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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DATILOGRAFE M PARA MORRER / Alec Baurer
DATILOGRAFE M PARA MORRER / Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Capítulo 1
Recorte do Globe and Mail, do Canadá.
O famoso arqueólogo de Viena, Monsieur Amyr Sachsen-Dorf, foi hospitalizado depois de ser ferido por uma mina terrestre num campo aberto de Luanda. O guia angolano, que acompanhava o vienense, teve o pé esquerdo amputado em resultado da explosão.
Monsieur Sachsen-Dorf é descendente do ramo francês ilegítimo de uma antiga e ilustre família austro-húngara que nunca reconheceu seus parentes franceses. Além disso, é marido de Mrs. Sonia Pompadière, filha de Sebastian Pompadière, um dos novos xeques do petróleo de Bombaim.
A transferência do arqueólogo para sua cidade-natal deve ocorrer dentro dos próximos dias.

 

 

 

 

— Amyr!

Amyr Sachsen-Dorf sentia frio. Muito frio.

Não, sentia-se como se tivesse ido ao Polo Norte. E voltado. E talvez ido de novo.

Ele não tinha ideia de quanto tempo estava deitado na esteira de palha arrumada sobre o sofá. Uma hora, talvez? Duas? Aliás, que dia era agora? Quarta-feira? Ou quinta-feira? Ele não se lembrava do dia da semana.

Ou se era de noite. Devia ser de noite. Parecia estar escuro... Maldição, como estava frio!

Talvez ele tivesse trazido um iceberg para casa. Ou talvez ainda estivesse no Polo Norte.

Amyr Sachsen-Dorf esticou o pescoço para a direita e para a esquerda antes de voltar a repousá-lo no travesseiro. Conhecia aquele lugar. Ele estava na sua própria casa. Mansão Carruthers. Sim, na sala de estar da Mansão Carruthers.

Podia ouvir a sua mulher caminhando pelo quarto. Sonia. Sua Sonia. Imaginou que ela ficara ao lado da cama durante todo o tempo de sua convalescença. Isso não o surpreendeu, mas sentia-se grato pelos cuidados. Ela trouxera sopa para ele, e Monsieur Sachsen-Dorf se recordava vagamente de vê-la conversando com um médico.

De repente, Amyr Sachsen-Dorf sentiu um toque em seu ombro. Um toque de dedos leves e suaves. Ele tentou se mexer... mas não conseguiu virar a cabeça. Estava tão cansado... Todo o corpo doía e a perna deu uma fisgada de dor. Só queria voltar a dormir. Mas estava tão frio.

— Amyr!

Como se ouvisse seus pensamentos, alguém ajeitou os lençóis e Amyr Sachsen-Dorf rolou para o lado, movimentando a perna boa por baixo das cobertas. Ah! Santo Deus, um pouco de calor!

Porém, logo em seguida, as cobertas rolaram e caíram no chão. Amyr Sachsen-Dorf reuniu toda a sua reserva de energia, abriu os olhos e...

Não era Sonia. Sua Sonia. Era um homem seco... alto... com feições aristocráticas.

— Gerbran? — disse ele, rouco. — Gerbran Oliviê?

O homem com feições aristocráticas sorriu e cumprimentou:

— Bom dia.

Era realmente Gerbran Oliviê. Seu grande amigo Gerbran Oliviê. Há quanto tempo que não se viam! Dois... três anos.

Gerbran Oliviê sorria e Monsier Sachsen-Dorf perguntou de novo:

— Por que você está aqui? Você deveria estar...

Onde Gerbran deveria estar? Alemanha, ele achava. Não era isso?

O visitante abanou a cabeça.

— Devo desculpas por aparecer a essa hora. Mas sua mulher ligou para mim, na Alemanha.

— Você avisou que viria?

— Acho que não — disse Gerbran, dando uma risadinha. — Sabe como é que são as coisas. É tanta correria.

— Tome um drinque. Gim, tônica e limão?

— Não, obrigado. Nunca tomo gim.

Amyr Sachsen-Dorf olhou para seu amigo.

Se alguém quisesse resumir Gerbran Oliviê em uma única palavra, essa palavra seria austeridade. Tudo em Monsieur Oliviê era austero. A sua gravata era impecável, a sua camisa de finíssima qualidade, o seu terno o produto de um alfaiate de primeira categoria.

Amyr disse:

— Meu caro Gerbran! Estou feliz em vê-lo. Prosperou muito, hein!

— Mais ou menos — disse Gerbran, sem entusiasmo.

Amyr soltou um gemido e fechou outra vez os olhos.

— Amyr? — chamou Gerbran Oliviê, a voz estranhamente urgente. — Amyr?

Gerbran pegou a mão dele e começou a dar tapinhas nela. Olhando o gesso que envolvia as pernas do amigo, disse:

— Parece que o acidente foi feio!

Ah! A frase fatal. Sobre o acidente! Sempre o maldito acidente!

Amyr reabriu os olhos. Olhos, aliás, que pareciam ser a única coisa viva naquele rosto anguloso.

Disse:

— Talvez fosse melhor você dar uma lida no jornal. Julgue por você mesmo.

Estendeu a mão trêmula e delgada na direção do piano e jogou o jornal para que Gerbran pudesse ver o artigo.

— Leia isso aqui.

Gerbran se sentou e deu uma olhada no artigo.

Assim que começou a ler, sua boca virou uma linha severa. As primeiras três palavras já esclareciam tudo.

Explosão fere arqueólogo?

— Eu sei — disse Amyr Sachsen-Dorf. — Continue lendo.

Gerbran tornou a baixar os olhos para o artigo.

— Fi-fiu — assobiou. — Você deve ter sangrado igual um porco — disse.

— Mais ou menos — disse Amyr Sachsen-Dorf. — Eu tive sorte. O angolano, pobre infeliz, sofreu o impacto maior.

— Não se preocupe com o angolano. Eu me informei. Ele não morreu.

— Mas ficou sem o pé esquerdo!

— Você podia ter morrido — disse Gerbran.

— Podia sim.

— Acha isso engraçado? — disparou Gerbran.

— Na verdade, não — respondeu o arqueólogo.

Gerbran olhou para uma mesa de jogo coberta de feltro. Apanhou um pote de cerâmica e disse:

— Tudo por causa destes trastes! Você não devia arriscar a vida dessa maneira. Devia se tornar embaixador ou consultor de polícia, algo assim.

— Ah, que gentileza a sua! E ficar enfurnado numa salinha, encolhido como um siri, fingindo que estou gordo e feliz.

— O quê! Isso não é tão ruim não. Embaixadores têm uma vida muito boa, sim senhor!

— É claro que eles têm uma vida boa. Mas como é que eu gastaria os meus milhões?

Gerbran andou até a janela e olhou para fora.

— Ora, seria fácil gastar seus milhões! Faça umas reformas no quiosque, contrate um arquiteto.

Amyr se remexeu na esteira.

— Então você acha que investir na propriedade, construir alguns anexos, me deixaria feliz?

— Por que não? Veja, você tem quarenta e cinco anos, vive bem, não tem dívidas (não que eu saiba), saudável, bem casado... Você já fez o que a maioria de nós não fará em duzentos anos.

Amyr Sachsen-Dorf riu.

— Acha que sou bem casado?

— E não é? Você é um bobo, Amyr. É realmente muito bobo. Sonia adora você. Imagine isso! Você, o Indiana Jones de Viena, e Sonia, a filha de um rei do “ouro negro”! Ou vai me dizer que não ama mais sua esposa?

Amyr encolheu os ombros.

— Eu amo Sonia... amo de verdade. Mas... você sabe... com o tempo, as coisas mudam... um pouco aqui, um pouco ali.

— Por que vocês não fazem uma viagem? Há tantos lugares por aí. Suécia, Zurique... ou Frankfurt. Sim, vão para Frankfurt. Ou a um desses fiordes dinamarqueses...

Amyr abriu a boca para responder, mas, antes que ele começasse, Ma’am Pupu, a governanta, entrou na sala. Ma’am Pupu era uma mulher gorda, cujos cabelos negros e lisos se juntavam num coque, presos à nuca.

— Com licença, Monsieur — disse Ma’am Pupu.

— O que foi, Ma’am?

— Mr. Neill Brannigum deixou um recado, Monsieur.

— Ah, é? O que foi que ele disse?

— Ele disse que passará aqui hoje à tarde, por volta das 5h. Mr. Brannigum deseja saber se pode ser recebido nesse horário.

— Claro que sim, Ma’am.

— Perfeitamente, Monsieur.

Ma’am Pupu saiu da sala.

Amyr Sachsen-Dorf virou-se e olhou para seu amigo.

— Um conhecido meu, Neill Brannigum. Fomos colega de escola. O sujeito mais tímido de toda a Península Ibérica. É filho de um inglês abastado com uma dançarina italiana. — Fez uma pausa e acrescentou: — Interessante que Neill queira vir me ver. Ele não é propriamente a pessoa mais sociável do mundo!

Gerbran fez um meneio de cabeça.

— Talvez ele tenha lido sobre o acidente e queira ver se está tudo bem com você.

Falava de modo trivial, como se olhasse a situação de fora.

— Realmente deve ser isso — disse Amyr. — Neill sempre foi uma criança problemática. Foi expulso do colégio porque ateou fogo ao vestiário das meninas.

— Puxa, que emocionante! Um incendiário!

— Parece que elas riram dele, disseram que ele era um fracote, ou algo assim. Neill ficou muito irritado, comprou um galão com gasolina e jogou por todo o vestiário. Você não imagina o rolo!

Gerbran franziu a testa.

— Imagino. Deve ter sido horrível! Não entendo como você consegue falar com tanta simplicidade de gente assim. Um terrorista! E você vai recebê-lo em sua casa.

Amyr riu.

— E daí se Neill for um terrorista? — Ele bateu com o nó dos dedos na perna. — Está ouvindo isso? Gesso. Gesso puro. Eu sou indestrutível, não sou?


III

 

Mrs. Sonia Pompadière estava em seu quarto, diante do espelho oval. Com o olhar perdido, começou a tirar os vestidos do guarda-roupa e a espalhá-los sobre a cama.

Muito preocupada, Mrs. Sonia Pompadière provou o décimo vestido naquela manhã. Já conseguia ouvir a voz do marido ao vê-la chegar para o almoço: “Ué, alguém convidou a Grace Kelly? Faça-me o favor, Sonia!”.

Mordendo as unhas, Mrs. Pompadière descartou dois de seus vestidos preferidos. O vestido de tafetá de seda e tule, decorado com rosas de renda... e o vestido com mangas longas e bufantes, bordado à mão.

Em seu íntimo, Mrs. Pompadière conhecia as razões das críticas de seu marido. Na realidade, tudo era muito simples...

Amyr Sachsen-Dorf tinha deixado de amá-la.

Sim. Era a única explicação.

Vinte e seis, quase vinte e sete, anos de vida conjugal jogados na lata de lixo.

Amyr Sachsen-Dorf sempre fora um homem temperamental. Um homem cujos únicos prazeres na vida eram as suas descobertas arqueológicas e os seus estudos paleográficos... e toda aquela porcaria imprestável.

Sim, para Mrs. Pompadière aquelas tabuinhas, cilindros e tigelinhas não passavam disso: uma porcaria que não servia para nada.

E agora as coisas tinham piorado trinta vezes mais!

Pummm...

Amyr fora atingido por uma mina terrestre.

Para um homem acostumado a atravessar o Saara, a navegar corredeiras e cruzar pontes de cipó, ficar confinado a uma cama era a morte em vida.

A morte em vida, que frase mais absurda.

Os olhos dela se viraram para o relógio. Onze e quinze.

Muito preocupada, Mrs. Sonia Pompadière provou o décimo-primeiro vestido naquela manhã.


IV

 

Eram quatro horas da tarde quando o cupê parou junto ao meio-fio do pátio da Mansão Carruthers. Um homem saiu dele. A cabeça era atarracada e em forma de pera, com olhos grandes, tristonhos e (aparentemente) avermelhados. Subiu correndo os degraus e tocou a campainha.

Dali a meio minuto, Neill Brannigum foi conduzido para o ateliê, e a governanta (uma mulher um pouco acima do peso, notou ele) anunciou:

— Mr. Brannigum.

— Amyr!

— Neill.

Mrs. Pompadière deu um passo para trás, e contemplou o recém-chegado.

Amyr Sachsen-Dorf fez as apresentações com um tom austero:

— Mrs. Pompadière... minha amável esposa. E este é Neill Brannigum... um amigo do colégio.

Os olhos escrutinadores de Mrs. Pompadière pareceram absorver cada detalhe do visitante, até que este disse:

— Prazer, minha senhora.

Sujeito engraçado, pensou Mrs. Pompadière, pequeno, agitado, um espantalho! Parecia um ente alienígena que tivesse acabado de aterrissar no ateliê.

Balbuciando algo, Mrs. Pompadière fez um gesto gracioso e se retirou.

Neill removeu os óculos e deu um sorriso amarelo.

— Pompadière? Pompadière? Bonita. Um rosto fotogênico, sim senhor. Muito fotogênico.

— Acha? — perguntou Amyr.

— Por que não acharia? É sua esposa, meu nobre amigo.

Amyr disse:

— Você sabe que eu sofri um acidente meio... incapacitante, não sabe?

— É, eu li por aí — disse Neill Brannigum. — Ainda bem que essa passou de raspão. Teria sido uma perda enorme para a humanidade. Der Kaiser Amyr und seine grosse Reich! O imperador Amyr morto! Ah, teria sido uma tragédia arrasadora!

Amyr agora estava sentado, sua perna imobilizada esticada para a frente como um dente de marfim. Olhando para o amigo, murmurou:

— Espero que tenha feito boa viagem! O trânsito é terrível nesta época do ano.

— Sim, sim, foi ótima — disse Neill.

— Por onde esteve, Neill?

— Fiz de tudo. Negociei casas, promovi comícios... me tornei um homem multiuso.

— Enfim, multiplicou a conta bancária — sorriu Amyr.

— Deu para o gasto. Poderia ter sido melhor. Está bem, vou direto ao ponto. Vim aqui, Amyr, por que preciso de você. É uma coisa que só você pode fazer por mim.

— É mesmo? Do que se trata?

Embaraçado, Neill suspirou.

— É que, meu caro, isso é... é tão difícil para mim! — Depois acrescentou: — É minha primeira vez... eu nunca imaginei que...

— Neill, pare de enrolar. Você está noivo, é isso o que quer me dizer?

— Realmente, você acertou. Estou noivo...

— Muito bem. Por essa eu não esperava. Mas diga, quem é a felizarda?

— Ela é norueguesa, uma mulher maravilhosa.

O olhar dos dois se encontrou e Amyr esperou, a respiração suspensa, mas Neill apenas assentiu e disse:

— Henriette Lilinburg.

Amyr murmurou:

— Henriette Lilinburg. Certo. Continue...

— Ela é doce, carinhosa, trabalhadora e bonita. Bem, bonita para os meus padrões. Estudou na Bélgica, e gosta de pinturas abstratas. É filha ilegítima. O pai teve um caso com a neta de um curtidor de peles. Eu estou... apaixonado. Simplesmente não vivo mais sem ela.

— Vindo de você, é surpreendente.

— É patético, eu sei. Quando ela está longe é como se faltasse um de meus rins, um de meus membros.

— Amigo, que frisson!

— Eu penso a mesma coisa. Estou doente, não sei viver sem Henriette. É idiotice, não nego. Eu nunca gostei de uma mulher dessa forma. Sempre fui um homem solitário, vivi apenas para mim mesmo, sem dar satisfações a ninguém. E então, do nada, surge Henriette, tão segura de si, tão terna. Dizendo que queria dividir a sua vida comigo. Louca para trabalhar, mas sem emprego fixo. Foi aí que ela me falou que já esteve no Iraque, cavando fósseis. Lembrei logo de você, Amyr. Você poderia arrumar um trabalho para Henriette. Não um trabalho definitivo, sabe? Um trabalho temporário. Dois ou três meses.

— A-hã — murmurou Amyr.

— Henriette é organizada, cuidadosa, quase obcecada com a higiene. E eu sei que você costuma catalogar os seus achados científicos. Ela não vai desapontá-lo, Amyr. Ela pode colocar as coisas no lugar, assentar uma etiqueta... um carimbo. Osso de Australopithecus aqui, osso de Homo sapiens ali, osso de chimpanzé mais adiante... A única coisa que eu peço de você é que você faça um teste com ela, meu amigo, meu colega...

Amyr balançou a cabeça.

— Neill...

— Por favor, diga que sim!

Amyr deu um suspiro.

— Ou-ou, está bem. Vamos fazer o teste com sua musa. Acho que Gervois ficará feliz com uma nova ajudante.

— Quem é Gervois?

— Gervois Lutlum. Ele é meu secretário. Responsável pelos registros. Um rapaz de confiança, boa pessoa.

Neill se adiantou e apertou a mão do amigo com energia.

— Ah, Amyr — gemeu —, você é o cara. Eu vou... eu já vou indo! Tchau...

— Ei, você já vai? Pensei que ficaria para o jantar. Podemos preparar um kebab árabe, ou um sushi japonês...

— Não, não, Amyr. Quero... eu preciso falar com Henriette ainda hoje.

— Mas, Neill, não quer mesmo um kebab?

— Não, não, Amyr. Nada de kebab.

Antes de sair do ateliê, Neill lançou um último olhar para trás.

— Oh! Cara... Henriette vai ficar louca de felicidade!


V

 

O olhar distraído, o Juiz Warning percorreu o Palácio de Hofburg. Depois de subir as escadas, entrou no Museu Sissi. Havia uma exibição contando um pouco sobre a vida da Imperatriz Sissi (seu gosto por cuidados de beleza, sua vida difícil na Corte), incluindo uma menção ao seu assassinato em Genebra, na Suíça.

Naquela manhã, porém, os pensamentos do Juiz Warning estavam em outro nível espiritual. Jovens de suéter, um casal de turistas armênios, algumas moças que gracejavam diante de um retrato — tudo, tudo se movia em outro plano.

De repente, em meio ao rebuliço, o juiz percebeu o homem com um monóculo perto de uma obra de arte. Um homem delgado, muito garboso num paletó de linho branco, com o cabelo arrumado com uma camada especialmente generosa e resplandecente de gel. Uma camada dupla de gel.

— Grande Herr Fëll!

Edmund Fëll deu um salto de quase meio metro.

Fez uma reverência.

— Um Gottes willen! Meu caro Juiz Warning — respondeu Fëll assim que recuperou o fôlego. — De onde o senhor apareceu?

O Juiz Warning apontou para uma porta aberta.

— Dali — disse, com a voz inocente.

Trocaram um aperto de mãos cerimonioso.

Fëll balançou a cabeça, lembrando-se de uma ocasião em que ele, o juiz e o cadáver de uma prima-dona italiana tinham estado juntos num hotel dos Alpes.

Como uma teia, um sorriso se irradiou no rosto do magistrado.

— Meu caro amigo, que bom vê-lo! O que faz por aqui?

— Sou um voyeur das belas artes — disse Fëll.

— Que coisa formidável — disse o Juiz Warning. — Revê-lo assim, depois daquela tragédia com a cantora de ópera. O caso repercutiu em todo o continente europeu, sabia?

Discutiram alguns detalhes puramente jurídicos sobre o desfecho do caso.

— Visitando a família?

Fëll fez um sinal negativo.

— Não. Vim a trabalho. O sumiço da filha de um maquinista de Londres. A Scotland Yard descobriu que a moça tinha vindo para Viena.

— Uma fuga — disse o Juiz Warning com ar experiente.

— Sim. Pai opressivo... moça infeliz... rapaz que promete o sol e a lua...

— Solucionou o caso, suponho.

Fëll disse:

— Sim. Localizei a moça. A embaixada britânica cuidará do resto.

— Ah, outro sucesso na carreira! Parabéns.

— Nem tanto — respondeu Fëll, gravemente. — Ela estava morta.

— Oh — disse o juiz, pesaroso. — Bem, não surpreende, não é? É o mundo em que vivemos.

Fëll indicou as joias da realeza.

— É engraçado, quando se pensa bem.

— O que é engraçado?

— Tanto fulgor, tanto luxo... e a maior parcela da população vivendo na violência, em condições subumanas de violência.

O Juiz Warning abanou a mão num gesto depreciativo.

— Fazer o quê, não se pode alterar a marcha da civilização. Basta viajar por aí. Quanta gente vivendo na penúria, catando lixo para sobreviver. Os sírios afluindo para a Alemanha. Milhares de crianças fugindo da guerra civil na Nigéria. E aqui essas luzes... essas cores! É a vida, meu amigo. É a vida.

Devagar, Fëll meneou a cabeça, pensativo.

Uma bem-vestida e heterogênea multidão de visitantes gravitava languidamente em volta dos dois homens.

Fëll olhou para as pessoas. Pareciam deslumbradas, quase em transe. Viu mocinhas que se entupiam de doces e, mais adiante, uma senhora magra que conferia uma gravura com ar esnobe. O universo em miniatura: ali a ostentação, a fartura, e lá fora, nas vielas e becos, o crime, o assassinato, o mal em sua forma mais cruel.

Fëll foi separando as coisas em nichos em seu cérebro. Avaliava os sentimentos, as frustrações, daquela gente. A atenção do detetive foi desviada durante breves instantes por um casal. Um homem esguio, bem barbeado, que segurava a mão de uma mulher mais jovem. Fëll viu que a mulher ria e, gozando a sensação de felicidade, mostrava as peças de arte com o dedo. O homem (provavelmente, seu marido) sorria, maravilhado, ébrio de amor, perto dela, esquecido de si, esquecido de tudo.

O homem, Fëll viu, era um sujeito de aparência bastante comum, com trajes de um trabalhador braçal. Mas não era um trabalhador braçal — estava limpo e arrumado demais para isso. Além disso, ele mancava. Mancava da perna direita.

O Juiz Warning cutucou as costelas de Fëll.

— Sabe quem são?

— Nein — disse Fëll.

— É aquele estudioso... Monsieur Sachsen-Dorf. Que meses atrás quase virou cinzas por causa de uma mina terrestre.

— Ah — disse Fëll. — Aquela é a esposa?

Os olhos do Juiz Warning dançaram, os cantos da boca se curvaram para cima. Mas, antes que ele pudesse responder a pergunta, Monsieur Sachsen-Dorf percebeu os dois homens olhando para ele.

Daí a pouco o casal estava diante dos dois homens.

— Juiz Warning, quem diria! — disse Monsieur Sachsen-Dorf, tirando o chapéu.

O Juiz Warning cumpriu a função de mestre de cerimônias.

— Este é Edmund Fëll. Herr Fëll... estes são Amyr Sachsen-Dorf... e Henriette Lilinburg.

Fëll inclinou-se respeitosamente.

— Monsieur! Madame!

Amyr franziu a testa, tentando se lembrar do detetive.

— Não é possível! — exclamou. — O senhor é Edmund Fëll, o famoso criminalista?

— Na verdade, minha atividade é mais de caráter consultivo — disse Fëll.

— Não seja modesto! O senhor é uma lenda, um mito vivo. Acho que já deve ter virado um verbete na Wikipédia!

Admirado, Fëll arqueou uma sobrancelha.

— Não chega a tanto, Monsieur.

— Lembra-se desse nome, Henriette? — perguntou Monsieur Sachsen-Dorf virando-se para a mulher: — Fëll, o detetive que descobriu o paradeiro do Papiro Escarlate.

Abordada, Henriette Lilinburg fez um gesto de dúvida.

— Não sei, querido. Não tenho uma memória muito boa.

— Não diga isso, Henriette — disse Amyr. — A sua memória é prodigiosa. Mas então, juiz? Herr Fëll está hospedado com o senhor?

— Bem, não — sorriu o juiz.

Henriette Lilinburg repousou dois dedos no ombro de Monsieur Sachsen-Dorf.

— Convide-os para jantar conosco, querido.

Monsieur Sachsen-Dorf encarou a mulher de maneira estranha. Pelo menos na opinião de Fëll. Imaginou que talvez fosse possível que o homem sempre olhasse para ela assim. Mas achou que não.

— É claro! — disse o arqueólogo. — Venham jantar conosco! Sem dúvida, é uma ideia muito divertida. Sim... sim, com certeza... Tem algum compromisso? Que dia é melhor para o senhor?

— Qualquer dia está bom para mim — respondeu o Juiz Warning curvando o corpo em sinal de reverência.

— Ótimo... Pode ser amanhã à noite?

— Pode.

— Esplêndido. Esplêndido. Vou tomar nota na minha agenda. Será uma honra compartilhar a nossa mesa com duas personalidades tão ilustres.

Fëll examinou Monsieur Sachsen-Dorf. Era um homem moreno, irrequieto e cheio de energia, com olhos pretos fuzilantes. A mulher, loura, cílios pintados, quieta. A contradição não poderia ser maior, pensou o detetive.

— Estarei lá, Monsieur — disse o juiz.

— Às oito horas, pode ser?

— Pode.

— E o senhor, Herr Fëll? Vai vir, não vai?

— Estarei lá, Monsieur — disse Fëll.

Novos apertos de mão. O casal se afastou. Fëll seguiu os dois com o olhar por alguns instantes.

Fëll disse:

— Acho que preciso reformular minha pergunta. Ela não é a esposa dele, é?

O Juiz Warning moveu os ombros.

— Tem razão. Henriette Lilinburg não é a esposa. Ela é a amante. Dá para entender essa gente?


VI

 

Um café no bulevar Kärtner Strasse...

— Oh! — exclamou Serafine Sachsen-Dorf. — Oh, eu queria que ele estivesse morto! Morto e enterrado!

Na cadeira à sua frente, Gervois Lutlum olhou para o rosto atrevido da namorada.

— Fine! — disse Gervois Lutlum.

Serafine Sachsen-Dorf era linda, com cabelos cor de mel, lisos como uma cascata. Mas também era uma moça independente e corajosa. E talvez até um pouco perversa, pensou Gervois Lutlum.

O rapaz estendeu os dedos e tocou delicadamente a maçã do rosto dela.

— Acalme-se, Fine. Não pense dessa maneira. Afinal, ele é seu pai!

A boca da moça se abriu em um pequeno “o”.

— Meu pai? Meu pai! Um homem que trocou mamãe por aquela loura oxigenada! Ele não é meu pai! Mamãe não anda feliz. Você notou? Não, acho que não. Você não notaria. Acho que ninguém mais perceberia. Mas eu percebi.

— Se eu fosse você, não me meteria nesse assunto — disse Gervois.

— Mas é minha própria mãe — disse Serafine.

— Bem, ela devia aprender a cuidar de si mesma.

— Estou dizendo, mamãe é fraca.

— De qualquer forma — concluiu Gervois —, não há nada que você possa fazer a respeito.

Alguma coisa cintilou nos olhos de Serafine Sachsen-Dorf:

— Acha que eu não posso fazer nada, Gervois? Pois eu posso fazer sim, Gervois!

A sua fúria repentina atraiu olhares dos outros clientes do café.

Gervois Lutlum engoliu em seco. Cale essa boca, Fine! Cale a boca!

— Fine, fale mais baixo...

Serafine continuou:

— A minha vontade é pôr uma porção de láudano no prato de salmão deles, sabia? Oh! Como eu gostaria de vê-los morrendo. Sim, morrendo, Gervois! Você acha que aquela sirigaita é a culpada disso tudo? Não! Papai é o culpado! Papai poderia ter dito que não precisava de ninguém na oficina. Em vez disso, ele contratou aquela cabra para trabalhar com você, Gervois! Ela, aliás, que já tinha um noivo. Oh! Que raiva! Raiva!

Gervois olhou para a namorada com melancolia.

Naturalmente, ele e Serafine tinham vindo às escondidas para o bulevar. Gervois conhecia a doida obsessão de Monsieur Sachsen-Dorf com o bem-estar da filha. Uma filha que, justo ali, estava bolando um plano para matar o próprio pai!

— Calma, querida — disse Gervois. — É melhor...

Ele deixou a frase morrer.

Serafine arquejou.

— Calma? Você não faz a menor ideia de como é viver com essa gente, Gervois. Acordar e ver aquela mulher... aquela intrusa... na nossa sala de jantar. Ela, com os olhos de gata ferida, olhando para nós e dizendo: “Dormi tão mal esta noite!” ou: “Ai! Eu sinto uma dor nas costas!”. E daí que ela sente dor nas costas? Ela faz isso de propósito, para tirar a gente do sério. Não, e o pior é a atitude de papai! Cheio de ai-que-dó, ele vai lá e massageia as costas dela. Pobrezinha... Não, eu não vou falar baixo! Deixe que todo mundo ouça! Deixe que toda Viena ouça!

Para Gervois, Serafine estava fazendo muito barulho por nada. Estava cansado daquele assunto.

Gervois disse:

— Estou pensando em pedir demissão.

— Pedir demissão do emprego de aprendiz de arqueólogo? Ah, Gervois.

— Não aguento mais.

Serafine olhou para ele com uma ansiedade quase maternal.

— Mas Gervois, se pedir demissão, o que vai fazer?

— Ah, vou encontrar algo — respondeu o rapaz.

— Mas Gerry, falando sério, acha isso prudente? Quero dizer, papai gosta de você e você sabe que ele paga bem.

— E se eu me comportar direitinho ele pode me deixar todo o dinheiro dele?

— Bem, você vive choramingando que aquele seu tio-avô não deixou nada para você — lembrou Serafine.

— Estou pensando em zarpar de Viena.

— Morar no estrangeiro?

— Sim. No Japão, quem sabe.

— E você dispõe de algum capital?

— Sabe que não. Mas há um leque de atividades possíveis.

— Ser flanelinha, por exemplo?

— Precisa ser tão irônica, Serafine?

— Desculpe. Mas você não tem qualquer tipo de treinamento.

— Sou bom com cálculos e gosto da vida ao ar livre.

— Ah, Gervois — soluçou Serafine.

Gervois mudou de lugar. Então, num impulso, abraçou a namorada com força.

— Fine, Fine... Você é psicótica.

Serafine relaxou. Por um momento, tudo pareceu certo no mundo. Ou, se não certo, pelo menos normal. Ela estava em Viena, em um bulevar, sentada ao lado de seu namorado.

Nada poderia ser mais normal.


VII

 

Nivea Nerwcare terminou os alongamentos, espreguiçou-se e olhou para a fonte de Netuno. O dia tinha amanhecido com nevoeiro, frio e vento. Ótimo para uma boa ginástica.

Afastando o cabelo da testa, Nivea Nerwcare olhou para a mãe, que estava consultando a agenda eletrônica.

— Essa não, mamãe. A senhora veio a trabalho ou para se exercitar?

Madame Brigitte Nerwcare fez um gesto de derrota.

— Excuse moi, filha. Estou só revendo meus compromissos.

Essa era Madame Nerwcare. Não parava nunca. Diziam que ela era capaz de escrever uma monografia enquanto tirava um cochilo.

Nivea parecia uma cópia da mãe. Além das semelhanças físicas (era magra, 1m75 de altura, o nariz fino e delineado), Nivea possuía a mesma impetuosidade e vigor.

— Já chega, Madame. A senhora vai ser castigada por isso. Vamos caminhar pelo jardim e ir até o alto da colina.

— Ah, Ni! Eu estou tão cansada!

Secretamente, Madame Brigitte Nerwcare amava a filha, e faria qualquer coisa que fosse preciso por ela.

A filha olhou para ela.

— Algo a incomoda, mãe?

— Incomodar? Não. Por quê?

— Parece toda esquisita.

— Pareço?

— Mãe, tem algo no ar. Vamos, conte para mim.

— Nada mesmo. Quero dizer...

— Vamos, mãe, confesse.

Madame Nerwcare sorriu e, finalmente, disse:

— Para falar a verdade, Monsieur Sachsen-Dorf me convidou para jantar... E ele me pediu para incluir você.

Nivea se irritou.

— Não, eu? Mas eu não me dou com aquela gente. Lá só tem velharias e poeira de ruínas milenares.

— Quanta ingratidão! — disse Madame Nerwcare. — Você sabe que ele prometeu me nomear herdeira daquelas velharias.

— Ele é louco, isso sim. Mãe, aquele homem é bígamo. Ele tem duas mulheres!

— A vida pessoal dele não me interessa, Nivea. Imagine só, um dia toda a coleção de fósseis, itens de barro... tudo, tudo... será meu. Todos os museus franceses virão bater à nossa porta. Vou dar entrevistas para revistas de ciência e paleontologia. Não será incrível?

— Caia na real, mãe. Esse homem ainda viverá uns cinquenta anos. Quando ele morrer, a senhora já terá uns setenta, oitenta anos.

Nivea fez uma pausa, mordendo os lábios.

— A senhora vai mesmo jantar na casa de Monsieur Sachsen-Dorf?

— Vou sim — disse Madame Nerwcare.

Nivea suspirou.

— Está bem, eu vou com a senhora. Afinal, alguém tem que cuidar da senhora, não é, mãezinha?


VIII

 

Miss Suzan Victalle empurrou o laptop, indignada. Dirigiu-se ao hispânico que limpava a piscina perto do guarda-sol.

— Juan! Juan! Vá chamar o Signor Colbert, por favor.

— Sim, Miss.

Colbert Victalle, o marido, surgiu dali a alguns minutos. Chapéu branco, camisa aberta, uma bermuda e sandálias arrastando.

— Chamou, princesa? — perguntou preguiçosamente.

— Sim — disse Suzan Victalle. — Colbert, tia Henriette vai se casar de novo.

— Caramba! — exclamou ele. Em seguida, perguntou: — Quem é o cara?

— O cara é alguém que ela conheceu depois que foi para Viena.

— Ela não perdeu tempo, hein?

— Nem me fale. Em certos aspectos, titia não tem um pingo de juízo!

— Quem é ele?

— O nome dele é Amyr Sachsen-Dorf ou coisa parecida.

Colbert franziu a testa.

— O arqueólogo? O arqueólogo vienense?

— Sim.

— Bem, não sei muita coisa sobre ele — respondeu Colbert. — Me parece um tipo comum.

— É o homem errado para minha tia.

— Creio que ela seja a melhor pessoa para julgar isso — sorriu o marido.

— Ah, é? — retrucou Suzan. — Sente-se e leia isto, por favor.

Colbert Victalle puxou o laptop para junto de si e releu um trecho do e-mail, em voz alta:


... Eu não devia dizer as coisas dessa maneira, Suzan, mas estou simplesmente apaixonada por ele. Amyr é o melhor homem que eu já conheci. Culto e gentil... Ele disse que me levaria a Islamabad, Mashkan-shapir e Arade (nem sei onde ficam esses lugares!). Você sabe como eu sou, minha querida afilhada: adoro viajar, ter contato com outros povos. Parece que Amyr sente a mesma necessidade. Ele é impaciente, dinâmico e curioso.

A única coisa ruim é que Amyr é casado. A mulher (queria que você visse!) é tão desmiolada! Ela só pensa em se vestir bem e comprar casacos de pele. Às vezes me pergunto como é que ficaram juntos por tanto tempo... Eles têm uma filha, que não gosta de mim de jeito nenhum. Quero ficar com Amyr, e ele também quer ficar comigo. Nós nos amamos!

Suzan, espero que venha me ver em breve. Com saudades, etc...


Colbert murmurou algo como “pelas águas do Mediterrâneo”.

— Maluquice, não é? — disse a moça. — Titia se envolveu com alguém casado. Deve ser outro surto, é a única explicação. Precisamos interná-la num centro psiquiátrico, qualquer coisa. Como era o nome do namorado anterior?

— Neill... Neill sei-lá-quem — disse Colbert.

— Isso. Neill Brannigum. Um zero à esquerda, pobre diabo! Pelo menos, ele era solteiro.

— Em todo caso, Suzan, se sua tia quer se casar de novo...

Nivea atalhou:

— Ah, concordo plenamente com isso. Titia tem de se casar de novo. Sabe, ela sente falta de uma vida sexual. Mas um homem casado não, definitivamente não.

— Eu não sei... — Colbert calou-se indeciso.

— Não sabe o quê?!

— Não sei ao certo se o arqueólogo é o tipo errado para ela. Não acha que talvez, na verdade, você esteja, ahn... com ciúmes?

Suzan riu.

— Ciúmes? Eu? Não tem graça, Col, o assunto é sério demais. Esse homem é o tipo errado para titia.

— De qualquer forma — concluiu Colbert —, não há nada que você possa fazer a respeito.

Suzan balançou a cabeça de modo significativo.

— Pois eu vou para lá, Colbert! Eu vou para Viena.

— Você não vai fazer isso, vai?

— Vou sim, Col. Eu vou... antes que titia se meta em apuros.

Como um juiz que declarou uma sentença, Suzan caminhou rápida e agilmente para dentro de casa.

Colbert ficou com o olhar fixo na piscina. Murmurou:

— Meu Deus! Ela vai para Viena!


IX

 

Enquanto isso, em Viena...

Uma consternada Mrs. Pompadière dizia:

— Mande-a embora, é só o que eu peço! Voltaremos a viver como uma família. Só você, eu e Serafine. Nós éramos felizes, lembra-se? Éramos tão felizes!

Amyr Sachsen-Dorf se reclinou em sua poltrona de vime e bocejou, contemplando a esposa.

— Pare de dizer isso, Sonia! — disse ele.

Sonia Pompadière engoliu em seco para abafar um soluço.

— Ame, meu amor, você sempre foi tão paciente comigo. Você sempre foi tão bom para mim. Eu amo você... Volte para mim! Fique comigo! Fique perto de mim... como meu marido. Meu marido. Exclusivamente meu. Sem concorrentes. Sem... Madame Lilinburg!

Houve uma pausa, então, no momento seguinte, Amyr gesticulou encerrando o assunto:

— Não recomece, Sonia! Por favor, não recomece! Aliás, se puder me dar licença! Eu convidei umas pessoas para o jantar. Preciso supervisionar os preparativos.

A mulher disse alguma coisa em resposta, tão baixo que ele não conseguiu entender a frase.

— O que você disse? — perguntou Amyr.

— Eu disse... — Ela pigarreou. Então voltou a falar. — Disse que não acho que seja sensato.

Ele a encarou, muito sério.

— O que você não acha que seja sensato?

Havia um lampejo de angústia nos olhos de Mrs. Pompadière. Ela disse:

— O jantar. Essa... Essa gente em nossa casa.

Amyr perguntou, com certa agressividade:

— É mesmo?

— Sim.

— Por causa do que está acontecendo entre nós?

Ela fechou os olhos.

— Sim.

E, dizendo isso, virou as costas e saiu.

Mrs. Pompadière e suas retiradas estratégicas!

Amyr lembrou que, durante o mês inteiro... toda manhã... tinha escutado as mesmas frases:

— Mande Henriette embora. Você é meu, Ame. Meu!

Como uma goteira pingando no mesmo lugar, sem dia de folga, sem feriado.

O fato é que ele, Amyr Sachsen-Dorf, era apenas uma vítima das circunstâncias. Afinal, agora ele amava outra mulher... e não por culpa dele!

“Quanta hipocrisia!”, pensou Amyr. Aquilo era culpa dele sim. Culpa dele e de mais ninguém.

Lembrou-se das palavras de Neill:

— Não posso viver sem ela. Não posso!

Uma afirmação tão brutal! Tão veemente! Como se o destino da Europa dependesse daquele amor.

Naquele instante, uma mulher loura apareceu no umbral da porta lateral. Amyr levantou a cabeça e, em um sussurro, disse:

— Henriette! Olá, meu bem.

Henriette Lilinburg esboçou o que pode ser definido como a sombra de um sorriso.

Henriette Lilinburg disse:

— Eu ouvi tudo, Amyr.

Então, depois de uma pausa, acrescentou:

— Ela tem razão, Amyr. Devíamos nos separar.

As lágrimas escorriam livremente pelo rosto dela, e Amyr precisou de todas as suas forças para não se inclinar e secá-las com um lenço.

— Henriette... Do que é que você está falando? Tolinha. Por favor, não chore.

— Não estou chorando — arquejou ela, secando as lágrimas com as costas da mão.

— Henriette...

— Estou tão triste, Amyr! Você nunca será meu marido. E eu nunca serei sua esposa.

Amyr olhou para ela, surpreso.

Não podia perdê-la.

Não, não, não. Ele nunca perdia. Essa era a única, única, certeza que tinha na vida.

Amyr levou as mãos dela aos lábios, quase sucumbindo à força das próprias emoções. Então, para seu próprio assombro, ele se ouviu dizendo:

— Henriette Lilinburg, você aceita se casar comigo?


Capítulo 2

 


Nessa noite, Nivea Nerwcare estava parada na extremidade do mezanino da Mansão Carruthers. Abaixo de si, ela tinha o panorama completo da sala de estar, com seu elegante grupo de convidados.

Nivea Nerwcare sentia-se bastante satisfeita com sua posição.

— Ora, Ni, o que está fazendo aqui isolada?

A jovem ergueu os olhos para ver a mãe caminhando em sua direção.

— Mamãe — reclamou ela, irritada. — Que susto!

— Não fique tão braba, Ni! — disse Madame Nerwcare. — Não imaginei que você estaria aqui.

— Sabia sim — disse Nivea.

Madame Nerwcare deu tapinhas afetuosos no ombro dela.

— Oi, filha! Olhe só... Dá para ver tudo daqui de cima. Como tudo parece limpo! Veja ali! As chitas e a caixa de conchinhas... Ah, trocaram o sofá de lugar. E a mesa. Costumava ficar ali.

— É para dar espaço — disse Nivea. De repente, pareceu mais animada. Falou com empolgação: — Aquele ali é o Juiz Warning, não é?

Nivea apontou o homenzinho de bigodes fartos e enrolados que, num paletó formal, bebericava um sherry.

— Ele parece tão... agressivo.

— É pura timidez — disse Madame Nerwcare.

— Quem será o homem que está com ele?

Madame Nerwcare endireitou o corpo, prestando atenção.

— Ei, eu me lembro dessa fisionomia! É um investigador... não, não, é Edmund Fëll, o detetive.

Mãe e filha observaram o detetive: um homem alto vestido com paletó de seda branca, uma correntinha de cromo no bolso e um monóculo enfiado no olho direito.

— Que cabelo engraçado, mamãe — disse Nivea, incrédula. — Parece que o coitado lambuzou a cabeça com um pote de gel!

Madame Nerwcare franziu a testa.

— O que será que ele está fazendo aqui?

A filha riu.

— Mamãe, a senhora está muito curiosa! Pelo que sei, Edmund Fëll é um homem conhecido em todo mundo. E a senhora sabe que Monsieur Sachsen-Dorf vive cercado desse tipo de gente.

— A não ser que alguém tenha encomendado um crime — comentou Madame Nerwcare em voz baixa.

Nivea deu um olhar rápido para a mãe.

— Vire essa boca para lá. A não ser que alguém tenha encomendado um crime. Eu sempre disse que a senhora nasceu com o dom errado. Em vez de escrever artigos sobre antropologia, a senhora deveria ser criminóloga! Brigitte Nerwcare, a superinspetora!

— Não seja malcriada, Ni!

Madame Nerwcare inclinou um pouco a cabeça observando o detetive e sua companhia.

— Gostaria de saber sobre o que eles estão conversando.

— Pela cara, estão de bom humor — disse Nivea.

Os alvos dessas especulações estavam mesmo de bom humor. O Juiz Donalt Warning gesticulava e rodopiava expressivamente as mãos. Era da mesma altura de seu companheiro e, num exercício quase inconsciente, tinha o hábito de cofiar e amaciar o bigode como um gato ronronante.

Edmund Fëll olhou ao redor da sala e viu o olhar insistente das mulheres pousado neles. Cuidadosamente, chamou a atenção do juiz para o mezanino.

— Quem são as duas mulheres?

O juiz virou a cabeça bruscamente e, olhando para cima sem a menor discrição, disse:

— Quem diria, é Madame Nerwcare! E a filha.

Fëll avaliou a sonoridade do nome.

— Nerwcare. Nerwcare — disse. — A antropóloga?

— Justamente. Não sabia que tinha conhecimentos nessa área!

— E não tenho.

Fëll examinou as pessoas na sala com a serenidade de um experimentado viajante estrangeiro.

— Até que veio muita gente.

O juiz pareceu profundamente consternado.

— Um casal de nobres, um músico de Hamburgo, dois ou três pintores... Se eu soubesse disso teria ido ao Salm Bräu. A única coisa que se salva aqui é a bebida.

Fëll disse:

— Parece que nosso digníssimo anfitrião abandonou o navio. Faz uns quinze minutos que desapareceu para os lados da cozinha. Also? Um arqueólogo com inclinações para gourmet.

— Que digam o que quiserem, mas para mim cada um devia ficar em seu próprio ramo — disse o Juiz Warning rudemente. — Eu, por exemplo, jamais tentaria cruzar o Bósforo a nado.

Andaram até o terraço. Lá, encostada no parapeito, uma moça esbelta e bonita sorriu para eles. Fëll lembrou-se que havia visto uma fotografia dela no console da lareira. Devia ser Serafine, a filha de Monsieur Sachsen-Dorf. Ficou imaginando o que ela estaria fazendo ali fora, sozinha.

— Verzeihen sie, Fräulein — disse Fëll, aproximando-se da garota. — A senhorita talvez não saiba quem eu sou. Permita que eu me apresente...

Serafine disse com um certo ar malicioso:

— Sei quem é o senhor. Herr Fëll, não é? Papai disse que viria.

— É mesmo, Miss? Encantado.

Fëll tocou na ponta de seus dedinhos. Não com força (pareciam ser frágeis, quase quebradiços). Olhou fixamente para ela e viu — no fundo da íris maravilhosamente azul — que Serafine estava triste. Ele quis perguntar por que, mas achou que seria indelicadeza. Mal acabara de vê-la... meio cedo, portanto, para certas intimidades.

— Uma bela noite, Miss — disse Fëll. — Lua cheia...

Serafine estava ruborizada, um pouco nervosa, mas não desviou o olhar.

— É, é — disse.

Fëll olhou para ela pensativo.

— É casada, Miss?

— Oh, não! Ainda não.

— Mas quer se casar, não é?

— Bem, é claro que sim — respondeu ela, surpresa. — Não é o que todos querem?

— Nem todos — disse Fëll.

Ela deu um sorriso condescendente.

— O senhor acha que não quer. Todos os homens pensam isso. Mas vai querer.

— É pouco provável — afirmou Fëll, de maneira enfática. — Meu tempo já passou.

Serafine o encarou, boquiaberta. Algo no tom de voz do detetive deixou claro que realmente acreditava no que estava dizendo.

— E seu sobrenome? — questionou ela.

Fëll deu de ombros.

— O que tem meu sobrenome?

— Se não se casar e gerar um herdeiro, ele se extinguirá. Ou o senhor tem algum irmão?

— Infelizmente não, Miss — disse Fëll. — Não tenho irmãos.

Fëll ficou em silêncio por um instante e então continuou:

— Esse clima me lembra de uma viagem que fiz pela África. Na luz do pôr do sol... na trilha que ia a Iferouane... surgiu um tuaregue. Pendurada na cintura, a takuba (é como chamam a espada)... em volta da cabeça, um véu e um turbante cor de anil. Foi um momento mágico, Miss. Mágico.

Serafine pareceu confusa com a mudança repentina de assunto.

— É um homem muito viajado, Herr Fëll.

— Não existem muitas escolhas para alguém que levou um tiro no fêmur — disse o detetive.

— Eu lamento, não fazia ideia...

— Li que seu pai também se machucou recentemente.

— Sim — disse Serafine.

— Ele tem uma resistência de causar inveja — disse Fëll.

— Papai tem sangue franco-alemão.

— Nosso corpo tem uma incrível capacidade para se recuperar de tudo.

— De tudo menos da morte — murmurou Serafine.

Fëll sentiu um choque com aquele comentário. Tentou entender o seu significado. Algum ressentimento que viera à tona? Ou apenas a filosófica constatação de que, por mais forte que seja, todo homem tem suas limitações?

— Os senhores me desculpem, eu tenho que entrar — disse a moça, constrangida. — Mamãe vai descer logo...

Inclinando a cabeça, Serafine se afastou. Fëll acompanhou-a com o olhar pensativo.

— Pensei que ia tirá-la para dançar — sorriu o Juiz Warning, quebrando o súbito silêncio.

Fëll contraiu os lábios.

— Acho que tenho idade para ser pai dela.

O juiz, porém, ignorou a reação do detetive. Contemplava alguma coisa através da porta de vidro. Fëll seguiu o olhar para ver o novo objeto de interesse de seu companheiro.

Lá dentro, como uma diva do jazz americano, uma mulher descia os degraus da escada. Era Henriette Lilinburg, a amante norueguesa. Ela estava com uma expressão emburrada, completamente consciente da má impressão que a maioria dos presentes tinha a seu respeito.

— Chegou a Rainha Má — disse o Juiz Warning traduzindo o pensamento coletivo.

Mrs. Lilinburg praticamente flutuava, dando cada passo maquinalmente, pouco à vontade em seu papel de vilã. Fazia um grande esforço para manter o controle e não sair correndo apavorada. Apesar de tudo, continuou descendo a escada, um degrau, dois degraus, busto reto, respiração tensa, três degraus, sem se deter, sem parar, nove degraus, até chegar ao térreo.

Fëll notou que o cabelo platinado da norueguesa estava preso com um laço de cor laranja. Simultaneamente, vindo não se sabe de onde, Monsieur Sachsen-Dorf saiu da maré de pessoas e, com educação, pegou Mrs. Lilinburg pela mão.

— Em cima da hora, Henriette — disse Monsieur Sachsen-Dorf. — Venha, quero que esta seja uma noite de gala.

Ela deu uma resposta monossilábica e, submissa, foi atrás dele. Ele, sem se afetar, começou a falar ora com um ora com outro de seus convidados, fazendo cordialmente as apresentações.

— Que coisa! — disse Fëll, assim que o par se misturou às pessoas na sala.

— Tem gente que sabe como fazer uma entrada triunfal — comentou o juiz. — No meu tempo, cada homem tinha uma só mulher, e cada mulher um só homem. Olhe para isso! Hoje um homem tem duas mulheres e todo mundo finge que está tudo bem!

Fëll sentenciou:

— Novas épocas, novos costumes.

A bem dizer, aquilo explicava muita coisa. As olheiras de Serafine, a mancha de tristeza em seus olhos, a fina linha branca em torno dos lábios...

— Talvez seja por isso que Miss Sachsen-Dorf estivesse tão desiludida — disse Fëll.

O juiz ficou olhando para Fëll.

— Mais do que natural. Um pai sem moral, que trai a mãe dessa forma... Por falar nisso...

— O quê? — perguntou Fëll.

— A mãe. Veja... Aí vem a mãe.

Automaticamente, Fëll voltou a girar sobre os calcanhares.

Perto de onde estavam Madame Nerwcare e a filha, sem nenhum anúncio, havia aparecido outra mulher. Sem ser visto, Fëll pôde observá-la muito bem. Adivinhou que devia ser Mrs. Sonia Pompadière.

Mrs. Pompadière parecia desorientada, insegura.

Edmund Fëll adivinhou, mais do que viu, suas pestanas inchadas. Parecia que pequenos filetes de água tinham sulcado a grossa maquiagem.

Lentamente, Mrs. Pompadière começou a descer a escada. Fëll passou a mão pela testa. Era como se tudo estivesse acontecendo duas vezes.

Um degrau, dois degraus, busto reto, respiração tensa, três degraus, sem se deter, sem parar, nove degraus...

Mas dessa vez, em vez do marido, quem recebeu Mrs. Pompadière foi um rapaz bem apessoado e altivo.

— Senhora, por favor.

— Obrigada, Gervois — disse Mrs. Pompadière.

Fëll aprovou o gesto do rapaz. A seu ver, uma boa ação sempre merecia os elogios adequados.

O Juiz Warning balançou a cabeça. Disse com tristeza:

— Pobre criatura! Para quem a conheceu há dez anos... Uma mulher que sabia rir, conversar, era espirituosa, falava sobre qualquer coisa. Que mudança, sim senhor!


II

 

Às nove horas, o som de um gongo ecoou pela casa.

Todos foram para a sala de jantar.

Antes que conseguisse escolher um lugar à mesa, Fëll sentiu uma mão pousar em seus ombros.

— Herr Fëll, perfeito! — disse Monsieur Sachsen-Dorf. — Por um momento achei que o senhor não viria.

— Seu convite foi muito amável, Monsieur — disse Fëll.

— Disponha. Ali está o meu secretário! Sente-se com ele.

Amyr Sachsen-Dorf estava agindo como um fidalgo hospitaleiro.

— Gervois! Gervois!

— Monsieur? — perguntou o jovem secretário olhando para trás.

— Este é Herr Fëll, o detetive! Meu assessor, Gervois Lutlum.

Gervois Lutlum balançou a cabeça. Avaliou a alegria quase infantil de Monsieur Sachsen-Dorf. Rapaz bem educado, Mr. Lutlum sabia cumprir a sua função com eficiência e competência. Mas é evidente que não via com bons olhos o comportamento pueril de seu patrão. Segundo a opinião de Mr. Lutlum, aquelas expansões de alegria não condiziam com um homem do nível intelectual de Monsieur Sachsen-Dorf.

Gervois se levantou para cumprimentar o detetive.

— Olá!

— Você cuidará de Herr Fëll, não é, Gervois?

Assumindo como positiva a resposta, o arqueólogo se afastou com a mesma energia que caracterizava toda a sua personalidade.

— Sente-se, Herr Fëll — convidou Gervois.

Fëll obedeceu, olhando o secretário com atenção. Lembrou-se que, meia hora atrás, ele tinha feito aquela gentileza para Mrs. Pompadière. Mas ali, sentado ao lado do detetive, Gervois se sentia acuado, chateado com alguma coisa.

Mas Fëll viu algo mais. Viu que, um pouco à esquerda, Serafine Sachsen-Dorf observava o rapaz. Eram olhares curtos, esquivos — tão esquivos que uma pessoa menos atenta não notaria. Fëll, porém, estava atento e notou. Imediatamente, ele solucionou o caso. Não era a primeira vez que uma garota se apaixonava pelo funcionário de seu pai. Talvez fosse essa situação, de final feliz impossível, que estivesse torturando Mr. Lutlum.

Fëll decidiu jogar uma isca.

— Ama ela, Mr. Lutlum?

Gervois teve dificuldades para assimilar a pergunta.

— O que disse?

— Ama aquela moça? Desde que sentei, Miss Sachsen-Dorf não para de olhar para cá.

— Francamente, Herr Fëll! — disse Gervois, aborrecido.

Fëll balançou a cabeça, sem se abalar com a resposta. Quando a pessoa nega e se irrita, é porque há algo de concreto nas suspeitas.

— Devia conversar com seu patrão, Mr. Lutlum.

— Ora, ora...

— Por que não tenta? — sugeriu Fëll. — Muitas vezes, uma simples conversa opera milagres.

Fëll fez um gesto indicando a cabeceira da mesa.

Gervois seguiu de má vontade o movimento da mão do detetive. Viu a mesma cena que já tinha visto outras vezes.

Monsieur Sachsen-Dorf, flanqueado dos dois lados pelo seu harém particular.

Gervois disse:

— Eu sei aonde o senhor quer chegar! — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — O senhor quer que eu fale com ele. Que eu abra meu coração e diga que eu e a filha dele nos amamos. Acha que eu nunca pensei nisso? Vê-se que o senhor não conhece Monsieur Sachsen-Dorf! Ele não consentiria no nosso amor nem que eu fosse o arquiduque da Boêmia! É um egoísta, que só pensa em si mesmo. Apenas uma pessoa existe para ele: Monsieur Sachsen-Dorf. Está vendo ali? Esteticamente, Mrs. Pompadière pode não ser a mulher mais desejável do mundo, mas isso não deveria dar a Monsieur Sachsen-Dorf o direito de ser tão cruel com ela. É uma vergonha, Herr Fëll. Um homem, com essa fama e grau de estudo... traindo a própria esposa!

Gervois falava aos cochichos.

Fëll olhou para ele.

— Quando foi que isso começou?

— Há dois ou três meses. Tudo começou depois que ele veio com aquele ferimento de Luanda. Um ex-colega, que tinha ficado noivo, pediu que Monsieur Sachsen-Dorf empregasse a noiva dele. Era Mrs. Lilinburg. Acho que foi atração à primeira vista. Desde então vivemos essa odisseia que, por Deus, não trouxe vantagem para ninguém. Principalmente para ele. Imagine o constrangimento! Um homem que negligencia os seus deveres de marido para viver por aí se divertindo com uma mulher estranha.

— Acha que isso vai longe? — perguntou Fëll.

— E o senhor acha que não? Quando um homem começa a desgraçar a própria vida é porque ele já está meio louco.

— Talvez ele esteja querendo alguma coisa.

— A única coisa que vai conseguir é uma pitada de veneno.

Essa frase surpreendeu Fëll.

— É a segunda vez que ouço essa espécie de jogo de palavras. Não estão pensando em matá-lo, estão?

O rosto de Gervois se iluminou.

— Até que não seria má ideia!

— Seria um péssimo artifício, Mr. Lutlum — disse Fëll. — Assassinos são presos e não condecorados com uma medalha.

Após o jantar, Mrs. Lilinburg fez uma pausa ao pé da escada.

— Eu vou dormir, Amyr — anunciou. — Estou com muito sono. Será que se importa?

Monsieur Sachsen-Dorf se aproximou e disse, com afeição:

— Pode ir, Henriette. Vá se deitar.

Ele deu um beijo na bochecha dela e ela subiu a escada, acenando e dizendo:

— Boa noite para todos.

O arqueólogo sorriu para ela.

Mas essa não foi a última coisa significativa da noite.

Quando estava para se retirar, Fëll ouviu um leve farfalhar de tecido atrás de si e a voz de Mrs. Pompadière, que disse:

— Herr Fëll, posso falar um minutinho com o senhor?

Fëll se virou.

— Às ordens, minha senhora — disse Fëll.

Com o rosto ruborizado, Mrs. Pompadière olhou para Fëll. Como se não soubesse bem como se justificar, baixou a voz e continuou:

— Perdoe-me por abordá-lo dessa maneira. Eu só não quero que ele me veja conversando com o senhor.

Fëll olhou para ela atentamente. Ele?

— Quem, Madame?

— Amyr — disse ela, um pouco envergonhada. — Não posso falar... não aqui. Encontre-me no Palácio Belvedere, amanhã às 3 da tarde. Preciso que faça uma coisa por mim, Herr Fëll.

— Palácio Belvedere, amanhã às três horas — disse Fëll, para mostrar que tinha entendido. — Certo, Madame.

— Obrigada. Muito obrigada.

Antes que Edmund Fëll pudesse perguntar mais alguma coisa, Mrs. Pompadière respirou fundo e, dando meia-volta em um gesto brusco, deixou rapidamente o saguão.


Capítulo 3

 


— Herr Fëll!

Edmund Fëll estava de pé na entrada do Belvedere Superior, examinando as esfinges do jardim. Verificou instintivamente o relógio — um minuto antes das três. Ficou satisfeito com a pontualidade da mulher que, depois de chamar por ele, se materializou ao seu lado, acanhada, arquejante e com o coração palpitando de ansiedade.

Edmund Fëll esperou que Sonia Pompadière tomasse a iniciativa. Ela usava um vestido clássico, numa cor que se harmonizava com o tom de sua pele, e tinha, sobre os ombros nus, como era de se imaginar, uma pele de arminho.

— Agradeço muito por não ter se esquecido de mim, Herr Fëll. Eu sei que está de férias, e talvez não queira se encarregar de nenhum caso, mas, quando o vi ontem à noite, eu pensei logo que, se quisesse, o senhor poderia me ajudar.

Fëll ficou levemente surpreso pela gentileza dos modos da mulher.

— Fico grato por sua confiança, Mrs. Pompadière.

— Eu... — começou ela, baixando subitamente a voz como se estivesse compartilhando um segredo com o detetive. Acrescentou: — Podemos conversar por um minuto, por favor? Eu gostaria de saber uma coisa. Só entre mim e o senhor. Em particular.

— Como quiser, senhora.

Minutos depois, Sonia Pompadière e Fëll caminhavam pelo jardim, como dois turistas que faziam um passeio absolutamente informal.

Mrs. Pompadière pegou Fëll pelo braço e quis saber, com um sussurro rouco:

— E então?

— E então... o quê?

— O senhor vai me ajudar?

Fëll respondeu com um leve tom de desaprovação na voz:

— Madame, posso ajudá-la. Mas eu tenho que saber em que precisa de minha ajuda!

Mrs. Pompadière balançou a cabeça e, como se estivesse travando uma luta interna, disse:

— Escute, eu sei que o senhor é um grande detetive. Um dos melhores, talvez. Bom, eu vou contar tudo para o senhor. Só que não sou muito boa em fazer relatos.

Ela fez uma pausa para respirar e então prosseguiu:

— Quer dizer... Acontece que não sei se o que vou pedir faz parte de sua especialidade.

Fëll olhou para a mulher e sorriu. Era um sorriso cativante.

— Quanto a isso, não se preocupe, Madame. Posso garantir que já participei de muitos casos extracurriculares. Fracassei em alguns, é verdade, mas fui até o fim em todos eles. Por que não faz o seguinte: a senhora me diz quais são os fatos e eu decido se posso ou não posso ajudá-la?

A proposta pareceu convencer a mulher.

— Estou tão confusa! Nem sei por onde começar...

— Se me permite, eu começo pela senhora — propôs Fëll. — Pretende me dizer alguma coisa a respeito de seu marido, suponho.

— Sim... sim — disse Mrs. Pompadière, desconfiada. — O senhor não é adivinho, é?

Fëll deu outro sorriso.

— Não, Madame. Para mim, os dons mediúnicos são uma fraude para iludir as mentes desavisadas. Em casos assim, prefiro manter minha fé nos poderes de observação e dedução.

Fëll percebeu que a mulher não havia entendido o clichê. Resolveu encurtar as coisas:

— Continue, Mrs. Pompadière. Ia me apresentar o seu caso.

— Ah, sim, é mesmo... Como deve ter visto, Herr Fëll, fiquei refém em minha própria casa. Quero que o senhor me represente, que fale com Amyr. Ele sempre foi um bom homem, não posso me queixar. Mas aquela mulher... aquela mulher se insinuou para ele! Ela envenenou a alma dele!

— Há gente para tudo, Madame — concordou Fëll.

— Tem mesmo!

Os olhos de Fëll encontraram os de Mrs. Pompadière por alguns segundos, depois ele disse:

— Então, se entendi bem, a senhora acha que seu marido foi uma vítima de Mrs. Lilinburg? Não quero ser rude, mas se quer saber minha opinião — continuou —, quero dizer, minha opinião imperfeita e humana, o seu marido não parece ter sido uma vítima de Mrs. Lilinburg, mas sim cúmplice dela.

Sonia Pompadière ficou surpresa.

— Honestamente, acho que não — disse ela —, e posso dizer que já pensei muito sobre esse assunto. Santo Deus! Amyr nunca foi desse jeito. Está irreconhecível! Ele vai atrás dessa mulher como se fosse uma barata tonta. Isso é intolerável! Não consigo aceitar que ele não me ame mais. Casamos por amor, e agora, como uma tempestade de verão, tudo virou de cabeça para baixo. O senhor precisa fazer alguma coisa. Renove minhas esperanças, salve Ame dessa... dessa loucura!

Fëll pigarreou.

— Posso tentar, Madame. Acontece que, em assuntos assim, uma intervenção externa costuma produzir pouco efeito. Em casos de estremecimento conjugal, a melhor solução seria consultar um advogado especialista em Direito de Família e Sucessões.

— Então, estou travando uma batalha perdida! — retrucou Mrs. Pompadière.

— Não digo isso. Mas, pela minha experiência, quando um homem adulto, em pleno uso de suas faculdades, toma uma decisão tão específica... bem, é muito difícil fazê-lo mudar de ideia.

— Não, não, eu me recuso a aceitar isso. O senhor não sabe como a gente se amava! Pergunte a Serafine. Ela sabe! Serafine sabe de tudo. Nós tínhamos um lar tão feliz! Meu marido não é ruim, Herr Fëll. Se for convencido, ele pode voltar a ser o que era. Alguém precisa estimulá-lo, fazê-lo ver o mal que está causando... a si mesmo e a todos nós.

— Alguém precisa estimulá-lo — disse Fëll. — No caso, eu.

Mrs. Pompadière lançou um olhar glacial para o detetive.

— Se não quiser aceitar, diga agora! Falarei com outra pessoa.

— Mrs. Pompadière, como eu disse, já fracassei em algumas de minhas missões... mas nunca por não ter tentado. Poderia me fazer um resumo de toda a história?

Havia se operado uma expressiva mudança no rosto de Sonia Pompadière. Ela disse:

— Antes de conhecer Amyr, aquela mulher...

—... ou seja, Mrs. Lilinburg.

— Sim, Henriette Lilinburg. Antes de conhecer meu marido, ela esteve noiva de outro homem. Esse homem era muito amigo de Amyr. Como é o nome dele mesmo? Neill... Neill alguma coisa... Neill Brannigan, não, Brannigum, é isso. Ele morria de amores por Henriette. Mas, pelo jeito, ela não sentia a mesma coisa por ele. Neill é meio abobado, sabe, tímido, sem muita cultura, pobre sujeito! Um dia ele veio falar com Amyr, dizendo que tinha noivado e que ia casar em breve. Dizendo que estava ajuntando dinheiro para alugar uma casa. Estou sendo clara até aqui, Herr Fëll?

— Plenamente.

— Neill perguntou se Ame não poderia dar um emprego para sua noiva, pelo menos durante uns meses. Meu marido, que na época não saía da cama, imaginou que seria bom ter uma assistente temporária. Infelizmente ele sempre gostou de um rabo de saia e... esse foi o início de tudo.

Fëll meneou a cabeça, perplexo.

— Parece estar racionalizando, ou tentando justificar, as ações de seu marido, Madame. Ele traiu a senhora! Ele trocou a senhora por outra mulher! E parece que a senhora já o perdoou...

A resposta de Mrs. Pompadière foi fulminante.

— Não perdoei, não senhor! Ame fez uma coisa ultrajante. Sim, ultrajante. Mas ele não teria feito nada disso se não tivesse sido Henriette! Henriette é a culpada. Ela é a culpada!

— Entendo. Sim, entendo... — disse Fëll. Mudou de assunto com a seguinte observação: — Vocês fizeram uma viagem no mês passado, não foi, Madame?

— Sim. Foi orientação do médico. “Tirem umas férias!”, disse ele. Para acelerar o processo de cicatrização, acho. Ame disse que iria levar Henriette para conhecer o Oriente Médio. Fomos nós três. Tel Aviv, Istambul... visitamos algumas cidades com sítios arqueológicos. Foi tudo tão embaraçoso, Herr Fëll! Tão, tão embaraçoso!

— E depois?

— Depois? Depois eu perdi meu marido. Perdi para Henriette.

— A senhora não chegou a falar com Mrs. Lilinburg sobre os seus sentimentos?

— Falei. Muitas e muitas vezes.

— E?

— Ela disse: “Ai, pelo amor de Deus, pare de me amolar!”

— E Monsieur Sachsen-Dorf? O que ele diz disso tudo?

— Teve uma crise nervosa. Mandou me chamar. Dei a ele um calmante. Fiquei na cama ao lado dele, segurando sua mão, pedindo para se acalmar, dizendo que ficaria tudo bem. Então, logo antes de cair no sono, disse: “Eu vou me casar com Henriette”.

Fëll arregalou os olhos.

— Ele disse isso, foi? E depois... no dia seguinte?

— Não mencionou mais nada. Toquei no assunto, mas ele fugiu da pergunta. Falou: “Ah, isso é uma completa infantilidade. Tenho certeza de nunca disse que ia casar com Henriette”.

— Mas acha que ele falou sério?

— Falou sério, é claro que sim — disse Mrs. Pompadière. — Mas eu não entendo... Se Ame não me quer mais, por que não propõe o divórcio? Seria uma saída muito mais digna e decente.

— A senhora teria uma fonte de renda?

— Meu pai é um “rei do petróleo”, Herr Fëll! Papai nunca me desampararia! Eu poderia viver com as honras de uma rainha.

Fëll disse:

— Talvez seja por isso que seu marido fuja do assunto. Se vocês se separarem, Monsieur Sachsen-Dorf perderá sua galinha de ovos de ouro. Der Spatz in der Hand ist besser als die Taube auf dem Dach. Creio que esse ditado se aplica ao presente caso.

Mrs. Pompadière franziu a testa.

— O senhor está querendo dizer que meu marido ainda não me largou...

—... porque a senhora é seu arrimo financeiro — concluiu Fëll. — A senhora é conveniente para ele.

Mrs. Pompadière olhou agressivamente para o detetive e disse:

— O senhor está errado, Herr Fëll. Eu sei muito bem que o senhor está querendo me convencer que Ame não sente mais nada por mim, e que eu devia me resignar. Isso seria típico de uma mulher derrotista, que acha que o destino comanda a sua vida. Saiba que vou lutar para reaver meu marido! Não vou deixar Henriette destruir nossa família. Nem que eu tenha que dar um jeito nela...

Fëll mexeu os ombros.

— Se matá-la, a senhora será julgada e presa.

— E daí?

— Daí que a senhora vai perder a liberdade por um longo período de tempo. E Monsieur Sachsen-Dorf ficará livre. Livre, Madame! Um dia, sem muito esforço, ele vai encontrar uma mulher, ficará noivo e se casará com ela. Nesse ínterim, o que acontecerá com a senhora, assassina confessa de uma mulher que infernizou a sua vida, e que, na soma total, viveu com seu ex-marido com o consentimento dele? A senhora terá uma pena amarga pela frente (na melhor das hipóteses, uns dez a quinze anos), e sem qualquer chance de absolvição!

Foi a vez de Mrs. Pompadière mexer os ombros.

— Então, cabe ao senhor a nobre tarefa de impedir a morte de Henriette! Fale com Ame, peça para ele voltar para mim!

Fëll suspirou.

— E se seu marido me rejeitar? A senhora já falou com ele, não foi? Qual foi a reação dele? Ficou comovido? Concordou em analisar os fatos?

— N... não.

Fëll disse, com uma ruga na testa:

— Pois é. Posso representá-la, Madame, e falar com ele, mas não prometo grandes resultados.

— Ele não rejeitará o senhor.

Fëll acenou com a cabeça.

— Muito bem, vou atender à sua solicitação, Madame. Uma última pergunta... Pode me fornecer o número de telefone de Mrs. Lilinburg? Antes de qualquer coisa, pretendo ter um tête-à-tête com ela.

Mrs. Pompadière olhou para ele, intrigada.

— Mas por quê?

— Porque eu quero esclarecer uma dúvida com ela.

— Que dúvida?

Fëll balançou a cabeça.

— Se ela está mesmo a fim de vender a sua credibilidade mantendo um affair com um homem casado.


Capítulo 4

 


Edmund Fëll entrou na Torre de Danúbio e subiu até o restaurante rotatório que tinha vista para a cidade.

Localizou Henriette Lilinburg sentada em uma das mesas, segura de si, etérea, o rosto tranquilo e sereno.

Graciosamente, ela mexeu as sobrancelhas quando o detetive parou à sua frente.

— Mrs. Lilinburg! — disse Fëll. — Devo dar meus parabéns. Escolheu muito bem o ponto de encontro. Belo cenário!

Henriette usava um casaco ajustado na cintura e chapéu de abas moles. Fez um gesto que poderia ser interpretado como um sim.

— Belíssimo cenário — respondeu. — Poder olhar o mundo sob outra perspectiva. Sentir-se no alto, por cima do bem e do mal. Esquecer, por um segundo, a vida mesquinha e mundana.

Fëll assentiu com a cabeça.

— Nesse quesito, acho que somos todos iguais.

— Ouvir isso do senhor me desaponta um pouco, sabe?

— Por quê? — perguntou Fëll.

— Julguei que alguém como o senhor, um incansável cavaleiro do crime, era imune a tais pensamentos materialistas.

Fëll sentou-se na outra cadeira e sorriu.

— O bom Deus não me considerou digno desse privilégio.

Um traço de ironia brincou nos lábios de Henriette.

— Deixe-me adivinhar por que o senhor deseja falar comigo! Sonia foi chorar as suas mágoas, e o senhor, condoído com sua triste história, se encarregou de representá-la diante de mim!

— Em partes sim — disse Fëll.

— Errei em algum detalhe?

Fëll virou o rosto para o lado a fim de olhar para ela.

— Eu vim falar por conta própria com a senhora. A minha comissão é falar com Monsieur Sachsen-Dorf. Apenas com Monsieur Sachsen-Dorf.

Henriette se empertigou e balançou a cabeça.

— Que interessante! Então nossa conversa terá um caráter extraoficial? Mas seja franco, qual é seu objetivo, Herr Fëll?

— Percebo que a senhora não gosta muito de preâmbulos.

— Por que adiar o inevitável?

— Amém — disse Fëll. Acrescentou: — O meu objetivo é o seguinte: conscientizá-la de que a senhora tomou um mau caminho. E que, para o bem de todos, pense nisso e mude de rumo.

Henriette olhou para ele com um misto de desconfiança e desagrado.

— O senhor está brincando comigo?

— Acha que estou brincando com a senhora?

— Acho sim. Eu, teoricamente, tomei um mau caminho. Mau para quem?

— Para si mesma, principalmente — disse Fëll.

Henriette levantou o nariz, furiosa.

— O senhor acha que sou tão sádica a ponto de fazer mal a mim mesma? Engraçado que o senhor esteja tão preocupado comigo!

— Eu me preocupo com todas as pessoas — disse Fëll.

— Ah, o senhor é um benfeitor da humanidade. É uma tolice! Os maiores benfeitores que já viveram foram mortos pela própria gente que quiseram proteger.

— Mas isso não me impede de tentar — disse Fëll.

Ela balançou a cabeça.

— Receio que quanto a isso não chegaremos a um acordo. Mesmo que eu quisesse, não posso fazer o que vai me pedir.

— Se a senhora quisesse, poderia fazer qualquer coisa.

— Suponha então que eu não queira.

Fëll abriu os braços.

— Acho que estamos nos antecipando demais.

— Touché! — falou ela, de algum modo conseguindo ilustrar a declaração com um leve movimento do dedo indicador.

Fëll ficou em silêncio por um instante.

— É muita rápida para mim, Mrs. Lilinburg.

— Pensou que seria uma partida fácil?

— Não previ tanta oposição!

— Vou ser mais boazinha — disse Henriette.

— Já era hora — reclamou Fëll.

— Veio falar de minha relação com Amyr, não é?

— Sim.

— Julga que estou errada?

— A senhora não?

— Não.

— Mesmo com o preço que vai pagar? — perguntou Fëll.

— Não será tanto.

— Depende do valor que dá à sua própria honra.

— Ela não vale muita coisa — disse Henriette Lilinburg.

Fëll olhou para ela com certa piedade nos olhos.

— A senhora já foi casada?

— Já sim.

— Seu marido está... — Fëll hesitou — morto?

— Sim, há bastante tempo.

— Por que não se casou de novo?

Poderia ter sido uma pergunta impertinente, mas o interesse real na voz dele evitou quaisquer insinuações daquela espécie.

— Ah, porque... — ela parou. Em seguida, falou honesta e abertamente: — Eu amava muito meu marido. Depois dele, nunca me apaixonei por mais ninguém.

— Até agora?

— Até agora.

— Em resumo, a senhora não vai desistir de seu escandaloso relacionamento.

— Escandaloso para outros, não para mim. Para alguns, o senhor agora seria taxado de preconceituoso.

— Não é preconceito alertar alguém que está na corda bamba e a poucos passos de sofrer uma queda.

— Eu estou na corda bamba?

— Está — respondeu Fëll. — Trocando em miúdos, não vai ouvir o meu lado da questão?

— Vou ouvir, claro.

— Mas sabe o que vou dizer?

— Sim. O senhor vai dizer que fui má por roubar o marido de outra mulher. Eu conheço os seus truques.

— Não faço truques, Mrs. Lilinburg.

— Isso dificulta um pouco as coisas.

Fëll estreitou os lábios.

— Antes de Monsieur Sachsen-Dorf, a senhora esteve noiva de outro homem, correto?

— Sim.

— Amava ele? Espere. Vou reformular a pergunta. Ele amava a senhora?

— Loucamente — disse Henriette.

— Mesmo assim, deu um fora nele — disse Fëll. — Parece que a senhora fez uma jogada astuta e se desfez de seu noivo logo que ele se tornou um obstáculo.

— Não fui eu que sugeri que queria trabalhar para Amyr!

— Não imaginou, por um minuto sequer, que Mr. Brannigum fez isso porque queria o seu bem-estar? Não acha que um homem laborioso, que preza pela sua felicidade, merecia mais consideração? A senhora não acha que deveria ter visto isso como uma demonstração de afeto? Não, a senhora não fez isso. Em vez disso, a senhora desprezou Mr. Brannigum. A senhora largou o seu noivo, que agiu de boa-fé, e se jogou nos braços de um homem casado, um homem que, para todos os efeitos, estava comprometido e fora de sua esfera de opções. Não acha que foi uma atitude egotista e traiçoeira?

Henriette engoliu em seco e tentou falar, mas não conseguiu nada além de um tremor dos lábios.

— O senhor... foi... mal... esclarecido...

— Se fui mal esclarecido, conte-me o que aconteceu.

— Insisto em dizer que não fiz nada contra Sonia. Amyr gosta de mim. E eu gosto dele.

Fëll ficou em silêncio durante um minuto. Depois perguntou:

— A senhora pretende se casar com Monsieur Sachsen-Dorf, Madame Lilinburg?

Ela não demonstrou qualquer surpresa diante da pergunta.

— Ele não me pediu em casamento — respondeu secamente.

— E por que não?

A voz da norueguesa se tornou intensa, persuasiva:

— Porque eu consegui impedi-lo! Quando eu soube que essa gente estava dizendo que Amyr iria se livrar da mulher para se casar comigo, achei que se nos casássemos estaríamos piorando a situação.

— Mas sem dúvida — disse Edmund Fëll — isso é um pouco esquisito, não?

Henriette encolheu os ombros.

— Eles não têm muito com o que se entreter, por aqui.

— A senhora deseja se casar com Monsieur Sachsen-Dorf? — perguntou Fëll.

— Quero.

— Quer dizer que a morte da mulher dele seria uma benção para a senhora?

— Para falar francamente, ficaria encantada se ela morresse.

— Puxa! — comentou Fëll. — A senhora é muito franca.

Henriette Lilinburg respondeu:

— A verdade é que o senhor não vai me escutar, não importa o que eu diga. O senhor veio para cá com o veredito já pronto, agora só está aplicando a sentença. Não fiz nada de errado. Amyr e eu nos amamos!

— Acha que seu amor tem futuro, Madame?

— Futuro? O que importa o futuro?

Fëll a encarou do outro lado da mesa.

— Disse que vai se defender se for ameaçada...

Henriette deu uma risada forçada.

— Vou, Herr Fëll. Não sou uma assassina ardilosa, mas eu tenho os meus métodos. Sonia que não venha com gracinhas!

Apanhou de dentro da bolsa um frasco de vidro, que depositou artisticamente na mesa. Fëll viu que no frasco havia uma substância branca, sugestivamente tóxica.

Henriette exibiu um sorriso maligno, quase doentio.

— Sabe de quem peguei isso, Herr Fëll? O senhor sabe?

— Mrs. Lilinburg, a senhora está se precipitando outra vez. Não creio que essa seja a solução...

— Não é? Ora, por que não? Às vezes para se conseguir a paz é preciso acabar com certas complicações! Por isso, digo ao senhor, Herr Fëll. Se Sonia não se comportar, posso ser tentada a fazer uma coisa muito, muito má com ela — concluiu num tom ligeiramente diabólico.

Fëll deu um grunhido.

— Assino em baixo. Vá em frente!

— Vou mesmo. O senhor duvida?

— Mrs. Lilinburg, eu já não duvido de mais nada — disse Fëll. — As pessoas da atual geração, na maior parte, têm a mesma mentalidade. “Eu vou matar fulano!”, “Odeio minha avó! Vou contratar um pistoleiro.”. Só pensam em matar, em se vingar, em lavar a honra com rios de sangue. Se for assim, digo novamente: se quiser mesmo dar um fim em Mrs. Pompadière, vá em frente! Envenene, enforque, faça qualquer coisa. Se acha que isso vai fazê-la se sentir melhor...

— Vai — replicou Henriette. — Vai sim.

Decepcionado, Fëll disse:

— Vim negociar a paz, e agora sei que falhei.

— O senhor fez a sua parte.

— Poderia ter sido melhor.

— Devia se conformar.

— Com todo o respeito — disse Fëll asperamente —, não me conformo, não senhora. Devia reconsiderar a sua conduta, Mrs. Lilinburg!

Henriette olhou para Fëll, espantada.

— Eu deveria reconsiderar? Acha que estou sendo leviana?

— Leviana sim, e pior, contra os mandamentos de Deus.

— Ahhhh! — exclamou Henriette.

O gritinho que saiu de sua boca foi tão alto e espontâneo que até Fëll se assustou.

Ela apontou a porta do restaurante.

— Neill! Neill! Meu ex-namorado. Ele... ele está ali!

Fëll olhou para o homem parado na porta.

— Aquele de jaqueta verde?

Mas Henriette estava chocada demais para fornecer alguma informação.

Fëll viu que ela tentava se esconder atrás do cardápio. Deu uma olhada melhor no recém-chegado. Era um tipo de baixa estatura, ombros robustos... membros desajeitados...

Fabuloso! Hora de se retirar.

Fëll se levantou.

— Com sua permissão, essa é a minha deixa, Madame. Pelo visto, a senhora vai ter companhia para o almoço.

— Não, não... — murmurou ela, horrorizada. — Fique, fique, por favor. Por favor.

Fëll inclinou a cabeça.

— Lamento, Mrs. Lilinburg... Tenha um bom dia.

Austero, Fëll passou pelo homem de jaqueta verde e, sem se virar, foi para o elevador.


Capítulo 5

 


Na manhã seguinte, Fëll tomou o metrô linha U4 cor verde na direção de Hütteldorf. Desocupado, resolveu passar as horas vagas no Palácio Schönbrunn. Comprou um ticket Grand Tour e entrou.

Edmund Fëll estava num dos aposentos, ouvindo o áudio guia, quando alguém parou ao seu lado.

— Bom dia, Herr Fëll!

Desconfiado, Fëll olhou para o estranho. Lembrou que já o tinha visto em algum lugar. Vestia roupas sóbrias, o que levava a crer que era um figurão importante de algum setor governamental.

— ‘ Morgen!...

Havia um ponto de interrogação tão grande no rosto de Fëll que o homem apressou-se a dizer:

— Acredito que o senhor deva se lembrar de mim, Herr Fëll.

— Mas é claro que sim — respondeu Fëll. — O senhor é... Dê-me um momento, só um momentinho. O senhor é Monsieur Oliviê. Eu vi o senhor duas noites atrás na casa de Monsieur Sachsen-Dorf.

— Está certíssimo. Sim, eu sou Gerbran Oliviê. Boa memória, Herr Fëll!

— De modo algum. Se o senhor se lembra de mim, por que eu não me lembraria do senhor? É francês, não é, Monsieur Oliviê?

— Oui — disse Gerbran, sorrindo. — Amyr deve ter contado que sou da região de Bordeaux.

— Acho que não — disse Fëll. — Para ser honesto, não falei muito com ele naquela noite. Foi o Juiz Warning quem mencionou o senhor. Disse que vocês se conheceram numa viagem à Capadócia.

Gerbran corou.

— Sim, foi mesmo. Grande juiz!

— E exótico — emendou Fëll. — Ele cuida do bigode com mais esmero do que uma mãe cuida do filho!

Gerbran ficou espantado com a frase. Olhou para o cabelo de Fëll e revirou os olhos. “O maltrapilho falando mal do esfarrapado”, pensou.

— E quanto ao senhor, Monsieur Oliviê? — perguntou Fëll. — Veio em missão oficial para o país?

— Não, não, estou a passeio — disse Gerbran. — Vim no trem de Salzburgo há uma semana. Centros históricos, o Danúbio... E tudo regido pela trilha sonora da cidade, a valsa de Strauss! Logo que desembarquei, deixei as malas no hotel e fiz uma visita a Amyr. Pobre homem! Nunca imaginei que ele estivesse metido nessa encrenca dos diabos.

— É realmente muito deplorável — disse Fëll tristemente.

— Conheci Amyr em Copenhague, numa conferência sobre o povo asteca. Lembro-me que fiquei muito impressionado com a palestra.

— Mrs. Pompadière também estava na conferência?

— Estava — respondeu Gerbran Oliviê. — Na época os dois eram inseparáveis. É incrível que as coisas tenham chegado a esse ponto em tão pouco tempo!

— O que acha que aconteceu entre eles? — perguntou Fëll.

— É uma coincidência que o senhor pergunte isso logo para mim — sorriu Gerbran.

— Quer dizer que alguém contou alguma coisa?

— Contou sim.

— Quem?

— O próprio Amyr — disse o francês. — Faz alguns meses. Logo após aquele famigerado acidente com a mina terrestre. Estávamos conversando, eu e ele. Foi então que Amyr disse que não estava muito feliz com Mrs. Pompadière.

— Citou uma razão específica?

— Falou as coisas de sempre. Não a amo mais... Nossa relação não é mais a mesma... O amor chegou ao fim! Essas coisas...

Fëll balançou a cabeça.

— Acha que ele já possuía um caso extraconjugal?

— Não creio.

— Mas não pode afirmar com certeza!

— Não, não posso — concordou Gerbran.

— Depois disso, surgiu Mrs. Lilinburg — disse Fëll.

— Sim, semanas depois — respondeu Gerbran. Olhou para o detetive por um instante: — Sem querer ofender, mas posso saber qual é seu interesse nisso?

— Pode sim — disse Fëll. — Mrs. Pompadière me incumbiu de falar com o marido. Ela crê que, de alguma forma, posso convencê-lo a voltar para ela.

— Que interessante!

— Em sua opinião, tenho alguma esperança de êxito?

Gerbran Oliviê não quis se comprometer, e perguntou:

— Quando vai conversar com ele?

— Hoje à tarde — disse Fëll.

— Durante a festinha no lago? Que coincidência! Também fui escalado para estar lá. A propósito, o senhor estará na festa, não estará?

— Não — disse Fëll.

— Não? — Gerbran Oliviê repetiu a palavra, que soou como uma tímida surpresa em sua voz. — Oh! Eu pensei...

Fëll fez uma pausa.

— Gestatten Sie mir eine Frage — disse. — Acha que haverá muita gente por lá?

— Pelo que sei, só a família Sachsen-Dorf, Mrs. Lilinburg, Gervois e eu. Talvez o juiz, Madame e Mademoiselle Nerwcare...

— Parece conhecer bem o pessoal, Monsieur Oliviê!

— Quando se tem o meu cargo, é preciso expandir o número de contatos.

— Entendo — disse Fëll.

— Ei, tive uma ideia! — disse Gerbran. — Talvez o senhor consiga uma aliada para seu projeto.

— Uma aliada? Quem?

— Serafine Sachsen-Dorf.

— A moça loura que está apaixonada por Mr. Lutlum?

Para surpresa de Fëll, Gerbran corou de novo.

— Ela mesma — balbuciou Gerbran, com certo embaraço.

— O que foi, Monsieur?

— Nada. O senhor disse que Serafine...

—... está de namorico com o secretário inglês — completou Fëll com toda naturalidade. — Posso estar enganado, mas, pela troca de olhares, eu diria que existe uma forte simpatia entre os dois.

— Forte simpatia? — gaguejou Gerbran.

Os olhos de Fëll diminuíram de tamanho.

— Está querendo me dizer alguma coisa, Monsieur Oliviê?

— Nada sério.

— Gosta dela, Monsieur?

— Por Deus, homem. Não!

— Está dizendo não mas sem qualquer entusiasmo. Reafirmo que posso estar enganado. Além do mais, nós sabemos que paixonites vêm e vão, Monsieur.

Gerbran balançou a cabeça.

— Posso assegurar, Herr Fëll, que está tudo bem. Se Serafine ama outro, sou homem o suficiente para tirar o meu time de campo.

Fëll deu de ombros.

— O erro foi meu, Monsieur Oliviê. Vamos voltar ao nosso assunto. Dizia que Miss Serafine pode ser minha aliada.

— Sim, sim. É tudo uma questão psicológica, sabe? Mrs. Pompadière já tentou e falhou, não foi? A única outra pessoa que tem alguma influência sobre Amyr, e que até agora não interferiu, é Serafine. Eu se fosse o senhor investiria nela.

Por alguns minutos, os dois discutiram esta hipótese.

— Mais uma coisa — continuou Gerbran. — Ouvi um boato a respeito da sobrinha de Mrs. Lilinburg. Dizem que a moça veio ontem da Catalunha. Dizem também que ela está muito irritada com a bagunça feita pela tia. Talvez o senhor possa recorrer a ela.

— Naturalmente — disse Fëll.

— Ela se chama Suzan. Suzan Victalle. Ela veio acompanhada do marido.

Fëll anotou o nome em seu caderninho de notas.

— Está aí um grande mistério — disse Gerbran, quebrando o silêncio.

— Mistério? — perguntou Fëll. — Que mistério?

— Toda essa história. Sonia Pompadière viu o senhor e, sem mais nem menos, literalmente suplicou por sua ajuda. É quase inacreditável!

— Não foi bem assim — disse Fëll.

— Deixe de ser modesto. Acho que foi sim. Mrs. Pompadière viu o senhor no jantar e pensou: “Aí está o meu salvador”! Alegre-se, Herr Fëll, o senhor é uma personalidade!

Edmund Fëll e o francês deram mais uma volta pelos aposentos e terminaram a visita ao palácio.

Depois do almoçar no Wiener Rathauskeller, Fëll seguiu pela Avenida Ring e passou boa parte da tarde no Kunsthistorisches Museum.

Às três e meia, exausto com a maratona, tomou um táxi para a Mansão Carruthers.

Fëll atravessou o hall, passou por uma porta à esquerda e entrou em uma sala de estar de belas proporções, decorada com muito charme.

— Boa tarde — cumprimentou Fëll.

A primeira coisa que o detetive sentiu foi o olhar ofídico de Mrs. Lilinburg grudado nele. Era evidente que o episódio na torre ainda seria lembrado por muito tempo. Um pouco para o lado estava uma moça de uns vinte e cinco anos, longilínea, com olhos fascinantes e decididos. Tinha a boca entreaberta, como se tivesse se calado no meio de um discurso. Possivelmente era Suzan Victalle, de cuja existência Fëll soubera naquela manhã.

Suzan Victalle olhou para o detetive de maneira levemente sobressaltada e disse:

— Boa tarde.

No grande sofá atrás dela, Edmund Fëll viu o marido. Uma expressão irônica, semideitado no sofá, o espanhol parecia a encarnação do desleixo. A roupa estava torta e amarfanhada, e uma penugem rala cobria o rosto. Apesar disso, ele sorria e a confiança transparecia em cada linha da sua atitude.

Felizmente para Fëll, que ficou momentaneamente sem fôlego, uma mulher abriu uma porta nos fundos da sala e veio em sua direção.

Fëll cumprimentou a mulher com muita animação.

— Mrs. Pompadière, não imagina como estou contente por vê-la.

— Venha comigo — disse ela, secamente e sem olhar para os lados.

Mrs. Pompadière conduziu o detetive escada acima, percorreu uma passagem e entrou em uma saleta que servia como escritório privativo.

Fechando a porta atrás de si, Mrs. Pompadière perguntou:

— E então, Herr Fëll? Já falou com Amyr?

— Ainda não, senhora — disse Fëll com franqueza.

Ela franziu a testa como se tivesse sentido uma dor súbita e imediatamente baixou os olhos.

— O senhor... o senhor viu a garota com ar de Princesa dos Pântanos do Sul? — perguntou Mrs. Pompadière.

Fëll franziu a testa.

— Está falando da moça na sala de estar? Calculei que fosse a sobrinha de Mrs. Lilinburg.

— Eu devia saber que notaria a semelhança física!

— Para ser franco, senhora, foi Monsieur Oliviê quem me falou a respeito dela.

— Quem? Aquele tipinho nojento falou com o senhor?

Fëll empalideceu.

— Monsieur Oliviê... um tipinho nojento?

Ela arrulhou como uma pomba chocando os ovos.

— E como, Herr Fëll! Acha que ele vem visitar Amyr por solidariedade? Esse francês imundo tem dinheiro nas mãos de Amyr... muito dinheiro... e quer tudo de volta em dois meses. Dois meses! Ele finge ser muito dedicado e honesto, mas é um cafajeste! Um pilantra!

— Lamento ouvir isto! — disse Fëll, contrito.

— Bem, não vamos falar dessas coisas. O senhor acabou de ver a cena na sala. Aquela moça foi um verdadeiro presente dos céus. Desde que veio, ontem de manhã, ela vem insistindo para que Henriette largue tudo e volte com ela para a Espanha.

Fëll sentiu-se mais leve com a revelação.

— Isso é estupendo! Estamos tendo algum progresso!

Os olhos de Mrs. Pompadière faiscaram de satisfação.

A energia de Suzan Victalle, e sua intenção de arrastar a tia para longe dali, eram a melhor notícia durante semanas.

Habilmente, Fëll sugeriu que, se possível, desejava falar imediatamente com Monsieur Sachsen-Dorf.

Mrs. Pompadière disse:

— Amyr desceu para o lago.

— Irei até lá.

— Não seja rude com ele, por favor — disse a mulher, num gesto de súplica. — Eu amo Amyr. Fale para ele que eu o amo.

— Falarei.

— Mais uma coisa, Herr Fëll.

Fëll olhou para ela.

— O que é?

— Obrigada. Muito, muito obrigada.

Ela já tinha dado meia-volta e saído da salinha antes que as sobrancelhas de Fëll tivessem retomado seu lugar. Ah, então era isso que Mrs. Pompadière sentia, não é mesmo? Gratidão.

Fëll franziu a testa, perplexo, e ficou olhando para a porta.

Edmund Fëll murmurou para si mesmo:

— O tempo é curto... curto. Preciso fazer alguma coisa...

Depois de refletir por um momento, Fëll se apressou em sair da saleta e descer a escada. Atravessou a sala, com os mesmos olhares flamejantes pousados nele, e saiu pela porta lateral.

Fëll desceu uma trilha de pedras cinzentas, escavada no terreno coberto de vegetação, que ia dar em um quiosque à beira da água.


II

 

Monsieur Sachsen-Dorf estava sentado em um tamborete e se levantou para receber o detetive. Os olhos revelavam qualquer coisa estranha, secreta.

— Olhem quem vem aí! Herr Edmund Fëll.

Fëll não deu a menor atenção para sua ironia.

— Guten Tag, Monsieur — saudou Fëll jovialmente.

Amyr considerou o detetive, pensativo.

— Presumo que o senhor tenha vindo falar comigo, não é?

— Sim — disse Fëll.

Os olhos de Amyr se estreitaram.

— Pode ser mais tarde, Herr Fëll? Eu preciso dar uma saída e...

Ele apertou a mão do detetive com exagerada cordialidade e fez menção de subir os degraus da escadaria.

Fëll entendeu a manobra imediatamente e o deteve com um gesto.

— Espere, Monsieur. É um assunto inadiável.

Amyr hesitou.

Ele seguiu o detetive até o quiosque.

— Achei que o senhor estivesse investigando um assassinato, algo do gênero!

Fëll sorriu, muito afável.

— Não — respondeu. — De momento não estou tratando de nenhum assassinato.

— Mal posso acreditar. Mas diga... O que posso fazer pelo senhor?

— Ah, é uma coisinha de nada — disse Fëll.

— Bem... Confesso que estou bastante curioso.

— Ora essa, é uma coisa muito simples. Só uma formalidade.

Amyr deu um olhar desconfiado.

— Uma formalidade, não é?

Fëll apressou-se a explicar em poucas palavras o motivo da sua visita.

— Trata-se de uma certa senhora.

— Ah, uma mulher! — exclamou o arqueólogo. — O senhor veio me dar uma facada nas costas, não veio?

Fëll, por sua vez, sorriu com melancolia.

— Não vejo isso como uma facada nas costas. Quero colocar as cartas na mesa com o senhor. Todas essas brigas e picuinhas. Em primeiro lugar, não é justo com sua esposa. O senhor gosta de sua esposa, tenho certeza.

— Gostava — respondeu Amyr, aborrecido.

— Desejo só o seu bem, Monsieur — disse Fëll.

— Ah, é? Na certa, o senhor quer que eu desista de Henriette! Como se fosse fácil deixar de amar uma mulher!

— Talvez não seja fácil, Monsieur, mas é a coisa correta.

— A coisa correta que eu poderia fazer seria vender minha casa e começar vida nova em algum outro lugar.

— E não crê que os comentários possam segui-lo até lá?

Amyr deu de ombros.

Como será que ele realmente se sentia em relação a isso, ficou imaginando Fëll. Sua compostura era tão absoluta que o detetive não fazia ideia de quais eram seus sentimentos.

Fëll respirou profundamente algumas vezes antes de continuar:

— Não vim para dar uma lição de moral. Só peço que seja honesto. Se não quiser mais Mrs. Pompadière, sua legítima esposa, separe-se dela legalmente, Monsieur. Deixe clara a sua decisão. Apesar de tudo o que aconteceu, ela acha que o senhor ainda voltará para ela. Não favoreça esse ar de mistério. Fale com ela, diga a verdade.

— Essa é a sua mensagem? — grunhiu Amyr.

— É sim, Monsieur — respondeu Fëll.

— Pois bem, Herr Fëll, eu gostaria que o senhor deixasse esse caso comigo. Daqui a um dia, mais ou menos, vou expor minha decisão, está bem? Puxa, parece que estou cercado de inimigos! Dez inimigos! Primeiro deles, claro, Sonia... Depois, o senhor... Serafine, minha filha Serafine, que agora diz que não sou mais pai dela... Gerbran, que ficou brabo comigo por causa de uns míseros trocados... Neill, meu ex-amigo Neill, o amante enciumado... Minha sexta inimiga, a Signora Suzan Victalle, que veio para cá a fim de resgatar o glorioso nome dos Lilinburg... Depois, o Signor Victalle, marido dela, que tem raiva de mim por um erro cometido por não-sei-quem! Depois, Briggite Nerwcare, louca para tomar posse do meu tesouro paleolítico. Em nono lugar, Gervois... o meu valioso Gervois! E por fim, a própria Henriette, minha doce e querida Henriette. Dez inimigos!

Amyr levantou os olhou e mordeu os lábios, sentindo que talvez tivesse se exposto demais.

Levantou-se.

— Preciso ir. Desculpe-me, Herr Fëll. Acho que falei um monte de bobagens.


III

 

— É, a senhora parece estar se divertindo, titia — disse Suzan Victalle. — Imagino que esteja apaixonada pelo arqueólogo?

Henriette Lilinburg murmurou num suspiro:

— Sim.

— E imagino também que ele esteja apaixonado pela senhora.

Outro suspiro afirmativo.

— É incrível que a senhora esteja tão feliz! — reclamou Suzan Victalle.

Henriette Lilinburg deu um olhar para a sobrinha. De uma menina fraca e anêmica, ela tinha se tornado uma bela mulher, uma mulher muito audaciosa.

— Ah, acho que preciso contar uma coisa — disse. — Se bem que você já deve ter adivinhado. Amyr me pediu em casamento.

— Quando foi isso? E vai aceitar?

— Acho que sim... Por que digo isso? Claro que vou.

— Mas titia! A senhora nem conhece esse homem?

— Pode ser que pareça uma grande tolice, Suzan, mas eu o amo.

— Dá para ver que a senhora o ama.

— E ele me ama — disse a tia.

— Isso também dá para ver. Ele tem cara de macaquinho amestrado.

— Amyr não tem cara de macaquinho amestrado!

— Homens apaixonados sempre têm cara de macaquinhos amestrados.

Dessa vez, Henriette Lilinburg não respondeu tão rápido. Falou devagar:

— Eu sou bem crescida para saber o que é melhor para mim.

— Estou perturbada, titia — disse Suzan.

Mrs. Lilinburg falava de maneira grave.

— Perturbada... por minha causa?

— Sim. A senhora sempre escolhe o caminho mais perigoso.

Mrs. Lilinburg disse:

— Oh, desculpe, não era minha intenção. É claro, foi muita estupidez minha, mas imaginei que você ficaria feliz, Suzan! Claro que eu sei que isso não está certo... Por favor, vejam que eu me apaixonei por um bom homem. Eu não queria ser tão estúpida... Eu... eu sei que sempre faço a coisa errada...

Suzan Victalle fez uma análise minuciosa do constrangimento da tia. Imediatamente, ela isolou duas frases: “Imaginei que você ficaria feliz, Suzan!” e “Eu não queria ser tão estúpida”.

Suzan Victalle examinou aquele último comentário. Sim, sua querida titia Henriette Lilinburg poderia, de certa maneira, ser considerada estúpida. Mas, apesar de tudo, uma estúpida de bom coração...

— Ah! Titia! — disse Suzan, desanimada. — A senhora é uma peste!

— Por que você está dizendo isso, Suzan?

— Porque é verdade... A senhora se lançou em uma aventura com um homem... casado. Isso se chama bigamia. Agora, parece-me que não há mais volta.

— Tem razão... — concordou Mrs. Lilinburg, falando devagar. — Agora não há mais volta.


Capítulo 6

 


Naquela noite, depois do jantar, Fëll e Suzan Victalle acabaram a sós na sacada da Mansão Carruthers.

Fëll espiou a mulher através da lente de seu monóculo.

— Aconteceu alguma coisa? A senhora parece aborrecida.

— Estou aborrecida sim. Enfim... não importa.

— Minha cara Signora — disse Fëll —, não deixe as coisas a preocuparem tanto assim!

— Em geral não deixo — disse Suzan.

— Mas está deixando. Está aí, toda assustada.

Suzan respondeu:

— É que estou meio... Bem, furiosa. Nem sei o que dizer ou como explicar.

— Por que não dizer apenas: “Minha tia quer se casar com um homem casado”.

— Assim, curta e grossa? — Suzan riu, meio sem querer. Fëll riu junto.

— Não é a melhor maneira?

— Talvez — ela hesitou. — Titia é meio louca! Engatar um namoro com um homem comprometido. Ah! Ah! É de matar.

Suzan Victalle deu uma risada histérica.

Ela era um monumento em forma de mulher. Era esbelta sem ser magra, tinha uma beleza artística, quase oriental. Talvez fosse a ligeira obliquidade dos olhos que lembravam o Oriente.

Fëll não respondeu, e Suzan continuou:

— Uma mulher com essa idade aprontar uma coisa dessas!

Fëll escutava as palavras de Suzan Victalle, mas, por mais que se esforçasse para entender seu raciocínio, tudo parecia tão... incoerente.

Fëll conferiu discretamente o relógio. Oito e meia... Deu um pigarro e perguntou:

— Sua tia é viúva há muito tempo?

— Treze anos — disse Suzan. — Tudo culpa de meu tio! Todo mundo o aconselhou a não ir para Damasco, mas ele era teimoso. Foi morto por contrabandistas. Não é a primeira vez que titia age dessa maneira. Ela se acha tão senhora de si! Tão arrogante! Titia é entusiasta dessas bobagens antropológicas, sabe? Não é à toa que ela ficou tão obcecada pelo espetacular Monsieur Sachsen-Dorf! É como se ela estivesse resgatando a memória de titio vivendo uma aventura platônica. Amor uma ova! Desde ontem de manhã que estou lutando com ela, Herr Fëll. Sabe qual é a única resposta dela? “Eu não vou! Está decidido!” — concluiu Suzan imitando os trejeitos da tia. — Ela só pensa em si mesma, na sua própria realização pessoal. E eu? Será que a minha opinião não conta?

Fëll limitou-se a encolher os ombros.

— Muitas mulheres se encaixam nessa categoria. Não ligam para ninguém, exceto para si mesmas.

Fëll sentia as pálpebras pesadas de sono. Fechou a boca com força para conter um bocejo.

Suzan Victalle olhou irritada para a luz dos globos que se espelhava nas águas negras do lago.

Atrás deles, a porta de vidro se entreabriu e apareceu o rosto de um homem jovem e moreno.

— Tudo bem aí? — perguntou ele.

Fëll viu que era o Signor Colbert Victalle.

Tipo convencional. Talvez rico. Confiável. Bom coração. Bem-humorado, ao que tudo indicava. E caído de amores por sua mulher.

Colbert veio para a sacada, fechando discretamente a porta atrás de si. Colbert olhou para Fëll com um olhar penetrante.

— O senhor é o detetive, não é? Hum... Só espero que não esteja dando corda nas loucuras de minha mulher!

— Você devia me apoiar, Colbert, não ficar contra mim! — reclamou Suzan.

Colbert enlaçou a mulher com os braços.

— Por acaso estou contra você, mi amor? — perguntou ele. —Amo você. Amo. Amo. Você quer uma prova de amor? Posso eliminar qualquer uma daquelas pessoas! Peça! Peça e eu farei!

Suzan disse:

— Que horror! Feche essa boca, Col! Imagine o que Herr Fëll vai acabar pensando de você!

Ela deu um olhar cândido para Fëll.

Mas Fëll não tinha escutado a insinuação de Colbert. Estava ocupado reprimindo outro bocejo.

Colbert virou-se para o detetive.

— O senhor sabe que eu estou brincando, não sabe?

— Brincando, Signor Victalle? Sobre o quê?

— Está vendo, Suzan? Herr Fëll nem mesmo está prestando atenção em nós!

Felizmente para Fëll, o Juiz Donalt Warning subia a ladeira, fugindo do torvelinho de gente reunido nos quiosques.

O detetive pôs-se de pé e, murmurando uma desculpa qualquer, retirou-se para a sala de visitas.


II

 

— Ufa! — resmungou o juiz, dali a segundos.

— Por onde tem andado, Herr Richter? — perguntou Fëll.

— Ah, não sei. Por aí. Nada de mais.

O juiz se acomodou na poltrona, bufando e alargando o colarinho.

Logo depois estavam mergulhados em agradáveis recordações, lembrando fatos em comum.

O Juiz Warning deu um profundo suspiro de satisfação.

— Ah! — exclamou. — Não há nada como relembrar os bons e velhos casos! A propósito — continuou —, o que o senhor achou do nosso triângulo amoroso?

Fëll respirou fundo antes de responder:

— Monsieur Sachsen-Dorf e suas duas esposas! Parece que Mrs. Lilinburg... bem... é uma mulher extremamente atraente.

— Mas Sonia não fica atrás — afirmou o Juiz Warning.

— Sim, ela tem seus atrativos — admitiu Fëll.

— É inacreditável que um homem possa deixar Sonia, que é uma pessoa de rara qualidade, por... por uma Mrs. Lilinburg da vida! — replicou o Juiz Warning.

— Mas acontece com frequência — disse Fëll com calma.

— É uma idiotice. Acho que existe uma passagem bíblica que se aplica como uma luva a tipos como Monsieur Sachsen-Dorf. São belos por fora, mas, por dentro, estão cheios de ossos de mortos e de toda sorte de impureza.

— Referia-se aos fariseus — concordou Fëll.

— Se eu fosse esse cara, logo me cansaria de Mrs. Lilinburg! Que mulherzinha! Uma autêntica devoradora de homens. Anos atrás, Mrs. Lilinburg levava uma vidinha monótona! Daí começou a namorar o tal do Brannigum e, como uma estrela em ascensão, tornou-se o centro dos holofotes. Agora está aí, grudada como uma sanguessuga em Monsieur Sachsen-Dorf.

— Paixões súbitas e calientes raramente duram muito tempo — disse Fëll.

— E depois?

— Às vezes, o antigo casal volta a viver junto.

O juiz balançou a cabeça.

— Ah! Não conte com isso. Sonia é muito orgulhosa.

— O senhor acha?

— Tenho certeza.

Fëll tossiu.

— Mas — disse ele — ela não foi embora!

— Bem, aqui é a casa dela, não é?

— Se o senhor quer colocar as coisas nestes termos...

O juiz esfregou o queixo.

— O senhor acha que Sonia ainda... que ela ainda goste dele e que... ah, não! Não posso acreditar nisso.

— Mas pode ser — opinou Fëll.

Houve uma pequena pausa e então Fëll perguntou:

— Eu me enganei, ou Madame e Mademoiselle Nerwcare estão aqui?

— Estão sim. Imaginar que ela já foi uma mulher rica e abastada! Tinha uma casa em Chichester, com camareiras e tudo. Perdeu milhões em investimentos na bolsa. Está falida.

— Você me dizia que Madame Nerwcare terá parte na herança de Monsieur Sachsen-Dorf — lembrou Fëll.

— Pelo que sei, eles se conheceram em Southampton, na costa sul da Inglaterra. Na época, Madame Nerwcare vivia bem, muito bem. Amyr se solidarizou com ela quando soube da degradação de seu patrimônio familiar.

— O que ela faz atualmente? — perguntou Fëll.

— É escriturária de contabilidade.

— E a filha?

— Tem um cargo numa firma de fretamentos.

Através da vidraça da porta interna, Fëll viu uma silhueta: um homem grande usando um chapéu de feltro amarrotado e quase sem forma.

O homem empurrou a porta e disse:

— Olá, cavalheiros! Posso entrar?

O juiz o encarou, respirou fundo e o encarou novamente. Aqueles malares largos, o rosto quase sem cor, o cabelo castanho-avermelhado. Sim, era...

O juiz disse ofegante:

— Mr. Brannigum!

Neill Brannigum riu.

— Em carne e osso.

Um ligeiro eco de memória despertou em Edmund Fëll. Era um rosto de que ele se lembrava, de dias atrás, quando ele estivera na Torre de Danúbio.

Com um acentuado sotaque britânico, especial para a ocasião, Neill Brannigum disse:

— Juiz Warning?

— Prazer em vê-lo. Achei que estivesse na Antuérpia.

Neill Brannigum sorriu e disse:

— Estava. Voltei essa semana.

Por baixo de seu jeito espontâneo, Fëll farejou um traço de... nervosismo?

— Muito bem. — O juiz apontou para o detetive. — Este é meu amigo, Edmund Fëll.

— Como vai? — disse Neill, um tanto atrapalhado. — É um grande prazer conhecê-lo, Herr Fëll.

— Ebenfalls — disse Fëll.

O Juiz Warning ofereceu uma cadeira.

— Sente-se. Você pretende ficar em Viena por muito tempo?

— Ah, agora que enfim voltei, não tenho pressa de ir embora!

— Você veio direto da Antuérpia?

— Pode-se dizer que sim.

Eles começaram a falar daquele país.

Neill disse:

— Passei dias especialmente difíceis desde que... bem, desde que fui largado por Henriette.

— Mrs. Lilinburg — disse o juiz — foi uma tola.

Neill disse:

— Não entendo por que Henriette quis ficar com Amyr! Por dinheiro? Não, não pode ser.

E deu de ombros.

Fëll disse:

— Bem, o senhor pensa em fazer as pazes com Monsieur Sachsen-Dorf?

— É o que veremos — disse Neill.

Neill aguçou os ouvidos. De um limbo distante, vinha o som de um saxofone tocando um foxtrote.

— Mal que eu pergunte, o que está acontecendo? É uma festa de família?

O Juiz Warning e Fëll se entreolharam.

Fëll disse lentamente:

— Achei que o senhor deveria saber, Mr. Brannigum.

— Bem, desculpe-me... mas não sei.

— É uma festa de... noivado.

Neill corou.

— Céus! Festa de noivado? Noivado de quem. Não, não! Não me digam que é o noivado de...

Seu rosto estava pálido.

Fëll disse:

— Deixe-me fazer uma pergunta, Mr. Brannigum. O que o senhor veio fazer aqui?

Neill respondeu devagar:

— O que eu vim fazer aqui? Eu amava Henriette. Ela tinha prometido casar comigo. Havíamos até comprado as roupas nupciais. Mas, então... dias antes de oficializar nossa vida conjugal... ela se apaixonou por um de meus melhores amigos. “Não amo mais você!”, disse ela. Henriette disse que não me amava mais! Vocês... conseguem... imaginar?

Fëll disse, como se adivinhasse o resto da história:

— Veio reconquistar Mrs. Lilinburg, Mr. Brannigum?

Neill passou a língua sobre os lábios.

— Eu... vir para reconquistar Henriette? É claro que não. Só vim visitar um amigo.

Sacou um embrulho e, extraindo uma garrafa de vinho, acrescentou:

— Comprei até uma coisinha para ele. Vinho branco do Reno. Não sou um homem vingativo, se é o que estão pensando. Eu gostava de Henriette. Gostava, e muito. Fiquei feliz, aliás, quando vi o senhor falando com ela. Foi um gesto bonito, Herr Fëll, e agradeço por isso.

Fëll fez um aceno melancólico.

Definitivamente, não achava que tivesse feito muita coisa.


Capítulo 7

 


Na manhã seguinte, Edmund Fëll estava em uma tenda dos tradicionais cafés no calçadão da Rua Graben.

— Bom dia, Herr Fëll! — soou um gritinho no meio da multidão.

Fëll se virou a tempo de ver Serafine Sachsen-Dorf acenando para ele. Os cabelos da moça estavam atados na nuca com uma fita de veludo da cor azul.

— Miss Sachsen-Dorf! — disse Fëll.

Com uma voz clara e amigável, Serafine disse:

— Herr Fëll! O senhor sabia que papai prometeu mandá-la embora? Oh! Não é fantástico?

Fëll se sentiu meio confuso.

Fëll perguntou, com delicadeza:

— Vai mandá-la embora? Quem?

Serafine deu um pulinho, entusiasmada.

— O senhor ainda pergunta? Henriette, ora.

Fëll encarou a moça.

Ele limpou a garganta.

— É mesmo... fantástico, Miss. Mas eu julguei que ontem... a festa... fosse em homenagem ao noivado.

Serafine fez que sim com a cabeça.

— Foi sim. Papai estava fascinado por Henriette, é verdade. Mas o senhor falou com ele, não foi? Parece que deu certo! O senhor é um homem maravilhoso!

Fëll não sabia direito o que dizer.

Murmurou:

— Mas ele não está feliz, não é mesmo, Miss?

— Se papai está infeliz, é problema dele — falou Serafine. — Afinal de contas, alguém que comete um erro precisa assumir as consequências.

Fëll sorriu.

— Assumir as consequências de seus erros não é bem o forte de Monsieur Sachsen-Dorf.


II

 

O céu limpou depois do almoço e os Sachsen-Dorf se reuniram em torno do lago.

À direita do quiosque, um trapiche levava até a porta da casa de barcos, que era construída por cima do rio, com um pequeno píer e um local coberto para guardar barcos.

Suzan Victalle embarcou num dos barcos amarrados. Imperiosamente, gritou para o marido parado na margem:

— Vamos dar um passeio, Colbert. Ah, isso é tão bom!

— Eu não creio... — começou Colbert.

Suzan sacudiu a sombrinha:

— Colbert! Não me faça ir aí. Venha já para cá!

Contrariado, o marido se aproximou do cais e pulou para dentro do bote. Suzan apontou os remos e disse:

— Agora reme, seu bruto. Reme. Reme.

— Ao seu dispor, Vossa Excelência — rosnou Colbert.

Do alto de um morrinho, Madame Nerwcare, a filha e Serafine Sachsen-Dorf contemplavam a excêntrica cena.

Madame Nerwcare meneou a cabeça:

— Esse espanhol é manso como um cordeirinho.

A filha franziu as sobrancelhas.

— Que mulherzinha mais mandona!

— Não diga isso, Ni — disse Madame Newcare.

— E não é? Se eu fosse o marido, já teria posto inseticida no café dela.

— Eu discordo de você, Nivea querida — disse Serafine. — Suzan pode ser mandona, mas lembre-se que ela ajudou a salvar nossa família.

— Pensei que isso tivesse sido obra daquele detetive com monóculo! — disse Nivea.

Nivea olhou para Serafine, mas os olhos de Serafine estavam fixos no casal no bote.

Serafine disse:

— Também. Digamos que foi um trabalho em conjunto. Para mim, Suzan foi um amor!

— Está vendo, filha? — disse Briggite Nerwcare.

Nivea fungou como uma locomotiva a vapor.

— Até você, Fine, está defendendo mamãe! Logo você.

— É que estou feliz, Nivea! — exultou Serafine. — Feliz!

— Grande coisa! — respondeu a amiga francesa. — Não acho que sua alegria vá durar muito.

— Que quer dizer?

— Olhe você mesma!

Nivea fez um gesto para algum lugar acima delas.

Serafine desencostou-se da cadeira dobrável e olhou para cima.

Caminhando pelo caminho das pedras, vinha Mrs. Lilinburg. Sua aparência estava bastante transformada: usava um vestido azul bem claro e seu penteado se constituía de uma intrincada mistura de tranças e presilhas.

Os olhos de Mrs. Lilinburg estavam fixos no quiosque, onde Monsieur Sachsen-Dorf podia ser visto ao lado de Monsieur Oliviê.

Serafine estremeceu.

— Ela parece estar em boa forma — disse Nivea.

— E desesperada — completou Madame Nerwcare.

Alheia a tudo, Mrs. Lilinburg sentou-se a uma mesa, a alguns metros de distância do trio.

Parecia um melodrama de má qualidade.

Amyr Sachsen-Dorf estava sentado, digitando alguma coisa em uma velha máquina de escrever. Aqui e ali, o tec-tec-tec-tec... terec... tec... vrum... dííín era cortado por pausas, umas curtas, outras mais longas, durante as quais ele consultava suas anotações para, em seguida, formular a sentença seguinte.

Ao ver Mrs. Lilinburg, Gerbran Oliviê comentou para o amigo:

— Parece que alguém quer falar com você.

Com um ar de infinito aborrecimento, o arqueólogo exclamou:

— Essa não! Malditas mulheres!

Inconformado, Amyr recolheu suas coisas e, deixando o quiosque para trás, foi para o trapiche que avançava pelo lago. Arremessou a máquina de escrever na mesa de granito e, tomando lugar no banco, continuou copiando as notas espalhadas em seu caderno pessoal.

“Se ele quer paz, acabou de ir para o lugar errado”, pensou Gerbran com prazer malicioso.

Para lá do cais, Mrs. Pompadière e a governanta recolhiam rosas numa cesta de vime. Ma’am Pupu viu, com o canto do olho, Mrs. Lilinburg sair da mansão e se posicionar em sua trincheira, à direita delas.

Com seu tato peculiar, Ma’am Pupu tentou entreter sua patroa, disposta a tudo para evitar uma guerra campal entre as duas mulheres.

— Finalmente temos sol e tempo firme! — disse Ma’am Pupu. — Viena é um lugar adorável. Não acha, senhora?

— É gostoso durante o dia — respondeu Mrs. Pompadière. — Quando não chove — completou.

Enquanto as duas prosseguiam recolhendo as flores, Gervois Lutlum estava sentado, cabisbaixo, longe da agitação, debaixo da sombra dos abetos. Tinha um livro aberto sobre os joelhos, mas não estava lendo: seus olhos estavam fixos na planície abaixo de si.

Gervois Lutlum viu quando Mrs. Lilinburg saiu da mansão e, como uma pantera, sentou-se num lugar de onde podia encarar Monsieur Sachsen-Dorf. Gervois também viu a reação de Amyr Sachsen-Dorf, e sua desastrada fuga para o trapiche.

Aquilo até que era divertido!

À direita de Gervois, as três mulheres tagarelavam sobre o comportamento de Mrs. Lilinburg.

— Ela está louca de ciúme — disse Madame Nerwcare.

Carregando a cesta com as rosas, a governanta se separou de Mrs. Pompadière e caminhou para a mansão.

Mrs. Pompadière, por sua vez, foi para o quiosque e, dando um ‘olá!’ sorridente para Gerbran Oliviê, esgueirou-se para trás do barzinho.

Foi um sorriso farto, aberto e descomprometido. Gerbran achou que, no todo, fazia meses que Mrs. Pompadière não sorria assim.

Depois de quinze minutos, Ma’am Pupu voltou carregando uma bandeja de sucos e gelados.

— Como essa mulher é gorda! — avaliou Nivea. — Olhe só as dobras no abdômen! Uma dieta não faria mal.

Serafine deu de ombos.

— E você acha que Ma’am Pupu faria uma dieta? É mais fácil ensinar o bê-á-bá a um jumento.

— Busque um suco para mim, Ni — disse Madame Nerwcare, mexendo o leque.

— Ah, não, mamãe! Eu não vou. Vá a senhora!

Com toda a contrariedade, Madame Nerwcare foi obrigada a se levantar e ir ao encontro da governanta.

Serafine inclinou-se para frente. Ouviu que Madame Nerwcare estava interrogando Ma’am Pupu.

— O que sua mãe está fazendo?

— Adivinhe! — disse Nivea. — Ela está escolhendo um suco, é claro.

Depois de terminar seu questionário, Madame Nerwcare pegou o copo com uma palavra de agradecimento e, se equilibrando nos saltos, voltou para sua cadeira.

— Poderia ter trazido um suco para nós, mamãe! — disse Nivea.

— Ai, mil desculpas! — disse Madame Nerwcare, um pouco ofegante, porque tinha caminhado depressa demais. — Eu me esqueci das duas miladys?

— Sua falsa! — rebateu Nivea. — Venha, Fine. Vamos logo, antes que a promoção acabe.

Simultaneamente, mais abaixo, Henriette Lilinburg levantou-se abruptamente e, dando as costas para o lago, abordou a governanta.

— Tem vinho?

Ma’am Pupu arregalou os olhos.

— S-sim, Madame. Quer dizer... não!

— Não? De quem é essa taça?

— É-é... de Monsieur Sachsen-Dorf — disse Ma’am Pupu.

Henriette respondeu secamente:

— É mesmo? Ótimo! Eu me encarrego de levá-la para ele.

Desconsiderando o espanto da mulher, Henriette tomou a taça e, sem se intimidar, foi na direção do trapiche.

Do barzinho, Mrs. Pompadière gritou:

— Não se atreva, Henriette! Fique longe de meu marido! Não chegue perto dele! Henriette!...

Surda aos apelos, Mrs. Lilinburg ficou olhando enquanto Mrs. Pompadière gesticulava feito uma possessa e seguiu adiante com inabalável coragem.

— Como ela ousa? — balbuciou a pálida Mrs. Pompadiére. — Amyr é meu e não vou abrir mão dele!

Gerbran Oliviê sorriu e virou a cadeira. Mexeu o gelo no copo de soda e pôs-se a contemplar o rio.

— Mulheres! — suspirou.

Meia hora mais tarde, Monsieur Sachsen-Dorf estava morto.


Capítulo 8

 


Edmund Fëll estava na charmosa Rua Schonlaterngasse, bisbilhotando as lojinhas e recantos, quando uma carruagem estacionou ao seu lado.

Da carruagem, apeou um homem de polaina e suíça. Trazia o colarinho solto numa ponta, uma gravata abanando, o chapéu caído para a nuca.

— Juiz Warning?! — perguntou Fëll, reconhecendo o amigo magistrado.

— Que sorte! — disse o juiz. — Estava justamente pensando em procurá-lo.

— O que foi?

— Uma tragédia! O que eu achava que aconteceria aconteceu. Monsieur Sachsen-Dorf morreu!

— O quê?

— Monsieur Sachsen-Dorf. Ele morreu, acabei de saber. Foi assassinado!

— Meu Deus! — disse Fëll, sentindo um aperto no peito. — Quando isso aconteceu?

— Hoje à tarde.

— Como foi?

— Não disseram. Só que parece ser homicídio.

— Alguma outra informação?

— Não. Eu só sei que há várias razões para desconfiar de irregularidades na questão da morte.

Fëll estremeceu. Lembrou-se nitidamente de Monsieur Sachsen-Dorf enumerando uma quantidade substancial de inimigos... de Mrs. Lilinburg tirando um frasco de veneno de sua bolsa... Lembrou-se de outras mil e uma coisas que tinha ouvido e visto nesses últimos dias.

— E a polícia? — perguntou Fëll.

— Está lá recolhendo os indícios. Preciso que venha comigo, se for possível, claro.

A carruagem passou por ruas e vielas e, depois de quinze minutos, Fëll e o juiz foram recebidos no local da ocorrência.

Um policial uniformizado, com a cabeça pequena e achatada, estava de guarda no portão.

— Não estou autorizado a deixá-los entrar, senhor.

— Entendo — Warning refletiu por um minuto. — Mas creio que o oficial de polícia está aí dentro, sem dúvida.

— Sim, senhor.

Warning tirou um cartão do bolso e nele escreveu algumas palavras.

— Schön! Você teria a bondade de providenciar a entrega imediata deste cartão ao oficial Wacht?

O policial pegou o cartão e, virando-se para trás, soprou o apito. Em alguns segundos um companheiro veio até ele e levou o cartão de Warning para dentro.

Houve uma espera de alguns minutos e então um indivíduo magro, com um par de olhos perscrutadores e ágeis, saiu apressadamente pelo portão. O nariz comprido como o bico de narceja formava um contraste agradável com o rosto.

O policial fez continência e deixou o caminho livre.

— Meu caro Herr Warning — saudou o recém-chegado —, que satisfação em vê-lo!

Warning disse:

— Oficial Wacht! É mesmo um grande prazer — e virou-se para Fëll. — Este é meu amigo, Herr Edmund Fëll, o homem que o senhor queria que eu trouxesse. O oficial Wacht.

O oficial e o detetive trocaram reverências cerimoniosas e então ele se voltou novamente para Warning.

— Fizemos conforme nos pediu, Meritíssimo. Mantivemos tudo sob o mais estrito isolamento. Por favor, entrem.

O policial reabriu o portão e o trio atravessou o pátio da Mansão Carruthers. O oficial Wacht seguiu falando:

— Eu sou o comissário encarregado do caso, Herr Fëll. Acabei de examinar a cena do crime e pretendia iniciar os interrogatórios em instantes.

— O que pode dizer sobre o horário da morte? — perguntou Fëll.

Wacht olhou para o relógio de pulso.

— Agora passa um pouco das cinco — ele respondeu. — Eu cheguei aqui por volta das três e meia... Monsieur Sachsen-Dorf estava morto havia mais ou menos uma hora. O corpo foi descoberto por volta das três horas. De acordo com os depoimentos do pessoal presente e da minha própria experiência, a morte deve ter ocorrido por volta desse horário. A autópsia deve fornecer algumas informações adicionais. Mas, por favor, queira entrar, Herr Fëll. Talvez o senhor esteja em melhor posição do que eu para adivinhar o que pode estar por trás de tudo isso.

Fëll ficou surpreso com a insinuação.

— O corpo foi retirado?

— Não retiramos nada.

— Há mais alguém aqui, oficial?

— Sim, minha equipe.

— E tocaram em alguma coisa?

— Nada.

— Agiu com muita discrição. Quem o chamou?

— Pelo que consta, foi um tal de Gerbran Oliviê.

— Foi ele quem deu o alarme?

— Sim.

— Onde ele está agora?

— Na sala de estar, eu acho. Junto com os outros.

Os três levitaram até o lago, onde um policial, com a austeridade de um monge jainista, montava guarda.

No trapiche, esparramado no banco de granito, estava o corpo inerte de Monsieur Sachsen-Dorf.

— Ali está nosso pobre amigo — disse o Juiz Warning.

Wacht disse:

— Tratava-se de uma celebridade local, não é assim? Mal o conheço, mas ele parecia ser muito conhecido em certos setores acadêmicos.

— Pelo que vejo, o senhor não acha que a morte tenha sido natural — disse Fëll.

Wacht respondeu:

— Sem a menor sombra de dúvida. Foi envenenamento. De qualquer maneira, pela forma como o corpo está dobrado para trás, não pode ser nada mais. Ao que me consta, a morte sobreveio logo depois que ele tomou um copo de vinho.

Fëll avançou um passo e olhou para o cadáver de Monsieur Sachsen-Dorf.

Fëll viu o rosto contorcido... o corpo contraído em agonia.

Os olhos estavam arregalados, porém sem expressão. Fëll se inclinou e olhou para dentro deles, como se desejasse encontrar algum brilho ou como se procurasse um vestígio de vida.

Concluído o exame preliminar, Fëll transferiu seu foco de atenção para a mesa de granito. Ajeitou o monóculo e fez uma silenciosa avaliação do cálice de vinho que, sob todos os aspectos, era o protagonista de toda aquela cena. Aparentemente era ali, naquele líquido transparente, que estava a causa mortis.

Fëll perguntou:

— Por que acha que tem veneno aqui dentro, oficial?

Wacht mostrou um ar de superioridade benevolente. Disse:

— Bem, eu já fui enólogo. Todo vinho desenvolve um buquê. Buquê é o aroma do vinho maduro e engloba as mutações físicas e químicas que ocorrem à medida que o vinho vai envelhecendo.

Fëll ergueu os olhos.

— E...?

— Acontece que eu senti neste cálice um certo odor. Um odor que, eu diria, não tem nada a ver com o buquê do vinho do Reno.

Ali estava um fato, um fato muito tênue, mas mesmo assim um fato...

— Mais alguma coisa?

O oficial Wacht disse:

— Não, senhor. Isso é tudo, senhor.

— Bem! — disse Fëll com um ar decidido. — Nesse caso, não posso fazer mais nada pelo senhor.

Wacht olhou para o detetive, incrédulo e assustado.

— Como... como disse, senhor?

— Eu disse que vou recusar o caso.

— Mas... por quê?

— Porque o senhor não está sendo franco comigo.

— Eu garanto... — balbuciou Wacht.

— Não, o senhor está me escondendo alguma coisa.

Houve um silêncio momentâneo. Finalmente, Wacht disse:

— Ah! Puxa vida! Agora o senhor me assustou. Tem mais uma coisa sim. Uma coisa... intrigante. Essa, aliás, é a razão por que requisitei a Herr Warning que o senhor viesse para cá.

Fëll lançou um intenso olhar de interrogação para Wacht. Este se limitou a mostrar a máquina de escrever. Fëll viu a folha de ofício na pauta.

— O que é?

— É uma relação das últimas aquisições de Monsieur Sachsen-Dorf. Um diadema de ouro usado pelos reis da Macedônia, uma pequena estátua de terracota, fragmentos de rolos de papiros de uma caverna ao norte de Jericó, etc., etc... Pule essa parte. Leia ali no fim!

O trecho indicado dizia o seguinte:

 

para fell:

m m M m m m m m m m


Nenhuma explicação, nada a não ser uma única frase formada com várias consoantes que levantava mil outras perguntas.

Fëll fez um gesto, intrigado com o texto à sua frente.

— Só isso?

— Só isso. Mas o que estou dizendo é... não sei o que estou dizendo... quero dizer... é um mistério... Meu Deus, o senhor sabe por que diabos o seu nome está aí?

— Não sei — disse Fëll. — Ainda não sei.

Wacht balançou a cabeça, desapontado.

— É uma pena. Achei que o senhor forneceria uma resposta. Reparem... a mensagem não tem trema no e, nem sinais diacríticos. Ou seja, quando viu que estava morrendo, Monsieur Sachsen-Dorf escreveu essas palavras. Como se quisesse deixar um recado... talvez uma pista...

— Pista para o quê? — perguntou o Juiz Warning.

— É o que gostaríamos de saber, Meritíssimo — disse Wacht. — A letra m, repetida dez vezes... A inicial do nome do assassino? Francamente, não entendi nada!

Fëll assentiu calmamente enquanto analisava as duas linhas de texto. Dez letras idênticas datilografadas com a máquina de escrever.

Dez emes.

Fëll fungou.

— Talvez não devêssemos nos preocupar com a pontuação. Talvez fosse melhor prestar atenção no significado.

E perguntou:

— Oficial, pode me imprimir uma cópia desse papel?

— Naturalmente. É uma evidência e, como tal, vou levá-la em máxima conta.

Fëll acrescentou:

— Já que podemos suplantar a hipótese de suicídio, só resta uma alternativa. Assassinato. Sabe se tinha mais alguém aqui na hora da morte de Monsieur Sachsen-Dorf?

— Tenho uma lista das pessoas — disse Wacht. — Umas sete ou oito pessoas. E suponho que qualquer uma delas pode ter feito isso.

“Vejam só”, recitou Fëll para si mesmo. “O cenário, a vítima e a arma”.

Fëll olhou para o Danúbio, na planície abaixo. A luz do sol poente pintava o céu de vermelho. Tudo calmo, e ali... a morte.

Edmund Fëll se virou para a Mansão Carruthers. Era um edifício muito grande, com uma varanda, telhados inclinados, águas-furtadas e torreões, à moda vitoriana. Atrás da cortina, vultos se moviam na sala. Alguém daquela gente... não sabia dizer quem... alguém assassinara Monsieur Sachsen-Dorf.

Fëll forçou-se a deixar essas especulações de lado para se concentrar de novo no caso.

— Disse, oficial, que fez anotações sobre os acontecimentos que precederam o assassinato...

Wacht folheou as páginas de sua agenda. Com a postura de quem vai enfrentar uma coletiva de imprensa, disse:

— Sim. Bem, como eu dizia, ouvi o Signor Colbert Victalle. Anos atrás ele era uma espécie de diplomata, ou adido da embaixada espanhola. Segundo o Signor Victalle, havia essas sete ou oito pessoas presentes. Pelo que entendi, Monsieur Sachsen-Dorf ficou separado da esposa por umas semanas e estava tentando uma reconciliação.

Wacht fez um resumo do relato de Colbert Victalle.

Falou dos aperitivos... do passeio de canoa... do assédio de Mrs. Lilinburg...

— Vejam só! — disse o juiz. — Então, antes de morrer, Amyr teve a nobreza de caráter de dar um fora naquela mulher?

Fëll concordou:

— E existe um fator agravante. Disse que quem trouxe o vinho foi Mrs. Lilinburg, não foi?

Wacht assentiu com a cabeça.

— Sim. Parece que a garrafa foi presente de um amigo. Vinho branco do Reno, o predileto de Monsieur Sachsen-Dorf.

Fëll disse:

— Presente de um amigo? Isso me lembra alguma coisa. Sim, sim... Deve ser Mr. Brannigum. Mr. Brannigum trouxe uma garrafa de vinho, ontem à noite. Rápido, oficial. Precisa recuperar a garrafa e levá-la para uma análise em laboratório!

— Acha que o veneno...?

— É uma possibilidade — disse Fëll.

Wacht ergueu a mão.

— Certo. Vou resolver isso.

E, chamando o policial-jainista, deu algumas ordens curtas.

— Claro! — disse o policial sem hesitar, fazendo uma pirueta e partindo na sua missão.

O Juiz Warning assobiou baixinho:

— Mr. Brannigum, quem diria!


II

 

Nesse momento, Gerbran Oliviê apareceu por um caminho de tijolos vermelhos, marginado de dálias, que ia até a porta da casinha de ferramentas.

Como numa peça teatral, todas as atenções se voltaram para ele.

Wacht, de rosto ingênuo, foi até ele e disse, um tanto hesitante:

— Monsieur Oliviê, não?

Gerbran disse que sim, depois perguntou:

— Quem é o senhor?

Como resposta, Wacht tirou um cartão do bolso. Gerbran leu em voz alta:

— Oficial Wacht, Bundeskriminalamt.

— Exatamente, seu moço.

Wacht explicou: havia certas questões de rotina. O cavalheiro teria, talvez, a gentileza de acompanhá-lo e trocar uma palavra com eles. Os regulamentos da polícia...

— Para contar o que sei a respeito dessa história? — retrucou Gerbran, pensativo. — Tudo bem, oficial. Vamos lá.

Gerbran acompanhou o oficial até o lugar onde estavam Fëll e o Juiz Warning.

— Deixe-me apresentá-lo a estes dois senhores — disse Wacht. — Este é Edmund Fëll, detetive consultor. E aquele ali é... ahn... o Juiz Warning.

Gerbran sorriu para a dupla.

— É estranho, não é — disse ele —, que a gente se reencontre nessas circunstâncias tão terríveis.

Fëll e o juiz fizeram uma mesura para o francês.

Gerbran virou-se para Wacht.

— Deseja ver minha identidade? — perguntou. — Aqui está.

O oficial tentou recusar, mas acabou tomando o documento das mãos dele.

— Obrigado, Monsieur — disse. A seguir, pigarreou. — Mas o que realmente desejamos são algumas informações.

Quase sem querer, Gerbran olhou para o corpo no banco. Com um pesar que não convenceu ninguém, disse:

— Pobre homem! Que desgraça! — Interrompeu a frase. E continuou: — Parecia que Amyr estava doente. Ele já não era novo, não, de jeito nenhum. Eu pensei que ele tivesse tido um ataque. Não que eu pensasse nada de mal nesta hora... Suponho que tenham descartado a hipótese de suicídio.

— Sim — disse Wacht. — Descartamos.

Gerbran estremeceu.

— Oh! Isso significa que foi assassinato! A notícia vai correr bem rápida, ouso dizer.

Fëll olhou para o francês.

Fëll disse, devagar:

— De fato, Monsieur, são circunstâncias terríveis.

Gerbran concordou.

Não parecia contrariado nem espantado. Sua atitude era a de quem passara por uma experiência inédita.

— Monsieur Sachsen-Dorf nunca falou de ter receio de alguém, ou de alguma inquietação? — perguntou Fëll.

— Para mim não, ele nunca falou nada.

— E ele estava bem? Não parecia chateado com alguma coisa?

— S-sim, acho que Amyr estava chateado. Com uns modos estranhos. Insatisfeito com alguma coisa... bem... não era insatisfação... Era estresse. Se bem que eu não tenha notado no início. Mas agora que o senhor falou... muito estressado, sim...

— Preocupado com alguma coisa?

— Oh não, preocupado não.

Fëll esperou, paciente.

— É difícil de explicar — continuou Gerbran. — Sabe, Amyr não era mais a mesma pessoa. Às vezes chegava a ser irritante. Francamente, houve ocasiões em que pensei que ele estivesse... meio variado das ideias. Se vangloriava e começava a inventar as histórias mais malucas. Que iria se casar com outra mulher. Que compraria uma casa em Georgetown. Anos atrás ele era muito reservado, não deixava transparecer nada. Mas ultimamente estava transtornado, eufórico, e positivamente... olha... pensando em mudar de vida, essas coisas. Totalmente diferente do sujeito que ele era. Mrs. Pompadière estava muito preocupada por causa disso.

— Ah, ela estava preocupada, é?

— Sim. Sabe, eles sempre foram muito unidos. Mas de uns anos para cá...

— Já não se entendiam mais tão bem assim — disse Fëll.

— Pois é. Amyr andou traindo a confiança da esposa.

— E brigaram por causa disso?

— Creio que a briga não tenha sido entre Amyr e a Mrs. Pompadière — disse Gerbran. — Mas é claro que Mrs. Pompadière estava fora de si... para gritar daquele jeito, não é?

— Ah, ela gritou? O que ela disse?

— Foi hoje à tarde. Mrs. Lilinburg levou o copo de vinho para Amyr... e Mrs. Pompadiére gritou algo como: “Não se atreva a fazer isso! Fique longe de meu marido!”

— E todo mundo ouviu?

— Bem... sim.

— A bem dizer, sou um pouco culpado pelo que aconteceu — murmurou Gerbran.

— O senhor... culpado?

— Não, não estou dizendo que tramei o assassinato, nem nada disso. Refiro-me ao fato em si. Eu estava ali, diante da bancada do barzinho. Lá, naquele morro, estavam Madame Nerwcare, a filha e Serafine. O espanhol, o tal Victalle, e a esposa estavam num barco, no rio. A governanta porto-riquenha monopolizava a atenção de Mrs. Pompadière. O secretário Lutlum estava ali, debaixo dos abetos. Eu vi tudo, senhores! Vi quando a governanta trouxe a bandeja com as bebidas: sucos e café para todos, com exceção de Amyr que, pelo jeito, pediu a sua dose regular de vinho. Vi Mrs. Lilinburg apanhar o cálice e, sem se importar com os protestos, trazer o cálice para cá. Grande idiota! Eu deveria ter feito alguma coisa. Se eu tivesse feito alguma coisa, Amyr ainda estaria vivo!

Fëll disse:

— Então, baseando-se em sua visão das coisas, quem matou seu amigo foi Mrs. Lilinburg?

— Sim. Assombroso, não é?

— Pode ser. Pelo que sabemos, Monsieur, a bebida pode ter sido envenenada de duas formas: uma, como o senhor acabou de mencionar, no cálice. Nesse caso, nossa primeira suspeita seria sim Mrs. Lilinburg. Ou, a segunda forma: o veneno pode ter sido inoculado diretamente na garrafa. Há algo que o senhor saiba sobre Mrs. Lilinburg que possa nos ajudar?

— Realmente, não sei muita coisa sobre ela — disse Gerbran.

Fëll prosseguiu:

— Acha que, além de Mr. Brannigum e Mrs. Lilinburg, outro alguém possa ter cometido esse assassinato, Monsieur?

Gerbran franziu a testa.

— Como é que vou saber? Como poderia saber?

— Acho que o senhor deve ter uma ideia bem clara sobre esse assunto.

— Não tenho. Eu garanto que não tenho.

Fëll esperou, mas parecia que Gerbran não tinha mais nada a acrescentar.

— Foi bom ouvi-lo, Monsieur Oliviê. Vai ter que repetir o que disse para nós, sabe disso?

— Imaginei que sim.

— Quer me dar o seu endereço, por favor?

— Meu endereço? Por quê?

— Para que possamos entrar em contato, caso necessário.

Gerbran informou o nome do bairro e da rua.

O policial reapareceu, trazendo uma garrafa de vinho.

— Pronto, senhor!

Wacht apanhou a garrafa.

— Estava guardada na geladeira?... no frigobar?

— No frigobar, senhor.

— Bom trabalho — disse Wacht. — Deixe-me ver. Rolha de cortiça... Suspeito. Muito suspeito. Mande para uma análise química, por favor.

— Está bem, senhor — disse o policial, e se afastou de novo.

Wacht se virou para Fëll.

— Estou muito grato ao senhor, Herr Fëll. Espero que nos dê a honra de nos auxiliar nas investigações. Ou será que está envolvido em algum outro caso?

— Bem, oficial — disse Fëll. — Não estou envolvido em nenhum outro caso. Se quiser, me sentiria lisonjeado se me permitisse ajudá-lo a descobrir o assassino.

Wacht balançou a cabeça, satisfeito.

— É um sentimento digno de honra. E, sem dúvida, Mrs. Pompadière ficará interessada em contar com seus serviços. Afinal, o marido dela foi morto. Enquanto isso, gostaria que o senhor tomasse conta dos interrogatórios iniciais.

— Fico grato, oficial — disse Fëll.

— Agora, se se me dão licença, preciso cuidar do transporte do corpo.

Wacht partiu, acompanhado de Gerbran Oliviê.

O Juiz Warning olhou para Fëll.

— O que faremos agora, meu amigo?

Fëll refletiu.

— Creio que, de posse destes primeiros esclarecimentos, seria conveniente começar o interrogatório das testemunhas. O que cada um viu e o que não viu, etc. Temos que determinar quem matou Monsieur Sachsen-Dorf. E, desde já, estou aberto a sugestões.


Capítulo 9

 


— Acho que devíamos falar com Mrs. Pompadière — sugeriu o Juiz Warning.

Fëll assentiu vigorosamente com a cabeça.

— Certo. Vamos lá.

Em fila indiana, os dois companheiros subiram até a mansão.

Quando entraram pela porta da frente, ouviram um murmúrio de vozes. Fëll abriu a porta da sala de estar.

Todos os olhares se voltaram para eles.

A primeira pessoa que Fëll viu foi Serafine Sachsen-Dorf, sentada no sofá. Fëll olhou telescopicamente para ela através de seu monóculo.

Seca, formal e atrevida, Serafine Sachsen-Dorf era um singular exemplo de vitalidade. Não havia lágrimas rolando pelo seu rosto, mas Fëll achou que seus olhos estavam úmidos. Ao lado dela, como um silencioso guardião, estava Gervois Lutlum.

Gervois Lutlum olhou por cima do ombro da namorada na direção da porta aberta. Estava com o rosto muito vermelho e puxava o colarinho como estivesse com uma coceira no pescoço.

O olhar de Fëll passou alternadamente da moça para o rapaz, e vice-versa. Eles não agiam como adolescentes. Suas maneiras eram decididamente adultas.

Esse estímulo adicional levou Fëll para junto do jovem casal.

— Meus pêsames — disse Fëll humildemente.

Os olhos de Serafine se arregalaram.

— Não é meio tarde para isso, Herr Fëll? O senhor, o grande baluarte da lei, deveria ter protegido meu pai. Meu pai morreu, Herr Fëll!

Por um momento, Fëll não fez nada além de olhar para ela.

Um pouco envergonhado com a resposta mal-educada, Gervois puxou a namorada para perto de si e disse:

— Shh! Não vamos culpar o pobre homem, Fine. Seu pai não iria querer que fizéssemos isso.

Ela fez um gesto de desprezo.

— Papai não ia querer que fizéssemos isso, Gervois? Papai está morto! Morto, Gervois!

— Miss — começou a dizer Fëll, porque precisava dizer alguma coisa. — Eu quero...

— Não diga nada — interrompeu Serafine. — Não há nada que o senhor possa dizer — e desatou a chorar convulsivamente.

Fëll balançou rapidamente a cabeça.

Ele a fizera chorar. Só a ideia já o deixava confuso. Triste.

Ela... Ela não deveria... O detetive não queria que ela chorasse. Ele não sabia de muita coisa, mas disso ele sabia.

— Eu lamento — disse Fëll, interpretando corretamente o choro como uma pista para não continuar o assunto. Ele pigarreou algumas vezes, e perguntou: — Onde está Mrs. Lilinburg?

Foi Gervois quem respondeu:

— Fala da assassina? Está lá no estúdio. Ela e o seu clã de cúmplices.

Por clã de cúmplices Fëll subentendeu o Signor e a Signora Victalle.

— Se vieram para prendê-la, é só entrar — disse Gervois.

Fëll sentiu a evidente hostilidade contida naquela declaração.

Serafine voltou a falar, dessa vez para o magistrado.

— O senhor tem que fazer alguma coisa, Herr Warning. Faça aquela mulher pagar pelo crime. Ela... ela tem que ser enforcada!

— Fine! — sussurrou Gervois.

— Faremos o que for possível — prometeu o juiz. — Para ser sincero, nem nos ocorreu pensar em Mrs. Lilinburg como tendo ligação com a morte de seu pai, Miss. Afinal, ela gostava dele. Ela... er... o amava.

Num campo mais vasto, Fëll percebeu que Madame Nerwcare e a filha estavam sentadas no fundo da sala, encobertas pelas sombras. Madame Brigitte Nerwcare possuía uma cara de quem gostava de teixos e carvalhos. Fëll não soube dizer por que pensou nisso, mas era essa a imagem transmitida pela francesa.

Já com a filha se dava o contrário. Por trás de sua aparente imobilidade, a expressão de Mademoiselle Nerwcare era de desânimo e irritação.

Fëll ficou se perguntando o que as duas faziam ali.

Voltando a se concentrar em Serafine Sachsen-Dorf, o detetive disse:

— Queremos falar com sua mãe, Miss.

Com o mesmo tom de desprezo, Gervois apontou a sala de leitura.

— Gut! — agradeceu Fëll.

Mrs. Sonia Pompadière estava sentada em uma poltrona quando Fëll e o Juiz Warning entraram na sala de leitura. Por causa do frio ali dentro, o aquecedor tinha sido ligado e uma coberta fora enrolada em volta de seus joelhos.

Fëll acenou com a cabeça e murmurou:

— Olá, Madame.

Mrs. Sonia Pompadière saudou os dois homens com a voz trêmula. Fëll examinou seus trajes e seu aspecto e notou a sua melancolia, o rosto listrado com os borrões da maquiagem.

— Amyr morreu. Meu Amyr... morreu.

O Juiz Warning balançou a cabeça lentamente.

— É tão terrível — disse Mrs. Pompadière.

Ela começou a chorar.

— E eu fiquei viúva — disse ela. — Viúva na minha idade. Não consigo suportar a ideia... não consigo...

Fëll sentou-se ao lado dela. Com a mesma estratégia adotada com a filha, Fëll disse:

— Quero prestar as minhas condolências, Madame. Foi um choque terrível, mas eu gostaria que a senhora fosse corajosa.

Ela abanou a cabeça com tristeza, sem esperança.

— Meu Amyr! Eu só queria que ele estivesse bem. Por que não deu certo, Herr Fëll? Por quê? Onde foi que eu errei?

— Não foi a senhora quem errou, Madame — disse Fëll. — Quem errou foi o assassino por tirar a vida do seu marido. É por isso, Madame, que precisamos da sua ajuda.

Mrs. Pompadière olhou severamente para Fëll.

— O senhor se recusa a aceitar a explicação mais óbvia, não é?

Fëll devolveu o olhar, intrigado.

— Mais óbvia?

— Henriette... Henriette é a assassina. Oh! Como eu quero esganar essa mulher! Por que ela não admitiu a derrota? Era só pegar suas coisas e sair daqui. Por que ela teve que matar Amyr? Ele era um homem tão bom... um verdadeiro artista itinerante.

Fëll mencionou de maneira educada que Mrs. Pompadière talvez estivesse correta em suas suposições, mas que eles não poderiam aceitar a teoria, a não ser que Mrs. Pompadière pudesse explicar como Mrs. Lilinburg conseguira colocar o veneno na taça de vinho.

— Pode ter sido Mrs. Lilinburg — afirmou Edmund Fëll. — Mas não é certo que ela tenha realmente matado seu marido. Aliás, acho inclusive que isso seja pouco provável.

Sonia Pompadière retrucou:

— O que está querendo dizer? — Ela se virou para o Juiz D. Warning. — O senhor concorda com ele, juiz? Achei que estivesse aqui para formalizar a denúncia contra Henriette!

Warning viu que teria que lidar com a mulher com luvas de pelica.

— Perdoe minha indelicadeza, Madame, mas não estamos acusando ninguém, por enquanto. Surgiram... digamos assim... surgiram alguns fatos que diferem da versão oficial.

Mrs. Pompadière estremeceu. Em seus olhos apareceu um brilho desagradável.

— Fatos? O senhor vem falar em fatos? Os fatos são claros. Eu vi... todos viram. Henriette envenenou aquela droga de vinho! Esses são os fatos!

— A senhora... sem ofender... viu Mrs. Lilinburg colocando o veneno?

— É claro que não — atalhou Mrs. Pompadière.

— Poderia ter visto — disse Warning, com paciência.

— E daí? Henriette apanhou a taça... antes de todo mundo... Ela teve a oportunidade... e também o motivo! Ou o senhor acha que estou fazendo um estardalhaço em torno de algo que não tem a menor importância?

— Não, absolutamente. Não penso nada disso. Eu só acredito que seria melhor se alguém dissesse ter visto algo mais... concreto. Não podemos simplesmente ouvir a opinião coletiva. Mentes ingênuas enxergam coisas que podem ter várias interpretações.

Mrs. Pompadière franziu a testa.

— Está dizendo que eu sou ingênua? É esse o seu conceito a meu respeito, juiz?

O Juiz Warning preferiu não dizer qual era o conceito que tinha a respeito de Mrs. Pompadière!

Fëll interveio:

— Garanto que o responsável será punido, Madame. Daremos tratamento prioritário a esse caso. Ninguém... nem mesmo Mrs. Lilinburg... irá a parte alguma sem expressa permissão da polícia.

Mrs. Pompadière pareceu estar um pouco em dúvida por alguns instantes. Fez uma pequena pausa, e então acrescentou:

— Meu marido era infiel, eu sempre soube disso. Eu estava cansada de lutar contra as manhas dele, contra a sua mania de correr atrás de... suas aventuras.

Fëll assentiu com a cabeça.

— Por fim, a senhora se conformou, não foi?

— Não senhor! Eu não me conformei. Nenhuma mulher em sã consciência se conformaria, sabendo que seu cônjuge vive na luxúria, e que relega os seus deveres maritais! Acontece que eu fiquei exausta. Eu tinha apenas uma via de escape: comprar! Sim, comprar. Eu podia comprar tudo o que quisesse, onde e quando quisesse, sem me importar com as despesas. Amyr pagava tudo, sem reclamar. Talvez nisso, de certo modo, fôssemos iguais. Amyr comprava seus artigos, nem que fosse numa loja de antiguidades de Brighton, e eu comprava minhas peles e bolsas, sem críticas nem censuras. Havia um acordo informal entre nós. Ele não questionava meus gastos e eu, em contrapartida, fazia vista grossa à... sua infidelidade. Eu fui boba, não é?

O Juiz Warning disse:

— De jeito nenhum, Madame.

— Deixe-me ver se entendi — disse Fëll. — A senhora diz que fazia vista grossa à infidelidade de seu marido. Porém, o que noto é que isso parece ter mudado no caso de Mrs. Lilinburg. De espectadora resignada, a senhora se transformou numa aguerrida mãe de família.

Ela disse, irritada:

— Transformei-me numa aguerrida mãe de família porque a situação era insustentável. Antes disso, Amyr tinha seus deslizes longe daqui... sabe Deus lá onde! Dessa vez, ele trouxe o pecado para cá, para dentro de nossa casa. Eu não podia... eu não conseguia tolerar essa atitude. Foi por essa razão que falei com o senhor e pedi que o senhor falasse com ele. Eu sabia que, se caísse em si, Amyr voltaria para mim.

— Quando foi que ele conversou sobre os planos de retomar o casamento? — perguntou Fëll.

— Hoje de manhã. Disse que havia sido mau e insensato, mas que iria dar um fim definitivo em sua loucura. Que voltaríamos a ter uma família: só ele, eu e Fine.

Fëll pareceu confuso.

— Ele disse isso nesses termos?

— Sim.

— Hmm. Não há nada de ambíguo nessa afirmação. Só para situar os acontecimentos... Depois disso, Monsieur Sachsen-Dorf falou com Mrs. Lilinburg?

Mrs. Pompadière balançou a cabeça.

— Acho que sim. Eu e minha filha fomos para o centro. O senhor conversou com Serafine no centro, não foi? Quando voltamos para casa, o clima estava tenso. Henriette ia de um lado para o outro, furiosamente. Ela disse: “Eu não saio daqui! Não saio!” Eu ri e disse: “Parece que seu castelo ruiu, meu bem.” Ela disse: “Sua bruxa! Acha que vai se livrar de mim? Pois não vai não!” Depois, Henriette soltou um urro e saiu correndo. Eu fiquei superfeliz, não vou mentir. Julguei que tudo tinha terminado aí... mas estava enganada!

Fëll ficou em silêncio por um momento ou dois. Então ele disse devagar:

— A senhora experimentou a transição entre o auge da alegria e a mais profunda tristeza em um único dia. Se Mrs. Lilinburg ficou tão chateada, talvez seja hora de cogitar a hipótese de crime passional.

Mrs. Pompadière ficou vermelha.

— Passional? Uma mulher que mata o homem que diz amar? Foi ruindade, Herr Fëll! Ruindade pura e simples. Henriette matou Amyr! Por que é tão difícil acreditar em mim?

Fëll disse:

— Acreditamos na senhora. Tudo o que ouvimos aponta para a mesma latitude e longitude: Mrs. Lilinburg. Mas existe uma pequena dúvida... O veneno foi colocado na taça ou na garrafa?

— Isso muda alguma coisa?

— Muda muita coisa, Madame — disse Fëll. — Até agora só ouvimos um lado da história. Até agora nós focalizamos nosso olhar em Mrs. Lilinburg. Mas o elenco é maior! O dramatis personae, como se diz, é maior. Temos que ampliar a esfera de observação. Sim — acrescentou —, porque o assunto é sério, não é? Quero dizer, seu marido foi morto, não sabemos por que, e o assassino pode estar a quilômetros de distância, ou, por outro lado, pode estar aqui em casa. Não, eu não digo que Mrs. Lilinburg seja inocente. Talvez não seja. Mas é preciso agir em harmonia com as evidências. E ajuntar evidências demanda tempo, Madame. Até lá, a senhora deve ter paciência.

Fëll fez uma pausa.

Acrescentou:

— Só mais uma coisa... A letra m tem algum significado (obscuro ou misterioso) para a senhora?

— Letra m? — murmurou Mrs. Pompadière, surpresa.

— Alguma coisa que seu marido disse? Uma palavra casual ou uma frase... qualquer coisa?

— Não. Acho que não.

Fëll finalizou:

— Era só isso, Madame. Se não opõe, vamos falar com Mrs. Lilinburg.

Enquanto Fëll e o juiz iam para a porta, Mrs. Pompadière disse:

— Ela é uma mentirosa, não esqueçam. Henriette vai mentir para vocês, eu sei. Vai mentir... não esqueçam.

— Obrigado pelo alerta, Madame.

Inclinando-se, Fëll e o juiz se retiraram.


II

 

Para alcançar o estúdio, os dois homens tiveram que passar outra vez pela sala de estar.

Gervois Lutlum e Serafine permaneciam no sofá. No entanto, não havia sinal de Madame Nerwcare e da filha. Fëll anotou mentalmente a ausência das duas. “Devem ter ido para casa. Podemos fazer uma acareação com elas outra hora.”

Seguiram pelo corredor que levava às escadas da ala oeste. Quando chegaram ao estúdio, Fëll abriu a porta.

No silêncio, foi fácil ouvir a voz alta e clara de Suzan Victalle, que dizia:

— A senhora virá conosco, de qualquer maneira, titia. Já pedi que Ma’am Pupu... ou como quer que seja o nome... faça as suas malas. Partiremos amanhã de manhã.

Fëll pigarreou, anunciando sua presença.

Imediatamente, três pares de olhos se concentraram nele.

Ali estavam Mrs. Lilinburg, Suzan Victalle, a sobrinha, e o marido, o Signor Victalle.

A reação mais espetacular talvez tenha sido de Suzan Victalle. Ela deu um pulo para trás e ficou de pé atrás da cadeira.

Num tom claramente hostil, perguntou:

— O que vocês querem aqui?

Fëll se empertigou e, fazendo um esforço a fim de disfarçar o constrangimento, disse:

— Queremos fazer algumas perguntas para sua tia, Signora Victalle.

Suzan ergueu a mão, a palma voltada para ele, como que para bloquear suas palavras.

— Minha tia não tem nada a contar para vocês! Ela não sabe de nada!

— Todo mundo sempre sabe algo — disse Fëll —, mesmo que seja algo que a pessoa não saiba que sabe.

O Signor Victalle, de estreitas calças cor de cinza, parecia calado, retraído.

Mrs. Lilinburg olhou para seu clã, como dissera Mr. Lutlum.

— Suzan! Colbert! Deixem-me a sós com esses cavalheiros.

— Ah, não! — protestou a sobrinha. — A senhora não vai conversar com essa gente, vai?

— Olhe os modos, querida! Por favor, saiam...

Suzan abriu a boca como se sofresse de falta de ar.

— Titia!

Mas Henriette Lilinburg se mostrou intransigente.

— Chega, Suzan! Agora me ouça. Pare de protestar e me ouça. Saiam, saiam os dois. Vamos! Vamos!

Atônita, Suzan disse em voz baixa:

— Como quiser, titia. Venha, Colbert. Vamos respirar um pouco de ar puro.

A porta abriu e fechou.

— Não liguem para ela — disse Mrs. Lilinburg. — Suzan é uma mulher de opiniões fortes.

A voz dela era bastante grave, um perfeito contralto.

Fëll olhou para ela. Estava pálida e tensa, mas muito controlada. Bem-controlada demais, pensou Fëll, considerando as circunstâncias.

Mrs. Lilinburg parecia tão terrivelmente correta, sentada na cadeira em sua postura perfeita. Os cabelos escuros estavam presos para trás no coque obrigatório, todas as mechas firmes no lugar. E os olhos? Os olhos — de um fantástico azul cintilante — estavam cheios de curiosidade. E talvez um toque de tristeza. As pálpebras estavam avermelhadas. Fëll ficou pensando. Será que ela estivera chorando? Era o que parecia. E ainda assim ele podia jurar que Mrs. Lilinburg não era o tipo de mulher que se esvaía em lágrimas.

Mrs. Lilinburg olhou para o detetive e, como se tivesse lido seus pensamentos, tirou um lenço e assoou o nariz.

Com uma expressão preocupada, Fëll disse:

— Lamentamos atrapalhá-la, Madame...

Ela gesticulou como se descartasse o pedido de desculpas.

— Não estão atrapalhando. Sentem-se...

Os dois cavalheiros se sentaram.

Houve uma pausa.

Fëll disse:

— Viemos saber o que a senhora pode nos dizer sobre este caso.

Mrs. Lilinburg ergueu a sobrancelha.

— O que eu posso dizer sobre esse caso? Achei que tinham vindo para prender a culpada pelo crime!

Fëll e o Juiz Warning se entreolharam.

Fëll perguntou:

— Culpada pelo crime? Quem?

Mrs. Lilinburg se inclinou para frente e baixou a voz de maneira dramática.

— Como quem? Madame Nerwcare, claro. Vocês não sabiam que ela foi a primeira esposa de Amyr Sachsen-Dorf?


Capítulo 10

 


Durante alguns segundos fez-se um profundo silêncio.

Fëll, reajustando o monóculo, observou Mrs. Lilinburg, julgando que não tinha ouvido direito.

A expressão desta era atenta, mas nada além disso. Não havia nenhuma indicação de seus sentimentos.

— Madame Nerwcare... esposa de Monsieur Sachsen-Dorf? — perguntou Fëll, arqueando uma sobrancelha.

Ela confirmou com um aceno de cabeça.

— Sim.

— Sabia disso, mein lieber Richter?

— Garanto que não — disse o Juiz Warning.

— Sempre me surpreendo com o pudor dos homens — disse Mrs. Lilinburg. — Contam as coisas boas, mas escondem as falhas. E depois dizem que as mulheres são irracionais!

— Como ficou sabendo dessa história, Mrs. Lilinburg?

Henriette deu uma risada cristalina e divertida.

— Eu disse que ele me amava. Apesar da brevidade de nosso namoro, não havia segredos entre nós. Uma mulher, Herr Fëll, tem seus próprios artifícios para descobrir certas coisas.

— Nisso estamos de acordo — disse Fëll.

— Eu vi como Brigitte olhava para Amyr... Perguntei se ele a conhecia há mais tempo. Amyr disse que não, mas é claro que, nem em sonho, acreditei nele. Por fim, ele acabou admitindo que já fora casado com ela. Também disse que nunca sentiu por ela o que sentia por mim.

— O que ela sentia pela senhora não era amor — disse Fëll secamente. — Foi um descaminho, uma paixão...

Mrs. Lilinburg gesticulou com heroica resignação.

— Bem, o senhor pode achar o que quiser.

— Mademoiselle Nivea é filha deles? — perguntou Fëll.

— Não, não. Nivea é filha de Monsieur Nerwcare, o segundo marido de Brigitte.

— Sabe se Monsieur Sachsen-Dorf repetiu a mesma coisa para a esposa?

Mrs. Lilinburg balançou a cabeça bem devagar.

— Não — afirmou —, tenho quase certeza disso. Sonia não sabe de nada sobre isso.

Preferindo se abster dessas questões secundárias, Fëll disse:

— Tomemos por fato que Madame Nerwcare foi casada com Monsieur Sachsen-Dorf! Isso, por si só, não prova que ela o tenha assassinado.

— Mas todos nós vimos!

— Viram?... o quê?

— Quando a governanta trouxe as bebidas... Brigitte correu como uma louca até ela. Nós estávamos lá! Brigitte esticou a mão sobre a bandeja. Suponho que, se ela tivesse o veneno...

Fëll não gostava de imprecisões. Ficou aborrecido com a afirmação de Mrs. Lilinburg.

— Supõe? A senhora supõe? Eu acho que está lendo muitos romances baratos, Madame. Entrever uma coisa não significa que isso tenha, de fato, acontecido.

— Está dizendo que eu sonhei? — teimou ela.

— Não fuja do assunto, Mrs. Lilinburg! Sabe que não é isso. Quero dizer que, ter sido vista perto da bandeja, não faz de Madame Nerwcare uma assassina.

— Indícios não são válidos?

— São válidos — disse Fëll —, contanto que sejam realistas.

— Pois eu vou contar o que vi.

Mrs. Lilinburg recitou fielmente todos os acontecimentos da tarde, Fëll interrompendo a narrativa com exclamações de surpresa e interesse.

— E então? — perguntou ela, por fim. — Convencidos?

Fëll balançou a cabeça. Um gesto negativo, sem dúvida, mas era difícil saber o que estava negando.

— Agora há pouco — disse ele —, conversando com Mrs. Pompadière, perguntei quem poderia ter envenenado o marido dela. Ela disse ter sido a senhora. Mas, quando chegamos à ação crucial, as possibilidades se estreitam. Qualquer um poderia ter colocado o veneno naquele copo. E esse é um campo de investigação bastante diversificado, entende?

— Sim — declarou Mrs. Lilinburg. Depois de uma pausa, acrescentou: — Querem saber? Havia muita gente lá e muitos copos com drinques por toda parte. É muito comum de acontecer, sabem, de alguém apanhar e beber do copo errado.

— Ah — fez Fëll. — Quer dizer que Monsieur Sachsen-Dorf talvez não tenha sido envenenado deliberadamente? Quer dizer que ele pode ter bebido do copo de alguma outra pessoa?

— É uma explicação plausível — disse a norueguesa. — O senhor acha que essas coisas não acontecem? Eu digo que podem acontecer, sim.

Ela disse isso como se fosse um fato rotineiro.

— Nesse caso — afirmou Fëll, falando com todo o cuidado —, permita-me fazer uma observação. Monsieur Sachsen-Dorf foi o único quem tomou vinho. Está percebendo? Ele não apanhou o copo de ninguém por engano. Além disso, se, como a senhora diz, ele bebeu do copo de outra pessoa, o alvo seria justamente essa outra pessoa. Ou seja, de qualquer maneira teríamos uma vítima. E tendo uma vítima, teríamos um assassino.

Henriette Lilinburg disse:

— Por que não investigam a governanta?

— Por que ela mataria Monsieur Sachsen-Dorf?

— Para purificar a terra de uma grande mácula do mal, talvez. Ela é muito religiosa, sabem. Pessoas religiosas tendem a ser fanáticas.

Ela parou de falar e levantou os olhos para ver se os homens estavam engolindo a história.

Fëll não estava pessoalmente inclinado a uma determinada suspeita, mas tudo era possível.

Fëll disse:

— E quanto à senhora? A senhora levou a taça... E, vamos ser francos, não consigo esquecer o que me disse naquele dia, no restaurante.

— Quero lembrá-lo de que aquilo que eu disse se relacionava a Sonia Pompadière!

— Tudo mudou, Mrs. Lilinburg. Ontem a senhora e Monsieur Sachsen-Dorf estavam bem. Desde então, muita água rolou debaixo da ponte.

— Então eu o matei?

Fëll encolheu os ombros de leve e concluiu:

— Eu não sei. É isso o que vamos averiguar, Madame.


II


— Ma’am Pupu? Sou Edmund Fëll. E este é meu colega de investigação, que talvez a senhora já conheça.

— Sim, sim — disse a gorda mulher. — Conheço...

— Gut, gut — disse Fëll. Acrescentou: — Podemos conversar uns minutinhos com a senhora?

A governanta acenou com a cabeça. Virou-se para o corredor e foi caminhando quase até o final, quando então abriu uma porta.

Todos entraram.

A mulher se sentou na borda de uma cadeira e olhou pensativa para o detetive.

— Então foi mesmo um assassinato, hein?

— A senhora acha que foi assassinato?

— Bem, não poderia ter sido suicídio, suponho — respondeu Ma’am Pupu. — Ouvi dizer que não foram encontradas pistas que apontassem por quem e de que maneira o veneno foi administrado. Mas, é claro, todo mundo está tratando do assunto como se fosse um assassinato.

— E falam de quem é o culpado? — perguntou Fëll.

— Não.

— Foi a senhora quem serviu os sucos e bebidas afins, não foi?

— Sim.

— Poderia nos falar a respeito da ordem dos acontecimentos?

Ela segurou uma pausa antes de dizer:

— Eu vim para dentro de casa, peguei uma bandeja com duas jarras de sucos já preparados. Levei lá para baixo. Madame Nerwcare foi quem se serviu em primeiro lugar. Depois disso, veio Mrs. Lilinburg, perguntando de quem era o copo de vinho. Eu respondi que era de Monsieur Sachsen-Dorf. Daí ela disse: “Deixe que eu leve para ele.” Houve uma breve exclamação de Mrs. Pompadière, que ficou zangada com ela. Mas Mrs. Lilinburg seguiu adiante, acho, e foi falar com Monsieur Sachsen-Dorf. Naquele momento, Serafine e a amiga estavam se aproximando.

— Acha que Mrs. Lilinburg possa ter envenenado o copo de vinho? — perguntou Fëll.

Um ar de hesitação apareceu no rosto de Ma’am Pupu.

— S-sim — disse. — Pode ser... Se ela quisesse... Não me pergunte como, não deve ter sido nada fácil. Por outro lado, é assustador. Se ela teve coragem de fazer isso, é incrível que ninguém tenha notado nada! O senhor me pergunta se suspeito de Mrs. Lilinburg. Tudo que posso dizer é que qualquer pessoa poderia ter feito isso. Pensei, pensei muito, mas não há nada, absolutamente nada que me leve a suspeitar especificamente de Mrs. Lilinburg.

Ela fez uma pausa.

Fëll continuou:

— Como foi que viram que havia alguma coisa errada com Monsieur Sachsen-Dorf?

— Ele disse que não estava se sentindo bem. Sim, sim... Foi isso o que ele disse. Alguém foi procurar algum remédio para ele e, então... uns quatro ou cinco minutos mais tarde... ele simplesmente morreu, bem ali.

— Entendo — disse Fëll. — Naquela hora, a senhora supôs que ele tivesse sido envenenado?

— Claro que não. Na hora concluí, naturalmente, que ele tinha tido um infarto. Ocorreria ao senhor... será que alguém pensaria nisso?

— É provável que não. Bem, pelo que disse, a senhora não suspeita de Mrs. Lilinburg.

— Não — disse Ma’am Pupu. — Não suspeito mais dela do que suspeito de todos os demais.

— Vamos abordar a questão por um lado mais pessoal — disse Fëll. — Gostaria que a senhora me dissesse o que de fato pensa de tudo isso.

— Penso que foi um crime bárbaro — declarou Ma’am Pupu. — Espero que peguem o assassino.

Fëll a observou durante alguns instantes. Na opinião dele, Ma’am Pupu tinha uma personalidade intrigante. Ela respondera todas as perguntas com a maior boa vontade. Não demonstrara sinais de estar escondendo qualquer coisa. É possível que soubesse mais do que confessara saber. Ou não. É claro que, se quisesse, ela mesma poderia ter envenenado o patrão. Poderia ter aproveitado a oportunidade que surgira naquela tarde, ou poderia ter planejado tudo de modo deliberado.

Os olhos dela encontraram os do detetive por alguns segundos, depois ela fez um aceno com a cabeça e disse:

— Não precisam mais de mim? Pois bem. Vou voltar para a cozinha. Deve ser quase hora do jantar.


Capítulo 11

 


Eram dez horas da manhã na Falkestrasse.

Edmund Fëll esperou até que a porta fosse fechada e então se virou para Madame Nerwcare.

— Eu peço desculpas por importuná-la assim, Madame, mas minha linha de interrogatório segue os procedimentos cabíveis ao caso, a senhora entende, não é?

Madame Nerwcare balançou a cabeça.

— Claro que sim. Pode sentar, fique à vontade.

Fëll afundou num banco de couro cheio de reentrâncias.

Madame Nerwcare possuía a aparência de uma mulher bondosa, inteligente e compreensiva. Usava um tailleur comum, um híbrido cor-de-rosa feito numa butique. Os cabelos, unhas e pele estavam bem cuidados, mas sem exageros.

Edmund Fëll observou a sala em silêncio. Havia uma mesinha francesa talhada... cortinas ensebadas e quase sem cor. Apesar disso, o ambiente aglutinava conforto e bom gosto.

Fëll disse algumas palavras introdutórias.

— A verdade, Madame, é que não quero afligi-la. Não pense nisso, bitte. Só gostaria de fazer algumas perguntas que poderiam ajudar... ajudar, isto é, a descobrir o assassino de Monsieur Sachsen-Dorf. Quero crer que a senhora mesma não faça nenhuma ideia de quem poderia ter sido, faz?

Madame Nerwcare olhou para Fëll. Seca, disse:

— Achei que não havia mistério! Aquela mulher... Foi aquela mulher! Pensei que todos concordassem com isso! Além de ser uma mulher altamente instruída, ela também é muito astuta.

Fëll disse:

— Para ser franco, Madame, não é bem assim. Trabalhamos em cima de fatos. Não podemos nos apegar a boatos e superstições.

A francesa ficou intrigada.

— O senhor só pode estar brincando! Henriette Lilinburg! Foi ela quem matou Amyr! O senhor não acredita nisso?

— Houve um assassinato, Madame. Não podemos sair por aí condenando as pessoas. Não seria moralmente justificável. É preciso estudar o caso à luz fria da razão. Pode ser que Mrs. Lilinburg seja a autora do crime. Ou pode ser que não seja.

— Pode ser que não seja! — arremedou Madame Nerwcare. — O senhor é um homem de intelecto, Herr Fëll! O senhor acha mesmo que existe alguma chance de que ela seja inocente?

— Por que não?

— Mas se foi ela quem levou a taça com o vinho para Amyr! Ela foi a portadora da morte, Herr! Ela, só ela.

Edmund Fëll não respondeu. A coisa soava como um caso de histeria regional. Todo mundo parecia inclinado a enforcar Mrs. Lilinburg. Sem apelação, nem direito de defesa.

Fëll disse:

— Acontece que um júri não formaliza seu veredito ouvindo só alguns depoentes. É preciso que todos os intimados exponham o que sabem, o que viram, ou o que não viram. Por exemplo, existem pessoas que dizem que a senhora envenenou o vinho.

Os olhos da francesa ficaram muito abertos. Olhos cor de avelã... muito atraentes.

— O quê? Ora, que acusação infame!

— Então nega que se serviu antes dos outros, Madame?

— Não, não nego! Eu, Nivea e Fine estávamos juntas. Vimos a governanta vindo... Minha garganta estava seca e... Oh! — Ela ficou em silêncio por um ou dois minutos, pensativa. Lentamente, acrescentou: — Há uma coisa... uma coisa que, creio, eu já deveria ter contado... mas não contei porque julgava que não havia nada de sério. Era só esquisito. E se... sim... e se o veneno foi colocado na garrafa! A garrafa... que foi dada por aquele sujeito... Neill qualquer-coisa.

Fëll pigarreou.

— Está falando de Neill Brannigum? Mr. Branningum esteve na mansão? Quando?

— Anteontem à noite, ora! Ah! E, ontem à tarde, depois do assassinato. Eu vi... Ele e Henriette conversaram na cozinha.

Fëll notou que devia esclarecer algumas coisas.

— Não, Madame. A hipótese é boa, mas não havia qualquer componente químico na garrafa. Hoje de manhã, recebi uma ligação do Juiz Warning. O laudo laboratorial deu negativo. A estricnina estava na taça... apenas na taça.

Brigitte Nerwcare disse em tom de pergunta:

— O juiz notificou o senhor esta manhã... E a primeira coisa que o senhor fez foi vir até aqui? Foi porque o tempo estava bom, Herr Fëll?

Fëll decidiu ser sincero.

— Essa não é uma questão meteorológica, Madame Nerwcare. Quero explicar por que apareci assim sem avisar.

— Ah! Já era hora!

— Talvez a senhora tenha imaginado que eu estava passando casualmente nas redondezas. Essa não é bem a verdade. Eu vim até aqui de propósito.

— Como descobriu meu endereço?

— Isso não vem ao caso — disse Fëll. — O que vem ao caso é que estou atrás de respostas, Madame. Respostas confiáveis.

— De minha parte, posso dizer que não fui eu que coloquei a... como é que o senhor disse?

— Estricnina.

— Não fui eu que coloquei a estricnina na taça!

Fëll sorriu mecanicamente.

— Não leve a mal — começou –, mas quero dar um aviso. É bem possível que exista algum detalhe de sua amizade com Monsieur Sachsen-Dorf que a senhora não queira revelar. Se for assim... não fique zangada, por favor.

— Não existe nada... nada...

— Pensei que devia tocar no assunto — disse Fëll.

Madame Nerwcare disse:

— Não tenho nada a esconder... nada.

Fëll disse com muita suavidade:

— Não creio que isso seja verdade, Madame. A senhora já foi casada com Monsieur Sachsen-Dorf, não foi, Madame Nerwcare?

A francesa empalideceu. Pelo canto do olho, Fëll observou suas mãos brancas e... nervosas. Esperou que ela desse uma resposta. Quando ela falou, foi muito bruscamente:

— Essa pergunta é para mim?

— Creio que estamos sozinhos, Madame.

— Que atrevimento! Como foi que o senhor soube disto?

— Por aí — disse Fëll. — Uma coisinha ali, outra lá.

— É mentira! O senhor andou bisbilhotando a minha vida!

— Madame, não é crime falar de coisas reais. Foi casada com Monsieur Sachsen-Dorf ou não?

A francesa considerou a pergunta. Se bem que ele não estivesse olhando para ela, Fëll estava perfeitamente consciente de seu olhar fixo nele.

Madame Nerwcare disse vivamente:

— Éramos adolescentes. Amyr era escriturário em Paris. Foi uma paixão repentina. Ele era meigo, bonito, galanteador. Casamos sim. Foi uma loucura... um ato reprovável... Assinamos o desquite menos de um mês depois do casamento.

— Como foi que vocês se reencontraram?

— Foi quase que por acaso. Eu...

Brigitte Nerwcare abaixou a cabeça.

— Bem, não vou esconder a verdade. Eu já tive uma vida boa. Não era rica, mas vivia numa casa melhor. Perdi tudo...

Neste exato momento, uma jovem tempestuosa, cujo peito arfava sob um suéter apertado, irrompeu pela porta.


II

 

A jovem que irrompeu pela porta, a própria Nivea Nerwcare, foi logo falando:

— Alô, mamãe.

— Niveaaaaa! — exclamou Madame Nerwcare. — Quantas vezes eu já disse para usar a campainha?

— Ah, mamãe! — retrucou Nivea, arrancando o gorro preto da cabeça. — Não seja tão chata!

Nivea viu o detetive e, obviamente intrigada, disse:

— Eu... Ah, bom dia, Herr Fëll! O senhor veio visitar mamãe?

Fëll olhou para a moça.

“Pratica cooper... esbelta... Inteligente? Sim, inteligente. Até que ponto?”, pensou ele.

Fëll fez que sim com a cabeça.

— Sim, Mademoiselle.

— Imaginei que sim! — exclamou Nivea. — Suponho que o senhor tenha vindo para falar a respeito do assassinato, não veio?

Fëll olhou para Nivea. Os cabelos, negros e ondulados, emolduravam um rosto harmonioso, de expressão um tanto mal-humorada.

— Parece que a senhorita não aprova o fato de eu estar aqui — disse Fëll.

— E isso faz alguma diferença? Aprovando ou desaprovando, o senhor não vai sair daqui, vai?

— Não, Mademoiselle — disse Fëll.

— Afinal de contas, como foi que o senhor entrou nisso? Por meio da polícia?

Fëll abanou a cabeça suavemente.

— Não, nada com a polícia. Particularmente, por meio de um amigo da magistratura.

Nivea sentou-se, puxando a cadeira um pouco para trás.

— Muito bem. O senhor interrogou minha mãe, não é? Agora é minha vez. O que o senhor pretende saber?

Fëll franziu a testa. Decidiu partir para um detalhe tático:

— Bom, já que se voluntariou para ser interrogada, eu gostaria de saber se, ontem à tarde, a senhorita estava na festa?

— Sim, estava.

— Aconteceu alguma coisa... antes, durante ou após a festa... que talvez tenha chamado a sua atenção, Mademoiselle?

Nivea olhou para Fëll.

— Foi uma festa excelente. Tudo correu bem. Tudo muito bem organizado. Havia uma dezena de convidados, e só.

— A senhorita tomou parte nos preparativos que foram feitos, creio, na manhã daquele dia?

— Eu? Não, não. A governanta... Ma’am Pupu... fez todos os preparativos. Era um pequeno número de pessoas, sabe?

— Entendo. Mas a senhorita e sua mãe compareceram como convidadas?

— Exato.

— E o que aconteceu?

— O senhor quer saber se há alguma coisa que eu tenha visto ou que pense ter visto, não é?

— Sim — disse Fëll.

— Não, não vi. Mas, se quiser, posso depor contra a mulher.

“Essa não!”, pensou Fëll.

— Que mulher, Mademoiselle?

— Ué, não me diga que Mrs. Lilinburg ainda está solta!

Brigitte Nerwcare interveio:

— Eles acham que fui eu quem envenenou o vinho, Nivea.

— Mamãe! — disse Nivea. — Quem disse uma coisa dessas? Foi... foi o senhor?

Fëll se reclinou.

— Interrogar é diferente de acusar, Mademoiselle.

— Que artístico! — ironizou Nivea. — Ainda bem que eu vim para casa. Eu estive lá! Eu vi tudo o que aconteceu. Mamãe não fez nada!

— Entschuldigen Sie mir, Mademoiselle, mas sua mãe fez sim uma coisa — disse Fëll.

— O que foi que mamãe fez?

Fëll relatou resumidamente os detalhes. A reação de Nivea foi arrasadora.

— Mas isso é um absurdo! Então minha mãe é uma assassina? Com base nisso? Pode ter sido qualquer um!

— Muita gente estava fora de alcance — disse Fëll.

— O que minha mãe ganharia com o crime?

— Uma módica herança de alguns milhares de euros em bens e artefatos, Mademoiselle.

— O senhor acredita nisso? — perguntou Nivea.

— Eu vou dizer no que eu acredito, Mademoiselle. Creio que as pessoas sob pressão... aqui incluo todas as pessoas... fazem coisas que, em outras circunstâncias, não fariam. Matar por dinheiro é uma delas.

— O senhor é... é... — gaguejou a moça.

Madame Nerwcare interveio de novo:

— Chega, filha! Chega!

Madame Nerwcare virou-se para Fëll:

— O senhor está certo, oui? Eu precisava de dinheiro... No início pensei que poderia... que deveria me aproveitar da reaproximação com Amyr. Ele possuía tanto e eu estou sem nada. Mas eu nunca mataria Amyr! Nunca!

Imediatamente, a voz áspera e desagradável de Nivea exigiu explicações da mãe.

— Você disse reaproximação, mamãe? — perguntou Nivea. — Reaproximação tipo ex-marido e ex-mulher?

Madame Nerwcare suspirou, ao mesmo tempo exasperada e resignada.

— Sim.

Nivea retesou o corpo, perplexa.

— Formidable! E quando ia me contar isso?

Madame Nerwcare ficou magoada.

— Respeite um pouco a sua velha mãe, Ni. Você não vai cutucar as feridas do passado, vai?

— Pode apostar que sim. Pode ser que assim eu descubra quem a senhora realmente é!

Fëll fez menção de se levantar.

— Frauen, julgo ser minha hora de ir.

Madame Nerwcare acompanhou Fëll até a porta da entrada. Ela abriu a boca como se quisesse ainda dizer alguma coisa, mas pensou melhor e fechou a porta atrás do detetive.

Fëll ainda não tinha descido a varanda, quando no interior da casa, por trás das vidraças, ressoaram de repente alguns gritos de agonia. Os gritos cresceram de intensidade, depois foram diminuindo e, finalmente, terminaram em soluços de cortar o coração.

Chegando à rua, o celular do detetive começou a vibrar insistentemente. Era um número não registrado.

— Alô! Wer ist es?

— Sr. Fëll? Aqui é Neill Brannigum — disse a voz ao telefone. — Nós nos conhecemos na casa de Amyr, lembra-se?

— Brannigum? — perguntou Fëll, tentando se concentrar.

— Preciso conversar com o senhor. É um assunto de máxima urgência. Se puder, venha ao parque Prater, hoje às 13h. É sobre ontem à tarde.

A essa última frase, Fëll enxugou a testa com o lenço. Quase de imediato, disse:

— Combinado, Mr. Brannigum. O parque Prater... Estarei lá às 13h em ponto.


Capítulo 12

 


Edmund Fëll pegou a linha U1 do metrô e desceu na estação Praterstern. Parecia um tanto cansado e sua roupa estava bem maltratada, mas de resto achava-se em perfeitas condições e bem-disposto.

Achou Neill Branigumm na exposição de dioramas na base da roda gigante do parque Prater, abrindo e fechando a tampa do relógio de bolso.

— Guten Tag, Mr. Brannigum!

Neill levantou-se de um salto para cumprimentá-lo.

— Olá, Herr Fëll. Aí está o senhor.

Disposto a agradar, Neill apertou a mão de Fëll com um vigor extraordinário e constrangedor.

— Obtive o seu número de telefone com o Juiz Warning — disse. — Lamento ter ligado para o senhor.

— Kein Problem — disse Fëll.

— Mesmo assim, é horrível.

Neill Brannigum continuou falando, mas, por estar muito nervoso, gaguejava, hesitava e fazia rodeios confusos. O detetive julgou que nunca vira ninguém mais tímido e complexado.

— Bem, bem — disse Fëll, se perguntando quanto tempo aquilo iria durar.

Neill Brannigum hesitou.

— Venha, vamos lá para trás... Fico muito satisfeito em poder conversar com o senhor. Quando ouvi o seu nome no rol de pessoas presentes naquela noite, pensei: “Herr Fëll! Está aí o homem de que preciso”.

Enquanto avançavam para a área verde, Neill acrescentou:

— Amo este parque. Os vagões vermelhos da Riesenrad... as gôndolas... O senhor já esteve aqui antes?

— Algumas vezes.

Fëll fixou os olhos em Neill.

— O que quer que eu faça pelo senhor, Mr. Brannigum?

Neill se espantou:

— O q-q-que disse?

— Quero saber o que o senhor quer de mim. Deduzo que não estamos aqui para falar das belezas naturais.

Neill gaguejou:

— Q-quer saber, o senhor tem toda razão! Toda razão. Se liguei para o senhor... se pedi que viesse... deve ser por algum motivo, não é?

— Calculo que sim — disse Fëll.

Neill disse:

— Entendi o que está querendo dizer! Sim, sim... Para que perder tempo, não é?

Fëll apertou ainda mais o parafuso psicológico.

— Tem a ver com Mrs. Lilinburg?

— Puxa, o senhor é mesmo bom! Como é que sabe disto? Ainda não falei nada, e aí está o senhor, adivinhando o meu pensamento!

— Vou tomar isso como um sim — disse Fëll. — Bem, já definimos o assunto: Mrs. Lilinburg. Se vamos falar dela, qual será o enfoque? Vai me dizer que ela matou Monsieur Sachsen-Dorf? Ou... o que é mais provável... que ela é inocente?

— Perfeito, perfeito! — exclamou Neill. — O senhor é um vidente!

— Não, Mr. Brannigum. Não sou um vidente.

Neill prosseguiu, com a voz sufocada:

— Henriette é inocente, é imperativo que o senhor saiba disso, Herr Fëll. Eu sei que ela é inocente. Acho que o senhor admite que eu seja uma testemunha imparcial, não é? Afinal, eu fui traído por Henriette. Eu poderia muito bem deixar que ela se defendesse sozinha. Mas não, não sou tão canalha.

Fëll disse:

— A menos que ainda esteja apaixonado por ela...

Um certo rubor se espalhou pelo rosto de Neill.

— Não, não! Posso assegurar que não sinto mais nada por ela. Eu a amei, sim, mas... Tudo o que Henriette aprontou... a vergonha pela qual eu passei! Não, eu seria um tolo se ainda gostasse dela. Afinal, não devemos viver demais do passado, não é?

Fëll balançou a cabeça, pensativo.

— Deixe-me ver... Está tentando me dizer que o senhor, na sua imensa generosidade, está advogando a favor de Mrs. Lilinburg, sendo o seu único interesse impedir que uma pessoa inocente seja presa pela morte de Monsieur Sachsen-Dorf?

— Sim.

Fëll dava muito valor aos detalhes. Havia alguma coisa na fala de Mr. Brannigum... Alguma coisa que não se harmonizava com os fatos.

— Deve me desculpar, mas não acredito que seja só isso — disse Fëll. — Por que acha que ela não matou Amyr Sachsen-Dorf?

— Eu falei com Henriette. Dá para ver, dá para sentir, quando uma pessoa mente. Eu vi... eu senti... que ela estava dizendo a verdade! Henriette não mentiria... não para mim!

Fëll deu um sorriso.

— Ela não mentiria para o senhor? É estranho ouvi-lo dizer isso, em vista do que aconteceu entre vocês.

Neill meneou a cabeça.

— Acha que estou louco, não é? Escute, finja que não sou eu. Finja que é outra pessoa que está aqui, falando com o senhor. Convença a polícia... diga ao comissário, ou lá quem for... que não foi Henriette! Henriette... Ela não fez nada! Não fez... O senhor pode fazer isso por mim?

— Creio que está se adiantando um pouco, Mr. Brannigum — disse Fëll. — Pelo que consta, ninguém acusou Mrs. Lilinburg. Existem suspeitas contra ela? Existem. Mas as mesmas suspeitas pairam sobre todos os outros, imparcialmente. Incluindo o senhor.

— Sobre mim?

— Sim. Comecei a conectar as coisas quando, hoje de manhã, Madame Nerwcare disse que viu o senhor ontem à tarde, depois do assassinato. Suponhamos que o senhor tenha injetado o veneno na garrafa que, anteontem à noite, o senhor deu a Monsieur Sachsen-Dorf. Seria uma bomba-relógio sem data certa para a explosão. O vinho estaria lá. Poderia ser consumido hoje... ou no mês que vem: de qualquer maneira, Monsieur Sachsen-Dorf morreria. Quis o acaso que fosse ontem à tarde. Depois de notificadas as autoridades, as pessoas próximas são avisadas. O senhor chega logo, atencioso, fiel, cooperador. Dando uma desculpa qualquer, o senhor vai para a despensa e faz a troca da garrafa envenenada por outra garrafa que não contenha o aditivo fatal.

— Estive apenas na sala de estar. Não entrei na despensa.

— Não entrou? Tem certeza? Mr. Brannigum, o senhor não vai querer negar que era um amigo muito íntimo de Monsieur Sachsen-Dorf, vai?

— Não, claro que não — disse Neill. — A única coisa que posso dizer é que não tenho nenhuma relação com a morte dele. O... o senhor não po... po...de provar na... nada contra mim — gaguejou. — Por que eu mataria Amyr?

— Vingança — disse Fëll.

— Vingança?

— Sim.

— Não está pensando nisso seriamente, está? — disse Neill.

— Eu penso em tudo seriamente — replicou Fëll.

— Eu não tocaria num fio de cabelo dele!

— Por isso preferiu o veneno! Um trabalho limpo, silencioso e eficaz.

— Quero lembrá-lo que muitas pessoas frequentam a casa. Como eu poderia adivinhar que apenas Amyr beberia da garrafa de vinho?

— Isso ainda oferece algumas complicações — admitiu Fëll. Fez uma pausa, e acrescentou: — Vamos supor que liberem Mrs. Lilinburg. Qual será seu próximo passo?

— Expor quem cometeu o crime — disse Neill.

— Muito bem, então, vamos em frente. E sabe quem cometeu o crime?

— Sim.

— Quem?

— Colbert Victalle — disse Neill.

— O marido espanhol da Signora Victalle?

— Ele mesmo. É sabido que o avô de Amyr era um notório e declarado nazista. Um vilão fascista de folclore da esquerda que morreu de insolação e septicemia. Acrescente a isso esse espanhol, em cujas veias corre sangue judeu, e pi-pah! — o senhor tem um motivo para o assassinato.

— Pi-pah? — perguntou Fëll. — Só há um obstáculo... O álibi do Signor Victalle é intransponível.

— Ah! Mas o senhor pode conseguir provas, se quiser.

— Que provas?

— Fale com a mulher dele — disse Neill. — Ela vai contar.

Fëll gemeu no íntimo. Pelos aspectos convencionais, a conversa com Neill Brannigum não estava rendendo muita coisa.

— Consta, Mr. Brannigum, que o senhor fez uma visita a Monsieur Sachsen-Dorf, na Mansão Carruthers, na semana de sua morte.

Neill Brannigum respondeu calmamente:

— É verdade.

— Pode me dizer a razão dessa visita?

— Era um assunto pessoal.

— Receio que seria bom se me dissesse qual era esse assunto pessoal.

— Ah! Infelizmente eu vou ter que declinar. Só posso garantir que nada foi dito nesse encontro que pudesse ter qualquer relação com o assassinato.

— Acho que não cabe ao senhor decidir isso — disse Fëll.

— De qualquer maneira, terá de se conformar com a minha palavra, Herr Fëll.

— Na verdade, terei que me conformar com as suas respostas.

— Parece que sim — disse Neill Brannigum.


II

 

Um lacaio se incumbiu de seu chapéu e, após um lance de degraus, Edmund Fëll entrou numa peça que servia de sala de recepções.

O Juiz Warning estava diante de uma floreira com petúnias. Soltando o regador, veio na direção do detetive, e, num sussurro rouco, disse:

— Ah, Herr Fëll, como é bom ver o senhor!

Edmund Fëll se sentou na cadeira de espaldar reto e alto.

O juiz disse:

— O caso está sendo bastante difícil, receio.

— Bem, isso era esperado, não era? — disse Fëll.

— E então?

— E então... o quê? — perguntou Fëll.

— O senhor descobriu alguma coisa?

Fëll respondeu:

— Todos e tudo me pareceram completamente em ordem.

O juiz deu um suspiro de decepção.

— E eu pensando que já tivesse resolvido o caso! Quer café? Um copo de Chablis?

Fëll recusou a bebida.

O juiz D. Warning recomeçou:

— O que o senhor acha que está por trás de tudo isso?

Fëll contraiu os lábios.

— Esse é exatamente o mistério.

— Bem, e quem o senhor pensa que praticou o crime?

— Não sei — disse Fëll. — Monsieur Sachsen-Dorf possuía problemas com a esposa, uma mulher com temperamento fraco e, como dano colateral disto, a filha tinha todos os sintomas comuns de uma casa desestruturada em que há a abundância de dinheiro e a falta de cuidado. Quem eu penso que praticou o crime? Garanto que não sei. Não tenho um único nome que eu possa citar em sã consciência.

Warning disse:

— Está certo, está certo. Pensei apenas que o senhor podia ter uma suspeita definida. Falou com Mr. Brannigum?

— Falei.

— Ele disse alguma coisa?

Fëll passou a mão pelo queixo, com ar pensativo.

— Descobri duas coisas a respeito de Mr. Brannigum. Uma, que ele continua babando de amores por Mrs. Lilinburg.

— Isso não é novidade. E a segunda coisa?

— Ele queria que prendêssemos o Signor Victalle.

— E por quê? — perguntou o juiz.

Fëll encolheu os ombros.

— Sei lá. Ele cismou com a ascendência semita do Signor Victalle. Pelo jeito existe uma antipatia natural e genuína entre eles. Pena que não fiz a transcrição do depoimento. Seria um relato digno de Corneille, Molière e Karl May!

— Desculpe, o erro foi meu. Eu dei seu número para ele. Não achei que o camarada fosse louco.

Fëll disse devagar:

— O oficial Wacht fez a cópia da lauda escrita por Monsieur Sachsen-Dorf?

— Oh, sim! Está aqui.

Fëll segurou o xerox do papel com a mensagem de Monsieur Sachsen-Dorf.

 

para fell:

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O Juiz Warning perguntou:

— O que é que o senhor entende por isso, Herr Fëll?

— Obviamente, trata-se de uma tentativa de transmitir alguma mensagem secreta.

— Mas um criptograma, uma mensagem em código, requer uma chave. Qual é a utilidade de uma mensagem cifrada sem a chave do código?

Fëll disse:

— O objetivo de Monsieur Sachsen-Dorf foi ocultar que estes caracteres continham uma mensagem, dando a impressão de que eram meros vocábulos sem sentido. Esses emes, como qualquer um pode facilmente deduzir, formam uma cifra, ou seja, eles transmitem um significado. Se for um significado puramente arbitrário, talvez seja impossível decifrá-lo. Se, por outro lado, for sistemático... bem, mais cedo ou mais tarde encontraremos a chave.

— O seu otimismo me alegra, meu caro. Está mesmo convicto de que, nesta folha, está a indicação mais óbvia do nome do assassino?

— Estou — disse Fëll.

— Pode ser — disse o Juiz Warning. — Mas se esses emes são uma menção ao assassino, por que Monsieur não escreveu em letras mais legíveis? Por que essa algaravia de emes?

Fëll disse:

— Presumivelmente porque o assassino estava ali por perto. Se Monsieur Sachsen-Dorf escrevesse clara e deliberadamente o nome do assassino, o assassino poderia, quem sabe, ter amassado, rasgado ou queimado a folha de papel. Essa algaravia de emes, por outro lado, preservou a mensagem e fez com que ela chegasse ao seu destinatário.

— No caso, o senhor — disse o juiz.

— Não há outra explicação — sussurrou Fëll, pensativamente. — Veja... São nove emes em letra minúscula. Porém, o terceiro m é maiúsculo. Se eu soubesse qual a razão disso!

Fez uma pausa, evidentemente repassando todas as possibilidades.

Por fim, Fëll se virou para seu companheiro:

— O que aconteceu com Mrs. Lilinburg?

— Pelo que sei, Mrs. Lilinburg e o casal Victalle deixaram a Mansão Carruthers ontem à noite. Parece que se hospedaram num hotel e vão partir hoje à tarde, após o enterro. Concluído o inquérito inicial, as autoridades decidiram não impedir a viagem dos três, desde que eles se comprometessem a permanecer em contato com a central de polícia, para que, em caso de necessidade, possam regressar imediatamente para prestar novo depoimento.

— Não podemos evitar tudo — acenou Fëll. — Como está Mrs. Pompadière?

— Do mesmo jeito — disse o Juiz Warning.

— E a filha?

— Um pouco melhor, eu diria.

— Mas convencida de que foi Mrs. Lilinburg quem cometeu o crime — disse Fëll.

— Sim.

— Isso me preocupa. Sim, me preocupa.

— É lógico que Mrs. Lilinburg pode ser a assassina — disse o Juiz Warning.

— Pode sim — concordou Fëll.

— Mas não podemos ignorar um fato importante. Ninguém viu Mrs. Lilinburg usando a estricnina.

— Isso é verdade — disse Fëll.

— Disse que Neill acusou Colbert Victalle. Ele disse por quê?

— Não.

— Mesmo assim, não deixa de ser uma boa teoria.

Fëll fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Vermutlich ja. As possibilidades se multiplicam e as pistas se ramificam e dividem. Para começar, sempre é possível pensar em vingança. A viúva é, de certa maneira, a pessoa natural para se suspeitar, não acha?

— Talvez — disse o Juiz Warning cautelosamente.

— Mas existe outra explicação. Por exemplo (é apenas uma teoria, calma), existe ainda o ângulo financeiro. Monsieur Sachsen-Dorf tinha dinheiro. Muito dinheiro. Alguém saiu lucrando com esse crime. Neste nosso mundo atual, suspeitar dos parentes é, muitas vezes, plenamente justificado.

— A filha receberá uma boa quantia, é verdade.

Fëll assentiu:

— Isso quanto ao ângulo financeiro. E quanto ao secretário... Mr. Lutlum obtém algum benefício? Acha que Monsieur Sachsen-Dorf sabia do relacionamento entre a filha e Mr. Lutlum?

— Acho que sim. Como pai, eu saberia.

— Há alguém que o senhor, sob qualquer ponto de vista, considere suspeito?

— Claro que sim — disse o juiz. — Todos, eu diria.


III

 

O enterro do célebre Amyr Sachsen-Dorf foi igual a todos os outros sepultamentos, a não ser a presença de algumas figuras ilustres. Personalidades da política e da alta sociedade austríaca vieram para prestar a última homenagem no Friedhof St. Marx.


IV

 

Após o funeral, Madame Nerwcare e a filha demoraram dez minutos para passar por todo o pessoal da imprensa. Gervois Lutlum as ajudou distraindo os fotógrafos e acompanhou ambas até o táxi. Tudo o que mãe e filha queriam nesse momento era se livrar dos repórteres e ir para casa.

Uma chuva cor de ardósia começava a cair sobre a cidade e Nivea Nerwcare sentiu um súbito cansaço, embalada pelo chiado repetitivo dos limpadores de para-brisa.

Já passava das seis horas quando o táxi parou na Falkestrasse.

Madame Nerwcare pagou a corrida e, tomando um atalho, cruzou por dentro dos arbustos. Com a filha atrás de si, abriu a porta dos fundos com a chave. A casa estava escura e silenciosa.

Madame Nerwcare fechou a porta e pôs a tranca.

— Ufa! — suspirou Nivea, sendo interrompida pelo toque familiar do celular.

Nivea atendeu.

— Alô... alô... alô... Quem é você? Desculpe, não entendi. Ir aonde? O local do crime. Que crime? Por quê? O quê? Claro que irei. Alô... alô... Você está aí? Droga.

Nivea baixou o telefone e olhou para a tela, incrédula, bem a tempo de ver o aparelho se desligar sozinho.

Nivea olhou para a mãe.

— Temos que ir, mamãe!

— Ir? — perguntou Madame Nerwcare. — Para onde?

— Para a Mansão Carruthers — disse Nivea. — Parece que alguém vai revelar o nome do assassino.


Capítulo 13

 


Era bom estar em casa, pensou Mrs. Pompadière, fechando a porta atrás de si.

Depois de pendurar as chaves do carro na parede, Mrs. Pompadière atravessou a sala de estar e, com o olhar perdido, espiou através das janelas embaçadas, como se uma série de acontecimentos invisíveis, porém alarmantes, estivesse em curso lá fora.

Extraordinário o número de pessoas presentes no funeral!

Centenas de pessoas...

Pobre Amyr!

Vindo da cozinha, Ma’am Pupu marchou sala adentro.

Ma’am Pupu foi logo dizendo:

— A sua filha ainda não está em casa, Madame.

Uma espécie de crítica muda por trás do comentário da governanta aborreceu Mrs. Pompadière. Ela retrucou:

— Por que ela deveria estar em casa?

— Deve ter ido a algum restaurante... com o jovem Lutlum.

— Não seja patética, Ma’am. Se Serafine e Gervois foram a um restaurante, fico feliz por eles!

— Não sei não, Madame — disse Ma’am Pupu. — Ela e o jovem Lutlum... juntos...

— Não seja implicante — disse Mrs. Pompadiére secamente. — Acabamos de vir do enterro de meu marido! O que menos importa é se Serafine e Gervois foram jantar juntos!

— Ah — disse Ma’am Pupu.

Mrs. Pompadiére não evitou um sorriso. A ultraconservadora Ma’am Pupu!

A campainha da frente tocou repetidas vezes.

— Eu vou ver quem é — falou Ma’am Pupu.

Ela saiu em direção ao hall. Quando ela abriu a porta, uma mulher magra e alta, vestida de preto, avançou um passo e disse:

— Como vai, Ma’am? Não lembra de mim?

— Hã... é claro — disse Ma’am Pupu, o olhar arregalado e aturdido. Então se recompôs. — Vá embora — ordenou —, não queremos a senhora, está ouvindo? Não queremos a senhora...

Ignorando a afirmação, Mrs. Lilinburg contornou a governanta e entrou impulsivamente no vestíbulo da mansão.

Ma’am Pupu correu atrás dela, gritando, em tom hostil:

— Ai, Madame... Madame... A senhora não pode entrar aí!

Quando Henriette Lilinburg chegou à sala de estar, encontrou Mrs. Pompadiére sentada, assustada porém graciosa, na ponta do sofá.

Ao notar a presença da rival, o rosto de Mrs. Pompadiére se pintou de vermelho vivo.

— Meu Deus! Henriette... É você, Henriette?

— A própria — confirmou Mrs. Lilinburg. E acrescentou, dirigindo-se a Mrs. Pompadière: — Minha querida, quanta saudade!

Nesse exato momento, atrás de Mrs. Lilinburg, apareceram Suzan Victalle e o marido.

— Olá, Mrs. Pompadière — gaguejou Suzan.

Colbert Victalle era um homem enérgico e dinâmico, de maneiras calorosas.

— Boa noite, boa noite — disse ele, esfregando as mãos.

Ma’am Pupu parecia assustada com a invasão.

— Saiam, saiam! Deixem Madame descansar! Retirem-se, por favor! Vão lá para baixo, lá para cima, lá para fora, qualquer lugar longe daqui.

Mrs. Lilinburg segurou o braço da governanta, dizendo:

— Acalme-se, querida. Estamos aqui por causa do assassinato de seu patrão. Vim dizer para a sua patroa que precisamos nos mexer e apresentar um veredito para a polícia.

— Apresentar um veredito para a polícia? — perguntou Mrs. Pompadière.

Mrs. Lilinburg voltou a olhar para ela.

— É evidente! Não sei o que você pensa, mas eu não tenho a mínima dúvida sobre quem é a culpada. Aquela mulher. Brigitte. Brigitte Nerwcare. A francesa. Não se pode confiar em uma francesa! Brigitte é a culpada... É isso que importa. O que temos a fazer é provar que Brigitte é a culpada! A não ser... — e aqui Mrs. Lilinburg intercalou uma pausa. — A não ser que tenha sido você, Sonia!

Mrs. Pompadière deu uma risada repentina.

— Eu? Por que é que alguém ia pensar isso? Quem me conhece jamais pensaria em uma coisa dessas.

— Em nome de Deus, titia! — implorou Suzan. — São oito horas da noite. Vamos sair daqui!

— Não! — respondeu Mrs. Lilinburg. — Eu já disse, Suzan. Quero saber quem matou Amyr. E vai ser hoje!

O choque que se seguiu a essa declaração ganhou corpo num prolongado “Oooohh” de Mrs. Pompadière.

Cheia de cólera, Mrs. Pompadière ficou observando seus visitantes com os olhos tensos e nervosos.

Oh! Como estava cansada! Como seria bom se deitar! Dormir... Esquecer aquele dia... Esquecer...

— Eu vou repetir a pergunta. O que vieram fazer aqui? Quem trouxe vocês? Ou vocês simplesmente vieram?

— Titia recebeu um telefonema — disse Suzan rapidamente. — Não, não ela. Na verdade foi o recepcionista do hotel. Sim, foi o recepcionista... Ele disse que a pessoa queria que titia viesse para cá, hoje à noite.

— Está louca, menina? — perguntou Mrs. Pompadière.

— Parece... que... um... assassino... seria... desmascarado — disse Suzan.

Mrs. Pompadière estava cada vez mais irritada.

— Um assassino? Desmascarado... aqui? Isso é alguma piada? Quem foi a pessoa que ligou?

— Ela... ela não se identificou — disse Suzan.

Mrs. Pompadière balançou a cabeça afirmativa e gravemente, com o ar de quem comprova o seu diagnóstico.

— Ah! Não se identificou! — disse ela. — Muito conveniente, não?

— Está com medo, Sonia?

Havia uma pitada de fina ironia na voz de Henriette.

Mrs. Pompadière deu uma gargalhada.

— Medo... eu? Vejam só quem fala! Primeiro você envenena meu marido e depois vem infernizar a minha vida com uma história dessas?

— Eu não envenenei ninguém! Eu amava Amyr. Você ficou com ódio de mim porque eu estraguei sua vida. Bem, e você estragou a minha vida! Estamos quites.

Mrs. Pompadiére disse, categórica:

— Não tive nada a ver com sua vida. Você fez suas próprias escolhas.

— Ah, não, não fiz. Você tirou Amyr de mim!

— Bobagem. E como é que eu fiz isso?

— Vamos, Sonia, abra o jogo — disse Henriette. — Confesse que sente um gostinho especial ao saber que ele está morto!

Numa súbita onda de emoção, Suzan reclamou:

— Titia, a senhora prometeu se comportar! Lembra-se disso? Vamos esperar caladas, está bem?

Mrs. Pompadière balançou a cabeça.

— Esperar... pelo quê?

— Pela pessoa que ligou — disse Colbert.

Ma’am Pupu assustou-se com a progressiva palidez da patroa.

Ma’am Pupu saiu e voltou com uma xícara de chá. Sentou-se perto da patroa, afagando carinhosamente o ombro dela.

— Pronto, pronto, querida... Aqui está um chazinho quente e saboroso.

— Ah, Ma’am... Ma’am...

— Pronto. Pronto. Vai ficar tudo bem.

— Eu sou tão infeliz... Eu sou tão infeliz...

— Deixe para lá. Pegue o chá. Agora beba.

Obediente, Mrs. Pompadière pegou a xícara e bebeu o chá quente.

— Prontinho. Muito melhor, não é?

— Ma’am... Eu sou tão infeliz... tão infeliz!

— Quietinha, Madame. Não fique assim. Está tudo bem.

A campainha da porta soou pela segunda vez naquela noite.

Era Neill Brannigum.

Neill rastejou sala adentro. Não há outro termo para descrever a ação. Era o andar lento e compassado de um caramujo tímido e envergonhado.

— Alô — disse. — Cheguei muito atrasado?

— Oh, Neill, é você! — soluçou Mrs. Pompadière. — Você... você tem que falar com essa mulher. Diga que ela vá embora. Diga, por favor! Diga...

Neill pestanejou.

— Houve alguma coisa? O que foi?

Suzan Victalle explicou:

— Uma pessoa... não sei quem... ligou e disse que sabe quem assassinou Monsieur Sachsen-Dorf. Ela disse que vai revelar o nome esta noite... aqui!

— Estão loucos! Neill! Ajude-me... Chame a polícia. Não aguento ouvir isso. Neill!

Neill Brannigum se aproximou. Seu rosto estava impassível. Neill murmurou:

— Que interessante... Parece um jogo de Detetive e Assassino.

— Bem-vindo ao clube, irmão! — disse Colbert, apertando a mão de Neill. — Acho que já nos conhecemos, Mr. Brannigum.

— Ah, sim — disse Neill num jeito rispidamente educado, mas era óbvio que não se lembrava. — É verdade. Lembro-me muito bem.

— Há mais ou menos três dias.

— Claro. Na noite do... noivado.

— Ali está minha esposa — disse Colbert.

Neill sorriu, constrangido.

— Olá, Signora.

A campainha soou... Primeiro apareceu Madame Nerwcare, que ficou momentaneamente admirada com o número de olhos fixos nela. A filha vinha em seus calcanhares. O cabelo marrom-claro era liso até a altura das orelhas, mas das orelhas para baixo formava cachos encaracolados um tanto mais escuros e brilhantes.

— Oh-oh! — disse Colbert sem a menor sutileza. — A festa promete ser boa.

— Vocês também foram convidadas? — perguntou Suzan, olhando para mãe e filha francesas.

— Nivea recebeu um telefonema — disse Madame Nerwcare, retendo bruscamente o fôlego. — Não foi, filha?

— Sim — disse Nivea. — Era uma voz suave, efeminada... Achei que fosse um trote.

Neill Brannigum disse:

— Se vier mais alguém, vai ser a maior algazarra!

Dali a pouco, Ma’am Pupu abriu a porta para Gerbran Oliviê. O francês olhou em volta como se fosse da Divisão de Narcóticos.

Colbert disse:

— Não se constranja, colega. Entre, e junte-se ao grupo.

— Quer dizer que vocês...? — começou Gerbran Oliviê.

— Sim — disse Neill, indo cumprimentar o francês. — Estão todos aqui por causa do telefonema.

— Isso é um absurdo! — disse Mrs. Pompadière.

Gervois e Serafine entraram poucos minutos mais tarde.

Houve um silêncio, enquanto Serafine relanceava os olhos pelo grupo de pessoas na sala de estar.

— O que... está... acontecendo... aqui?

Mrs. Pompadière disse:

— Oh, filha, você tem que fazer alguma coisa! Oh! Estou com tanta dor de cabeça.

Serafine olhou para a mãe, que arquejava. Quase sem querer, viu Mrs. Lilinburg, perto da lareira.

Abalada e com os lábios trêmulos, Serafine perguntou:

— O que é isso? A senhora está proibida de entrar nesta casa!

A voz de Gervois chamou:

— Fine.

Serafine continuou seu discurso contra a presença de Mrs. Lilinburg na casa.

— Fine... Fine...

— O quê?

— Fine!

— Meu Deus, Gervois? — gritou a moça. — O que é?

O rapaz disse:

— Fine... Acho que eles vieram por causa do telefonema!

— Quem veio por causa do telefonema? — retrucou Serafine. — Ninguém veio por causa do telefonema!

— Eu vim — disse Monsieur Oliviê.

— E eu — disse Neill Brannigum.

— E nós — disseram os Victalle.

— Eu também — disse Henriette Lilinburg.

Neill, que estava na periferia do aglomerado de pessoas, imediatamente caminhou para a mesinha de bebidas.

— Agora que esclarecemos tudo, acho que um gole de bebida me faria muito bem. O que vai tomar, Signor Victalle? Gim, laranja e brandy? Ou pink gin?

Colbert disse:

— Pink gin, por favor

— Aqui está — Neill serviu o drinque, entregou-o a Colbert e voltou para preparar outro para si. — Eu gosto de vermute, scotch, bourbon e angostura! Alguém quer? Ninguém?

Havia algo de errado ali. Homens, mulheres — cada um deles tinha plena consciência disso. Cada um deles parecia esconder alguma coisa. A sombria expressão de censura de Henriette Lilinburg, os modos artificiais e nervosos de Neill Brannigum, a aparente fragilidade de Suzan Victalle...

Havia algo errado em algum lugar.

Na sala, as portas envidraçadas estavam abertas para a varanda, deixando chegar até eles o tec-tec-tec da chuva.

— Eu adoro a chuva — comentou Suzan.

Quase em seguida, Gervois Lutlum disse:

Isto é palhaçada... palhaçada! Eles tinham que fazer alguma coisa. Essa tal pessoa anônima, seja lá quem for...

Neill Brannigum concordou:

— Justamente: quem é essa pessoa anônima?

Gervois disse:

— É isso o que eu quero saber! Quem é essa pessoa anônima. Nós... ora, antes de mais nada, leve sua mãe para a cama, Fine. Depois volte aqui.

Serafine balançou a cabeça.

— Está bem. Venha, mamãe. Vou levá-la para a cama.

— Eu ajudo, Serafine — disse Nivea Nerwcare.

Apoiada nas duas moças, Mrs. Pompadière saiu da sala. Depois que o trio desapareceu, Gervois Lutlum disse:

— Muito bem, gente. Quem de vocês armou tudo isso?

Ouviram-se alguns “Ohs!” e “Eu não fui!”.

Gervois continuou:

— Eu já sabia... Pelo jeito, não foi nenhum de nós. Foi a tal pessoa anônima. Ela nos convocou para uma reunião. Todos nós. Neste lugar. Ao mesmo tempo. Todos querendo a mesma coisa.

— Isso nós já sabemos! — reclamou Gerbran Oliviê.

— Não, não... — disse Neill. — Vamos ouvir o cara. Vá lá, meu jovem. O que você dizia?

Gervois continuou:

— O que estou querendo dizer é que essa pessoa anônima que ligou para nós provavelmente é... o assassino de Monsieur Sachsen-Dorf.

— Essa eu não entendi! — disse Neill. — Nós fomos atraídos para cá pelo assassino ou pela pessoa que prometeu que ia desmascarar o assassino?

Houve um ligeiro murmúrio na sala.

Suzan abaixou a cabeça. Sua completa imobilidade chamou a atenção de Gervois. Ele ficou imaginando no que ela estaria pensando.

— Tudo bem, Signora Victalle?

— Sim, sim — disse Suzan. — Se foi o assassino de Monsieur Sachsen-Dorf que ligou para nós e quis que nos reuníssemos aqui, então o assassino... — ela fez uma pausa e completou: —... então o assassino é um de nós!

Todos os olhos se fixaram em Suzan Victalle.

— Achei que Henriette Lilinburg fosse a assassina — disse Madame Nerwcare.

Henriette Lilinburg rosnou:

— Eu não matei ninguém!

A mão erguida de Gerbran Oliviê acalmou o tumulto.

— Esperem... Eu me lembrei de uma coisa! Sim, sim... Eu sou mesmo um idiota! A tal pessoa anônima me disse que eu devia olhar... ali! Sim, atrás do ramalhete de sálvias!

Com passadas amplas, Gerbran se dirigiu para o console ao lado da porta. Afastou o pé de sálvias e...

Gerbran cambaleou como um bêbado, o horror estampado no rosto.

— Oh, não!

Todos olharam pensativamente para a face do homem... para os seus lábios secos... os seus olhos assustados.

Suzan disse, quase chorando:

— Ai, meu Deus, o que foi desta vez?

Com um gesto de suspense, Gerbran esticou a mão e apanhou uma caixinha branca de porcelana.

— Oh! Não, não, não, não, não, não...

Ele ofegou e cobriu a boca com a outra mão. Atrás dele, Suzan sussurrou, horrorizada:

— Ai, ai... O que está acontecendo?

Gerbran se virou e sorriu.

— Calma, minha gente! Não é nada. É só uma caixinha!

Foi uma coisa tão súbita e inesperada que todo mundo soltou um suspiro de alívio.

Gerbran abriu a caixinha. Retirou de dentro vários envelopes pequenos, de papelão azul.

— A-há! Envelopes! E... Oh! O que é isso? Parece que eles estão endereçados para nós!

Colbert adiantou-se e disse:

— Não faço a menor ideia sobre qual seja o propósito da pessoa que propôs essa reunião. Mas, a meu ver, essa pessoa, seja ela quem for, tem algum problema psiquiátrico. Acho melhor irmos embora... enquanto é tempo.

Houve um coro de vozes favoráveis.

Gerbran Oliviê disse:

— Oh, gente! Eu não sou covarde! Eu fico! Vocês nunca assistiram a uma boa história de detetive? Vamos até o fim com isso, por favor.

Colbert retrucou:

— Isto aqui não é uma história de detetive! É vida real. É perigoso! Pode ferir alguém. Pode até matar alguém.

Gerbran Olivê sorriu.

— E daí? Ajude-me a distribuir os envelopes, sim?

Os envelopes foram distribuídos e abertos. Havia um cartão com uma inscrição dentro de cada envelope.

E havia mais... No fundo da caixinha de porcelana, Gerbran viu um papel dobrado.

— Olhem isso! Um papel com uma mensagem!

Limpando a garganta e, em voz alta, Gerbran leu:


Cada um de vocês tem uma pista que conduz a um local. Em cada local, existe uma parte da resposta do enigma. Juntem as partes e vocês terão a verdade.


Ninguém se mexeu. Todos se entreolharam, espantados.

— Ah, gente, sem ofender... — chilreou Suzan. — Isto está ficando chato.

— Adorei — disse outro.

— Meu cartão diz — leu Neill: — Vá ao porão. Veja a caixa de brinquedos antigos. Que será que significa isso?

Atrás deles, Serafine e Nivea voltaram para a sala. Serafine quis saber:

— O que foi? O que aconteceu?

Gervois estendeu um envelope para a namorada.

— Isto é seu, querida!

— O que é isto? — perguntou Serafine.

— Espere — disse Gervois. — Leia outra vez, Monsieur.

Lenta e pausadamente, Monsieur Oliviê releu a inusitada mensagem.

Serafine prestou atenção. Depois balançou a cabeça.

— Muito bem — disse. Verificou o próprio cartão: — Aqui diz: Vá ao ateliê. Faça uma busca atrás dos quadros. Acho que já entendi. Ateliê. Ateliê. A minha parte da resposta está num dos quadros.

Imediatamente todos começaram a falar ao mesmo tempo.

Pairava no ar um sentimento de insatisfação, mas Serafine Sachsen-Dorf não era pessoa que se deixasse governar pela opinião dos outros. Ela se virou e saiu a passos rápidos para o ateliê.

Gervois corou e disse:

— Bem, vocês ouviram. Vamos nos mexer. Eu fui designado para a adega.

— Quiosque... — sussurrou Monsieur Oliviê.

Todos hesitaram. Era como se eles quisessem ficar na companhia uns dos outros, em busca de segurança.

Depois, numa vagarosa e relutante procissão, o grupo se dividiu. Cada qual seguindo uma direção diferente.

Ma’am Pupu foi para a cozinha.

Suzan Victalle tomou o corredor que dava na lavanderia.

— A senhora não vem, mãe? — perguntou Nivea, já no alto da escada.

Madame Nerwcare estava junto da porta envidraçada, olhando a chuva que lavava os vidros.

— Sim, sim, filha — disse Madame Nerwcare. — Eu só estou pensando...

— Pense depois — disse Nivea. — O que diz o seu cartão?

— Primeiro quarto superior... Guarda-roupa — leu a mãe.

— Que sorte. Estarei logo ao seu lado. Fiquei com o segundo quarto. Venha, mãe.

Madame Nerwcare subiu a escada e se juntou à filha no patamar superior.


II

 

Henriette Lilinburg examinou seu cartão. Dizia: “Vá à Sala das Coleções. Veja a prateleira G”.

Sala das Coleções?

Henriette conferiu o relógio sobre o consolo da lareira. Eram nove e cinco.

Será que deveria ir para a Sala das Coleções?

“Amyr... Amyr”, pensou ela. “Oh! Se você estivesse aqui comigo esta noite!... Se você estivesse aqui!”

Sim. Ela iria para o raio da Sala das Coleções! Para ver o quê? A prateleira B. Não, não... A prateleira G. É o que estava escrito no cartão. Prateleira G.

Henriette foi pelo corredor até a Sala das Coleções. Com um ligeiro resmungo reumático, acendeu a luz elétrica.

“Acho que estou ficando velha... Ora, que bobagem, Henriette! Você está velha!”

E não havia ninguém, absolutamente ninguém em quem ela pudesse confiar.

Henriette Lilinburg ficou andando pela Sala das Coleções. As estantes com papiros, óstracos e peças de barro e metal estavam dispostas como raios de uma roda.

Prateleira A.

Havia alguma coisa que ela não conseguia entender muito bem, algo vagamente inquietante, mas ela não conseguia pensar nisso agora.

Prateleira C.

Henriette aguçou os ouvidos.

Ouviu o ranger de uma porta.

A luz se apagou.

No escuro, ela sentiu medo.

— Não seja tola — disse Henriette Lilinburg para si mesma. — Vai ver que não tem luz na casa toda.

Apesar disso, ela tinha ouvido um ruído. E aquilo não era imaginação. Era real.

Por que Amyr tivera que morrer?

Ela não queria morrer.

Então, imóvel no meio da Sala das Coleções, Henriette Lilinburg viu a luz de uma poderosa lanterna nas mãos de uma silhueta na porta.

Passos... passos muito cautelosos...

Com uma sensação de triunfo, Henriette reconheceu a pessoa por trás da lanterna. “Mas é... é...”, pensou. Satisfeita com o progresso mental provisório, disse:

— Oh! Graças a Deus... Deve ter queimado um fusível.

Percebeu uma sombra cruzar seu campo de visão, e antes que pudesse esboçar uma defesa... sentiu uma dor violenta no peito.

A boca de Henriette Lilinburg se abriu, mas não produziu qualquer som. Ela deu um último passo e, tentando recuperar o equilíbrio, caiu de bruços, mergulhando na dor e nas trevas.


III

 

Eram nove e meia.

De algum ponto do outro lado da porta da cozinha, os uivos e gritos de Ma’am Pupu cortaram o silêncio da noite. Estavam aumentando de volume, e passaram a ser acompanhados por batidas de punhos na parte interna da porta.

Passou-se um minuto antes que a porta fosse aberta. Dando um último uivo, a governanta precipitou-se para fora, suada e sem ar.

Ali parado, olhando para ela, estava Neill Brannigum.

— Fique calma, Ma’am! — disse Neill. — Pode me contar o que está acontecendo?

Ma’am Pupu engoliu em seco e parou de gritar.

— Oh! Eu estava lá dentro, senhor. Então... alguém... trancou a porta. Eu mexi no trinco, mas estava trancada no outro lado. Não fui eu, senhor! Alguém... alguém...

— Alguém trancou a senhora lá dentro? — perguntou Neill, intrigado. — Quem?

Ma’am Pupu arfou e soluçou:

— Eu não sei, senhor. Não vi, senhor. Oh, foi tão assustador!

Neill pareceu um pouco surpreendido com a resposta.

— Espere... Eu poderia jurar que ouvi duas vozes. Sim, a sua voz... e de Henriette. Sim, Henriette! A senhora viu para que lado foi Mrs. Lilinburg?

— N-não, senhor.

Acima dele, Madame Nerwcare deu alguns passos pelo mezanino e entrou na área iluminada pela luz que vinha da sala de estar.

— Mrs. Lilinburg foi para a Sala das Coleções — disse Madame Nerwcare.

Neill virou a cabeça e olhou para cima.

— O quê?

— Henriette foi para a Sala das Coleções — repetiu Madame Nerwcare.

Resmungando alguma coisa, Neill deu um salto e saiu andando com as pernas duras como um soldado. Atravessou um corredor coberto por painéis de madeira e quadros famosos e, mais adiante, viu o retângulo de luz da Sala das Coleções.

Neill distinguiu, no espaço oval vazio no centro da sala, o corpo feminino estendido no chão.

— Henriette! — exclamou, soltando um gorgolejo para lá de estranho. — Oh, não, não, minha querida Henriette! — Ajoelhou-se ao lado do corpo da mulher. — Não, não, isso não pode ser, não pode ser!

Logo em seguida, Gervois Lutlum chegou ao seu lado e cobriu a boca com a mão.

— Ah, caramba! Caramba! Ela está...?

Gervois perdeu a fala.

Neill ainda estava examinando o corpo da mulher. Ele por fim confirmou acenando com a cabeça:

— Sim, meu amigo. Ela está morta.


Capítulo 14

 


Os detetives de homicídios chegaram em menos de meia hora.

O oficial Wacht distribuiu as tarefas. Peritos iam e vinham, esquadrinhando a Sala das Coleções em busca de impressões digitais e tudo mais que pudessem encontrar em matéria de evidências.

Durante este tempo, os policiais conversaram com as prospectivas testemunhas para saber se alguém tinha tocado em alguma coisa, obtendo informações importantes que poderiam ser úteis na determinação do plano de ação.

Wacht se juntou ao Juiz Warning e Fëll, que olhavam o corpo de Mrs. Lilinburg.

O cadáver permanecia no chão, como um boneco desconjuntado. Em seu peito, como um chifre feio e antinatural, sobressaía o cabo de um punhal.

— Impossível! — exclamou o juiz Warning, verbalizando toda a sua insatisfação. — É o segundo assassinato planejado nesta casa. Isso não poderia acontecer!

— Poderia acontecer — disse o oficial Wacht. Ele suspirou. — Qualquer coisa poderia acontecer em qualquer lugar.

Mesmo neste momento de confusão e incerteza, o oficial permanecia, acima de tudo, ele mesmo, no comando da situação.

Fez uma pausa e continuou:

— Foi um crime premeditado. Todos os convidados foram atraídos simultaneamente a outras repartições da casa. Enquanto isso, o assassino teve tempo de sobra para matar a mulher e desaparecer sem deixar vestígios.

— É extraordinário — comentou Fëll.

O juiz D. Warning cofiou os bigodes.

— Uma armadilha à moda antiga, e sua finalidade era a morte!

Sempre que o Juiz Warning cofiava o bigode, podia-se ter certeza de que estava indignado. Mas, naquele momento, sua indignação era genuína, e Fëll não pensou em criticá-lo por isso.

Fëll se ajoelhou e olhou pensativamente para a mulher morta. Havia pouco make-up em seu rosto e, quase na altura da clavícula, via-se uma mancha de sangue coagulado. Sangue vermelho-vivo que se confundia com a cor do vestido, cujo fundo negro e pêssego tinha desenhos de flores oliva e vermelhas.

Fëll perguntou:

— De que material é feito esse punhal?

O oficial Wacht consultou suas notas.

— Quartzo... não, é sílex. Isso mesmo, sílex.

— Como sabe disso, oficial?

— Como eu sei? Perguntei a Mr. Lutlum — disse Wacht. — Ele disse que o punhal foi adquirido no ano passado, num leilão.

— Muito bem — elogiou Fëll.

Fëll realizou um exame crítico do local. Primeiro, farejou o ar. Depois, deitou-se ao comprido. Nada parecia fora do lugar, exceto um suporte com alguns óstracos. O suporte parecia ter sido puxado de maneira violenta. Vários óstracos estavam jogados no chão.

O detetive ficou de pé e, como um contorcionista, esquadrinhou toda a sala, delicadamente.

— Estantes... — murmurou para si mesmo. — Uma série de murais modernistas... prateleiras... Um local sossegado para um assassinato.

Enquanto pronunciava essas frases, uma nova pergunta fulgurou na mente do detetive.

Fëll virou-se para Wacht:

— Por que Mrs. Lilinburg veio para cá, oficial? Repita, por favor.

— É claro — disse o oficial. — O cartão dela dizia que ela deveria procurar sua parte do enigma neste local. Isso parece a hipótese mais provável para mim.

— Acho que o senhor está certo — disse Fëll. — Tem apenas um pequeno problema. Ela viria aqui sozinha?

— Sim. Acho que sim.

— Além da sobrinha, Mrs. Lilinburg tem algum outro parente vivo? Seu celular tem acesso à internet, oficial?

Wacht sacou o telefone do bolso. Ele começou a digitar depressa no pequeno teclado. Finalmente, disse:

— Uma irmã. Mora em Dayton, Ohio.

— Pobre Mrs. Lilinburg! — murmurou o Juiz Warning. — O senhor acha que foi alguém de dentro, oficial?

Wacht assentiu com a cabeça.

— Pode ter sido sim — disse. — Teoricamente, todo mundo estava indo atrás das pistas contidas nos cartões, mas não acredito que alguém consiga fornecer um álibi respeitável. Qualquer um deles, incluindo a própria Mrs. Pompadière, poderia ter vindo e encontrado Mrs. Lilinburg aqui, ou tê-la seguido até aqui. Então, após ela ter sido apunhalada, o assassino poderia voltar em silêncio, sem ser percebido, até sua posição original, e estar lá tranquilamente quando o alarme foi dado. Este recinto tem duas entradas — continuou. — A porta comum, lá... E esta porta lateral... Mrs. Lilinburg devia estar distraída, remexendo a prateleira com o lixo persa quando foi surpreendida e apunhalada.

— Tesouro persa — corrigiu o Juiz Warning.

— O quê? Ah, sim! Tesouro persa, claro. O assassino pode ter vindo de lá... ou daqui... Depois de desferir a punhalada, ele pode ter arrastado a vítima para esta área central. Acho que podemos convir que foi um crime de fácil execução.

Fëll olhou para o oficial, curioso. “Que afirmação estranha”, pensou ele.

— É uma teoria singular, mas pouco plausível — disse Fëll. — Um crime de fácil execução? Parece-me que nosso assassino urdiu muito bem o seu plano.

— Sim, é verdade, não é mesmo? Falei uma bobagem, eu sei. Está se referindo aos cartões?

— Especialmente os cartões — frisou Fëll. — Pense em todas as variáveis. Eu quero que certa pessoa morra. O que eu faço? Convoco a pessoa para falar comigo? Sim, mas sempre existiria o risco de ser visto e, o que é pior, ser identificado. Em vez disso, eu faço o seguinte: reúno várias pessoas num só lugar e, para que elas se separem, dou uma tarefa qualquer para cada uma delas. Enquanto isso, eu sigo e elimino minha vítima. Qual a vantagem disso: a polícia se vê às voltas com seis ou sete suspeitos. Nenhum dos suspeitos com um álibi que se preze. Ninguém viu ninguém. O senhor tem o cartão encontrado junto com Mrs. Lilinburg?

Wacht entregou o cartão ao detetive.

Fëll leu:

— “Vá para a Sala das Coleções. Veja a prateleira G.” Hum... Vir para cá e ver a prateleira G. Esta foi a designação dada a Mrs. Lilinburg, não foi? E o que é que ela deveria pegar na prateleira G? Nada, era só um engodo para isolá-la das outras pessoas. Os cartões... Quem encontrou os cartões?

— Monsieur Oliviê... Parece que Monsieur Oliviê sabia que os cartões estavam no console ao lado da porta. Foi ele também que leu a carta com as instruções.

Wacht resumiu os detalhes.

Fëll balançou a cabeça e disse:

— Enquanto cuida do encaminhamento do corpo, oficial, eu gostaria de interrogar Monsieur Oliviê.

— Perfeitamente — disse Wacht. — Perfeitamente. Pode usar a biblioteca, se quiser.

Wacht chamou um policial uniformizado e cabelo cor de linho.

— Peça que Monsieur Oliviê vá para a biblioteca. Diga que estes cavalheiros querem falar com ele.

— Sim, oficial — disse o policial, saindo apressadamente.

Fëll perguntou para Wacht:

— A que horas, mais ou menos, poderemos dispor dos resultados da autópsia?

— É provável que o legista expeça o laudo até amanhã meio-dia.


II

 

Depois de se separar do oficial, Edmund Fëll, levando seu amigo magistrado de contrapeso, encontrou Ma’am Pupu na cozinha.

Ma’am Pupu ergueu o corpo, sacudindo os cabelos encaracolados. Suas bochechas estufadas, sulcadas de veias azuladas, estavam rígidas e tensas.

Fëll a encarou, pensativo, escolhendo o melhor método de ataque. Finalmente, fez algumas perguntas relacionadas aos acontecimentos da noite.

— Eu tinha começado a secar os pratos e a limpar algumas gavetas no fundo do armário. Então, Mrs. Pompadière voltou do funeral. Eu falei um pouco com ela sobre... a filha.

— Falaram bem ou mal?

Ma’am disse com firmeza:

— Nem bem nem mal. Eu disse que Serafine devia ter saído com o jovem Lutlum para algum canto. No meu tempo, as mães estavam sempre vigilantes. As filhas ficavam em casa para aprender as habilidades necessárias para se tornarem esposas capazes. Hoje em dia, a mãe não sabe com quem a filha sai. Mas... bem... Mrs. Pompadiére é a mãe... ela que faça o que achar melhor! Enquanto falávamos, ouvi o toque da campainha e fui abrir a porta. Era Mrs. Lilinburg e a sobrinha e o marido da sobrinha. Tive que abrir a porta várias vezes. Eu protestei, mas não adiantou nada. E depois voltei para copa e fui limpar a prataria.

Apesar de sua aparência frágil diante da generosa figura da governanta, o detetive mantinha uma postura ereta e firme.

Ele disse:

— E depois disso, Ma’am... posso chamá-la assim, não posso?

— Pode. Depois, eu ouvi gritos. E pensei: “Pronto! Mataram mais alguém.” Eu quis correr para fora da cozinha, mas vi que a porta estava fechada. Parei um momento para ouvir e então escutei outro grito e um barulhão, e eu mexi no trinco, mas a porta estava trancada no outro lado. Fiquei apavorada. Louca de medo. Eu gritei e gritei e gritei e bati com mãos na porta. Depois... depois, eles abriram a porta e me deixaram sair. Todos foram para a Sala das Coleções. Eu vi o sangue, sangue! Oh, meu Deus, o sangue!

— Quem a senhora acha que matou Mrs. Lilinburg?

Ma’am Pupu estremeceu.

— Prefiro não falar sobre isso.

— Ma’am, eu não perguntaria se não considerasse necessário.

— Mesmo assim, não quero responder.

— E por que não? Acha que não vou acreditar na senhora?

A velha governanta hesitou. Por fim, acabou concordando em falar sobre suas suspeitas.

— Eu acho que o assassino é... o jovem Lutlum.

— Gervois Lutlum? — interveio o Juiz Warning.

— Sim. Mas não foi ele sozinho.

— O que está querendo dizer? — perguntou Fëll.

— Nós temos uma horta nos fundos do terreno. Ontem de manhã, quando fui apanhar alface, ouvi duas pessoas conversando dentro da casinha das ferramentas. Gervois disse: “Você precisa abandonar essa ideia! Você não pode matar ninguém.” E a moça disse: “Não posso? E por que não? E se eu quiser?” E depois ela disse: “Você não pode me deter, querido”, e eu pensei: “Ora essa! É assim que a senhorita se comporta! Espere só até Mrs. Pompadière ficar sabendo disso!”

Os dois homens estavam em dúvida.

Cautelosamente, Fëll perguntou:

— Gervois Lutlum estava falando com uma moça, a senhora disse. Que moça?

— Serafine, claro — disse Ma’am Pupu, rispidamente.

— Tem certeza absoluta de que era Miss Sachsen-Dorf?

— Ah, certeza absoluta! Ela é uma boa menina. Mas... mas...

— Mas também tem um lado ruim, não é? — disse Fëll.

O balanço do interrogatório no final se resumiu ao seguinte: que os assassinos poderiam ser Miss Sachsen-Dorf e Mr. Lutlum.


III

 

Fëll e o juiz saíram andando da cozinha na direção da biblioteca nos fundos da casa.

Então, ao chegar à passagem lateral que levava à porta do jardim, Fëll e o juiz pararam.

Ali, na frente deles, estava Colbert Victalle.

O Signor Victalle parecia estar estudando um retrato da parede à luz de uma lanterna.

Fëll perguntou:

— O que o senhor está fazendo?

Colbert Victalle estremeceu e virou a cabeça.

— Eu... — disse ele. — Eu... estou... só olhando... o quadro.

Os dois homens se aproximaram e pararam ao lado dele.

Colbert murmurou:

— É algo muito importante: um retrato da época da Segunda Guerra. O bisavô de Monsieur Sachsen-Dorf era piloto da Luftwaffe, sabiam?

Fëll olhou para o retrato por alguns minutos, em silêncio. O retrato mostrava um caça noturno alemão Junkers 88s com uma suástica na cauda. Ao lado do caça, um homem jovem e bonito, com cabelo preto e olhos azul-escuros.

— Este é o bisavô de Monsieur Sachsen-Dorf? — perguntou Fëll.

Colbert disse devagar:

— Sim, senhor.

As pálpebras de Fëll se agitaram.

— Um avião... com uma suástica? Então o bisavô de Monsieur Sachsen-Dorf era nazista!

— Era sim — disse Colbert. Como se percebesse a implicação de suas palavras, ele acrescentou: — Incrível, não é?


Capítulo 15

 


Edmund Fëll deu uma olhada na biblioteca. Livros de história e culinária se alternavam com guias para criação de cães e biografias de generais.

Finalmente, Gerbran Oliviê apareceu.

— Fui chamado, senhores, e me apresento!

Era outro confronto de uma possível testemunha ocular de um assassinato com o detetive, um convidado que não era bem-vindo, o especialista vindo de fora para fazer perguntas que, para muita gente, não faziam o menor sentido.

— Sente-se, Monsieur Oliviê — convidou Fëll.

Gerbran Oliviê deixou-se cair numa poltrona de vime.

— Meu Deus, que noite! — exclamou. — Essa é a única coisa que posso dizer, senhores.

— É mesmo — disse Fëll, solidário. — Fale-nos um pouco do senhor, Monsieur.

Sem perceber, quase inconsciente, como se falasse para si mesmo, Gerbran Oliviê disse:

— Falar de mim? Bom, o que eu posso dizer? Fui criado por meus avós paternos, que possuíam uma estalagem no interior da França. Evito glúten e lactose e gosto de uma boa comida orgânica. Gosto de salmão defumado, linguado...

Fëll interrompeu:

— O que está fazendo, Monsieur?

Gerbran franziu a testa.

— Entendi que queria que eu falasse de mim — disse.

— Sim, mas no contexto atual. Do crime... dos personagens... não de sua dieta alimentar!

Gerbran corou.

— Pardon! Pelo que percebo, vocês querem que eu faça uma sinopse do que fiz, vi e ouvi.

— Sim — disse Fëll. — Será mais fácil para todos se o senhor for honesto. Há um rumor de que o senhor leu uns cartões para o grupo, algo assim.

— Eu estava apenas obedecendo ordens, senhor.

— Ordens de quem?

— De alguém anônimo, ora — disse Gerbran.

— Vamos esclarecer isto — disse Fëll. — Quais eram essas ordens?

— Eram para eu olhar perto do pé de sálvias. Foi lá que achei os cartões... dentro de uma caixinha branca.

— Muito interessante — murmurou o juiz. — Esse alguém anônimo era homem ou mulher?

Gerbran hesitou.

— Estranho o senhor perguntar. Minha primeira impressão foi de que era um homem. Um homem com voz aguda. Depois não tive certeza.

— Como?

— Primeiro pareceu um homem tentando imitar uma mulher. Depois tive a ideia de que poderia ser uma mulher tentando parecer um homem.

— Interessante — disse Fëll.

— É a pura verdade, senhor. Juro por Deus que é a verdade. Eu não sabia o que era... não fazia a menor ideia. Pensei que fosse algum trote.

— O senhor lembra o que a pessoa disse?

— Recebi a chamada umas cinco e meia. “Se vier à mansão hoje à noite saberá quem assassinou seu amigo”, disse uma voz. “Olhe, não sei quem é você”, disse eu, “mas eu vou desligar.” “Não desligue”, disse a pessoa. “Eu sei quem matou Amyr Sachsen-Dorf. E quero revelar o nome.” “Como? Onde?”, perguntei. “Vá à Mansão Carruthers”, continuou a voz. “Vá e veja. Às oito e meia... Ah! Antes que eu esqueça, verifique o console ao lado da porta.” Foi assim. Depois, a linha ficou muda. Na hora achei tudo uma tremenda bobagem, sabe? Acabei indo, por via das dúvidas.

— Há mais alguma coisa que o senhor lembre, qualquer coisa, a respeito dessa chamada?

— Eu tive um sentimento meio esquisito, uma sensação de que a pessoa... tinha alguma coisa em mente.

— Parecia com raiva? Ameaçadora?

— Não, não é isso. Ela foi educada, mas...

Fëll esperou enquanto Gerbran procurava as palavras certas.

— Talvez educada demais. Eu fiquei com... medo.

— Quando o senhor chegou, quem já estava na mansão?

— Deixe-me ver... Mrs. Pompadière estava... Mrs. Lilinburg, o casal Victalle... Madame Nerwcare e a filha... acho que só. Não, não, Neill também estava... Neill veio me cumprimentar. Por fim vieram Gervois e Serafine.

Fëll disse:

— O assassino devia estar entre eles. Caso contrário, não teria acontecido o crime. Estava entre o grupo de convidados ou entrou pela janela ou pela porta. Vamos seguir a cronologia... Assim que entrou, o senhor viu os cartões?

Gerbran fez que não com a cabeça.

— Não, não vi. Francamente falando, eu fiquei meio zonzo quando vi toda aquela gente ali. Eu me lembrei de olhar o console bem mais tarde.

— O que o senhor fez, Monsieur?

— Fui até lá e fiz o que qualquer um faria. Dei uma olhada e vi a caixinha... Havia uns envelopes. E, por baixo deles, um papel com instruções.

— O senhor guardou o papel?

— Sim... É este.

Fëll deu uma lida.

— Cada um de vocês tem uma pista que conduz a um local. Em cada local, existe uma parte da resposta do enigma. Juntem as partes e vocês terão a verdade. Nada mal. Só há uma coisa mal explicada nessa história. Como um homem como o senhor, com suas qualificações e cultura, foi cair nesse conto-do-vigário?

Gerbran mordeu o lábio.

— Meu pai tinha um ditado: “Qualquer um é enganado, desde que queira ser enganado”.

— Existe outra possibilidade — disse Fëll.

— Qual?

— Pode ser que o senhor tenha tramado tudo isso. E, para reforçar essa teoria, foi o senhor quem localizou os cartões.

— Não é bem isso.

— Deixe-me terminar... O senhor poderia de fingido ir para...

—... o quiosque...

—... e, sem ser notado, ir atrás de Mrs. Lilinburg. O mérito fundamental disso é que não desmente os acontecimentos.

Gerbran Oliviê abanou a cabeça.

— Talvez o senhor devesse fazer um upgrade dessas suas afirmações. Caso esteja tentando insinuar que...

— Estou sim — disse Fëll.

— E por que diabos eu mataria Mrs. Lilinburg? Na melhor das hipóteses, se todos os depoimentos confirmarem as suas suspeitas, se tudo correr bem, o que acho difícil, talvez, talvez, o senhor consiga demonstrar um vínculo distante, quando muito, entre mim e esse... assassinato!

Fëll desviou o assunto com um aceno de mão.

— Quanto tempo transcorreu entre a sua saída e os gritos da vítima?

— Eu não ouvi os gritos da vítima. Eu só ouvi o berreiro da governanta, que ficou trancada na cozinha! Eu saí da sala por volta das nove e cinco... O caos começou umas nove e meia.

— E qual foi sua primeira reação?

— Voltei correndo, lógico.

— O senhor não encontrou ninguém no caminho de volta?

— Não.

— Ou ouviu alguém fugindo?

— Não. Não ouvi nada.

— Alguém mais ouviu esses gritos? — perguntou Fëll olhando para o francês.

— Sim. Neill. Neill Brannigum ouviu. Eu ouvi, mas não achei que fosse um caso de morte. Pensei em tudo, menos nisso.

— Como o quê?

— Sei lá. Talvez fosse um morcego.

— Um morcego? — perguntou Fëll.

— As mulheres têm medo, não têm?

— Deixemos os morcegos de lado. Diga-me outra coisa... Quem encontrou o corpo?

— Acho que foi... sim... definitivamente, foi Neill.

— Danke, Monsieur. Já passa das onze... Não vamos prolongar o interrogatório esta noite. Se puder, chame Mr. Brannigum. Er soll sofort zu uns kommen.

Gerbran bateu uma continência desajeitada.

— O que você achou dele? — perguntou Fëll, assim que o rapaz fechou a porta atrás de si.

O Juiz Warning resmungou.

— Arrogante demais para o meu gosto — disse ele. — Não gosto de glúten... eu como salmão... Se quiser minha opinião, ele é do tipo que esfaquearia uma mulher sem o menor remorso.


II

 

A porta se abriu e por ela entrou Neill Brannigum.

Os lábios pareciam estar mais finos, com um ricto amargo. Até o cabelo estava desgrenhado e feio.

Sentando-se numa postura humilde, de olhos baixos, Neill Brannigum foi logo dizendo:

— Quando imagino que, anos atrás, poderia ter-me tornado adido comercial na embaixada americana! Ah! Se eu tivesse aceitado não estaria aqui, testemunhando de primeira mão essas tragédias lamentáveis!

Fëll disse:

— Adido comercial. Tem inclinação política, Mr. Brannigum?

— Eu não! A política é contingente e temporal. Prefiro algo mais estável.

Fëll se perguntou qual seria o verdadeiro Mr. Brannigum. Aquele ali, com o semblante decidido e melancólico? Ou o outro, que tinha sonhos frustrados de grandeza e status?

Fëll só tinha uma certeza: Mr. Brannigum não possuía o estofo de um líder.

— Bem, do que se trata? — perguntou Neill.

— Vamos falar claramente, Mr. Brannigum — disse Fëll. — O senhor foi, eu acho, a primeira pessoa a chegar à cena do crime, não foi?

— Fui eu? Sim, acho que sim.

Neill balançou a cabeça. Prosseguiu:

— Eu tinha ido para o porão. Fiquei lá, que nem um palerma, atrás de uma coisa que eu nem sabia o que era. Só me lembro que, do nada, ouvi uma gritaria... muito indistinta. Pareciam duas vozes... Uma voz curta e aguda, que logo se calou... e outra, junto com o barulho de pancadas. Deixei cair tudo e subi correndo. Em cima, notei que estavam esmurrando a porta da cozinha. Olhei, mas não havia chave na fechadura. Por sorte, vi que a chave estava lá, caída no chão. Aberta a porta, saiu Ma’am Pupu que, não sei como, tinha ficado trancada lá dentro.

— Tinha ficado trancada ou alguém a trancou lá dentro?

— Na hora, não pensei em nada. Mas... agora que o senhor diz... Sim... A chave estava corrida, e do lado de fora. Isso quer dizer...

— Quer dizer que fecharam aquela porta de propósito — completou Fëll.

Neill curvou a cabeça, impressionado.

— Mas quem?

— Boa pergunta.

— Foi aí que eu me lembrei: Ora, eu tinha ouvido duas vozes! E se a outra voz fosse de Henriette? Corri feito um louco... Quando vi Henriette lá... com aquele punhal... enfiado no peito! — e Neill fez um espontâneo gesto de horror.

Fëll levantou a sobrancelha.

— O senhor ‘correu feito um louco’ para a Sala das Coleções, suponho.

— Sim.

— Por que foi especificamente para lá?

— Pressentimento, acho — disse Neill. — Não, não, minto... Madame Nerwcare! Sim... Madame Nerwcare me disse. Ela estava no andar acima, e falou comigo debruçada no parapeito do mezanino.

— Richtig — disse Fëll. — O senhor faz alguma ideia de quem poderia ter matado Mrs. Lilinburg?

— O senhor está batendo na porta errada. Não tenho a menor ideia. E, mesmo que eu tivesse uma ideia, precisaria ter alguma prova, não precisaria? Teria de estar seguro.

— Acha que Monsieur Oliviê seja nosso homem?

— Gerbran? — perguntou Neill. — Nunca pensei nele nesses termos. Para mim, Sonia é que teria os melhores motivos.

— E o senhor, claro! — disse Fëll.

— Eu? Bom... já que insiste.

— Onde estava Mrs. Pompadière?

— Tinha ido se deitar.

Edmund Fëll olhou para Neill, como se estivesse se preparando para saltar para o reino do faz-de-conta.

— O caso é o seguinte — disse Fëll —, temos motivos para acreditar, por informações que obtivemos, que a filha de Mrs. Pompadière possa estar envolvida no crime. Acha que Miss Sachsen-Dorf é a assassina?

— Não me parece que Serafine seja do tipo capaz de matar! — disse Neill. — Por que ela mataria Henriette?

— Vamos supor por um momento que Mrs. Lilinburg tenha envenenado Monsieur Sachsen-Dorf. Repito: vamos supor. Se Mrs. Lilinburg teve mesmo alguma coisa a ver com a morte de Monsieur Sachsen-Dorf e, de algum modo, Miss Sachsen-Dorf tenha sabido disso, seria perfeitamente possível que ela quisesse se vingar matando a assassina de seu pai.

— Está dizendo que Mrs. Pompadière...

—... foi sedada! Para que não interferisse nos acontecimentos. Primeiro a moça retira a mãe da sala e faz com que ela ingira uma certa dosagem de drogas. Digamos, calmantes... Depois, ela volta e, alegremente, se junta a vocês. Finge que vai para algum lugar e, então, quando fica a sós, segue Mrs. Lilinburg e consuma o crime.

— Isso explicaria... — começou Neill.

Um vulto despontou na abertura da porta.

— Atrapalho?

— Oficial Wacht! — disse Fëll, repleto de benevolência. — Não, não atrapalha. Entre.

— Estamos suspendendo nosso trabalho — disse Wacht. — Já documentamos a cena, tiramos as fotografias e, num segundo reconhecimento, desenhamos alguns esboços. O cadáver foi levado para o necrotério, para os exames post-mortem.

— Wundergut — disse Fëll.

O oficial saiu e Neill se levantou da cadeira, gemendo com o esforço.

— Posso ir, senhores? Quero ver se está tudo bem com Suzan Victalle. Pobre menina! Perder a tia... e nessas circunstâncias!

— Faça isso, Mr. Brannigum. Cuide da Signora Victalle.

A porta se fechou.

O Juiz Warning suspirou.

— Acho que os depoimentos pioraram as coisas, porque, em vez de elucidar o caso, parece que o mistério está cada vez maior.

Fëll olhou com grande amabilidade para seu companheiro.

— O senhor está cansado, Herr Richter. O que nós precisamos é fazer uma pausa. Retomaremos os interrogatórios amanhã de manhã.


Capítulo 16

 


Perto do alvorecer, no dia seguinte, Edmund Fëll se barbeou e, depois de passar uma camada tripla de gel no cabelo, ligou para Suzan e Colbert Victalle.

Dali a meia hora, Fëll apeou no parque em frente ao prédio da Rathaus. Conforme o combinado, o casal já estava à sua espera.

Suzan usava imensos óculos escuros e roupa da moda. (Louis Vuitton? Versace?...) Na mão, uma bolsa Chanel.

— Signor Victalle! Signora Victalle!

Fëll teve um péssimo pressentimento.

Não sobre o Signor Victalle. Ele parecia agradável, embora talvez um pouco sem jeito por ter sido arrastado para uma tragédia familiar. Porém, sua mulher tinha um brilho assustador nos olhos.

— Vamos ser breves, Herr Fëll! — disse Suzan. — Não temos muito tempo. Eu e Colbert ainda precisamos ajeitar a papelada para o translado de titia.

Fëll avaliou as dificuldades de sua missão.

E disse:

— Ja, ja. Serei breve, eu prometo.

— Quero dar uma tarefa para o senhor — disse Suzan, antes que ele pudesse entrar no assunto.

— Signora? — perguntou Fëll.

— Prendam aquela gata velha.

— Quem?

— Mrs. Pompadière — disse Suzan.

Atrás da esposa, Colbert teve uma reação inesperada. Deu um passo e pressionou o braço dela.

— Suzan, meu bem! Ahn... Talvez esse seja um bom momento para um pequeno intervalo — sugeriu.

Suzan retrucou:

— Nós nem começamos.

— Eu sei. Mas é melhor fazer um intervalo.

— Não toque em mim, Col! Titia está morta! Eu quero que o assassino pague por isso! E Herr Fëll vai me ajudar nisso, não vai? O senhor vai me ajudar a vingar minha tia, não vai?

Fëll olhou para ela com curiosidade. Ficou pensando que ela parecia ter envelhecido dez anos desde a noite anterior.

— Ah, uma vendeta! — disse Fëll. — Não estamos na Córsega, Signora. Nós, austríacos, não temos o hábito de matar ou retaliar por vingança.

— Eu disse isso? — perguntou Suzan. — Por acaso, eu falei em vingança? Por acaso, eu falei em matar, em retaliar?

Mais uma vez, Fëll olhou para ela com curiosidade.

— Mas a senhora quer que aconteça alguma coisa, não é? Não é isso?

— Não, não foi isso que eu quis dizer.

Fëll insistiu.

— Mas a senhora de fato espera que alguma coisa aconteça... Algo fora do normal.

— O senhor está me interpretando mal, Herr Fëll. Eu só quero que a culpada vá para a cadeia!

Estava claro que eles não poderiam continuar nessa toada.

Tentando não ferir os sentimentos da Signora Victalle, Fëll disse:

— Tenha fé, Signora. Posso garantir que, no fim das contas, a justiça sempre prevalece. Enquanto isso, a senhora... e seu marido... não poderiam relatar para mim o que aconteceu ontem à noite?

Suzan retrucou, brutalmente:

— O senhor esteve lá, o senhor sabe o que aconteceu!

— Eu gostaria que vocês me contassem.

— Ele quer a nossa versão, Su — declarou Colbert.

— Sim — disse Fëll. — Quero a versão de vocês.

— Deixe que eu falo — disse Colbert.

— Pfff — disse ela com um gesto de desdém.

— Tínhamos acabado de voltar do funeral — disse Colbert. — Chegando ao hotel, o atendente disse que alguém tinha ligado e deixado um recado para nós. Fosse o que fosse, Mrs. Lilinburg ficou toda impaciente, querendo ir à Mansão Carruthers. Tomamos um banho e saímos. Fomos praticamente os primeiros a chegar à mansão.

— Lembra quem veio depois de vocês?

— Depois de nós, veio Mr. Brannigum. Depois, foi a vez do francês... Oliviê. Gerbran Oliviê. E, para fechar a conta, Mr. Lutlum e a excelentíssima Miss Sachsen-Dorf.

Fëll perguntou:

— Conseguem lembrar se, nessa hora, a caixinha de porcelana já estava no console ao lado da porta?

— Devia estar — disse Colbert.

— Devia estar não é resposta, Signor Victalle!

— Bem... para ser franco, eu não prestei muita atenção nesse detalhe.

— Então o senhor não viu nada?

— Não... nada

— E a senhora?

— Também não.

— Acham que Monsieur Oliviê poderia tê-la colocado lá, sem que alguém visse, ouvisse ou percebesse nada?

Suzan disse:

— Sem que alguém visse, ouvisse ou percebesse nada? Não.

— Eu discordo de você, Su — disse Colbert. — Lembre-se de que, quando Serafine e Nivea levaram Mrs. Pompadière para o quarto, todos se movimentaram de um lado para outro, falando e esbarrando uns nos outros. Monsieur Oliviê poderia ter colocado sim a caixinha no console.

— Se ele quisesse deixar algo no console, teria que rodear o ramalhete de sálvias. Ele não rodeou o ramalhete de sálvias. Quer saber, Herr Fëll? Nada nessa história faz sentido! Por que alguém ia querer matar minha tia? Por quê?

— É a senhora quem deve responder a essa pergunta, Signora Victalle.

— Mas eu não sei de ninguém. Tenho certeza disso. Titia não tinha inimigos. E, se o senhor está insinuando que Neill Brannigum tem alguma coisa a ver com o caso, eu digo que a ideia é absurda. Neill quase virou meu tio, lembra-se? Ele não mataria minha tia!

— Pode ser — admitiu Fëll. — Mas também é verdade que muitas vezes julgamos mal as pessoas, Signora.

— Não Neill! Mas diga... Por que o senhor está interessado na sequência em que todos chegaram à mansão? Isso tem alguma coisa a ver com o quê?

Fëll encarou fixamente a mulher.

“A sequência em que todos chegaram à mansão! A sequência... Letra m! A terceira letra, maiúscula!”, pensou ele, com crescente assombro. “Isto é formidável! Talvez este seja o elemento que forneça a chave para todo o mistério!”

O detetive voltou ao plano material. Balançou a cabeça.

— Pelos nossos cálculos, sua tia foi morta por volta das nove e vinte. A senhora se lembra do que estava fazendo nessa hora?

— O que eu estava fazendo? — perguntou Suzan. — Como assim?

— Onde é que você estava na hora do crime? E isso que ele quer saber — disse Colbert, piscando para Fëll.

— Isso interessa alguma coisa?

— Interessa — disse Fëll. — A verdadeira questão, a única que importa, é: “Onde eu estava no meio de tudo isso?”

— Mas é claro — disse Suzan. — O senhor quer um álibi, não é isso? Deixe-me pensar... ora, eu estava junto com... com...

— Não comigo — disse Colbert.

— Desculpe! Eu me enganei. Eu estava na lavanderia. Sim, é isso mesmo. Na lavanderia. E, de repente, aconteceu tudo aquilo. Só que eu não entendi nada, na hora, quer dizer, eu não sabia que titia tivesse sido morta. Toda a confusão, aquela gritaria... Eu não entendia nada, percebe? Pensei que a governanta estivesse sendo assassinada... quer dizer, ou tivesse se queimado no fogão, alguma coisa assim.


II

 

Depois de se separar dos Victalle, Fëll seguiu pela Avenida Ring, ordenando meticulosamente todas as coisas em sua mente.

Quando chegou à Mariahilfe Strasse, a principal rua de comércio de Viena, Fëll vislumbrou, entre os pedestres, uma sombrinha lilás e, embaixo, duas caras familiares.

Gervois Lutlum e Miss Sachsen-Dorf.

Ao ver o detetive, Serafine fez um aceno de mão.

— Ora, o senhor! — exclamou Serafine. — Que bela manhã, não acha?

Fëll cumprimentou o casal com uma serenidade absoluta, um sorriso impassível nos lábios.

— Ja, es ist ein wunderbares Wetter! Estimo que esteja tão bem, Fräulein.

— Ah, nada melhor do que o raiar de um novo dia. O sol... o calor gostoso!

Fëll perscrutou aquele rosto... e seu atrevido contentamento. Era algo tão fantástico que até Gervois Lutlum, perto dela, fez uma expressiva careta de contrariedade.

— Fine, acho que você não deveria... — ele quis dizer.

— E por que não? Oh, bendita luz do sol — cantou a moça. — De que adiantaria fingir para o Sr. Fëll? Ele é um psicólogo do crime, um fino conhecedor da alma humana. Ele sabe quem nós somos, e tudo o que fizemos. Não é mesmo, Herr Fëll?

— Ainda não cheguei a esse ponto — disse Fëll.

— Hum, quanta humildade! Por que... por que o senhor está realmente aqui no centro, Herr Fëll?

Fëll piscou os olhos.

— Estou montando o meu inquérito sobre a morte de Mrs. Lilinburg.

Serafine perguntou vivamente:

— E está obtendo algum resultado?

— Sim. Por falar nisso, vocês podem me conceder um minuto de seu tempo?

— O senhor é muito determinado! — murmurou Serafine.

Fëll fez um gesto de conciliação com as mãos.

— Tenho que ser.

— Acha mesmo que vai encontrar o assassino?

— É minha intenção.

Serafine e Gervois se entreolharam.

Serafine disse:

— É claro. O senhor quer nosso relato, não é? Quer as partes tediosas ou só o essencial?

— Só o essencial, Miss. Conte-me o que puder... mesmo que não se lembre dos menores detalhes, diga tudo o que se lembra.

Em sentenças curtas, Serafine contou os acontecimentos da noite anterior. Tudo fluía com lógica e naturalidade, com uma clareza extraordinária, como se cada coisa estivesse bem organizada em sua mente.

No fim, Fëll disse:

— É, sua versão contém detalhes interessantes, Miss. Podem ajudar na localização das pistas. Por quanto tempo Mrs. Lilinburg estava lá quando vocês chegaram em casa? — perguntou Fëll.

— Uns cinco minutos — disse Serafine.

— Não, não! — retrucou Gervois. — Mrs. Lilinburg já estava lá há mais de dez minutos antes de chegarmos.

— Cinco — corrigiu Serafine.

— Cinco? — repetiu Gervois.

— Cinco minutos — reafirmou Serafine.

— Não foram cinco minutos. Podemos concordar com dez, mas, para ser sincero, acho que ela estava lá há mais tempo.

— Pare! Pare! — disse a moça. — E daí que tenham sido dez ou quinze ou trinta minutos? Dá na mesma.

Fëll disse mansamente:

— Bem... acho que isso não é tão importante. Pode me dizer se a senhorita conhecia Mrs. Lilinburg antes de todos esses acontecimentos?

— Não — disse Serafine secamente.

— A senhorita tem alguma ideia, mesmo a mais vaga, do que pode ter precipitado esta tragédia?

Serafine balançou a cabeça.

— Não sei e não quero saber.

— Por que a senhorita conduziu sua mãe para o quarto?

— Porque mamãe disse que não se sentia bem.

— E ela dormiu logo?

— Sim. Estava com sono.

— A que horas foi isso?

— Ah, não sei dizer — respondeu Serafine.

— Nove horas — disse Gervois.

— Diga o que aconteceu quando voltou para a sala, Miss.

— Ouvi Monsieur Oliviê lendo um papel que propunha uma caça a qualquer coisa. Ganhei um cartão, que dizia: Vá ao ateliê. Veja atrás dos quadros!

— E a senhorita foi para o ateliê?

— Fui.

Fëll dirigiu sua atenção para Gervois.

— E o senhor... O seu cartão dizia para o senhor ir aonde?

— Para a adega.

— E encontrou alguma coisa lá?

Gervois explicou que tinha ido para a adega, mas não encontrou nada.

— Creio que fomos uns idiotas, não é, Herr Fëll? Quer dizer, fomos atraídos para longe do verdadeiro palco de atuação do assassino.

Fëll ouvia, pensativo.

— Sim. É incrível que todos tenham caído nessa armadilha, Mr. Lutlum.

O rapaz disse, desolado:

— Fomos uns patetas.

— A que horas foi que Ma’am Pupu começou a gritar na cozinha?

— Ah, não sei dizer — respondeu Serafine.

— Eram nove e vinte — disse Gervois.

— Então, às nove e vinte, Mrs. Lilinburg estava morta. Nesse momento, quem compareceu na Sala das Coleções?

Gervois respondeu:

— Neill Brannigum, Madame Nerwcare, eu e Gerbran Oliviê.

— Sim — confirmou Serafine. — Foi Monsieur Oliviê quem, aliás, chamou a polícia.

— Isso foi quanto tempo depois?

— Ah, uns três ou quatro minutos depois.

— Antes das nove e meia, então.

— Sim.

— Todos os outros apareceram antes das nove e meia?

— Eu... acho que... sim. Menos... menos...

Gervois ajudou:

— Menos Nivea Nerwcare.

— Sim — confirmou Serafine. — Ela demorou mais de dez minutos.

Serafine parou, ofegante.

— A que horas foi isso?

Serafine repetiu pela terceira vez:

— Ah, não sei.

Mas Gervois respondeu:

— Mais ou menos nove e quarenta.

— A senhorita ouviu a gritaria de Ma’am Pupu?

— Ouvi — disse Serafine. — Ela tem o miolo um pouco mole, se é que o senhor me entende! Aquela gritaria e os murros na porta... Ah!

— Miolo mole? — perguntou Fëll com ar de reprovação. — Também ouviu a gritaria, Mr. Lutlum?

— Não, não ouvi nada. Monsieur Sachsen-Dorf construiu a adega com revestimento duplo. Quem está lá dentro, fica incomunicável.

— Isso é tudo?

— Sim. Creio que sim.

Serafine interveio:

— Esqueceu-se de mencionar, Gervois querido, que Madame Nerwcare fez uma coisa muito estranha.

Fëll e Gervois olharam para a moça.

— Madame Nerwcare fez uma coisa estranha, Miss?

— Sim.

— E o que foi?

— Ela ajuntou um cartão perto do corpo de Mrs. Lilinburg.

— Mas o cartão dela estava no punho da luva! — disse Fëll.

— Ora, então... — arriscou Gervois, lentamente.

—... então o cartão devia ser de outra pessoa — disse Serafine, triunfante.

Fëll falou calmamente:

— Sim. Bem... A situação é a seguinte: a senhorita está sob suspeita de ter cometido o assassinato, sabia disso, Miss?

— E o senhor acha que... eu seja a assassina?

— Minha opinião não regula nada, Miss. Estar na cena de um crime traz muitos problemas e perigos específicos. Eu sugiro que a senhorita contrate um bom advogado.

Serafine ergueu as sobrancelhas.

— Um... advogado?

— Sim. Conhece um bom profissional em Viena? Um amigo da família, quem sabe?

— Não, não. Papai nunca precisou de nenhum advogado.

— Se me permite — disse Fëll —, recomendo que consulte o Juiz Warning, Miss. Ele pode dar as orientações adequadas.

— O Juiz Warning? — perguntou Serafine, em voz baixa. — Isso é sério?

— Mais do que sério, eu diria.

— Acha que o juiz vai... cobrar muito?

Fëll disse:

— É possível que ele a ajude em um gesto de boa vontade e nem cobre honorários. — E acrescentou: — Penso que falar com ele seria a melhor atitude, Miss.


Capítulo 17

 


Edmund Fëll contemplava com interesse o rosto de Madame Nerwcare. Uma senhora bem-vestida, de idade madura, com as mãos metidas em luvas de algodão muito limpas.

— Madame, espero — disse Edmund Fëll — que me perdoe por aparecer assim sem avisar.

Houve tempos em que Brigitte Nerwcare fora uma mulher rica da Rue des Rosiers. O marido possuíra grande extensão de terras férteis na Alsácia, propriedades em Biarritz, outras em Bordéus onde promovia pescarias, uma criação de cavalos de corrida e uma lancha de luxo.

Fëll começou:

— Wundergut, Madame. Seu nome todo, por favor.

Falando com um sotaque ligeiramente francês, a mulher disse:

— Brigitte Hayden Nerwcare.

— Data de nascimento.

Madame Nerwcare citou a data.

— É casada?

— Isso é relevante? — disparou ela.

— É só para informação, Madame — disse Fëll.

— Não. Viúva. Sou viúva.

— Seu trabalho.

Brigitte Nerwcare deu os detalhes de sua especialização, soletrando letra por letra as palavras francesas pouco familiares para o detetive.

— Anthropologie sociale, ethnographie, épistémologie.

Fëll virou o bloquinho na direção dela para confirmar a grafia.

— Então a senhora é antropóloga...

— Sim, tenho doutorado.

— É uma formação e tanto — disse Fëll. — A senhora não é arqueóloga?

Ela fez que não com a cabeça.

— Mas eu ajudo. É comum eles usarem voluntários, amadores interessados ou estudantes de arqueologia para fazer um pouco do serviço básico.

Fëll anotava em seu bloquinho.

— Schön. E por que a senhora veio para Viena?

— Um parente que morava aqui em Viena me deixou alguma coisa de herança. — Ela fez uma pausa, relutando em prosseguir. — Gostei e... fiquei.

Fëll fez outra anotação. Brigitte tentou ver o que ele estava escrevendo, mas não conseguiu decifrar sua caligrafia de cabeça para baixo.

— E sobre ontem à noite? — perguntou Fëll. Seu tom não era mais de conversa. — A senhora também recebeu uma comissão para ir a algum lugar procurar alguma coisa?

— Sim. Aqui está o cartão.

— Vá para o primeiro quarto superior. Procure no guarda-roupa — leu Fëll. — Pode me contar o que aconteceu, Madame?

Madame Nerwcare inspirou fundo e fez uma careta.

— Eu e Nivea fomos vasculhar os quartos de cima. Fiquei remexendo no guarda-roupa... como diz aí. Dali a pouco, eu ouvi alguém gritando... e o som de pancadas... no piso de baixo. Tentei correr, para ver o que era, mas me enrosquei no cabo do abajur.

— E depois? — perguntou Fëll.

Ela hesitou.

Fëll insistiu.

— A senhora tentou correr. Mas se enroscou no cabo do abajur. E depois?

Madame Nerwcare franziu a testa, como se houvesse lacunas em sua memória.

— Foi aí que eu caí e...

De repente, as palavras secaram em sua garganta. Como se...

Como se o quê?

— A senhora caiu e...? E depois?

A voz de Fëll era calma, mas insistente.

— Madame Nerwcare?

Ela não deu resposta.

— Madame Nerwcare. Quer que eu mande chamar alguém?

Brigitte olhou para ele com os olhos vazios.

— Não, não, obrigada. Estou bem.

— A senhora dizia que se enroscou no cabo do abajur e caiu...

Ela se forçou a se concentrar.

— Foi sim. O barulho me desorientou. Eu não conseguia distinguir de onde vinha o grito, e me assustei. Eu caí e... me feri.

Brigitte mostrou a atadura no antebraço.

Fëll disse:

— Madame!

— Oh, não é nada. Borrifei um antisséptico. Não foi nada. Quando cheguei ao corrimão, vi Neill e Ma’am Pupu na sala de estar, abaixo de mim. Neill queria saber onde estava Henriette, mas a governanta não conseguia falar, de tão apavorada.

— E sua filha, Madame Nerwcare?

— Nivea? Eu... eu não vi Nivea.

— Ela não tinha ido a um dos quartos?

— Sim. — Ela fez outra pausa. — Não tenho muita certeza do que aconteceu depois disso. A coisa seguinte de que me lembro é de Nivea ao meu lado quando já estávamos todos... juntos... em volta do cadáver.

— Então, a senhora perdeu sua filha de vista por alguns minutos?

A reação dela foi imediata.

— Perdi minha filha de vista? O que está querendo dizer, Herr Fëll?

Fëll ficou calado por alguns instantes, pensativo, antes de prosseguir:

— O que foi que a senhora catou ao lado do corpo, Madame?

— O quê?

— Dizem que a senhora catou alguma coisa do chão... perto do corpo.

Brigitte abriu a boca para responder, em seguida balançou a cabeça, irritada. Não estava mais com vontade de contar nada ao detetive.

— Não sei do que está falando! Quem me viu catando alguma coisa?

— Não costumo citar minhas fontes, Madame.

— Pois a sua fonte mentiu para o senhor.

— Então, a senhora não catou nada?

— Não.

— Hum...

Fëll ficou olhando para ela por um instante, depois fechou o bloquinho com um estalo.

— Estimo melhoras, Madame. Se puder me dar o endereço de sua filha...

— Vai interrogá-la também?

— Sim.

Madame Nerwcare forneceu o endereço.

— E eu estimo que o senhor tenha êxito em sua trajetória investigativa.

Quando Fëll chegou à calçada da Falkestrasse, o vento soprava do sul, limpando as nuvens do céu.

Ele pensou na voz macia como seda e no sarcasmo demolidor de Madame Nerwcare. Havia algo naquilo que ele não entendia.

“Bem... Mas o quê?”


II

 

A bela moça francesa olhou ao redor com um ar de quem estava desnorteada.

Seus pés estavam molhados e ela sentia frio.

Queria chegar logo em casa. Mais uma quadra e...

— Mademoiselle Nerwcare?

Nivea baixou os olhos, confusa, e voltou-os para a charrete que acabara de parar ao seu lado.

— Mademoiselle Nerwcare?

Conhecia aquela voz.

— Herr Fëll?

Ah, céus, era só o que faltava para completar seu tormento. Edmund Fëll, o detetive, feliz e sorridente em uma luxuosa charrete para passeio.

— Santo Deus, Mademoiselle — disse Fëll, com muita pena —, a senhorita deve estar congelando.

Nivea deu de ombros.

— Está um pouco frio sim.

— O que está fazendo aqui fora?

— Pegando um resfriado — respondeu ela secamente.

— O quê? — perguntou Fëll.

— Indo para casa.

A porta da charrete foi aberta.

— Não seja por isso — disse Fëll. — Entre.

Nivea ergueu os olhos. A voz do detetive mostrava uma ponta de preocupação.

— Entre — repetiu ele.

A moça assentiu e obedeceu. Pegou a mão dele e aceitou sua ajuda para entrar na charrete.

A charrete sacolejou e saiu da rua principal.

Edmund Fëll, no outro assento, tossiu discretamente.

Nivea virou-se para ele.

— Olhe aqui, o senhor pode ter a bondade de explicar o que significa isso?

Fëll fez um movimento com a mão direita, levando-a para o bolso inferior do paletó. Nivea não prestou muita importância ao movimento.

Fëll disse:

— Consegui seu endereço com a sua mãe, Mademoiselle. Está vendo? Esta é a letra dela?

Com algum esforço, Nivea Nerwcare conseguiu conter uma risada incrédula.

— É... é a letra dela. Puxa, que coisa. Ser traída pela própria mãe! Bem, acho que o senhor quer que eu conte o que sei a respeito desse caso, não é? Sim, eu estive num dos quartos.

Houve um momento de silêncio. Depois Fëll perguntou:

— Ouviu algum ruído?... vozes?...

— Se o senhor tiver a bondade de me deixar terminar...

Fëll fez que sim e se calou.

— Como eu ia dizendo — ela fez uma longa pausa antes de retomar a frase interrompida. — Não, não ouvi nada e não sei de nada. Se eu tenho um álibi? Não, não tenho. Eu e mamãe subimos a escada e fomos, cada uma, para o quarto que foi designado para nós. Só soube do crime quando, depois de revirar sapatos e roupas, voltei para o térreo. Ma’am Pupu chorava feito uma louca. Suzan gritava qualquer coisa e se debatia nos braços de Colbert. Monsieur Oliviê ligava para a polícia... eu acho. Com toda a confusão, Mrs. Pompadière saiu do quarto, como uma sonâmbula.

— E Mr. Lutlum, o secretário?

— Gervois tinha vindo não sei de onde.

— Poderia ser da adega? — perguntou Fëll.

— Sim, acho que sim.

— E Miss Sachsen-Dorf?

— Serafine? Serafine estava lá. Parecia fascinada.

— E Mr. Brannigum?

Nivea balançou a cabeça.

— Neill Brannigum? Neill estava agachado, fazendo carícias desajeitadas no rosto da morta. Julgue-me como quiser, mas era completamente ridículo. Francamente falando, aquela mulher não prestava. Largou, traiu e fez o que bem quis com ele! Se fosse comigo, eu teria enfiado outro punhal nela — só por garantia.

— Mademoiselle, a sua mãe estava lá?

— É claro. Madame Nerwcare não perderia isso por nada no mundo.

— Viu se... por assim dizer... ela apanhou algum cartão, ou coisa parecida, ao lado do corpo?

— Não.

— E o que foi que a senhorita fez?

— Eu não fiz nada — disse Nivea. — Não entendi logo o que estava acontecendo. E quando comecei a entender, eu não sabia o que devia fazer e imaginei: “Bem, vamos deixar que a polícia cuide desse assunto”.

Fëll disse:

— Permita-me fazer outra pergunta. A senhorita crê que Mrs. Pompadière matou Mrs. Lilinburg?

— Não quero fazer um juízo de valores, mas acho pouco provável. Se entendi bem, aquele ajuntamento de gente, os cartões e todo o resto, foi uma armação, não foi?

— Foi sim, Mademoiselle — disse Fëll.

Tentando se acomodar no assento com toda a graça e despreocupação que exibiria em uma elegante sala de visitas, Nivea disse:

— Não quero falar mal, mas Mrs. Pompadière é muita burra. Pelo menos, muito burra para esquematizar um plano tão bem elaborado.

Fëll abanou a mão.

— Ou acha, Mademoiselle, que foi o Signor Victalle?

— Colbert? Por quê?

— O Signor Victalle é diabético e toma injeções de insulina — disse Fëll. — Com uma seringa, ele poderia ter envenenado o vinho de Monsieur Sachsen-Dorf. Talvez Mrs. Lilinburg tenha se deparado com algum indício que incriminava o Signor Victalle. Talvez ela tenha ameaçado revelar o que sabia. Assim, ele teve que matá-la.

Nivea mordeu a unha, confusa.

— Bem. Eu... eu... — disse ela, sem encontrar as palavras. — Eu só acho o seguinte: ninguém morre de graça. Se ela foi morta, foi morta por algum motivo. Quanto a mim, eu não teria nenhum motivo para fazer uma coisa dessas.

Fëll permaneceu em silêncio durante uns bons três segundos. Depois deu um sorriso, dizendo:

— Pode ser que a senhorita não tivesse nenhum motivo para ver Mrs. Lilinburg morta. Mas alguém teve. A pergunta é: quem?


Capítulo 18

 


Faltavam dois minutos para as quatro da tarde quando Fëll tocou a campainha da porta da frente da Mansão Carruthers.

Ma’am Pupu abriu a porta e apontou a sala de estar.

O detetive encontrou Mrs. Pompadière sentada no sofá, com os cabelos arrumados em um penteado cujo nome devia ser “topete de avestruz”.

Antes que ele pudesse abrir a boca, porém, ela fez um gesto para o serviço de chá de prata sobre a mesinha de centro e falou:

— Tomei a liberdade de preparar café. Se não quiser, posso chamar Ma’am e pedir outra coisa.

Fëll disse:

— Eu gosto de café, obrigado.

Mrs. Pompadière assentiu e pegou o bule. Inclinou-o um centímetro e falou:

— Eu não sei como o senhor toma seu café. Creme ou açúcar?

Fëll se sentou numa cadeira perto do sofá. Disse:

— Com leite, sem açúcar.

Ela serviu o café. Largou o bule e pegou a vasilha de leite.

— Pronto! — disse ela, estendendo a xícara. — Cuidado, está quente.

Fëll segurou o pires. Disse:

— Nunca gostei de café morno.

— Queria me perguntar alguma coisa específica, Herr Fëll? — perguntou ela após um ou dois minutos.

Fëll lançou um olhar por cima da borda da xícara.

— Lamento muito pelo assassinato, Madame. Imagino que a senhora tenha ficado muito abalada.

Mrs. Pompadiére murmurou algo que ele não conseguiu entender direito, mas teve a ligeira impressão de que foi: “Um assassinato é ruim para qualquer pessoa”.

Ela acrescentou:

— E quanto à... publicidade?

— O inquérito será abafado e vamos espalhar o boato de que achamos ser uma morte por causas naturais — disse Fëll. — Pelo menos, por enquanto. Se não for problema para a senhora.

— Não, não é nenhum problema. Tudo o que eu quero é que essa questão seja resolvida o mais rápido possível.

— Bem, Mrs. Pompadière, seria um ato de caridade me contar o que sabe a respeito de todos esses eventos.

— Oh, é claro! Vou só buscar minha costura e falarei sobre qualquer coisa que quiser.

A boa senhora saiu apressada e retornou com uma cesta de costura. Puxou uma cadeira e, sem esperar novo convite, contou sua história.

Perguntas e respostas seguiram a rotina. Na realidade, Mrs. Pompadière não vira nada, não notara nada e não ouvira nada.

Fëll apoiou a xícara no pires e depois colocou o pires na mesinha.

Mrs. Pompadière se inclinou para a frente.

— Herr Fëll, se quiser me perguntar sobre Henriette Lilinburg, apenas pergunte.

— Fale-me sobre Mrs. Lilinburg.

— Bem... Não há muito a dizer.

— Não há muito a dizer ou não há muito que a senhora queira dizer? — perguntou Fëll, em um tom delicado.

— Não, é verdade. Sei muito pouco sobre ela. Acho que ela veio do norte. Ela não falava sobre a família, embora eu ache que a ouvi mencionar uma irmã, certa vez.

— Ela recebia correspondências?

Mrs. Pompadière balançou a cabeça.

— Não que eu saiba.

— Uma Pompadière jamais entrega os pontos, e vou provar que faço jus ao meu sobrenome. A senhora se lembra dessa frase, Madame?

— Lembro sim, Herr Fëll. Mas, ao contrário do que pensa, eu não matei Henriette.

— Apesar de todas as evidências e razões?

— Eu poderia ter matado Henriette quando quisesse. Por que iria esperar até ontem à noite?

Houve uma pausa.

Mrs. Pompadiére olhou com firmeza para Fëll.

— Gosta de literatura policial, Herr?

Edmund Fëll disse:

— Madame, eu não chego nem perto de livros com histórias ambientadas em metrópoles... histórias com assassinos em série... com descrições de vítimas esquartejadas, violentadas e nadando em poças de sangue!

— Então somos dois. Está vendo por que eu não seria capaz de matar essa mulher?

— Não consigo enxergar a relação, Madame — disse Fëll.

— Herr Fëll — disse Mrs. Pompadière. — Acha mesmo que eu poderia assassinar uma pessoa com um punhal? Depois de me formar, fui secretária de um professor de egiptologia de Oxford. Não nasci com o dom para matar.

Fëll olhou para ela cautelosamente.

— Nenhum de nós, Madame, diria que nasceu com estômago para crivar alguém de balas, atacar um oponente com socos e cacetadas, ou mesmo esfaqueá-lo com um canivete. Mas essas coisas acontecem todo dia. Várias circunstâncias e fatos catalisadores levam as pessoas a cometer atos irracionais e violentos. Ao ouvirem falar de certas atrocidades, alguns talvez digam: ‘Essa pessoa deve estar louca!’ Mas nem todos os indivíduos que cometem crimes são mentalmente perturbados. A senhora não teria nenhuma ideia de quem poderia ser o assassino?

— Não — respondeu ela. — Mas...

— Mas? — repetiu Fëll, esperançoso.

— O que eu quero dizer é que havia alguém aqui, que era, de alguma forma, ruim! Havia alguém aqui, não sei quem... uma pessoa má. Sim, má. Muito má. Eu podia sentir. Não quando estava olhando para ela, mas quando ela estava olhando para mim, porque é quando ela olhava para mim que eu sentia um... mal-estar.

Ela falava devagar e media as palavras, como resultado de constantes e devidas meditações e deliberações.

— E quem seria essa... pessoa? — perguntou Fëll.

— Eu não sei. Como eu disse, era apenas uma sensação.

Fëll apontou a gaveta que estava empoleirada na mesinha de centro.

— São os pertences de seu marido?

— Sim, são.

— A senhora está procurando alguma coisa?

— Estou — disse Mrs. Pompadière.

Ela fez uma pausa, como se fosse dizer alguma coisa, mas depois hesitou e pareceu mudar de ideia.

— Sim, Madame?

Mrs. Pompadière disse rapidamente:

— Quero que leia uma coisa!

Fëll pareceu não entender o que ela estava fazendo, mas, antes que pudesse perguntar qualquer coisa, a mulher estendeu um cartão.

— É de ontem à noite. Leia...

— Vá ao seu quarto: examine o conteúdo de seu criado-mudo — leu Fëll. — Percebo... Pelo jeito, este foi o cartão recebido pela senhora. Mas, Madame, isso não foi real. Foi só uma estratégia armada pelo assassino para distrair todo mundo e, enquanto isso, cometer o crime.

— Mas e se não for? Pode ser que haja alguma coisa aí! Esta é a gaveta do criado-mudo. Na gaveta estão todas as coisas de Ame. Não custa dar uma olhada, não é?

Fëll se debruçou sobre a gaveta.

Havia algumas fotografias. Uma escavação numa villa romana... A clava de Hércules (é o que dizia a legenda)... Os manuscritos do mar Morto...

— Isto estava aí no meio dos papéis — disse Mrs. Pompadière. Ela exibiu duas passagens de avião. — Parece que Ame tinha programado outra viagem.

— Permite, madame? — disse Fëll, gentilmente.

Fëll pegou as passagens e averiguou a data de embarque. O destino: Caribe.

— O que seu marido faria no Caribe, Madame?

— Não sei. Havia muita gente que negociava com Ame. Pode ser que ele quisesse visitar um comprador.

— São duas passagens... Para quem seria a segunda passagem? Para o secretário?

— Não. Ame e Gervois nunca viajavam juntos.

— Para a senhora?

— Para mim?

— É. Para a senhora — disse Fëll. — Uma viagem a dois, o Caribe, um luau ao anoitecer...

Fëll abriu algumas reticências, estimando adequadamente a reação da mulher.

Mrs. Pompadière levou a mão ao peito, extasiada.

— Ai, meu Deus! Eu fui uma inútil todos esses anos! Nada do que eu fazia... nada do que eu dizia... era bom o bastante. Fine brigava com Amyr por causa disso. “Você não é mais meu pai!”, dizia ela. “Você não ama mamãe! Você não me ama... não ama ninguém. Queria que você morresse!” Oh! O senhor acha que Ame queria que eu fosse com ele? Só ele e eu... como na nossa lua-de-mel?

Fëll acenou.

— Pela decisão que ele parecia ter tomado, um pouco antes de morrer, de renovar seu amor pela senhora... É possível.


II

 


Às 5h45m da mesma tarde, Fëll estava sentado na sala de visitas de seu amigo magistrado.

O juiz estava podando as rosas de um pequeno arbusto com uma tesoura de cabo longo. Com um barulho brutal, as lâminas cortaram um ramo.

Fëll olhou ao redor.

— É um lugar muito tranquilo.

— Eu sei — disse o juiz. — Costumo vir aqui quando quero ficar sozinho. Não é mesmo Petsy? Lucy?

Ele tocou em um botão de rosa, deslizando os dedos pelas pétalas.

Fëll o encarou com um olhar de dúvida, então perguntou:

— Petsy?... Lucy?

O juiz concordou, com um aceno de sua cabeça branca.

— Ah-rã. Dei um nome para cada uma de minhas rosas, sabe? Cria um vínculo... quase como um vínculo entre pai e filhas. A maior é a Petsy. A outra... Ora, devo estar ficando doido! Podemos voltar ao nosso assunto, por favor? A propósito, essa história de gritos e ataques histéricos, tudo pode ter sido fingimento, não pode? A governanta poderia ter matado Mrs. Lilinburg, não poderia?

Fëll disse:

— Contra isso, temos o fato de que... como é o nome dele... ah, sim, Neill Brannigum afirma categoricamente que a porta estava trancada por fora, e que teve de girar a chave para soltar a mulher. Há alguma outra porta naquele lado da casa?

— Há uma porta que dá para a escada dos fundos e para a cozinha, sob a escada principal, mas parece que está fora de uso. Por isso, a porta nunca é aberta.

Fëll deu um sorriso educado e mudou de assunto.

— Eu fiz algumas anotações. Se quiser ver.

Levando a mão ao bolso, retirou uma agenda e, abrindo a fivela, folheou algumas páginas.

O Juiz Warning desabou em um banco de pedra e, tomando a agenda do detetive, leu o seguinte:


Morte de Monsieur S-D


Alguns acontecimentos daquela tarde:

O Signor Victalle e a esposa andavam de barco. Mrs. Pompadière colhia flores. Depois foi para o quiosque, onde estava Monsieur Oliviê, bebericando um drinque.

Madame Nerwcare, a filha e Serafine estavam no platô mais acima.

Gervois Lutlum estava debaixo dos abetos.

Visto que não podemos relevar fenômenos sobrenaturais ou outras coisas mirabolantes, fica assentado que só há duas formas pelas quais o vinho possa ter sido envenenado: na própria garrafa (dada de presente por Mr. Brannigum) ou por Madame Nerwcare, que se aproximou da bandeja, ou por Mrs. Lilinburg, que manejou e levou a taça de vinho para Monsieur Sachsen-Dorf.

Obs.: por todos os fatos posteriores, é quase certo que seja a primeira hipótese (garrafa/ seringa/ rolha de cortiça)...

Interrogação: Como o assassino sabia que só Monsieur S-D tomaria vinho?

Pista: nas convulsões da morte, Monsieur S-D escreveu isto:

 

para fell:

m m M m m m m m m m


Perguntas: o que é que querem dizer esses vocábulos? Indicar (o mais discretamente possível) quem é o provável assassino? Como decifrá-los?...

Possíveis responsáveis pelo assassinato:

Mrs. Lilinburg, ressentida com o fim de seu curto e tórrido romance. Até prova em contrário, porém, a sua morte a exclui automaticamente do rol de suspeitos.

Mrs. Pompadière.

Signor Victalle.

Monsieur Oliviê: já que tinha a receber uma quantia razoável de dinheiro da vítima.

Mr. Brannigum.

Serafine Sachsen-Dorf.

Madame Nerwcare.

Gervois Lutlum, Nivea Nerwcare e Suzan Victalle não teriam motivos, pelo menos não aparentes até agora.

 

Homicídio de Mrs. Lilinburg


Tudo foi previamente preparado, e em alto estilo, para o assassinato.

Suposto local onde cada um esteve naquela noite:

Monsieur Oliviê — quiosque.

Madame e Mademoiselle Nerwcare — dois quartos no andar de cima.

Neill Brannigum — porão.

Mrs. Lilinburg — Sala das Coleções.

Ma’am Pupu — cozinha. Quem a trancou lá? E (importante!) por que a chave estava no chão do lado de fora da porta?

Mr. Lutlum — adega.

O Signor Victalle — hall.

A Signora Victalle — lavanderia.

Mrs. Pompadière — tomou analgésico e foi dormir.

Serafine — ateliê.

Depoimentos: Neill Brannigum foi o primeiro a aparecer no local do homicídio. Monsieur Oliviê diz que ouviu os gritos frenéticos da governanta, mas achou que fosse uma crise de fobia. Miss Sachsen-Dorf conta que Madame Nerwcare (que nega!) catou alguma coisa perto do cadáver. Também há a alegação de que Nivea demorou a se reunir aos outros (onde esteve?).


As pupilas do juiz resplandeceram de um modo singular.

— Falta uma coisa — anunciou. — Dois pontos que constam no laudo pericial.

— Que dois pontos? — perguntou Fëll.

— Um, que a morte da mulher deve ter ocorrido com pouca rapidez já que suas feições tiveram tempo de se deformar. Dois, ela tinha um osso da face fraturado e o maxilar deslocado.

— Devido à queda?

— Causas indeterminadas. E, lógico, a polícia não descobriu impressões digitais no punhal de sílex. A maçaneta de fora da porta tem muitas impressões: as dos policiais, de Mr. Lutlum, talvez, e muitas outras.

Fëll disse:

— Pelo jeito, o assassino sabia que o punhal estava na Sala das Coleções. Não só isso. Ele também sabia usar o punhal. E mais: isso talvez explique por que a governanta foi chaveada na cozinha. Pode ser que ele achasse que ela poderia vê-lo passando pela sala. Ou...

Fëll se deteve.

— Ou...? — perguntou o juiz.

— Ou o assassino precisava de uma cúmplice. Uma cúmplice que distraísse momentaneamente a atenção das outras pessoas. Lembro-me que alguém disse ter ouvido duas vozes: “Uma voz, curta e aguda, que logo se calou... e outra, junto com o barulho de pancadas.” O crime — disse Fëll pausadamente — foi cometido exatamente quando Ma’am Pupu começou o berreiro. O eco de sua voz abafou o grito de socorro... curto e agudo, que logo se calou...

Discutiram durante minutos essa possibilidade.

Fëll se levantou.

— Bem, eu já vou.

— O que pretende fazer?

Fëll fez uma pausa para dar mais ênfase ao que ia dizer.

— Vou falar com alguém. Acabei de ter uma pequena ideia.


Capítulo 19

 

 

Diante do Belvedere, Fëll seguiu na direção oeste até chegar ao mercado Nashmarkt. Entre as bancas que vendiam produtos típicos, bebidas e condimentos, ele viu Serafine.

— Miss, que bom que veio.

— Herr Fëll...

Alta, loura, de olhos intensamente azuis e com o corpo flexível de taitiana enfiado num magnífico vestido amarelo, Serafine cumprimentou o detetive com a efetividade e frieza de uma imperatriz.

— Se pudéssemos ir logo ao que interessa, Herr Fëll. Tenho um compromisso e não quero me atrasar.

Fëll resolveu atacar de frente, usando seu método direto.

— Para começar, a senhorita seguiu minhas ordens? Falou com o Juiz Warning?

— Ah! — exclamou ela, enrugando as sobrancelhas. — Mas isso tem mesmo tanta importância?

— Tem sim, Miss — disse Fëll.

Durante cerca de dez segundos, Serafine ficou encarando o detetive com o maior assombro. Depois, ela rompeu em uma atraente risada infantil.

— Mr. Fëll, quer fazer o favor de me dizer que droga o senhor está dizendo?! — exigiu ela. — O senhor deve ter pirado! Acha realmente que eu matei meu pai... e aquela mulher?

— Tudo leva a crer que sim.

— Tudo-leva-a-crer...

Fëll sustentou seu olhar, como dois adversários em duelo.

— Seu pai, Miss, antes de morrer, escreveu esta mensagem. Veja...

Serafine olhou incrédula para o papel à sua frente.

— E... e daí?

— Daí que eu parti do seguinte princípio: que, na hora em que escreveu isso, ele supunha que eu saberia decifrar o significado oculto por trás da mensagem. “O que vem a ser isso?”, pensei. Disse a mim mesmo, quase em tom de piada: “Ora, Monsieur Sachsen-Dorf deve ter me superestimado”. Pensei, pensei... e concluí que poderia ter alguma coisa a ver com alguma conversa que eu tive com ele. Assim sendo, voltei à manhã do dia de sua morte. Lembrei-me que seu pai estava no quiosque e que lá ele me disse uma coisa... Ele disse que tinha dez supostos inimigos. Dez... e citou todos eles por nome. Nesta ordem: Mrs. Pompadière... eu... e, em terceiro lugar, a senhorita. Hoje de manhã, Suzan Victalle me perguntou alguma coisa sobre meu interesse na sequência em que todos chegaram à mansão, etc. “É isso!”, pensei. A sequência. Percebeu? A sequência! Era quase certo que seu pai tinha adotado a mesma premissa. Olhe de novo: a terceira letra é maiúscula. Ou seja, ele queria dizer que, de todos os nomes que tinha citado para mim, o terceiro pertencia à pessoa culpada por seu envenenamento. No caso, Miss, o seu nome!

Serafine olhou vivamente para o detetive, meio intrigada.

— É essa a sua teoria, Herr Fëll?

— Sim.

— Pois eu penso que sei por que papai disse isso. Na véspera daquele dia... sim, eu falei para ele: “Eu odeio você, papai! Se pudesse, eu envenenaria você!” Mas... pense nisso... como eu poderia ter golpeado Mrs. Lilinburg? Eu estava no ateliê! Longe... muito longe do local do crime. Eu não fiz nada. Nada!

O rosto de Fëll assumiu uma expressão especialmente impassível e bronca.

— Francamente, Miss!

Profundamente aflita, Serafine murmurou:

— Meu Deus! Eu sou tão estúpida! O senhor está mesmo suspeitando de mim!

Fëll disse:

— Sim. Estou suspeitando da senhorita. Se for presa e julgada, poderá ter um veredito severo. A menos que declare sua culpa. A confissão espontânea é considerada um serviço à justiça, uma vez que simplifica a instrução criminal e confere ao julgador a certeza moral de uma condenação justa.

— Não, não, não — disse Serafine. — Eu não vou confessar nada. Eu não fiz nada.

— Miss, entenda que é inútil negar — disse Fëll.

Serafine arregalou os olhos.

— Não fui eu! — repetiu.

E acrescentou:

— Nivea! O senhor devia investigar Nivea!

— Mademoiselle Nerwcare?

— Sim, sim... eu vi Nivea! Ela fez uma coisa!

Fëll olhou para a moça com ar interrogativo.

— Ah, é? O que foi que Mademoiselle Nerwcare fez?

— Ontem à noite, após crime... Eu vi Nivea conversando com Colbert.

— Com o Signor Victalle? Sobre o quê?

— Eu-não-sei — disse Serafine. — O que eu sei é que Colbert parecia estar prestando muita atenção. Ouça, Herr Fëll! Nivea matou Mrs. Lilinburg! Não só isso... Ela e Colbert estão tendo um caso. Fale com Nivea! O senhor vai ver que é verdade!

— Mademoiselle Nerwcare e o Signor Victalle tendo um caso? — perguntou Fëll, na dúvida.

— O senhor não conhece Nivea! Ela é ousada... calculista... e pode muito bem ser uma assassina!

Fëll fez uma pausa.

— Vamos presumir que a senhorita seja inocente, como diz... Agora... recapitulando horas e lugares: a última vez que viu Mrs. Lilinburg foi na sala de estar, durante a leitura dos tais cartões misteriosos, não foi?

— Foi...

— Lidos os cartões, cada um seguiu uma direção diferente.

— Sim. Mas nós já falamos sobre isso, Herr Fëll!

— Falamos — disse Fëll. — Estou só estabelecendo os fatos. E foi essa a última vez que viu Mrs. Lilinburg?

— Já que disse que sim!

— Ela foi direto para a Sala das Coleções?

— Não sei — disse Serafine. — É provável.

— Ela foi encontrada morta mais ou menos uns quinze a vinte minutos depois disso.

— Sim.

— Lembra-se para onde foram Madame Nerwcare e a filha?

Serafine disse:

— Acho que foram para o andar de cima... para os quartos.

— Quer dizer que a senhorita viu as duas indo para lá?

— Não... acho que não.

— Talvez a senhorita tenha ouvido alguém caminhando lá em cima — sugeriu Fëll.

— Sim... no alto da escada, me pareceu. Pode ser que tenham sido elas.

— Pode ser que tenham sido elas. E eram...

— Ah... umas 9h, acho eu... Foi o que Gervois disse hoje de manhã, não foi?

— E quando foi que Neill Brannigum abriu a porta da cozinha para soltar Ma’am Pupu?

— Por volta das nove e vinte... eu diria...

— A senhorita diria? — interrompeu Fëll.

— Sim. Eu achei tê-lo visto pela janela do ateliê. No jardim, quero dizer.

— No jardim?

— É. Vi alguém subir os degraus da escada de pedras... e achei que provavelmente fosse ele.

— Isso foi quando a senhorita estava...?

— Eu estava no ateliê. Eu devia procurar alguma coisa atrás dos quadros.

— Nessa hora, a senhorita viu Mr. Brannigum nos degraus da escada de pedras?

— Não... não foi aí... — corrigiu Serafine. — Foi mais tarde... quando eu cansei de procurar e dei uma espiada pela janela.

— Tem certeza de que era Mr. Brannigum, Miss?

— Tenho certeza de que vi alguém.

— Viu, sim. Mas lembre-se, estava escuro. Deu para enxergar o homem direito?

— Eu não vi o rosto, nem nada disso... apenas o vulto... alto e magro. Mr. Brannigum é alto e magro... por isso cheguei à conclusão de que devia ser ele.

— Ele ia em direção da porta lateral?

— Sim.

— Qualquer um poderia entrar por aquela porta sem ser visto por ninguém da casa?

Serafine pensou um pouco.

— É. Poderia.

— Conhecia o punhal com que Mrs. Lilinburg foi morta?

— Fazia parte do acervo macedônio.

— Acervo macedônio — disse Fëll, tomando nota.

— Realmente preciso ir agora — disse Serafine.

— Para onde?

— Visitar Madame Nerwcare. — Então, porque parecia que precisava dizer mais alguma coisa, Serafine acrescentou: — Ela me convidou para ir a casa dela. Sinto não poder ajudá-lo mais.

— Mas a senhorita me ajudou — disse Edmund Fëll. — Acredite. A senhorita me disse uma coisa muito interessante.

Ela não perguntou sobre o que era essa coisa muito interessante.

Fëll sorriu.

— Pronto, Miss. Danke für alles! A senhorita pode ir, se quiser.

Fëll teve a impressão de ouvi-la suspirar, aliviada.

— Ufa!

Os olhos da moça, sob os supercílios, estavam brilhantes, cheios de entusiasmo. Olhos feitos com pequenas partículas de ouro e de esmeralda, pensou Fëll.

— Até a vista — disse Serafine e se afastou pela calçada.


Capítulo 20

 


— Alô?

— Oficial Wacht! Em que posso ser útil?

— Receio que as coisas estejam a ponto de assumir novas dimensões, Herr.

— Jawohl? — perguntou Fëll.

— Aconteceu outra vez. Alguém atirou em Madame Brigitte Nerwcare.

Fëll estremeceu.

Algum tempo depois, Fëll tomava às pressas um táxi. Deu o endereço para o motorista e sentou-se, ainda perplexo com o desenrolar dos acontecimentos.

“Aconteceu outra vez”, dissera o oficial.

Fëll meneou a cabeça com tristeza.

Ele saltou do táxi na Falkestrasse, pagou e abriu o portão da rua. Viu que no jardim sombras com farda se moviam na escassa claridade que vinha da varanda da casa.

Não encontrando o puxador de campainha, Fëll bateu com o punho na madeira da porta. Ouviu o tinir metálico de correntes, e a porta rangeu devagarinho, mas não se abriu mais do que dois centímetros.

Pela estreita fresta, Fëll viu o rosto de um tenente, os olhos sombreados pela aba circular do quepe cinza.

— Herr Fëll?

— Sou eu.

O tenente virou a cabeça e falou com alguém que estava atrás dele. O detetive viu o vulto do oficial Wacht, de rosto rosado, vindo apressadamente para a porta.

— Fico contente que tenha vindo, Herr Fëll. Entre, entre... Venha, vamos para este aposento à direita, a sala onde aconteceu a tentativa de homicídio. Eu gostaria de repassar os principais elementos do caso. Acho que nunca vi nada parecido! Se não fosse a rapidez dos paramédicos, teríamos mais uma morte em nossas costas.

Wacht conduziu Fëll até uma pequena sala, à direita do hall.

Fëll notou que, na sala de jantar, a perícia guardava seus materiais. Mas havia outra pessoa presente na casa: Nivea Nerwcare.

Ao que parecia, a moça estava muito deprimida. Ela balançava lentamente a cabeça, afundada numa poltrona, com o olhar baixo, dirigido para os joelhos.

— Ela está bem — disse Wacht, seguindo o olhar do detetive. — Foi só o choque da notícia.

Fëll disse:

— Tentativa de homicídio, o senhor disse?

— Sim, senhor, trata-se de clara tentativa de homicídio, sem a menor sombra dúvida. Eu gostaria que o senhor ouvisse meu relato. Estas são as circunstâncias: esta tarde, em torno das seis horas, recebi uma ligação daqui da casa. De Serafine Sachsen-Dorf. Ela balbuciou que Madame Nerwcare havia sido baleada.

Fëll perguntou:

— E onde está Miss Sachsen-Dorf?

— Foi liberada — disse Wacht. — Teremos que interrogá-la mais tarde. Afinal, foi ela quem socorreu Madame Nerwcare.

— O que foi que Miss Sachsen-Dorf contou?

Wacht fez uma pausa e prosseguiu com seu relatório:

— Pouca coisa. Ela disse que veio para cá e quando ia tocar a campainha da porta, ouviu um grito de dentro da casa, e então um ruído confuso de gemidos de agonia. Daí ela entrou e viu a vítima caída nesta salinha em meio a uma poça de sangue.

Fëll perguntou bruscamente:

— Os ferimentos são graves?

— Um tiro raspou na coxa. Outro tiro, este sim grave, atingiu o abdômen. Madame Nerwcare caiu ali — e o oficial apontou uma mancha escura no tapete.

— Vai sobreviver?

— Vai. Mas está em coma.

— Algum sinal de luta? — perguntou Fëll.

— Não, nada — disse Wacht. — Revistamos meticulosamente toda a casa em busca de pistas que pudessem lançar luz sobre o crime, mas nada foi encontrado. Acho que o agressor atirou nela de certa distância — balançou a cabeça, perplexo. — Talvez dali... através da janela.

Era uma janela com persianas graduáveis de plástico. Fëll esticou o pescoço para fora e olhou para baixo.

— Não há sinal de pegadas ao rés-do-chão — explicou Wacht. — Quem quer que tenha feito isso, teve o cuidado de rastelar a terra com os dedos para apagar a marca dos calçados. Creio que tudo aconteceu mais ou menos assim. Primeiro, o assassino se posicionou ali fora... Com calma, ele contraiu o dedo índice sobre o gatilho da pistola... apontou a arma e... acertou ora de raspão ora no abdômen de Madame Newcare.

— Que horas eram?

— Cerca das seis, conforme disse Miss Sachsen-Dorf.

— Ah sim, é verdade — grunhiu Fëll.

Fëll ficou quieto durante alguns segundos, em atitude meditativa. Pensava em Serafine. Será que fizera bem em deixá-la ir, depois de ter falado com ela na Nashmarkt? Teria ela vindo até ali para atirar em Madame Nerwcare?

Fëll passeou os olhos pela salinha. Poltronas reclináveis, estantes forradas de livros (alguns deles que nunca tinham sido lidos) e cortinas de veludo de média qualidade e cores vivas. Reparou numa mesinha de canto. Nela, um estojo de costura continha carretéis de linha e uma fita métrica e, do lado, um papelzinho retangular.

Fëll tomou o papelzinho e, intrigado, leu: Acervo mesopotâmico.

Uma súbita lembrança assaltou o detetive.

Debilmente, Fëll murmurou:

— É isso! Que tolice a minha!

Agora, tudo parecia claro e sensato. Os seus olhos brilhavam de reprimida excitação.

O oficial olhou para o austríaco com assombro.

— Herr Fëll?

Fëll ergueu uma das mãos pedindo atenção.

— Depois, oficial. Madame Nerwcare está em coma, não é? Vou fazer um pedido ao senhor. Bote um ou dois agentes de campana. O assassino logo vai saber (se é que já não sabe!) que seu atentado fracassou. Talvez ele tente de novo... para acabar o que começou. Tem certeza que a filha dela está bem?

— Sim. Deram só um sedativo.

— Posso falar com ela?

— À vontade.

Fëll atravessou a sala silenciosamente.

Nivea Nerwcare tinha a boca entreaberta numa expressão de espanto absoluto. Sentada, contemplava o fogo, absorta em seus pensamentos, girando nervosamente um anel no terceiro dedo da mão esquerda. Quando Fëll parou ao seu lado, pôde ouvi-la dizendo:

— Pobre mamãe... Quem fez isso com a senhora? Mamãe... Não morra, eu peço. Não morra...

— Está perdida em algum sonho, Mademoiselle — disse Fëll. — E o sonho não é muito agradável, hem?

Ela se sobressaltou e olhou vagamente para o detetive.

Na mesma hora, a expressão de surpresa e temor no rosto de Nivea se transformou em raiva.

— O que o senhor está fazendo aí? Já não chega que quase tenham matado minha mãe?

Fëll meneou a cabeça.

— Eu sinto pelo que aconteceu, Mademoiselle. Se me permite, só queria fazer algumas perguntas.

Havia no rosto dela uma estranha ansiedade, mas a voz era bela, macia e tinha um suave sotaque estrangeiro.

— Mais perguntas? Quando é que isso vai parar?

— Logo — disse Fëll. — Logo, eu garanto.

Nivea olhou para Fëll como se quisesse medir o tamanho de sua sinceridade.

— Então... o que é?

— A senhorita chegou a falar com sua mãe antes do ataque?

— Não. E eu nem teria vindo para cá... se Serafine não tivesse ligado para mim! Se não fosse por Serafine, mamãe estaria morta.

A mente de Fëll trabalhava em ritmo acelerado.

Isso tudo pode ser verdade... Ou não.

Examinou a moça através das pálpebras semicerradas.

— Por que acha que atiraram em sua mãe, Mademoiselle?

Nivea disse, rispidamente:

— Por nada, por nada. É tudo um desplante. Esse assassino é louco! Ele age sem a menor consideração por ninguém. Ele quer matar todo mundo.

— Sua mãe nunca deu a entender, de alguma forma, de que tinha medo de alguém?

— Mamãe? Com medo? Não! É claro que não.

— Não estou dizendo que a senhorita sabe quem atirou nela, mas acho que deve ser capaz de me informar uma suspeita ou uma vaga ideia.

— Não sei de nada — replicou Nivea.

— Poderia me dizer o que fez hoje à tarde, Mademoiselle? — perguntou Fëll, sem tirar os olhos dela.

Nivea se agitou.

— O que o senhor está sugerindo? Que eu vim para cá, que entrei e, com toda a força e maldade, atirei em minha mãe... em minha própria mãe? Como se atreve, Herr Fëll?!

Havia um tom de desprezo sublinhando as suas palavras, como se comentasse um fato que aparentemente não fazia o menor sentido.

Fëll assentiu, tão esgotado que não conseguia se espantar com mais nada.

— Se eu soubesse o que não sei, poderia inocentá-la. Acontece que eu não sei e, pior, não leio corações. Não estou julgando que seja culpada, Mademoiselle, mas também não posso ser negligente. Assim, eu insisto: o que a senhorita fez hoje à tarde?

— Sou recepcionista numa empresa de táxi aéreo. Estive lá até pouco depois das cinco.

— Alguém pode fornecer algum álibi?

— Sim — disse a moça. — Meu chefe. Fale com meu chefe.

— Por que sua mãe quis falar com Miss Sachsen-Dorf?

— Mamãe vai a Londres no mês que vem. Queria que Serafine a ajudasse a reservar uma suíte no Hotel Savoy.

— Reservar uma suíte... só isso? — disse Fëll.

— Sim. Eu se fosse ela iria a Nova York... ao Central Park, à praia de Conney Island... Mamãe não. Ela é muito europeia!

Deixando moça para trás, Fëll voltou a se juntar ao oficial.

— Nenhum indício?

— Nada — disse Wacht. Esfregou as mãos suavemente. — O que mais me aborrece é que, quando voltar a si, Madame Nerwcare não vai se lembrar de nada.

— Contanto que se recupere — disse Fëll. — Bom, parece que nosso número de suspeitos está ficando cada vez menor.

— Isso é bom ou ruim?

Fëll encolheu os ombros.

— Não deixa de ser uma boa pergunta. Acho que deveria interditar o embarque do Signor e de Miss Victalle, oficial. Eles ainda devem estar entretidos com a burocracia para levar o corpo de Mrs. Lilinburg para fora do país.

— Acha que sejam culpados?

— Não sei — confessou Fëll. — Enquanto isso, vou fazer algumas ligações.

— Está bem.

— Gute Nacht — disse Fëll.

Wacht já tinha a mão na maçaneta quando a voz do detetive o fez se virar outra vez:

— Amanhã, oficial. Amanhã vamos pôr um ponto final ao mistério em torno desses assassinatos.


Capítulo 21

 


Na manhã seguinte Fëll acordou logo depois do nascer do sol.

O sol ainda mal aparecia e havia uma neblina no ar quando o táxi freou diante dos portões da Mansão Carruthers.

Edmund Fëll seguiu pela trilha de pedras até chegar aos quiosques, onde parou e examinou a cena.

Havia uma faixa de grama que corria paralelamente ao lago e, em frente a ela, um largo canteiro com plantas e flores. Fëll examinou a faixa de grama com cuidado e depois os quiosques.

Fëll estava entretido nessa pesquisa quando ouviu um ruído e levantou vivamente a cabeça.

Alguém abrira a porta-janela na sacada da mansão. Fëll viu aparecer uma cabeça de cachos louros que emolduravam o rosto adolescente de Serafine Sachsen-Dorf.

— O que o senhor está fazendo aí tão cedo Herr Fëll?

— Investigando, Miss — disse Fëll.

Serafine curvou a cabeça e pensou algo como: “Meu Deus, quisera que essa investigação tenha fim algum dia!”

Ela estava tão absorta nos próprios pensamentos que não escutou os passos atrás de si.

— Oi, Fine! — disse Gervois Lutlum, passando para a sacada. — Escute, querida... Eu vou embora do país.

Serafine encarou o namorado.

— Ah, Gervois, quando?

— Na próxima terça-feira.

— Para onde?

— Madri.

— Mas é a capital da Espanha — gritou Serafine.

— É a capital da Espanha, sim.

— E quando você vai... voltar?

— É provável que eu fique por lá.

— O que você vai fazer por lá?

— Cultivar uvas. Quero ser um viticultor.

— Ah, Gervois, por quê?

— Bem, eu me enchi da Áustria.

— E quanto a... mim?

Ele abriu um sorrisinho.

— Você pode vir comigo.

— Mas eu não entendo nada de uvas, Gervois!

— Nem eu. A gente pode aprender. Juntos.

Serafine suspirou.

— E a morte de meu pai? O assassino ainda está por aí... solto!

— Veja lá.

Ela sinalizou com o queixo.

Gervois olhou e viu, na trilha mais abaixo, o homem com paletó e calça escuros, gravata cinza e o cabelo pavimentado com meia arroba de gel.

— O que ele está fazendo aí?

— Sei lá — disse Serafine. — Ele fica correndo de um lado para o outro, procurando alguma coisa.

— Procurando o quê?

— Por que não vai lá perguntar para ele, Gervois?

Ele relanceou os olhos para a moça.

— Eu?

— É, você. Você... o meu corajoso Sir Galahad!

Ela sorria.

Então Gervois, com o rosto pálido, balbuciou, numa voz estrangulada:

— Galahad? Isso quer dizer... Fine! Fine! Você... você aceita se casar comigo?

— Aceito, bobinho! Não é o que você queria?

— Fine, eu... Isso é ma-ravi-lho-so!

Ele se calou. Refazendo-se da surpresa experimentada com a oferta da moça, perguntou:

— E sua mãe... Ela já sabe?

— Não se preocupe com ela.

Devagar, meio relutantes, os dois se aproximaram. Timidamente, os braços de Gervois envolveram a cintura dela. Ele disse:

— Serafine, querida, sou louco por você.

— Sim, eu sei — disse ela.


II

 

Às 9h, Mrs. Pompadiére saiu de seu sono hibernal.

Quase imediatamente, ouviu os passos de Ma’am Pupu no corredor, lentos e vacilantes rumo ao quarto dela. Houve uma batida na porta e Ma’am Pupu chamou:

— Madame.

A porta se abriu e apareceu a governanta, trazendo a bandeja com o bule de chá, uma xícara, uma jarra de leite e um pratinho com pão e manteiga.

— É o café da manhã, Madame — anunciou.

— Abra a cortina, por favor.

A governanta obedeceu.

— Está fazendo uma manhã tão bonita! Então, dormiu bem?

Mrs. Pompadière tirou a venda dos olhos e disse:

— Minha cabeça dói. Escute, Ma’am, acha que... talvez... seria uma coisa boa... se... se Serafine fosse casar com Gervois?

A eficiente governanta perguntou:

— É isso o que ela quer?

— Bem... não sei. Quero dizer, é só uma ideia.

— Quem sugeriu? O jovem Lutlum?

— Bem... sim.

— Muito bom.

— Muito bom? — questionou Mrs. Pompadière, ansiosa.

— Muito bom do ponto de vista dele.

— Mas o que você pensa, Ma’am?

— Eu, Madame? O que Serafine acha disso?

Mrs. Pompadiére mordeu o lábio.

— Ainda não discuti o assunto com ela.

Ma’am Pupu fez uma cara de curiosidade.

— Por que está me perguntando isso, Madame?

Mrs. Pompadière disse, baixinho:

— Porque eu não aguento mais, Ma’am! Não aguento mais! Todos esses crimes... esses assassinatos. Oh! Como eu gostaria de não precisar acordar nunca mais!


III

 

Às 9h30, Serafine pintava as unhas na sala. Havia um forte cheiro de acetona no ar.

Quando Serafine esticou uma das mãos para secar, girando-a para cima e para baixo, a campainha da porta tilintou duas vezes.

Saltitante, Serafine foi atender.

Parada no umbral, Suzan Victalle correu um olhar de infinita e desdenhosa superioridade sobre a moça, antes de falar:

— Olá, prezada amiga! Como vai?

Deu um beijo rápido e mecânico em Serafine e, antes que Serafine pudesse impedi-la, Suzan passou por ela. Seguindo-a, Colbert coçava a nuca, desconsolado.

— Vocês não são bem-vindos aqui! — disse Serafine, com voz sibilante. — Caiam fora!

Suzan retrucou:

— E blá-blá-blá!

Serafine sabia que Suzan deveria obedecer a sua ordem.

Em vez disso, parecia ser Suzan quem estava no comando da situação. Serafine nunca fora muito senhora de si. E a atitude de Suzan baixava ainda mais a sua autoestima. Ela sempre parecia dizer ou fazer a coisa errada. Por trás da aversão dela por Suzan, crescia também uma irritação com o Signor Victalle. O Signor Victalle devia ficar do lado dela. O Signor Victalle devia chamar a atenção da esposa e colocá-la no devido lugar! O Signor Victalle era um... idiota.

— O que... o que vocês querem aqui?

— Recebemos uma ligação — disse Suzan. — Dizendo que devíamos vir para cá.

— Uma ligação? — perguntou Serafine. — Ligação de quem?

— De mim — disse Fëll, que acabava de sair do estúdio.

— Do senhor? — perguntou Serafine.

— Sim, Miss.

— Por que... por que está fazendo isso com a gente, Herr Fëll?

Fëll se voltou para ela com um ar meio surpreso.

— Mas eu já expliquei, Miss! Para fazer um inquérito sobre a morte de seu pai.

Serafine disse:

— Eu sei que foi isto que o senhor disse. Mas eu duvido.

Fëll ergueu as sobrancelhas.

— É?

Ela acrescentou com veemência:

— O senhor quer deixar todo mundo maluco, isso sim!

E atirando as mãos para o alto, a moça saiu da sala.

Fëll pareceu um pouco perturbado. Disse:

— Peço desculpas pelo transtorno, Signor e Signora Victalle. Daqui a pouco, vou explicar tudo. Gostaria que todos se reunissem às 10 horas no quiosque à beira do lago.

Dizendo isso, Fëll calcou a escada, deixando o casal para trás. Colbert voltou-se para a esposa com uma expressão surpresa.

Ele balançou a cabeça.

— Suzan, o que faremos?

Suzan hesitou por um minuto antes de falar. Ela ouvira a súplica na voz do marido e sabia como ele era dependente dela.

Ela respondeu furiosa:

— Você não disse, Col, que esqueceu umas coisas no quarto? Vá, traga-as para baixo!

Colbert disse:

— Sim, minhas coisas... Que bom que se lembrou! Eu...

A conversa entre eles foi interrompida de maneira abrupta com a entrada de Gerbran Oliviê.

Com um sorriso beatífico nos lábios, o francês se apoiava numa bengala de ébano, de cabo dourado.

— Bom-dia — disse Gerbran num tom jovial e amigável.

— Olá — disse Colbert.

Suzan olhou para o marido.

— Vá logo, Col! Você quer um convite por extenso?

Com o estímulo, Colbert correu escada acima. Só torcia para que... sim, para que não fosse tarde demais!

Abaixo do espanhol, mais duas pessoas entraram na sala.

Eram Neill Brannigum e Nivea Newcare.

— Oi — disse Nivea.

Sua voz soava fraca e frágil, como se pertencesse a outra pessoa.

— Outra reunião — disse Neill. Recompôs-se e prosseguiu rapidamente: — Ninguém vai morrer hoje, vai?

Era uma situação desconcertante e nada agradável.

— Depende — disse Gerbran — Eu vim prevenido — e socou a bengala de ébano.

Suzan iniciou uma risadinha suave que, pouco a pouco, foi aumentando em espasmos sucessivos até virar uma longa e sonora gargalhada.

— O senhor... é... um asno... pretensioso!

Gerbran ficou vermelho.

No andar de cima, Colbert entrou em um quarto, fechando a porta atrás de si. Quando saiu, esbarrou em Fëll, em um desajeitado balé de pernas e braços.

Fëll o observou com indulgência.

— O que está fazendo, Signor Victalle?

Colbert inclinou-se para ele, o rosto crispado.

— Eu fiquei alojado aqui — respondeu, tentando bloquear o vão da porta com o corpo. — Esqueci... esqueci esta pasta...

Fëll disse:

— Ah! Uma pasta...

Colbert estremeceu e suas pernas pareciam incapazes de suportá-lo. Fëll achou que ele estivesse na iminência de um ataque de nervos.

— São... apenas... documentos...

O rapaz apertou a pasta contra si.

Perplexo, Fëll percebeu o desenho que emoldurava a orelha de um dos papéis. Um desenho que ele já tinha visto em outras circunstâncias... em muitos lugares.

— Se me dá licença... — disse Colbert e se afastou.

Fëll balançou gravemente a cabeça. Ele disse devagar:

— É... é um emblema. Nunca... Eu não... Wie abscheulich!

No térreo vinha chegando mais gente. O juiz Warning e, atrás dele, o oficial Wacht.

— Bom-dia, cavalheiros! — disse Neill quando eles chegaram perto o suficiente para poder ouvi-lo.

O oficial ignorou o sarcástico cumprimento. Ele tinha o olhar ensaiado de um agente da Bundeskriminalamt, prestativo, atento e superficial.

— Muito bem, senhoras e senhores — anunciou. — Estamos aqui para investigar o homicídio de duas pessoas e, ainda, a tentativa de homicídio de Madame Nerwcare. Desta vez não haverá inquérito nem confrontação. Em vez disso, gostaria de solicitar que se dirijam para a área externa.

Lentamente, e em fila desordenada, todos saíram, segundo a orientação do oficial.


Capítulo 22

 


Fëll olhou à sua volta para o círculo de rostos. De onde estava, ele via o Danúbio, na planície abaixo, e ali a seus pés o lago, com sua lisa lâmina de água.

Fëll ergueu sua grande mão em um gesto oficial.

— Pedi a presença de todos vocês aqui para falarmos, é claro, sobre as circunstâncias ligadas à morte de Monsieur Sachsen-Dorf e de Mrs. Lilinburg. Mas primeiro vamos falar de Petsy e Lucy.

Todos continuaram calados pela surpresa.

Serafine lançou um olhar interrogativo para o detetive.

— Quem são Petsy e Lucy?

Fëll disse, em um tom enigmático:

— Petsy e Lucy são duas roseiras. Elas pertencem a...

O rosto do Juiz Warning ficou branco como um papel.

— Basta! Basta! — pediu, com a voz um pouco rouca. — Não creio que isso seja relevante.

—... pertencem a alguém que, nas horas vagas, é floricultor — disse Fëll.

— Atenção! Aí vem uma dissertação sobre as vantagens do paisagismo — disse Colbert, antes de receber uma cotovelada da esposa.

Fëll limpou as cordas vocais e continuou:

— Vou retomar esse gancho mais adiante. Confesso que, no todo, considerei esse caso extremamente complexo. Não devido aos crimes em si. A razão de tal complexidade residiu no fato de não existir nada para apoiar minha investigação. A partir de agora, vou apresentar duas versões...

“Dias atrás, sob este mesmo sol, ocorreu aqui o primeiro assassinato. Vamos remontar os fatos daquela tarde... Visualizem Monsieur Sachsen-Dorf ali no quiosque... junto dele, Monsieur Oliviê, na bancada do bar. Com exceção dos Victalle, que passeavam no barquinho, os demais estavam em terra, a saber, Madame Nerwcare e a filha com Miss Sachsen-Dorf (neste platô), Mr. Lutlum ali, sob os abetos, Mrs. Pompadière lá, entre o roseiral e depois com Monsieur Oliviê, e Mrs. Lilinburg, à nossa direita, parada na trilha de pedras. Como num filme retroativo, recuem até a hora em que Ma’am Pupu trouxe a bandeja sortida de bebidas. Concentrem-se nessa ocasião... Para poupar tempo, digo que, guiados pelas várias reviravoltas posteriores, e após analisar separadamente as possibilidades (1. que a estricnina poderia ter sido acrescentada ao vinho na taça, e/ou 2. ter sido inoculada na própria garrafa), guiados por isso, como eu dizia, acabamos nos apegando à segunda hipótese. Isso contrariava os exames técnicos, mas, com um pouco de imaginação, conseguimos solucionar essa aparente discrepância... como veremos.

“As coisas, vistas nesta perspectiva, estavam rodeadas de um halo que tornava seu perfil ainda mais trágico. Durante todos esses dias, uma pergunta ficou evolando, dando voltas em minha mente: O que teria concorrido para o assassinato de Monsieur Sachsen-Dorf? Existiam muitos motivos: este estava ressentido com o arqueólogo, aquela remoía uma suposta rejeição amorosa, outra porque possuía uma conta de banco que sofria de anemia crônica, etc. Todos, em maior ou menor grau, poderiam ter ganhado alguma coisa com o assassinato. Havia uma única pista, uma pista pobre sim, mesmo assim uma pista. Estas letras escritas à máquina, que logo apresentaram uma elementar dificuldade... Como decifrá-las se não tínhamos nem código nem senha?”

Fëll fez uma pausa e continuou:

— Tanto o juiz como eu não entendíamos duas coisas: por que o homem destinou aquele recado para mim e, talvez o mais perturbador, se ele suspeitava de alguém, por que não escreveu isso em letras legíveis? Quanto a essa pergunta, elaboramos uma explicação mais ou menos verossímil. Talvez Monsieur Sachsen-Dorf não tenha mencionado o nome do assassino por temer que o assassino, ao ver que tinha sido exposto, poderia dar um jeito no pedaço de papel antes da chegada da polícia.

“Calculo que, se não fosse pelo crime seguinte, teria sido virtualmente impossível descobrir o assassino e suas razões. Há um requinte, uma preparação toda especial e inventiva por trás da morte de Mrs. Lilinburg. Só para enumerar alguns pontos: a redação dos cartões que foram encontrados em uma rústica caixinha de porcelana... um bilhete falso (como um mapa do tesouro) propondo um prêmio em forma de revelações sobre o primeiro crime... e, acima de tudo, o ramalhete de sálvias, arrumado de um modo que não deixava o item ser visto por ninguém, salvo por Monsieur Oliviê.”

Gerbran se inclinou para frente.

Ele disse:

— Calma aí! O senhor não está sugerindo que eu seja o assassino, está?

Fëll o interrompeu:

— Espere um pouco, Monsieur. Contarei tudo, com exatidão. Agora chegamos a um ponto muito interessante. Depois de lidas as orientações, todos se separaram, seguindo direções diferentes... o que abriu a porteira para que acontecesse o segundo homicídio. O que aprendemos de todo esse esquema montado e fantasticamente explorado? Que o criminoso é uma pessoa metódica e adaptável. Um assassino perfeito nos detalhes, que sabe agir em sincronia com seu plano e em sigilo. Perguntei a mim mesmo: Quem dentre os presentes preenchia esse perfil? Mr. Brannigum? Sim, com certas ressalvas. Ou Nivea Nerwcare, que é atendente numa empresa de táxi aéreo? Talvez, de todos, a menos qualificada fosse Mrs. Pompadière. Quem sabe, então, Mr. Lutlum, o secretário aplicado e eficiente? Ou Monsieur Oliviê? Sim, Monsieur Oliviê. Talvez existam coisas a seu respeito que ainda não saibamos... coisas que o senhor poderia fazer a bondade de compartilhar conosco.

Gerbran encarou o detetive. Piscou duas vezes e resmungou:

— Não tenho nada para compartilhar com ninguém.

Fëll disse:

— E tem mais... Vejamos Madame Nerwcare. Miss Sachsen-Dorf, poderia nos contar o que foi que a senhorita viu?

Serafine disse:

— Eu vi Madame Nerwcare recolhendo um cartão... perto do corpo de Mrs. Lilinburg.

Nivea balançou violentamente a cabeça.

— Eu já disse antes e torno a dizer: minha mãe não fez nada — esbravejou. —... nada!

Fëll ficou calado por alguns instantes, pensativo, antes de responder:

— Quando a confrontei com essa pergunta, Madame Newcare falou a mesma coisa. Comigo mesmo eu pensei: “Aber jeder eine sagt doch, was er will!” Pois eu digo que sua mãe, Mademoiselle, pegou sim alguma coisa. Alguma coisa insignificante, a que deu pouca atenção, mas que tem uma ligação direta com o tiro que levou ontem à noite. Foi isto aqui, Miss Sachsen-Dorf?

Fëll mostrou um cartão. Serafine disse:

— Sim... Foi isso mesmo!

Edmund Fëll disse:

— Parece um cartão em branco, não? Olhem o que diz no verso: Acervo mesopotâmico. Consegue dizer para nós o que é isto, Mr. Lutlum?

Houve um ligeiro burburinho.

Gervois disse:

— É... é um pedaço de cartolina do fichário.

— Exato. Foi esse pedaço de cartolina que Madame Nerwcare apanhou e foi também esse pedaço de cartolina que quase provocou a morte dela. Ah, ficaram confusos? Tudo é muito simples, Herren und Damen. Eu explico... Ontem à noite, antes de ligar para cada um de vocês, eu me sentei, recostei a cabeça e pensei: “Miss Sachsen-Dorf devia ir ao ateliê... Suzan Victalle à lavanderia... o marido ao hall, etc. Em vez de ir à sua respectiva seção, alguém (que chamaremos de M) chaveou a governanta na cozinha e assassinou Mrs. Lilinburg na Sala das Coleções. Suponhamos que, antes-durante-ou-depois-disso, M tenha perdido seu cartão de designação. Sim, afinal, para não levantar suspeitas, M deve ter se autodesignado para ir a algum ponto da casa. Suponhamos ainda que M visse ou ouvisse dizer que Madame Nerwcare achou um cartão... no local do crime! Sem saber que era só uma ficha de papel que caiu acidentalmente quando ele atacou Mrs. Lilinburg, M entra em pânico. E assim, descontrolado, ele começou a temer uma ameaça que não existia, uma ameaça imaginária, que devia, não importa como, ser eliminada”.

Nivea disse:

— Muito bonito! O senhor quer dizer que mamãe foi baleada porque o assassino cometeu um erro de julgamento?

— Sim, Mademoiselle. Desde às sete e meia da manhã, eu percorri todas as adjacências, alas e nichos da mansão atrás do cartão extraviado por M.

Todos disseram em coro:

— E?!

— Não achei o cartão — disse Fëll, pesaroso.

Serafine perguntou, contrariada:

— Então o senhor estava procurando um mero cartão? Fez tudo isso por nada?

— Não por nada, Miss. Mesmo sem querer, muitas coisas acabam se revelando ao longo de uma investigação dessa envergadura. Apenas para exemplificar, agora eu sei por que naquela noite Nivea Nerwcare “demorou mais de dez minutos” para voltar do piso superior para a sala. Mademoiselle Nerwcare esteve no mesmo quarto no qual, um dia antes, estava hospedado o Signor Victalle. Meia hora atrás, descobri o que a reteve naquele quarto e sobre o que conversou com o Signor Victalle, mais tarde, naquela mesma noite.

Colbert riu com amargura. Ele disse:

— Descobriu, é?

Fëll disse com rispidez:

— Signor Victalle, nunca pensei que um dia teria o desgosto de dizer uma coisa dessas, mas o senhor... é um... neonazista! Nein, não responda. Eu vi o desenho em sua pasta. Uma suástica... hastes recurvas e angulares... Tudo o que dizia sobre seu avô... a perseguição... era tudo uma farsa. O senhor é um militante da ideologia e não um opositor.

Colbert soltou um grito de protesto:

— Isso é mentira! É uma baita mentira!

— O que tem a dizer sobre isso, Mademoiselle Nerwcare?

A voz nervosa de Nivea, um pouco elevada, disse:

— Eu não vou... não posso...

Fëll fez um gesto tranquilizador.

— Não se constranja, Mademoiselle. Pode falar à vontade.

Suzan Victalle interveio a favor do marido:

— Colbert não é um... um nazista! O senhor está sendo muito injusto por fazer essa acusação.

Colbert olhou para ela, agradecido.

Fëll disse:

— É ou não é um nazista, Signor Victalle?

— Não tenho nada a declarar.

— Então o senhor se recusa a cooperar? — perguntou Fëll.

— Sim, eu me recuso.

— Claro que ele se recusa — disse Suzan. — É vergonhoso sugerir que Colbert seja um nazista!

Colbert disse com firmeza:

— Qual é, gente?! A cada dia, centenas, milhares de pessoas morrem de fome, de doenças e por causa do descaso das autoridades. Pais de família são esmagados, oprimidos, moídos pela máquina estatal. Servimos de joguete... de moeda de pagamento... para, no fim da vida, sermos enterrados como se não fôssemos ninguém. Se eu sou ou não sou um nazista... o que é que tem?

Os olhos do espanhol iam de um lado para o outro à procura de algum sinal de compreensão.

Mas todo mundo se manteve calado, embora o silêncio fosse bastante eloquente.

Fëll prosseguiu:

— Por enquanto, vamos deixar de lados suas inclinações idealistas, Signor Victalle. Agora terminemos... Lembrem-se da reputação local de Monsieur Sachsen-Dorf: um homem que vivia partindo o coração da sua esposa devido aos seus casos com mulheres. Ontem de manhã, ao remexer a gaveta do quarto de Mrs. Pompadière, topamos com duas passagens aéreas com destino ao Caribe. Duas passagens, notem. Para quem seria a segunda passagem? Para a esposa... ou para Mrs. Lilinburg?

Mrs. Pompadière murmurou:

— Mas o senhor disse... que Amyr queria viajar comigo para... para que pudéssemos reviver nossa lua-de-mel! Comigo... não com Henriette.

Fëll disse:

— Sim, Madame. Mas, note, eu disse que talvez fosse esse o caso. Talvez é um advérbio que pressupõe uma ou mais possibilidades. O que significa que, em essência, é possível que seu marido tivesse programado a viagem com Mrs. Lilinburg. Ele... que tratava todo mundo sem a menor cerimônia e com o despotismo de um autocrata. Ele... que conseguiria dizer: “Na certa, o senhor quer que eu desista de Mrs. Lilinburg! Como se fosse fácil deixar de amar uma mulher!” Ele... que, contra todos os princípios religiosos e morais, sentia uma atração libidinosa por essa mulher... Esse era Monsieur Sachsen-Dorf! Substancialmente, alguém relativamente insensível às preocupações dos outros. E o que se pode dizer de homens assim? Que eles raramente renunciam ao que querem. E seu marido, Madame, queria Henriette Lilinburg, uma mulher desimpedida e que correspondia (e retribuía) aos seus avanços masculinos. Eu ainda consigo vê-los naquele dia, no Palácio de Hofburg, de mãos dadas, correndo por aí como dois jovens enleados em seu primeiro amor. Como confrontar essa imagem com outra, dias depois, em que ele, por condescendência à opinião de terceiros, resolveu tirar Mrs. Lilinburg de sua vida como se tirasse um espinho da carne? Nein, nein! Isso não parece convincente, Madame! E não parece convincente porque não é convincente!

Suzan disse:

— Espere um minuto! O senhor quer dizer que esse homem gostava de minha tia?

— Sim.

— Mas, se bem me lembro, ele deu um pontapé nela!

Fëll disse:

— Não, Miss, ele nunca deu um pontapé nela. Há sempre algo a descobrir. Estou dizendo que toda aquela antipatia exalada por ele... e a tristeza da parte dela... faziam parte do plano deles. Ambos desempenharam bem seu papel, e por isso foram tão persuasivos.

Suzan perguntou:

— Então titia sabia de tudo?

— Um segredo a dois requer uma certa troca de informações, Signora. Esclarecido isso, chego ao ápex da exposição dos fatos. Não só Mrs. Lilinburg, mas mais alguém sabia de tudo isso! Alguém que está aqui... nesta assistência... sabia do plano de viagem deles. O cartão para Mrs. Pompadière... a indicação para que ela abrisse especificamente aquela gaveta... não foi coincidência. Esse alguém queria que ela encontrasse as passagens. Ontem de manhã, na ânsia de chegar a M, me ocorreu uma conversa que eu tive com Monsieur Sachsen-Dorf. E, através de um raciocínio que não vem ao caso agora, concluí que Serafine Sachsen-Dorf fosse M. Ou seja, concluí que Miss Sachsen-Dorf fosse a assassina! Convicto disso, falei com ela ontem à tarde e expus minhas suspeitas. Mas, com muita sensatez e razoabilidade, Miss Serafine rechaçou a minha ofensiva. Fiquei, sim, fiquei muito frustrado. Eu tinha achado M, mas M parecia não ser o assassino. Será que Monsieur Sachsen-Dorf tinha deixado uma pista falsa ou equivocada? Ele devia saber... devia ter visto... Foi aí que me lembrei de Petsy e Lucy. Diz o folclore que os cães tendem a ter determinadas características de seu dono. “Tal dono, tal cão”. Animais que vivem com pessoas neuróticas, por exemplo, têm menos capacidade de lidar com o estresse. Já os que são adotados por donos sociáveis, tendem a ser mais relaxados e mais amigáveis. Já os floricultores dizem que conseguem formar um vínculo com as plantas sob seus cuidados. Vínculo... era isso! E, melhor, respondia a duas de minhas perguntas: como o assassino pôde prever que, entre tanta gente, só Monsieur Sachsen-Dorf beberia vinho? e, como ele teve acesso ao frigobar para substituir a garrafa contendo o veneno? Apenas uma pessoa teria tais chances. Apenas um de vocês conhecia todo mundo que vinha à mansão. Um de vocês que, naquela tarde, se sentou num lugar elevado, e que, antes disso, instruiu Ma’am Pupu sobre que vinho deveria ser servido. Alguém que tinha um vínculo com Miss Sachsen-Dorf. Uma pessoa virtualmente irrastreável... como Gervois Lutlum.

Radiante, com os olhos faiscantes, a boca entreaberta e o rosto pálido de cólera, Gervois disse:

— Eu?!

— Se desejar, pode chamar seu advogado, Mr. Lutlum.

— Por quê?

— Porque estou acusando o senhor pelos assassinatos de seu patrão e de Mrs. Lilinburg.

O espanto de Gervois não tinha como ser mais real.

— Nega isto, Mr. Lutlum? — perguntou Fëll.

— É claro que nego! Nunca ouvi nada tão absurdo. O senhor não pode provar nada disso.

Ligeiramente trêmula e as maçãs do rosto rosadas, Serafine disse:

— Acho que o senhor bateu com a cabeça. Meu Gervois não fez nada disso!

Fëll fez uma pausa e disse, sem mudar de tom:

— Acha que não, Miss? Pois eu vou expor o motivo pelo qual Mr. Lutlum matou essas pessoas. Porque ele estava embriagado de amor e tão cego que não agia racionalmente. A doença, aos poucos, foi se alastrando e tomando conta de seu espírito. Ele... que teria feito qualquer coisa pela senhorita, que satisfaria todos os seus desejos, que sofreria, que morreria, que assassinaria pela senhorita, até, se quisesse... ele soube que era exatamente isso o que a senhorita queria, que era por isso que torcia! (Lembra-se que foi o que a senhorita contou para mim?) Ele via a senhorita, ele ouvia a senhorita — e quanto mais a via, quanto mais a ouvia, tanto mais isso inflamava os ânimos. O calor de seu contato — o som de sua voz suave, dizendo e repetindo a mesma coisa.

“Talvez estejam dizendo: “Mr. Lutlum não mataria Monsieur Sachsen-Dorf, o homem que o acolheu, que deu guarida e o tratou como um pai zeloso e consciente”! Quero lembrá-los, porém, que toda a admiração inicial, toda a sua devoção pelo patrão, esfriou quando ele conheceu o seu lado... digamos, menos atraente. Sendo um estudioso dos costumes e da cultura de povos antigos, o mínimo que se poderia esperar de Monsieur Sachsen-Dorf é que ele tivesse apreço e afeição pela família. Mas Monsieur Sachsen-Dorf não tinha nada disso. Sua degradação moral, perversão e corrupção eram um insulto a Mr. Lutlum. Ainda o ouço dizendo: “É uma vergonha... Um homem, com esse nível intelectual... com outra mulher...” Assim, quando ele ouviu as pessoas falando... criticando... e talvez até preconizando a morte do arqueólogo, aquilo foi se incrustando, se fixando e gravando em sua mente. Adquirida a estricnina, provavelmente via internet, ele a introduz na garrafa de vinho do Reno que, após o crime, ele suprime do frigobar, etc. “Que maravilha”, pensa ele, “tudo está dando certo.” Mas para que o plano tenha êxito total, Mrs. Lilinburg precisava ser eliminada. O tempo era curto. Creio que, fazendo uma análise, a pior parte deve ter sido quando, diante dos apelos e insistência da sobrinha, Mrs. Lilinburg resolveu partir para a Espanha.

“Era preciso agir logo... sim, logo...

“Primeiro, ele preparou o terreno. Foi um golpe de mestre! Providenciou um estratagema... Com a eficiência sistemática de que é dotado, Mr. Lutlum atraiu cada um de vocês para uma conspiração destinada a destruir Mrs. Lilinburg. Vocês todos couberam no molde... Mr. Lutlum elaborou os cartões, um por um, convidando vocês para participar de uma caçada a um prêmio: no caso, o nome do assassino. Creio, no entanto, que Mr. Lutlum não sabia que Madame Nerwcare havia apanhado este cartão naquela noite. Deve ter sido a senhorita, ontem de manhã, que contou a ele o que tinha visto. Tentem imaginar o seu assombro: E se o cartão achado por Madame Nerwcare fosse o cartão perdido por ele na noite do crime? Poderia ser que sim. Ou poderia ser que não. Ele não via vantagem em correr riscos desnecessários, principalmente agora que estava em vias de ficar noivo. Ele teria que recuperá-lo ou, se não, teria que fazer algo mais drástico.

“Por fatalidade, ontem de manhã Madame Nerwcare liga para Miss Sachsen-Dorf e diz que quer falar com ela. Imaginem a inquietação de Mr. Lutlum. Às quatro da tarde, a meu pedido, ela sai de casa e vai para o centro, onde eu converso com ela. Ele, como um louco, sai também e vai para a Falkestrasse. Transtornado, Mr. Lutlum lembra que tem uma arma no porta-luvas e, quando chega, ele não titubeia e puff! atira nela.”

A voz de Gervois soou com uma nota histérica:

— O senhor não pode provar... Eu...

Fëll retirou algo do bolso. Com a voz áspera, rouca, colérica, disse:

— Na verdade, eu achei sim o cartão. Este! Nele o senhor designa a si mesmo para a adega. Em vez de ir para lá, entretanto, o senhor perpetrou o odioso assassinato de Mrs. Lilinburg!

Serafine desatou a chorar.

— Oh, Gervois, você fez isso por mim? — soluçou. — Fale... Eu só quero saber!

Gervois se mexeu. A cadeira rangeu sob seu peso.

— Bom, acho que agora é melhor eu contar toda a verdade — respondeu ele, pateticamente. — Meu ato pode não ser aceitável pela sociedade, mas meus crimes foram em primeiro lugar crimes contra as convenções sociais. Monsieur Sachsen-Dorf me assustava. Era egoísta... Impiedoso... Ele não valia nada. Tive que matá-lo! E depois dele, Mrs. Lilinburg. Ah, Serafine! Eu não queria que fosse assim. Eu não queria!

Ela se ajoelhou ao lado dele.

— Oh, querido! Querido!

Gervois disse baixinho:

— É tudo verdade. Serafine não sabia de nada. Mas assim que o senhor começou com sua investigação... Bem, Mrs. Lilinburg desconfiou de mim. Ela quis ir à polícia.

— E o senhor não podia permitir que isso acontecesse? — perguntou Fëll

— Não, claro que não. E é isso...


Capítulo 23

 


— Pensou em tudo, Herr Fëll — disse Mrs. Pompadière. — Parabéns.

— De nada, Madame — disse Fëll. — Mas quero lembrá-la que falta apresentar uma segunda versão dos fatos.

Mrs. Pompadière acrescentou:

— Bem, fique à vontade. Estou cansada. Vou me deitar em meu quarto.

Ma’am Pupu colocou-se de pé e pegou a mão dela, ansiosa.

— Está tudo bem, não está, Madame?

— É só cansaço.

— Eu a acompanharei.

Mrs. Pompadière e a governanta voltaram juntas para a mansão.

Gerbran Oliviê disse:

— Não, não e não! Não acredito que Gervois seja o assassino! Quem vai acreditar nisso?

— Pois eu acredito — disse Neill.

— Eu também — disse o Juiz Warning. E, virando-se para Fëll, elogiou: — O senhor não salvou a filha do maquinista. Mas nesse caso aqui se saiu muito bem. É como se diz: Schlafende Hunde soll man nicht wecken.

— Não é seu papel julgar as pessoas, é, Herr Fëll? — perguntou Serafine, os olhos rasos d’água.

Ao ouvir isso, Fëll sorriu e balançou a cabeça.

— Não, não é. Mas a senhorita sabe que eu posso estar certo. — E como ela não respondeu, ele perguntou: — Não sabe?

Ela concordou.

— Sim. — E de novo. — Sim.

Fez-se uma longa pausa.

Fëll disse:

— Agora, como prometi, vou apresentar a segunda versão... que inocenta Mr. Lutlum de tudo o que eu acabei de dizer.

Houve uma exclamação em uníssono:

— Inocenta?!

— Vejam só! — comentou Gerbran com uma clara euforia em sua voz. — Mas que doideira! Então esse rapaz não é o assassino?

Fëll ouviu a pergunta e respondeu com um aceno de cabeça.

— Exatamente. Mr. Lutlum não é o assassino.

Serafine gritou e correu para Gervois:

— Eu sabia! Eu sabia! Oh, meu amor...

Fëll disse:

— Alguém traga um gole de conhaque!

Gervois foi até o bar, voltou com um cálice de conhaque e ficou olhando enquanto ela bebia. Ela entregou o copo vazio de volta para ele.

— Já estou melhor — disse ela. — Oh, Gervois!

— Herr Fëll pediu minha ajuda — explicou Gervois e sorriu. — Eu atuei muito bem, não atuei?

Fëll acenou afirmativamente.

— Posso continuar?

— Oh sim, oh sim — disse Serafine. — Quero ouvir todo o resto da história.

— Tudo o que expus explicaria plenamente cada aresta do caso. Menos uma coisa... Lembra-se, Mr. Brannigum, de onde estava a chave da porta da cozinha na noite em que livrou Ma’am Pupu?

— No chão... perto da soleira — disse Neill.

— Exato — disse Fëll. — Pensem nisso... A chave poderia ter sido atirada ali? Poderia. Mas ficava a questão: a porta foi fechada pelo lado de fora... ou de dentro?

— Ora, no lado de dentro estava Ma’am Pupu! — disse Nivea.

— Justamente. O que podemos deduzir disso?

— Que foi o assassino que trancou a porta pelo lado de fora — disse o juiz.

— Não.

— Não?

— Nós podemos deduzir — explicou Fëll — que foi a própria governanta que se trancou na cozinha.

Suzan balançou a cabeça.

— Está dizendo que Ma’am Pupu matou minha tia? Besteira!

— Não, Miss Victalle. Ma’am Pupu não matou sua tia, mas ela achava, em sua ingenuidade, que Mrs. Lilinburg era culpada pela morte de seu patrão. Isso tornou a pobre mulher muitíssimo maleável. A única coisa que o assassino teve que fazer foi convencê-la a acobertar o seu crime.

“Em aparência, a circunstância correspondia à descrição: uma mulher aprisionada na cozinha. Mas isso, por si só, não significava nada... em absoluto! Mas fui tolo por não dizer: ‘Isto não significa nada, e assim não poderia ter acontecido’. Não, em minha tolice, continuei tentando encontrar uma explicação para o fato.

“Vocês veem agora como tudo se encaixa? A prisão de Ma’am Pupu, necessária para estabelecer uma distração, os seus gritos de desespero, de maneira que ninguém descobrisse o corpo cedo demais.

“Quem teria tanta intimidade com a governanta? Estudei o caso de trás para frente... Aos poucos, minhas ideias começaram a ganhar corpo, a tomar rumo definido. Lembrei-me pela vigésima vez da mensagem composta por Monsieur Sachsen-Dorf. Foi aí que tive uma inspiração... E se ele quisesse me transmitir uma única palavra — uma palavra onde a terceira letra (o M em destaque) fosse a única que correspondia à terceira letra da palavra original? Digamos... Pompadière. Ou seja, a pessoa que com muita frequência é culpada — disse Fëll. — O cônjuge.”

Serafine umedeceu os lábios e caiu no choro pela segunda vez.

— Está falando de mamãe? Minha mãe?

— Sim, Miss — disse Fëll.

— Mas se ela estava dormindo!

— Quem diz que estava?

— Eu... eu dei um tranquilizante.

— Ela não engoliu.

— Ela se deitou.

— Permaneceu acordada.

— E se fosse flagrada?

— Era um risco.

— Não foi ela... não, não foi ela! — soluçou Serafine.

Fëll fez uma ligeira pausa.

— Não fique pensando que não me solidarizo com a situação de sua mãe, Miss. A vida tem sido dura para ela, eu sei. Talvez ela não tivesse ilusões a respeito do marido dela, mas ele era seu marido, e ela o amava. Fez tudo o que pôde para ter uma vida feliz com ele. Ela não tinha intenção de se separar dele, e ele também não estava disposto a se afastar dela. Até o dia em que apareceu Mrs. Lilinburg.

“Vou alistar as provas. Há muitos anos, Mrs. Pompadière foi secretária de um professor de egiptologia. Isso explica a caligrafia nos cartões... Após o funeral, foi ela que fez os telefonemas para vocês e falou vagamente a respeito de uma suposta reunião para expor o nome do assassino. Uma voz afeminada, lembram? Telefonemas dados por um telefone pré-pago e, portanto, descartável. O buquê de sálvias... A suposta dor de cabeça. Tudo ficou tão fácil! Depois de ir para o quarto e ouvir que todo mundo tinha se dispersado pela casa, ela começa a pôr seu plano em ação. Ela escolheu um bom momento, saiu sorrateiramente do quarto, penetrou na Sala das Coleções, e se esgueirou atrás de Mrs. Lilinburg para matá-la a punhaladas. Em seguida, Mrs. Pompadière correu de volta para o quarto e ficou esperando até ouvir vozes, dando o sinal de que o corpo fora encontrado.

“É como eu digo... Ninguém nasce preparado para crivar alguém de balas, atacar outros com socos e cacetadas, ou mesmo esfaqueá-los. Mas muitos homens fazem isso. E mulheres. Mulheres traídas, tosquiadas vivas, empurradas de um lado para o outro como se fossem um estorvo.

“Nessa conjuntura, e na esteira da morte de Mrs. Lilinburg, ontem foi a vez de Madame Nerwcare. E por quê? Porque Madame Nerwcare sabia coisas demais.”

— O que ela sabia?

— Coisas. Não sei o quê — disse Fëll. — Conversei com ela, certo dia. Na ocasião ela me contou que já tinha sido casada com Monsieur Sachsen-Dorf. Qualquer que seja o caso, Mrs. Pompadière não podia se arriscar a permitir que Madame Nerwcare viesse a público com sua história. Foi sorte dela Mrs. Pompadière não ser uma boa atiradora.

“Eu poderia contar muito mais, sem omitir nada, acrescentando datas, circunstâncias, testemunhasse e mais, muito mais. Mas há uma coisa indispensável. Falando mais concretamente: sua mãe, Miss, sofre de angiopatia alguma-coisa cerebral. Doença para a qual não há cura.”

Serafine estremeceu. Ela perguntou:

— Ma’am Pupu sabe?

— Creio que sim. São dados brutos, mas dá para ter uma ideia da gravidade da doença de sua mãe, Miss.

Suzan disse:

— Toda essa história é bastante fantástica. Minha tia foi morta por essa mulher?

Fëll fez que sim com a cabeça:

— Com a discreta ajuda da governanta. Preenchi muito deste relato com suposições minhas, é claro, mas acho que haverá poucas dificuldades para reunir as provas que faltam.

— Oh! Herr Fëll — disse Serafine. — Será que o senhor não poderia interceder com a polícia a favor de mamãe?

— É isso o que quer, Miss?

— Sim! Sim! Se for verdade o que o senhor disse, papai foi morto, mas não há nada que possa trazê-lo de volta! Se mamãe for presa, ela só acabará sofrendo ainda mais. Papai era... era um homem horrível. O senhor mesmo viu como ele era. Enfim, agora ele está morto. Vamos deixar que tudo termine aí.

— Então é isso o que quer, Miss? Quer que eu interceda com a polícia a favor de sua mãe?

— Sim, por favor. Ah, por favor!

Fëll se virou lentamente para Wacht.

— O que o senhor me diz disso, oficial?

Wacht grunhiu. Tinha algumas palavras na ponta da língua. Mas antes que pudesse pronunciá-las, Gerbran Oliviê interveio e disse:

— Por mim, tudo bem.

— Por mim também — disse Madame Nerwcare.

— O quê? Estão loucos? — perguntou Neill. — Se Mrs. Pompadière matou mesmo Henriette, eu quero que ela seja julgada pelo crime.

— Henriette! Henriette! — disse Gerbran. — Parece que você só pensa nela! Ela traiu você, meu camarada. Traiu. Esqueça essa mulher!

— Ah, é mesmo? — exclamou Neill Brannigum. — Henriette pode ter me traído, mas ela merece que a assassina dela seja tirada de circulação!

Suzan Victalle disse, com determinação:

— Eu concordo com o senhor. Se ela matou, que pague pelo crime!

— Não me julgue tão mal, minha querida — disse o marido —, mas sua tia não era nenhuma santa!

Suzan apenas olhou para ele e não disse nada.

— E Mademoiselle Nerwcare? — perguntou Fëll, virando-se para a moça francesa. — O que acha que deveria ser feito?

— Eu prefiro não opinar — disse Nivea. — Em boca fechada não entra mosca.

— E o senhor, Juiz Warning?

— Assassinos devem ser julgados — disse o Juiz Warning. — Analisando a situação pelo ponto de vista legal, o caso deve ser entregue às autoridades competentes, sem sombra de dúvida.

— Eu assino embaixo — disse o oficial Wacht. — E o senhor, Herr Fëll? Fica a favor da maioria ou da minoria?

Fëll deu de ombros.

— Digamos que prefiro me manter neutro nessa questão. Fica ao seu próprio critério, oficial, ditar suas próximas medidas.

Havia um tom de fim de conversa em sua voz e Fëll sacudiu as mãos, como quem encerra satisfatoriamente o caso.

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

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