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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BOÊMIOS / Álvares de Azevedo
BOÊMIOS / Álvares de Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Álvares de Azevedo

 

 

 

 

PRÓLOGO Levanta-se o pano até o meio. Passa por debaixo e vem até a rampa um velho de cabeça calva, camisola branca, carapuça frígia coroada de louros. Tem um ramo de oliveira na mão. Faz as cortesias do estilo e fala:
Dom Quixote! Sublime criatura! Tu sim foste leal e cavaleiro, O último herói, o paladim extremo De Castela e do mundo. Se teu cérebro Toldou-se na loucura, a tua insânia Vale mais do que o siso destes séculos Em que a Infâmia, Dagon cheio de lodo, Recebe as orações, mirras e flores, E a louca multidão renega o Cristo! Tua loucura revelava brio. No triste livro do imortal Cervantes Não posso crer um insolente escárnio Do Cavaleiro andante aos nobres sonhos, Ao fidalgo da Mancha — cuja nódoa Foi só ter crido em Deus e amado os homens, E votado seu braço aos oprimidos. Aquelas folhas não me causam riso, Mas desgosto profundo e tédio à vida. Soldado e trovador, era impossível Que Cervantes manchasse um valeroso Em vil caricatura, e desse à turba, Como presa de escárnio e de vergonha, Esse homem que à virtude, amor e cantos
Abria o coração!
Estas ideias Servem para desculpa do poeta. Apesar de bom moço, o autor da peca Tem uns laivos talvez de Dom Quixote. E nestes tempos de verdade e prosa — Sem Gigantes, sem Mágicos medonhos Que velavam nas torres encantadas As donzelas dormidas por cem anos — Do seu imaginar esgrime as sombras E dá botes de lança nos moinhos.
Mas não escreve sátiras: apenas Na idade das visões — dá corpo aos sonhos. Faz trovas, e não talha carapuças. Nem rebuça no véu do mundo antigo, P'ra realce maior, presentes vícios. Não segue a Juvenal, e não embebe Em venenoso fel a pena escura Para nódoas pintar no manto alheio.
O tempo em que se passa agora a cena É o século dos Bórgias. O Ariosto Depôs na fronte a Rafael gelado Sua coroa divina, e o segue ao túmulo. Ticiano inda vive. O rei da turba É um gênio maldito — o Aretino. Que vende a alma e prostitui as crenças. Aretino! essa incrível criatura, Poeta sem pudor' onda de lodo Em que do gênio profanou-se a pérola Vaso d'ouro que um óxido sem cura Azinhavrou de morte homem terrível Que tudo profanou com as mãos imundas, Que latiu como um cão mordendo um século, E, como diz um epitáfio antigo,
Só em Deus não mordeu, porque o não vira. Como ele, foi devasso todo o século. Os contos de Boccaccio e de Brantome São mais puros que a história desses tempos. Tasso enlouquece. O Rei que se diverte — O herói de Marignan e de Pavia Que num vidro escrevera do palácio Femme sovem varie, mas leviano Com mais amantes que um Sultão vivia, Mandava ao Aretino amáveis letras, Um colar d'ouro com sangrentas línguas, E dava-lhe pensões. O Vaticano Viu o Papa beijando aquela fronte. Carlos V o nomeia cavaleiro, Abraça-o e — inda mais — lhe manda escudos. O Duque João Médicis o adora, Dorme com ele a par no mesmo leito. É um tempo de agonias. A arte pálida, Suarenta, moribunda, desespera E aguarda o funeral de Miguel Ângelo Para com ele abandonar o mundo E angélica voltar ao céu dos Anjos.
Agora basta. Revelei minh'alma. A cena descrevi onde correra Inteira uma comédia em vez de um ato, Se o poeta mais forte se atrevesse A erguer nos versos a medonha sombra Da loucura fatal do mundo inteiro.
Boas-noites, plateia e camarotes; O ponto já me diz que deixe o campo. O primeiro galã todo empoado, Cheio de vermelhão, já dentro fala: Estão cheios de luz os bastidores.
Uma última palavra: o autor da peça,
Puxando-me da túnica romana, Diz-me da cena que eu avise às Damas Que desta feita os sais não são precisos; Não há de sarrabulho haver no palco. É uma peça clássica. O perigo Que pode ter lugar é vir o sono; Mas dormir é tão bom, que certamente Ninguém por esse dom fará barulho.
O assunto da Comédia e do Poema Era digno sem dúvida, Senhores, De uma pena melhor; mas desta feita Não fala Shakespeare nem Gil Vicente.
O poeta é novato, mas promete. Posto que seja um homem barrigudo E tenha por Tália o seu cachimbo, Merece aplausos e merece glória.


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ATO ÚNICO
 
A cena passa-se na Itália no século XVI. Uma rua escura e deserta. Alta noite. Numa esquina uma imagem de Madona em seu nicho alumiado por uma lâmpada. Puff dorme no chão abraçando uma garrafa. Níni entra tocando guitarra. Dão 3 horas.
 
NÍNI Olá! que fazes, Puff? dormes na rua?
 
PUFF (acordando)  Não durmo... Penso.
 
NÍNI  Estás enamorado? E deitado na pedra acaso esperas
 
O abrir de uma janela? Estás cioso E com a botelha em vez de durindana Aguardas o rival?
 
PUFF Ceei à farta Na taverna do Sapo e das Três-Cobras. Faço o quilo; ao repouso me abandono. Como o Papa Alexandre ou como um Turco, Me entrego ao farniente e bem a gosto Descanso na calcada imaginando.
 
NÍNI Embalde quis dormir. Na minha mente Fermenta um mundo novo que desperta. Escuta, Puff: eu sinto no meu crânio Como em seio de mãe um feto vivo. Na minha insônia vela o pensamento. Os poetas passados e futuros Vou todos ofuscar... Aqui no cérebro Tenho um grande poema. Hei de escrevê-lo, É certa a glória minha!
 
PUFF A ideia é boa: Toma dez bebedeiras — são dez cantos. Quanto a mim tenho fé que a poesia Dorme dentro do vinho. Os bons poetas Para ser imortais beberam muito.
 
NÍNI Não rias. Minha ideia é nova e bela. A Musa me votou a eterna glória. Não me engano, meu Puff, enquanto sonho: Se aos poetas divinos Deus concede Um céu mais glorioso, ali com Tasso, Com Dante e Ariosto eu hei de ver-me.
 
Se eu fizer um poema, certamente No Panteon da fama cem estátuas Cantarão aos vindouros o meu gênio!
 
PUFF Em estátua, meu Níni! Estás zombando! É impossível que saias parecido. Que mármore daria a cor vermelha Deste imenso nariz' destas melenas?
 
NÍNI Estás bêbado, Puff. Tresandas vinho.
 
PUFF O vinho! És uma besta; só um parvo Pode a beleza desmentir do vinho. Tu nunca leste o Cântico dos Cânticos Onde o rei Salomão, como elogio, Dizia à noiva: — Pulchriora sunt Ubera tua vino!
 
NÍNI É sempre um bobo
 
PUFF E tu és sempre esse nariz vermelho Que ainda aqui na treva desta rua Flameja ao pé de mim. Quando te vejo, Penso que estou na Igreja ouvindo Missa Dita por Cardeal.
 
NÍNI  És um devasso.
 
PUFF Respondo-te somente o que dizia Sir John Falstaff, da noite o cavaleiro:
 
"Se Adão pecou no estado de inocência, Que muito é que nos dias da impureza Peque o mísero Puff?" Tu bem o sabes: Toda a fragilidade vem da carne, E na carne se eu tanto excedo os outros, Vícios não devem meus causar espanto. Minha alma dorme em treva completíssima Pela minha descrença... E tu, maldito, Por que sempre não vens esclarecer-me Com esse teu farol aceso sempre, Cavaleiro da lâmpada vermelha As trevas de minh'alma?
 
NÍNI Que leproso!
 
PUFF Sou um homem de peso. Entendo a vida; Tenho muito miolo, e a prova disto É que não sou poeta nem filósofo, E gosto de beber, como Panúrgio. Se tu fosses tonel, como pareces, Eu te bebera agora de um só trago.
 
NÍNI Quero-te bem contudo. Amigos velhos Deixemo-nos de histórias. Meu poema…
 
PUFF Se falas em poema, eu logo durmo.
 
NÍNI Uma vez era um rei…
 
PUFF Não vês? eu ronco.
 
NÍNI Quero a ti dedicar minha obra-prima; Irás junto comigo à eternidade. Teu retrato porei no frontispício. Meu poema será uma coroa Que as nossas frontes engrinalde juntas.
 
PUFF Pensei-te menos doido. O teu poema Seria uma sublime carapuça. Mas, já que sonhas tanto, olha, meu Níni, Tu precisas de um saco.
 
NÍNI Impertinente!
 
PUFF Dá-me aqui tua mão. Sabes, amigo? Passei ontem o dia de namoro; Minhas paixões voltei à nova esposa Do velho Conde que ali mora em frente. Estou adiantado nos amores. A cozinheira, outrora minha amante, Meus passos guia, meus suspiros leva. Mas preciso, com pressa, de um soneto. Prometes-me fazê-lo?
 
 
NÍNI Se me ouvires Recitar meu poema…
 
PUFF Eu me resigno. Declama teu sermão, como um vigário. Mas o sono ao rebanho se permite? (Entra um criado correndo)
 
Roa-me o diabo as tripas, se não vejo Ali correr com pernas de cabrita O criado do cônego Tansoni.
 
NÍNI Onde vais, Gambioletto?
 
GAMBIOLETTO Vou à pressa Ao doutor Fossuário.
 
PUFF Acaso agora O carrasco fugiu?
 
NÍNI Quem agoniza?
 
GAMBIOLETTO O Reverendo e Santo senhor Cônego, Deitando-se a dormir depois da ceia No colo de Madona la Zaffeta, Umas dores sentiu pela barriga, Caiu estrebuchando sobre a sala... Morre de apoplexia.
 
NÍNI O diabo o leve! GAMBIOLETTO E o médico, senhores! (Sai correndo)
 
PUFF  Venturoso! Sempre é Cônego... Níni, dulce et decus Pro patria mori... É doce e glorioso Morrer de apoplexia! Quem me dera  morrer depois da ceia, de repente! Não vem o confessor contar novelas, Não soam cantos fúnebres em torno, Nem se forca o medroso moribundo A rezar, quando só dormir quisera! Venturosos os Cônegos e os Bispos, E os papudos Abades dos conventos! Eles podem morrer de apoplexia! E se morre pensando — coisa nova! Quem nunca no viver cansou-se nisso; Se eles morrerem pensando, ante seus olhos, No momento final sem ter pavores, Inda corre a visão da bela mesa! A não morrer-se como o velho Píndaro, Cantando, sobre o seio amorenado De sua amante Grega, oh! quem me dera Cair morto no chão, beijando ainda A botelha divina!
 
NÍNI Que maluco! A estas horas da noite, assim no escuro Não temes de lembrar-te de defuntos? Beijarias até uma caveira, Se espumante o Madeira ali corresse!
 
PUFF Os cálices doirados são mais belos; Inda porém mais doce é nos beicinhos Da bela moca que sorrindo bebe Libar mais terno o saibo dos licores... Eu prefiro beijar a tua amante.
 
NÍNI Tens medo de defuntos?
 
PUFF Um bocado Sinto que não nasci para coveiro. Contudo, no domingo, à meia-noite... Pela forca passei, vi nas alturas, Do luar sem vapor à luz formosa, Um vilão pendurado. Era tão feio! A língua um palmo fora, sobre o peito, Os olhos espantados, boca lívida, Sobre a cabeça dele estava um corvo... O morto estava nu, pois o carrasco Despindo os mortos dá vestido aos filhos, E deixa à noite o padecente à fresca. Eu senti pelo corpo uns arrepios... Mas depois veio o ânimo... trepei-me Pela escada da forca, fui acima, E pintei uns bigodes no enforcado.
 
NÍNI  Bravo como um Vampiro!
 
PUFF Oh! antes d'ontem Passei pelos telhados sem ter medo, Para evitar um pátio onde velava Um cão — que enorme cão! — subindo ao quarto Onde dorme Rosina Belvidera.
 
NÍNI Ousaste ao Cardeal depor na fronte Tão pesada coroa?
 
PUFF A mitra cobre. Dizem que a santidade lava tudo; Depois... o Cardeal estava bêbado… A propósito, sabes dos amores  do capitão Tybald? O tal maroto Não sei de que milagres tem segredo Que deu volta à cabeça da rainha.
 
NÍNI Por isso o pobre Rei anda tão triste!
 
PUFF Spadaro, o fidalgote barba-ruiva, Contou-me que espiando pela janela Do quarto da rainha os viu Caluda!
 
NÍNI E o Rei que faz? Não tem lá na cozinha Algum pau de vassoura ou um chicote? Puff: El-Rei Nosso Senhor então ceava.
 
NÍNI Santo Rei!
 
PUFF E demais é bem sabido Que El-Rei só reina à mesa e nas caçadas.
 
NÍNI Nunca perde um veado quando atira.
 
 
PUFF Ele caça veados! Má fortuna! Não o cacem também pela ramagem!
 
NÍNI Com língua tão comprida e viperina Irás parar na forca.
 
PUFF Níni, escuta. Assisti esta noite a um pagode Na taverna do Sapo e das Três-Cobras. Era já lusco-fusco e eu entrando Dou com Frei São José e Frei Gregório, O Prior do convento dos Bernardos E mais uns dois ou três que só conheço De ver pelas esquinas se encostando, ou dormidos na rua a sono solto... Que soberbo painel! Faze uma ideia! Um banquete! fartura! que presuntos! Que tostados leitões que recendiam! Numa enorme caldeira enormes peixes, Recheados capões fervendo ainda, Perus, olhas podridas, costeletas Esgotara o talento a cozinheira! Abertos garrafões; garrafas cheias; Vinho em copos imensos transbordando; Na toalha, já suja, debruçados Aqueles religiosos cachaçudos De boca aberta e de embotados olhos. Gastrônomos! ali é que se via Que é ciência comer, e como um frade Goza pelo nariz e pelos olhos, Pelas mãos, pela boca, e faz focinho E bate a língua ao paladar gostoso Ao celeste sabor de um bom pedaço! Depois! era bonito! Frei Gregório Com a boca de gordura reluzente, Farto de vinho, esquece o reumatismo, Esquece a erisipela já sem cura, Canta rondós e dança a tarantela. Arrasta-se caindo e se babando Aos pés da taverneira De joelhos Faz-lhe a corte cantando o Miserere
 
Principia sermões, engrola textos, E a gorda mão estende ao nédio seio Da bela mocetona... a mão lhe beija, A mão que o cetro cinge de vassoura... Chora, soluça e cai, estende os braços, Ainda a chama, e cantochão entoa...
 
Era de rir! os velhos amorosos, Uns de joelhos no chão, outros cantando Estendidos na mesa entre os despojos, Outros beijando a moça, outros dormindo. Ela no meio deslambida e fresca Excita-os mutuamente e os rivaliza, Passa-lhes pelo queixo a mão gorducha...
 
Corre o Prior a soco um Barbadinho, Atracam-se, blasfemam, esconjuram, Um agarra na barba do contrário, Outro tenta apertar o papo alheio... Abraçam-se na luta os dois volumes E rolam como pipas. No oceano Assim duas baleias ciumentas Atracam-se na luta... Que risadas! Que risadas, meu Deus! arrebentando Soltou o pobre Puff vendo a comédia!
 
NÍNI Ouve agora o poema…
 
PUFF Espera um pouco, A taverna do canto não se fecha, Está aberta. Compra uma garrafa … Bom vinho tu bem sabes! Tenho a goela Fidalga como um rei. Não tenho dúvida Mentiu a minha mãe quando contou-me Que nasci de um prosaico matrimônio
 
Eu filho de escrivão!... Para criar-me Era — senão um Rei— preciso um Bispo!
 
NÍNI (vai à taverna e volta) Eis aqui uma bela empada fria, Uma garrafa e copo.
 
PUFF (quebrando o copo) O Demo o leve! Eu sou como Diógenes. Só quero Aquilo sem o que viver não posso. Deitado nesta laje, preguiçoso, Olhando a lua, beijo esta garrafa, E o mundo para mim é como um sonho. Creio até que teu ventre desmedido Como escura caverna vai abrir-se, Mostrando-me no seio iluminado Panoramas de harém, Sultanas lindas E longas prateleiras de bom vinho!
 
NÍNI Dou começo ao poema. Escuta um pouco:
 
I Havia um rei numa ilha solitária, Um rei valente, cavaleiro e belo. O rei tinha um irmão. — Era um mancebo Pálido, pensativo. A sua vida Era nas serras divagar cismando, Sentar-se junto ao mar, dormir no bosque Ou vibrar no alaúde os seus gemidos.
 
II Vagabundo um vez junto das ondas O Príncipe encontrou na areia fria Uma branca donzela desmaiada, Que um naufrágio na praia arremessara.
 
Revelavam-lhe as roupas gotejantes O belo talhe níveo, o melindroso Das bem moldadas formas. — O mancebo Nos braços a tomou, e foi com ela Esconder-se no bosque.
 
Quando a bela Suspirando acordou, o belo Príncipe Aos pés dela velava de joelhos.
 
Amaram-se. É a vida. Eles viveram Desse desmaio que dá corpo aos sonhos, Que realiza visões e aroma a vida Na sua primavera. A lua pálida, As sombras da floresta, e dentre a sombra As aves amorosas que suspiram Viram aquelas frontes namoradas. Ouviram sufocando-se num beijo Suspiros que o deleite evaporava.
 
III O rei tinha um truão. O caso é visto, É muito natural. — Se reis sombrios Gostam de bobos na dourada corte, Não admira decerto que um risonho Em vez de capelão tivesse um bobo.
 
Loriolo — o truão do Rei— acaso Um dia atravessando pela floresta, Foi dar numa cabana de folhagens. Ninguém estava ali, porém num leito De brandas folhas e cheirosas flores Ele viu estendidas roupas alvas — E roupas de mulher! — e junto um gorro, Que pelas joias e flutuantes plumas E pela firma no veludo negro Denunciava o Príncipe.
 
Loriolo, Apesar de na corte ser um Bobo, Não era um zote. Foi-se remoendo, Jurou dar com a história dos namoros. E para andar melhor em tal caminho, Ele que adivinhava que as Américas Sem proteção de rei ninguém descobre, Madrugou muito cedo — inda era escuro — E convidou El-Rei para o passeio.
 
IV Ora, por uma triste desventura, O rei entrando na Cabana Verde Achou só a mulher. — Adormecida No desalinho descuidoso e belo
 
Com que elas dormem, soltos os cabelos, A face sobre a mão, e os seios lindos Batendo à solta na macia tela Da roupa de dormir que os modelava... Não digo mais...
 
Loriolo pôs-se à espreita. O Rei de leve despertou a bela, Acordou-a num beijo...
 
V A linda moça, Se havia ali raivosa apunhalar-se, Fazer espalhafato e gritaria, Por um capricho, voluptuoso assomo, Entregou-se ao amor do Rei...
 
VI "Maldito!" Bradou-lhe à porta um vulto macilento. "Maldito! meu irmão, aquela moca
 
É minha, minha só, é minha amante E minha esposa fora... "
 
O Rei sorrindo Lhe estende a régia mão e diz alegre: "A culpa é tua. Eu disto não sabia; Se do teu casamento me falasses, Eu respeitava tua..."
 
"Basta, infame! Não acrescentes zombaria ao crime. Hei de punir-te. É solitário o bosque; Aqui não és um rei, porém um homem, Um vil em cujo sangue hei de lavar-me. Oh! sangue! quero sangue! eu tenho sede!"
 
VII Despiu tremendo a reluzente espada. O mesmo fez o Rei. — Lutaram ambos. Feminae sacra fames, quantum pectora Mortalia cogis! E embalde a moça, Ajoelhando seminua e pálida, Vinha chorando, mais gentil no pranto, Entre as espadas se lançar gemendo. Embalde! Longo tempo encarniçado A peleja durou Enfim caíram Rolaram ambos trespassados, frios, E, na treva de morte que os cegava, Inda alongando os braços convulsivos Que avermelhava o fratricida sangue, Procurando no sangue o inimigo!
 
VIII O Bobo fez as covas. Na montanha Enterrou os irmãos. — E quanto à moça, Pelo braço a tomou chorosa e fria, Foi ao paço, e na gótica varanda,
 
De coroa real e longo manto, Falou à plebe, prometeu franquezas, Impostos levantar e dar torneios. — Falou aos guardas: prometeu-lhes vinho, — Falou à fidalguia, mas no ouvido, E prometeu-lhe consentir nos vícios E depressa fazer uma lei nova Pela qual, se um fidalgo assassinasse Algum torpe vilão, ficasse impune E nem pagasse mais a vil quantia Que era pena do crime — e alto disse Que havia conquistar países novos.
 
IX A história infelizmente é muito vista, Não sou original! É uma desgraça! Mas prefiro o caráter verdadeiro De trovador cronista. —
 
Loriolo Trocou de guizos o boné sonoro — Muito leve chapéu! — pela coroa Só teve uma desgraça o Rei novato: Foi que um dia fugiu-lhe do palácio A tal moça volante nos amores.
 
X Muitos anos passaram. Loriolo Era um sublime rei. De rei a bobo Já tantos têm caído! Não admira Que um Bobo sendo Rei primasse tanto. Governava tão bem como governam Os reis de sangue azul e raça antiga, Demais gastava pouco e, se não fosse Seu amor pelas alvas formosuras, De certo que na lista dos monarcas Ele ficava sendo o Rei Sovina.
 
Enfim era um Monarca de mão-cheia. Tinha só um defeito — vendo sangue Tinha frio no ventre; e desmaiava Ao luzir de uma espada era nervoso! Ninguém falava nisso. — Até a giba, A figura de anão, a pele escura, Aquela boca negra escancarada (E que nem dentes amarelos tinha P'ra ser de Adamastor), as gâmbias finas, Eram tipo dos quadros dos pintores. Se pintavam Adônis ou Cupido, Copiavam o Rei em corpo inteiro, E o ouro das moedas, que trazia. A ventosa bochecha os beiços grossos, O porcino perfil e a cabeleira, Era beijado com fervor e culto.
 
XI Loriolo envelhecia entre os aplausos, Dando a mão a beijar à fidalguia. Demais um sabichão fizera um livro Em vinte e tantos volumões in-fólio, Obra cheia de mapas e figuras Em que provava que por linha reta De Hércules descendia Loriolo E portanto de Júpiter Tonante. E apresentou as certidões em cópia De óbito e nascimento e batistério, E até de casamento, e para prova De que nas veias puras do Monarca Não correra a mais leve bastardia. É inútil dizer que os tais volumes Nada contavam sobre o Pai, porqueiro Como o do Santo Papa Sixto Quinto, E sobre a mãe do Rei, a velha Mória Que vendera perus, Deus sabe o resto! Nos tempos folgazões da mocidade!
 
XII Um dia o reino cem navios tocam. São piratas do Norte! são Normandos! Infrene multidão nas praias corre, Levando tudo a ferro até os frades. Matam, queimam, saqueiam, furtam moças. E a infrene turba corre até aos paços.
 
XIII Enquanto vem a campo a fidalguia Armada pied en cap, espada em punho, Loriolo, sem fala, nos apertos Nas adegas se esconde.
 
Embalde o chamam, Embalde corre voz que dos Normandos Emissário de paz o Rei procura. El-Rei suou de susto a roupa inteira. Nem era de admirar, que a reis e povo, Como ao bicho-da-seda a trovoada, Camisas de onze `-aras apavoram E fazem frio aparições de forca.
 
XIV Um soldado Normando que buscava Nas adegas reais alguma pinga, Mete a verruma numa velha pipa. Um grito sai dali, mas não licores. O soldado feroz destampa o nicho; Agarra um vulto dentro, mas somente Sente nas mãos vazia cabeleira Desembainha a torva durindana. Nas cavernas da pipa, e nas cavernas Do coração do Rei reboa o golpe. Estala-se o tonel de meio a meio. Entretanto o bom Rei que não falava, Sujo da lia da ruinosa pipa,
 
Mais morto do que vivo (já pensando Que seu reino acabava num espeto Como o reino do galo), às cambalhotas Rola aos pés do soldado, chora e treme, Gagueja de pavor nos calafrios E pelo amor de Deus perdão implora.
 
XV O soldado, maroto e bom gaiato, Agarra às costas o real trambolho, Como um vilão que à feira leva um porco, E no meio do pátio, entre os despojos, De pernas para o ar e cara suja Atira o Bobo
 
— El-Rei! clama um fidalgo.
 
XVI Porém o Rei não fala… Sua e treme.
 
"Singofredo o pirata aqui me envia. (Diz ao Rei o pacífico Mercúrio, O Arauto de paz que vem de bordo): Eu venho aqui propor-vos um tratado. Por direito de espada e por herança Singofredo é senhor destes países. Ele vem reclamar sua coroa. Se o Rei não se opuser, não corre sangue; Senão hão de fazê-lo em sarrabulho, Puxado pelo nariz o encher de lado, E espetar-lhe a careta sobre um mastro. Singofredo o feroz exige apenas Que o Rei deixando o cetro deste reino Seja sempre na corte Rei da Lua. Loriolo virá ao seu caminho Trajando seu gibão amarelado Com remendos de cor, e campainhas,
 
Meias roxas e gorro afunilado".
 
XVII Loriolo suspira. O povo espera. Pela face do Bobo corre a furto Uma lágrima trêmula. — É desgraça Tendo subido a Rei, voltar...
 
Nem ousa O nome proferir de sua infâmia.
 
De repente uma ideia o ilumina... Deu uma das antigas gargalhadas, Inda em trajes de rei graceja e pula.
 
Foi uma dança cômica, fantástica, Um riso que doía — tão gelado Coava o coração!... Estava doido... Dançou a gargalhar... caiu exausto, Caiu sem movimento sobre o lodo... Escutaram-lhe o peito. Estava morto.
 
Ora o pirata, o invasor Normando Era filho da nossa conhecida, Que, posto não pudesse com acerto Dizer quem era o pai de seu boêmio Afirmava contudo afoitamente Que, em todo o caso, tinha jus ao trono.
 
Reina pela cidade a bebedeira, E bebendo à saúde do bastardo O Bobo que foi rei ninguém sepulta...
 
Bem vês, amigo Puff, que neste conto Em poucos versos digo histórias longas; — Amores, mortes, e no trono um bobo E sobre o lodo um rei que não se enterra.
 
— Muito embora a mulher as roupas façam, Eu provo que o burel não faz o monge, E um bobo é sempre um bobo. Mostro ainda De meu estro no vário cosmorama Um rei que numa pipa o trono perde. E um bastardo que o pai dizer não pode E em nome de dois pais, ambos em dúvida, Vem na sangueira reclamar seu nome.
 
Um outro só com isso dera a lume Um poema em dez cantos. Sou conciso; Não ouso tanto: dou somente ideias, Esboço aqui apenas meu enredo.
 
Puff! olá, meu Puff! Estás dormindo, Prosaico beberrão! Acorda um pouco! Bebeu todo o meu vinho — a empada foi-se Não resta-me esperança! Este demônio De um poeta como eu nem vale um murro!
 
UM HOMEM DA PLATEIA (interrompendo) Silêncio! fora a peça! que maçada! Até o ponto dorme a sono solto!

 

 

                                                                  Álvares de Azevedo

 

 

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