Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORAGEM DE VIVER / Carpinejar
CORAGEM DE VIVER / Carpinejar

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Era para ser um livro a quatro mãos: as minhas e as de minha mãe. Mas daí me dei conta de que ela está em mim. Nunca soltou a minha mão: então, como escrever sem ela?
No fim, é uma obra mais dela do que minha, pois resgato o que absorvi em sua companhia. Sãos os seus pensamentos, lições e fábulas à paisana, como se estivéssemos andando ainda pelas ruas arborizadas do bairro Petrópolis, em Porto Alegre (RS), apenas parando para admirar a floração escandalosa de um flamboyant ou a delicadeza das pétalas de mão-de-deus.
Não há pessoa mais especial em minha vida. Eu escrevo o que naturalmente conversamos. Até já sei quando ela me fala algo importante para que eu anote. O tom de voz é sempre sussurrado, aveludado, sublinhando a frase no ar: “Não se esqueça disso!”.
Minha mãe me ensinou a ler quando a escola desistiu de mim. Jamais me apresentou o diagnóstico de retardo mental de minha infância (descobri, adulto, mexendo nas pastinhas do escritório, à procura do histórico escolar). Ela me ajudou a criar a minha filha, Mariana, quando eu era universitário. Ela me acolheu em sua casa quando me separei. Ela comprou parte da edição do meu primeiro livro sem que eu soubesse – achei que estava fazendo sucesso (a editora nunca descobriu).
Costumo afirmar: entre um anjo e minha mãe, caminho, sem dúvida, na direção dela.
Coragem de viver não é a biografia de Maria Carpi, mas a biografia do amor de seu filho pela sua mãe.

 

 

 

 

Nossa bagagem é o coração cheio

Minha mãe conta que está com dois avisos-prévios debaixo da porta: um coletivo, da pandemia, e outro pessoal, pela idade avançada.

Ela nem acredita que desfrutou de um terço a mais do tempo que os seus pais viveram.

Diferentemente de mim, minha mãe não tem mãe e pai para telefonar e desabafar. A ausência de ambos desperta uma vontade maior de ser seu amigo e ocupar um pouquinho o espaço de majestosas ausências.

A mãe nunca me confessou ter medo da morte. Talvez porque não tenha mesmo.

Ela diz que não vai morrer por agora, pois ainda tem algo a dizer.

Não conheço tamanha sabedoria para explicar o nosso fim. Só morremos quando não temos mais nada a falar. Quando o silêncio é perfeito. Quando já cumprimos o nosso destino.

Não partimos jamais antes da hora. Não somos chamados sem que possamos ouvir o outro lado. Nossa bagagem é o coração cheio.

Não devemos nem nos desesperar pelo futuro. O desfecho é quando estamos esclarecidos, quando o nosso enigma está solucionado, quando deixamos sentido para quem amamos, quando passamos uma mensagem do que representou a nossa passagem.

O morto não sofre com a sua morte. São os vivos que não suportam a saudade.


Não subestime a fé

Você que me lê e não crê que possa refazer a sua vida, que se julga desprovida de alternativas, que está presa a um casamento infeliz, dependente financeiramente, que possui filhos e colocou na cabeça que não pode se separar e deixá-los à mercê do destino, sem um ofício para sustentá-los. Eu retruco que o desespero é uma miragem: é capaz de renascer quantas vezes quiser, só precisa de si. Não deve seguir um amor que é falta de liberdade por pânico material.

Não subestime a esperança, não despreze a sua garra.

Minha mãe se separou de meu pai aos 40 anos. Não dispunha de conta e bens, ficou com quatro filhos para cuidar e as despesas do mês para pagar. Quatro filhos não é pouca boca.

Acha que ela permaneceu chorando? Até chorou, mas chorou se movimentando. Não deitou na cama pelo luxo de chorar. Não tinha tempo a perder com as lágrimas, elas também corriam apressadas pelo rosto.

Não sei como conseguiu, mas conseguiu. Nosso padrão caiu drasticamente. Encontrou uma vaga na universidade para lecionar como professora substituta. Um quebra-galho que se apressou em agradecer. De madrugada, estudava para concurso público. Não me lembro dela dormindo. Quando eu ia deitar, sua cama estava vazia. Quando eu despertava para a escola, sua cama continuava vazia.

Obrigada a trabalhar durante o dia, emancipou os filhos. Os quatro receberam o desígnio do cuidado mútuo, ainda que pequenos e adolescentes. Não era permitido abrir a porta para estranhos. Olhávamos quem chegava pela janela. Eu lavava a louça, Rodrigo arrumava os quartos, Miguel varria, Carla se encarregava das roupas.

Foi um período de carestia, mas de imensa solidariedade. Ninguém reclamava à toa. Ninguém brigava. Ninguém protestava pela ausência de chocolate e de salgadinhos na despensa ou de dinheiro para merenda, como os demais colegas. Entendíamos que experimentávamos um período de exceção, de reconstrução dos laços. Nossa família virou um mutirão. Todos por um, um por todos.

Atravessamos dois anos economizando luz e água, não saindo em nenhum momento para algum restaurante ou festa, abdicando de presentes de aniversário e Natal, trocando incentivos, de mãos dadas, de braços dados, de riso previamente doado.

Jamais fui tão feliz na infância. Por não ter nada, éramos tudo um para o outro.


Todos são filhos únicos

Não vou mentir que não sofria de ciúme dos meus irmãos. Aposto que era ciúme recíproco, de quem controlava cada gesto materno para denunciar um favorecimento.

Irmãos estão sempre achando que o outro é o predileto, atentos para eventual reclamação.

Fiscalizávamos as fatias do pudim, o número de rodelas de salame no pão, os elogios, o valor dos presentes. Se alguém recebia menos, já se portava como vítima.

A democracia deveria ser uma tensão em casa para a mãe. Não poderia existir engano.

Quantas vezes ela teve de responder que nos amava indiscriminadamente?

Carla achava que Rodrigo era o favorito. Eu achava que Carla era a favorita. Rodrigo achava que eu era o favorito. Rodrigo, Carla e eu achávamos que Miguel era o favorito, que achava, como caçula, que os três eram favoritos porque chegaram antes dele.

Ela gastou parte de sua serenidade apartando as ingratas brigas na mesa e no quarto. Até que uma noite desabafou:

– Todos são filhos únicos, e fim de papo.

Finalmente nos calamos. Ela concedia atenção particular para cada um de nós, de tal maneira que todos estavam certos.


O último desejo

Antes de um concurso, a mãe questionava o que ansiávamos comer. Era como o último desejo no corredor da prova.

Cozinhava o prato preferido do candidato enquanto os demais tinham que se contentar com o cardápio do dia.

Também oferecia carona, também ficava do lado de fora do prédio rezando o seu terço, numa cadeira de praia que sempre carregava no porta-malas.

Ela nos acompanhava para ter certeza de que não iríamos nos apressar no teste, de que usaríamos inteiramente o tempo disponível para revisar as questões.

Quando estava pronto para desistir, enxergava pelo janelão da sala aquela mulher em vigília lá fora, no frio pampeano, e continuava a me concentrar para não desapontá-la.

Ela é uma veterana dos editais. Além de seus próprios exames, a mãe atravessou quatro vestibulares, dois concursos para o Ministério Público, um para juiz, uma seleção para a pós-graduação em Letras. E passou em todos eles com os seus filhos.

 

 

As sobras da personalidade

O que me incomodava muito era a pretensão materna de guardar comida para o jantar.

A impressão é que ela nos vigiava secretamente, de esguelha, para ver se eu e os irmãos rasparíamos as panelas. Não dizia nada, não estabelecia nenhuma censura prévia, até gostava da nossa compulsão prazerosa, da guerra dos talheres nas vasilhas, mas sabíamos que o seu maior luxo consistia em não se preocupar com a refeição noturna.

Eu só pensava na felicidade do agora, na fartura à disposição, em me empanturrar livremente. Não havia nenhuma compaixão na hora de pescar o último bolinho ou aquele bife próprio da gula. Ainda não havia conhecido a empatia. Disputava a reincidência com dentes afiados de gladiador.

Estranhamente, hoje, quando cozinho de manhã, aumento as porções de propósito, torcendo que tenha restos para o fim do dia. É a minha esperança, a recompensa da dedicação, o alívio de não retornar ao fogão novamente.

Não foram poucas as vezes que deixei de comer para proteger o excedente. Calculo mentalmente o andamento das colheradas.

Óbvio que não me expresso, a avareza é sempre constrangedora.

Minha esposa, inclusive, me incentiva a repetir:

– Percebo que ainda está com fome.

Dissimulo que não posso exagerar, que não desejo passar mal, que a elegância é parar antes de se sentir cheio.

A realidade é que eu me tornei as sobras da personalidade de minha mãe.


O sal do cuidado e o açúcar do afeto

Talvez seja o momento de fazer quentinhas reforçadas para a mãe, marmitas transbordando, com direito a refeição diária e noturna, ida e volta.

Até para compensar os milhares de potes emprestados na vida adulta com algum pudim, com um pedaço de bolo, com uma ambrosia cremosa, e que eram devolvidos ocos e lisos, sem nenhuma retribuição ou agrado à altura. Nós, filhos ingratos, achávamos que lembrar de lavar as vasilhas já demonstrava um carinho suficiente.

Mal notávamos nossa mesquinhez: recebíamos um pote cheio e devolvíamos vazio.


A decepção é um alerta

Para se decepcionar, você precisa ter intimidade.

A decepção é feita depois do entendimento de como o outro realmente é. Depende de um longo convívio. Depende do julgamento das virtudes e dos defeitos. Depende de estar próximo para comparar o antes e o depois. Depende de experimentar a fundo a personalidade, ultrapassando os disfarces da opinião.

Você decepciona pai e mãe, irmãos, filhos, namorado ou namorada, marido ou esposa, melhores amigos, não quem o conhece de fora.

Decepção é mágoa de uma transformação, aponta que rompeu alguma lealdade de origem. Deixou de ser fiel a si mesmo.

Tanto que sofro quando a minha mãe me censura, dizendo: “Você não é assim”.

Sei que mudei para pior, que estou mesquinho, egoísta, completamente equivocado.

A decepção materna é a minha maior intuição. Sou capaz de me enganar, jamais de enganá-la.

Ela me sabe de cor desde pequeno. Sabe meu jeito de fugir dos enfrentamentos, minhas manhas, minhas desculpas, minhas fugas. Não tem como convencê-la de que é só uma impressão. Guarda todas as minhas versões para perceber que me desviei da minha essência.

Ao ouvir sua reprimenda, paro tudo para restabelecer a rota. Ainda que seja necessário recuar para endireitar a minha estrada.


Pedir desculpa é dar o exemplo

Eu mandei vinhos para a minha mãezinha durante o isolamento social.

Em vez de somente me agradecer, ela ligou chorando, pedindo desculpa se algum dia me magoou, se algum dia foi injusta.

Eu desmoronei junto. Porque não há situação que emocione mais do que alguém pedir desculpa mesmo quando não errou.

Tantas pessoas precisam de retratação e adiam a conversa a vida inteira pelo orgulho, pela teimosia, pela avareza emocional, nunca se achando suficientemente erradas, e justamente quem não deve nada é quem vem dar o exemplo, mostrando que amar é fartura, que é melhor o excesso de cuidado do que a indiferença.

Eu só tenho a agradecer, não existia nenhum pecado no horizonte para aquela senhora, não havia nenhum fio de cabelo incômodo em suas mechas grisalhas, nenhuma mágoa que solicitasse o sopro no machucado, nenhum ressentimento que dependesse da atadura das palavras.

Ela que teimou para alargar meu céu da boca com fonoaudióloga, ela que sempre me socorreu e me defendeu do bullying, ela que me repassou um sentido de responsabilidade para a dor.

Ela é a pessoa mais próxima que conheci da beatitude, a mais rezadeira, a mais atenta com os filhos, a mais preocupada com as nossas contas no início do mês, e apareceu querendo o meu perdão?

Eu a perdoo, sim, pelas lágrimas que não cansam de vir desse susto que levei de sua generosidade.


Preserve a imagem dos outros, não somente a sua

“Bito. Eu soube que, sem permissão, colocaste uma foto minha em completo desalinho em tuas mensagens. Assim, estarás me impedindo de casar de novo. Bênção. Mãe.”

Mãezinha,

É verdade. Eu falhei grosseiramente. Peço desculpas. Ciúme de filho é pior do que de marido. Manifestei possessividade não mostrando o seu melhor e pirateando a sua privacidade.

Quem menospreza a companhia materna revela um medo de perdê-la, quem só critica sofre com receio de ser trocado. Ainda não me recuperei da insegurança de dividi-la com os meus três irmãos – aliás, um deles foi o meu delator.

Agi de modo leviano, contra o patrimônio de sua sedução. Não vou mais cometer o mesmo erro (juro que os meus próximos erros serão novos).

Além de ser a melhor poeta da família, tem o olhar mais terno e cativante entre nós. Suas oito décadas escondem uma adolescente muito curiosa e esperançosa.

Não cuidei de sua imagem. Espero que eu possa sensibilizar os seus pretendentes com uma segunda chance.

Ofereço o meu braço para levá-la ao altar, se assim me perdoar.

Feliz Dia das Mães!

Te amo,

Bito.

 

 

As virtudes não envelhecem

Qualquer problema de saúde que a minha mãe tenha, ela sempre diz que elogiaram as suas pernas. É o único diagnóstico que não me omite.

Aos 81 anos, Maria continua com pernas bonitas, roliças, como se fosse uma jovem de tranças, saindo de Guaporé (RS) para estudar na capital.

Têm sido assim as nossas conversas médicas.

Ela diz que foi ver os olhos, tento descobrir mais detalhes da cirurgia de catarata, e ela vem com o assunto das pernas.

Avisa que está cuidando da pressão, esforço-me para entender qual a última contagem e se tomará algum remédio para o controle, e volta a falar de suas pernas.

Ela comparece ao cardiologista e, por algum capricho estranho das palavras, encontra um nexo para descrever o estado perfeito de suas pernas.

Ela relata que foi ao dermatologista, que escamou a pele perigosa no pré-câncer, e me engana de novo com o esplendor de suas pernas.

Ela descreve suas sessões de fisioterapia e nunca me poupa de comentar das suas pernas.

Pitaco aqui, pitaco acolá, os seus joelhos não envelhecem, com a rigidez da confiança.

Questionei se ela não anda mostrando as suas pernas demais. O convênio de saúde já estava cheirando à safadeza.

— Não, meu filho, minhas pernas brilham.

— Como assim, brilham?

Entrei no seu raciocínio para verificar até onde ela iria, do mesmo jeito que costumamos fazer com as crianças, concordando, buscando ganhar confiança.

— Brilham como estrelas?

— Nada disso – retorquiu. – Como pedras redondas no leito de um rio.

Daí ela confessou que as suas pernas mantêm o colágeno porque vivia se banhando no rio Taquari, durante a infância.

— Eu caminhava sobre os cascalhos sem cair, trapezista das águas escuras. Eu pisava nas pedras que brilhavam ao sol. Havia uma escada no fundo para quem seguia a luz.

Aceitei que era uma parábola sobre a longevidade, mais do que uma lição de estética. Aquelas pedras rolam anos e anos em atrito umas com as outras, desfazendo as suas pontas cortantes. Da mesma maneira, em contato com as dificuldades da vida, perdemos os excessos, o supérfluo de nossas formas, evidenciando, com o tempo, apenas a nossa essência.

Minha mãe não tem pernas, mas seixos esculpidos pela natureza.


Homenagem ao que ficou para trás

Fui alfabetizado pela mãe. A escola me classificou como um caso perdido.

A mãe tirou licença do trabalho.

— Vou ensiná-lo em casa, e ele já volta, tá? – pediu um voto de confiança para a professora.

Minhas ausências foram abonadas por amor.

Eu entendi aquilo como férias só nossas.

Manhã, tarde e noite, ela montava jogos com letras: pulávamos amarelinha com as palavras escritas nas lajes das calçadas. Se eu acertava a dicção e a soletração de alguma delas, partia em direção ao céu com um pé só.

Voltei para a minha turma escrevendo e lendo melhor do que os meus colegas. Diagnóstico não é destino.

Sempre antes de abraçar a minha mãe, eu ando com uma única perna para homenagear o inferno que ficou para trás.

Ela conta vantagem de seu método: aquilo que se aprende em pedras não será apagado como numa folha.

Meu coração pela mãe é de pedra. Jamais quebra.

 

 

Distração é sonhar

Quando eu me distraía, a mãe não me chamava a atenção. Diferentemente da escola, onde ouvia o meu nome e a reprimenda do professor a cada vez que olhava demoradamente para cima ou para os lados.

Ao mergulhar nos meus pensamentos em sala de aula (o que correspondia a não mirar para a frente com absoluta devoção), sofria o castigo de ir ao quadro para resolver uma fórmula complicada de matemática. Enfrentava o constrangimento da dúvida.

Em casa, devaneava com liberdade pelas estradas dos sons e das evocações, retrocedia por alguma ideia perdida, escapava pelo quintal. Na escola, estava preso às rédeas, aos arreios e à viseira do uniforme, não poderia desobedecer à voz de comando. Todos entravam e saíam pela mesma porta.

Talvez, por isso, a minha incompetência para encaixar os meus sonhos no estudo.

Distrair-se é viver também o mundo interior. Não é uma ausência, pelo contrário, é estar pleno de si.


Pressa não é urgência

Ela nunca me pediu calma. Tampouco me acelerou.

Seu conselho mais frequente era “deixa estar”.

Deixa estar o aborrecimento. Deixa estar a euforia. O tempo vai ajeitando a emoção, arrumando um lugar para o pernoite. Na manhã seguinte, nada mais será urgente.

Deixar estar é perseverar sem atropelar ninguém, ser prudente sem parar os outros.


É pela fraqueza que a alegria entra

Nunca ouvi que sou forte. A força costuma ser associada ao homem pelo físico. Ninguém fala que o homem é forte emocionalmente, como um atributo psicológico.

Por outro lado, como escutei a minha mãe ser qualificada de forte. Foi o elogio que ela mais deve ter recebido em sua vida.

Não correspondia a uma homenagem, e sim a um machismo que a emparedava e a pressionava a resistir, não importando a realidade adversa.

Expressava uma cilada, não um agradecimento pela sua estatura moral. Uma forma de dizer que ela deveria continuar aguentando tudo. Que ela deveria suportar mais e mais privações. Que ela não precisava de nenhum socorro, nenhum alívio, já que se mostrava uma fortaleza. Que não deveria dividir as tarefas porque podia dar conta dos problemas alheios.

O que soava como estímulo a voar, vejo agora, retroativamente, mais se assemelhava a um empurrão ao precipício.

Isso só aumentou o seu isolamento, o seu desamparo, a dispensa da rede de afetos, dissuadindo-a de pedir ajuda, ou vacilar, ou mergulhar nas dúvidas sadias.

Qualquer pessoa, diante da falsa reverência, passa a criar uma couraça para blindar os seus sentimentos e se apoiar na resiliência como uma virtude insana.

Com dor, percebo o quanto ela terminou explorada ao longo da convivência, o quanto adiou a sua felicidade pessoal para satisfazer primeiramente quem estava próximo dela.

Se deixou por último, nunca chegando a sua vez.

Silenciou os sacrifícios para confirmar as expectativas.

Criou os filhos sozinha porque era forte. Trabalhou manhã, tarde e noite para sustentar a família porque era forte. Não podia chorar de cansaço e esgotamento porque era forte. Não podia rir e se desinteressar de suas obrigações porque era forte. Cuidou dos últimos dias de seus pais e liderou os enterros porque era forte. Jamais abriu espaço para uma nova história de amor porque era forte. Não se permitiu relaxar, viajar, ter os seus próprios prazeres, porque era forte. Não tirou férias, não desistiu de nada, porque era forte.

Ser forte é sinônimo de trabalho dobrado, de abuso, de saco de pancada. Desconfie do incentivo.


Não angustie a sua mãe à toa

Toda mãe é sensível. Qualquer coisa a machuca. Qualquer coisa a alegra.

Se possível, use pinça com as palavras.

Passe a limpo os pensamentos para não angustiá-la à toa.

Antes de desabafar, deveríamos pensar que ela vai incorporar os nossos medos como se fossem parte do seu próprio discurso. Vai sofrer por nós. Não conte aquilo que é apenas uma inquietação ou um pressentimento que ela tratará como verdade absoluta. Se você avisar para a mãe que pode perder o emprego, ela já estará distribuindo o seu currículo aos conhecidos.

Mãe não tem purgatório. Não espera que mude de ideia. Ela defende o filho das dores, mesmo que não sejam reais. Ela acredita primeiro em você, depois nos fatos.


Um galho de cada vez

Minha mãe me ensinou a subir em árvore e alcançar o telhado do vizinho.

Eu sei que é até engraçado imaginar uma adulta se esgueirando no tronco do pátio, sujando o vestido, ralando os joelhos, para mostrar o caminho mais fácil pela clareira das folhagens a uma criança. Foi o que aconteceu. Confiou a sua malandragem de menina. Repartiu a sua infância comigo.

Assim aprendi que, de galho em galho, é a árvore da vida. Não temos que subir tudo de uma vez, pela ânsia de atingir o topo. Mas ter força e equilíbrio de ir ao primeiro galho e somente pensar em ficar neste galho. Para depois ir a outro. E mais outro. E mais outro. Coragem é se contentar com uma etapa por vez. Não sofrer por aquilo que ainda não foi feito.

— Fique hoje neste galho, amanhã tenta o outro.

Toda manhã, eu mostrava que dominava mais um degrau da ameixeira. Balançava as pernas de satisfação.

— Olhe aonde cheguei!

Não buscava resolver tudo na hora. Dominava a árvore aos poucos, aproveitando os pequenos triunfos. Curtia a paisagem de cada lugar conquistado.


O direito de experimentar

Coragem de viver começa na infância, quando respeitamos o sagrado direito de os filhos brincarem. E brincarem de nada, ciscando o chão de casa.

Nunca tire da criança a sua solidão. A solidão e o direito de perseguir a sua sombra pelas paredes.

Não é loucura conversar sozinho, loucura é jamais se ouvir.

Antes das múltiplas tarefas do dia a dia, o alimento da infância que perdura a vida inteira é o brinquedo com os pensamentos. Não o artefato do brinquedo, mas o brinquedo das fantasias, para espantar e entender o medo.

O medo de barata, de rato, de escuro, é mínimo perto dos medos simbólicos e misteriosos que estão dentro da cabeça. A criança precisa enfrentá-los no teatro de vozes, imitando bichos, fazendo duelos imaginários.

O livro é lido pelas gravuras quando não sabemos ler. As gravuras são as experiências folheadas pelo nosso instinto de sobrevivência.

Deixe o pequeno fuçar a terra, morder plantas, provar poeira. Sua curiosidade, assim, jamais vai morrer.


Apoie-se no ponto de luz

Minha mãe realizava plantões de madrugada no Juizado da Infância e da Juventude. Atuava como advogada dos mais necessitados, de quem não desfrutava de recursos para custear um defensor particular.

Eu perguntei, aos 13 anos, qual era o segredo para acalmar o desespero de quem perdia tudo.

Ela me explicou que buscava na pessoa um ponto de apoio. Qualquer um, mesmo na escuridão, tem um ponto de luz. Um objetivo que ainda brilha.

Normalmente só tratamos das consequências dos problemas. E pioramos a situação. Ao passo que, se encontrarmos o que motiva o outro, o rosto começa a clarear, e aquele que é atendido lembrará o que é indispensável no meio da tristeza.

A justiça é uma retrospectiva das nossas crenças, respondendo à pergunta “Por quem vivemos?” mais do que “Por que vivemos?”. Voltamos para aquele tempo em que realmente confiamos em nós. A causa terá sucesso ao recuperarmos a fé.


Esvazie as gavetas

Logo que ingressou na carreira, na época no Juizado de Menores, viu que aconteceria uma operação chamada carinhosamente de Papai Noel, em dezembro. Ela se animou, pensou que seria um socorro festivo e afetivo às crianças carentes. Imaginou provisões para as famílias necessitadas – pois o ideal é ajudar a família para, assim, ajudar a criança.

Na hora do patrulhamento, qual o seu choque e mal-estar ao descobrir que se tratava de uma varredura no centro de Porto Alegre para retirar pequenos pedintes das proximidades das lojas e enviá-los à Febem, agora Fase (no Rio Grande do Sul), para que não incomodassem e constrangessem os consumidores.

Por mais que tenha brigado, não conseguiu suspender a truculenta faxina e a manutenção das aparências, que escondiam as desigualdades nos altos muros das instituições corretivas.

Os oficiais de justiça fizeram de conta que ela, por ser nova no emprego, não compreendia como a burocracia estatal funcionava. Deram um desconto, quando a sua integridade jamais aceitaria barganha.

Desde então, a sua frustração criou um hábito em casa: ninguém recebe presente se não esvaziar as próprias gavetas. Antes de ganhar uma lembrança, temos que ceder roupas e brinquedos para entidades assistenciais.

O apego não pode ser maior do que a solidariedade. Derrubamos cabides, escolhemos o que não mais nos serve, selecionamos conjuntamente o que desencadeará história inédita no corpo do outro.

Respeitamos o princípio de que tudo o que não é vestido e empregado nos últimos seis meses deve ser passado adiante. Não usar algo por tanto tempo acaba por provar que não fará falta.

Transformamos o bem parado em nosso armário em bem ativo na vida de alguém.

Nem sempre a entrega se desdobrava sem resistência. Eu e os irmãos trapaceávamos, ocultando jogos antigos e peças supersticiosas debaixo das camas.

Mas, no momento de mesquinharia, em que não pretendia dar coisa alguma naquele ano, tive objetos subtraídos na marra. Minhas cenas de birra não convenciam a mãe perto da orfandade real e material de vários lares que já havia visitado no exercício da profissão.

A mãe me explicava depois:

— Seu choro fingido não vale nada, comovente é o sorriso desprevenido de quem recebe a doação.

Somos egoístas com aquilo que guardamos, acostumados a acumular e jamais antever o sofrimento do próximo. Talvez porque interpretamos a mendicância equivocadamente como oportunismo, como se não trabalhar fosse uma opção para aquelas pessoas pedindo moedas e trocos na rua, não uma fatalidade social. Partimos do raciocínio torto de que elas preferem estar à mercê de favores, de que não é uma humilhação imposta pela ausência de oportunidades, e sim um gesto de malemolência.

Natal é empacotar os nossos objetos com igual empreendimento e esforço ao de uma mudança de residência. A ressalva é que o frete é por dentro, uma migração de mentalidade mais do que de endereço.

 

 

A lágrima e o suspiro

Minha mãe valoriza mais o suspiro do que o choro. Pois o suspiro entrega uma nostalgia honesta, um perdão sincero, um agradecimento do fundo da memória. É o vento que antecede as palavras mais autênticas, as confissões mais extraordinárias.

— As lágrimas são do corpo, os suspiros são da alma.


Tristeza não é dor

A coragem de viver requer discernimento para não confundir a dor com a tristeza.

Dor é um lugar dentro de nós. Tristeza é um momento.

Dor fica, nos adaptamos a ela, encontramos um jeito de conviver e oferecer espaço. Já a tristeza passa.

Dor é corpo, tristeza é a roupa que muda conforme o dia.

Dor é residência, tristeza é hóspede.

As tristezas nos debilitam e nos enfraquecem. Não podemos nos agarrar ao seu fluxo impreciso.

A dor nos torna mais fortes, generosos e receptivos. Não há como evitá-la, é um ciclo necessário quando perdemos alguém ou algo que amamos.

Tristeza é narcisista, está ligada a uma situação de desvalia ou de carência a ser superada. Dor é empatia com os nossos limites.

Tanto que choramos na tristeza, e não conseguimos mover as lágrimas na dor. A dor demora para falar.

Minha mãe pedia: “Seja firme com a tristeza para mandá-la embora, mas cordial com a dor para aceitá-la”.


Agradeça também o que não aconteceu

A mãe cultiva o hábito de agradecer tudo o que não teve.

“Que bom que não conheci a Grécia. Que bom que não casei de novo. Que bom que não publiquei o livro antes. Que bom que não fui chamada para aquele emprego.”

Eu ficava assustado com essa insólita reza de comemorar o que não aconteceu.

— O que não ocorreu tem um sentido maior do que sou capaz de entender. Fazer só as minhas vontades seria empobrecer o cotidiano. Se você não sabe o que pode vir para você, qualquer coisa que chega é importante. Não perco o zelo, a atenção, a espontaneidade. Se soubéssemos o futuro, desprezaríamos os pequenos acontecimentos. E a vida seria previsível, monótona, tediosa, cercada apenas dos grandes fatos. Desprezaríamos a delicadeza do inesperado. Eu me surpreendo com o meio em vez de esperar o meu fim.

Para a mãe, a gratidão é alternar o olhar: agradecer o que temos e muito mais o que não temos.

 

 

Até breve

“Até breve” é estar pronto para voltar. “Adeus” é estar pronto somente para ir.


Quando quem amamos morre, não devemos dizer “adeus”, mas “até breve”.

Deus criou o mundo e disse “até breve”.


Perceber é melhor do que ver

Minha mãe diferencia ver de perceber.

Ver é aparência, perceber é essência.

Ver é visualizar rapidamente, perceber é escutar demoradamente.

Ver é esquecer, perceber é memorizar.

Ver é passar, perceber é ficar.

Ver alguém é não se importar, perceber é entender.

Ver é quantidade, perceber é qualidade.

Ver é numerar, perceber é nomear.

Ver é elevador, perceber é degrau por degrau da escada.

Ver é mudar de assunto, perceber é beijar as palavras.

Ver é repetir, perceber é descobrir.

Ver é estar, perceber é ser.

Ver é externo, perceber é interno.

Ver é fingir, perceber é sentir.

Quando amamos, percebemos muito além do que enxergamos. Muito além do que está à nossa frente.


Ria de você mesmo

Já flagrei a minha mãe rindo sozinha. Não falando sozinha, gargalhando sozinha.

Não estava assistindo a um programa ou acompanhando uma mensagem no celular. Ria de seus pensamentos. De uma conexão emocional só dela.

— De que está rindo? – quis me certificar de que não havia enlouquecido.

— De mim, para mim.

Ela nomeou esses instantes de cócegas das lembranças. Às vezes, recordar faz cócegas.

E lembrava unicamente das suas gafes.

— A humildade não é humilhação, mas nobreza frente ao infortúnio. Saber quem somos é ter coragem de persistir, apesar do discordante julgamento alheio.

Eu adotei essa terapia, essa cartilha dos tombos, que nos ensina a oferecer a mão para nossas próprias quedas no passado.

Em vez ajudar a levantar o meu eu de ontem, o eu de hoje se deita também ao solo. E não paramos de rir de todos que estão de pé nos encarando.

A melhor alegria é aquela que ninguém mais entende.


A felicidade cura o medo

As pessoas só têm medos: medo de casar, medo de envelhecer, medo da solidão, medo das dúvidas, medo das certezas, medo do futuro incerto, medo do passado traumático, medo de ser feliz, medo de fracassar, medo de engordar, medo de não falar a coisa certa, medo de não ter o que escrever e postar nas redes sociais, medo de perder o emprego, medo de ser sincero, medo de mentir, medo de tomar medicação, medo de adoecer e não perceber, medo da insegurança, medo de depender de alguém, medo de ser muito livre.

Não desvendaram que o antídoto do medo não é a coragem, mas a felicidade.


Flor do impossível

Certa vez, minha mãe viu uma flor esplêndida que brotara no muro. Floresceu escondida.

A mãe me apontou o achado.

— Ela nasceu do impossível, viu? Achou um meio de crescer na pedra.

Eu fiquei maravilhado com aquela planta aérea, que não denunciava pela aparência como alcançara tal proeza. Não havia terra nenhuma por perto.

— O impossível é o nosso medo. Sem ele, somos possíveis. Não diga “nunca posso fazer”, festeje que é um novo jeito de fazer. Ainda que o jardim seja a parede.

Eu compreendi que, por trás de cada coisa, de cada lugar, de cada acontecimento, longe de tudo e perto do que não vemos, há uma flor do impossível.

 

 

O toco escreve igual

Ficava aflito que a minha mãe utilizava o lápis até a última casca de madeira, mesmo mal cabendo em sua mão.

Não se conseguia nem enxergar com o que ela estava escrevendo. Aquele que observasse de longe concluiria que anotava com a unha.

O que me leva a crer que a mãe esculpia. Mais próxima da página do que o costume, à semelhança de um cinzel entalhando as letras.

Os lápis que os filhos descartavam dos estudos, ela os reaproveitava em um estojo. Para nós, os miúdos gravetos eram um cemitério; para ela, um hospital.

Ela espantava a nossa pena:

— Um toco de lápis e uma caneta de ouro têm o mesmo valor. Anotam igual.


Antes da alegria, o amor

Vida é paciência: um dia inteiro recolhendo e cortando lenha para desfrutar de algumas horas perto do fogo.

Despendemos sempre mais tempo para organizar a alegria do que para saboreá-la.

O amor tem idêntico processo – há pessoas que misturam amar com a ânsia de ser feliz. É dedicação além da recompensa da quietude e do bem-estar. Implica gostar de estar a caminho, gostar do processo, gostar da responsabilidade, gostar de fazer parte de um roteiro, nem sempre sendo o protagonista.

Ser feliz não é se apequenar ao instante de prazer. A verdadeira felicidade se espalha nas sombras, nas oscilações e no suor solitário.

O amor é o antes, não pode ser reduzido a sua comemoração.

 

 

Ajude a ser ajudado

A mãe vivia colaborando com entidades carentes. Parte do seu salário ia para doação. Nunca negava um depósito ou um boleto. As correspondências se acumulavam na gaveta do escritório.

Eu brinquei com a mãe que ela já tinha conquistado mais de uma cadeira no céu. Podia guardar lugar para quem desejasse. Ganharia um ingresso de brinde, para acompanhante.

Ela se ofendeu com a minha chacota. Tanto que veio o sermão.

— Não faço nada de mais. Ajudar é simples. Difícil é ajudar alguém a nos ajudar. Nenhum ato se compara quando consentimos que alguém nos ajude. Daí eu penso: Eu ajudei que alguém me ajudasse.

Firmou um nó em minha cabeça. Será que ela pretendia me ajudar a ajudá-la?


Deixe algo para Deus

Ester foi a minha catequista e uma valiosa amiga materna. Jurava que eu seria santo – talvez tenha sido o seu único pecado.

Numa de suas confissões com o padre Alfredo, da Igreja São Sebastião, em Porto Alegre (RS), Ester não moderava o seu martírio, não freava a autoflagelação.

— Não fiz isso, deixei de fazer aquilo, não participei, me omiti etc., etc., etc.

Antes da absolvição, o padre concluiu:

— Bom, bom, podia deixar algo para Deus fazer.


A infância tudo pode

Aos 12 anos, a minha mãe se divertia na Noite de São João, no Colégio Scalabrini, em Guaporé. Não desejava ir embora da festa até a fogueira terminar. Enquanto havia fogo, havia claridade.

Ao cessar das chamas, um colega desafiou a turma:

— Quem tem fé caminhe sobre as brasas.

Ela não esperou a dúvida crescer. Tirou os sapatos pretos, as meias brancas e, menina de tranças, andou devagar no braseiro.

Não se queimou. A infância tudo pode.

Entretanto, a mãe jamais faria de novo. Não é mais criança.

 

 

Tomada de consciência

— Mãe, estava preocupado, não viu as minhas ligações?

— Não tinha visto, deixei a minha alma carregando.

 

 

Há vida além da nossa vida em gaiolas

— Os pássaros do vô fugiram!

Quando reportei para a mãe que o meu primo soltou todos os pássaros das gaiolas do avô paterno, ela me alertou que não se tratava de uma fuga.

— Eles partiram para se encontrarem de novo.

Nenhuma separação é triste, não corresponde a virar as costas, porém assumir que uma fase acabou.

— Eles não estão mais por perto, agora abrem a imensidão para nós, que há vida além da nossa vida em gaiolas.


A sobrevivência pelos bons modos

A educação salva.

Brigas não se desdobram, discussões não chegam às raias dos fatos, inimizades não prosperam.

Mantendo a sua educação, você pode salvar a própria vida. Parece que ela é um acessório, porém é a mais contundente arma pessoal.

Calar-se quando os ânimos estão exaltados, moderar as palavras e recuar no beco sem saída do orgulho, afastar-se quando os olhos do outro estão faiscando na pedra de amolar da raiva.

Sobrevivência é aquele desaforo que guardou, aquela aspereza que não roubou o seu tato, aquela fragilidade que não mencionou para ganhar um debate.

Minha mãe é a prova do respeito redentor. Eu nem teria nascido se não fosse por ele.

Aos 4 anos, sozinha no quintal, jogou pedras em uma cobra aos seus pés. Agiu com rapidez somente porque ela mostrou a língua.

Criança pode até não se assustar com a ameaça, porém antevê o veneno. A pureza é um radar.


A realidade dos filhos, a fantasia dos netos

No nascimento dos filhos, cortamos o cordão umbilical dos sonhos. Dos netos, cortamos o cordão umbilical da realidade. Inspiramos os filhos a serem reais, inspiramos os netos a serem fantasiosos.


Esperança e expectativa

Toda pessoa é imprevisível. Não existe fórmula.

Quando você planeja algo, convicto de que vai agradar, é xingado porque não consultou antes. Quando você tem a certeza de que será xingado, em consideração a experiências anteriores malogradas, é surpreendido pela compreensão.

Não cante a vitória, não espere a derrota durante a partida.

Minha mãe confessa que não tem mais expectativa. Nem em relação aos filhos. Nem em relação aos amigos. Que possam amá-la mais ou menos de acordo com as atitudes dela.

Expectativa é para quem não conheceu a esperança. Esperança é fazer independentemente do resultado.


Mudar é assumir as decisões

Você mudará ou a vida vai mudá-lo. Não existe como se defender da transformação.

O que julgávamos como um erro era um acerto.

O que julgávamos como um descaminho era o melhor caminho.

O que julgávamos como desperdício era o nosso combustível.

O que julgávamos como falta de assunto era confiança.

 

 

A compaixão

Quando alguém briga com o amigo, ao voltar a rir, perdoa a raiva.

Quando alguém se separa de uma relação, ao voltar a amar, perdoa o divórcio.

Quando um filho perde os pais, ao voltar a sair, perdoa a saudade.

Mas quando uma mãe tem que enterrar o seu filho, na inversão dos ciclos, Deus é quem pede perdão.


Os medos são necessários para não ter medo do fim

— Lembra do receio de nadar no mar e ser tragado pelas ondas?

— Lembra do receio de andar de bicicleta e se esfolar na queda?

— Lembra do receio de se declarar e não ser correspondido?

— Lembro, mãe.

— Essas coragens vêm acumuladas, perto do próprio fim. Os terrores vencidos anteriormente servirão para atravessar a morte e amar a despedida. O adeus reúne os medos superados de uma vida. Fomos treinados a não temer mais nada.


Enfim, de sapatos

Minha avó materna alegava que iria entrar no céu de sapatos diante de tantas pernadas em vida.

— Não precisarei me descalçar para Deus.

Eu me pego fantasiando que a nonna atravessa os vales verdejantes com seus tamancos de madeira.

Desconfio que ela não parou de trabalhar, segue com a bacia de roupas na cabeça. Nem sequer a morte serviu de aposentadoria.

A virtude da paciência concederá o privilégio de levar algum objeto pessoal para o outro lado.


O sonho é uma nova lembrança

Minha mãe sonhou com a sua mãe.

Quando você sonha com alguém que partiu, é como se fosse uma lembrança nova, tardia, avulsa, que ganha para adicionar à memória e diminuir a saudade. Dificilmente esquecerá ao despertar, tamanha a impressão nítida de realidade. Não é um sonho como outro, é uma visita.

O portão da residência encontrava-se aberto. Minha mãe entrou e cuidou para não escorregar no limo dos degraus.

Ela espia pela janela detrás do limoeiro em flor, embaçada pelo vapor da cozinha. Uma luz vem do interior, a fornalha do fogão a lenha.

Sua mãe permanecia distraída com os seus afazeres. Logo ela, cheia de intuição.

A mãe se aproxima para vê-la mais de perto. Não existe convergência entre quem está dentro e quem está fora. Não trocam olhares, por mais que Maria sinta-se presente pelo olfato dos temperos.

A mãe da mãe limpa o rosto, seca o seu suor no avental.

Tudo termina sem começar. Tudo começa sem terminar.

O fruto ainda não podia ser colhido do pátio.

 

 

Debaixo das cascas dos meus dias

Tenho os meus truques para despertar a felicidade em mim.

Um deles é cortar laranjas ou maçãs. Faço como a minha avó: tento tirar a casca inteira sem romper as voltas, em longas espirais.

É uma forma de recuperar a minha inteireza, a minha unidade. Ter algo em minhas mãos que não vai se quebrar. Lapidar uma joia do efêmero. Produzir instantes de beleza e arrebatamento do que seria jogado fora.

Eu a observava em minha infância, sentado no banco alto da cozinha, e me encantava com o quanto ela mantinha a concentração, como se o canivete fosse uma linha de costura – obstinada com a perfeição – rente ao miolo. Parecia que estava fazendo pontos em um machucado. Parecia que ela estava colocando a casca de volta, em vez de tirá-la.

Cortava ao redor, sem deixar que se partisse, iniciando o movimento de descida exatamente do cabo. Circundava a esfera lentamente, segurando a frágil saia com a outra mão.

Assim que ela terminava, me alcançava as rodas coloridas para brincar. Eu usava as argolas como alvo para tentar arremessar as bolinhas de gude dentro delas no pátio.

Os meus melhores brinquedos estão na estante de minha imaginação.


As espirais da saudade

Minha mãe diz que tem tanta saudade de sua mãe que corta as cascas de laranja e as pendura junto às panelas na cozinha.

E diz mais. Diz suspirando que o enfeite é melhor do que um retrato na parede, pois reconstitui o cheiro da pessoa. Que é uma maneira de a vó continuar cozinhando com ela. Que a casca é o terço que ela fabrica artesanalmente toda a manhã para rezarem juntas. Que a mãe puxa o Pai-Nosso e a vó completa com a Ave-Maria. Que ninguém para de conversar com os seus mortos. Que os conselhos ficam com os gestos. Que as lembranças voltam com novas lições. Que as raízes estão em nossos dedos. Que as nossas origens são encharcadas de nosso destino. Que o nosso destino é encharcado de nossas origens. Que o amor, para acontecer, só precisa de uma fruta repartida uma única vez.

 

 

A mais sincera retribuição

Perdi os meus avós cedo, antes dos 10 anos.

Morrer, para mim, será cozinhar para eles, coisa que nunca pude fazer.

Representará o meu primeiro gesto praticado no paraíso.

Tenho essa gratidão engasgada. Não contei com idade para retribuir os almoços e jantares deliciosos do interior, que eles me serviam durante as férias escolares. Ainda são os meus pratos prediletos, inesquecíveis, insubstituíveis: a galinha recheada, a sopa de canederli, as polentas na chapa com queijo, tudo com gosto de fogão a lenha.

Não me esqueço da sensação de me sentir amado, com a manta no pescoço, ouvindo o crepitar da madeira, enquanto aguardava o meu prato. Eles colocavam uma almofada na cadeira para que eu parecesse adulto e apanhasse as porções no centro da mesa.

Não há sentido em repetir a degustação das benesses de minha meninice, empobreceria a experiência que coleciono, até porque já fui feliz um dia.

Quero oferecer um banquete aos dois e que cada um fique sentado à cabeceira aguardando a surpresa.

Abrirei um vinho, montarei uma colorida entrada de folhas, não deixarei que se levantem por nada: meus convidados especiais, com a única missão de provar o tempero da minha admiração. Prolongarei as etapas da conversa, com direito a licor e sobremesa.

Molharei os meus olhos castanhos no mel dos olhos deles. Nenhuma urgência nos atrapalhará mais. Não teremos mais pressa para morrer. Não sofreremos de cansaço, nem da necessidade de acordar cedo. Nenhum câncer nos tirará mais de perto.

Acho que assarei um cordeiro com alecrim e ervas finas, menu ensinado pela minha mãe e dedicado aos domingos. Cortarei fatias finas, que derretem na boca, absolutamente transparentes. Ao levantar o garfo, poderão enxergar a lua do outro lado. De doce, optarei pela ambrosia, imitando visualmente as montanhas de neblina da serra e reproduzindo o cheiro de cravo e canela da mata.

Mostrarei o quanto foram decisivos, devido ao colo e paciência dados, para que eu enfrentasse os dissabores da cidade grande. Beijarei as suas testas, salgando a minha boca de saudade.

Contarei histórias da família, lembrando tudo que eles não viveram conosco. Vão rir de como os netos e bisnetos cresceram com personalidades diferentes.

Sou tão esperançoso que não enxergo fim no fim, mas vida ainda a ser vivida, vida ainda a ser agradecida, vida ainda a ser festejada.

Morrer trará a glória de cozinhar finalmente para os meus nonnos.


O poema voou

A mãe apanhava borboleta no jardim como se fosse folha de ofício.

As duas asas fechadas, coloridas, tremendo como pálpebras, na ponta dos seus dedos.

Ela fazia de conta que iria escrever poemas em sua superfície. E, de repente, soltava-a, para o nosso espanto.

— Ih, esse poema voou, então não vou escrever hoje. Só me resta viver mais um dia, como uma borboleta.

 

 

Raridades entre nós

É raro um adulto que faz as contas com os dedos. E tão bonito, parece que ele volta a ser criança. Seria ainda mais lindo se usasse palitos de fósforo para chegar a uma conclusão matemática.

Assim como é raro quem ainda risca fósforos, diante do predomínio de micro-ondas e fogões automáticos.

É raro alguém que escreve cartas e se dá ao trabalho de ir até a agência de Correios para enviar uma mensagem que poderia ser enviada rapidamente pelo WhatsApp ou por e-mail.

Assim como é raro escolher o selo adequado e mais bonito para determinada correspondência.

É raro uma pessoa se esquecer do nome de um filme ou de um ator e passar o dia ruminando até recordá-lo, sem recorrer à onipotência do Google.

Assim como é raro pesquisar em enciclopédias e consultar dicionários de papel.

É raro um indivíduo que viaja para longe não se socorrer com a voz mecânica do Waze na estrada.

Assim como é raro aquele que prefere desdobrar mapas e decifrar a localização de um destino seguindo as linhas miúdas vermelhas e azuis das rodovias.

É raro fotografar com câmera de filme, que permite descobrir o que foi capturado somente na revelação das fotos, semanas depois.

Assim como é raro distribuir porta-retratos dos familiares e amigos pela casa.

É raro pedir orientação num posto de gasolina e buscar decorar o roteiro verbal da esquerda e da direita dado pelo frentista.

Assim como é raro parar em um restaurante para descobrir o cardápio no escuro.

Minha mãe é essa raridade. Uma sobrevivente do mundo analógico. Prossegue exercitando a memória, superando lapsos e completando as palavras cruzadas sem jamais conferir as soluções nas últimas páginas.


Arteira com carinho

De menina, a mãe foi arteira, impossível, bagunceira. Mas nunca desprovida de carinho.

Havia um propósito de movimentar o mundo.

Ela e sua melhor amiga Nayr jamais se aquietavam. Conspiravam juntas. Quando necessitavam ir mais longe e se aventurar nos morros, tomavam carona em segredo na charrete do leiteiro.

Empreendiam proezas que valiam a reprimenda.

No inverno, quando as árvores do quintal estavam sem frutos, as duas roubavam mosquiteiros dos quartos de casa e cobriam os galhos.

As árvores embranqueciam repentinamente, agasalhadas com os véus. Noivas da geada.


Não separe a criança de suas amizades

Numa noite de trovoada, ainda criança, sem poder sair, a mãe testou a sua capacidade de persuasão. Do telefone fixo do hotel de seus pais, engrossou a voz para imitar uma secretária e discou, de uma caderneta de hóspedes, a dezenas de pessoas, uma a uma, para comparecerem no colégio Scalabrini. A diretora tinha um assunto urgente a tratar. Também ligou para os padres do Seminário argumentando que as freiras estavam desesperadas para se confessar.

E todos foram e não entenderam nada.

A partir de uma investigação do trote, com os registros da Telefônica de Guaporé, rastreou-se a origem da afronta: o Hotel Carpi.

 

 

O alto clero e a direção da cidade convocaram minha mãe a se apresentar rapidamente e lhe alcançaram o Livro da Vergonha e uma caneta:

— Assina!

Assim, minha mãe entrou na imortalidade da enciclopédia das piores transgressões entre os alunos. Concedeu o seu primeiro autógrafo na obra proibida. Um início promissor para a trajetória acidentada de poeta, se lembrarmos que Carlos Drummond de Andrade acabou expulso da escola em Nova Friburgo (RJ), por insubordinação mental.

Mas o castigo mais grave que ela amargou foi ter que se separar da Nayr, posta em outra turma. É antieducativo apartar amizades, não importa a indisciplina.


A vocação é um segredo

As duas coisas que a mãe mais amava na sua cidadezinha eram o circo e os ciganos.

Quando a companhia artística atracava na beira da estrada, ela deixava a rotina dos temas escolares para conferir as estacas fincadas e a montagem da grande lona. Rodeava os trailers, entrevistava os integrantes, assistia aos ensaios, conferia a ração fornecida aos animais.

Num desses encontros com o oásis de bicicletas de rodas altas e pernas-de-pau, teve o vislumbre de um dia ser trapezista, de encurvar o corpo e voar pela cúpula colorida.

Só que, na noite de estreia, os pais a botaram para dormir e levaram a irmã mais velha para o espetáculo.

Por semanas, ela só repetia um resmungo:

— A Cléa não entende nada de circo! A Cléa não entende nada de circo! A Cléa não entende nada de circo!

Os sonhos, para uma criança, ainda são segredos. Não custa perguntar para não machucar à toa.


Família é a que escolhemos

Não havia maior festa do que a dos ciganos, unindo cantoria e comilança.

A mãe entrava em suas tendas e colhia elogios de suas copiosas tranças. Queriam saber o que fortalecia os fios, se o brilho vinha do azeite.

Ela se via livre entre os seus iguais. Na hora de apresentá-la para os amigos adultos, seus pais brincavam:

— Mariazinha é morena, enquanto a sua irmã é loira, porque nós a pegamos de uns ciganos que passaram por aqui.

O problema é que, numa dessas passagens pelo acampamento, um velho de olhos firmes e pretos, coberto de colares, tocou em seu ombro e acertou o seu nome.

— Maria...

A mãe saiu correndo, em disparada, desabalada para a casa, crente que havia sido reconhecida e que seria retirada de sua família.


Onde está o tesouro?

Circulava uma lenda entre os alunos do ensino fundamental, por bilhetinho que vinha do fundão da sala.

Atrás do frigorífico abandonado existia um poço coberto de rosas-d’água. Junto dele estaria enterrado um escravizado com uma riqueza incontável de barras de ouro.

Se alguém tivesse a valentia de invocar o espírito, poderia descobrir o paradeiro da fortuna desaparecida. Precisava repetir as seguintes palavras: “Em nome do precioso sangue de Jesus Cristo, apareça e diga onde está o tesouro”.

Minha mãe abraçou a cruzada com os seus colegas. Assim que chegaram perto das pedras em círculo, armou-se um temporal de trovões e raios furiosos. A turma debandou, resistiu apenas a mãe, determinada a encarar a assombração.

Ela pronunciou a jura sagrada de olhos fechados, soprano no teatro vazio e escuro da chuva.

Ninguém apareceu. Voltou para casa toda encharcada, de nenhuma forma desiludida. Mantinha a convicção de que havia libertado o escravizado. Liberdade e coragem são sinônimos. O tesouro era ele.


Não reduza as possibilidades da vida

Morávamos ao lado de um terreno baldio.

Bastava pular o muro do quintal que se descortinava uma floresta desconhecida para desbravar.

Nos dias úteis, ficávamos no pátio. Nos feriados e nos fins de semana, ficávamos no terreno baldio.

Dependia de quanto tempo tínhamos para brincar.

Havia a ambição de que a mãe comprasse o lote e trocasse a vegetação crespa e selvagem pela grama reta e certinha de um campo de futebol.

— Por que transformar o terreno baldio em uma só coisa, se ele pode ser qualquer coisa pela imaginação de vocês? – ela nos questionava.

Tinha razão. Perderíamos as bananeiras, as pitangueiras, as goiabeiras, as frutas de graça, as trilhas abertas, a investigação dos objetos jogados fora, os esconderijos da nossa solidão.

O terreno baldio era uma espécie de jardim da fantasia.


Carregar o chão consigo

Era natural seguir com o ensino na capital. Os pais, na maior parte agricultores, se viravam para pagar os estudos. Depois, os filhos crescidos retribuíam o investimento mandando parte de seu salário em envelopes mensais.

A família se espalhava para sobreviver.

Maria teve que se despedir de sua cidade Guaporé, para cursar o colégio Bom Conselho, na época internato, no centro de Porto Alegre. Antes de entrar no ônibus com a sua mala, ela encheu os seus bolsos de terra.

Ia moendo os grãos durante o trajeto, encardindo as unhas, como se fosse café. Para o chão da sua infância nunca mais abandonar o cheiro das mãos.


Autoria desconhecida

Minha mãe é mais desconhecida do que publicada. Mais da metade de sua obra ainda não foi lida. Ela não é visível aos olhos do público. Conhecemos partes, fragmentos, a península de seu lápis.

Editou 18 livros e mantém 23 inéditos em um baú no escritório. Lembra um Fernando Pessoa de saia.

Argumenta que não tem pressa, que não escreve somente para o seu tempo, mas para outros tempos que, como ela, não nasceram ainda.

Ela organiza as obras como quem borda, como quem prepara um enxoval para a sua morte.

Já me segredou que, assim que põe no papel, não lembra mais de seus versos. Transformam-se em material anônimo. Ela é apenas um instrumento da criação. Um encosto de sussurros do vento. Seus cabelos brancos são ramos de oliveira por onde ela passa.

Contestei essa possessão. Óbvio que recordaria aquilo que redigiu.

Armei uma cilada. Copiei, com a minha letra, dois poemas de um manuscrito não publicado.

Após uma semana, eu a visitei, eufórico, falando que tinha feito textos lindos, perguntando se eu poderia ler para ela.

— Claro! – respondeu.

Sentamos na varanda, partilhamos o chimarrão.

Busquei o meu tom mais agudo.

Li o primeiro poema. A mãe não falou nada, apenas ruminava em silêncio.

Antes do fim do segundo poema, ela me interrompeu. Com um sorriso maroto, eu já comemorava que a havia desmascarado, que ela havia descoberto o roubo.

— São seus melhores poemas! Como você evoluiu!


Não estrague a saudade com a reclamação

Não vou dizer que eu queria estar com você em seu aniversário. Que eu queria estar em Porto Alegre para abraçá-la. Que eu queria estar de avental na cozinha preparando bife com fritas, prato de que mais gosta. Que eu queria estar ouvindo algum poema que escreveu de manhãzinha, enquanto os pássaros ainda dormiam. Que eu queria estar fazendo o sinal da cruz em sua testa e devolvendo as bênçãos que já molhou em minha pele. Que eu queria passar o dia inteiro revisando nossas histórias de vida, nossos percalços, nossa teimosia para manter a família unida. Que eu queria estar com seus netos naquele sofá cheio de mantas coloridas, para rir de como eles cresceram.

Não falarei do que nos falta hoje, mas de tudo o que existe em demasia de você em mim. Do quanto você me transformou de filho em pai, de filho em marido. Do quanto virei homem porque uma mulher me inspirou a ser sensível e me ofereceu o exemplo. Ninguém nasce homem, torna-se homem aprendendo a respeitar a sua mãe.

Do quanto você me permitiu ser inteiro preenchendo as minhas metades, me segurando no colo, me alcançando as suas mãos de parreira e me confortando com o seu hálito de horta, me incentivando a não desistir do amor e da cordialidade, a esfriar a raiva e aquecer a esperança. Eu dava a outra face para apanhar da vida porque eu sabia que me beijava na face que ficava na sombra.

Não será a saudade que vai roubar de mim a gratidão. Nem a saudade pode estragar a alegria de ter nascido de seu ventre e ter ressuscitado tantas vezes de seu coração.


O riso de quem já sofreu

Você pode ter ciúme do riso dos apaixonados, ter orgulho das gargalhadas dos amigos, ter quebranto pelo riso tímido de alguém, ter solidariedade com o riso envergonhado de uma gafe ou de um tombo, ter a cumplicidade do riso com a sua companhia no meio do lugar errado com as pessoas erradas, ter compaixão com o riso histérico do desespero.

Mas não há riso mais bonito, mais simétrico, mais perfeito que o da serenidade de quem superou o sofrimento e recuperou o gosto de viver. O riso do equilíbrio refeito. O riso da volta por cima. O riso que é menos boca, mais cicatriz. O riso que mostra metade da cortina dos dentes e metade da janela da boca. O riso insinuando: “Eu consegui, pensei que não ia conseguir, mas consegui”.

Os lábios não estarão escancarados – têm uma fresta apenas para soprar a esperança. Entretanto, a alma estará aberta, passeando outra vez para fora.

Para alguns, vai parecer que não é natural, até entenderem o quanto o outro demorou para atingi-lo, o que já precisou passar para reavê-lo.

O riso daquele que saiu do leito de um hospital, o riso daquele que deixou para trás um amor adoecido, o riso daquele que venceu uma angústia pessoal, um trauma de família.

O riso doce depois de uma experiência amarga, o riso com as rugas dos olhos, o riso elegante e despojado da resiliência, o riso culto de uma dor sarada, o riso da fé não mais cega, o riso da confissão do sacrifício de quem sabe que a vida não é fácil e simples e, ainda assim, vale a pena. De quem experimentou o fim de algo, chegou ao limite de si, e sobreviveu.

É um riso todo de verdade, um pouco dolorido, levantado com esforço; nasceu com difícil trabalho de parto.

 

 

                                                                  Fabrício Carpinejar

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades