá fora era quase noite. De súbito, através da janela, descobri dois homens que desciam devagar a rua. Cheguei-me à vidraça, que limpei depois de a bafejar com o hálito, e conheci o carregador Jim e o sinaleiro que trabalhava na passagem de nível. Passavam agora defronte da nossa residência, sem pressa, atrás um do outro, de cabeça pendida, transportando não sei quê. Parecia uma tábua comprida, tapada com um cobertor. A princípio não compreendi, mas foi tão sinistra a impressão recebida daquela coisa alongada e do passo cadenciado dos homens que a seguravam que de repente experimentei um medo terrível. Corri ao Pai, que se encontrava no vestíbulo, com a Mãe, e não tirara o chapéu nem o sobretudo; o rosto apresentava-se lívido, e, numa voz que mal reconheci, ele dizia à mulher:
- Devia ter enfiado o pé nas agulhas. O comboio vinha devagar. Grace - acrescentou, quase sufocado da comoção - se a visses, quando a levantámos!
A Mãe, soltando um grito lancinante, tapou a cara com as mãos.
Mudo de horror, não avaliei imediatamente a minha mágoa: percebi apenas que Maggie se libertara para sempre das suas vasilhas de leite.
VI
Quão triste e confuso, e sobretudo, imprevisto foi o período que se seguiu! Mesmo agora, ao evocá-lo, ainda não consigo rever aquilo tudo sem sentir imensa dor. Ninguém, evidentemente, poderia censurar minha mãe pela morte da Maggie. Naquela mesma noite o Pai voltou à passagem de nível munido de uma lanterna da própria estação e descobriu, entalado no carril, o salto desprendido de uma bota de Maggie. A minha desgraçada amiga ficara ali presa e fizera, sem dúvida, esforços desesperados para se libertar. No inquérito, o delegado do procurador declarou que, se Maggie tivesse querido suicidar-se, não meteria ali cuidadosamente o pé para depois tentar tirá-lo. E eu sabia muito bem, pelas derradeiras palavras tão esperançosas da rapariga, que não havia nela nenhuma intenção de se matar. No entanto, apesar da evidência, a certeza do acidente foi rejeitada pela gente da aldeia em favor da pior alternativa, e Maggie, exaltada na imaginação popular pelo horror da tragédia, tornou-se uma mártir de cujo sacrifício nós é que teríamos a culpa. O tema foi glosado com variações. 0 Pai, relatando amargamente o último falatório, não nos poupou também. Se não houvéssemos interferido entre uma mãe ciosa e a sua filha única.
Fazendo-lhe falsas promessas e dando-lhe esperanças ilusórias, se ao menos tivéssemos deixado a pobre pequena em paz, ela ainda estaria viva e feliz. E que necessidade tínhamos nós de uma criada?
A Mãe, que não saía de casa há vários dias e que nessa altura nem lhe apetecia jantar, uniu as mãos, suplicante.
- Temos de nos ir embora, Conor.
- Ir embora? - O Pai parou de comer.
- Sim. Sair desta malfadada Ardencaple. Foi sempre o teu desejo.
- O quê! - O Pai ergueu as sobrancelhas, de forma assustadora. - Partir! Fugir como um coelho! Quem pensas que sou? Ardencaple não tem nada de mau em si mesma. Gosto desta terra. Agora, principalmente, nada me faria sair daqui. Além disso... - Falava devagar, acentuando bem as palavras. - Não te esqueças de que te comprometeste a tocar no concerto.
- Não irei a concerto nenhum! - exclamou a Mãe, arrepiada só a essa ideia.
- Vais, sim, Grace.
- Não, não tenho coragem.
- É teu dever.
- Não serei capaz. Desisto.
- Não podes desistir.
- Oh, Conor, estar ali sozinha perante toda essa gente!
- Não estarás EÓ. Estarei contigo. E também o Laurence. Deves compreender, acrescentou ele, olhando-a com severidade, que a tua não comparência será considerada um reconhecimento de culpa. Ora nós não somos culpados do acidente que provocou a morte da Maggie. Temos, portanto de ir, para nossa defesa e para mostrar que não ligamos importância ao que se diz.
Já eu estremecia à perspectiva que de longe me estendia os braços gelados. Entretanto, tal como minha mãe, fiquei consternado diante do olhar calmo e resoluto do Pai.
- Verás - disse ele, como se falasse consigo mesmo.
- Sim... verás.
Na tarde do concerto o Pai veio para casa noutro comboio mais cedo. Debaixo do braço trazia uma caixa comprida de papelão, cujo conteúdo só me foi revelado quando, às seis e meia, a Mãe saiu do seu quarto e desceu lentamente a escada, quase contra vontade. Vinha muito pálida, mas linda, com um vestido novo de seda azul, decotado e de longa saia pregueada.
- Óptimo, declarou o Pai em tom categórico, depois de a examinar com olhar crítico. Exactamente da cor dos teus olhos.
- É muito bonito, disse a Mãe com voz sumida, e devia ter-te custado um dinheirão. Mas... oh, sinto-me tão nervosa!
- Isso passa, volveu o Pai, com o mesmo ar peremptório.
Então, para meu espanto (pois nunca vira semelhante coisa lá em casa e sabia que meu pai tinha em tal grau a virtude da temperança que raras vezes ia além de uma cerveja, na roda dos seus clientes), exibiu uma garrafa que ostentava o seguinte rótulo, Conhaque Três Estrelas de Martell. Cuidadosamente, como se doseasse um remédio, deitou determinada porção num copo, acrescentou um pouco de soda do sifão, e por fim entregou à mãe a bebida assim preparada.
- Não, Conor, não.
- Toma, insistiu meu pai, implacável.Isto dar-te-á coragem.
Enquanto a Mãe hesitava, ouviu-se o barulho de cavalos e o rodar de uma carruagem aproximando-se da nossa porta. Tremendo àquele som, ela agarrou no copo e, enquanto eu a observava, de olhos arregalados, esvaziou-o de um trago, o que a fez sufocar.
A escuridão dentro do cupé proporcionou-nos alívio temporário. Sentei-me no extremo do banco, muito im-pertigado por causa do colarinho de goma e do meu fato de ver a Deus. O Pai envergava também o melhor traje; quanto ao bigode, frisara-o e virara-lhé as pontas para cima, dando-lhe um ar aguerrido. Ao menos apresentávamos uma frente combativa, para ò que desse e viesse.
De súbito, quando o clarão vermelho da forja iluminou o interior do veículo, vi a Mãe estender o braço e agarrar na mão do Pai.
- Agora não tenho medo, Con. Sinto-me cheia de coragem, e sei que vou tocar o melhor que puder.
O Pai riu-se baixinho, o que me causou espanto.
- Eu não te dizia?
- Sim, meu querido. - A voz da Mãe tinha uma entoação estranha. - No entanto... gostava que me beijasses.
Estaria ela também louca? Para minha vergonha e horror, sem se importarem comigo nem com a possibilidade de serem vistos da rua, beijaram-se e em seguida a Mãe soltou um longo suspiro de consolação.
Foi um alívio vê-la desaparecer, bem disposta, pela porta lateral, a dos artistas, enquanto eu e o Pai virávamos para a entrada principal. O átrio estava cheio, e já havia gente nos lugares do fundo da sala, os da frente tinham sido reservados para as pessoas de família dos executantes. Para aí avançou o Pai, de cabeça erguida, e de tal modo que, perfeitamente visível aos outros, ele não se dignava ver ninguém. Contudo, a despeito dessa atitude estratégica, sempre acabou por dar conta da multidão (composta na maior parte de rapazes), porque me disse ao ouvido:-São estranhos, de Levenford... Vai haver sarilho. nossa entrada foi a tempo. Mal acabávamos de ocupar os nossos lugares quando o espectáculo teve início. Lady Meikle, chegando azafamada ao palco, fez um discurso breve, em que indicou os fins do concerto e pediu à assistência que fosse benévola com os artistas.
- Estas boas pessoas, concluiu, colaboram gratuitamente no recital, a favor de uma obra de beneficência. Que as acolham bem a todas, sem excepção.
A estas palavras, proferidas com ênfase, o Pai Ian-çou-me um olhar de satisfação e murmurou:
- Aquilo foi connosco. Ela sem dúvida me lobrigou. Tudo há-de correr bem, verás.
Infelizmente, enquanto o pedido de Lady Meikle era recebido com frieza por um sector do público, outro soltava aplausos exagerados; e, quando ela se retirou, alguém fez rebentar um saco de papel. 0 estrondo foi em parte sufocado pelo acompanhador contratado para essa noite, o qual, à laia de abertura, atacou no piano a Terra de Esperança e Glória.
Depois disto apareceu o primeiro cantor, rapaz alto, magro, envolto num fato alugado, grande de mais para o seu corpo. Acolhido com gritos de mofa das bancadas mais distantes, começou nervosamente a cantar a Thora.
Fala comigo, fala, fala, Thora, Fala-me ainda, Thora, uma vez mais.
Não teve êxito. Na verdade, até mandaram o moço fazer gargarejos, tomar um banho, restituir o fato ao algibebe e, finalmente, a ir para casa e enforcar a Thora.
O número seguinte fê-lo um violinista que, atrapalhado com as interrupções frequentes e os gritos de "não pises mais o rabo do gato", se esforçava por executar Traumerei. Por esta altura já o Pai se remexia na cadeira. A "frieza" que temia para a Mãe não era nada em comparação com o que ela poderia sofrer dessa turba ululante, composta (verificava-se agora) de aprendizes do estaleiro de Levenford, conhecidos pelas suas arruaças. Os receios do Pai comunicaram-se-me e, conforme a desordem progredia, a minha agitação aumentava tanto que, por fim, todo eu tremia já. Tremia e suava por causa da querida Mãe, que sem dúvida se desfaria em lágrimas, pois eu sabia que escolhera para tocar uma peça clássica difícil, La Mer, de Debussy. Nada menos indicado para aquele público e nada melhor, provavelmente, para concitar chalaças.
Chegou, enfim, a sua vez. Cessou o meu espasmo, fiquei gelado. Ela parecia pequena no amplo estrado, e tão incrivelmente nova e bonita que ainda tive mais medo. Que bocadinho tenro para ser atirado às feras! Acolhera-a uma tempestade de assobios e, por fim, uma voz bradou qualquer coisa que fez meu pai indignar-se, estava sentado muito direito, com uma expressão duríssima. Por um momento não me atrevi a olhar para a Mãe, contudo, quando me forcei a erguer as pálpebras, vi, que ela já abancara ao piano e que, meio voltada, dirigia uma saudação amigável ao público das últimas filas. Santo Deus! Que lhe acontecera? Nem parecia a minha mãe. Sem fazer caso dos assobios e matracas, sorria agora para os seus carrascos. De súbito, enquanto eu me encolhia na cadeira, à espera de que o primeiro gemido débil de La Mer a aniquilasse, as suas mãos desceram resolutas sobre o teclado, sobressaltando-me com os acordes de uma das marchas de Sousa, precisamente aquela de que o Pai mais gostava, intitulada Washington Post.
Estaria eu a sonhar? Aparentemente, não, pois quando acabou, sem uma pausa, sem se importar com o estralejar dos aplausos, antes mesmo que alguém gritasse "Toque outra!", a Mãe iniciou intrepidamente uma nova música cheia de vida, a famosa peça favorita dos gaiteiros da Infantaria de Highland, Galo do Norte. Se o primeiro número agradara ao contingente de Levenford, este último conquistou-o por completo. A Mãe não chegara a meio e já os tinha a cantar:
Gaiteiro Finlater, gaiteiro Finlater, Toca-me o Galo do Norte!
Enquanto o derradeiro verso ainda vibrava na sala, mais aplausos irromperam, com bater de botas pesadas e gritos repetidos de "bis, bis". E o caso é que a não deixavam descansar. Sem hesitação, a Mãe atacou o que se pode chamar uma miscelânea, ou antes, improvisação - visto que executava muitos trechos de ouvido - de Velhas árias escocesas: Ó Montículos e Encostas!, Verdes se Tornam os Campos, Sobre o Mar, até ao Céu, para terminar com a predilecta do público, Lindas Margens do Lago Lomond. 0 efeito foi tremendo; mesmo os mais refractários lá da última fila, que eu considerara nossos inimigos, mesmo esses foram dominados, batendo o compasso, movendo a cabeça, cantarolando, arrastados por essa onda melódica do espírito e do sentimento nacional.
Eu impava de orgulho, as mãos escaldavam-me de bater palmas em homenagem a essa mãe extraordinária, cuja inesperada diplomacia e perícia nos salvaram a todos nós.
E queriam mais. Quando a Mãe se ergueu do banco do piano, não a deixaram ir-se embora. Alguém invisível nos bastidores devia ter-lhe feito sinal para que ficasse. Que iria ela tocar agora? A resposta veio rápida, e pareceu-me que, nessa altura, a Mãe nos procurava com o olhar. Feriu os primeiros acordes de Longe da Terra, de Moore, tributo não à sua antiga pátria mas à nova. E cantou também, calma e confiante, como se estivesse em casa, sentada ao seu piano. Mal pude respirar quando a sua voz subiu clara e suave, no silêncio profundo e atento de toda a sala.
O Pai, reclinado na cadeira, torcendo o bigode e com um sorriso de êxtase, tinha a vista cravada na Mãe como se não acreditasse nos seus olhos. Quando, após a derradeira vénia, ela saiu enfim do palco, ele levantou-se de sopetão e, demonstrando em cada gesto que, para si, o sarau estava terminado, agarrou-me pelo ombro e descemos ambos a coxia até ao átrio.
Não esperámos muito tempo pela Mãe. Em breve a vimos descer apressadamente os degraus da entrada principal, abafada no seu casaco e xaile branco franjado, que lhe cobria a cabeça. O Pai deu-lhe tal abraço que a ergueu do chão.
- Gracie, Gracie... - murmurou-lhe ao ouvido - eu já sabia que eras capaz disso.
- Oh, Mãe! - disse eu, pulando de contente. - Foi mesmo admirável!
A Mãe sufocou um suspiro.
- Foi uma grande miscelânea sentimental, mas achei que seria a única coisa... Enfim, parece que gostaram.
- Adoraram, Mãe! - exclamei.
- Não podia ter sido melhor - declarou o Pai, radiante.
-Eu não queria demorar-me tanto, mas Lady Meikle obrigou-me.
- Ah - comentou o Pai, dando um estalido festivo com a língua -bem sabia que a Barba de Baleia estaria do nosso lado. Mas o que te induziu a tocar aquilo logo de entrada? Foi ela que te deu a ideia.
- Não.
- Então quem?
A Mãe olhou-me um pouco a medo.
- Deve ter sido o teu conhaque.
Foi um delírio de risadas de nós três. Que alegria, que felicidade, e que triunfo para os Carrolls!
- Não devemos rir, Con, disse a Mãe, de súbito.
- Lembra-te da pobre Maggie. Queres saber uma coisa? Todo o tempo que estive a tocar senti instintivamente que o fazia para ela.
Fomos a pé para casa, sob um luar esplêndido, a Mãe de braço dado com o Pai, conversando, conversando sempre um com o outro. Eu, porém, não me considerei posto de parte, pois a Mãe, com a mão livre, pegou na minha, enfiou-a no bolso do seu casaco e ali a manteve durante todo o trajecto.
Que lua alta e brilhante! E a nossa estrela, a boa estrela dos Carrolls, também se erguia no horizonte, igualmente alta e brilhante, para se juntar à galáxia lá em cima.
VII
O dia seguinte era domingo e, talvez como acção de graças, fomos à missa a Drinton. À chegada a casa tivemos um almoço especial de pato assado, seguido de pudim de cerejas cristalizadas e natas batidas, que a Mãe fazia divinalmente. Ao cair da tarde, depois de o Pai ter dormido a sesta, a Mãe sugeriu um passeio ao longo da praia. O esplendor que a envolvera na véspera ainda a nimbava, misturado com uma espécie de languidez feliz; pelos olhares sonhadores que dirigia ao marido, de certo modo associei aquela disposição às atenções que ele lhe dispensava. Eu já começara a perceber a forte atracção física que existia entre os meus pais, atracção que de início, vencendo todos os obstáculos, os lançara um para o outro vindos de mundos diferentes e que os conservava sempre numa íntima união. Anos depois, quando li memórias de outras infâncias, tantas vezes estragadas pelas constantes discussões familiares, pela incompatibilidade conjugal e ódio recíproco, tive então plena consciência de que, no seu casamento, minha mãe e meu pai foram excepcionalmente venturosos. Embora houvesse uma ou outra tem-pestadezinha, provocada pelo temperamento irascível do Pai, isso nunca demorava mais de umas breves horas e acabava em reconciliação espontânea. E sempre entre
eles, até nos seus silêncios, havia uma compreensão mútua que tornava o meu ter um sítio seguro, confortável, em meio de um mundo muitas vezes hostil.
Este sentimento era palpável no ar, quando, tendo ido a Geddes Point, em direcção oposta a Rosebank (que a Mãe sempre evitara, por motivos de que eu confusamente suspeitava) voltávamos em passo lento, através de um nevoeiro leve que se acumulava no estuário deserto. A atmosfera estava tão calma que o soluço da maré chegava como o eco vago e distante de um búzio. A Mãe ia à frente, seguida de Drakie, gato da quinta de Snodgrass, que frequentemente a acompanhava nessas excursões. Eu e o Pai íamos um pouco atrás, lançando à água calhaus já macios e roliços pelo fluxo e refluxo das marés, enquanto a Mãe nos admoestava, embora com indulgência, por causa dos nossos gritos de júbilo.
Subitamente, quando estávamos nesse exercício, o Pai encolheu-se com um ataque de tosse, e em seguida, endireitando-se, levou um lenço à cara. Olhei surpreendido, então eu bradei com ar importante, como quem faz uma descoberta:
- O Pai está a sangrar do nariz!
A Mãe voltou-se. Vi a sua expressão alterar-se. E vi também que era afinal a boca o que o Pai tapava com o lenço. A Mãe aproximou-se.
- Conor, a tua tosse!
- Não é nada. - Tirou o lenço dos lábios e contemplou quase estupidamente uma pequena mancha vermelha. - Apenas uma gota. Deve ter sido do esforço que fiz.
- Mas tossiste - insistiu ela, preocupada. - Precisas de te sentar e descansar.
- Não sinto nada, só uma pontada no lado. - E, para o provar, forçou a tosse. - Como vês, já acabou.
A Mãe não respondeu. Apertou os lábios de modo mais resoluto que submisso e, enquanto prosseguíamos o nosso caminho, embora relanceasse de vez em quando a vista pelo Pai, já não havia languidez nos seus olhos e o silêncio dele persistiu até chegarmos a casa.
Essa tosse do Pai, que se manifestava intermitentemente, em especial no tempo húmido, e que ele desleixava, considerando-a "um pouco de bronquite", e até explicava, com certo orgulho, como um atributo peculiar da sua natureza, mitigando-a com remédios caseiros da sua invenção, essa tosse acabara por ser aceite pela família, apesar dos protestos ocasionais da Mãe, como um fenómeno natural. Nunca pensei que se relacionasse com aquela manchazita carmesim a que o Pai pareceu ligar tão pouca importância. E tanto que, ao chegarmos a casa, eu tornei logo a sair, com Darkie, para ir buscar o leite, encargo vesperal que me competia agora.
No estábulo, ainda não acabara a mungidura. E enquanto o leite tépido esguichava e espumava no balde, esperei, entretido com as manobras do gato para apanhar e lamber os borrifos que saltavam para as lajes do chão. Ao seguir devagar pela estrada, com o meu jarro de leite, não ia de nenhum modo preparado para encontrar o cabriole do doutor Duthie parado à porta da nossa casa, com as luzes acesas, as quais, ampliadas pelo nevoeiro, pareciam fitar-me com dois olhos enormes.
Este doutor Duthie era uma figura formidável, e não só para mim. Homem já de setenta anos, corado, de aspecto rebarbativo, usava sempre calções de belbutina, casaco do mesmo tecido, largo como um saco, polainas castanhas, lustrosas, e entrava nos quartos dos doentes, e deles saía, como um touro de Highland. Fazia os seus diagnósticos em voz estentórea e tão violentamente que eu, no caso de ser o atendido, muitas vezes recebia na cara uma chuva de perdigotos. Todos os modelos dã ficção romântica que têm um exterior assim rude albergam, em geral, um coração de ouro. Mas este não. O médico era grosseiro e até brutal com os enfermos. Desprezando a opinião pública, teimava em proceder como um indivíduo difícil de tragar. Possuía uma quinta afastada, onde criava porcos de uma raça especial, e com frequência o ouviam declarar que os preferia aos seus doentes. Se tinha alguma fraqueza, além da garrafa de whisky tomada diariamente e que lhe servia de elixir vitae (pois parecia robustecer a cada gole que ingeria) essa seria a das mulheres bonitas. Atacava as jornaleiras das herdades que visitava, as quais riam forçadamente e fingiam protestar, empurrando-as, com o joelho, de encontro aos muros. As suas maneiras para com a minha mãe eram menos eróticas, pois sabia onde devia parar, mas eu percebia que ele tinha certa inclinação para ela.
É claro que não me atrevi a entrar em casa enquanto esse papão se encontrava lá. Já havia sofrido muito nas suas mãos. Cosendo-me com a sombra da parede, espreitei cauteloso para a sala iluminada. O Pai achava-se no sofá, nu até à cintura, e o doutor Duthie inclinava-se para ele, com uma espécie de corneta no ouvido. Nunca eu vira o meu orgulhoso progenitor em tão desvantajosa situação, assim submetido, dominado, quase vencido. O espectáculo, por fim, afigurava-se-me intolerável e, escapando-me, sentei-me de costas para a parede e segurei o jarro de leite entre os joelhos.
Passou-se muito tempo antes que a porta se abrisse e surgissem no limiar o doutor Duthie e minha mãe, vultos que sobressaíam no vestíbulo iluminado. Encolhi-me ainda mais à voz tonitruante do médico.
- Mande buscar o remédio ao consultório. Dar-lhe-ei o óleo de fígado de bacalhau, e também malte. Mas oiça. - Apertou o braço da Mãe, sublinhando as palavras com uma série de sacudidelas, sem dúvida reprováveis, mas no fundo carinhosas, como se tentasse despertá-la. - O principal é tirá-lo daqui. Não lhe disse em Rosebank que o afastasse da praia? Não faz bem a ninguém viver na humidade da lama e do lodo. E para um homem com aqueles pulmões, os nevoeiros do rio são um veneno.
Não interpretei devidamente esta declaração solene; estava de todo ocupado a ver o doutor Duthie sair do prédio e entrar no seu cabriole. Nem quando lhe apareci a Mae me falou do assunto. Mostrava-se pouco comunicativa e, depois de me aliviar do jarro de leite, foi, muito calada, preparar o nosso chá.
Durante dois dias o Pai ficou em casa, impaciente e de má vontade, e depois voltou ao seu trabalho. E embora eu reparasse nos conciliábulos e discussões que começaram e continuaram entre meus pais, sei que lhes dava alguma atenção, supus que isso se relacionasse com o negócio do fermento. Tudo parecia tei voltado a uma calma normalidade. 0 Pai, enérgico como sempre, não tardou que, de maneira típica, se descartasse do seu frasco de remédio, lançando ao balde do lixo a garrafa de óleo de fígado de bacalhau e o malte.
Foi, pois, para mim uma grande surpresa quando, certa tarde de Abril, ao chegar da escola, a Mãe, toda aperaltada e com o ar de quem regressava de uma viagem, me chamou de parte e anunciou:
- Laurence, no mês que vem deixamos esta casa e vamos para Ardfillan. E, notando o meu olhar consternado, apressou-se a tranquilizar-me: - É um lugar tão bonito, meu filho! Mudamos para melhor.
Esta mudança inesperada, coisa sempre perturbante para uma criança, desconcertou-me todavia em absoluto. Logo Ardencaple me pareceu atraente como nunca. Sentia-me agora deveras à vontade na escola, onde já transitara duas vezes de classe. Gostava de Rankin, e arranjara amigos entre os colegas. No sábado anterior apanhara duas trutas mosqueadas no regato de Geilston. E íamos deixar tudo isso quando a vida ali nos corria tão bem.
A Mãe decerto me leu na cara estes pensamentos, porque me cingiu com os braços, sorrindo confiante, e de tal modo que tive a certeza de que isto fora obra sua e que estava satisfeita com o resultado.
- Ardfillan é uma linda vila, meu filho. E a nossa casa nova fica no alto da colina e não longe das charnecas. Estou certa de que vais gostar.
VIII
A mudança fez-se com facilidade surpreendente e, como a Mãe garantira, a nova morada era bastante superior à casita que deixáramos. Tal como a vila, ela deslumbrou-me com os seus esplendores. Estendendo-se pela colina, acima de um imenso estuário tão amplo como o mar largo, Ardfillan era um lugar elegante, selecto, com bonita estação, passeio e coreto de música, constituindo ao mesmo tempo uma cidade preferida pelos homens de negócios mais ricos de Winton, que utilizavam o comboio rápido, e por outros, também opulentos, que já se haviam reformado. Casas grandes, de estilo pretensioso, rodeadas por vastos jardins fechados, salpicavam a encosta, tirando o maior partido da vista de Gareloch e dos canais de Bute, mas sem chegar à extensa charneca que, pelo outro lado, atingia o vale de Fruin e as margens do lago Lomond. Havia bons estabelecimentos, uma livraria de empréstimos ao domicílio, e dois dos mais categorizados colégios da Escócia, o de Beechfield para rapazes e o de Santa Ana para raparigas. Cedo descobri também que tinham os habitantes uma forma peculiar de pronúncia, ou seja, um sotaque para marcar e distinguir esta sociedade e que se tornava quase obrigatória para se ser admitido no seu seio. Existia, em suma, certo "tom" de que a Mãe
gostou logo de entrada, a que o Pai resistiu e que, a mim, me intimidou de começo.
A rua do Prince Albert desfrutava de boa situação lá no alto, com excelentes residências e, embora de ar levemente decrépito, ainda mantinha muito da primitiva elegância. Construídas de pedra finamente trabalhada, num estilo meio georgiano meio vitoriano, de complicados pórticos de entrada dupla e janelas de vãos largos, essas vivendas de luxo tinham andares espaçosos e independentes, salas bem proporcionadas, de tectos altos, jardins agradáveis no lado da frente e a intimidade de um extenso relvado, cercado de muros, na parte de trás. Naturalmente que nós não podíamos aspirar a semelhante grandeza, mas no prédio número sete, pintado de fresco, com os quartos de paredes forradas de papel, encontrámos ampla acomodação, e aí enfrentámos um porvir que parecia favorável, em especial o Pai. Reagindo à mudança de cenário e à pureza do ar (respirado a plenos haustos em exercícios matinais e vesperais diante da janela aberta), ele gozava uma prometedora expectativa de restabelecimento. Perturbava-me, contudo, algo de novo na expressão da Mãe, quando ela se detinha nos arranjos da casa: uma fadiga subtil que dissipava com um sorriso, sempre que me via observá-la.
Em Ardfillan não havia justificação para deixar de ir à missa dominical. Tínhamos na parte baixa da vila a igreja de Santa Maria e a escola paroquial, na Clay Street. Além disso, a primeira pessoa que nos visitou e que nos conquistou logo com a sua alegria franca e simpatia natural foi o moço pároco Macdonald, natural de Invernesshire, o qual estudara no excelente Colégio Blaires, de Aberdeen. Angus Mac Donald era o género de homem que, como meu pai notou, o mais assanhado protestante seria capaz de estimar. A Mãe, ainda um pouco fugida dos padres, a quem nunca vira na intimidade, mal acreditou nos seus olhos quando, depois do chá, ele se pôs de pé e, para meu grande deleite, fez a demonstração de uma dança movimentada de Highland. Em devido tempo, sob a sua persuasão diplomática, certos ajustamentos técnicos, que não cheguei a perceber bem, foram realizados com o fim de tornar o casamento de meus pais mais de acordo com a ortodoxia eclesiástica. Além disto, sem de qualquer maneira deplorar a minha falta de conhecimentos religiosos, que era imensa, ele sugeriu que, pelo menos por então, eu frequentasse a escola paroquial. Assim, na semana seguinte, mandaram-me para a de Santa Maria.
Devo confessar, embora satisfeito pela minha entrada na terceira classe em que a professora, Soror Margaret Mary, parecia disposta a fazer algo de mim, devo confessar, repito, que tive saudades do velho amigo Rankin e que, de um modo geral, não estava encantado com a minha nova escola. Para chegar à Clay Street, tinha-se de fazer longa caminhada pela rua que desce a colina até à parte baixa mais pobre da vila e que era o bairro operário de Ardfillan. Aí, numa ruela, com um prédio de habitação no lado oposto, encontrava-se a igreja de Santa Maria, com a sua escola e presbitério, tudo construído de tijolos vermelhos, funcional, mas que indicava claramente poucos recursos. Da mesma forma, entre os alunos, prevalecia essa triste nota de pobreza. Eram na sua maioria garotos da vizinhança, muitos deles filhos dos desprezados irlandeses que vinham trabalhar nos campos de batatas de Clayside, e alguns, coitaditos, positivamente andrajosos. Entretinham-se com jogos que eu não entendia, próprios de gente desprotegida, ser-vindo-se de pedras, latas, marcas a giz na parede, bolas feitas de papel e pano, amarradas com bocados de cordel. A verdade é que os católicos de Ardfillan que possuíam meios mandavam os filhos a outras escolas, a Academia de Levenford ou o Colégio dos Jesuítas de Winton, embora nunca, é claro, a Beeçhfield, estabelecimento que continuava exclusiva e supremamente patrício. E destarte, apesar da bondade que ali me dispensavam, era deprimente o efeito da escola de Santa Maria. Em pouco tempo se me comunicou um sentimento de inferioridade social, uma espécie de chaga espiritual derivada da minha religião. Quando tentei transmitir algo disto à Mãe, que tinha outras preocupações mais sérias, ela fez o possível por me consolar.
- É para teu bem, filho, e não será para sempre. Tens de te conformar com tudo isso por enquanto.
A falta de camaradagem era a minha cruz mais pesada. Uso esta expressão, visto que, nessa altura, eu aprendia a linguagem dos santos. Fosse qual fosse a excelência da moral dos meus colegas, a Mãe não consentia amizades com rapazes que, como o Pai dizia, nem fundilhos tinham para as calças. E deste modo, com a sensação de não ser peixe nem carne, vagueava por ali nas horas de recreio, aborrecido e solitário.
O meu único recurso, ainda que só servisse para me aumentar o descontentamento, era ir através da colina até aos verdejantes campos de jogos do Colégio Beechfield. Oculto atrás da sebe de espinheiros, observava os jogos com o desejo veemente de neles participar. Ali estava tudo por que eu suspirava, duas balizas brancas demarcando o espaço verde em que os jogadores, alguns tão pequenos como eu, com as várias cores da escola, desde o escarlate ao azul vivo, alcançavam a bola, e corriam, e a passavam, e a detinham e disputavam, como era de esperar de rapazes que iriam para Fettes, Glenamond, Loretto, e até, como alguns, para os melhores colégios ingleses. Quanto sentia que já não suportava mais, voltava pensativamente para casa, dando pontapés em bolas imaginárias, com tanta violência que me magoava nas pedras da calçada e fazia com que a Mãe lastimasse o estado em que eu trazia as botas.
Um sábado, em que não tinha nada em que me entre-tivesse, procurei distrair-me atirando pedras a alvos fictícios, defronte do número sete da minha rua. De repente, uma delas escapou-se-me de viés, descreveu uma parábola fatal e foi atingir a janela de uma casa da vizinhança. 0 estilhaçar dos vidros horrorizou-me, e eu, fugindo a correr, vim ter com a Mãe.
- Tens de ir lá imediatamente pedir desculpa,declarou-me. - O nome da senhora é Miss Greville. Participa-lhe que pagarás o prejuízo. Deixa-me, antes, dar-te uma escovadela. Quando eu já me afastava, ainda recomendou:-Vê se te portas com juízo.
Muito agitado, toquei a campainha da casa de Miss Greville. De esguelha, verifiquei o buraco feito na vidraça. Veio abrir uma criada velha, de touca e farda; tinha cabelo branco e um ar que me descoroçoou.
- Espere aqui, disse ela, depois de lhe haver explicado o fim da minha visita.
Enquanto aguardava no vestíbulo, impressionou-me a descoberta que fiz de dois remos cruzados na parede, ambos de tamanho reduzido e pintados de azul. Outros objectos pouco vulgares me feriram a vista, em especial um par de floretes, mas a criada voltou e levou-me para a sala onde Miss Greville, de pé junto da janela fatídica, se virava já para me contemplar. Eu olhei-a também.
Era alta, sólida, dos seus quarenta e cinco anos, erecta, de peito cheio. Tinha as faces pálidas, redondas, mais arredondadas ainda pelo cabelo de tom claro levantado de cada banda com chumaços e pelo colarinho de goma, tesíssimo, preso com botão. O vestido era simples, mesmo severo, saia roçagante, cinzenta, e blusa branca, sobre a qual se suspendia a cadeia fina das lunetas. Parecia o que realmente era, uma mulher educada, e também o que devia ter sido, uma professora. Ouvira minha mãe dizer que ela ensinara outrora na escola de meninas de Santa Ana. Para mim, naquele momento, afigurar-se-ia uma figura aterradora se não fosse certo ar alheado, um ar que a excluía das mais sórdidas realidades da vida, uma das quais era eu.
- Desculpe, minha senhora. Quebrei o vidro da sua janela.
- Assim parece. Falava em voz alta, nítida, com o sotaque de Ardfillan, mas um tanto afectado. - Em todo o caso, foi digno da sua parte vir cá voluntariamente.
Aceitei em silêncio o louvor imerecido.
- Como aconteceu isto?
- Eu, Miss, estava a atirar...
- Menino Carroll... suponho que é Carroll... Não se me dirija como a uma empregada de loja. Trate-me por Miss Greville, pelo menos até haver maior intimidade entre nós. Que estava a tirar?
- Pedras, Miss... Greville.
- Pedras! Que feio costume, santo Deus! Não me importaria que partisse a vidraça com uma bola.
- Mas pedras! Porquê?
- Se deseja saber... - respondi, começando a entusiasmar-me, é porque tenho muito boa pontaria. Sou capaz de atingir qualquer coisa do outro lado da rua.
- É capaz? - repetiu, demonstrando certo interesse.
- Quer ver?
- Com pedras, não. - Fez uma pausa. - Nunca atirou uma bola?
-- Não, Miss Greville. Não tenho nenhuma.
Fitou-me, quase condoída, e em seguida mandou-me sentar e saiu. Enquanto ela estava ausente, sentei-me na ponta de um banco e mirei em redor. Aquela sala enorme também me impressionou. Móveis estranhos, alguns dos quais eu nunca tinha visto, não escuros e brilhantes como a nossa melhor mobília de mogno, mas na maioria de uma cor de mel desbotada, cadeiras com assento de tapeçaria, armário de embutidos com loiça dourada, e uma alcatifa de tom cinzento desmaiado, com um desenho ao centro, cor-de-rosa muito pálido. No vão da janela havia flores e também numa grande jarra azul sobre o piano, que, sem semelhança com o nosso, era baixo e comprido.
O meu olhar poisara na prateleira do fogão, onde se exibia um número considerável de tacinhas de prata. Miss Greville reapareceu.
- Pode ficar com esta. - Enquanto me punha de pé, deu-me uma bola. - Tem a sua história, que provavelmente não lhe interessa. Pertenceu ao meu irmão.
- O dos remos? - perguntei, sentindo-me inspirado.
- Não, não era o estudante das regatas. - Sorriu distraidamente e, embora não fosse um sorriso desagradável, vi com pena que se tratava de um sinal de despedida. Eu não desejara ir ali, e agora não queria retirar-me. Fiz um esforço para prolongar a conversa.
- O seu irmão não quer a bola?
- Já não quer nada - redarguiu. - Foi morto, há dois anos, em Spion Kop.
- Oh, Miss Greville! - exclamei num ímpeto de mágoa.
- Ele deu a sua vida pelo rei e pela pátria, não foi?
Olhou-me com inexprimível repugnância.
- Não seja tolo sentimental, ou então as nossas relações, até agora breves e casuais, cessarão de vez.
- E tocou a campainha para que a criada me conduzisse até à porta da rua.
A Mãe, não obstante ficar aborrecida por eu me ter esquecido de falar no pagamento da vidraça nova, manifestou tanto interesse como prazer quando lhe fiz o relato da minha visita, do qual diplomaticamente suprimi a passagem final. Desde a nossa chegada que ela denotava certa curiosidade pela vizinhança. Mas a bola, quando foi examinada, pareceu pouco aproveitável. Dura, forrada de cabedal, com uma junção cosida, não saltava e era, de qualquer maneira, inútil para as minhas brincadeiras habituais. Nessa noite mostrei-a ao Pai.
- É uma bola de críquete-explicou ele.
- E já bastante estragada.
- Tem uma história, segundo Miss Greville disse ao Laurence, interveio a Mãe.
- Não duvido. O Pai esboçou o seu sorriso irónico. Pelo que contou o agente de vendas, Miss Greville está cheia de histórias. A sua família foi outrora importante. Possuía uma grande propriedade perto de Cheltenham. Mas o pai deu cabo de quase tudo, e ela tornou-se professora. Primeiro no Colégio de Cheltenham e depois no de Santa Ana. Agora, porém, deixou o ensino.
-Por que seria? - perguntou a Mãe, pensativa. O sorriso do Pai acentuou-se.
- Sou levado a crer - murmurou, bem disposto - que
nalgumas das suas acções ela prova ser um tanto estrambótica.
-Que disparate! - protestou a Mãe. - Isso é má língua. Acho-a uma senhora perfeitamente normal. E foi tão boa para com Laurie! A primeira vez que nos encontrarmos, hei-de cumprimentá-la e agradecer-lhe.
E assim, por meio da vidraça estilhaçada, começou o nosso conhecimento com Miss Greville.
IX
Os agradecimentos, aliás discretos, que a Mãe exprimiu a Miss Greville, obtiveram dias depois uma resposta agradável. A nossa vizinha, que vivia só e, aparentemente, tinha um círculo restrito de amigos, mostrou-se disposta a travar relações connosco. Veio visitar-nos e deixou o seu bilhete. Passados dez dias, a Mãe retribuiu a visita, foi convidada para tomar chá e regressou corada de prazer e cheia de grandes novidades.
Miss Amélia Greville, disse-nos ela à ceia, era uma pessoa encantadora, e, mais ainda, a Mãe deu ênfase às palavras, uma verdadeira senhora. A sua mobília e as pratas, provenientes do solar da família perto de Cheltenham, não podiam ser mais bonitas, aliás, tudo naquela residência denunciava gosto requintado. Tratava-se de uma artista, apaixonada pela música; tocava violoncelo e esperava organizar uns duetos com a Mãe. Conhecedora de botânica, mostrara-lhe um belíssimo álbum de flores silvestres imprensadas. Muitas vezes fizera alpinismo na Suíça. Os pais já haviam morrido. Tivera dois irmãos, ambos educados em Eton: o sobrevivente estava agora numa herdade em Quénia. Frequentava a igreja de S. Judas, daquela modalidade anglicana que dá grande importância ao ritual, aos sacramentos e ao episcopado, e por esse motivo não mostrava relutância,pelos católicos. Pelo contrário... - De súbito, encontrando os olhos do Pai fitos nela com mais do que a sua irónica indulgência habitual,a Mãe calou-se.
- Sim - acrescentou, ruborizando-se - foi muito amável comigo. Mas, mesmo sem isso, gostaria dela. E tu sabes, Con, a falta que me faz uma amiga, especialmente quando estás fora o dia inteiro.
- Âlegro-me que hajas arranjado uma - volveu o Pai, com generosidade. - Em todo o caso, não tomes isso muito a peito.
Não concordei com o Pai. Miss Greville causara-me excelente impressão. Eu adquirira o hábito, quando regressava da minha triste escola, de rondar o jardim fronteiro com a vã esperança de atrair a atenção da nossa vizinha. Lembrando-me dos fascinantes remos azuis, observei pensativo:
- Deve ser bom uma pessoa ter tido um irmão num colégio como Eton, mesmo que ela própria nunca lá fosse.
O Pai riu-se, como se achasse graça à minha observação ou à minha maneira de a fazer.
- Não te apoquentes, rapaz. Santa Maria é apenas uma coisa provisória. Em breve vai haver para ti uma boa alteração.
Andava" por essa altura na melhor das disposições. Sem dúvida que a mudança de ares lhe estava a fazer bem. Apreciava a viagem no luxuoso comboio entre Winton e Ardfillan, para o qual tirara assinatura de primeira classe. Elevava-se na sociedade, uma inequívoca promessa de prosperidade irradiava das suas palavras e modos, e da sua pessoa elegante e bem cuidada. Parecia inteiramente restabelecido do estranho percalço que tivera na praia de Ardencaple, e não deixava de recordar-nos que esse feliz resultado se devia em especial aos seus próprios esforços. Quando saímos de Ardencaple, o doutor Duthie deu-lhe uma carta de recomendação para um colega de Ardfillan. Tratava-se do doutor Ewen, velhote magro, curvado, de passinhos lentos, com faces chupadas e barbicha grisalha, sempre aparada a primor. Apesar da sua aproximação silenciosa, quase pé ante pé, mantinha sempre uma gravidade profissional. Gozava fama de inteligente.
À primeira vista desagradou ao Pai. "Tem cara de desenterrado", disse ele à Mãe. E daí por diante, embora aconselhado a deixar-se examinar periodicamente, reduziu ao mínimo as suas visitas ao consultório, e nos últimos tempos suspendeu-as por completo. A Mãe suspeitava de que houvera qualquer desentendimento, que o Pai, como ela disse, discutira com o doutor Ewen. Por outro lado, o Pai nunca gostara de médicos; uma das feições dominantes da nossa casa era a desconfiança, divertida e céptica, que o Pai tinha por essa classe. "Açúcar queimado e água", dizia ele, abanando e zombando da nossa credulidade, quando via a Mãe (que acreditava firmemente em tónicos e mos administrava com regularidade) dar-me uma colher cheia do meu Alimento Químico de Parrish.
Cria na natureza e nas defesas naturais do organismo. Desta forma, enquanto se sujeitava às regras de higiene preconizadas pelo doutor Duthie (cujas palavras categóricas, que provavelmente o tinham então abalado, ainda conservavam certa força), ele seguia confiante um regime salutar da sua lavra. Desenvolvera um complicado sistema de exercícios respiratórios e uma dieta rica em lacticínios, acompanhada de cerveja preta, muito embora sempre fosse temperado nas bebidas. Dormia entre cobertores, com a janela aberta, usava roupa interior de lá, e sapatos de sola de borracha.
Tudo parecia, portanto, decorrer bem, tanto para o Pai como para nós. Acabei, todavia, por perceber que a Mãe não estava muito satisfeita com a interpretação que o marido dava ao seu estado. Como o percebi? Talvez pela sua solicitude extrema para com ele, ou, mais provavelmente, por aqueles momentos de abstracção quando ela interrompia o seu trabalho, como se uma inquietação repentina lhe tirasse toda a alegria e no rosto lhe passasse uma nuvem quase imperceptível mas suficientemente reveladora a quem era capaz de compreender tudo, mesmo as suas expressões mais obscuras, com intuitiva e completa fidelidade.
Uma noite, quando eu estava ocupado com os meus trabalhos escolares, a Mãe, que fazia meia ao canto do fogão, disse num tom casual, que não me iludiu:
- Conor, já não será altura de ires ao doutor Ewen?
O Pai, que sentado na poltrona lia o Evening Times,
pareceu não ouvir. Depois, baixou devagar o jornal e olhou para a mulher, por cima da página. - Falaste, minha filha?
A Mãe repetiu a pergunta, que indubitavelmente ele ouvira. E o Pai fitou-a atento.
- Há alguma razão aparente para que eu vá consultar o doutor Ewen?
- Não, Conor. No entanto, sabes que tens de ser examinado de vez em quando, e há muito tempo que não vais ao médico.
- É verdade,confirmou o Pai, em tom sentencioso. - Mas como não suporto aquele homem e me sinto pior depois de ter estado com ele do que me sentia antes de ir ao consultório, resolvi, sensatamente, dispensar os seus exames. Para ser mais claro, não tenho fé nenhuma nesse homem.
- Não sei porquê. O doutor Ewen é considerado por todos e tem grande clientela e muita prática.
- Sim, dá aos clientes ricos as doenças que eles querem. Poderá ter prática, mas não é prático.
- Como podes dizer tais coisas?
Porque o acho assim. - O Pai falara com veemência.
- Talvez não acredites, mas queria que eu interrompesse o meu trabalho durante três meses e fizesse uma viagem à Madeira. Imagina, uma viagem por mar! Pode ser esplêndido para as senhoras velhas que ele trata, mas não serve para mim.
inquietação repentina lhe tirasse toda a alegria e no rosto lhe passasse uma nuvem quase imperceptível mas suficientemente reveladora a quem era capaz de compreender tudo, mesmo as suas expressões mais obscuras, com intuitiva e completa fidelidade, uma noite, quando eu estava ocupado com os meus trabalhos escolares, a mãe, que fazia meia ao canto do fogão, disse num tom casual, que não me iludiu: - conor, já não será altura de ires ao doutor ewen? 0 pai, que sentado na poltrona lia o evening times, pareceu não ouvir. depois, baixou devagar o jornal e olhou para a mulher, por cima da página.
- falaste, minha filha? A mãe repetiu a pergunta, que indubitavelmente ele ouvira. e o pai fitou-a atento, há alguma razão aparente para que eu vá consultar o doutor ewen? não, conor. no entanto, sabes que tens de ser examinado de vez em quando, e há muito tempo que não vais ao médico, é verdade;
- confirmou o pai, em tom sentencioso. - mas como não suporto aquele homem e me sinto pior depois de ter estado com ele do que me sentia antes de ir ao consultório, resolvi, sensatamente, dispensar os seus exames. para ser mais claro, não tenho fé nenhuma nesse homem, não sei porquê. 0 doutor ewen é considerado por todos e tem grande clientela e muita prática, sim, dá aos clientes ricos as doenças que eles querem. poderá ter prática, mas não é prático, como podes dizer tais coisas? porque o acho assim. - 0 pai falara com veemência.
- talvez não acredites, mas queria que eu interrompesse o meu trabalho durante três meses e fizesse uma viagem à madeira. imagina, uma viagem por mar! pode ser esplêndido para as senhoras velhas que ele trata, mas não serve para mim, calou-se, como se houvesse dito de mais, e tentou voltar a ler o jornal. mas a mãe antecipou-se:
reconheço que ewen exagera - volveu ela, sempre a fazer meia e sem dar a entender o abalo que recebera. - no entanto, há outros médicos, e penso que deves procurar um que te agrade,mas para quê? Para verificar as tuas melhoras. no fim de contas, ainda tens tosse.
O pai olhou-a entre carrancudo e embaraçado, já te disse, dúzias de vezes, que sempre tive esta tendência, contudo...persuasivamente, a mãe poisou a malha no regaço e inclinou-se para ele. Não conheces em winton nenhum médico que te possa examinar?
Seguiu-se um silêncio. esperei, de olhos fitos no meu livro, por uma resposta indignada ou, pelo menos, por uma recusa altiva e eloquente. em. vez disso, porém, o pai cedeu, ainda que num tom de rabugice.
- se tens muito empenho... há um perto do meu escritório. é o médico da companhia de seguros caledónia. já que tanto insistes, irei qualquer dia consultá-lo, para te com prazer.
Sem fazer caso da responsabilidade que o pai habilmente lançava sobre ela, a mãe deu um suspiro de alívio que, apesar de sufocado, ainda foi audível.
- por que não vais amanhã, conor ? O pai, que retomara a leitura do jornal, fez de conta que não a ouvia, no fim da tarde seguinte, quando o pai regressou a casa, a mãe foi recebê-lo à porta, como de costume.
Ao entrarem juntos, nâo vi nada de especial na cara do pai senão uma expressão de cansaço. mas muitas vezes, quando tinha um dia de mais trabalho, parecia fatigado. durante o jantar, que foi melhor que o costume, com a carne estufada de que o pai gostava tanto, ele comeu com apetite. não houve nenhuma referência à conversa da véspera. ao acabar a refeição, levei a minha cadeira para junto da janela, assim como um livro. só nessa altura ouvi a mãe dizer em voz baixa:
- então?
o pai não respondeu logo. quando o fez, a voz era calma, quase ponderada.
- Fui lá. o doutor macmillan é pessoa competente. parece que tinhas razão, gracie. um dos pulmões está levemente atingido.
- Atingido ? com quê ?
- Com... bem...- O pai não queria dizer, mas não pôde evitá-lo. - Um focozinho tuberculoso.
- Oh, con... é grave?
- Não te alarmes. no fim de contas não é coisa rara. Muita gente tem isto, e cura-se.
Ouvi a mãe soltar um suspiro profundo. depois estendeu o braço por cima da mesa e apertou a mão do pai.
Ao menos já sabemos o que é. convém agora tratares-te a valer. tens de ir para um sanatório ou fazer uma viagem por mar, como aconselhou o doutor Ewen.
- Sim... irei para um sanatório. mas não já.
- Conor! tens de ir imediatamente.
- Não.
- Assim é preciso.
- É impossível, Gracie. empreguei todo o meu dinheiro no fermento. já tive mesmo de contrair um empréstimo no banco. e todos os meus planos alcançam agora a fase decisiva.
- Que interessa o dinheiro numa ocasião destas?
- Não é o dinheiro. 0 negócio progride, mas trata-se de um negócio recente, que não dispensa a minha presença. O caso relaciona-se com a u. d. l. e eu não posso ausentar-me nestes meses próximos, que são tão importantes.
- Oh, Con... Con... não sei o que queres dizer com isso de U. D. I.... tu e a tua saúde estão em primeiro lugar.
- Sê razoável, Gracie. por ti, pelo pequeno, e por mim. U. D. I. significa união das destilarias, limitada, uma das maiores companhias do país. estão positivamente interessadas pelo meu fermento, e tenho a certeza de que conseguirei formar um consórcio dentro de três meses, ou mesmo dois. é tão pouco tempo! Depois ficarei apto a dispor de seis até nove meses, para repousar. entretanto, posso trabalhar menos horas e, de vez em quando, descansar um dia inteiro. serei cuidadoso comigo. pensei em tudo isto quando vinha no comboio. farei tudo o que dizes, mas não vou inutilizar tantos esforços, canseiras e esperanças. seria uma loucura, quando se me depara uma oportunidade que considero única.
Ocupados com os seus problemas haviam-se esquecido de mim. relancei a vista pela mãe. começavam as lágrimas a aflorar-lhe aos olhos. percebi que fora vencida e que o pai levaria a sua avante.
Contudo, eu estava do lado dele. naquela ocasião e em todo o período que se seguiu, nem por um momento duvidei de meu pai. a minha confiança na sua habilidade, discernimento e calma habitual, confirmada por tantos exemplos, nos quais o vira sair de dificuldades sem se afligir, permanecia intacta e inabalável. Mesmo nos seus poucos malogros, o pai conseguira sempre afastar a impressão de derrota com uma atitude final de indiferença descuidada e divertida. as suas duas frases "deixa isso comigo" e "sei o que estou a fazer", proferidas tranquila e confiantemente, haviam-se tornado para mim as pedras de toque de um resultado triunfal.
A mãe já não cantava enquanto se ocupava dos trabalhos domésticos. custava-me a compreender o seu ar de tensão constante. no meio destas preocupações dirigiu-se a miss Greville, procurando alívio nas palavras consoladoras da nossa vizinha. entretanto os dias passavam e tudo decorria de acordo com o plano traçado. O pai não tinha aspecto de doente. Conservava as boas cores, o olhar era vivo e não mostrava falta de apetite. Conforme prometera, tomava cuidado consigo, evitando as intempéries e descansando nos fins de semana. Se ainda tossia, expectorava às escondidas no frasquinho que trazia com esse propósito. dentro em breve partiria para a Suíça (fora este o país escolhido definitivamente por sugestão de miss Greville) e curar-se-ia depressa. neste meio tempo persistiu nos seus remédios caseiros. de vez em quando pedia à mãe que lhe fizesse maçagens no peito com azeite, e uma noite trouxe para casa um estranho objecto que, confidencialmente, nos explicou ser um inalador. consistia este num recipiente de metal, com uma lâmpada de álcool por baixo, e um tubo de borracha, munido de um bocal na extremidade. no dito recipiente colocava-se água e urna mistura especial de ervas, acendia-se a lâmpada e o pai respirava o vapor assim obtido. tudo isto, e o resto, era feito com uma forte confiança de restabelecimento, a qual seria cómica se, perante o que se seguiu, se não verificasse ser tão trágica.
Anos mais tarde, quando analisei essa loucura obstinada, não me foi difícil achar as razões. o pai era um homem ambicioso que constantemente aceitava riscos. conhecia o perigo de protelar a viagem, mas, desde que o seu negócio chegara a um ponto crucial, que se fosse vencido com êxito absoluto o elevaria a uma posição de real importância, associada, como depois revelou, à sua referência a U. D. I. (iniciais que, para o meu espírito infantil, assumiam um significado cabalístico), o pai, enfim, estava preparado, conforme a sua expressão, "a se arriscar para bem de todos nós". havia nisto coragem, todavia, além dessa audácia natural, o optimismo superabundante do seu temperamento irlandês contribuía para que acreditasse na infalibilidade do seu jogo. acima de tudo, porém, o procedimento dele podia-se explicar melhor por uma manifestação estranha e característica da moléstia de que sofria e que, anos decorridos, eu vim a reconhecer como a spes phthisica, ou seja a esperança falsa e persistente, desenvolvida no sistema nervoso pelas toxinas da doença: convicção ilusória da cura definitiva.
O pai tinha isto em alto grau, e, inevitavelmente, comunicou-o a mim e à mãe. não estávamos preparados para a calamidade que sobreveio.
No fim do mês de março, na segunda semana, se bem me lembro, acordei por volta das duas da madrugada. através da névoa do sono tive a sensação confusa e disparatada de que a mãe me chamava. de repente, já disposto a voltar-me para o outro lado, ouvi a sua voz, desta vez bem alta, e com um timbre de urgência tão assustador que imediatamente me sentei na cama.
- Laurence! Laurence! vem cá!
Levantei-me sem demora. eu estava às escuras, mas quando abri a porta vi as luzes do corredor acesas. a porta do quarto do pai encontrava-se entreaberta e era daí que a mãe me chamava. O medo de algum desastre terrível fez-me deter, no entanto decidi avançar e entrei no quarto. foi um momento que jamais esquecerei.
O Pai, deitado de lado, com a cabeça fora da borda da cama, tossia, tossia, como se nunca mais devesse parar, e da sua boca jorrava um fluxo escarlate. 0 rosto apresentava uma cor terrosa. a mãe, ajoelhada ao pé do leito, sustinha com a mão a cabeça do pai e com a outra segurava com dificuldade a bacia do lavatório. a bacia estava quase cheia daquela escuma vermelha que, com horror, vi logo que era sangue. havia sangue por todo o lado, nos lençóis da cama em desordem, na camisa da mãe e até nas suas mãos e na cara. sem mudar de posição nem desviar os olhos do marido, a mãe falou-me com a mesma entoação angustiosa e peremptória:
- Laurie! vai chamar o doutor ewen. depressa, por amor de Deus!
Dei meia volta e corri, corri sempre, tamanho foi o abalo sofrido. sem sequer envergar as calças e a blusa de lã, o que me teria demorado pouco mais de um minuto, saí de casa apenas com a camisa de dormir. descalço, voei pela rua adiante, com o coração a bater-me desenfreadamente. a escuridão tornava a minha corrida uma coisa sobrenatural; compreendi que nunca antes atingira uma velocidade igual àquela. no fim da prince albert, tornejei para Colquhoun Crescent, depois desci a victoria street, onde à minha frente, a meio caminho da Esplanada, vi a luz vermelha da lâmpada exterior da casa do doutor ewen. era uma lâmpada quadrada, ornamental, com as armas do concelho: ele fora outrora presidente do município de Ardfillan. nem vivalma nas redondezas. O silêncio daquela solidão interrompia-o o meu arfar ansioso. sempre a correr cheguei por último à porta do médico, sem me preocupar onde punha os pés, doridos já do cascalho do chão, e subi os degraus exteriores da porta. premi a campainha da noite, com força, com insistência, e ouvi o seu zumbido prolongado no interior da casa. por momentos, que foram de dolorosa expectativa, ninguém acudiu, então, quando tornara a tocar, acendeu-se uma luz no andar de cima. enfim, a porta abriu-se e o doutor ewen apareceu, envolto no seu roupão.
Pensei que iria indignar-se por ser importunado, pois, das conversas de meus pais, depreendera que se tratava de um homem severo. pior ainda, o Pai não se zangara com ele, não o pusera de parte e deixara de ser seu cliente? Antes que pudesse falar-me, disse-lhe ofegante :
- Por favor, venha depressa ao número sete da rua do Prince Albert. o pai está a deitar sangue pela boca.
Sim, ele podia mostrar aborrecimento, mesmo cólera, o desespero de um médico a quem chamam a meio da noite, depois de um dia de trabalho árduo. mas, em vez disto, comprimiu os lábios e olhou-me com ar pasmado.
- Venha, por favor. sabe quem é meu Pai. chama-se Carroll. não se importe com mais nada. mas venha.
Continuou a olhar-me admirado.
Entra - replicou por fim. - Foge desse frio. Obedeci.
O teu pai tosse muito ?
- Sim, senhor, bastante. murmurou qualquer coisa entre dentes. sentei-me no vestíbulo enquanto ele voltava ao quarto. na parede, uma cabeça de veado fitava-me com olhos vítreos e implacáveis. ouvi, no aposento contíguo, o mover vagaroso do pêndulo do relógio.
Ewen não levou muito tempo a vestir-se. quando reapareceu sobraçava um par de chinelas de pano e uma manta escocesa de viagem.
- Abafa-te - disse ele.
Viu-me cobrir com a manta. eu não sentia frio, mas os dentes entrechocavam-se-me. as chinelas eram velhas, mas serviram-me, o doutor pouco maior seria do que eu, e consegui arrastar-me com elas. ewen pegou na sua mala preta e saímos.
Pelo caminho, embora me relanceasse de tempos a tempos, não proferiu palavra. ao chegarmos, porém, à minha rua, exclamou de repente:
- Não pareces mau rapazinho. nunca faças tolices. não compreendi o significado da frase. cumprida a minha missão, sentia-me esgotado, cóm um medo horrível daquele regresso ao pesadelo da nossa casa. não fechara a porta, de maneira que ainda estava aberta. entrámos. nem me atrevi a olhar, mas quando o doutor Ewen surgiu no quarto a mãe saudou-o com uma exclamação de alívio, e eu, como por reflexo, fiquei mais sossegado. Minha Mãe ainda se achava ajoelhada junto da cama, a segurar o pai; a bacia desaparecera, essa bacia que já se fixara no meu espírito como símbolo atroz de horror inesquecível.
Deslizei para o meu quarto, tirei a manta e as chinelas, e enfiei-me na cama. por muito tempo ali fiquei sacudido por tremores intermitentes, ouvindo os movimentos que iam na casa, misturados com as vozes sufocadas da mãe e do doutor ewen. como este se
Demorava! desejei de todo o coração que a mãe viesse ver-me antes de eu adormecer, tomar-me nos braços e dizer-me que tudo corria bem. e, acima disto, louvar-me pela minha carreira esbaforida, mas esplêndida. ela, porém, não veio.
x
O vaporzito de rodas chapinhava alegremente entre as ondas batidas do sol. era o Lucy Ashton, de chaminé encarnada, que ia, através do estuário, de Ardfillan para Port Cregan. no convés, os passageiros passeavam, aspirando o ar cheio de gotículas de água, ou sentavam-se em grupos, rindo, conversando, ouvindo a música animada de um quarteto alemão. em baixo, no salão deserto, com bancos forrados de pelúcia, e impregnado do cheiro a tabaco, eu e miss O'Riordan estávamos sós e silenciosos. nunca até aí a tinha visto e, de tempos a tempos, lançava-lhe um olhar de soslaio perscrutador, embora embaraçado pela vira do colarinho rígido, que se casava tão bem com o meu melhor fato. era uma mulher de cabelo ruivo, de cerca de quarenta e cinco anos, grandes olhos claros, feições pontiagudas e tendência para sardas. a expressão, maneiras e aspecto geral, tudo sugeria resignação cristã a uma vida de sacrifício e sofrimento. eu começara a pensar por que razão estava o meu destino sempre a contas com mulheres, e, em particular, mulheres devotas como aquela, quando a criatura quebrou o silêncio, dizendo:
- Como o seu pai está tão doente, achei que o menino não devia ficar lá em cima a ouvir a música. Além disso sou má marinheira. - fez urna pausa e concluiu: - Podemos rezar para passar o tempo. tem o seu terço?
- Não, miss O'Riordan. tive um, mas estraguei-o.
- Deve ser mais cauteloso com os objectos sagrados, meu filho. Dar-lhe-ei um novo quando estivermos no presbitério. O senhor prior benzê-lo-á para si.
- Obrigado, miss O'Riordan.
Percebi, com certo desânimo, que a governanta de meu tio Simon era mais beata do que eu esperava. por outro lado, o baloiçar do barco dir-se-ia convir-lhe tão pouco que me vi obrigado a perguntar:
- Está enjoada, miss O'Riordan?
- Enjoada, filho? -Inclinou a cabeça para a frente, semicerrou os olhos e levou a mão a meio das costas. - Deus é testemunha de que nunca me sinto bem.
Como não tornasse a falar, aproveitei a oportunidade para reflectir tristemente nas alterações da minha vida. ia eu viver com um padre? Ia sim. a grave doença do meu pai provocara uma reconciliação com os irmãos, dos quais o mais novo, Simon Carroll, achava que seria giande alívio para minha mãe nos deveres de enfermeira (que a si mesmo se impusera) eu passar ao menos umas semanas em sua casa. se bem que, quando viera visitar o Pai, o tio Simon me despertasse a maior simpatia, ao olhar agora para miss O'Riordan, cujos lábios se moviam em silenciosa oração, já a perspectiva se me afigurava soturna: mas uma sacudidela e um rangido indicaram que nos encontrávamos junto ao cais de Port Cregan.
Contudo, ao desembarcarmos, port cregan pareceu-me um lugar agradável, com lojas interessantes e muito movimento nas ruas. tal como Ardfillan, era edificado numa colina, do outro lado do estuário, e no cimo dela (a que miss O'Riordan trepou vagarosamente, sempre com a mão no ponto favorito das costas), ficava a igreja e igualmente o presbitério, ambos de pequenas dimensões mas pitorescamente construídos de pedra cinzenta.
Entrámos num vestíbulo forrado de carvalho, que cheirava a cera de velas e a polimento, e então a governanta, depois de tomar fôlego com uma série de suspiros arquejantes, inquiriu num murmúrio discreto se eu queria "aliviar", significando com isto, julgo eu, ir ao lavabo. perante a minha resposta negativa, conduziu-me à sala de estar, situada num extremo da casa. era uma quadra ampla, que dava para o jardim, e bem iluminada por uma janela donde se desfrutava uma bela vista do porto. quando entrei, o tio Simon estava sentado à secretária de tampo de correr, encostada à parede do fundo. levantou-se, veio ao meu encontro e pegou-me na mão.
Quando sorriu, percebi logo que era tímido e que eu o estimaria mais do que antes. não falou; segurando sempre na minha mão, olhou com ar interrogador para miss 0'Riordan, que lhe fez um relato pormenorizado da nossa viagem. enquanto ela falava, eu tive ocasião de tornar a observar o tio. dos quatro irmãos Carrolls, havia dois loiros e dois morenos. Simon, o mais novo, por essa altura com pouco mais de vinte e seis anos, pertencia ao segundo grupo. de cabelo preto e olhos escuros, era tão alto que se curvava como para se esquivar a bater com a cabeça nos lustres, e tinha um aspecto juvenil, muito delgado na sua sotaina comprida.
- Como está connor? - perguntou em voz baixa, quando a governanta acabou a sua narrativa.
Ela não respondeu, mas, com um olhar significativo, apertou os lábios em silêncio e meneou a cabeça, após o que se retirou.
- Miss O'Riordan vai trazer-nos o chá. espero que o ar do mar te haja aberto o apetite - disse alegremente meu tio. instalou-me numa das duas poltronas de cabedal, já não em muito bom estado, que se achavam de cada lado do fogão, e dirigiu-se para a sua secretária. - Deixa-me só acabar o que estava a fazer. é um instante.
Senti instintivamente que nos dava tempo, a nós ambos, para nos recompormos. eu encontrava-me, sem dúvida, num meio estranho. além das poltronas e da secretária, sobre a qual figurava uma imagem de nossa senhora, grande, azul e branca, havia pouca mobília e pouco conforto na sala. as cortinas acastanhadas já não eram novas, e o tapete, como as poltronas, estava bastante usado, como se gasto por passadas contínuas durante muitos anos. na prateleira do fogão descobri um barrete de clérigo e uma extensa fila de moedas de cobre em várias pilhas. na parede pendia um crucifixo de marfim. mas o que mais me chamou a atenção foi uma gravura muito grande, na outra parede, de um homem de longas barbas, semi-nu, cabeludo, empoleirado no topo de uma alta coluna de pedra.
- Gostas? - Perguntou o tio, que erguera a cabeça E me observada com um sorriso vago.
- Quem é? um dos santos da minha devoção.
- Mas o que faz ali em cima?
- Nada de especial. - O tio voltou a sorrir. - Extravagância de santo.
Neste comenos, com ar de quem faz um esforço supremo, miss O'Riordan trouxe numa bandeja preta, japonesa, o serviço de chá e um prato grande de fatias grossas de pão com manteiga. embora acostumado a melhor tratamento, mal dei pela falta de um bolo. tinha o pensamento tão cheio daquele estranho velho no alto da coluna que, logo após a retirada da governanta, inquiri :
- Que altura tinha aquilo, tio, e quanto tempo esteve ele ali?
- Tinha umas setenta e tantas polegadas de altura, no cimo de uma montanha... esteve lá trinta anos.
Isto causou-me tal espanto que me ia engasgando com a fatia de pão com manteiga.
- Trinta anos! mas como é que se alimentava?
- Descia um cesto! é claro que jejuava muito.
- E não tombava de lá quando adormecia? acho que devia cair.
- Bem... era um velho miraculoso. e provavelmente dormia pouco. talvez a camisa de serapilheira o conservasse acordado.
- credo! uma camisa de serapilheira! O tio esboçou um sorriso.
- Não percebo por que havia ele de fazer isso - comentei. escuta, Laurence. - Senti um estremecimento de prazer ao ouvi-lo tratar-me pelo primeiro nome. - Simeão viveu há muitíssimos anos num país montanhoso, no meio de tribos selvagens. como se pode calcular, vinham multidões admirá-lo. ele pregava-lhes, às vezes durante horas, curava os doentes, fazia de juiz, obrava milagres e, à sua maneira, realizava inúmeras conversões ao cristianismo.
- Houve um silêncio.
- É por isso que o tem aqui na sala?
- Quando eu estava no seminário, em espanha, tomei conhecimento com ele. e como o seu nome é parecido com o meu, senti-me lisonjeado. No fim de contas, como vês, é vaidade da minha parte.
Eu olhava deliciado para meu tio, seduzido com a nossa conversa, a qual, em vez das esperadas referências a meu pai, que decerto me fariam chorar, me elevava aos píncaros da intelectualidade e da história.
- Quem me dera ver um milagre, tio - disse eu, pensativo.
acontecem todos os dias, se repararmos bem. agora come o teu pão. É o dia em que não vem a senhora Vitello e não teremos muito mais do que isto antes do almoço de amanhã.
Gostaria de continuar ali com esse tio recentemente descoberto, para conversarmos mais acerca de colunas e de santos, mas ele declarou-me que tinha de ir à igreja para ouvir confissões, acrescentando no entanto que estaria livre no dia seguinte, depois da missa, para me mostrar uma coisa interessante. de modo que, quando veio buscar a bandeja, miss O'Riordan tomou conta de mim. após haver indagado de novo se eu não queria "aliviar", descemos um lanço de escadas, entrámos na cozinha, e aí exibiu uma garrafa em cujo rótulo se via um bacalhau com a boca aberta.
- Meu filho, vai tomar emulsão de purdy. uma colher de sopa cheia, três vezes ao dia. é muito bom para o peito.
lentamente, deitou na colher o líquido espesso que, embora bem disfarçado, sabia a óleo de fígado de bacalhau.
- Agora, acrescentou ela, depois de eu engolir o remédio, deixe-me ver o que usa. - tocou-me com um dedo na camisa aberta e soltou uma exclamação de tristeza.- 0 quê? não tem camisola de la? deve usá-la rente à pele. não queremos que lhe aconteça o que aconteceu ao seu pobre pai. vou tratar disso antes que seja tarde.
Largou-me então, dizendo que fosse brincar no jardim, mas não apanhasse frio nem sujasse o fato. saí, O jardim era um quadrado de relva, ladeado de arbustos. havia uma grutazinha com uma imagem de nossa senhora coroada de estrelas e poisada sobre conchas. atravessava o relvado um passeio de cimento, que dava acesso à porta lateral da igreja. tive vontade de ir lá encontrar-me com o tio, mas sofreei o desejo para não o perturbar no confessionário.
Vagueei por ali, com as mãos nos bolsos, pensando em muitas coisas acerca do homem da coluna. Ah! Se eu tivesse visto algum dos seus milagres! que belo espectáculo, um milagre! Aliás podiam ser vistos, "se reparássemos bem". achei também que, apesar de o crepúsculo me fazer saudoso da Mãe, podia perfeitamente continuar com o tio Simon, se Miss O'Riordan me deixasse em paz.
Aí de mim! quando o relógio da vila deu seis horas, ela reapareceu à porta da, cozinha e chamou-me.
Tinha preparado papas de aveia e um prato cheio delas, com o indispensável copo de leite, fumegava na mesa. enquanto se sentava no lado oposto, para assistir à minha ceia, decerto notou em mim uma expressão de descontentamento, porque disse:
- Nunca se torce o nariz a comida boa, meu filho. vivemos aqui modestamente.
- Modestamente, Miss O'Riordan?
- Sim, filho. a igreja está sobrecarregada de dívidas, e o seu tio, coitadinho, mata-se para as pagar.
- Mas como é que a igreja tem dívidas?
- Foi da reconstrução. há quinze anos, quando vim para cá. não quero citar nomes, mas houve um certo sacerdote com ideias superiores às suas posses.
- O Povo não paga, miss O'Riordan?
- Pagar! - Exclamou ela, com um riso desdenhoso que flagelava tantos fiéis anónimos. - viu as moedas na prateleira da sala? Éis como eles contribuem. só moedas e moedinhas de cobre. com a amortização da dívida e pagamento dos juros, e as esmolas que ele dá, o que fica quase nem lhe chega para comprar uma camisa. mas é homem inteligente e bondoso, e, com a ajuda de deus e da minha, há-de livrar-se de apuros.
Estas revelações sensacionais, se bem que desconsoladoras, permitiram-me acabar as papas sem reparar que não tinham sal. mais tarde descobri que ela era adepta da comida insossa, por causa, segundo dizia, de ser menos prejudicial aos rins.
Levantámo-nos da mesa.
- Já lhe arranjei umas contas, confidenciou-me Miss O'Riordan em tom de intimidade. - Vamos rezar cinco estações no seu quarto, antes de se deitar.
Uma vez no andar de cima, ajoelhámos no quarto vazio, que parecia exalar a austeridade dos muitos missionários que ali se haviam abrigado nas suas idas e vindas entre o porto de cregan e o interior de áfrica.
- Meditemos nos mistérios dolorosos, sussurrou Miss O'Riordan, e lembre-se disto: rezamos por intenção do seu pobre Pai.
Começou: "primeiro mistério doloroso, a agonia do senhor no horto". e eu, principiando por mover os lábios em silêncio, acabei por murmurar as palavras. Apesar da intenção, não pensava em meu pai. tinha pena dele. lastimava o seu estado. mas aquela pavorosa cena a meio da noite, que me reaparecia com formas grotescas nos meus sonhos, tornara-o interdito durante o dia, quando a minha vontade, ou lá o que fosse, se podia exercer livremente. em quem eu pensava era na mãe, e, como sempre fui um visual, o seu rosto surgia claro perante mim. via-lhe a expressão de tristeza e ternura de quando me dissera adeus nessa manhã. só da sua agonia me lembrei. e de súbito, embora ela me houvesse pedido que fosse corajoso, uma torrente de lágrimas correu-me pelas faces enquanto eu continuava a rezar maquinalmente. a minha companheira não me desfitava, o que, na verdade, me fazia aumentar o pranto. quando acabámos, Miss O'Riordan levantou-se, devagar, olhando ainda para mim e, seria possível ? - Com um novo interesse e respeito.
- O menino reza muito bem, declarou em tom solene. - Com tanta devoção! Hei-de dizer ao Senhor Prior. nunca vi uma criança tão comovida durante o terço.
Corei, com uma sensação de culpa. mas, de certa maneira, senti-me reconfortado.
- Olhe, tenho aqui uma coisa que fiz para si, tornou ela, persuasivamente, depois de eu me despir. - É para conservar os seus pulmões em bom estado.
E apresentou-me uma espécie de peitilho de flanela encarnada, que me pôs sobre a pele, segurando-mo com fitas de nastro em torno do pescoço e das costas. achei quente e incómodo, mas já estava tão exausto da sua solicitude que não tive forças para resistir. "isto é a minha camisa de serapilheira", pensei com tristeza, "e Miss O'Riordan é a minha coluna".
Quando fechei os olhos num sono simulado, mas deixando uma gretinha por onde podia observá-la, ela esteve uns momentos a contemplar-me. depois, fez o sinal da cruz sobre a minha cama e apagou a luz de gás. de repente, na escuridão, senti a pressão de lábios na testa, não os lábios tépidos e macios a que eu estava habituado, mas secos, rígidos, estranhos para mim. no entanto era um beijo, e de Miss O'Riordan. Ouvi-a sair e fechar a porta de mansinho.
Pobre Miss O'Riordan! Eu nunca devia escrever nada em teu desfavor! que vida mais árdua haverá no mundo do que a de uma governanta solteirona, de quarenta e cinco anos, frustrada, solitária, neurasténica, mártir de si mesma, só com uma mulher a dias, italiana, para a ajudar na labuta doméstica do presbitério? Nenhuma, a não ser a do próprio pároco.
XI
A minha estada em S. José foi mais prolongada do que eu previra e, ainda que meu tio, ao contrário da governanta, me não sobrecarregasse de atenções, depressa percebi que me apreciava a presença no presbitério e que a minha companhia, por muito absurdo que isto pareça, aliviava aquela solidão natural exigida pela sua vocação, tanto mais que não podia deixar de ver que eu começava a ser-lhe afeiçoado. Isto, aliás, não era difícil. a simples bondade, tão diferente da excessiva devoção de Miss O'Riordan, é coisa que atraí sempre, e, apesar da disciplina que a si mesmo impunha, havia na sua natureza uma doçura, uma fina sensibilidade que conquistaria qualquer criança.
Era, como meu pai, pessoa inteligente, com a mesma distinção inata, atributo que (em breve descobri) o céu não concedera aos outros dois irmãos, Bernard e Leo, havia ido em pequeno para o colégio escocês de Valladolid na Castela velha, onde, durante sete anos de formação espiritual, vivera e estudara com notável brilhantismo. a espanha educara-o, moldara-o, imbuíra-o das suas tradições e cultura. Simon Carroll amava a espanha e admirava profundamente o seu povo, recordo-me de uma frase que usou, "a nobreza dos homens, o garbo e pureza das mulheres." com o seu fato preto, cabelos e olhos escuros, tez pálida e a capa de sacerdote pendendo-lhe dos ombros, tinha na verdade um ar espanhol que, decerto conscientemente, procurava acentuar com alguns pequeninos maneirismos. Quantas vezes, de forma nostálgica, me falou ele da sua existência venturosa em Valladolid, a encantadora cidade de Cervantes e Colombo, conquistada aos mouros por D. Sancho de Leão. Evocava não só os dramas da história, mas principalmente recordações pessoais, os claustros banhados de sol, o gabinete de paredes caíadas donde se avistavam as montanhas distantes, cor de oca, e os jardins do seminário, perfumados das laranjeiras, e certa latada de parreiras sob a qual ele dormia a sesta, e donde os cachos de uvas doces como mel quase lhe caíam na boca. e passar daí para uma freguesia escocesa, tosca e pobre, de sotaque rústico, entre o barulho dos estaleiros, afigurava-se-me uma trágica expulsão do paraíso.
Mas o tio Simon não se importava. estava perfeitamente à vontade na sua paróquia, conhecia todas as crianças e a maior parte das mulheres pelos seus nomes próprios e até parecia gozar esses deveres inerentes ao múnus pastoral, a meu ver tristes e fatigantes, os quais principiavam às seis da manhã, quando ele se levantava para ir celebrar a primeira missa, e se prolongavam pelo dia adiante, muitas vezes até à noite. porque eu apreciava a sua companhia e lhe sentia a falta quando se ausentava, aborrecia-me que se pusesse à disposição de todos, em especial desde que, além das obrigações de rotina, destinava meio dia todas as semanas para ir a Ardfillan ver meu pai, visitas de que regressava com uma alegria fictícia que não me iludia. Também discordei da prontidão com que ele acudia a todas as dificuldades, achava que o enganavam, opinião partilhada, aliás, por Miss O'Riordan, que criticava especialmente o que intitulava de procissão dos pedintes. Todas as quartas-feiras à tarde apresentavam-se em bicha aqueles impetrantes, com a maior regularidade, à porta da cozinha, e recebiam as esmolas da praxe. observando-os da janela aberta, ao lado da mulher a dias, senhora vitello, enquanto Miss O'Riordan despachava os requerentes, eu suspeitava de que muitos deles eram impostores, nomeadamente essa que me parecia a pior, uma velha de olhar manhoso, chamada Sarah Mooney, que andava amparada à muleta, arrastando uma perna, com muitos gemidos e suspiros, e que nunca se satisfazia com as suas doses de chá e de açúcar. na minha desconfiança fui apoiado por Miss O'Riordan, a quem ouvia de tempos a tempos protestar junto do meu tio contra as depredações que a Sarah fazia na despensa.
O tio Simon, contudo, mau grado a desvantagem da mocidade, sabia lidar com a sua austera governanta, que através de um longo hábito se considerava a pedra angular da paróquia. deixava-a resolver em alguns casos, tolerava-lhe os fracos, não intervinha no governo da casa e, acima de tudo, sofria-lhe, sem se queixar, os atrozes cozinhados. da culinária de Miss O'Riordan devo dizer que nunca vi, nem antes nem depois, estragar tanto uma simples costeleta de carneiro ou um inofensivo pedaço de vaca. mas, ao contrário de mim, o tio não olhava para o que comia, e o seu único luxo era uma boa xícara de café depois do jantar, acompanhada de um charutinho fino e encurvado, com um bico de pena numa das extremidades, que ele tirava da caixa remetida de oferta por um colega de Espanha.
Com esta condescendência em assuntos que o tio achava de pouca importância, não só granjeara a consideração de Miss O'Riordan como conseguia desempenhar sem intromissões tudo quanto se relacionava com o seu cargo eclesiástico. Calma e firmemente intervinha em meu favor, Miss O'Riordan estava sempre a dar-me purgantes e até me arranjara, por motivos higiénicos, uma cruz de cânfora para pendurar ao pescoço e cujo cheiro me impregnava a pele, transformando-me numa espécie de bola de naftalina ambulante. O tio Simon não logrou pôr termo a estes medicamentos, mas contrariou sem rodeios os precoces projectos religiosos da governanta, decisivos passos para a santidade, os quais me compeliriam a fazer a primeira comunhão, a entrar na confraria de nossa Senhora do Monte do Carmo e a decorar as respostas em latim para eu ajudar à missa no breve tempo da minha estada em S. José.
Se a deixassem agir à sua vontade, estou certo de que a devota criatura me teria ordenado, tonsurado e talvez até canonizado! mas o tio simon não queria nada disto. possuía o discernimento necessário e a necessária sensibilidade para compreender o abalo psicológico que eu sofrera. Via em mim uma criança nervosa, fisicamente pouco desenvolvida, muitas vezes atormentada por pesadelos que a obrigavam a acordar alagada em suores frios e que, por se concentrarem em grotescas variações da hemorragia do pai, eu costumava designar por "sonhos vermelhos". como me sentia grato pelo tempo que me dedicava! À noite jogávamos às damas, e eu ganhava sempre, ensinou-me os rudimentos do xadrez. as nossas conversas eram sempre interessantes, porque ele nunca se ria das minhas ingenuídades, e lembro-me que até aflorámos uma vez mais algumas excentricidades dos santos, e noutra ocasião praticámos tranquilamente sobre o tema do inferno. Em diversas segundas-feiras, o seu dia menos ocupado, alugou um barco de remos e levou-me até ao ponto do estuário conhecido por Tail of Bank. Mas a nossa maior diversão era o entretenimento que ele sugeriu na primeira ocasião em que nos encontrámos.
Certa manhã, depois do almoço, conduziu-me ao sótão e, no meio de trastes fora de uso, vi um modelo de locomotiva, coberto de poeira, mas capaz de funcionar, e tão perfeito que eu pulei de contente.
- Não faço ideia de como veio ter aqui, murmurou o tio. Talvez sobrasse de alguma venda de caridade. não acredito que trabalhe muito bem, mas podíamos experimentar.
Levámos a locomotiva para o jardim, colocámo-la no passeio de cimento, diante da porta das traseiras, e eu corri à cozinha, a pedir a Miss O'Riordan um pano de pó. limpa, de rodas cintilantes, êmbolos, tênder pintado de verde, era na verdade um engenho de nos fazer pulsar o coração. Veja! Exclamei, apontando para as letras de bronze num dos lados: "O escocês veloz".
Era, afinal, uma reprodução em miniatura dessa famosa locomotiva. que alegria encher de água a caldeira, deitar na caixinha do combustível álcool de que o tio se havia providencialmente fornecido, e acender, com fósforos (contra cujo gasto Miss O'Riordan protestou) o pavio bem espevitado, e depois recuar, com a respiração ofegante, à espera de um resultado imediato, ai de nós, uma vez tudo isto feito, o "escocês veloz" recusou-se a partir, a água ferveu, saiu fumo pela chaminé, chegou-se a ouvir o apitozinho, mas, apesar de toda a sua agitação interior, e da minha, a bela máquina permaneceu indiferente e inerte.
- Oh, tio, devíamos "aliviar"! - Na minha impaciência nem reparei que usara a frase clássica de Miss O'Riordan.
Ele pareceu ser da mesma opinião. despiu o casaco e ajoelhou-se no pavimento cimentado. juntos lubrificámos a máquina com a almotolia da sua bicicleta. examinámos em pormenor todas as peças. Em vão desaparafusámos porcas e tornámos a apertá-las.
Estendido por fim no chão, com a cara suja de óleo, o tio soprava a chama de álcool a fim de intensificar o calor quando Miss O'Riordan surgiu inesperadamente.
- Senhor Prior! - Ergueu as mãos e os olhos ao céu, horrorizada. - Em mangas de camisa! E em que estado! E o senhor Lafferty e a esposa à sua espera na igreja, há mais de meia hora, com o pobre inocentinho por baptizar!
O tio pôs-se de pé, com um sorriso de desculpa e o ar de um estudante que foi apanhado em falta. mas, ao afastar-se, lançou-me um olhar animador.
- Ainda não estamos vencidos, laurence, tentaremos outra vez.
E tentámos, tentámos repetidamente e sempre sem resultado, a máquina renitente tornou-se para nós uma obsessão, discutíamo-la todos os dias, em termos pouco técnicos, decididos a não desistir.
Na quarta-feira da semana seguinte, acabado o jantar, trouxeram o café ao tio e ele muniu-se da sua cigarrilha. fumava sempre com modo sonhador, de olhos semicerrados, como se se transportasse nesses momentos à sua querida Valladolid, bastante admirado e entristecido me sentiria se soubesse que daí a poucos meses ele seria de facto transferido para aquela cidade como professor do seminário, nessa tarde, porém, eu não sabia disso, nem ele tão-pouco. bem disposto com o café e com a cigarrilha, mostrava no olhar uma expressão divertida.
Vamos ao "escocês veloz"?
Vamos, tio! - Bradei.
Retirámos a locomotiva do telheiro. enquanto Miss O'Riordan nos espiava com ar de censura, da janela da cozinha, fazendo observações em voz baixa à senhora Vitello, nós pusemos óleo, álcool e água e fizemos esta ferver em cachão, tudo sem efeito. a locomotiva não se movia.
Debruçado sobre a máquina insubmissa, o tio acabou por dizer num tom que traía pessimismo:
- Deve estar emperrada em qualquer lado. trata de a sacudir.
Dei-lhe um abanão violento, desesperado, e por fim pespeguei-lhe um pontapé. produziu-se imediatamente uma explosão, a caldeira, lá de recônditas partes infernais, esguichou uma matéria viscosa. saiu vapor de uma válvula insuspeitada. O rodado girou com ímpeto e o "escocês veloz" despediu-se de nós como uma seta.
- Hurra! - Gritei. - Está a andar. Veja, Miss O'Riordan, veja!
Descia em linha recta pelo passeio cimentado, ganhando velocidade, com toda a pressão dos seus êmbolos poderosos e com as rodas girando, lançava fumo para o ar e a fornalha faíscava como a cauda de um cometa, um espectáculo magnífico, estupendo!
- Valha-nos Deus! - Exclamou de súbito meu tio. Segui-lhe o olhar, Sarah Mooney saíra da igreja e, de cabeça baixa e com a perna a arrastar, vinha em nossa direcção, apoiada à muleta.
- Cuidado, Sarah! - Gritou o tio Simon, Sarah, absorvida pela perspectiva da merenda, não o ouviu, e a locomotiva, avançando com uma precisão quase inspirada, bateu-lhe na muleta, que saltou, descrevendo um arco, e se quebrou com retumbante estampido, a senhora Mooney ficou sentada no chão, enquanto a máquina, emitindo ondas de vapor, tombava de lado e jazia na relva, rouca e ofegante. por momentos Sarah pareceu estupefacta, envolta numa nuvem; depois, com um grito agudo, pôs-se de pé e correu, correu como uma lebre, até se refugiar na igreja.
Graças a Deus que não se feriu! - Disse o tio Simon voltando-se para Miss O'Riordan, que viera reunir-se a nós.
- Mas, observei, puxando pelo braço dele, não viu? Ela correu, e sem muleta. pode andar! Foi um milagre.
Olhou-me o tio, pensativo, mas, antes que pudesse responder, Miss O'Riordan (que parecia satisfeita, pela primeira vez na vida) antecipou-se:
- Será um milagre se não voltar amanhã com duas muletas.
O tio continuou calado, mas sorridente, creio que gozara com a fuga precipitada de Sarah Mooney.
Depois desse breve instante, a locomotiva não voltou a funcionar e, sem nenhuma tentativa de reparação, recolheu ao sótão. aliás, daquele dia em diante, todo o aspecto da minha estada no presbitério se modificou muito, não me diziam nada, mas pela cara de Miss O'Riordan e pelos modos do meu tio, mais graves e preocupados, eu percebia que as notícias de Ardfillan eram bastante piores. O tio Simon começou a atravessar com maior frequência o estuário, e a regressar de semblante melancólico, que ele, nem sempre com êxito, se esforçava por alegrar quando eu aparecia. Na cozinha, também, eu surpreendia conversas cochichadas entre a governanta e a mulher a dias, conversas que interrompiam para me saudar com excessivas demonstrações de estima, mas não tão depressa que não ouvisse duas palavras ominosas, muitas vezes repetidas, "tísica galopante", as quais imediatamente me traziam aos olhos a visão de meu pai, lívido como naquela noite inesquecível, galopando loucamente para a morte num grande cavalo branco.
Nunca cheguei a perceber, nem tentei sequer explicar a mim mesmo, por que motivo o cavalo devia ser branco, mas sabia, com certeza absoluta e estranha indiferença, que ele morreria em breve, não havia eu pressentido inconscientemente, naquela noite fatídica, que nunca se curaria? Vagueando pela casa, escutava com impaciência os murmúrios de "nova hemorragia", ressentido pela gravidade e preocupação dos outros, desanimado com a falta do calor que me envolvera até então.
Uma noite, cerca de dez dias depois, convenci meu tio a jogar uma partida de damas. Estávamos nisso, e ele já me havia permitido "comer" uma dama, quando tocou a campainha da porta, som que eu detestava porque era em geral o prelúdio de uma saída do tio, mas quando Miss O'Riordan entrou, trazia na mão um telegrama, meu tio leu-o, empalideceu e declarou-me:
- Tenho de ir à igreja, Laurie.
Miss O'Riordan saiu da sala atrás dele, deixando-me só, nem uma palavra me dirigiu, contudo, compreendi imediatamente, não chorei, em vez de lágrimas, dominou-me um grande desconsolo, olhei para o tabuleiro das damas e lamentei o fim do jogo no momento em que a minha posição era tão boa. Contei as moedas empilhadas na prateleira do fogão, doze em cada uma. Observei mais uma vez o meu velho amigo barbudo encarrapitado na coluna, e desci à cozinha.
A governanta chorava e rezava o terço, cheia de fervor.
- Estou com dores de cabeça, meu filho, explicou ela, escondendo as contas no avental.
Apeteceu-me dizer-lhe: "Por que mente, Miss O'Riordan?"
Não dei, todavia, sinal de dor antes da manhã seguinte, quando Miss O'Riordan, encarregada dessa MISSÃO, me conduziu à janela da sala, me pôs um braço sobre os ombros E, enquanto olhávamos ambos para o porto distante, onde um navio da Clan Line estava a descarregar, ela cautelosamente, gradualmente, me informou do que havia sucedido. então, porque senti que assim devia fazer, que era isso que esperavam de mim, principiei submissamente a verter lágrimas. elas, porém, depressa estancaram, tão depressa que Miss O'Riordan observou várias vezes, no decurso do dia, e com o ar complacente de quem se desempenhara do encargo:
- Ele aceitou muito bem!
À tarde, depois de envergado o seu traje de sair, levou-me a Port Cregan e comprou-me um fato preto já feito, o qual, escolhido com a ideia predominante de que eu estava a crescer, me assentava tão mal que era mesmo um escândalo. O casaco parecia um saco, os calções, largos, pendiam até à barriga das pernas, dando a impressão de calças de homem amputadas pelo joelho, determinada a fazer de mim um exemplo vivo de desgosto, a boa Miss O'Riordan completou-me o vestuário com um chapéu de feltro de copa redonda e abas reviradas, que me descia até às orelhas, gravata preta, fumo para o braço e luvas também pretas.
Na manhã seguinte, nesse traje hediondo de luto que me fazia assemelhar a um gato-pingado em miniatura, disse adeus a Miss O'Riordan, que, beijando-ME E chamando-me "pobre cordeirinho", me inundou com as suas lágrimas incompreensíveis... Mas talvez previsse melhor do que EU o que ME esperava. depois, acompanhado do tio Simon, parti de cabriolé para IR tomar o barco de Ardfillan.
Sentámo-nos no convés, onde o mesmo quarteto alemão tocava as mesmas valsas vienenses, em volta pulavam crianças ao som da música. Gostaria de me reunir a elas, porém, tristemente cônscio do meu fato, que na verdade já atraíra olhares condoídos, não ousei sair do meu lugar.
XII
O enterro realizou-se discretamente em Lochbridge, onde, no cemitério local, os meus avós paternos, humildes mas honrados, haviam adquirido um pedaço de terreno para sepulturas, fora nessa cidade industrial que Laurence e Mary Carroll, fugidos à fome que reinava no seu berço irlandês, se tinham instalado e vivido em piedosa obscuridade, aí meu pai habitara antes do seu casamento e aí também o tio Bernard se estabelecera com as Caves de Lomond, agora desvendadas, para minha surpresa e decepção como uma vulgaríssima taberna, por cima da qual ele e a mulher residiam com os meus dois primos, nora e Terence.
A tarde estava chuviscosa e pardacenta quando o FÉRETRO saiu da igreja, mas não me encontrava presente, para meu grande alívio a mãe resolvera que eu não assistisse ao funeral. Na véspera, apesar dos meus protestos frenéticos, o tio Bernard obrigara-me ao que ELE denominou o "último adeus" ao pai no seu caixão. Foi o meu conhecimento com a morte, e eu fiquei transido ao ver o meu progenitor tão novo e belo, perfeita imagem de cera de si mesmo, estendido na sumptuosa urna acolchoada que o próprio tio, com extravagante sentimentalismo e contra a vontade de minha mãe, teimara em encomendar, preparado de modo impecável para a sepultura, de cabelo escovadíssimo e bigode aparado, o pai estava, como ele ironicamente diria, um verdadeiro janota, então o tio Bernard, vertendo lágrimas, ergueu uma dessas mãos frias, flácidas e lívidas e colocou-a na minha. arrepiado de horror, reparei nessa ocasião que no queixo do defunto, barbeado pelo can-galheiro na véspera, começara a despontar uma ténue barba arruivada. com um grito, libertei-me e fugi para fora do quarto, tão desastradamente que bati com a cabeça no umbral da porta. Assim agora, com um adesivo a tapar-me a sobrancelha, mas isento de novos terrores no cemitério, esperei com minha prima nora no pátio exterior das caves de Lomond.
Esse pátio ficava entre a linha do caminho de ferro e as traseiras do edifício de tijolos rubros das caves. era uma coisa estranha, incrível, cercada de estacas, espécie de terra de ninguém, cheia de madeira, caixotes, grades com garrafas vazias ou partidas e restos de palha. Um monte de coque bloqueava a porta da adega, a um canto havia uma capoeira em ruínas, diante da qual esgaravalavam, bicavam e cacarejavam galinhas, noutro, uma fileira de canis que pareciam manter-se de pé por meio de um emaranhado de arame ferrugento, e tudo isto em tal estado de desordem, contrastando com a arrumação da minha própria casa e de tudo o que eu conhecia ou vira antes, que acabou por se revestir para mim do encanto do "belo horrível".
O espectáculo devia ter-me transparecido no rosto, quando relanceei a vista derredor, porque nora me contemplou com um sorriso malicioso e interrogador.
- Não está muito em ordem, pois não? -- Realmente, não está muito, concordei diplomaticamente.
- As coisas aqui são assim mesmo. sempre em confusão.
- E acrescentou, despreocupada: - 0 prédio está condenado.
- Condenado? - A palavra tinha algo de sinistro.
- Há ordem para ser demolido dada pela câmara municipal. Se não ruir antes...
naquele momento passou um comboio da caledoniana, talvez o mesmo que o meu pobre pai tomava em novo, e à sua passagem, como para confirmar o que a nora dissera, todo o prédio estremeceu, as caixas tombaram do cimo da pilha, e a própria casa, vibrando de alto a baixo na sua velha estrutura, desprendeu um bocado de argamassa que me caiu exactamente aos pés,olhei apreensivo para a minha prima.
Mas que vão vocês fazer, nora, quando isto for demolido? Vamos falir, suponho, como já quase nos aconteceu antes.
Estaria a brincar? Não, aparentemente falava a sério, contudo, não parecia importar-se nada, e tornou a sorrir com a mais completa indiferença, agradava-me o seu sorriso, tão cheio de um à-vontade de que eu era incapaz. conhecia a minha prima há poucas horas e sentia-se disposto a gostar dela sem reservas, desde a sua facezita fina e animada que, apesar da bancarrota da família, cintilava de alegria, à pele que tinha a cor da nata, aos olhos quase pretos, com pestanas compridas e recurvas, e ao cabelo que ela deixava solto e era também de um preto luzidio. embora uns três anos mais velha do que eu, continuava mais ou menos da minha altura, e muito delgada de ombros e de pernas, para aquela conjuntura envergara um vestido novo de lã preta, leve, com muitas pregas e que tinha um ar luxuoso que contrastava com a declaração de insolvência atribuída aos pais.
- Aquele cão é do Terry. chama-se Joker.
Como se desejosa de estimular a nossa conversa des-falecente, reassumira o papel de cicerone e apontara para um animal magro, comprido, cor de rato, de olhos melancólicos e cauda curta e enrolada, que espreitava silencioso do fundo do canil, pertencia a uma raça que eu desconhecia, sem qualquer semelhança com os animais aristocráticos e bem tratados que vi passeando nas ruas de Ardfillan.
- É de raça atravessada? - Perguntei.
- Qual! não sabes distinguir um galgo? O Joker tem muito valor, custou um dinheirão ao Terry, não há homem, cão ou cavalo que o bata nas corridas.
A minha cara de total incompreensão deve tê-la levado a mudar de assunto, no entanto, se bem que abanasse a cabeça, não era pessoa para se deixar vencer facilmente, em todo o caso escolheu um tema mais simples:
- Bem - comentou, quebrando o silêncio que se estabelecera. - Não tardam a regressar. mas não o tio Simon, esse tão cedo não se escapa da sua entrevista com o superior.
Para não ficar atrás dela, esbocei um gesto de assentimento, embora não fizesse a mínima ideia do que fosse o tal superior. antes de ir para o cemitério, o tio Simon falara em particular com minha mãe, ignorava, todavia, a natureza dessa conversa.
- Naturalmente o velho é contra isso, prosseguiu nora, mas acabará por ceder. Hás-de compreender que é uma grande honra para o tio Simon.
- Com certeza, retorqui, sem perceber ainda de que se tratava. aquela diabinha parecia saber tudo. A curiosidade, porém, levou-me a indagar:
- Quem é o superior, nora? Olhou-me embasbacada.
- O bispo, homem! O velho Mick Macauley, de Winton. não sabes que querem mandar o tio ensinar num seminário espanhol?
fiquei como se petrificado. então o tio Simon ia deixar-nos, justamente agora que me tornara tão seu amigo! E a mãe também contava com ele.
- Mas o tio Leo há-de vir, disse eu, após um silêncio, ansioso por não perder a presença desae outro tio que eu não conhecia ainda.
- Ah, sim, replicou ela, indiferente. - Virá. tem de esperar pelo comboio. é uma pessoa esquisita, mesmo muito. Verás se não é. O Terry chama-lhe gabiru.
Esta palavra desconhecida, pronunciada com tanta ênfase como se ainda se tratasse do bispo, abalou-me profundamente. mas insisti:
- Que faz ele, nora?
tem um armazém em Winton. vende fazendas por atacado, mas o tio Conor costumava dizer, rindo, que nunca se sabia ao certo em que é que o Leo se ocupava.
Desde a véspera que me achava num estado de tensão nervosa, e esta referência inesperada ao meu pai, vivo e rindo, trouxe-me lágrimas aos olhos. Nora fitou-me de cenho carregado e protestou:
- Não recomeces nisso, já que principio a gostar de ti, vou mostrar-te as galinhas.
Agarrou-me no braço e arrastou-me à força para a capoeira, resolvida a distrair-me a todo o custo.
- Olha, ali estão. venham cá, venham cá... tínhamos uma dúzia, mas duas morreram. aquela está choca. É preciso expulsá-la do ninho. sai daí, patifa! Ah, um ovo tão escuro! Vamos tirá-lo e cozê-lo para a tua merenda.
Pegou no ovo tentadoramente macio, castanho, levemente mosqueado. mas era inútil, a mudança rápida da luz do dia para o interior sombrio e misterioso da capoeira, que cheirava a palha e tinha outros odores mais desagradáveis, aumentou a minha tristeza.
- Pára com isso, por amor de Deus! Segurando o ovo, empurrou-me contra a parede.
Depois, passando-me firmemente um braço em torno do pescoço, deu-me uma série de rijas cabeçadas. O roçar do cabelo dela na minha cara, o calor da sua proximidade, a força com que me cingia, tudo isto era singularmente apaziguador. quando, por fim, ofegante, nora se deteve, experimentei imensa pena de que não continuasse com aquele tratamento tão reconstituinte, comecava a sorrir dèbilmente, mas, de súbito, dei fé de UMA coisa pegajosa no cocuruto, a qual já me deslizava pela nuca.
Oh, diabo! O ovo quebrou-se, exclamou. - Depressa, deixa cá ver o lenço. Não, não importa, isto é uma loção estupenda, não há nada melhor para o cabelo.
Que poderia eu fazer senão submeter-me à fricção capilar que ela me administrava?
- Pelo menos isto tirou-te a vontade de chorar,
declarou, examinando-me com olho crítico. - Mas ainda ficarásse mais reanimado se tomares qualquer coisa.
Dócilmente, deixei que ela me conduzisse, através do pátio, até à porta das traseiras, e depois ao longo de um corredor estreito que desembocava no salão do estabelecimento. enquanto eu contemplava com um espanto de neófito as torneiras de cerveja, as filas de garrafas nas prateleiras, a serradura espalhada no chão, nora observou:
-- Em sinal de luto temos isto encerrado até à noite.
Avançou calmamente para um barrilinho de loiça que estava no balcão, adornado com as palavras "vinho do porto", abriu a torneira de metal e encheu dois cálices.
- Toma, ordenou. - Emborca isto. Mas não digas a ninguém, é para te dar coragem.
Eu era como cera nas suas mãos. enquanto ela bebia a sua porção, eu "emborquei" a minha, depois, subi com ela para a sala da residência, compartimento espaçoso, cheio de mobília boa mas mal tratada, e quase tão desarranjado como o pátio. Por cima do fogão, diante do qual secavam várias toalhas, via-se uma grande fotografia colorida do Pápa Leão XIII, com uns palmitos secos enfiados na parte superior da moldura, e, na base, um anúncio das corridas de junho. ao fundo da sala ostentava-se um harmónio com as teclas quebradas e, a um canto, sapatos desirmanados, um saco roto de bolachas para cães, diversos livros de orações mais ou menos rasgados, e um par de suspensórios velhos. Parecia incrível que o tio Bernard fosse tão diferente do meu pai, que detestava o desarranjo e, tanto na sua pessoa como em tudo o que respeitava à higiene, chegava a ser exagerado.
Quando entrei, sentindo uma extraordinária leveza de pernas, a mãe ajudava a mulher do tio Bernard (que eu agora sabia chamar-se Teresa) a pôr na comprida mesa de mogno a loiça para o repasto. espantava-me a actividade da mãe e o seu decidido ar de alegria, na verdade, estava muito mais magra, mas, ao regressar de Port Cregan, esperava encontrá-la prostrada por desgosto inconsolável. Não compreendia que, fosse qual fosse a sua reacção futura, naquela ocasião não a dominasse a tristeza. exausta por meses de enfermagem, sabendo que meu pai devia morrer, só podia sentir alívio ao ver-lhe o fim do sofrimento.
Que hálito agradável que tu tens, disse, beijando-me. Acarinhava-me muito mais desde que eu voltara. - Estiveste a chupar rebuçados ?
- Não, senhora - respondi e não mentia.
Nesse momento a tia teresa entrou, trazendo uma travessa com um presunto enorme.
- Não foi a carruagem o que eu ouvi? - Inquiriu sorridente. - Visto isso, podemos servir a refeição.
A mãe de nora era uma mulherzinha branda, hesitante, que parecia sempre viver numa atmosfera de admiração e alheamento. os seios visivelmente túmidos, sob uma sumptuosa blusa de cetim preto, deram-me a impressão (seria efeito do vinho do porto?) de que, por uma questão de comodidade, ela tirara o corpete, ou então se esquecera de o pôr. O seu rosto, pálido por natureza mas que o calor do fogão enrubescera um pouco, tinha uma expressão vagamente sonhadora, como se tantos anos dessas caves condenadas e da desordem que ali reinava a houvessem por fim elevado a um páramo sobrenatural onde ela vogava sossegadamente, isolada e imune.
- Já aí estão, confirmou nora. - Vêm a subir a escada.
Mal acabara de falar, abriu-se a porta e entraram os meus dois tios. Bernard vinha à frente, pesado, de costas abauladas, mole, meio calvo, de cara flácida e bolsas sob os olhos, o que, embora tivesse apenas quarenta e cinco anos, o fazia parecer mais velho. desde que lhe observara um sentimentalismo tão pronunciado que se diria incapaz de o conter, não me admirei de lhe ver ainda na mão o lenço de barra preta quando se aproximou de minha mãe e lhe poisou um braço consolador sobre o ombro.
- Minha pobre filha, a mão de Deus caíu sobre nós, mas deves ser corajosa. agora tudo acabou, ele repousa debaixo da terra, junto dos pais, e só nos resta conformarmo-nos com a vontade do todo poderoso. Digo-te, porém, que se me despedaçou o coração quando o desceram à cova. Conor, meu irmão, tão novo, tão bém dotado, com tão belo futuro à sua frente. E deixar-te a ti e ao pequeno... ah, devia ter sido o que mais lhe custou! Com a ajuda do senhor, providenciarei para que nada vos falte. Jurei-o à beira da campa e torno a jurar, agora, Grace, reanima-te, senta-te e come qualquer coisa. Depois veremos o que se há-de fazer por ti e pelo teu filho.
O discurso de Bernard, proferido quase sem tomar fôlego, cheio de lírica intensidade (e que minha mãe escutou de cabeça pendida), comoveu-me profundamente. Olhei, expectante, para o tio Leo, mas, para minha surpresa e decepção, este conservou-se silencioso. O tio Leo, alguns anos mais novo do que Bernard, era alto e bastante magro, com cara comprida, rapada, pálida e inexpressiva, curvada pela massa de cabelo preto e liso, ao contrário dos outros, não apresentava nenhum sinal de luto. Estava de fato azul escuro, um fato tão apertado e tão lustroso pelo uso que, com certeza, ele vestia desde rapaz. enquanto o irmão falou, a sua fisionomia permaneceu inalterável, salvo quanto a um leve tique dos cantos da boca, pelo facto de a sua personalidade parecer tão reservada e distante, aquilo bem se poderia considerar vestígio de um sorriso sarcástico.
Nesse momento meu primo terence entrou de escantilhão, com o aspecto mais elegante e belo do que nunca, de verdadeiro homem de sociedade, Bernard murmurou uma oração breve e todos nos sentámos à mesa.
A abundância de vitualhas foi para mim outra indicação da generosidade de Bernard, ainda mais de louvar se pensarmos nas suas dificuldades financeiras. Enquanto a tia teresa andava dentro e fora, transportando, com o seu ar alheado, novo fornecimento da cozinha, salsichas, puré de batata, galinha, eu nunca vira tanta quantidade de alimentos, Bernard incitava-nos a comer e, considerando a sua dor, reprimia-se com notável fortaleza, a mãe não tinha muito apetite, e eu também não, para falar a verdade. o vinho surtia o seu efeito e eu sentia a cabeça como se repleta de algodão em rama, sensação extraordinária, mas não desagradável, que me fazia esquecer as passadas tristezas. No entanto, o mais curioso de tudo eram as maneiras à mesa e as preferências gastronómicas do tio Leo, que, no começo da refeição, deliberadamente voltara o prato para impedir qualquer possibilidade de lhe colocarem ali as iguarias do funeral, evitando como a peste os manjares fumegantes da tia Teresa e contentando-se com um copo de leite, um bolo de trigo quente, mastigado devagar, e quatro comprimidos tirados de um frasquinho que trazia no bolso do colete.
- E agora, minha querida Grace, disse Bernard, olhando para a mãe com estima e compaixão, estás de acordo em que tenhamos uma pequena conversa de família acerca do teu futuro? Pelo que deduzi, o nosso pobre con não te deixou muito dinheiro... Se é que posso expor o caso nestes termos, sem ofensa.
- Quase tudo o que possuíamos foi para o negócio de Conor, respondeu a mãe, muito calma.
- E para bom fim, ele pagou tudo o que devia, tanto ao Hagemann como ao banco, dominava a situação.
O tio Leo, que até aí não dissera nada, e tinha o estranho hábito de não olhar para a cara das pessoas, ergueu então a vista ao tecto, mesmo por cima da cabeça da mãe, e perguntou com ar desanimado.
- Ele tinha seguro? Não,creio que tentou, mas não chegámos a receber a apólice.
Que há ao certo no banco? - Insistiu Leo, sempre a olhar para o tecto.
Cerca de duzentas libras. - A mãe corou ao responder.
- E, é claro, resta a conta do médico e as despesas do enterro. Bernard ergueu a mão benevolente, a impor silêncio.
Nem mais uma palavra a esse respeito. como já te disse, isso do funeral é comigo, e também se há-de resolver quanto à conta do médico.
Mesmo assim, com duzentas libras, não se vai longe, observou Leo, em tom soturno. - Na minha opinião, a primeira coisa que a cunhada deve fazer é vender parte da sua mobília e deixar aquela casa dispendiosa.
- Já tenho tudo determinado nesse sentido. apeteceu-me felicitar a mãe por aquela réplica tão tranquila, e tê-lo-ia feito se o tio Leo não recomeçasse logo;
- Em seguida, convém transaccionar a representação...
- Não - Retorquiu a mãe, abanando a cabeça.
- Porquê? Deve valer alguma coisa... Se se achar comprador. Ainda que a U. D. I. se haja desinteressado, sempre pode fazer qualquer oferta.
- Não quero vender. Por baixo da mesa agarrei a mão de minha mãe, que estava fria e um tanto trémula, ela, porém, continuou com firmeza:
- Conor fez o negócio. A ideia foi inteiramente sua e era excelente. Por lealdade para com ele, não desejo ver isso em mãos alheias. È essencialmente obra de UMA pessoa, creio que serei capaz de continuar. Tentarei. Vou ocupar-me da agência.
Houve um silêncio, Bernard, entusiasmado, bateu no tampo da mesa, muito bem, Estou do teu lado, receberás encomendas, e sem ser por causa dos teus bonitos olhos. Sim, senhora, és uma mulher heróica. Mas quanto ao Laurence? Estarás todo o dia em winton. Se eu o mandasse para Rockcliff, como fiz ao meu Terence?
Irá mais tarde, talvez... - Volveu a mãe. - Agora não me quero separar dele. Combinei com uma vizinha tomar-lhe de arrendamento três quartos na sua casa. Ela olhará pelo Laurence quando ele não estiver na escola.
Íamos então viver com Miss Greville! A informação da mãe, para mim absolutamente inesperada, produziu-me um verdadeiro sobressalto, no qual tiveram parte igual o receio e a excitação. Enquanto Bernard continuava a louvar a minha mãe, prognosticando-lhe, com muito optimismo, todos os êxitos, eu tentei prever as contingências adstritas à nossa nova residência e, embora mal o conseguisse, qualquer coisa me dizia que seriam importantes. A discussão entre a mãe e os meus tios prosseguiu, mas já eu ultrapassara o estado de atenção coerente, se bem que uma vez por outra tivesse vaga consciência da nota de pessimismo que se depreendia da voz de Leo.
- Pois então, declarou ele, no final, se está resolvida a isso, nada mais se poderá fazer.
Na pausa que se seguiu, o tio Bernard fez um sinal misterioso a terence, que baixou a cabeça e se levantou.
- Ele vai abrir as portas do estabelecimento,explicou Bernard, soltando um suspiro. A vida tem de continuar.
- Primeiro, devo dar de comer ao cão,disse Terry.
- Arranja-lhe o jantar, nora. queres vir?
- Acrescentou, olhando para mim.
Descemos ao pátio por uma escada exterior cuja existência me passara até aí despercebida. repelindo os pulos frenéticos do Joker com as palavras "quieto, bruto!", Terence sacudiu a poeira de um caixote e sentou-se cautelosamente.
Ora cá estamos nós outra vez. -- É verdade, Terence. E não em muito boas circunstâncias. Pois não, Terence. Calámo-nos. Meu primo observou-me dos pés à cabeça. Por uma questão de curiosidade... Quem te arranjou essa farpela? - Miss O'Riordan. Logo vi.
- Abanou a cabeça lentamente, sinal de reprovação. - Se não te precatas, rapaz, as mulheres serão a tua desgraça. Aprende a governar-te sozinho. Não consintas que elas mandem em ti, senão ficarás sob o seu poder para o resto da vida.
A homília de Terence não foi para mim muito compreensível, mas como parecia manifestar interesse pelo meu bem-estar, aceitei-a como obséquio à triste situação em que me achava. creio que se preparava para me dar outros sábios conselhos, nesse momento, porém, nora apareceu, trazendo num prato uma grande posta de carne de primeira qualidade.
Vê se te despachas, Terry. Está lá fora uma porção de gente com a garganta seca, que esperem. talvez lhes aumente a sede. Quero mostrar o Joker ao nosso primo. - Soltando o galgo, cujo movimento de cauda se tornara vertiginoso, tirou o prato das mãos de nora, colocou-o no chão e, em tom de aviso solene, bradou: - Sexta-feira!
O cão, que já se lançava sobre a carne, deteve-se como que electrizado. Ali diante do prato, com a baba a gotejar-lhe da boca, fixava Terence com olhos suplicantes.
- Bem vês - notou meu primo, acendendo um cigarro com um vagar que exasperava Joker. - Este animal é bom católico. Não toca na carne em dias de abstinência. Mas hoje não é sexta-feira, objectei.
Para o Joker a minha palavra basta. É tão infalível como a do papa. daqui a pouco dir-lhe-ei que é sábado.
Fiquei profundamente impressionado, mas, de súbito, ocorreu-me um pensamento. E como é que resolves o caso na quaresma, Terry? Nesse tempo, todos os dias são praticamente de abstinência.
Na quaresma... - Terence pareceu reflectir. Na quaresma concedemos-lhe dispensa. É, na verdade, um cão muito cumpridor. E o mais engraçado é que o comprei a um judeu. Tive muito trabalho em lhe tirar os hábitos hebraicos, mas por fim, graças a Deus, converti-o, e agora é o mais devoto possível. Havias de vê-lo fingir-se coxo antes de eu o alcançar numa corrida!
Aonde este notável diálogo nos conduziria é impossível determinar, O certo é que parecia causar a nora uma série de sobressaltos que ela procurava conter. Foi, no entanto, interrompido por violentas pancadas em qualquer porta que dava para a rua, e alguém gritou:
- Abram, por amor de Deus! Estamos todos aqui de goela seca.
Terence levantou-se sem demora e desobrigou Joker com um gesto e entoação verdadeiramente apostólicos.
- Isto foi só para tu veres, rapaz, observou quando se retirava. - O Joker nunca falta.
Em três dentadas a carne desapareceu. Houve um silêncio de certo modo vazio, após essa extraordinária demonstração. Quebrou-o minha mãe, chamando-me do cimo da escada. Tinham insistido para que passássemos a noite em casa do tio Bernard, mas recusara (com grande desconsolo meu, pois estava desejoso de renovar o meu conhecimento com nora na capoeira) e agora, como já passava das quatro horas, dizia que devíamos ir tomar o comboio.
Enquanto ela punha o chapéu e o casaco, o tio Leo, que nem uma só vez me dirigira a palavra e nem sequer parecera dar pela minha existência, aproximou-se DE mim em passo vagaroso. Quando a sua figura alta, triste e enigmática se imobilizou a meu lado, Leo tirou do bolso das calças lustrosas um punhadito de moedas de prata, entre as quais, depois de busca diligente, achou uma de um quarto de xelim.
- Toma, pequeno, disse ele. - Não desperdices. É dinheiro que custou a ganhar, e lembra-te sempre disto, o teu melhor amigo será sempre a tua conta DE banco.
Não ficara com boa impressão do tio Leo, mas nesse momento, vendo-o tão pouco abonado (o que eu já desconfiara) mas ansioso de me dar aquela moedinha, se bem que fosse a mais pequena de todas, e tão escura e gasta que tive dúvidas quanto à sua validade, senti pena dele e agradeci-lhe reconhecido.
- Parece que o tio Bernard, se vai ocupar de ti, observou ele, impassível, embora os lábios lhe tremessem. - Há-de fazer por ti tudo o que puder. Eu cá não fui feliz nos meus negócios, mas se algum dia precisares de um emprego ou de aprender um ofício, vem ter comigo. Já o disse a tua mãe.
Sem se despedir, voltou-me costas e afastou-se.
Nora e Terence, agora aliviados das suas obrigações pela presença do pai, vieram connosco à estação, quanto me regozijei pelo facto de nora me pegar na mão, baloiçando-a sempre enquanto andávamos! E corei de satisfação quando Terry me perguntou se eu ainda era bom corredor. Achei agradável estar ao ar livre, com a brisa fresca a dissipar todas as impressões estranhas e contraditórias que me haviam tomado naquele breve tempo. os passos da mãe pareciam igualmente mais ligeiros, como se ela não se tivesse sentido à vontade em casa do tio bernard e o dia, apesar de suportado com resignação e calma, lhe houvesse representado UMA provação horrível.
Sentados juntos ao canto de uma carruagem de terceira classe, ela não dizia nada, e eu, fitando-a intensamente, compreendi a tristeza que a envolvia. quais eram ao certo os seus pensamentos? Sem dúvida que acerca de meu pai, e de quanto ele havia sido, como o tio Simon, diferente dos outros irmãos. OU pensaria na SUA situação actual, em nítido contraste com a vida passada e A educação recebida, ambas tão decentes comparadas com o que vira e padecera naquele dia? Não pude decidir. Mas o que então mais importava era estar assim junto dela, num comboio que se afastava das caves de Lomond e, ganhando velocidade, nos levava, através de um crepúsculo sereno e pálido, de novo para além do vale sombrio de Fruin.
XIII
NA segunda semana de Abril eu e a mãe mudámo-nos para casa de Miss Greville, mudança memorável, não só de domicílio como também de vida. O alojamento, oferecido tão agradavelmente, era apreciável e, tudo considerado, ajustava-se às nossas necessidades, nas traseiras do primeiro andar da espaçosa vivenda tínhamos dois belos quartos, não muito grandes mas bem iluminados e alegres, visto darem ambos para o jardim, e ainda um mais pequeno, contíguo àqueles, antiga alcova que Miss Greville, com a instalação de fogão a gás e pia de loiça, convertera numa cozinha exígua mas funcional. Também dispúnhamos de uma casa de banho, no vão do patamar. Sem dúvida que houvera o cuidado e a preocupação de tornar a nossa existência confortável, e, como não sabia qual a quantia exacta que a mãe pagava mas que devia ser modesta, o facto representava aos meus olhos mais o propósito de Miss Greville nos querer auxiliar do que a vontade de receber um mesquinho rendimento.
Ali, pois, nessa reduzida acomodação, principiamos uma vida nova, todas as manhãs a mãe se levantava às sete horas e fazia o nosso primeiro almoço. Em geral começava por umas papas e em seguida comíamos cada qual um ovo quente e torradas com manteiga. Enquanto a mãe tomava várias xícaras de chá muito forte, eu ingeria um copo de leite. Segundo ela me confessou, não conseguia fazer nada sem principiar o dia com o seu chá forte, dir-se-ia que a animava e fortalecia, apesar de parecer sempre triste, ainda não perdera aquele ar oprimido que me assustara quando regressei de Port Cregan.
Depois dessa colação ela lavava a loiça e eu enxugava-a, e então enquanto me acabava de arranjar, a mãe vestia o seu fato de trabalho, de tecido cinzento escuro, que alívio vê-la sem o preto sinistro do dia do funeral, que acertadamente considerou prejudicial ao seu labor! Às oito e um quarto saíamos juntos, a mãe para tomar, sem qualquer relutância, o comboio das oito e quarenta, eu para me dirigir, com grande aversão, à escola. custa-me acrescentar, mas é a verdade, que ainda se tratava da de Santa Maria, a nossa situação nessa época era demasiado incerta para poder justificar a frequência de uma escola melhor.
Todavia, se este sonho adorado tivera de ser diferido, fui amplamente compensado pelo golpe surpreendente dado na velha rotina. já que a querida mãe passava fora o dia inteiro (não voltava antes das seis horas da tarde, almoçando em qualquer restaurante de winton), Miss Greville propusera, até insistira, que eu tomasse com ela a refeição do meio-dia, almoçar na companhia de Miss Greville tornou-se o encanto e ao mesmo tempo, pelo menos no início, a prova crucial da minha vida.
No primeiro dia, quando entrei, arquejante, às doze e trinta, depois de vir a correr todo o caminho de regresso da escola, com medo de chegar atrasado, ela esperava-me na casa de jantar, de pé, com o polegar metido no cinto, relanceou a vista pelo relógio de bronze e porcelana, da prateleira do fogão, e disse:
- Bom, foste pontual. Vai lavar as mãos e penteia-te.
Voltei, e Miss Greville indicou-me o lugar. Sentámo-nos. o almoço, servido pela velha criada Campbell
(que procedia como se eu não existisse) foi delicioso, quente e, para mim, constituiu grata novidade. Os acessórios da mesa, entre os quais avultavam dois faisões de prata, assim como a disposição dos pesados talheres do mesmo metal, bastaram para me atrapalhar e intimidar. Deixei cair o guardanapo e tive de o procurar, As apalpadelas, debaixo da cadeira. Depois de haver apanhado, ouvi Miss Greville observar:
- Vamos ter a nossa primeira conversa, Carroll. Repara que te trato simplesmente por Carroll. Visto que és actualmente o único deste nome, não há razão para te chamar menino Carroll. Para um pequeno carinhosamente designado por Laurie, e só em raros casos por Laurence, o emprego do apelido só podia parecer uma agressão brutal aos meus sentimentos.
Para começar, quando vieres para a mesa deves daqui por diante arrastar-me a cadeira e verificar se estou bem sentada, antes de tu mesmo ocupares o teu lugar. Percebeste?
Sim, senhora, respondi humildemente.
- Além disso, durante o almoço, que espero seja sempre agradável para ti, deverás cultivar a arte da conversação. Trataremos de acontecimentos corriqueiros, de desporto (se preferires), de história natural, livros, música, e pessoas. A primeira pessoa a ser discutida, Carroll, serás tu.
Senti-me corar. Penso que não quererás vir a ser um ensimesmado. Sabes o que isto é? Uma criatura perpetuamente condoída de si mesma. Queres ser assim?
Não, Miss Greville.
Então deixa de ter pena de ti. Por muito amiga que seja da tua mãe, acho que estás a sofrer de um excesso de benevolência maternal. Proponho-te, por isso, que abraces o ideal espartano. Conheces sem dúvida a cidade grega de Esparta, onde as crianças fracas eram enjeitadas e morriam ao abandono, ou, melhor ainda, simplesmente atiradas da rocha abaixo.
Oh! - Murmurei.
Já vi essa rocha, volveu Miss Greville com frieza.
- Agora responde, Carroll. queres ser lançado da rocha ou viver como um verdadeiro rapaz grego?
- E como viviam eles? - Perguntei, afectando desdém.
Desde o dia em que entravam na escola, aos sete anos, passavam grande parte do tempo exercitando-se, sob vigilância competente, na palestra. lutavam, corriam, jogavam com uma bola cheia de sementes, andavam descalços, aprendiam a atirar projécteis e a repelidos, O seu interesse era conservarem-se vivos através de várias competições próprias de cada idade, mas basta de história, por agora é suficiente sugerir-te a vantagem de um banho frio todas as manhãs e de exercícios que fazem enrijar o corpo e circular o sangue, a triste verdade, Carroll, é que te acho um pequeno anormalmente solitário, brando em excesso, estragado com mimos e sem nenhuma decisão.
Tão magoado fiquei que os olhos se me arrasaram de água.
- Se choras, Carroll, disse ela firmemente, nunca mais quero saber de ti. Repudio-te.
Mordi os lábios com força para reprimir as lágrimas. Embora ela me houvesse ofendido, eu não queria que me repudiasse. Além disso, a indignação começava a ferver em mim. A frase "anormalmente solitário" deu-me no goto.
- Talvez queira explicar, disse eu um pouco a medo, como é que um rapaz na minha situação pode deixar de ser solitário. Que companhia há-de ter?
A minha. - Miss Greville olhou-me calmamente. - Sabes alguma coisa de botânica?
Não, senhora,respondi, com ar sombrio.
Então amanhã, como é sábado, começarás a aprender. Espero aqui por ti às nove em ponto. E agora serve-te doutra costeleta. Mas lembra-te de que o garfo não é uma pá. Os seus dentes são para ser utilizados, espeta-os na carne.
Mantendo-me assim submetido, miss greville concentrou-se. Com um leve sorriso, tão peculiar, nos lábios, dir-se-ia absorta no invisível. O olhar, no entanto, permanecia fixo no relógio. Quando este bateu uma hora, ela levantou-se e, pegando na xícara de café que lhe haviam servido, avançou para a janela, fascinado, eu vi-a ali de pé, por trás da longa cortina de rendas, onde, meio escondida, ela sorvia lentamente o café. de súbito, deteve-se, e o sorriso aprofundou-se. Por fim voltou para dentro, com uma expressão satisfeita, quase alegre, e poisou a xícara na mesa.
- Podes ir-te embora, Carroll, disse em tom afável.
- E não te esqueças. Amanhã de manhã, às nove.
Nessa tarde, na escola, em vez de prestar atenção a Soror Margaret Mary, que se esforçava por nos ensinar os princípios das fracções, meditei tristemente, quase heroicamente, nos insultos que recebera, e, à noite, quando a mãe voltou de Winton, informei-a de que não estava disposto a sujeitar-me aos planos que Miss Greville concebera para mim.
- Acho que deves ir, meu filho, disse a mãe, apaziguadora. - Estou certa de que ela faz isso para teu bem.
Assim se tornou evidente que a mãe estava associada à minha detractora.
Na manhã seguinte, entre apreensivo e curioso, compareci à hora marcada. Miss Greville apresentava uma figura um tanto singular. tinha uma saia de mescla que, muito mais curta do que parecia conveniente, deixava à mostra a barriga das pernas musculosas metidas num par de sólidas botas de cabedal, o chapéu verde à tirolesa, de aba virada de um lado e encarrapitado na cabeça, tinha um ornamento que em nada se distinguia do traje, pusera a tiracolo um estranho recipiente lacado de preto.
-Isto, explicou ela, notando o meu espanto, é a caixa para os especímenes. E aquilo é o nosso almoço. Tu é que o vais transportar.
Pegando numa mochila de coiro tão escurecida pelo tempo como as botas, ajudou-me a afivelá-la às costas, e em seguida iniciámos a marcha. Em passo cadenciado, fomos pela nossa rua até Sinclair Road, que levava directamente à colina. Miss Greville segurava um curioso bordão ornado de pequeninas insígnias de prata. Apeteceu-me perguntar-lhe o que significavam, mas subíamos com tal ímpeto a ladeira que achei mais prudente poupar o fôlego. Além disso percebia que os transeuntes nos lançavam olhares de mofa, os quais a minha companheira desprezava em absoluto.
Chegámos ao cimo da encosta sem trocar uma palavra. Em breve passámos pelas últimas vivendas espaçosas que se ostentavam no meio de grandes jardins em que já avultavam pinheiros, a civilização ficara para trás de nós, achávamo-nos em plena mata. O suor descia-me para os olhos, a respiração provocava-me um ruído sibilante. Quando compreendi que Miss Greville achava que esses pinhais ainda não eram suficientemente remotos e pretendia arrastar-me para a charneca distante, estive quase a esmorecer. Contudo, não dei parte de fraco, por mais débil que fosse a minha coragem, aquela mulher abominável e absorvente conseguira insuflar-me novas energias. Queria demonstrar-lhe que não era o rapazinho que os espartanos precipitariam do alto da rocha. Com a garganta seca e o coração aos pulos, continuei a acompanhá-la, às vezes a meio trote, recusando-me a ficar para trás, e quando, por fim, saímos da mata e entrámos no imenso espaço vazio, que se estendia por muitas milhas através do vale de Fruin até às margens do lago, eu ainda seguia, embora exausto, ao lado de Miss Greville.
Aqui, felizmente, ela parou, olhou para mim e tirou o relógio do cinto.
Uma hora e vinte minutos, participou. - Não foi de todo mau. faremos melhor, quando te aperfeiçoares. Estás cansado?
Não, senhora - repliquei mentindo. Observando-me com atenção, pela primeira vez, sorriu e disse muito animada.
- Então começaremos o verdadeiro objectivo do passeio. Tem estado um inverno sem neve, e, se tivermos sorte, acharemos coisas interessantes para a tua colecção.
Segui-a pouco entusiasmado, enquanto Miss Graville, curvando a cabeça, se embrenhava devagar no matagal.
- Deves conhecer as plantas vulgares da charneca. A urze, ainda não em flor, o tojo, a giesta... e o linho-dos-brejos, de penachinhos brancos que voam no vento... - fez uma pausa.
- Mas já conheces esta...
- Não, senhora, respondi mal humorado. Ajoelhara no chão e, afastando as ervas, mostrava-me uma plantinha delicada de folhas pontiagudas, coberta de flores amarelas.
- É a canafrecha, Narthecium ossifragum, uma das liliáceas.
Apesar da minha má vontade, impressionou-me não só a sua manifesta erudição como a inesperada descoberta daquela flor oculta, cintilante.
- Arrancamo-la?
- Não. Vamos apenas colher um racimo para imprensar.
- E apanhou uma simples haste que, um tanto para minha surpresa (visto que eu decidira não cooperar), aceitei e guardei na caixa.
Continuámos a andar por uns minutos, sem nenhum incidente, até que ela se deteve outra vez.
- Ora ali está qualquer coisa pouco vulgar. A orvalhinha, de folhas redondas, drosera rotundifolia.
Enquanto eu olhava para a graciosa roseta, Miss Greville prosseguiu:
- Cada folha, como vês, tem várias ordens de pêlos de um tom carmesim, com cabeças redondas, lembra os tentáculos da anémona do mar. De facto o seu fim é idêntico, segregam um fluido pegajoso que prende os insectozinhos que se arrastam na folha. Os esforços que eles fazem para se libertar irritam os pêlos, os quais se curvam sobre o insecto, que assim fica seguro e é digerido e assimilado pela planta. Percebo!
- Exclamei, admirado. - É uma planta papa-moscas.
Exactamente. Esta vamos arrancar. Não lhe tenho grande amor, plantá-la-emos em terra musgosa e tu poderás, lá em casa, observá-la em acção.
- Poderei realmente, Miss Greville? - Por que não?
Consentiu que eu manejasse o saehinho tirado da caixa e, depois de arrecadada a planta, fez um gesto como que a libertar-me.
- Agora que já estás iniciado, Carroll, vai procurar sozinho, chama-me se vires alguma coisa digna de interesse.
Obedeci com uma prontidão que eu não acreditaria ser possível, ansioso por demonstrar a minha perícia de explorador. para desgosto meu, embora Miss Greville parecesse estar a obter êxito, os meus olhos experientes não descobriam nada. mas por fim, quando menos esperava, topei uma flor magnífica, erecta no meio da eiva murcha, grande como um jacinto e de um bonito tom de púrpura, Miss greville!
- Chamei. - Venha cá se faz favor, aproximou-se. Veja, Miss Greville, não é uma beleza? Confirmou com um generoso movimento de anuência.
- É a Orchis maculata, raiz tuberculosa, brácteas verdes, trinervadas, um espécimen de primeira ordem, felicito-te, Carroll, se descobríssemos a sua congénere, a Moris, poderíamos considerar-nos afortunados. Corei de orgulho, cuidadosamente, ela cortou duas flores do caule espinhoso e, com outros exemplares que havia colhido, permitiu-me que as guardasse na caixa, encontrávamo-nos agora num côncavo arrelvado da charneca, provavelmente uma antiga pastagem, abrigada de um lado por uma rocha alta, Miss Greville ergueu os olhos, O sol pálido estava mesmo por cima de nós.
- Não te parece, Carroll, que é bom sítio para se almoçar? Concordei imediatamente com a escolha do local.
- Vamos lá ver o que a Campbell nos arranjou - disse ela, abri a mochila e peguei reverentemente nos guardanapos húmidos que embrulhavam várias iguarias, entre as quais notei, com prazer, que havia salsichas dentro de pãezinhos feitos em casa, por fim descobri, junto da garrafa de café, uma limonada da marca que eu mais apreciava. Isto comoveu-me tanto que exclamei:
- Oh, Miss Greville, foi tão bondosa! A campbell é que foi, ela não gosta de mim , não costuma exteriorizar os seus sentimentos, mas não responde quando eu lhe falo. A Campbell talvez não esteja disposta a conversar. além disso é um tanto surda.
Arrumado este assunto, começámos o almoço. como este excedia a minha expectativa, comi grande parte dele, o que foi favorecido pelo facto de Miss Greville não ter dado muito apreço às salsichas. havia tirado o chapéu e estava sentada muito direita, de olhos semi-cerrados e com aquele sorriso que concedia à alma da charneca, de tempos a tempos, enquanto mastigava resolutamente, eu olhava receoso para ela. O vento cantava nas estevas, por cima de nós, em círculo, voavam narcejas, piando no céu azul, mais nenhum som, a não ser o zumbido de alguma abelha.
- Dá licença que diga uma coisa, Miss Greville? - Atrevi-me a perguntar, lançando mão da última sanduíche de agrião e ovo. - Parece-me que vou gostar muito de botânica, imperturbável, ela inclinou a cabeça.
- Então vamos fazer mais, ainda temos de encontrar uma orchis moris para reunir à tua Orchis maculata.
Demorámo-nos ainda um bocado e depois recomeçámos na busca, não nos embrenhando muito no matagal mas cortando-o em direcção ao caminho, cheio de ardor botânico, excedi-me verdadeiramente, deparámos a orquídea Moris, e exemplares de murta, de pimpinela amarela e erva de S. João, das quais Miss Greville sabia os nomes latinos, também me mostrou um ninho de tarambola com quatro ovos e um grupo de medronheiros que em poucas semanas teriam fruto.
A tarde declinava, enevoando-se, quando finalmente tomámos a estrada. mas agora, se bem que sempre longa,era a descer. tinha as pernas cansadas, porém o peito estava cheio de ar puro. esta inflação e uma sensação inebriante de façanhas cometidas acompanha-ram-me durante um encontro inesperado - que noutras circunstâncias me enervaria, com o reverendo Lesly, vigário de S. Judas, a igreja de miss Greville. embora eu automaticamente suspeitasse de todos os sacerdotes de credos diferentes do meu, considerei o homem bastante simpático e, respondendo a uma pergunta sua, declarei-me católico de uma maneira que Miss Greville mais tarde elogiou.
-- O reverendo Lesly tem dotes excepcionais, é também um espírito largo, disse-me ela, que estava em maré de louvores. - Nós, os de S. Judas, estamos sob muitos aspectos de acordo convosco, se bem que o celibato não seja naturalmente imposto ao nosso clero.
Chegámos a casa, com efusivos agradecimentos, separei-me de Miss Greville e subi para os meus aposentos, com a caixa das plantas.
- Mãe, tive um dia óptimo, achei uma orquídea rara, e, além de uma planta que come moscas, trazemos outras de várias espécies, Miss Greville vai-me ensinar a prepará-las e vai também cortar secções para o seu microscópio.
A mãe estava sentada, fazendo contas numa folha de papel. Quando levantou a cabeça, a sua expressão pareceu-me tão preocupada que perguntei:
- Não me ouviu ? Que aconteceu ?
- Recompôs-se imediatamente.
- Sim, filho, ouvi-te. - Puxou-me para si E apertou-me com força. - que belas cores adquiriste! senta-te aqui a meu lado, muito pertinho, E conta-me tudo a esse respeito.
XIV
DURANTE essa primavera e verão seguinte passei horas de felicidade e bem-estar nas charnecas, às vezes em companhia de miss Greville, mas quase sempre sozinho, a minha paixão pela história natural teve ao menos o mérito de me tornar mais saudável, ou talvez isso fosse devido aos halteres leves que Miss Greville colocara no meu quarto e aos banhos frios matinais, que apesar das objecções da minha mãe eu persistia em tomar sob os conselhos da minha mentora, a qual, com exemplos convincentes da austeridade seguida pelos corredores que se treinavam para os jogos olímpicos, continuava a animar-me com o ideal helénico.
- Não foste dotado com uma anatomia muito notável, Carroll. tens de a melhorar,mau grado essa deficiência inata, comecei a desen-volver-me, mas sentia-me mortificado quando miss Greville procurava em vão os primeiros sinais do progresso dos meus bicípetes, além disso aperfeiçoei-me deveras no conhecimento da charneca, sabia os nomes de todas as plantas silvestres existentes entre Ardfillan e o vale de Fruin, discernia a diferença subtil que vai do quinquefólio a uma sete-em-rama, e, quando queria alardear, até era capaz de cortar em secções e colorir uma planta para mostrá-la à mãe no velho microscópio Zeiss de Miss Greville.
Se os passeios solitários pelos tojais me não proporcionaram a tão ambicionada camaradagem de alguém da minha idade, o certo é que me trouxeram a amizade incrível daquele espectro dos meus primeiros anos de infância, um couteiro. depois de uma apresentação penosa (quando ao ver o meu vulto recortado no horizonte o guarda john mackenzie veio a correr para me acusar de destruição de ovos de galinhas silvestres), o conteúdo da minha caixa de especímenes tranquilizou-o em parte e a gíria botânica que eu usei para me justificar convenceu-o provavelmente de que estava a lidar com um maluco. mais tarde, em diversas ocasiões, observando-me através do seu óculo do ofício, ele devia ter-se certificado da minha inocência, e até arranjou oportunidade de se encontrar comigo e de conversar, quando me achou útil para a localização dos ovos de aves daqueles sítios, como couteiro do vale de Fruin, a sua tarefa consistia em conseguir a maior quantidade de caça para o dia 12 de agosto, creio que por fim mereci o seu respeito, porque ele se deu ao trabalho de me fornecer temas estimulantes para a minha conversa ao almoço com miss Greville. Sabe uma coisa, miss Greville? - Comecei eu certa vez, depois de provar com satisfação a primeira colherada de uma sopa de tom vermelho, em que predominava a beterraba e que tinha o nome de bortsch, sei muitas coisas, Carroll. a qual delas te referes? Ao galo silvestre.
Estou familiarizada - respondeu ela, pensativamente - com essa ave, tanto no prato como fora dele. meu defunto pai caçava grandes quantidades nos baldios do Yorkshire.
Mas sabe, miss Greville, que quando a avezita voa, só com cinco dias de existência, não poderia sobreviver sem duas coisas? Os raminhos novos da urze, sugeriu ela. E que mais ? Abanou a cabeça.
- Mosquinhas! - declarei. Miss Greville levantou a vista da sopa. O quê?! Espantas-me, Carroll.
Já calculava - volvi, triunfante. - É por isso que se devem queimar as urzes velhas, com muitas raízes, e manter as poças da charneca aptas à procriação dos insectos em proteínas. Foi com certo orgulho que falei em proteínas. O senhor mackenzie era de facto um homem instruído. - Também a água é necessária, Miss Greville, a fêmea bebe muito mais quando está a chocar. é claro que os rebanhos são a maior praga que aflige o senhor mackenzie, que os está sempre a contar. A contar carneiros? então sofre de insónias? - Indagou.
Não é isso, Miss Greville, as ovelhas pastam na charneca. só certo número tem licença para ali estar, mas comem noite e dia os renovos das urzes. são piores do que os corvos. nunca perdem o apetite, consentiu, por fim, em sorrir.
- Alegra-me que não tenhas perdido o teu, serve-te de mais sopa, naquelas aventuras sentir-me-ia feliz durante as férias grandes se não fosse a mudança, que de súbito se me tornou evidente, operada em minha mãe, porque amava e confiava nela mais do que em ninguém, sempre imaginara que resistiria à morte do pai, nem eu podia adivinhar a depressão moral de que ela sofria, além da perda da companhia e apoio do marido, absorvido nas minhas digressões botânicas, mal reparava no seu olhar tão alheado quando ao fim do dia ela regressava de winton, ou como às vezes ficava sentada, com expressão abstracta, dedo apoiado à face e lábios movendo-se ao de leve, como se falasse sozinha.
- Que melancolia é essa, Grace? - dizia miss Greville, fazendo uma aparição inopinada no andar de cima. - Tem de ir comigo lá para baixo, miss Gillbraith e Alice Charteris vieram visitar-me e agora é altura de um pouco de música.
SINTO-ME CANSADA, respondia A MÃE - E REALMENTE NÃO estou COM disposição PARA TOCAR, PODEM ARRANJAR-SE perfeitamente sem mim. Que disparate, Grace! Todas NÓS A desejamos, e isso só lhe faria bem.
Estas amigas de miss Greville eram professoras na escola de Santa Ana, dignas sob todos os aspectos, E quando a mãe cedia às instâncias, aqueles SERÕES musicais enervavam-na bastante.
Contudo havia responsabilidades às quais eu compreendia que nem um quarteto de Haydn podia DAR alívio, a mim afigurava-se simples e natural que a mãe se ocupasse dos negócios do pai, estava tudo regularizado, tudo corria bem, tudo continuaria como dantes, nem um só problema financeiro nos ameaçava.
Certo dia, o correio trouxe uma carta para a mãe, acontecimento tão raro que eu aguardei cheio de curiosidade quando ela a abriu e a leu, de repente, pareceu-me que lhe faltava a respiração e vi-a levar a mão à testa.
-oh, meu deus! - exclamou em voz angustiada. - isto é terrível.
- Que foi, mãe? Como se perdesse as forças, sentou-se, com a CARTA na mão.
- O tio bernard manda-me a conta. - A mãe estava quase incoerente, mas vi que precisava de desabafar comigo. - Teu pai, antes de morrer, disse-me que queria um enterro muito simples. mas o tio Bernard não concordou. Assumiu toda a responsabilidade, por essa razão tivemos todos aqueles luxos desnecessários, detestáveis, dispendiosos. E agora a conta, que eu supunha liquidada há muito tempo, é-me enviada com a ameaça de um notificação. E a soma é grande? Enorme!
Invadiu-me uma onda de indignação. - Ele é que deve pagar. prometeu pagar todas as despesas do enterro, eu ouvi. A mãe relia a CARTA.
Diz que não pode, que lhe vão demolir o prédio, que deve a outras pessoas e que está muito atrapalhado. Não há direito de fazer uma coisa dessas! ele é um... perfeito indesejável.
- Esta palavra eu aprendera-a com Miss Greville e, no caso presente, não se justificaria muito. O tio Bernard era um homem sem noções práticas, condescendente consigo mesmo, sempre endividado e à beira da falência, e no entanto procurava viver bem e dar conforto aos filhos, além disso, como outros do seu género, andava cheio de boas intenções, era sincero nas suas promessas e nas generosas ideias de bem-fazer, não só nessa ocasião acreditava que não faltaria à palavra dada como muitas vezes, por uma espécie de alucinação, se convencia de que cumprira tudo, talvez a mãe sentisse isto, porque suspirou. Suponho que queria pagar, mas decerto lhe faltou o dinheiro, diz que naturalmente terá de abrir falência, os seus negócios correm mal.
Não é a primeira vez que fala da falência - retorqui, implacável. - E sai-se sempre bem, com boa comida e bons fatos, e todo o conforto possível, como vimos no dia do funeral.
Há gente que vive desse modo. todavia a-responsabilidade recai sobre mim e eu quero pagar tudo, sem mais delongas. - a mãe falava lentamente, e acrescentou para si mesma: - meu pobre Conor, não haverá disputas mesquinhas sobre a tua sepultura!
A carta de Bernard devia ter feito a mãe sentir-se muito só, o tio Simon estava nos seus claustros de espanha. não havia probabilidade de comunicar com Leo. Era natural que ela procurasse estímulo noutro lugar. embora nunca escrevesse à família, podia fazê-lo agora ao irmão mais novo, Stephen, que se achava na universidade de winton. escreveu-lhe, pois, e eu levei a carta ao correio. Stephen chegou num sábado à tarde. estava exactamente como eu me recordava dele nas suas raras visitas a Ardencaple, moço pálido, calmo e pensativo, de
feições regulares, bem delineadas, e bela testa de intelectual com tendência para vincar uma ruga de estudioso, falava pouco, porém mostrou satisfação em ver A mãe, cuja mão segurou por muito tempo, fitando-a interrogativamente nos olhos. bastaria esta cena para se compreender a afeição que entre eles existia, preparara-se uma merenda abundante, com fiambre e salada de batata. quando acabou, a mãe deu-me dinheiro e disse-me que podia ir à cidade comprar uma lata de caramelos. Eu sabia que queriam conversar, de modo que não apressei o meu regresso. contudo, quando voltei, estavam ainda a conferenciar, debruçados sobre a mesa, onde havia uma rima de documentos.
Realmente não deves apoquentar-te, Grace - dizia Stephen. - As coisas vão muito bem. - Tinha um lápis na mão e, com a outra, revolvia o cabelo preto, deixando cair um pouco de caspa na gola do casaco. - Uma vez tudo liquidado, incluindo essa conta inesperada, ainda ficarás com cento e cinquenta libras no banco é pouco, preciso de pensar na educação do Laurence.
Mas tens o teu trabalho, Hagemann foi justo em garantir as entregas nas condições anteriores. O negócio, como depreendo, é extremamente fácil de gerir, e as encomendas não diminuíram.
Fazem-mas somente porque têm pena de mim e porque gostavam do Conor.
- Também hão-de gostar de ti, a mãe abanou A cabeça, mas já não, como antes, tão desanimada.
- Não posso lidar com eles familiarmente diante de uma garrafa de cerveja, como fazia o pobre Conor. A ideia da mãe com uma garrafa de cerveja era tão cómica que soltei uma risada, isso fez com que erguessem a vista para mim e, por um momento, a mãe sorriu-me, depois, reunindo os papéis:
- Sabes, Laurence, que o teu tio, tão novo e inteligente, se formou com distinção na universidade e obteve outra bolsa de estudos, especial para investigações? Não gostarias de lhe seguir o exemplo? Sem dúvida que gostaria.
Stephen pôs-se de pé, consultou o relógio, um simples ingersoll de cinco xelins, igual ao meu, e declarou que eram horas de ir tomar o comboio. em seguida, com um olhar cauteloso para mim, disse em voz baixa à mãe, Não quero teimar contigo, grace, mas por que não reconsideras na oferta do nosso pai? Para quê? - Redarguiu a mãe. - Voltar atrás, fingir que estou arrependida, que cometi um erro terrível, mas agora vou ser boazinha e fazer as pazes? Creio poder garantir-te que serias bem acolhida, e terás outra vez um lar confortável, rodeada da tua família.
- Mas em que condições? não posso aceitá-las, é para ti um ponto tão importante como isso? A mãe, de olhos baixos, pareceu debater consigo mesma qualquer questão.
- Extraordinariamente importante. e por causa de... sabes quem, que pensaria ele de mim se de repente me retratasse e dissesse: "agora tens de esquecer tudo o que te ensinámos de pequenino e submeteres-te a ideias diferentes"? Além de ser cruel, seria também um acto de deslealdade para com... o defunto. A mãe abanou a cabeça. - O que está feito, está feito. não me lastimo. e não repudio... seguiu-se um longo silêncio, até que stephen falou:
Acho que tens razão, grace. respeito-te por isso, esta conversa que eu não compreendi fez-me no entanto sentir-me pouco à vontade, fiquei contente quando Stephen me pediu que o acompanhasse à estação.
No trajecto animou-me a estudar com afinco, constara-lhe que eu era esperto e para um rapaz órfão de pai o trabalho perseverante era o caminho do êxito. disse-me que ia tentar o funcionalismo civil do ultramar, o que não implicava necessariamente o embarque, pois, se tirasse uma nota alta no exame, poderia ficar na pátria. no entanto, por modéstia, mostrava-se pessimista quanto às suas probabilidades.
Por fim, pouco antes de o comboio partir, deu-me este conselho: Não aborreças a tua mãe, Laurence, por coisas de que Não precises realmente. ela já tem bastante com que se preocupar. e está a fazer sacrifícios por ti, prometi ser reflectido, prudente e vigilante, acarinhar, sim, a mãe, de todas maneiras possíveis. não a amava eu de todo o meu coração? Infelizmente, as promessas feitas com tanta prontidão depressa foram esquecidas, aproximava-se o inverno, e uma nova paixão começava a absorver-me.
XV
Miss Greville possuía uma grande biblioteca, herdada do pai, à qual eu tinha livre acesso, era, suponho, uma biblioteca típica de casa de província da época, volumes bem encadernados, literatura boa e má, própria para recreação do espírito. durante aquele inverno, tão frio, húmido e nevoso, condições climatéricas que normalmente se encontram nessa estação em tais latitudes, devorei aquelas páginas com voracidade crescente.
Nas memórias de quem, como eu, se aventurou a relatar os anos da sua infância, nada mais aborrecido do que a enumeração longa e fastidienta das obras que o autor leu e o conduziram à formação de um gosto literário que se revelou excelente. Por este motivo me coíbo de apresentar um catálogo e declaro apenas que li tudo.
Mas a forma da minha leitura pode merecer anotação apenas pelo facto de ter sido tão má, estendido no chão, a um canto afastado e necessariamente escuro da sala, com o nariz em cima do livro, fui lendo sempre na maior rapidez, técnica de velocidade que se aperfeiçoou com o hábito, não só omitia muita coisa como adquiri a habilidade irreverente de apanhar o sentido de uma página quase por absorção visual das palavras e frases, recordo-me perfeitamente da minha corrida através da letra escarlate no espaço de uma breve tarde, conhecendo Hester Pryne quando criança, por obscuros processos que me ultrapassavam, e enterrando-a logo a seguir, tudo entre o almoço e a merenda, trabalho de péssima assimilação que mesmo os mais peritos críticos profissionais poderiam invejar-me. Fossem quais fossem os resultados mentais desses esforços (e a minha imaginação agitava-se com visões fabris, no meio das quais eu me perdia como em transe), os efeitos físicos não tardavam a manifestar-se. Tinha os olhos vermelhos e a arder, sentia dores de cabeça, o pescoço endurecido, e dava mil voltas na cama, mesmo a dormir. no entanto eu continuava, não queria, ou melhor, não podia desistir, tão fortemente me achava sob o domínio desse narcótico.
Num sábado de março, quando os primeiros raios do sol pálido da primavera se infiltravam na sala, ergui os olhos do volume que eu lia estirado no soalho, Miss Greville observou-me com desagrado, isso não se faz, Carroll.
O quê, miss Greville? Ler constantemente. não vês o sol lá fora? ONDE está o meu juvenil espartano? Mas isto é tão bom, miss Greville! O Senhor Jorrocks acaba de dar uma queda do cavalo. Abrandou um pouco.
- Sim, jorrocks é interessante, e James Pigg. Mas tudo tem um limite, Carroll, saiu, aliviado, juntei-me ao senhor Jorrocks na sua perseguição da montada.
Nessa tarde, contudo, quando eu estava outra vez embrenhado na leitura, miss Greville reapareceu.
- Ainda tens aquela bola que te dei?
- Tenho, sim, senhora. - Na realidade, nunca a utilizara, está numa gaveta do meu quarto.
- Vai buscá-la - ordenou.
Obedeci, bem contra vontade, e submeti-me ao seu desejo de me levar ao jardim.
Três paus do jogo do críquete estavam fixados no extremo do relvado, enquanto um quarto, contra o qual se apoiava uma pá, avultava na extremidade da casa. avançando, miss Greville pegou na pá e manejou-a.
- Isto agora pertence-te, Carroll, vê se a conservas bem oleada, olha que é com óleo puro de linhaça.
Depois de eu ter aceitado a pá, ela despiu o casaco da malha e, com ar atarefado, arregaçou as mangas da blusa, deixando à mostra braços tão musculosos como a barriga das pernas. então, em silêncio, apresentou a palma da mão, onde coloquei a bola, acto que mais tarde me deu o direito de afirmar que começara a minha carreira de jogador de críquete com uma bola usada no campo do Lord's no desafio entre Eton e Harrow.
Entretanto postei-me no devido lugar e tomei a atitude de defesa. embora os meus conhecimentos do jogo fossem rudimentares, sabia que tinha boa vista e não me sentia nada mal de pá nas mãos. Como o grande estilo de miss Greville me irritava e eu me ressentira pelo facto de me haver arrancado à leitura, resolvi atirar a bola para fora do jardim e, se fosse possível (visto que ela seria a responsável), através de uma janela.
- Atenção! - disse ela, e, numa corrida curta e enérgica, arremessou-me a bola muito por baixo, dei uma volta desastrada, falhei, e o meu wicket caiu por terra,veio rasteira de mais, protestei, um yorker, palerma!
A minha humilhação durante os quinze minutos que se seguiram foi uma coisa séria. ela tinha sido educada no críquete, havia jogado com os irmãos quando rapariga e chegou a tentar introduzir o jogo na escola de santa ana, ideia mal recebida, que em parte contribuíra para a sua demissão daquele estabelecimento pretensioso. ora jogava para a minha esquerda, ora jogava alto, ora repetia os yorkers, e eu, enfraquecido, dava.
Pancadas à toa e em vão. só quando, desta maneira, me convenceu da necessidade de acertar em cheio na bola é que a minha instrução começou. e com tão bom resultado que, após outro quarto de hora de experiências, atingi o projéctil com o bojo da pá e o repeli para os degraus da porta da casa.
Uma das qualidades dessa mulher notável e, coitada, tão infeliz, era a sua habilidade em me comunicar entusiasmo. Fiquei apaixonado pelo críquete e tivemos inúmeros jogos durante aquela primavera seca e suave, mostrou-me a revista Captain, onde eu, com ciumento enlevo, admirei fotografias de alunos do melhor colégio, grupos olímpicos de calças brancas, casaco escuro e boné às riscas ou gironado. Haviam-se acabado as minhas expedições ao campo, a minha ambição de sobressair como botânico, o que eu desejava era ser um jogador famoso de críquete, como George Gunn, de Nottingham, cujo nome estava na minha pá e cujo número de pontos feitos eu seguia com o maior interesse no Winton Herald de Miss Greville, partilhando do seu triunfo quando ele marcava muitos, desgostando-me bastante quando ela nada conseguia.
Certa tarde, no começo de junho, depois de eu ter dado uma belíssima tacada que sepultou a bola no bardo de groselheiras, miss Greville ficou um tanto pensativa e, embora não fizesse nenhum comentário, notei que à noite, quando conversava com minha mãe, se mostrava satisfeita. mais tarde, a mãe, disse-me:
- Amanhã, logo que acabes as aulas, vem depressa para casa. miss greville precisa de ti.
No dia seguinte, regressei da escola a boas horas para o nosso jogo habitual no relvado, miss Greville estava à minha espera, mas vestida, embora desportivamente, para sair, e a sua bicicleta, com a pá do críquete presa por uma correia, encontrava-se ao portão.
- Iça-te para trás de mim quando eu começar a andar, recomendou ela. A bicicleta de miss Greville era de boa marca mas tinha o selim muito alto e uma forma tão pouco ortodoxa E original que não podia deixar de atrair a atenção dos transeuntes, com a dona encarrapitada lá em cima, de chapéu tirolês, a pedalar energicamente E eu pendurado atrás, depressa despertou a curiosidade do público, mas estes olhares risonhos facilmente os esqueci quando no extremo oeste da vila percebi que íamos para Willow Park, campo de jogos do clube de críquete de Ardfillan.
Miss Greville pedalou através do portão aberto, em direcção ao recinto de relva rigorosamente tosquiada, e nós desmontámos junto do elegante pavilhão branco. com assustadora irreverência, miss Greville encostou a máquina ao pau de bandeira. no meio da elipse verde, um homem de calças brancas enxovalhadas e camisola velha empurrava lentamente um cilindro. pondo as mãos na boca, em forma de corneta, miss Greville, gritou: - Heston!
O interpelado aproximou-se, acelerando o passo, E levou a mão ao boné azul quando reconheceu a minha companheira.
- Como vai essa saúde, heston? - Perguntou ela, estendendo-lhe a mão.
-- Rija, obrigado, há muito que não vejo a senhora,a última vez foi em Santa Ana.
Era homem de meia-idade, baixo, entroncado, de cabelo cortado à escovinha e com uma pele que parecia feita de couro espesso. à sua qualidade de profissional, juntava, como eu já sabia, as funções de encarregado do campo de desporto do clube.
- Ainda é treinador, Heston?
- Sim, senhora, em especial nos feriados, para os rapazes de Beechfield.
- Quero que tome conta deste,dê-lhe três ou quatro lições por semana e mande-me a conta. Olhou-me, e eu estremeci sob a sua expressão duvidosa. É pequenino, miss Greville. Você também não é muito grande, Heston.
Heston reprimiu um sorriso triste, que era, como eu mais tarde compreendi, parente próximo de uma gargalhada, mas rir, na verdade, foi coisa que nunca O vi fazer.
- Está bem - replicou ao acaso. - Veremos isso. venha cá, se faz favor.
Entrámos no pavilhão, onde me apresentou duas caneleiras. na parte de dentro estava escrito a tinta "Scott-Hamilton", e, em baixo, colégio de Beechfield.
- Ponha-as, ou só uma delas,não, não na perna direita.
Coloquei uma na esquerda, mas tão nervosamente que mal pude apertar a correia na fivela, a caneleira era grande de mais para mim, escorregava-me quando comecei a dirigir-me para o campo. miss Greville já lá se encontrava, atrás da rede.
Heston principiou a lançar bolas ridiculamente fáceis, o que provava bem a sua opinião quanto às minhas possibilidades. a primeira foi um lançamento suave, mas eu, tentando apará-la, sem jeito nenhum, falhei redondamente e ela atingiu um dos três paus verticais.
- Não sejas tolo, Carroll - gritou miss Greville, incitando-me.
Firmei os joelhos que me tremiam, resolvido a não ser tolo. acima de tudo eu ambicionava poder jogar naquele campo de críquete e sabia que, se fizesse má figura diante de Heston, seria recambiado para casa.
Comecei a repelir a bola com violência, durante cinco minutos, heston continuou a arremessá-la calmamente, depois aumentou de força e rapidez, já não se tratava de aparar a bola mas de manter intacto o meu wicket, ao fim de meia hora, heston só me derrubara os paus três vezes e vi com satisfação que ele estava a suar.
Sabia que jogara bem e esperava um elogio ou, pelo menos, felicitações, mas, embora Heston tivesse uma conversa particular com miss Greville, a quem parecia dedicar estima, o caso é que a mim só disse o seguinte:
- Temos de lhe ensinar a não ultrapassar o primeiro poste, esta indicação, que significava poder continuar com ele (apesar de proferida em tom resmungão) foi suficiente para me pôr doido de contente, no regresso, a bicicleta parecia voar. Chegado a casa, corri ao andar de cima, mãe, o Heston aceitou-me, sem contar a primeira, só me derrubou o Wicket duas vezes.
Acabara ela de entrar e, ainda com o traje da rua, preparava o nosso chá, mostrou-se mais satisfeita do que, eu esperava. No meio das suas outras preocupações afligia-a a ideia de não saber o que fizesse de mim nos dois meses das férias grandes, pois não possuía recursos que me permitissem uma mudança de ares.
Nesse caso, irás durante as férias para o Willow Park, pois claro - respondi ufano, e, com inegável egoísmo, acrescentei: - não lhe farei muita companhia, tenciono ir lá todos os dias.
XVI
O verão foi excepcionalmente belo. os dias longos e soalheiros espalhavam uma luz doirada, na mata circundante ao campo de críquete floria a madressilva, que se enroscava nos arbustos e nas sebes, e sempre que me aproximava de Willow Park o aroma inebriava-me com a promessa da tarde agradável.
Com as economias que conseguira fazer, a mãe comprara-me em Ardfillan uma bicicleta de segunda mão, a qual para mim tinha o aspecto de quase nova. certa vez chegou de winton com um embrulho que continha um par de calças brancas, um casaco azul e um cinturão azul e branco com fecho de metal prateado. sozinho no meu quarto, experimentei tudo isso e observei-me cuidadosamente ao espelho, cheguei à conclusão de que o aspecto geral era o de um jogador de críquete, até aí tivera sérias dúvidas quanto à minha aparência, perguntando muitas vezes a mim mesmo como é que pais tão belos podiam ter gerado um filho tão insignificante, e lastimando em especial a cor verde dos olhos, a qual, segundo a Enciclopédia Pears, era quase invariavelmente o infeliz resultado de casar uma pessoa de olhos azuis com outra de olhos castanhos. apesar de tudo isto, fiquei de certo modo cativado com a minha imagem. os olhos não pareciam um bocadinho menos verdes ao captarem o tom azul do casaco? Talvez não, eu, porém, havia crescido um pouco, o cabelo era de um castanho alourado e, do meu pai, herdara pelo menos a tez fresca e os sólidos dentes brancos.
Seria esta nova aparência que me deu prestígio em Willow Park, esse círculo fechado de riqueza e pretensiosismo? mais provavelmente fora a minha apresentadora quem evitara que me olhassem como um intruso e me repelissem como tal, a despeito das suas excentricidades, miss Greville desfrutava de consideração na terra, entre os membros do clube passei por um visitante que a acompanhava nas férias, talvez um sobrinho seu, o meu desembaraço no jogo veio corroborar essas conjecturas, com os rapazes de Beechfield a minha situação era mais crítica, muitos deles, cujos pais serviam nos regimentos da Índia ou noutras partes então orgulhosamente referidas como o império, permaneciam no colégio durante as férias, e havia alguns que viviam mesmo em Ardfillan, em especial o que se chamava Scott-Hamilton, dono da caneleira que eu usara, e o irmão mais novo, que vinha muitas vezes ao campo para um jogo improvisado. a princípio mostravam-se frios comigo, mas um dia, depois de eu ter feito boa exibição, Scott-Hamilton, que era alto, forte, tinha treze anos, capitaneava os onze de Beechfield e, como eu, adorava o críquete, aproximou-se de mim com o irmão.
- Queres jogar connosco? passas aqui as férias com a tua tia, não é verdade? Sim - respondi. A propósito, em que colégio andas ?
Esta era uma pergunta que eu já esperava há muito tempo e para a qual preparara a resposta, sabendo de antemão que se confessasse frequentar a incrível escola da Clay Street me desprezariam e me poriam de parte.
- Tenho um professor em casa, menti tranquilamente, desculpando-me a mim próprio com a ideia de que, no fim de contas, se miss Greville não era minha tia era uma espécie de professora.
- Ah, percebo - volveu Scott-Hamilton, condoído, tens estado doente? - Dos pulmões. - E bati com rudeza nas costelas, de qualquer maneira, isso não te complica com o críquete - redarguiu Scott-Hamilton. - Vamos escolheras equipas.
Respirei aliviado, aquilo passara. eu estava aceite.
Heston, é claro, podia desmascarar-me. mas, além do facto de eu ir muitas vezes de manhã ajudá-lo a aplanar o campo, fazer a linha de demarcação ou pôr uma rede nova, Heston estava do meu lado nesta conjuntura. a noção de igualdade que entre o amador e o profissional, que se estabeleceu meio século mais tarde, nem sequer se sonhava naquela época, e a situação de heston era a de um assalariado que devia forçosamente tratar por "senhor" a quem servia e submeter-se às suas ordens e insolências: "Heston, pode limpar-me as botas?" "onde diabo escondeu a minha camisola, Heston?" ele, porém, se sofria com isto, continuava imperturbável - O homem mais impassível que até hoje conheci, não tendo conseguido fazer parte da equipa do Hampshire, seu país natal, viera para o norte como treinador e casara em Ardfillan com uma bonita rapariga, empregada da casa de chá de Willow Park. tinha uma filhinha, uma vivenda com jardim, um lar feliz. por trás daquela fachada de indiferença, eu sentia que ele desprezava o pretensiosismo dos seus patrões, alguns dos quais, pelo menos os novos ricos, revelavam toda a afectação dos parvenus.
Durante aquele verão joguei críquete com os alunos de beechfield, em cuja companhia se tornava ainda mais agradável o som das pancadas na bola, tinha finalmente amigos, e rapazes da espécie com quem sempre desejara conviver. O sol bronzeara-me a pele, nos braços desenvolviam-se-me verdadeiros músculos, assim como nas pernas; nunca me sentira em tão boa forma. e, acima de tudo, realizara um dos meus sonhos mais ardentes, a protecção, simpatia ou amizade do primogénito dos scott-hamilton, três anos mais velho do que eu, amizade existia, sim, do meu lado, um anseio de afeição, de camaradagem, que afinal jamais obtinha inteira retribuição. usava ele um código de superioridade, ou indiferença, que nunca infringia e era bastante aborrecida. 0 seu epíteto favorito de depreciação consistia na palavra "patego", franqueza excessiva ou falta de tacto de qualquer espécie era sempre acolhida com um "não sejas patego". repetidamente nos dizia a todos que não fôssemos pategos. Sem dúvida que havia momentos de perigo, mas eu vencia-os facilmente. miss Greville, que desde o princípio discordara do meu cinto de críquete com fecho em forma de cobra, sugeriu algo de mais elegante para segurar as calças, e com este fim deu-me uma gravata que fora do irmão, depois da morte deste, ela ficara com quase tudo o que lhe pertencera.
- Olha - comentou o segundo dos Scott-Hamilton, que era mais impressionável do que o irmão, o Carroll ostenta uma velha gravata de eton.
Então compliquei as coisas, fantasiei parentescos, pus em jogo toda a fertilidade da minha imaginação e fiz um uso tão inesperado do calão de beechfield que eu próprio me espantei. tornara-me pretensioso? Não, elevara-me acima de mim mesmo, mas também muitos desses moços bazofiavam, com arrogância e naturalidade, Douglas vangloriava-se do iate do pai, um monstro de dois canos amarelos, ancorado em gareloch, e o jovem colquhoun nunca se esquecia de nos lembrar que os pais dispunham de quinze criados em bengala, eu nada tinha de que me gabar, E assim, em vez de exagerar, inventava, no entanto, tudo quanto disse ou fiz era desculpável, a manifestação de um desejo fervoroso, ridículo e comovente de ser recebido na sociedade e tratado como igual.
Nem queria pensar que o outono poria termo às minhas alegrias, contudo, quando as férias estavam prestes a acabar, essa perspectiva triste foi apaziguada pela ideia do jogo final, o tradicional encontro de todos os anos entre os rapazes treinados por heston e o segundo onze do clube, Scott-Hamilton entrara ao nosso lado, eram dez alunos do beechfield... e eu. decerto que o meu nome figurava no último lugar da lista, mas isso não tinha importância, achava-me nos onze! Desde aí, como os dias se tornavam mais pequenos, o nosso treino passou a ser intenso, embora a sua atitude fosse a habitual, oscilando entre o aborrecimento e uma espécie de indiferença sonolenta, eu sabia que Scott (como agora o chamava) queria desesperadamente ganhar este desafio. não se tratava só do seu último ano em Beechfield, antes de ir para Fettes, tinha uma má vontade especial, reforçada de vingança, contra um dos professores do colégio, um tal Cunningham, verdadeiro intruso (na opinião de Scott), homem sem queixo e de dentes saídos, que era capitão do grupo do clube.
XVII
A manhã do desafio estava fria e clara, só com um débil nevoeiro outonal que prometia um dia bom. O jogo teria o seu início às onze. com grande pena minha, miss Greville não podia, ver-me actuar por ter um compromisso no presbitério, o reverendo Lesly, revelando extremo mau gosto, escolhera esse dia tão importante para o Garden Party anual de S. Judas, mas por um lado senti certo alívio com essa ausência forçada da minha "tia", pois havia sempre a terrível possibilidade de ela, nas suas conversas e comentários, revelar a verdadeira natureza das nossas relações. já foi pois suficiente que eu levasse comigo os seus votos de felicidades quando, às dez horas, parti para o campo do clube, é provável que o jogo do críquete não seja assunto de grande interesse para a maioria dos leitores deste livro. todavia, como esse encontro particular foi coisa falada e o seu resultado o tornou ainda mais memorável, descrevê-lo-ei resumidamente.
Em frente do pavilhão lançou-se uma moeda ao ar, e Cunningham foi assim escolhido pela sorte para ser o primeiro a usar da pá, os nossos adversários, com uma jocosidade que achámos ofensiva, estavam preparados para nos tratar com ligeireza. começaram por nos oferecer catches que, com surpresa deles, aceitámos.
Quando se resolveram a jogar a sério, o caso foi diferente. mas o nosso estilo de arremesso era seguro. ao fim de uma hora a nossa marcação estava superior à deles.
A senhora heston havia preparado um rico almoço, que foi servido de pé, as pessoas andavam cá e lá com pratos de salada, galinha, pastelão de vitela, etc, no meio da maior cordialidade, a minha acção no jogo tornara-me excitado, pelo que não tinha muito apetite, o que era de lamentar em virtude da excelência das iguarias. no entanto comi uma sanduíche de fiambre e tomei vários copos de limonada. quando me servia da última, a senhora Heston, que devia conhecer-me através do marido, disse-me em voz baixa:
- Desejo-lhe boa sorte, Laurence.
Depois do intervalo, preenchido com o almoço, foi a nossa vez de bater. scott, que era um batedor de primeira classe e atleta completo, tinha bolado sempre sem ser substituído. agora, com Bethune, ele ia inaugurar o nosso jogo. como eu o admirei quando se dirigiu airosamente para o Wicket e, com toda a calma, tomou o seu lugar. jogou a primeira série cheio de confiança, marcando com brilhantismo na sua última bola.
Sentado na varanda do pavilhão, em companhia dos outros, e aplaudido aquele jogador forte e perfeito, acalentei a esperança (apesar dos votos da senhora heston) de não ter de ir para aquele lugar, embora com a minha fantasia habitual houvesse sonhado uma exibição espectacular, sentia-me intimidado só à ideia daquela caminhada até ao Wicket, conquanto não tivesse feito nenhuns catches, eu portei-me bem, a minha reputação podia manter-se nisso com segurança. Bethune estava agora postado para se defender de Cunningham, o qual, dando uma corrida alarmante, arremessou a sua primeira bola, rápida e bem lançada, derrubou o pau central de Bethune.
Enquanto eu assentava um triste zero no meu marcador, colquhoun tomo o lugar daquele. depois de scott, ele era o nosso melhor batedor, infelizmente, nessa ocasião, não se demorou ali mais de dez minutos. O esforço do batedor seguinte foi de igual modo breve e ainda de menor resultado, na bancada da varanda sentia-se agora um ar frio de desânimo, crescia a minha inquietação de minuto para minuto, uma vez principiada a asneira, a triste sucessão continuou e só foi detida por Hailly, o qual conseguiu fazer dez pontos antes de ser apanhado por Cunningham, finalmente, houve um alívio momentâneo devido a Douglas, que conseguiu marcar quarenta.
Quando douglas saiu, a pontuação não era mais de oitenta e dois para oito Wickets, tremi no momento em que o mais novo dos Scott-Hamilton, que me precedia imediatamente na ordem de bater, se dirigiu bamboleando-se para o seu posto de uma forma que me causou inveja, Harry tinha muito de palhaço, gostava de ouvir risos, mesmo à sua custa, e conseguiu-o nessa ocasião. depois de ser pôr em guarda de forma exagerada, manejou a pá contra bolas imaginárias, tendo assim divertido os espectadores, que haviam aumentado no decurso da tarde, e tomou por fim posição para enfrentar o adversário. ao primeiro lançamento, Harry deu meia volta, perdeu o equilíbrio e ficou sentado no chão, o resultado foi uma explosão de gargalhadas, às quais os próprios partidários se juntaram, nesta atmosfera de hilaridade tinha eu de entrar em cena. colocara já as minhas caneleiras, com uma sensação terrível de vazio no estômago, meti a pá debaixo do braço, desci os degraus de madeira do pavilhão e entrei no campo.
Scott veio ao meu encontro a meio caminho do Wicket, pálido de raiva e descoroçoamento saudou-me com uma série de frases irritadas, em que se incluíam alguns conselhos. "mantém-te no teu lugar e deixa o resto comigo" eu estava tão nervoso que me esqueci de me pôr em guarda, o jogo degenerara em farsa e, para bem do críquete, mais valera que houvesse terminado logo com a minha irradiação, a primeira bola roçou o Wicket, a segunda atingiu-me no cotovelo, foi então o fim da série.
Enquanto se procedia à mudança de campo, heston, que estava a arbitrar, chegou-se a mim, de mãos nos holsos do comprido casaco branco e disse suavemente: - Aguente bem, não se afaste das bolas.
Nos acontecimentos que se seguiram, Scott-Hamilton foi o herói, eu actuei meramente como seu ajudante. bastará informar que, por sorte incrível, fiquei ali mais de três quartos de hora, o mais atento possível ao jogo, enquanto Scott atingia outros trinta e oito pontos, a sua marcação foi de oitenta e seis, ao passo que o meu total foi apenas um mísero dezanove, mas, além de conservar o meu Wicket intacto, tive um momento de glória quando, na última bolada do desafio, me aventurei a uma lance teatral.
Só compreendi que isso representava a vitória quando vi Scott à minha espera, a fim de se dirigir ao pavilhão, aí, enquanto tirávamos as caneleiras, ele repeliu todas as felicitações.
- Nunca pensei que tivéssemos uma colecção tão grande de pategos! tu, Harry, foste o pior da súcia, felizmente, houve um que não foi patego de todo, e, voltando-se para mim:
- Queres ir tomar chá à minha casa, Carroll ?
Este convite teve o efeito de um vinho capitoso, era como se me armassem cavaleiro, uma honra e uma intimidade que eu jamais esperara obter, a minha eficiência no jogo elevara-me acima de mim mesmo: agora eu flutuava, liberto, eleito membro da sociedade.
Depois de mudarmos de roupa, saímos juntos, eu, Scott e Harry, em direcção à casa destes, que ficava perto, num lugar recatado, para além da mata, pelo caminho discutimos o desafio, Harry com a sua tendência para o cómico, o outro mofando do desconsolo do senhor Cunningham, a mim não parecia que o professor estivesse muito preocupado com a derrota do seu grupo, antes pelo contrário, e, à parte a má colocacão dos dentes, eu achava-o um homem deveras simpático, quando saíramos do campo, batera-me nas costas uma palmadinha amigável e dissera: "bem jogado!" mas Scott-Hamilton, por motivos de ordem pessoal, detestava-o. gingando, cheio de arrogância, trocei do infeliz cunningham, inventando nomes ridículos para ele, entre os quais "dentinhos de coelho", que mereceu aprovação, Scott declarou que essa alcunha ia "pegar".
A propriedade era grande, imponente, seguimos por uma alameda de castanheiros que, de um lado, descobria vista de um parque, e, do outro, a certa distância, um pomar e uma horta, onde trabalhavam dois homens; ainda mais para além, avultava uma série de estufas. havia um bosquete e um conjunto de pedras, conchinhas, cascatas ornamentadas de plantas, a casa tinha trepadeiras a cobri-la, e, em frente, um largo espaço arrelvado, com dois canteiros de flores a cada banda.
Quando nos aproximámos, atravessava a relva uma senhora já com alguns cabelos brancos e de ar distinto, usava luvas próprias para jardinagem e levava consigo um açafate cheio de rosas.
- Mãe, disse Scott- Apresento-lhe o Carroll, convidei-o para tomar chá.
Ela sorriu, olhando para todos nós, não com a ternura que a minha mãe mostraria mas com certa expressão semidivertida e aristocrática, que eu, para meu opróbrio - achava agora preferível.
- Como decorreu o desafio? Ganhámos, como seria de esperar - Respondeu apressadamente o Scott.
Tem aqui os dois heróis, mãe - acentuou o Harry.
- Eu por mim não fiz nada.
Oh, desventurado Harry! Não importa, vão tomar chá comigo quando eu acabar a minha colheita de rosas.
- Antes de se afastar, ajuntou:
- Hão-de contar-me tudo isso.
Scott conduziu-me ao interior da casa, através do vestíbulo e ao longo de um corredor, ao fundo do qual existia uma porta coberta com reposteiro de baeta verde.
- Vamos tomar um refresco; disse ele, abrindo a porta, desculpa trazer-te aqui, alegremente, com desembaraço, entrei com os dois irmãos na cozinha, que era ampla, clara e revestida de ladrilhos brancos, perto da janela estava uma criada vestida com apuro, ocupada a limpar as pratas, enquanto uma cozinheira corpulenta, de costas para nós, se inclinava sobre o forno do fogão.
- Queremos Ginger-Beer, Bridgie.
- Então tomem - Replicou a cozinheira, por cima do ombro, mas não mexa nessas panquecas, menino harry, que são para o lanche da senhora.
Harry, que conhecia bem os cantos da casa, estava a fornecer-nos copos de Ginger-Beer quando a cozinheira se endireitou e, voltando-se para nós, mostrou uma cara cheia, vermelhusca e amável, com um par de olhos redondos e pretos. quase me engasguei com a minha bebida, reconhecera imediatamente a mulher, Bridget O'Halloran, fiel devota de santa maria e membro influente da irmandade de Santa Teresa, conhecer-me-ia? Pergunta tola, inútil, não se sentava ela a meu lado na igreja, não se incorporava na mesma procissão: não passava às vezes por mim nas suas saídas à tarde, quando ia ao templo e eu emergia da escola? se estes testemunhos não fossem suficientes, o seu olhar de espanto, que claramente dizia "que faz aqui, num meio a que não pertence, com o menino Scott e o menino harry?", seria bastante para me convencer de que eu fora reconhecido, e, depois, a sua expressão modificou-se. Percebi que a melindrava a minha aparição repentina numa classe superior, numa esfera onde, como criada antiga e privilegiada, ela granjeara o direito de se sentir como em família, era uma transgressão à ordem solidamente estabelecida, em que acreditava com tanta firmeza como na comunicação dos santos, tomou a atitude de quem se dispõe a conversar, de mão na ilharga, tem um novo amigo, menino Scott, é verdade, concordou ele, esvaziando o copo. - Vai ser seu colega em Beechfield? Não, Bridgie, interveio Harry. - Pelo que diz, é fraco do peito e não pode frequentar o colégio.
Ah, sim? que interessante! E como é que se instruiu ? Tem um professor em casa, um professor?
Sem prestar mais atenção a Harry, que começara a servir-se das panquecas, a mulher fixou em mim um olhar glacial e penetrante. contudo, o seu tom era persuasivo quando inquiriu, como se reflectisse:
- Mas... não o tenho visto em Clay Street com uma pasta de estudante? Afectei um sorriso incrédulo.
- Com certeza que não.
- É estranho - insistiu. - Era capaz de jurar que o vi sair da escola de Santa Maria.
Empalideci e o sorriso gelou-se-me nos lábios, esbocei, ineficazmente, um movimento em direcção à porta, não sei de que está a falar. Será capaz de me garantir de que não era o menino ?
- Claro que não era! - Exclamei em tom violento, que iria eu lá fazer? Fitou-me por um instante, até que proferiu lentamente: - E o galo cantou três vezes... Harry soltou uma risada. - É tola, a bridgie! e o galo cantou três vezes. cocorocó.
Scott-Hamilton, porém, olhava para mim muito sério e com ar de curiosidade.
- Cala-te, harry. vamo-nos embora.
O chá na sala, onde eu esperara brilhar, foi um tormento para mim. apesar dos esforços difíceis da senhora Scott-Hamilton, a conversa esmorecia. LOGO que pude, declarei que tinha de partir, o rapaz observou:
- É pena que te retires já, disse com fria polidez, depois de me acompanhar até à porta principal.
- Preciso de me encontrar com uma pessoa, alçou as sobrancelhas, com, um sorriso fugídio e desdenhoso.
- O teu professor ? Foram as suas últimas palavras.
Saí, atravessei a alameda, passei pelos dois jardineiros, pelo pomar, pelos dois campos de ténis, mas não via nada, cego de raiva, sofrendo de vergonha, toda a amargura do meu coração alanceado se dirigia contra Scott, contra todos os Scott-Hamiltons, contra Beechfield, e o clube de críquete, e o mundo inteiro, e, mais do que tudo, contra mim mesmo. amaldiçoava-me e desprezava-me com uma violência que, em vez de me fazer sucumbir de tristeza, me levou instintivamente, como o assassino que volta ao local do crime, em direcção a Santa Maria,teria Bridget, com a sua última frase, despertado na minha alma pérfida sentimentos de contrição que só podiam ser mitigados com uma visita solitária à igreja? Se assim era, não cheguei a alcançar o ponto da minha penitência. a seguir à livraria vitória, na junção da clay street com a estrada real, efectuava-se um jogo, o baixo e vulgaríssimo "pontapé na lata"; e isso em plena via pública, realizado por um grupo maltrapilho dos meus condiscípulos. abriram-se-me os olhos. eis aqui, pensei, os meus iguais. recebido com aclamações, sem fazer caso das minhas roupas patrícias, lancei-me no jogo, correndo, escorregando, dando pontapés caindo na valeta, gritando e suando, a gozar a consciência de que me desfazia da falsa aparência com que andara revestido nos derradeiros dois meses.
No meio dessa turba desenfreada, ouvi uma exclamação de horror, olhei. Fitava-me espantada uma senhora idosa, de véu de pintinhas e boá de penas, com um molho de livros debaixo do braço, era miss Galbraith, uma das amigas de miss Greville, a que tocava violino e pintava aguarelas e a quem, não muito tempo antes, eu havia cumprimentado.
Laurence! Que faz aí, com esses garotos andrajosos? Estou a jogar.
Oh, não, não! Com esses malcriados, não! Vá sem demora para casa, não vou.
Venha comigo. - Pegou-me no braço. - Tem de vir.
Não! - Gritei, libertando-me. - Não vou. estes é que são os meus amigos, vá a senhora.
O jogo prosseguiu até ao crepúsculo, não o larguei enquanto não me senti completamente purificado. depois, comprometendo-me a novos jogos quando a escola reabrisse, na próxima semana, voltei para casa exausto, com um rasgão nas calças, sujo e triste, mas, por então, em paz com a minha consciência.
XVIII
OH,a monotonia do inverno que se seguiu, quando eu, sob um céu perpetuamente chuvoso, passava de cabeça baixa, qual sombra de mim próprio, a caminho da escola e no regresso dela, por essa rua desviada, evitando tudo que pertencesse ao Beechfield, da mesma forma como haviam fugido de bandon os meus antepassados, sob a ameaça da fome e do tifo! Infelizmente esse itinerário inevitável despertava-me, em certas ocasiões, a lembrança dolorosa da minha decadência, pois me fazia esbarrar, numa volta da estrada, com grupos de raparigas de belas fardas cinzentas, aristocráticas, arrogantes até à insolência, e às quais eu tinha de ceder o lado nobre do passeio, contentando-me humildemente em caminhar pela valeta. enquanto ali estava na minha obscuridade houve uma que me atraiu a atenção, uma loirinha cativante, de duas tranças cor de linho e andar desembaraçado, essa, pelos seus encantos, ainda mais me fazia sentir a situação de pessoa posta à margem, por acaso soube o seu nome.
Quando passou, com o seu narizito arrebitado, sem sequer olhar de relance, a companheira disse em voz alta, afectando a pronúncia de Ardfillan: "não é divertido, ada?" Ao recomeçar a tertulia, peregrinação quotidiana, aquela ada se tornara a pedra de toque do inatingível, a recordação das minhas desventuras, a figura central das fantasias que eu criava não só de dia mas à noite, na cama, antes de adormecer, ada, a querida ada, observava-me com enlevo quando eu, em companhia de Heston e de George Gunn, transportava a pá do críquete para um Century no Lord's, imaginava diálogos inebriantes, trocas de presentes que provocavam mútua admiração, quantas vezes a vi inclinada para mim, exclamando: "não é divertido, Laurie?" e quanto me exaltavam as suas cartas diárias!
Querido laurie
Não sei como te agradecer as tuas lindas orquídeas, e que bom seres tão íntimo de lady Meikle, a ponto de ela te permitir que tu as colhas na sua bela estufa! Hei-de guardá-las como lembrança permanente da tua prodigalidade.
Não julgues que não te vi quando passaste por mim há dias. Tive de fingir que não te via.
Estiveste ultimamente no campo? Seria óptimo que um dia pudéssemos encontrar-nos lá, mas, é claro, somos tão vigiadas em Santa Clara! Por isso já é bem bom que eu possa escrever-te.
Saudades da tua ada
Eu escrevia estas cartas depois de fazer os trabalhos escolares e metia-as na caixa do correio para as encontrar na manhã seguinte, quando saía, no meu caminho para Clay Street lia-as com um sorriso beatífico que, ai de mim, lentamente se fanava quando a fria realidade dissolvia um sonho que não nascera apenas da sedução de ada mas do desejo que eu tinha da sua amizade, por felicidade, passadas semanas, comecei a enfas-tiar-me de ada, talvez ela também estivesse cansada de mim, porque as suas cartas denotavam frieza e eu deixei de as receber. Será, porém, mais verdadeiro notar que ela foi suplantada por um ser mais humilde.
Mais merecedor da minha afeição, apaixonara-me pela Amoeba Proteus. Foi a descoberta ocasional de um compêndio de zoologia elementar, pertencente a miss Greville e intitulado a vida do charco, o que me fez, a princípio sem entusiasmo, buscar o protozoário, essa procura, no entanto, tornou-se depressa uma paixão (excedendo as minhas pesquisas botânicas do ano anterior) e convenceu-me de que me devia tornar cientista.
Chegada a primavera, eu voltava das minhas expedições à charneca não com a caixa das plantas mas com frascos de água repleta de impurezas, que parecia fervilhante de vida e que, ao observar pelo instrumento ocular de miss Greville, me dava entrada num mundo povoado de espantosas criaturas microscópicas, cuja laboriosa actividade, desde a absorpção das diatomáceas e formação dos vascúolos até à cissiparidade e divisão dos núcleos no acto final de partição, me enchia do maior pasmo, isto originava-me uma comoção que se intensificava quando eu, passando daquelas células primárias, chegava aos habitantes mais raros e mais ferozes da floresta subaquática, a solitária vorticela. O estonteante rotador, o polistómela perfeitinho. e que alegria quando, numa tarde de março, a magnífica paramécia, com todos os cílios ondulando, avançou maiestosa através das algas verdes para o meu campo de visão!
Foi este o interesse que me susteve durante um período de melancolia e incerteza em que senti não estar a aprender nada. na escola de santa Maria era incapaz de me adiantar, cedo teria de deixá-la. contudo ainda não ousava interrogar minha mãe quanto ao que me destinava no futuro, havia agora no seu rosto uma reserva que me proibia qualquer pergunta, uma expressão que eu não queria interpretar mas que parecia de mau augúrio para as minhas esperanças, de começo, devido à pena que inspirava e à consideração pela memória do pai, a mãe fizera bastante com o negócio do fermento, mas, a pouco e pouco, isso foi declinando, estabeleceu-se a concorrência, e cada vez mais diminuíram as encomendas, o que obrigava a recorrer a economias e ameaçava frustrar o ambiente de segurança em que até então vivera.
Com o decorrer dos meses evidenciou-se progressivamente a falta de dinheiro com que labutávamos, em particular quanto à nossa mesa, porque a mãe procurava adquirir produtos mais baratos e mais alimentícios, como favas cozidas, peixe salgado, pastelão de carne, que eu recebia ressentido, desde que via acabados aqueles almoços apetitosos com que miss Greville me regalava o estômago, isto suscitava, na verdade, outro problema, um enigma misterioso respeitante à minha benfeitora, o qual estava para além do meu entendimento, miss greville, interessada em novas e imprevistas actividades, raras vezes aparecia à hora do almoço, quando eu chegava da escola, no intervalo do meio-dia, esperançado apesar de tudo, encontrava no vestíbulo a criada Campbell, a qual participava com um sorriso cruel, que me fazia cair o coração aos pés: "hoje não sirvo almoço, menino Carroll", dava sempre à palavra "menino" uma leve inflexão irónica, que, intensificando a ideia de privação, me feria profundamente, e, com as narinas dilatadas pelos bons aromas que vinham da cozinha, da própria refeição da Campbell, eu subia devagar ao andar superior, onde, na mesa da nossa cozinha, deparava um bilhete a lápis deixado pela mãe: "querido laurence, a sopa está em cima do fogão, no armário tens um prato de arroz doce" ,que acontecera a miss greville?, perguntava a mim mesmo. comigo e com minha mãe mostrava-se mais do que nunca jovial e afectuosa, contudo, parecia que a mãe achava um tanto opressivas essas efusões, a princípio agradava-lhe ser convidada para aqueles chás, e até para tocar e cantar, mas agora, que regressava de Winton cansada e desanimada, não tinha disposição para tais festas. Nos seis meses decorridos, só uma vez em que miss Greville reuniu em casa as suas poucas amigas de Santa Ana para um sarau musical é que ela acedeu a ir, e isso porque se sentiu na obrigação de tocar ou pelo menos de acompanhar miss Greville no violoncelo,desse sarau voltou deprimida e sem nenhuma vontade de outros encontros do género, não se podia deixar de concluir que quanto mais desejosa da intimidade se mostrava miss Greville, mais a mãe se retraía, não abertamente, mas com discrição, como se procurasse mantê-la a distância, notava, principalmente aos domingos, esta reserva, quando miss Greville, sumptuosamente trajada para ir à igreja com um vestido creme muito cintado, chapéu enorme, espampanante, no alto do carrapito, sombrinha nas mãos enluvadas de branco, e exalando um leve perfume de violetas de parma, vinha ao nosso andar para se submeter à apreciação.
- Fica-me bem, grace? darei na vista? Olhando para aquela figura cheia, opulenta, a mãe respondia constrangida:
- Com certeza dará na vista,também me parece.
- Miss Greville sorria confiante, e por que não, querida Grace?
Miss Greville sempre fora assídua à igreja, e o seu pendor para trajes que despertavam a atenção não constituía novidade para mim, mas aqueles atavios dominicais deviam ter qualquer intenção que o meu entendimento não abrangia, no entanto, ao contrário da mãe, eu acolhia de braços abertos todas as manifestações, fossem quais fossem, da amizade de miss greville, não só a admirava profundamente como sabia muito bem o que ela fizera por mim, e atrevia-me a esperar que faria mais. na verdade, o seu interesse pela minha pessoa parecia-me agora a única possibilidade de alcançar o que eu mais desejava.
Era nisto que pensava quando, em certo dia de março, como ainda às vezes acontecia, tive a sorte de encontrar miss Greville em casa. O almoço ia ser servido, contente por não necessitar de ir comer arroz doce, lavei-me e escovei o cabelo com o maior cuidado antes de entrar na sala de jantar, miss greville saudou-me com um sorriso amigo, se a tristeza reinava na parte da casa que habitávamos, aqui dava-se precisamente o contrário, miss Greville, nestes últimos meses tão sombrios para nós, andara sempre satisfeita. Estás bastante apresentável, Carroll - disse ela, quando ocupava o meu lugar. - Fazes muita diferença daquele rapazinho tosco que me partiu a vidraça... há quanto tempo já? Há quatro anos, miss Greville.
Não me lembro como se desenrolou a nossa conversa após esta prometedora abertura, não duvido de que fosse interessante, visto como aquela mulher tão notável possuía o condão extraordinário de provocar diálogos estimulantes e muitas vezes caprichosos, até me ensinara a replicar de forma civilizada e, na aparência, inteligente, nesse dia, porém, eu estava a contas com um excelente rosbife para lhe poder dar mais completa atenção. só quanto ao que se passou no fim do almoço é que a minha memória é clara, miss greville afastara-se, como de costume, até à janela, com a sua xícara de café, depois de ali se demorar mais do que era hábito, regressou à mesa com um ar que eu justamente considerei comunicativo em extremo, és deveras discreto, Carroll - começou ela, olhando-me com insistência, embora de forma carinhosa, acha, miss Greville?
Graças a Deus, és bem educado. nestes momentos de agradável intimidade, vês-me ir sempre até à janela e nunca perguntaste a razão por que o faço.
- Não seria delicado. - Imitando as suas maneiras, dei esta resposta incrível como qualquer pedante, por aquele rosbife, e com a ideia de o repetir, eu era capaz de tudo.
- Mas não sentias curiosidade? - Continuou, desejosa de manter o assunto em discussão. - Confessa o teu pecado.
Sem saber se conviria confessar ou negar, acabei por inclinar prudentemente a cabeça,sentia, miss Greville, e não suspeitavas do motivo ? Supunha que estava à espera de alguém que passasse aqui a essa hora, todos os dias.
- Muito bem, Carroll! Pareceu tão contente com a minha dedução que o meu inveterado desejo de brilhar me levou a prosseguir, e, fosse quem fosse, havia fatalmente de a ver, sorriu.
- Seria uma coisa sem sentido se não houvesse troca de olhares, os olhos humanos, Carroll, como meio de comunicação, são mais expressivos do que a língua, mais subtis, igualmente, e mais verdadeiros, a língua pode mentir, os olhos nunca, queres mais bife?
- Se faz favor, miss Greville.
Enquanto me regulava com outra dose de bife, ela brincava distraidamente com o seu longo colar de contas de marfim, nos lábios flutuava-lhe o mesmo sorriso vago e estranho. Conheces o senhor Lesley, com certeza. O nosso vigário de S. Judas.
- Ora se conheço! Encontro-o tantas vezes na rua! E lembra-se de que ele parou para falar connosco no primeiro dia em que voltámos do vale de Fruin? Foi no dia em que descobrimos a orquídea, exactamente. gostaste dele?
Achei-o catita, e novo. Catita, não, Carroll, que termo deplorável! Diz antes insinuante, inteligente, belo, e não é tão novo como isso, deve vir cá tomar chá comigo no próximo sábado, quero que a tua mãe o conheça.
Seguiu-se prolongado silêncio, depois de eu enrolar o meu guardanapo, e o enfiar esperançadamente na argola de prata para possível uso no futuro, miss Greville poisou em mim um olhar benevolente.
Que idade tens, Carroll ? - Treze anos.
- Como já te disse, melhoraste muito. considero-te, de certa maneira, criação minha, e quero que saibas o seguinte, sejam quais forem as mudanças que se produzam num futuro próximo, tenciono fazer algo por ti.
O coração pulou-me no peito, interpretara bem as suas palavras ou fora meramente levado pela minha esperança? Sem dúvida que tinha sido significativa a pergunta quanto à idade, muitas vezes me dissera que a dos catorze anos era a mais própria para... não me atrevia a inquirir, mas o desejo latente na minha alma fez-me proferir estas palavras:
- Talvez mandar-me para um colégio decente, miss greville? - Esboçou um gesto de aquiescência.
- Um bom colégio. - E acrescentou, notando qualquer coisa nos meus olhos: - não esse em que estás a pensar, Carroll. Não te sentirias aí muito à-vontade. deves ir para um da tua religião.
- Rockeliff... talvez... miss Greville?
- Por que te mandaríamos para a irlanda? Se insistes nos jesuítas, será preferível Amplehurst, no Yorkshire, que não é nada mau no seu género.
Amplehurst! Indiscutivelmente o melhor colégio católico, mudo de comoção, fitei-a com um olhar cintilante.
Naquela tarde não pude estar sossegado, achava impossível ir prender-me na aula mal cheirosa da Clay Street. resolvi, pois, fazer gazeta, vesti uns calções velhos e camisola e saí para uma longa digressão à chuva, gostava de correr e acreditava, com justos motivos, que era veloz,miss Grevillle animara-me a essas corridas de corta-mato e, como o banho frio matinal que eu suportava a tremer, elas haviam-se tornado não somente o modo de expressar a minha dedicação mas também a autoridade que miss Greville exercia sobre mim na instituição de um regime que, embora estranho à minha natureza, acabara por me ser agradável. enquanto me metia pelos atalhos encharcados, saltando lamaçais, ambicionava debalde encontrar-me com Scott-Hamilton para o informar de que em breve a minha vida tomaria rumo novo e brilhante.
A mãe aborreceu-se comigo quando voltei, ela regressara mais cedo noutro comboio e estava ao fogão a preparar-nos a ceia. oh, mãe, outra vez favas, não! Olhou-me com frieza.
Por onde é que andaste? vens todo molhado...
- Não se zangue - retorqui, disposto a ser expansivo. - Vou mudar de roupa, depois hei-de contar-lhe grandes novidades.
Minutos mais tarde, quando nos sentávamos à mesa estreita da cozinha, relatei entusiasmado a conversa com miss Greville, a mãe escutou-me em silêncio, olhando-me por cima da xícara de que tomava, de vez em quando, goles de chá, mas quando por fim, à laia de pós-escrito, lhe transmiti o convite de miss Greville para sábado, soltou uma exclamação ansiosa:
- O senhor Leslie vem cá?
- Pois claro, por que está tão admirada? Não sabe que ele e miss Greville são muito amigos? Todos os dias, à hora do almoço, sorriem um ao outro através da janela.
A mãe ia falar, mas conteve-se e ficou silenciosa, todavia a sua expressão parecia decididamente esquisita, isto ofendeu-me, assim como a forma como recebeu a minha informação, não me ofereci para lavar a loiça e, em vez disso, retirei-me para o meu quarto, que havia de censurável entre miss Greville e o senhor Leslie? Era evidente que a mãe ficara alarmada com a ideia daquele convite e se dispunha a não o aceitar, decerto que não me passavam despercebidas as singularidades de miss greville, as quais até me haviam encantado no princípio das nossas relações, a sua personalidade fora do vulgar infundia-me temor e respeito e eu acabara por a considerar uma excêntrica notável, razão pela qual estava preparado para não me admirar de nada que fizesse contra as convenções estabelecidas, mas tomar chá com o reverendo não se me
afigurava contrário às ditas convenções, porquê, então, lodo esse rebuliço? Não me espantaria se miss Greville convidasse, por exemplo, buffalo bill em lugar do senhor Leslie, apesar de me fingir ignorante, dava-me conta de que ela valia tanto como o seu vigário.
Quando, porém, chegou o dia de sábado, um vago mal-estar fez com que desejasse sair à tarde. O tempo estava óptimo para outra corrida, disse comigo mesmo, tanto mais que os do grupo corta-mato andavam na diversão que consiste em perseguir dois corredores que vão deixando um rasto de papéis rasgados. O referido grupo era composto de moços caixeiros, aprendizes e semelhantes, agora, mais propriamente, meus amigos, desde que no outono eu me reunira a eles e vencera uma corrida de obstáculos para rapazes de menos de catorze anos, depois de a minha mãe me arranjar um ovo frito e uma torrada, safei-me de casa trajado de calções e camisola de lã, a concentração fora marcada para a orla da floresta de Davie, eu ia atrasado, mas em breve me achei entre os pinheiros, seguindo os papéis que inicavam a pista, a excitação de a encontrar, de em seguida a perder e de a descobrir outra vez depressa me absorveu por completo, percorreu-me o corpo uma sensação de orgulho ao alcançar alguns extraviados do grupo e, sem fazer caso de uma pontada na ilharga, deixei-os para trás ocupado na busca, contudo o próprio mérito da velocidade que atingi tornou-se-me contraproducente.
Quando, percebendo que a tarde declinava, enfiei a correr e enlameado para a minha rua, vi que avaliara mal o tempo, a porta do número 7 estava aberta e nela minha mãe e miss Greville recebiam as despedidas do senhor Leslie, este era um homem de boa figura; usava a risca do cabelo ao meio, e de certo modo assemelhava-se a um actor, no entanto, naquele momento, muito corado, dir-se-ia confuso: apertou à pressa a mão das senhoras e quase que tropeçava nos degraus da porta, contrariamente aos seus hábitos de cortesia, não deu mostras de me reconhecer, ou talvez nem me visse, se jamais alguém pareceu ansioso de partir, esse foi o vigário de S. Judas.
entrei em casa, a mãe e miss Greville estavam no vestíbulo quando o atravessei em passos rápidos e furtivos, a mãe disse em voz baixa e admoestadora qualquer coisa que eu não ouvi mas a que miss Greville replicou com um riso alegre:
- Não é o que se diz, querida Grace, não viu como ele olhava para mim?
A mãe demorou-se a vir para cima, ao chegar, sentou-se pesadamente à mesa e apoiou a testa nas mãos, assustou-me, eu transpirava e sentia calafrios.
- Mãe, que aconteceu de mau? Ergueu a cabeça lentamente e olhou-me.
- Isto para nós nunca terá fim, Laurie, nunca, nunca. miss Greville está a perder a razão.
XIX
Quão estranhos foram os meses que se seguiram, para mim tão irreais que me conservavam em constante estupefacção, e para minha mãe tão cheios de ansiedade que trazia os nervos arrasados e se sobressaltava e empalidecia sempre que chegava até nós um som menos habitual, vindo do primeiro andar do prédio.
Ainda agora me custa reconstituir essa infeliz desintegração de um espírito que eu sempre considerara culto e privilegiado, tanto mais que essa dissolução mental se transformou ostensivamente em comédia, a pobre solteirona apaixonara-se pelo moço sacerdote, assunto de teatro alegre próprio para desencadear gargalhadas, para nós todavia estava longe de ser divertido, era antes uma realidade com que vivíamos e sofríamos, que miss Greville, de todas as pessoas, fosse a figura central, a vítima, de tal espectáculo, eis o que me custava a crer.
Todavia, apesar de eu, como é natural, não saber disso, o desequilíbrio de miss Greville filiava-se num que actualmente é bem conhecido em psiquiatria e não muito raro em mulheres da sua idade e estado, que têm leves tendências paranóicas. Para mim, o aspecto mais intrigante do comportamento de miss Greville era a maneira como ela dava realidade à sua ilusão, fazia os preparativos de casamento, ponderada e acertadamente.
Os acrescentamentos ao seu guarda-roupa, já não exuberante, revelavam uma serenidade que, como declarou à minha mãe, convinha à situação eclesiástica do futuro marido, os seus planos para melhorar o presbitério não podiam ser melhores, e os tecidos que já comprara para novos reposteiros denunciavam todos bom gosto, não parava um instante, parecia sempre em movimento, indo à cidade e voltando, quando tinha horas disponíveis, sentava-se a costurar ou a cortar moldes, com muita aplicação.
O mais espantoso de tudo era a forma como acolhia as tentativas para a dissuadir da sua ideia, de começo, a minha mãe falou-lhe nesse sentido com discrição e diplomacia, mas, passado tempo, empregou termos mais fortes e argumentos decisivos, que ninguém poderia contestar, miss greville, no entanto, rejeitou-os sempre, com o seu sorriso calmo e confiante, ouvia até ao fim, quase divertida, e depois, abanando a cabeça, despedia-a com esta lógica irrefutável: "a grace não compreende, há motivos para tudo, sei muito bem."
Estas três palavras finais, que provavam a convicção absoluta em que laborava, eram inatacáveis pela razão, a mãe já não sabia que dissesse ou fizesse, a quem poderia recorrer? Aquelas senhoras de Santa Ana, tão familiarizadas com as anteriores fraquezas de miss greville, não tomariam a mãe a sério, persuadidas de que essa nova fase da amiga haveria de passar, de qualquer maneira, devido à sua situação na escola, compreendia-se que não quisessem imiscuir-se no assunto, a criada Campbell, com quem a mãe tentou aconselhar-se, não foi de nenhum auxílio, essa mulher surda e taciturna andava desde o início ressentida com a nossa intromissão na casa, achava que tinha direitos mais antigos sobre a sua patroa e não quis revelar o endereço do irmão de miss Greville - O que estava em Quénia, quando a mãe propôs escrever-lhe, as dificuldades para tomar uma deliberação pareciam insuperáveis, uma vez que o primeiro sinal de interferência da nossa parte provocaria sem dúvida um escândalo na vila, não havia nada que se pudesse fazer senão esperar, seguiu-se um período de expectativa, durante o qual a mãe muitas vezes exclamou num tom de presságio: "como acabará tudo isto ?!" Devo confessar que o aspecto estranho da situação, com o seu prenúncio de maiores terrores, me causou grande excitação, estimulada com as alterações que se produziam na personalidade de miss Greville e na sua aparência física, sobressaltavam-me e confundiam-me certas frases de imprevista franqueza, o busto e as ancas arredondavam-se-lhe mais, tinha uma maneira nova de estar de pé, com as pernas afastadas, lançando para a frente o que eu supunha ser o estômago mas que era indubitavelmente o pélvis, a fascinação que me davam estas transformações sombreavam-na, contudo, os mais persistentes pensamentos depressivos...Se miss Greville não retomasse o seu estado normal, se continuasse a piorar, como poderia cumprir a promessa que fizera de me enviar para um colégio? Que seria das minhas ambições, que tantas vertigens me causavam? Jamais se realizariam, a semelhante ideia gelava-se-me o coração, via-me perdido.
É fácil de calcular a ansiedade com que eu observava miss Greville nos momentos em que estávamos juntos, estes eram, ao presente, mais raros, visto que a mãe me conservava a maior parte das tardes a seu lado, no entanto, a falta de oportunidade não evitava que eu esperasse e temesse, nem que o meu ânimo subisse e descesse como um barómetro, em geral, estava optimista, isto não continuará, dizia comigo, tem de passar, nada de mau virá daí, e, se aguentarmos uns seis meses, tudo acabará bem. ai de mim, quanto me enganava! Outros factores operavam já, certas contingências em que eu nem tinha pensado, todos os meus pensamentos e esforços se haviam concentrado em miss greville. esquecera-me do senhor Leslie.
Num sábado chuvoso, à tarde, achava-me com a mãe, que lia o Ardfilan Herald, cuja saída era no fim da semana de repente, ouvi-a exclamar com voz agitada:
- Deus do céu!
Mudara de cor, todavia não largou o jornal, antes continuou a lê-lo avidamente, por fim deixou-o cair das mãos e inclinou-o para trás na cadeira, olhando para mim como se não me visse, isto só podia significar desgraça, já eu sentia arrepios quando lhe fiz a pergunta:
- Que foi, mãe?
Não respondeu nem pareceu dar conta da minha presença, movia os lábios não a rezar (a experiência ensinara-me que assim era) mas falando silenciosamente consigo mesma. ia repetir a pergunta quando lhe escaparam estas palavras, como se depois" de atravessarem a barreira do som:
- Ela há-de ver isto... ou ouvir dizer... Mãe! - tive de lhe abanar o braço. - Que aconteceu?
O senhor Leslie vai casar. - Fez uma pausa, no dia quinze do mês que vem.
Como se incapaz de continuar, a mãe passou-me o jornal, havia uma notícia encimada por este título, núpcias de um conhecido eclesiástico, e abaixo, em corpo menor, anuncia-se o casamento do reverendo H.A.Lesly com miss Georgina Douglas.
Depois de ler não levei muito tempo a descobrir que miss Georgina era a irmã do meu camarada jogador de críquete e filha, portanto, do rico proprietário do iate a vapor, de dois canos amarelos, apressadamente, percorri com os olhos o resto da notícia: ... inclinação que já vinha de longe ...súbita decisão da parte dos dois simpáticos jovens... muito bem acolhida pelos numerosos amigos...
- Mas isto é estupendo! - Bradei. - Esclarece tudo. A mãe olhou-me em silêncio.
- Não percebe? - Insisti. - Quando miss Greville souber que ele vai casar com outra, compreenderá que o seu casamento com ele é impossível.
- Há-de servir-lhe de grande consolo, coitada!... desconcertou-me o sorriso triste da mãe.
- Quer dizer que ela não...
- Não quero dizer nada - Volveu a mãe com firmeza, como se desejasse pôr ponto final na conversa, mas acho que não deves ir lá tão cedo... antes de ver como as coisas se resolvem, todo o serão a mãe esteve calada. a casa permanecia silenciosa, na manhã seguinte fomos à missa das dez horas, às vezes, ao domingo, miss Greville convidava-nos para almoçar. Quando voltámos da igreja, não encontrámos nenhum convite à nossa espera, e soubemos que miss Greville tinha ido a S. Judas.
O prédio continuava silencioso, não me lembro o que a mãe fizera para o almoço, porque comi sem prestar atenção, mais tarde ela repousou uma hora, enquanto eu fazia os meus exercícios escolares, às quatro horas preparei o chá, vivíamos tanto sob o sortilégio do silêncio perpétuo que só falávamos cochichando, levei a loiça do chá para a pia e, enquanto a lavava e enxugava, olhei de vez em quando para a mãe, pude ver que estava terrivelmente inquieta, ia e vinha pé ante pé no corredor, de chinelas, escutando constantemente, com a cabeça à banda.
Anoitecia e recomeçara a chover, de súbito, quando eu acendia o gás, ouvimos bater à nossa porta, a mãe assustou-se, fitei-a com um olhar inquisidor, igualmente alarmado.
- Abro? Abanou a cabeça e, dirigindo-se para a porta, ela mesma a abriu, surgiu-nos, no escuro, a figura magra, angulosa e antipática da Campbell, a sua expressão era impassível, tinha as mãos escondidas no avental engomado.
- A minha senhora deseja falar-lhes, disse cerimoniosamente. - Pois sim - respondeu devagar a mãe. - já lá vou.
- A minha senhora pede que vão ambos, acrescentou no mesmo tom a Campbell,não sei se...
- Começou o mãe, virando-se para mim.
- Está bem - acudi. - Irei consigo.
A deliberação que tomei não resultou de um acto heróico, o coração batia-me apressado, os joelhos vergavam-se-me, não queria, no entanto, ser posto de parte em tal contingência, na verdade sentia que miss Greville, vendo-se perante essa crise da sua vida, podia ser levada a fazer uma declaração vital quanto ao meu futuro.
A mãe hesitou, calculei que tencionasse interrogar a criada, obter qualquer informação quanto ao andamento do caso, mas a Campbell não era pessoa que se deixasse interrogar, até já começava a retirar-se, nós seguimo-la, antes de entrar no quarto de miss greville, ela deteve-se e, sempre cortês, franqueou-nos a passagem.
Era um quarto grande com duas janelas que davam para o terraço, mas agora os reposteiros estavam corridos e as luzes acesas, nunca entrara ali e, cheio de curiosidade, ia examinar a mobília quando a minha atenção foi solicitada para a própria miss Greville, sentada num sofá, com uma mesinha à sua frente e envolta num roupão, escrevia tão aplicadamente que nem levantou os olhos quando entrámos, havia quatro cartas redigidas, instintivamente contei os sobrescritos fechados que se viam sobre a mesa, e ocupava-se a compor uma quinta missiva. parecia calma, e embora o cabelo estivesse um pouco em desordem, a normalidade do seu aspecto sossegou-me imediatamente.
- Desculpem! - Exclamou por fim, descansando a pena, dobrou a carta, meteu-a num sobrescrito, que fechou, pôs o endereço e colou o selo, reunindo depois todas as cartas, fez um maço, que colocou à sua frente, ievantou-se e em voz baixa observou:
- Suponho, grace, que leu a notícia do Herald, não havia razão para negar e a mãe disse que sim, compreendi o alívio que sentiu pela atitude sensata de miss Greville, a quem esperava encontrar transtornada.
- A princípio,continuou ela, pensei que seria preferível não fazer caso, visto tratar-se de um ardil grosseiro, mas, considerando melhor o assunto, achei que era necessário agir, a mãe alarmou-se outra vez.
- Bem vê que ele, coitado, não teve nada com isto, trata-se de uma intriga escandalosa urdida por essa mulher, de combinação com o director do Herald, e, fora de dúvida, com o Presidente do Município. Repelindo a tentativa de protesto da minha mãe, miss Greville prosseguiu, tão tranquila como antes e num tom mais grave:
- De maneira que escrevi estas cartas ... que farás o favor de deitar no correio, Carroll. - Pegou nelas e eu aceitei-as maquinalmente. - Uma é para o senhor Lesly, outra para o Bispo, a terceira para o director do Herald e a quarta para o secretário da câmara, a última é para a tal mulher.
- Fez uma pausa e olhou para o toucador, senti a mãe sobressaltar-se. haviam trazido os floretes do vestíbulo.
- É verdade, Grace, desafiei-a para um duelo.
- Oh! - Exclamou a mãe. - Não faça semelhante coisa!
- Fá-lo-ia, mesmo que não devesse. - Miss Greville sorriu. Reconheci o sorriso de uma mulher completamente dementada, ainda antes de ela acrescentar: - É claro, querida Grace, que conto consigo para testemunha.
Não me lembro como saímos do quarto, logo que nos escapámos, a mãe foi direita ao rés-do-chão e telefonou ao doutor Ewen, que compareceu daí a meia hora nessa altura, dominado por um sentimento da maior desolação, considerando-me um verdadeiro idiota, eu havia recolhido ao meu cantinho da nossa cozinha, ali permaneci durante a visita do médico, e só saí ao perceber que o doutor ewen se retirava. quando, por cima do corrimão da escada, olhei para o vestíbulo, ouvi-o dizer à minha mãe:
- Passa-se o atestado e ela será levada imediatament
XX
TRÊS meses depois, sentado em frente da mãe numa carruagem do comboio de Winton, eu examinava-a às ocultas, tentando ler-lhe no rosto. O que depreendi tornou-me acabrunhado, calculei que ela tencionava tomar providências desesperadas, por várias vezes, na esperança de descobrir os segredos daquela fisionomia fechada, despendera esforços para a obrigar a falar, e agora fazia-o de novo, usando como pretexto a visita que projectávamos ao manicómio de Castleton.
- Supõe que miss Greville tenha melhorado ?
- Espero que sim. depressa o saberemos, respondeu a mãe, que logo recaiu no seu mutismo.
Derrotado, virei-me e olhei pela janela, mas não admirei o cenário, que corria veloz, dos estaleiros da margem fluvial, em vez disso, recapitulei os acontecimentos que nos havia trazido à beira do desastre. Não muito depois do internamento de miss Greville, chegara de África o irmão, homem alto, magro, tisnado, com ares autoritários mas de aparência correcta, tomara logo conta da irmã, e, após uma visita que lhe fez, E várias conferências com os médicos, determinara o arrendamento da casa e a remoção da mobília para um armazém, para com a mãe ele fora, de começo, delicado, tornando-se por último mais frio, dava ouvidos à Campbell, que era criada antiga da família e nunca gostara de nós, instaláramo-nos lá a convite de miss Greville e a título precário, e, embora a mãe nunca deixasse de pagar pontualmente a renda, éramos apenas intrusos, por fim, havia cerca de três semanas. - Recebêramos uma carta do advogado, na qual nos dava um mês para despejar o apartamento.
Realmente, com a partida de miss Greville e a maior parte da casa desmantelada, que mais nos podia reter no n.?7? com o decorrer do prazo que nos fora imposto, aumentou a incerteza do nosso futuro. entretanto a mãe desenvolvia grande actividade, não na agência, onde o seu trabalho parecia ter cessado, mas em súbitas saídas com destino desconhecido. nunca antes eu a vira escrever tantas cartas: ao tio Simon, que estava em Espanha, ao irmão Stephen, agora empregado no funcionalismo público, em londres, ao tio Leo, que vivia em Winton, e ainda a outras pessoas de quem jamais ouvira falar, e enviadas a lugares tão distantes como Liverpul, Nottingham e Cardife.
A paisagem, de repente, desapareceu era o túnel, que indicava estar próxima a estação, daí a minutos atravessávamos a plataforma cheia de fumo e mergulhávamos no centro da cidade, a caminho da Union Street e do carro eléctrico. Foi uma viagem lenta e longa até castleton (naquele tempo, embora a rede dos eléctricos se espalhasse por toda a parte, a velocidade destes não era muita), mas estava um dia de sol, e, quando deixámos o coração da urbe, passando pelos subúrbios dispersos e emergindo em pleno campo raso, o meu espírito, sempre sensível à vegetação, alegrou-se consideravelmente. castleton, ainda intacta, era uma linda aldeola, à entrada do manicómio, onde o condutor do carro nos deixou, havia dois portões de ornatos maciços, flanqueados por duas casinholas embutidas no alto muro de pedra circundante, senti estranha apreensão quando a mãe puxou a argola de ferro e o sino enorme retumbou.
a mãe tinha uma autorização por escrito, mostrou ao porteiro, o qual, depois de a examinar atentamente, se dirigiu a um telefone de parede, fez rodar a manivela e falou com alguém.
- É difícil penetrar aqui, mãe - Comentei em voz baixa.
- E ainda mais difícil sair - respondeu sombriamente, entretanto, o porteiro voltou, sorriu num gesto de aquiescência, e franqueou-nos a entrada.
Começámos a subir a alameda de saibro que, ladeada de faias, ia ter à casa acastelada na colina. soltei uma exclamação de espanto ao ver a extensão e beleza da propriedade, num lado havia um pomar de pereiras e macieiras em flor, através do qual avistei celeiros e pilhas de feno, e no outro uma elevação povoada de castanheiros, que terminava num jardim fronteiro ao edifício, passávamos pelos recintos de jogos e por um caramanchão entre dois canteiros com túlipas em flor, não existia ali nada que pudesse ofender a vista, mas de repente, na linha do horizonte, lobriguei uma comprida procissão sombria de vultos, uns grotescamente curvados, outros gesticulando, todos marchando em passo vagaroso, como uma fila de prisioneiros, com uma enfermeira à frente e outra na retaguarda.
Na entrada principal fomos recebidos por uma freira trajada de azul escuro, utilizando, com a destreza da longa prática, uma chave que lhe pendia do cinto por uma corrente, levou-nos, através de uma série de portas, todas sem puxadores, a um largo corredor de passadeira espessa e ornatos dourados, com outras pesadas portas a intervalos, todas fechadas, por fim, entrou numa antecâmara, onde se deteve e, olhando desanimada para mim, falou em voz baixa à mãe, a qual se voltou e me disse: -- A irmã acha preferível esperares aqui, Laurence.
embora eu quisesse ver miss Greville, pelo menos a verdadeira miss Greville, restituída ao que fora, não tive pena de que me deixassem ali, aquele abrir e fechar de portas, que nos isolava do luminoso mundo exterior, os sons estranhos, confusos e sufocados pela madeira pesada, a atmosfera de discreta morbidez e até a mobília preta de torcidos e tremidos da sala de espera em que me encontrava agora, tudo contribuía para me causar calafrios, sensação que aumentou ao ouvir um grito repentino, logo reprimido, que me fez dar um pulo da frágil cadeira estofada de veludo em que me sentara cautelosamente.
A mãe demorou-se muito tempo, mas afinal reapareceu, nesse instante, através da porta aberta, vi de relance um corredor estreito que conduzia a outro quarto, cuja porta a freira se preparava para fechar, aí, emoldurada pela esguia abertura, estava uma cara esquisita, flácida, de cabelo em carrapito e olhos negros e espantados, que se cruzaram com os meus e não deram sinal de me reconhecerem. O abalo que me provocou a visão dessa face estranha, sobrenatural, ainda me fazia vibrar os nervos quando a mãe me tomou o braço, não pude falar. sabia que tinha visto a minha boa amiga miss greville e que a não tornaria a ver.
Uma vez cá fora, ao ar livre, a mãe respirou profundamente e, depois de agradecer à freira e de se despedir, começou a descer a alameda, segurando-me sempre o braço, quando alcançámos o caramanchão, ela disse:
- Deixa-me sentar aqui um instante, Laurie, entrámos aí, embora se soubesse já, tinha de lhe fazer a pergunta: - Como a encontrou, mãe? Aquilo não tem cura, que estava ela a fazer?
- Petições, todo o dia as escreve, petições que ninguém jamais há-de ler, escreve cartas que não chegam a ir para o correio.
- E acrescentou, em seguida a uma pausa, como se falasse consigo mesma: - Agora, ao menos, sabemos com quem contar, ficou silenciosa, de cabeça apoiada na mão, observei-a inquieto.
- Se continuamos aqui por muito tempo, talvez já não possamos sair, mirou-me e sorriu. eu estava admiradíssimo. a sua expressão mudara por completo, mudança que parecia extinguir a tristeza permanente, a inquietação e as indecisões não só desse dia como das perturbadas semanas anteriores. ergueu-se e, para minha maior surpresa, pois sabia quanto estávamos em apuros, declarou alegremente:
- Vamos, filho, comer qualquer coisa.
Na aldeia de castleton havia um bom salão de chá, por cima da padaria. aqui a mãe encomendou o lanche, com tudo o que apreciava mais, torradas com muita manteiga, um ovo fresco cozido, pãezinhos quentes, mel e um prato de pastéis de creme. enquanto servia o chá, incitou-me a comer e de tal maneira que devorei todos os pastéis. observando-me, com um sorriso a pairar-lhe no rosto, e depois de olhar em volta para se assegurar de que não estava mais ninguém na sala, disse-me em tom sério:
- Laurence, tua mãe está falida.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual me senti muito pouco à vontade, contudo não houvera mágoa na sua voz, apenas uma firmeza que era quase desafio.
- A agência, recomeçou ela, terminou. Foi uma rica ideia do teu pai, mas agora acabou-se, cometi o erro de a não vender como o tio Leo aconselhara.
- Interrompeu-se para tomar o gole de chá e eu tive a visão súbita de nós dois a cantarmos numa rua de Winton, à chuva, a fim de angariar o pão para a nossa ceia.
- Não vou fatigar-te com as dificuldades dos últimos anos, sempre procurei conservar-te fora disso, mas deves tê-las adivinhado, não era trabalho para uma mulher, pelo menos para mim. a compaixão não dura sempre, e eu agora devo dizer-te, porque já és um rapaz crescido, que não temos nada, nada senão a mobília, pela qual me oferecem quarenta libras.
A esplêndida refeição que tinha tomado deu-me coragem para aparar este rude golpe. talvez fosse para isso que a mãe quisera fortificar-me. não senti mais do que um estranho vazio que me fez proferir, involuntariamente, a única resposta possível:
- Então que vamos fazer?
- Tu vais com o tio Leo e eu vou para Gales.
Isto, por ser incompreensível, pareceu-me ainda pior. A minha expressão deve ter precavido a mãe, que se inclinou para a frente, me passou meigamente os dedos pela cara e começou em tom natural e persuasivo a explicar quanto a nossa situação era grave e como, depois de ponderar todos os expedientes, achara ser aquele o que podia resolver o caso. eu deixaria a escola, pelo menos por algum tempo. O tio leo prometera tomar conta de mim e habituar-me ao seu negócio, por pior que isso fosse, cama e mesa não me faltariam. O caso dela seria mais difícil, não possuía habilitações para empregos, música era tudo quanto sabia, mesmo assim não tinha diploma para o ensino nem havia possibilidade de o tirar. contudo o tio Simon, escrevendo de espanha, dissera ter-lhe conseguido um lugar de governanta na escola de meninas do convento de santa mónica, no Monoutshire, aí, nas suas horas livres, poderia tomar umas lições especiais em Cardife, durante os próximos doze meses, depois submeter-se-ia a exame para ser visitadora sanitária. Quatro destes lugares (abertos agora às mulheres) seriam criados em Winton e, por intermédio de um amigo de Stephen no município, fora-lhe prometido um desses se a mãe obtivesse o diploma dentro de um ano, então estaria garantida com um vencimento regular, numa função para que se achava indicada, voltaríamos a reunir-nos, se eu não quisesse continuar com o tio Leo, arranjar-me-ia um explicador para recomeçar os estudos, de modo a que, mais tarde, pudesse vir a ser bolseiro e matricular-me na universidade.
Tendo acabado num tom bastante animador, a Mãe olhou-me suplicante, enquanto eu tentava recompor-me o suficiente para compreender as consequências desta proposta surpreendente, que não me seduzia nada. Todavia, através da confusão que se estabelecera no meu espírito, não deixei de ver por quantas dores e trabalhos a Mãe passara, sofrendo toda a espécie de recusas para conseguir levar avante o seu plano. Isto diminuiu em parte o meu ressentimento.
- Por que não irei consigo para Gales?
- Perguntei.
- Não é possível, filho.
- A Mãe sufocou uma risada.
- Num convento, hem? Estarás melhor com o tio Leo.
A hipótese de estar com o tio Leo num negócio verdadeiro já me havia ocorrido como admissível; mas repeli-a, declarando:
- O tio Leo é um excêntrico.
- É, e mesmo muito nalgumas coisas. Mas sou levada a confiar nele, até porque não nos prometeu mundos e fundos.
-Não poderia o tio Bernard ajudar-nos?
- Nunca, respondeu categoricamente a Mãe.
- E eu nunca lho pediria.
Tinha razão. Esse é que nos prometeria mundos e fundos, sempre com as melhores intenções e de lágrimas nos olhos. Mas no dia seguinte esquecer-se-ia de tudo.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual examinei a nossa situação, procurando uma válvula por onde escapar.
- Mãe - disse por fim, hesitante, porque se tratava de um assunto proibido, não seria possível para si... ou melhor, não recebeu a semana passada uma carta de Stephen? Pois eu pergunto: não poderíamos ir... Com os parentes do seu lado?
Suspendi-me, paralisado pelo repentino rubor que lhe subiu às faces, cedendo logo o lugar a uma palidez maior do que antes.
-Sim, Laurence, tenho possibilidade de regressar... mas em condições que nunca aceitaria.
Tive grande curiosidade de saber quais eram essas condições, mas não me atrevi a indagar. Em vez disso, um tanto soturno, comecei a pensar na nossa próxima separação, o que me fez inquirir:
- Quando é a partida?
A Mãe respirou rapidamente e exclamou animada:
- Só depois de passarmos juntos umas boas férias.
Olhei-a estupefacto. A desventura afectara-lhe o cérebro? E ei-la a sorrir-me, com a mesma expressão de desafio, tão descuidada como se houvesse alijado uma imensa carga de cima de si.
- É o que tenciono fazer, Laurie. Iremos às High-lands. Ambos merecemos repouso; precisamos dele. Aceitarei a oferta das quarenta libras pela mobília e gastá-las-emos connosco até ao último cobre. Depois disso estaremos restabelecidos e prontos para tudo.
Antes que eu pudesse responder uma só palavra, a Mãe pegou na campainha que estava em cima da mesa e agitou-a como uma louca a fim de chamar a criada.
XXI
Quando saímos da estação, Fort William encontrava se sob uma neblina que envolvia Ben Nevis e gotejava dos telhados de ardósia da cidade. Olhando em volta, enquanto a Mãe combinava com o moço de fretes o transporte da nossa bagagem num carrinho de mão, invadiu-me o singular pressentimento de que aquela estada nas Highlands seria má para mim.
Ardshied, a pensão que escolhêramos, situada a meia encosta, era uma casa pequena, quadrada, de pedra, próxima de um jardim sobranceiro ao lago e onde havia uma araucária prodigiosa. A Mãe optara por essa devido a ser mantida, por duas irmãs solteiras, que elogiavam as qualidades da pensão usando a palavra "selecta". De facto, a escolha pareceu justificada pelos nossos aposentos que, embora pequenos e no último andar, a Mãe declarou serem de asseio impecável. Logo que acabou o seu exame, que principiou pela roupa das camas e terminou no jarro da água, soou o gongo para o almoço.
Descemos, não mais que dez pessoas estavam sentadas a uma comprida mesa de mogno numa sala de janelas de varanda, com velha mobília estofada de veludo vermelho. Da cabeceira da mesa ergueu-se, para nos saudar, uma mulher alta, magra, vestida de preto, que nos declarou ser Miss Kincaid. Em seguida apresentou-nos aos outros hóspedes e à irmã mais nova, Miss Ailie Kincaid, que se encontrava no extremo da mesa. Sentando-se de novo, inclinou a cabeça, murmurou o Benedicite, e começou então a trinchar a carne.
Depressa percebi ser a sua função costumada, enquanto Miss Ailie, no outro lado, servia os legumes e, mais tarde, o pudim de sémola e ameixas.
Apesar da sua simplicidade, a comida estava boa e quente, descoberta agradável que a Mae corroborou com um olhar rápido e significativo. Eu já gostava da mais nova, a terna Miss Ailie, e embora me sentisse um pouco desconfiado de Miss Kincaid - preconceito totalmente injustificado, não vi nada desprimoroso nos outros hóspedes.
Eram todos escoceses, respeitáveis, de meia-idade ou velhos e, na sua maioria, do sexo feminino. Só havia dois homens. Um deles, sentado à minha direita, era um indivíduo baixo, gordo, de faces verme-Ihuscas, a quem já ouvira tratar por xerife Nicol. Na lapela tinha uma mosca artificial usada na pesca do salmão. E, a seguir a Miss Kincaid, estava o segundo pensionista masculino, um velhinho de cabelos brancos, com qualquer coisa de espectral, que entrara sem ruído, calçado de chinelas de feltro. Durante a refeição conservou-se sempre calado, de olhos fitos no prato, mostrando o maior dificuldade em comer com os dentes postiços. Levei algum tempo a descobrir que se tratava do pai das senhoras Kincaids.
Era surdo como uma porta, mas antes de eu saber isto considerei-o uma espécie de fenómeno.
Outra curiosidade que me chamou a atenção foi um porco de loiça com uma ranhura nas costas e que se encontrava ao centro da mesa.
- Está admirado do nosso porquinho ? - Perguntou-me, sorrindo, Miss Ailie.
- É que nós gostamos que todos sejam servidos enquanto a comida está quente, e isso depende da pontualidade às refeições. Assim, a regra é esta: quem chega tarde mete um dinheiro no porquinho. Evidentemente que é para bom fim... para o nosso hospital.
Olhei através da mesa para uma cadeira vazia.
- Esse que falta vai pagar multa?
- Não, respondeu ela, rindo. - É o lugar do senhor Sommen. Passa o dia em Ballater. Foi ao festival das Highlands.
- Nunca vi um inglês tão agarrado às Highlands como o senhor Sommen - observou uma senhora gorda, intervindo na conversa. - Adora a manta escocesa.
- Oxalá tenha bom tempo em Ballater - continuou Miss Ailie, olhando para a janela. - Estava tão interessado nas danças regionais!
- Levava a manta quando saiu esta manhã ?
- Levava, sim. E que bem que ia!
- Miss Ailie suspirou.
- Um verdadeiro senhor. Tem tão boas maneiras !
- Não se vê muitas vezes gente assim. É a alma do nosso grupinho.
Nesta altura o meu vizinho xerife tossiu como se se houvesse engasgado, e a conversa tomou outro rumo. Sem dúvida que me vira olhar para a sua mosca artificial, porque indagou de súbito se eu gostava da pesca. Informou-me de que vinha todos os anos à do salmão, em Spean, e prometeu mostrar-me um sítio onde se podiam apanhar trutas, o que me levantou logo o moral. Fiz sinal a minha Mãe, como se lhe dissesse que Fort William, no fim de contas, não era tão mau como pensara. Poderíamos ir juntos a essa lagoa e, enquanto eu pescava, ela faria meia e vigiar-me-ia. Não quis saber do ausente senhor Sommen, ou, se me lembrei dele, foi na vaga esperança de que, sendo a pessoa que era, contribuísse mais tarde para tornar as minhas férias ainda melhores.
Às cinco horas, enquanto os outros acabavam de tomar chá, fui para a entrada da casa desenredar uma linha de pesca que o meu novo amigo xerife me dera e que eu tivera artes de emaranhar mais. Nessa altura chegou à porta uma carruagem, de que se apeou ràpidamente um sujeito, pagou ao cocheiro, acrescentou um "e isto é para ti", e depois veio na minha direcção. Era um homem elegante, de tez pálida e luzidia, olhos pretos, grandes, e bigodinho também preto levemente encurvado, como uma terceira sobrancelha sobre o lábio superior. Trajava fato desportivo enxadrezado e barrete escocês, cujas fitas lhe caíam sobre um ombro, no outro tinha uma pequena manta presa por uma adagazinha de prata onde se encastoava uma grande pedra amarela.
- Então, rapazinho? - Foi a saudação jovial que me endereçou. - É novo hóspede?
- Sim, senhor.
- Veio com os seus pais ?
- Com a minha mãe.
- O pai ainda ficou a trabalhar?
- O meu pai já morreu.
- Oh, lastimo. - Pareceu logo contrito. - Lastimo muito haver gracejado. Não tinha a mínima intenção. Venha tomar chá.
Respondi que já tomara.
- Venha então comer outro bolo. De acordo? Óptimo.
Com um braço amigavelmente passado em torno dos meus ombros, entrou na sala de jantar, onde, tirando o barrete, fez uma vénia respeitosa.
- Chego tarde de mais para a bebida que alegra mas não embriaga, minhas senhoras? Se assim é, digam-no, que eu me penitenciarei pondo meio xelim no porquinho e retirando-me envergonhado.
Quando várias vozes o tranquilizaram, avançou, recebeu a xícara das mãos de Miss Ailie e, depois de cumprir a sua promessa com uma piscadela de olhos, entregando-me uma grossa fatia de bolo tirada da bandeja, tomou o seu lugar ao canto do fogão.
- Minhas senhoras, suponho que não sentiram saudades minhas, que a distância não as fez gostar mais de mim e que não têm o menor interesse em saber o que se passou no festival.
- Isso é que temos, senhor Sommen. Conte-nos.
Enquanto eu comia o bolo observava cheio de admiração aquele homem descontraído, fluente, nunca embaraçado, tão divertido em sociedade e, em especial, tão bem parecido, com a sua tez pálida, feições correctas, bigodinho cuidado e olhos pretos insinuantes. Quando concluiu a descrição do seu passeio, relatando o que fizera durante o dia, Miss Ailie apresentou-o a minha Mãe, aproveitando-se de uma pausa, e eu fiquei deveras impressionado com as suas maneiras. Desapareceu-lhe o ar brincalhão, tornou-se logo sério, correcto, respeitoso. Baixou a cabeça, falou com a Mãe por uns momentos e, lançando um olhar amigável que me abrangia, desejou-lhe uma estada feliz em Ardshied.
Depois, como se reflectindo, acrescentou:
- Em seguida ao jantar costumamos ter uns serões musicais, se é que se interessa por esta espécie de coisas...
A mãe confessou que adorava música.
- Quem sabe se toca um pouco... ou se canta?
Com desgosto meu, ela replicou que preferia ouvir.
Tão grande foi a minha desilusão que perdi a timidez e exclamei:
- A Mãe toca lindamente piano. Tocou uma vez num concerto, diante de centenas de pessoas. E também canta.
O senhor Sommen olhou para mim tão satisfeito que corei de prazer. Desviando a vista da Mãe, que se ruborizara igualmente, disse-me em voz baixa:
- Muito bem, meu rapaz! Talvez nós ambos sejamos capazes de a convencer a dar-nos o gosto de a ouvir. E agora, se me dá licença, vou tomar o meu banho. Não há nada como um banho depois de um dia ao ar livre. Au revoir!
A Mãe zangou-se comigo quando subimos aos nossos aposentos.
- Espero que o teu amigo da manta escocesa nos não mace com os seus serões musicais. É muito expansivo, não achas?
No entanto, reparei que ela envergava o seu melhor vestido, vermelho com gola de renda, que limpara e passara a ferro antes de sairmos de Ardfillan e que lhe ficava muito bem.
Quando soou o tanta e fomos para baixo, já o senhor Sommen estava na casa de jantar. De pé, numa atitude indolente, de mãos atrás das costas, ostentava uma camisa de brancura imaculada, com gravata preta de laço, calças pretas bem vincadas e casaco de popelina cnxadrczada. Achei-o imensamente elegante, não só eu como os outros. O casaco, que parecia novo, provocou um coro de louvores. Enquanto arrastava as cadeiras para as senhoras, confessou com modéstia que o comprara em Ballater, depois do festival. Só um dos comensais se mostrou abertamente discordante desta adulação geral. Ao principiarmos a comer uma sopa excelente de tomate com lentilhas, que eu adorei, ò xerife Nicol, depois de lançar olhares cáusticos por baixo das sobrancelhas espessas àquela nova peça de vestuário, observou de repente:
- O senhor sabe, com certeza, que essas cores são dos Mackenzies.
--Ah, sim? Agrada-me ouvir isso.
- E a manta que usa é dos Macgregors, ao passo que as fitas do barrete são dos Stuarts. Dá impressão de que colecciona clãs.
- Tanto melhor, replicou Sommen, sem se irritar.
- Gosto de coleccionar e, do que vi nessas raparigas das Highlands durante as suas danças de conjunto, a reunião dos vários clãs não vai nada mal.
- Mas à parte o facto de ser quase ilegal usar as cores a que não tem direito, qual é o seu objectivo?
- Em Roma sê romano - redarguiu Sommen, rindo-se com vontade.
- Eis o meu lema quando viajo.
No Verão passado estive na Suíça. Se me visse a distância não me distinguiria do Guilherme Tell.
O xerife insistiu.
- Deve ter um grande negócio para poder viajar tanto.
Sommen curvoü-se e respondeu com inesperada gravidade: -Sim, senhor, a minha família possui talvez a mais antiga manufactura de tabacos da cidade de Londres. Somos fabricantes de cigarros. Quer ver um dos nossos produtos? - Exibiu uma cigarreira de marroquim e abriu-a, mostrando uma fila de cigarros compridos e achatados. Quando aquilo passou de mão em mão, vi impresso a azul, em cada um deles, "C. R. Sommen. Especial n.?1."
- Dá-me licença que lhe ofereça?
- Agradeço, mas não aceito, resmungou o xerife, desconcertado com aquela demonstração de solidez económica. - Tenho o meu cachimbo.
Após essa troca de palavras em que o industrial de tabaco tinha evidentemente levado a melhor, o jantar continuou com renovadas amabilidades. Quando Miss Kincaid, de modo solene, deu o sinal de nos levantarmos, fomos para a sala de visitas, ou, como Miss Ailie a designava, a "sala melhor". Aí, tinham corrido os reposteiros contra o frio da noite, e no fogão brilhava um belo lume de turfa, exalando o seu aroma agradável de charneca.
Enquanto serviam em volta café e biscoitos, Sommen avançou para o piano e, de pé, tocou Pauzinhos Chineses, com um dedo só.
- Desculpem a minha humilde intromissão, senhoras e senhores. Por inesperada felicidade, temos agora entre nós uma pianista exímia, e, com a sua bondosa permissão, vou pedir-lhe que inicie a festa.
Aproximou-se e, de braço arqueado, proferiu no meio de aplausos:
- Minha senhora, dá-me a honra de a conduzir ao piano?
Devo confessar que nesta altura eu começava a estar maçado com aquele nosso novo amigo. As suas atenções para com a Mãe, ao jantar, tinham sido um tanto exageradas e agora essa galantaria barata parecia confirmar os receios que ela manifestara. Relanceei-a condoído e afinal, com surpresa, vi que a Mãe o não repelia. Pelo contrário, levantou-se e acedeu sem protestar (até com certo graciosismo) àquela indesejada deferência.
Tocou um prelúdio de Chopin e, em seguida, Danse des Echarpes, com muito garbo, acabando entre o rumor das palmas. Compreendi que, por então, Sommen estava bastante admirado, como se, imprevistamente, se encontrasse num meio que lhe era de todo estranho.
- Tem muita categoria, disse ele, quase com respeito. Depois, notando que lhe escapara a pronúncia de londrino popular, acrescentou, apurando-a,
- Excelente. Digno, do Albert Hall.
- Que disparate!- Exclamou a Mãe, rindo.
- E acrescentou como se quisesse metê-lo a ridículo:- Agora é a sua vez. Vamos ouvi-lo cantar. Eu acompanho-o ao piano.
Depois de muita procura de músicas escolheram," A Sereia". Para minha desilusão ele tinha uma voz de meio tenor que não era de todo má, e imprimia grande sentimento dramático à letra da canção:
Como um raio de luz ele desceu Rápidamente, e uma sereia achou No fundo do profundo mar azul.
A dupla demonstração de talento produziu tal efeito na assistência (com aborrecimento meu) que houve pedido geral para um dueto. Com certeza que a Mãe ia agora recusar terminantemente! Mas não. Com a mesma vivacidade, quase direi alegria, seleccionou O Casaco de Oleado, cujo primeiro verso Alto e forte o lanceiro estava moribundo me causava tamanho arrepio de expectativa que eu chegara a considerar a balada minha propriedade individual. Principiaram. Desejei tapar os ouvidos, pelo menos conservei os olhos fitos no tecto e coibi-me de me juntar à prolongada salva de palmas que os coroou.
A canção, a conversa e os risos, a familiaridade crescente e, acima de tudo, as delicadezas impertinentes daquele escocês à força, tinham-me causado a maior irritaçao. Achei que já era de mais e, aproveitando um momento de silêncio, disse em voz alta:
- Mãe, vou agora para o quarto.
Imaginava que ela se retiraria comigo, mas, em vez disso, ainda inclinada sobre a música, ao lado de Sommen, respondeu sem sequer se virar para mim.
- Sim, filho, são horas de te deitares. Daqui a pouco irei para cima.
Como eu já estivesse de pé, não tive outro remédio senão recolher ao quarto.
A Mãe demorou-se muito mais do que eu esperava. No entanto, o desejo de exprimir as minhas impressões desagradáveis não me deixou adormecer.
À sua chegada, sentei-me logo na cama.
--Afinal, a Mãe tinha razão. Aquilo foi uma maçada, não foi?
Sorriu. Os seus olhos estavam cintilantes e as faces coradas.
- Talvez, filho. Mas, de certo modo, foi um divertimento, e Deus sabe que há muito tempo não tínhamos disso.
- No entanto, Mãe, achei tudo tão reles...
- Porquê?
- Ele é apenas um fabricante de cigarros.
- Sim, e será um tanto intrometido, mas julgo-o bem intencionado, pelo que não devemos ser tão exigentes. Lembra-te de que estamos aqui só por umas férias, que há quatro anos não gozávamos, e portanto trata de as aproveitar.
Não era o género de resposta que eu esperava da minha mãe. Virando-me para outro lado, dei-lhe uma boa-noite muito brusca.
Todavia, na manhã seguinte, desaparecera-me a sensação de ofendido e, depois do almoço, levando a minha cana de pesca e uma refeição leve, parti com o xerife Nicol para Spean. A Mãe, que veio acompanhar-nos à porta, prometeu reunir-se a mim dentro de uma hora. A lagoa a que Nicol me conduziu ficava logo abaixo do rio, era antes um poço escuro e fundo, entre pinheiros, alimentado por uma queda de água. Depois de me ver ali instalado, o meu companheiro afastou-se para o seu próprio posto, ao arrepio da corrente, não sem ter olhado para o céu azul e declarado com pessimismo que o dia não estava bom para pescar à linha.
Decerto que também me não considerei muito afortunado.
No espaço de duas horas apanhei só um salmão-zinho de três polegadas, que, já se sabe, desprendi do anzol com todo o cuidado e lancei de novo à água. Como não pescava nada, cada vez me sentia mais ansioso pela chegada da Mãe. Por que se demorava tanto? Estaria o meu relógio adiantado? Não. Pelo sol, a pino, devia ser meio-dia. Já me doía o pescoço de o virar para o atalho da mata, e o rumor da queda da água fazia-me a cabeça tonta. Enrolei a linha, retirei-me para debaixo dos pinheiros e comi o meu quinhão do almoço.
A Mãe continuava sem aparecer. Cheio de irritação, decidi comer também o que lhe era destinado. Se queria almoçar viesse mais cedo!
Como não tinha outra coisa que fizesse, voltei para a pesca, mas tão desanimado andava que deixei uma enguia aproximar-se do anzol e devorar de tal maneira o engodo que me vi atrapalhado para a desprender e não a aproveitei.
Depois disto, como a tarde estivesse adiantada, resolvi renunciar de vez.
Fui-me arrastando até ao extremo da mata e já me encontrava no caminho que sobe do rio para a colina quando se me deparou um vulto recortado no horizonte. Era a Mãe.
Reanimei-me logo, mas compus uma expressão de frieza, de pessoa ressentida. Sem fazer caso das suas expansões cordiais, notei com azedume:
- Afinal não compareceu!
- Desculpa, filho. - Sorriu, ofegante.- Os nossos planos tiveram de ser alterados. Não mostrei dar atenção ao esforço que ela fizera, mesmo para chegar atrasada e arquejando, pois tinha vindo quase a correr.
- Combinaram um passeio interessante a Banavie - continuou ela. - E convenceram-me a acompanhá-los.
- Quem a convenceu ?
- Ora... Miss Baird.
Pareceu-me que hesitara antes de responder. Miss Baird era a senhora corpulenta que simpatizava com Sommen.
- A Mãe e ela foram sozinhas?
- Não, filho! - Disse isto como se a ideia se lhe afigurasse ridícula. - Duas mulheres sozinhas! O teu amigo senhor Sommen foi connosco. Ele é que organizou a excursão e tomou cuidado de tudo, saindo-se muito bem.
Naquela noite, ao jantar, observei-o à maneira de Scott-Hamilton, com um olhar crítico e avaliador. Que palhaço era aquele homem, ou antes, que pretensioso, monopolizando a conversa, enveredando-a para o assunto que preferia!
Nesse momento, como Miss Kincaid, de pois de cortar fatias de presunto, parecesse atrapalhada no trinchar uma das galinhas, e olhasse com ar de censura para a irmã, Sommen teve o desplante de interferir.
A custo acreditei nos meus olhos quando esse atrevido se inclinou com um <<dê-me licença, minha senhora", e, tirando-lhe a faca da mão, principiou a trinchar a ave. Desejei que ele cometesse qualquer asneira irremediável que levasse os outros a rirem-se à sua custa. Esperei que a galinha escorregasse da travessa para o chão, ou, melhor ainda, que lhe saltasse para a cara. Mas não. Com insuspeitada perícia e uma destreza que me pareceu incrível, cortou até ao fim, num perfeito conhecimento anatómico. Aquilo foi de mais para mim e também para Nicol, que ficou a resmungar, olhando de cenho carregado para o nosso inimigo. Alegrei-me quando o xerife me convidou para jogarmos às damas na saleta de fumo: era uma forma de evitar o serão na sala de visitas.
Nicol não falava muito, mas, quando dispusemos as pedras no tabuleiro, fitou-me e disse:
- Você é bom rapaz e a sua mãe uma senhora digna.
No seu caso, pô-la-ia de sobreaviso contra esse londrino de baixa esfera, que não me parece mais do que um caixeiro. Posso estar enganado, mas, por minha parte, não confiaria nele até o ver pelas costas.
A prevenção alarmou-me. E, passados poucos dias, não me restaram dúvidas, esse homem, esse inglês trajado à escocesa, andava... (pensei uma palava que não magoasse muito) a cortejar minha mãe. Apesar da suavidade do termo, este fez-me corar.
E o rubor aumentou ao recordar a atitude da Mãe. De início, dir-se-ia apenas lisonjeada, reacção natural que eu achara desculpável numa mulher cuja vida fora ultimamente tão triste e difícil.
Mas, a pouco e pouco, entusiasmara-se com aquelas atenções odiosas e agora, pelos seus olhares, gestos e expressões, não podia esconder de mim, nem dos outros hóspedes da pensão a mudança que nela se operara. Parecia mais nova e mais bonita, com uma estranha sedução que vinha desabrochar-lhe à flor da pele. Tinha outra vivacidade, uma alegria que eu antes nunca lhe notara. O pior de tudo era a sua mudança para comigo, uma solicitude excessiva, uma demonstração espectacular de ternura, que eu sentia ser um processo para se livrar do meu olhar inquiridor, e o modo de me evitar, incitando-me a ir à pesca, para que pudesse estar com ele.
No começo da segunda semana, quando me encontrava na lagoa de Spean, cheguei à conclusão" de que não podia aguentar mais. Eu não seria posto de lado! Fervendo de indignação, enrolei a linha, em cujo anzol já não havia isco há muito tempo, e regressei a Ardshied.
A Mãe estava à porta, mas não à minha espera.
- Foste feliz ? - perguntou com animação forçada.
- Não.
- Deixa lá, filho. Estou certa de que apanharás alguma coisa quando tornares a tentar esta tarde.
Não respondi.
A minha resolução estava tomada. Almocei com aparente calma. Logo que a refeição terminou, pedi licença, levantei-me e desapareci. Não voltei à lagoa. Escondi-me entre os arbustos, no extremo do jardim.
Não me fizeram esperar muito tempo. 0 coração deu-me um pulo quando os vi aparecer, Sommen com os estúpidos atavios escoceses, a Mãe com o seu fato de mescla castanho e um lenço novo de cores garridas ao pescoço, lenço que ela não comprara e, por conseguinte, devia ter sido oferta dele.
A par, embora discretamente separados, desceram a colina em direcção à cidade. Espreitando através dos loureiros, deixei-os distanciarem-se e depois, com ar despreocupado, embora as palpitações fossem desenfreadas, saí do jardim e segui atrás deles.
O meu desejo seria correr, mas reconheci que não devia aproximar-me em demasia.
Já longe das vistas da pensão, chegaram-se um para o outro. Uma vez na cidade, enfiaram para a rua direita. Procurei não avançar muito e, à distância, fui no seu encalço.
Era dia de feira e havia animação. Por um minuto escaparam-se-me, porém tornei a vê-los no lado oposto da rua, observando a montra de uma loja que vendia loiça regional e outras lembranças para turistas. Ele, como de costume, tagarelava, apontando de forma persuasiva, mas a Mãe abanou a cabeça e então afastaram-se.
O tráfego impetuoso fez-me deter, quando, afinal, pude atravessar a rua, vi de revés que se desviavam para Mealmarket, viela estreita que conduzia à parte antiga da cidade.
Estuguei o passo e virei para Mealmarket. Não estavam visíveis. Andei cá e lá no meio das barracas que atravancavam a ruela, procurando por toda a parte. Decorreram cinco, dez minutos. Nem sinal deles. Tê-los-ia perdido? De repente, quando do extremo de Mealmarket desemboquei na praça calcetada que ficava em frente do lago, vi um barco de remos na água batida pelo sol, apenas a poucas centenas de jardas da margem.
Respirei de alívio. Estavam acolá. Lentamente, sem desviar os olhos do barco, desci até à ponta do cais e instalei-me atrás de um frade de pedra.
Sommen ia aos remos, ora manejando-os ora deixando a canoa flutuar, e a Mãe sentara-se à popa.
Quando ele se inclinava para dar uma remada, atormentava-me a proximidade a que ambos ficavam.
Dominado pelo ciúme e pela cólera, invoquei todos os poderes da luz e das trevas para obrarem o milagre de fazer com que esse janota, esse escocês audacioso, esse fabricante de cigarros se desequilibrasse e caísse à água, onde, estrangulado pelas fitas do barrete e gritando em vão por socorro, fosse com toda a sua elegância pelo lago abaixo, que eu sabia ser imensamente fundo.
Enfim, voltaram para terra. Por instinto, agachei-me, escondendo-me mais atrás da pedra. Ali, embora não pudesse ver, seria capaz de escutar. Ouvi o embate da canoa contra a muralha, os passos dele em terra e a sua voz quando a ajudou a desembarcar.
- Querida Grace, a sua mão...
Estas palavras fizeram-me estremecer. Agora os passos eram no empedrado acima de mim. Julgando-me seguro, ergui a cabeça.
A Mãe tomara-lhe o braço e afastavam-se ambos. E eu, de braços cruzados, numa atitude teatral, imobilizado pela traição sofrida, vi-os enfim desaparecer.
Quando voltei a Ardshied não revelei nada do que testemunhara, mantendo-me sempre numa frieza estóica. Todo o resto da tarde desafiei a Mãe com o meu silêncio e hostilidade.
Já ela começava a olhar para mim com ar de censura e, depois do jantar, tentou convencer-me a acompanhá-la à sala, com o pretexto de que iam fazer jogos. Jogos! Resisti, alegando estar cansado, e fui meter-me na cama, onde a tristeza da tarde mais se me acentuou ao ouvir as vozes, que vinham do andar de baixo, noutro dueto abominável.
Quando a Mãe subiu ao quarto, a altas horas, fechei os olhos e fingi dormir.
A manhã seguinte surgiu clara e soalheira.
A Mãe, ansiosa pela reconciliação e com uns laivos de culpa nos modos, era toda doçura e alegria. Depois do primeiro almoço, veio ter comigo ao jardim, onde eu já tomara uma posição estratégica junto do portão.
- Meu querido - disse, com um sorriso conciliador (o sorriso de Judas, pensei). - 0 senhor Sommen sugeriu um passeio de carruagem esta tarde.
Ao longo da costa, para visitar o castelo de Onich. Mas suponho que não te interessas pelos pontos turísticos.
- Por que não ? - Redargui.
- Bem... como és um entusiasta da pesca, julguei que antes quisesses ir para a lagoa.
- Considerando que passei toda a semana na lagoa e não pesquei nada, não lhe ocorreu que eu talvez preferisse ir a um ponto turístico? Tanto mais -acrescentei, acentuando bem as palavras - que certamente haverá muito que ver.
Corou ao de leve e ficou um momento calada.
- Então... queres realmente ir connosco?
- Quero - respondi, sem olhar para ela. - Está decidido que vou.
A carruagem chegou às duas horas. O fabricante de cigarros, que, enquanto esperávamos à porta, se mostrara comigo de uma jovialidade um tanto forçada, ajudou-me a subir para o lado do cocheiro antes de tomar lugar no assento de trás, junto de minha mãe. Partimos. Eu não podia observá-los, mas ao menos estava com eles e jurara a mim mesmo que não os largaria um só instante. Nunca mais a Mãe teria ocasião de estar só com aquele homem.
Em parte tranquilizado, quase apreciei o passeio. O sol brilhava, o céu estava de um azul turqueza, ao longo da costa enrolavam-se ondazinhas.
Era agradável ir sentado tão alto e ter ao lado um cocheiro que, amavelmente, indicava com o chicote os pontos de maior interesse. Ah, se aquele homem não estivesse connosco!
A sua intrusão manchava-nos a existência.
Depressa chegámos à aldeola de Onich. Detivemo-nos no portinho, onde vários barcos de pesca oscilavam no molhe.
Em primeiro plano, no alto de um rochedo, erguia-se o castelo. Enquanto eu saltava do meu poleiro, o industrial de tabaco ajudou a Mãe a apear-se.
- Que dia estupendo para um cruzeiro! -Exclamou de súbito, olhando para baixo.
Dois rapazes de botas de borracha e camisola azul içavam uma vela.
- Que lhe parece, meu jovem amigo?-Tornou Sommen, voltando-se para mim. - Agrada-lhe a ideia?
Achei-a excelente. De que melhor maneira poderia eu tê-los debaixo de olho? Fiz um gesto afirmativo.
- Vamos já tratar disso - declarou alegremente, descendo para ir falar com os rapazes.
Quando o segui, ajudou-me com toda a solicitude a embarcar e depois, ainda no cais, e antes que eu percebesse o que ele estava a fazer, empurrou o barco, a vela inchou ao vento e encontrei-me fora do porto, enquanto a Mãe me acenava da costa, num simulacro de afeição pouco convincente.
Furioso, bradei ao maior dos dois rapazes:
- Volte para trás. Volte para o cais.
Abanou a cabeça. O "cavalheiro" contratara-o por uma hora. Largou mais pano e o barco seguiu sem novidade. Debilitado pela raiva e desilusão deixei-me cair no banco. Na véspera eles andavam de canoa e eu estava em terra. Agora, a situação invertia-se.
Era a perfídia final. De braço dado, os dois começaram a subir o rochedo em direcção ao castelo. Sempre considerara Sommen um tipo grosseiro, mas agora sabia que também era velhaco. Quanto à duplicidade da Mãe... Oh, meu Deus, o vento trazia-me água aos olhos.
Mais do que o tempo estipulado vogámos abaixo e acima, fora do porto. Os meus captores mal falavam inglês; exprimiam-se em mau escocês das Highlands, e, nesse dialecto, para mim incompreensível, conversavam de contínuo em tom motejador, olhando ora para o castelo ora para a minha pessoa. Embora eu não entendesse uma única palavra, percebi que falavam de mim, do meu fato elegante, da minha palidez que, devido ao balanço da embarcação revelava eu estar à beira do enjoo, e em especial (isto é que mais me custou a suportar) da razão evidente pela qual o "cavalheiro" me pusera a bordo.
Por fim, da praia, chegou um apelo. 0 indigno par reaparecera, e navegando em ziguezagues contra o vento (o que me prolongou o mal-estar), regressámos definitivamente ao porto.
- Divertiu-se, hem, meu amigo ?
- Diverti-me, muito obrigado - respondi com a fria polidez que resolvera assumir.
A Mãe, corada e nervosa, fitava-me como se desejando mostrar a sua afeição por mim.
- Acho que não gostarias do castelo, Laurence.
- Penso que não.
- É muito velho.
- Assim parece.
- E húmido.
- Calculo!
- Não tiveste frio no barco?
- Nenhum.
- Os barqueiros eram simpáticos.
- Muito.
Seguiu-se uma pausa constrangida antes que o nosso estranho diálogo pudesse continuar.
- Bem!-Exclamou Sommen, esforçando-se por se mostrar alegre. - São horas de partir. Vou ver se arranco o nosso cocheiro da taberna.
À saída do cais, a Mãe quis tomar-me o braço, mas fingi tropeçar e mantive-me afastado dela.
Entrámos na carruagem e esta pôs-se em movimento. Outra vez ao lado do cocheiro, fui reflectindo e concluí que nenhum deles estava à vontade. Não havia dúvida de que acontecera qualquer coisa. Até se calavam, contra o costume!
Seria um presságio favorável para mim? Desejaria virar a cara, mas o orgulho coibia-me; os ouvidos é que iam bem atentos. Eles continuavam silenciosos, nem uma palavra, e eu pensei que se tinham zangado, o que me alegrou por momentos. Então não pude resistir mais. Com muito cuidado, voltei a cabeça e olhei por cima do ombro. O fabricante de cigarros, inclinado para a Mãe, passava-lhe o braço pela cintura e beijava-a. Oh, meu Deus!
A minha mãe procedendo assim à vista do público, com aquele grosseirão pretensioso... Quase tombei do assento.
Quando chegámos à pensão fui direito para o meu quarto. Estava sentado à borda da cama, a contemplar as rosas desbotadas do papel da parede quando senti mover-se o manipulo da porta, hesitante, quase tímida, a Mãe entrou. Sentou-se a meu lado e passou-me o braço por cima dos ombros. Das suas maneiras, da sua carícia receosa, depreendi que se arrependera e que ia pedir-me desculpa pela ofensa que fizera, não só a mim mas à nossa amizade. Em vez disso, declarou:
- Querido Laurence, o Charley... o senhor Sommen... pediu-me em casamento.
Contive a resposta por algum tempo.
O abalo experimentado emudecera-me. Senti um ardor no coração que me fez querer gritar-lhe, "Não, Mãe, peço-lhe, por amor de Deus! Sabe que somos unidos, e quanto representamos um para o outro. Por favor, não ponha ninguém entre nós."
Mas a recordação daqueles beijos em público rete-ve-me as palavras. Perguntei friamente:
- E aceita ?
- Talvez aceite, meu filho.
- Porquê? - O tom da minha voz era levemente desdenhoso.
-Está, como se costuma dizer, apaixonada por ele?
- Gosto dele, é verdade. E creio que me tem amor. Evidentemente que se trata de um homem um tanto original, diferente daqueles com quem estás habituado, mas parece-me bom, generoso. E tão alegre, o que para mim tem importância. Uma boa alma. Além disso, seria óptimo para o nosso futuro, o teu e o meu. Sozinha tem-me custado a singrar. Assim, não era preciso separarmo-nos, não precisavas de ir com o tio Leo. Poderíamos ficar juntos, em Londres. Charley... O senhor
Sommen... diz que há lá muito bons colégios para ti. Ele é teu amigo, Laurence.
- Não quero a sua amizade. Detesto-o.
- Desembaracei-me do seu amplexo e, embora o peito me doesse de amor ferido, olhei-a com serenidade. - É um aventureiro, um intruso, um janota de meia tigela. Que é que a entusiasmou, a si, uma mulher tão requintada? O xerife Nicol classificou-o dc caixeiro londrino da mais baixa extracção. Deve saber que todos os hóspedes comentam o seu procedimento e a sua leviandade em dar atenção a um homem mais novo, e todos se mostram indignados.
- Laurence!
- E que sabe realmente a respeito dele, além de que possui uma fábrica de tabacos e que espalha dinheiro para se fazer passar por um lorde? Há duas semanas nem conhecia a sua existência! Que lhe contou a nosso respeito? Saberá que estamos praticamente na miséria?
- Não consinto que me fales dessa maneira.
- Recuara para o extremo da cama e fitava-me com um olhar de raiva dolorosa. - O senhor Sommen jamais se lembrou de me interrogar quanto à nossa situação.
- Não receou fazê-lo a mim - repliquei escarninho. - Pouco depois da nossa chegada tentou tirar-me nabos da púcara a respeito do negócio do Pai. Fanfarronei, é claro, e disse que o Pai fundara a melhor agência dc fermentos da Escócia. De modo que há-de julgar que a meiga e ingénua viúva nada em dinheiro. Por isso não a larga.
- De súbito, baixei a voz. - Vi-o na carruagem, o ordinarão!
Não podendo tolerar mais, a Mãe soltou um gemido e atirou-me uma bofetada, que por um pouco me deitava ao chão. Olhámo-nos num silêncio hostil. Não me lembrava de que ela me houvesse jamais batido.
- És um malvado! - Exclamou sufocada. - Sim, um malvado.
A querer destruir o único bocadinho de felicidade que tive desde que o teu pai morreu! Pois hei-de fazer o que quiser, apesar de tudo o que dizes e de tudo o que tu inventas. Levantei-me. Sentia a cabeça zumbir. Bradei: - Pois leve a sua avante! Eu avisei-a. Há-de arrepender-se.
Saí de casa, com a orelha a chiar e, embora já detestasse a lagoa, achei-me lá outra vez. Sentei-me numa pedra e apoiei a cabeça nas mãos.
Aquela mulher, única possuidora do meu coração, a quem eu amara exclusivamente desde que abrira os olhos ou talvez desde que me dera o peito, acabara por me atraiçoar. O meu impulso imediato foi abandoná-la, inquirir do primeiro transeunte qual era o caminho para Winton e seguir a marchas forçadas até à casa do tio Leo, o qual, no fim de contas, me esperava. Houve todavia uma circunstância que me reteve. Eu queria justiça, mais ainda, queria vingança. Vingar-me da Mãe e desse charlatão, a palavra satisfez-me, que me suplantara no coração dela. Se existisse ao menos uma pessoa a quem eu pudesse recorrer! Cogitei, fui pondo de lado todos os parentes Carrolls, por inúteis e desinteressados. Considerei a hipótese do xerife Nicol. E então lembrei-me de Stephen, Stephen tão seguro, tão de confiança, Stephen agora instalado em Londres, no Ministério do Trabalho!
As possibilidades desta ideia deram-me um calafrio pela espinha. Pus-me de pé. Voltei a correr para Ardshied, pedi papel de carta a Miss Ailie e fechei-me no quarto. Estendido no chão, peguei num lápis e escrevi a Stephen. Daí a meia hora punha a carta na estação do Correio. E até lhe acrescentei a nota de urgente.
Depois de tudo isto feito achei-me repentinamente calmo, talvez por compreender que, acontecesse o que acontecesse, eu tomara as minhas providências. Se bem que os espiasse às refeições, afectei indiferença e, quando iam em passeios, já não os seguia, habituara-me a esperar. Por várias ocasiões a Mãe tentou retomar o assunto e abater a barreira que eu levantara, mas sempre sem êxito. Recusava-me até a ser acarinhado. Contudo eu andava ansioso e, como o tempo corria sem que viesse resposta, o meu nervosismo aumentava. Ardshied situava-se a certa distância do centro da cidade e tinha só uma distribuição diária de correspondência. Pelas três horas da tarde eu ia para a porta, à espera que passasse o carteiro. Por fim, numa tarde chuvosa, recebi uma carta. É verdade, uma carta com o carimbo de Londres! Febrilmente, corri à casa de banho do rés-do-chão, onde me fechei à chave; rasguei o sobrescrito e li o seguinte:
"Querido Lawrence
"Embora não tenha muito tempo disponível, achei que a tua carta era importante e fui tratar do caso.
"A lista dos telefones contém cinco Sommens, um deles com Tabacaria e Agência de Jornais em Mile End Rode, 120, na parte oriental de Londres. Tomei um autocarro e fui a esse bairro insalubre, para não dizer miserável. A loja é lúgubre, vende jornais, bilhetes para as apostas de corridas de cavalos, e tabaco. Entrei e comprei, imagina! - As News of the World. Atendeu-me uma velha cheia de reumatismo, com um casaco de malha muito usado e abotoado até ao pescoço. Ao fundo da loja um rapariga morena, despenteada, de avental sujo, fazia cigarros numa maquineta manual. Saí e fui à taberna mais próxima, três portas adiante, onde me prestaram esclarecimentos.
"O pai já morreu, o negócio está muito em baixo, e praticamente a viúva é que o mantém. Há três filhas, uma delas a que faz os cigarros.
O pai tinha algum conhecimento desta manufactura, que está em decadência. Falaram-me de dívidas. A mãe, as filhas e o filho vivem por cima do estabelecimento.
"O filho, esse de quem pedes informações, descreveram-no como homem simpático, capaz de ser prestável a um amigo, mas embusteiro, espaventoso no trajar e pouco inteligente. Canta alguma coisa e exibe-se em espectáculos privados. Gosta de jogar nas apostas, às vezes ganha e,_quando isto sucede, dá-se a umas férias de arromba. O seu emprego é de criado de mesa no Metropolitan Sporting Club, no West End.
"Espero que estes informes detenham o idílio incipiente. Dá saudades à tua mãe e diz-lhe que não faça tolices.
Teu tio amigo Stephen."
Senti-me electrizado por uma alegria enorme. Contendo a respiração, tornei a ler as palavras odiosas "criado de mesa no Metropolitan Sporting Club", e em seguida corri para a escada. Não podia esperar um instante que fosse; queria vingar-me sem demora de tudo o que sofrera, descarregando esse golpe fatal não só nas esperanças de minha mãe como no seu orgulho.
Nos últimos dois dias chovera e a Mãe estivera mais recolhida, descansando e lendo no quarto depois do almoço. Eu sabia que se encontrava lá nesse momento. O sangue subia-me à cabeça, o triunfo desvairava-me quando bati à sua porta, com a carta na mão. Responderam-me de dentro:
- Entre.
Não estava a ler, mas à janela, com aquele ar abstracto, uma espécie de tristeza meditativa, que nos derradeiros anos a dominava cada vez com mais frequência. Voltou-se um pouco para mim e arriscou um sorriso.
- Mãe... - Avancei para ela. A sua expressão terna e, por qualquer motivo, compassiva, tirou-me a coragem. E não só a expressão, pois, antes que eu pudesse evitá-lo, pegou-me na mão e uniu-a à face. Contudo, eu não ia desistir por causa desses ardis sentimentais. Tremia agora, e suava, mas tinha de ir para a frente.
- Há uma coisa que lhe quero mostrar...
- Que é, meu querido Laurie?
Segurando-me ainda na mão, voltara-se de novo para a janela e olhava para fora. Instintivamente, o meu olhar seguiu o seu. Defronte da porta estava um trem de aluguer, em cujo tejadilho se empilhavam malas. Então, numa corrida, como para evitar que a chuva o molhasse, um vulto, familiar, embora sem paramentos escoceses, saiu da casa e entrou na viatura. Fechou-se a portinhola, o cocheiro subiu para o seu lugar, e o trem afastou-se.
Reinou profundo silêncio no quartinho de dormir.
- Ele foi-se embora? -Balbuciei por fim.
A Mãe baixou a cabeça lentamente e voltou-se para mim.
- Recusei-o.
- Porquê?
- Houve o teu pai, Laurence. E agora havias tu. De repente descobri que não existia lugar para mais ninguém.
Senti um nó na garganta. Nem pude falar. Olhei para a Mae, amarfanhei com a mão livre a carta, até a tornar numa coisa informe, e lancei-me às cegas no seu peito.
XXII
Habitação do tio Leo ficava num armazém de quatro andares chamado um tanto singularmente Casa dos Templários e situado no bairro insalubre de Winton conhecido por Corbielaw. Prédio de gaveto, ocupando a esquina de duas ruas estreitas calcetadas, era velho e mal conservado, com as janelas laterais entaipadas e pintadas de uma cor escura; mas, como se encontrava no centro da cidade, perto da Argyle Street e das docas, possuía decerto para o tio as vantagens da localização comercial. Como residência tinha menos que oferecer. O último andar consistia num corredor sombrio e comprido, com muitos quartos de cada lado, os quais serviam de depósito. Como chegasse de noite, não percebi qual o seu uso e só vi o meu, num dos extremos, mobilado com um catre de ferro, lavatório e cadeira de junco rebentada, e a cozinha, na outra extremidade do corredor, onde a criada, Annie Tobin, me deu pão e queijo para a ceia.
Dormi mal, perturbado pelo barulho dos eléctricos da Argyle Street e pelas saudades pueris de minha mãe, de quem me apartara na tarde da véspera, na Estação Central. A perspectiva de um ano de separação - apesar de a Mãe afirmar que passaria depressa -
tornara difícil a despedida.
Mas a manhã trouxe a promessa de novas
aventuras. Levantei-me e, depois de me lavar e vestir, abri a porta e fui circunspectamente à procura do almoço.
A senhora Tobin estava na cozinha.
Era uma mulher disforme, de cinquenta e tal anos, faces vermelhas marcadas de acne, olhinhos azuis encovados e cabelo grisalho e hirsuto. Amarrado à cintura tinha um avental velho, castanho, e adornavam-lhe os pés chinelos de ourelo.
Além do aspecto desalinhado, o seu sotaque acentuadamente irlandês e as maneiras demasiado familiares já me haviam ofendido, e eu decidira que a senhora Tobin não me agradava mesmo nada.
- O tio ainda não se levantou?
Voltou-se, considerou-me com ar bem humorado e disse:
- Levantou-se e saiu há mais de uma hora.
- Foi à missa? - perguntei, não achando outra razão para que ele fizesse aquela madrugada.
A senhora Tobin desatou a rir.
Nessa ocasião tremeu-lhe o ventre e os olhos azuis desapareceram por completo debaixo dos repolhos de pele avermelhada. "Credo", pensei, "até parece que lhe contei uma anedota". Por fim redarguiu:
- O patrão há mais de trinta anos que não põe os pés numa igreja. É um ateu de alto lá com ele.
- Depressa o menino se habituará a estas idas e vindas, embora só Deus saiba o que anda a fazer. Um usurário, é o que é. Quer o primeiro almoço?
- Pois sim - repliquei friamente, resolvido a não permitir familiaridades.
- Então já vai.
- Onde é a casa de jantar?
- Aqui mesmo, menino. Não há outra. Cozinha, casa de jantar, sala de visitas... Sente-se e esteja à vontade.
Sentei-me, com certa relutância. Ela tirou da prateleira uma tigela de loiça, deitou até meio um pó amarelado e juntou-lhe água fervente de uma cafeteira que estava sobre o fogão. O resultado foi uma espécie de papas de lama acastanhada, sem qualquer aroma e que ela colocou diante de mim juntamente com um copo de leite azulado e uma colher.
- Que é isto ?
--Um género de papas de aveia feitas com farinha de fava. 0 seu tio aprecia e compra-a por atacado, com grande abatimento.
Pus um bocadinho na colher e levei à boca.
- Não se faça esquisito, filho, aconselhou-me condoída, olhando para a minha cara. - Como não há outra coisa, eu, no seu caso, comia-as.
- Talvez saibam melhor com um pouco de manteiga--retorqui, fazendo uma careta.
- Manteiga, menino? - Os olhos cintilantes começaram outra vez a sumir-se. - Do senhor Leo não é fácil apanhar manteiga nem para a cova dc um dente.
Estes destemperos da senhora Tobin não depunham muito, realmente, a seu favor. No entanto, desejoso de não melindrar o tio, visto ser aquele o seu manjar predilecto, comi as papas mas reflectindo com tristeza nos quebra-jejuns apetitosos de minha mãe, sem falar dos almoços excelentes de Miss Greville. Quando esvaziava a tigela, a senhora Tobin observou-me:
- Se não está satisfeito, dou-lhe uma fatia do meu pão.
- O seu pão!-repeti, deixando explodir a minha revolta.
- Sim, menino. Compro de vez em quando com os meus extraordinários.
Era tão meigo o tom de voz, sempre com acesso de riso a espreitar, e tão pronta a aplanar dificuldades, que eu me vi obrigado a suspender o meu ressentimento... tanto mais que ela estava a cortar uma fatia grossa de pão fresco e apetitoso, e a barrá-lo generosamente de toucinho derretido.
Aceitei em silencio. Depois da farinha de fava, aquilo sabia realmente a comida verdadeira.
Ainda mastigava quando soaram passos na escada, e o meu tio entrou na cozinha.
Embora já tivessem decorrido quatro anos depois que o encontrara pela primeira vez, no funeral do Pai, eu não lhe achei a menor diferença. Apresentava o mesmo vulto alto e magro, quase definhado, dentro de um fato azul apertado e lustroso, e a mesma cara comprida, inexpressiva, pálida, impenetrável. Leo era um homem sem idade, que permanecia fixado, por um esforço de vontade, em molde imutável, e quando morreu, daí a trinta anos, deixando, diga-se de passagem,três quartos de um milhão de libras esterlinas, tenho a certeza (se bem que eu estivesse então a quatro milhas de distância) que expirou da mesma forma insondável e que foi enterrado com igualíssimo fato azul.
Entretanto, pondo-me no ombro a mão, deu-me as boas-vindas, com suficiente jovialidade, mau grado o seu abanar de cabeça reprovador parecesse discordar da minha fatia de pão.
- Essa farinha branqueada, Laurence, estraga o estômago. Mas vejo que comeste as papas de farinha de fava: é o que realmente convém aos teus pulmões.
Depressa te acostumarás à nossa maneira de ser. Aqui cuidamos muito do que se ingere. Agora, se já acabaste, vou levar-te lá abaixo.
Descemos pela escada de pedra até ao primeiro andar, onde, escolhendo uma chave do molho reluzente preso aos suspensórios por uma argola fina, Leo abriu a porta e me fez entrar no armazém. Este era em todo o comprimento do prédio, e muito alto (abrangia o primeiro e o segundo andar), de maneira que produzia eco quando falávamos. Nesse depósito amplo e poeirento estava uma fila dupla de armações de mesas, deixando um corredor a meio, onde se via uma passadeira gasta, de lã ordinária encarnada; nas mesas havia peças de fazenda empilhadas e em confusão.
- Vais agora começar a aprender o teu mester, disse o tio.
Depois de apreciar os meus conhecimentos quanto a medidas lineares, deu-me uma fita métrica, que supra haver entrado no estabelecimento por engano, visto ter lido no verso, quando ma lançou aos ombros, Propriedade de Morris Shapiro, Alfaiate, escrito a letras pretas. Principiou então a fazer-me girar entre as mesas, parando em cada uma para me instruir quanto às mercadorias expostas.
Primeiramente as flanelas, em seguida os cheviotes, a lã angora, os panos de algodão, as mesclas, Donegal, Harris, Shetland. Em cada peça estava atado um rótulo com o preço marcado não em algarismos mas em letras. 01hando-me de esguelha, como a avaliar a confiança e a fidelidade que eu lhe devia merecer, o tio revelou-me o segredo do seu código. Era simples: o alfabeto ao contrário.
Z por zero, Y por 1, X por 2, e assim até Q, que representava 9.
Tudo isto me poderia ter impressionado melhor se não suspeitasse do pouco valor dessas mercadorias, das quais o tio falava como de coisas raras e preciosas, a mim afiguravam-se mais cansadas e sujas do que seria de esperar, embora eu fosse novato na matéria, não me pareceram merecer os encómios que ele lhes tributava.
Enquanto hesitava em mencionar a minha impressão, o olhar foi-me atraído mais de uma vez, por outros letreiros, não referenciados segundo o código do tio mas toscamente marcados a vermelho com indicações deste teor, Sortimento de Falência, Venda; Lote para negócio, e finalmente uma chapa denunciadora, porque dizia, rabiscado a tinta azul: Arresto. Vendido em leilão abaixo de 50 %.
Completado que foi o nosso circuito, Leo parou na derradeira mesa, dizendo:
- Compreendes, Laurence, que para receber aqui um aprendiz eu exigiria normalmente uma caução. E não pequena!
Mas deixei falar a voz do sangue. Dispenso-te da caução. Terás cama e mesa e, além disso, receberás um xelim por semana para os teus alfinetes.
A Mãe dissera-me que o tio prometera pagar-me salário, mas esse pareceu-me mínimo. Contudo, respondi :
-- Obrigado, tio Leo.
Talvez notasse a minha hesitação, porque prosseguiu rapidamente:
- E mais, se precisares de qualquer coisa, e penso que precisas de um fato...
- Fez uma pausa e, em tom de imensa liberalidade, ajuntou:
-Dar-te-ei o fato.
- Olhei-o reconhecido, porque sem dúvida precisava de uma farpeia.
Nos últimos meses eu tinha crescido bastante, de maneira que as calças me ficavam acima dos tornozelos e as mangas do casaco não me cobriam os punhos. Antes, porém, que lhe exprimisse o meu agradecimento, o tio Leo continuou:
- Aqui está uma linda peça de fazenda.
A tal fazenda, que ele desdobrou com grande perícia profissional, era um xadrez de tons discordantes e tão vivos que só pareceria destinada a cavalheiro de pronunciado gosto desportivo.
- Não será um pouco berrante, tio Leo ?
- Berrante ?!
- Repudiou a ideia, acrescentando:
- É clássica, Laurence, e a única no género que possuo. E, quanto a uso, durará uma vida inteira. Esta tarde Shapiro tirar-te-á as medidas.
Fiquei inteiramente conquistado, mas ainda ignoro se pela sua generosidade se pelo desenho do tecido. Enquanto eu permanecia silencioso, ele tirou um relógio de prata da algibeira do colete e consultou-o pensativo, acto que, depressa descobri, significava o prelúdio das suas saídas súbitas e misteriosas.
- Tenho de ir - declarou. - Se vier alguém, chama pela senhora Tobin ou limita-te a dizer que não me demoro. Entretanto vou distribuir-te trabalho, para que estejas ocupado. Vem ao escritório.
Segui-o através de uma porta em que não tinha reparado antes e entrei num quartinho mobilado com uma secretária, uma só cadeira, e um cofre grande pintado de verde. No soalho viam-se muitos embrulhos e caixas de papelão, algumas abertas, as quais revelavam bonitas latas rotuladas, garrafas e botijas. Procurando afanosamente entre os papéis da secretária, achou uma revista intitulada Boletim da Alimentação Saudável. Folheou-a e indicou-me alguns anúncios, cada um deles marcado com uma cruz.
- Espero que tenhas boa letra.
Quando o tranquilizei acerca desse ponto, deu-me as suas instruções que, apesar de me surpreenderem, foram concisas. De modo que, cinco minutos depois de ele partir, eu me achei sentado à secretária, de caneta na mão, escrevendo a primeira de uma série de cartas todas deste teor:
"O senhor Leo Carroll apresenta os seus cumprimentos à Companhia Alimentícia das Algas do Oceano e roga o favor de lhe enviarem para o seu escritório supra mencionado umas amostras gratuitas do produto "Sargaço" anunciado no Boletim de Alimentação Saudável, para seu uso pessoal e possíveis futuras encomendas comerciais."
Ao acabar as cartas, todas dirigidas a firmas de especialidades alimentares, já era quase meio-dia e nenhum freguês aparecera ainda. Tornei ao armazém e abri a porta, a fim de ver se não se teria formado na rua alguma bicha. Não havia ninguém. Nessa altura descobri, pregado no lado de fora da porta, um papel com estes dizeres: "Volte mais tarde. Estarei cá às duas horas. Leo."
Esta prova da pouca confiança que meu tio depositava em mim deixou-me um tanto desalentado. Vim para dentro e pus-me a olhar através de uma janela. Apesar das vidraças sujas, a rua, todavia, revelou-se-me tal como era, lojas mesquinhas, uma taberna, uma fila de padiolas de vendedores ambulantes. Não compreendia por que motivo o meu tio escolhera semelhante local para viver, instalado num prédio tão grande e arruinado para só utilizar uma parte mínima. Como podia adivinhar que ele, com a sua astuta previsão, sabia que o planeamento urbanístico elevaria o valor da propriedade a um preço fenomenal?
Uma risada atrás de mim arrancou-me àquela meditação e fez-me voltar a cabeça.
- Que engraçada a sua figura com uma fita métrica aos ombros!
Esquecendo-me de que deliberara não gostar dela, surpreendeu-me o alívio que senti por ver a senhora Tobin.
- Lembrei-me - continuou a criada, de vir observar como se desembaraçava. Mas já são horas de almoçar. Se lhe parecer almoço... - Acrescentou.
Fechou a porta da rua e nós subimos à cozinha, onde cedo percebi que a minha refeição constava de batatas cozidas e um triângulo de queijo. Contudo, antes de servir essas coisas, a senhora Tobin pôs uma frigideira ao lume e tirou não sei donde, por uma espécie de prestidigitação, duas gordas salsichas, que principiaram imediatamente a chiar e a desprender um aroma sedutor que me fez crescer água na boca.
Enquanto as frigia, contemplava-me com um largo sorriso sugestivo, não podendo conter-me,perguntei:
- São suas, senhora Tobin?
- Minhas, confirmou. E, retirando a frigideira do fogão, espetou com um garfo uma das salsichas e pô-la no meu prato, colocando a outra no seu.
- Parece muito boa, senhora Tobin.
- São de lata - retorquiu sucintamente.
Eu estava com apetite. A despeito das afirmações do tio, as papas não me haviam enchido a barriga. Passaram-se minutos e eu falei:
- E estas batatas estão bem cozidas.
- Tenho dedo para elas, como todas as Irlandesas. Mas não me trate por senhora Tobin. Trate-me por Annie.
- O meu tio não vem almoçar? -Inquiri, com a boca cheia de salsicha e puré.
Abanou a cabeça.
- Em primeiro lugar, raramente come o que alimentaria um pardal. Em segundo lugar, salvo quando fica aqui a tarde a chafurdar nas suas amostras alimentícias e não sei que mais, vai comer ao restaurante vegetariano da Union Street.
- Meu Deus! É realmente vegetariano, senhora Tobin? Isto é, Annie...
- Não prova carne. Se lhe chovessem em cima costeletas de porco, só aproveitaria a gordura para engraxar as botas. Também não fuma. Quanto a bebidas, nunca as tomou na sua vida. 0 senhor Leo é pessoa estranha e discreta, jamais deixa a mão direita saber o que faz a esquerda. 0 menino não levará tempo a conhecê-lo bem, acrescentou com ar astuto, se é que não o conhece já.
- Tenho a impressão,atalhei com certo interesse, ansioso por aprofundar o assunto, que o meu tio não está muito próspero.
Se eu dissesse a pilhéria mais engraçada do mundo, o efeito na senhora Tobin não seria maior. Toda ela tremeu com as gargalhadas que dava. Quando por fim se recompôs, enxugou os olhos e redarguiu:
- O que o fez pensar assim?
- Ora - expliquei, corado de confusão! - O tio não parece viver muito bem. Quer dizer, a comida não é abundante. E a verdade é que esta manhã não veio uma só pessoa ao armazém comprar roupa.
- Mas virão depois! Hão-de vir. De tarde, quando ele estiver lá. E, mesmo que não venham, que tem isso?
- Que tem?
- Este armazém é só uma pequena parte dos negócios do senhor Leo. Possui propriedades em toda a cidade. Se o menino tivesse, como eu, subido e descido as casas dos inquilinos em Anderson Cross, para receber as rendas, saberia muito mais. E ainda não seria o principal.
- Que é o principal, Annie?
- Whisky! - exclamou ela, gozando o efeito dessa palavra, omnipotente.
- - Whisky em depósito, barris e barris, todos selados, a envelhecer e a tornar-se mais caro com o tempo. Também ficará ciente disto, menino, quando chegar o dia do próximo engarrafamento.
Olhei-a espantado. Todas as minhas noções acerca de Leo me rodopiavam numa incerteza perturbante. Que havia eu de concluir desse tio tão escandalosamente rico mas que morria de fome, ele e eu, a comer papas de farinha de fava?
Não me atrevi a prosseguir no assunto, com medo de novas revelações.
Acabado o almoço, a senhora Tobin recusou outra vez a minha oferta para a ajudar na lavagem da loiça e eu desci pensativamente à loja para garantir a minha presença ali quando Leo regressasse.
Chegou pontualmente às duas horas, pareceu contente por me ver no trabalho e até me felicitou em termos sóbrios pela forma como eu redigira as cartas. Depois despiu o casaco, vestiu um colete com mangas de alpaca e, ainda de chapéu na cabeça, que aliás raramente tirava, dentro ou fora de casa, dirigiu-se ao seu escritório, onde por algum tempo esteve ocupado, sozinho, a contas com os seus livros comerciais.
Estes, porém, voltaram ao cofre quando os clientes começaram a afluir. O que mais me impressionou foi o número de mulheres pobres, algumas embrulhadas em xailes (símbolo seguro dos bairros miseráveis), que pareciam vir comprar o que chamavam saldos e que eu percebi serem restos de peças, insuficientes para os usos triviais.
Algumas deviam ser, com certeza, inquilinas do tio, porque o tratavam por Leo, mas a despeito desta familiaridade e das adulações, ele mantinha-se reservado e limitava-se a apontar para um dos muitos letreiros afixados e que rezava assim.
Nesta casa não se fia.
Devo contudo dizer, em abono da verdade, que depois de comprarem ele cortesmente as obsequiava com um molde da "Costureira em Casa" da revista Weldon, no qual havia, pelo lado de trás, um carimbo com a palavra "Grátis".
Na maioria, porém, os clientes eram alfaiates modestos, alguns deles estrangeiros e, não raramente, judeus. 0 senhor Morris Shapiro, a quem foi confiada a honra de fazer o meu fato, e que veio ao armazém ao cair da tarde, pertencia sem dúvida a esta classe. Tratava-se de um homenzinho débil, de aspecto cadavérico, com enormes olhos pretos e uma pastinha de cabelo preto através do crânio amarelado.
As suas maneiras para com Leo, expressas em grandes gesticulações, eram dolorosamente insinuantes.
Pareceu, contudo, denunciar certos receios quando posto distante da fazenda escolhida. Mirou-a, palpou-a, olhou para mim e depois para o tio Leo.
- O menino gostou disto ? Muito acanhado para falar, consenti que Leo inclinasse afirmativamente a cabeça.
-Não será um pouco bera?
- Não.
Shapiro hesitou, em seguida puxou um fio do tecido, riscou um fósforo da caixa que tirara da algibeira, queimou o fio e levou a parte chamuscada ao nariz. Então olhou outra vez para Leo.
-Pobre em lã - declarou.
- Talvez - disse Leo, afastando-se com extrema indiferença. - Mas servirá.
- Ficará um amor, concordou à pressa Shapiro.
- E há-de assentar como uma luva.
Uma vez tomadas as medidas, pegou na fazenda e meteu-a debaixo do braço. Quando se retirava, olhou cauteloso de soslaio e disse-me ao ouvido:
- Há muitos anos que ele desejava desfazer-se deste corte.
Embora Leo possivelmente não tivesse ouvido, senti que por qualquer razão desconhecida o incidente o inquietara. Andou cá e lá, relanceando-me de vez em quando, como se quisesse aflorar o assunto.
Afinal não o fez. Ao perguntar-lhe se podia acender o gás, porque estava a escurecer, ele abanou a cabeça. Consultou o relógio, indicando desse modo a sua próxima saída, aproximou-se de mim e pôs a mão no meu ombro.
- És meu sobrinho, rapaz, sabes pois que farei tudo por ti. Portaste-te bem, veremos como continuas.
Mas lembra-te sempre de que o dinheiro custa a ganhar.
- Deu-me uma palmadinha confirmadora. - Agora tenho de ir falar com um sujeito. É altura de encerrar a loja.
Fechou a porta à chave (uma das que trazia no molho) e desceu rápido a escada, enquanto eu subia lentamente para a cozinha. Fora para mim um dia estranho, sem precedentes, e a cabeça andava-me à roda com a recordação dos acontecimentos.
XXIII
Durante as semanas seguintes tornou-se claro que o meu tio pretendia conservar-me ocupado, e, como nos encontrávamos frequentemente juntos no trabalho, eu tive larga oportunidade de observar este homem deveras extraordinário.
De manhã, conforme as suas instruções, eu escrevia, senão todas, com certeza a maior parte das suas cartas. Já se sabe que não havia máquina para esse fim no escritório, porque as máquinas não eram da simpatia de Leo. Contudo, a despeito da diversidade de negócios, a correspondência era relativamente modesta, visto grande número deles ser tratado de viva voz.
Mesmo quando escrevia, não utilizava o correio; eu é que ia entregar as missivas. Se não andava a fazer esses recados, então permanecia em serviço na loja, com a fita métrica ao pescoço e um lápis atrás da orelha. Leo deixava-me agora atender os fregueses que por acaso vinham a essa hoxa, uma vez que eles pagassem ao balcão. Todavia as expedições em que acompanhava o tio constituíam para mim o mais revelador dos aspectos de Leo. Por que me levava consigo? Creio que um resto de consciência, resíduo da sua primeira educação, ou talvez o sentimento da obrigação que devia à minha mãe, o induziu a querer proporcionar-me certa base na car reira comercial ou na "arte" do negócio, como ele a praticava. Assim, ao passo que me excluía da cobrança das rendas (feita pelo próprio e pela Annie), permitia que o acompanhasse a todos os leilões a que assistia, e aos armazéns de retém das docas.
Pelo preço justo Leo comprava qualquer coisa, não só mercadorias de falências ou de salvados mas o que instintivamente percebesse poder dar-lhe um lucro garantido.
A seu lado, entre a turba dos licitantes roucos, nas vendas de Argyle Street, eu olhava pasmado para essa cara pálida e impassível quando ele, com um piscar de olhos quase imperceptível, subia para meio xelim o lanço de algum objecto sem préstimo aparente e que, sendo transportável, eu levava para juntar à baralhada de coisas arrecadadas nos andares superiores do nosso prédio.
Esses quartos, de um lado e outro do corredor do último piso, estavam cheios até ao tecto e era difícil abrir as portas sem que nos caísse em cima a mobília empilhada.
Às vezes os leilões fatigavam-me, mas o que nunca me cansava eram as visitas àquilo a que Leo se referia sempre como o "imposto". Para entrarmos nesse edifício, pela nossa porta privativa, precisávamos de duas chaves; uma o tio trazia-a no seu molho, a outra guardava-a o funcionário do Fisco.
As filas de barris, que me apareciam à luz difusa vinda pelas janelas cobertas de geada, surpreenderam-me a princípio, não só pela quantidade e tamanho dos recipientes mas porque esperava achar o whisky do tio Leo engarrafado. Cedo, porém, fui informado de que o líquido nunca envelheceria senão envasilhado em cascos já usados.
Eis, pois, o negócio principal do tio Leo, o seu capital, a fonte dos seus proventos futuros. Comprava whisky, comprava-o na boa altura, armazenava-o isento do imposto de consumo, e, com o tempo, o seu valor ia crescendo. Não era só um perito na compra mas um grande entendido na lotação.
Não raramente eu o observava, fascinado, quando ele reunia maltes das High-lands e das Lowlands, e uma "amostrinha" de Islay,no e os adicionava a um whisky especial cujo nome não revelava a ninguém. Depois, provava a mistura em volta da língua, gargarejo ando-a quase, até que fazia um gesto de assentimento e, com uma expectoração violenta, lançava fora todo o trago. Conforme a Annie me garantira, Leo nunca ingeria qualquer bebida alcoólica.
Mesmo nesses primeiros tempos Leo já possuía uma clarividência espantosa.
Antecipou-se ao perigo da depreciação da moeda e colocou todo o seu numerário em propriedades e whisky. Contudo, enquanto me compenetrava da sua riqueza presente e futura, não podia impedir-me de pensar que é que faria dela.
A sua vida era um modelo da mais sombria, da mais rigorosa e miserável austeridade. Então percebi que o supremo gozo de Leo, o auge do prazer íntimo, jazia no conhecimento secreto da sua própria riqueza, sob o fingimento da penúria. Disse já que ele jamais sorria.
Contudo, às vezes, quando no decorrer de uma conversa de negócios proferia uma frase típica tal como "sou pobre" ou "não tenho posses para isso", notava-se-lhe um leve tremer de lábios, como se tivesse dificuldade em conter a vontade de rir. O mais curioso é que, embora eu visse ou suspeitasse de tudo isto, e a despeito da opressão e trapaças com que me confundia, eu não deixava de lhe ter estima. Pelo contrário, quando lhe contemplava o rosto pálido e enfermiço, invadia-me uma onda de ternura e até de comiseração. Era precisamente este sentimento que ele procurava inspirar, o triunfo de toda a sua artimanha, pois estabelecia e confirmava a personalidade que ele criara e dentro da qual existia o verdadeiro Leo Carroll.
Conquanto a vida com o tio Leo não fosse muito difícil, o meu problema principal consistia na alimentação.
O tio, exceptuando a comida extravagante para a qual o arrastava a sua mania, parecia viver quase sem sustento. Tomava sozinho a primeira refeição, muito antes de eu me levantar. 0 seu almoço envolvia-se em igual mistério, e, quando à noite regressava, ia para a cozinha e, ainda de chapéu na cabeça, com ar abstracto, era silêncio, preparava uma ou outra das suas mexerufadas, Glúten de Grãos de Aveia, Araruta, Tostas de Pão Integral, e Farinha de Fava.
Mantinha-nos, por assim dizer, numa absurda meia ração, e, como eu crescia rapidamente, andava quase sempre com fome. Teria passado muito mal se não fosse a senhora Tobin.
O seu contrato incluía alimentos, e, embora falhasse às vezes porque Leo alegava não ter dinheiro disponível, este sempre aparecia quando ela o ameaçava de se despedir.
Essa mesquinha concessão habilitava-a a suprir as puras necessidades da nossa dieta com o que Annie chamava os "seus extraordinários" e que dividia voluntariamente comigo.
Na verdade, quando se fazia a divisão, era eu quem recebia sempre o quinhão maior.
Não foi só através do estômago que se dissipou a primeira impressão que a Annie me produzira. Uma vez com o meu fato novo, o seu horroroso padrão condenou-me a padecer vergonhas e tristezas sem fim. Mas um sábado, à noite, após uma semana de angústias durante a qual me senti objecto de irrisão e espanto da cidade inteira, a senhora Tobin fez-me despir esse traje infame, tingiu-o de um castanho discreto, secou-o. e passou-o a ferro, e no domingo de manhã apresentei-me com um vestuário que era ao menos respeitável.
Annie devia ser, sem excepção, a pessoa mais amável e alegre que eu até aí conhecera; raras vezes se aborrecia, era uma fonte inesgotável de afabilidade e estava sempre pronta a rir das suas preocupações e das minhas.
Tudo, até a avareza do tio Leo, lhe servia para riso, e, embora se justificasse com frases feitas, tais como "devemos levar a vida a sorrir" ou "ri-te e o mundo rirá contigo, chora e chorarás sozinho", aquilo provinha da sua maneira de ser. Nada podia ensombrar aquela natureza jovial, generosa e sem o mínimo vestígio de maldade.
Quando lia o futuro nas folhas de chá, o que muito gostava de fazer, predizia sempre bons eventos. Jamais lhe ouvi qualquer observação pouco caridosa.
O próprio tio Leo, que merecia sem dúvida
as maiores censuras, ela o desculpava com um sorriso de compaixão. "Só se pode sentir pena do pobre homem. Afinal, ele é mais rigoroso consigo mesmo do que connosco".
Era viúva e tinha quatro filhos, todos rapazes. Três estavam no exército (dois na índia e um em Singapura) e o quarto emigrara, mas sem êxito, para o Canadá.
Embora raramente lhe escrevessem, e se o fazia era de modo resumido, Annie de vez em quando falava-me deles, evocando um ou outro incidente do passado, com um sorriso saudoso.
Na prateleira da cozinha, junto do pequeno aquário onde ela conservava ternamente um peixinho dourado que já devia ser velho, ostentava-se um postal ilustrado com uma vista ao luar, de Taj Mahal, no qual estava escrito, "Querida mãe, espero que este a encontre de saúde; quanto à minha é boa, graças a Deus. Seu filho afectuoso, Daniel".
Quando olhava para ali, Annie sorria e começava:
- Danny sempre foi bom moço, embora um bocadinho travesso. Nunca me esquecerei do dia em que caiu do molhe de Dunoon...
Mas, em geral, nas nossas longas conversas à noite, falava mais do marido. Chamava-o "Da". Devo confessar que me interessavam pouco essas reminiscências familiares, mas, como eu me tornara muito amigo da senhora Tobin, escutava-a com ar tão atento quanto possível. Eram mais ou menos neste teor:
- "Da" não podia ser melhor pessoa.
E inteligente! Mas estava sempre desempregado. Arranjava emprego e, ao fim de duas semanas, largava-o. Tinha muito de fidalgo, à sua maneira, para trabalhar no campo! Comprou um cavalo e uma carroça... Se lhe pagassem o que fazia, estaríamos bem, mas arranjar dinheiro não era com ele. Não tinha feitio para isso. Ah, que popularidade gozava! Quando morreu toda a gente da rua acompanhou o enterro, que foi lindo.
Annie também era bastante popular entre os expatriados irlandeses que usualmente se reuniam nas terças-feiras à noite na taberna de um do grupo, e que designavam patrióticamente pelo nome do nosso emblema nacional, o Trevo.
Estas constituíam muitas vezes ocasiões festivas para mim. Quando possuía umas moedas a mais, ou quando apostara no cavalo vencedor (em que gastava só três dinheiros ou, quando muito, um xelim), Annie punha um boné de fazenda, de homem, que segurava cuidadosamente com alfinetes de chapéu, e levava-me em primeiro lugar ao restaurante do Bonelli, onde comprava postas de peixe frito para a ceia, e em seguida (apesar de eu ainda não ter idade legal para isso) introduzia-me secretamente na taberna do Trevo.
A sua entrada era sempre acolhida com exclamações de boas-vindas e, depois de ela pedir para si cerveja preta (nunca tomava mais do que uma) e ginger ale para mim, ouviam-se gritos de "Canta qualquer coisa, Annie!"
Após uma troca de gracejos e sem o menor constrangimento ela acedia cantando o "Menestrel" ou "Palácios de Tara", concluindo em geral com a canção predilecta que, se não estou em erro, se chamava "Pátria Verde".
Caro Patrícius, já ouviste O que se diz? Quem tudo manda Vai proibir que o trevo cresça Mais uma vez no chão da Irlanda!
Seguia-se o estribilho, ao qual com o maior sentimento todos se juntavam:
Querido trevo, trevozinho,
Ó belo trevo, trevozinho.
Querido e belo trevo da Irlanda!
Apesar destes divertimentos, ou talvez por causa deles, não podia deixar de sentir que a minha existência decorria agora num meio muito baixo. Para todos os efeitos eu vivia e trabalhava nos bairros pobres no Winton.
A mudança fora brusca e alarmante. O loo£ era horrível. Porta com porta, os casebres cerca-nos. cortados de ruas estreitas e becos nos quais se viam todos os sinais de miséria: mulheres de xaile, homens ociosos, e, o pior de tudo, crianças andrajosas, raquíticas, deformadas. Perpetuamente ruidosa, suja, sufocada do tráfego, Argyle Street parecia-me uma chaga purulenta.
Sábado à noite a multidão crescia e andava como se desvairada: havia bêbedos por toda a parte, ou estendidos nas valetas ou conduzidos à esquadra, os marinheiros emergiam das docas, à procura de desordens, facções rivais de clubes de futebol combatiam com os punhos ou com facas, depois dos desafios, enquanto, para aumentar o pandemônio, o Exército de Salvação surgia com o estrondo dos cím-baíos, o rufar do tambor e o frémito dos metais, marchando abaixo e acima, parando uma vez por outra para entoar um hino ou pregar os terrores da condenação.
Nos meus contactos diários, humanos e inumanos, não havia nada que melhorasse ou me estimulasse o espírito. Quando, à tarde, impelido pelo vácuo que sentia no estômago eu ia ao Bonelli comprar um vintém de batatas fritas e ouvia em linguagem mascavada que as batatas ainda não estavam prontas e só as ervilhas, experimentava a sensação amarga de que a minha estrela empalidecera desde aqueles tempos felizes e prometedores em que Miss Greville, dissertando num ambiente à Eton acerca da Orchis maculata, se interrompia para me perguntar, "Mais outra costeleta, Carroll?"
Tinha agora a certeza de que minha mãe não previra o que me esperava no armazém de Leo. Essas conversas sérias com meu tio, durante as quais ela estudava o rosto pálido e triste do cunhado, deviam tê-la induzido a uma impressão inteiramente falsa das perspectivas que ele poderia oferecer-me.
Contudo, não me atrevia a escrever e a revelar a verdade. Isso não modificaria a minha situação, e, pelas suas cartas frequentes, sabia qua a mãe se via aflita para desempenhar as suas obrigações na escola a tempo de tomar o comboio para Cardife e comparecer às suas importantes aulas nocturnas que, segundo me confiou, eram mais difíceis do que previra, com muita coisa técnica que lhe custava perceber.
Entretanto, como se sentia afundar numa espécie de pântano, sufocado pelo imenso fumo e fuligem, tentei agarrar-me de novo ao ilusório ideal espartano, que me sustentara no passado, adaptação física que não se me reflectira até aí na delicadeza do arcaboiço.
A casa de banho do prédio de Leo servia presentemente para depósito de objectos inúteis, lixo caseiro composto de maçanetas já velhas, pregos tortos, molduras partidas, caixas de papelão estragadas, etc, etc., que o tio não se resolvia a deitar fora; ajudado, porém, pela Annie, limpei a tina daqueles escombros.
Se bem que estivesse enferrujada, com o esmalte escalavrado, ela era ainda consistente, e assim, todas as manhãs quando me levantava, eu fazia quinze minutos de ginástica e em seguida tomava um banho frio.
Às tardes, que começavam a ser mais longas, voltava com prazer à minha antiga paixão de corredor. Custava-me apenas meio dinheiro o eléctrico que me levava de Argyle Street a Kelvingrove Park, no subúrbio ocidental da cidade, mas como às vezes me faltava essa moeda, eu não me importava de ir a pé todo o caminho ao longo da Sandimount Street e Western Road, contanto que levasse os velhos sapatos de lona, que me faziam sentir leve e cheio de elasticidade.
Chegado ao parque, que se estendia numa série de alamedas abaixo da Universidade, parava para me recompor, e depois começava a correr, no circuito por mim estabelecido. Com excepção de um eventual par de namorados sentados num banco, poucas pessoas se viam ali àquela hora.
A sensação de liberdade e prazer indiscutível que eu experimentava com essa corrida através do ar frio, aos últimos clarões da tarde, concedia-me uma evasão a todos os meus pesares, os quais, como se varridos pelo ímpeto da minha velocidade, ficavam perdidos para trás de mim.
Quando estava fatigado, sentava-me a descansar, olhando para a Universidade, velha e nobre construção que sobressaía escura, de encontro ao céu crepuscular.
As possibilidades que eu teria de estudar ali eram agora desesperantemente remotas; todavia, depois de tomar fôlego, o mesmo desejo veemente impelia-me a subir a colina e vaguear em volta do recinto.
Ao passar nos claustros desertos lia os nomes inscritos no alto das entradas e deixava-me arrastar sempre para a da aula de Biologia, onde, andando cá e lá junto da porta fechada, aspirava o cheiro da terebintina e outros odores. Por fim regressava à cidade, sentindo que a minha vida se afundava numa rotina estúpida e improfícua.
XXIV
Uma tarde, quando eu subia a Union Street em passo vagoroso, no regresso de uma missão de que Leo me encarregara, vi sair do Criterion Hotel um rapaz em cabelo e de extrema elegância acompanhado de uma senhora trajada com requinte talvez excessivo. Reconheci-o imediatamente, e, quando os nossos olhos se cruzaram, chamei-o em voz alta, Terence!
Fez de conta que não me ouvia. Evitando o meu olhar, continuou a falar muito animado com a companheira e passou por mim como se eu não existisse, enquanto eu, humilhado, o contemplava como um imbecil. Mais acima, defronte da porta do restaurante anexo ao hotel, estacionava um automóvel vermelho estofado de cabedal da mesma cor, com um motorista fardado. Terence escoltou a sua dama até a esse veículo pomposo, ajudou-a a sentar-se com todas as demonstrações de solicitude, e depois de um terno aceno de despedida, seguiu com a vista o carro até este desaparecer.
Quando ele se voltou, recaí em mim e afastei-me rapidamente, lembrando-me de súbito de que, oito anos antes, quando me encontrava com Terry, repudiei a Maggie. Ela estava agora vingada. Nessa ocasião, po rém, um assobio estridente, tal como se chamassem um cocheiro, fizera-me olhar para trás. Terence vinha na minha direcção, com modos indolentes, mais belo do que nunca, sem um cabelo fora do seu lugar, de calças listadas e casaco escuro, um verdadeiro figurino.
Quando me olhou de cima a baixo, tremi um pouco. Perante tamanha elegância, era impossível não me envergonhar do meu aspecto.
- Ora viva!-disse Terence, sem efusão.
- Que andas a fazer aqui?
A total ausência de comunicação que existia agora entre minha mãe e Lochbridge deixara-o na ignorância da nossa situação actual. Quando lha expliquei, soltou outro assobio, mas desta vez com ar meditativo e em tom mais baixo.
- Estás então a trabalhar para aquele avarento 1 Nunca passo por ele, na rua, que não me apeteça cuspir -lhe na cara. Por que não vieste ter comigo? Sempre gostei da tua mãe. É pessoa simpática.
Não deixaria de lhes valer, a ambos.
- Que é que fazes, Terry?
- Sou recepcionista no Criterion Hotel. Profundamente impressionado, relanceei a vista pelo entrada de colunas de mármore e, através das largas portas de vidro, lobriguei o átrio de sumptuosa alcatifa vermelha e cadeiras douradas. O Criterion era um hotel moderno, com pretensioso aspecto continental. Em Winton chegava às raias da opulência.
- Suponho que Leo te alimenta bem, disse Terence, examinando-me com olhar satírico.
- Ou não te desagradaria comer agora?
- Antes que eu pudesse responder, continuou:
- Vai então pelo lado de trás do edifício. Lá te espero.
Depressa descobri a entrada de serviço, e Terence, que já estava à porta, levou-me por um corredor comprido até à cozinha do hotel, quadra enorme, de grande pé direito, cuja ostentação de metais brilhantes e luzidios azulejos brancos ofuscavam a vista.
Um rapaz de avental e barrete de cozinheiro lia nesse momento um jornal.
- Tony, explicou Terence - acabo de descobrir um parente que morre de fome. Tens aí qualquer coisa que se lhe dê?
Tony baixou o jornal. Mas não parecia muito satisfeito.
- São três horas da tarde, replicou.
- E só eu é que estou de serviço.
- Por isso viemos cá.
Quando Terence sorria ninguém podia resistir. Tony largou o jornal e levantou-se.
- Que é que ele quer ?
- Qualquer coisa com carne. E bastante.
Foi um alívio ver a casa de jantar do pessoal (para onde Tony me levou) completamente deserta. Aí, após um intervalo surpreendentemente curto, o cozinheiro trouxe-me uma boa dose do que me pareceu um guisado.
- Agrada-lhe?
- Sem dúvida, muito obrigado.
Quando comecei a comer, Terence instalou-se numa cadeira defronte de mim e acendeu um cigarro.
- Isso é que é engolir, rapaz!
- comentou daí a momentos.
- Devias estar esfaimado.
- Não, Terry. jÉ porque este prato está uma delícia.
- Pudera não! É carne à bordelesa.
A minha amiga Miss Josey Gilhooley também a comeu hoje ao almoço no restaurante do hotel.
Quando Terence proferiu estas palavras percebi que esperava qualquer resposta. Eu não podia dizer que a rapariga era bonita, pois, embora a tivesse visto de relance, impressionou-me a proeminência do nariz. De modo que declarei apenas:
- Ela é muito elegante, Terry.
Assentiu, complacente, com um ar satisfeito de proprietário da dita senhora.
- O carro é dela?
- É do pai, o construtor Gilhooley. Nadam em dinheiro. Devo informar-te, e isto fica entre nós, que a Josey e eu estamos noivos. A coisa ainda não é oficial, mas praticamente ela é minha noiva.
- Pensei que gostasses da Polly Grant - disse eu, sem reflectir.
Passou um leve rubor nas faces de Terence, confirmando o antigo boato acerca das suas visitas frequentes a Ardencaple.
- Aquilo foi um entusiasmo de momento. Esta é que é a sério.
- E acrescentou, depois de um silêncio:
- Nunca sais com raparigas? A pergunta era tão absurda que me limitei a abanar
a cabeça.
- O quê ? ! - exclamou Terence. -- Ainda não tens uma pequena?
Foi a minha vez de corar. Não desejava esclarecer Terence quanto aos meus anseios nesse sentido, dominado por uma timidez enorme, um estado de conflito interior somente equilibrado pela disciplina que me impunha. De forma que menti heroicamente:
- Não me interesso por pequenas.
- Então que diabo é que fazes ?
- Estou ocupado o dia inteiro - respondi, defen-dendo-me. - E, ao anoitecer, vou até ao parque e exercito-me a correr.
- Ah, sim? Pela primeira vez despertou a curiosidade de Terence. - Lembro-me de que corrias bem.
-Pareceu querer brincar com o caso, mas considerou-me, pensativo, e acrescentou:
- Entraste nalguma competição a valer?
- Ah, sim! Com o grupo de Ardencaple.
Venci dois anos seguidos a prova de corta-mato.
Fitou-me ainda mais pensativo.
- Talvez uma destas noites eu possa ir marcar-te o tempo. Ainda sou capaz de fazer isso, embora tenha muito em que me ocupar para ser eu próprio a correr.
- Lembro-me de nos teres dito que venceste as cem jardas de Rockliff.
Mostrou-se satisfeito.
- Pois! Eu era ali o campeão, ou quase... É pena que não tenhas podido ir para Rockciiff.
Aquiesci tristemente, ajuntando em voz baixa:
- Daria tudo para ir.
- Quem sabe ? - replicou, de modo animador.
- Ainda não é tarde. Há sempre recursos. Como já te disse, tenho boas relações. Gilhooley é homem importante. Além disso irlandês e também católico. Não é caso para desesperar.
A propósito, lembrei-me agora de um meu antigo colega, que é hoje bolseiro. Chama-se Philan, ou Feeney, ou lá o que é. Já tirou o canudo. Poderei escrever-lhe... Com certeza me atenderia. Ou até o próprio reitor. Não se esqueceram de mim, isso te garanto.
A atitude expansiva de Terence levantou-me o moral. Brilhavam-me os olhos quando lhe murmurei a minha gratidão.
- Não fales nisso. - Recuou a cadeira e pôs-se de pé. - Tenho de ir para a recepção. Devem chegar esta tarde uns hóspedes muito importantes. Mas mantém-te em contacto comigo. Verificarei o tempo que gastas na corrida da milha; se te saíres bem podes lucrar com isso. Não te esqueças de aparecer por aqui.
- Não me esquecerei. Entrarei pela porta de serviço.
- Será mais fácil para ti - concordou. - Ouve cá: sabes que a Nora está em Winton?
- Não sabia.
- Pois está, e vai singrando lindamente.
- De que maneira?
- É assistente de Miss Donohue, a directora comercial do Earle's. Os Donohues são nossos amigos. 0 velho Donohue e meu pai foram amigos íntimos, de modo que é esplêndido para Nora estar sob as ordens dessa senhora. Sabes o que é estar encarregado dos fornecimentos ?
Sabia mais ou menos. E como o Earle's era o principal estabelecimento de modas femininas de Winton, deduzi que a situação de Miss Donohue devia ser muito boa.
- Nora pergunta sempre por ti, continuou
Terence.- Por que não a vais visitar?
Vive com Miss Donohue, em Park Crescent. Já te dou o endereço.
Tirou do bolso do colete uma lapiseira de ouro e escreveu a morada.
Nem fui capaz de lhe agradecer como devia. Na verdade, quando ele me conduziu à porta das traseiras, saí regozijado com o feliz acaso que me pusera no caminho de Terry. Estivera tanto tempo sem um camarada decente que a perspectiva de conviver com Terence e Nora me enchia de excitação. E mais: o assunto de Rockcliff fora aflorado. Que poderia Terry, ou os seus amigos, fazer por mim? 0 nome de Gilhooley, associado àquele automóvel faustoso (para não falar da filha espampanante, de quem Terence estava noivo) sugeria possibilidades que, embora ainda por determinar, pareciam ilimitadas.
XXV
DURANTE uns dias esperei qüe Nora entrasse em contacto comigo. Custava-me tomar a iniciativa, e com certeza Terence falara à irmã do nosso encontro. Mas como não recebi nem novas nem mandados, no sábado seguinte, quando acabei o trabalho, fui em ar de passeio até Park Crescent.
A tarde, lembro-me perfeitamente, estava calma, suave, luminosa, cheia de uma bela promessa de Primavera.
Park Crescent ficava num privilegiado bairro residencial, no lado oeste da cidade. Situado num ponto alto, sobranceiro ao Kelvingrove Park, era rodeado em parte por casas de estilo georgiano, agora convertidas em apartamentos. Já desanimado pela atmosfera superior deste local, que tanto contrastava com a miséria de Argyle Street e de Templar's Hall, em vez de me deter defronte do n.? 9, continuei a andar e não parei senão quando me encontrava cinquenta jardas além de Crescent Park. Aí, com olhar de observador desinteressado debrucei-me na balaustrada e contemplei o outro parque lá em baixo. Eu devia, ou não, avançar descaradamente * bater à porta? Os rebentos despontavam nos castanheiros, as campainhas de ouro estavam já em flor, na "vasta alameda onde eu costumava fazer as minhas provas atléticas arrastavam carrinhos de criança. Era possível
que Nora não tivesse nenhum desejo de me ver. No entanto, eu gostara dela na última vez que nos encontráramos, e queria a sua amizade. Virei-me e notei que não navia vivalma na rua. Ao menos ninguém presenciaria a minha possível expulsão. Enchendo-me de coragem, voltei atrás, subi os degraus do pórtico n.? 9 e penetrei no extenso átrio de entrada. De várias portas, escolhi a que tinha colado um bilhete de visita com este nome: Fidelma Donohue. Apertei o nó da gravata e, íembrando-me de que estava apresentável com o meu belo fato tingido de castanho, toquei a campainha.
Abriu a porta uma senhora baixa, forte, vestida para sair, de casaco e chapéu à moda; numa atitude empertigada, de cabeça inclinada para trás, observou-me com um olhar duro, inquiridor.
- Que deseja? - perguntou.
- Miss Nora Carroll está? -- murmurei. - Sou primo dela, Laurence Carroll.
Abrandou imediatamente, a expressão modificou-se, e sorriu, acolhedora. Tinha a boca larga, um tanto irónica, adornada de duas filas cintilantes de dentes postiços.
--Entre! Por que não nos veio visitar mais cedo? E por que não preveniu de que vinha?
Quando entrei, pôs a mão no meu ombro e voltou a mirar-me dos pés à cabeça.
- Sim, é um verdadeiro Carroll. Conheci muito bem o seu pai, coitado. Com que então está agora a tentar a sorte com o tio Leo ? - Sem me dar tempo a negar esta sugestão, continuou, impelindo-me para uma porta entreaberta: - Nora está ali. Vá vê-la num instante, porque temos de sair ambas. Mas não deixe de voltar.
Compreendi que viera em má altura e dispus-me a pedir desculpa e a retirar-me. Obedecendo, porém, à sus insistência, entrei no compartimento indicado, um quartinho de dormir muito feminino, guarnecido de cortinados de ramagens e cadeiras estofadas do mesmo tecido.
A minha prima estava diante do espelho do toucador. Voltou-se, e ficámos a olhar um para o outro. Mal reconheci nessa rapariga extraordinariamente bonita a garota magrizela que batera com a cabeça na minha no dia do enterro do meu pai. Porque não havia dúvida quanto a isto: Nora era linda. E não só linda como elegante. Envergava blusa de seda com bordados, saia verde escura pregueada e um colar de contas verdes.
Era exactamente o género de moça de quem eu, com o olhar baixo, me afastava apressado dos passeios, com medo de a macular com a minha presença. Contudo olhava-me sorridente, e os seus olhos pretos, sob as pestanas curvas e espessas que pareciam mais escuras em contraste com a frescura delicada da tez, cintilavam de prazer e malícia.
--Oh, Laurence, como estás bonito e crescido!
Nem quero pensar como te tratei daquela vez, na capoeira... Lembras-te do ovo?
- Se me lembro, Nora!
- Pois parece que te fez bem ao cabelo. Tem-lo com abundância e de um belo tom castanho. Ah, como te bati de encontro ao muro!
Avançou para mim, abraçou-me e deu-me um beijo demorado.
- Pronto! Foi para te compensar. No fim de contas, não somos primos?
Àquela pressão tépida senti uma espécie de choque, como se se partisse qualquer coisa cá por dentro.
- Nora, murmurei, que prazer tornar a ver-te! Há muito que o desejava.
- Então por que não apareceste mais cedo, pateta? Não, não, a culpa foi minha. Somos uma família
extraordinária pela maneira como procedemos uns com os outros! É claro, Simon está em Espanha, e Leo é intratável; mas não te devíamos ter perdido de vista. Precisamos de recuperar o tempo. Isso de teres estado todos estes meses com o tio Leo não foi com certeza divertido.
- Assim assado, Nora. Em qualquer caso não tenho muito vagar para distracções.
- Havemos de falar disso e de tudo o mais que te tem acontecido. - Pegou no chapéu que estava sobre o toucador.
Era um chapelinho de palha guarnecido com uma rosa. - Mas não agora, Laurence. É uma pena, mas eu e Miss Donohue temos um compromisso a que não podemos faltar.
- Vou-me já embora, apressei-me a dizer.
- Espera...acabou de pôr o chapéu defronte do espelho e voltou-se para mim. - Que tal ? Fica-me bem? Cuidado, que é um modelo lá da loja!-Desatou a rir.-Oh, Laurence, és um moço engraçado e, se eu sei ajuizar, também simpático. Agora escuta. No sábado à noite vamos todos, eu, Miss Donohue, Terence e outros, à segunda sessão do Alhambra, e tu vais connosco. A não ser - acrescentou, olhando-me com ar de troça - que isto te torne mais infeliz!
- Oh, não! Pelo contrário, Nora.
- Nesse caso, encontrar-te-ás connosco à entrada da plateia. Teremos os bilhetes.
Saí daquela casa num êxtase de felicidade que (quando voltei instintivamente para o parque) se transformou em exaltação. Como Nora me recebera bem. com que naturalidade e afecto eu fora acolhido, convidado para outro encontro! Nunca, na minha vida. alguém me beijara assim... Nunca, nunca. O calor suave daqueles lábios persistia no meu sangue inocente, fazendo-me pulsar deliciosamente o coração, que eu sentia encaminhar-se para aquela prima...
A súbita lembrança da minha absurda paixoneta por Ada, com quem nunca sequer trocara uma palavra, fez-me ruborizar. Aqui, não passara de uma brincadeira de criança. Isto sim. era a sério. Eu já deixara de ser um garoto. Compreendi" a vida.
E enquanto marchava num passo que me fazia transpirar, fui imaginando um futuro no qual ela e eu estávamos constantemente juntos. Já não me senti só e WinloW cessara de ser um ermo.
De repente, quando ia pelo passeio ribeirinho, de todo entregue ao meu sonho de ventura, feriu-me o olhar distraído um objecto que achei estranho apesar de não me ser desconhecido. Noutro tempo, sem dúvida, eu estivera familiarizado com essa espécie de tacão de madeira terminado em engaste de ferro que o fixava à sola espessa de uma bota. Parei instintivamente e ergui a cabeça. Sentado num banco do parque, sozinho, estava um homem de aspecto encolhido. Tinha sobrecasaca preta, colarinho de guta-percha e gravata de laço, e esse homem olhava-me com um meio sorriso complacente.
- Laurence Carroll - disse ele. Ter-me reconhecido no meu estado presente, decorridos sete anos, eis o que me impressionou de tal maneira que recaí em mim dos meus sonhos e respondi involuntariamente:
- O Rankin!-Então pedi desculpa da familiaridade, dizendo a seguir: - Admirei-me tanto de que me conhecesse que me saiu isto pela boca fora.
- Conhecer-te-ia em qualquer parte, Laurence - volveu ele amavelmente. Fez-me sinal para que me sentasse a seu lado.
- Na realidade, além de teres crescido não mudaste nada.
Duvidoso de que a explicação fosse elogiosa ou depreciativa, aceitei o convite e sentei-me. Rankin continuou a eximinar-me.
- Passeias por gosto ou vais em serviço?
Tive um desejo louco de me confessar, de lhe falar de Nora e do esplendor que nimbava agora a minha existência. Felizmente que conservei suficiente juízo para não ceder ao meu impulso.
- Por nenhum desses motivos, senhor Rankin.
- Voltava para Argyle Street.
- E porquê Argyle Street, se há tantas ruas?
- É onde trabalho.
- Trabalhas? Em quê?
- Sou uma espécie de aprendiz num armazém de atacadista.
- Então deixaste de estudar ? - Fiz sinal afirmativo a ele mirou-me zombeteiro, murmurando: - Nesse easo, estamos em iguais condições.
- Reformou-se? - perguntei diplomaticamente.
- É uma maneira de falar. Na verdade, aposentei-me. Mas ainda estou activo, graças a Deus, para um trabalho pessoal e interessante, colijo os Anais da paróquia de Ardencaple. Tenho acesso a todos os documentos da biblioteca da Universidade e ocupo um quarto decente e tranquilo na Hillside Street, aqui perto. Disponho de todas as facilidades que se podem ter para um labor aprazível.
Era sempre o mesmo homenzinho pacato e prosaico. Procurava apresentar sob o melhor aspecto a sua situação actual, a qual não me pareceu muito sedutora, e, com o espírito sobrecarregado em excesso para me dar ao cuidado de reflectir naquele encontro, começava a arquitectar um plano para me esquivar, quando ele disse:
-Fala-me agora de ti.
Com certa relutância fiz uma narração breve dos acontecimentos, desde a morte de meu pai, acerca da qual ele estava informado. Mas Rankin não me consentiu que resumisse e exigiu mais esclarecimentos, interrompendo as minhas respostas com exclamações sufocadas de alegria ou tristeza, até me haver feito esgotar a história toda.
Uma vez concluída esta, e vendo que o tinha interessado, esperei qualquer expressão de pesar, à laia de recompensa. Em vez disso, pondo a cabeça ao lado e afagando a barbicha branca, Rankin observou, com ar distraído:
- E a tua pobre mãe, tão meiga e tão galante...
- Então, antes que eu me recompusesse do abalo, pois essas palavras, vindas do velho professor, pareciam quase indecentes, ele relanceou-me daquele modo çus me fazia pressagiar algo desagradável e acrescentou:
- Estou muito desiludido contigo, Laurence. Julguei que fosses um rapaz esperto. Nunca imaginei encontrar-te como caixeiro de um armazém da cidade.
- Mas como poderia manter-me?
- Há muitas e variadas maneiras. Uma delas é ter iniciativa. Precisas de subir...
-Ergueu o queixo, como a sugerir qual fosse o meu destino, e fê-lo na direcção da Universidade, que estava acima de nós, alcandorada na colina.
-Gostava de estudar Ciências, e mesmo Medicina, nem que levasse muito tempo - respondi.
- Tenho querido muita coisa que nunca obtive.
- Por que não tentas com mais ardor ? Há tantas bolsas de estudo na Universidade, ao alcance dos rapazes inteligentes! E tu és inteligente, hem, Laurence?
- Não sei. Espero que sim.
- Deixa-me ver bem a situação.
- Falava com entusiasmo e, enquanto eu olhava perplexo, ele levou a mão à algibeira do casaco e tirou um livrinho de marroquim preto, muito usado, parecido com o meu livro de orações.
- É o Novo Testamento, Laurence - declarou com animação.
- Abre-o ao acaso e traduz.
Obedeci e, após uma pausa, fiz esta observação, com pretensões a gracioso:
- Para mim é grego, senhor Rankin. Não percebo patavina.O quê? Não sabes grego?Oh, filho, que decepção!
- Calou-se, olhando-me carrancudo.
- E a respeito de latim?
- Estudei os lugares selectos de Ovídio e todo o livro chamado Pro Patria. É claro, também comecei a ler um pouco de Virgílio.
- Um pouco de Virgílio - repetiu ele, dando um estalido com a dentadura, o que significava o máximo da insatisfação.
Outro silêncio. E prosseguiu:
- Expõe o quinto teorema do terceiro livro da Geometria.
Embaraçado, gaguejei:
- Infelizmente não fui além do segundo livro. Mesmo assim não desistiu. Ali, naquele banco de
jardim, enquanto os carrinhos de criança passavam por nós e um guarda do parque nos olhava como se desconfiado de que estávamos planeando saquear-lhe os canteiros de flores, Rankin submeteu-me a exame e, findo o interrogatório, soltou uma espécie de gemido cavo.
- Quem te tem ensinado? Ou estragado?
-Puxou pela barbicha como se quisesse arrancá-la. - Estás completamente deseducado.
- Não estou, não, senhor, redargui com certa irritação. - Sei muitas coisas acerca de botânica e zoologia, talvez mais do que o senhor. Aposto que desconhece a diferença que existe entre as quatro espécies de eriças, ou como é a divisão dos cromossomas no núcleo de uma amiba.
Fitou-me com um sorriso compassivo.
- Meu pobre rapaz, esses assuntos são precisamente os que deves saber, e sem dúvida aperfeiçoar. depois da tua admissão num estabelecimento científico. Mas para obter essa admissão são necessários conhecimentos de outra ordem, uma proficiência modelar que tu ainda não possuis.
Isto era irrespondível. De súbito, levantei-me.
- Não podia o senhor... isto é, como estamos ambos em Winton... não podia leccionar-me?
Imediatamente, e com uma certeza fatal, abanou t cabeça.
- Ê impossível, Laurence. Estás tão atrasado demais, precisas pelo menos de dois anos de estudo constante,não me demorarei aqui mais de "seis meses. Seria um trabalho improfícuo, tanto da minha parte como da tua.
Seguiu-se um silêncio longo e triste a esta extinção da minha esperança, sempre acalentada, de que vontade de vencer as dificuldades e tirar um curso brilhante
- É pena, Laurence. Sempre foste um aluno muito prometedor.
Lembras-te daqueles exercícios de rimas acerca dos fins de semana? Eram invulgarmente bons. Tinhas um extraordinário sentido da frase. Eu costumava lê-los nas aulas. - Calou-se de súbito, olhando-me de baixo, forma que achei estranha, e, falando consigo mesmo, murmurou uma palavra que não percebi. Soou como Eleison. Seria uma invocação final? Depois, um tanto indeciso, acrescentou:
- Acho que não há prejuízo em nos vermos.
Tens aí um lápis? Toma nota da minha direcção: Hillside Street, 212.
Aparece por lá na próxima semana, ao fim da tarde. E agora não te retenho mais. Vou para baixo contigo, até à paragem do eléctrico.
Repliquei mal humorado:
- Eu não tomo o eléctrico.
- Mas tomo eu, Laurence, acudiu com brandura. Fomos juntos até aos portões do parque. O andar
de Rankin, mais vagaroso e claudicante do que dantes, atraía olhares curiosos. Nos declives ele ficava ofegante. Mal disposto como me sentia, não me agradava ser publicamente visto com ele e ser lembrado através da figura desse coxo extravagante. Rankin não me valera, afinal, só me havia desanimado.
Quando por último, ao subir para o carro, me disse "aparece no começo da semana que vem", quase que nem respondi antes de lhe virar as costas.
Ao menos, não me despojara de todo o meu futuro. Eu ainda tinha Nora. E recomecei a pensar nela quando me dirigi para Argyle Street.
XXVI
A segunda sessão do Alhambra principiava às nove, mas no sábado, como é de calcular, muito antes dessa hora já me encontrava à porta do teatro. Na verdade, cheguei tão cedo que fui quase arrebatado pela onda de gente que saía da primeira sessão. Em seguida um vento húmido, arrastando nevoeiro do rio, fez-me sentir enregelado. Sem desviar a vista do relógio da Estação Central, andei cá e lá para me aquecer, embora também, e, mais certamente, com o desejo de ver surgir Nora. Mas o tempo passava. Dez, cinco, três minutos para as nove... O pano já devia ter subido. Comecei a aborrecer-me. Ter-me-ia enganado na sala ou na porta? Um quarto de hora depois, quando já tencionava ir-me embora, vi-os chegar.
O grupo era maior do que eu esperara, Terence e Miss Josephine Gilhooley, Nora, Miss Donohue, e um irmão desta, mancebo de expressão dura e trajando com um belo fato. Todos se mostravam com boa disposição de espírito, o que me levou a crer terem jantado juntos.
A suspeita de que eu fora excluído dessa reunião prévia foi confirmada pelas efusões com que, à laia de compensação, me saudaram.
- Espero que não se tenha constipado! - exclamou Miss Donohue, agarrando-me pelo braço.
- Josey, apresento-te o Laurence - disse Terence.
- Muito gosto em conhecê-lo. Os amigos dos meus amigos meus amigos são. Tenho pena de que não me falassem de si há mais tempo. - Miss Gilhooley, que trazia um casaco de peles de aparência muito rica e uma charpa de tule lilás em volta da cabeça e do pescoço, quis também mostrar-se amável. Apertou a minha mão, deixando-me a palma impregnada de um perfume que persistiu toda a noite, e acrescentou: - "Constou-me que é um grande corredor. Vê-se mesmo. Sempre disse que se conhecem as pessoas pelo físico".
- Penso que o será, comentou judiciosamente Terence. - Eu e o Martin vamos dar-lhe uma oportunidade, um dia destes.
Até aqui Nora não havia falado. Então, embora ainda calada, sorriu com ar de intimidade, o que, mais do que tudo, me consolou da longa espera. Melhor ainda, quando entrávamos no teatro, sussurrou-me apressadamente, como que a explicar a demora:
- Foi a festa de Miss Gilhooley, por isso não te pude convidar para o Criterion.
Na próxima vez com certeza irás.
Infelizmente, na confusão da nossa passagem para o centro da fila, perdi o meu lugar, de maneira que Terence, que ia à frente, se sentou ao lado de Miss Gilhooley, depois Martin junto de Nora, enquanto eu, na cauda do cortejo, ficava com Miss Donohue. Esta distribuição não me agradou nada. Desanimado, procurei Nora com a vista, esperançado num olhar de compaixão; ela, porém, sem perder a animação habitual, conversava com Martin Donohue. No palco, um malabarista arremessava bolas ao ar.
- Os primeiros números nunca são muito bons - segredou-me Miss Donohue.
- Mas espere e verá Hetty King.
- Desembrulhara uma caixa de chocolates e, depois de me oferecer um, deixou-a aberta sobre o regaço. - Sirva-se quando lhe apetecer.
Esta solicitude de Miss Donohue, em que eu notava certos laivos de piedade, fazia-me sentir como órfão de um asilo numa festa gratuita.
Um homem de chapéu de coco e nariz pintado de vermelho entoava agora uma canção a que todos pareciam achar muita graça, menos eu.
- Tem pilhas, não tem?
- disse Miss Donohue, rindo satisfeita.
Esforcei-me por esboçar um sorriso, lançando ao mesmo tempo outro olhar para a fila. Miss Gilhooley, agarrada a Terence, ria como uma louca, de cabeça inclinada para trás e mostrando os dentes obturados de ouro.
Nesse momento, com um aperto de coração, vi que Martin segurava a mão de Nora. Logo à primeira vista antipatizara com o Donohue, o qual não me dirigira a palavra e se havia limitado a pousar em mim um olhar frio, e essa impressão acentuou-se. Era bem parecido, mas faltava-lhe agrado e distinção. De maçãs do rosto salientes e nariz um tanto achatado, tinha o aspecto rude de um pugilista.
- Agora são os Gémeos. Repare como trabalham bem!
Obrigado a prestar alguma atenção à mímica dessas duas figuras tão parecidas, de calças brancas, casaco listrado e chapéu de palha, não podia contudo desviar o meu olhar perturbado daquele outro par da plateia.
A minha posição pouco natural, com um olho no palco e outro na fila de cadeiras, acabou por intrigar Miss Donohue, que me perguntou em voz baixa:
- Deu um mau jeito ao pescoço? Parece que está com torcicolo. Não me diga que é míope!
Com esforço, voltei os olhos para o lugar normal e apressei-me a declarar que não necessitava de óculos.
Salvou-me a descida do pano para o intervalo. Terence e Donohue levantaram-se imediatamente para ir ao botequim, e enquanto Miss Gilhooley se debruçava sobre as cadeiras vagas para falar com Nora, eu voltei-me para Miss Donohue, agora numa atitude resoluta.
- Não tinha o gosto de conhecer o seu irmão, Miss Donohue - observei, tentando a custo o tom de conversa amena. - Ele vive em 'Winton?
- Parte do tempo. Mas, em geral, viaja pelo país.
- Por negócios, Miss Donohue?
- Decerto. É agente.
- Caixeiro viajante, não é isso? Olhou-me condoída.
- Vê-se bem que é inexperiente! Não, meu filho. Martin é agente de apostas. Tem uma agência para a maior parte das corridas de cavalos e está em vias de criar excelentes relações no meio.
Coma um chocolate... um desses. Não gosto dos que têm recheio de caramelo, ficam-me pegados aos dentes.
- Nora e ele parecem ser muito amigos.
- Mais do que isso, replicou, lançando-me um olhar malicioso. - Há ali o que se pode chamar um acordo.
- Um acordo, Miss Donohue? - balbuciei.
- Não estão positivamente noivos. Nora ainda é muito nova, vai apenas nos dezassete anos, e eu quero treiná-la no Earle's durante um ano, mais ou menos, de modo a que ela possa trabalhar por sua conta. Mas já é um caso arrumado.
O facto de não estarem noivos dar-me-ia algum alívio se não fosse a última frase: "um caso arrumado". Olhei para Miss Donohue, calado e infeliz, enquanto ela continuava:
- Nora é uma rapariga adorável. Um bocadinho impetuosa, como todos os de sangue irlandês, mas é uma jóia e eu gosto muito dela.
- Todos gostamos, estou certo - retorqui, diligenciando em vão mostrar-me despreocupado.
O resto do espectáculo foi para mim inexistente. Nem Hetty King conseguiu animar-se, apesar da impressionante informação de Miss Donohue de que o sem número Oh, linda boneca era a canção predilecta dc rei Eduardo.
Quando o pano desceu e a orquestra tocou uns acordes do "Deus Guarde o Rei", dominou-me uma sensação de alívio.
Na debandada geral, Terence e Martin correram a tomar a última bebida, enquanto as duas senhoras se dirigiam aos lavabos. Fiquei à espera, sozinho enfim com Nora, no átrio que se esvaziava. Chegou-se ela para mim, de olhos fitos nos meus: estavam sérios, mas nos seus lábios, aqueles lábios frementes que me haviam beijado, pairava a sombra de um sorriso.
- Não te divertiste nada, disse, num tom de censura e ao mesmo tempo de pena.
Quando protestei abanou a cabeça.
- Não. Achaste uma maçada, e talvez fosse. Não é o género de coisas de que tu gostas.
Senti, num súbito desespero, que tinha de desabafar.
- Gostaria, Nora, se estivesse sentado junto de ti.
- Então por que não te sentaste? - Arregalou os olhos. Tinha o hálito tépido, agradável.
- Pensei que quisesses ter o Martin a teu lado.
- O Martin! - Exclamou.
- Estou farta dele. Aborrece-me. Preferia que estivesses junto de mim.
O coração pulou-me de alegria. Liberto do peso que me oprimia, senti o sangue afluir-me à cara.
- Mas ouve cá, Laurence - volveu ela, olhando-me provocante. - Terry diz que não te importas muito com raparigas.
- Importo-me contigo, Nora. Se queres saber, nunca houve ninguém que me importasse tanto. Gosto muito de ti.
Sorriu e pensei que ia continuar a provocar-me. Mas, após um momento, a sua expressão modificou-se e nos seus olhos azuis escuros transpareceu uma espécie de ternura.
- Também gosto de ti, acredita. E quero ver-te muitas vezes, mostrar-te um pouco, fazer-te sair da casca. É um mundo difícil, Laurence, e, desculpa que te diga, acho que deves ir-te habituando a ele. Tens de aprender a misturar-te com as pessoas e a divertir-te de vez em quando. Não levas a mal as minhas palavras?
- Não, de maneira nenhuma, Nora.
Os outros aproximaram-se, e ela concluiu:
- Ouve: no próximo domingo Mart e Terry estarão ausentes. Vai a Park Crescent e faremos o que quiseres.
- Oh, Nora!-balbuciei.
- Nunca tive um convite que me alegrasse tanto. Posso ir de manhã?
Julguei que ia desatar a rir. Os lábios tremeram-lhe e, sob as pestanas curvas, as pupilas contraíram-se e cintilaram.
- Pois sim. Mas não muito cedo, senão ainda me encontras na cama.
Fiquei reanimado, pronto a sorrir quando os outros reapareceram e a assegurar-lhes que me divertira muito.
Despedi-me cordialmente e agradeci a Miss Donohue quando ela me convidou para a sua próxima festa. Tudo isto era contra o meu feitio, mas fazia-o por saber que Nora gostava de mim.
Quando, por fim, os deixei, e segui a pé para Argyle Street, sentia-me felicíssimo, e o estridor dos eléctricos soava-me aos ouvidos como música celestial.
XXVII
Com excepção das cartas semanais de minha mãe, não esperava nada pelo correio. Foi, pois, um caso extraordinário o bilhete postal que chegou na quarta-feira seguinte e que a senhora Tobin me entregou ao almoço. Era de Rankin e dizia apenas:
"Porque não vieste visitar-me? Espero-te na quarta ou quinta-feira desta semana. Não faltes."
Eu já desistira de Rankin. A sua estimativa das minhas aptidões, ou falta delas, deixara-me no coração um espinho e eu não tinha desejo de ser mais uma vez interrogado e despedido. De que me serviria ir falar com ele? Para melhorar de situação teria de esperar pelo regresso da Mãe.
Contudo, no decorrer do dia, tirei o bilhete várias vezes do bolso e olhei para ele. No fim de contas, era uma coisa tão rara... E comecei a pensar se não haveria algo de urgente naquelas palavras. Além disso, eu devia obrigações ao meu velho professor. Em resumo, com a minha inconstância característica, às sete da noite estava eu a bater à porta do n.? 212 da Hillside Street.
Era uma pensão bastante modesta, facto que deduzi do cheiro de couves cozidas, no vestíbulo exíguo, e da passadeira de oleado já muito gasta, nos degraus que conduziam ao quarto de Rankin, situado nas traseiras do segundo andar. O professor estava a ler junto da janela, mas era evidente que esperava por mim; recebeu-me sem qualquer expressão de censura. Por cima do ombro dele, vi logo que fizera despesas em atenção à minha visita: uma garrafa de limonada e um prato de bolos, tudo na mesinha redonda ao lado da janela.
- Laurence - começou ele, depois de me sentar - ocorreu-me outro dia uma ideia que pode ou não ser boa. Desde então tenho-me empenhado nisso. Mas, antes de entrarmos no assunto, deixa-me oferecer-te um refresco.
Deitou a limonada num copo e pô-lo à minha frente, com o prato de bolos.
- E o senhor não toma?
Abanou a cabeça, sorrindo. Observou-me por instantes e proferiu com certa ênfase:
- Laurence, quero falar-te acerca de Ellison.
- Ellison?-Repeti, sem perceber.
Fez um gesto afirmativo e, unindo as pontas dos dedos, formando com as mãos um V invertido, inclinou-se para mim.
- Como decerto sabes, há muitas espécies de fundações, sociedades, bolsas de estudo e doações à Universidade.
Algumas destas são fora do vulgar e, conquanto perfeitamente aceitáveis pelo Senado, quase se podem chamar extravagantes, pelo que reflectem do carácter do doador.
- Fez uma pausa, fitando-me tão atentamente que me esqueci de acabar o bolo.
- Ora John Ellison era um homem extravagante, Laurence, um modesto moleiro, não exactamente literato, mas fervoroso nacionalista escocês, apaixonado pela história da Escócia. Sou levado a crer que ia todos os anos a Bannockburn no aniversário da batalha. De qualquer maneira, quando morreu, com oitenta e três anos de idade, deixou todos os seus bens para constituir uma bolsa de estudo anual de trinta mil libras, durante cinco anos, a que podem concorrer estudantes universitários ou que pretendam sê-lo, será atribuída a quem escrever o melhor ensaio acerca de uma personagem histórica escocesa, ensaio que deve ser feito no espaço de duas horas na Universidade no último dia da primeira semana de Agosto. Daqui a três meses, portanto.
- Fez outra pausa e então acrescentou em voz branda mas acentuando as palavras:
- Laurence, gostarias de passar estes três meses a estudar com afinco a história escocesa e concorrer no fim à bolsa Ellison?
Olhei-o atónito. A minha reacção, além da surpresa inicial, foi principalmente de rejeição instintiva.
A ideia era tão inesperada, o fundamento da bolsa tão ridículo, pendendo mesmo para o absurdo, e a minha competência para esse trabalho tão manifestamente duvidosa que eu me encolhi como um coelho na sua lura. Sabia-me incapaz de fazer tal coisa, que estava muito acima das minhas forças, e comecei a preparar uma recusa lógica mas em termos que não ferissem o professor.
- É muito amável em preocupar-se comigo, senhor Rankin, mas esqueceu-se de que tenho um emprego que me ocupa a maior parte do dia.
- Bem sei, Laurence. Mas à tarde, e mesmo à noite, podes, com a minha ajuda, enveredar pela História.
- E onde iria eu arranjar os livros?
- Com as minhas actuais facilidades na biblioteca da Universidade, emprestar-me-ão todos os livros de que precisas, e mais ainda.
Obras raras, esplêndidas, interessantíssimas.
- E Rankin ajuntou:
- Noutros tempos, gostavas muito de ler.
Esta observação pungiu-me, pois havia meses que eu não alimentava o espírito com algo de mais substancial do que o semanário Tit-Bits que a senhora Tobin assinava.
- Em qualquer caso - redargui - nada garante que eu seja capaz de fazer essa prova... além daquelas redacções da escola e que eram simplesmente esforços infantis. E o senhor Rankin já me declarou que estou muito atrasado....
- Mas és inteligente, Laurence - atalhou. - Além disso, duvido que a aptidão literária seja o que mais conta para o assunto. O júri há-de querer especialmente espírito nacional.
- Espírito nacional! - protestei. - Sou meio irlandês!
- Isso te dará imaginação para te tornares mais escocês do que os próprios escoceses.
Esta pressão delicada mas insidiosa começou a agir em mim vigorosamente.
- Não, realmente não me sinto com forças para isso. Sou muito novo para entrar na Universidade. Prefiro esperar que a minha mãe volte. 0 seu curso acaba em Setembro.
Quando ela tiver a sua colocação em Winton, vai alugar um apartamento ou uma casinha. Nessa altura talvez em possa estudar num colégio.
- Não és muito novo para a Universidade. Terás dezasseis anos feitos se entrares lá no Outono. E já não estás em idade de começar num colégio. Quanto à tua mãe não seria estupendo poderes dizer-lhe que concorres a uma bolsa... e talvez, até, que a obtiveras? Que alegria lhe davas, Laurence!
Depois entravas para a Universidade com mais do que o suficiente para te manteres ali. Trinta libras anuais garantidas por cinco anos! Pensa nisto, rapaz. E não te esqueças de que estou pronto a ajudar-te.
Deliberadamente ou não, Rankin tocava todas as teclas do sentimento, sem faltar a da ternura que eu sentia por minha mãe. Brincava tão deslealmente com as minhas comoções que o sangue me afluiu à cara e eu não soube que responder.
Olhou para outro lado, afagando a barba e parecendo não reparar na minha humilhação, mas não antes de tanger a última corda, ultrajante, imperdoável.
- Deves calcular o que representaria para um velho inútil como eu contribuir para que ganhasses a bolsa Ellison.
Estava ele a representar, descendo a esse estratagema para me convencer? Rankin era um professor, um clássico, um homem culto, mas nas suas veias havia uma forte dose dos sentimentos desse grupo de escritores que contaram histórias acerca da vida dos escoceses humildes. Eu já acreditava que fosse sincero no que dizia, e isso bastou para me dar por vencido. Rankin assim o percebeu. Levantou-se rapidamente, e, saltitando (estava à vontade, de chinelas, sem o costumado tacão), dirigiu-se a um armário metido na parede.
- Não vais tomar essa limonada, que já perdeu o picante. Tenho aqui outra garrafa guardada para ti. - Trouxe-a consigo e despejou-a num copo limpo.
- Há mais bolos, se quiseres.
Não queria bolos nem limonada, sentindo que, depois de me considerar como um adulto, ele me tratava como uma criança. Mas aceitei, para ter tempo de reflectir, e servi-me em silêncio. Ninguém experimentaria maior entusiasmo do que eu com a perspectiva daquele nosso empreendimento. Rankin devia ter percebido isso porque me falou em tom diferente, autoritário.
- Agora presta atenção. Três vezes por semana comparecerás aqui às sete da noite, e passaremos juntos pelo menos duas horas. Já fiz uma lista dos livros de que precisas. Para começar, tens aqui dois, a História Geral da Escócia, de Hume Brown, e as Guerras Fronteiriças, de Duncan.
- Entregou-me um dos volumes e abriu o outro ao acaso. - Não calculas quanto isto te vais interessar... as figuras extraordiniráas que vais conhecer.
Este conde de Angus, por exemplo, denominado Archibald Campainha-no-Gato, foi uma personagem espantosa. Chega a tua cadeira mais para aqui e vamos ler isto juntos.
Assim principiámos a averiguar as heróicas excentricidades de Angus, chefe dos partidários dos Douglas; como ele enforcou os músicos do rei e como adquiriu a alcunha de Campainha-no-Gato. Contra vontade, comecei de facto a interessar-me. Rankin podia não ter dado nada como orador sagrado, mas como professor era óptimo. Tive pena quando, às nove horas, declarou encerrada a sessão.
- Para início já chega. Agora, além da leitura que te fiz, quero que escrevas um relato sucinto, digamos umas quinhentas palavras, a respeito do que acabámos de ouvir. Traz isso na sexta-feira.
Pus-me de pé, tentando encontrar a expressão exacta de consentimento. Como podia eu ser tão obstinado, tão timidamente adverso? Ele, porém, deteve-me.
- Já te conheço, Laurence. Nada de efusões, por favor. Trabalho é que é preciso.
Com os livros debaixo do braço, fiz a corrida habitual através do parque e depois, impaciente por travar novo conhecimento com as guerras da fronteira, segui na mesma velocidade para Argyle Street, escolhendo o caminho junto do rio, as ruas desertas e mal iluminadas, ouvindo o eco dos meus passos atrás de mim, entre os barracões sombrios das docas, até que me encontrei no meu quarto, sentado na cama, com a vela acesa e o livro aberto sobre os joelhos.
XXVIII
O domingo, tão ansiosamente esperado, chegou por fim. Embora me levantasse por volta das sete horas, fui como de costume à missa das dez, em S. Malaquias, com a senhora Tobin. S. Malaquias era a igreja da vizinhança, servia o bairro mais pobre da cidade e permanece na minha memória associado a bandos de mulheres de xaile e a tossidelas constantes. Mas a senhora Tobin gostava de ir ali, de se encontrar com as amigas, e eu acompanhava-a sempre. Nessa manhã era minha intenção excepcional ir à missa das nove, a fim de poder estar em Park Crescent cerca das dez, mas, lembrando-me da recomendação de Nora de que não fosse muito cedo, resolvi só aparecer lá às onze horas, se bem que se me afigurasse já um pouco tarde.
Soavam onze badaladas no relógio da Universidade quando toquei a campainha do número 9, trajado com o meu fato melhor, um tanto nervoso mas radiante com a ideia de ver Nora. A minha devoção a Ellison era coisa agora estabelecida, porém tinha ainda um longo caminho a percorrer, e nada me faria perder a oportunidade de passar um dia com essa prima tão adorável.
Talvez a campainha não tocasse... Premi-a outra vez e esperei. Não houve resposta. Carregava de novo o botão quando ouvi certo ruído no interior da casa e a porta se entreabriu o bastante para me deixar ver Nora de camisa de noite e roupão. Olhou-me pestane-nejando, estremunhada, até que, sem mostrar muito prazer, me reconheceu.
- Ah, és tu, Laurence. É melhor entrares.
Apertando o cinto do roupão e arrastando os pés nas chinelinhas acolchoadas, conduziu-me à cozinha, sentou-se na borda de um banco e conteve a custo um bocejo.
-Oh, Nora! - Exclamei, lamentoso e todavia fascinado pelo espectáculo que ela me dava.
- Parece-me que vim incomodar-te.
Olhou para mim, esfregando pensativamente o ombro sobre a camisa, e, de súbito, desatou a rir.
- Não te rales. Recolhi tarde a noite passada, depois de andar com o grupo. Fui despedir-me de Miss Donohue, que seguiu para Perth, com o Martin e o Terry. Mas, se queres pôr a chaleira ao lume e fazer-me uma. xícara de chá, estarei pronta num abrir e fechar de olhos.
Depois de me mostrar o armário da despensa, retirou-se para o seu quarto, e eu resolvi preparar-lhe um almoço a valer. A vida com minha mãe habituara-me a improvisar refeições.
Quando ela voltou, o chá estava pronto, além das torradas e dos ovos estrelados.
- Nunca pensei!
- murmurou, vendo as coisas que eu pusera na mesa coberta com toalha.
- Isto é luxo. Bate o Criterion! Vais servir-te também.
- Já almocei, Nora.
- Que comeste?
-- As papas do costume... uma espécie de aveia. -- Então torna a comer. 0 tio Leo devia levar um tiro.
Trouxe outra xícara e começámos a comer as torradas e os ovos. Nunca imaginara que almoçar com alguém pudesse ser tão agradável. Minha prima, agora fresca como uma bonina, parecia mais bela do que nunca. Embora sem meias e de chinelas, envergava uma blusa branca e uma saia escocesa em que predominava o amarelo.
- São as cores dos Kerrys, explicou ela, alisando o tecido sobre os joelhos. - Se és irlandês bem podes orgulhar-te disto. E agora diz-me francamente o que te apetece fazer hoje. Para onde vamos?
"É o seu tom de pele", pensei, "o cabelo escuro e os olhos em contraste com a tez clara que a tornam tão encantadora". Notei com prazer, quando ela trincava a torrada, que os seus dentes tinham a alvura dos do meu pai, os belos dentes dos Carrolls.
Respirei fundo.
- O que me apetecia... se estivesses de acordo... era irmos ao campo.
- Ah, não és rapaz citadino.
Olhou para a janela. O sol brilhava no muro branco do pátio.
-Talvez não seja má ideia. Winton ao domingo é uma maçada. Vamos para a casa flutuante.
- Casa flutuante?
Gozou a minha surpresa. Eis, pensei então, o encanto peculiar da Nora: a sua capacidade para a alegria.
- Há muita gente que tem casas flutuantes no Loch Lomond. Martin... e Miss Donohue...
- Acrescentou, possuem uma não muito distante de Luss. Para feriados e o mais. É divertido. Vamos de bicicleta, e tu podes ir na de Miss Donohue. Pela uma hora lá estaremos.
Esta perspectiva, depois de vários meses sem sair das imediações da Argyle Street, era na verdade estimulante. Pus-me logo de pé, impaciente.
- Não nos demoremos, Nora. Posso lavar a loiça e fazer Umas sanduíches.
- Sanduíches, não. É uma chatice. E não te preocupes com a loiça. Se queres ir já, vamos, mas primeiro deixa-me calçar as meias. Dá-mas. Estão acolá.
Levei-lhe as meias, leves, transparentes que tinham sido lavadas e pendiam, já enxutas, num varão perto da chaminé.
Sentada ali mesmo, começou a calçá-las, observan-do-me disfarçadamente com estranho ar de malícia, enquanto eu, fascinado, me permitia deitar um relance de olhos à brancura da pele sob a saia escocesa.
- Pronto! - Exclamou por fim, endireitando-se. - Agora é só enfiar os sapatos.
- Obrigado! Nora - tartamudeei.
- Esta frase idiota, que devia ter saído do meu subconsciente em agradecimento ao prazer que me dera, soou como coisa tão deslocada que fiquei ruborizado. Felizmente que ela não reparou.
As duas bicicletas estavam na cave.
Trouxemo-las para o pátio e montámos.
A de Miss Donohue, modelo antigo, com o guiador elevado e uma engrenagem que prendia a roda, obrigava-me a grandes esforços. Tinha de pedalar duas vezes mais do que Nora para que fôssemos a par. Ao descermos a colina, ela lançou-se à frente e virou-se para troçar de mim, e eu, empoleirado no alto selim, movia doidamente os pedais, matraqueando atrás. Estava convencido de que Miss Donohue não usava aquela máquina havia anos. Mas exercício era justamente o que eu queria, os caminhos estavam desimpedidos, como é próprio dos domingos, e o campo raso, já reverdecido pela Primavera, embriagava-me de gozo.
Os espinheiros floresciam e eu aspirava, de passagem, o perfume que exalavam. Os cordeiros, nos prados, baliam atrás das mães. As primeiras despontavam entre as sebes. Quando chegámos ao lago, serpenteando ao longo da linda margem curva, Nora começou a fazer habilidades na bicicleta.
- Olha, Laurence, sem mãos.
Depois desatou a cantar. Não era a canção de Hetty King, mas outra semelhante, que principiava:
Há um ano chamaste-me boneca E disseste que eu era muito bela Para saber...
Esta infracção à calma dominical teve em mim um efeito indescritível.
Apreciei-a deveras, até que, de repente, me lembrei de que Nora não fora à igreja nessa manhã e devia, pois, ser censurada por tal falta. Pedalei até junto dela e exclamei consternado:
- Nora, não foste hoje à missa. A culpa foi minha, porque te dei muita pressa.
Parou de cantar.
- É verdade, Laurence, replicou com ar sério.
- Um pecado que há-de pesar-te na consciência! Não quero ser repreendida, mas o certo é que me aborrece bastante.
- Porque não me detiveste, Nora? Teria ido contigo aos Jesuítas, na Craig Street. É a minha igreja preferida.
- Não me deste oportunidade a fazê-lo. Montámos na bicicleta e saímos da cidade antes que eu soubesse que dia era hoje ou aonde nos dirigíamos...
- Lamento profundamente, Nora.
- Não te rales, rapaz. Talvez não seja pecado mortal, e, se for, há muita gente que faz coisas piores.
Assim falando, apeou-se. Encaminhámo-nos para uma enseada com a praia coberta de seixos, na qual estava um barquito preso a um poste por uma corrente enferrujada. A cerca de cinquenta jardas mais além via-se, flutuando ancorada, uma coisa curiosa pintada de branco, com portas e janelas, miniatura do que eu imaginava ter sido a Arca de Noé. Era a tal casa flutuante.
Nora tirou uma chave da bolsa da bicicleta e abriu o cadeado da corrente. Empurrámos o barquito e, cada um com o seu remo, levámo-lo até à embarcação ancorada. Por dentro era exactamente como uma casa pequena, com quarto de dormir, uma espécie de sala de estar, e cozinha fornecida de fogão de metal. Achava-se, porém, num estado de extrema desordem, a cama por fazer, jornais e pratos acumulados sobre a mesa, no chão uma garrafa vazia.
- Que confusão! - disse Nora, olhando em volta e torcendo o nariz. - Mas não importa, isso não nos diz respeito. Se tomássemos um banho?
- Quem me dera! -respondi. Estava cheio de calor e de poeira. -O pior é que não trouxe os calções.
- Ninguém vê - retorquiu ela naturalmente. - Eu não olharei e, se o fizesse, não és tu meu primo? Atira-te do cesto da gávea. Mas toma cuidado, olha que a água deve estar muito fria.
Subi uma escada de mão até àquela plataforma, que era cercada de balaústres ornamentais. A enseada tinha um grupo de árvores a envolvê-la em parte e o lago cintilava ao sol. Ao longe, o pico de montanha parecia mais azul do que o céu. Tirei a roupa, e, ainda receoso da minha nudez total, dei o mergulho.
O choque da água glacial quase me sufocou. Fiquei ofegante, mas, ao movimentar-me, a circulação refez-se rapidamente. Nadava havia já algum tempo quando um chape inesperado me fez virar na água. A minha prima reunira-se-me no lago. Era impossível perceber se tinha ou não fato de banho. Só a cabeça estava visível quando, com braçadas velozes, se dirigiu ao- meu encontro. Mas a ideia de que, como eu, pudesse apresentar-se como a natureza a fizera sobressaltou-me tanto que fugi qual uma truta assustada para as bandas da praia. Nora, porém, vendo o meu intento, cortou-me a retirada. Voltei para trás. Ela seguiu-me como uma sereia tentadora. Só com um esforço que me deixou arquejante é que consegui alcançar o lado oposto da embarcação e içar-me para o lugar donde havia mergulhado.
Junto da minha roupa fora colocada uma toalha. Enxuguei-me rapidamente, vesti-me, e cinco minutos depois Nora aparecia, a escorrer água, de cabelo gotejante mas, com grande alívio meu, de fato de banho.
- Porque não ficaste lá,quando eu me aproximava ? Francamente, Laurence, és de uma timidez aflitiva! Por que hás-de ser tão reservado? Deitei uma olhadela quando estavas nu e digo-te que não tens nada de que te envergonhes.
- Mas, Nora, eu só pensei que...
- Pensas de mais. Esse é o teu mal.
- Seja como for, estou muito esfomeada para discutir. Precisamos de comer.
- Se houver alguma coisa para cozinhar, murmurei, desejoso de ser útil - eu posso acender o fogão.
- Quando me conheceres melhor, e espero que sim, saberás que detesto cozinhar... tanto como detesto sanduíches. Em qualquer caso, nesta barcaça não há nada que se coma senão sardinhas de lata e bolachas velhas.
Ia responder-lhe que isso bastava, mas já Nora descia a escada, dizendo:
- Vou arranjar-me num instante. Depois saberás qual é a minha ideia.
Não se demorou a regressar. Metemo-nos então no barquinho e, sob a sua direcção, remei cerca de meia milha até outra calheta onde, na estrada marginal, havia uma estalagem com esta tabuleta: "Inchmurrens Arms. Proprietário, John Rennie." Desembarcámos numa ponte--cais de madeira. Aí, hesitei. Era preciso dizer a verdade.
- Nora... dinheiro é coisa que não tenho.
- O quê? -Assumiu um ar de surpresa exagerada.
- Não tens dinheiro? Bonito!
Ao ver-me corar até à raiz dos cabelos, desatou a
rir.
- Não te preocupes, Laurence. Isto é por minha conta.
Nora devia ser cliente habitual, pois o dono do estabelecimento conheceu-a imediatamente e veio apertar-lhe a mão.
O senhor Donohue não vem hoje com a menina? - Olhou demoradamente, com certo espanto, e voltou a cabeça.
- Temos galinha, rosbife ou carneiro, e, como sobremesa, maçãs assadas, requeijão e leite-creme. Estarão à vontade no gabinete. - E acrescentou, depois de reflectir: - Minha mulher vai ter pena de a não ver. Foi à aldeia, com a filha.
O gabinete não era muito elegante, tinha uma mesa coberta de oleado e escarradeiras no chão onde havia serradura espalhada. Na prateleira do fogão via-se um aquário com um lúcio de ar triste, embalsamado. Mas a comida, quando chegou, produziu o melhor efeito. Servimo-nos de rosbife, fatias espessas, vermelhas a meio e tostadas em volta, com acompanhamento de batatas e salada.
Nora mandou vir um copo de cerveja. Eu tomei limonada. Depois comemos maçãs assadas, de que me servi duas vezes, e por fim queijo. Recostada na cadeira e acabando a sua cerveja enquanto mordiscava uma lasca de queijo, a minha prima observava com um sorriso as voltas que eu dava a uma talhada muito maior.
- Havemos de voltar cá, não achas ?
- Se fosse possível, Nora! Isto é tudo tão... perfeito !
- Só falta uma coisa para rematar. Lembras-te do copo de Porto que te dei na loja do meu pai, quando éramos garotos? Pois vamos tomar hoje outro gole.
Levantou-se e saiu do gabinete. Passado muito tempo, voltou com um cálice em cada mão.
- O Rennie reteve-me lá dentro com conversas acerca de cavalos, disse ela.
- O Martin costuma dar-Ihe palpites.
A menção deste nome fez com que o Porto me soubesse um pouco a fel. Mesmo assim deu-me certo alento.
- Nora... Vens cá frequentemente com o Martin?
- Uma vez por outra. E com Miss Donohue também.
- Suponho... - Com estes rodeios ia-me aproximando do assunto doloroso. - Suponho... e é natural... que simpatizes com o Martin.
- Há ocasiões em que simpatizo.
- Noutras, detesto-o. Agora estou de candeias às avessas com ele.
- Oxalá assim continues.
- Porque, se isto não te ofende, o vinho do Porto auxiliava-me, eu gosto muito de ti.
- Por que me hei-de ofender?
- É que... eu não valho muito, como sabes.
- Por amor de Deus! - exclamou. - Quando deixarás de te rebaixar? Não tens muito bom conceito de ti mesmo. Se queres saber, dir-te-ei que aprecio estar contigo como nunca pensei que apreciaria. Ouves-me? Gozo este momento como tu próprio o gozas. É a pura verdade. Vamos para o bote.
Levantei-me, e uma deliciosa sensação de euforia começou a invadir-me, reforçada pelo almoço, pelo vinho e pela expressão ardente do olhar de Nora. Diplomaticamente, com o pretexto de discutir corridas de cavalos, ela já havia liquidado a conta. Uma vez fora, através do jardim da estalagem, senti o aroma delicioso que destilavam os goivos aveludados, aquecidos pelo sol. Estava uma tarde bela e calma.
Chegámos à casa flutuante, amarrámos o barquinho, e entrámos. Nora olhava-me com aquele ar vagamente sorridente que eu lhe notara quando ela havia calçado as meias. Mas, de certa maneira, agora havia uma alteração: já não escarnecia de mim. Em vez de malícia nos seus olhos, percebia-se uma vaga incitação, suave e estranha. Soltou uma risadinha.
- Depois daquela refeição, apetece-me dormir a sesta. Não queres? Podemo-nos deitar ali.
Seguindo-lhe o olhar, vi que a cama estava feita. Devia ter-se ocupado disso quando se vestira depois do banho.
- Mas está um dia tão bonito, Nora. Não seria melhor descansar no convés?
- Já experimentei.
- Fez uma careta cómica.
- É duro a valer.
- Levamos as almofadas do sofá.
- Está bem... se te agrada:-respondeu, condescendendo. - Mas não é tão confortável como na cama.
Agarrei em todas as almofadas e levei-as para cima. Estavam um tanto amachucadas, com as penas a sair por vários pontos, mas pareceram suficientemente fofas quando as dispusemos no convés e nos estirámos sobre elas. Fechei os olhos. Mesmo através das pálpebras cerradas o sol tinha um fulgor que se harmonizava com o meu estado de espírito.
- Estás confortável, Nora?
- Estou. Nunca me lembrei das almofadas. Foi
boa ideia, Laurie. Mas onde é que estás?
Estendeu um braço. Ainda de olhos fechados, segurei-lhe na mão.
Ela começou a fazer-me cócegas na palma, com a ponta de um dedo.
- Sinto-me tão feliz, Nora! Obrigado por tudo. Especialmente pela tua companhia.
Ainda estás muito afastado. Chega-te mais para cá. Quando me virei para o lado dela,o seu braço
enlaçou-me o pescoço.
Abri as pálpebras. A cara de Nora estava junto da minha. Podia ver-lhe os reflexos azuis nos olhos escuros, o sinal no alto da maçã do rosto, tão bem situado que parecia postiço. Uma gotinha de suor brilhava-lhe no lábio superior.
A tez, em geral pálida, tinha um leve tom rosado. Da sua proximidade vinha um calor estranho e perfumado, o que fez com que o coração se me tornasse tumultuoso, arrítmico.
- Queres que te diga uma coisa, querido Laurie?
- Falou lentamente, com uma pausa entre cada palavra, como para se fazer compreender bem.
- Gosto muito, muito de ti.
- E eu também gosto de ti - balbuciei.
- Amo-té de todo o meu coração.
- Então ama-me, Laurie.
Apertou-me de encontro a si e apoiou os lábios entreabertos nos meus. Percorreu-me uma onda de suavidade. Em toda a minha vida nunca podia ter desejado mais do que isto. Senti-me transportado, fora de mim mesmo, erguido numa corrente da comoção mais pura e poderosa, sentimento tão destacado do corpo que era eomo um êxtase da alma.
Eu, pobre simplório, nem ousei pensar que Nora desejava mais alguma coisa de mim. A minha capacidade de cooperar não estava em causa; sabe Deus quantas perturbações me não haviam guiado os passos incertos através da minha puberdade! Mas Nora era para mim misteriosa, excepcional, quase angélica. Não só preferia morrer a ofendê-la, como também a minha disposição de espírito exaltado me coibia das tentativas terrenas de um acto que, nessa altura, parecia uma coisa sórdida, indecente. Fui um asno ou simplesmente um moço idealista, falho de experiência? Devo merecer o desprezo da geração actual de adolescentes sabidos que falam destas aventuras com uma segurança tediosa e trazem a algibeira cheia de drogas anticonceptivas? Manteria, de facto, até ao fim, a minha atitude seráfica? Fosse como fosse, ao menos estou dispensado de acrescentar a esta história a mais banal de todas as acções, a perda da virgindade, porque, enquanto nos achávamos assim nos braços um do outro, felizes e sem alento, soou da praia um grito que nos sobressaltou.
- Miss Nora, trouxe-lhe flores para a sua casa.
- Meu Deus! - gemeu Nora. - É a senhora Rennie, da estalagem. Diabos a levem!
- Umas para si e outras para Miss Donohue - continuou a voz. Virando-me sobre o cotovelo, lobriguei uma mulher pequena mas forte, que nos acenava com molhos de junquilhos.
- Vou buscar - declarei.
- Não, deixa-te ficar aqui. Livrar-me-ei dela num instante e volto nos mesmos passos.
Levantou-se, embora com relutância, alisou o cabelo e, um momento depois, eu ouvia o barulho dos remos fendendo a água. Por fim, soaram vozes na troca de saudações amigáveis e de conversa à beira do lago. A senhora Rennie era muito faladora e Nora não se desembaraçou tão depressa como esperava. Por cima de mim via o céu imenso, e escutava o desenrolar das ondas na praia, o que me tornava sonolento. Comecei a sentir que flutuava, como em sonhos, através das nuvens, e ia sempre flutuando... Sonhei com a corrida de bicicleta, com o esplêndido almoço, com o vinho do Porto, com o calor do sol. Para minha vergonha,tinha adormecido!
Quando acordei, o ar estava mais frio, o Sol começava a declinar e Nora não se encontrava junto de mim. Fui encontrá-la na cozinha, a fazer chá. Não me acolheu, como seria de esperar, com censuras ou desdém, mas sim ternamente, e com certo ar, para mim, intrigante, de interesse protector. Beijou-me na face, proferindo palavras de louvor na verdade estranhas:
- És uma jóia, Laurie. Um dia estupendo, e nada a pesar-nos na consciência!
- Adormeceste também?
- Não. Tomei outro banho para refrescar e, em seguida, pus a chaleira ao lume e sentei-me aqui a meditar.
- Acerca de quê, Nora? Sorriu.
- Um dia te direi.
Depois de tomarmos chá, que me soube muito bem, fomos para terra e, nas respectivas bicicletas, dirigimo-nos a penates. Nora ia a meu lado, e muitas vezes apoiava a mão no meu ombro, de modo a podermos conversar. Realmente conversámos bastante no regresso a Winton. Falei-lhe da bolsa Ellison e ela incitou-me a estudar com afinco para o concurso. Outro conselho que me deu foi não deixar Terence ludibriar-me.
- Terry é bom rapaz, não há nele maldade nenhuma, mas é preciso estar de pé atrás. Quanto ao Martin Donohue, esse seria capaz de esfolar a própria avó.
Já era muito tarde quando chegámos ao Park Crescent. A minha lanterna apagara-se e subíramos a pé ,a última parte da colina. Tirei a bicicleta das mãos de Nora e disse-lhe que eu guardaria as duas máquinas na cave. Então, enquanto ali estávamos às escuras, ela deu-me um abraço e um beijo apressado.
- Boa noite, querido Laurie. E obrigado por seres como és! Com estas palavras, subiu a escada e desapareceu.
XXIX
ERAM quatro horas de uma tarde quente de sábado, em meados de Julho. A senhora Tobin havia trazido uma xícara de chá ao meu quarto. Antes de sair, meneou a cabeça ao ver-me sentado atrás de uma rima de livros, à mesa de vime que eu salvara de um dos compartimentos em que o tio guardava o seu refugo.
- A educação é uma grande coisa - disse ela --, mas eu, se fosse o menino, não me esforçava tanto.
- É preciso, Annie. 0 tempo escasseia cada vez mais.
- Então veja lá não apanhe uma febre cerebral, como o filho da senhora Finnegan quando ficou mal no concurso para os Correios.
Eu estava muito ocupado para tomar isto como brincadeira. Havia mais de dois meses que trabalhava sem descanso sob a direcção de Rankin, de tal maneira que sentia os nervos arrasados. Daqueles dois aperitivos, a História Geral da Escócia e As Guerras Fronteiriças, passara a leituras mais substanciosas: a Guerra da Independência da Escócia, de Barron, a Escócia Céltica, de Skene, os Reis Stuarts, de Gregory, e por fim O Cardo e a Rosa, em que estava absorvido. À parte o meu objectivo verdadeiro, no qual tinha pouca esperança, principiara a interessar-me pelo assunto em causa. À noite, que era a minha melhor oportunidade para ler, sentia-me tão entusiasmado com a contenda entre Rothesay e Albany e a morte de Rothesay em Falkland, que só parava quando a vela se consumia toda - iluminação muito a carácter com os episódios do século XIV. Actualmente eu ia quatro vezes por semana a casa de Rankin, devoção heróica, menos da minha parte do que da sua. Com frequência o pensamento me retrocedia ao tempo em que tanto desejara ter um leccionador. Agora tinha-o: um mestre paciente, admirável. A sua atenção concentrava-se principalmente na minha falta de estilo literário, defeito que ele de contínuo procurava sanar (mas sem resultado) quer por meio de correcções quer de conselhos.
- Escreves com o coração, Laurence, e não com o cérebro - dizia, lastimoso.
Enquanto tomava o chá que a senhora Tobin me trouxera e que eu deixara arrefecer, o meu olhar poisou, e não pela primeira vez nessa tarde, no postal que viera na véspera e que se encontrava em cima da mesa, junto dos apontamentos quanto à regência de Murray e à de Lennox. Franzindo a testa, peguei nele, como para ver se me escapara qualquer pormenor, e li-o mais uma vez:
"Espera por mim no sábado, às cinco horas, na Estação Central, por baixo do relógio. Não faltes. É para teu interesse.
Terence."
É claro, eu não iria... Já resolvera não sair. O tempo era agora muito precioso-para o perder com encontros fúteis. E, acima de tudo, não me prevenira Nora, a minha querida Nora, de que me acautelasse do elegante Terry? Contudo, a última frase deu-me que pensar. "É para teu interesse"... Se, com efeito, fosse uma oportunidade (e lembrei-me do que Terence me dissera acerca da sua influência em Blackrock) eu faria mal em perdê-la. Enquanto acabava de tomar chá, debati o problema, primeiro de uma forma e depois de outra. Por fim, levantei-me, agarrei no boné e dirigi-me para a Estação Central.
Faltavam dez para as cinco quando lá cheguei. Era um local preferido de encontros e já outras pessoas esperavam debaixo do relógio descomunal. Juntei-me a elas. Cinco minutos depois da hora marcada, Terence apareceu; trazia na mão uma mala pequena. Mas não vinha só, Donohue acompanhava-o.
- Óptimo! Já cá estás. E com belo aspecto. - Terence cumprimentou-me efusivamente. - Penso que não te fizemos esperar muito.
Donohue sorria também, ou pelo menos o rosto macambúzio mostrava uma expressão de afabilidade desusada, que muito me surpreendeu, visto que até então nenhum caso fizera de mim.
- Não podemos falar aqui - disse Terence. - Vamos para o bufete.
Fomos para o da primeira classe.
- Que querem tomar? - perguntou Donohue, hospitaleiro.- É por minha conta.
Aproveitando o convite, respondi que queria uma sanduíche de presunto e um copo de leite. Eles pediram cerveja.
Terence esperou que nos servíssemos e então, depois de inquirir solicitamente se estava tudo bem, tomou um gole de cerveja e fez-me a seguinte declaração:
- Já me ouviste dizer por diversas vezes que queria ver em que tempo percorres uma milha. Pois vamos hoje fazer isso.
Não me devia surpreender, pois Terry, meio a sério meio a brincar, em mais de uma ocasião me falara no assunto. No entanto, a proposta apanhou-me desprevenido.
- Por que há-de ser hoje? - perguntei.
- Temos de ver isso quanto antes - replicou, com um olhar significativo.
- Mas não tenho feito corridas a valer nos últimos tempos. Não estou em forma.
- Ah, um rapaz como tu nunca deixa de estar em forma. Que te parece, Mart?
- Pelo que vejo - redarguiu Donohue - não há nele uma onça de gordura. Contudo, não creio que possa aguentar.
- Aguentará, não te preocupes.
- Mas será veloz? - Donohue olhou para mim, duvidoso.-É preciso que desenvolva velocidade para a arrancada final.
- Garanto-te que sim - respondeu Terry, em tom enfático. - Já não te disse que ele, em garoto, praticamente me venceu.
Donohue, a este argumento, encolheu os ombros.
- Isso foi há anos.
- De acordo. Mas ganhou duas corridas com os Harriers, este ano e o ano passado. Já é coisa que se deve levar em conta.
- Pois é, replicou Donohue, como se meio convencido.- Bem... Suponho que podemos dar-lhe uma oportunidade.
- E que bela oportunidade! -Terence voltou-se para mim. - Tudo arranjado. A tua vestimenta trago-a aqui. É a que eu usava em Rockcliff. - Bateu com a biqueira do sapato na maleta. - E tenho autorização para te experimentarmos no campo do Harp.
- Mas porquê, Terry? - Aquelas perspectivas, o interesse que manifestavam por mim, a maneira como fora vencida a má vontade do Martin, tudo isso seria muito lisonjeiro mas fazia-me desconfiar.
- Depois te direi. De que serve saberes antes de vermos de que és capaz?
- Não - declarei categoricamente. - Tenho de saber para que é isto.
- Não te disse no postal? - exclamou Terence.- É para teu bem. Contanto que sejas como pensamos que és... o que começo agora a duvidar...
Esta nota de cepticismo decidiu-me. Concordei em ir.
Afinal, não havia mal nenhum naquela prova.
E já me animava o desejo de mostrar que era bom corredor, principalmente ao Donohue, a quem detestava por causa de Nora. Saímos do bufete e metemo-nos num dos táxis que estavam à porta da estação. "De facto", dizia comigo, "Terry faz as coisas à grande." Meu primo conseguira impressionar-me de novo com o seu encanto e o ar de segurança em si mesmo.
O nosso ponto de destino ficava bastante longe, num subúrbio oriental da cidade. Depois de um percurso de vinte minutos de automóvel, surgiu o campo de futebol pertencente ao Harp Juniors Club.
A vizinhança, dominada por dois enormes gasómetros, contíguos a fábricas, era miserável e mal cheirosa, naturalmente devido ao gás. Eu nunca ouvira falar dos Harp Juniors, e a propriedade, cercada por um tapume de zinco ondulado já carcomido pela ferrugem, encerrava um campo de futebol mal cuidado e um barracão de madeira. Em toda a volta, contudo, havia uma pista de corridas.
- Ora cá estamos! - exclamou Terence entusiasmado. Disse ao motorista que esperasse e virou-se então para Martin Donohue. -- Ficas na pista enquanto eu vou com o Laurie.
Entrámos no barracão, que era ainda mais modesto do que o campo. As tábuas do soalho eram nuas e estavam estaladas. De pregos colocados na parede pendiam camisolas às riscas, já velhas. Por toda a parte havia pó e um odor forte a suor, cerveja e urina.
A maleta, uma vez aberta, revelou a existência de calções, uma camisola e sapatos de corrida. Solicitamente ajudado por Terence, que resolvera fazer de meu criado, principiei a vestir-me. Tudo estava ao meu tamanho menos os sapatos, que eram muito compridos, deixando-me uma polegada de vazio entre os dedos dos pés e a ponta. Observei isto a Terence.
- Não tem importância - respondeu com autoridade de entendido. - Dar-te-á mais elasticidade.
Viemos para fora. Donohue andava cá e lá, com as mãos nas algibeiras e um ar de expectativa. Acendera um charuto.
- Aqui está - declarou Terence, empurrando-me para diante. - Não é mesmo um corredor, da cabeça aos pés?
- Sem dúvida! Tem a altura necessária. E olha para as pernas...
O tom de Donohue, no qual vislumbrei certo respeito involuntário, manifestava satisfação. Agora, naquele equipamento com as cores de Rockcliff, sentia que os não iria desiludir. Fiz alguns passos preliminares.
- Isso mesmo! Exercícios para tornar os membros flexíveis - disse Terence.
- Mas não se esfalfe - observou Donohue, por momentos engasgado com o fumo do charuto.
- Agora escuta, Laurie. - Terence, com um olhar que parecia reprimir o entusiasmo de Martin, pôs uma das mãos no meu ombro. Na outra segurava o relógio. - Quatro voltas à pista é uma milha exacta. Estás pronto?
-- Estou.
- Vamos então a isto. - Recuou um pouco, de olhos fitos no relógio.
-Agora!
Fiz uma boa largada e, tão rápido quanto possível, dei as quatro voltas à pista.
A sanduíche que havia comido incomodara-me um tanto ou quanto, nas duas últimas voltas, e os sapatos de Terry, escorregando-me no terreno, tinham afinal menos elasticidade do que ele prometera.
Quando acabei, pálido e ofegante, senti-me descontente com a minha actuação. Mas não havia motivo. Inclinado sobre o relógio, soltou um brado de vitória.
- Bela corrida! Eu bem sabia de que eras capaz. Donohue não fez comentários, mas bateu-me nas
costas uma palmada amigável. Ainda arquejante, corei de prazer.
- Qual foi o meu tempo?
Terence levou um dedo aos lábios.
- Nem uma palavra acerca disso por enquanto.
Depois saberás porquê. Agora vai mudar de roupa. Parece-me que cortaram a água, mas dá uma boa fricção. Na mala encontrarás uma toalha.
Dez minutos depois regressávamos à cidade.
No táxi, Terence voltou-se para mim, com ar confidencial.
- Agora escuta-me.
- Falava em voz baixa, como se receoso de que o motorista o ouvisse.
- Há uma competição desportiva no começo de Agosto em Ber-wick-on-Tweed. É uma coisa modesta, local, e os que entram na prova são uns patetas sem importância.
- Mas, piscou-me o olho, sagazmente - há grande quantidade de apostas, e o Martin, como sabes, trabalha nisso. A nossa ideia é que disputes a milha. Estudámos o terreno e, pelo que vimos hoje, estamos convencidos de que deves ganhar.
- Ganhar ?
- A taça. - Com ar grave, inclinou a cabeça, acrescentando em voz ainda mais solene. - E também boa soma de dinheiro. Da parte financeira nós nos encarregamos. Martin tratará das apostas. Receberás dez libras.
- Dez libras! - Era de facto tentador. - Mas, Terry, eu tenho exame na primeira semana de Agosto. No dia sete.
-A corrida é a cinco. Dois dias antes. Não fica a mais de três horas de Winton. Levamos-te e trazemos-te no mesmo dia. Qual é a dificuldade?
Mordi os lábios, numa indecisão angustiante. Queria ganhar a taça e, principalmente, as dez libras. Minha mãe, em carta recente, referindo-se à casa que pretendia alugar no seu regresso, lastimava-se de ter vendido a nossa mobília quando deixáramos Ardfillan. Com dez libras poderíamos comprar muitos móveis. Mas como aceitaria Rankin semelhante empreendimento em vésperas de concurso?
- Acho que só lhe faria bem um pouco de distracção antes do exame.
- Donohue devia ter adivinhado os meus pensamentos. - Mas se não quer, é só dizer, pois tenho outro tipo em vista, que certamente não perderá a ocasião de receber uma boa quantia.
A ideia de ser suplantado foi-me intolerável naquele momento.
- Disputarei a corrida.
- Óptimo! -Terence apertou a minha mão, satisfeito. - Verás que não te arrependes. O que precisas, agora, é de tranquilidade de espírito e algum treino, ao fim do dia. E uma vez por outra aparece lá no hotel que eu providenciarei para que te dêem bons bifes.
Atravessávamos ruas familiares. Vi que já tínhamos passado a Estação do Norte e que entrávamos na Mor-tonhall Street. Donohue desceu o vidro da janela e renunciou ao charuto. Olhou para mim.
- Onde quer que o deixemos?
Calculei que já fosse perto das sete, quase a hora de começar a minha lição com Rankin.
- Nas proximidades de Hillside Street.
Muito simpaticamente, Terence mandou o motorista contornar o parque. O táxi parou no sopé da Gilmore Hill, não longe da Universidade, e aí me apeei.
- Ver-nos-emos de vez em quando! - bradou Terry quando o carro se punha em movimento.
Dirigi-me para a pensão de Rankin, ainda um tanto excitado e com uma agradável sensação de importância.
Era lisonjeiro ser escolhido por Terence e ver confirmada a crença inata quanto às minhas qualidades excepcionais de corredor.
Essa convicção da minha velocidade, de que pela primeira vez tivera consciência quando fora a correr chamar o médico para o meu pai, e se acentuara com os meus esforços em manter as boas condições físicas, consolidara-se desde que tinha treinado com os rapazes de Ardencaple e vencera por duas vezes a prova final das corridas anuais. Sim, era inegável que possuía um dom especial, quase comparável à faculdade de levitação concedida pelo Céu a raros santos. De facto, quando eu corria, tinha às vezes a impressão de perder contacto temporário com a terra firme. Atendendo a tudo isto, não seria justo que aproveitasse as vantagens que tinha?
A bela proposta de Terry era perfeitamente legítima, e se Donohue queria apostar em mim, também isso era legítimo. Contudo, não estava certo de que não prejudicaria a obtenção da bolsa Ellison, e, quando cheguei à Hillside Street e subi ao quarto de Rankin, decidi consultá-lo acerca do assunto. Achava-se já sentado à mesa, à minha espera, e folheava com interesse uma rima de papéis.
- Laurence, disse-me logo de entrada, convidan-do-me com um gesto a sentar-me na outra cadeira - tive a sorte de apanhar os pontos de exame da bolsa Ellison, dos últimos dez anos. Há conveniência em lê-los.
- Parece-lhe?
- Em primeiro lugar, seis dos pontos são exclusivamente dedicados a uma personagem histórica escocesa do século XVI. Em segundo lugar, noto que a personagem escolhida de há dez anos para cá é Maria Stuart.
- E qual o significado disso?
- Nenhum, provavelmente. - Sorriu, cofiando a barba.
- No entanto, penso que faríamos bem se dedicássemos atenção especial à época quinhentista, estudando com mais cuidado aquela mulher infeliz e os seus familiares. Andrew Lang ajudar-nos-á nisso. Trouxe hoje da biblioteca a biografia que ele escreveu.
E quanto favorece a pobre rainha!
Ia abrir o livro quando eu, ansioso por dissipar as minhas dúvidas, falei assim:
- Só uma coisa antes de começarmos, senhor Rankin.
E disse-lhe que o meu primo me propusera tomar parte numa corrida que se realizaria em Berwick dois dias antes do exame; que aceitara provisoriamente; e que, se achasse não me convir, eu desfaria já o compromisso.
Ponderou no assunto, fitando-me com benevolência. O seu rosto tinha nesse momento uma dignidade simples que fazia esquecer o defeito físico e o seu sentimentalismo insípido. Naquela ocasião é que me compenetrei de quanto o estimava.
- Creio, Laurence, que só te fará bem. Sempre fui de opinião de que se deve descansar o espírito antes de um exame. E um dia ao ar livre será óptimo.
Esta aprovação tão sensata foi para mim um alívio. Com renovado ardor juntei-me a Rankin num estudo mais intensivo da personalidade dessa prima da rainha Isabel.
XXX
Nessa noite, quando saí da casa de Rankin, não vi Nora na rua. Muitas vezes, quando o tempo estava bom, ela vinha em passeio através do parque e eu encontrava-a à minha espera sob o candeeiro, defronte do prédio 212. Então, de braço dado, íamos em passo vagaroso até Crescent, onde Miss Donohue, que tinha gosto culinário e apreciava bons petiscos, fazia torradas cobertas de queijo e no-las servia com cacau. a aplicação que Rankin exigia de mim não me consentia excursões ao campo, e aliás a própria Nora não as sugeria. Se bem que o sentisse vagamente (nunca apreendera bem o verdadeiro significado daqueles momentos de abandono no convés da casa flutuante), a atitude de Nora para comigo sofrera uma alteração substancial, ainda que subtil. Percebia que ela gostava mais de mim do que dantes; já não era uma coisa acidental e maliciosa, mas um desejo sincero de me animar, dizendo-me sempre ter esperança de que eu obtivesse a bolsa Ellison. Julgar-se-ia que se tornara subitamente mais velha, mais comedida, e, conquanto nos beijássemos com ternura, faltava algo que não saberia definir e que fora substituído pela solicitude. Na verdade eu começara nos últimos tempos a imaginar que Nora tinha qualquer aborrecimento. Embora o negasse, e repelisse as minhas
perguntas, muitas vezes mostrava um ar ausente, se não inteiramente deprimido. Como decorrera já uma semana sem que a visse,intervalo que se me afigurou anormal, deliberei visitá-la no meu regresso a casa.
Aqui, todavia, fui pouco afortunado. Não recebi resposta às campainhadas que fiz. Dei volta ao prédio, até ao pátio das traseiras, mas não vi nenhuma luz nas janelas. Vagueei por ali cerca de um quarto de hora, esperando em vão que Nora ou Miss Donohue acabasse por aparecer.
Então dirigi-me ao longo do Crescent em direcção a Craig Hill: não seria o trajecto mais curto para a Argyle Street, mas Craig Hill tinha sobre mim uma sedução especial por causa da igreja dos Jesuítas, a qual, em contraste com muitos dos templos convencionais da cidade, era do sombrio estilo românico, o que constituía, pelo menos para o meu espírito, uma grande atracção. Em parte o seu estado actual resultava da carência de fundos, pois desde a traça original até aos mármores interiores tudo se mostrava deteriorado, ficando só arcos e colunas de tijolo, que projectavam na nave sombras medievais.
À noite a igreja estava em geral deserta, escura e silenciosa - tudo o que eu desejava. Confesso que tinha o costume de entrar lá, demais a mais sendo o templo relativamente perto para mim. Não era um fervor religioso, que nunca possuí, antes um sentimento de confiança, que me levava a pedir a Deus auxílio para o meu êxito no exame, sem o que pressentia não ter qualquer probabilidade.
Na noite em que ali entrei segui para o altar da minha predilecção, onde havia uma. réplica da Nossa Senhora de Simone Martini. Gostava de a contemplar e sempre me punha em atitude suplicante, além de contribuir com dinheiro, se o tinha - para a compra da cera. Desta vez, porém, mal pude vê-la, todas as luzes estavam apagadas em roda, excepto um círio votivo. Uma mulher que lá se encontrava devia ser a responsável pela conservação dessa única vela, que parecia quase intacta. Na maior parte essas criaturas ficavam ajoelhadas, desfiando as contas; mas aquela, que era nova, limitou-se a sentar-se e olhava em frente, como se hipnotizada pela chamazinha vacilante que provocara.
A surpresa, mais do que a curiosidade, levou-me a concentrar a atenção na rapariga, e de repente, com um sobressalto de espanto e prazer, reconheci que se tratava de Nora.
Mal quis acreditar. Nora não era devota. Eu tinha até notado que se esquecia dos jejuns e abstinências às sextas-feiras e na Quaresma. Estava sempre pronta a troçar da água benta e do incenso, o que me aborrecia muito. Todavia quanta felicidade me dava saber que Nora, desconhecedora do meu hábito de visitar a igreja à noite, se me antecipara e fora acender uma vela por minha intenção! Cheio de amor e reconhecimento, o coração dilatou-se-me. Sempre oculto, contemplei-a num êxtase que eu usualmente reservava para a divindade.
Nora lembrava uma santa, com o seu rosto pálido e puro, o seu ar calmo e sério ali no degrau do altar. Não pude esperar mais tempo. Avancei em bicos de pés, inclinei-me para ela e sussurrei:
- Obrigado, Nora. Obrigado pelo círio... e por tudo.
- Laurence! - Exclamou, virando-se bruscamente.
- É a coisa mais simpática que jamais poderias fazer. Nunca me esquecerei.
Minha prima fitou-me.
- Verdade?
- Sim, Nora, ainda que não alcance a bolsa Ellison. Por que te lembraste disso?
Desviou a vista.
- Ora, lembrei-me... Estava nessa disposição.
Ê esquisito, hem?
- Não é, Nora. Creio que auxiliará.
- Oxalá tenhas razão.
- Houve um silêncio.
- Queres continuar aqui? - perguntei. Abanou a cabeça. Eu sorri-lhe.
- Vamo-nos então embora?
Quando descíamos os degraus da igreja, eu tomei-lhe o braço.
- Que feliz encontro, Nora! Toquei à tua porta mas ninguém respondeu.
Há séculos que não te via! Posso acompanhar-te a casa? Deteve-se no último degrau.
- Não vou ainda para casa. Tenho um recado a entregar... da parte de Miss Donohue.
- Onde, Nora ?
- Perto da Mortonhall Street.
- Vou contigo.
Falei com decisão, pronto a partir. Ela, porém, dir-se-ia hesitar, e eu pensei se a minha descoberta involuntária, acender na igreja um círio por minha intenção, a teria aborrecido.
Até que replicou:
- Deves estar cansado. Desses estudos e do mais...
- Nunca estou cansado para andar contigo, Nora.
- Nesse caso, vamos, declarou, após uma pausa. Começámos a andar. Notara eu, na sua voz, alguma
inflexão de impaciência? Não. Contudo, olhando-a de revés, tive a impressão de que ela não era a mesma. Uma onda de calor invadira a cidade, desde o meio-dia, e a noite continuava quente. Sob os lampejos da rua, Nora parecia pálida, olheirenta, com uma expressão distante.
Estava também desusadamente silenciosa. Eu, porém, morria por lhe contar o meu triunfo desse dia.
- Creio que não sabes que estive hoje a correr, e que tomo parte no festival de Berwick.
- Sim, já ouvi falar disso. Até estamos para ir todos, no carro dos Gilhooleys.
- Tu também?
- Depende. Para te dizer a verdade, Laurie - acrescentou, virando-se para mim - não tenho andado bem ultimamente.
- Lastimo bastante. O que é?
- Um pouco de tudo. Estou convencida de que passará depressa.
- Então vem connosco, Nora.
A viagem ajudar-te-á a restabelecer.
- Pois sim, veremos.
Chegámos ao extremo de Craig Hill e enfiámos pela Mortonhall Street, como sempre atravancada de tráfego. Não longe de Market Cross, perto de Market Arcade, Nora largou-me o braço.
- É aqui que eu fico - disse ela.
Parámos no passeio oposto a Market Arcade, rua coberta, ocupada por pequenos estabelecimentos curiosos, um ervanário, uma espécie de farmácia um tanto singular, uma vidente e uma loja de venda de animais de estimação, com tartarugas vivas na montra. Era ali que a senhora Tobin comprava larvas de formigas para o peixinho dourado.
- Antes de ires, Nora...
- Era difícil, eu não queria repisar o assunto, mas sempre fui dizendo: - Obrigado pelo teu círio.
De novo pensei que a tinha ofendido. Mas, ao afastar-se, contemplou-me com um sorriso triste.
- Laurie, como deves saber, não sou assim tão devota, mas, quando se deseja muito uma coisa, tenta-se tudo.
Senti uma gratidão tão grande que não lhe pude replicar. A sua maneira e as palavras que empregara revelavam-me quanto ela tomava parte nos meus anseios. Esperei até a ver atravessar a rua, e depois, ainda enlevado no meu reconhecimento, encaminhei-me para Argyle Street e a Casa do Templário.
XXXI
_AS oito e meia da manhã, sábado cinco de Agosto, dirigi-me ao Criterion Hotel. Embora o céu estivesse nublado, a suavidade do ar era agradável depois do calor recente. Não dissera nada dos meus planos ao tio Leo. As boas notícias da minha mãe davam-me esperança de que, se tudo corresse pelo melhor, eu não continuaria a trabalhar com ele. A Mãe já tinha o seu lugar assegurado no Departamento da Saúde, e pensava regressar a Winton dentro de poucas semanas. Nessa altura, com certeza, eu terminaria o meu compromisso com Leo.
Apesar de Terence haver insistido em que partíssemos cedo, eu estava convencido de que teria de esperar, mas quando me aproximei do hotel vi já à porta o carro vermelho, com Terence sentado ao volante e Miss Gilhooley junto dele.
À minha chegada, Terence ergueu o braço e saudou-me.
- Muito prazer em ver-te. Que tal te sentes?
- Óptimo, Terry.
- Senta-te aí atrás. Os outros não tardam. Nora foi só tomar um café.
Enquanto eu entrava no carro, Miss Gilhooley, meio voltada para mim, mostrava os dentes de ouro num sorriso de boas vindas. Tinha um casaco vistoso, axadrezado, e um chapelinho do género tacho, seguro com o seu costumado tule cor-de-rosa. Devia ser a melhor cliente de Miss Donohue, e, sem dúvida, gastava somas fabulosas no Earl's; contudo, nunca vi mulher que conseguisse parecer tão espaventosa, efeito que ela acentuava com uma variedade de afectações de mau gosto. Estava sempre a agitar-se, a ataviar-se, compondo o cabelo, empoando o nariz, ajeitando o vestido examinando as unhas, gesticulando ou reclamando de Terence atenções desnecessárias, tudo com feminina garridice. Miss Gilhooley não era bonita nem muito nova, e as suas pretensões a esses atributos, juntamente com o hábito de começar todas as suas observações com a frase "Eu sempre disse que...", irritavam-me deveras, mesmo nesse momento ern que me cumprimentou com uma condescendência graciosa.
- Bom dia, meu rapaz. Espero que contribua para que eu hoje ganhe uma boa quantia.
- Está necessitada de dinheiro, Miss Gilhooley? Terence soltou uma gargalhada.
- Ora toma, Josey! Todos sabem o que o nome de Gilhooley representa. Mas por que será que Nora não aparece?
- Ela fez um grande esforço para vir connosco - observou Miss Gilhooley.
- Eu sempre disse que não convém esses esforços. Acho-a até muito pálida. Branca como a cal.
Um momento depois Nora surgia das portas giratórias do hotel, seguida por Donohue. Chamados impacientemente por Terence, o qual saíra do carro e pegara na manivela de accionar o motor, reuniram-se a mim no assento de trás.
- Desdobra a manta, Nora. Está aí mesmo... Pode arrefecer. Abafem-se bem, é o que eu sempre digo antes de partir.
Miss Gilhooley acabava de fazer esta recomendação quando Terence, depois de várias voltas da manivela,onseguiu que o motor funcionasse e, retomando o seu lugar ao volante, pôs o carro em movimento.
Nora que estava sentada entre mim e Martin Donohue, estendeu a manta sobre os nossos joelhos. Enquanto assim fazia, olhou-me e sorriu, mas não disse nada. O automóvel avançava.
Era esta a minha primeira viagem em carro particular e, quando atravessámos as ruas principais de Winton em direcção à estrada de Edimburgo, eu abandonei-me ao luxo do progresso. Terence guiava bem, e já devia ter conduzido esse automóvel várias vezes.
Nesse momento é que percebi a razão por que Miss Gilhooley possuía atractivos para ele, além dos seus escassos encantos físicos. Iam ambos muito bem dispostos, rindo e conversando com uma vivacidade que fazia grande contraste com o silêncio quase total da retaguarda.
Era impossível não reconhecer que haviam esfriado muito as relações entre Nora e Donohue. Enquanto este, decerto para salvar as aparências, lhe fazia uma vez por outra qualquer observação sem importância, ela mal respondia e continuava a olhar em frente, séria e pálida. Isto não agradou a Donohue, o qual, por fim, com um encolher de ombros, desistiu de lhe dirigir a palavra, e, inclinando-se para a frente, se dedicou a Miss Gilhooley, dizendo-lhe segredinhos, fazendo-a rir e competindo com Terence nas atenções que lhe dispensava.
Nora manteve-se calada, a expressão não se modificou, mas, passado algum tempo, a sua mão procurou a minha sob a manta. Achei-lhe os dedos tão frios que comecei a esfregá-los, para os aquecer.
- Sentes-te bem, Nora? Olhou-me e fez um gesto afirmativo.
- Ultimamente tenho andado esquisita, mas o ar fresco dispôs-me melhor. O que não devia era ter tomado aquele café.
Os outros iam tão embrenhados na sua conversa que não havia perigo de escutarem a nossa.
- Estás enjoada?
- Um bocadinho. Isto passa.
Contemplei-a cheio de solicitude. Nora totalmente não parecia a mesma. Teria a deserção de Donohue perturbado a rapariga àquele ponto?
- Se não te sentias bem não devias ter vindo.
- Não poderia ficar sozinha todo o dia.
- Miss Donohue foi fazer compras a Manchester. E não te esqueças de que desejo ver-te correr.
Querê-lo-ia, de facto? No estado de espírito em que eu a via, duvidava muito de que a corrida lhe ocupasse os pensamentos.
Nesta altura ocorreu uma diversão. Terence enganara-se no caminho e agora descobria, consultando o mapa, que a volta inútil por Dunbar nos custara mais quinze milhas do que o percurso directo.
À parte o risco de nos perdermos nas azinhagas do campo, tornava-se necessário regressar à estrada costeira e isto levantava o problema de saber se chegaríamos a tempo do início, às duas horas, da competição desportiva.
A conversa era agora menor porque Terence lançara o carro a toda a velocidade, e assim, à uma e vinte minutos, atravessávamos um estreito arco de pedra e entrávamos em Berwickon-Tweed,
Era um velho burgo à beira do rio Tweed, perto da sua foz, de ruas calcetadas e sinuosas, cercado por um muro medieval com muralhas que dominavam o porto. Logo que atravessei o arco compreendi que era o lugar ideal para passear e sonhar.
Nesse dia, contudo, apresentava um aspecto de actividade desusada. Havia muita gente na rua central, a praça grande estava atulhada de automóveis, autocarros e carroças, e em toda a parte reinava uma espécie de excitação, o que altamente agradou a Terence e a Donohue, a avaliar pelos seus comentários.
- Temos de comprar um jornal - disse Terry, parando junto de um ardina e atirando-lhe uma moeda.
Era um jornaleco de quatro páginas, o Berwick Advertiser. Terence passou-lhe imediatamente uma vista de olhos.
- Vem?-perguntou Donohue, esticando o pescoço.
- Cá está - respondeu Terence. - E óptimo! Ambos examinaram a página com toda a aparência
de satisfação, até que Miss Gilhooley, impaciente com aquele abandono momentâneo da sua pessoa, exclamou:
- Oh, meninos, quando é que se almoça? Parece-me que vejo além uma espécie de hotel.
- Não, Josey, a comida dali matar-te-ia
- replicou Terence.
- Vamos já para o campo de jogos, lá comeremos qualquer coisa, e então à volta determo-nos-emos em Edimburgo para uma boa refeição no F. e F.
Senti um antecipado estremecimento de prazer. F. e F., designação abreviada de Ferguson e Forrester, era o restaurante mais famoso de Edimburgo. Terence estava disposto a tratar-nos bem. Antes de prosseguirmos o nosso caminho, voltou-se para mim e, com um sorriso de aprovação, passou-me o jornal, apontando para o centro da página.
- Lê isto, meu rapaz, e ficarás sabendo o que pensam de ti.
Eram algumas linhas na secção dedicada aos desportos. Vinham as horas das corridas, o nome dos corredores e os prognósticos para as apostas.
"Um Estreante na Milha
A crença geral de que o vencedor da milha será ou Peter Simms, triunfador do ano passado, ou o presente detentor do troféu, o veterano Harry Pumes, pode ser abalada hoje, depois das quatro horas, por um jovem do Oeste chamado Laurence Carroll. Este antigo estudante, que ostentará as cores do Rockcliff, fez recentemente uma bela prova no campo do Harp Juniors Club e consta que, para aborrecimento do treinador, não quis que registassem o seu tempo. Não desejamos fazer previsões, mas, para quem apostar, o moço Carroll será a melhor coisa do cartaz."
Impando de orgulho, baixei o jornal. Queria mostrá-lo a Nora, mas nessa altura, sacudidos no carro devido ao mau terreno, reuníamo-nos já à multidão que se dirigia para o estádio, e ela estava inclinada para a frente, apoiada às costas do assento dianteiro. Dobrei o jornal cuidadosamente e guardei-o no bolso. Mostrar-lho-ia mais tarde, em qualquer caso, era uma coisa que eu queria conservar.
Chegámos por fim ao campo, extensão plana sem vegetação ao longo da série de rochedos, mas nitidamente delineada, com bandeiras, toldos e uma variedade de barracas que davam ao lugar um aspecto festivo de feira. De um lado havia um espaço não muito grande para o golfe, e do outro era o mar. A situação agradou-me e a brisa fresca do oceano servia-me de estimulante.
Senti que poderia actuar bem. Saí do automóvel e, enquanto Miss Gilhooley e Nora iam ao alpendre dos refrescos, eu ajudei a retirar os apetrechos que vinham no porta-bagagem. Terence não arrumou o carro no recinto próprio mas atrás da instalação dos agentes de apostas.
Quando Donohue começava a dispor o seu quadro e o estrado, feito de secções que se ajustavam umas às outras, Terence interpelou-o:
- Mart, não queres comer primeiro uma sanduíche?
- Mais tarde - respondeu Donohue.
- Vai... e leva-o contigo.
Como principal participante no grande acontecimento do dia, esta referência indirecta à minha pessoa não me produziu efeito muito agradável. Quando me afastava com Terence, disse-lhe:
- Devo ter cuidado com o que como. E não posso comer muito.
- O que ali há não te fará mal.
A verdade destas palavras foi confirmada quando nos reunimos a Nora e Miss Gilhooley, no balcão apinhado de gente. Miss Gilhooley estava com ar indignado.
- Isto é horrível, Terry. Que gentalha! E parece que não há nada senão cachorros quentes.
- Contenta-te com isso, volveu Terence, conciliador. - À noite terás lagosta e champanhe.
- Daqui até à noite ainda vai muito tempo. E Nora está enjoadíssima, necessitada de um conhaque. Eu sempre disse que não há como conhaque para as indisposições de estômago.
- Queres aguardente, Nora?
A irmã abanou a cabeça. Parecia tão enjoada como infeliz.
- Se tenho de tomar alguma coisa,prefiro genebra.
- Está bem. Terry apontou para uma mesa ao canto da barraca. - Vão ambas para ali e sentem-se.
Terence, com o desembaraço habitual, depressa conseguiu arranjar dois pratos de sanduíches e algumas bebidas, que ambos transportámos para a mesa. Nora tomou a genebra mas não comeu nada, Miss Gilhooley comeu metade de uma sanduíche e depois, com ar repugnado, descartou-se da outra metade.
A mim couberam-me dois pãezinhos com salsichas, autorizados por Terence, que acabou o que restava das sanduíches e até, distraidamente, consumiu a metade deixada por Miss Gilhooley. Feito isso, tirou do bolso uma chapa redonda de competidor, e entregou-ma.
- Leva isto contigo para o vestiário. A tua roupa está no carro.
- Levantou-se.
- Vamos até lá fora respirar um pouco de ar puro, Josey.
Enquanto os dois se afastavam, prendi a chapa na lapela do casaco.
Alegrava-me a ideia de me encontrar a sós com Nora; queria averiguar por que estava tão transtornada. Quando, porém, ergui a cabeça vi que o Donohue entrara e avançava para nós. Sentou-se e, relanceando por mim a vista, como se desejasse que eu não estivesse presente, disse um tanto constrangido:
- Antes de iniciar o meu trabalho, lembrei-me de vir saber como te sentias.
Pensei que Nora não ia responder, mas, passado um momento, replicou, de lábios apertados:
- Não estarás um pouco atrasado? Sinto-me o pior possível, já que queres saber.
- Posso oferecer-te alguma coisa? Uma genebra.
-- Estou farta de genebra. Parece que tenho de
passar a vida a tomar essa porcaria, que eu detesto!
- Vamos, Nora... domina-te. As coisas não estão tão más como isso.
- Ainda bem que pensas assim.
Desejaria não assistir a esta disputa, mas o banco em que Donohue se sentara impedia-me a saída. Tive, pois, de ficar.
--Não sejas desmancha-prazeres, Nora - disse ele, tentando falar com brandura. - Por amor de Deus, faz um esforço. A festa desta noite dar-te-á boa disposição.
-- Não vou à festa - declarou Nora.
- O quê?!
- Não estou para isso. Ficarei aqui e, se não me sentir melhor, tomarei o comboio em vez de regressar de automóvel.
- Que comboio?
- O rápido das seis menos dez.
- Não queres ir comigo?
- Não. E não me olhes dessa maneira.
- Ainda há bem pouco tempo gostavas que eu olhasse para ti.
- Isso acabou. E tu também. Está o caso arrumado.
Donohue permaneceu silencioso. Depois lançou-lhe um olhar duro.
- Está bem - sentenciou.
- Se é da tua vontade, vai.
-Levantou-se e pegou-me no braço.
- Venha você. É ocasião de o levar ao gabinete do secretário. Não sei por que diabo recai tudo sobre mim. Se não confirmamos a sua entrada, a coisa fica sem efeito.
Deixámos Nora e fomos ao escritório, a última cabina da fila. Cá fora, Donohue deteve-se e recomendou-me :
- Não diga quem o trouxe cá.
- Então não entra também?
- Tenho de organizar os meus registos. - Voltou-se para se ir embora, mas parou de súbito. - Oiça, se lhe perguntarem a idade, declare que já fez dezasseis anos.
- Mas só os terei a dois do mês que vem.Faça o que lhe digo, seu parvo, ou o desclassificam antes da corrida.
E, se tal acontecer, parto-lhe a cara.
Fitei-o num desespero mudo. Que direito tinha ele de me tratar daquela forma? E que significava essa intrujice quanto à idade?
Ainda indignado, penetrei na cabina. 0 secretário era um sujeito baixo, vermelhusco, de fato de mescla com calças de golfe e gravata condizente. Não procedeu a inquéritos inoportunos. Quando escrevi a minha assinatura, olhou-me com interesse e estendeu a mão, dizendo;
- Queremos mais como você.
- Sorriu, consolando--me assim do orgulho ferido, e acrescentou: - Boa sorte.
Chegando fora verifiquei que o Donohue se retirara para o seu estrado. Terence e Miss Gilhooley ainda não estavam à vista. Eram quase duas horas, e todos os agentes de apostas faziam as suas contas.
Segui devagar ao longo da fila. Notei que os valores atribuídos ao acontecimento principal, a disputa da milha, estavam escritos a giz nos quadros. Senti restaurado o meu prestígio quando vi que figurava como favorito ao lado de Purves e de Simms. Como já me considerava farto de Martin Donohue, não me aproximei do estrado, a avaliar, porém, pela multidão que o cercava, ele devia fazer excelente negócio.
Soou um disparo. Principiava a primeira das corridas. Avancei para a vedação e compreendi que se tratava das cem jardas. Quase imediatamente deram início à segunda. Tinha vontade de ir ter com Nora, em quem nunca deixava de pensar de mistura com outras coisas que me aborreciam. Mas calculei que pretendesse estar sozinha e que qualquer intervenção da minha parte poderia tornar tudo pior.
Dominava-me uma estranha passividade, a impressão indefinível de que eu fora apanhado pelas circunstâncias, e outro remédio não havia senão submeter-me. Continuei na vedação e fui observando as corridas.
Conforme o tempo passava e as provas do certame se sucediam, os nervos iam-se-me tornando tensos. Inquieto, mexia os pés, dobrava os joelhos, experimentava a elasticidade das pernas. A minha vez aproximava-se, não devia tardar. Furando pelo meio da turba, fui buscar ao carro a minha roupa, e depois, por diante da instalação dos agentes, encaminhei-me para o vestiário, animado pelo facto de que o meu nome continuasse a figurar como um dos favoritos.
Estava agora mais gente à roda de Donohue; estendiam as mãos, pediam bilhetes de aposta em alta, grita. Só por curiosidade olhei para o quadro dele. Mas custou-me a acreditar. Com um abalo doloroso verifiquei que, escrito a giz, Donohue dava vantagens de cinco a um contra mim. Na ocasião em que me acercava, não teve pejo de apagar o algarismo 5 e de o substituir por 6. Com isto, a multidão ainda se adensou mais à sua volta.
Entrei no vestiário em estado da maior perplexidade. Aquilo parecia sem sentido. Donohue enlouquecera? Desde o princípio que se estabelecera como certa a minha vitória, e, agora, se eu ganhasse, ele teria de pagar seis vezes o que recebia! De repente, enquanto me debatia nesta incompreensão, fez-me recair em mim a presença de um sujeito já velhote, calvo como um ovo, de faces enrugadas, vestido com uma camisola encarnada e azul às riscas e calções velhos tão apertados que lhe davam a aparência de uma segunda pele nas pernas musculosas. Dirigindo-se-me de mão estendida, participou:
- Sou o Purves.
- Sorria, apontando para outro Lanço da barraca.
- E aquele é o Simms. Ouvi dizer que vem disposto a bater os velhos campeões.
Simms, que estava a despir-se e praticamente nu, avançou para mim. Era muito mais novo do que Purves, à roda dos vinte e seis anos, solidamente constituído, de pernas curtas musculosas e peito forte e cabeludo. Não se me afigurou um competidor muito perigoso; devia ter peso a mais. Quanto a Purves, seria ridículo temê-lo, era positivamente um velho.
- Boa sorte, meu rapaz - disse cordialmente Simms. - Possa ganhar o melhor, e o pior que o leve o diabo.
- Convém mudar já de roupa, aconselhou-me Purves.
- Não tarda que a sineta toque.
Tratei de me preparar. Estavam ali outros, a vestir camisolas ou a atar os sapatos. Um rapaz magro, a quem tratavam por Chuck, de cerca de dezassete anos, era o único mais aproximado da minha idade.
Na maioria, os meus antagonistas pareciam conhecer-me de longa data e, pelas suas referências joviais a acontecimentos passados, deduzi terem entrado em todas as competições anteriores. Mas foi tudo quanto depreendi.
No turbilhão dos meus pensamentos havia uma coisa que me parecia clara: fosse qual fosse a patifaria que Donohue tramava, eu frustrá-la-ia vencendo a corrida. Respirei fundo. Viera para ganhar, prometera ganhar e havia de ganhar!
A uma campainhada, saímos da tenda. Nesse momento contei os corredores: éramos oito. Da copa de um chapéu invertido tirámos à sorte os nossos números: coube-me o 4. Em seguida, através de uma abertura estreita na vedação, entrámos na pista. Até aí não me compenetrara bem da multidão que ali estava; agora, com pavor, certifiquei-me de que era imensa, mole enorme de rostos expectantes que, tal uma onda, pareceu recuar quando nos alinhámos sobre o risco branco. Inclinado um pouco para a frente, de ouvido atento ao sinal de partida, só tinha consciência do sol brilhando no campo arrelvado que se estendia diante de mim, num largo oval, e do facto de que três voltas perfaziam a milha.
Soou o tiro. Precipitei-me instantaneamente para o interior da pista e, conforme era meu intento, tomei logo a dianteira.
Os passos rápidos atrás de mim em nada me perturbavam. Eu ia à frente e queria manter essa posição. Movimentando-me em plena liberdade, cortando o ar puro, sentia que me seria fácil ir sempre assim. Quão depressa se completou o primeiro circuito!
Já da distância, delicioso antegozar do triunfo, eu começava a ouvir o meu nome gritado e repetido. Ia a meio do segundo circuito quando um corredor (nem Purves nem Simms, mas um desconhecido e adversário duvidoso) inesperadamente me ultrapassou, ganhando--me umas boas três jardas. Achei intolerável submeter-me a tamanho atrevimento. No meio de gritos mais excitados e enérgicos, fiz um grande esforço e, com ímpeto veloz, deixei-o de novo atrás de mim.
Agora, porém, o ar estava menos fresco e as pernas já não me ajudavam tanto. Contudo, terminei a segunda volta e continuei à frente, o único nesse circuito derradeiro. De cabeça erguida, coração palpitante, corria com passos pesados, sabendo que enfraquecia mas rogando a Deus que me conservasse na vanguarda. Ai de mim! A prece não foi escutada. Ia apenas a meio da volta quando, com tremendo impulso, Purves se me adiantou célere, com aquelas pernas hercúleas trabalhando como êmbolos e os cotovelos rasgando até.
Logo atrás de mim batalhavam mais três, sendo Simms, um deles. Deligenciei dominar aquele assalto maciço mas não o consegui. Tinha as pernas como se as não sentisse, os pulmões pareciam rebentar-me, a garganta seca sufocava-me. Compreendi que estava liquidado. O meu nome já ninguém o bradava, perdera-se como um eco, abafado pelo de Purves, o paizinho Purves!
Correndo apesar de tudo, mas quase às cegas, eu tinha a vaga sensação de que mais vultos me iam nitrapassando. Quando toquei, a cambalear, na fita que marcava a meta, só um concorrente me seguia, um retardatário isolado, o tal rapazola de nome Chuck. Concluíra, pois, em penúltimo lugar.
Felizmente que o vestiário ficava perto. Batido, humilhado, com vontade de chorar, fui vacilando para lá, e escondi-me. Quando me sentei, de cabeça baixa, Purves, no outro banco, tentou consolar-me.
A milha não é distância que lhe convenha, meu rapaz. Até metade você foi muito bem. Mas não importa, tem muito tempo à sua frente.
Agradou-me a sua bondade, mas não pude responder. Que louco eu fora, e Terence também, ao supormos que na minha idade, sem treino, em más condições, poderia competir com homens experimentados, vencedores de outros circuitos e, por assim dizer, profissionais! Por fim reanimei-me, vesti-me, guardei a roupa da corrida no saco, e vim para o ar livre.
Dirigi-me logo a Terence, que me esperava. Antes que eu pudesse pronunciar uma só palavra de desculpa, ele pegou-me pela banda do casaco.
- Que demora!
- exclamou apressado. E, sem me dar tempo a falar, continuou: - Escuta, Laurence, não te aproximes do Donohue nem de nenhum de nós. Nem vás para o automóvel.
- Mas porquê?-balbuciei. - Por não ter vencido?
- Não é isso, palerma! -Hesitou um pouco, olhou em volta e baixou a voz. - É que há sarilho por causa das apostas, e será melhor para ti conservares-te de parte. A culpa foi daquele chato do Donohue, e o que eu pensava ser uma pândega transformou-se em maçada. 0 que tens que fazer é isto: vai muito quietinho para a povoação e espera por nós junto do arco. Lem-bras-te por onde entrámos?
- Lembro-me.
- Então já sabes. Estaremos lá com o carro em menos de uma hora. Aqui tens uma nota de libra para, se quiseres, petiscar qualquer coisa enquanto aguardas a nossa chegada.
- Tenho pena de ter perdido, Terry.
Angustiado, tratava de me penitenciar. Fitou-me de maneira estranha, após o que, sem uma palavra, rodou nos calcanhares e afastou-se rapidamente.
Segui-o com a vista até desaparecer entre o povoléu. Depois, cabisbaixo, de saco na mão, saí do estádio pelo lado do campo de golfe e, em passo arrastado, encaminhei-me para o centro da vila
XXXII
PARA meu alívio, a estrada estava quase deserta. As provas desportivas não acabavam antes das cinco, ainda eram quatro e meia, de modo que poucos espectadores tinham começado a retirar-se. Extenuado, ia andando lentamente, tão mergulhado na minha tristeza que a princípio nem reparei na pessoa que, com igual lentidão, caminhava em frente, não a grande distância. De súbito, porém, vi quem era e, apressado o passo, chamei:
- Nora!
Voltou-se, surpreendida.
- És tu! Deixaste os outros ? Baixei a cabeça, melancolicamente.
- Terence disse-me que me conservasse afastado deles. Fiquei de os esperar junto do arco.
- Que te conservasses afastado deles ? Porquê ?
- Estavam atrapalhados com os que apostaram em mim.
Olhou-me vagamente, mas de lábios comprimidos.
- Ganhaste a corrida?
- Não. Fui praticamente o último. Eram todos homens feitos, muito mais velhos do que eu. Não tinha probabilidade de vencer, apesar de tudo o que dizia o jornal.
- Que jornal?
Caminhávamos agora lado a lado. Tirei da algibeira o Berwick Advertiser, desdobrei-o e mostrei a noticia.
Nora leu, deitou-me um olhar, tornou a ler e em seguida murmurou qualquer coisa com tanta amargura que me considerei feliz por não ter percebido a frase.
-- Meu pobre Laurence - disse, depois de um silêncio. - Não vás ter com eles. Regressa comigo no comboio.
Eis uma perspectiva inesperada e muito agradável.
- Mas são capazes de ficar à minha espera...
- Não ficam. Descansa, que eles não se preocupam connosco.
- A que horas é o comboio, Nora?
- Às seis menos dez.
- Não temos de mudar em Edimburgo?
- Não. Felizmente, é comboio directo. Antes de partirmos, terás tempo de comer o que te aprouver.
-- E tu também, Nora. - Como ela não respondesse, acrescentei inquieto: - Ainda te sentes indisposta?
- Não estou completamente bem, mas esforço-me por me dominar.:-Humedeceu os lábios e tentou sorrir. - -Ambos nos temos visto ultimamente atrapalhados, mas se nos unirmos sairemos bem das complicações.
Em passo vagaroso, pois Nora não tinha pressa, nem eu, em pouco tempo alcançámos o burgo. Supusera que todos os habitantes de Berwick haviam ido assistir às provas desportivas, mas afinal as ruas formigavam de gente, parte da qual parecia vir dos arredores; num descampado próximo da praça central via-se uma espécie de feira com carroceis.
- Isto está muito movimentado - observou Nora. - Deve ser feriado local.
Procurando em volta um lugar onde se pudesse comer, ela deteve-se em frente de um restaurante em cuja montra se lia este anúncio: "Salmão do Tweed, cozido ou grelhado, 1/6 a posta."
- Gostas disto, não gostas ?
- Muito respondi. - Especialmente grelhado. -
Nunca mais comera salmão desde o tempo, já tão distante, daqueles almoços substanciais com Miss Greville.
Entrámos. Era uma simples casa de pasto, empestada de fumo vindo da cozinha e tão cheia de gente que foi difícil encontrar lugar. Nora pediu salmão para mim e um bule de chá para ela.
- Come qualquer coisa, Nora - supliquei. Limitou-se a abanar a cabeça.
Enquanto esperávamos que nos servissem, observei--lhe:
- Não compreendo por que é que Terence falou em sarilho.
- Querido Laurence - replicou ela - não vamos averiguar isso, mas devia tratar-se de qualquer estratagema indecente para apanhar dinheiro. Eles sabiam de antemão que tu não tinhas possibilidade de vencer. Todavia não te queixes muito do Terence: é fraco e egoísta, mas não tem mau coração. Para ele foi apenas um divertimento. Donohue é que merece censura. Tudo partiu dele. - O tom de voz fez-se duro. - Oxalá o povo o desancasse, o que não acredito: há-de livrar-se de apuros, como de costume.
Tirou o lenço e limpou a testa. Tinha a respiração ofegante.
Chegou por fim o meu salmão. Acompanhado de um prato de batatas cozidas com casca e colocado à minha frente por um homem em mangas de camisa, afigurou-se-me a mais bela posta de peixe pescado no Tweed. De repente descobri que morria de fome e, por um intervalo breve mas compensador, as minhas aflições desapareceram. Só quando havia praticamente terminado é que reparei que Nora afastara a xícara de chá intacta.
- Está muito calor aqui dentro - disse a minha prima, à laia de desculpa. - Vou aos lavabos.
Olhei-a pesaroso. Estava tão diversa do que era, mesmo a andar, que achei preferível irmos o mais depressa possível para o comboio. Durante a sua ausência,pedi ao criado a conta, que paguei com a nota que Terence me dera.
Dirigimo-nos para a estação do caminho de ferro, que infelizmente ficava situada no ponto mais alto da vila. Embora ela não fizesse alusão a isso, pareceu-me que Nora não gostava de subir. Contudo chegámos e vimos a bilheteira aberta.
- Quando nos acharmos instalados na carruagem, sentir-te-ás melhor...
Nora tirou o porta-moedas. Queria dois bilhetes de terceira classe para Winton.
O homem disse o preço, pegou em dois cartõezinhos e ia metê-los na máquina de furar quando observou:
- É para segunda-feira, não é verdade? O comboio sai às sete e quinze.
- Segunda-feira! - exclamou Nora. - Tencionávamos ir hoje mesmo, no das seis menos dez.
O empregado abanou a cabeça.
- Hoje não há esse.
- Há, sim, senhor - protestou Nora. - Eu consultei o jornal.
Em silêncio, ele pegou num horário e, tirando o lápis de trás da orelha, indicou determinado ponto da página.
- Está a ver o asterisco ? Excepto aos domingos e feriados. E hoje, sábado dia de feira, é um grande feriado regional.
Olhei para Nora e vi o abalo que isto lhe causara. Parecia sucumbida.
- Mas deve haver outro comboio...
- Hoje não há nenhum. Nem amanhã tão-pouco. - E, desinteressando-se de nós, o homem começou a somar algarismos num bloco de papel.
Nora encostou-se à parede. Julguei que ela ia desmaiar.
- Nora, vamos depressa até ao arco. Terence ainda pode lá estar à nossa espera.
- Não está - respondeu desanimada. - Já se foram embora, com certeza.
- Experimentemos.
O arco não era longe da estação. Em pouco tempo o alcançámos e durante cerca de uma hora ali nos mantivemos em silêncio, acotovelados pelos transeuntes, procurando com a vista o carro encarnado, enquanto o movimento da feira, na rua central, atingia o apogeu. A noite vinha a descer.
- Não vale a pena - disse Nora por fim, em voz sumida. - Eles provavelmente quiseram safar-se depressa.
- Então que vamos fazer? - repliquei desesperado. - Será fácil alugar um carro até Edimburgo? Ali tomaríamos o comboio.
- Mesmo que assim fosse, eu não aguentava a viagem. - De repente, Nora desatou a chorar. - Laurence, todo o dia me senti mal, mas já não posso mais. Tenho uma pontada horrível num lado e, se não me deito, daqui a instantes caio no chão. É preciso descobrir um lugar onde passar a noite.
A sua consternação emudeceu-me. Todas as espécies de disparatadas contingências me atravessaram a mente. Permitiria aquele empregado da bilheteira que ficássemos na sala de espera da estação? Ou talvez encontrássemos qualquer abrigo no parque local?... Quando, porém, a vi comprimir a ilharga com a mão, quase a desfalecer, compreendi que ela devia descansar num quarto de hotel.
Apesar do comentário desdenhoso de Terry, o hotel da praça grande, para além da feira, pareceu-me bastante decente. Levando Nora pelo braço, pois se mostrava agora incapaz de qualquer movimento voluntário, desci a rua e para lá me dirigi. O hotel tinha uma tabuleta: "Berwick Cockle". Saíam e entravam ondas de campó-nios barulhentos, mas, furando entre a multidão, conseguimos enfim penetrar no átrio alcatifado dê vermelho. Depois da rua aquilo era. um santuário abençoado. No entanto, o empregado da recepção mal olhou para nós. O hotel estava cheio, disse ele, cheio até às portas, e durante todo o dia não tinham feito outra coisa senão recusar hóspedes.
Saímos. Do outro lado da praça havia uma estalagem, a "Masons Arms". Deixando Nora cá fora, com a recomendação de não se mover, entrei numa sala cheia de fumo e apinhada de grupos de homens que, de copo na mão, riam e conversavam ruidosamente. Nenhum reparou em mim. Interpelei vários deles, perguntando pela gerência, antes que um me apontasse com o cachimbo para uma mulher gorda, de cabelos loiros e vestida de preto: pelo seu ar de sociabilidade eu depreendera que fazia apenas parte do grupo de foliões. Enveredei para ali e, com certa dificuldade, consegui chamar-lhe a atenção. A criatura tinha uma cara prazenteira que me animou, mas o coração confrangeu-se-me quando ela abanou a cabeça.
- Esta noite, meu rapaz, não achará um só quarto devoluto em Berwick.
- Veja se se lembra de algum! - insisti. - Seja lá onde for.
- Experimente Spittal, da outra banda, respondeu-me com ar duvidoso.
- Há um botequim, mesmo ao pé da ponte, chamado "Drovers Rest". Talvez lhe arranjem uma cama.
- Como se vai lá ter?
- Volte na segunda rua à direita e desça a Cooper Lane. Fica logo a seguir à ponte velha.
De novo no largo, tomei o braço de Nora, que se deixou levar em silêncio, sempre com a mão apoiada na ilharga. 0 povo parecia ter-se concentrado todo na praça. A feira estava no máximo da animação. Soava no ar da noite a música dos divertimentos populares. Por duas vezes me enganei na rua e voltei à principal, até que descobri a Cooper Lane. No sopé da colina deslizava o rio, escuro, embatido pela maré. Atravessámos uma ponte estreita, arqueada, e chegámos ao lugarejo de Spittal. Aí predominava um agradável sossego, o cheiro das algas e a frescura do ar salgado. Os mastros das embarcações de pesca evidenciavam-se de encontro ao resplendor de Berwick no momento em que eu amparava Nora ao longo do desembarcadoiro empedrado.
Depressa chegámos a "Drovers Rest". Era uma velha construção de tijolos, mal iluminada e com poucos sinais de acomodação. Como nada a diferençava de uma taberna vulgar, a minha esperança desvaneceu-se. No interior deparámos um corredor estreito de pedra, que conduzia ao botequim. Havia sons de vozes em discussão. Repugnava-me levar Nora para ali. À direita vi uma porta com o letreiro de "Particular". Bati e surgiu-me um homem de idade; estava de chinelas, camisola de lã azul e trazia na mão um exemplar do Chamber's Journal. Tinha os nervos de tal maneira tensos que só reparava nestes pormenores desnecessários, enquanto lhe dizia desesperadamente:
- Estivemos nas provas desportivas e perdemos o comboio de regresso. Por favor, arranje um quarto para a minha prima. Ela não se sente bem. Eu durmo em qualquer canto.
De coração palpitante, mostrei-lhe o meu saco com o traje de corredor, a fim de provar a nossa respeitabilidade. O velho olhava-me por cima dos óculos, adivinhei-lhe na cara que nos ia dar alojamento.
Nessa altura emergia da taberna uma mulher de cerca de trinta anos, trazendo debaixo do braço um
tabuleiro vazio. Trajava com simplicidade, de blusa e saia, tinha um ar digno.
- Que é, pai? -perguntou.
- Este parzinho quer um quarto.
- O quê? - bradou, escandalizada. - Um quarto para os dois?
- Não, senhora - apressei-me a esclarecer.
- É só para a minha prima. Ficarei cá fora, se quiser!
Seguiu-se um silêncio.
- Diz que estiveram nos jogos? - Inquiriu o velho.
- Sim, senhor.
- E esforcei-me por autenticar o facto.
- Harry Purves venceu a milha.
A mulher ora olhava para Nora ora para mim.
- Eu confio neles, pai - declarou de súbito.
- A menina pode ficar no terceiro e o rapaz no quarto de arrumação. Mas, já os previno, nada de abusos, senão ponho-os a ambos na rua.
Soltei um grande suspiro de alívio. Antes que lhe pudesse agradecer, ela regressara ao botequim. O velho entrou no quarto e trouxe uma chave.
Seguimo-lo ao andar superior, onde ele abriu a porta de um quartinho. Tinha pouca mobília, o papel da parede estava desbotado, o jarro da água partido, mas o soalho parecia limpo e a roupa da cama asseada.
Eu senti, aliviado e orgulhoso, que fizera o melhor por Nora.
- Dormirás bem aqui, assegurei-lhe, procurando manter o meu tom de voz natural. - E amanhã de manhã estarás boa.
- Obrigada, Laurie, volveu a minha prima com um sorriso fugaz. - Bastar-me-á deitar-me e dormir.
- Não lhe quer deixar isso?-indagou o estalajadeiro, olhando para o saco que eu ainda conservava na mão.
- Decerto, respondi à pressa, embora aquilo não tivesse utilidade para nenhum de nós.
Quis dizer mais qualquer coisa a Nora, e, além de tudo, desejei beijar aqueles lábios descorados, com toda a ternura do meu peito amante. Mas o velho não nos perdia de vista, se bem que já menos desconfiado. Limitei-me, pois, a murmurar boa noite e saí com ele do quarto.
Quando seguíamos pelo corredor, ouvi a porta fechar-se.
XXXIII
Os meus esforços inúteis naquela desastrosa corrida e a luta para encontrar alojamento deixaram-me quase morto de fadiga. O colchão em que me deitei, no quarto das arrumações, não era de todo desconfortável. Todavia não conseguia dormir. Os acontecimentos do dia giravam e emaranhavam-se-me na cabeça. Que tolo eu fora, como me deixara iludir tão facilmente, lisonjeado na crença de que poderia vencer! E quanto gozo a minha credulidade idiota fornecera a Terence e a Do-nohue, desde essa farsa no campo de futebol do Harp, que eles conduziram com a maior seriedade, preparando--me para o sacrifício! Como perdera o senso comum a ponto de não compreender quanto era disparatada a ideia de competir com profissionais experimentados? Desde o começo que eu fora logrado. Donohue planeara a notícia na gazeta local e, oferecendo excessivas apostas contra mim, embolsara boa maquia à minha custa. Se eu tivesse vencido, fazendo-o pagar cinco vezes mais o valor das entradas, arruinava-o de facto, mas para mim seria um triunfo, e para Nora também, visto que percebera, pelas suas palavras, que ela o detestava. Isso, porém, como muitas outras coisas da minha vida -estava fora da minha vontade: só se realizava em sonhos, jamais concretamente.
Torturado pela incapacidade demonstrada, voltava-me inquieto no colchão. Era evidente que nascera para falhar e ser iludido. A súbita recordação da bolsa Ellison aumentou-me a angústia, menos pela dificuldade de comparecer na segunda-feira na Universidade (o comboio da manhã devia chegar a Winton pelo menos ao meio-dia) do que pela convicção de que, assim como falhara na corrida, também falharia no concurso. Ran-kin conduzira-me a isso, não como Donohue, mas por melhor motivo: só com o fim de fazer subir o nível da minha instrução.
Nesta altura adormeci, porém não por muito tempo. Acordei sobressaltado, com a impressão de que alguém me chamava. Soergui-me, apoiando-me num cotovelo, e fiquei à escuta, na escuridão. Tinham cessado os sons da taberna em baixo e o zumbido distante da feira de Berwick. O leve rumor de um rato, algures no aposento, intensificava o silêncio. Ia deitar-me de novo, convencido de que me enganara, quando me pareceu ouvir outra vez chamarem por mim.
Levantei-me num pulo, dando uma canelada na borda rija de um objecto invisível, e fui às apalpadelas até à porta. Indeciso, ali estive com o ouvido encostado ao painel e sem que nenhum som chegasse até mim. No entanto, se alguém me chamara só podia ter sido Nora. Cautelosamente, abri a minha porta. O corredor estava às escuras, mas por baixo da porta do quarto dela vi um feixezinho de luz.
Eu não me despira; limitara-me a tirar o casaco e as botas. Em peúgas, avancei sem rumor para a porta iluminada e bati devagarinho com a unha do indicador. Ninguém respondeu.
- Nora! -proferi num sussurro.
- Estás aí?
Ouvi então a sua voz, fraca e fléxivel, num apelo inequívoco. Dei volta ao puxador e entrei.
Nora estava deitada de lado, só com a camisa vestida, que a cobria apenas até aos joelhos. Tinha os olhos fechados e as mãos meio enclavinhadas. Os lençóis e cobertores haviam caído e amontoavam-se no chão. Mas pior do que tudo era a lividez do rosto; parecia mais velha, quase feia, a custo reconhecível,
- Nora - murmurei - Chamaste-me? Entreabriu os olhos.
-Não pude sentir-me só mais tempo. Tenho uma dor fortíssima.
- Onde, Nora?
Fez um gesto em direcção do estômago, um pouco mais abaixo. Sofria indiscutivelmente. O medo que durante todo o dia me assaltara tomava agora maior vulto. Podia ser um pateta e um falhado, mas, graças a Deus, percebia alguma coisa de apendicite. Encaminhei-me para o leito.
- Ainda estás enjoada?
- Sim. Bastante,
-Nora. - Tratei de a não alarmar.
- Vou procurar socorros.
Ela premia sempre o lado e não respondeu. Peguei-lhe na mão: estava quente e a palma coberta de suor.
- Temos de chamar alguém, é perigoso continuar assim. Precisas de um médico.
- Por enquanto, não.
- Arfou em novo espasmo.
- Espera-se mais um pouco.
- Não, é necessário já.
- Estamos a meio da noite.
Não encontrarás ninguém.
Aguentarei, se ficares junto de mim.
- Mas, Nora...- Atalhei, aflito com o facto de ela não me deixar ir buscar um médico.
- Fica, por favor. Se me ajudares a dar uma volta no quarto, talvez a dor me passe.
Apoiou-se num cotovelo e passou o outro braço por cima dos meus ombros. Enquanto eu a amparava, senti no quarto um cheiro desagradável. Reparei então que o saco que eu trouxera estaca aberto e vazio.
A camisola branca e os calções amontoavam-se a um canto, empapados e terrivelmente sujos, sujos de um tom acastanhado.
Pensei que ela vomitara sobre a roupa e isso decidiu-me. Recostei-a de novo na almofada e, sem uma palavra, fui ao andar de baixo e bati à porta onde estava escrito "Particular". Como ninguém respondesse, dei a volta ao puxador e entrei. 0 compartimento achava-se às escuras, mas descobri o interruptor e acendi a luz. Vi-me numa salinha de estar confortavelmente mobilada. Sobre o fogão havia um relógio: eram duas e meia da manhã. Outra porta, quase escondida por um reposteiro, levou-me à cozinha, onde, saltando do seu cesto colocado em frente da lareira, um cãozinho desatou a ladrar e a rosnar. De repente, soou uma voz áspera.
- Quem anda aí?
Respondi dizendo quem era e que necessitava de auxílio urgente. Por uns minutos nada aconteceu, até que., para meu alívio, a filha do estalajadeiro entrou na cozinha.
Ainda a atar o cinto do roupão, de trança caída pelas costas, acalmou o cachorro e fixou em mim uma expressão colérica e ao mesmo tempo ensoñada.
- A minha prima está a sentir-se mal, com uma dor forte - declarei antes que a mulher começasse a discutir. - Deve ser uma crise de apendicite.
Isto calou-a. Continuou zangada mas limitou-se a resmungar:
- Só me faltava esta! Por que acedi a dar-lhes dormida?
-Lastimo incomodá-la. Mas, por favor, vá vê-la. Ou então telefone já ao médico.
Outro silêncio, até que se resolveu.
- Vamos lá. Despache-se, não me deixe especada aqui toda a noite.
Fui à frente e abri a porta do quarto de Nora. A mulher entrou, ou melhor, transpôs o limiar e deteve-se. 0 seu olhar abrangeu Nora, a cama em desordem, os cobertores caídos no chão, a minha camisola suja atirada para um canto, o bacio quase cheio e as várias manchas alarmantes nos lençóis, nas quais eu ainda não havia reparado. Então, com modos já diferentes e num tom que me deixou transido, ordenou:
- Vá para o seu quarto e não saia de lá sem que eu o chame.
E fechou-me a porta na cara.
Não me atrevi a desobedecer-lhe. Voltei para o quarto de arrecadação e permaneci junto da porta, às escuras, de ouvido atento, cheio de medo pelo que poderia suceder a Nora. Tremia ao pensar no seu rosto lívido e pedia a Deus que o médico viesse depressa. A operação de apendicite era uma coisa séria e eu sabia também que se um apêndice inflamado não fosse extraído urgentemente poderia rebentar com consequências fatais.
A mulher continuava no quarto com Nora. Passados talvez uns dez minutos, ouvi-a descer a escada. O meu aposento ficava mesmo por cima do corredor do rés-do-chão e o soalho era nu. Estendido no chão e apurando o ouvido, senti-a entrar no que calculava ser a sala de estar. Quase imediatamente ela começou a falar ao telefone; embora não distinguisse as palavras, percebi que era com o médico, o que me tranquilizou em parte. Quando a conversa terminou, ouvi-a subir outra vez a escada.
Decorreu um intervalo íntoleràvelmente longo antes que o doutor chegasse. Não se demorou a entrar no quarto de Nora. Quase ao mesmo tempo correu ao telefone, e eu compreendi, com um leve tremor, o que isso significava. Em seguida senti-o de novo subir os degraus.
No meu compartimento principiavam a penetrar os alvores da manhã, pondo à vista montes poeirentos de malas, trapos, baldes, peças de mobília desirmanadas e partidas e mais coisas deste género. Fui à única janela para espiar a chegada da ambulância. Todavia, quando ela apareceu na rua ainda escura e silenciosa, eu achei que não podia suportar mais. Retirei-me para dentro e escutei os sons da remoção de Nora: o que não tinha era coragem de ver.
Por fim tudo se aquietou. Calcei as botas, vesti o casaco e entreabri a porta. Não se ouvia nada. Mas esta calma era-me também intolerável. Cautelosamente, vim ao corredor. A mulher estava no quarto de Nora, de mangas arregaçadas e mãos à ilharga, contemplando uma cena de pavorosa desordem.
No meu espírito só havia uma ideia.
- Ela irá melhorar? - perguntei.
Virou-se para mim. Tinha a cara enrubescida, às manchas, congestionada pela indignação.
- Não sei nem me importo. Você, seu canalha, é que a trouxe para cá. Aquela porca estragou-me a roupa da cama e sujou o quarto de tal forma que tem de ser esfregado, além de me acordar a meio da noite! Uma sonsa que se fazia passar por sua prima! O cjue eu devia era participar à Polícia, olé se devia. E faço-o, para que lhe deitem a mão.
Apesar de aterrado, quis defender Nora.
- Ela não tem culpa - respondi.
- Ah, não? Jurarei que o fez de propósito.
Que diabo queria ela dizer? Devia estar louca de raiva.
- Fez o quê?
- Seu intrujão! Não finja que não sabe. Um desmancho imundo!
Eu não entendia.
- Um quê ?
- Sim, um aborto provocado com pílulas. .
Gritou-me isto e deu-me um bofetão que me ia deitando a terra. Mas a força brutal das suas palavras aturdiu-me ainda mais do que a pancada. Incapaz de falar, olhei-a estupidamente, tão escandalizado que perdi a noção de onde estava e do que me dava aquele abalo em todo o corpo. Então algo dentro de mim me fez compreender. Tapei a cara com o braço e encostei-me à parede do corredor.
XXXIV
O comboio, ganhando velocidade depois da sua paragem em Glaisend, chegava ao fim da viagem para Winton. Sozinho a um canto do último compartimento da terceira classe, imóvel, com as mãos nos joelhos, eü ia privado de qualquer sensação a não ser a de profunda apatia. Durante três horas assim me conservara, olhando fixamente através da janela, entorpecido pelo rápido e confuso deslizar da paisagem que servia para deter ou, pelo menos, submergir o curso vagaroso dos meus pensamentos. Esperava que essa espécie de marasmo me não abandonasse. Estimulava-o, quando me faltava o cenário, contemplando os anúncios do lado oposto da bancada, até os ver transformarem-se a pouco e pouco, num borrão nebuloso. Agora não vejo nada, pensava eu, como se a impressão de vacuidade mental e visual representasse o coroamento de tudo.
No entanto esse torpor, defesa contra o estado de choque em que me encontrava, nem sempre me salvara. E de vez em quando fragmentos de medo e horror flutuavam-me à superfície do espírito como resíduos asquerosos. Então a aventura em que me vira envolvido de novo me acudiu à mente. Não me custava muito a suportar a decepção sofrida, pior do que isso, pior até
do que o interrogatorio e a detenção pela Polícia quando tudo veio a lume, incluindo a fraude da corrida, era a ideia de Nora, era pensar outra vez em Nora. Tremia ao lembrar-me das palavras da estalajadeira: "Aquela porca... vou participar à Polícia... um aborto provocado..." A vida revelara-se-me tão sórdida e odiosa! Poderia eu tornar a crer em alguém, acreditar fosse no que fosse?
Os subúrbios de Winton iam ficando para trás, o comboio diminuía de velocidade e o revisor entrou de novo na minha carruagem. Entreguei-lhe o bilhete, que o agente da Polícia me dera nessa manhã e que já fora perfurado três vezes.
-Winton é a próxima paragem. - O homem estava disposto a conversar; não sabia, evidentemente, que eu passara o domingo na esquadra de Berwick. - Fez uma viagem comprida. E teve de se levantar cedo.
Reflecti um momento no que lhe devia dizer.
- Também o senhor, repliquei por fim. Ele riu-se.
- É o meu ofício... Está em férias?
- Não - Respondi imediatamente, como se, pelo carregar de um botão se me varresse da mente a ideia fixa. - Vou à Universidade fazer um exame, às duas horas.
- Ah, sim?
-Parecia impressionado.
- É verdade. Há três meses que ando a preparar-me.
- Por isso está com um ar de cansado. Pois então desejo-lhe felicidades.
Agradeci-lhe. O revisor fez um aceno amigável e foi-se embora.
Era certo, e eu senti alívio em ter declarado abertamente o meu propósito. Talvez, no estado actual, não fosse mais do que um acto inconsciente, o reflexo daqueles meses de preparação constante. Não esquecia, também, que dera a minha palavra a Rankin e que a devia cumprir, depois da tragédia daquele fim de semana escandaloso.
No entanto, embora compreendesse o que devia fazer, embora os meus movimentos, naquele sentido, fossem involuntários, eu experimentava alguma dificuldade em identificar-me com a pessoa que agia dessa maneira. Esta tendência da minha personalidade para se dissolver numa espécie de ermo exterior era coisa assustadora, porque julgava perder-me e vaguear sozinho, sem memória de mim próprio, numa estranha paisagem sombria.
Ao menos isto não persistia, e, quando passava, como agora, tornava a ser Laurence Carroll, levado pela necessidade de comparecer em Gilmore Hill, às duas horas em ponto, naquela mesma tarde - isto é, na Universidade de Winton.
O comboio, com um último silvo, deteve-se na Estação Norte da cidade. Ainda bem, pensei, que não fora ter à Estação Central. Saí da carruagem e encaminhei-me para a porta que dava acesso à Queen Street, verificando ao mesmo tempo que chegara às doze e quarenta, apenas com cinco minutos de atraso. Não precisava de me apressar. Tudo se realizaria normalmente. Como o - bilhete fora comprado pelo polícia, eu ainda tinha algum dinheiro no bolso.
Era justo que me alimentasse antes do exame, e, portanto, devia almoçar. Não muito longe, no lado oposto, vi um dos restaurantes modestos de Winton. Atravessei a rua e entrei.
A ementa, dactilografada, oferecia a alternativa de costeleta de carneiro e língua cozida ou bife e pastelão de rim. Sem hesitar, escolhi a costeleta e, quando ma serviram com ervilhas e puré de batatas, comi como se tratasse de um acto de rotina, sem apetite nem paladar.
Apesar de não estar compenetrado disto, todas as minhas acções eram agora automáticas, prelúdio de desintegração nervosa a que não podia resistir ainda que o tentasse. Um relógio de parede por cima da porta de entrada mantinha-me informado das horas. À uma e vinte minutos pedi a conta, saldei-a na caixa e parti.
Um eléctrico verde levar-me-ia ao sopé de Gilmore Hill. Passavam ali com frequência, e não tardou que um aparecesse. Embora abarrotado de operários que iam para casa almoçar, entrei prestamente. Mas tive de ficar de pé todo o percurso, e quando chegámos a Gilmore Hill já me sentia fatigado, principalmente das pernas. Subi devagar a colina, mais por necessidade do que por gosto. 0 tempo aquecera e eu sentia também uma impressão no alto da cabeça, que não me dissipou mesmo quando passei na frescura do claustro. 0 relógio da torre bateu duas horas no momento em que eu entrava na sala da Universidade.
- Chegou mesmo à tabela, observou o homem que estava sentado à secretária, enquanto riscava o meu nome da lista.
Entregou-me o ponto de exame, lançou-me um olhar de revés e indicou-me uma carteira desocupada.
Sentei-me. Relanceando a vista derredor, notei que os outros candidatos, cerca de vinte, em atitudes contorcidas de gente concentrada, estavam já a escrever diligentemente. Não quis apressar-me. De maneira ordenada, abri o sobrescrito do ponto e comecei a estudar o assunto,
"Prova Ellison"
Escreva um ensaio com um mínimo de duas mil palavras justificando, o melhor que puder, a rainha Maria da Escócia quanto ao seu procedimento em relação a Lorde Darnley e particularmente quanto à noite de 9 de Fevereiro de 1567."
Eu devia sorrir,a tentação foi quase irresistível, não porque, nos recessos do pensamento, alguma coisa ou alguém me sugerisse que esse tema, ou outro semelhante, podia ser o escolhido, mas apenas pelo absurdo da ideia de que, no meu presente estado de espírito, eu quisesse defender aquela ambiciosa real, ainda que isso me granjeasse uma bolsa de estudos.
Calmamente, com a consciência de que estava destruindo a possibilidade de êxito, molhei a pena no tinteiro e comecei a escrever rapidamente, sem uma hesitacão. As palavras afluíam ao bico da pena, e cada uma delas brotava da ferida que eu recebera. 0 período da Escócia desde o século XV ao século XVI fora o meu estudo mais cuidado. Conhecia toda a história da infeliz rainha e agora, aguilhoado pelo que havia no meu subconsciente, quase com malícia, escalpelizei-a sem dó e com uma subtileza de que nunca me julgara capaz. Com o pretexto de a defender, apresentava argumentos favoráveis e, um por um, inutilizava-os rudemente, desfazendo as circunstâncias atenuantes e deixando-a apenas entregue à crueza dos factos históricos.
Desta maneira tornei evidente que esse enlace contra--indicado com o jovem e insensato Darnley, aparentemente um casamento de amor, não tivera outra razão além do ódio que ela votava à prima rainha Isabel: só um ano mais tarde o proscrito Conde de Bothwell seria seu amante adulterino. Desafeiçoada do marido - que jazia doente e desfigurado, ansiando por uma reconciliação, na cidade de Glásgua - fora a sua solicitude de esposa que a levara a decretar, depois de uma entrevista secreta com Bothwell, que aquele podia mais convenientemente recuperar a saúde na casa isolada e meio derruída de Kirk 0'Fields? Uma vez Darnley aí instalado, decerto sem conforto (pois era uma residência imprópria para um doente), nada podia ser mais virtuoso do que os cuidados assíduos da bela e juvenil rainha, que dedicadamente passava o dia junto dele, sentada no seu coxim de veludo encarnado e à noite dormia num leito do andar de baixo...
Infelizmente, certa noite, a noite de sábado 9 de Fevereiro, ela não pôde permanecer ali. Prometera ir a um baile que se seguia a um casamento e... palavra de rei não volta atrás. Beijou o marido, desejando-lhe boa noite e verificou se a vela estava espevitada. Um último gesto enternecedor, piedoso, antes de sair: entregou a Darnley o seu livro de salmos.
É estranho que o escudeiro de Bothwell, Paris, sujo de pólvora, passasse por ela no portão. É estranho que se fechassem as portas e se despedissem os criados. É estranho também que houvesse uma explosão tremenda, quase na salva real, enquanto ela dançava naquela noite.
Durante mais de uma hora nunca levantei a vista: a pena trabalhava sempre, cobrindo o papel branco com a regularidade de um autómato. Era na verdade uma escrita automática, pois que estava vazio de pensamentos conscientes e nenhuma máquina evocaria mais inexoravelmente o passado. Mas a pouco e pouco, quando chegava ao fim da descrição do despertar de Maria Stuart na manhã seguinte ao assassínio, no meio das colgaduras de seda do leito enorme, já planeando o seu casamento com Bothwell e sentando-se para saborear o almoço favorito de um ovo quente, a minha amargura pareceu enfraquecer, substituída por uma extraordinária sensação de cansaço, que se impôs de forma singular.
As linhas oscilaram na página, manchas de sombra flutuavam-me diante dos olhos, e quando, numa tentativa para clarear a visão, ergui a cabeça e olhei em volta, a tensão anteriormente experimentada transformou-se em vertigem. Nessa altura, embora atordoado, notei que a maior parte dos candidatos já entregara a sua prova, o tempo devia estar prestes a terminar. Com um esforço, completei o último período, apliquei o mata-borrão e fechei o caderno.
Agora só me faltava ir entregar o trabalho. Parecia, no entanto, que a vontade me abandonara e, além disso, tinha relutância em levantar-me. Depois de haver expelido o meu veneno, sentia-me fraco, mole, extenuado. O examinador, se era este o termo com que devia designá-lo, deixara a sua secretária e avançava lentamente para mim. Para minha surpresa, vi, quando se aproximou, que se tratava de um padre, alto, magro e taciturno, de volta branca no pescoço Teria eu reparado nisso quando entrei? Com certeza que não.
- É o último, disse-me em voz branda. - Acabou?
- Creio que sim. Posso então levar a sua prova? Já deram quatro horas.
Entreguéi-lhe o caderno
- Escreveu muito
- comentou um tanto ironicamente, voltando as páginas. - Espero que tenha sido benévolo para com a pobre mulher. Não, não fui. Na minha opinião, era uma "desavergonhada e uma sonsa".
- Deveras?
- Ergueu as sobrancelhas e não disse mais nada.
Agarrando-me à carteira, pus-me de pé. Não me apetecia andar, mas de qualquer forma, com fingida naturalidade, saí da sala. Fora, no claustro, alguém esperava por mim. Pareceu-me Rankin. Se era, encontrava-se em estado de grande agitação.
-Laurence! Procurei-te por toda a parte. Onde estiveste?
Levei a mão ao alto da cabeça para verificar se ainda a tinha.
- Não me lembro ao certo.
- Não te lembras? O vulto de Rankin ondulava à minha frente como se visto debaixo de água.
- Fizeste uma prova boa?
-Péssima. Respondi, tudo ao contrário. E disse-o ao examinador.
- O examinador! Valha-me Deus! Era o professor de Teologia.
- Quero lá saber! Disse-lhe a verdade.
- Laurence, estás doente?
Creio que não. A cabeça é que me dói. Não me sinto o mesmo.
- Que estiveste a fazer ? Onde dormiste a noite passada?
- Agora me recordo. Na cadeia.
- Santo Deus!
- Ah, soltaram-me esta manhã. Chegaram à conclusão de que não havia nada contra mim. O polícia até me deu almoço. Mas foi tudo abominável enquanto durou. Pensaram que eu era o culpado daquilo... e de Nora... Que era eu... que...
Rankin ondulava cada vez mais, e crescia, crescia, tal um estranho monstro aquático, até que desapareceu na vaga de escuridão universal que me submergiu e absorveu na sua maré negra e avassaladora.
XXXV
Seis semanas depois, às quatro horas da tarde... Eu estivera de cama, porém agora levantara-me e andava pelo apartamento ainda pouco familiar que a minha mãe arrendara. Começava a sentir-me melhor, lentamente me compenetrava da minha identidade, confusamente sabia que regressava daquele país negro e espectral a que a minha doença tanto tempo me confinara. Não era fácil esquecer o medo e o horror desse período sombrio em que o meu espírito, restringido a um pequeno foco, se habia fixado em tormentosa apatia. Os caminhos de regresso tinham sido tortuosos e difíceis, mas nessa manhã o médico dissera-me: "Estás livre de perigo, rapaz, e em breve poderás voltar à tua vida". 0 melhor sintoma da convalescença era a possibilidade de ver para além da cadeia dos pensamentos tristes em que me encerrara e distinguir as coisas com um olhar em que já vislumbrara interesse.
Tornei, pois, a examinar o apartamento. Embora pequeno, mal mobilado, constituído apenas por um quarto e cozinha, com casa de banho a meio, a verdade é que ele me agradou. Esse quarto, que eu ocupava, tinha simplesmente um catre de ferro, uma cadeira e minúscula papeleira; mas o papel da parede era novo, de uma cor quente, e, quando entrava ali o sol da tarde, como nessa ocasião, o aposento resplandecia com um clarão róseo que o inundava e preenchia a sensação de vazio.
Dirigi-me à cozinha, vi que possuía as utilidades usuais, pia, mesa, armário, e, na alcova conseguida com um reposteiro, a única nota escocesa, a cama de dossel capaz de se fechar pela frente com dois painéis de correr.
A principal atracção da casa era, porém, a sua altura. Situada no último andar de um prédio recentemente construído para habitação da classe operária, em Clarkhill, desfrutava uma vista arrebatadora de terraços e mesmo, nos dias límpidos, dos montes de Ochil, que ficavam a Oeste. Mais tarde soube que, para obter essa instalação, minha mãe fora favorecida pela circunstância de desempenhar aquele seu novo emprego na cidade.
O relógio de despertador, na prateleira do fogão, deu-me a conhecer que não faltava muito para que a Mãe regressasse a casa. Pensei, mais leve de espírito como estava, se poderia ajudá-la a preparar a nossa refeição.
Se bem que os trabalhos manuais prescritos pelo médico houvessem melhorado o meu sentido da coordenação, ainda tinha receio de deixar cair os objectos, e a nossa loiça não era muita. Contudo, animei-me a começar. Lenta e cuidadosamente, enchi a chaleira e, admirado com o seu peso, coloquei-a sobre o fogão.
Depois, estendi a toalha na mesa e pus as chávenas. Descobri o pão no armário e a respectiva faca na gaveta. Embora me custe, devo confessar que esse facalhão serreado me assustou. Só quem sofreu uma depressão nervosa é que sabe as fobias angustiantes a que isso pode induzir.
No começo da minha doença eu tivera um medo horrível... e de quê? Da papeleira do meu quarto. Revestida de todos os atributos sinistros, enchia-me de terror. Nem me atrevia a olhar para ela. Isso era, claramente, uma indicação do triste estado em que me encontrava. Mas agora a vergonha e a vontade de provar que já me achava bom forçaram-me a pegar na faca e á cortar fatias de pão. Sentia ainda, porém, o coração aos pulos quando as pus na torradeira. Faltava só grelhar as salsichas (manjar raro e reservado para essa noite) e dádiva da minha fiel amiga Annie Tobin.
A visitante não trouxera flores,tinha espírito prático e sabia quanto eu apreciava salsichas. Também me dera novidades, as quais, embora surpreendentes, não me impressionaram nada. Nora e Donohue, talvez obrigados pela autoridade eclesiástica, iam casar. Isso, contudo, era-me agora indiferente.
Dominava-me uma sensação de triunfo quando acabei de grelhar a última salsicha. A Mãe ficaria animada com esta prova do meu restabelecimento. Não que eu desejasse particularmente agradar-lhe, como noutros tempos. As nossas relações não eram as mesmas. Já não sentia por ela aquele amor ciumento e
desmedido. A corda distendera-se. Respeitava-a e confiava nela, estimava-a, mas, fossem quais fossem os tormentos por que eu passara, a verdade é que isso destruíra o complexo da minha infância.
Talvez que a atitude diferente de minha mãe, ainda afectuosa mas reservada, contribuísse para pôr termo àqueles transportes. Apesar de essa mudança haver começado, insidiosamente, após a morte de meu pai, a estada no convento tinha-a modificado bastante.
Tornara-se mais grave nos modos e na disposição e muitíssimo mais religiosa. Outrora, em Ardencaple, se ia à igreja ao domingo, era apenas para comprazer ao marido. Agora levantava-se todos os dias às seis horas da manhã, e, antes de partir para o trabalho, assistia à missa das sete e comungava diariamente, com todas as manifestações de sincera devoção. Sem dúvida que a disciplina conventual deixara nela a sua marca.
Contudo a origem dessa mudança era mais profunda. Banida pela família e de relações agora irremediàvelmente cortadas com os Carrolls, devia sentir-se muito isolada, compelida por circunstâncias infelizes a lutar sozinha
contra o mundo. No entanto, aqueles acessos de tristeza, não haviam reaparecido.
A Mãe sabia como fora afortunada em obter o emprego e andava satisfeita com as suas novas funções, as quais diziam principalmente respeito à inspecção e reabilitação de crianças miseráveis e raquíticas.
Em Winton o número de menores deformados, subalimentados e com vérmina, que sofriam de raquitismo, tornara-se um escândalo nacional.
Ainda que não se manifestasse nesse sentido, eu compreendia que a maior preocupação da Mãe incídia sobre mim. Que futuro seria o meu? Por causa da loucura daquela prova para a bolsa Ellison perdera a única esperança de entrar na Universidade. Com a idade de dezasseis anos voltar para a escola oficial parecia estar fora de causa, e, mesmo que não estivesse, poderia eu contar com minha mãe para me sustentar mais dois anos sem nada garantido ao fim desse tempo? Que trapalhada eu fizera da minha vida! Realmente, o futuro era para mim muito incerto.
Soaram passos na escada e ouvi uma chave rodar na fechadura da porta. A Mãe entrou na cozinha, de fato saia-e-casaco azul marinho e chapéu da mesma cor com a insígnia municipal de Winton, tal era o seu novo uniforme.
- Ah, preparaste a ceia, Laurence! -Exclamou, sorrindo.
- As salsichas devem estar boas. O pior é que queimei as torradas.
A minha resposta pareceu agradar-lhe.
- É como eu gosto delas.
Entrou na casa de banho e senti-a sacudir-se na banheira vazia, costume que adoptara para se libertar das pulgas que fatalmente adquiria na sua peregrinação diária pelos lares daquelas crianças.
Enquanto ela mudava de roupa, fui ao quarto endireitar a minha cama. Quando dobrava a colcha à janela, vi Rankin (que não era raro vir a essa hora tentar consolar-me) dirigir-se coxeando para a entrada do prédio. Completara os seus "Anais de Ardencaple", mas, infelizmente, nenhum editor se mostrava interessado em publicar a obra e em breve ele teria de regressar à aldeia para aí passar o resto da vida com a sua magra reforma.
Quando acabei de dobrar a colcha ouvia ainda o barulho característico do tacão de Rankin no passeio da rua e notei que o professor andava cá e lá com ar manifestamente indeciso e perturbado. Aquilo intrigou-me.
Então, de repente, compreendi a razão da sua relutância em subir. Não era surpresa para mim nem me entristeceu nada. Fazia parte do meu restabelecimento que eu sentisse pena da desilusão que lhe havia dado. Voltei à cozinha.
- O senhor Rankin está lá fora. Devo dizer-lhe que suba?
- Sim, chama-o, Laurence. Mas primeiro faz mais torradas.
Cortei duas fatias de pão e pu-las na torradeira. Quando voltei à janela o professor fora-se já embora. Aparentemente resolvera partir: ainda o vi dobrar a esquina da rua.
Misteriosamente, porém, dez minutos depois, quando começávamos a nossa refeição, ouvimos tocar a campainha, fui abrir a porta e deparou-se-me Rankin.
- Laurence - disse-me logo de entrada - tenho estado à espera da tua mãe, na rua e na paragem do eléctrico, mas hoje parece que se demora mais...
- Já chegou;respondi. - Até veio mais cedo. Afigurou-se-me que ficara um tanto desconcertado
com esta informação. Uma vez na cozinha, onde havia melhor luz, vi que ele estava realmente perturbado. Mas explicou, comentando:
- Já me custa a subir as escadas...
- Sente-se - disse a Mãe. - Vai comer connosco.
- Não, muito obrigado.
- Ao menos uma xícara de chá.
-Não, não... Bem, visto que é tão amável...
Séntou-se e aceitou a chávena que minha mãe lhe apresentava. A mão dele tremia um pouco e parte do chá entornou-se no pires. Contudo principiava a ficar mais tranquilo. Lançou-me um olhar oblíquo e ansioso.
- Como te sentes hoje, Laurence? .
- Muito melhor. - E quase acrescentava:
- Preparado para as más notícias que traz.
- Óptimo, óptimo; ripostou o professor.
Aborreceu-me, de súbito, aquele seu hábito de repetir as palavras. Sabia exactamente o que queria dizer e desejava com ardor que ele se explicasse. Observei-lhe:
- Se tem qualquer coisa na ideia, eu estou pronto a ouvir. Deu um suspiro de alívio.
- Nesse caso, lá vai. Pensei falar primeiro com a tua mãe, receoso de que te pudesse provocar uma recaída. Mas, visto que estás pronto, declaro que venho directamente da Universidade, onde, como hás-de calcular, estão patentes os resultados do exame para a bolsa Ellison.
- Tomou um gole de chá, devagar, e continuou no mesmo tom, sem olhar para mim: -Lembras-te com certeza do ponto, o elogio de Maria Stuart, e posso afirmar-te que, na maioria, os candidatos se foram abaixo por quererem louvá-la em demasia. Não perceberam estas palavras incluídas no tema; "o melhor que puder", às quais, para falar verdade, eu também não havia prestado atenção. Caíram na ratoeira e trataram quase de beatificar a rainha. Com um júri constituído por dois ministros presbiterianos e um professor de Teologia chamado Rnox, estavam liquidados desde o princípio.
- A voz ia-se-lhe alterando e tornando tão rouca que ele teve de tomar novo gole de chá. - Contudo, houve por acaso um candidato que, incapaz de apresentar qualquer argumento favorável, se viu obrigado a condená-la em termos violentos. O seu ensaio foi uma satisfação enorme para o júri, uma reivindicação da sua própria crença, e mereceu os maiores encómios. Concederam-lhe a bolsa por unanimidade.
Comecei a sentir-me comprometido. Havia uma expressão estranha, contida, no rosto da Mãe quando Rankin prosseguiu:
- Laurence, parece que lá no alto está quem proteja os loucos... em especial quando são novos e têm talento.
Não se pôde coibir mais tempo. Levantando-se num repelão, entornou a chávena, estendeu-me os braços e pulou comigo numa espécie de dança de pé coxinho. Meio sufocado, mal lhe ouvi o grito de vitória. Mas compreendi que, por um golpe felicíssimo, uma extravagância a que não pudera resistir, eu iria, no fim de contas, cursar a Universidade.
Nesse momento de exultação tudo me pareceu definitivo.
Finalmente o nosso futuro estava garantido. Não me passou pela cabeça que ainda houvesse longas e fatigantes lutas para travar. Todavia, nos cinco anos seguintes, tivemos de dar tamanha batalha contra a adversidade que ficámos esgotados ao máximo.
Embora a situação da minha mãe fosse sólida, os seus magros proventos mal nos chegavam para as coisas mais necessárias à vida. Só por um milagre de economia e de renúncia conseguiu ela desenvencilhar-se, e sem qualquer auxílio, excepto de Simon, que por seu lado de pouco dispunha mas que sempre nos mandava qualquer contribuição de Espanha. Aos outros parentes nada pedimos e deles nada recebemos. Bernard continuava numa existência de dissipação e conforto nas condenadas Caves de Lomond, iludindo todas as ordens para a sua demolição, enquanto Leo, silenciosa e implacavelmente, ia amontoando uma espantosa riqueza.
O seu sistema de avareza e parcimônia refinou a tal ponto que por último Annie o deixou e embarcou em Greenock para o Canadá, onde se reuniria ao filho. Foi para mim um momento triste vê-la afastar-se no City of Montreal. Nas raras vezes que me encontrava com Leo na rua, ele fingia não me reconhecer. Então já eu me impressionava com a sua magreza, mas, quando morreu anos mais tarde, completamente só num quarto miserável de Gorbielow, a Casa do Templário fora vendida por uma soma fantástica,houve quem alvitrasse que essa morte se devera, pelo menos em parte, à fome que ele passava.
No testamento, inteiramente do seu punho, fez os maiores legados a sociedades vegetarianas e incluiu uma cláusula pela qual deserdava de modo explícito os sobrinhos e a sobrinha.
Quem mais sofreu com isto foi Nora. Por esse tempo a minha carreira médica florescia, e Terence, tendo trocado Miss Gilhooley pela dona de um conceituado hotel de Dublin, dispunha de bastante dinheiro.
Mas o casamento de Nora, feito por motivos de reparação,ideia fútil de ambas as partes para compor as coisas, redundou em autêntico desastre. Donohue nunca poderia ser mais do que Donohue: quase nunca estava em casa e, quando finalmente desapareceu, deixou Nora em Liverpul no meio de grandes dificuldades, com três crianças a sustentar.
Tudo isto, é claro, ainda pertencia ao futuro. Entretanto eu e a Mãe íamos lutando tenazmente pela vida. É triste confessar que eu pensava pouco nos seus sacrifícios heróicos e que as nossas relações eram com frequência tensas e difíceis.
Quando comecei a estudar anatomia a minha crença arrefeceu, ao passo que o fervor religioso da Mãe se tinha intensificado. Também noutros assuntos as nossas ideias estavam em conflito. Tínhamos épocas de frieza quando para mim os seus silêncios e o seu ar distante assumiam aspectos de verdadeiro martírio.
Sem dúvida que eu merecia censura. Mas a amabilidade e a boa disposição não vêm com facilidade se a fome nos alanceia ou se se anda mal vestido (durante anos Shapiro continuou a ser o meu alfaiate) e ainda quando se está isolado pela pobreza evidente e atormentado pela ameaça do fracasso.
Embora nos meus dois primeiros períodos eu obtivesse notas de distinção em Botânica e Zoologia, cada exame que se seguia enchia-me de terror, pois não ignorava que, se chumbasse, tudo acabaria para mim. Não existia ainda a assistência concedida nos últimos anos aos estudantes pobres, e a minha bolsa, que servia apenas para o indispensável, não me permitia segunda oportunidade.
Ainda me vejo de cotovelos fincados na secretária e olhos fixos na Anatomia de Quain, enquanto a Mãe saía, pouco antes de as lojas fecharem, no sábado à noite, para comprar pelo mais baixo preço um bocadinho de carne. Não era raro no seu regresso ser abordada por qualquer bruto que vinha reclamar alguma dívida em atraso.
Por fim, todavia, lenta e penosamente, como um barco batido pela tempestade se aproxima vacilante da costa, nós avistámos a nossa terra prometida. Passei os meus exames finais, chegou o dia da formatura, e Rankin veio de Ardencaple para assistir com minha mãe à cerimónia. Quando saí de Bute Hall para me encontrar com eles no Union, onde dissera que me esperassem a fim de evitar a multidão, que fundo suspiro soltei, longo e triunfante, consciente da minha nova personalidade: forte, confiante, vitoriosa, apta desde então a qualquer emergência.
Sabia agora que desaparecera a brandura dos meus primeiros anos. Nunca mais consentiria que me enganassem. Nunca, nunca mais deixaria o coração impor-se ao cérebro. O ideal espartano da minha infância fora realizado finalmente.
Nesse momento, quando já estava próximo do portão, senti tocarem-me no ombro. Apesar dos cabelos brancos, que a envelheciam notavelmente, reconheci-a sem dificuldade, era Miss O'Riordan. Lera o meu nome na lista dos candidatos aprovados e desejou ver-me receber a carta de formatura. Depois de conversarmos uns momentos, ela não queria ir comigo ao Union - meteu-me na mão uma caixinha de cabedal com todo o aspecto de coisa religiosa.
Era impossível não adivinhar o que continha.
- Tenho a certeza de que o menino quebrou o terço que lhe dei. Ou então perdeu-o. Por isso aqui está outro. Agora não se esquecerá.
Vi-a afastar-se e contemplei em seguida a oferta, dominado por sensações confusas, recordações da minha fase espiritual no Presbitério, e apenas consciente de uma coisa: de que, ao regressar a casa, atiraria as contas para dentro de uma gaveta e nunca mais pensaria nelas. De súbito, sob pressão dos dedos no cabedal flexível, senti um leve estalido. Abri a caixa, sim, o terço lá estava. Mas Miss 0'Riordan pusera junto dele uma nota de banco de cinco libras, cuidadosamente dobrada.
Alheado da multidão que girava à minha volta, ali fiquei imóvel, tão vencido por esse oportuno rasgo de bondade (que me habilitava a adquirir os instrumentos necessários ao início da minha carreira) que lentamente, inexoravelmente, se me formou um nó na garganta, a despeito de todos os meus esforços para o evitar, e os olhos se me enervaram até às lágrimas.
Não, era inútil; eu não mudara nem jamais mudaria. Na minha natureza havia um ponto fraco, uma sensibilidade de que nunca me libertaria. Tudo aquilo que eu ambicionara e diligenciara ser, frio e estóico, desprendido e indiferente, um verdadeiro espartano, estava muito para além de mim. Marcado para sempre pela minha infância singular, por uma educação em que demasiadas mulheres haviam participado, eu era, e seria toda a vida, a vítima do génio sentimental, o escravo involuntário das minhas próprias emoções.

 

 

                                                                  A. J. Cronin

 

 

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