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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DUAS IRMÃS, UM DUQUE / Eloisa James
DUAS IRMÃS, UM DUQUE / Eloisa James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Era uma vez, há já algum tempo...
(ou, para sermos exatos, março de 1812)
... Uma menina que estava destinada a ser princesa. Embora, para sermos absolutamente precisos, não houvesse príncipe no horizonte. Mas estava prometida ao herdeiro de um duque e, do ponto de vista da pequena nobreza, uma coroa ducal era tão boa como uma coroa propriamente dita.
A história começa com essa menina e continua através de uma noite tormentosa e de provas e, embora não haja uma ervilha na história, podemos dizer que, se continuar a lê-la, vai encontrar uma surpresa nessa cama: uma chave, uma pulga... ou talvez, e já agora, uma marquesa.
Nos contos de fadas, a capacidade de nos apercebermos de uma obstrução tão pequena como uma ervilha debaixo de um colchão é suficiente para provar que uma jovem estranha chegada numa noite tormentosa é de fato uma princesa. Na vida real, claro que é um pouco mais complicado. Para se preparar para o título de duquesa, Miss Olivia Mayfield Lytton aprendeu coisas praticamente de todos os ramos do conhecimento humano. Preparou-se para jantar com um rei, um louco ou até com o próprio Sócrates, conversando sobre assuntos tão díspares como a ópera cômica italiana e as novas máquinas de fiar. Mas tal como apenas uma ervilha seca era necessária para determinar a autenticidade de uma princesa, um fato crucial terminou a elegibilidade de Olivia para o título de duquesa: estava prometida ao herdeiro do ducado de Canterwick.
Menos importantes eram os fatos de, quando a história começa, Olivia ter já vinte e três anos e ser ainda solteira, de o pai não ter um título e de ela nunca ter recebido um presente como um diamante de primeira água. Até muito pelo contrário.
Nada disso tinha importância.

 


 


1

Em Que Somos Apresentados a Uma Futura Duquesa

Clarges Street, 41, Mayfair

Londres

Residência de Mr. Lytton, Esq.

Amaioria dos noivados surge de uma de duas ferozes emoções: cobiça ou amor. Porém, Olivia Lytton não se sentia estimulada nem por uma troca de bens entre aristocratas semelhantes, nem por uma potente mistura de desejo, afinidade e setas de Cupido.

De fato, a futura noiva costumava, em momentos de desespero, atribuir o seu noivado a uma maldição.

– Talvez os nossos pais tenham se esquecido de convidar uma fada poderosa para o meu batizado – disse a sua irmã Georgiana quando voltavam para casa depois de um baile em casa do duque de Micklethwait, no qual Olivia passou tempos sem fim com o seu prometido. – Nem será preciso dizer que a maldição foi a mão de Rupert. Preferia dormir cem anos.

– Dormir tem os seus atrativos – concordou a irmã enquanto desciam da carruagem dos pais diante da casa.

Georgiana não terminou a frase positiva com a que se lhe opunha: o sono tem os seus atrativos mas Rupert tem poucos.

Olivia teve realmente de engolir em seco e ficar sentada mais um pouco na carruagem escura, antes de conseguir recompor-se e seguir a irmã. Sempre soubera que um dia seria duquesa de Canterwick, por isso não valia a pena sentir-se tão desgraçada. Mas pronto: uma noite passada com o seu futuro marido era um autêntico desespero.

Não ajudava nada que toda a cidade de Londres, a mãe incluída, a considerasse a jovem mais afortunada do mundo. A mãe ficaria horrorizada – porém, não surpreendida – ao ouvir Olivia considerar uma maldição a sua futura união com o ducado. Para os pais, era manifestamente evidente que a ascensão da filha na escala social era uma extraordinária felicidade. Resumindo: uma bênção.

– Graças a Deus – dissera Mr. Lytton, talvez cinco mil vezes depois de Olivia nascer. – Se eu não tivesse andado em Eton...

Era uma história que Olivia e a sua irmã gêmea Georgiana adoravam ouvir quando eram pequenas. Empoleiravam-se nos joelhos do pai e escutavam a emocionante história de como Mr. Lytton – feio, insignificante (embora aparentado com um duque por um lado e, por outro, com um bispo e uma marquesa) tinha andado em Eton e se tornara o melhor amigo do duque de Canterwick, que herdara aquele importante título com apenas cinco anos. Em determinada altura, os jovens fizeram um pacto de sangue, garantindo que a filha mais velha de Mr. Lytton se tornaria duquesa, casando com o filho mais velho do duque de Canterwick.

Mr. Lytton mostrara um louco entusiasmo em cumprir o seu papel para garantir esta eventualidade, pondo neste mundo não uma, mas duas filhas no final de um ano de casado. Porém, o duque de Canterwick pusera no mundo apenas um filho e só após alguns anos de casamento, mas era óbvio que um filho seria suficiente para a tarefa a cumprir.

Consequentemente, os orgulhosos pais da futura duquesa fizeram tudo o que lhe estava ao alcance para prepararem a sua primogênita (mais velha uns bons sete minutos) para o título que lhe caíra em sorte, não poupando despesas na formação da futura duquesa de Canterwick. Olivia foi orientada desde a hora em que saiu do berço. Aos dez anos era uma especialista nos pontos mais importantes da etiqueta, na gestão das propriedades (incluindo o método das partidas dobradas da contabilidade), sabia tocar cravo e espineta, cumprimentar em várias línguas Incluindo em latim (útil para visitar pelo menos os bispos) e cozinha francesa, embora estes últimos conhecimentos fossem mais intelectuais do que práticos. De fato, as duquesas nunca tocavam em comida senão para a comer.

Também conhecia perfeitamente como favorito da mãe. O Espelho dos Elogios: Uma Completa Academia para Obter a Arte de Ser Uma Senhora, cuja autora era nada mais, nada menos do que uma personalidade importante: Sua Graça a Duquesa Viúva de Sconce e fora oferecido às irmãs no dia em que fizeram doze anos.

A mãe de Olivia tinha de fato lido tantas vezes O Espelho dos Elogios que ele se enrolava na sua conversa como uma trepadeira sufocando uma árvore.

– A nobreza – dissera de manhã, diante das torradas e do doce de laranja, antes do baile Micklethwait – nos foi concedida pelos nossos antepassados, mas logo se desvanece se não for revitalizada pela virtude. – Olivia acenara com a cabeça. Ela própria acreditava piamente no desvanecimento da nobreza, mas a longa experiência ensinara-a que exprimir uma opinião provocaria uma dor de cabeça à mãe.

– A uma jovem – anunciara Mrs. Lytton a caminho do baile Micklethwait – nada é mais desagradável do que parlamentar com um admirador imodesto.

Olivia já sabia que não devia perguntar como se parlamentava com um admirador imodesto. A alta sociedade sabia-a prometida ao herdeiro do duque de Canterwick e por isso admiradores, imodestos ou modestos, raramente se incomodavam em aproximar-se.

Em geral, guardava aquele tipo de conselhos para o futuro, quando esperava conseguir várias parlamentações imodestas.

– Viste Lorde Webbe dançando com Mistress Shottery? – perguntou Olivia à irmã enquanto se dirigiam para o quarto. – É comovente ver como olham para os olhos um do outro. Devo dizer que a alta sociedade parece tomar os votos matrimoniais com a mesma seriedade que os franceses e todos dizem que a inclusão da fidelidade conjugal nos votos matrimoniais franceses transformou-os numa esplêndida obra de ficção.

– Olivia! – gemeu Georgiana. – Não pode! Não o faria, pois não?

– Esta perguntar-me se eu alguma vez seria infiel ao meu noivo depois de casar com ele... se por acaso esse dia chegar?

Georgiana acenou afirmativamente.

– Suponho que não – disse Olivia, embora por vezes perguntasse secretamente a si própria se um dia não quebraria todas as regras fugindo para Roma com um criado. – A única parte da noite em que de fato me diverti foi quando Lorde Pomtinius me recitou uns versos acerca de um abade adúltero.

– Não te atreva a repeti-los! – ordenou a irmã. Georgiana nunca mostrara qualquer desejo de contrariar as regras do decoro. Amava e vivia seguindo-as.

– Era uma vez um abade adúltero – troçou Olivia –, lúbrico...

Georgiana tapou os ouvidos.

– Não posso acreditar que ele te tenha dito tal coisa! O pai ficaria furioso se soubesse...

– Lorde Pomtinius estava com um grão na asa – disse Olivia. – Além do mais, tem noventa e seis anos e já não quer saber do decoro. Só se quer rir de vez em quando.

– Nem sequer faz sentido. Um abade adúltero? Como pode um abade ser adúltero? Os abades não se casam.

– Diz-me se quiser ouvir todo o poema – retorquiu Olivia. – Termina falando de freiras, por isso creio que a palavra foi usada com alguma liberdade.

Esse poema e o apreço que Olivia sentira por ele apontavam diretamente para o problema da transformação de Ms. Lytton em duquesa, ou, como diziam as jovens, duquesificação. Havia em Olivia algo déclassé, por muito elegante que fossem as suas maneiras, o seu porte, a sua voz. Podia certamente agir como uma duquesa, mas a verdadeira Olivia nunca nadava longe, o que era assustador.

– Falta-te aquele indefinível ar de responsabilidade que a sua irmã apresenta sem esforço algum – opinava frequentemente o pai com ar de desanimada resignação. – Resumindo, minha filha, o teu sentido de humor tende a ser vulgar.

– O seu comportamento deve aumentar sempre a sua honra – cantarolava a mãe, citando a duquesa de Sconce.

Mas Olivia encolhia os ombros.

– Se ao menos – dizia várias vezes a desesperada Mrs. Lytton ao marido – Georgiana tivesse nascido primeiro.

Porque Olivia não era a única participante no programa de treino dos Lytton. Olivia e Georgiana marcharam juntas pelas lições sobre o comportamento de uma duquesa, pois os pais, conscientes das infelicidades que poderiam ameaçar a filha mais velha – uma febre, uma carruagem desgovernada, uma queda de uma torre – duquesificaram também a filha mais nova.

Era tristemente perceptível a toda a gente que Georgiana atingira a qualidade de uma duquesa, enquanto Olivia... era Olivia. Sabia, sem dúvida, comportar-se com uma graça especial, mas entre os íntimos era sarcástica, demasiado espirituosa para um comportamento senhoril e muito pouco graciosa.

– Olha para mim de tal modo quando me atrevo a mencionar O Espelho dos Elogios – queixava-se Mrs. Lytton. – Certamente que apenas quero ajudar.

– Essa donzela vai um dia ser duquesa – dizia pesadamente Mr. Lytton. – Nessa altura ficará grata.

– Mas se ao menos... – dizia Mrs. Lytton melancólica. – A nossa querida Georgiana é exatamente... bem, ela seria uma perfeita duquesa, não acha?

De fato, a irmã de Olivia cedo começara a dominar a delicada arte de combinar um agradável ar de responsabilidade com um comportamento irrepreensivelmente modesto. Pelos anos fora, Georgiana criara um formidável conjunto de traços de duquesa: o modo de andar, de falar e o porte.

– Dignidade, virtude, afabilidade e comportamento – recitava constantemente Mrs. Lytton, transformando o que dizia numa canção de embalar.

Georgiana olhava para o espelho, verificando o seu porte digno e expressão afável. Olivia cantarolava para a mãe:

– Debilidade, vaidade, disparate e... insensatez!

Aos dezoito anos, Georgiana parecia, falava e até cheirava (graças ao perfume francês contrabandeado de Paris com grandes despesas) como uma duquesa. Olivia, em geral, não se preocupava.

Os Lytton eram, de certa maneira, felizes. Tinham, por todos os padrões sensatos, produzido uma duquesa, mesmo que essa filha não fosse a prometida do herdeiro do duque. Enquanto as filhas cresciam, diziam a si próprios que Georgiana seria uma esposa fantástica para qualquer homem de posição. Infelizmente, com o tempo, o casal deixou de dizer o que quer que fosse acerca do hipotético marido da segunda filha.

A triste verdade era que a duquesificada menina não era o que a maioria dos jovens desejava. Embora as virtudes de Georgiana fossem elogiadas por toda a alta sociedade – principalmente pelo grupo da duquesa viúva – a sua mão raramente era procurada para dançar e muito menos para casar.

Mr. e Mrs. Lytton interpretavam o problema de maneira diferente. Quanto a eles, a sua amada segunda filha manteria provavelmente na sombra da duquesa, sem sequer casar, visto não ter dote.

Os Lytton haviam gasto todo o rendimento de que podiam dispor em professores e, como resultado, a filha mais nova ficara praticamente impossibilitada de se colocar no mercado do casamento.

– Sacrificámos tudo pela Olivia – dizia muitas vezes Mrs. Lytton. – Não percebo porque não se mostra mais agradecida. É a donzela com mais sorte em toda a Inglaterra. Porém, não era assim que Olivia se considerava.

– A única razão que me leva a concordar casar com Rupert é poder dar-te um dote – descalçou as luvas, mordendo as pontas para as puxar dos dedos. – Para falar com franqueza, só a ideia do casamento me faz sentir levemente furiosa. Poderia suportar a posição social, embora não seja de fato o que mais me agrada, se ele não fosse aquela coisa estranha e barbuda com cara de peixe.

– Esta falar calão – censurou Georgiana. – E...

– De maneira nenhuma – respondeu Olivia, atirando as luvas para cima da cama. – É assim que eu lhe chamo e sabe tão bem quanto eu que o Espelho para Papalvos diz que o calão é... e passo a citar... maneira grosseira de falar utilizada pelos piores degenerados da nossa nação. E por muito que eu gostasse de atingir as habilitações para ser degenerada, não tenho a mínima esperança de conseguir esse título em toda a minha vida.

– Mas não devia – disse Georgiana, instalando-se no sofá diante da lareira de Olivia. Esta ficara com os aposentos mais imponentes da casa, ainda maiores do que os da mãe ou do pai, por isso as gémeas escondiam-se geralmente dos pais no quarto de Olivia.

Mas a reprimenda não teve a força habitual. Olivia franziu a testa ao olhar para a irmã.

– O que se passou esta noite, Georgie? Fui arrebatada pelo meu noivo semi-idiota e depois do jantar perdi-te o rasto.

– Teria sido fácil de encontrar – replicou Georgiana. – Estive sentada ao pé das viúvas durante quase toda a noite.

– Oh, minha querida – condoeu-se Olivia sentando-se ao lado da irmã para lhe dar um abraço apertado. – Espera só que eu chegue a duquesa. Vou oferecer-te um dote tão bom que todos os cavalheiros do país ficarão de joelhos só de pensar em você. Vão chamar-te Georgiana dourada.

Georgiana nem esboçou um sorriso, por isso Olivia prosseguiu.

– Gosto de me sentar com as viúvas. Sabem todas aquelas histórias que eu gosto de ouvir como aquela acerca de Lorde Mettersnatch que pagou sete guinéus para ser chicoteado.

A irmã franziu as sobrancelhas.

– Bem sei! Bem sei! – exclamou Olivia. – Vulgar, vulgar, vulgar. Mesmo assim, adorei a parte do disfarce de ama de leite. Na verdade, deveria sentir-te satisfeita por não estares na minha pele. Canterwick andou toda a noite para trás e para diante no salão de baile arrastando-me a mim e a Rupert atrás dele. Todos os lambe-botas riram nas minhas costas e foram informar o resto dos presentes no salão como o PP é extraordinariamente infeliz por se ir casar comigo.

Entre elas, Olivia e Georgiana referiam-se geralmente a Rupert Forrest G. Blakemore – marquês de Montsurrey e futuro duque de Canterwick – como PP, iniciais de Pretendente Parvo. Uma ocasião fora também AA (Apaixonado Alienado) e, como as jovens eram fluentes em francês e italiano, MM (marito ou mari maluco, consoante a língua que utilizavam no momento).

– A única coisa que faltou para tornar esta noite completa e irremediavelmente infernal – continuou Olivia – seria o mau funcionamento do guarda-roupa. Se alguém me tivesse pisado a bainha do vestido e o rasgasse, desnudando o meu traseiro para o mundo, talvez me tivesse sentido mais humilhada, mas certamente menos aborrecida.

Georgiana não respondeu; limitou-se a lançar a cabeça para trás e a olhar para o teto. Tinha um ar infeliz.

– Devemos ver as coisas pelo lado melhor – disse Olivia procurando falar num tom entusiasmado. – O PP dançou com as duas. Graças a Deus que por fim tem idade para frequentar bailes.

– Contou os passos em voz alta – afirmou Georgiana. – E disse que o meu vestido me fazia parecer uma nuvem gorda.

– Certamente não ficaria surpreendida ao descobrir que Rupert não foi fadado para a conversa elegante. Se alguém parecia uma nuvem gorda seria eu; você parecia uma virgem vestal. Muito mais digna do que uma nuvem.

– A dignidade não é desejável – retorquiu a irmã voltando a cabeça. Tinha os olhos cheios de lágrimas.

– Oh, Georgie! – Olivia abraçou-a mais uma vez. – Não chore, por favor. Dentro em breve serei duquesa e vou oferecer-te um dote tão bom e mandar-te fazer vestidos tão belos que será o espanto de Londres.

– É a minha quinta temporada, Olivia. Não poderá entender como é horrível nunca ter estado no mercado. Esta noite nenhum cavalheiro me prestou atenção e o mesmo se tem passado de há cinco anos para cá.

– Foi o vestido e o dote. Parecíamos fantasmas, mas não transparentes. Você, claro, era um fantasma esguio e eu um fantasma particularmente sólido.

Olivia e Georgiana envergavam vestidos semelhantes de fina seda branca, apanhados por baixo do peito com longas fitas enfeitadas com pequenas pérolas e borlas nas pontas. As mesmas fitas apareciam dos lados e nas costas dos vestidos, ondulando à mais leve brisa. Na página do figurino de Madame Wellbrook o desenho parecia extraordinário.

Mas havia uma lição a aprender... uma muito breve lição.

Lá porque as fitas ondulantes ficavam bem na jovem incrivelmente magra retratada no figurino, não queria dizer que também o ficassem quando pregadas nas nossas ancas....

– Vi-te dançando – continuou Olivia. – Parecia um daqueles mastros com tantas fitas a ondular à sua volta. E os teus caracóis também balançavam.

– Não importa – afirmou Georgiana com simplicidade. Limpou uma lágrima. – É a duquesificação, Olivia. Nenhum homem quer casar com uma puritana que age como uma viúva de noventa e seis anos. E – soltou um pequeno soluço – parece que não consigo comportar-me de outra maneira. Não acredito que alguém se ria nas tuas costas, a menos que seja de inveja. Mas eu sou um pãozinho sem sal. E eles ficam com os olhos vítreos quando têm de dançar comigo.

No fundo, Olivia acreditava que o programa de duquesificação tinha muito que se lhe dissesse. Mas apertou mais a irmã contra si e disse:

– Georgiana, tem uma figura fantástica, é doce como o mel e o fato de saberes pôr uma mesa para cem pessoas não tem nada a ver com isso. O casamento é um contrato e os contratos fazem-se por causa do dinheiro. Uma mulher tem de ter dote ou nenhum homem quererá desposá-la.

Georgiana fungou, o que serviu para demonstrar a sua perturbação, pois normalmente nunca fazia um gesto tão pouco refinado.

– A sua cintura põe-me doente de inveja – acrescentou Olivia. – Pareço um pote de manteiga, enquanto você é tão magra que poderia equilibrar-te como um anjo na cabeça de um alfinete.

A maior parte das damas casadoiras – incluindo Georgiana – era de fato etereamente magra. Flutuavam de aposento em aposento com sede diáfana envolvendo os seus corpos esguios.

Olivia não era assim. Era essa a triste verdade, a gangrena no coração da flor ducal, outra fonte de preocupações para Mrs. Lytton. A seu ver, os exageros de Olivia em relação aos ditos espirituosos vulgares e às torradas bem barradas com manteiga provinham dos mesmos defeitos de caráter. Olivia não discordava.

– Claro que não parece um pote de manteiga – afirmava a irmã, limpando mais algumas lágrimas.

– Ouvi uma coisa interessante esta noite – exclamou Olivia. – Parece que o duque de Sconce quer casar. Creio que precisa de um herdeiro. Imagina, Georgie. Poderia ser nora do mais emproado e engravatado de todos eles. Acha que a duquesa lê o Espelho das Larvas em voz alta à mesa do jantar? Decerto que haveria de te adorar. Julgo mesmo que seria a única mulher do reino que ela adoraria.

– As viúvas adoram-me sempre – disse Georgiana com nova fungadela. – Mas eu pensava que o Sconce era casado.

– Se a duquesa concordasse com a bigamia, certamente viria publicado no Espelho; assim, como tal não aconteceu, ele anda mesmo à procura de uma segunda mulher. A outra novidade, muito menos interessante, é que a mãe soube de uma dieta de alface e decidiu que eu tinha de a experimentar imediatamente.

– Alface?

– Só se pode comer alface entre as oito da manhã e as oito da noite.

– Que absurdo! Se quiser emagrecer, terá de deixar de comprar empadas de carne quando a mãe pensa que comprar fitas. Embora, para ser franca, Olivia, penso que deve comer o que quiser. Estou desesperada para me casar e, mesmo assim, a ideia de me casar com Rupert causa-me vontade de comer uma empada de carne.

– Quatro empadas – corrigiu Olivia. – Pelo menos.

– E mais, pouco importa que emagreça ou não – continuou Georgiana. – O PP não tem outro remédio se não casar contigo. Mesmo que te aparecessem agora umas orelhas de coelho, teria de casar contigo. Entretanto, ninguém suporta a ideia de casar comigo, por muito bela que seja a minha cintura. Preciso de dinheiro para... os subornar – falava de novo com voz entrecortada.

– Não passam de palhaços tontos – comentou Olivia, apertando de novo a irmã. – Não repararam em você, mas vão fazê-lo assim que o Rupert te dê um dote.

– Provavelmente, terei quarenta e oito anos quando vocês derem o sim.

– Quanto a isso, o Rupert vem cá amanhã ao fim da tarde com o pai para assinar os papéis do noivado. Depois, parece que vai diretamente para a guerra em França.

– Por amor de Deus – disse Georgiana, com os olhos muito abertos. – Vai mesmo ser duquesa. O PP está mesmo decidido!

– De vez em quando os pretendentes parvos morrem no campo de batalha – comentou Olivia. – Creio que o termo é carne para canhão.

A irmã soltou uma gargalhada.

– Pelo menos podia mostrar-te triste com essa perspectiva.

– Ficaria triste – protestou Olivia. – Penso eu.

– E terias razão para isso. Não só perderia a possibilidade de que te chamassem Sua Graça para o resto da sua vida, como veria os nossos pais darem as mãos para saltarem da ponte de Battersea para uma morte nas águas profundas.

– Nem imagino o que fariam a mãe e o pai se os franceses transformassem a galinha dos prometidos ovos de ouro em frango de fricassé.

– Que acontecerá se o PP morrer antes de se casar contigo? – perguntou Georgiana. – Legal ou não, um compromisso não é um casamento.

– Creio que esses papéis tornam a situação muito mais sólida. Tenho a certeza que grande parte da alta acredita que ele vai fugir a sete pés antes de chegarmos ao altar, devido à minha falta de beleza em geral, já para não falar do fato de eu não comer muita alface.

– Não seja ridícula. É muito bonita – assegurou Georgiana. – Tem os olhos mais bonitos que já vi. Não percebo porquê, mas eu tenho uns vulgares olhos castanhos e você tem olhos verdes, enormes – espreitou a irmã. – Verde-claros. Da cor do aipo, sabe?

– Se as minhas ancas fossem do tamanho do aipo, aí sim, teríamos razão para comemorar.

– É luxuriante – insistiu a irmã. – Como um pêssego doce e sumarento.

– Não me importo de ser um pêssego – disse Olivia. – Só é pena que o aipo esteja na moda.


2

No Qual Somos Apresentados a Um Duque

Littlebourne Manor

Kent

Residência do duque de Sconce

No preciso momento em que Olivia e Georgiana se ocupavam numa discussão agrícola acerca dos méritos relativos dos pêssegos e do aipo, o herói deste particular conto de fadas certamente não se comportava como os príncipes deste tipo de histórias. Nem estava de joelho em terra, nem montava um cavalo branco e também não se encontrava junto a um feijoeiro; estava, isso sim, sentado na sua biblioteca tentando resolver um confuso problema de matemática: especificamente o teorema dos quatro quadrados de Lagrange. Como esclarecimento, diremos que se um duque deste tipo encontrasse alguma vez um feijoeiro com o tronco de dimensões invulgares, obteria um salto nos antigos conhecimentos botânicos que dizem respeito ao crescimento invulgar das plantas – mas nunca um salto para o dito tronco.

Dito isto, é perfeitamente óbvio ser o duque de Sconce um homem que sentia repulsa pelos contos de fadas. Não os lia nem pensava neles (e muito menos acreditava neles); a ideia de representar um papel num teria sido absurda e teria rejeitado imediatamente parecer-se com os príncipes loiros e vestidos de veludo, geralmente encontrados nessas histórias.

Tarquin Brook-Chatfield, duque de Sconce – Quin para os mais íntimos, que eram exatamente dois – era mais o vilão do que o herói desses contos e sabia-o bem.

Não saberia dizer com que idade descobrira quão profundamente não se parecia com um príncipe de contos de fadas. Teria talvez cinco, sete ou até dez, mas, em determinada altura, apercebera-se de que uma cabeleira negra com uma madeixa branca sobre a testa não era habitual nem apreciada. Talvez fosse essa a primeira vez que o primo Peregrine lhe chamara velho decrépito (comentário que conduzira a uma lamentável briga).

Porém, não era apenas o cabelo que o distinguia dos outros rapazes. Mesmo com dez anos tinha olhos sérios, maçãs do rosto duras e um nariz declaradamente aristocrático. Aos trinta e dois não se lhe viam mais rugas de riso do que as visíveis vinte anos antes e com boas razões.

Quase nunca ria.

Mas havia de fato um ponto importante em que Quin se parecia com o herói de A Princesa e a Ervilha, quer ele soubesse quer não: a mãe estava encarregada de lhe escolher esposa e ele estava-se borrifando para o critério aplicado por ela para completar essa tarefa. Se pensasse que uma ervilha debaixo do colchão – ou de cinco colchões – seria a maneira de garantir que a futura duquesa era adequada, Quin concordaria, desde que não tivesse de se preocupar com a questão.

E assim Quin era tão imponente – e real – como o príncipe anônimo do conto de fadas, tão duquificado como Georgiana fora duquesificada. Raramente via uma porta sem que a usasse como se ela lhe pertencesse. Como era dono de muitas portas, teria comentado que seria o pressuposto compreensível. Olhava todos do alto, porque era mais alto que a maioria das pessoas. Podia olhar do alto e a arrogância era uma sua prerrogativa. Nem podia mesmo conceber outro tipo de comportamento.

Para sermos justos, Quin reconhecia alguns defeitos pessoais. Por exemplo, raras vezes se apercebia do que sentiam as pessoas em seu redor. Tinha uma inteligência formidável e raramente considerava surpreendentes os padrões de pensamento alheios. E quanto às emoções? Desagradava-lhe profundamente o modo como as pessoas pareciam escondê-las para depois as libertarem por meio de um ruído bombástico e uma exposição lacrimejante. A sua antipatia por exibições sentimentais levara-o a rodear-se de pessoas como a mãe e ele próprio: isto é, aqueles que respondiam a um problema formulando um plano, muitas vezes envolvendo experimentação designada para provar a hipótese apresentada. E mais, esses poucos selecionados não choravam quando se provava que as suas hipóteses estavam erradas.

Preferia que as pessoas não tivessem tantas emoções, dado que os sentimentos raramente eram lógicos e por isso não serviam absolutamente para nada. Uma vez envergonhara-se a si próprio quando caíra num estado emocional.

Que acabara por ter um triste fim.

Só de se lembrar, sentiu uma pontada dolorosa na região em que geralmente pensava albergar o coração, mas ignorou-a conforme era seu hábito. Se tomasse atenção a quantas vezes por mês, por semana, por dia, sentia essa pequena pontada...

Não valia a pena pensar naquilo.

Se havia uma coisa que aprendera com a mãe era que as emoções lamentáveis são as que mais depressa se esquecem. E se uma pessoa não conseguia esquecer (ele não conseguia), então deveria esconder essa falha pessoal.

Como se pensar na mãe a chamasse para o seu lado, a porta da biblioteca abriu-se e Cleese, o mordomo, entoou:

– Sua Graça.

– Os meus planos estão prontos, Tarquin – declarou a mãe logo a seguir a ter sido anunciada. Steig, o seu assistente, seguia-a e atrás vinha a sua criada pessoal, Smithers. Sua Graça, a duquesa viúva, preferia ter sempre consigo um pequeno rebanho de serviçais, como se fosse um bispo acompanhado por ansiosos acólitos. Não era alta, mas projetava uma presença tão formidável que dava a impressão de altura, embora ajudada por uma peruca. De fato, a peruca que usava tinha uma distinta semelhança com a mitra de um bispo. Ambas, a peruca e a mitra, afirmavam a confiança de quem as usava no lugar que mantinham por direito no universo: isto é, em cima.

Quin já estava de pé; saiu detrás da secretária para beijar a mão que a mãe lhe estendia.

– Ah sim? – perguntou delicadamente, enquanto tentava lembrar-se de que estaria ela falando. Felizmente, a duquesa não considerava a responsabilidade como um aspeto obrigatório de uma conversa. Se pudesse escolher, preferia um solilóquio, mas aprendera fazendo comentários formais que quase poderiam ser classificados como interativos.

– Escolhi duas jovens – declarou então. – Ambas, sem sombra de dúvida, de excelentes famílias. Uma da aristocracia; a outra de uma elevada posição social, mas recomendada pelo duque de Canterwick. Creio que ambos concordamos que ter apenas em conta a aristocracia será mostrarmos demasiado ansiosos e os Sconce não podem dar a conhecer as suas emoções.

Fez uma pausa e Tarquin acenou com a cabeça, obediente. Desde criança que aprendera que a ansiedade – tal como o amor – era uma emoção desdenhada entre a aristocracia.

– Ambas as mães estão conscientes das minhas exigências – prosseguiu a duquesa – e eu tenho razões para acreditar que as filhas ultrapassarão a série de testes que lhes apresentarei, retirados, evidentemente, do Espelho dos Elogios. Pensei muito na visita que nos vão fazer, Tarquin, e vai ser um sucesso.

Neste momento, Tarquin percebeu do que a mãe estava falando: da sua próxima esposa. Concordava com os planos de Sua Graça e com as suas esperanças de sucesso. A mãe organizava todos os aspetos da sua própria vida e muitas vezes também da dele. A única vez que se comprometera espontaneamente – uma palavra e um impulso que agora lamentava – o resultado fora desastroso.

Assim precisava de outra esposa. De uma segunda esposa.

– No próximo outono deverá estar já casado – declarou a mãe.

– Tenho plena confiança de que esta diligência, como todas as que a minha mãe leva a cabo, será um sucesso – replicou e essa afirmação era a mais absoluta verdade.

A mãe nem pestanejou. Nenhum deles tinha tempo para lisonjas ou cumprimentos frívolos. Conforme a mãe escrevera no livro O Espelho dos Elogios – que para grande surpresa de todos se transformara num bestseller – Uma verdadeira dama prefere uma leve reprimenda a um elogio extravagante.

Nem vale a pena dizer que Sua Graça ficaria extremamente surpreendida se a repreendessem ao de leve ou de qualquer outra maneira.

– Assim que lhe arranje uma esposa digna ficarei satisfeita. – E logo acrescentou: – Em que está trabalhando?

Quin olhou para a secretária.

– Estou escrevendo um documento acerca da solução de Lagrange em relação à conjetura de Bachet no que diz respeito à soma dos quadrados.

– Não me disse que Legendre tinha já melhorado o teorema de Lagrange?

– A demonstração estava incompleta.

– Ah! – Seguiu-se uma pequena pausa e depois a duquesa viúva declarou: – Vou emitir imediatamente um convite às jovens damas escolhidas para que nos visitem. Depois de serem devidamente observadas, farei uma escolha. Uma escolha sensata. Não sucumbirei a caprichos passageiros, Tarquin. Penso que ambos concordamos em que o seu primeiro casamento foi uma prova clara da imprudência de tal comportamento.

Quin inclinou a cabeça, mas não concordou completamente. Claro que o seu casamento fora irrefletido. Terrível, sob determinado prisma (o fato de Evangeline ter arranjado um amante poucos meses depois, falava por si). Mesmo assim...

– Não em todos os aspetos – disse Quin, incapaz de se conter.

– Está se contradizendo – observou a mãe.

– O meu casamento não foi um erro em todos os aspetos. – Quin e a mãe viviam confortavelmente, mas ele tinha consciência de que a serenidade do lar dependia do fato de ele tomar sempre a linha de menos resistência. Porém, sempre que necessário, sabia ser tão firme como a duquesa viúva.

– Pois bem – replicou a mãe, olhando-o. – Depois veremos quem tem razão.

– Eu terei uma palavra dizendo acerca do meu casamento – declarou Quin.

– Essa questão é irrelevante – replicou ela, abanando o leque como se quisesse afastar um inseto. – Farei os possíveis para afastar o menino e não o deixar cair no mesmo atoleiro. Sinto-me extremamente exausta só de pensar nas tempestades, no rancor, nas constantes lamentações. Diria que essa jovem fora criada num palco.

– Evangeline...

– Um nome muito impróprio para uma dama – interrompeu-o a mãe.

Segundo o Espelho dos Elogios, a interrupção era um pecado capital. Quin aguardou um momento, o tempo suficiente para que o silêncio se estendesse no aposento. – Evangeline era profundamente emotiva – declarou. – Sofria de um excesso de sentimentalismo e de recorrentes problemas nervosos.

A mãe lançou-lhe um olhar atento.

– O menino não estará querendo dizer-me para não falar mal dos mortos, Tarquin.

– Não seria um mau princípio – arriscou ele.

– Ummf!

Mesmo assim conseguira fazer valer a sua opinião. Não tinha grandes objeções a permitir que a mãe organizasse a questão de um segundo casamento. Sabia perfeitamente que precisava de um herdeiro. Mas o seu primeiro casamento...

Decidiu não aceitar a opinião de outras pessoas a respeito dessa questão.

– Para voltar ao assunto, embora tenha a certeza de que os parâmetros que a senhora formulou são excelentes, tenho uma exigência em relação às jovens selecionadas.

– Ah sim? Steig, anote.

Quin olhou para o assistente da mãe, cuja pena estava a postos.

– Já devem ter passado a idade dos risinhos. A mãe acenou afirmativamente.

– Vou ter esse ponto em consideração – voltou a cabeça. – Steig, anote. – Por vontade expressa de Sua Graça, farei um novo teste para determinar se o sujeito é dado a risinhos ou a outros sinais de propensão a divertimentos juvenis.

– Di-ver-você-men-tos ju-ve-nis – resmungou Steig, escrevendo apressadamente.

Quin teve a visão de uma duquesa altiva com uma enorme gola engomada, tal qual os rostos das suas antepassadas isabelinas na galeria dos retratos.

– Não me importo com os divertimentos – esclareceu. – Só não quero risinhos.

– Dispensarei as candidatas que pareçam entregar-se a excessivas expressões de prazer – disse a mãe. Quin podia perfeitamente imaginar-se ligado por um casamento a mais uma mulher que não sentisse qualquer prazer na sua companhia. Mas sabia que não era isso o que a mãe queria dizer. Além do mais, ela já tinha saído.


3

No Qual os Méritos da Virgindade e da Devassidão

São Avaliados e Vence a Devassidão

Olivia e Georgiana mal tinham terminado a sua discussão acerca da preferência entre os pêssegos e o aipo quando a mãe entrou no quarto.

A maioria das mulheres de mais de quarenta anos permite-se a umas ligeiras redondezas. Porém, como que para repreender a sua pouco satisfatória filha mais velha, Mrs. Lytton comia como um passarinho e confinava impiedosamente qualquer curva que pudesse possuir dentro de um espartilho de barbas de baleia. Assim, parecia uma cegonha de olhos ansiosos e redondos e uma cabeça particularmente emplumada.

Georgiana ergueu-se imediatamente para fazer uma reverência.

– Boa noite, senhora minha mãe. Que simpatia a sua nos fazer uma visita.

– Odeio que faça isso – declarou Olivia, levantando-se com um pequeno gemido. – Senhores, como me doem os pés. Rupert pisou-os cinco ou seis vezes.

– O que foi minha querida? – perguntou Mrs. Lytton, ouvindo o comentário de Olivia enquanto fechava a porta.

– Georgie fica toda delicodoce para si – disse Olivia e não pela primeira vez.

A expressão da mãe era uma máscara milagrosa: conseguia mostrar o seu desagrado sem sequer franzir ao de leve a testa.

– Como a sua irmã bem sabe, A peregrinação de uma dama é nada menos que mostrar no mundo o que é mais necessário a uma grande personalidade.

– Mostrar ao mundo – repetiu Olivia fazendo um pequeno gesto de revolta. – Se tem de citar o Espelho da Insensata Estupidez, mãe, terá de o fazer corretamente.

Mrs. Lytton e Georgiana ignoraram aquele comentário inútil.

– Esta noite a mãe estava extraordinária com o seu vestido de tafetá cor de ameixa – comentou Georgiana puxando uma cadeira mais para junto da lareira e conduzindo a mãe para nela se sentar. – Especialmente quando estava dançando com o pai. A casaca dele complementava perfeitamente o seu vestido.

– Já sabem? Ele vem nos visitar amanhã! – Mrs. Lytton pronunciou o pronome como se Rupert fosse uma divindade que se dignasse entrar naquela morada terrena.

– Ouvi dizer – declarou Olivia, vendo que a irmã colocava uma pequena almofada atrás das costas da mãe.

– Amanhã por esta hora será uma duquesa – o tremor na voz de Mrs. Lytton falava por si.

– Não. Não serei. Estarei formalmente comprometida com um marquês, o que não é exatamente a mesma coisa que ser duquesa. Tenho a certeza de que se lembra que estive oficiosamente prometida durante cerca de vinte e três anos.

– É da diferença entre o nosso acordo informal com o duque e a cerimônia de amanhã que desejo falar-lhe – disse a mãe. – Georgiana, talvez devesse nos deixar sós pois a menina é solteira.

Olivia julgou aquilo surpreendente: Mrs. Lytton batia as pestanas de uma maneira que sugeria estar presa de enorme ansiedade e Georgiana tinha talento para suavizar os aforismos.

De fato, quando Georgiana chegou à porta, a mãe acenou.

– Mudei de ideias. Pode ficar, minha querida. Não tenho a mínima dúvida de que a marquesa lhe oferecerá um dote pouco depois do casamento, por isso esta informação poderá ser também relevante para si.

Um noivado formal é uma relação complicada em termos legais. Claro que o nosso sistema legal está em mutação, e por aí em diante. – Mrs. Lytton parecia não fazer a mínima ideia daquilo que estava falando. – Parece que está em constante mutação. Partes da antiga legislação, partes da nova... o seu pai entende tudo isto muito melhor do que eu.

Sob a atual interpretação da lei, o seu noivado será vinculativo, a menos que o marquês tenha um acidente fatal e... então será invalidado por morte dele – abriu com força o leque e abanou-o diante do rosto, como se tal tragédia fosse demasiado terrível até para pensar nela.

– O que é muito provável – declarou Olivia respondendo ao mesmo tempo ao leque e às palavras da mãe – já que Rupert tem cérebro de mosquito e parece que vai para a guerra.

– A civilidade nunca esteve fora de moda – disse Mrs. Lytton baixando o leque e mergulhando no Espelho dos Elogios. – Nunca deve falar assim da aristocracia. É verdade que na trágica ocorrência do falecimento do marquês, o noivado ficaria em nada. Mas há uma cláusula interessante que parece estar salvaguardada por uma lei mais antiga, julgo eu.

– Cláusula? – perguntou Olivia, franzindo a testa... com o azar de a mãe estar nesse momento a olhar para ela.

– Não ensombres desdenhosamente o teu semblante – disse Mrs. Lytton automaticamente. As duquesas deveriam pois manter-se livres de rugas porque nunca franziam a testa.

– Se por acaso a menina ficasse... – Mrs. Lytton agitava o leque no ar. – Ficasse... ficasse – lançou a Olivia um olhar entendido. – Nessa altura, o noivado seria mais do que legalmente vinculativo. Transformaria num casamento sob qualquer tipo de lei. Não me lembro como foi que o seu pai lhe chamou. Comum, talvez. Embora eu não saiba dizer como será possível que o direito comum se aplique à nobreza.

– Quer então dizer que, se eu cobrir o BB, serei marquesa mesmo que ele morra? – perguntou Olivia, movimentando os doridos dedos dos pés. – Parece-me extremamente improvável.

O leque agitou-se com violência.

– Decerto não entendo o que a menina está dizendo, Olivia. Tem de aprender falando corretamente.

– Suponho que a lei tenha sido criada para proteger as jovens – interrompeu Georgiana antes que a mãe dissertasse sobre o assunto dos egrégios lapsos de linguagem da irmã. – Se bem entendi, senhora minha mãe, isto significa que, se o marquês perder a compostura e cometer um ato indigno da sua nobre posição, seria obrigado a casar com a sua prometida, isto é, com Olivia.

– Não sei bem se ele seria obrigado a casar com Olivia ou se o noivado se transformaria num casamento. Mas, o que é importante é que, se esta ocorrência se... se concretizasse, a criança resultante seria declarada legítima. E se o noivo não morresse, não poderia mudar de ideias. Não que um marquês pudesse pensar em tal coisa.

– Resumindo – disse Olivia com simplicidade. – Trabalho de cama seguido de trabalho escravo.

A mãe fechou o leque com força e pôs-se de pé de um salto.

– Olivia Mayfield Lytton, a sua vulgaridade incessante é inaceitável. E ainda mais inaceitável porque a menina é uma futura duquesa. Lembre-se de que todos os olhos estão sobre a sua pessoa! – deteve-se para tomar fôlego.

– Podemos voltar a um assunto mais importante? – perguntou Olivia erguendo de novo os pés com certa relutância. – Parece-me, senhora minha mãe, que quer instruir-me para seduzir Rupert, embora tenha negligenciado injustificadamente arranjar-me um professor para tal arte.

– Não posso suportar a sua vulgaridade! – vociferou Mrs. Lytton. Depois recordando-se que era mãe de uma futura duquesa, aclarou a voz e respirou fundo. – Não há necessidade para... tais esforços. A um homem... mesmo tratando-se de um cavalheiro, basta a impressão de que uma mulher está pronta para certas intimidades que... isto é, aproveitar-se-á da situação.

E dizendo isto, Mrs. Lytton abriu a porta de par em par sem sequer um aceno de cabeça a qualquer das filhas.

Olivia sentou-se de novo. A mãe nunca se mostrara muito interessada em demonstrações de afeto maternal, mas era dolorosamente claro para Olivia que em breve não teria mãe – apenas uma aia irritada e irritante. A ideia causou-lhe um aperto na garganta.

– Não quero que fiques pouco à vontade – disse Georgiana sentando-se também. – Mas creio que a mãe e o pai te vão fechar na cave com o BB.

– Podiam levar o leito matrimonial para o escritório. Só para terem a certeza de que Rupert compreendia o seu dever.

– Oh, compreende – retorquiu Georgiana. – Parece-me que os homens se apercebem naturalmente dessas coisas.

– Mas nunca me pareceu que o BB tivesse qualquer sensibilidade em relação a esse assunto, e você?

– Não – Georgiana refletiu por um momento. – Pelo menos, por enquanto. É ainda um cachorrinho.

– Não creio que ele amadureça até amanhã à noite.

Cachorrinho não seria uma má descrição de Rupert, pois apenas fizera os dezoito anos na semana anterior. Olivia sempre culparia o senhor seu pai por saltar para o casamento antes do duque, e por ter começado a procriar com tanto ímpeto.

Era cansativo ser uma mulher de vinte e três anos, prometida a um menino de dezoito. Principalmente um rapazola tão verde.

Durante a ceia leve, servida antes do baile, Rupert tagarelara acerca de como a glória do nome da família dependeria do seu desempenho no campo de batalha – embora todos os comensais soubessem que nunca lhe permitiriam chegar perto de um campo de batalha. Podia ir para a guerra, mas era o rebento de um duque. E mais, era o herdeiro do qual não havia sobresselente por isso tinha de ser resguardado. Seria talvez enviado para outro país. De fato, Olivia estava admirada pelo fato de o pai o ir deixar viajar para fora de Inglaterra.

– Terá de ser você a dar o primeiro passo – sugeriu Georgiana. – Começa como se quisesses continuar. Olivia afundou-se mais no divã. Evidentemente que sabia que mais tarde ou mais cedo teria de levar Rupert para a cama. Mas imaginara vagamente que o acontecimento teria lugar no escuro, onde ela e Rupert poderiam ignorar o fato de ele ser bastante mais baixo do que ela e muito mais magro. Não seria fácil se estivessem fechados na biblioteca.

– Há uma coisa boa na sua figura – continuou Georgiana. – Os homens gostam de mulheres com curvas.

– Ainda não reparei. Exceto talvez no caso de Melchett, o novo criado de ombros tão bonitos.

– Não devia devorar um criado com os olhos – censurou Georgiana com ar afetado.

– É ele que me devora com os olhos e não o contrário. Sou uma mera observadora. Porque acha que não nos casámos já? – perguntou Olivia metendo os pés debaixo de si. – Sabia que tínhamos de esperar que Rupert fizesse os dezoito anos, embora francamente pensasse que o poderíamos ter feito logo que ele tirou os cueiros. Ou, pelo menos, quando saiu do quarto das crianças. Afinal, ele nunca vai atingir a maturidade propriamente dita. Porquê um noivado e não um casamento?

– Suponho que o PP não queira casar.

– Porque não? Não quer dizer que eu seja um presente fantástico, mas ele não pode escapar aos desejos do pai. Nem creio que o queira. Não há um traço de revolta nesse rapaz.

– Nenhum homem deseja casar com a mulher escolhida pelo pai. Ou com qualquer outra mulher... lembra-te de Julieta.

– Julieta Fallesbury? Quem foi que o pai dela escolheu? Só me lembro que ela fugiu com um jardineiro a quem chamava Longfellow.

– Estou falando do Romeu e Julieta, parva!

– Shakespeare nunca escolheu nada de relevante para a minha vida – declarou Olivia. – Pelo menos até terem descoberto uma tragédia há muito perdida chamada Muito Barulho por Causa de Olivia e do Bobo. Rupert não é o Romeu. Nunca mostrou a mínima inclinação para dissolver o nosso noivado.

– Nesse caso, suponho que se sinta demasiado jovem para casar e que queira gozar a juventude. Ficaram as duas em silêncio por algum tempo tentando imaginar de que maneira Rupert gostaria de gozar a vida.

– É difícil, não é? – disse Olivia pouco depois. – Não consigo imaginar o PP entre os lençóis.

– Não deveria imaginar ninguém entre os lençóis – respondeu Georgiana em voz fraca.

– Poupa a sua enfadonha virtude até que haja alguém interessante no quarto – aconselhou-a Olivia de bom humor. – Acredita que Rupert saiba como deve agir?

– Talvez tenha esperanças de que, quando voltar de França, já seja bastante mais alto.

– Oh! – exclamou Olivia estremecendo. – Acredita que tenho pesadelos em que percorremos os dois a nave da Catedral de São Paulo. A mãe obriga-me a enfiar-me num vestido de noiva enfeitado com montes de tule de modo que pareço duas vezes mais alta e mais gorda do que o meu noivo. Rupert leva ao lado o seu ridículo cãozinho que só chamará a atenção por ser muito mais elegante do que eu.

– Eu trato de controlar a mãe em relação ao teu vestido de noiva – prometeu Georgiana. – Mas esse vestido é irrelevante nesta discussão em relação à sedução de amanhã.

– Irrelevante? Creio que deve tomar cuidado, Georgie. A sua linguagem está a ficar manchada por esse Espelho pestilento, mesmo quando está sozinha.

– Terá de pensar no amanhã como um trabalho semelhante ao de Hércules quando teve de limpar os estábulos.

– Preferia tirar toda a porcaria dos estábulos a seduzir um homem mais baixo do que eu e leve como a lanugem de um cardo.

– Oferece-lhe uma bebida – sugeriu Georgiana. – Lembras-te de como a ama Luddle tinha medo dos homens que bebiam álcool? Dizia que se transformavam em sátiros furiosos.

– Rupert, o Sátiro Furioso – disse Olivia pensativa. – Estou vendo a saltitar pela floresta sobre os seus pequenos cascos.

– Os cascos podem dar-lhe um ar distinto. Principalmente se tiver uma barbicha. Os sátiros têm sempre barbicha.

– Para Rupert seria um problema. Esta noite disse-lhe que seria interessante deixar crescer bigode, mas estava a mentir. Os sátiros não têm também chifres?

– Sim. E caudas.

– Uma cauda poderia... talvez... dar a Rupert um ar diabólico, como um daqueles libertinos que, segundo se diz, dormiram com metade da alta. Talvez amanhã à noite eu tente imaginá-lo assim embelezado.

– Vai dar-te vontade de rir – avisou Georgiana. – E não deve rir do teu marido durante os momentos íntimos porque ele pode desistir.

– Para começar, não é meu marido. Depois, ou temos de nos rir de Rupert ou desatar a chorar. Esta noite, enquanto estávamos dançando, perguntei-lhe o que pensava o pai dele acerca do tal plano de conseguir glória para a família. Parou no meio do salão de baile e declarou: O pato pode mergulhar as asas de uma águia, mas sem sucesso! E depois ergueu o braço com tanta força que bateu na cabeça de Lady Tunstall, fazendo-lhe cair a peruca.

– Eu vi – disse Georgiana. – Do lado da sala em que me encontrava, pareceu-me que causava uma confusão desnecessária. Chamou ainda mais a atenção.

– Rupert devolveu-lhe a peruca com o encantador comentário de que ela não parecia absolutamente nada ser careca e que nunca o teria adivinhado.

Georgiana acenou afirmativamente.

– Um momento emocionante para ela, sem dúvida. Mas não percebeu a história do pato.

– Ninguém percebeu. A vida com Rupert vai ser uma série de momentos emocionantes que requerem interpretação.

– O pato deve ser o duque 1– deduziu Georgiana ainda tentando resolver o enigma. – Talvez o mergulhar as asas da águia signifique cortar? O que acha? Pode implicar que Rupert se considera uma águia. Pessoalmente, considero-o mais parecido a um pato.

– Porque grasna? Estará certamente só quando se vê como uma águia. – Olivia levantou-se para tocar a campainha. – Penso que esteja em harmonia com a minha pessoa... eis uma expressão elegante para você, Georgie...penso que esteja em harmonia com a minha pessoa não me esquecer de que estou convidada para ter intimidades com um pato na biblioteca do meu pai amanhã à noite. E, se isso não descrever a minha relação com os nossos pais, não sei o que possa fazê-lo.

Georgiana soltou um ruído de desprezo. Georgiana abanou um dedo na direção da irmã.

– Ruído muito vulgarrr, minha senhora. Muito vulgarrr.

1Jogo de palavras entre duke (duque) e duck (pato). (N. da T.)


4

O Que Está Gravado no Coração de Um Homem (ou de Uma Mulher)

Na noite seguinte, Olivia instalou-se no sofá da Sala Amarela duas horas antes da chegada do duque de Canterwick e de seu filho Rupert. Mrs. Lytton corria por todos os lados, gritando as mais variadas ordens aos criados. Mr. Lytton era mais dado a um passeio agitado do que a correrias. Mexia tanto na gravata que acabou por amarrotá-la e teve de a trocar.

A verdade é que os pais de Olivia tinham-se preparado para aquele momento durante toda a vida de casados e mesmo assim não acreditavam na sorte que tinham. A filha lia-lhes a incredulidade nos olhos.

O duque estaria disposto a concretizar aquele casamento, baseado numa promessa de rapaz feita havia muito anos? Lá no fundo, não estavam convencidos.

– Dignidade, virtude, afabilidade e porte – murmurou-lhe a mãe pela terceira vez naquela noite. O pai foi mais direto.

– Por amor de Deus, fecha a boca.

Olivia acenou afirmativamente. Outra vez.

– Não está nem um pouco nervosa? – sussurrou a mãe sentando-se ao lado dela.

– Não – declarou Olivia.

– É tão... tão pouco natural! Quase diria que a menina não quer ser duquesa. – Tal ideia era inconcebível para Mrs. Lytton.

– Como vou comprometer-me formalmente com um homem cujo cérebro faz parecer enorme um grão de areia, tenho de desejar ser duquesa – declarou Olivia.

– O cérebro do marquês é irrelevante – ripostou Mrs. Lytton franzindo a testa, mas alisando-a logo a seguir com a ponta dos dedos não fosse ter surgido nela uma ruga. – A menina será um dia duquesa. Nunca pensei em cérebros quando me casei com o seu pai. Só a ideia é imprópria de uma dama.

– Tenho a certeza que o pai mostrava uma inteligência normal – disse Olivia. Estava sentada, muito quieta, de modo a não desmanchar os seus caracóis ridiculamente artificiais.

– Mister Lytton fez-me uma visita. Dançámos. Nunca me preocupei com a sua inteligência. Pensa demasiado, Olivia!

– O que poderá não ser um inconveniente, dado que a mulher que casar com Rupert terá de pensar por dois.

– Estou com palpitações – queixou-se Mrs. Lytton com um pequeno suspiro sufocado. – Até os meus dedos dos pés estão inquietos. E se o duque muda de ideias? A menina... a menina não é tudo o que poderia ser. Se ao menos deixasse de tentar ser espirituosa, Olivia. Garanto-lhe que as suas brincadeiras não têm graça nenhuma.

– Eu não tento, senhora minha mãe – disse Olivia já a sentir-se um pouco zangada, embora tivesse prometido a si própria não discutir. – Simplesmente nem sempre concordo consigo. Vejo as coisas de maneira diferente.

– Diga o que disser, a menina gosta de graças muito rústicas.

– Então eu e Rupert faremos um belo par – acrescentou Olivia controlando-se para não se irritar. – Eu digo graças rústicas ele não tem graça nenhuma.

– Está vendo o que quero dizer? – acusou-a a mãe. – É pouco natural gracejar num momento como este, em que um marquês vem comprometer-se formalmente consigo.

Olivia estava calma. Sabia perfeitamente que o pai de Rupert chegaria à hora combinada, trazendo os papéis necessários para realizar o noivado. A presença do noivo parecia irrelevante.

O duque de Canterwick era um homem teimoso que não tinha qualquer interesse em arranjar para o filho uma esposa compatível, procurava, isso sim, uma ama. Uma ama fértil. Não precisava ter dinheiro e o dote que os pais tinham conseguido arranjar – e que era mais que respeitável para uma jovem do seu nível – não tinha a mínima importância.

As ancas e a inteligência de Olivia haviam convencido o duque a cumprir a tal promessa, conforme dissera à jovem no dia em que esta fizera quinze anos. Os pais tinham dado uma festa para as filhas e, para surpresa de todos, Sua Graça comparecera. Rupert não o acompanhara, pois tinha apenas onze anos na altura e ainda usava calções.

– O meu filho é um rematado idiota – dissera o duque a Olivia, olhando-a com tamanha insistência que os seus olhos pareciam um pouco saídos.

Como a sua opinião coincidia com a do duque, Olivia julgou que o melhor seria nada dizer.

– E a menina sabe-o – disse ele com clara satisfação. – A menina é ideal, minha querida. Tem inteligência e tem ancas.

Olivia deve ter estremecido porque ele disse imediatamente:

– Ancas significam filhos. A minha mulher era magra como um caniço e veja o que me aconteceu. Há duas coisas que quero na minha nora, uma é a inteligência. Não me importo de lhe dizer que, se a menina não tivesse essas duas qualidades, quebrava a promessa que fiz ao seu pai e procurava a mulher ideal noutro lado. Mas a menina é a pessoa certa.

Olivia acenara afirmativamente e a partir daí nunca duvidara de que um dia se casaria com Rupert. Sua Graça, o duque de Canterwick, não era homem dado a pormenores técnicos, como os sentimentos de Rupert ou os dela, que pudessem interpor-se numa decisão sua.

À medida que os anos passavam e o duque não levava o filho ao altar, mesmo com os pais dela cada vez mais nervosos, Olivia não se preocupava. Rupert era um rematado idiota e nunca iria mudar.

E as suas ancas também não.

Quando uma carruagem com o brasão ducal foi por fim avistada a entrar em Clarges Street, o pai tomou posição junto do ombro direito de Olivia, enquanto a mãe se sentou ao lado dela, com o perfil voltado para a porta e ajeitando as saias.

O duque entrou na sala sem permitir que o mordomo o anunciasse. Afinal, o duque de Canterwick não era homem que permitisse que outro – a não ser um membro da realeza – o precedesse. O seu aspeto mostrava aquilo que era, um homem dado a considerar arrivistas insolentes noventa e nove por cento dos elementos da população mundial.

Uma pessoa particularmente observadora, como Olivia, poderia ter reparado que o nariz do duque entrou na sala antes dele. Tinha uma probóscide magnífica no rosto, um nariz parecido com o puxador de uma porta. Mas disfarçava bem. Olivia calculava que fosse pelo modo como erguia a cabeça e espetava o queixo.

Parecia que a sua presença era a única coisa que tornava visíveis as outras pessoas, embora até ela tinha de admitir que esta ideia era muito invulgarmente rebuscada da sua parte. Uma senhora não se rebaixa a ter ideias extravagantes, diria a senhora sua mãe citando, naturalmente, O Espelho das Manias.

Mas as ideias extravagantes não pareciam faltar na cabeça de Olivia, mesmo quando fez a reverência com graciosidade consumada e lançou ao duque um sorriso bem calibrado entre a admiração e o respeito.

Por outro lado, Rupert foi presenteado com um sorriso entre a familiaridade e o respeito (este último totalmente fingido).

– Cá está você! – disse Rupert com o seu habitual entusiasmo.

Olivia curvou-se numa nova reverência e estendeu a mão. Como só lhe chegava ao ombro, Rupert não precisou de se curvar muito para lhe beijar a luva. Infelizmente, tinha herdado o nariz do pai, mas não a sua personalidade dominadora; e esse seu nariz obrigava a que se atentasse ainda mais na sua boca, que estava invariavelmente aberta, com os dentes de baixo visíveis num brilhante beicinho.

Olivia nunca se sentia tão feliz por usar luvas como quando recebia as saudações de Rupert. Invariavelmente, deixava-lhe uma mancha molhada nas costas da mãe.

– Cá está você – repetiu, endireitando-se com um enorme sorriso no rosto. – Cá está você! Cá está você! – Rupert era dado a afirmações que não significavam absolutamente nada.

De fato, enquanto Olivia concordava com aquela afirmação – de fato ali estava ela! – pensava nas diferenças entre Rupert e o pai.

O duque de Canterwick era muito inteligente. E mais, era implacável. Na opinião entendida de Olivia, a maioria das pessoas deixava que os sentimentos interferissem no seu pensamento lógico. Mas Canterwick não.

Dado esse nível de pensamento tão claro, era de espantar que o filho fosse não só manifestamente diminuído no que dizia respeito ao pensamento, mas também dado a excessos emocionais. Rupert fazia com que as pessoas se sentissem pouco à vontade, pensando que ele ia começar a cantar ou, pior ainda, a chorar. Quem se sentasse ao lado dele num jantar precisaria de pensar duas vezes antes de se mencionar um funeral recente, nem que fosse o de uma velha tia-vovó.

– E cá está a Lucy – disse num tom ainda mais entusiasmado. Lucy era uma cadela muito pequenina e com ar desleixado que Rupert encontrara abandonada num beco, mais ou menos um ano antes.

Lucy olhou para Olivia com uma expressão de adoração, abanando a fina cauda, semelhante à de um rato, como um metrónomo preparado para um molto allegro.

– Hoje não há empadas de carne – murmurou Olivia inclinando-se para puxar uma das orelhas compridas da cadela.

Era Lucy quem parecia ter as melhores maneiras. Lambeu a mão de Olivia, apesar desse desapontamento e depois correu atrás de Rupert.

Este fazia reverência aos pais de Olivia, oferecendo a esta uma visão excelente do seu nariz em forma de batata e do seu lábio pendular. Ocorreu a Olivia, e já não pela primeira vez, que estava destinada a casar com o tipo de homem que toda a gente desejava que fosse invisível. Ou pelo menos silencioso. Engoliu em seco.

– Pronto – anunciou Sua Graça. – Nunca ficaria de consciência tranquila se não tivesse a certeza absoluta de que Miss Lytton desejava tanto como nós esta união com o meu filho. Uma promessa entre colegas da escola não deve obrigar uma jovem ao matrimônio.

– Já lhe tinha dito – disse Rupert com palpável satisfação. – Ninguém me podia obrigar a casar. A decisão é minha.

– Ninguém quer cortar as asas – disse o pai irritado.

Mr. e Mrs. Lytton olharam para o seu genro em perspectiva com expressões idênticas de susto e confusão.

– O meu filho quer dizer que está profundamente entusiasmado com a ideia de se casar com Miss Lytton assim que regressar do serviço militar – esclareceu o duque.

As pestanas de Mrs. Lytton bateram violentamente.

– Primeiro vou fazer com que todos se orgulhem do nosso nome – declarou Rupert. – Glória e essas coisas.

O duque aclarou a garganta, olhando para o filho com os olhos muito abertos.

– A questão neste momento não é a sua intenção de provar as suas proezas militares, meu filho, mas sim saber se Miss Lytton estará disposta a esperar pelo seu regresso. A pobre menina é sua prometida já há algum tempo.

O rosto de Rupert contorceu-se numa expressão de ansiedade quase cômica.

– Tenho de cobrir de glória o nome da família – disse ele a Olivia. – O que quero dizer é, sou o último da nossa linhagem. Os outros morreram todos lá naquela batalha das lamas.

– No pântano de Culloden – esclareceu o pai. – O levantamento jacobita. Loucos, todos eles.

– Compreendo perfeitamente – disse Olivia a Rupert, resistindo ao impulso de retirar a sua mão da dele.

Ele agarrava-se a ela com força.

– Caso-me consigo assim que voltar. Preciso de trazer glória, compreende.

– Claro – conseguiu dizer Olivia. – Glória.

– Não há necessidade de se preocupar em relação à minha filha – disse Mrs. Lytton a Rupert. – Esperará por si sem sombra de dúvida. Durante meses, não, anos.

Olivia pensou que seria demasiado, mas claro que não era dona do tempo. Se os pais conseguissem o que queriam, ela teria de esperar talvez cinco anos até Rupert voltar descansadamente a Inglaterra coroado de glória ou, o mais certo, de ignomínia. A ideia de Rupert numa guerra era distintamente aterrorizadora: homens como ele nem deveriam tocar num canivete, quanto mais numa arma tão mortífera como a espada.

– Pronto, pronto, minha querida senhora – disse o duque a Mrs. Lytton. – Uma mãe não poderá sondar as profundezas do coração da filha.

Mrs. Lytton abriu a boca para discordar desta afirmação; não havia dúvidas de que julgava ter sondado as profundezas do coração de Olivia e apenas lá ter encontrado uma placa gravada com as palavras Futura Duquesa de Canterwick.

Mas o duque ergueu a mão, educado e firme. Depois voltou-se para Olivia que se curvou numa nova reverência bem calibrada.

– Falarei com Miss Lytton na vossa biblioteca – anunciou Sua Graça. – Entretanto, Rupert – só faltou estalar os dedos –, informe Mister Lytton acerca da situação em França. Meu caro, o senhor marquês tem estudado a situação com algum afinco e tenho a certeza de que poderá esclarecê-lo em relação aos graves problemas causados por uma derrota do outro lado do canal da Mancha.

Saíram do aposento na corrente de tagarelice de Rupert. Olivia permitiu-se a sentar-se quando chegaram à biblioteca: o duque manteve-se na sua postura habitual, pés afastados, mãos atrás das costas como se se encontrasse na proa de um navio. Pensando bem, refletiu Olivia, teria dado um ótimo capitão. O nariz seria útil para farejar os ventos de tempestade ou as provisões podres no porão.

– Para o caso de estar preocupada, minha querida, Rupert não se aproximará da costa francesa – anunciou Sua Graça.

Olivia acenou afirmativamente.

– Folgo muito em sabê-lo.

– Ficará em Portugal.

– Portugal? – repetiu Olivia, pensando que tivera razão. Rupert seria mantido à distância de um país da batalha.

– Os franceses combatem em Espanha, a pouca distância – disse o duque. – Mas Rupert atracará em Portugal e ficará aí. Quer estar ao lado de Wellington, mas simplesmente não o posso permitir.

Olivia inclinou de novo a cabeça.

O duque equilibrava-se ora num pé ora noutro, a primeira vez que Olivia o via mostrar a mais leve sugestão de incerteza. Depois prosseguiu.

– É um rapaz dócil, como virá a descobrir. Faz geralmente o que lhe dizem, sem grandes problemas. Aprendeu a... Até já sabe dançar. Não a quadrilha, claro, mas quase todas as outras danças. Só que quando enfia uma ideia na cabeça, não a tira de lá. E o problema é este: convenceu-se de que não casará sem obter a glória militar.

Olivia manteve-se perfeitamente impassível. Mas o duque leu-lhe no rosto algo de mais subtil.

– Espantoso, não é verdade? Culpo os seus preceptores por terem passado tanto tempo a martelar na cabeça a história da família. O primeiro duque comandou quinhentos homens numa batalha... e a melhor maneira de descrever esse envolvimento será como uma derrota gloriosa e épica. Mas claro que entre nós damos-lhe um brilho diferente. Ou, pelo menos, foi o que fizeram esses tutores idiotas. Rupert quer conduzir um bando de homens e voltar para casa coberto de glória.

Olivia percebeu subitamente de um sentimento de piedade pelo duque, coisa de que sem dúvida alguma se arrependeria.

– Talvez possa comandar uma pequena escaramuça – sugeriu ela

– Foi precisamente o que pensei – disse o duque com um suspiro. – Foram precisa algumas manobras, mas vai comandar uma companhia de cem homens.

– E o que fará com eles?

– Vai conduzi-los à batalha – disse o duque. – Em Portugal, a uma boa distância dos soldados que possam sentir-se inclinados a ripostar.

– Ah!

– Claro que fico preocupado sempre que ele sai de debaixo da minha vista.

Olivia também se preocuparia se sentisse o mais leve afeto por Rupert. O rapaz era o perfeito tipo do suicida. Oh, claro que não teria tal coisa na ideia. Mas seria capaz de se passear por Whitefriars com uma caixa de rapé coberta de pedras preciosas e um alfinete de gravata com um diamante. Suicida.

O duque bateu com a bengala nas lajes junto à lareira, como se quisesse extrair uma delas.

– A verdade é que estou preocupado com a possibilidade de Rupert não aceitar o casamento se eu o obrigar a subir ao altar.

Olivia acenou mais uma vez com a cabeça.

O duque lançou-lhe um olhar fugaz e deu mais uma boa pancada na laje por baixo dos seus pés.

– Poderia levá-lo à igreja, claro, mas não me surpreenderia se ele dissesse não no momento crucial, mesmo que eu enchesse a Catedral de São Paulo com testemunhas. Explicaria alegremente a razão pela qual se recusava a pronunciar os votos e ficaria certamente muito satisfeito por contar a toda a gente que tencionava casar-se consigo depois de ter obtido... – a voz do duque esmoreceu.

– A glória militar – Olivia terminou a frase por ele. Sentia muita pena do duque. Ninguém merecia ser humilhado daquela forma.

– Precisamente – soou outra pancada, juntamente com o inegável som da madeira lascada.

– Não tenho dúvidas de que o marquês voltará de Portugal satisfeito com as suas proezas – disse Olivia. E era verdade. Desde que alguém acompanhasse Rupert para poder descrever a sua marcha por uma estrada rural transformando-a numa valente subjugação de um inimigo (invisível), o rapaz regressaria contente a casa.

– Tenho a certeza de que a menina tem razão. – O duque encostou a bengala rachada à lareira e sentou-se diante de Olivia. – O que tenho a pedir-lhe é uma coisa que um cavalheiro nunca deveria solicitar a uma jovem dama.

– Alguma coisa que tenha a ver com o direito comum? – perguntou Olivia.

O duque franziu a testa.

– O direito comum? O que tem isso a ver?

– A lei antiga e a nova lei? Os meus pais disseram qualquer coisa acerca de leis mais antigas e mais modernas em relação aos noivados...

– A lei inglesa é a lei inglesa e, tanto quanto sei, o direito comum não tem nada a ver com um noivado – o duque lançou-lhe um olhar claro e penetrante. – As mulheres não se deveriam imiscuir nos assuntos da lei. Embora deva ter alguns conhecimentos, porque só Deus sabe se não terá de impedir que Rupert tome decisões sozinho. Mas eu ensinar-lhe-ei tudo isso. Assim que se casarem, a menina irá lá para casa e começarei a instruí-la.

Foi para Olivia um enorme triunfo não ter deixado escapar um sorriso, embora o seu coração batesse acelerado e uma voz em pânico lhe gritasse na cabeça: Instruí-la? Mais instrução?

Sua Graça não reparou no silêncio da jovem.

– Vou ter de lhe ensinar a si como ser um duque, já que Rupert não está à altura do cargo. Mas a menina é suficientemente inteligente. Percebi isso quando fez quinze anos.

Olivia engoliu em seco e acenou afirmativamente.

– Compreendo – a voz soou muito fraca, mas de qualquer forma o duque nem a escutava.

– Talvez não saiba, mas o nosso título vem de um antigo ducado escocês – disse ainda sem a olhar nos olhos. Estendeu a mão e agarrou na bengala rachada para a colocar no colo, examinando-a como se pensasse se valeria ou não a pena arranjá-la.

– Estou ao fato disso – disse Olivia.

Era óbvio que o duque não tinha ideia da extensão dos seus conhecimentos em relação a Canterwick e à sua história. Seria mesmo capaz de lhe dizer o nome do primogénito do seu primo em quinto grau. E o nome do sétimo filho desse primo, o que ficara famoso por ter nascido na sala da Estalagem Cabeça de Javali depois de a mãe ter bebido cerveja a mais.

– Devido às nossas raízes ancestrais na Escócia, pode dar-se o caso de se aplicarem as leis escocesas.

– Ah!

O duque fez pressão com a bengala sobre os joelhos e esta partiu-se em duas. Não ergueu os olhos.

– Se a menina concebesse agora um filho, antes de Rupert partir para Portugal, essa criança seria legítima à luz da lei escocesa. Porém quero ser muito claro: a menina não se tornaria marquesa senão quando o meu filho regressasse e casasse consigo. Certamente diriam coisas pouco elogiosas a seu respeito, como diriam a respeito de qualquer mulher de esperanças sem o benéfico do matrimônio, embora, evidentemente, a menina ficasse imediatamente sob a minha proteção.

– Sim – murmurou Olivia.

– E eu não daria a Rupert qualquer possibilidade de se recusar a cumprir o seu dever. Se esse feliz acaso ocorresse, enviaria imediatamente os papéis de um casamento por procuração para serem assinados em Portugal. Desde que eles não se extraviassem... e não vejo razão para que tal acontecesse... a menina seria marquesa antes de a criança nascer – fez uma pausa. – Na eventualidade de acontecer alguma coisa a Rupert antes de os papéis do casamento por procuração estarem assinados, a menina teria a satisfação de ser mãe do futuro duque.

Olivia sentiu um terrível impulso de citar uma passagem do Livro dos Elogios: Nada é mais precioso do que a honra de uma virgem! Mas manteve-se em silêncio, sem se atrever a comentar que a criança poderia ser do sexo feminino, possibilidade que parecia não ter ocorrido ao duque.

– Quer daí resulte ou não uma criança, far-lhe-ei uma doação de bens vitalícios e uma pequena propriedade ficará em seu nome – prosseguiu Canterwick.

– Compreendo – respondeu Olivia. Se tinha compreendido bem, o duque acabara de lhe oferecer um terreno em troca da sua virgindade fora do casamento. Era uma ideia espantosa.

– Encarreguei Lady Cecily Bumtrinket de a acompanhar ao campo. Não poderá ficar em Canterwick Manor, claro, até que a procuração seja assinada ou o meu filho regresse para casar consigo. Não seria adequado.

– Lady Cecily Bumtrinket? – repetiu Olivia. – E eu não poderia ficar em casa até que um desses acontecimentos ocorresse?

– Não seria apropriado ficar aqui mais tempo – o duque olhou em redor do quarto com desdenhosa indiferença. – A menina e a sua irmã ficarão na propriedade do duque de Sconce até podermos resolver as pequenas formalidades. A duquesa viúva planeava convidar uma jovem para o campo de modo a certificar-se da sua adequação para a posição de duquesa. Convenci-a de que a sua irmã seria também uma candidata apropriada. O convite é um tributo aos seus pais, como informarei em breve a senhora sua mãe.

– Georgiana sentir-se-á grata pela confiança nela depositada. – murmurou Olivia.

– E assim deverá ser – declarou o duque. – Tomei a liberdade de informar Madame Claricilla de Bond Street que deverá vesti-la a si e à sua irmã para a nova temporada dentro de duas semanas. Deve aprender, minha querida, que nós os duques somos discretos. Podemos nos cruzar como os cães e os cavalos, mas preferimos acompanhar uns com os outros.

Olivia sentia a cabeça num turbilhão. Aparentemente fazia parte de uma experiência de cruzamento. E deveria ficar em casa da duquesa viúva de Sconce? A própria duquesa que escrevera aquele horrível volume chamado O Espelho dos Elogios?

O duque levantou-se e, por fim, olhou de frente para ela. Tinha sobrancelhas farfalhudas e intimidadoras combinadas com o enorme bico que era o nariz, mas, mesmo assim, Olivia leu-lhe bondade e desespero no olhar.

– Não se preocupe – disse ela impulsiva, pondo-se também de pé. – Rupert e eu daremos o nosso melhor.

– A culpa não é sua, sabe – referiu o duque. – Quando nasceu ele não respirava e os médicos julgam que isso lhe tenha afetado o cérebro. Os seus... os seus filhos não vão sair ao pobre rapaz.

Olivia avançou e tomou a mão do duque. Pela primeira vez nos seus muitos encontros sentiu por ele uma verdadeira afeição. De todas as pessoas e coisas ligadas ao ducado de Canterwick, o sogro seria uma das poucas de que não desconfiava.

– Daremos o nosso melhor – repetiu ela. – E nada acontecerá a Rupert em Portugal. É muita bondade sua deixá-lo seguir o sonho. Tenho a certeza de que se sentirá feliz por ter viajado para fora de Inglaterra.

O canto da boca do duque estremeceu.

– Sei que a mãe dele teria gostado. Teria dito que eu teria de permitir que ele crescesse para ser um homem por muito que eu desejasse tê-lo agarrado a mim.

Olivia pestanejou. Sabia muito pouco acerca da duquesa; os pais sempre lhe tinham dito que ela era doente e vivia retirada.

– Elizabeth quase morreu no parto – disse o duque pesaroso. – Sobreviveu, mas nunca mas foi a mesma. Não consegue comer sozinha, não me reconhece. Vive no campo.

A sua mulher e o seu filho ficaram afetados pelo mesmo acontecimento? – exclamou Olivia antes de se poder conter.

– Sim – disse o duque. – Foi terrível. Mas Rupert tem bom coração. É uma alma bondosa e alegre e, se eu não pensar em como ele poderia ser, nos damos os dois muito bem. E, minha querida, falei na sua inteligência e nas suas ancas, mas o mais importante é que a menina sempre foi boa para ele. Não é fácil. Ele tem uma certa tendência para falar atabalhoadamente, mas a menina nunca fez troça.

Olivia apertou mais a mão do duque.

– Prometo ser boa para ele – afirmou. E, naquele momento, foi como se pronunciasse os votos matrimoniais.

O duque esboçou mais uma vez o seu estranho sorriso.

– Vou mandá-lo ter consigo.

E desapareceu.


5

Acontecimentos Que Dispensam Apresentação

Habitualmente, Rupert entrava em qualquer aposento com uma alegre algaraviada de saudações; tendo sido ensinado a cumprimentar adequadamente, adorava observar as devidas regras. Mas, naquele momento, entrou na biblioteca sem pronunciar palavra, fixando Olivia com os olhos para logo os afastar.

Olivia deixou correr uma sincera enfiada de silenciosas injúrias dirigidas aos pais. Esquecera-se – mais uma vez – de ter em conta o que pensaria Rupert de tudo aquilo. Pela expressão dele, ela e Georgiana haviam acertado ao concluírem que Rupert não tinha sido aconselhado acerca de como deveria resolver a situação que agora enfrentava.

Nem ela, afinal.

Mas também havia muito tempo que as pessoas passavam por aquilo. Felizmente, o pai dela guardava uma garrafa de brande na biblioteca, de modo que Olivia entregou a Rupert um copo cheio e serviu-se de outro para si, mandando ao diabo o fato de a mãe considerar o álcool impróprio de uma senhora. Ainda sem uma palavra, sentaram-se no sofá diante da lareira.

– Deixei a Lucy na sala – disse ele de repente. – Não me pareceu certo. Olivia acenou afirmativamente.

– Lá fica mais cómoda.

– Não fica muito confortável – declarou ele. – O meu pai não gosta dela. Diz que só serve para caçar ratos e mais nada. Mas ela não quer caçar ratos. Nem sabe como isso se faz. E os seus pais também não gostam dela.

– Os meus pais nunca permitiram que tivéssemos qualquer animal de estimação – respondeu Olivia.

– Mas a menina gosta de cães – afirmou Rupert.

– Gosto.

– Eu disse que fazia por causa disso.

Olivia pestanejou.

– O quê?

– Casar.

Pelo visto, Olivia subestimara a força de vontade de Rupert; não se apercebera de que ele tivera uma palavra dizendo na escolha da sua duquesa. Nem fazia a mínima ideia de que as empadas de carne que guardara para Lucy tinham ajudado na sua audição para o papel.

Deveria tê-las comido ela.

– Não é que não goste de si – disse Rupert com toda a franqueza. – Gosto. Mas a menina também gosta da Lucy, não é verdade?

– É uma cadela amorosa. – Agora entendiam-se. Ela e Rupert haviam passado muitas noites falando de Lucy.

Mas Rupert parecia ter esgotado esse assunto e com o seu silêncio o ambiente tornou-se de novo tenso e nervoso.

– Não precisamos de o fazer, sabe – disse ela algum tempo depois.

– Eu sim – disse ele, engolindo um grande gole de brande e estremecendo. – Disse ao meu pai que o faria. Ser como um homem. Fazer... ser como um homem – parecia confuso.

Olivia bebeu um pouco e pensou no quanto gostaria de lançar os pais e o duque da ponte de Battersea.

– E se não o fizéssemos e disséssemos que tínhamos feito? – sugeriu.

Ele voltou-se para a olhar pela primeira vez, com os olhos muito redondos.

– Mentir?

– Seria mais uma brincadeira. Ele abanou a cabeça.

– Eu não minto. Mentir não é coisa que um cavalheiro faça. É melhor cumprir as minhas responsabilidades – tomou um novo gole e estremeceu.

Rupert era admirável à sua maneira, pensou Olivia, apercebendo-se pela primeira vez que ele teria dado um duque excepcional se estivesse na posse de todas as suas faculdades. Tinha a força de vontade do pai, com mais uma camada de honra que evidentemente faltava ao pai.

– Compreendo – disse ela.

– Não há ocasião como o presente – sugeriu Rupert.

– Quer que apague os candeeiros?

– E como veria eu o que estava fazendo?

Boa pergunta.

– Claro – disse Olivia apressadamente.

Rupert levantou-se e pousou o copo em cima da mesa.

– Sei como cair para a frente. Caio para a frente, a menina cai para trás. – Parecia querer descansá-la a ela e a ele ao mesmo tempo. – É fácil, dizem todos.

– Que maravilha – disse Olivia. Depois de um segundo de hesitação, pôs-se de pé e depois retirou-se para trás do sofá para retirar as suas ceroulas. Depois deu a volta e chegou-se à lareira, perguntando a si própria se deveria tirar os sapatos.

Um rápido olhar a Rupert mostrou que ele não pensava fazê-lo. Tinha as calças nos tornozelos. Olivia bebeu, desta vez, um gole maior de brande.

– Talvez seja melhor terminar o seu copo – sugeriu Rupert.

Ela engoliu os restos de brande e olhou de novo para o noivo. Este tinha o rosto vermelho e os olhos um pouco vítreos. Pelo visto, tinha enchido de novo o copo enquanto ela estivera de costas.

– Ora pronto! – disse ele em voz fraca e bebeu tudo também.

Olivia respirou fundo e posou o copo. Depois deitou-se no sofá, puxou as saias até à cintura e preparou-se.

– Pronto – disse Rupert. – Acha que ponha um joelho aqui, junto à sua anca? Está aqui uma almofada. Durante algum tempo debateram-se com a colocação das pernas até que ficaram mais ou menos em posição.

– Quer mais um pouco de brande? – perguntou Rupert. – O meu pai diz que é doloroso para uma mulher.

– Não, obrigada – disse Olivia. – Infelizmente, o brande que tomara subira-lhe diretamente à cabeça e ela sentiu um enorme desejo de soltar uma risadinha. Imaginava o que diria a mãe a tudo aquilo.

– Se lhe apetecer chorar, trouxe três lenços a mais. – Rupert não mostrava uma pressa especial em tratar do assunto.

– Obrigada – agradeceu de novo Olivia, abafando mais risadinhas. – Nunca choro.

– A sério? Eu choro sempre – disse Rupert, pestanejando.

– Lembro-me de como chorou naquela festa no jardim quando o pardal morreu e caiu da árvore. Rupert franziu o rosto ao recordar-se.

– Era apenas um pássaro – acrescentou ela rapidamente.

– Esperto, luminoso... selvagem.

– O pardal?

Rupert parecia ter esquecido completamente o que deveriam estar fazendo, embora se encontrasse de joelhos segurando o pénis com uma mão. Já não tinha os olhos vítreos, mas concentrados.

– Escrevi um poema – contou.

Olivia não estava completamente certa, mas quase de certeza que o pénis dele não seria eficaz no seu estado atual.

– Que espécie de poema? – perguntou ela, encostando de novo a cabeça à almofada. A vida com Rupert teria o seu próprio ritmo. Não valeria a pena apressá-lo.

– Esperto, luminoso – repetiu ele. – Um pássaro cai junto a nós, a escuridão amontoa-se nas árvores.

Olivia ergueu a cabeça.

– É esse o poema completo?

Ele acenou afirmativamente com os olhos nos dela.

– É adorável, Rupert – elogiou ela com sinceridade. Pela primeira vez na sua vida era verdade o que dizia ao noivo. – A escuridão amontoa-se. Adoro.

– Nas árvores – disse ele acenando vigorosamente com a cabeça. – Chorei pelo pássaro. Porque é que a menina nunca chora?

Desde que conhecera Rupert, Olivia nunca mais chorara. Nem uma única vez. Tinha dez anos; ele tinha cinco. Fora na manhã em que tinham vindo por terra os seus sonhos de um príncipe de contos de fadas.

Embora ele tivesse apenas cinco anos (e ela apenas dez), percebeu que alguma coisa de grave se passava no cérebro dele.

Mas a mãe de Olivia zangara-se quando ela dissera tal coisa.

– O marquês pode não ser tão rápido como a menina – afirmara Mrs. Lytton. – Mas isso é como esperar que um duque saiba fazer arranjos de flores. A menina é demasiado esperta para o que lhe convém.

– Mas... – argumentara Olivia, sentindo-se desesperada.

– A menina é a jovem com mais sorte neste mundo – declarara a mãe. E a perfeita convicção que Olivia lhe lera no rosto calara as palavras que desejara dizer.

Mesmo depois de todos aqueles anos, depois de ser evidente que fora uma felicidade Rupert ter conseguido falar bem e ainda mais ter aprendido a ler e escrevendo, a mãe nunca alterara a sua opinião.

– Talvez devesse começar – sugeriu Olivia a Rupert e fez um gesto na direção da zona interessada.

– Certo – respondeu Rupert, concordando. – Vamos a isso. – Olivia viu-o balançar um pouco para trás e para a frente. – Parece que bebi um pouco de brande a mais – resmungou, mas esforçou-se por chegar ao local apropriado.

Dobrou-se a meio. Rupert pestanejou.

– Não está a dar resultado. Esta parte deveria ser fácil.

Olivia ergueu-se apoiada nos cotovelos. Ele parecia segurar um talo de aipo já murcho. Inclinado e, embora não se devesse dizer em voz alta, flácido.

– Vamos experimentar outra vez? – sugeriu ela.

– Suponho que seja este o lugar exato?

– Sim – disse ela com firmeza.

Rupert experimentou mais uma vez, resmungando para consigo. Olivia deixou-o prosseguir, só se apercebendo aos poucos de que ele murmurava Dentro, dentro, dentro. Mais uma vez sentiu vontade de soltar umas risadinhas, por isso mordeu o lábio com força.

– Ouvi dizer que isto nunca funciona à primeira tentativa – disse ela, algum tempo depois. Rupert nem olhou para ela. Agarrou desesperado nas suas partes íntimas com pouco à vontade.

– Isto é fácil – repetiu.

– Creio que precisa de ficar rígido para que possa funcionar – aventurou-se Olivia a sugerir. Ele pestanejou.

– A menina percebe do assunto? – Não parecia estar a censurá-la, apenas curioso.

– É só um tiro no escuro – replicou Olivia. De novo tentava controlar as risadas, pois lembrara-se dos patos.

– Pensei que o mais importante fosse o tamanho – disse Rupert.

– Pois. Creio que já ouvi dizer isso – admitiu Olivia, cautelosa.

Rupert abanou-se.

– Isto é grande. Sei que é.

– Ótimo!

– Mas não funciona. – Deixou cair aquilo e olhou para ela com olhos tristes. – Mais uma coisa que não funciona.

Olivia soltou uma gargalhada e conseguiu sentar-se.

– Sabe que nunca mente, não é verdade, Rupert?

Ele acenou afirmativamente.

– Vamos nos deitar os dois aqui no sofá – bateu na almofada a seu lado. – Depois, dizemos-lhes isso mesmo.

– Quer dizer... não dizemos?

– Não será uma falsidade.

– Não.

– Vamos dizer-lhes que nos deitámos juntos no sofá.

– Nos deitamos juntos – repetiu. – Preferia... eu... Não diz ao meu pai? Nem aos outros? Por favor? Olivia pegou-lhe na mão – na outra mão.

– Nunca o direi, Rupert. Nunca.

Esboçou um sorriso rápido e luminoso.

Muito mais tarde, nessa mesma noite, Olivia, zangada, falou com a irmã.

– Os nossos pais exigiram que eu e Rupert nos ligássemos sem os votos matrimoniais e nós acedemos como se fôssemos um casal de cães para manter a raça.

– Não há necessidade de colocares as coisas nesses termos. Contudo – acrescentou Georgiana com um dos seus raros sorrisos –, a partir desta noite, as perspectivas de Rupert como cão de criação ficam até certo ponto em causa.

– Se sorrisses assim para os homens, Georgie, terias mais propostas de casamento do que já alguma vez imaginaste.

– Mas eu sorrio – protestou Georgiana.

– Só que o teu sorriso muitas vezes parece que esta pensar que eles estão abaixo do nível de um duque – declarou Olivia. – Podia experimentar sorrir-lhes como se eles fossem duques.

A irmã acenou afirmativamente.

– Estou percebendo. De qualquer forma, ninguém deveria comparar o futuro marico com um cão de criação.

– Foi assim que Sua Graça o caracterizou. Depois disso, informou-me que me recompensaria pelo trabalho desta noite com uma doação de bens e propriedades. Uma propriedade pequena, creio que foi o que ele disse. Não faço ideia de até que ponto uma prostituta pode enriquecer depois de apenas uma ou duas horas de deboche.

– Olivia! – mas o protesto da irmã não teve qualquer força.

– Vai beneficiar da minha ação como prostituta, minha querida. Ele disse a Madame Claricilla que nos vestisse a ambas de acordo com a minha nova posição.

Georgiana ergueu imediatamente as sobrancelhas.

– Os frutos do pecado. Garanto-te que começo a ter uma visão inteiramente nova das mulheres de vida fácil. Você e eu vamos conseguir um guarda-roupa completamente novo e eu recuso-me a ter um vestido branco que seja ou uma fita pelas costas abaixo.

– Não é uma prostituta – protestou Georgiana. – Obedecias aos desejos dos nossos pais.

– Em relação a isso, dás-me licença que diga que me ofende o fato de a nossa mãe ter passado anos a insistir que a vida de uma dama girava à volta da proteção da sua castidade, para imediatamente esquecer esses princípio no momento em que pensou que eu poderia ter um filho de Rupert?

Georgiana mordeu o lábio por um momento.

– Claro que tem razão – disse logo a seguir. – Os nossos pais mostram um excesso de entusiasmo por este casamento e sempre o fizeram.

– Ainda por cima sendo o pobre Rupert tão pouco esperto, sim. – Olivia deitou-se de novo de costas. Sentia-se exausta e profundamente triste; os efeitos do brande tinham-na desgastado. Apercebera-se com dez anos que a sua vida de casada seria completamente diferente da das outras mulheres. Mas nunca imaginara como seria aterradora.

Sentia-se desesperada só com a ideia de tomar o pequeno-almoço com Rupert, quanto mais passar anos e anos a fazê-lo.

– Mesmo que o marquês tivesse um cérebro distinto, os nossos pais nunca deveriam ter colaborado num encontro tão desagradável como o que descreveste – afirmou Georgiana.

– Não há dúvida de que o cérebro dele é distinto – resmungou Olivia. – Há poucos assim. Mas, de uma certa maneira fragmentada, a sua poesia é adorável.

– Hesito em perguntar – disse Georgiana –, mas porque ficou a mãe tão irritada quando o duque e o foram embora? Ouvi mesmo a voz dela no meu quarto, por isso hesitei algum tempo em descer. Contudo, parece-me que tudo se passou segundo os desejos dela; os papéis do noivado foram assinados e, tanto quanto ela possa saber, provavelmente tem dentro de você um futuro duque. Já para não falar na sua fervorosa reação à possibilidade de eu me tornar duquesa.

– Oh! – exclamou Olivia. – Foi a Lucy. – Sorriu só de pensar.

– Lucy?

– A cadela de Rupert, Lucy. Certamente sabe quem seja.

– Quem não sabe? Não que seja o único cão da alta... o caniche de Lorde Filibert ganhou fama pelos seus laços verdes... mas a Lucy é a única que tem as orelhas mordidas pelas pulgas.

– É muito má – disse Olivia a rir. – Creio que a dentada que levou na cauda foi mais prejudicial à sua beleza.

– Quem feio ama bonito lhe parece, mas só um cego poderia elogiar a beleza de Lucy.

– Tem uns olhinhos doces – protestou Olivia. – E é amoroso o modo como as orelhas dela ficam ao contrário sempre que corre.

– Eis uma característica que nunca considerei essencial para a beleza de um cão.

– A mãe também não a admira. Ficou até irritada com a ideia de que alguém importante me veja acompanhada pela cadela.

Georgiana ergueu uma sobrancelha.

– A Lucy não vai para Portugal? Pensei que Rupert nunca se separava dela.

– Rupert pensa que a viagem pode ser perigosa, por isso pediu-me que tomasse conta dela durante a sua ausência.

– A maior parte das pessoas diz isso mesmo dos campos de batalha. Então onde está Lucy? Tenho a certeza de que não estava na sala quando lá fui ter contigo. Estará nos estábulos?

– Na cozinha, a tomar banho – referiu Olivia. – Rupert exigiu que ela ficasse sempre comigo. Claro que a nossa mãe foi amorosa com ele, mas explodiu assim que a porta se fechou. Considera Lucy uma companhia pouco apropriada para uma futura duquesa. O que faz dela uma companhia perfeita para a minha pessoa, tem de admitir.

Lucy não tem um ar aristocrático. É a cauda de rato, penso eu.

– Ou o corpo comprido. Parece uma salsicha com pernas. Mas há de cheirar como uma aristocrata. A mãe mandou-a para a cozinha para tomar banho em soro de leite.

Georgiana revirou os olhos.

– Lucy pode gostar do soro de leite, mas a ideia é ridícula.

– A mãe também sugeriu que uns laços ou qualquer espécie de embelezamento podem torná-la mais adequada a ser companheira de uma dama. – Durante todo aquele dia, tão longo e horrível, a única nota alegre fora a expressão do rosto da mãe quando Rupert, com uma lágrima a rolar pelo rosto, entregara a Olívia a trela de Lucy.

– Laços nas orelhas de Lucy? Ou na cauda?... não ficam nada bem – declarou Georgiana com firmeza.

– Sabe o que preocupa mais a nossa mãe? Creio que receia que considerem Lucy uma rafeira e que digam o mesmo de mim. Laços para Lucy e fitas para mim, esta perceber?

– Pode deixar-te de pretensões. A mãe pode sentir-se desesperada contigo, Olivia, mas você e eu sabemos perfeitamente que se te apetecer mostrar-te como uma duquesa toda emproada, consegue fazê-lo melhor que ninguém.

– Nem sempre é possível disfarçar a verdade – respondeu Olivia. – Olha para o pobre Rupert e para o seu talo de aipo, por exemplo.

– Julgo que a sua experiência na biblioteca foi invulgar. Todas as conversas que tive com mulheres casadas me deram a ideia de que os homens nada mais precisavam senão de uma mulher e um pouquinho de privacidade.

– Foi evidente que Rupert precisava mais do que de uma mulher cativa e um sofá. Mas não tenho a certeza de que a sua experiência diga muito acerca do resto da humanidade.

– Que disseste depois de saíres da sala?

– Nada. Prometi a Rupert que nunca diria a ninguém... mas você não contas. O pai dele deveria saber que o pato não estaria à altura da ocasião... por assim dizer.

– Rupert obedeceu-te?

– Em todos os pormenores – confirmou Olivia com uma centelha de triunfo. – Tinha as pernas pouco firmes... Creio que, de futuro, deveria contentar-se com cidra. Mas conseguiu fazer uma reverência sem cair e depois partiu sem sequer revelar o fato de os seus dois órgãos mais importantes não funcionarem. Georgiana suspirou.

– Não deveria dizer tais coisas.

– Desculpa, saiu-me sem querer.

– Gracinhas como essas nunca deveriam sair da boca de uma dama.

– Se duvidas da minha correção, não fazes nada que a mãe não tenha já feito há muito – disse Olivia.

– Mas basta de falar dos defeitos do meu caráter. Em toda aquela entusiasmada conversa acerca das tuas aptidões para o posto de duquesa de Sconce, a mãe mencionou Lady Cecily Bumtrinket?

– Que nome extraordinário. Não.

– Bom, conforme a mãe te disse, a duquesa de Sconce, autora do Espelho dos Palonços, parece ter concordado com a sugestão de que seria um partido adequado para o filho. E Lady Cecily, que calculo que seja a irmã da duquesa viúva, foi recrutada para te apresentar a Sua Graça. O único senão desta grande felicidade é termos de nos encontrar com o grande árbitro da correção, a duquesa do decoro, a...

– Basta!

– Desculpa – disse Olivia franzindo o nariz. – Falo de mais quando me sinto infeliz. Sei que é um defeito, mas não suporto chorar, Georgie. Prefiro rir.

– Eu choraria – retorquiu Georgiana recuando e puxando delicadamente uma madeixa do cabelo da irmã. – Só a ideia de ver Rupert baixar as calças dá-me vontade de chorar.

– Foi pior do que eu imaginava. Mas, ao mesmo tempo, Rupert é uma boa alma, pobrezinho. Ele... há nele qualquer coisa de muito doce.

– Realmente é maravilhoso que seja capaz de respeitar os méritos dele! – admitiu Georgiana, com mais entusiasmo do que seria necessário.

Olivia lançou-lhe um olhar sardónico.

– De qualquer forma – acrescentou Georgiana apressadamente –, suspeito que tais intimidades sejam sempre embaraçosas. A maioria das duquesas viúvas fala da experiência nos termos mais desdenhosos.

– Mas pensa em Juliet Fallesbury e no seu Longfellow – comentou Olivia.

– Obviamente não fugiu com um jardineiro devido às suas capacidades hortícolas. Seja como for, como Rupert parte para a guerra ao romper da aurora, você, a Lucy e eu seremos levadas para o campo para sermos apresentadas ao duque de Sconce e à senhora sua mãe.

– Ótima perspectiva – ironizou Georgiana com expressão triste. – Estou desejando ver o duque a revirar os olhos de aborrecimento de estar sentado ao meu lado.

Olivia deu-lhe uma leve pancada no nariz.

– Limita-te a sorrir-lhe, Georgie. Esquece todas essas regras e olha para o duque como se pudesses gostar dele. Quem sabe se não será de jeito? Sorri só, como se fosses um porco e ele a masseira, prometes?

Georgiana sorriu.


6

Começa a Experiência Matrimonial de Sua Graça

Maio de 1812

De volta ao seu gabinete, após o repasto da noite, Quin mal se apercebera de que a festa da mãe já começara. Depois da refeição houvera grande movimento junto à entrada, o que sugeria que, pelo menos, uma esposa em perspectiva e a respetiva acompanhante acabavam de chegar.

Sentia uma razoável curiosidade em relação às jovens que a mãe considerava candidatas adequadas ao casamento. Mas, nesse momento, uma cascata de risinhos subiu a escada e entrou pelo seu gabinete.

A autora das gargalhadas certamente reprovaria nos testes da mãe em relação ao divertimento, por isso seria uma perda de tempo ir cumprimentá-la. Despiu o casaco, tirou a gravata e instalou-se à secretária.

Tinha posto de lado as equações com polinómios e regressara ao problema da luz. Interrogava-se acerca da luz desde que, ainda rapaz, conhecera um cego e se apercebera de que, para ele, o mundo era escuro. Perguntara ao seu preceptor se isso significava que a luz existia apenas porque tínhamos olhos; ele soltara uma gargalhada. Não compreendera a abrangência da pergunta.

Por momentos, Quin olhou através da janela do seu gabinete para a escuridão que aumentava. O gabinete estava voltado a oeste e as janelas tinham os vidros mais antigos da casa, grossos como os das garrafas, turvos e de um tom levemente azulado. Quin gostava deles pois estava convencido que, de certa maneira, o vidro tinha a resposta para o mistério da luz.

Em Oxford haviam-lhe ensinado que a luz era constituída por partículas que se dirigiam na mesma direção. Porém, a luz atravessava o vidro antigo em fitas que não agiam como um rio a correr. Era mais como se fossem ondas a chegar à costa, inclinando-se levemente, adaptando-se às imperfeições do vidro...

Estava convencido de que a luz entrava numa onda, não num dilúvio de partículas.

O problema era prová-lo. Sentou-se de novo à secretária, puxando mais folhas de papel. No arco-íris a luz separa-se em tiras de cor. Mas é pouco prático e difícil prender um arco-íris. Precisava...

Quando ergueu de novo a cabeça, a casa estava em silêncio e a janela à altura do seu ombro escurecera. Ficou por momentos a olhá-la e depois abanou a cabeça. Bastava a luz para se preocupar naquele momento. A falta de luz era outra questão. Além do mais, a chuva batia nas janelas... uma tempestade de primavera. Água... a água era formada por partículas...

Levantou-se com as pernas rígidas para logo se imobilizar enquanto se espreguiçava. Que diabo causaria aquele barulho?

Ouviu-o de novo, um ruído constante que parecia a aldraba da porta da rua. Era demasiado tarde para alguém em casa ir abrir. Cleese estaria já na cama e o último criado teria há muito retirado para os aposentos dos serviçais no terceiro andar.

Quin pegou no candeeiro a petróleo da sua secretária e desceu a correr a enorme escadaria de mármore que levava ao átrio. Posou o candeeiro, destrancou a pesada porta e abriu-a de par em par. A luz despenhou-se – em tiras – vinda de trás do seu ombro até à escuridão, mas não se via ninguém, apenas o movimento de uma mancha branca à meia distância.

– Está aí alguém? – gritou, mantendo-se bem afastado da água que escorria do frontão por cima da porta.

A mancha que vira à porta voltara-se e correra até ele.

– Oh, graças a Deus que ainda está acordado – disse uma mulher sufocada. – Pensei que ninguém me ouvisse.

Passou para o círculo de luz que tombava sobre o ombro dele, continuando falando embora ele tivesse deixado de ouvir. Tratava-se sem dúvida de uma dama – mas não de uma dama qualquer. Não parecia pertencer a este mundo, muito menos ao mundo de Littlebourne Manor. Só a sua visão era um golpe aos sentidos de um homem, como se uma das sereias de Homero tivesse atravessado o tempo e os continentes para chegar à sua porta e o enfeitiçar.

O cabelo escuro caía-lhe pelos ombros, tornando-lhe a pele translúcida, como se tivesse uma fonte de luz própria. Não conseguia ver-lhe a cor dos olhos, mas as pestanas eram compridas e estavam molhadas.

Depois percebeu de repente que a chuva lhe escorria dos ombros, sem uma capa que a agasalhasse. Não havia dúvida de que estava molhada como uma sereia.

Quin estendeu a mão e puxou-a para o vestíbulo para a retirar da rua. Ela aclarou a garganta e começou falando, mas ele nem a ouviu e disse mais alto:

– Mas que raio faz a senhora aí fora?

– A carruagem voltou-se, não consegui encontrar o cocheiro que não me respondeu quando o chamei – disse ela a tremer.

Quin teve alguma dificuldade em se concentrar naquilo que a jovem dizia. O cabelo parecia uma meada de seda molhada, escura e lisa sobre os ombros dela. O vestido encharcado colava-se à pele revelando-lhe as curvas do corpo... e que corpo!

Demasiado tarde percebeu de que ela semicerrara os olhos, indicando que não estava preocupada com aquele exame.

– Posso garantir-lhe que o seu patrão não desejaria que ficasse aqui a parlamentar comigo – disse ela severamente.

Ele pestanejou. Pensaria que ele era um criado? Claro. Não usava casaco ou gravata, mas, mesmo assim, nunca ninguém o tomara senão por um duque (ou, nos tempos anteriores à morte do pai, um futuro duque). Era estranhamente libertador.

– Parlamentar? – perguntou ele num tom bastante idiota. A mulher encharcada parecia maliciosa e inteligente, muito mais do que as debutantes deslavadas que conhecera em Londres durante a temporada.

– Eu não... – ela interrompeu a frase. – Vou repetir o meu pedido: importa-se de chamar o mordomo? – ela parecia falar por entre os dentes cerrados.

Quin teve a sensação de estar a ter uma experiência alucinante. Ouvira dizer que aquelas coisas aconteciam quando os homens perdiam a cabeça e de repente beijavam a mulher do vigário.

Sempre pensara que a imprudência daquela natureza indicava uma profunda falta de inteligência, mas como não se sentia inclinado a questionar a sua própria aptidão teria de mudar de ideias. De fato, era bom que a sereia não fosse a mulher do vigário, porque gostaria de a beijar sem se importar com o seu santificado marido.

– Parece-me gelada – disse ele apercebendo-se que os dentes da jovem batiam.

Não admirava que parecesse estar falando de dentes cerrados. Precisava de uma bela lareira. Inclinou-se e ergueu-a nos braços sem pensar duas vezes.

Ela estava ensopada e a água imediatamente molhou as calças dele... o que o fez aperceber-se bruscamente de que o seu corpo concordava com o seu espírito. Se só de a ver ficara excitado, agora, com ela nos seus braços, a situação piorara. Ela era muito bela, suave, perfumada, molhada...

– Ponha-me já no chão!

Como que para acentuar a ordem, soou um latido agudo junto ao seu tornozelo. Quin olhou e viu um cão muito molhado e muito pequeno com um focinho extraordinariamente longo. O cão ladrou de novo numa ordem muito clara.

– Este animal pertence-lhe?

– Sim – disse a visitante. – A Lucy é minha. Faça o favor de me pôr no chão!

– Anda – disse Quin ao cão e – só um momento – à dama que começara a debater-se. Dirigiu-se para a sala, mas percebeu de que a lareira desse aposento fora apagada para a noite. Porém, havia um fogão a carvão na sala das pratas de Cleese que facilmente se acendia.

– Onde vai? – perguntou ela indignada ao perceber que ele mudava de direção. – O cocheiro está lá fora à chuva e...

– Cleese chegará dentro em pouco – disse-lhe ele. Os lábios dela eram fascinantes: cheios e carnudos e de uma cor mais rosada do que era habitual nas outras mulheres. – Ele ocupar-se-á do seu cocheiro.

– Quem é Cleese? – perguntou ela. – E... espere! Vai levar-me para os aposentos dos criados?

– Não me diga que é daquelas damas que nunca passou por uma porta de vaivém – disse ele, voltando-se de maneira a que passassem ambos de costas pela porta e depois mantendo-a aberta para que o cão entrasse. – O seu cão parece uma ratazana das margens do Tamisa – acrescentou ele. A sala prateada ficava à esquerda, de modo que ele a abriu com um pontapé.

– A Lucy não parece uma ratazana! E que tem isso a ver? Sou Miss Olivia Lytton e exijo...

Olivia. Gostou do nome. Olhou para as pestanas dela e para os lábios. Os olhos eram de uma cor maravilhosa, uma espécie de verde-claro, cor do mar... ou seriam da cor das folhas novas na primavera?

– Ponha-me no chão, seu bruto! – disse ela ferozmente e mais do que uma vez.

Ele não queria fazê-lo. De fato, queria até evitá-lo o que não parecia próprio da sua pessoa. Geralmente, não se importava com outras coisas que não as equações de polinómios. Ou com a luz. Mas Ms. Lytton era arredondada... maravilhosamente arredondada nos sítios certos. Cabia bem nos seus braços. Quin apreciava em particular a curva do traseiro. Já para não falar do fato de ela cheirar maravilhosamente, como a chuva e, ao de leve, de um tipo de flor.

– Vou informar o seu patrão! – falava num tom decididamente ameaçador. Como uma rainha. Colocou-a suavemente no sofá de Cleese e depois lançou uma pá de carvão para o fogão e agitou-o.

As chamas amarelas ergueram-se assim que ele fechou a porta do fogão e lançaram luz suficiente para ele poder observar o rosto da jovem. Esta estava furiosa, com os olhos semicerrados e os braços apertados em redor do corpo como se ele a fosse assediar.

Coisa que ele gostaria de tentar.

O cão saltara também para o sofá e estava empoleirado ao lado de Ms. Lytton. O animal era pouco maior do que uma bíblia, mas tinha os olhos ferozes de um cão de ataque.

De fato, Lucy e Ms. Lytton tinham certas parecenças, mas não no nariz.

Enquanto acendia o candeeiro Argand no aparador de Cleese, percebeu de que uma pessoa saberia sempre o que Ms. Lytton pensava. E, nesse momento, os olhos dela estavam cheios de raiva.

– Se não vai imediatamente chamar o seu patrão, farei com que ele o despeça sem quaisquer referências!

O cão ladrou como que para acentuar rispidamente aquela ameaça.

Uma estranha sensação borbulhou no peito de Quin. Só um segundo mais tarde se apercebeu de que era uma gargalhada.

– Vai fazer com que me despeçam?

Ela pôs-se de pé de um salto.

– Deixe de me olhar dessa maneira! Se tivesse um cérebro maior do que a pilinha de um rato já teria percebido que lhe estou dizendo uma coisa importante!

Ao ouvir aquilo, Quin surpreendeu-se a si próprio com uma gargalhada. A mãe não apreciaria o uso colorido que Ms. Lytton fazia da língua.

– Não posso perder a minha posição. Já nasci com ela.

– Nem se pode mesmo tolerar que o servidor de uma família ultrapasse os limites do que é devido. Aquilo pareceu-lhe vagamente familiar, porque era o tipo de coisas que a mãe costumava dizer.

Criava um estranho contraste com a pilinha de um rato. Nunca encontrara uma dama que admitisse conhecer termos daquela espécie.

Seguindo o instinto, Quin aproximou-se dela o suficiente para lhe sentir de novo o seu aroma cativante. Esperava que a jovem gritasse, mas enganou-se.

– Não sou um criado – declarou. Os olhos de ambos encontraram-se. O mundo da lógica e da razão, mundo que Quin habitualmente habitava, desapareceu. – E a senhora é muito bela – acrescentou.

Olivia pestanejou. E depois, como se fosse a mulher do vigário e ele o homem que enlouquecera de repente, Quin baixou a cabeça e tocou com os seus lábios nos dela.

Eram macios e cor de frutos silvestres como uma tarte de amora. Foi um beijo suave, pelo menos até ele a puxar de encontro ao peito. O seu corpo incendiou-se e o beijo mudou, passando a ser violento e profundo. Quin soltou um gemido silencioso e posou a mão na face, inclinando-lhe a cabeça para a poder beijar de novo...

Sentiu que a face dela estava gelada. Endireitou-se com alguma relutância.

– Será melhor ir buscar um cobertor.

Aquilo fez soltar o fio invisível que os mantivera a olhar um para o outro. Nesse momento, todo o ultraje inundou de novo os olhos dela. Uma sensação de integridade invadiu Quin. Conseguia ler nela como num livro.

– Suponho então que o senhor seja o duque – disse ela, rígida. – Apercebo-me agora que fala como um duque, embora deva dizer-lhe que não se comporta como tal.

– Não fui eu que fiz referências a pilinhas, quer pertençam a pequenos roedores ou a outros mamíferos. A última vez que ouvi essa palavra tinha cinco anos de idade.

Quin estava fascinado por ver que, embora as faces dela estivessem a ficar rosadas, ela erguia firmemente o narizinho.

– Lady Cecily está lá fora à chuva, tal como a minha irmã. Porque não manda alguém para lhes acudir, já para não falar do cocheiro? Está frio e a chover.

Olivia tinha o porte e o tom de uma duquesa, pensou ele. Mas... Lady Cecily?

– Lady Cecily Bumtrinket? A minha tia? Lady Cecily está lá fora à chuva?

Quando ela começou uma explicação que tinha a ver com a sua carruagem e o cocheiro desaparecido, Quin saiu do transe. Puxou os cordões ligados aos aposentos de Cleese, da cozinha e do terceiro andar. E, para que não restassem dúvidas, abriu a porta e gritou:

– Cleese!

Depois, voltou-se para Ms. Lytton que tremia ainda com os braços em redor do seu magnífico busto. Procurou o casaco e percebeu de que não o tinha vestido, nem sequer o colete. Não admirava que ela o considerara um criado. Um cavalheiro nunca andava em desalinho.

Havia uma libré pendurada na parede, Quin apanhou o casaco.

Os olhos dela pareciam desconfiados e escuros. Como ela não foi suficientemente rápida, lançou-lhe ele próprio o casaco em volta dos ombros e apertou-o bem, embora não gostasse de ver o seu busto sensual desaparecer debaixo das dobras de pano negro.

– Que aconteceu? – perguntou.

– Estou tentando dizer-lhe. Batemos num poste no fim do caminho. Creio que Lady Cecily está bem, mas tem o tornozelo magoado e dói-lhe uma orelha porque bateu com ela na janela. Felizmente eu e a minha irmã saímos ilesas, mas não encontro o cocheiro em parte alguma. Os cavalos parecem estar bem embora estivesse tão escuro que eu não consegui ter a certeza.

Quin tinha consciência de que o que mais queria era agarrar a sua encharcada visitante e sentar-se com ela no colo. Pelo menos não queria deixá-la só.

Só a ideia era um choque para ele. Só uma vez se sentira assim.

Quando conhecera Evangeline sentira-se embriagado. Vira-a dançando, delicada e alegre como se flutuasse ao vento e sucumbira ali mesmo. Mesmo agora, depois de anos de desilusão e desgosto lembrava-se da admiração que sentira.

Mas sentia também a cabeça a picar. Estava em risco de sucumbir uma vez mais. Como se fosse uma lebre na primavera... exatamente o que a mãe lhe dissera que não deveria fazer.

E mais, dado o vocabulário criativo de Ms. Lytton – já para não mencionar o fato de ela permitir que um homem que ela acreditava ser um criado a beijasse – era uma candidata pouco provável para o papel de duquesa de Sconce como Evangeline o fora.

Por isso sentira bem lá no fundo que nunca mais se deixaria enfeitiçar por uma mulher. Nem desejava humilhar-se casando pela segunda vez com uma mulher que não respeitasse os votos matrimoniais. Respirou fundo e desejou que o mundo retomasse a sua forma primitiva.

Ele era o duque de Sconce. Aquela jovem tinha sido convidada para sua casa como possível futura duquesa e era evidente e definitivamente inelegível. Ponto final.

Na verdade, aquele seu beijo impulsivo sugeria-lhe que deveria fazer um maior esforço para arranjar uma amante. Não era próprio da sua pessoa abordar mulheres desconhecidas que lhe apareciam à porta, por mais revelador que pudesse ser o seu vestuário.

Endireitou-se.

– Miss Lytton, certamente me perdoará se a deixar só por um momento.

– Certamente – murmurou ela. Olhava-o com um ar curioso e divertido.

Quin fez uma reverência.

– Vossa Graça – disse ela, apertando o casaco no pescoço. Deveria ser a sua imaginação que o fizera ouvir uma nota trocista na sua saudação.

Ele dirigiu-se para a porta sem pronunciar palavra.


7

Inelegível! Cada Vez Mais

Olivia respirou fundo quando o duque desapareceu no corredor. Sentia o seu espírito correr em quinze direções diferentes ao mesmo tempo. Quem diria que a mera ausência de um casaco acentuaria tanto os ombros de um homem? A princípio pensara que os olhos do duque eram negros, mas depois apercebera-se de que eram cinzento-esverdeados com pestanas surpreendentemente longas.

E beijara-a. Ela tocara realmente os lábios dele. Fora o seu primeiro beijo. Olivia sentou-se e Lucy saltou-lhe para o colo. Uma trouxa de pelo molhado não lhe molharia mais o vestido e a cadelinha de Rupert tremia terrivelmente, por isso meteu-a debaixo do casaco e fechou-o.

Imaginara que Rupert a beijasse quando consumassem o seu noivado. Embora não desejasse aquela saudação, a imaginação enganara-a pois ele não fizera a mínima tentativa. Aparentemente, o pai não incluíra o beijo nas suas instruções para as relações matrimoniais.

Mas este duque beijara-a como se tivesse direito de o fazer. Como se fosse seu noivo. E... dissera que ela era bela. Olivia apertou um pouco mais o casaco e pensou no assunto. Claro que já antes recebera elogios. Um dia seria duquesa e de vez em quando os homens haviam-na elogiado de um modo pouco convencido.

Mesmo assim, o duque de Sconce não fazia a mínima ideia da sua posição quando dissera que ela era bela. O pensamento era como um pequeno carvão incandescente no coração dela, uma centelha feliz.

A imaginação de Olivia saltou para um assunto diferente. Nunca vira cabelo como o dele. Negro como a noite, exceto uma madeixa branca à frente e caindo-lhe solto nos ombros. Calculava que se tivesse levantado da cama, pois sem dúvida o usaria preso na nuca durante o dia.

Lucy soltou um pequeno suspiro por isso Olivia olhou para baixo e viu a perna rosada através das saias. Talvez fosse por isso que o duque a olhara tão intensamente. Não suportava usar espartilho quando fazia longas viagens de carruagem, só que geralmente apenas a irmã a via.

Quando espreitava para dentro do casaco para ver se, por acaso, os seus seios estavam tão visíveis como os seus joelhos, um homem de meia-idade entrou, metendo o braço direito na libré.

– Que se passa? – perguntou ofegante ao vê-la. – Meu Deus, como foi que não se afogou. A ponte para a aldeia ficou de novo debaixo de água?

– Para a aldeia? – repetiu ela.

No momento em que ele lhe ouviu a voz toda a sua postura se alterou. Endireitou-se e qualquer coisa indefinida lhe alterou as feições. O que a princípio era um homem aborrecido e cheio de sono transformou-se no mordomo de uma grande casa.

– Por favor, aceite as minhas mais humildes desculpas – disse, curvando-se. – Sou Cleese, o mordomo. Ao vê-la na minha sala prateada, pensei... houve um acidente?

Um criado meteu a cabeça pela porta, logo seguido de outro, com as librés vestidas às três pancadas.

– A nossa carruagem bateu no poste do portão – explicou ela. – Lady Bumtrinket machucou um tornozelo. Não está ferida com gravidade, mas o cocheiro deve ter sido projetado. Não consegui encontrá-lo. Chamei, mas como ninguém respondeu a minha irmã e eu decidimos que eu viria até aqui à casa enquanto ela ficava com Lady Cecily. – De repente, sentiu-se exausta. – Sou Miss Olivia Lytton – continuou – e, embora não queira incomodar Sua Graça, somos esperadas.

– Os quartos das senhoras estão preparados – garantiu o mordomo. – Se fizer o favor de me acompanhar, Miss Lytton, dentro de um minuto estará lá em cima seca e confortável. Calculo que a sua criada não a acompanhasse na viagem.

– Vinham duas carruagens com as criadas e as malas, mas creio que não nos seguiam de muito perto

– Como está muito escuro, é provável que as outras carruagens não tenham dado pela bifurcação. É vulgar quando o cocheiro nunca veio aqui ao solar.

Apareceram mais criados à porta e o mordomo enviou-os a toda a pressa em várias direções. Depois voltou-se de novo para ela.

– Mistress Snapps, a governanta, enviar-lhe-á uma criada ao quarto, Miss Lytton. E eu vou mandar subir água quente para um banho, bebidas e uma refeição leve se desejar.

– Mas e Lady Cecily e a minha irmã? – perguntou Olivia. – Não posso retirar-me assim sem saber se estão cá em casa e em segurança. Já para não falar no cocheiro, que pode estar morto numa vala. E os cavalos.

– Vou enviar...

Mas qualquer que fosse a sugestão do mordomo, esta foi interrompida pelo ruído na entrada. Olivia pôs-se de pé num salto. Lucy saltou para o chão e o casaco deslizou dos ombros de Olivia. A jovem viu então que Cleese a olhava do pescoço para baixo para logo afastar os olhos como que mortificado.

Bastou um olhar para revelar que o seu vestuário nada fazia para lhe cobrir os seios. Estes estavam perfeitamente delineados, mamilos e tudo, pela roupa molhada. Sentiu as faces afogueadas, mas conseguiu apertar de novo o casaco e depois passou por Cleese que voltava da sala dos criados.

Lady Cecily encontrava-se no meio do vestíbulo, apoiada pelo duque, que estava já completamente seco, e por Georgiana. A irmã era uma versão distintamente encharcada da sua duquesificada pessoa.

Olivia não pôde deixar de notar que o duque tinha notáveis maçãs do rosto, acentuadas pelo cabelo liso. E que uma camisa molhada era tão reveladora nele como em si. O linho fino agarrava-se aos ombros musculosos – afastou os olhos. Mas que diabo estaria fazendo, comendo com os olhos o homem com quem a irmã provavelmente casaria?

Nessa altura, a porta fechou-se atrás de Cleese, nas suas costas e os encharcados recém-chegados ergueram os olhos.

– Minha querida Olivia, é a heroína do momento! – exclamou instantaneamente Lady Cecily. – Atravessaste a tempestade; podia ter-te afogado. Embora o afogamento pareça ser uma morte agradável, em relação às outras mortes, quero eu dizer. Afinal, muito melhor do que ser enforcado – bateu no braço do duque. – Miss Lytton, este é o meu sobrinho.

O cabelo de Lady Cecily parecia o ninho comunitário de um bando de andorinhas, mas, à parte isso e o tornozelo torcido, não parecia ter ficado muito mal com o acidente.

Olivia fez uma reverência.

– É uma honra ver de novo Vossa Graça.

– Realmente – disse o duque voltando-se para a tia. – Por assim dizer, Miss Lytton e eu já nos conhecemos. O meu vestuário despretensioso levou-a à conclusão lógica de que eu seria um membro do pessoal.

Olivia deveria estar fora de si quando chegara a essa conclusão. Mesmo sem casaco ou gravata, o duque tinha uma espécie de pose férrea declaradamente aristocrática.

De fato, parecia espantosamente ducal. Olivia não conseguiu distinguir o mínimo traço do homem que se rira quando ela soltara aquela comparação tão pouco senhoril entre o cérebro dele e as partes íntimas de um rato. Pelo contrário, parecia o vivo retrato de um duque, olhando-a do alto de um modo superior.

Que fosse. Devia ter sofrido um lapso temporário de loucura para logo reverter ao seu título.

– Peço perdão a Vossa Graça pela minha falta de atenção – disse ela, curvando-se numa profunda reverência.

– Surpreende-me que não o tenha reconhecido imediatamente – comentou alegremente Lady Cecily. – Sempre pensei que havia no olhar dos Sconce um determinado estrabismo que os identificava. Mesmo os que nasceram bastardos têm um certo toque.

O duque podia não ser estrábico, mas Olivia lembrava-se de que os olhos dele eram de uma espantosa cor verde-acinzentada. E frios, com um toque de reprovação, como se tivesse sido ela a tentá-lo para que a beijasse, o que certamente não acontecera.

– De fato – declarou –, creio que percebo exatamente o que quer dizer, Lady Cecily.

Georgiana soltou um pequeno suspiro abafado, que disfarçou tossindo.

– O que a minha irmã quer dizer, é que Vossa Graça possui o inegável olhar dos Sconce.

– Foi exatamente o que eu disse – Olivia sorriu para as feições rígidas do duque. – A partir daqui, reconhecerei esse olhar em toda a parte.

– Tenho muito prazer em recebê-la na minha casa, Miss Lytton – disse ele, evitando o assunto do olhar. Olivia teve a sensação de que ele ignoraria muitas vezes tais trivialidades. – Espero que a senhora, Lady Cecily e a sua irmã nos façam uma longa visita. A minha mãe, a duquesa viúva, terá todo o prazer em vos saudar amanhã de manhã, tal como o meu primo Lorde Justin Fiebvre, que veio nos visitar antes de regressar à Universidade de Oxford.

O duque tinha uma voz muito profundo, mais profunda do que a do pai de Olivia. Parecia... era muito masculina, pensou ela, antes de afastar o espírito do assunto.

Georgiana afastou-se de Lady Cecily e dirigiu-se para o lado de Olivia para lhe dar um pequeno beliscão.

– Mas que diabo esta fazendo? A troçar de um duque – murmurou. – Ele não é estrábico!

– O nosso cocheiro foi encontrado na vala, mas sem ferimentos – referiu Lady Cecily. E tresandava a gim, minha querida. Tresandava! Que bela coisa deve ser, encharcado em bebida. Se fosse por ele, poderíamos ter morrido dentro da carruagem e ser comidas por abutres.

– Comidas ainda dentro da carruagem? – perguntou o duque. – Seria muito invulgar.

– Foi milagre não termos ido parar dentro do rio! Ou esbarrado com a carruagem do correio. Deveríamos ter-lhe examinado as unhas antes de entrar na carruagem. Sabia que um homem que tem uma unha ligeiramente mais comprida no dedo mínimo é invariavelmente um ébrio?

– O duque foi notavelmente espantoso – murmurou Olivia em resposta. – Ele... logo te conto.

– Não disseste já alguma coisa pouco própria de uma dama? – gemeu Georgiana.

– Não! Bom, sim, mas digo-te depois. Sentes-te bem, Georgie? Creio que Lady Cecily aterrou em cima de você.

– Mais cinco minutos naquela carruagem, sozinha com Lady C e seria uma possível candidata a um manicômio – sussurrou Georgiana tão baixo que a irmã mal a pôde ouvir.

Olivia apertou-lhe a mão. Olivia e Georgiana tinham sobrevivido os últimos cinco dias na carruagem recorrendo a jogos que praticavam em crianças. Apostando no número de vezes que Lady Cecily mencionava a sua querida amiga Lady Jersey, uma das patronas de Almacks, tal como costumavam apostar nas referências feitas pela mãe ao Espelho dos Elogios.

– Não tinha conhecimento de qualquer paralelo entre o caráter de um homem e as suas unhas – disse então o duque a Lady Cecily. Olivia poderia ter informado de que a tia era fiel depositária de estranhas teorias, a maioria das quais tinha a ver com a digestão. Em nenhuma delas Olivia acreditava.

– Oh, mas é verdade – garantiu Lady Cecily ao duque. – Espero que seja a primeira coisa que os Bow Street Runners 2examinem quando prendem um criminoso.

– Sempre ouvi dizer que o sinal denunciador é o estrabismo – comentou Olivia. Não sabia bem porquê, mas a expressão implacável do duque fazia com que sentisse vontade de lhe apertar o nariz, embora nem se atrevesse a olhar para ver o resultado do seu comentário. Assim, acrescentou apressadamente: – As carruagens com as nossas criadas e os baús já terão chegado?

– Tenho um vestido novo dentro de um dos meus baús – disse imediatamente Lady Cecily. – E, embora a menina não tenha bebido o leite da sociedade, minha querida, e por isso não seja uma verdadeira aristocrata, qualquer um perceberia a necessidade que tenho de recuperar as minhas luvas de franjas. Usei-as no meu encontro com o embaixador espanhol, que me fez um rasgado elogio, embora eu não tivesse percebido o que ele disse, pois não o fez em inglês.

Cleese entrou no momento em que Lady Cecily fazia uma pausa para tomar fôlego.

– Até agora não há sinal das carruagens de serviço, Miss Lytton. Tomei a liberdade de destacar uma criada para cada uma das senhoras e elas terão todo o prazer em servi-las até à chegada das outras criadas.

– Mas eu preciso da minha criada – disse Lady Cecily, aproveitando imediatamente o assunto. – Só Harriet sabe tratar do meu rosto. Sabe o que dizem, minha querida – espreitou para Georgiana e Olivia por entre as madeixas de cabelo encharcado. – Uma mulher passa a sua plenitude aos vinte anos, decai aos vinte e quatro, fica velha e insuportável aos trinta. Minhas queridas, nenhuma de vós tem ainda vinte e quatro, não é verdade?

– Ainda temos um ano antes de ficarmos completamente decaídas – declarou Olivia.

– Folgo em ouvi-lo – declarou inesperadamente o duque. – O meu estrabismo pode muito bem indicar um notável estado de decadência.

Olivia ergueu uma sobrancelha. Uma centelha brilhou momentaneamente no olhar... o comentário dele quase sugeriu um sentido de humor. Que homem peculiar.

– Decadência – exclamou Lady Cecily. – Como se pudéssemos aceitar uma descrição dessas da sua pessoa, meu sobrinho! Os homens nunca decaem.

Olivia sentiu-se de novo irritada.

– Lady Cecily – perguntou –, por que razão os homens não haverão de decair se as senhoras decaem?

– Oh, os homens decaem – disse Lady Cecily que nunca se sentiria embaraçada por qualquer pergunta que pudesse ser possivelmente elaborada dentro da sua área de especialização. – Quero dizer, os homens apodrecem, o que é quase a mesma coisa, não é verdade? Mister Bumtrinket costumava dizer que um homem que não conseguisse ir para a brincadeira sempre que necessário estava podre até ao âmago.

Olivia sentiu-se sufocar, mas, de resto, o comentário de Lady Cecily foi recebido em silêncio. Olhou o duque de soslaio e reparou de novo no brilho subtil do seu olhar. Este mantinha um ar extremamente sóbrio, mas, quase de certeza ria lá por dentro.

Depois, olhou-o de novo e mudou de ideias. Ninguém com um rosto tão severo poderia ter o mínimo sentido de humor. E mais, teria provavelmente sido educado segundo os preceitos encontrados no Espelho para Pavões Emproados. Deveriam ter-lhe retirado toda e qualquer capacidade de rir.

– De qualquer forma – acrescentou Lady Cecily, retomando a conversa –, o meu sobrinho é famoso em todo o reino pelas coisas inteligentes que faz com os números. Mais do que poderia fazer um guarda-livros, suponho. Melhor do que contabilidade. Coisas muito inteligentes.

– É uma honra conhecer um matemático tão famoso – disse Georgiana.

Olivia olhou para o lado e notou, com uma pequena contração no estômago, que a irmã sorria para o duque. Claro, nunca ocorreria a este homem que o sorriso de Georgiana significava condescendência... porque não significava. Ele era um duque. Estavam perfeitamente adequados um para o outro. Era simplesmente desagradável pensar que tinha beijado – embora contra vontade – o seu futuro cunhado.

O duque foi tão suscetível ao sorriso de Georgiana como ela sabia que o eram todos os homens. Os olhos do duque tornaram-se mais doces quando disse:

– Lady Cecily exagera, Miss Georgiana. – Era espantoso como podia dizer uma coisa tão despretensiosa com um ar tão orgulhoso.

– Não deve ser tão modesto – disse Olivia incapaz de resistir. – A contabilidade é um conhecimento muito útil. E é muito corajoso da parte de Vossa Graça ter realizado o seu desejo de ser guarda-livros, dada a sua elevada posição.

A seu lado Georgiana soltou um leve e provavelmente involuntário gemido. Os olhos do duque afastaram-se do rosto da irmã.

– A maioria dos duques não tem inteligência para as simples frações – terminou ela lançando um sorriso que em nada se parecia com a adoração da irmã.

– Se me derem licença, sugiro que nos dirijamos aos aposentos que Cleese tão simpaticamente nos preparou – disse Georgiana, dando uma cotovelada nas costelas de Olivia.

– Sim, de fato – disse Olivia, sentindo-se um pouco envergonhada. Fizera-o de novo. No momento em que se sentia irritada por evidentes exibições daquilo que seria apropriado fazer, abandonava todos os traços de elegância de que a mãe a imbuíra. – Se não se importa, Cleese – disse, voltando-se para o mordomo.

– Não me vou retirar sem tomar leite morno com brande – declarou Lady Cecily. – Bebo-o todas as noites desde os meus treze anos e garanto-vos que melhora extraordinariamente a minha digestão. Há muitas doenças que poderia ter apanhado e não apanhei porque todas as noites purifico o meu estômago.

– Withers, leve leite quente com brande aos aposentos de Lady Cecily o mais depressa possível – ordenou Cleese avançando para a escada. – Se as senhoras fizerem o obséquio de me seguir, acompanhá-las-ei aos vossos aposentos.

– Terá de me ajudar a subir, meu sobrinho – pediu Lady Cecily. – Por favor, vamos esperar até as jovens chegarem em cima das escadas.

Olivia não resistiu a voltar-se quando ela e Georgiana chegaram em cima do primeiro lance de degraus de mármore. Sentia uma comichão nos ombros como se..., claro, ele observava-as.

Vieram-lhe à ideia os gracejos que ela e Georgiana haviam trocado acerca de sátiros. Havia algo de feroz e poderoso no rosto do duque que se adequaria a um sátiro. Tinha as maçãs do rosto angulosas, mas eram os olhos... ardiam com uma espécie de poder perfeitamente contido que se imaginaria num sátiro.

Odiava a barbicha, mas tinha de admitir que a moda se adequava ao seu aspeto levemente exótico. Tinha começado a perder o cabelo e uma madeixa branca pendia-lhe para a testa.

– Olivia – disse Georgiana com severidade.

Olivia pestanejou e deu meia volta.

Claro que Georgiana não fez uma coisa tão indelicada como olhar para o duque do alto das escadas. Preferiu fazer uma reverência, lançando ao duque e a Sua Senhoria um sorriso comedido e afável. Depois lançou um olhar severo a Olivia, como que dizendo-lhe segue-me, voltou-se e seguiu pelo corredor atrás de Cleese.

Pela primeira vez na vida, Olivia sentiu um profundo desejo de possuir a figura da irmã e não a sua. Georgiana parecia tão magra e elegante, mesmo com um vestido encharcado.

Entretanto, ela assemelhava-se sem dúvida a um pão enorme, embrulhado num pesado casaco, com as saias molhadas coladas às pernas, que não eram, nem de longe, tão bem torneadas como as da irmã.

– Apoio-me no seu braço, meu sobrinho – dizia Lady Cecily. – Com certeza que não quero que me levem para cima como uma trouxa de roupa.

Olivia começou a percorrer o corredor pensando em fugir antes que o duque chegasse em cima das escadas e pudesse observar de trás o seu vestido molhado.

– Espero que não se importe por lhe dizer isto – declarou Lady Cecily ao duque –, mas o seu cabelo parece-me um pouco em desalinho. O meu marido costumava usar uma touca de dormir para manter o cabelo arranjado. O seu criado poderia arranjar-lhe uma, meu sobrinho; dar-lhe-ei as devidas indicações.

Olivia soltou uma risadinha ao pensar no duque de rede no cabelo. Olhou par atrás e...

Os olhos de ambos encontraram-se.

O rosto dele poderia ser de granito pois nenhuma emoção se lia nele. Quanto aos olhos... os olhos eram diferentes. Prenderam-se nos dela e ela poderia jurar que tinha qualquer coisa aí.

Talvez desejo.

Olivia quase abanava a cabeça enquanto seguia a irmã pelo corredor. Claro que não era desejo. Ninguém poderia sentir isso por ela.

Era uma mulher gorda e já velha, sem mais nada que a recomendasse do que um compromisso de casamento com o herdeiro de um duque.

Desejo!

O que possuiria ela que ele pudesse desejar? O duque tinha o mundo a seus pés, era só pedir. Tal como aconteceria com ela, assim que fosse duquesa.

2Primeira força policial profissional de Londres fundada em 1749. (N. da T).


8

Definição das Qualidades de Um Príncipe de Conto de Fadas

Olivia acordou na manhã seguinte ao som da porta do quarto a abrir-se. Não fazia ideia de que horas seriam. A duquesa viúva era partidária das camas antiquadas, o que significava que Olivia poderia até dormir numa gruta. O próprio ar que a rodeava parecia azul, refletindo a seda cor de água do dossel da cama.

– Norah? – perguntou sonolenta. Na noite anterior, já muito tarde, depois de todos se terem retirado, a sua criada aparecera e o mesmo acontecera com as roupas. Afinal, as carruagens de serviço não tinham visto a placa a indicar Littlebourne Manor e haviam percorrido várias léguas no caminho errado, até o cocheiro se ter dignado a parar para pedir indicações.

– Não. Sou eu – disse uma voz alegre. O sol brilhante espalhava-se sobre o edredom quando as cortinas da cama foram afastadas para fazer surgir Georgiana.

Olivia soltou um pequeno gemido.

– Que horas são?

– Passa das onze. Deixaste passar o pequeno-almoço, mas tem de me acompanhar no almoço. O duque vai lá estar.

Olivia bocejou e soergueu-se apoiando-se na cabeceira trabalhada.

– Só Deus sabe como eu não poderia perder a oportunidade de ser de novo tratada com arrogância. Embora, na verdade, a condescendência ducal não fosse o que de mais importante tinha na ideia, pensou em Sua Graça. Olivia não gostava de se levantar cedo, mas faria uma exceção no dia seguinte e desceria para o pequeno-almoço, se pensasse...

Claro que o duque não voltaria a beijá-la e ela certamente também não o permitiria. Ele fora temporariamente enlouquecido pela luxúria... pois ela estava praticamente nua. Mesmo assim, tinha de pensar que ele gostara do que vira.

Aquele pensamento fez com que Olivia sentisse um sopro de felicidade. Sempre se sentira gorda, mas ele parecera não o notar. Não a olhava como se ela tivesse de perder vinte quilos. Nem cinco.

– Oh, Olivia! – disse Georgiana, afastando as cortinas até aos pés da cama e sentando-se sobre um pequeno alto aos pés da irmã.

– Isto não é maravilhoso?

– Não te sente em cima da Lucy! – exclamou Olivia.

Georgiana tocou na pequena bola que agora via debaixo das cobertas.

– Permites que esse cão durma dentro da sua cama? Já ouvi falar de cães que dormem sobre a cama dos donos, o que considero pouco saudável. Tenho a certeza de que isto é ainda mais insalubre.

Olivia encolheu os ombros.

– Rupert disse-me que era aí que ela gostava de dormir e claro que se meteu aí dentro ontem à noite. Foi assim uma espécie de botija, se eu precisasse de uma.

– Ouviste o que eu disse? Não o acha maravilhoso? – perguntou Georgiana.

Estivera sentada na sua habitual posição, impecável, com as mãos apertadas no colo, os tornozelos cruzados, mas agora puxara os joelhos e sentava-se de lado sobre a cama, com o rosto iluminado por um enorme sorriso. – Ele... ele é tudo com que sonhei.

– Ah é? – Olivia sentia o espírito como que a caminhar sobre melaço

– É alto e tão belo – disse Georgiana. – E inteligente, Olivia! Um matemático... o que não é o mesmo que ser guarda-livros. – Uma leve ruga atravessou-lhe a testa. – Tem de tentar ser mais delicada. E se ele se desgostar de você e nos pedir para nos irmos embora? Nunca mais conhecerei uma pessoa como ele.

– Não – disse Olivia automaticamente. – Isto é, sim. – Vou dar-lhe toda a manteiga possível. – Claro que Georgiana estava apaixonada por Sconce. Era um partido perfeito para ela: tinha posição, porte e inteligência. E Georgiana era tão especial, muito mais bela do que Olivia.

– Nunca pensei – continuou Georgiana, sonhadora. – Nunca acreditei que houvesse alguém para mim. E ele esteve sempre aqui. Tão distinto e brilhante e – soltou de repente uma risadinha – ontem estava maravilhosamente molhado pela chuva.

Olivia acenou afirmativamente. Era totalmente verdade.

Georgiana contorceu a boca num sorriso malicioso que Olivia nunca vira no rosto da irmã.

– Isto é terrível da minha parte, Olivia, mas olhaste bem para ele quando saiu da chuva?

– Não – disse Olivia, com falsidade.

– Ele... as calças dele estavam molhadas e... oh, Olivia, creio que já faço ideia da razão por que Juliet Fallesbury chamava Longfellow ao criado.

– Quem é você e o que fizeste à minha irmã? – perguntou Olivia a rir. – Bateste com a cabeça ontem à noite, Georgie? Sentes-te a mesma pessoa?

– Estou perfeitamente, de fato, há mais de dez anos que não me sentia tão feliz. A única coisa que me preocupa é você.

– Eu? – Olivia franziu a testa. – Não fui mal-educada para Sconce. Limitei-me a provocá-lo. Francamente, não creio que ele tenha pensado mais no assunto. – Graças a Deus que a irmã não tinha conhecimento daquele beijo.

– Não, não, você e Rupert! Nem consegui dormir ontem à noite. Só pensava em quão maravilhoso é o duque e em como me sorria... nem uma vez pareceu enfadado, Olivia, nem uma vez... e depois lembrei-me de que você tinhas de te casar com Rupert e fiquei com o coração partido.

– Ora, ora – respondeu Olivia conseguindo falar num tom satisfeito. – Sabe que nunca me poderia entender com um homem como o duque. Morreria de puro ennui se ele se lançasse numa dissertação de brilhantismo matemático.

– O duque é um gênio – afirmou Georgiana com convicção. – Qualquer um vê. É um gênio e, ao mesmo tempo, não é esquisito nem tem a cabeça avariada.

– Espantoso, já que a mãe dele escreveu o Espelho Todo-Poderoso.

– Tem de deixar de fazer troça do livro da duquesa viúva. E se sem querer troças do título na presença dela?

– Espero que ela sobreviva ao choque.

– Por favor – implorou Georgiana. – Por favor, Olivia. Esta é a minha oportunidade. A nossa mãe disse que tinha a certeza de que a viúva tenciona escolher noiva para o filho. Soube-o através de uma das grandes amigas de Lady Cecily. Não pode insultar Sua Graça de modo algum, ou ela pode pôr-me de parte para tal honra.

– Nem se atreveria – comentou Olivia com convicção.

– Quero... quero verdadeiramente casar-me com Sconce – disse Georgiana quase num murmúrio. – Sei que é uma coisa pouco própria para uma senhora dizer, mas é verdade. Quando ontem à noite ele apareceu na escuridão para nos socorrer, foi como a cena de um livro quando o herói aparece. E depois ele falou... com uma voz tão profunda... firme e verdadeira... que me apercebi que se tratava de um príncipe de conto de fadas. Percebe o que estou dizendo?

Sim, pensou Olivia. Sim, sei exatamente o que quer dizer. Mas não valia a pena pensar em tal coisa e muito menos dizê-la.

– Os príncipes nunca me atraíram – resolveu dizer. – Porém, admito que esse tipo de homem pareça extremamente propenso a deixar que a mãe lhe escolha a mulher. Se não a escolher tendo por base uma coisa tão idiota como os sapatos que calça. Se o duque fosse de fato um herói, teria selado um cavalo branco em vez de andar a correr à chuva como o empregado e um carniceiro. Todos esses pormenores são muito importantes quando se trata de literatura.

Georgiana gemeu.

– Deixa de troçar por um momento, Olivia! Sempre pensei que não haveria um príncipe para mim. Não conseguia imaginá-lo.

– E o cavalo branco? – perguntou Olivia.

A irmã deu-lhe uma palmada.

– Não brinques. Estou dizendo que quero casar-me com o duque de uma maneira que nunca antes quis.

– Então ele será para você – assegurou Olivia balançando as pernas para sair da cama. A conversa estava a fazê-la sentir-se estranha. Claro que não tinha qualquer direito sobre o duque. O beijo nada significava. Nada! Ele sempre estivera destinado a ser marido de Georgiana.

Dirigiu-se ao toucador e puxou para trás a cabeleira.

– Toda aquela chuva de ontem à noite fez com que o meu vestido ficasse transparente e eu parecia estar completamente nua. Havias de ver o olhar mortificado que o mordomo me lançou. Quando o meu casaco escorregou, viu tudo. Pensei que ele ia desmaiar.

– Então é um tolo – disse a fiel Georgiana. – Tenho a certeza de que é tão bonita nua como vestida.

– Sou melhor – referiu Olivia pensativa. – No entanto, espero que os vestidos novos façam toda a diferença. Não encomendei um único apertado debaixo do peito nem com folhos na cintura. Esse estilo só fica bem a mulheres cujas ancas não tenham as mesmas dimensões do busto, enquanto me faz parecer uma vaca leiteira.

– Os cavalheiros gostam de um ar bovino – fez notar Georgiana.

– Bateste mesmo com a cabeça – disse Olivia a rir. – Estava a brincar, Georgie! Mesmo a brincar.

A irmã revirou os olhos.

– É difícil. O que vai vestir para o almoço? Está tanto calor que vamos comer no terraço.

– Interessante. Nunca pensei que a duquesa viúva aprovasse hábitos de alimentação irregulares. Sabe, Georgie, começo a apreciá-la.

– Tem de o fazer se ela vier a ser minha sogra. – Georgiana saltou da cama. – Julgas que será possível? A criada disse-me ontem à noite que Lady Althea Renwitt está cá. E se o duque já se interessou por ela? Althea é uma aristocrata. Creio que não te lembra dela.

– Não me lembro mesmo. Faz parte do novo rebanho que foi posto no mercado este ano?

– Sim. Tem uns olhos lindos – disse Georgiana afundando-se numa cadeira. – E um cabelo muito bonito da cor das mimosas. Mas é um pouco... bom, parva. Não creio que consiga imaginar o duque com ela.

– É parva? Então não se preocupara com Sua Sobriedade.

– Disso não duvido, mas Althea gostaria de ser duquesa mesmo que Sconce fosse maluco como um percevejo, coisa que ele não é.

– Neste reino só há lugar para um duque com juízo de percevejo – disse Olivia alegremente. – E eu já tenho o monopólio sobre ele. A propósito, como acha que Rupert se estará a dar em Portugal? A esta hora já deverá ter desembarcado.

Georgiana fez um gesto de desprezo com a mão.

– Suponho que tenha saudades da Lucy, mas, de resto, deve estar ótimo.

– O que me fez lembrar que devo tocar para chamar Norah. É surpreendente como é difícil tomar conta de uma cadela. Parece que precisa constantemente de ir à rua, comer ou tomar banho.

– Olivia! – impacientou-se Georgiana. – Não é o momento de falarmos acerca de você ou do teu cão. Acha que a viúva já decidiu escolher Althea? Até o nome dela parece apropriado a uma duquesa.

– Creio que parece uma estranha espécie de digestivo. Beba Althea para os seus intestinos! Lady Cecily adoraria. Crês que Sua Senhoria não se apercebe de como é estranho uma mulher com o apelido Bumtrinket estar constantemente falando da digestão?

– Só você para pensar em tal coisa. Certamente nunca me ocorreu.

– O duque também reparou. Vi uma centelha no seu olhar que poderia ter sido uma gargalhada num homem que soubesse rir.

– O que eu quero dizer é que a duquesa viúva procurará o nascimento juntamente com a elegância. Espero que não se tenha decidido já por Althea. Ou até pior, talvez Althea já tenha captado o interesse do duque – preocupou-se Georgiana. – É amorosa.

– Não creio – duvidou Olivia apanhando o cabelo e estendendo o braço para tocar a campainha.

– Não crês que a duquesa tenha escolhido uma nora ou não acredita que o duque se tenha resolvido por Althea?

– Não creio que o duque faça ideia de com quem casar. Nem tem o direito de olhar à sua volta – disse Olivia com simplicidade. E, acrescentou para consigo, presumivelmente não beijaria mulheres desconhecidas, por muito reveladoras que fossem as roupas delas.

– Que ar teria ele se já tivesse tomado tal decisão?

– Teria menos estilo. Neste momento, parece um atraente salteador que espera que todas as mulheres das redondezas o desejem.

Georgiana franziu a testa.

Olivia falou antes que a irmã pudesse discordar.

– O cabelo dele, Georgie? Solto nos ombros? E onde tinha o casaco ontem à noite. Não poderia ser mais óbvio se fosse um daqueles homens que andam à volta do Pump Room em Bath em busca de viúvas de carteira recheada.

– Como pode dizer tal coisa? – censurou Georgiana. – O duque consideraria tal comportamento abaixo da sua posição.

– Está bem, vai só a meio caminho de ser salteador – concedeu Olivia. – Tem o cabelo e o encanto, sem a montada e a pistola. Mesmo assim, se gritasse a bolsa ou a vida, suponho que metade das debutantes do baile Micklethwait cairia de cu.

– Cairiam como?

– Cairiam de costas – emendou Olivia, dando uma cotovelada na irmã. – Adoro-te, Georgie, mas é um pouco parva no que diz respeito a piadas.

– Bem sei – admitiu Georgiana enrugando o nariz. – Nunca as entendo. Pelo menos nunca entendo as tuas.

– Suponho que a culpa seja mais do meu mau sentido de humor do que da sua compreensão – concedeu Olivia. – Creio que vestirei o vestido violeta para o almoço.

– Não crês que será um pouco ousado para essa hora do dia? Penso que se trata mais de um vestido de noite.

– Sabe que mandei fazer todos os meus vestidos com o mesmo decote grande. Decidi que, como as minhas curvas não vão desaparecer por me empanturrar de alface, posso muito bem exibi-las. Se os homens gostam de um encanto bovino, certamente vão obtê-lo da minha parte.

– Não tenho curvas para exibir – disse Georgiana voltando-se para se poder ver ao espelho. – Acha que o duque é daqueles que apreciam uma figura mais generosa?

Olivia era de opinião que o duque era de fato desse tipo, dado o modo como os seus olhos haviam escurecido quando lhe observara o vestido molhado. Mas não valia a pena dizê-lo.

– Duvido – disse diplomaticamente. – Ele é muito rígido, não acha? Suponho que não aprovaria se mostrasses um decote por pequeno que fosse. Conduta pouco adequada para uma futura duquesa.

Georgiana alegrou-se.

– Vou vestir o vestido cor-de-rosa pregueado. Adoro como as mangas terminam em pequenos triângulos.

Ouviu-se um arranhar na porta e Norah entrou.

– Bom dia – saudou Olivia sorrindo à criada. – Espero que possas entregar a Lucy ao criado para que ela visite aquele cantinho da relva. Mas primeiro tem de nos dizer tudo acerca de Lady Althea Renwitt.

– Olivia ignorou o gesto zangado da irmã (o Espelho dos Elogios era muito rigoroso em relação à informalidade pouco apropriada com os serviçais) e acrescentou: – Estamos em pulgas para saber se ela fará algum tipo de sombra a Georgie na corrida para noiva ducal.

Não havia coisa que Norah mais gostasse do que relatar as conversas lá de baixo, por assim dizer, que tinham uma certa tendência a ser mais alegres do que as de cima. Os olhos cintilaram quando fechou a porta.

– Lady Althea e a mãe chegaram apenas ontem à noite, pouco antes das senhoras, e o duque não desceu para as cumprimentar. Por isso só irá conhecê-la ao almoço. Miss Georgiana, devo acrescentar que a Florence está à espera da menina nos seus aposentos. Está muito ansiosa por começar a vesti-la, pois a criada de Lady Althea é uma pessoa muito cheia de si. Chama-se Agnès, à francesa, porque é de França. Ontem à noite fartou-se de falar de politesse e ninguém fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer. Florence está decidida a vencê-la aos pontos com a aparição de Miss Georgiana ao almoço – parou para tomar fôlego.

– Como é bom estar noiva de um homem que não se importa nada com a minha aparência – alegrou-se Olivia pondo-se de pé e espreguiçando-se. – Já te disse que ninguém mais aproximará um ferro de frisar da minha cabeça, não disse, Norah?

Norah inclinou-se para atar uma fita na coleira de Lucy.

– Desde que Mistress Lytton não pense que eu tive alguma coisa a ver com essa decisão, menina, fico igualmente satisfeita em me afastar desses paus quentes. Já me queimei muitas vezes.

– Bom, será melhor ir – disse Georgiana, mas fez uma pausa e lançou um olhar a Olivia que, obedecendo à irmã, se voltou para a criada.

– Antes de ires, Norah ouviste lá em baixo alguns mexericos acerca de Althea? Como é ela?

– O Cleese não gosta que tenhamos essas conversas. Mas a criada de Lady Althea disse alguma coisa acerca da patroa – Norah fez uma pausa. – Embora eu não possa repetir tudo tintim por tintim, pois a Agnès parece ser uma mulher muito crítica.

– Norah! – repreendeu Olivia. – Não seja chata!

Norah cedeu.

– A Agnès declarou que a patroa dela era mais tonta que uma galinha à chuva.

– Como diabo pode a chuva afetar as galinhas?

– Afoga-as, Miss Georgiana – explicou Norah. – Levantam os bicos para olhar para o céu e depois bebem tanta água que caem. Um bando inteiro pode morrer assim, caindo como peças de dominó umas por cima das outras.

– Creio que o poderemos interpretar como a impossibilidade de Althea Miolo de Galinha não poder vencer-te na categoria de inteligência – disse Olivia com alguma satisfação.

Norah soltou um pequeno suspiro de apreço.

– Não posso deixar a Florence à espera – disse Georgiana com um sorriso ligeiramente severo. – Obrigada, Norah, por... por...

– Por seres o bufo do inimigo – completou Olivia.

Georgiana esgueirou-se pela porta antes de ter de concordar com uma coisa tão antiética ao seu sentido do que era adequado.

Norah tomou conta do assunto.

– Miss Georgiana é perfeita para o duque. É o que toda a gente diz lá em baixo. Ele é esperto como um alho, dizem, mas muito altivo. Não tanto como a mãe que os ultrapassa a todos, mas um cavalheiro nunca esquece quem é, não é verdade?

Por vezes esquece, pensou Olivia para consigo. Não parecia ter sido um duque o homem que, na noite anterior, a agarrara na sala das pratas.

– A mãe dele, a duquesa viúva, é bem pior – prosseguiu Norah. – Todos me avisaram de que, se eu a vir no corredor, devo fazer uma reverência, depois encostar-me à parede e pôr os olhos no chão. Se ela se dignar falando comigo, devo fazer nova reverência antes de me atrever a erguer os olhos.

Olivia soltou uma exclamação de desprezo.

– Olha como a Lucy fica entusiasmada por te ver.

Norah baixou-se e puxou as orelhas compridas de Lucy.

– É feia, mas mesmo assim há nela qualquer coisa de simpático.

– Acha que ela te quer dizer alguma coisa com tantas lambidelas nas mãos? – perguntou Olivia.

– Ela sente o cheiro de bacon nas minhas mãos. Estive a ajudar a lavar a loiça do pequeno-almoço.

– Mesmo assim, será melhor que a leve à rua antes que suje o tapete.

– Sua Graça não gosta de animais – disse Norah encaminhando-se relutante para a porta. – Estou falando da duquesa viúva. Parece que a forma das patas quase a faz desmaiar. Não é estranho? Se vê um animal a correr fica muito estranha.

– Que coisa – comentou Olivia.

– E a menina já ouviu falar na primeira mulher do duque? – perguntou Norah, deixando-se ficar junto à porta.

– Claro que sei da sua existência, mas terá de me contar esses pormenores mais tarde. A última coisa que quero é precisar de explicar por que razão o meu quarto tem um cheiro tão desagradável.

– Não passava de uma rameira – declarou Norah.

– Não! – A imagem que Olivia fazia do duque não se adequava pensando que ele casara com uma mulher imoral.

– Um horror! Muito atrevida, percebe, menina? Muito mesmo. Saía com a carruagem e andava por aí, levando apenas um cavalariço com ela.

– Que horror – disse Olivia, pensando na expressão séria do duque. Não admirava que tivesse um ar tão soturno.

– Que horror, diz bem – concordou Norah. – E...

Mas, nesse momento, Lucy perdeu a paciência e molhou o chão.

E foi o final de tão interessante conversa.


9

A Apresentação de Lorde Justin Fiebvre

Nessa manhã, enquanto permitia que o criado o vestisse, Quin sentia-se feliz e confiante de que a loucura que o possuíra na noite anterior, desaparecera levada por algumas horas de sono.

De fato, mais do que algumas horas de sono, já que eram quase horas do almoço.

Sentia-se de novo ele mesmo, um homem que valorizava sobretudo a razão e o intelecto. Obviamente teria de manter as distâncias da núbil Ms. Lytton. Havia algo nela que fazia vir à tona o seu lado menos razoável. Chegaria mesmo a descrever-se nas garras de uma luxúria compulsiva.

Sonhara até com ela durante a noite, um tipo de sonho que não tivera durante anos. Nem desde os primeiros anos de casado.

No sonho, entrara num aposento e encontrara Olivia de costas para ele, a ler um livro. Dirigira-se a ela, o corpo latejando de febril antecipação e, sem pronunciar palavra, inclinara-se sobre ela, passando-lhe os dedos pela face, pelo pescoço...

Enquanto procedia a estas carícias, apercebia-se de que ela nada mais vestia do que um leve roupão. Depois, Olivia voltara o rosto para ele e, a sorrir, erguera os braços para o puxar para si. O roupão abrira-se e...

Era embaraçoso ter sonhos assim. Contudo, havia algo no sorriso de Ms. Lytton, mesmo o modo como ela o insultava, que lhe fazia acelerar o pulso.

Mas se um homem não aprendia com os seus erros, seria então menos inteligente do que qualquer membro do reino animal. Até estes aprendiam rapidamente a evitar o fogo da floresta.

Voltou-se quando o criado lhe abotoou o último botão do casaco e depois viu-se ao espelho. A mãe acreditava firmemente que um duque deveria sempre parecer e comportar-se como um membro da aristocracia; fora um felizardo por ela não o ter visto descer a escada a toda a pressa sem casaco.

O casaco fora feito por um alfaiate francês que fugira para Londres. Era cor de ameixa, tinha um corte austero, mas um inegável estilo continental com botões de madrepérola e uma centelha de seda verde no forro da gola e dos punhos. Quin nunca passara muito tempo pensando na sua aparência, mas tinha a certeza de que esta não era a de um guarda-livros.

O seu criado Waller entregou-lhe uma gravata de linho engomada. Erguendo o queixo, Quin começou a tratá-la com um procedimento matemático.

– Miss Lytton chegou com um pequeno rafeiro atrás.

– Saiba Vossa Graça que assim foi – respondeu Waller inclinando a cabeça. – O cão está sempre com ela, exceto quando lhe dão o banho diário. Tem sido assunto de conversa lá em baixo, pois ninguém diria que o animal tinha uma aparência aristocrática.

– Parece uma ratazana – afirmou Quin. – Mas, verdade seja dita, uma ratazana simpática.

– Até amorosa – concordou Waller.

– A minha mãe já foi informada? – Quin inseriu cuidadosamente um alfinete com uma pérola e um diamante nas dobras da gravata.

– Que eu saiba não – replicou Waller, oferecendo a Quin um par de luvas e um lenço engomado. – Mister Cleese julga que não deve ser ele a fazê-lo.

– Covarde – comentou Quin.

Apercebeu-se do sorriso de Waller quando saiu do aposento.

A mãe ficaria extremamente desagradada. Não suportava animais de espécie alguma. Na sua opinião, os animais eram bestas estúpidas controlados apenas por instintos básicos, incapazes de um comportamento civilizado do qual dependia o seu sentido de ordem. Nunca montava e nunca lhe permitirá ter animais de estimação na infância. De fato, saberia que a visita de Ms. Lytton seria breve assim que a duquesa viúva soubesse da existência do cão.

Afinal, Ms. Lytton era evidentemente inelegível, mesmo sem se ter em conta o rafeiro. Era demasiado dada ao prazer – o beijo passou-lhe rapidamente pelo espírito – e na noite anterior soltara uma risadinha. E mais, a risadinha dirigira-se a ele, ao imaginá-lo de touca de dormir.

Mas a irmã parecia ser muito diferente.

Quin pensava em Ms. Georgiana enquanto descia a escada. Esta soltara um suspiro de aflição quando a irmã o comparara a um guarda-livros. Parecia possuir um delicioso sentido de ordem e autocontrole e ser o tipo de mulher em quem se podia ter confiança de que nunca o embaraçaria em público ou em privado.

Bastava-lhe pensar em Evangeline para reconhecer como era profundamente importante para um casamento de sucesso ter confiança na contenção da mulher.

Cleese foi ter com ele ao fundo da escada e acompanhou-o enquanto atravessava a biblioteca; o almoço seria no terraço sobranceiro aos jardins. Quin dirigiu-se às portas abertas, irritado por se aperceber que o seu coração batia apressado. Claro que não estava emocionado com a ideia de voltar a ver a impudica Ms. Lytton.

Disse a si próprio que sentia um natural aumento de ansiedade por ir passar algum tempo com duas jovens, uma das quais, muito provavelmente, se tornaria sua mulher. Um homem com uma história conjugal infeliz tinha todo o direito de se sentir pouco seguro com essa perspectiva.

Claro que a primeira pessoa que viu foi Olivia Lytton. Parou até um momento, imobilizando-se à entrada da porta que levava ao terraço. A jovem envergara um vestido suave cor de violeta que parecia feito de seda e renda. Tiras de seda rodeavam o corpo, cruzando-se sobre os seios num decote grande, fazendo-o sentir vontade de a desembrulhar como um presente. Olivia tinha as curvas de um quadro de Rubens, de uma das exuberantes deusas da caça.

Ela inclinou-se a rir e Quin sentiu dificuldade em respirar. Apanhara o cabelo, mas algumas madeixas caíam-lhe em redor do rosto. Era...

Baixou os olhos. A sua casaca severamente cortada não estava preparada para ocultar aquele tipo de reações. Um constrangimento, disse para consigo regressando pouco à vontade à biblioteca.

Luxúria, disse para consigo. O seu corpo concordava com esta palavra, embora ela não fosse suficientemente forte para definir o feroz desejo que o invadia.

Ouviu um pequeno ruído aos seus pés. A cadelinha de Ms. Lytton estava ali, com o focinho estranho inclinado e a cauda fina agitando-se furiosamente. Quin ajoelhou e coçou o animal debaixo das enormes orelhas.

– É muito coquete – declarou. – Chamas-te Lucy, não é verdade?

A cadela agitou a cauda como que a concordar e lambeu a mão de Quin entusiasmada. Este respirou fundo e levantou-se, estava de novo calmo. Calçou as luvas.

– Anda lá – disse para Lucy. – Vamos ter com os outros ao terraço.

Mas, quando chegou à porta, o animal afastou-se para o lado e desapareceu atrás das cortinas. O grupo, florido e pitoresco, estava reunido no extremo do terraço. Com algum susto, percebeu de que era o único homem.

A mãe voltou-se para o cumprimentar.

– Cá está o menino – disse. – Quero apresentá-lo, Tarquin.

Quin aproximou-se e juntou-se ao círculo. A duquesa viúva começou pela esquerda.

– Miss Georgiana Lytton, o meu filho, duque de Sconce. – Georgiana mostrava apenas uma leve semelhança com a mulher encharcada que ajudara a sair da carruagem acidentada. Tinha cabelo castanho com madeixas cor de bronze, apanhado em caracóis em redor da cabeça. Os olhos eram alegres e inteligentes, mas o que mais lhe agradou foi sobretudo a sua graça natural e o porte digno.

Fez uma reverência. Georgiana inclinou a cabeça e baixou-se numa bonita reverência. A mãe dele observou-a com notório afeto.

Pronto, pensou Quin enquanto beijava a luva de Georgiana. Era perfeita. Parecia até uma futura duquesa. Envergava uma coisa cor-de-rosa com muitas preguinhas. Não se parecia nada com o vestido da irmã – não o fazia rugir de desejo –, mas teria de concluir que estava à la mode, com mangas curtas que formavam um balão em redor dos ombros, com uma espécie de elegância própria de uma modiste francesa.

Parecia pronta a que lhe pintassem o retrato para pendurar na parede ao lado do das outras duquesas que tinham habitado aquela casa.

– Miss Lytton, posso apresentar-lhe o duque – disse a mãe com a voz levemente alterada. – Miss Lytton é a irmã gêmea de Miss Georgiana. – Via-se perfeitamente que Olivia não era a favorita naquelas manobras matrimoniais, o que de modo algum o surpreendeu.

Olivia fez uma reverência, menos profunda do que a da irmã e Quin fez uma reverência. O cabelo dela era mais escuro do que o da irmã.

– Miss Lytton – continuou a mãe – está noiva do marquês de Montsurrey. Embora o marquês não frequente muito a sociedade, tenho a certeza de que conhece o pai, o duque de Canterwick da Casa dos Lordes.

Quin imobilizou-se a meio da reverência ao ouvir a palavra noiva e os seus lábios tocaram a luva de Olivia. Sentiu os dedos dela estremecerem na sua mão; ou talvez fosse a sua mão que estremecia em volta dos dedos dela. Suspirou.

– Realmente – disse. – Desejo as maiores felicidades para o seu noivado, Miss Lytton. Receio bem não ter tido o prazer de conhecer o marquês.

Ela sorriu. Tinha covinhas. Não, apenas uma covinha na face direita.

– Rupert comanda uma companhia contra os franceses – disse. – É muito patriótico.

– Deve ser – disse Quin, recompondo-se e fazendo um silencioso aceno ao marquês ausente. Também ele pensara em ir para a guerra com França, mas fora impossível, pois o pai morrera e não tinha irmãos, sendo por isso responsável pela enorme propriedade que se estendia por três condados ingleses, para não falar das terras na Escócia. Não podia partir.

– Tenho o maior respeito por esses homens que defendem o nosso país das incursões de Napoleão.

– Posso apresentar-lhe Lady Althea Renwitt e a mãe, Lady Sibblethorp – disse a duquesa viúva, ignorando a questão de Napoleão. Não concordava com a guerra; tinha fortes objeções contra os franceses que haviam dizimado a sua nobreza, mas não percebia por que razão a Inglaterra arriscaria vidas inglesas por isso. Quin desistira de lhe explicar. – Lady Althea, Lady Renwitt, o meu filho, duque de Sconce.

Lady Althea era muito baixa e tinha duas covinhas enquanto Olivia tinha apenas uma. Sorriu de tal forma que ambas, e também uma enorme extensão de dentes, ficaram em evidência e disse:

– É um prazer conhecer Vossa Graça. – Depois soltou uma risadinha.

– A minha irmã, Lady Cecily, não poderá reunir-se conosco, pois machucou o tornozelo no acidente de ontem à noite – disse a mãe. – Julgo que Cleese deseja agora começar a servir o almoço. Claro que não estamos em proporção. E não há sinais de Lorde Justin. – Voltou-se para Lady Sibblethorp. – É o filho do meu irmão. A mãe era francesa e suponho que tenha herdado desse lado da família a propensão para se atrasar. Por vezes, não aparece senão depois do segundo prato.

Quin pensou que a explicação mais provável era que Justin levava mais tempo a vestir-se do que uma mulher. Mesmo assim sentiu-se um pouco melhor por se lembrar que o primo também assistiria ao almoço. Embora não se pudesse dizer que Justin já fosse um homem aos dezesseis anos, meio homem seria melhor do que nenhum.

Nesse preciso momento ouviu-se um bater de tacões. Todos se voltaram para assistir à característica entrada triunfal de Lorde Justin Fiebvre que parou por um momento à porta, lançou para trás a madeixa de cabelo que constantemente – e era de acreditar deliberadamente – lhe obscurecia os olhos e exclamou:

– Quanta beleza! Sinto-me a entrar no Jardim das Hespérides.

Trazia Lucy debaixo do braço, com o focinho comprido metido na seda cor de pérola da extraordinária casaca bordada com arabescos prateados e contas azul-claras.

A duquesa viúva endireitou os ombros irritada. Permitia que Justin a afrontasse, o que era uma tolice na opinião de Quin. Justin não era completamente inglês nem completamente adulto, mas debaixo de todos aqueles folhos era um rapaz decente.

– Lorde Justin – declarou a duquesa. – Posso perguntar-lhe porque traz esse... esse animal debaixo do braço?

– Encontrei este amorzinho na biblioteca – respondeu com um sorriso. – Não poderia abandonar uma menina solitária.

Pela maneira como o olhava, a duquesa considerava a casaca pouco apropriada para um almoço no campo – embora fosse difícil distinguir a sua reprovação em relação ao traje do seu evidente desagrado pelos cães.

Mas Justin tinha o hábito encantador de ignorar o desagrado da tia. Tinha uma disposição muito alegre e preferia, como costumava dizer, ver a felicidade.

– E quem será a dona deste encanto? – perguntou olhando para todos enquanto acariciava a cabecinha de Lucy.

– É minha – disse Olivia aproximando-se. – Deixei-a na biblioteca pois parecia ter muito medo de vir para a luz do sol. Creio que a Lucy não seja uma cadelinha muito corajosa.

– Nem todos temos de ser corajosos – retorquiu Justin. – Eu, por exemplo, estou entre a maioria covarde, mas respeitável. A sua Lucy é simplesmente encantadora.

– Se quisesse fazer o favor de se juntar a nós, Lorde Justin – interrompeu a duquesa viúva. – Vou apresentá-lo às nossas convidadas.

– Que belo prazer me aguarda! – Justin posou Lucy a seus pés e o animal correu para junto de Olivia e escondeu-se atrás dela. A duquesa afastou as saias, mal abafando um grito.

Justin fez uma profunda reverência pegando na mão de cada dama, beijando-as ao de leve e murmurando elogios. Adorou o vestido de Ms. Lytton (e Quin também), o anel de Ms. Georgiana, as fitas de Lady Althea...

Quin ficou muito interessado ao ver que, enquanto Lady Althea caía num perfeito frenesim de covinhas, Olivia e a irmã pareciam mais divertidas do que encantadas.

Respirou fundo e obrigou-se a ficar calmo.

Para um homem que se orgulhava de não experimentar emoções, Quin reagira à novidade do noivado de Ms. Olivia Lytton com o marquês de Montsurrey com uma coisa tão primitiva que ele quase não se reconheceu.

Teve de evitar erguê-la e transportá-la para a biblioteca, para bater com a porta atrás de si – depois do que se asseguraria que ela desistiria do noivado.

Mas ele nunca batia com as portas. Isso era para... era para outros homens. Do tipo emocional. Quin não era emocional. O que era bom, recordou-se ele, porque estava em perigo de se surpreender.

Poderia estar a experimentar um qualquer tipo de insanidade temporária? Talvez houvesse uma síndrome médica que incluísse beijar a mulher do vigário e, como não houvesse qualquer matrona à mão de semear, beijar uma desconhecida que lhe aparecesse à porta a meio de um anoite de tempestade.

Claro que Olivia teria provavelmente todos os homens libidinosos de Londres a arfar atrás dela, dado a sua voluptuosa figura. O vestido que usava era feito de panos diferentes que a envolviam por cima e por baixo e havia também um toque de renda sobre os seus seios... talvez chamar-lhe a Síndrome de Olivia.

A questão era a...qual era a questão? Era invulgar Quin sentir-se a vaguear por entre pensamentos incoerentes.

– Como não temos número par – declarou a mãe dele –, lamento, mas algumas senhoras não serão acompanhadas. Tarquin, o menino pode acompanhar Miss Georgiana e Lady Althea até ao almoço. Lorde Justin, pode acompanhar Miss Lytton. Lady Sibblethorp e eu seguiremos juntas – fez uma pausa momentânea.

– Miss Lytton, pediria que colocasse esse cão dentro de casa antes de se juntar a nós. Não tolero os animais junto à mesa do almoço. De fato, preferiria que o animal ficasse sempre nos estábulos.

– Garanto a Vossa Graça que, se estivesse em meu poder meter a Lucy nos estábulos, falaria. Mas, antes de partir para a guerra, o meu noivo, o marquês de Montsurrey, implorou-me que a conservasse sempre junto a mim. Não poderia negar o pedido de um homem envolvido na defesa do nosso país.

– Tenho a certeza de que não falava literalmente – replicou acidamente a duquesa viúva.

– Receio que Rupert seja literal em todos os seus pedidos.

– De fato – a duquesa semicerrou os olhos. – Ouvi dizer qualquer coisa a esse respeito.

Quin ficou tenso com o que ouviu, mas Olivia limitou-se dizendo:

– De fato, parece-me que a Lucy se tomou de amores por Vossa Graça.

Todo o grupo ao mesmo tempo baixou os olhos e viu Lucy sentada junto às saias da duquesa, descansando a patinha na ponta do seu sapato.

A duquesa soltou um som estrangulado.

– Fora!

Lucy pareceu não se emocionar com a ordem. Limitou-se a erguer o focinho comprido e a soltar um pequeno uuff, deixando a pata onde estava.

– Tarquin! – chamou a duquesa baixando os olhos com o mesmo horror com que receberia um polvo dentro da sua banheira.

Antes de Quin poder ir em seu auxílio, Olivia pegou no cão.

– Lamento muito – exclamou. – Não fazia ideia que Vossa Graça tinha tanto medo de cães.

A duquesa viúva recuperou imediatamente a compostura.

– Claro que não tenho medo de cães. Simplesmente enervam-me por serem sujos. Dado que sei quem é o seu noivo, Miss Lytton, penso que podemos ambas concordar que pode ignorar o pedido dele. Ponha o cão nos estábulos. Comece já para depois poder continuar.

Foi a vez de Olivia se irritar.

– Tenho a certeza de que Vossa Graça não deseja falar nesses termos do marquês de Montsurrey – e, quando a duquesa abriu a boca, Olivia continuou. – Eu própria sentiria relutância em ser desleal, mas não me ofendo, pois tenho a certeza de que Vossa Graça não tinha qualquer intenção de sugerir algo que lhe mancharia a reputação da cortesia.

Quin nem se preocupou em deslindar o assunto; percebia que fora lançada uma luva aos seus pés. A mãe mantinha-se rígida como um soldado em parada e Olivia também. Eram aproximadamente da mesma altura e pareciam mostrar igual força de vontade. E, o que era ainda mais enervante, cada uma das damas tinha um leve sorriso no rosto.

– Desde que Lucy se mantenha na minha presença, exceto às refeições, conforme exigido pelo meu noivo – prosseguiu Olivia –, farei os possíveis por mantê-la fora da vista de Vossa Graça.

Houve um terrível momento após o qual a duquesa viúva disse:

– Assim terá de ser.

Olivia inclinou-se numa reverência, mantendo Lucy debaixo do braço.

– Espero não ter ofendido Vossa Graça, mas fui levada pela recordação das vossas palavras: Uma dama prefere uma suave reprimenda a um elogio extravagante.

Ouviu-se uma suave exclamação da parte de Lady Sibblethorp e Quin achou que era tempo de separar os adversários antes que a mãe esquecesse alguns dos preceitos que lhe eram tão caros; pela sua parte, Olivia parecia considerá-los pouco mais que armas.

– Miss Georgiana e Lady Althea – exclamou. – Dão-me a honra de as acompanhar ao almoço?

– Miss Lytton – perguntou Justin em voz doce. – Posso entregar a Lucy a um criado?

Mas a duquesa viúva, com o queixo levantado, ignorou ambos.

– Creio que subestimei a sua afeição pelo marquês, Miss Lytton.

– O meu noivo não demonstra grandes capacidades, mas garanto a Vossa Graça que a doçura do seu caráter inspira lealdade.

A duquesa viúva acenou afirmativamente. Para surpresa de Quin, lia-se nos olhos um respeito pouco habitual.

– Desejo que me perdoe pela indignidade da minha sugestão.

O sorriso de Olivia era encantador.

– E eu arrependo-me do fundo do coração das palavras pouco delicadas com que me dirigi a Vossa Graça.

– Por amor de Deus – gemeu Justin, de modo a ser ouvido. – Parece-me que estou a assistir a uma aula de elocução.

Nenhuma das damas lhe prestou a mínima atenção.

– O marquês de Montsurrey é um felizardo – declarou a duquesa. – Escreverei imediatamente a seu pai, informando-o que a escolha da mulher para o filho é uma honra para a família.

Olivia baixou a cabeça e inclinou-se em mais uma profunda reverência.

Quin, que se distraíra momentaneamente do assunto do noivado de Olivia, teve de se controlar para não soltar um urro.

Felizardo? Se bem se apercebera, o pai de Montsurrey escolhera Olivia do mesmo modo que ele permitia que a mãe lhe escolhesse esposa.

De súbito, percebeu de que Georgiana lhe sorria expectante. Inclinou-se, rígido como uma marionete.

– Miss Georgiana.

Ela passou-lhe a mão por baixo do braço.

– Vossa Graça.

Não eram restos. Não eram.


10

Nunca se Deve Subestimar o Poder de Um Folho de Seda

Georgiana parecia sentir simultaneamente um misto de admiração e de assombro. Ao mesmo tempo tinha compostura e respeito por si própria. Era assim que uma dama devia olhar para um duque. E não soltara uma única risadinha.

Por outro lado, Lady Althea soltara uma pequena gargalhada no preciso momento em que ele lhe dera o braço.

– Espero que o convite da minha mãe não vos tenha afastado de Londres numa ocasião pouco oportuna – disse Quin acompanhando Georgiana e Althea, uma de cada lado, pelo terraço. Cleese pusera a mesa no extremo, à sombra da clematite em flor.

– De modo algum – respondeu Georgiana. – Tenho de confessar que a temporada estava a ser ligeiramente entediante.

– Já há muitos anos que a menina sai, não é verdade? – perguntou Lady Althea, mas logo acrescentou com uma expressão encantadora e afogueada. – Espero que não a tenha embaraçado com esta observação, Miss Georgiana. A menina parece tão jovem que uma pessoa esquece como o tempo passa.

Quin olhou para a trouxinha de feminilidade que trazia agarrada ao braço esquerdo. Althea provavelmente apercebera-se de que estava a ficar para trás na corrida ducal e tratava de apunhalar a adversária para a afastar da competição.

– De fato, fui apresentada à sociedade já há alguns anos – disse Georgiana sorrindo para Althea quando se sentaram. Quin sentou Althea numa cadeira ao lado da mãe. Georgiana parecia não se ter incomodado com o comentário de Althea.

– Nunca pensei que a juventude fosse um bom indicador de possibilidades casamenteiras – comentou Olivia quando Justin a conduziu ao seu lugar, à esquerda de Quin. – Há fatores muito mais importantes.

Educado pela mãe acerca dos pontos mais importantes da etiqueta, Quin reparou que Ms. Lytton não deveria ter interferido numa conversa de que não fazia parte. Mas, obviamente, a regra era maleável: a duquesa viúva sentiu-se também incapaz de resistir.

– A virtude é o bem mais caro de uma dama – declarou para logo acrescentar: – Considero a idade uma questão pouco importante.

– Concordo inteiramente – afirmou Olivia. – Todavia, devo afirmar que tudo depende das virtudes em questão. Muitas vezes, as jovens têm todas as virtudes de que eu não gosto e nenhum dos vícios que admiro.

– Ninguém pode não gostar da virtude! – exclamou Althea.

– Mas creio que a menina considera a inexperiência uma virtude, pelo menos no que diz respeito ao mercado matrimonial.

– Pois sim – disse Althea hesitante. Perdera o controle da conversa e sabia-o.

– Contudo, pode ser esmagadoramente enfadonha – com um sorriso brilhante, Olivia voltou-se para Justin e perguntou-lhe como era a temporada das perdizes em redor de Littlebourne Manor. Althea abriu a boca e logo a fechou.

– Lady Althea – disse Georgiana. – Recordo-me de ouvir que a senhora é amante de línguas estrangeiras. Todos gostaríamos de ter conhecimento das suas proezas nessa área. Penso que esses conhecimentos são muito importantes para quem tem de receber gente de fora, como tenho a certeza acontece com a senhora.

Uns instantes depois Althea começou a tagarelar – em inglês – acerca dos seus conhecimentos de italiano, alemão e francês.

Quin observava-a em silêncio, pensando em Georgiana. Pelo visto, esta não tinha rodado, o que quer que aquilo significasse. Evangeline tinha rodado, claro. Ele tivera de afastar vários pretendentes, embora, na realidade, no momento em que o pai de Evangeline soubera que havia um duque em jogo, os outros foram imediatamente cartas fora do baralho.

Quin sempre pensara que o sucesso de Evangeline no mercado se devia ao fato de ela corar quando se sentia feliz.

Mas o que um pretendente não poderia saber é que Evangeline não corava quando estava infeliz, o que, conforme se lembrava, acontecia quase sempre.

Miss Georgiana não era do tipo de corar. Tinha a pele muito branca, quase tão pálida como a da irmã. Tinha também um nariz adorável, embora e, mais uma vez, Olivia ficasse ligeiramente em vantagem.

A única nota possivelmente pouco atraente nela era o fato de ser muito magra, parecendo mais um rapaz esguio do que uma mulher feita. O vestido tinha um decote generoso, que mais não fazia do que acentuar as diminutas características que se encontravam por baixo.

Não que tivesse alguma importância, disse rapidamente para consigo. Uma duquesa é mais do que o seu colo. Não era um homem tão básico que caísse de joelhos diante de um folho de seda violeta e de um par de seios sensuais.

– Acho muito interessante que o senhor se ocupe com o estudo das matemáticas – disse Georgiana voltando-se para ele, quando terminou a conversa sobre as línguas estrangeiras. Estava à direita dele e Olivia à esquerda, pois Althea fora colocada ao lado da mãe. Quin tentava não olhar demasiadas vezes na direção de Olivia.

Um cavalheiro não come com os olhos a noiva de outro que foi servir a pátria. Principalmente se se tratar de um nobre, que poderia ter seguido o caminho mais fácil, como Quin fizera.

Não era a primeira vez que se sentia culpado. Não era fácil sentir-se em paz. Quando era rapaz, sonhara usar as suas divisas e chefiar um batalhão.

– O estudo das matemáticas – disse por fim. – Sim estou muito interessado na arte da matemática.

– Ouvi falar da obra de Leonhard Euler acerca das funções matemáticas – disse timidamente Ms. Georgiana. – Considero-a fascinante.

– A menina... a menina leu a obra de Euler?

Uma leve ruga surgiu na testa de Georgiana.

– Tanto quanto sei, senhor duque, não há qualquer lei que impeça as mulheres de lerem a London Gazette. Há alguns meses que a obra de Euler foi extensamente discutida.

– Claro – disse Quin apressadamente. – Peço desculpas por parecer tão sético.

Ms. Georgiana tinha belos modos. Lançou-lhe um olhar límpido e um doce sorriso.

– Também trabalha com funções matemáticas?

– Trabalho, sim – disse ele, hesitante. Mas ela sorriu de novo, por isso Quin lançou-se numa descrição do método babilónico de calcular raízes quadradas.

Terminou o seu discurso dez minutos mais tarde, descobrindo que os comensais estavam todos a olhar para ele no mais absoluto silêncio.

Olhou para Georgiana para ver se ela mostrava o mesmo nível de incredulidade. Mas não: os olhos dela estavam alerta e interessados.

– Se bem entendi – disse ela –, o senhor está tentando acentuar que este processo não funcionará usando um número negativo.

– É exatamente isso que eu penso – disse a mãe.

Até um idiota saberia interpretar a voz da duquesa, Ms. Georgiana acabara de passar o primeiro teste. Sem ser exageradamente erudita, era inteligente e interessada em outros assuntos que não os do governo da casa.

Olivia, por outro lado, olhava-o divertida, nada admirada e muito menos extasiada. Não se mostrava fascinada pela sua lição de matemática.

– É aborrecido, bem sei – disse algo timidamente.

– De modo algum – sussurrou Georgiana.

– Sim, claro que é – afirmou Olivia precisamente ao mesmo tempo. – Talvez da próxima vez possa vender bilhetes antecipadamente.

– Bilhetes, Miss Lytton? – perguntou a duquesa viúva.

– Exatamente – replicou Olivia, lançando um sereno sorriso. – Sei que é um defeito meu, mas ficaria muito mais feliz se pagasse por uma conferência, mesmo que adormecesse no seu decorrer. A educação deveria ser cara, não acha?

– É absurdo – declarou a duquesa.

– Conforme Vossa Graça escreveu Uma dama deve ter sempre consciência das fraquezas do seu caráter. – Depois acrescentou: – Nem será preciso dizer que minha mãe é grande admiradora de O Espelho dos Elogios.

– Sei perfeitamente – disse a duquesa, com leve entusiasmo. – Estive com a sua mãe em várias ocasiões e sempre me pareceu notavelmente sagaz para o seu nível.

A ira perpassou pelos olhos de Olivia, mas o seu sorriso aprofundou-se, no entanto, a covinha não apareceu. Mentalmente Quin recuou um passo.

Quem quer que pensasse que o sorriso indicava apreço ficaria completamente desiludido.

– Faz-me lembrar um novo aforismo que se poderia aplicar – disse ela docemente. – Até os fantasmas dos falecidos antepassados prefeririam dormir a escutar alguém tagarelar como um papagaio embriagado. – Embora, pensando melhor, talvez não possa atribuí-lo ao Espelho dos Elogios.

– A menina tem um sentido de humor muito vivo, Miss Lytton – comentou a duquesa viúva. E não era um elogio.

– Sinto curiosidade acerca dos fantasmas dos meus antepassados vivos, não dos mortos – disse Justin com uma expressão maliciosa no olhar. – Que fazem eles enquanto Quin se lança em lucubrações matemáticas?

– Miss Lytton – interveio Quin.

– Vossa Graça?

– Prometo não a informar de novo acerca das raízes quadradas sem primeiro emitir bilhetes.

– Quanto a mim, gostaria de receber um desses bilhetes – declarou Georgiana com um afetuoso sorriso. – E peço desculpa pela irreverência da minha irmã. Receio que estejamos habituadas a gracejar uma com a outra.

Ela era em tudo perfeita para ele.

– Já não tenho a fortaleza moral para suportar lições de matemática – comentou Justin. – Por isso, primo, se me desculpar, não vou comprar bilhetes para as conferências acerca das complexidades das raízes quadradas.

– Miss Georgiana – disse a duquesa –, gostaria de lhe pedir a sua opinião acerca dos caixilhos de pedra das janelas em estilo gótico.

– O seu comentário implica que o senhor já teve fortaleza moral para suportar lições de matemática – respondeu Olivia a Justin. Tinha um modo especial de sorrir com os olhos enquanto falava, como se tivesse pensamentos maliciosos, que Quin muito apreciava.

– Não, nunca tive – replicou Justin, inclinando-se ligeiramente. – Pelo menos no que diz respeito às matemáticas. Agora se a senhora estivesse falando de coisas verdadeiramente interessantes...

– Moda – alvitrou ela.

– Adoro! – exclamou Justin, acrescentando: – A vida nada é sem o embelezamento oferecido pelo vestuário adequado. Mas a minha verdadeira paixão é escrever poesia e baladas.

– Justin escreveu cento e trinta e oito sonetos, todos à mesma mulher – referiu Quin, introduzindo-se na conversa, embora o correto seria continuar a conversar com Georgiana. Mesmo assim, esta nada tinha dizendo sobre os caixilhos, fato a que a mãe teria de fazer a devida apreciação.

– Não me diga! – exclamou Olivia, parecendo muito impressionada.

– Chama-se um ciclo de sonetos – informou-a Justin.

– São muitos sonetos e ainda mais rimas. Quando se compõe um tal ciclo, é permitido repetir rimas? Como, por exemplo, amor com calor?

– Nada de calor – disse Justin com um gesto da mão. – Calor é para os fogões e para os velhos. E amor é mais difícil rimar do que parece. Como outras palavras, quantas vezes se pode escrever acerca de luvas, por exemplo? Depois de se desejar ser a luva da mão de uma dama, que mais haverá dizendo?

– Porque quererá alguém ser uma luva na mão de uma dama? – perguntou Quin.

Justin revirou os olhos, coisa que fazia com frequência sempre que Quin participava na conversa.

– Porque a luva toca na face da senhora, evidentemente.

– E em outros sítios – acrescentou Olivia pensativa. Quin surpreendeu-se por ter vontade de rir.

– Tal como no nariz dela – acrescentou.

– Isso não é muito romântico – disse Justin, abanando a cabeça.

– Tenho pena de não ter uma alma romântica – lamentou Olivia como que a pedir desculpas.

– Espero que não – disse a duquesa viúva, interrompendo. – Se vai ser duquesa, Miss Lytton, garanto-lhe que uma alma romântica será prejudicial a uma mulher da nossa condição. – Lançou a Quin um olhar cheio de intenções. – Calculo que todos preferimos falar de algo mais elevado do que as tristes tentativas poéticas de Lorde Justin. Lady Sibblethorp, como vão as suas obras de caridade com os jovens transviados?

Lady Sibblethorp sentiu-se mais do que feliz por poder transmitir pormenores acerca das camisas azuis e sapatos pesados que a sua organização distribuía pelos rapazes de famílias desfavorecidas: as duas categorias pareciam sobrepor-se.

– Que interessante – comentou Georgiana conseguindo parecer verdadeiramente interessada. – Como decide a quem dar camisas e a quem fornecer sapatos, Lady Sibblethorp? – Para além de inteligente parecia ser caritativa. Maravilhoso.

A senhora em questão pareceu inchar de orgulho e deu início a uma animada discussão de cachecóis, meias, camisas e casacos.

Quin escutou-a durante o tempo que lhe pareceu necessário e depois voltou-se para Justin e Olivia. Estes tinham ignorado simplesmente as instruções da duquesa: Justin recitava excertos da sua poesia e Olivia troçava deles; era mais que evidente que se divertiam enormemente.

– Nasci sob uma estrela – recitava Justin. – E assim a Lua estava ao meu alcance.

– Mas que diabo quer dizer isso de ter nascido sob uma estrela? Eu nasci de noite, por isso também sou candidata. Ou quer dizer que a Lua me pode cair na mão?

– É uma homenagem – explicou Justin. – Comparo muitas vezes a minha amada a Cíntia, a deusa da Lua. Ela está ao meu alcance porque eu nasci sob uma estrela – fez uma pausa. – Nascer sobre uma estrela. Gosto. Tenho de me lembrar de contar ao meu preceptor que certamente há de aplaudir.

– Pensei que Mister Usher deveria preparar-te para o próximo período em Oxford em vez de alimentar a sua paixão pela poesia – comentou Quin.

– Ensinou-me uma infinidade de coisas acerca da matemática – afirmou Justin com uma patente falta de verdade.

Quin franziu a testa.

– Quem é a sua amada? Já me leste vários poemas, mas creio que nunca te pedi essa importante informação. Talvez uma jovem que conheceste em Oxford?

– Oh, mas não tenho uma amada – admitiu Justin alegremente.

– Cento e trinta e oito sonetos a uma dama que não existe – disse Olivia parecendo impressionada. – Alguma vez descreveu essa pessoa da Lua?

– Deusa da Lua – corrigiu Justin. – Claro que sim. Tem cabelo de prata.

– Que surpresa – disse Olivia de um modo tal que Quin percebeu que outra gargalhada se lhe erguia no peito. – Deixe-me adivinhar: olhos cintilantes?

– Em geral brilham. Cintilam em dois poemas, um soneto e uma balada.

– Parece-me um pouco desagradável. Não está preocupado que ela venha a parecer-se com uma abóbora do dia das bruxas?

– De modo algum – retorquiu Justin com dignidade. – A minha dama não se parece com uma abóbora esculpida. Usurpa o sol e as estrelas com a sua beleza.

– E as toilettes dela? Prefere vestidos de cintura subida, ou é mais antiquada, por ser uma deusa e portanto mais velha?

– Já ouvi o suficiente desses poemas para saber que consideras a senhora mais como uma Lady Godiva do que como uma dessas lanternas – comentou Quin.

– Vossa Graça surpreende-me! – exclamou Olivia fazendo surgir a sua covinha.

De fato, Quin surpreendia-se a si próprio.

Justin revirou os olhos.

– Os meus poemas são de todos os tempos. Ficariam datados se descrevesse um vestido. E se eu descrevesse a minha deusa da Lua de turbante? No próximo ano transformaria numa desmazelada e eu teria desperdiçado o meu tempo no poema.

– Certamente ninguém desejaria escrever um poema que não pudesse ser reutilizado – concordou Olivia. – Percebo por que razão o melhor é ela estar nua. A sua Deusa da Lua desfere um golpe importante nas enfadonhas regras de conduta contra as quais todos nós nos irritamos.

– Ah, sim? – perguntou Quin, inclinando-se para ela. – Estará a menina a revelar um toque de Lady Godiva em si própria, Miss Lytton? – E olhou-a de frente até lhe ver as faces levemente coradas.

Depois inclinou-se para trás, consciente de que o coração lhe batia no peito de um modo extremamente deselegante. A simples menção de Lady Godiva evocava nele a imagem de Olivia, nua e sensual, os seios semiocultos pelas madeixas de cabelo escuro, a sua boca maliciosa a rir-se para ele.

– A minha Deusa da Lua não está nua! – exclamou Justin revirando mais uma vez os olhos. – Simplesmente não menciono a roupa. Além disso, prefiro escrever acerca do que se sente quando se está apaixonado. Eis uma das minhas estrofes preferidas: Por você, subiria à torre mais alta, precipitar-me a atravessar o mar.

– Detesto parecer pedante, mas esses dois versos não são pentâmeros jâmbicos e também não rimam – fez notar Olivia. – Tenho a certeza de que um dístico deveria rimar.

– Parece-me mais problemático o fato de as duas atividades serem tão diferentes – comentou Quin. – É bastante provável que pudesses subir a um campanário se necessário fosse, Justin, mas nunca conseguirias correr sobre as águas.

– A menos que nos esconda sinais de divindade – ironizou Olivia, com a covinha brincando-lhe de novo ao canto da boca. – Afinal nasceu sob uma estrela.

Olharam ambos para o jovem Justin e depois os olhos de Quin encontraram-se mais uma vez com os de Olivia com um espanto profundamente agradável.

– Não há sinais visíveis. Não se vê qualquer halo sobre ele.

Justin era uma alma notavelmente bem-humorada.

– Incultos – disse, mas sem qualquer irritação. – A poesia não precisa de rima. Apenas os picuinhas dão importância a essas coisas.

– Os dísticos devem rimar – respondeu Quin com firmeza. – Mas tem razão no que diz respeito à descrição. Porquê prenderes-te. Compreendo que as metáforas são de rigueur no que diz respeito aos versos.

– Suponho que sejam muito difíceis de escrever – disse Olivia. – Os únicos poemas que consegui decorar usam muitas metáforas, mas nunca consegui escrever nenhum.

– Como por exemplo? – perguntou Quin.

– Havia uma donzela, um botão de rosa, com a agulha muito habilidosa... – disse-lhe com olhos risonhos. – E por aqui me fico, se não se importa. Mas garanto-lhe que, no que diz respeito a metáforas, não há como as quintilhas humorísticas.

– Já ouvi essa – interrompeu Justin, olhando para a sua convidada com renovado respeito. – Nunca pensei que as senhoras gostassem de quintilhas humorísticas.

– De uma maneira geral, não gostam – concordou Olivia. – Sou uma aberração. A maioria das senhoras ficaria em êxtase se recebesse um lindo poema de amor feito por si. Pergunte a Sua Graça. Talvez ele tenha escrito versos na sua juventude.

Justin soltou uma exclamação de desprezo.

– Quin não conseguiria escrever um poema nem que o próprio Shakespeare o inspirasse.

– Conseguiria sim – protestou Quin. Sentia-se temerário, embriagado pelo brilho dos olhos de Olivia.

– A minha dama faz-me falta e eu sou... uma torre alta. Pelo menos rima.

A gargalhada de Olivia enviou uma onda de calor ao baixo-ventre de Quin.

– Vossa Graça surpreende-me. Nunca esperei que exibisse uma tal habilidade metafórica. Damas e torres são surpreendentemente... evocativas.

Se ele bem a compreendera, Olivia transformara a sua desgraçada metáfora em algo muito erótico. E aparentemente sem que o seu jovem primo compreendesse.

– Possivelmente, conseguiria fazer outras comparações elaboradas – disse Quin franzindo a testa.

– Tem razão – concordou Olivia. – Penso que deve ficar-se pela metáfora arquitetônica. Talvez pudesse tentar com um castelo.

O sorriso dela desafiava-o.

– Um castelo seria difícil – afirmou Justin com autoridade. – Não rima com grande coisa.

– O castelo do teu corpo é meu por direito de conquista – declarou Quin, pegando no copo de vinho. Tomou um gole e olhou para Olivia, sabendo que os seus olhos estavam pesados de desejo.

Havia uma tal onda de calor entre eles que Quin se sentiu momentaneamente surpreendido por a toalha de mesa não se ter incendiado.

– E o fosso? – perguntou ela, com o sorriso malicioso a brincar-lhe de novo em redor dos lábios. – Certamente... alguém poderá... mergulhar no fosso?

Por fim, Justin percebeu e desatou também a rir.

– As muralhas – disse, quase sufocado. – Não podemos esquecê-las, Quin!

Com tanta diversão, a duquesa viúva não pôde deixar de interferir.

– Devo perguntar-vos se têm um assunto cómico para partilhar com os comensais. Justin lançou-lhe um doce sorriso.

– Estamos a discutir a arquitetura dos castelos medievais, minha tia. É natural que o assunto tenha alguma graça.

– As ameias – confirmou Olivia, acenando afirmativamente. – No contexto da literatura.

A duquesa viúva semicerrou os olhos. Depois perguntou severamente a Georgiana e a Althea acerca da utilização do veludo adamascado no dossel das camas. O assunto era evidentemente relevante para o casamento. Quin voltou-se imediatamente para Justin e para Olivia.

– Prefiro ideias dramáticas – dizia Justin. – Por exemplo, tenho sessenta e sete poemas que prometem fazer o impossível pelo amor.

– Suponho que é aí que entra a história de caminhar sobre as águas – referiu Olivia. – Que outras coisas promete?

– Caminhar sobre o fogo – disse Justin. – Ter o mundo na mão.

– Essas duas coisas sofrem da mesma incompatibilidade – declarou Quin. – Supondo que seja possível caminhar sobre o fogo... embora saltar seja talvez uma descrição mais precisa... é evidente que terão ilusões de grandeza.

– Lorde Justin, se o senhor tiver um lado divino, seria este um ótimo momento para o revelar – declarou Olivia esperançosa.

– Creio que todos concordaremos que Miss Olivia e o meu primo têm almas tristemente prosaicas – disse Justin. – A poesia é o meu destino. A troça não me deterá. Um dia encontrarei uma dama tão bela como a Lua e já terei os poemas escritos.

– Ainda terei de encontrar uma dama assim – declarou Olivia. – Alguma vez Vossa Graça se sentiu atingido pelo feitiço da Lua?

Quin olhou-a e rejeitou a ideia da Lua.

– Muito fria, pálida e insípida – respondeu. – Preferia uma deusa que produzisse a sua própria luz em vez de refletir a dos outros.

– Não consigo imaginá-lo apaixonado, mas nunca se pode dizer nunca – declarou Justin.

– A poesia pode ser também o destino de Sua Graça – admitiu Olivia com os olhos saltitantes. – Basta ver o seu criativo versejar em volta de um castelo... e isso é que nem chegou às muralhas. Muitas pessoas não pensam no desenho das fortificações em termos tão sugestivos.

– Em que termos? – perguntou a duquesa viúva subitamente, voltando a cabeça.

– Em termos de construção – retorquiu inocentemente Olivia. – Sua Garça tem frases de jeito arquitetônico.

Se a mãe de Quin possuísse a propensão dramática de Justin, teria revirado os olhos.

– Vamos dar um pequeno baile dentro de dias – anunciou. – Mas não me surpreenderia se fôssemos pelo menos cem pessoas.

Deveria estar a passar à fase seguinte no processo de certificação, percebeu Quin. O pensamento fez com que uma onda gelada lhe invadisse a espinha.

Sim. Olivia era encantadora, divertida e inegavelmente sensual e atraente. Não importava que estivesse noiva de outra pessoa. Não servia para ele. De maneira alguma.

Quin voltou de repente a cabeça para Georgiana. Os olhos dela eram claros, doces, um pouco ansiosos. Não devia ser fácil ser irmã gêmea de Olivia.

Georgiana era uma peça elegante de bela porcelana, mas, em comparação, Olivia acenava com a terra prometida.

Ele queria – não, tinha de se lembrar que não poderia confiar no que queria. O que queria não era certo. Tinha de se lembrar do horror das noites em que Evangeline não voltava para casa, ou na amargura de a ouvir gritar com ele, acusando-o dos seus manifestos fracassos, da sua incapacidade de a satisfazer, de fazendo feliz...

Sorriu para Georgiana.

– Agora que a aborreci de morte com o meu monólogo matemático, diga-me quais os passatempos de que mais gosta. Isto é – acrescentou –, se a menina tem tempo livre para passatempos. Sei que as jovens estão sempre muito ocupadas.

Georgiana ocultou uma gargalhada num estranho soluço.

– Frioleira, costura e afins.

– Calculo.

Olivia ria por trás do ombro esquerdo da irmã e esse riso fazia com que os seus seios...

Quin voltou a concentrar a sua atenção.

– E qual o que mais aprecia? Frioleira?

– Por acaso o senhor faz ideia do que é a frioleira?

– Claro – afirmou Quin, sem pensar. – São... coisas. – Olhou-a nos olhos calmamente divertidos que também lhe provocaram um sorriso. – Costura? – sugeriu.

– A frioleira é o método de fazer um tipo de renda apertada.

– Renda apertada – repetiu Quin. – Não me parece certo.

– Um oximoro – concordou ela.

– Aposto que não se interessa pela frioleira.

Ela sorriu de novo, numa espécie de doçura passageira sempre presente no sorriso malicioso da irmã.

– Não tanto como por outras coisas.

– Então, gosta de quê? – perguntou Quin, verdadeiramente curioso pela primeira vez. Ela hesitou e depois respondeu.

– Gosto de ler.

– É então uma bluestocking? 3

– Não creio que mereça esse epítome. Considero as bluestockings mulheres extremamente cultas e inteligentes.

– Não me custa nada acreditar que a menina seja muito inteligente, embora não possa falar da educação que teve.

– Sei de cor o livro da sua mãe – sugeriu ela.

Ele devolveu-lhe o sorriso irônico.

– O Espelho dos Elogios não substitui a Universidade de Oxford.

– Que não permite mulheres dentro das suas augustas portas.

– É verdade. Por isso deixe-me adivinhar. – Observou-a. Considerou-a uma imagem perfeita da feminilidade inglesa: modesta, contudo com inegável caráter. As suas opções eram limitadas, pois não parecia particularmente rebelde. – Toca harpa, quando não lê livros de viagens ao longo do Nilo.

Georgina era notavelmente calma. Sabia por instinto que nunca deveria fazer uma cena e muito menos partir loiça, mesmo quando irritada com ele... como estava agora.

– Não sei tocar harpa. Embora gostasse muito de ler acerca do Nilo, sinto-me mais feliz a ler sobre aquilo que creio que os cavalheiros chamam química.

– Química? – Quin nunca poderia imaginar.

– É provável que seja uma palavra demasiado formal para aquilo que faço – disse inclinando a cabeça para um lado como um pássaro curioso. – Gosto de misturar poções. Olivia diz que sou aprendiz de feiticeira.

– Que tipo de coisas faz?

– Tento melhorar os produtos que já existem – esclareceu. – Na sua maioria produtos domésticos. As duquesas têm sempre... – deteve-se com um rubor encantador a invadir as faces.

– As duquesas? – quis ele saber.

Ela tomou fôlego.

– As senhoras das grandes casas têm, como é evidente, mais tempo livre do que as outras mulheres. Por isso, muitas delas dedicaram-se à química, por falta de melhor palavra. Margaret Cavendish, duquesa de Newcastle, é agora considerada a primeira mulher cientista. Não conheço mesmo mais nenhuma, embora ela tivesse vivido no século dezessete.

– Exceto a senhora – disse Quin.

– Não sou nada disso – declarou Georgiana, parecendo levemente horrorizada. – Sinto apenas curiosidade.

– Miss Lytton, a sua irmã também se interessa pela ciência – perguntou Quin. – Também é aprendiz de feiticeira?

– De modo algum – declarou Georgiana. – Olivia tem capacidades diferentes das minhas.

– Suspeito que as gémeas se definem muitas vezes em oposição uma à outra. Aqui no nosso julgado de paz há dois rapazes o mais diferentes possível.

– Olivia e eu podemos confirmar a sua hipótese. De fato, sinto-me fascinada por objetos concretos enquanto Olivia se interessa mais pelas línguas.

– Línguas? Quer dizer pelo estudo das diferentes línguas?

– Estudámos várias línguas. Mas o que ela verdadeiramente gosta é de trocadilhos – Olhou para Quin com uma luz muito agressiva nos olhos. – Hoje em dia pensamos no jogo da linguagem como mero disparate, mas julgo que ainda venha a ser um sério objeto de estudo.

– Trocadilhos? – repetiu Quin. – Palavras que podem ter mais de um significado?

– Exatamente.

– Agora que o menciona, reparei numa distinta propensão para os trocadilhos durante a conversa de Miss Lytton com Lorde Justin.

Georgiana corou uma vez mais deixando Quin interessado. Talvez ela adivinhasse o tipo de quintilha humorística que Olivia compusera com espírito acerca da senhora e da agulha.

Mas nesse momento a mãe de Quin aclarou a garganta.

– Esta tarde farei os últimos preparativos para o baile e ficaria muito grata se Miss Georgiana e Miss Althea me ajudassem. – Lançou um sorriso às duas jovens. – Estou desejosa de ouvir as vossas ideias acerca deste divertimento.

Teste Número Dois, pensou Quin para consigo.

Enquanto Lady Althea se esforçava por garantir à duquesa viúva que estava pronta para a ajudar no que fosse preciso, Georgiana aceitou a incumbência de um modo muito mais digno, o que, de fato, agradou a Quin.

Olivia, por seu lado, não se ofereceu – não que a sua ajuda tivesse sido solicitada ou fosse mesmo bem-vinda. Ela e Justin pareciam fazer planos para um passeio a cavalo.

Apesar dos acontecimentos da noite anterior, conhecera Olivia Lytton havia, quanto muito, uma hora, por isso era óbvio que não podia gostar dela. Não como gostara de Evangeline.

Mas Quin nunca fora bom a mentir a si próprio. Gostava dela.

Sabe-se lá por que razão, lançara um olhar aos olhos verde-claros de Ms. Lytton e ao seu corpo sensual, ao modo como endireitava os ombros, mesmo completamente encharcada e desejava-a.

Era espirituosa, adorável, bela... selvagem. Tudo o que uma duquesa não deveria ser. Inclinou-se para ela.

– Tenho uma égua nos estábulos que será perfeita para si – disse.

– Lorde Justin prometeu ensinar-me a lançar um papagaio – exclamou ela. – Sempre o quis fazer, desde que os vi pela primeira vez no Hyde Park. Lady Althea, Georgiana, não querem juntar-se a nós nesta expedição para lançar um papagaio.

– Claro que não – declarou a duquesa viúva. – Hoje não poderão lançar-se papagaios. Depois do almoço iremos à aldeia entregar cestos aos pobres. E depois as senhoras passarão algumas horas a planejar as próximas festas.

– Gostaria de ajudar, mas sei que a senhora não se sentiria bem por estar na mesma sala com a pequena Lucy, dada a marcada preferência que ela sente por si – disse Olivia, lançando à duquesa um sorriso radioso. – Mas talvez a familiaridade traga algo mais afetuoso do que o desprezo, não crê?

– Pode tratar da sua expedição para lançar papagaios amanhã – prosseguiu a duquesa com esmagadora indiferença, como se fizesse o horário dos aposentos das crianças. – Não posso dispensar Lady Sibblethorp para servir de acompanhante à excursão, pois temos ainda muito trabalho. – Fazia com que tudo aquilo parecesse que as senhoras iriam trabalhar para as minas. – É possível que Lady Cecily se disponha a acompanhá-la, Miss Lytton, se o tornozelo dela tiver melhorado consideravelmente. Sentiria à vontade se o meu filho a acompanhasse nessa excursão. Creio que poderemos dispensar acompanhante na nossa propriedade.

Quin acenou afirmativamente.

Quando se levantaram da mesa, a mãe ergueu o dedo.

– A digestão é sempre facilitada por um pequeno passeio. Minhas senhoras, peço-vos que vão ter comigo à sala chinesa assim que estiverem vestidas para sair e iremos até à aldeia.

– Lamento, mas tenho outros planos – disse Justin alegremente. – Mister Usher e eu vamos rever umas aulas muito importantes. Latim... matemática... nunca mais acaba.

Quin abriu a boca para emitir uma desculpa semelhante quando se apercebeu de que Olivia se debruçava na balaustrada de pedra, tentando puxar um ramo de clematite que parecia fora do seu alcance.

O corpo dela esticava-se num movimento tão sensual que o obrigou a tomar fôlego. Aquelas curvas doces e generosas eram uma pura tentação. Sem saber como nem porquê viu-se ao lado dela, os corpos quase a tocarem-se, enquanto ele estendia a mão para a flor que ela desejava colher.

O ramo florido partiu-se e Quin voltou-se. Pela primeira vez, Olivia não estava a rir. Olhou-o nos olhos por um momento, depois baixou as suas longas pestanas e desviou o olhar.

Quem pensaria que uns olhos verde-claros poderiam parecer tão sombrios? Quin recuou um passo, executou uma elaborada reverência, a reverência própria de um duque.

– Posso oferecer-lhe esta flor, Miss Lytton? – perguntou enquanto se endireitava.

Olivia fez uma reverência. Quin amaldiçoou-se em silêncio ao reparar que o movimento lhe dava ainda uma melhor vista dos seios cor de creme. Mas que raio lhe estaria acontecendo?

Depois endireitou-se e o olhar dela fez com que o sangue lhe latejasse nos ouvidos. Era um olhar franco. Carnal. Quin não estava só. Mas tudo se alterou num segundo.

– Minha querida! – exclamou Olivia, voltando-se levemente e olhando por cima do ombro dele. – Olha o que o duque teve a gentileza de colher ali da trepadeira. Fica para você. Gosta de flores muito mais do que eu.

Quin sorriu delicadamente enquanto Georgiana pegava no ramo florido. E depois sorriu encantadora, bela... uma perfeita dama.

– Que gentileza a de Vossa Graça. A clematite cheira tão bem. Notámo-lo durante todo o almoço.

Ele nem reparara no perfume. Sentado ao lado de Olivia, apercebera-se de um aroma diferente... melhor.

Sabonete de limão. Uma mulher limpa.

Em comparação, a clematite era excessivamente doce.

3Este termo refere-se a um grupo específico de mulheres intelectuais do século XVIII, liderado por Elizabeth Montagu. (N. da T.)


11

A Arte do Insulto

Era excelente a sua irmã ter encontrado o marido perfeito. Claro que era. Não que repeti-lo incessantemente a fizesse sentir-se melhor. A inveja era um sentimento negativo, principalmente entre irmãs – e, mesmo assim, sentia inveja dela.

– Não é próprio do teu nível – disse Olivia para o seu reflexo no espelho.

– A menina disse alguma coisa – perguntou-lhe a criada do outro extremo do quarto.

– Gosto muito deste traje de passeio – respondeu rapidamente Olivia.

Norah aproximou-se e endireitou a bainha do vestido de Olivia.

– Esse amarelo-manteiga fica-lhe a matar. E o casaquinho curto é um amor – a donzela hesitou. – A senhora duquesa vai acompanhar a menina à aldeia?

– Claro. Vai vigiar a pobre Georgie para se aperceber de que ela não põe um pé em falso.

– Lá em baixo dizem todos que ela é terrivelmente rigorosa – confirmou Norah. – Eu não desejaria ser nora dela.

– Sem dúvida um destino terrível, mas tenho a certeza de que Georgie saberá amansá-la.

Norah acenou afirmativamente, mas mesmo assim conseguiu mostrar a mais completa incredulidade.

– Com o tempo – esclareceu Olivia. – Acha que conseguirá meter-me uma fita no cabelo? Talvez cor de ouro velho, para realçar o amarelo.

Olharam ambas para o espelho. O vestido de passeio de Olivia vinha com um bonito casaquinho de bombazina. Era curto, logo abaixo do corpo do vestido e enfeitado com um folho. Olivia achava-o ótimo para lhe acentuar as curvas.

– Não – disse a criada em tom decidido. – Sugiro um chapelinho, aquele que tem a pena de lado.

– Claro!

– A senhora duquesa não vai apreciar o vestido da menina – disse Norah escolhendo um entre os vários chapéus e tocas de Olivia. – Nem um pouco.

Olivia gemeu.

– A saia é muito curta e provavelmente será capaz de desmaiar à vista dos tornozelos da menina. Todas as semanas manda o mordomo medir os fatos das criadas, para se assegurar que estão à distância exata do chão. Não podem mostrar nem um pouco do tornozelo.

– Os tornozelos são o que tenho de melhor – disse Olivia olhando-se de novo no espelho. Era certo que estavam completamente à vista, acentuados pelos seus deliciosos sapatinhos. Muito finos. Na verdade a sua melhor característica.

– Vão ser os preferidos dos cavalheiros – disse Norah soltando uma risada – com essas fitas cruzadas nas pernas da menina. Ainda bem que a mãezinha não está aqui para ver.

– Ora, ora – retorquiu Olivia alegremente. – Se uma futura duquesa não puder usar o último modelo em sapatinhos de carneira, quem poderá? Tenho a certeza de que a duquesa viúva concorda.

Ou... não.

Quando o grupo se reuniu diante da casa e começou a caminhar pelo atalho da aldeia, Olivia chegou à conclusão que os olhares silenciosos, mas ferozes da duquesa, indicavam que ela não era a favor das novas saias curtas nem dos deliciosos sapatinhos de Olivia.

Quanto a esta, pensou que seria mais pacífico caminhar um pouco atrás do grupo a caminho da aldeia. Foi um impulso caritativo, pois só a visão dos seus tornozelos – e de Lucy trotando obediente junto a eles – parecia querer conduzir a duquesa a uma apoplexia.

Contudo, e na experiência de Olivia, os homens pareciam mais interessados em colos e ancas do que em tornozelos. Apenas mulheres como ela, que desejavam a magreza de certas partes do corpo, poderiam preocupar-se com os tornozelos.

Seria extraordinariamente insensato confessar tal ideia à duquesa. Ninguém vai provocar deliberadamente uma leoa.

– Olivia! – chamou Georgiana, deixando-se ficar para trás do grupo.

Olivia fez girar a sombrinha. Era um paninho de renda e folhos que mais parecia um malmequer gigante. Olivia adorava-a.

– Sim? – perguntou sabendo exatamente aquilo que a esperava. Mas Georgie surpreendeu-a.

– Não tive oportunidade de te dizer antes de sairmos de casa. Esses sapatinhos são simplesmente um encanto.

– Estou exibindo aquilo que tenho de melhor. E é estranho, mas toda a raiva mal contida da duquesa está fazendo-me sentir assustadoramente em casa. Esta noite talvez faça uma quintilha humorística à mesa.

Georgiana ajustou cuidadosamente a sua sombrinha para que nem um toque de luz do dia lhe chegasse ao rosto. Nem seria preciso dizer que a sombrinha de Georgie era bastante mais substancial do que a de Olivia, em cima de bico que a cobria de sombra da cabeça aos pés.

– A mãe não nos acompanhou a esta reunião.

– De fato, ninguém citou o Espelho das Lagartas na última hora e se em breve não escutar algumas frases escolhidas desse livro, posso começar a esquecer os seus preceitos. Embora a versão viva caminhe majestosamente à nossa frente.

– A mãe não está cá – repetiu a irmã. – Por isso não precisa de te comportar como se ela estivesse por aqui, tentando obrigar-te fazendo uma coisa que odeias... como por exemplo casar com Rupert – acenou com a mão enluvada. – Olha à nossa volta, Olivia. Só aqui estamos as duas.

– Se consegue esquecer a duquesa viúva, o duque, Lady Sibblethorp e o jovem Henwitty. Já para não falar nesses pobres criados de libré que transportam os cestos cheios de calor. Quem me dera que Lorde Justin tivesse decidido nos acompanhar nesta excursão. Acho que caminhar é terrivelmente aborrecido e pelo menos Justin faz-me rir.

– De que falavam os dois na sala antes de partirmos? – perguntou Georgiana. – Pareciam divertir-se imenso.

– Como somos pouco profundos por natureza, Justin e eu começámos um jogo para ver qual de nós conseguiria proferir o pior insulto.

– Por que diabo querem arranjar insultos? – Georgiana parecia genuinamente ofendida, provavelmente pensando que Olivia ia começar a ofender a anfitriã. – Quando os irão usar?

– É apenas um jogo sem utilização prática – explicou Olivia. – Justin lembrou-se disto para insultar um homem: Cabeça de cão, patifório de rabo enrolado!

Georgiana olhou para as costas da duquesa viúva.

– Por amor de Deus, Olivia, baixa a voz. Tenho a certeza de que te apercebes de que você e ele se envolveram numa atividade de extremo mau gosto. E que diabo é um rabo enrolado?

– Não tenho bem a certeza – confessou Olivia desejando já não ter contado nada a Georgie. Claro que a irmã nunca aprovaria um modo tão tolo de aproveitar o tempo. – Mas adorámos ambos a maneira como soava – acrescentou como fraca defesa.

– Rabo enrolado – repetiu Georgiana. – A expressão parece vulgar. Tenho a certeza de que significa alguma coisa em que não deveria pensar, muito menos proferir em voz alta.

O duque deixou-se ficar para trás e voltou-se para elas.

– Um rabo enrolado é um cão com uma cauda encaracolada: resumindo, não é de raça pura – pediu desculpa por tê-las escutado.

O pulso de Olivia acelerou imediatamente. Sua Graça tinha os ombros mais largos que ela já vira. Eram mal empregados num homem que passava tanto tempo entretido com bocados de papel cobertos de números.

– E qual foi a sua sugestão para jogo que pratica com o meu primo, Miss Lytton – perguntou olhando-a fixamente com os seus olhos escuros.

Se pudesse nunca confessaria a sua contribuição, mas esperavam ambos, expectantes.

– O meu insulto é para uma mulher. Você, pau de virar tripas, você gafanhoto de ancas e traseiro esqueléticos!

Ao ouvir tal coisa o duque soltou uma gargalhada. Parecia um pouco rouco, mas era uma gargalhada. Naturalmente, Georgiana não riu.

– Espero que não estivesses pensando em mim – sussurrou a coberto da gargalhada do duque.

– Claro que não – disse Olivia, apontando para a esguia, mas muito bela Lady Althea.

– O seu insulto diz mais acerca da sua pessoa do que acerca dela – comentou Georgiana, lançando um olhar cheio de significado. Depois ajustou de novo a sombrinha e passou a mão por baixo do braço do duque. – Fale-me mais acerca do cálculo centesimal, senhor duque.

Olivia nunca antes tinha ouvido Georgiana arrulhar. Inclinou-se, fingindo que uma das fitas dos tornozelos se tinha soltado, dando oportunidade a que o par se afastasse.

Era fácil para ela imaginá-los casados. Lorde e Lady Presunção, o duque e a duquesa da Elegância, o...

O duque voltou-se.

– Miss Lytton, não gostamos nada de a deixar para trás – disse ele sem se rir e o desordenado coração de Olivia disparou mais uma vez.

O grupo reuniu-se diante do portão branco numa sebe que rodeava uma casa pequena e muito maltratada. A duquesa entregou a bengala a um dos criados.

– Bata com força nessa porta – ordenou. – Para acordar os moradores.

– Se me dá licença – disse o duque libertando o braço do de Georgiana. – Permita-me. – Retirou a tranca.

– Não era preciso, Tarquin – disse a duquesa. – Aviso sempre assim da minha chegada. Não queremos que essas pobres almas apareçam meio despidas ou coisa parecida. Ficaríamos todos mortificados.

Sem dar resposta, o duque abriu o portão e manteve-o assim até que todos passassem. As toucas e sombrinhas de cores vivas pareciam ainda mais coloridas em contraste com a casa e o jardim maltratados.

Depois a porta da rua abriu-se e as crianças começaram a sair, baixando e levantando a cabeça numa aflição de vénias.

– Muito bom dia para a senhora, Mistress Knockem – disse a duquesa acenando com a cabeça para uma mulher feia e cansada de mãos vermelhas e nodosas. As crianças estavam já todas em fila.

– Avery, Andrew, Archer – disse a duquesa acenando a cada uma delas.

– Sou o Alfred – disse o rapazinho mais novo. – O Archer está na taberna.

A duquesa franziu o sombrancelha.

– Na taberna, Mistress Knochem? Mas com certeza que Archer é demasiado jovem para ingerir bebidas alcoólicas.

– O nosso Archer traz para casa um penny por semana a lavar canecas, senhora duquesa. Temos muito orgulho nele.

– De fato, não se pode desperdiçar um penny – a duquesa olhou de novo para a fila. – Boa tarde, Audrey e Amy. Onde está Anne?

– Está lá dentro, adoentada – respondeu a mãe torcendo o avental.

– Não estará de esperanças, Mistress Knochem? – inquiriu a duquesa. – Soube que ela andava com o filho mais novo do carniceiro.

– Oh, não! – Mrs. Knochem pestanejava furiosamente. – A nossa Anne é uma boa menina. Sentou-se não sei onde e está cheia daquilo a que por aqui se chama urticária.

A duquesa fez sinal ao criado.

– Leve o cesto lá para dentro. Mistress Knockem, atrevo-me dizendo-lhe que uma das minhas convidadas, Miss Georgiana Lytton, tem grandes capacidades para curar problemas de pele.

Olivia inclinou-se para a irmã

– É agora que Lady Althea vai chamar a carruagem e voltar para Londres – murmurou-lhe ao ouvido. Mas, pelos vistos, Lady Sibblethorp não estava ainda disposta a desistir da luta.

– A minha filha, Lady Althea, fez também um extenso estudo de leves problemas de pele – disse magistralmente. – Examinaremos a donzela.

Mrs. Knockem não parecia particularmente satisfeita com a iminente invasão à sua casa, mas pareceu aperceber-se de que não poderia impedir uma cheia quando as margens do rio transbordavam. Recuou um degrau, pestanejando ainda mais.

Georgiana avançou.

– Mistress Knockem, a senhora deve estar tão preocupada. Pode dizer-me o que de fato aconteceu? Entrou na casa de braço dado com Mrs. Knockem e a cabeça inclinada para ouvir a descrição dela. A duquesa acenou para que Lady Althea e a mãe entrassem também e depois voltou-se.

– O senhor duque não será bem-vindo – ordenou. – E Miss Lytton, creio que compreende que o cão deve ficar cá fora.

– Não percebo nada de males da pele – declarou Olivia, desejando ardentemente que a duquesa tocasse em alguma coisa e apanhasse uma doença qualquer.

– Muito bem – disse e fechou a porta atrás de si.

Olivia suspirou.

Depois percebeu de que estava diante de uma fila de crianças que não pareciam inclinadas a agir como as outras. Estavam sujas e eram muito magrinhas. E pareciam ansiosas.

– Vamos lá ver – disse ela para o mais velho. – Chamas-te Maçã porque tem umas belas faces rosadas. – Olhou para o seguinte. – Você parece-me muito veloz, por isso deve ser o Seta. E este deve ser o Avental porque...

– Não sou o Avental – disse indignado o rapazinho. – Isso é para as meninas!

– Hmmm – murmurou Olivia. – Que tal Formiga? É do tamanho de um feijão-verde.

– Mas vou crescer – disse corajoso.

– É verdade – via-os começar a sorrir. A fila desfez-se e começaram a juntar-se à volta dela. – Vamos experimentar com as meninas. Você deve ser a Albricoque porque tem o cabelo da cor do gengibre, que é muito bonita e que me faz muita inveja.

A menina soltou uma risada.

– A minha vovó diz que é da cor das barbas do diabo.

– Não é uma comparação muito elogiosa, mas também nem todos podemos ter a sorte de ter um lume que arda durante todo o inverno, já para não falar numa barba de albricoques. E você – disse, voltando-se para a última, uma menina muito pequena. – Você parece... – aqui a imaginação faltou-lhe.

– Uma bolota – disse uma voz profunda atrás dela. O duque inclinou-se e pôs um dedo debaixo do queixo da menina. – Não é mais do que uma bolota pequenina.

A menina soltou uma gargalhada feliz.

– É isso que o meu pai me chama!

– Muito bem, menina Bolota – disse Olivia lançando ao duque um sorriso de surpresa. – Posso apresentar-vos a menina Lucy?

Lucy, que estivera sentada junto ao tornozelo de Olivia, aproximou-se assim que ouviu o seu nome, agitando loucamente a cauda.

As crianças reuniram-se à volta dela, com exclamações de alegria. Olivia estendeu-lhes a trela da cadelinha.

– Alguém gostaria de levar a Lucy a dar um passeio? – Minutos depois Avery e Audrey dirigiam-se à praça da aldeia com Lucy aos saltos adiante deles.

Olivia olhou para as três crianças que haviam ficado.

– Então contem-me o que se passa na aldeia de mais interessante?

– Zekiel Edgeworth comprou uma égua nova! – exclamou Bolota.

– Não me diga! E onde guarda Mister Edgeworth a sua nova montada?

– Aqui mesmo! – exclamaram. E ali estava uma égua castanha a um canto do pátio.

– Tomamos conta dela – disse o Formiga com ar importante.

Olivia estendeu a mão, olhou para baixo e descalçou a luva.

– Mas em que estava eu pensando? – questionou ela causando novo coro de risadas quando estendeu de novo a mão ao Formiga. – E agora, menino Formiga, quer apresentar-me a esta bela montada que vive no seu quintal?

– Não é tão bonita? – murmurou o Formiga pouco depois.

– Tem aspetos muito interessantes – reconheceu Olivia. – Como se chama?

– Bom – disse Seta com ares importantes. – Mister Edgeworth gosta de lhe chamar Starstruck, mas achamos que é um nome complicado. Por isso chamamos-lhe Alice. Está vendo? Até já dá pelo nome.

Alice!

De fato, a égua ergueu a cabeça ao ouvir o grito, o que causou grandes gargalhadas. Olivia fazia os possíveis por ignorar o homem atrás de si. Por amor de Deus, tratava-se do futuro marido de Georgiana.

– A Alice tem um problema. Mete os pés para dentro... ou melhor, os cascos – observou o duque, aproximando-se ainda mais dela.

Olivia e as crianças olharam-no de testa franzida.

– Todos admitimos que os cascos como os dela ficam muito bem num cavalo – declarou Olivia.

E seguiu-se um coro de concordância.

– Não era minha intenção diminuir os seus pontos fortes – disse o duque, estendendo a mão para acariciar o pescoço da égua. Também descalçara as luvas. – Por exemplo, tem uma testa grande e um pescoço comprido.

– Um pescoço muito comprido – concordou a Bolota. – E também um dorso comprido, porque já todos a montámos uma vez ou outra. Isto é, todos ao mesmo tempo.

– É uma vantagem a ter em conta em relação aos movimentos – murmurou Olivia para o duque. Ele olhava-a de novo fixamente enquanto ela se afastava um passo com o pretexto de examinar o pescoço da água.

– Tem ainda pontos melhores do que o pescoço – afirmou o duque dando um tom curiosamente inocente à sua voz. – Qualquer homem se sentiria feliz por ser o dono desta égua.

O Seta pareceu um pouco desconfiado.

– O meu pai não diz o mesmo que o senhor. Diz que Mister Edgeworth deitou dinheiro fora quando comprou a Alice. Ele não gosta da Alice. – Afagou o focinho da égua para a confortar.

– Estava falando do pelo castanho-escuro, claro – disse o duque. – Olhos suaves, boca delicada e pestanas enormes. – Também acariciava a égua, mas olhava diretamente para Olivia.

Esta nunca ouvira alguém descrever assim um cavalo. Lançou-lhe um olhar furtivo ao rosto. O duque não parecia pessoa para se dedicar aos jogos de palavras. Embora ao almoço...

Mencionara certamente Lady Godiva de um modo sugestivo.

– O pelo dela é extraordinariamente aveludado – disse ele ao Formiga. – Não são da mesma opinião? Seis mãos sujas acariciaram o ventre da água e um coro de vozes concordou com ele.

– Nos apetece mexer nela – respondeu. O seu riso tinha um tom malicioso. – E tem uns cascos muito macios – comentou, apontando. – Bonitos e arredondados à frente. Leves atrás, sem dúvida. – A égua sucumbiu às suas festas e empurrava-lhe o ombro a pedir mais atenção.

– Poderíamos considerá-la um pé-leve?4 – perguntou Olivia tentando perceber até que ponto poderia ir aquele jogo de palavras. – Porque certamente não o é.

– Isso quereria dizer que a nossa Alice era uma oferecida – comentou Avery em tom de reprovação. – Não se pode dizer isso de um cavalo.

– Tem toda a razão – concordou o duque. – Vou corrigir. Não há dúvida de que Alice é um animal virtuoso.

– Isto não faz grande sentido – observou Olivia. – Quase se diria... quase!... que está dizendo que Alice gosta de cavalarias altas.

– Não senhor! – interrompeu Avery. – Mister Edgeworth diz que ela nem consegue saltar um degrau.

– Achamos que é por ter uma barriga tão redonda – acrescentou a Bolota.

– De fato. – O duque sorriu de novo e Olivia ficou furiosa por sentir o rubor subir-lhe às faces. Ele não poderia estar a referir-se a ela.

– Tudo o que um homem poderia desejar – disse. – E um belo traseiro gordo.

Sim. Poderia estar a referir-se a ela. Olivia manteve-se ali, resistindo ferozmente ao desejo de retirar o seu traseiro gordo das vistas dele. Passando talvez para outro país.

– É por causa de toda a erva que lhe damos – contou o Formiga com ar importante. – A arrancamos no campo às mãos-cheias e damos a comer à Alice.

– Esta égua é uma felizarda – murmurou o duque. Aquele homem era um diabo... a menos que ela não o compreendesse de todo. Como poderia ele dizer o que ela...

– Então, Miss Lytton? Não concorda com a nossa avaliação acerca deste extraordinário animal?

As palavras saltaram-lhe da boca sem pensar.

– Um traseiro gordo? Desde quando é isso que um homem deseja na sua montada?

Estupidamente, Olivia só percebeu o duplo sentido depois de fazer a pergunta, mas o duque não deixou passar a insinuação. Os seus olhos iluminaram-se com um brilho ardente e malicioso, uma promessa secreta que incendiou o corpo de Olivia.

– Miss Lytton – disse num sussurro. – A senhora surpreende-me.

Teve de lhe ocorrer que fora ele quem deliberadamente inseria Lady Godiva na conversa do almoço.

– Hmm – respondeu com alguma dificuldade. – Surpreendo-me a mim própria.

Nos olhos dele havia algo de ávido que não era para ela... não poderia ser para ela. Nunca poderia ter o que ele lhe oferecia.

A avidez deveria ser para Georgiana. Desde o seu décimo aniversário que sabia que o seu futuro nunca incluiria... isto.

Não conseguia pensar no que dizer.

As crianças não sentiram tanta hesitação.

– O senhor olha para Miss Lytton como a nossa Annie olha para o Bean – disse o Maçã ao duque.

– Espero que namorem – declarou a Albricoque. – A mãe disse que o duque deveria casar-se, não te lembra?

O duque não parecia inclinado a responder. Se num momento parecera imperturbavelmente ducal, por falta de uma palavra mais adequada, e logo a seguir o seu rosto transformava-se por meio de uma rude sensualidade.

– E é também como o Bean olha para a Annie – assegurou a Bolota, tomando o silêncio como incentivo. – Ai vêm sarilhos, é o que diz a nossa mãe. – Voltou-se para Olivia. – É por isso que a Annie não sai de casa. Porque tem aquelas borbulhas roxas no traseiro. Como é que lá foram parar?

Olivia franziu a testa.

– Se tivesse a roupa vestida, era o que eu queria dizer – explicou a Bolota.

– Sabe, o Bean é filho do carniceiro e eles namoram – acrescentou a Albricoque. – Embora não devesses dizer coisas dessas diante de pessoas finas – disse ao irmão dando-lhe uma cotovelada na barriga. – É uma dama e as damas não percebem nada das suas roupas.

– Ah não? – perguntou Olivia.

– Não conseguem despi-las sozinhas, pois não? É o que diz a minha mãe. Mas talvez esteja enganada. Aí, Olivia tinha de o confirmar.

– Tem razão. Os meus vestidos são todos abotoados nas costas e preciso de alguém que me ajude a despir.

– Bom, assim não fica com urticária, pelo menos no traseiro.

– É muito bom saber isso – disse o duque gravemente.

Mas nunca mais enganaria Olivia. Este duque em particular poderia parecer rígido como um pau, mas no seu interior era muito diferente.

Um sorriso, um sorriso escondido.

4 Light-heeled também designava em inglês antigo uma pessoa pouco casta. (N. da T.)


12

Os Méritos do Leite-Creme e das Groselhas

Logo após o regresso do pequeno grupo a Littlebourne Manor – depois da inspeção, diagnóstico e tratamento da infeliz urticária de Annie –, a duquesa enviou todas as senhoras para os seus aposentos a fim de mudarem de roupa e depois ergueu um dedo na direção de Quin.

– Acompanhe-me, por favor, duque – disse. – Me sentiria grata pelo apoio do seu braço enquanto dou uma volta pelos jardins.

Assim que ficaram longe do alcance dos ouvidos das convidadas, a duquesa deteve-se.

– Tarquin, não me agrada a presença de Miss Lytton.

– Sim – concordou Quin.

– Contudo, a irmã dela, Miss Georgiana, parece-me uma adequada candidata a duquesa. Foi notável durante a conversa com Mistress Knockem e a oferecida da filha cuja urticária, a propósito, não foi mais do que merecida, dado o seu comportamento folgado. De qualquer forma, Miss Georgiana mostrou compaixão pela inválida e também uma atitude bondosa, mas reservada, em relação à família como um todo. Manteve as distâncias sem nunca se mostrar arrogante. Aprovei completamente.

Quin murmurou qualquer coisa, pensando que Olivia nunca se preocupara em manter as distâncias com a família Knockem.

– De fato, o único senão que identifico – continuou a mãe – é a irmã mais velha. Porém, como Miss Lytton casará assim que aquele tontinho regresse de França, o prazer da sua companhia... ou o contrário, pouco importa.

– Tontinho? – perguntou Quin.

– Montsurrey – a mãe fez um gesto de impaciência. – Miss Lytton parece reconciliada com o assunto; tenho de a admirar por isso. E teve razão quando eu me descaí: não deveria ter desacreditado um par do reino, o que quer que fosse que tivesse ouvido acerca do futuro duque. No entanto – acrescentou –, foi o próprio pai dele que o descreveu como tendo os miolos mais moles que leite-creme.

– Leite-creme – repetiu Quin.

– Irrelevante – declarou a duquesa. – O que lhe quero dizer é que o menino tem de afastar Miss Lytton e o seu cão da minha vista, Tarquin. Como sabe, considero muito importante realizar os testes de maneira sensata. Não o poderei fazer se estiver ocupada em esgrimir contra uma criatura com metade da minha idade.

– Ela esteve muito bem – comentou Quin, certificando-se de que a satisfação não se notava na voz dele.

– Eu sei – respondeu a mãe severamente. – Por isso, para a minha paz de espírito, peço-lhe que ocupe essa jovem impetuosa e a rafeira enquanto eu continuo a explorar o caráter de Lady Althea e de Miss Georgiana.

– Muito bem – acedeu Quin.

A mãe apertou a mão no braço dele.

– Bem sei que Miss Lytton é uma companhia provocadora e muito cansativa e peço-lhe desculpa por o sobrecarregar. Pelo menos, não preciso de me preocupar que sucumba aos encantos dela. Para já tem uma figura muito pouco atraente. Mas em que estaria pensando quando vestiu um vestido tão revelador quando tem tanta carne a mais?

Quin nada disse.

– Além disso – prosseguiu a mãe falando para consigo própria –, Miss Lytton parece ser admiravelmente dedicada a Montsurrey. Por isso, aqui entre nós, en famille, creio que poderemos dispensar uma acompanhante. De fato, tenho de dar razão a Canterwick. Percebo por que razão se adequa tão bem ao rapaz.

– Rapaz?

– Montsurrey deve ser pelo menos cinco anos mais novo do que ela – disse a mãe, dando meia volta para regressar a casa. – Acho divertido que tanto Canterwick como eu tenhamos procurado na família Lytton uma possível aliança para os nossos filhos. Bem sei que os Lytton estão bem relacionados em ambos os lados, mas nem por isso pertencem à aristocracia. É um tributo a...

Mas Quin deixara de escutar a mãe. Olivia estava prometida a um rapaz, um rapaz que, segundo a mãe, tinha espírito de pássaro.

Olivia? – A irônica e espirituosa Olivia? Impossível.

– Não concordas, Tarquin? – perguntou a mãe rispidamente.

– Lamento. Creio que perdi o rumo da conversa.

– Estava dizendo que Miss Lytton era notavelmente afortunada por ter sido escolhida pelo duque de Canterwick para casar com o filho. Não importa o seu nascimento, a sua figura e os seus modos impertinentes.

Quin olhou para a mãe.

– Mas ela é muito bonita.

– Bonita? Bonita? Com certeza que não. É redonda como uma groselha, o que indica que é glutona. E não gosto dos olhos dela.

– De fato, são verdes da cor das groselhas – disse Quin. – Uma cor de olhos que eu nunca tinha visto.

– Invulgares – disse a mãe, mas não como um elogio. – Contudo, os olhos da irmã são perfeitamente aceitáveis. E tem uma bela figura. Acho estranho que uma irmã tenha um corpo tão atarracado enquanto a outra é elegante em todos os aspetos. Suponho que seja um problema de autocontrole, que sempre foi a melhor arma de uma dama contra as tribulações deste mundo. Miss Georgiana tem obviamente um excelente autocontrole.

– Claro – concordou Quin.

– Nunca fará birras – prosseguiu a mãe com um sorriso ao canto da boca. – Já vos vejo a ambos, presidindo a um grupo de criancinhas. Gostaria, não é verdade, Tarquin?

Tarquin sentiu gelo negro invadir o coração; não respondeu, mas não tinha importância.

Durante todo o caminho de volta para casa, a mãe continuou a pintar o retrato de Quin e Georgiana sorrindo afetuosamente para os seus filhos de olhos castanhos.


13

O Que Significa Conduzir Um Exército

Na tarde seguinte

O novo fato de montar de Olivia tinha um ar marcial: um trancelim subia pelo casaquinho e descia pela saia; tinha pequenas dragonas nos ombros. Até o encantador chapelinho não era uma touca, mas uma versão jovial do boné de um tenente, vermelho-escuro, que tão bem lhe ficava ao cabelo e à pele.

O fato fazia-a sentir-se como se a sua figura não fosse tão forte, como se não fosse tão suculenta (como diria a mãe). Como se tudo estivesse forte neste mundo e ela fosse o general de um seu exército exclusivo.

Uma ilustração perfeita da fundamental insignificância do seu cérebro, pensou, caminhando lentamente pelo caminho para os estábulos. Georgiana sentia-se mais feliz depois de ter criado uma poção nauseabunda que poderia – ou não – curar o bebê do segundo criado de umas manchas vermelhas que tinha no traseiro. Enquanto Olivia se sentia mais feliz se gostava do que via no espelho e depois se dispunha a namoriscar impudicamente com o duque.

Mas não o duque com quem iria casar.

Pior ainda, o duque com quem a irmã iria casar.

Era óbvio que não podia namoriscar com o duque. Quanto mais depressa metesse na cabeça que Sconce era o futuro marido de Georgiana, melhor. Sentiu até um pequeno estremecimento ao pensar num flirt com o futuro cunhado. Apenas a mais desagradável das irmãs – para não dizer desleal – poderia fazer tal coisa.

Já se sentia suficientemente culpada. Deixara Georgiana deitada no sofá, com um pano molhado sobre os olhos. A sua troca de palavras com a duquesa viúva ao almoço – de que tinha desfrutado bastante – provocara uma enxaqueca à irmã.

Lucy soltou um pequeno latido e correu para a frente abanando furiosamente a cauda. Um jardineiro já velho plantava algumas plantas à sombra de um antigo muro de pedra que separava os jardins de Littlebourne Manor dos estábulos que ficavam por trás. Estava de joelhos, de costas para ela, com as solas gastas das botas inclinadas para os lados.

– É uma coisinha bonita, não é? – disse o jardineiro, coçando Lucy entre as orelhas. Tinha uma voz quente e enrouquecida pelo fumo e fez Olivia pensar na qualidade das vozes: em como a voz da duquesa viúva era viva e fria, tão diferente da voz séria e profunda do filho. O duque parecia escolher cuidadosamente cada palavra, enquanto as palavras dela pareciam cair dispersas, muitas vezes de um modo pouco senhoril – A menina tem um sentido de humor muito animado, dissera a duquesa no dia anterior.

Afastou esse pensamento e aproximou-se um pouco mais do jardineiro.

– Bom dia, o senhor é do País de Gales?

No momento em que lhe ouviu a voz, o homem tentou pôr-se de pé com as articulações a estalar e encostou-se à parede com o boné na mão.

– Minha senhora – disse com os olhos no chão. – Não sou do País de Gales – parecia ofendido. – Sou do Shropshire. – Tinha as pernas arcadas e estava curvado, como uma macieira em cima de um monte lutando contra um vento forte.

– Não queria interromper o seu trabalho – disse Olivia. – Por favor, continue fazendo aquilo em que estava ocupado. É a minha cadelinha a cheirar-lhe as botas. Lucy, porta-te bem!

Lucy dançava por ali, tentando lamber a mão do jardineiro. Lentamente ele estendeu-a e puxou-lhe um pouco as orelhas.

– É bonita, não é?

– Não me aprece que seja exatamente bonita, se é isso que quer dizer – olharam ambos para Lucy. – Tem o pelo muito curto e levou uma dentada numa pálpebra.

– É verdade, perdeu um bocado da pálpebra. Mas tem uns olhos engraçados. E uma cauda também.

– Parece a cauda de um rato – comentou Olivia.

O jardineiro ajoelhou na terra castanha junto a ela. Depois falou como que para as plantas:

– Há aqueles que são decorativos, como as flores daqui. Depois a restante flora não o é se não quando caem as pétalas.

Olivia aproximou-se para espreitar.

– Quais são as flores que são feias até lhe caírem as pétalas?

– Parece que a senhora caminha numa nuvem de pétalas dançando ao vento, não é verdade?

Ela olhou em redor e os olhos pousaram sobre o velho boné do jardineiro e não sobre os seus ombros.

– Que bela descrição.

– Esta pequenina – disse fazendo cócegas em Lucy com o cotovelo, entontecendo o animal de prazer – saberá animá-la quando estiver triste, embora haja quem prefira animais de cauda farta e pelo comprido.

Olivia deu por si a sorrir para Lucy.

– Tem razão, claro. A princípio não lhe ligava grande coisa, mas agora gosto muito dela – inclinou-se e espreitou para a terra. – De que são essas sementes?

– Delfínios.

– Aquelas flores altas e roxas?

– Exatamente.

Olivia franziu a testa.

– Pensava que essas flores precisavam de muito sol. Terão bastante aqui junto a este muro?

– A senhora duquesa gosta delas aqui, minha senhora. – A terra rica passava-lhe entre os dedos como chuva quando batia no solo junto de cada rebento.

– Detesto plantar coisas que não vivem muito tempo. Talvez o jardineiro principal pudesse ensinar a senhora duquesa a tratar dos delfínios.

Ele lançou-lhe um rápido olhar.

– Uma senhora gosta do seu jardim arranjado, com muitas flores, limpo, doce e perfumado.

– Até rima – constatou Olivia, pensando que Justin teria muito que aprender com o jardineiro.

Uma mão quente tocou subitamente nas costas de Olivia.

– Miss Lytton – disse o duque, com os olhos escuros e imperscrutáveis. – Peço desculpa por tê-la assustado. – Fez uma reverência. – Estou vendo que já conhece Riggle, o nosso muito estimado jardineiro principal, está conosco desde que eu tinha seis anos. Riggle posso apresentar-lhe Miss Lytton?

Riggle olhou por cima do ombro do duque e disse qualquer coisa parecida com prazer.

– Muito gosto em conhecê-lo, Riggle – respondeu Olivia. – Bom dia, senhor duque.

O duque vestira também um fato de montar com calções cingidos às coxas musculosas. Bastou um olhar para lhe acelerar o coração.

O desejo – porque Olivia não era mulher para fingir uma emoção mais digna, quando se apresentava a palavra adequada – surgia como uma sensação avassaladora. Conseguia imaginar aquele leve toque da mão dele em todos os seus membros.

Cunhado, disse para consigo. Cunhado.

– Não me diga que ela o mandou outra vez plantar delfínios – disse o duque e inclinou-se para examinar cuidadosamente as plantas.

– Sim. São folhas palmadas. Disse-lhe que não o fizesse, Riggle.

– A senhora duquesa é uma crente muito firme – referiu o jardineiro batendo na terra junto a outra plantinha.

– Em quê? – perguntou Olivia.

– Nos planos dela – respondeu o duque em vez de Riggle. – A minha mãe consegue pensar que, se alguém aderir a um plano, de preferência elaborado por ela, o mundo será um local são e ordenado.

– A esperança de que uma planta floresça, apesar da falta de sol, mostra uma confiança extraordinária nos seus planos – observou Olivia.

– Estou rodeado de parentes com pretensões a possuírem poderes divinos. – Uma centelha perpassou-lhe no olhar, denunciando uma gargalhada. Parecia inflamável e perigosa.

Olivia não pôde deixar de lhe devolver o sorriso, embora o rosto dele estivesse, aparentemente, muito sério. Mesmo assim: Cunhado, pensou outra vez

– Riggle, teremos de nos despedir de si – afirmou o duque tomando o braço de Olivia. – Miss Lytton, mandei que nos preparassem duas montadas. Justin já levou a charrete com o pónei para a frente da casa para ir buscar Lady Cecily, pois ela ainda se queixa do tornozelo.

Olivia despediu-se de Riggle e caminhou em silêncio ao lado do duque. Tinha de dizer alguma coisa... qualquer coisa. Era quase a primeira vez na vida que o seu cérebro era incapaz de produzir uma única palavra.

Depois do almoço, a irmã tivera a certeza de que o duque se aborrecera de Olivia, dado o comportamento arrapazado que esta demonstrara. Mas o duque não parecia ter deixado de gostar dela.

– A senhora é uma amazona entusiasta, Miss Lytton? – perguntou ele um ou dois minutos depois.

– Sim – declarou Olivia, grata por obter um tópico de conversa. – Quando era pequena tive um pónei e, presentemente, eu e a minha irmã montamos regularmente no Hyde Park. Também vai lá montar, senhor duque?

– Há anos que não o faço – disse. – O seu noivo gosta de montar?

– Rupert? Tem alguma dificuldade em se aguentar na sela – retorquiu Olivia lembrando-se demasiado tarde que não deveria contar a estranhos que Rupert só começara a aguentar-se em cima de um cavalo depois dos quinze anos. – Mas melhorou muito no último ano. Tem... um joelho fraco – acrescentou apressadamente.

– Mais uma razão para admirar a sua decisão de ir para a guerra.

– O pai ficou muito contrariado, mas Rupert tem vontade forte. Quando mete uma coisa na cabeça, ninguém consegue dissuadi-lo.

Uma leve ruga passou momentaneamente na testa do duque.

– Suponho que...

– Sim.

– O seu noivo parece-me um homem excelente. Leal ao seu país, corajoso, mesmo com o senão da incapacidade física, e decidido nas suas convicções em face da reprovação do pai. Conheço o duque de Canterwick e pensava que ele exerceria uma considerável pressão sobre o filho, para que este ficasse em Inglaterra. Estou desejando conhecer Montsurrey.

Olivia acenou afirmativamente. Não podia dizer grande coisa sem ser desleal para com Rupert e decidira que não o faria.

Mas o duque ainda não terminara.

– Parece que Canterwick disse à minha mãe que o filho tinha miolos de leite-creme.

– Ah! – exclamou Olivia. Claro que concordava, mas apercebera-se de que, como a duquesa tratava Rupert com tanto desdém, ela, Olivia, poderia passar toda a vida a ouvir risinhos à socapa nas costas do marido ou tornar claro que não admitiria que ninguém insultasse Rupert à sua frente.

– O duque mostra uma terrível incapacidade para reconhecer o lado bom do filho – disse ela cumprindo o que pensara fazer. – O pensamento de Rupert é por vezes notavelmente claro.

Aquilo era verdade. Rupert sabia perfeitamente o que sentia por Lucy, por exemplo. Olivia olhou para o animal com uma onda de afeição. A cadelinha trotava junto a ela, abanando a cauda que lhe batia com força na perna.

– Por vezes, os pais fazem isso – respondeu o duque com uma expressão imperscrutável.

– Claro que Canterwick teria preferido que Rupert ficasse em Inglaterra, pois não tem outro herdeiro – disse Olivia. – Mas Rupert não quis sacrificar a sua honra nem a do seu país por uma coisa tão efémera como um título.

Aquilo provocou uma expressão diferente no rosto do duque. Deveria ter sido a primeira vez que alguém invejava Rupert; Olivia sentiu-se triste por ele não estar presente para desfrutar da situação.

– Vossa Graça gostaria de se ter alistado ao serviço de Sua Majestade? – perguntou ela.

– Claro – respondeu ele bruscamente. – Mas eu já sou duque e não tenho herdeiro. Não poderia ficar descansado deixando as minhas responsabilidades nas mãos de outros.

– Rupert não tem responsabilidades por enquanto e lá no fundo sentiu que tinha de ir. – O duque parecia ter uma expressão tão triste que Olivia começou a sentir pena dele. – Provavelmente, não terá qualquer efeito no esforço de guerra – alvitrou. – A companhia dele tem apenas cem homens.

– Parece-me que o número de homens é importante, mas não tanto como os planos estratégicos – disse o duque.

Olivia nem tentou imaginar Rupert envolvido em planos estratégicos.

– Está preocupada com a segurança dele?

– Sim – retorquiu Olivia! E estava, era estranho, mas estava. Depois de todas as suas lamúrias acerca do casamento, qualquer coisa mudara no seu interior quando se despedira dele. Rupert não era perfeito, mas era seu para o melhor e para o pior.

Hesitou um momento e depois decidiu que tinha de ser absolutamente sincera.

– Eu e o senhor duque começámos um flirt.

Ele voltou a cabeça lentamente para olhar para ela. O brilho dos seus olhos nada tinha a ver com uma palavra tão inócua como flirt.

– Não o descreveria como tal – disse ele fazendo eco do pensamento de Olivia.

Estaria tentando envergonhá-la? Se havia uma coisa que Olivia detestava era o esconder de emoções por trás de uma máscara de probidade. Bastava-lhe a família. Embora os adorasse ternamente, concluíra havia muito que a ganância ditara a relação que os pais mantinham com ela.

– Compreendo que deseje fingir que não existe tal sentimento, mas não posso concordar consigo.

– De fato, descobri-o a mim próprio como estando nas garras de uma luxúria compulsiva – disse secamente. – Garanto-lhe, Miss Lytton, que nunca beijei uma mulher desconhecida de um modo tão impetuoso antes de a senhora me aparecer à porta.

Olivia sentiu um rubor cobrir-lhe todo o corpo e o coração acelerado. Não se atrevia a olhar para ele. Em parte queria protestar: não perceberia ele que ela era gorda e nada atraente? Espreitou o rosto.

– A senhora está noiva – acrescentou ele e a voz saiu-lhe num grunhido.

– Desde a infância – disse ela, acenando com a cabeça.

Caminhavam ao longo de uma sebe de lilases. O perfume das flores flutuava no ar. Ele parou, largou-lhe o braço, obrigando-a a olhá-lo. Uma mão forte ergueu o queixo. Os olhos de ambos encontraram-se.

– Olivia – disse ele. E foi tudo.

Ela ficou nos braços dele e os lábios dele colaram-se aos dela. Por um momento beijaram-se como o haviam feito na sala das pratas: experimentando, suavemente, provando. Mas, depois, os braços apertaram-se, ela inclinou a cabeça e o beijo transformou-se. Olivia abriu os lábios e ali estava ele envolvendo-a.

A fragrância dos lilases desvaneceu-se. Ela sentiu o cheiro a especiarias e a sabonete, à mistura de cavalheiro e salteador que o duque era.

Ele tinha razão. Aquilo não era um namorico; era um desejo tão profundo e intenso que todo o corpo de Olivia vibrava com a necessidade de estar mais próxima dele. Lançou-lhe os braços ao pescoço, pôs-se em bicos de pés, permitiu que uma mão de Quin lhe puxasse o corpo de encontro aos planos duros do corpo dele. A outra segurava-lhe a nuca, apoiando-a numa posição que a obrigava a inclinar a cabeça para a poder beijar melhor, num beijo ávido e escaldante que lhe disse sem palavras que não a achava gorda ou pouco atraente.

O cabelo dele soltou-se da fita e tocou no rosto dela. Com os olhos fechados, Quin parecia um homem diferente. Com os olhos abertos parecia feroz, tinha um perfil de falcão, era frio. Com os olhos fechados era uma pessoa completamente diferente.

Um homem invadido pelo prazer, disse o instinto dela.

Os lábios dele afastaram-se dos dela, procurando-lhe a curva do pescoço. Olivia emitiu uma exclamação ofegante e estremeceu; ele abriu os olhos.

– Não se trata de um flirt – a voz dele era rouca enquanto deixava com os lábios uma esteira de calor na face dela.

– Não – murmurou Olivia, estremecendo junto dele.

– É um fogo na floresta – disse ele depositando-lhe um beijo nos lábios e depois afastando-a dele. Olivia engoliu em seco.

– Mas a senhora está noiva – era uma afirmação, mas aqueles olhos escuros faziam uma pergunta. Olivia sentiu-se afastada do mundo, como se só existissem os dois naquele jardim ventoso: aquele homem alto e severo, observando-lhe o rosto, e ela, Ms. Olivia Mayfield Lytton, noiva de um marquês desde que nascera. O coração batia-lhe junto às costelas, mas...

Tinha de pensar em Rupert e em Georgiana. Dominou-se e disse em voz alta.

– Um fogo na floresta não é razão para trair as duas pessoas que eu... para trair o meu noivo.

– Duas pessoas? – fez uma pausa. – Georgiana?

– Isso é irrelevante – disse ela imediatamente. – Não quis dizer que... de qualquer modo é completamente irrelevante.

– Não, não é. Ela está aqui porque a minha mãe a convidou.

Olivia acenou com a cabeça.

– Não é como se a ignorássemos, como um cavalo que não nos interessa – disse ele quase a defender-se. – O meu primeiro casamento correu muito mal. A minha mãe está ansiosa para que eu não repita o erro.

Olivia tocou-lhe no rosto, ao de leve, como um sopro, mas mesmo assim os seus dedos estremeceram.

– Georgiana nunca o trairia.

– Então ouviu falar no assunto? – Quin tinha os olhos baixos.

– A minha criada falou da reputação da sua anterior esposa.

– Lamento, mas foi Evangeline que criou essa reputação – não havia vergonha nem condenação na voz dele. – Creio que será melhor prosseguirmos até aos estábulos, Miss Lytton. A minha tia, já para não falar do jovem Justin, ficarão inquietos se os deixarmos à espera na charrete. Olivia tomou-lhe de novo o braço. Sentia os joelhos fracos.

– Parto então do princípio que é fiel a Montsurrey.

Ela acenou afirmativamente, mas percebeu de que ele olhava em frente, por isso disse:

– Sim... ele ficaria magoado se eu... se eu não o fosse.

– Uma resposta tipicamente inglesa – comentou Quin, olhando para ela. – Não me chega, mas tem razão. A pior coisa que um homem pode fazer a outro, principalmente a outro que esteja a servir a pátria, é roubar-lhe a futura esposa. Talvez quando ele regressar são e salvo, possamos continuar esta discussão?

– O senhor e eu mal nos conhecemos – disse Olivia, esforçando-se por manter a voz firme.

– Quero conhecê-la melhor, é por isso que estamos a conversar – falava em voz rouca, angustiada.

O rosto esperançoso de Georgiana surgiu diante dos olhos de Olivia. Recompôs-se. Rupert era uma coisa, mas Georgiana era sua irmã gêmea, a sua outra metade. E sentia instintivamente que a irmã tinha razão: aquele homem era perfeito para Georgie. Não para Olivia.

– Uma pessoa não se casa com base na loucura – disse tentando dar um tom frio à voz.

Ele deu mais uns passos sem pronunciar palavra. Silêncio... silêncio que fez com que Olivia se tornasse ainda mais consciente do corpo forte que tinha junto dela. Cunhado, disse para consigo.

– Conhece então este tipo de leitura? – perguntou em voz átona. – Acontece-lhe muitas vezes?

Como à mulher dele. Era o que ele estava pensando. Olivia abriu a boca para o negar, mas... pensou melhor.

– Rupert e eu estamos noivos desde que nascemos. Claro que eu não... – tentou de novo. – Nenhum de nós pôde escolher. Compreendemos ambos que a fidelidade não fazia parte do pacto dos nossos pais, pelo menos antes do casamento.

Passavam agora a esquina dos estábulos. Um cavalariço espreitou à porta e voltou para dentro, seguido pelo ruído dos cascos quando uma égua malhada surgiu ao sol.

– Ajudo-a a subir para a montada – disse o duque.

Conduziu-a até à égua e colocou-lhe as mãos na cintura. Ficaram ambos imóveis por um momento. As mãos dele apertaram-na para logo a erguerem e colocarem cuidadosamente sobre a sela.

– Muito obrigada, senhor duque – murmurou rodeando com a perna a maçaneta da sela e ajeitando as saias.

– Prefiro que me trate por Quin.

Ela olhou-o sobressaltada.

– Seria impróprio.

– Impróprio seria se eu a fizesse descer do cavalo diante de quatro criados e a beijasse loucamente.

– Impossível! – exclamou ela em voz rouca.

– Não é impossível – disse ele calmamente. – E posso apenas concluir que não ficaria perturbada, Olivia, dado que acaba de se caracterizar como uma mulher namoradeira... para colocar a sua descrição da melhor maneira possível.

Que deveria ela responder? Para si sou Miss Lytton? Mas o duque já dera meia volta e saltara para o cavalo num movimento suave. Estava zangado; Olivia notava no corpo a fúria contida, no modo como as suas maçãs do rosto se tornavam mais duras e masculinas do que o habitual.

Mas não sabia como responder. Desejaria simplesmente – se não fosse o seu orgulho e lealdade – estender o braço para lhe tocar na mão, para lhe puxar a manga. Para lhe enviar um olhar febril que como quer que fosse o atraísse, obrigando-o a beijá-la assim.

Como se ela fosse desejável. Sensual.

Olivia olhou para baixo e viu a sua perna em redor da maçaneta da sela. Aquilo fê-la voltar a si. Não sabia porquê, mas ele queria-a agora.

Mas ela era gorda. A perna dela era gorda. Ele ainda não se apercebera. Não se importara, mas não quereria – não poderia – se estivessem despidos os dois.

A ideia provocou-lhe um aperto no estômago, que lhe agradou. Era uma chamada à razão. Quin seria feliz com Georgiana. Esqueceria aquele disparate, aquele fogo na floresta, como lhe chamara.

Sorriu para o cavalariço que segurava as rédeas da égua.

– Toma conta de Lucy até eu voltar? Creio que ela pensa que pode haver ratazanas no estábulo.

– Ela fica bem aqui – disse o rapaz prontamente. Lucy farejava junto ao muro com a cauda levantada de contentamento.

– Descobre-as – sugeriu Olivia.

Ele sorriu e entregou-lhe as rédeas. Ela pegou-lhes com destreza, fez uma festa à égua e partiu atrás do duque. De Quin.

Chegaram a casa através de uma estrada que descrevia uma curva. Observando-a com atenção pela primeira vez, percebeu de que Littlebourne Manor tinha uma fachada magistral.

Em vez de se espalhar em várias direções, como tantas mansões ancestrais acrescentadas aos poucos, esta erguia-se direita e bem conservada, perfeitamente simétrica, rodeada por relvados imaculadamente tratados.

Era demasiadamente ordenada para ela. Cada particularidade tinha o seu exato duplicado no lado oposto: janelas, empenas, chaminés.

– O que acha? – perguntou o duque, quando ela aproximou a montada.

– Demasiado ordenada para o meu gosto – disse ela apontando para as janelas que pareciam marchar como soldadinhos de chumbo. – Sou uma pessoa mais desregrada.

– O que significa desregrado em termos arquitetônicos? – perguntou ele. Mas Olivia via já Lady Cecily e Justin à espera deles por isso pôs a égua a trote.

– Lamento tê-la deixado à espera, Lady Cecily – disse, inclinando-se, assim que chegaram à charrete.

– Era a mim que devia pedir desculpas – protestou Justin com alguma indignação. – A tia Cecily chegou agora mesmo, enquanto eu tive tempo de escrever uma redondilha completa. Também não foi assim tão mau para mim – acenou com um bocado de papel.

– Estou desejando ouvi-la – disse Olivia. – Como está o seu tornozelo, Lady Cecily?

– Excelente. Coloquei-lhe um pó que trouxe de Veneza há dois anos. O medicamento é tão bom que manteve jovem a própria Helena de Troia. E é especial para os ossos; lembro-me do homem que me vendeu. Foi na praça de São Marcos e ele disse que me firmaria os dentes e os faria dançar como as teclas de um cravo. E foi o que aconteceu, embora, claro, se tratasse do meu tornozelo e não dos meus dentes.

– Vamos a Ladybird Ridge – sugeriu o duque a Justin. – Tenta não voltar a charrete, se conseguires.

– Será impossível voltar esta coisa – comentou Justin com desagrado. – Agora, se me deixasses conduzir o teu faetonte, talvez houvesse uma possibilidade de o...

O duque não se incomodou a responder-lhe e voltou-se para Olivia.

– Vamos?

– Quem me dera que a sua querida irmã aqui estivesse – disse Lady Cecily a Olivia. – Creio que ficou com uma dor de cabeça, por isso mandei-lhe também uma dose do pó. É um remédio precioso, garanto-lhe, por isso estou certa de que já se sente melhor. Quer que mande alguém a casa perguntar-lhe se quer vir conosco?

– Não – disse o duque antes que Olivia pudesse responder. – Vamos embora.

E obrigou o cavalo fazendo meia volta. Era um enorme alazão que se inclinava para diante fazendo algumas tentativas para o derrubar da sela.

Olivia voltou a égua e seguiu-o.


14

O Voo do Papagaio Cor de Cereja

Claro que Olivia sabia namoriscar bem e conhecia o desejo, disse Quin para consigo. Fazia todo o sentido. Não seria preciso fazer uma terceira experiência para provar esta hipótese: não sabia por que razão ignóbil seria particularmente vulnerável a mulheres que tinham uma relação liberal com o conceito de castidade.

Ainda pior, estava mais apaixonado agora do que estivera por Evangeline.

Evangeline fascinara-o: quisera levá-la para casa, adorá-la e fazer amor com ela. Encantara-se nas ondas da sua cabeleira e no som do seu riso. Mas não se lembrava de sentir aquela espécie de avassaladora sensualidade, de loucura selvagem que lhe embotava a razão e lhe enviava todo o sangue do corpo para um local entre as suas pernas.

Nem precisava de olhar para Olivia para lhe catalogar as feições. As pestanas eram um pouco mais compridas nos cantos, dando-lhe ao olhar uma expressão maliciosa, um toque de Cleópatra. Até o pensar no corpo dela tornava o seu dolorosamente rígido. O dela era feito de curvas de carne leitosa e roliça.

E os olhos dela... sinceros. Ao contrário de Evangeline, dissera-lhe imediatamente a verdade sobre si própria. Poderia dizer que eram ambas pouco castas. Mas Olivia não fingia sê-lo.

Além disso, quando lhe pedira com tantas palavras se o preferiria a Montsurrey, mantivera-se fiel ao marquês. Ele pressentira que ela o seria sempre. Não importava o muito coquete que tivesse sido enquanto mais jovem, uma vez casada com o seu regressado guerreiro, seria sempre fiel.

Havia outro sinal de diferença: Olivia era verdadeiramente desejável. Nos seus braços era uma chama instantânea.

Evangeline... bom, Evangeline quisera palavras. Era isso que desejava. Quando faziam amor, gritava e empurrava-lhe o peito detestando o fato de ele ficar por cima dela. Para ela, tratava-se do tempo antes e do tempo depois: as palavras. E ele era tão mau com as palavras.

Pôs o cavalo a passo e Olivia apanhou-o. Tinha um encantador rubor nas faces do exercício e do vento.

– Gosto do seu chapéu – disse, conseguindo pronunciar essas palavras. Era como uma cereja colocada sobre um monte sensual de cabelo cor de bronze. Como não parecia ter uma função útil, fora obviamente criado para fazer com que um homem desejasse retirar-lho.

Por instantes, ela pareceu sobressaltada e depois sorriu-lhe.

– Não me protegeria da chuva.

Ele meteu por um caminho de terra, ouvindo os passos do pónei que puxava a charrete.

– Vamos levar os papagaios para cima do monte – disse-lhe, apontando para diante. – Voam melhor em cima de uma colina e este lugar é bastante ventoso. Conseguimos desenrolar carretos de fio antes que percam a corrente.

Olivia olhou-o com curiosidade.

– Parece-me entendido em papagaios, o que é quase como encontrar um adulto dizendo que gosta de jogar às cinco pedrinhas.

O coração dele sobressaltou-se.

– Eu gostava de jogar... – respondeu, mas deteve-se. Não havia necessidade de lhe contar pormenores. Tentava aceitar a ideia de que ela não seria dele. Pertencia a outro homem, patriótico mas com cérebro de leite-creme.

Preferiu então dar uma resposta tola.

– Nunca nos esquecemos de como se lança um papagaio.

– Pois, suponho que não – concordou ela, mas parecia curiosa, como se conseguisse ver através dele. Quin saltou do cavalo, prendeu as rédeas a um arbusto e voltou para junto de Olivia. De fato, era ridículo. Tinha a certeza de ter o desejo gravado no rosto, o que o fazia sentir-se vulnerável e um pouco louco. Mas aproximou-se e agarrou-a pela cintura porque, afinal, o que são os homens? Simplesmente animais, sujeitos a necessidades de acasalamento como qualquer outro bípede, ou, já agora, quadrúpede.

– Em que está pensando? – perguntou ela, sacudindo as saias quando ele a posou no chão.

– Na ciência – respondeu sem ser totalmente sincero.

– Está então interessado em mais do que funções matemáticas? – prendeu as rédeas da montada ao mesmo arbusto.

– Sim. Mas não quero que adormeça de aborrecimento, por isso não vou explicar; teríamos de a levar para casa de charrete.

Justin prendeu o pónei e foi ver se a tia gostaria de descer da charrete, mas esta afirmou ter melhor vista do assento.

Retirou a caixa dos papagaios da parte traseira da charrete. A tampa abriu-se como se ele a tivesse aberto no dia anterior, como se aqueles dias intermédios não tivessem existido. Teve de respirar fundo antes de retirar o primeiro papagaio: cor de cereja, leve e veloz que atravessava o céu e geralmente mergulhava no solo com igual velocidade.

Por baixo estavam dois papagaios bons e fortes que haviam resistido a vento após vento. E por baixo... tocou por uns instantes nas tabuinhas, passando o dedo pela madeira delicada como se pudesse tocar na criança que costumava segurá-lo.

Engoliu em seco e fechou a caixa desse papagaio.

– Tenho três para nós – disse, voltando-se.

Falava em voz tensa e triste e viu os olhos de Olivia voarem para o rosto. Fez um esforço para sorrir, embora com alguma tristeza.

Justin aproximou-se.

– Nunca gostei do encarnado – comentou alegremente, como se os papagaios tivessem história. – Tem energia a mais. Fico com um dos outros.

– Tem de enrolar a bobina – disse Quin entregando-a.

Olivia pegou no papagaio cor de cereja.

– Adoro este!

– Condiz com o seu chapéu – disse ele, aclarando a garganta. – Vou enrolar a bobina. E baixou a cabeça para se dedicar à tarefa, evitando olhá-la. Não sabia porquê, mas conseguia ler nos olhos de Olivia e parecia que ela tinha o mesmo poder sobre ele. Juraria que ela percebera a sua angústia, que vira o negro e monstruoso silêncio que o seu peito albergava.

– Pronto – concluiu bruscamente depois de ter tratado das duas bobinas. Agora vamos para cima do monte.

Levou tempo e soltaram algumas risadas – não Quin, porque quase nunca ria – até lançarem os três papagaios lá em cima ao vento.

– Que maravilha! – exclamou Olivia. Corria para trás e para a frente, com os sapatinhos a brilharem por baixo da bainha da saia.

Como se tivessem passado apenas cinco minutos e não cinco anos, o papagaio cor de cereja deslizou por baixo da corrente de ar, mergulhou, mas voltou a subir. Entretanto, o papagaio de Quin chegou ao seu zénite e aí ficou, branco e sólido, oscilando sobre a sua cabeça.

Justin deitara-se de costas e manobrava-o assim, indiferente à possibilidade de sujar o seu magnífico traje de montar.

Mas Olivia corria pelo cume do monte, seguindo o voo errático do seu papagaio.

Justin parecia sonolento e confortável, com os olhos fixos num ponto distante do seu papagaio.

– Será melhor ires atrás de Olivia – disse, lançando a Quin um olhar indolente. – Já não a vejo.

Com um suspiro, Quin puxou o papagaio. Olivia fora atrás do seu e subira, descera ou entrara na mata que ficava na ponta do cume. Olhou para trás e viu que a tia Cecily adormecera profundamente, com a boca aberta.

Posou o papagaio e caminhou ao longo do cume. A Inglaterra estendia-se a seus pés, belos campos, marcados por sebes, uma pequena carruagem, aos solavancos, lá ao longe, a curva de um rio serpenteante mais para a direita. O vento cheirava como se as foices cortassem erva, com um leve travo a fumo que sugeria uma fogueira.

Por um momento, a alegria borbulhou no peito e depois o antigo sentimento apresentou-se como que para ser recordado. Culpa. Porém, quando desta vez o afastou, sentiu-se diferente. Mais limpo. Mais sereno.

Talvez fosse tempo.

De súbito, viu uma centelha escarlate que tinha de vir das saias de Olivia. Seguira o cume do monte para o lado abrigado do vento e estava agora debaixo de uma árvore a olhar para cima.

O papagaio cor de cereja encontrava invariavelmente uma árvore sobre a qual mergulhar. Quin abrandou o passo e saboreou o caminho até ela. Sentia o corpo tenso, forte, apenas controlado, o que era um absurdo pois sabia e sempre soubera controlar-se.

Mesmo havia cinco anos, quando se afastara do pontão, sabendo que era tarde de mais... não se descontrolara. Não. Não era inteiramente verdade; não deveria tentar reescrever a história. Tentara lançar-se à água, mas avisado por um barco fora impedido pelo responsável do porto.

Mas depois... depois, afastara-se sem uma palavra. Um pé a seguir ao outro.

Esta emoção era diferente, um fogo incontrolável no sangue. Olivia tinha as mãos nas ancas e, enquanto ele a observava, livrou-se daquele chapelinho tolo e pô-lo a seu lado. Quin apressou o passo.

Ela poderia pensar em...

E pensava.

Desabotoou o casaco e posou-o dobrado no chão.

Quin viu-a estender o braço para o ramo mais baixo e depois subir o tronco da árvore, colocando os pés na casca com a agilidade e confiança de quem já subira a uma árvore. Até a muitas árvores.

Estava nos primeiros ramos e passava para os segundos quando ele se aproximou do tronco.

– Olivia Lytton! – gritou debaixo. – Mas que raio está a senhora fazendo? Ela espreitou por entre as folhas verdes.

– Oh, olá – disse. – Vou salvar o meu papagaio, claro.

Estava de pé sobre um ramo grosso, tão perfeita como quando subira, parecendo uma ave ali deslocada.

– Não suba mais! – ordenou.

O som do riso dela filtrou-se por entre as folhas, mas Quin já despira o casaco. Içou-se facilmente para um dos ramos mais baixos. Olivia subia de novo, por isso ele deslocou-se até ficar diretamente por baixo dela e poder apanhá-la se caísse.

Isto deu-lhe uma visão perfeita das pernas da jovem. Uma sobre um ramo tinha uma liga escarlate e depois uma coxa leitosa. Sentiu o coração saltar-lhe furiosamente no peito e começar a bater acelerado.

Faltou-lhe o fôlego por momentos. Olivia tinha umas meias de seda branca que terminavam abaixo do joelho. Por cima via uma delicada linha de renda... supunha que as calças.

Interessante. Nunca pensara que as damas usassem roupa interior assim. Evangeline não usava.

Um pensamento desagradável atravessou-lhe o espírito: Evangeline não se preocupava em perder tempo. Afastou a ideia como imprópria da sua pessoa.

– Miss Lytton, estou a ver as suas pernas – comentou, apercebendo-se, à medida que as palavras lhe saíam da boca, que a observação era também imprópria.

Olivia ficou imóvel. Mas já tinha apoiado o peso do corpo nessa perna. Assim subiu para o ramo seguinte, quase escorregando, mas conseguindo equilibrar-se. Logo que ficou de pé, bem segura, olhou-o de testa franzida.

– Não é próprio de um cavalheiro espreitar as saias de uma dama.

– Não sei bem, mas creio que o fato de subir às árvores retira a uma pessoa o título de cavalheiro... ou talvez possa acrescentar, de dama. – Içou-se com agilidade para o ramo de onde Olivia subira. – Vai subir até onde? Esta árvore não aguenta o meu peso acima do sítio onde a senhora se encontra.

Ela apontou. O papagaio estava fora do alcance dela, preso por uma volta do fio. Quin experimentou o ramo onde ela se encontrava.

– Passe para o ramo ao lado do seu pé – ordenou. – Vou subir.

Olivia saltou para um ramo próximo, tão firme como se estivesse no chão. Logo a seguir Quin chegou ao lado dela. Erguendo os olhos viu que ela estava corada do esforço, o seu colo subindo e descendo. O corpete do vestido era feito de linho fino contra o qual lutavam os seus seios.

Quin agarrou o ramo por cima da cabeça de ambos. Esperava que ela não lhe olhasse para as calças.

– Como se pode subir a uma árvore com um espartilho e tantos saiotes? Os olhos dela brilharam maliciosos.

– É segredo.

Ele encostou-se a um ramo, sentindo-se um pouco fraco.

– Sei muito bem guardar segredos.

– Não tenho espartilho – murmurou baixinho e quase a rir. – Há muito que aprendi que é impossível subir a uma árvore usando espartilho. Não que estivesse pensando subir às árvores quando me vesti, mas pensei que lançar papagaios poderia ser um desporto igualmente enérgico, como afinal demonstrou ser.

– Desde quando subir às árvores faz parte da educação de uma senhora?

– Da primeira vez que a minha mãe me pôs de dieta – disse ela franzindo o nariz.

Ele franziu a testa.

– Dieta?

– Preciso perder peso. Sempre precisei desde a tenra idade de treze anos. Talvez um pouco antes.

– Não. Não precisa. Não concordo.

– Bom, creio que preciso. A sua mãe também concorda, dado o preceito tantas vezes repetido em O Espelho: Uma figura graciosa é sinal de virtude. E o mesmo pensa quase toda a sociedade, dado o número de sugestões para emagrecer que me foram murmuradas discretamente nos toilettes das senhoras.

A crueldade de Olivia ter sido ensinada a detestar uma característica sua que – para ser franco – ele considerava perfeita, fê-lo sentir que algo se soltara no seu coração. Endireitou-se e inclinou-se para ela. A cabeça dela fez instintivamente o mesmo gesto e as bocas encontraram-se, quentes e doces, ofegantes da subida ou talvez da proximidade... ela sabia à luz do sol e a erva. Como a felicidade.

Quin aproximou-se cuidadosamente, sem quebrar o beijo, depois encostou-se ao tronco das árvores e puxou-a para os seus braços, tendo a certeza de que ela não largava também o ramo.

– Olivia – murmurou-lhe junto à boca. – Como me chamo? Ela abriu as pálpebras pesadas.

– O que disse?

– Como me chamo? – perguntou ele, mas depois, sem poder esperar, roubou-lhe um beijo de boca aberta num suave casamento de línguas.

– Quin – disse ela, afastando-se. E depois. – Estamos de novo a namoriscar.

– Deixámos o flirt e entrámos na fogueira. Mas, seja como for, ninguém do nosso nível poderia beijar-se numa árvore.

– Significa então que não estamos onde pensamos estar? – Os olhos dela brilharam divertidos e tinha os lábios inchados dos beijos. – Ou não somos nós aqui em cima da árvore? Ou o senhor não é duque?

– Não devo ser – disse ele, avidamente, colocando-lhe a mão na nuca. – Não sou duque e a senhora também não está noiva de um marquês.

Beijaram-se como se não o fizessem havia anos. As mãos dele desejavam avançar, passar um dedo, uma mão, as duas pelo linho fino do corpete. Não tinha espartilho.

Nem se atrevia a olhar.

E depois olhou e gemeu baixinho.

– A senhora tem... – disse, mas teve de se deter por momentos. – Penso que os seus seios são os mais belos que já vi.

Ela baixou os olhos e logo os ergueu para olhar para ele. Era estranho que uma pessoa que parecia tão experimentada como ele ficasse com as faces coradas e tão pouco à vontade. Embaraçada.

Mas depois pareceu esquecer tudo.

– Precisamos do papagaio – lembrou, apontando, o que apenas contribuiu para esticar mais o corpete.

– O senhor não-sou-duque, não conseguirá alcançá-lo.

Quin lutou contra a parte do seu corpo que o impedia de querer, não alcançar o papagaio, mas o delicioso corpo feminino que tinha diante de si. Olivia tinha ainda a respiração acelerada da subida, dos beijos ou de ambas as coisas e o movimento dos seios dela enfeitiçava-o.

As folhas balançavam em redor de ambos, criando um pequeno caramanchão, um compartimento cujas paredes cintilavam ao sol formando sombras verdes.

Se ao menos houvesse uma cama. Imaginou-a por baixo dele, ofegante, as faces uma rosa silvestre, o cabelo a rodear a cabeça como uma almofada.

– Não olhe para mim dessa maneira – admoestou ela zangada. – Não deve.

– E se eu só olhar assim quando estou consigo numa árvore? – sugeriu.

– Não voltará acontecendo.

– Precisamente – olhou-a de novo, dos pés à cabeça. – Olivia, a senhora é especial – procurou outras palavras, mas não conseguiu encontrá-las. Nunca encontrava as palavras certas quando mais precisava delas.

– O senhor também é muito atraente – disse Olivia, afetada. – Não que isso tenha importância, pois não somos pássaros e não podemos viver nesta árvore. Espanta-me que a sua família ainda não tenha vindo à nossa procura.

– A tia Cecily estava a dormir na charrete e tenho a certeza que Justin dorme a sesta deitado na relva.

Provavelmente, o papagaio dele voou sozinho e ele é tão preguiçoso que não há de subir a uma árvore para o recuperar.

– Por favor, pode alcançar o meu papagaio? – perguntou ela, levando-o de novo à razão pela qual tinham subido tão alto.

Obediente, Quin estendeu a mão e libertou o papagaio, conseguindo evitar rasgar a seda frágil. Deixou-o cair em espiral até ao chão, controlando a queda através dos ramos e a seguir deitou o carreto de fio.

– Está todo manchado pelas folhas e pela luz do sol – observou.

– Tal como a senhora – referiu ele passando-lhe o dedo pela curva da face. – Se Justin estivesse aqui, faria um poema. Calculo que seja melhor descermos da árvore. Desço primeiro e posso assim apanhá-la se cair.

– Espere – disse ela, tocando-lhe ao de leve no braço. O toque enviou-lhe um aperto escaldante ao baixo-ventre. – Posso perguntar-lhe uma coisa? O que aconteceu quando tirou os papagaios da caixa, Quin?

Ele não esperava a pergunta. Embora devesse esperá-la.

– Nada.

Olivia passou-lhe a mão pelo braço, até ao ombro e pescoço.

– Não quer que eu o atire do ramo abaixo, pois não? – Sorria mas o seu olhar era sério.

– Já houve um tempo em que teria implorado que o fizesse – disse ele, sem poder controlar as palavras.

Ela esperou.

Mas Quin não conseguia dizer mais.

– Deveríamos voltar – disse ele, sabendo que a brusquidão era a sua própria confissão.

– A sua mulher gostava de papagaios? Esse pertencia-lhe – Olivia apontou para o papagaio vermelho lá em baixo sobre a relva.

– Não. Era do... – teve de esperar um momento. Bater na camada de gelo negro que tinha dentro de si, antes de conseguir falar. – Era da ama. Chamava-se Dilys. Era... era... gostava de cores garridas e de rir. Era do Shropshire.

– Como o Riggle?

– Esquecia-me que já o conhecia. Sim. Era filha dele. Ele perdoou-me só Deus sabe como.

Os olhos dela encontraram os dele, suaves e firmes.

– Tenho a certeza que nada havia a perdoar. Que idade tinha o seu filho?

– Cinco anos – disse num murmúrio rouco e aclarou a voz. Experimentou de novo. – Alfie teria agora dez anos.

– Alfie? – o rosto dela transformava-se quando sorria. – Gosto muito do nome dele.

– Recebeu o nome do meu pai: Alphington Goddard Brook-Chatfield. Mas eu chamava-lhe Alfie para desagrado da minha mãe. Dilys deu-lhe esse diminutivo; estava com ele desde o nascimento. E... – deteve-se por momentos e depois disse com firmeza: – E também no final. Afogaram-se, sabe. A minha mulher também.

Olivia passou-lhe o braço pelo pescoço com muita delicadeza. Depois soltou-o e saltou para o ramo onde ele estava. Quin sentiu um momento de pânico, mas o ramo era forte. E ela estava junto dele, toldando o espírito.

– Lamento muito – afirmou.

– Pois – disse ele, pouco à vontade como sempre. Deveria saber escolher melhor as palavras, pensou frustrado.

A boca de Olivia tocou na dele.

– Rupert vê o pai todas as quintas-feiras das duas às três da tarde. Tenho a sensação de que estava com Alfie mais do que uma vez por semana.

– Não podia afastar-me – disse Quin, encostando-se de novo ao tronco, com um braço em redor da cintura de Olivia e o outro agarrando-se com força a um braço por cima das cabeças.

– Desde que o vi... nunca mais consegui afastar-me.

Ela abriu a boca, mas ele silenciou-a com um beijo rápido.

– Não me diga que ele está num lugar melhor – pediu sabendo que falava em tom gélido – Ou que tive a sorte de ter estado com ele enquanto foi possível. Ou que agora é um anjo. Ou que estarei de novo com ele quando cruzar as portas do céu.

– Haverá alguma coisa certa para dizer?

Quin ficou pensando.

– Leve-me agora?

Ela riu e o riso adoçou as arestas cortantes do desgosto de Quin.

– O melhor será nada dizer – tocou-lhe nas faces com ambas as mãos e posou-lhe um beijo nos lábios que foi como se todas as condolências que recebera na vida se transformassem numa só.

Nem conseguia falar.

Olivia passou-lhe os dedos pelo cabelo, libertando-o da fita.

– O seu cabelo sempre foi branco à frente ou foi o desgosto?

– Sempre foi assim – disse ele. – Eu deveria ter sido um dos bebés mais estranhos nascido no Kent. Os dedos de Olivia apoderaram-se dele, afagando o cabelo, como se este lhe pertencesse. Embora fosse impossível. Ele aclarou a voz.

– Eu sei que vai casar com um marquês – Quin sentia os dedos a arder porque também lhe tocava. Ela ficou em silêncio, imóvel, mas ele teve a sensação de que ela ia recuar, por isso apertou-a com força.

– Olivia, estamos em cima de uma árvore.

– Devíamos descer – declarou ela.

– Um momento. Se não se fosse casar com esse marquês – murmurou ao ouvido – eu trocava de lugar consigo.

– Como?

– Encostava-a ao tronco. Eu...

– Não o diga! – gritou ela. – Não sou uma acrobata que poderia...

– Poderia o quê?

– Bom, bem sabe.

– É esta a mulher que quase recitou perante todos uma quintilha humorística acerca de uma jovem que era particularmente ágil com uma agulha? – Sentiu o riso subir-lhe no peito. Era estranho e um pouco embriagador.

– As quintilhas são apenas gracejos extensos. Decoro-as apenas porque enraivecem a minha mãe, o que me permite manter algum sentido de independência. Agora, por favor, podemos descer desta árvore? Posso até acrescentar que a minha mãe explodiria se me pudesse ver neste momento.

– E a minha também – admitiu Quin à vontade, permitindo que a mão acariciasse as costas dela.

– Não faça isso! – ordenou Olivia.

Ele deteve-se com a mão em cima da magnífica curva.

– Por favor? – Falava num tom rouco que o teria embaraçado lá em baixo, mas quem se sentiria embaraçado em cima de uma árvore? Posou os lábios no rosto dela e mordiscou uma orelha.

– Olivia Lytton, penso que será sempre a minha companheira preferida para subir às árvores.

– Espero ser a sua única companheira para subir às árvores – replicou ela fingindo um ar zangado. – E agora vou regressar a terra firme.

– Espere. Eu desço primeiro – balançou-se para o ramo abaixo. Depois olhou para cima, sentindo uma maliciosa antecipação apertar-lhe o estômago. Como ela não se mexesse, inclinou-se para trás para poder ver-lhe o rosto.

– Está pensando espreitar as minhas pernas, não é verdade?

– Adoro as suas pernas – disse ele, perfeitamente franco. – E, se não olhasse para elas, seria negligente no meu dever, que neste caso será impedi-la de se magoar.

Olivia soltou uma exclamação de desprezo e depois – muito mais depressa do que ele antecipara – deu uma volta, balançou e passou para junto dele. O ramo oscilou e instintivamente ele estendeu a mão para a segurar, mas ao fazê-lo desequilibrou-se e, atravessando duas camadas de folhas, despenhou-se no solo.

Sentiu-se sem ar e a dor foi tremenda. Manchas negras voavam dentro das pálpebras e não conseguia respirar.

– Oh, valha-me Deus! – ouviu ainda antes de voltar a ver. – Oh, Quin, oh, Quin, por favor, não morra. Porque fui eu fazer aquilo? – Olivia descera da árvore. – Por favor... respire... Está respirando!

Quin respirava. Tinha a certeza disso porque cada inalação de ar doía-lhe mais que... uma série de impropérios passaram-lhe pela ideia e quase não conseguiu evitar que lhe saíssem boca fora.

Sentiu Olivia bater-lhe no peito. Embora a dor impedisse a sua acuidade mental, Quin decidiu manter os olhos fechados. Qual o homem que no pleno uso das suas capacidades mentais interromperia uma mulher determinada a cumprir uma missão? Pelo menos aquela missão. Preferia deixar de respirar a desencorajá-la.

– Não sinto costelas partidas – murmurou ela, batendo com maior firmeza.

Poderia ser porque passara a bater-lhe no abdômen, onde ele tinha a certeza absoluta de não ter costelas, mas mesmo assim não se queixou. As mãos dela hesitaram por instantes e depois Olivia bateu-lhe ao de leve por baixo do abdômen.

Soltou um gemido sem poder conter-se e fez uma careta. Não estava habituado a mostrar tão pouca disciplina. Sempre controlara em pleno as suas reações físicas, mesmo com Evangeline, a sua mulher.

– Oh, meu Deus – exclamou mais uma vez Olivia. – Vou buscar Justin. Por favor, aguente-se! Receio que tenha quebrado alguma coisa. Espero que não seja a espinha. Nunca me perdoaria!

O tom entrecortado da voz dela fê-lo abrir os olhos e agarrá-la por um braço antes que ela se pusesse de pé.

– Estou bem – resmungou. – Dê-me só uns instantes.

– Desculpe – disse Olivia desolada. – Fui tão estúpida, Quin, nunca pensei. É assim que eu desço sempre da árvore junto à janela do meu quarto. Balanço-me com força e caio de pé.

– Sai assim pela janela do seu quarto? – esforçava-se agora por respirar normalmente e apercebia-se de que, embora sentisse dores por todo o corpo, parecia que nada estava partido.

– A árvore é a única maneira de eu sair de casa sem que a minha mãe saiba – explicou. – Consegue mexer os dedos dos pés? Ouvi dizer que, se uma pessoa não conseguir mexer os dedos dos pés é muito mau sinal. Vejo que mexe outras partes, mas...

Ele ergueu a cabeça e estremeceu. Ela observava-lhe os pés e por isso aquela parte do corpo dele que estremecia. Quase lhe saltando das calças.

– Consigo mexer os dedos dos pés – sossegou-a, sentando-se rapidamente para lhe bloquear a vista.

Sentiu a cabeça à roda.

Olivia não parecia reconhecer o que via naquela zona das calças. E ele continuava sem perceber se ela teria simplesmente habilidade para o flirt ou se seria mais experimentada.

Evangeline não era virgem quando chegara à sua cama. Quin ficara surpreendido na altura, mas quando pôde conhecê-la melhor, compreendeu. Evangeline não tinha um voraz desejo sexual, mas um desejo voraz de ser desejada, tão profundo que nenhum homem conseguia satisfazê-la.

A cabeça latejava, mas, mesmo assim, sentia o cheiro de Olivia, um perfume delicado que era só seu. O perfume era como que a tentação dentro de um frasco. Como o desejo.

Só por tê-la ali, de joelhos, junto dele fazia-o sentir-se ousado. Mesmo sentindo o corpo magoado e a cabeça metida num torno, desejava apenas deitá-la de costas e colocar-se sobre ela.

E tomá-la.

Gemeu de novo só de pensar.

– Vou buscar Justin – exclamou Olivia, pondo-se de pé de um salto. – O senhor está cheio de dores. Ele pode levá-lo até à charrete.

– Não! – Quin quase soltou uma gargalhada só de pensar no seu primo tão franzino a arrastá-lo pelo cima do monte. – Consigo levantar-me. E assim fez, embora os músculos gritassem e os ossos protestassem. – A queda não foi grande – disse, como se assim passasse a ser verdade. – E os ramos amorteceram a queda.

– Que disparate – retorquiu Olivia zangada. – Podia ter morrido. Nunca deveria ter subido à árvore atrás de mim. Não há dúvida de que o senhor é muito... – deteve-se.

– Velho? – Quin fez um gesto de aborrecimento e começou a andar lentamente, sentindo dores. Mas percebeu que ficaria bom. Que raio, era de fato demasiado velho para subir às árvores.

– Sim – concordou ela sem rodeios. – É demasiado velho. Que idade tem? – acrescentou.

– Trinta e dois – disse ele. – Mas, neste momento, sinto-me como se tivesse sessenta e três.

– Há quantos anos perdeu o seu Alfie?

Ele limitou-se a caminhar sem olhar para ela.

– Vai fazer cinco anos em outubro.

– Casou muito cedo.

– Sim. – Mas ela parecia estar à espera e as palavras surgiam-lhe por isso pronunciou-as. – Acabava de voltar de França e da Alemanha e fui para Londres para a minha primeira temporada. Também era a primeira temporada de Evangeline. Só a conheci dois meses depois, mas assim que a vi...

– Amor à primeira vista? – sugeriu Olivia.

– Mais ou menos – nunca pensara ser capaz de amar. Mas fora certamente capaz de sentir fascinação. Já para não falar de obsessão.

Justin veio ter com eles a passos largos.

– Lady Cecily quer ir para casa! – gritou. – É melhor andares mais depressa, Quin. Está fervendo de impaciência.

Olivia gemeu e começou a correr em direção à charrete.

Mas Quin sobrevivera a um milhar de tempestades da tia e não estava em condições de avançar mais depressa. Continuava a andar pensando no que significava um amor à primeira vista.

Sabia que essa capacidade ficara esgotada nele ou talvez não fizesse parte do seu caráter. Não conseguia imaginar ninguém na sua família chegada – a não ser Justin – que experimentasse tal emoção. Mesmo assim não conseguia deixar de desejar ter conhecido Olivia em vez de Evangeline. Olivia era o tipo de mulher por quem um homem se poderia apaixonar à primeira vista. A menos que se tivesse o coração como um nabo murcho, que era praticamente o estado do seu.


15

Patife-Nojento-Sebento-Horroroso-Cagaloso-Merdoso!

– Então lançaste um papagaio e depois subiste a uma árvore? – perguntou Georgiana de sombrancelha franzido. – Parece-me muito estranho. – Tinham-se retirado para o quarto depois da refeição da noite.

– O papagaio ficou preso na árvore – explicou Olivia. Georgiana posou a xícara de chá.

– Quando crescerá, Olivia? – perguntou num tom invulgarmente severo. Olivia sentiu-se levemente magoada.

– Considero-me bastante crescida.

– Trepas às árvores – disse Georgiana contando os dedos da mão esquerda. – Pensa que é divertido insultar a duquesa. Traz a Lucy para dentro de casa quando sabe que deveria deixá-la simplesmente nos estábulos; Rupert nunca o saberia. Brinca com Lorde Justin como se fossem ambos da mesma idade... e ele mal fez os dezesseis anos.

– Não poderia mentir a Rupert acerca de Lucy – respondeu Olivia, aproveitando o ponto mais fácil de rebater.

Georgiana encolheu os ombros.

– Pensa que não te ouviram todos à mesa a rir com Lorde Justin? Como pensa que nos sentimos, tentando ter um conversa séria, quando a você só te interessa dizer graças? A duquesa disse a Lady Sibblethorp que lhe apetecia mandar abrir de novo os aposentos das crianças. Me senti humilhada.

– Lamento ter interrompido a vossa conversa – disse Olivia num tom seco, mesmo sem querer. – Lamento mesmo, Georgie. Não era essa a minha intenção. Justin estava a inventar outros insultos tolos e não pude deixar de rir.

– Podia – ripostou a irmã, teimosa. – Todos te ouvimos e até o duque não pôde evitá-lo. Aquele insulto maior que você e Justin inventaram... como era?

– Patife-nojento-sebento-horroroso-cagaloso-merdoso.

– Exatamente! Cagaloso? Merdoso? Como pode, Olivia? Não te preocupa nem um pouco comigo?

– Claro que me preocupo contigo! O insulto não era dirigido a você, nem ao duque. Nem sequer à superior autora do Espelho dos Elogios. Estávamos a gracejar!

– Estão sempre a gracejar – criticou Georgiana severamente, pegando na xícara com um movimento tão brusco e zangado que entornou chá no pires.

– Não consigo gerir isto contigo a comportares-te dessa maneira!

– Não consegue gerir o quê? – perguntou Olivia. – Em parte desejava também falar à irmã no mesmo tom para lhe dizer que evitava ter uma conversa adulta num esforço de convencer o duque que estava tão pouco interessada nele que preferia conversar com Justin.

Mas, por outro lado, o lado fraternal, olhou para a expressão atormentada e infeliz que a irmã tinha no rosto depois de uma longa noite passada com as duquesas. Ajoelhou-se ao lado da sua cadeira.

– Que se passa, Georgie? Estou vendo que tenho sido insuportavelmente desajeitada. Se te prometer fazer apenas comentários distintos, moralistas e enfadonhos durante o resto da visita, ficarás mais satisfeita?

– Não está a dar resultado – disse Georgiana com a voz entrecortada.

– O quê? Acha que não consegue gostar de Sconce?

– Conseguia – murmurou a irmã. – Certamente que sim. Ele é atencioso, discreto e tudo o que aprecio num cavalheiro.

Olivia posou a mão sobre a da irmã que estava enclavinhada na frágil xícara de porcelana.

– Vai partir a xícara.

Georgiana baixou os olhos e posou a xícara.

– Diz-me o que não está a dar resultado. Não estive sempre a gracejar com Justin, sabe. Estive a olhar para você e para Sconce e vi-vos muito concentrados numa conversa científica. A natureza da luz, não é verdade?

Georgiana ergueu os olhos.

– Foi fascinante – e deteve-se.

– Muito bem, é um ótimo ponto de concordância entre os dois – declarou Olivia. – O tipo de interesse cuja partilha tornará o casamento longo e importante. Olha para os nossos pais.

– O que têm os nossos pais?

– Sempre partilharam uma paixão: a duquesificação das suas duas filhas. Não diria que foram especialmente bem-sucedidos no meu caso, mas certamente conseguiram transformar-te num modelo de boa educação. Depois de casar com Sconce, terão duas filhas duquesas. Suponho que pensem que valeu a pena fazerem tantos sacrifícios.

Georgiana acenou afirmativamente.

– Sou da mesma opinião. Isto é, creio que sempre me interessaria pelas investigações de Sua Graça, científicas ou matemáticas. E ele também parecia interessado nas minhas ideias acerca da química. Não creio que estivesse apenas a ser educado.

– Tenho a distinta impressão de que Sconce é praticamente incapaz de prevaricar – declarou Olivia.

– Pois sim, está interessado nas minhas poções. Disse até que se eu lhe desse a receita para o unguento da artrite, o mandaria preparar para o seu jardineiro principal. Creio que o homem ficou terrivelmente afetado pelos anos passados no exterior com um clima tão húmido.

– Isso é ótimo – respondeu Olivia perguntando a si própria se falaria num tom falso. – Esplêndido! E ninguém merece tanto como você, Georgie. Então porque não te limitas a ignorar a tola da sua irmã e te pões a conversar com o teu belo duque.

– Acha que ele é bonito?

Olivia pestanejou.

– Sem dúvida. Penso que é... – retirou o que ia dizer. A última coisa que queria era dizer à irmã que nunca vira ou imaginara um homem tão bonito como Quin.

– O seu aspeto é mais que tolerável.

– Não acha que tem um cabelo esquisito?

– Não – disse Olivia, pensando em como lhe parecera sedoso quando o acariciara com as suas mãos, preto e branco como os dois lados da vida, escuridão e luz, bem e mal, tentação e temperança. Principalmente tentação.

– Pois eu penso. Crês que, se eu preparasse uma tina, ele permitiria que lhe pintasse? Lembras-te da zebra que vimos naquela feira itinerante, Olivia? Sconce faz-me lembrar esse animal.

– Lembro-me sim, mas o duque não se parece nada com uma zebra. E não, não creio que alguma vez pintasse o cabelo. Não creio que seja homem para acreditar em enganos. Ou que saiba como elaborá-los. – Olivia não tinha a certeza porque estava tão certa desta questão, mas estava.

– Nunca pensei que o fizesse.

– O que é que não está a resultar? – perguntou Olivia pouco depois. – A mim parece-me ótimo, Georgie. Tem cinco vezes o encanto da pobre Althea. A criada dela tinha toda a razão quando a descreveu como uma galinha à chuva. A mãe de Sconce nunca a poderia preferir.

– As duquesas viúvas gostam muito de mim. – Georgiana não parecia considerá-lo uma vantagem.

– E o duque gosta de você – Olivia descontraiu conscientemente o maxilar. Parecia desenvolver ultimamente a tendência de ranger os dentes. – O teu casamento será feito no céu. Pensa em como o pai e a mãe ficarão felizes.

– Acha? – O rosto de Georgie parecia notavelmente inconsolável para uma mulher à beira do noivado com um duque. – Agora que falamos no assunto, parece-me possível, mas, quando estávamos à mesa, me senti tão zangada contigo.

– Porquê? É isso que não entendo, minha querida. Sempre fui louca e trocista quando comparada contigo, embora prometa ser a partir de agora tão pretensiosa como todas elas. Porque diabo é que estavas a olhar para Justin e para mim?

– Porque ele também estava.

Olivia aclarou a garganta.

– O ele é o duque?

– Sim. – Georgiana rodava os dedos no colo. – Quando te ri, ele olha para você. Sempre. Não pude deixar de notar.

– Desculpa, Georgie é esta estúpida maneira que tenho de rir que me vem da barriga, como a mãe costuma dizer. Ela também fica irritada. – Prometo portar-me melhor, amanhã. – O remorso causou-lhe um aperto no peito, mas não era nada a que não estivesse habituada. – Não me tinha apercebido que tinha horrorizado todos os convidados.

– Não percebe – disse a irmã, olhando para os dedos entrelaçados. – Estás sentada a uma cabeceira da mesa e ninguém pode evitar olhar para você. Sinto-me como uma boneca de papel.

Olivia franziu a testa.

– O que quer dizer com isso?

– Pálida – Georgiana fez uma pausa. – Frágil e impotente – acrescentou.

– Que absurdo! Diz-me o que quer que faça e faço-o. Não preciso de dizer piadas. Que mais estou fazendo de errado?

– Não esta perceber. Quando você ri... toda a gente ri.

– Deve ser tonta. Se viste a duquesa esboçar um sorriso, já para não falar em dar uma gargalhada, não dei por nada. Quanto ao teu duque, Sconce tem muitas virtudes, mas não diria que o dom do riso fácil fosse uma delas.

Georgiana limitou-se a abanar a cabeça.

– O duque não sabe rir. Retrai-se muito. Mas vejo que os olhos dele mudam quando você ri.

– Ridículo – disse resolutamente Olivia, fingindo que não reparara.

Mas a irmã estendeu o braço e puxou-lhe uma madeixa de cabelo.

– Tem um riso maravilhoso, Olivia. Sempre pensei que a coisa mais triste do pai e da mãe era estarem sempre tão ocupados tentando fazer de você uma duquesa que nunca arranjavam tempo para rirem contigo.

Olivia sentiu os olhos molhados de lágrimas.

– Oh, Georgie, é a coisa mais bonita que já alguma vez me disseste.

– O teu riso é tão alegre. Se quer saber, é por isso que Sconce está fascinado por você.

O remorso e a ansiedade invadiram Olivia. Levantou-se, deu meia volta e ocupou-se em servir-se de outra xícara de chá. As mãos tremiam-lhe um pouco.

– Claro que não é verdade, Georgie, esta ser absurda. Eu ri-me como uma hiena e o pobre homem provavelmente nem se conseguia ouvir falar sobre tanto ruído – sem se aperceber, adoçou o chá com três colheres de açúcar.

Sentou-se de novo em frente da irmã e mexeu o chá.

– Os homens não se sentem fascinados por um espírito irreverente, Georgie.

– Suponho que não. Mas todos podem ver que ele se sente atraído por você.

– Sou uma mulher ruidosa e gorda que está noiva de outra pessoa – disse Olivia simplesmente. – Interpretas mal a atenção dele porque gosta de mim.

– Você não é gorda! É um pêssego, lembra-te?

– A verdade é que não me importo muito. Você é muito bela, esguia e eu não sou. Rupert não se importa.

Georgiana abriu a boca para contestar, mas Olivia ergueu a mão.

– Esta exagerar o fato de o duque olhar uma ou duas vezes na minha direção. A partir de agora vou agir como se fosse a aristocrata mais arrogante de todas, assim nada haverá que perturbe o brilho ducal que rodeia a nossa mesa.

A irmã sorriu, relutante.

– Espero que tenha razão. Dada a perda da mulher e do filho, o pobre homem esqueceu-se do que era divertimento, se é que alguma vez o soube. É por isso que olha para você quando te ri.

Olivia não conseguiu mais do que acenar com a cabeça. Em parte, queria berrar, gritar que Quin lhe pertencia. O que era ridículo. Sabia perfeitamente que nunca poderia deixar Rupert. E Quin era a melhor hipótese de a sua querida irmã se transformar na aristocrata que deveria ser.

– Que vai vestir amanhã para o baile?

– Creio que o vestido de seda azul com rendas de Chantilly.

– Ah! – gracejou Olivia. – Vai sair a artilharia pesada.

Tenho um estranho pressentimento de que a mãe de Sconce vai realizar este baile como uma espécie de teste – disse a irmã. – Não acha estranho? Parece interrogar-me a mim e a Althea como se comparasse as nossas respostas com uma lista já aprovada.

Olivia encolheu os ombros.

– Nesse caso será você a triunfar. O que foi a nossa infância senão uma série de testes? A irmã franziu a testa.

– É assim que te sente? E não voltes a encolher os ombros.

– Sim.

– Parece-me que estou percebendo.

– Tudo aquilo que fez com que se zangassem conosco, ou que nos elogiassem, estava diretamente relacionado com uma coisa – disse Olivia. – Nos tornarmos duquesas.

– Percebo porque te sente irritada.

– Percebe?

– Porque nunca passaste num único teste! – referiu a gêmea desatando a rir e correndo em volta do sofá, enquanto Olivia a perseguia tentando atingi-la com o guardanapo.


16

Várias Ansiedades Relacionadas com Crianças e Cães, mas não com Canapés

Sempre que a duquesa viúva de Sconce anunciava um baile – mesmo que este fosse de pouca importância – alteravam-se os planos em casa das famílias que viviam pelo menos num raio de quinze léguas. Ninguém que se considerasse aristocrata ou mais pensaria em faltar a um tal evento, a menos que fosse para estar presente no funeral da mãe. E, para alguns, nem isso causaria tanta tristeza.

Não que um baile dos Sconce fosse especialmente elegante. A duquesa nunca se preocupava em importar duzentos limoeiros cheios de limões, ou atapetar o salão de baile com orquídeas, nem mesmo mandar Gunter buscar gelados especiais.

Preferia seguir a rotina das anteriores duquesas: uma antepassada recebera o rei Henrique VIII em duas ocasiões, cumprimentando duas das suas mulheres e outra recebera três vezes a rainha Isabel.

Era, porém, de notar que o salão era esfregado e encerado na perfeição, contratava-se uma pequena orquestra, encomendava-se uma razoável quantidade de comida e, das caves, trazia-se uma grande quantidade de vinho excelente.

E pronto.

Na ideia da duquesa, o resto acontecia por si e acontecia sempre.

Não havia nada mais lastimoso do que a visão de uma anfitriã ansiosa.

Conforme seu costume, ao princípio da noite em questão, a duquesa presidia a uma pequena refeição, à qual assistiam os convidados que pernoitariam em Littlebourne por terem chegado de muito longe. Após a refeição, pedia aos convidados que avançassem para o salão de baile. Restava algum tempo antes de o baile começar e Sua Graça considerava este intervalo um tempo oportuno para acrescentar outra alínea no seu inventário de coisas apropriadas.

Para isso emitiu uma ordem, levemente disfarçada de convite.

– Creio que deveríamos ficar todos agradecidos se as jovens que se encontram entre nós realizassem um qualquer divertimento.

Sua Graça instalou-se no sofá com uma boa visão dos instrumentos e instruiu a sua amiga Mary, Lady Voltore, para se sentar junto dela.

A atuação das duas Ms. Barry foi muito afinada. Lady Althea cantou muito bem. Ms. Georgiana, não só cantou muito bem um excerto de uma ópera e depois uma balada alegre como se acompanhou ao cravo. Era perfeitamente evidente que Ms. Georgiana Lytton seria uma duquesa de Sconce altamente recomendável. A duquesa viúva nunca se permitia demonstrar um excesso de emoção, mas estava interiormente ciente de que se confessasse uma fraqueza seria pelo seu filho único. A dor que ele sofrera depois do primeiro casamento era inaceitável.

– Senhora duquesa?

Ergueu os olhos e viu as duas Ms. Barry fazerem uma reverência diante dela.

– Sim?

– Senhora duquesa – disse uma delas ofegante –, teria a bondade de autorizar Lorde Justin a cantar qualquer coisa para a assembleia aqui reunida?

A outra fez nova reverência.

– Temos a certeza de que todos apreciariam muito.

A duquesa permitiu-se a subir uma sobrancelha. Sim, tinha tomado a decisão certa quando incluíra as meninas Barry na lista de possíveis duquesas.

– Se Lorde Justin concordar, certamente que não terei qualquer objeção – disse em tom gelado. Naturalmente o sobrinho pouco se importou com o seu tom de voz e saltou de uma maneira pouco própria para se sentar ao piano. Para a duquesa aquilo não era adequado. As damas cantavam e tocavam instrumentos musicais. Os únicos homens que cantavam ou que tocavam eram profissionais com os quais os aristocratas não se deviam misturar.

De fato, Justin era pouco satisfatório em várias coisas. Naquela noite, por exemplo, trazia um fato roxo. Para ela, vestir roxo era como cantar: os cavalheiros simplesmente não o faziam. Mas ali estava o seu único sobrinho (embora assim por afinidade), vestido da cor dos lilases, com renda cor de peito de rola nos punhos, o que ainda tornava o fato pior. Vulgar seria a definição apropriada. O falecido duque daria uma volta na tumba se visse tal vestimenta num membro da família, meio francês ou não.

E por que raio estariam aquelas meninas em volta do piano como se fossem peixinhos a morder uma côdea de pão?

Mandou calar Lady Voltore que estava a tagarelar sobre um novo tipo de rosa e voltou a sua atenção para o sobrinho e o seu rebanho de admiradoras.

– Que está ele a cantar? – gritou Mary que era bastante surda. – Não me parece que seja Greensleeves. Gosto quando cantam Greensleeves. Diz-lhe que toque isso, sim, Amaryllis?

A duquesa tolerava que Lady Voltore a tratasse pelo nome próprio, apenas porque se conheciam desde os dois anos de idade.

– Não posso ir lá dizer-lhe que cante isso – retrucou. – Mas posso fazer-lhe o pedido, se quiser.

– Não seja absurda, Amaryllis, pagaste ao homem; pode bem fazer render o teu dinheiro. – Mary sempre fora um pouco estúpida, para falar com benevolência

– Não lhe paguei – disse a duquesa relutante. – É meu parente.

– Está doente? Não parece. Trabalha para algum circo? Acho que eu nunca convidaria gente do circo para a minha casa.

A duquesa limitou-se a lançar um olhar a Mary.

– Não sei onde contrataste o rapaz, mas só te digo que gosto dele. Uma canção bonita. Um rosto bonito. – Mary soltou uma gargalhada irreverente. – Não estou tão velha que não saiba apreciar um rosto. Olha, quase parece um cavalheiro, exceto aquele casaco, claro. Fá-lo parecer um macaco de realejo.

Justin estava rodeado por um canteiro de meninas. Uma Barry de cada lado e Lady Althea atrás.

A duquesa viúva apurou o ouvido e escutou por instantes. Ela era o seu sol – cantava Justin. – Era a sua terra.

Bom aquilo parecia inócuo e disparatado. Mas, dado que Lady Althea fora agraciada com a subida honra de ser considerada para o título de duquesa de Sconce, o menos que poderia fazer seria comportar-se de maneira digna. A verdade é que Althea era tonta como um puxador de porta e nunca faria Tarquin feliz.

Justin começara uma nova canção, qualquer coisa acerca do amor. Amor! Na sua opinião, o amor era uma coisa destrutiva e desagradável. Bastava ver o que fizera a Tarquin: quase o desfizera.

Voltou-se notando com agrado que Ms. Georgiana estava sentada ao lado de uma velha tia do lado do duque, conversando com ela em voz baixa. Não mostrara sinal de se querer juntar à multidão em redor do piano, o que só punha em evidência o seu bom senso.

E Tarquin?

Levou algum tempo, mas conseguiu ver o filho. Estava sentado a um canto e parecia observar Ms. Lytton, que se sentara no canto oposto da sala a conversar com o bispo de Ramsgate. Naquela noite, Olivia Lytton era o perfeito retrato da futura duquesa de Canterwick, sendo a única objeção possível o fato de o seu decote ser um pouco ousado.

A duquesa semicerrou os olhos para ver melhor. O bispo, aquele bode velho, parecia estar a gostar da vista proporcionada pelo embonpoint de Ms. Lytton.

Mas foi Tarquin que lhe chamou a atenção. A expressão do rosto do filho era-lhe familiar. De fato, já antes a vira e esperara nunca mais a ver. Quase sem se aperceber, começou a levantar-se da cadeira. Mas voltou a sentar-se.

Aquilo não poderia ter ido muito longe. Na verdade, pensando cuidadosamente nos últimos dias, a duquesa estava certa de que a relação, se é que assim se pudesse chamar, não poderia existir, pelo menos para Ms. Lytton, o que era importante. Ela já estava noiva de um marquês. E mais, parecia ser fiel ao pobre tontinho.

Além do mais, o próprio Canterwick insinuara-lhe que Ms. Lytton poderia estar já grávida do herdeiro do seu ducado.

Claro que aquilo não significava que Olivia Lytton não pudesse, a qualquer momento, voltar as costas ao noivo se lhe passasse pela cabeça que poderia trocar o marquês por um duque.

Os dedos da duquesa apertaram os braços da cadeira. Ms. Lytton era quase de certeza outra Evangeline.

Possivelmente grávida do herdeiro do duque, embora o rapaz tivesse apenas dezoito anos e fosse um simplório, segundo ouvira dizer. E agora atirava-se ao bispo! Incrível.

– Tenho de te dizer que tem um cãozinho muito feio, Amaryllis – disse Mary interrompendo os pensamentos.

– Não tenho cão! – a irritação acerca de Ms. Lytton coloria a voz.

– Então de quem é?

Desconfiada, a duquesa seguiu a direção do lorgnon de Mary. O estranho cão, que pertencia a Ms. Lytton e que quase não se podia chamar cão dado o tamanho e a falta de higiene, estava sentado junto às suas saias. Sentado com a sua horrível pata sobre o seu sapato. Outra vez!

Irritada, olhou de novo para o cão.

– Não é assim tão mau, afinal – disse Mary. – E vê-se que te adora. Recorda-me os cães de caça que o meu marido tinha. Olhavam para ele exatamente assim.

– Odeio cães. Tira-o daqui, por favor.

Mary soltou a sua estranha risada que a fazia parecer uma bruxa louca.

– Que disparate, Amaryllis! Na nossa idade não podemos nos dar ao luxo de cometer essas ridicularias.

– Odeio animais com patas – era uma declaração de fato, embora não pudesse deixar de notar que este tinha uns olhos muito doces.

– Devia desistir dessas coisas – aconselhou Mary. – Faz-te parecer idiota. É demasiado velha para te comportares como uma menina pequena – e, dizendo aquilo, pôs-se de pé com os joelhos a rangerem e afastou-se

Um cão era uma coisinha feia, quase sem pelo e uma cicatriz visível na pálpebra. O focinho era mais comprido do que devia ser o focinho de um cão. Olhou-o e o cão deitou-se a seus pés.

– Não é nada idiota não gostar de patas – disse em voz alta. Mas não pôde deixar de franzir a testa à pretinha que de novo se aproximava do seu sapato. Logicamente...

Afastou o pensamento e olhou mais uma vez para Tarquin. Quando conseguiu que ele olhasse para ela fez um aceno discreto, mas imperioso. Momentos depois, o filho curvava-se diante dela.

– Senhora minha mãe? – Sempre lhe obedecera, mesmo quando era um rapazinho. Excessivamente solene, pensava ela nesses tempos. Herdara o título demasiado cedo. Mas aceitara com tanta facilidade os seus deveres que parecia ter sido sempre duque.

– Gostaria que levasses Miss Georgiana a dar uma volta pelos jardins – declarou. – Há meia hora que conversa com Lady Augustina, e é mais do que se pode pedir para uma só noite. Tem tempo antes que a festa comece.

Tarquin curvou-se, silencioso como sempre, e afastou-se. Mas a mãe ficou a olhá-lo e pensando. Sentia no seu íntimo que Georgiana Lytton era a mulher perfeita para o filho. Não era uma menina insípida e sentimental, seguindo as regras só porque elas existiam. Havia nela uma profunda decência senhoril. Compreendia a razão da existência de O Espelho dos Elogios: porque a civilização era a única coisa que existia entre a humanidade e a dor.

O tipo de dor que Evangeline causara a Tarquin. A duquesa escrevera o livro no ano a seguir ao filho casar com a primeira mulher, um volume nascido do desespero e da tristeza e da convicção de que se, pelo menos, as damas se comportassem como damas, aquele desgosto nunca teria acontecido.

Porém, o desgosto que Evangeline causara a Tarquin quando saltara da cama dele para a de desconhecidos, vizinhos, amigos... nem se aproximara do que sentira quando ela morrera. Aquela mulher completamente idiota. Morrera levando consigo o pequeno Alphington. A duquesa pensara que o filho não voltaria a sorrir.

Não havia necessidade de mais testes. Georgiana era uma duquesa perfeita. Poderiam ficar noivos no dia seguinte. Por momentos, pensou em aconselhar o filho a declarar-se naquela mesma noite, mas depois recordou-se das outras ocasiões em que Tarquin, o seu delicado e sóbrio Tarquin, fizera finca-pé. E dado o que lera nos seus olhos enquanto ele observara Olivia Lytton, precisaria tomar mais cuidado.

Amanhã, disse para consigo, instalando-se de novo no sofá. Amanhã poderiam resolver todo aquele imbróglio.


17

Para o Bem, e para o Mal, na Saúde e na Doença

Georgiana era uma companheira muito repousante. Passearam até ao fundo do jardim, onde havia um banquinho. Georgiana estava fascinada pela composição da luz em termos de ondas e partículas. Era um verdadeiro prazer discutir a questão com ela.

Quin nem reparou que arrefecera até que inadvertidamente lhe tocou no braço e o sentiu gelado.

– Miss Georgiana, a senhora está com frio. Devíamos regressar. Ela ignorou-o.

– Gostaria de saber se influenciaria a experiência se se inclinasse o papel que se usa para dividir a luz em arco-íris.

– Como assim?

– Bem, se bem o entendi, o senhor segura um cartão com uma fenda vertical junto à janela.

Ele acenou afirmativamente.

Quando a luz bate na fenda, divide-se num arco-íris, demonstrando assim ser constituída por raios e não por partículas. Embora não seja claro para mim por que razão os raios se evidenciam meramente por atravessarem uma fenda no papel.

– Pode ser porque os raios se inclinam quando o atravessam. Embora, para falar verdade, não tenha a certeza.

– E se a fenda for de um canto a outro? Os raios inclinar-se-iam na mesma direção? E se a fenda fosse paralela ao caixilho da janela e não vertical? O que aconteceria?

Quin fez uma pausa.

– Não sei – disse por fim. – Mas é boa questão. Amanhã vou experimentar – pegou-lhe no cotovelo gelado e ajudou-a a levantar-se. – Também estou a ficar com frio.

Georgiana sorriu-lhe.

– Nem reparei porque a nossa conversa foi tão interessante – deu-lhe o braço e começaram a dirigir-se para casa. Havia entre eles um agradável silêncio. Quin pensava ferozmente num alinhamento de fendas em relação à luz e Georgiana não parecia importar-se com a falta de palavras.

Um ruído de pés interrompeu o pensamento de Quin e ergueu os olhos no momento em que Olivia surgiu na curva do caminho. Não sabia descrever aquelas coisas, mas o vestido dela era feito de um tecido cor de ouro-escuro, coberto de renda dos lados. A renda era composta por pequenos fios que o desafiavam a passar os dedos por ela.

Os fios balançavam quando ela corria. Nesse momento, o corpo de Quin passou de frio a quente. O calor transformou-se num impulso de sangue que lhe percorreu o corpo.

– Georgie! – chamou Olivia. – Senhor duque – inclinou-se numa reverência.

Os dedos de Georgiana apertaram o braço do duque.

– Lamento ser preciso que me viesses buscar, Olivia. Estávamos a ter uma conversa acerca da base científica da luz.

– Claro que sim! – o sorriso de Olivia era largo e perfeitamente natural... até que ele lhe olhou para os olhos.

Ou teria imaginado aquela centelha de posse?

Deliberadamente, Quin posou a outra mão sobre os dedos de Georgiana.

– Estávamos a ter uma conversa tão fascinante que, infelizmente, permiti que a sua irmã ficasse gelada.

Georgiana olhou-o com olhos imperscrutáveis e depois voltou-se para a irmã.

– Íamos já para casa, Olivia. Obrigada por vires buscar-me.

– Peço desculpa por ter interrompido a conversa – disse Olivia num tom perfeitamente simpático. Recuou e colocou-se ao lado de Georgiana.

– Ouvi-a chamar Georgie à sua irmã? – perguntou Quin, olhando para ela.

– Sim – confirmou Olivia. – É o diminutivo que sempre usei. Meu Deus, está frio aqui, não é verdade? Quase consigo ver o vapor da minha respiração – inspirou e soprou.

Georgiana riu.

– Não seja tola, Olivia! Para que a humidade da sua respiração se torne visível, tem de estar muito mais frio do que isto.

Quin registou a resposta de Georgiana, mas não conseguia que as palavras lhe chegassem à boca. Sempre que Olivia respirava, os seus seios empurravam os delicados fios da renda. Parecia-lhe que esses fios eram tudo o que impedia a exposição dos mamilos da jovem a todos os homens do salão de baile.

Um gemido subiu-lhe na garganta, mas sufocou-o.

– Gosto do nome Georgie – disse. As palavras saíram-lhe em voz rouca, como se quisesse dizer uma coisa inteiramente diferente.

Georgiana – Georgie – olhou-o com um sorriso espantado. Olivia pestanejou e desviou os olhos. Tinham ambas escutado a voz dele e ambas se enganaram.

– Bom – disse ele bruscamente –, sugiro que nos dirijamos à biblioteca para nos aquecermos à lareira antes de nos juntarmos aos outros no salão de baile.

– Oh, eu não tenho frio – disse Olivia alegremente. – Aqueço dançando.

Aproximavam-se do pequeno lance de escadas que conduzia ao terraço de mármore. A ideia de Olivia nos braços de outro homem trespassou-o como uma espada.

Bastou-lhe um pequeno movimento. Delicadamente fez com que Georgiana passasse para o degrau adiante dele, passou para o lado e avançou com precisão para que o pé lhe descesse sobre a cauda, prendendo-a ao degrau. Depois lançou todo o seu peso para a frente, fingindo tropeçar.

O cientista que havia nele orgulhou-se do ruído prolongado que o rasgão causou.

Engolindo um sorriso, desfez-se em desculpas – com fluência surpreendente nele. Georgiana manteve a calma, embora muitas damas tivessem ficado histéricas. A costura na cintura do vestido separara-se e estava agora aberta, revelando-lhe a camisa.

– Eu vou atrás de você – disse Olivia à irmã. – Nos basta atravessar a sala e subir imediatamente as escadas.

– Que tolice – disse Quin. – Fui eu que fiz o estrago e levá-la-ei aos seus aposentos. Miss Georgiana, a senhora torceu o pé – pegou-lhe ao colo e descobriu que ela quase nada pesava. Era como pegar num pássaro, só ossos ocos e penas.

Georgiana não gritou, mas sufocou um suspiro de ansiedade.

– Olivia nos acompanha – disse Quin voltando-se para trás. – Posso levar a sua irmã lá para cima, mas preciso de si como acompanhante.

Sem esperar resposta, atravessou as portas abertas. Foram recebidos por uma espiral de conversas com as pessoas a perguntarem que infelicidade acontecera a Georgiana.

– É apenas um tornozelo torcido – dizia Olivia a todos, passando adiante deles.

– Estou perfeitamente – declarou Georgiana em voz tranquila como sempre. – De fato, penso que vou descansar um pouco e voltar depois ao salão de baile.

– Vou entregá-la nas mãos da sua criada – anunciou Quin, assegurando-se que todos os que estavam próximos o ouviam. – Claro que pode decidir se será ou não aconselhável regressar. Ninguém gostaria de a ver dançar com um tornozelo magoado, Miss Georgiana.

Aquelas bagatelas continuaram até ao fundo da escada. Quin começou a subir pensando na diferença entre as irmãs. Georgiana parecia uma almofada de penas nos seus braços, enquanto a ideia de transportar Olivia do mesmo modo... de a levar ao colo para o quarto...

Caminhou rapidamente. Quando chegaram em cima das escadas, passou para o lado para deixar entrar Olivia à sua frente.

Assim que chegaram ao quarto de Georgiana, esta libertou-se com delicadeza e firmeza, executando uma reverência perfeitamente calibrada.

– Agradeço-lhe muito por me salvar, senhor duque.

– Fico feliz por poder ser-lhe útil; afinal, fui eu o responsável por esta difícil situação. E creio que nos deveríamos tratar pelo primeiro nome – disse tomando-lhe a mão e beijando-a. – Os meus amigos chegados chamam-me Quin.

Apercebeu-se de uma expressão estranha no olhar dela, mas não conseguiu interpretá-la, pelo menos do modo como conseguia ler o olhar de Olivia.

– Posso chamar-lhe Georgie? O nome condiz consigo.

Ela acenou afirmativamente.

– Será uma honra – depois voltou-se para a irmã. – Olivia, desço mais ou menos dentro de meia hora. Muito obrigada mais uma vez, senhor duque.

– Chamo-me Quin – insistiu ele.

Era de fato uma jovem sombria; o sorriso não lhe chegava aos olhos.

– Claro – concordou. Depois fechou-lhes a porta na cara.

Olivia ficou a olhar para a porta de testa franzida, mas Quin não se preocupou com o que Georgiana sentia ou pensava. Lançou um olhar rápido à sua volta e viu que, para sua satisfação, não havia ninguém por ali e ninguém os podia ver de baixo. A mão apertou a de Olivia como um torno e puxou-a para o fundo do corredor, abriu a porta do seu quarto e puxou-a para dentro como uma criança recalcitrante.

– Mas o que pensa que está fazendo? – perguntou ela num severo murmúrio.

Quin não sabia bem o que pensava, mas sabia o que ela estava pensando. Poderia protestar o que lhe apetecesse, mas ele sabia ler-lhe os olhos.

Sem uma palavra, fechou a porta e encostou-a a ela, inclinou a cabeça e beijou-a na boca dando largas à paixão escaldante e selvagem que sempre surgia entre ambos.

– Quin – disse ela sufocada, mas ele inclinava-lhe a cabeça para o lado, incapaz de pensar, o seu corpo uma feroz bola de desejo. Desejo de lhe tocar, de a possuir, de estar dentro dela.

– Preciso de si – disse, titubeante. Colocou-lhe as mãos no traseiro e puxou-a mais para si, encostando o corpo sensual de Olivia ao seu. – Olivia! – murmurou o nome dela num tom baixo e profundo, como uma súplica ou uma prece. Ela estava em bicos de pés, retribuindo os beijos, e mesmo assim não bastava.

Quin puxou-a suavemente da porta e posou-a sobre a cama. Baixou-se sobre ela, lentamente, assegurando-se que cada centímetro do seu corpo estava sobre a sua macieza, observando-a para ver se ela compreendia o que ele fazia.

Ela emitiu um som desarticulado, quase um gemido ofegante, mas não pronunciou palavra. Depois beijou-o também, meteu-lhe os dedos no cabelo e o seu corpo cedeu sob as coxas musculosas de Quin.

Ficaram assim, quase sem se mover durante longos minutos. Não eram beijos como Quin sempre pensara que fossem os beijos. Pensava saber exatamente o que era um beijo: uma caricia dos lábios que poderia ou não incluir a exploração da boca de quem o recebia pela língua de quem o dava.

Nada disso fazia agora sentido quando comparado com estes beijos. Eram um incêndio e uma conversa ao mesmo tempo. Quin sentia cada toque com dupla violência: os dedos dela acariciavam o cabelo e depois puxavam-no, quase dolorosamente, quando ele avançava com os lábios. O hálito de Olivia, doce e cheirando a chá e a limão. Os pequenos sons que fazia com a garganta, incentivando-o, pedindo-lhe que...

Ergueu-se para olhar para ela, passando-lhe uma mão possessiva pelo pescoço, pelos ombros, percorrendo o seio. Sentiu-a estremecer ao toque.

Olivia abriu a boca para falar e ele pôs um dedo nos lábios. Olivia tocou-lhe no dedo com a ponta da língua. Ele insistiu um pouco, deixando o dedo deslizar pelos lábios dela até ao calor líquido da boca.

Um gemido saiu-lhe do peito, ecoando por todo o corpo. E cristalizou-lhe o pensamento.

– Não casarei com Georgiana – era brusco, pois não sabia usar bem as palavras, embora fosse uma pouco mais fluente com Olivia. Pelo menos conseguia falar com ela.

Ela abriu os olhos e todo o seu corpo ficou rígido.

– Oh, meu Deus! Sou a pior irmã do mundo. Deixe-me levantar!

Ele abanou a cabeça, passando-lhe o dedo pela curva do maxilar.

– A sua pele é muito bela.

– Sinto-me enjoada – disse ela em voz baixa e furiosa – e o senhor... o senhor quer seduzir-me!

– Sim.

– Pare com isso. E deixe-me levantar!

Com relutância, Quin afastou-se para o lado, mas manteve o braço sobre o corpo dela.

– Não posso casar com ela e nada tem a ver consigo.

– Mentiroso – Olivia olhou-o fixamente e ele esperou um pouco para saborear aquele olhar. Olivia era uma chama.

– Pode ter a certeza que nunca minto.

– Agora mente. Se nunca me tivesse conhecido, teria casado com Georgie e seriam tão felizes como dois percevejos num colchão ou, melhor dizendo, dois alquimistas num laboratório.

– Claro que não posso ter a certeza, mas creio que não. Só quando a minha mãe trouxe para cá Lady Althea e Miss Georgiana me apercebi que não poderia casar com uma pessoa escolhida por ela.

– Ela escolheu bem – disse Olivia, teimosa como sempre. – São perfeitos um para o outro. Esta história entre nós não passa de fogo na floresta, tal como a descreveu. É temporária. Vai apagar-se. Por favor, deixe-me levantar.

– Não creio saber o que é o amor. Pelo menos, aquele de que as pessoas falam que acontece entre um homem e uma mulher. Mas me atreveria dizendo que algumas pessoas definem como amor o sentimento que tive por Evangeline. Penso que gostar será uma descrição mais precisa, principalmente se a palavra incluir um desejo permanente.

Ela ficou imóvel. Ergueu a mão e tocou-lhe no rosto.

– Lamento.

– Não foi um bom casamento. Ela não estava apaixonada por mim e tinha uma profunda necessidade de estar com outros homens. Era problemático. Mas eu gostava dela, mesmo quando me enganou e por fim me deixou. Não pude impedi-lo. É estúpido, bem sei.

Olivia inclinou-se e deu-lhe um beijo que se lhe colou aos lábios.

– Deveria sentir orgulho na sua fidelidade. O senhor é um homem maravilhoso, Quin.

– Não, sou um idiota. Deveria tê-lo impedido. De que maneira fosse.

– Creio que ninguém tem a capacidade de escolher apaixonar-se ou não.

– Exatamente – disse ele com profunda satisfação. – Concordo consigo. Quando lhe disse que não mentia, era verdade.

Ela abanou a cabeça.

– Tenho de voltar lá para baixo, para o caso de Georgie decidir voltar ao baile.

– Vou dizer-lhe uma coisa – tentou recordar-se do que era, mas parecia que todo o seu corpo estava concentrado nas curvas cheias e doces dos lábios dela.

– O senhor nunca mente – disse ela sentando-se e afastando o olhar. – Acredito.

– Não sou muito bom a... interpretar frases complexas.

Ela puxou os joelhos para o peito, rodeou-os com os braços e descansou o queixo sobre eles, olhando-o com curiosidade.

– Mesmo assim, o senhor é a pessoa mais inteligente que conheci.

– Só porque não andou na universidade. Ela soltou uma gargalhada.

– Ao ouvir o elogio, a maioria das pessoas faltaria à verdade e diria que eu estava exagerando.

– Como já lhe disse, eu não minto. Há uma ótima possibilidade de eu ser a pessoa mais inteligente que a senhora já conheceu, o que não quer dizer que seja a mais sábia. A prova está em que gostava tanto de Evangeline.

– Um fato que prova que o senhor é humano.

– É uma maneira triste de conseguir a humanidade – disse ele, irônico. – O que quero dizer é que sou incapaz de proferir os votos sem os sentir.

– Votos? – o olhar de Olivia alterou-se. – Oh, os votos do casamento.

– Ser-te fiel, amar-te e respeitar-te – citou ele. – Até que a morte nos separe.

Ela engoliu em seco.

– Pobre Evangeline.

– Agora pertence ao passado – Quin estava a ser sincero. – Mas não posso dizer estas palavras a qualquer pessoa. Significam muito para mim. Têm força.

– Mesmo quando Evangeline não respeitou esses votos?

– Sabe como ela morreu?

Olivia apertou mais os joelhos.

– Não.

– Ia abandonar-me. Decidira fugir para França com o atual amante, um idiota absurdo chamado Sir Bartholomew Fopling.

Olivia sufocou o riso.

– Não estou a brincar. Fopling era um homem muito prendado: sabia cantar em várias línguas, dançar tudo o que vale a pena dançar e as suas gravatas estavam sempre engomadas. De qualquer forma, ela e Fopling levaram Alfie – deteve-se e aclarou a garganta. – Partiram para França embora se preparasse uma grande tempestade. Foram avisados para não embarcar, mas Evangeline subornou o capitão. Estava aterrorizada não fosse eu segui-la e poder apanhá-la.

– Tem a certeza de que me quer contar tudo isso?

– Porque não? Não é mais do que a sua criada lhe contaria se lhe perguntasse.

– E foi atrás dela?

– Quase matei o cavalo, mas era demasiado tarde. O diabo é que ainda sonho com aquele pontão. Não os apanhei e a única coisa que consegui ver foi o mar em turbilhão e a crista das ondas. O barco afastou-se apenas uma ou duas milhas da costa.

Houve um momento de silêncio.

– Suponho – disse Olivia lentamente – que uma futura duquesa não deveria pronunciar blasfémias, principalmente em relação aos mortos. Por isso diria, Quin, querendo evitar impropérios, que a sua mulher foi uma estúpida.

Ele sentiu um sorriso a brincar-lhe nos lábios.

– Já foi há muito tempo. Cinco anos, praticamente uma vida.

– Que disparate – disse Olivia. – Nunca ultrapassamos a morte de um ente querido. Principalmente de uma criança.

Não valia a pena responder ao comentário. Era cruelmente verdadeiro.

– De qualquer forma, não posso casar com Georgiana. – Depois acrescentou para que ela compreendesse: – Nunca.

– Creio que pode aprender a amá-la... ou a gostar dela, se prefere o termo.

– Evangeline não foi fiel, mas eu fui. Sentia por ela um desejo tão febril que havia momentos em que duvidava da minha capacidade de me controlar. Embora o conseguisse.

Uma sombra passou pelos olhos de Olivia.

– Evangeline desperdiçou uma coisa que todas as mulheres deste reino adorariam ter. Não o merecia.

– Merecido ou não, teve-o. Quando subi as escadas com a sua irmã ao colo não senti nem uma sombra de desejo.

Ela franziu a testa.

– Georgie tem uma figura perfeita. É perfeita em todos os sentidos.

– Parecia-me que subia as escadas com uma criança ao colo, pernas compridas e cabelo.

– Ela é elegante – declarou Olivia. – Seria capaz de matar para ter a figura dela.

– Ah sim?

– Claro. Sempre desejei parecer-me com ela, embora obviamente não o necessário para evitar a comida – acrescentou.

– Que loucura. A senhora tem tudo o que ela não tem.

Olivia abriu a boca, pronta a discutir.

– Tudo o que ela não tem. Olivia franziu a testa.

– Incluindo eu.


18

Loucura em Todas as Formas

As duas últimas palavras de Quin, pronunciadas com a calma que o caracterizava, perturbaram Olivia até ao âmago.

– O quê? Que está dizendo?

– Estou dizendo que gosto de você. É embaraçoso, mas parece-me que gosto de si mais do que gostava de Evangeline. Talvez esteja a ficar louco – fez uma pausa para refletir. – Não me apercebo de outros sinais de fraqueza mental, embora me sinta inclinado a reconhecer isto como uma fraqueza humana. Sinto-me relutante em considerá-lo uma falha.

Ela abanou a cabeça confusa.

– Talvez seja apenas um daqueles homens governados pela luxúria.

Olivia respirou fundo.

– Sinto-me honrada pelo que disse. Garanto-lhe que nenhuma mulher se preza que lhe digam que é objeto de desejo. Mas tem de me ouvir, Quin. Não trairei Rupert deixando-o enquanto está fora do país, na guerra. E mais, nunca trairei a minha irmã. Esteve com ela no jardim durante quase uma hora. Subiu as escadas com ela ao colo. Cortejou-a.

– Não a cortejei mais do que a qualquer outra jovem que visitasse a minha casa.

– Sentado num banco durante quase uma hora? Não estou a vê-lo fazer o mesmo com qualquer outra das convidadas.

– A sua irmã é notavelmente inteligente; falámos de ciência. É um prazer conversar com ela. Porém, uma conversa de quarenta e cinco minutos não exige que me case com ela.

– Juntamente com o resto, significa que ela tem expetativas razoáveis de casar consigo. E nunca impedirei o desejo dela. Se o senhor e ela não se casarem por qualquer outra razão, seja. Mas que nunca ninguém diga que lhe roubei o marido que escolheu.

Levantou-se.

– Tenho de arranjar o cabelo...

Ele chegou-se a ela numa urgência silenciosa, numa onda de poder e velocidade.

– Não case comigo – disse, apertando-a contra si.

– Não caso! – mas Quin percebeu a hesitação na voz dela.

– Mas não finja que não quer fazê-lo. Que não há nada entre nós para além do que partilhei com Evangeline e a senhora com Montsurrey ou até com a sua irmã.

O coração de Olivia batia-lhe no peito tão acelerado que pensou que também ele o poderia ouvir.

– Não creio que tenha importância.

– Não tem importância? – exclamou ele. – Então o que terá importância? O quê?

– Silêncio! – disse autoritária. – Serei obrigada a casar consigo se formos apanhados aqui e nunca lhe perdoarei.

Ele puxou-a um pouco mais, apertando o corpo dela contra o seu.

– Não percebe o que estou dizendo porque nunca perdeu ninguém. Nada importa mais, nem a ciência, nem as proposições matemáticas, nem o meu título ou as minhas terras... nada.

– Há a honra – argumentou ela, sentindo uma seta de dor atingir-lhe o peito. – A minha honra. Não posso trair a minha irmã. Ou Rupert.

Qualquer coisa mudou nos olhos dele.

– O seu amor não é tão ilimitado como o mar, nem tão profundo.

– Nunca lhe disse que o amava, muito menos usando essas metáforas – disse ela com voz firme. – Mal o conheço.

Os dedos dele apertaram-lhe as ancas, como se fosse discutir com ela. Olivia sentiu-se estremecer interiormente. Sabia o que sentia por ele.

Mas Quin soltou-a.

– A minha mãe sempre me disse que eu era um idiota rematado no que dizia respeito às emoções. Raramente as sinto e quando as sinto é uma loucura.

Olivia sacudiu as saias, evitando o olhar dele. Sentia a mesma loucura, embora não o pudesse confessar. Se o fizesse... ele a tomaria. Lia no olhar. Ele gritaria É minha! E chamaria todos os convidados ali ao quarto.

E ela teria de viver com a traição e a dor que causaria à irmã.

Não.

– Vou retirar-me para o meu quarto por alguns momentos e depois desço de novo – declarou. – Se me fizer o favor de regressar ao salão agora, há possibilidades de que ninguém repare na nossa ausência.

Ele fez-lhe uma reverência quando ela passou, fechando silenciosamente a porta atrás de si.

As pulsações de Olivia não acalmaram até Norah lhe ter arranjado de novo o cabelo e ter voltado ao quarto da irmã.

– Georgie?

Georgiana estava sentada à lareira, a ler – um perfeito retrato da serenidade.

– Já passou tempo suficiente para poder voltar lá para baixo?

– Creio que já descansaste bastante o tornozelo – disse Olivia conseguindo esboçar um sorriso.

– Acha que será preciso coxear ou não?

– Não. Claro que não. Banhaste o pé em água fria e vinagre, embora não seja indelicada a ponto de mencionar estes pormenores e ficaria imediatamente melhor. No entanto, talvez não devesses dançar.

– Não será um sacrifício. Não gosto de dançar – Georgiana levantou-se e arranjou o cabelo diante do espelho.

– Não gosta de dançar? – perguntou Olivia surpreendida. – Não fazia ideia.

– Estou descobrindo que há aspetos de que não gosto nisto de ser duquesa – replicou a irmã. – Dançar, por exemplo. E também não gosto de falar de bordados, como tive de fazer esta tarde com a mãe de Althea. Durante duas horas.

– Você conversaste – disse Olivia. – E eu caí numa coisa parecida com estupor.

– Se houvesse por aí um caixão, metia-me nele.

Olivia riu.

– Georgie! Nem parece teu.

– Creio que estou a transformar-me em mim mesma – Georgiana não se ria. – No jardim, falei com o duque acerca da composição da luz.

O riso de Olivia despareceu como que por encanto.

– Claro. E foi muito mais interessante do que falar sobre bordados. Com certeza que foi.

– Não é justo que eu não possa ir para a universidade – replicou a irmã com os olhos ferozes como os de um falcão preso. – Podia ir, Olivia. Podia sair-me tão bem quanto ele. Talvez melhor.

– Acha?

A irmã acenou afirmativamente.

– Não sei quase nada... mas seria uma questão de estudo. Como aprender a ser duquesa, mas muito mais interessante! – Era como um grito que lhe arrancavam da alma. Olivia deteve-se.

– Esta dizer que aprendeste a ser duquesa apenas porque se tratava de uma disciplina de estudo? Georgiana passou por ela e saiu para o corredor.

– É sempre muito emotiva. Nos atribuíram uma tarefa. Podíamos realizá-la bem ou mal. Preferi fazê-la bem. Você permitiste que a emoção interferisse no resultado.

Olivia seguiu-a e pegou-lhe na mão.

– Georgie!

– Sim? – A irmã tinha um olhar frio.

– Estás zangada comigo?

Nesse momento suavizaram-se.

– Não. De modo algum. Estou zangada por ter sido treinada para ser mulher de um duque. Mesmo que tivesse sido treinada para ser a mulher de um cientista, não seria suficiente.

– Queres ser cientista.

Um aceno brusco.

– Gostei de falar com o duque. Mas ao mesmo tempo senti um tal ressentimento que quase me senti sufocada.

Olivia aproximou-se e beijou-lhe o rosto.

– Podia estudar o que quisesses, Georgie.

A irmã encolheu os ombros, num gesto pouco refinado que revelava mais que as palavras que estava prestes a não suportar tanta tensão.

– Estou falando a sério! – continuou Olivia, fechando a porta do quarto atrás delas. – Para que diabo precisa de uma universidade? Está tudo nos livros e podemos conseguir os livros que queiras.

– Você e Rupert?

– Exatamente. E podemos pedir a um professor que venha de Oxford ou de Cambridge. Pagamos-lhe para te ensinar o que não possas aprender só com os livros. Vai aprender num ápice, Georgie.

– Podia – disse mais alto. – Podia mesmo.

– Depois de casar com Sconce pode comprar os livros que quiser, já para não falar em discutir as ideias com ele. Nem preciso dizer que nem Rupert nem eu te podemos oferecer uma verdadeira conversa intelectual.

Georgiana seguia pelo corredor, mas deteve-se.

– Sei que te disse que ele era perfeito, Olivia, mas não é. Não há uma centelha. Nada.

– Talvez com o tempo? – perguntou Olivia, forçando-se a pronunciar as palavras.

– Pensei... pensei realmente que, quando encontrasse o homem ideal, sentiria alguma coisa. Um desejo de estar com ele. Paixão, amor, o que queiras chamar-lhe. A princípio acreditei que era o que sentia com Sconce. Gosto de falar com ele. Mas não me apetece tratá-lo por Quin, que é um diminutivo ridículo.

– Não gosta do nome dele?

Georgiana começou a descer a escada.

– Faz-me lembrar o nome de um fruto. Uma espécie de marmelo 5.

Olivia olhou-a, contendo a alegre e líquida sensação de alívio que lhe invadia o corpo.

– E mesmo que a sua aparência não fosse o cruzamento de uma zebra com um marmelo – continuou Georgiana voltando-se para trás –, ele não olha para mim como olha para você.

– Ele não olha... – disse Olivia em voz fraca.

Georgiana voltou-se ao fundo das escadas.

– Não sou estúpida – fez notar desnecessariamente. – Posso ter querido casar com Sconce antes de o ter conhecido melhor. Mas, mesmo que ainda quisesse casar com e ele, coisa que não quero, não sou um osso que se lhe pode atirar, simplesmente porque alguém se sente culpado por agir seguindo os seus sentimentos.

– Nunca pensei em você como um osso.

Havia uma expressão mais viva nos olhos da irmã.

– Se o quer, Olivia Lytton, fica com ele. É um duque, por amor de Deus. Tem a possibilidade de ser feliz e fazer feliz a nossa mãe. Rupert há de voltar um destes dias, mas o seu cérebro não será mais forte do que quando saiu do país. De que diabo está à espera?

– Rupert – disse Olivia em voz fraca. – Não posso traí-lo.

– Trairias Rupert se entregasse a Lucy a um qualquer latoeiro. Cá para mim, penso que possivelmente não ficará triste mais do que cinco minutos com a ideia de não se casar contigo.

– Pensei... – Olivia sentiu um nó na garganta. – Pensei que te trairia.

Georgiana esboçou um sorriso luminoso.

– Se eu o quisesse te desafiaria para um duelo. Floretes, de madrugada. Mas não o quero. Olivia estreitou-a num abraço, tendo o cuidado de não lhe desmanchar o cabelo e disse:

– Dar-te-emos um dote, Georgie, bem sabe.

– Sim – disse Georgiana parecendo mais feliz do que nos últimos tempos enquanto se encaminhavam para as portas do salão. – Porque não tenha esperanças que eu te substitua e me case com Rupert. Ainda me sinto enjoada só de pensar naquela cena da biblioteca. Preferia ficar solteirona. E se arranjar bastantes livros para ler é exatamente o que farei.

– Pode fazer o que quiser – disse Olivia sentindo um calor febril a percorrer o corpo. – Uma de nós sacrificada no altar ducal é quanto basta.

Georgiana soltou uma alegre gargalhada que fez com que dois cavalheiros se voltassem e ficassem a olhar.

– Se é você que te sacrificas estamos cheias de sorte.

Olivia sentiu as faces coradas.

– Bem sei...

A irmã pôs fugazmente um dedo no rosto.

– Você mereces, depois de toda a bondade que mostraste para com Rupert. Podemos arranjar-lhe esposa. Não Althea, mas uma pessoa compreensiva e boa.

– E inteligência suficiente para gerir as propriedades – comentou Olivia. – Pensa que...

Georgiana sorriu e olhou para o lado.

– Valha-me Deus, parece-me que o duque está dançando com Annabel Trevelyan. Olha que ela adoraria ser a sua duquesa.

Olivia voltou-se e ouviu a gargalhada da irmã; viu Quin encostado na parede, olhando sorumbático para os pares dançantes.

– Deixa-se ficar onde te possa ver – disse-lhe Georgiana ao ouvido. – E se atravessasses o salão e entrasses na biblioteca ele te seguiria.

– Não me atreveria – respondeu Olivia, sentindo o coração na garganta.

– É esta a mulher corajosa que conheço? – perguntou Georgiana ríspida. – A mulher que entrou no escritório do pai com Rupert sabendo que as horas seguintes incluiriam a mais desagradável experiência que uma mulher pode suportar? Tem coragem, Olivia, usa-a.

Olivia respirou fundo. Nesse momento, Quin voltou a cabeça. Georgiana tinha razão, ele vigiava para saber onde ela estava.

Ele amava-a. Ou antes, para o dizer como ele, Quin gostava dela.

Entrou no salão, às cegas, seguida pelo riso de Georgiana. No momento exato olhou para Quin e deixou-lhe um convite através do olhar.

Este endireitou-se imediatamente e nos seus olhos leu-se o brilho da resposta. Por isso ela avançou pelo salão, fazendo algumas pausas para responder a cumprimentos, recusando dançar. Era como um jogo, o jogo mais emocionante em que jamais entrara.

Quin estava certamente atrás dela seguindo-a. Apostaria a sua vida em como ele não pudera resistir ao olhar que lhe lançara. O poder era inebriante... cantava-lhe no sangue, tirava-lhe a força dos joelhos.

No outro extremo do salão, dirigiu-se diretamente à porta que levava à biblioteca, abriu-a e entrou.

A sala estava silenciosa e vazia, com a exceção de um criado. A duquesa não queria dar azo a namoricos da parte dos seus convidados, por isso colocara um criado em cada compartimento.

Olivia acenou-lhe.

– Roberts. Uma noite tranquila?

O criado descontraiu a sua pose rígida ao reconhecê-la.

– Três casais até agora – disse com um sorriso no rosto.

– Deixe-me adivinhar... aceitam apostas?

– Para cada sala – disse ele. – A dois pence por sala. Apostei que cinco tentariam vir para aqui.

A porta atrás dela abriu-se silenciosamente. Olivia não teve de se voltar; o ar alterava-se quando ele estava próximo.

– Roberts – disse Quin. A sua voz profunda causou-lhe arrepios na espinha. – Certamente que a senhora duquesa precisa de você na parte de trás da casa.

Roberts estava demasiado bem treinado para mostrar qualquer laivo de curiosidade. Curvou-se e saiu tão silenciosamente como Quin entrara.

Só então Olivia se voltou.

Estava magnífico; ombros largos, parecendo ainda mais largos no elegantíssimo casaco azul, que lhe realçava o verde dos seus olhos.

A visão desses olhos fê-la recuar um passo.

– Quin! – gritou ofegante como uma menina de treze anos.

– Mandou-me chamar – retorquiu ele, direto como sempre. – Aqui estou eu, Olivia. Espero que seja isso, porque creio que sou incapaz de lhe resistir.

Olivia não sabia o que dizer. Ele era tão belo... esguio, forte e musculoso. Até o cabelo era extraordinário.

Enquanto ela era gorda e vulgar.

Em apenas um passo Quin percorreu o espaço entre ambos. Tê-lo tão perto tornou ainda mais óbvio o contraste entre eles. Era impossível. Ele tomou-lhe as mãos nas suas e levou-as aos lábios, causando outro arrepio na espinha de Olivia.

– Sou gorda – murmurou.

– Não é gorda. É a mulher mais bela e voluptuosa que conheço. – Percorreu o corpo com os olhos, lenta e deliberadamente e depois observou-lhe o rosto. O que Olivia lhe leu no olhar foi o suficiente para fazendo sentir um aperto de fogo no estômago e mais abaixo.

– Quero cada centímetro seu – disse ele em voz rouca. – Quero cair de joelhos e adorar as suas ancas.

– Estendeu a mão e acariciou as curvas dos seios às ancas com a rapidez escaldante a que um homem só se pode permitir se a mulher for sua esposa.

Mas Olivia não suportaria se ele se arrependesse mais tarde... se alguma vez lhe lesse o desencanto no olhar como tantas vezes lia no olhar da mãe.

– Não serei uma boa duquesa – apressou-se dizendo. – Creio que a duquesa viúva não gosta muito de mim. Preferiria que o senhor casasse com Georgiana. De fato, tenho a certeza absoluta de que ficará horrorizada com o ideia de o senhor casar comigo.

– É precisamente por isso que a minha propriedade está equipada com uma casa para a duquesa viúva. Não vou casar-me com a minha mãe. Vou casar-me consigo.

Os olhos verdes de Quin eram tão... ela nunca sonhara que um homem a olhasse assim.

Mas tinha uma lista, uma lista mental de características que a desqualificavam para a posição de duquesa de Sconce.

– Digo piadas disparatadas. Isto é, o meu sentido de humor não é muito ducal.

Os olhos dele riam, embora o seu rosto se mantivesse sereno.

– Só conheço um poema desses que o meu primo Peregrine me ensinou quando éramos rapazes. Era uma vez uma dama de Buda, Que um dia foi nadar no lago – fez uma pausa à espera... um convite. Olivia sentiu-se corar.

– Um homem num barco – disse ela baixinho. – Meteu o remo na água...

Ele continuou.

– E disse: Não pode nadar aqui... é particular. A verdade é que nunca entendi os versos. Será que tenho razão se pensar que a senhora é de Buda porque nadava desnuda e não num lago?

– Sim.

– O remo entendo. Mas, uma vez que se têm de explicar, estes versos têm grande graça. Tem a certeza que quer ficar com uma pessoa de cujo humor os trocadilhos não fazem parte, mas que tem de os destrinçar para os perceber?

– Tem a certeza de que quer ficar com uma pessoa que não partilha o seu amor pela ciência? Receio...

– O quê, meu amor?

– Que se aborreça de mim – disse rapidamente. – Não sei falar da qualidade da luz e, se me falar das funções matemáticas, acabarei por adormecer. Tenho um espírito muito trivial.

– Compreende a emoção: eu não. Isso não significa que o meu espírito nada valha. Gostamos de coisas diferentes. Porque haveria de a aborrecer falando de matemática? Em vez disso pode ensinar-me a rir.

Olivia sentiu uma espécie de soluço subir-lhe na garganta.

– Vai ensinar aos seus filhos versos brejeiros em vez de canções infantis? – perguntou Quin

Ela refletiu.

– Talvez.

– Então terá de mas ensinar primeiro. Lamento dizer que Alfie nunca aprendeu um único verso. Quin posou-lhe as mãos nos ombros, acariciou o cabelo fazendo passar as madeixas pelos dedos.

– Sabe que dou por mim querendo falar de Alfie pela primeira vez depois de ele ter morrido! Disse-lhe o nome dele em voz alta e já não sinto que fosse cair num poço escuro.

Ela engoliu em seco.

– Talvez – disse ele delicadamente – pudéssemos pôr a um dos nossos filhos esse triste nome de Alphington? Só para que ele... fosse recordado?

– Oh, Quin – murmurou ela. Depois, e porque a pergunta não necessitava de resposta, uma vez que ele sabia a resposta tão bem como ela. – Quantos filhos acha que vamos ter?

– Muitos? – Quin olhava-a firmemente. – Sempre quis uma casa cheia de crianças para que ninguém se sentisse só.

O coração de Olivia enterneceu-se por aqueles dois pequenos futuros duques, Quin e Alfie.

– Era por isso que lançava papagaios? Para que Alfie não se sentisse só?

– Evangeline recusou ter mais filhos. Ficou horrorizada pelo modo como o seu corpo se transformava. E ainda mais porque eu adorava vê-la assim.

– Sim?

– Pensava que nunca a vira tão bela; ela pensava que nunca fora tão repulsiva. Não deixou que eu lhe tocasse nem que a visse despida durante dois anos.

Olivia pestanejou.

– Então não foi infiel durante todo o tempo em que estiveram casados?

– Foi – disse ele calmamente, como se discutisse o tempo atmosférico. – Mas não se sentia assim com os amantes.

Olivia pensou, não pela primeira vez, que não valia a pena exprimir em voz alta a sua opinião acerca de Evangeline.

– Não quero falar mais acerca da minha falecida mulher – disse Quin. – Estou pensando em nunca mais pronunciar o nome dela.

– Tem a certeza? Sou tão vulgar comparada consigo, Quin.

A expressão de perplexidade nos olhos dele não podia ser fingida.

– O que está para aí dizendo? A senhora é bela e divertida e todos nesta casa a adoram. Com a possível exceção da minha mãe – acrescentou formalmente, mas ela aprenderá a gostar de si.

Olivia soluçou e o soluço trouxe consigo uma ou duas lágrimas.

– Não – disse Quin, puxando-a para os seus braços. – Nada de lágrimas – e começou a secá-las com beijos, tocando-lhe no rosto com os lábios numa suave carícia.

Olivia aninhou-se nos braços dele.

– Importa-se de me dizer exatamente o que a trouxe a este aposento? – murmurou Quin entre beijos. – Quando a vi há uma hora, estava pronta a sacrificar-me pela sua honra.

Olivia riu hesitante.

– Sinto-me muito mal por causa de Rupert, mas Georgie disse-me que lhe arranjaríamos a esposa adequada: uma pessoa compreensiva, forte e boa.

– Ah, então a sua irmã percebeu da verdade.

– Disse-me que entre vós não há aquela centelha.

– Tal como lhe disse – havia um tom de profunda satisfação na voz dele. – Sabe que a sua irmã daria uma cientista extremamente competente?

– Georgiana é uma cientista extremamente competente e será brilhante se lhe comprarmos os livros que quer. O meu pai nunca o fará, sabe. Pensa que os livros não são próprios para uma mulher, e a minha mãe concorda.

Quin fez uma exclamação de desprezo.

Ela aconchegou-se mais, apreciando os braços que a rodeavam, o aroma profundamente masculino do peito dele, o aço do seu corpo... o toque duro de encontro ao seu estômago, que lhe dizia sem palavras que ele a desejava. Que pensava que cada centímetro dos seus seios, ventre e ancas eram dignos de ser beijados.

– Sinto um certo remorso em roubá-la a Montsurrey. Roubar a noiva de um homem enquanto este está a servir a pátria não é lá muito honroso.

Olivia encostou-se a Quin deixando o calor dele aquecer todo o corpo.

– Rupert esteve sem ar quando nasceu – explicou. – Nunca será tudo o que poderia ser.

– É mais do que suficiente – disse Quin com simplicidade. – Está servindo a pátria, arriscando a vida para proteger Inglaterra.

Mais umas lágrimas caíram no casaco de Quin.

– Tem razão.

– Seremos sempre amigos dele – era uma espécie de promessa. – Ele teve-a e agora eu levo-a e nunca esquecerei do que o obriguei a desistir.

Olivia fungou com pouca elegância e aceitou o lenço que ele lhe ofereceu.

– Rupert poderia ficar mais ressentido se lhe tivesse tirado a Lucy.

Quin soltou uma gargalhada.

– Estou falando a sério. E Georgie concorda.

Ele acariciou a cabeça e beijou-lhe de novo os olhos molhados. Depois desceu a boca sobre a dela e acariciou o corpo com mãos possessivas, quase rudes, reclamando-a como sua.

Olivia aninhou-se nele como se tivesse sido sempre aquele o seu lugar. O beijo de Quin foi suave, mas havia nele uma dura exigência e a investida de um homem. Olivia lançou-lhe os braços ao pescoço, agarrou-se a ele, abrindo a boca, convidando-o a entrar. Sentia-se embriagada pelo cheiro masculino a fumo, pelo seu sabor a champanhe e a mais qualquer outra coisa que intrinsecamente pertencia a Quin.

O beijo fê-la sentir-se ousada e profundamente viva. Ele posara a mão no rosto, inclinando-lhe a cabeça, beijando-a ferozmente.

Aquilo era intimidade, percebeu ela.

Quin mordeu o lábio inferior e Olivia estremeceu como se tivesse sido atingida por um vento frio. Ele reagiu com um profundo gemido e inclinou-lhe ainda mais a cabeça. Depois passou a boca para a curva do maxilar, deixando-a mais inquieta junto a ele. Abraçou-a e, acariciando as costas, puxou-a mais para si.

Olivia pôs-se em bicos de pés, tão concentrada no aroma embriagador dos braços e dos lábios dele que...

Quase nem ouviu a porta abrir-se.

5 Quince em inglês. (N. da T.)


19

Beijos Muito Espontâneos.

E Também de Outro Tipo

Olivia soltou-se ofegante e voltou-se, ainda nos braços de Quin. A duquesa não parecia especialmente zangada ou crítica. Olhava-os até como uma criança observaria uma lagarta: com curiosidade, mas sem repulsa.

– Tarquin – exclamou.

– Mãe – respondeu ele, sem se afastar de Olivia

– Que está fazendo?

– A beijar Olivia – disse Quin. – Espontaneamente.

A duquesa deveria ter franzido a testa – só que devemos concluir que ela não executava expressões faciais desse tipo.

– Miss Lytton, poderia perguntar-lhe a mesma coisa.

Olivia pensou em responder Estou sendo beijada, mas concluiu que a hipocrisia seria a opção mais prudente.

– Espero que a exaustão da noite tenha provocado um nível de indesejada hilaridade – disse, juntando as palavras na esperança que a duquesa se confundisse.

Mas que ideia a sua. Aquela mulher escrevera O Espelho dos Elogios. Estava perfeitamente à vontade num labirinto de linguagem.

– Não me parece uma expressão de hilaridade – comentou a duquesa viúva. – Tarquin, deveria lembrar-lhe o desastroso papel que a espontaneidade representou no seu primeiro casamento, mas não o farei.

– Muito bem – disse Quin, apertando Olivia nos braços.

– Não preciso de o fazer – prosseguiu a mãe –, pois esta jovem está prometida algures e os beijos espontâneos, hilariantes ou outros, não terão consequência por esse fato. Miss Lytton antes de ceder a este ataque de indesejado desfrute, recordou o meu filho de que em breve será duquesa?

Olivia teve a súbita sensação de que a duquesa viúva era um abutre a voar por cima de si, o que provavelmente a transformava num leão ferido. Ou em qualquer outra coisa mais vulnerável: um coelho atropelado pelas rodas de uma carruagem.

– Sim – respondeu, olhando para Quin. – Conforme informei a senhora duquesa, estou prometida algures.

– Ao marquês de Montsurrey – disse Quin. – E assim que Montsurrey regresse a Inglaterra ser-me-á prometida e casará comigo – voltou-se para a mãe. – Olivia será duquesa de Sconce.

– Não concordo.

Seguiu-se um momento de pesado silêncio.

– Talvez deva deixar-vos sós para discutir o assunto – disse Olivia soltando-se delicadamente do abraço de Quin.

A duquesa ignorou-a completamente, mantendo o olhar fixo no filho.

– Miss Lytton estará mais do que adequada para um simplório como Montsurrey. Além do mais, demonstrou uma louvável lealdade para com o pobre rapaz e eu escrevi ao pai dele dizendo. Porém, Olivia não é adequada a si.

– Penso que é – afirmou Quin.

Olivia afastou-se.

A duquesa voltou-se para ela.

– Suponho que não saia daqui como uma criada culpada que tivesse partido um pires. Olivia endireitou-se imediatamente.

– Pensei que seria mais delicado permitir que continuasse a conversa com o seu filho em privado.

– Concordaria, mas o que tenho dizendo diz-lhe respeito a si... e à sua irmã. Ela é adequada para ser duquesa de Sconce que, a propósito, é de longe um título mais antigo e augusto do que o de Canterwick. A menina não é adequada a essa posição.

Enfrentando os olhos da duquesa, Olivia percebeu de que poderia baixar os olhos e nunca recuperar uma posição de força ou responder à letra.

– A minha irmã seria realmente uma notável duquesa de Sconce – disse na esperança de evitar a guerra aberta.

– Esse fato é irrelevante – disse Quin. Olivia não precisava de se voltar para ver que ele sorria; apercebia-se pelo seu tom de voz. – Tenciono casar com Olivia, não com Georgiana.

– Sem dúvida, por amor – disse a duquesa num assomo de fúria. – E que conseguiu com o amor, Tarquin, senão a reputação de ter chifres, que ainda hoje, tantos anos depois, o persegue? – Voltou-se para Olivia. – Sabe que ele não falou durante um ano inteiro, depois da sua débil mulher se ter afogado? Que não falou?

– Falei – protestou Quin.

– Oh, pode ter pedido uma fatia de carne assada, mas nunca disse nada que valesse a pena ouvir. Passou um ano sem que mostrasse qualquer interesse na vida.

– Era como se fosse sonâmbulo – concordou. Para espanto de Olivia, não parecia nem um pouco zangado.

– Montsurrey é idiota – declarou a duquesa. – Olivia assumiu uma atitude rígida. – É um fato – prosseguiu bruscamente a duquesa antes que Olivia pudesse dizer alguma coisa. – É um ótimo partido para a menina, mas o mesmo não se passa com o meu filho. A menina é, Miss Lytton, se me perdoa a franqueza, anafada, grosseira e bastante mal-educada. Este último defeito é realmente surpreendente dado que a sua irmã gêmea conseguiu o máximo nível do refinamento. E mais ainda, a menina é pouco interessante e não demonstra qualquer capacidade para se preocupar com assuntos importantes para o meu filho.

Olivia endireitou o seu corpo roliço o mais possível e disse com precisão gelada.

– Responderei apenas à afirmação que se reflete nos meus pais, embora note que a sua falta de delicadeza não mereça qualquer resposta. Os meus pais podem não ser membros da aristocracia, senhora duquesa, mas são aparentados com pares do reino por ambos os lados. De fato, o direito do meu pai ao título de esquire existe há mais uma geração do que o dos Sconce. E posso acrescentar que em assuntos de boas famílias, ninguém na minha família se casou com um Bumtrinket.

O colo da duquesa viúva ergueu-se levemente no ar, semelhante a um balão em ascensão que Olivia vira uma vez no Hyde Park.

– Não me referia ao seu nascimento – disse ela, mordendo as palavras com gélido desdém –, mas aos seus modos.

– Gosto da figura de Olivia – disse Quin, intervindo. Pela primeira vez, percebia-se na voz um leve tom de advertência. – De fato, posso dizer que adoro. E penso que os seus modos são perfeitos para uma duquesa.

– Claro que sim! – disse a duquesa, irritada. No seu rosto havia manchas vermelhas e os seus olhos negros brilhavam de fúria.

– Que quer dizer com isso? – perguntou Olivia.

– Quero dizer que é feita da mesma massa que Evangeline, a primeira duquesa. Também adorava a aparência dela e descobriu demasiado tarde que toda essa sensualidade libertina mascara uma mulher que deveria sentir-se lisonjeada se lhe chamassem prostituta.

– Mãe. – A voz de Quin era agora tão gélida como a da duquesa. – Já foi demasiado longe. – Peço-lhe, por todos nós, que altere o seu tom de voz e o seu comportamento.

– Não o farei – disse a duquesa, visivelmente alterada. – O duque de Canterwick escreveu-me antes de a menina chegar – disse voltando-se para Olivia com a expressão de uma mãe tigre desejando defender uma cria.

Olivia aguardou com a cabeça erguida.

– A menina informou o meu filho de que já poderia estar grávida do herdeiro ao título de Canterwick? Há de notar que nada digo acerca do fato de não estar casada; o duque é tão inocente que é quase certo a menina ter molestado o pobre homem, que mal tem dezoito anos. São fatos tão desagradáveis que não se espera que ninguém exterior à sua família mais próxima os saiba, Miss Lytton, pois não são muito lisonjeiros a seu respeito.

– A senhora duquesa está a ameaçar-me? – perguntou Olivia em voz sufocada.

A duquesa recuou, mas pôs as mãos nas ancas e manteve-se firme.

– Certamente que não. Nós, os aristocratas, não temos necessidade de recorrer aos métodos que a senhora tem em conta.

Quin fitou Olivia com uma pergunta silenciosa.

– Não há herdeiro – conseguiu ela dizer.

– Mãe! – disse ele em voz venenosa e fria como o gelo. – Far-me-á a fineza de informar os seus criados que partirá para o alojamento das duquesas viúvas logo de manhã. Não estou falando da casa que existe aqui na propriedade, mas aquela anexa a Kilmare, nas nossas terras da Escócia.

Para surpresa de Olivia, foi ela, e não a duquesa que exclamou:

– Não! – em resposta àquela ordem.

A duquesa manteve-se em silêncio durante um segundo. Depois baixou a cabeça e fez uma reverência. Olivia agarrou o braço de Quin e abanou-o.

– Não vai fazer uma coisa dessas – disse-lhe com pouca delicadeza. Ele franziu a testa.

– Eu não...

– A sua mãe e eu temos o perfeito direito de discordar acerca do que é melhor para si, sem que o senhor interfira!

– Não interferi. Reagi àquilo que a minha mãe disse a seu respeito. Isso não posso e não quero tolerar da parte de pessoa alguma – olhou para a mãe e repetiu com os dentes cerrados. – De pessoa alguma. Deveria saber que um homem que sugerisse que Olivia e Evangeline têm o que quer que seja em comum teria de resolver o assunto pela espada.

– Oh, por amor de Deus – disse Olivia agarrando-lhe a gravata, já que abanar o braço não surtira o mínimo efeito. – Pode descer dessa montanha ducal por um momento e prestar atenção? A sua mãe está preocupadíssima consigo e o senhor ameaça mandá-la para a Escócia? Não estava a brincar quando disse que nem sempre compreende as emoções, pois não?

A duquesa viúva emitiu um pequeno ruído, mas Olivia não olhou para ela. Mantinha os olhos fixos em Quin.

Este franziu a testa.

– É claro que a sua mãe pensa que eu me pareço com Evangeline... bem, em tudo, exceto na figura. Cheguei aqui noiva de um duque e, quando todos esperavam que ficasse noivo da minha irmã, roubei-o. A sua mãe entrou num aposento e deu conosco desacompanhados e, por sorte, não estávamos estendidos no chão. Pareço ser uma leviana da pior espécie. Se pensar em desafiar para um duelo qualquer homem que lhe faça notar, teremos um casamento muito curto.

Quin franziu ainda mais a testa.

– Não teremos tempo para todos esses filhos que imaginou – continuou sem sombra de pesar. – Não teremos tempo senão para percorrer a região atacando as pessoas que afirmam o que é óbvio. Não se engane, não só o dirão. Aposto que farão cornichos nas suas costas, pelo menos durante alguns anos.

Nos olhos dele parecia surgir algum bom senso.

– Não está a ver? – disse, soltando-lhe a gravata. – Nada disso importa. A sua mãe ama-o. Quer poupar-lhe os chifres e as murmurações e também uma mulher gorda... – olhou para a duquesa. – Essa é a parte que tenho dificuldade em lhe perdoar.

Quin estendeu os braços, puxou-a para ele e estreitou-a nos braços com tanta força que ela mal pôde respirar.

– Preciso de si – disse em voz baixa e intensa junto ao cabelo dela. – Por amor de Deus, Olivia, como consegui viver sem si?

Ela puxou o rosto dele para o seu.

– Sou sua, para o bem e para o mal.

Ouviu-se um pequeno estalo quando se fechou a porta que dava para o salão de baile, mas Olivia não prestou atenção.

– É a peça que me falta – disse Quin. – Faz-me sentir.

– O senhor sempre sentiu. É um dos homens mais sensíveis e carinhosos que conheço. Qualquer um poderá dizê-lo.

Ele abanou a cabeça, por isso Olivia puxou-lhe o rosto para o dela e beijou-o de um modo tão escaldante que disse aquilo que nenhum deles conseguiu exprimir por palavras... naquele momento.

Sem nada dizer, Quin deixou-se cair num cadeirão. Levando Olivia consigo. Desta vez nada os impediu e ela sabia: ele sabia. Beijaram-se até ela soltar pequenos gemidos e estremecer, tocando-lhe o corpo com dedos trémulos.

Quin puxou-lhe suavemente o corpete... e o seio dela caiu-lhe na mão. Por um momento, imobilizou-se.

– Olivia, a senhora é a mulher mais bonita que eu alguma vez poderia imaginar. Posso?

Ela não tinha a certeza do que ele tencionava fazer, mas acenou afirmativamente. Diria sempre que sim, embora não fosse sensato dar-lhe a conhecer.

A boca dele pousou quente e húmida na curva do seio dela. Olivia arqueou as costas e ofereceu-se até que os lábios lhe chegaram ao mamilo.

Olivia não teve bem a certeza do que aconteceu depois. Pensou que o mais que faria seria soltar um gemido abafado de surpresa, talvez um gritinho senhoril... não. Com todo o salão de baile cheio de aristocratas, soltou um grito do fundo da garganta, uma expressão de desejo e paixão escaldante.

Sem se deter, Quin tapou a boca e chupou ainda mais.

Olivia mordeu o dedo, sentindo espirais de tontura invadirem o corpo e fazendo com que o coração lhe batesse na garganta.

Ele ergueu a cabeça, retirou-lhe a mão da boca e passou o polegar pelo mamilo dela. Olivia ergueu-se junto ao braço dele, louca de desejo, ofuscada pelas sensações que a percorriam.

– Não podemos fazer isto aqui – disse Quin, gemendo junto à garganta dela.

– Não? – Olivia estremeceu, espantada pelo seu tom de voz, pelo desejo insaciável. – Claro que não. – Sentou-se, preparando-se para se pôr de pé.

Quin fitou-a com um convite malicioso no olhar e passou-lhe de novo o polegar pelo mamilo. De novo as costas dela se arquearam junto a ele, enquanto abria as pernas num convite que ele não aceitou.

Por fim imobilizou a mão. Olivia engoliu em seco, lutando contra o impulso de pedir mais.

– Tem a certeza absoluta que não traz dentro de si o filho de Montsurrey? – falava sem qualquer censura na voz, apenas um pedido de informação.

Ela encostou de novo a cabeça ao peito dele.

– Tenho.

– Mas a senhora e ele...

Olivia tentou pensar como lhe haveria de explicar sem deixar de honrar a promessa que fizera a Rupert. Georgiana era sua irmã gêmea, a sua outra metade; Rupert compreenderia se ele lhe dissesse a verdade.

Mas Quin... Quin era o homem que a iria roubar a Rupert. E, mesmo que Rupert não a quisesse verdadeiramente, estava, não obstante, habituado a ela. Para um homem que adorava os hábitos, seria uma provação perdê-la. Certamente Rupert não gostaria que Quin soubesse do aipo murcho.

– O pai dele estava preocupado porque Rupert ia para a guerra – disse ela, escolhendo as palavras com cuidado.

Silêncio. Depois...

– Canterwick obrigou-a a deitar-se com esse filho simplório sem estar casada por estar preocupado com a falta de um herdeiro?

Dito assim, parecia horrível.

– Não fui forçada.

– Ofereceu-se como voluntária?

– Não.

– Foi uma violação – disse ele terminantemente.

– Não, não foi! Rupert não... Rupert nunca...

– Então foi uma violação de ambos, a senhora e ele.

Olivia soprou.

– Faz com que isso pareça desprezível. Gosto muito de Rupert e ele de mim. Temos suportado tudo isto o melhor possível. E recitou-me um poema que tinha escrito. Era muito bom.

– Como era?

– Era acerca da morte de um pardal que caíra de uma árvore. Rápido, esperto, um pássaro cai junto a nós, a escuridão tomba nas árvores.

Quin fez um gesto aborrecido.

– Não entendo, tal como não entendo o poema malicioso que Peregrine me ensinou. O que quer ele dizer quando diz que a escuridão se amontoa nas árvores? Sendo eu uma pessoa que estuda a luz, posso dizer-lhe que os raios não se amontoam em parte alguma.

Olivia compôs o corpete do vestido e encostou-se ao braço dele para lhe poder ver o rosto.

– O poema de Rupert e a quintilha humorística não foram feitos para ser dissecados. Só para nos fazer sentir qualquer coisa, mais nada.

– A escuridão amontoada faz sentir alguma coisa? – Quin parecia adoravelmente confuso.

– Ele fala do desgosto, do desgosto que sentiu quando o pardal caiu da árvore. O pássaro era rápido e esperto e depois, partiu. A escuridão amontoou-se na árvore onde o pássaro cantara.

A expressão de Quin alterou-se.

– Sim, como Alfie – disse, e puxou o rosto dela para o seu peito. A emoção dele era tão natural que doía.

Ficaram ali sentados durante algum tempo. Quin apertando-a nos braços. Por debaixo da porta as notas de uma contradança interrompiam o silêncio vindas do salão de baile. A música era alegre e doce e vinha de muito longe, de um mundo em que os rapazinhos – ou os pardais – não caíam das árvores.

Por fim, Quin aclarou a garganta.

– Apercebe-se de que Montsurrey...

– Rupert – corrigiu-o. – Rupert detesta ser tratado pelo título. Se fosse capaz, trataria o mundo pelo nome próprio.

– Apercebe-se de que cada vez gosto menos de Rupert? Escreveu o único poema que percebi, foi defender a pátria enquanto eu durmo confortavelmente em casa e estou a roubar-lhe a noiva.

– Rupert adoraria a ideia de que alguém sente ciúmes – disse Olivia. – Pode não ter um pensamento claro, mas compreende os sentimentos e fica magoado quando as pessoas são desdenhosas.

– Não há dúvida de que entende os sentimentos.

– Creio que a lesão cerebral o libertou. Chora quando se sente comovido, sempre que vê ou ouve alguma coisa que o entristece.

Quin digeriu isto em silêncio. Por fim, pôs-se de pé e ajudou-a a levantar.

– Tem a certeza de que quer casar comigo. Não reagi ao poema senão quando me explicou. Porque não poderia ter sido feito em frases completas.

– Rupert raramente fala com frases completas.

– Mas poderia ter sido mais claro. Porque não disse: quando morreu o pardal veloz, provavelmente de velho, e caiu de uma árvore, senti o meu coração escurecer.

Olivia abraçou-se.

– Esqueceu-se de luminoso, mas saiu-se muito bem com o escurecer.

– Luminoso não faz sentido. Os pássaros da família dos passeridae são quase todos cinzentos ou castanhos. Percebo que a minha versão seja mais comprida, mas é mais precisa. E gramaticalmente correta.

– Mas a sua versão fala dos sentimentos de Rupert enquanto Rupert lhe falou daquilo que o senhor sente por Alfie.

– Ah! – Quin refletiu. – Mesmo assim, continuo a achar muito ilógicas a conjugação das palavras que ele especificamente escolheu.

– Considere-as o equivalente poético de uma função matemática – sugeriu Olivia. – Acha que devamos entrar no salão de baile e fingir que nada aconteceu? Quer atar o cabelo?

– Não.

– Não quer voltar ao salão de baile ou não quer fingir que nada aconteceu?

– Não tenho qualquer objeção a entrar no salão de baile, porque é a única maneira de chegar às escadas que levam aos quartos. Mudei de ideias.

Olivia soltou uma exclamação sobressaltada.

– Está dizendo...? Não! Criaria um escândalo terrível. De maneira nenhuma.

As mãos dele apertaram-na.

– Cai um pardal a cada segundo, Olivia – deu-lhe um beijo que foi mais uma exigência erótica.

Levou algum tempo, mas Olivia conseguiu terminar o beijo e afastar-se dos braços dele.

– A sua mãe ficaria horrorizada com o escândalo. Vai ficar aqui pelo menos meia hora. Vou tentar esgueirar-me para o salão e tenho esperança de que as pessoas pensem que eu estava simplesmente a recompor-me depois de conversar com a sua mãe.

– Há um criado diante da porta.

– Como?

– A minha mãe colocou-o lá para garantir a nossa privacidade. Olhe para a parte de baixo da porta e verá a sombra das botas dele. Os criados da minha mãe estão treinados para terem os ombros encostados à parede; se abrir a porta, vai bater-lhe por trás o que atrairá a atenção de todos.

Olivia mordeu o lábio.

– Não tinha planeado começar tão depressa a carreira de mulher infame.

Ele dirigiu-se ao fundo do aposento abriu a janela e chamou-a.

– É bom saber que a senhora é uma hábil trepadora.

– Porquê? Estamos praticamente no rés do chão.

Quin passou uma perna por cima do parapeito e pôs o pé no chão. Depois estendeu-lhe os braços a sorrir com um olhar francamente sensual.

– Acabo de me aperceber que não há maneira de chegar aos quartos sem passar pela cozinha.

Olivia agarrou as saias o mais recatadamente possível e conseguiu passar também uma perna por cima do parapeito. Era mais difícil do que parecia e acabou por cair nos braços de Quin num alvoroço de saiotes.

– Pronto – disse ele segurando-a com força e posando-a no chão. – Não voltamos para casa, acho que vamos trepar.

– Trepar? Trepar a quê? – Olivia olhou em volta. Estavam no lado da casa na esquina do salão de baile. Exceto onde a luz amarela se escoava das janelas, os jardins eram cor de prata, à luz da lua cheia.

– Está falando de uma escada de mão que chegue até ao seu quarto? Porque eu recuso-me terminantemente a subir uma escada de mão. Não sou uma louca varrida, para fugir assim, ao luar.

– Não me disse que eu podia apenas olhar para si assim, se estivéssemos em cima de uma árvore?

– Não quero subir a mais árvores, Quin! E se cai outra vez? Teve sorte em não ter morrido.

Quin limitou-se a sorrir.

– Mesmo com a minha idade avançada, posso subir a esta árvore – estendeu a mão. Mas Olivia recuou.

– Está muito frio aqui. Não sei qual é a sua ideia, mas tenho a certeza de que não será muito própria.

– Não é nada própria. E não se preocupe com o frio. Vou buscar um ou dois cobertores dos cavalos ao estábulo.

– Quer ficar cá fora?

Olivia ia fazer uma enfiada de objeções, mas Quin preferiu contra argumentar beijando-a. O beijo foi tão bem sucedido que deu por si empoleirada de novo no parapeito da janela, o que punha os seus seios a um nível que Quin obviamente apreciava.

– Ainda bem que a porta está fechada – disse Quin um pouco mais tarde, com a voz rouca de desejo. Olivia engoliu em seco e caiu em si. Os seus ganchos tinham desaparecido e o cabelo caía-lhe nos ombros. E mais, o corpete descera quase até à cintura. A sua pele em demasiada quantidade, brilhava ao luar.

– Oh, oh! – exclamou ela, agarrando-se ao vestido. – Oh, não!

– Sim, sim! – disse Quin, pegando-lhe nas mãos e abrindo-lhe os braços para lhe poder admirar os seios. – Nunca me fartarei de a admirar, Olivia. É como uma droga – largou-lhe as mãos e baixou a cabeça.

Olivia sossegou, pegou no cabelo negro que lhe caía como seda sobre o seio enquanto ele a beijava, beijos úmidos, com a boca aberta que lhe enviavam pelas pernas um formigueiro, uma espécie de doce tormento.

– Já não tenho frio – murmurou, enchendo-se de coragem. Era o melhor fazendo. Escolhia o seu próprio duque.

– Onde fica a sua árvore?

Seguiu-o. Mas, na realidade, seguia o riso solene – e era um riso – que florescia nos olhos dele quando ela subiu o corpete; o doce calor da boca dele, o som puro da voz dele pronunciando o seu nome.

O seguiria para todo o lado.


20

A Felizarda Senhora de Peedle

Afinal, a árvore ficava atrás dos estábulos. Não era simplesmente uma árvore. Era uma casa numa Olivia ficou em baixo, olhando estupefata.

– Mas que coisa é esta?

– Uma casa na árvore. A casa de Alfie.

– Alfie tinha uma casa na árvore? – Tratava-se de uma pergunta estúpida; afinal ali estava ela, uma casinha em cima da árvore. Tinha até janelas e porta.

– Alfie gostava de fazer perguntas – disse Quin, ainda segurando-lhe a mão. – Fazia perguntas acerca de tudo: o que segurava a Lua no céu, porque ficavam as maçãs castanhas e quem criara o alfabeto. Um dia quis saber por que razão vivíamos no chão e não nas árvores.

Olivia inclinou-se e deu-lhe um leve beijo na boca.

– Era o seu pardalito.

– Sim – mas a voz não estava pesada de desgosto. Era até alegre. – Mandei construir a casa na árvore para Alfie porque pensei que ele me fizera uma pergunta muito inteligente e merecia a experiência. Vivemos aqui dois dias.

– E o que decidiu Alfie?

– Que os duques de Sconce vivem no chão porque é muito difícil para os criados subirem os degraus até lá acima com o tabuleiro do jantar e Cleese não o podia mesmo fazer. Alfie fez notar que Cleese só era feliz quando sabia o que todos estavam fazendo, por isso não seria muito bom da nossa parte se decidíssemos viver para sempre na árvore.

Olivia soltou uma gargalhada.

– Um raciocínio próprio de um futuro duque. Espere! Será que ouvi alguém rir para além de mim? Quin puxou-a de encontro ao seu corpo rígido.

– Se subir a essa casa na árvore comigo, Olivia, não haverá volta a dar. Nunca permitirei que se case com Rupert. E não se iluda... permiti que Evangeline se passeasse por onde queria, mas não farei o mesmo consigo. Se fizer sequer olhinhos a um homem, provavelmente mato-o.

Olivia pôs-se em bicos de pés para lhe beliscar o queixo.

– É recíproco. Se o apanho a olhar para os seios de outra como faz com os meus, não a mato a ela... trato mas é de si. Considere-se avisado. Quin soltou uma gargalhada.

– Riu-se duas vezes num minuto – troçou Olivia. – A esse ritmo vai horrorizar a minha mãe com essas gargalhadas.

– Fui fiel a Evangeline – disse, ignorando o gracejo. – E o que sinto por si é duas vezes maior do que o que sentia por ela. Parece-me que não vou ser capaz de lhe ser infiel.

Olivia sentiu um nó na garganta e o seu sorriso estremeceu. Respirou fundo e voltou-se para o tronco da árvore.

– Como se sobe?

– Há degraus pregados no tronco. Espere um momento – entrou nos estábulos e voltou com dois cobertores ao ombro. Momentos depois, Olivia entrava na casa.

A casa na árvore tinha janelas dos quatro lados, abertas para o luar que entrava como pó das fadas transformado em prata líquida. Tinha altura suficiente para Olivia ficar de pé, mas Quin tinha de baixar a cabeça. O chão estava coberto de esteiras sobre as quais Quin colocou os cobertores.

Olivia hesitou. Estava tudo muito bem enquanto Quin dizia que adorava os seios dela. Mas não havia modo de tapar aquelas janelas. Pensara que fariam amor num quarto, às escuras.

Quin sentou-se e estendeu a mão. Ela esboçou um sorriso fraco.

– Não se aceitam arrependimentos – disse alegremente. Aproximou-se, agarrou-lhe na mão e puxou-a para o seu colo.

– É que... não há cortinas.

– Bem sei... e o som espalha-se.

– Não precisa de parecer tão satisfeito! Creio que preferia o velho Quin que nunca sorria.

– Demasiado tarde – mordeu a orelha e depois passou sobre ela a língua quente. – Mandei todos os cavalariços para a cozinha, exceto dois velhos surdos que não a ouvirão.

– Ouvirem-me? – o comentário não foi apreciado. Ele pensaria que ela não sabia controlar-se.

Num movimento rápido, Quin caiu para trás e colocou-se sobre Olivia, instalando-se entre as pernas dela. Adequavam-se perfeitamente. Olivia sentiu que a sua pele acordara naquele momento. Talvez não conseguisse de fato controlar-se.

Ele equilibrou-se sobre os cotovelos, olhando-a durante muito tempo.

– ... Até que a morte nos separe?

Havia uma leve sombra de tristeza e ansiedade nos olhos de Olivia, que murmurou uma imprecação silenciosa acerca da falecida esposa de Quin e acenou afirmativamente.

– Na saúde e na doença.

Quando o duque de Sconce se decidia a pôr em prática uma qualquer coisa mecânica, as suas complexidades eram imediatamente aprofundadas e a roupa de Olivia não era exceção. Mais rapidamente do que julgara possível, despojou-a dos sapatos, do vestido, do corpe...

Ajoelhando ao lado dela, com os olhos incendiados de desejo, estendeu a mão para a camisa.

– Não – exclamou Olivia, agarrando-lhe a mão. Afinal, a camisa era traiçoeiramente delicada. Porque teria decidido vestir uma coisa tão transparente como uma vidraça? Olivia olhou para o seu próprio corpo e descobriu que a camisa estava presa por baixo das suas ancas e por isso punha o ventre em evidência. Porque teria comido tantas empadas de carne? Não poderia ter imaginado um momento como este? Sentiu-se rígida de mortificação e arrependimento.

Se ao menos fosse Georgiana – uma pessoa suficientemente controlada para não comer demasiado. Seria muito melhor para ambos se tivesse as coxas esguias de Georgie. Se tivesse as pernas da irmã poderia exibi-las, voltar-se de lado e saber que ele nunca poderia afastar os olhos. Engoliu em seco.

– Não o farei se tiver de despir a camisa. A sério – as palavras eram resolutas, decididas com dificuldade.

Quin franziu as sobrancelhas, mas acenou afirmativamente. Parecia um falcão domesticado, mas, mesmo assim, bravio. A sua pele cintilava como ouro à luz do luar. Olivia sentou-se, soltando a camisa que deixou de ser tão reveladora.

Que faria uma dama naquela situação?

Apercebeu-se, num canto do seu cérebro, que a duquesificação implementada pela mãe não se ocupara deste assunto. Nem precisaria acrescentar que O Espelho dos Elogios se concentrava na preservação da castidade e não na sua entrega completa.

– Não tenho a certeza do que fazer a seguir – admitiu, na esperança que ele lhe fizesse perguntas acerca das suas supostas experiências com Rupert.

A expressão dos olhos dele era de uma arrogância e contentamento masculinos.

– Felizmente eu tenho. Olivia aguardou.

– Tire-me o casaco – murmurou num tom em que ela quase não o conseguiu ouvir. Um sorriso tremeu-lhe nos lábios quando estendeu a mão para lhe retirar o casaco dos ombros. Depois desabotoou o colete e soltou-lhe a camisa das calças. Fez um gesto para lhe despir a camisa, mas distraiu-se com a pele que encontrou na cintura. Ajoelhou-se também e passou-lhe as mãos pelo abdômen liso e depois pelos músculos salientes das costas.

– Como consegue estar tão em forma? Parece-me que quase todos os homens são moles.

Ele encolheu os ombros.

– Não há dúvida que o exercício físico tem um efeito positivo na fisiologia humana. Parece-me prova suficiente para o praticar regularmente.

Olivia sentiu a pele macia e quente sob os seus dedos. Passou-lhe as mãos por baixo da camisa. Acariciou as costas largas até aos ombros e depois o peito. Excetuando alguns pequenos arrepios, Quin deixou-fazendo o que queria.

Quando ela lhe passou os dedos pelos mamilos, um gemido rouco saiu-lhe dos lábios. Ela espreitou e viu que ele fechara os olhos.

– Não abra os olhos – ordenou sentindo uma centelha de coragem. Se ele mantivesse os olhos fechados, seria o mesmo que ter cortinas num quarto decentemente escurecido.

Ele acenou obediente. Ela sentia-se mais confiante quando ele não a olhava: não precisava de se preocupar com o muito que a sua ridícula camisa revelava.

Conseguiu retirar-lhe a camisa pela cabeça e descobriu que o tronco dele era belo, com uma cintura estreita e lisa. Acariciou o peito e depois – olhando de novo para se certificar que ainda mantinha os olhos fechados – baixou-se e posou a boca onde as suas mãos haviam passado.

Um ruído baixo saiu-lhe dos lábios.

– Nada de abrir os olhos – avisou-o. Ele apertou os olhos, mas acenou afirmativamente.

Ela inclinou-se mais uma vez, beijou-o, provou-o, colocando-lhe pequenos beijos sobre o peito. E continuava a tocar-lhe nos mamilos, porque de cada vez que passava os lábios por eles, ele reagia. O som era como champanhe. Um poder que a embriagava.

Esqueceu-se de lhe manter os olhos no rosto para garantir que ele não ia abri-los. Preferiu aproximar-se, contorcendo-se para poder chegar mais do que os lábios junto ao colo dele.

– Olivia – disse Quin em voz baixa, líquida de paixão.

Sobressaltada, Olivia ergueu a cabeça e encontrou os olhos verdes a fitá-la. A luz cobria-lhe de prata as pestanas espessas dando-lhe o aspeto transcendental de um rei das fadas e não de um simples mortal.

– Devia ficar com os olhos fechados – disse ela, cedendo à tentação e passando-lhe um dedo pelas pestanas.

– O senhor é tão belo, Quin. Demasiado belo para mim.

Ele riu. A terceira gargalhada no espaço de uma hora.

Ela passou-lhe o dedo pelo lábio inferior, inclinou-se para a frente e seguiu cuidadosamente essa linha com a língua.

– Já posso tocar-lhe? – perguntou ele num murmúrio junto aos lábios dela.

– Mmmm – respondeu ela também com um murmúrio adorando o sabor dele.

Quin posou as mãos grandes nas costas dela e puxou-a de encontro ao peito nu. Olivia soltou uma exclamação abafada quando sentiu os seios encostados a ele, inchados e muito sensíveis. Com uma mão segurou-a de encontro a si enquanto fazia deslizar a outra pelas costas, lenta e sensual.

– Não vai acabar de me despir? – perguntou em voz baixa e suave como um desafio a que sabia que ela não poderia resistir.

Ela quase caiu do colo dele quando se voltou para o olhar.

– As minhas calças têm uma abertura – disse sem fazer qualquer movimento para as despir sozinho. Olivia encostou-se um pouco mais e descobriu o que ele estava falando. Experimentou abrir os botões, apercebendo-se de que o ritmo da respiração de Quin aumentava e era agora entrecortada. Assim que viu como tremia ao seu toque, abrandou, acariciando-o apenas no interior do cós das calças, apreciando as rápidas inspirações à medida que os seus dedos insistiam.

Lentamente, muito lentamente, fez descer as calças, baixando pelas coxas musculosas. Assim que as sentiu nos joelhos, Quin retirou-as e atirou-as para o lado. Tinha apenas as cuecas que cobriam com dificuldade o que estava por baixo.

Não era um tronco mole de aipo – embora Olivia afastasse imediatamente este pensamento considerando-o desleal para Rupert. Poderia não casar com ele, mas seria sempre sua amiga.

Lentamente e com cuidado despiu as cuecas a Quin, tentando não se mostrar assustada com o tamanho dele.

Quin atirou também as cuecas para o lado e voltou-se para ela, com as mãos imóveis aos lados. Porém, Olivia sentia a força que ele continha e desejava libertar. Libertar sobre ela.

Sentiu-se invadida por nova onda de ansiedade que a obrigou a afastar os olhos de toda aquela perfeição para as suas coxas – para descobrir que a abençoada camisa se prendera outra vez para lhe acentuar a carne em cima das coxas. Sentiu o rubor subir-lhe às faces quando a soltou.

Quin não pronunciou palavra. Ela ergueu os olhos e viu que ele a olhava com uma expressão tão terna que a fez estremecer.

– Não se atreva a ter pena de mim – disse bruscamente. A surpresa inundou os olhos do duque.

– Está falando de quê?

– De nada – disse Olivia. – Desculpe, mas não percebi... – para sua aflição sentia que as lágrimas ameaçavam surgir.

– Que fazemos agora – perguntou rapidamente.

Quin tinha uma expressão séria no rosto, a expressão de quem pensava em luz ou poesia.

– É que não tenho a certeza do que fazer – disse com a voz embargada. Sentia de novo a ameaça das lágrimas.

– Minha querida – disse ele. – O que se passa? – Estendeu os braços e abraçou-a.

– Nada – murmurou ela, sentindo-se dez vezes idiota. – Beija-me?

– Boa ideia – Quin beijou-a lenta e docemente, com os olhos fechados, conforme verificou antes de se descontrair pensando apenas que estava próximo de Quin.

Depois, quando os beijos a deixaram quase em êxtase, ele moveu-se de maneira que ela deu por si deitada de costas, com o cabelo a rodeá-la. Era quase demasiado: tentando perceber as sensações do corpo dele junto a si, nu, com uma ereção urgente encostada a ela. E a Lua impiedosa, tudo iluminava com a sua luz prateada.

Tinha de admitir que era bonito. O interior da casinha cintilava com uma luz que parecia mágica. Se ao menos não fosse tão reveladora. Um pouco menos de magia era o que Olivia desejava.

– Há qualquer coisa que não está bem – disse Quin erguendo-se de gatas e olhando para ela.

Olivia sentiu o lábio estremecer e, incapaz de conter-se, deixou cair uma lágrima, embora dissesse para consigo, Não chore, não chore, não chore.

Quin limpou-a com o polegar.

– Ajude-me, minha querida. As emoções não são o meu forte. Preciso que me diga o que se passa.

Ela abanou a cabeça.

– Nada! Estou apenas a ser tola.

Ele olhou-a nos olhos e Olivia afastou rapidamente os seus. Ele via demasiado com aqueles seus olhos terrivelmente inteligentes.

Quase sem saber como, ele levantou-lhe as mãos acima da cabeça.

– Se não me disser terei de recorrer à lógica. A senhora não tem medo de estar comigo e disse-me que não era virgem, por isso não deverá ter medo da dor.

Teria mesmo dito aquilo? Ele concluíra que ela e Rupert tinham feito amor. E ela não lhe podia dizer o contrário sem quebrar a promessa.

– A menos que... – Quin hesitou. – Serei muito maior que Rupert?

O olhar dela demorou-se sobre ele com prazer e ele pareceu crescer e latejar sob esse olhar.

– Sim – murmurou ela em voz rouca. Ele riu.

– Não será medo que deteto na sua voz.

– Não o incomoda que eu tenha... que eu tenha visto Rupert antes? Ele franziu a testa.

– Porque haveria de me incomodar? Não foi escolha sua perder a virgindade com Rupert e também não foi ele que o decidiu. Sinto bastante desprezo pelo pai de Rupert, mas nunca por si.

Era próprio de Quin: lógico e justo. Ela conseguiu esboçar um leve sorriso.

– Mesmo assim – disse.

Mas ele interrompeu-a.

– Não é isso, Olivia. Por favor, não me minta. Ela baixou os olhos.

– Quando tenho dúvidas, faço uma lista de perguntas – disse ele mordiscando o lóbulo da orelha até ela gemer.

– Primeira pergunta: a minha querida Olivia tem receio da minha pila?

Pegou-lhe na mão e colocou-a sobre a sua ereção. Olivia soltou uma exclamação abafada, deleitada com o calor sedoso, a suavidade e o modo como latejava na sua mão. Fez subir e descer a sua mão fechada. Olhou para Quin e percebeu de que ele estava de olhos fechados e com a cabeça para trás. Tal como gostava de o ver. Apertou a mão, perguntando a si mesma o que ele estaria a sentir.

Ele afastou-lhe a mão, satisfeito com a resposta silenciosa à sua pergunta.

– Não tem receio – murmurou numa voz um tom mais profundo e mais sério do que antes.

– Segunda pergunta: a minha Olivia tem receio da dor? – Observou-a com atenção.

Ela abanou a cabeça.

– Também achei que não – disse satisfeito. – Além do mais, tenciono dar-lhe tanto prazer que me vai pedir mais – desta vez o sorriso dele era pura e verdadeiramente masculino.

O coração de Olivia deu um salto.

– Terceira pergunta – disse e pôs-se de joelhos. – Será que a tonta, a tonta da minha Olivia receia que eu não goste do corpo dela? – E, depois, rápido como um gato, enquanto ela pensava na resposta a dar, pois embora ele tivesse razão, ela não o queria admitir, rasgou a camisa de alto abaixo.

Ainda bem que mandara o pessoal sair dos estábulos, porque o grito ofendido de Olivia poderia certamente ter sido ouvido nos jardins.

Mas Quin retirava-lhe já os restos do tecido. Olivia fechou os olhos com força, sem querer ver-lhe o rosto. Aquele maldito luar iluminava todas as curvas e carne roliça.

Ele não lhe tocou e nada disse. Olivia sentiu que o tempo parava deixando-a abandonada no momento mais humilhante da sua vida.

Quando por fim ele falou, foi numa voz rude e cheia de desejo.

– Não gostaria de ser escanzelada como a sua irmã, pois não?

– Georgiana não é escanzelada! – respondeu Olivia abrindo imediatamente os olhos.

– Como um tronco de aipo – disse Quin. – Pernas de gafanhoto. Um homem quer isto, Olivia – tinha as mãos suavemente pousadas nos seios dela.

– Bem sei – disse Olivia, estremecendo ao toque que lhe enviava chamas pelo corpo. – Gosto dos meus seios.

As mãos dele baixaram sobre o ventre que não era liso como uma tábua, nem esguio como o de uma bailarina, como o de Georgiana.

– Um homem quer isto – falava ainda com voz profunda, rouca de paixão, enquanto os dedos lhe apertavam as curvas e se afundavam no calor dela. Fê-los depois deslizar até às ancas. – Está lembrada de que eu nunca minto? – perguntou com os olhos fixos nas próprias mãos.

Olivia olhou também para baixo, curiosa, vendo as mãos dele cor de mel agarrarem-lhe as ancas. Parecia feita de nata ao luar, como se a sua pele brilhasse com uma espécie de luminescência interior.

– Estou sim – conseguiu dizer.

– Creio que o que mais gosto são as suas ancas e o seu traseiro. – A emoção na voz dele era inequívoca. – Mas depois lembro-me dos seus seios e do muito que gosto deles. Adoro cada uma das suas curvas sensuais a ponto de querer mordê-las, Olivia, incluindo aquelas que ainda não permitiu que eu tocasse ou beijasse.

Até àquele momento, Olivia mantivera o corpo rígido, as coxas apertadas e o estômago para dentro. Depois, foi-se descontraindo enquanto o observava. Quin não sabia mentir. Tinha a certeza e já o dissera a Georgie. Acreditava nele.

A sensualidade do rosto dele, o modo como a tocava, quase com reverência, inclinando a cabeça, beijando-a agora com avidez...

Era essa a verdade.

– Suculenta – murmurou ele.

– Faz-me parecer uma galinha assada.

– Madura, roliça e deliciosa. Macia.

Ela abanou a cabeça.

– Não são essas as palavras que uma mulher quer ouvir de um homem que lhe olha para as coxas – mas já se sentia melhor e ambos o sabiam.

– Georgie não tem pernas de gafanhoto – disse ela, tocando-lhe para garantir que ela a ouvia. O que ele lhe fazia naquele momento teria como resultado obrigá-la a desfazer-se retirando-lhe toda a energia, mas tinha de garantir que ele entendia uma coisa. – Ela tem as pernas mais esguias e elegantes que qualquer mulher gostaria de ter.

Quin observou-a com olhos predadores, segurando-a entre as suas mãos enormes.

– Não a minha mulher, não você.

Olivia estava prestes a, mais uma vez, defender a irmã, mas ele abriu-lhe as pernas e pôs a boca sobre ela, sobre essa parte do corpo dela.

Por um segundo, Olivia ficou rígida, o tempo suficiente para um avanço da língua e depois para que um dedo acariciasse o local onde a língua estivera, um...

Esqueceu então Georgie. Esqueceu o seu próprio nome. Esqueceu tudo, exceto o homem que a fazia entrar num incêndio de cada vez que usava a língua. Não conseguia evitar debater-se nem abafar os gemidos que lhe saíam da garganta, um após o outro, indignos, guturais, animalescos.

Sentia as mãos de Quin por todo o corpo, tocando-lhe, adorando-a, deslizando por baixo dela, mordendo o traseiro e afagando a leve dor provocada, deslizando pelas coxas, certificando-se de que levavam o prazer a cada centímetro da sua pele, avançando nela, abrindo-a, um dedo entrando... ali.

Olivia ficou de novo rígida, com um gemido a sair-lhe dos lábios.

– É tão apertada – murmurou Quin. – Pronto, Olivia, agora. – Mais um movimento da língua, uma volta do dedo...

Aquela Olivia que ela era – esperta, irônica, apreciadora de jogos de palavras – foi engolida por uma onda de prazer tão aguda que a fez voltar o corpo, arquear-se num grito silencioso igual ao que lhe saía dos lábios.

Quin ergueu-se sobre ela, prendeu-lhe a boca num beijo violento, colocou-a na posição certa e investiu...

Foi o extremo daquela cegueira abrasadora, a completa rendição da sua pessoa e por um momento Olivia nem se apercebeu da intrusão.

Mas logo a seguir sentiu. Foi enorme. Escaldante. Dolorosa.

Mesmo assim era Quin que estava sobre ela, com a cabeça para trás, os olhos fechados.

– É tão... – tinha a voz entrecortada, rouca de paixão. Não conseguiu acabar a frase.

Era tão instintivo como respirara. Ela recuou, o corpo num arco e recebeu o que faltava dele. Mudou de ideias e desejou não o ter feito. O desejo era uma coisa. A dor agonizante outra. A garganta dele soltou um gemido rouco de posse masculina e prazer.

Se o espírito de Olivia não houvesse sido ofuscado, estaria agora muito claro. Aquilo doía como... como... ajudava soltar alguns impropérios que Georgiana nunca diria em voz alta. Ele não só era enorme, como a queimava por dentro. Quem diria que uma parte do corpo poderia ser tão quente?

De súbito, o rosto dele alterou-se e abriu subitamente os olhos.

– Há qualquer coisa em você...

Olivia tentou, em vão, demonstrar que sentia prazer.

– Eras virgem!

Ela nem se incomodou em responder. Perguntava a si própria se alguma mulher já teria desmaiado durante o ato.

Quin baixou um pouco o corpo, aproximando o rosto do dela: Olivia abafou um gemido. O movimento... não era boa ideia. Passaram-lhe pela cabeça mais alguns impropérios que Georgiana nunca ouvira, muito menos dissera em voz alta.

– Fala comigo, querida – a voz de Quin atravessava o violento protesto do seu corpo. Ele mexeu-se de novo.

– Para – disse zangada. – Não te mexas.

Ele acenou com a cabeça.

– Lembras-te daquela quintilha acerca da senhora que era muito hábil com a agulha? Outro aceno.

– Porque não me apaixonei pelo homem com quem ela aprendeu as suas habilidades? Não quero que te mexas mais, nem para trás, nem para a frente. É demasiado grande.

Uma gargalhada venceu o feroz desejo dos olhos dele. Baixou a cabeça e beijou-a longamente.

– Com todo o prazer ficaria aqui para sempre – murmurou. – Julgo que seja o meu lugar preferido em todo o mundo.

– Teriam de nos enterrar num caixão enorme – comentou Olivia a brincar, pois, se não o fizesse, poderia pensar demasiado na tragédia que tudo aquilo era. Não se adequavam um ao outro. Ele era demasiado grande.

– Assim não pode ser – disse ela quando Quin não respondeu ao seu gracejo acerca do caixão. Beijava-lhe a face e a orelha. Tudo muito bem, mas como cada nervo do seu corpo se concentrava nas ondas de dor que sentia entre as pernas, gostaria de dispensar os beijos.

– Quero retirar o que disse acerca de não te mexeres. Provavelmente, será hora de te retirares – disse ela, tentando ser simpática.

Ele fez um leve murmúrio e beijou-lhe as sobrancelhas. Que aborrecimento. Que grande aborrecimento.

– Sai – disse ela, dando-lhe um leve empurrão.

– Não posso. Alguém me disse para não me mexer.

– Não é altura para criares um novo sentido de humor.

Ele esfregou o nariz no dela, num movimento tão espantosamente terno que ela se calou.

– Não teria investido assim se soubesse que era virgem. E tinha a impressão de que me havia informado da sua experiência.

– Concluíste isso – disse-lhe Olivia. – Não era meu... não podia esclarecer-te.

– Mas deixaste o duque pensando que o herdeiro do filho dele poderia vir a caminho? – Olivia viu-lhe nos olhos uma expressão risonha.

– Foi muito bem feito – disse ela mordendo ao de leve o queixo de Quin, só porque ele estava ali e era belo. – Bom, não gosto nada de parecer que tenho um compromisso, mas tenho a certeza de que deveria estar noutro lado.

– Dói, não é verdade? – beijou-a nos lábios.

– Nem consigo descrever quanto.

– Porque é uma dama?

Ela acenou afirmativamente.

– Se eu soubesse que era virgem, teria empurrado os joelhos e depois entrado suavemente e muito devagar.

– O resultado acabaria por ser o mesmo. – Olivia não imaginava que a mecânica pudesse mudar o que quer que fosse, dadas as dimensões das respetivas partes.

– Mas dobrarias os joelhos? Só... para experimentar.

Ela dobrou os joelhos de má vontade.

– Por vezes, a mulher envolve com as pernas a cintura do amado.

Olivia não estava a ver-se fazer tal coisa, como se fosse uma espécie de acrobata. Porque não entenderia ele que ela não servia para as atividades da cama? Podia não ter insistido em cortinas que se deveriam fechar todas as noites, mas levantar as pernas de uma forma tão indigna?

– Nem pensar. Nunca – acrescentou para se certificar de que ele entendera.

Os olhos dele riam, mas era apenas porque não compreendia o muito que aquilo doía.

– Olivia – disse ele, baixando a boca de novo sobre a dela, totalmente descontraído, como se se dispusesse a ficar toda a noite na mesma posição.

– Amo-te. – E depois beijou-a, exigindo que ela abrisse a boca, o que ela aceitou.

Mergulhou nela a língua realizando com ela um jogo escaldante e Olivia compreendeu pela primeira vez. Aquele tipo de beijo era... carnal. Era ofensivo.

– Não admira – murmurou ela.

Ela afastou-se ligeiramente, de sombrancelha franzido.

– Não admira que não permitam que as debutantes beijem – explicou. – É outra maneira de fazer amor, não é verdade?

Como resposta, Quin tomou-lhe de novo a boca, possessivo, quente, doce. Todas as facetas de Quin ao mesmo tempo.

– Minha querida – disse ele pouco depois, após a sua mão lhe ter acariciado o seio. – Ainda te dói muito?

– Claro – disse Olivia automaticamente embora estivesse a ter prazer com as carícias dele... como não havia de doer? Tinha sempre consciência da dor e da sensação de que alguma coisa estranha e demasiado grande a abria ao meio.

Mas depois mexeu-se um pouco e percebeu de que não lhe doía tanto como antes.

– Parece-me um pouco melhor. Suponho que encolhes quando não fazemos nada durante algum tempo.

Ele pestanejou.

– Minha querida, se pensa que o homem que encontrou o caminho para o local mais doce e mais apertado do mundo encolhe...

Ela mexeu-se de novo, pensando na deliciosa sensação que ele lhe provocara antes de tudo aquilo começar. Não seria justo deixá-lo assim. Não receava a dor. Ou antes não acreditava no medo da dor.

– Devia começar de novo – disse ela. Na verdade, sentia receio, o que não significava que não tivesse coragem.

Ele não parecia convencido.

– Pronto – declarou Olivia. – Já pode mexer-te para a frente e para trás.

Ele retirou-se lentamente. Era estranho, mas depois de ele ter saído, Olivia sentiu-se vazia. Ridículo. Depois ele entrou de novo, desta vez lento, muito lentamente e ela desejou que ele se apressasse para tudo poder terminar, mas estava ao mesmo tempo fascinada pela lenta invasão. E qualquer coisa aconteceu...

Sentiu que respirava com dificuldade e que arqueava um pouco as costas.

– É melhor assim? – perguntou ele em voz baixa, mas ela percebeu da brusquidão da sua voz. Ela acenou afirmativamente.

– Outra vez.

Ela aquiesceu.

Ele entrou lentamente mas firme. Não era confortável. De modo algum, mas era suportável. Por estranho que parecesse, a sensação de fricção era até agradável.

E havia uma leve ansiedade nos olhos de Quin que afastava parte do seu prazer.

– Estou começando a gostar disto – disse ela, com um enorme sorriso. – Poderia fazê-lo toda a noite. Provavelmente...

– Mentirosa – resmungou ele evitando sorrir com os olhos. – Sei que está a ser um inferno para você, Olivia, mas para mim é o céu. Nunca imaginei gostar tanto como contigo.

Apoiando-se nos antebraços, olhou-a com os olhos pesados de paixão.

Olivia sentiu o coração encher-se de felicidade. Arqueou as costas e chegou-se a ele. Era um movimento desajeitado mas Quin percebeu.

Lançou a cabeça para trás, fechou os olhos e avançou rapidamente e com força, uma, duas vezes, de novo... exatamente quando Olivia começava pensando que talvez aquilo não fosse tão horrível, Quin emitiu um som perigoso e brutal e investiu dentro dela uma última vez.

Se tivesse caído assim sobre Georgiana, como uma árvore derrubada, a teria matado.

Felizmente, como nunca tinha experimentado a dieta de alface, Quin não se importou de cair sobre ela. Olivia rodeou o pescoço com os braços, para o manter onde estava. O terrível ardor entre as suas pernas parecia ter diminuído. De fato, parecia até estar a saber-lhe bem.

Era tão íntimo. Quin fazia parte dela. Estavam ligados, duas pessoas juntas como um puzzle que não se podia separar. A ideia comoveu-a.

– Quin – disse ela em voz baixa, voltando a cabeça e beijando-lhe a face. Queria partilhar aquele momento de êxtase, perfeito e tão íntimo.

Ele adormecera.

Olivia começou a rir e a gargalhada dentro do seu peito acordou-o.

– Desculpa meu amor – disse com a voz rouca de sono, afastando-se para o lado. – Não há sítio para nos lavarmos – resmungou.

Fechou de novo os olhos e adormeceu.

Olivia rasgou uma tira da camisa despedaçada e limpou-se o melhor que pôde. Não havia muito sangue, o que era surpreendente. Da maneira que se sentira o sangue deveria ter jorrado.

Mas não.

Procurou o segundo cobertor e cobriu com ele o corpo nu do seu primeiro amante – do seu único amante –, encostou-se a ele e instalou-se para dormir.

Sentia o corpo a latejar de um modo que lhe era estranho e que não a deixava sossegar. Por isso começou pensando de novo naquela maldita dama com a agulha.

Era uma descrição ridícula de uma coisa que mais parecia um ariete. Mas...

Havia qualquer coisa de avassaladoramente maravilhosa na experiência. Fazia-a sentir-se...

Que absurdo, pensou aconchegando-se mais.

Nenhum ser humano pode ser dono de outro. Sentimento de posse? Não.

Devia ter interpretado mal a expressão do olhar de Quin. Nem sequer era ainda sua mulher.

Mesmo assim adormeceu pensando na maneira como ele a olhara enquanto entrava nela: feroz, ansiosa, possessiva.

Mmmm.


21

A Definição do Casamento

Quin acordou de manhã muito cedo, tal como era seu hábito. Porém, percebeu imediatamente de que nada lhe parecia familiar. Normalmente, acordava numa cama imaculada e macia, sem ninguém mais dentro dela para abraçar.

Mas agora estava deitado sobre uma superfície dura e áspera, abraçando uma bela mulher adormecida. E mais, a luz da madrugada, banhava o rosto sem ser impedida por cortinados e os pássaros pareciam cantar-lhe ao ouvido.

Subitamente, percebeu do mundo e reconheceu o local em que se encontrava e com quem. Abraçara Olivia durante toda a noite, como se tivesse medo que ela fugisse. Olivia, cujos olhos risonhos e tolo sentido de humor e irônica inteligência o surpreenderam e encantaram... enquanto o enlouqueciam com a sua sensualidade.

Olivia pertencia-lhe. Acabara por encontrar uma mulher que era o oposto de Evangeline. Evangeline que se fingira virgem quando afinal não o era.

Olivia fingira ser uma mulher experiente quando afinal não o era. Durante uns instantes, refletiu sobre o que poderia ter acontecido entre ela e o seu virtuoso Rupert, mas acabou por desistir. Ela nunca lhe diria; devia ter prometido a Montsurrey.

Se tivesse sabido... entrara nela, julgando que estava habituada a meter-se na cama com o noivo, pensando que era uma mulher habituada ao prazer. A sua falecida esposa habituara-o àquilo. A ser brusco, fazer amor com Evangeline fora como percorrer um caminho público.

Fazer amor com Olivia fora completamente diferente e não apenas por causa das diferenças físicas. Cada gemido e estremecimento pareciam provocar alterações no seu próprio corpo.

E através de tudo aquilo apercebera-se de uma violenta sensação de posse. Olivia era sua, só sua. Nenhum outro homem a tinha tocado como ele. Era espantosa a violência da sua posse e não era lógica.

Ali ficou, durante algum tempo, escutando o cantar de um tordo e pensando no tipo de traição que faz com que um homem desespere por encontrar uma mulher que o ame apenas a ele. A virgindade de Olivia fora o melhor presente que ela lhe pudera dar. Sentia os braços rígidos só de pensar. Causara-lhe dor física e sentia-se muito mal por isso. Mas saber que era o primeiro...

Tentou esquecer a sensação; era ilógico! Pouco importava com quantos homens uma mulher tinha dormido. Dissera-o a si próprio, depois de Evangeline, na noite de núpcias, lhe ter contado detalhadamente as suas muitas explorações (que haviam tido início com um criado na tenra idade de quinze anos). E tivera razão.

Nenhum desses homens mudara interiormente Evangeline ou o que ele sentia por ela.

Mesmo assim, aquele brilho – aquele brilho feroz, animalesco e possessivo no fundo do seu coração – não desaparecera. Afastara-o por ser semelhante à poesia, injustificado, ilógico.

Pobre Olivia, certamente magoada após os acontecimentos da noite anterior. Deitou-a suavemente de costas e acariciou lenta e suavemente aquelas curvas macias, leitosas e inebriantes. Ela continuava a dormir; refinou o toque com um beijo de vez em quando. Ela mexeu-se algumas vezes, mas apenas quando ele começou a explorar com a mão o interior da sua coxa enquanto aproximava a boca do mamilo doce e rosado...

Ela acordou.

Não lhe deu os bons-dias. Sentou-se muito direita e gritou.

– Valha-me Deus! Onde estou eu?

Quin não era muito bom a responder a perguntas (a menos, claro, que dissessem respeito a problemas matemáticos). Em vez de responder, estendeu o braço, puxou aquela mulher de carne sensual para o seu peito e beijou-a. E isso fez como que a mesma violenta sensação de posse lhe invadisse uma vez mais o peito.

Deixou que acontecesse.

Não era lógico. Não era de fato ele. Mas era uma sensação muito forte.

– Oh, Quin – murmurou Olivia. Estava deitada de costas e ele aproximava o corpo do dela, beijando-a enquanto o fazia.

– Hmmm.

– Adoro quando me rosnas ao ouvido.

Quin ficou pensando.

– Me faz parecer um buldogue raivoso.

Ela ergueu as mãos acima da cabeça espreguiçando-se num movimento que demonstrava puro prazer.

– Não quero dizer que rosnes como um cão. É que... parece tão feliz por me ter aqui.

– É minha – disse ele num tom prático. – Claro que estou feliz por te ter aqui. Abriu-lhe as pernas.

– Mas o que vai fazer aí? – perguntou Olivia, espreitando-o.

– Vou beijar-te as coxas.

Ela tentou juntar os joelhos.

– De maneira nenhuma. Temos de regressar a casa, antes que os teus convidados deem pela nossa ausência. Graças a Deus que esses pássaros fizeram uma tal barulheira que nos acordaram.

Ele fez-lhe uma pequena carícia na coxa e ela estremeceu apesar da conversa, aproximou a língua um pouco mais do seu ponto mais quente, acariciou o seio do modo que sabia conseguir quase enlouquecê-la de prazer.

– Porquê, Quin, porquê – disse ela naquela sua voz sufocada que ele apenas ouvira algumas vezes. – O que...

Ele passou um dedo pelas belas pregas rosadas. Ela sentou-se de novo.

– Não! – E depois continuou falando. Tinham de voltar a casa, tinham de tomar banho e de se vestir, tinham de evitar a mãe dele, tinham de...

A única coisa de que a sua adorada Olivia ainda não se apercebera era que quando Quin se decidia fazendo uma coisa... conseguia o que queria.

A única maneira de parar o dilúvio de palavras e a ansiedade de Olivia era beijando-a. Como a mão dele descobrira o caminho para o local mais macio e húmido de todo o corpo dela, Quin não se sentia inclinado a escutar os protestos.

É verdade que queria fazer mais do que acariciá-la. Mas, se perdera momentaneamente o controle na noite anterior, recuperara-o agora. Olivia, a doce Olivia, precisava da experiência de um prazer que a entorpecesse antes que ele se atrevesse a chegar-se a ela.

Por fim, a pôs ofegante e a contorcer-se pela ação do seu dedo e implorando, por favor, por favor, por favor. Rejeitou a urgência de saltar para cima dela e juntou outro dedo ao primeiro... e pronto. Ela gritou, agarrando-se aos ombros dele, todo o seu corpo a tremer.

E foi tão sedutor que Quin teve de fato que se deter um momento para se controlar. Olivia era tudo o que ele queria... tudo o que poderia querer alguma vez.

Não poderia arruiná-lo.

– Quin – disse ela, esforçando-se por voltar a respirar normalmente. Oh, isso. Isso.

Ele acenou afirmativamente dando ao seu corpo uma nova lição de autodomínio. Não, não se chegaria a ela.

– É a sua vez – disse ela, parecendo um soldado corajoso diante de uma batalhão de elefantes armados.

Foi o suficiente. Acalmou a ereção o necessário para conseguir sentar-se.

– É tempo de voltarmos a casa – disse, olhando em volta em busca das cuecas. Rapidamente vestiu a camisa e as calças. – Temos de voltar antes que os criados andem todos por aí.

– Sinto os joelhos fracos – constatou Olivia. Tinha a voz rouca e parecia convidá-lo exatamente para aquilo que não o convidava.

– Levanta-te – disse ele.

– Vai você – sugeriu. – Vou dormir mais um pouco e já vou – enrolou-se sobre si própria e cobriu-se de novo com o cobertor. Fechou os olhos.

– Não posso deixar-te aqui em cima da árvore.

– Sim. Claro que pode. Vai para casa e toma o pequeno-almoço com toda a gente. Eu vou depois. Desse modo, ninguém pensará que passámos a noite fazendo coisas maliciosas em cima de uma árvore, que é o que toda a gente adivinhará se aparecermos juntos. Sei que muitas vezes penso que as pessoas fazem destas coisas nas árvores.

– Não posso deixar-te aqui em cima – insistiu ele, paciente.

– Não há problema. Foste você e não eu quem caiu da outra árvore.

Quin acocorou-se.

– Olivia, acorda. Vamos para dentro e eu não posso levar-te ao colo.

– Estou muito cansada e muito magoada. Não vou descer enquanto não descansar. Acorda-me daqui a umas horas.

E aquilo era uma ordem. Quin levantou-se o melhor que pôde e olhou para a sua futura duquesa. Olivia parecia dormir sossegada, com uma mão sob a face, os belos caracóis despenteados espalhados por cima do cobertor. Nem sequer tinha uma almofada, mas parecia perfeitamente confortável.

Quin percebeu de que sorria; estava desalinhado e sujo, mas mais feliz do que nunca estivera. Ela abriu um olho.

– Quando voltares, traz-me chá, por favor.

– Conforme te expliquei, os criados não conseguem subir esta escada com um tabuleiro na mão. Espera aí... estará a senhora, Miss Lytton, a pedir a um duque que lhe traga chá?

Ela fechou de novo os olhos, mas ele viu-lhe a sombra de um sorriso. A sua Olivia experimentava os seus poderes.

– Sim – respondeu docemente. – O casamento é isso.

– É isso o quê?

– É ser simpático – disse Olivia a sorrir. – Porque quer que a outra pessoa seja simpática contigo. Ele trouxe-lhe o chá e biscoitos.


22

Coroada de Glória

Ao princípio da noite

– Não acredito que o tenha feito! – O modo como Georgiana olhava para Olivia era um pouco ofensivo, como se ela fosse uma vitela de duas cabeças numa feira. – Não admira que não viesses tomar o pequeno-almoço. Ou almoçar.

– Dormi tanto que me atrasei para as duas refeições. Mas não passámos a noite ao ar livre – Olivia tentava explicar. – É uma casinha pequenina; só que está em cima de uma árvore.

Georgiana fechou a boca com força, mas com os olhos risonhos.

– Não posso acreditar. Ninguém me faria subir a uma árvore. Tenho a certeza de que encontraste o único homem no mundo que gosta de subir a árvores.

– É espantoso, não acha? – disse Olivia. Não conseguia explicar por palavras. – Ele é tudo o que eu sonharia se pensasse poder sonhar.

Georgiana abanou a cabeça.

– Nem você poderia sonhar com um homem que gosta de dormir nas árvores.

– Bem sei – Olivia estava tão feliz que parecia que ia explodir. – Que tal foi o almoço?

– Devíamos ir ter com os outros à sala – disse Georgiana. – A senhora duquesa está terrivelmente irritável. Não há dúvida de que suspeita que há uma razão para teres faltado ao pequeno-almoço e ao almoço. Nenhum dos convidados partiu e julgo que alguns pensem ficar pelo menos uma semana. Foi muito brusca com Mister Epicure Dapper... o cavalheiro com uma notável adição de chumaços nos ombros dos casacos.

Olivia soltou uma exclamação de desdém.

– Como caíram os poderosos.

– Lorde Justin tem um enorme prazer em atormentá-la, sabe. Depois do almoço, todas as jovens damas lhe pediram que cantasse para elas e ele cantou canções francesas!

– Ele é francês por parte da mãe, não é verdade? – Olivia manteve aberta a porta do quarto para que Georgiana passasse à sua frente. – Porque não haveria de cantar na sua própria língua?

– Oh, Olivia, sabe perfeitamente que as canções francesas não se parecem nada com as inglesas. Parecem pouco próprias, mesmo quando não o são.

– A irritabilidade dela nada tem a ver com a propensão de Justin para cantar na língua da sua mãe. Georgiana deteve-se em cima da escada.

– Não me diga que discutiste com ela outra vez ontem à noite.

– Não está satisfeita por não teres estado conosco? Teria uma dupla enxaqueca, se é que tal coisa existe.

Olivia começou a descer, mas Georgiana pegou-lhe num braço.

– Conta-me tudo, por favor.

– Se bem te lembra, mandaste-me para a biblioteca e disseste que Quin iria atrás de mim.

– E foi o que ele fez. Vi-o seguir-te por entre a multidão como uma raposa a uma galinha.

– Tínhamos já tratado de algumas coisas para satisfação de ambos quando a duquesa entrou no aposento. Nos interrompeu. Esta perceber o que te estou dizendo?

– Mas o que me esta dizer?

– Nada disso – disse Olivia soltando uma gargalhada. – Apenas nos beijávamos.

– Oh, meu Deus.

– Ficou terrivelmente aborrecida com aquilo. Disse que eu era demasiado gorda para me casar com o filho – contou Olivia indo para o único ponto de que se lembrava claramente. – Parece que me acha uma escolha sensata para Rupert, porque as minhas ancas amplas compensam o seu cérebro deficiente.

– Não posso acreditar que a duquesa tenha dito tal coisa! – disse Georgiana sufocada. – Pode ser brusca, sem dúvida, mas nunca indelicada. E um comentário desses, que ainda por cima não é verdade, ultrapassa toda a falta de civilidade.

– Garanto-te que o disse, mas não foi certamente com intenção – afirmou Olivia. – Está simplesmente aborrecida por não poder ter a sua maravilhosa pessoa como nora e quem poderá censurá-la?

– É muito boa, Olivia, mas estou desapontada – disse Georgiana e o seu pequeno colo arfava de tal maneira de indignação que ganhou uma leve semelhança com a própria duquesa. – Porque é chocante que uma senhora de tal nível não cumpra os preceitos que ela própria tão bem definiu.

– Deve ser a minha influência. Espero que não tenha qualquer importância no decorrer dos acontecimentos. Faço sair o predador que há nela.

– O que descreves nada tem a ver com predadores, é simplesmente falta de educação. – Georgiana começou por fim a descer as escadas. – Bom, a duquesa pode sentir-se infeliz, mas a nossa mãe vai ficar extática.

– Duvido muito.

– Um duque é tão bom como outro qualquer.

– Assim que se aperceber que recusas tomar o meu lugar... bom, nem quero pensar. Lembra-te que o pai prometeu que uma das suas filhas casaria com Rupert. Embora, Georgie, quando penso nisso, poderia acontecer-te pior. Estás treinada para o serviço.

– Não quer que eu me case com Rupert – afirmou Georgiana. – E eu não quero casar-me com Rupert. E, francamente, enquanto você foste sempre uma boa filha, exceto em coisas muito pequenas, eu não o sou.

– Não é? – perguntou Olivia.

– A mãe e o pai cometeram o erro de pensar que, como executei todas as tarefas que me atribuíram, sou obediente. Mas não sou – chegou ao fundo da escada e voltou-se para Olivia

– Georgie! – exclamou Olivia sufocada. – Você... isso é maravilhoso.

– Cometeram também o erro de pensar que você era rebelde, simplesmente porque recitavas poemas humorísticos e fazias algazarras. Mas eram tudo ninharias. É uma filha obediente.

Olivia colocou-se ao lado da irmã.

– Creio que prefiro ser a rebelde. Pareço uma simplória.

– O duque de Sconce nunca se sentiria atraído por uma simplória – referiu Georgiana a sorrir. – E é louco por você. Estava à espera que, ao almoço, ele não aguentasse e anunciasse que te tinha escolhido para esposa, mas conseguiu conter-se.

Nesse momento, um dos criados que estava junto à parede da entrada, avançou e abriu as portas de par em par.

Olivia voltou-se pensando que seria Quin. Depois ficou imóvel, incapaz de falar. Decididamente, a pessoa à porta não era Quin.

Georgiana não se sentiu tão hesitante.

– Senhor duque – disse enquanto Cleese fazia entrar o duque de Canterwick. – É um prazer vê-lo.

– Foi Rupert! – exclamou Olivia. – Aconteceu alguma coisa a Rupert.

– Não. – O duque voltou a cabeça e olhou para ela. – Minha querida, minha querida, mas que ótimas notícias!

(Conforme Olivia disse mais tarde a Georgiana, a princípio pensou que as ótimas notícias a que se referia seriam a sua gravidez, e tinha boas razões para saber que não era esse o caso.)

– Rupert superou-se! – gritou o duque, com o rosto ao brilhar de felicidade.

– O quê?

– Coroou-se de glória – contou Canterwick ainda aos gritos. – O duque de Wellington mencionou-o nos seus despachos... o Príncipe Regente informou... foram consideradas honras especiais. Boa noite, Miss Georgiana! Como se tem dado com Sconce?

– Bem, muito obrigada – disse Georgiana a sorrir. – Fico muito feliz com as suas notícias, senhor duque.

– Não tão feliz como eu – respondeu o duque já mais calmo. – Feliz não é... nem consigo descrever o que sinto. A princípio nem conseguia acreditar. O mensageiro de Sua Majestade teve de me dizer quatro vezes. Depois enviei um homem a Dover para esperar pelo meu filho e trazê-lo aqui assim que chegue a terra. Deve ser um dia destes, disse o mensageiro, e eu vim imediatamente para aqui dar-vos as notícias. Tinha de dizer a toda a gente – interrompeu as suas exclamações e dirigiu-se a Olivia, pondo as mãos nos ombros e dando-lhe um ligeiro abanão paternal. – Vejo que está tão estupefata como os outros, minha querida. Pois bem, é verdade. Estou vendo que esta noite há aqui festa, o que é esplêndido. Esplêndido! Poderei contar a todos ao mesmo tempo.

E com isto conduziu Olivia até ao salão. A duquesa avançou com um sorriso; Quin, que estava a conversar, voltou-se. Antes que qualquer deles o pudesse cumprimentar, Canterwick acenou à assembleia para conseguir silêncio como se estivesse na sua própria casa.

Era um belo ator, pensou Olivia, começando a recompor-se do choque da sua chegada e das espantosas notícias que trouxera. Primeiro julgara Rupert morto e agora... agora?

– Como devem saber, o meu filho, o marquês de Montsurrey, é o major da Primeira Companhia dos Fuzileiros de Canterwick – dizia o duque outra vez quase a gritar. Balançava-se nos calcanhares e as palavras saíam-lhe em catadupa.

– Não sei por que razão, os Fuzileiros aportaram ao Porto, em Portugal. Parece que, quando o meu filho descobriu o erro, reuniu os homens e atravessou o país até Badajoz, ao forte de Badajoz.

Toda a gente presente na sala ficou emocionada com a atenção fixa no duque. Exceto Quin; tinha os olhos fixos nas costas de Olivia, que conseguia mesmo sentir um formigueiro nas omoplatas.

– Como calculo que saibam, Badajoz tem estado cercada, sob o comando do general Thomas Picton. Tem havido várias tentativas para escalar as ameias, algumas delas descritas nos jornais de Londres... mas em vão. Isto é, até o meu filho chegar!

Olivia duvidava de que o duque se apercebesse de como o seu tom parecia triunfante quando pronunciava as palavras, meu filho.

– Está radiante – murmurou Georgiana. – Não é maravilhoso, Olivia? Isto é, maravilhoso para Rupert. Vai mudar tudo para ele.

Olivia acenou afirmativamente.

– O general deu aos Fuzileiros e a Canterwick o nome de Esperança Perdida – continuou o duque. – É assim que é costume chamar a uma companhia sem esperanças de êxito. Esperança Perdida! O meu filho! Picton teve de engolir as palavras.

– Suponho que Picton não quisesse que trepassem pelas muralhas – murmurou Olivia para Georgiana.

– É agradável ver que nem um general pode impedir Rupert quando ele se decide fazendo qualquer coisa.

– Ele e os seus homens treparam às muralhas, embora nenhuma outra companhia inglesa o conseguisse – berrava o duque. – Escalaram-nas e tomaram-nas durante vários dias até a Quinta Divisão regressar. Tinham desistido, sabem. Desistido e partido, pensando que os franceses detinham Badajoz. Mas não, graças ao meu filho!

Olivia não conseguiu conter-se; olhou para a direita. Quin olhava para ela. Os olhos de ambos encontraram-se e foi como se estivessem separados por uma enorme distância.

– A maioria dos defensores franceses retirou para San Cristobal e rendeu-se aí – disse o duque, falando cada vez mais alto. – O marquês conduziu a sua companhia, subiu as muralhas, conquistou o forte e capturou muitos soldados franceses. Aí se manteve com uma centena de homens. – O duque lançou um olhar furioso em seu redor. – Houve pessoas que disseram coisas nas costas do meu filho. Que troçaram dele. Nunca mais! Já se fala da Ordem do Banho. Uma honra que é detida por não mais de vinte e quatro homens. O meu filho!

Houve um momento de silêncio e, depois, espontaneamente, o aplauso... repetido até que todo o grupo aclamasse, algumas vezes já com lágrimas nos olhos.

De súbito, o duque voltou-se e puxou Olivia por um braço.

– Miss Lytton acreditou nele – disse olhando em redor do salão com ar feroz. – Apresento-vos a noiva do meu filho, a futura marquesa de Montsurrey.

Olivia quase tropeçou, recuperou o equilíbrio e sorriu. O aplauso tornou-se mais ruidoso e depois acalmou quando a duquesa viúva de Sconce avançou majestosa até ficar diante do duque. Com o aposento no mais perfeito silêncio, ela executou uma profunda e apenas ligeiramente rangente reverência.

– Senhor duque – disse. – Será uma honra para a nação receber o seu filho nas costas de Inglaterra coroado com a glória merecida.

Olivia não olhou de novo para Quin. Não podia.


23

A Razão Por Que os Heróis não São Tão Divertidos como os Duques

O jantar que se seguiu à chegada do duque de Canterwick nunca foi esquecido por nenhum dos deliciados e – após o alegre saltar das rolhas do champanhe – inebriados convidados. Embora houvesse um deles que, mesmo anos depois, se lembraria de sentir o mais completo desespero no meio de toda aquela celebração.

Quin vagueava por entre os convidados sentindo-se um fantasma: uma concha humana com uma aparência de rosto, mas sem outras distinções que não uma incrível falta de sorte no que dizia respeito a mulheres.

Depois do jantar dançou com Georgiana. Pelo canto do olho localizou Olivia e viu como passava de homem para homem, como eles a olhavam, riam com ela, se apaixonavam por ela e invejavam o marquês.

Claro que nenhum deles dava voz a uma emoção tão baixa: nem nessa noite nem depois de os franceses terem entregado o forte tão disputado e com a perda de tantas vidas inglesas.

Andava de sala em sala, porque se continuasse em movimento, ninguém o deteria para falar do marquês. Inveja era uma fraca palavra para descrever a emoção que sentia: era mais raiva, puro ódio, ciúme lívido e profundo. A mãe pôs a mão na manga, para o sossegar, mas deixou-o ir.

Não sabia o que ela lhe lera no olhar, mas não importava.

O pior é que saía do aposento em que Olivia estava... e dava por si a entrar nele pouco tempo depois. Não se enganava, sabia que não caminhava ao acaso. Tentou afastar-se...

Deu por si a procurá-la de novo. Uma e outra vez.

Pareceu uma eternidade até que a maioria dos convidados se retirou para os seus respetivos quartos e o ainda excitado e volúvel duque foi escoltado para a Câmara da Rainha, assim chamada porque a rainha Isabel lá dormira em três ocasiões.

Quin foi para os seus aposentos e tomou banho. Vestiu o roupão, mandou Waller embora e vestiu-se de novo. Esgueirou-se do quarto, seguiu pelo corredor, abriu a porta do quarto de Olivia e entrou.

Esta estava sentada de costas para ele, com os dedos dos pés esticados na direção do lume, lendo um livro, como no sonho dele. O corpo do duque transformou-se num archote latejante e dorido.

Aproximou-se silenciosamente, afastou-lhe o cabelo sedoso para o lado e inclinou-se para lhe beijar o pescoço.

O seu coração batia acelerado. Reconheceu a emoção que lhe inundava as veias. Poderia não ser a pessoa mais indicada para identificar a emoção, mas qualquer tolo poderia perceber do que se tratava. Era medo.

Rupert conseguira. Era agora um herói de guerra. Um herói de guerra.

Olivia teria de escolher entre casar com um homem que ficara em casa, como um chapeleiro, e outro que trepara pelas muralhas e tomara um forte, enchendo-se de glória. Que raio, Rupert podia mesmo ter influenciado o desfecho da guerra. Ele e a sua insignificante centena de homens.

Tocou com os lábios no pescoço dela e respirou aquela delicada combinação de flores e mistério que era a sua Olivia... enquanto esperava com uma sensação de terror que lhe ia das pontas dos dedos à sua alma, onde quer que esse misterioso órgão estivesse situado.

Já uma vez se sentira naquele estado: na primeira noite em que Evangeline não voltara para casa. Quando chegara com a luz da madrugada, dissera-lhe que ele era enfadonho e que a aborrecia tanto com as suas conversas sobre matemática que só lhe apetecia gritar. Passara a noite com um elemento da nobreza rural.

– Não podia recusar – dissera Evangeline com ar sonhador. – Ele foi à caça e surpreendeu um bando de contrabandistas. Capturou-os a todos. É um herói.

Mesmo meses depois, quando os contrabandistas foram a julgamento e se descobriu que não passavam de aldeãos esfomeados que tentavam apanhar coelhos nos bosques que o nobre gostava de considerar seus..., mesmo nessa altura, ela continuara a considerar o homem um herói.

Agora, aqui, os braços de Olivia ergueram-se e envolveram o pescoço. Os lábios de cereja, o brilho nos olhos que era só para ele...

– Desculpa – conseguiu dizer, mas só minutos ou talvez uma hora depois.

– Porquê? – Quin conseguira levá-la da cadeira para o tapete, as chamas cintilando aqui e ali sobre a pela leitosa de Olivia que, afinal, nada mais vestira de que um roupão e, embora tentasse mantê-lo fechado, ele conseguira abrir com alguma dificuldade.

O sangue corria-lhe célere no corpo, mas tinha de lhe dizer:

– Poderia casar-te com um herói de guerra se eu não te tivesse tirado a virgindade. Todas as mulheres gostam de heróis.

– Não é maravilhoso para Rupert? – disse ela a sorrir.

– Com certeza – respondeu ele em voz cava, mas dominando-se.

– Agora não teremos qualquer dificuldade em lhe arranjar esposa – continuou ela. – Passa-se alguma coisa, Quin? Não está com ciúmes do pobre Rupert, pois não?

Havia apenas uma resposta a dar.

– Sim.

Ela apoiou-se no cotovelo e acariciou o rosto com uma mão macia.

– Por favor, não me diga que quer ir para a guerra.

– Não posso. Tenho demasiadas responsabilidades. Mas sim, gostaria de ir. Li Maquiavel e Júlio César e Saxe. Gostaria de fazer alguma coisa de importante neste mundo.

– Percebo – disse ela, deitando-se para trás e cruzando os braços atrás da cabeça. – Está dizendo-me que tem de ficar em casa para tomar conta dos hectares de terra e assegurar-se de que as centenas de pessoas que tem a seu cuidado e que trabalham para si são alimentadas e vestidas e conseguem sobreviver... Espere! Isso é importante? – bateu-lhe no queixo. – Não. Tem razão. A menos que possa ir para França matar gente, a sua vida não tem sentido.

Quin fez um esforço, obrigando as palavras a sair da sua boca.

– Nestas circunstâncias, ainda quer casar comigo?

Ela franziu a testa.

– Que circunstâncias? Os triunfos de Rupert ou o episódio do ariete de ontem à noite?

– O ariete! – O pouco delicado sorriso dela fê-lo perder o fio à meada, mas recuperou-o. – Por causa dos triunfos de Rupert. Porque te poderia casar com um duque que parece ser um dos maiores heróis que o Império Britânico já conheceu.

Olivia esboçou um breve sorriso.

– Pois, isso é verdade, não é?

– Sim.

– Podia passar o resto da minha vida a discutir com o grande herói nacional o que a Lucy comera recentemente... ou deitar-me num tapete consigo.

O coração de Quin latejava nos ouvidos.

– Nua – acrescentou e os olhos dela tudo diziam. – Vulnerável ao ataque de um arie...

– Não repitas isso – o aperto no coração desaparecia. Ergueu-se e tirou as botas. Ela olhava-o com os olhos semicerrados.

Despiu a camisa e depois as calças.

– Olivia.

– Mmmm.

– Um ariete?

Retirou as cuecas e os olhos dela dirigiram-se para lá.

– É uma descrição rigorosa – declarou ela. – Olhe para si.

Quin olhou. Estava rampante, por assim dizer. E, sim, formidável.

– Realmente só deveríamos fazer amor depois de Montsurrey voltar para Inglaterra e ser informado da alteração das circunstâncias.

Com um arrepio de puro prazer, Quin viu-fazendo beicinho e os olhos dela mudarem de expressão. Afinal, o ariete não era assim tão assustador.

Deixou-se cair de joelhos e passou-lhe sensualmente os dedos pela encosta da sua face, pelo pescoço, depois mais abaixo...

– Isso não quer dizer que tenhamos de ser desconhecidos.

– Não? – murmurou ela, passando-lhe os braços pelo pescoço.

Ele baixou a cabeça, num gemido rouco que lhe escapara do peito.

– Não.


24

Bigodes Gauleses, Um Amigo em Apuros e o Espírito de Aventura

Anos depois, Olivia olharia para a noite que passara no tapete junto à lareira a ser possuída por um duque ciumento, possessivo e sempre perfeito, como um momento definitivo, o ponto em que o antes da sua vida seria separado do depois.

Foi nessa noite que descobriu como a vida pode ser emocionante.

Seguida pela manhã em que também se apercebeu de como ela era verdadeiramente frágil e cara.

Ela e Quin haviam subido para a sua cama de cortinas, dormiam aos poucos, acordavam-se um ao outro, riam, murmuravam e exploravam-se.

Ele partiu quando o Sol já tentava subir no horizonte, tendo-a informado antes da razão pela qual os raios que entravam pela manhã eram suaves e rosados e não brancos e ofuscantes. Ela nem precisou de se fingir fascinada; estava-o genuinamente.

Porém, Olivia voltou a adormecer pensando mais na luz dos olhos de Quin do que na que vinha da janela.

Logo a seguir sentiu uma mão abanar o ombro.

– Olivia, acorda! Acorda!

O pânico mal contido na voz de Georgiana cortou o sono leve e cheio de sonhos, obrigando-a a abrir os olhos.

– Que se passa?

A urgência de Georgiana foi brevemente ultrapassada pelo seu sentido de decoro.

– Porque não tem um roupão vestido? Não, não quero saber – Georgiana afastou as cortinas fazendo tilintar as argolas metálicas. – Tem de te vestir; Norah estará aqui dentro de um momento e não pode ver-te nesse estado.

– Que se passa? – Olivia lançou para trás as cobertas, tirou as pernas para fora da cama e procurou o roupão. Era estranho acordar nua, principalmente debaixo do olhar reprovador da irmã. – Aconteceu alguma coisa ao pai ou à mãe?

– É Rupert – disse Georgiana encontrando o roupão atirado para o chão e lançando-o à irmã. – Veste isto, por amor de Deus.

– Rupert? – perguntou Olivia pondo-se de pé num salto. – O que aconteceu?

Georgiana mordeu o lábio.

– Foi ferido com gravidade, Livie. Não se sabe se escapa. Sinto-me tão... pobre Rupert! Pobre, pobre Rupert – tinha os olhos brilhantes de lágrimas. – E não é tudo: logo que o correio da companhia falou com o duque este caiu no chão.

– Morto?

– Não está morto. Mas está insensível. Não dá acordo de si. O homem chegou de Dover a meio da noite, depois de todos se terem retirado. Quando Canterwick desmaiou, o mordomo tentou encontrar Sconce, mas...

– Ele estava aqui comigo.

– Calculei. Por isso, Cleese acordou a duquesa que chamou um médico. Mas Canterwick não se mexeu nem falou e creio que o médico não tem muitas esperanças. O duque parece morto, mas ainda respira.

Olivia ficou no meio do quarto, apertando a gola do roupão e tentando resolver as coisas o mais rapidamente possível.

– Rupert está em Londres? Vou imediatamente ter com ele. Deve estar tão assustado e se o pai não pode estar a seu lado, estarei eu.

Georgiana abanou a cabeça.

– Está em França. Creio que foi por isso que o pai se assustou.

– Em França?

– Não sei os pormenores, mas o correio disse que os seus homens o levavam pela costa de França até Calais, onde pensavam atravessar a Mancha com o primeiro barco que pudessem requisitar, mas..., Olivia, é uma tristeza... os seus ferimentos são tão graves. Por isso um dos seus soldados veio, sem ele, diretamente de Dover para trazer a mensagem a Canterwick.

Olivia voltou a cair na cama sentindo-se temporariamente esmagada.

– Estava demasiado ferido para atravessar a Mancha?

– Receio que sim – Georgiana sentou-se também e passou-lhe um braço pelos ombros.

– Deve ter tido tanto medo. A menos que... talvez seja insensível?

– Não creio. Parece que perguntou pelo pai.

– Espero que também tenha perguntado pela Lucy.

– E por você. Ele gosta muito de você – disse Georgiana.

– O pai teria ido ter com ele se não tivesse tido o ataque – afirmou Olivia com o coração apertado de tristeza.

– Suponho que sim. Mas é muito perigoso por causa da guerra. Rupert só chegou à Normandia. Pode ser capturado a qualquer momento.

Olivia levantou-se.

– Tenho de ir ter com ele. Já. – Tocou a campainha com força. – Julgo que preciso de um barco capaz de atravessar o canal da Mancha.

– O melhor seria viajares de carruagem até um ponto diretamente oposto ao local onde Rupert está – sugeriu Georgiana e logo soltou uma exclamação sufocada. – Mas claro que não vai para França, Olivia, não seja idiota!

Norah apareceu à porta.

– Um banho – pediu Olivia.

A criada vinha com um sorriso entendido no rosto.

– Pensei logo que queria um banho. – Abriu mais a porta. Entraram três criados, trazendo baldes de água.

– E um fato de viagem, por favor – acrescentou Olivia.

– Nem te passe pela cabeça fazeres essa imprudência! Fazes ideia de como são agora as relações entre França e Inglaterra? E se... você... fores capturada pelos franceses, Olivia?

Olivia refletiu um momento e depois encolheu os ombros.

– Estamos em guerra. Estamos em guerra já há algum tempo. Ainda estamos em guerra. Preciso de ir ter com Rupert. Tenho a certeza que, se encontrar soldados franceses, eles compreenderão.

A irmã gemeu.

– Não tem lido os jornais, pois não?

– Te surpreenderia se a resposta fosse não? – Os criados tinham saído e o banho estava pronto. Olivia despiu de novo o roupão. – Se a sua sensibilidade fica ofendida pelo meu estado de nudez, Georgie, é melhor saíres já.

– Não tem nada que eu também não tenha – replicou a irmã sentando-se num banquinho ao lado da banheira.

– Só que eu tenho em maior quantidade – murmurou Olivia, experimentando a água quente com o dedo do pé.

– Não pode fazer uma viagem quixotesca pelo canal da Mancha – insistiu Georgiana. – Não fazes a mínima ideia do perigo.

– Posso viver com a incerteza – disse Olivia. – Norah, por favor, lavas-me o cabelo o mais depressa que for humanamente possível?

– Sim, menina – disse Norah tratando o cabelo de Norah como se fosse uma trouxa de roupa suja.

– Como você conheces todos os perigos e lês os jornais, Georgie, é melhor que me diga tudo o que eu devo mesmo saber.

A irmã começou a protestar, mas Olivia ergueu a mão.

– Conheces-me há mais tempo do que qualquer outra pessoa neste mundo. Imaginas mesmo que eu deixaria Rupert numa cabana qualquer no Norte de França? Sozinho? Posso não querer casar com ele, mas gosto muito dele. E de uma maneira estranha também o respeito.

Houve um momento de silêncio só quebrado pelo barulho que Norah fazia com a água.

– Ele já não é teu noivo – lembrou Georgiana, mas a sua voz traía a certeza de que não conseguiria ganhar.

Olivia abanou a cabeça.

– Para.

– Então, vou contigo.

– Não, com certeza que não vai. Afinal, é assim tão perigoso desembarcar na costa francesa? – Olivia ensaboava um braço enquanto esperava por uma resposta.

– Segundo os jornais, os soldados franceses patrulham constantemente as praias, procurando invasores e também contrabandistas. Pode ser capturada.

– Por que raio quereriam capturar-me?

A irmã olhou-a.

– Será que preciso de te explicar o que os soldados são capazes de fazer às mulheres, Olivia?

– Violada por um francês – disse Olivia alegremente. – Há quem pague para ter esse privilégio. Georgiana emudeceu de espanto.

– Como pode reagir com... com uma vulgaridade dessas a uma perspectiva tão terrível.

– Não desejo minimizar o horror desse acontecimento, Georgie, mas, se aprendi alguma coisa durante o meu noivado com Rupert, é que pensar nas piores possibilidades não serve para muito. Por isso, decidi imaginar que qualquer soldado francês que encontre será sedutor e gallant – pronunciou a última palavra à francesa. – Talvez com um bigode retorcido nas pontas – imaginou.

– Nunca te vou compreender! Até que ponto serão esses soldados gallants se pensarem que é uma espiã?

– Eu? Uma espiã? Não me pareço nada com uma espiã.

– Quem sabe com o que se parece uma espiã? Tenho conhecimento de que há mulheres envolvidas nessa atividade. Nem sei se é possível pagar um resgate pelos espiões como se faz com os oficiais.

– Graças a Deus que lês assiduamente os jornais – disse Olivia. – Talvez possas encontrar a resposta a essa questão antes que eu tenha necessidade premente disso – levantou-se, deixando a água escorrer pelo corpo. – Norah, certamente já percebeste que vou precisar de uma pequena mala de viagem.

– Vou acompanhá-la a França, menina – disse Norah corajosa. – Vai precisar de quem a vista, mesmo numa prisão francesa.

O sorriso de Olivia incluiu a irmã e a criada.

– Nenhuma de vós vai comigo.

– Não pode ir só! – protestou Georgiana. – Oh! – exclamou logo a seguir.

– Exatamente.

– Tem de mandar recado ao duque dizendo que tencionas partir imediatamente – disse Georgiana. – A pedir que te acompanhe. – Dirigiu-se para a pequena escrivaninha ao canto.

– Estou certa de que o duque já se está a preparar para a viagem – referiu Olivia calmamente. – Obrigada, Norah, é a escolha perfeita para a viagem. Sem dúvida, todas as espias se vestem de cor de ameixa.

– É para se confundir com a noite – disse a criada com a voz estridente de emoção.

Georgiana abanou a cabeça.

– Como sabe que Sua Graça está preparado? Posso recordar-te, Olivia, que só conheces Sconce há quatro dias?

Olivia sorriu.

– Esse homem deseja servir a nação; se o puder fazer como espião, será espião. Estrebuchou literalmente de inveja ao saber que Rupert ia para a guerra. Vai acompanhar-me.

– E o que dirá a duquesa viúva quando souber?

Norah estremeceu.

– Lá em baixo dizem que o duque faz geralmente tudo o que a senhora duquesa exige.

– A duquesa não vai ficar satisfeita – insistiu Georgiana.

– Me atreveria dizendo que não ficar satisfeita não se aproximará dos sentimentos dela em relação ao problema. – Mas tenho ainda de dizer isto: se Quin ficar em Inglaterra por causa das objeções da mãe, então não é o homem com quem me quero casar.

– Um teste? – perguntou Georgiana em tom duvidoso.

Olivia acenou afirmativamente.

– Lembras-te da velha história da dama que foi considerada uma verdadeira princesa porque esconderam uma ervilha por baixo dos colchões? Pois esta será a minha versão. Nenhum príncipe será verdadeiro se obedecer à mãe.

– Em vez de obedecer à noiva?

– Em vez de se deixar levar pelo espírito da aventura!


25

A Questão da Bênção Paternal

Quin estava na sala de armas, observando o extraordinário número de armas colecionadas pelos seus antepassados. Por fim, e depois de uma cuidadosa observação do que tinha diante de si, decidiu-se por um par de pequenas mas perigosas pistolas de bolso italianas.

– Acredito que tenham sido lubrificadas recentemente – disse a Creese.

– Pode ter a certeza, senhor duque.

Quin entregou as pistolas a Cleese e, distraído, viu o mordomo embrulhá-las cuidadosamente numa flanela e colocá-las numa caixa com o brasão dos Sconce.

Lá em cima, um duque morto para o mundo.

O herdeiro do duque numa praia de França, morto – ou quase.

Sentiu-se como se estivesse a viver dentro de um romance, dos que têm um enredo e personagens improváveis. A qualquer momento, uma armadura ou qualquer coisa igualmente disparatada cairia do céu.

– Apanharemos um barco em Dover – disse a Cleese, vendo-o guardar sacos de pólvora e balas na caixa. – Envia um criado à nossa frente para contratar o melhor comandante e o melhor barco possíveis. Lançaremos a âncora ao largo e usaremos um barco a remos, com os ramos camuflados sob a coberta da noite. Com sorte, o marquês estará em solo inglês amanhã à noite.

– Acredito que assim seja – declarou Cleeve, parecendo tão pouco convencido como Quin se sentia. A porta abriu-se.

– Ora aqui está!

Quin ergueu os olhos e sentiu uma onda de emoção tão forte que quase teve uma tontura. Olivia estava vestida para viajar. No meio de toda aquela crise tinha-se esquecido de como ela era bela: aqueles olhos verdes, da cor do mar, a boca feita para beijar.

– Está quase pronto? – perguntou.

Enervava-o a ideia de a deixar aproximar-se sequer do canal da Mancha. Contudo, sabia que não teria outra alternativa.

– Teremos de partir imediatamente – disse ela. – Quin leu-lhe a ansiedade no olhar, mas o seu sorriso era alegre e corajoso.

– Mas o que leva aí? – perguntou ele enquanto ela pousava um cesto no chão.

– A Lucy, claro – respondeu Olivia. – Parece-me que não gosta muito do cesto, mas não quero arriscar-me a que caia ao mar.

Quin avançou e tomou-lhe as mãos, olhando-lhe os belos olhos.

– Por favor, porque não fica aqui em segurança em Littlebourne enquanto eu vou buscar Rupert? Trago-lhe o marquês em menos de vinte e quatro horas, se for humanamente possível. Tenho a certeza de que o seu estado melhorou enquanto o correio veio nos avisar.

Olivia alargou o seu sorriso.

– Tinha de tentar – murmurou ele, tanto para si como para ela.

– A sua mãe espera-o no salão.

Quin retirou a caixa das pistolas das mãos de Cleese. Com ela estava preparado para proteger o melhor possível a sua dama. Tinha boa pontaria, mas sabia perfeitamente que apontar e uma pistola bem lubrificada não chegavam. Precisava de sorte.

Olivia estava junto ao seu ombro esquerdo.

– Quin ouviu? A sua mãe está à espera no...

Ele voltou-se e beijou-a nos lábios.

– Eu ouvi-a. Vou despedir-me rapidamente da senhora duquesa. Cleese mande já um criado a Dover e depois recolha a minha bagagem junto de Waller e assegure-se de que Miss Lytton está bem instalada na carruagem.

Olivia ficara rosada e sentia-se muito afogueada.

– Não devia beijar-me em frente de outras pessoas – murmurou.

– Beijá-la? – Depois pediu. – Cleese fecha os olhos. – Como sempre, o mordomo obedeceu imediatamente e Quin beijou mais uma vez a sua dama com força e apressadamente. – Está melhor assim? – perguntou num murmúrio, a voz rouca pela combinação de desejo e medo. – O nosso inestimável Cleese não viu esta intimidade. Mas poderei fazer-lhe notar, minha querida, que o nosso mordomo sabe tudo o que acontece nesta casa e tomou sem dúvida consciência da minha intenção de casar consigo ainda antes de mim?

– Cleese, terei de lhe pedir que não dê atenção ao seu amo – pediu Olivia revirando os olhos. – Não há dúvida que sucumbiu a toda esta tensão. – Dirigiu-se à porta, escapando-se à mão dele.

– É verdade, Quin, temos de nos apressar. Estou preocupada por podermos chegar demasiado tarde. Isto é, quero encontrar Rupert o mais depressa possível – acrescentou bastante aflita.

Quin pegou-lhe na mão, puxou-a para si e deu-lhe um beijo faminto. Como lhe apetecia desde que a deixara nessa madrugada.

Quando por fim ele ergueu a cabeça, ela encostava-se a ele com a respiração entrecortada.

– Beijo-a – afirmou Quin olhando-a nos olhos – diante de Quin ou do próprio Regente.

Olivia pestanejou um pouco comovida.

– Ou do papa – começou a provar a sua afirmação com pequenos beijos. – Ou do imperador do Sião. Ou do arcebispo de Cantuária.

Ouviu-se uma voz à porta.

– Tarquin.

O duque ergueu a cabeça e acenou para cumprimentar a mãe. Depois olhou de novo para a sua futura esposa e deu-lhe mais um beijo nos seus lábios rosados.

– Diante de todos e qualquer membro da minha família, incluindo a minha santa tia Velopia Sibble, que preferia que as pessoas comunicassem apenas com a divindade da sua escolha e também apenas por meio de preces.

Olivia abanou a cabeça.

– Espero por si no landau – fez uma pausa diante da duquesa e inclinou-se numa reverência. – Senhora duquesa. Pode considerar isto a fuga de uma criada, se o deseja.

– Como sem dúvida já se apercebeu, vou partir para França – disse Quin à mãe enquanto Olivia desaparecia pelo corredor. – Espero regressar amanhã, com um marquês ferido ou o corpo de um herói inglês. Não preciso de dizer que espero que se trate do primeiro caso.

– Afinal, Miss Lytton não pediu a sua ajuda para esta aventura temerária – declarou a duquesa. Tinha no rosto uma expressão ofendida e as mãos postas como as de uma santa de mármore. A comparação terminava aqui: a única santa de que se lembrava que pudesse ter uma voz tão autoritária como a da mãe seria Joana d’Arc.

– Miss Lytton não precisou de me pedir que a acompanhasse – confirmou ele. Porém, irei a França, com ou sem ela. Posso acompanhá-la ao salão? Não há tempo a perder e quero estar em Dover dentro de três horas.

– Dada a inclemência da presente situação política, preferiria que não viajasse até França.

– Bem sei. – Entretanto, verificava mentalmente as listas do que necessitava, tentando ao mesmo tempo acalmar a mãe e fazer tudo o que a aterrorizava. – Por favor, Cleese, mande pôr cordas e uma lanterna na carruagem. Oh, e pederneira.

A mãe ignorou a ordem e a presença do mordomo.

– Tenho de lhe pedir, não, exigir que reconsidere a sua partida para esta perigosa aventura. Montsurrey corre certamente perigo de vida, se é que não morreu já. Interroguei o sargento Grooper, o soldado que chegou aqui a meio da noite, e ele disse-me que o marquês mal podia erguer a cabeça do catre. E isto passou-se há mais de vinte e quatro horas. Certamente já estará morto.

– Se o marquês morreu, repatriarei o seu corpo para Inglaterra – afirmou Quin com firmeza, conduzindo a mãe pelo corredor até ao salão. – Trata-se de um herói de guerra. É o menos que qualquer cidadão inglês pode fazer por ele.

– E porque terá de ser o menino? – exclamou a duquesa viúva, pronunciando as palavras com uma aflição, para não dizer uma aflição nada habitual em si. – Poderemos fazer um apelo à Marinha! Sua Majestade enviaria uma força. Ou poderíamos contratar os Bow Street Runners. Pelo que ouvi, poderiam derrotar um batalhão francês sem qualquer problema.

– Sua Majestade não pode arriscar-se a dar a impressão de que uma força inglesa vai atacar as costas de França e a Marinha teria o mesmo problema. Mas trata-se de questões acadêmicas. Estou em dívida para com Montsurrey. Vou fazê-lo.

– Claro que não pode estar em dívida para com Montsurrey! Não me disse que nunca tinha estado com ele?

Tinham chegado à entrada e Quin deteve-se.

– Mãe, sabe que estou em dívida para com o marquês. E sabe perfeitamente por que razão nunca permitiria que Olivia...

– Miss Lytton.

Ele prosseguiu com firmeza.

– Compreende que eu nunca permitiria que Olivia atravessasse o canal da Mancha sem mim. Ela estava tão pálida que o ruge se destacava em manchas sobre as suas faces.

– Este esforço ousado e imprudente é uma perfeita loucura. Os franceses dispararão assim que o virem. E o menino não esteve na água desde que a sua mulher morreu!

Quin fechou um punho.

– É verdade que nunca atravessei a Mancha, mas apenas porque não precisei de ir ao Continente – o tom de voz de Quin escondia o fosso que se abrira no peito só de pensar que iria atravessar a mesma extensão de água que engolira o filho. Um duque nunca deveria ser presa de tal emoção, por isso tentou esquecê-la.

– A morte de Evangeline é irrelevante. Montsurrey precisa de mim; Olivia precisa de mim. E, francamente, minha mãe, não poderia encarar o duque de Canterwick quando ele recuperasse os sentidos, sabendo não ter feito os possíveis por resgatar o filho dele.

A mãe engoliu em seco.

– Canterwick não faria o mesmo por si.

– Tal como a morte de Evangeline, isso é irrelevante. Embarcaremos em Dover e a viagem demorará apenas quatro horas com vento de feição. Espero estar de volta amanhã. Os contrabandistas fazem isto todos os dias, sabe?

– Tenho medo da água – disse a duquesa com a voz tensa como a corda de um violino. – Quase o perdi nela.

Quin acenou afirmativamente; ambos sabiam que havia mais de uma maneira de perder alguém. Pegou na mão da mãe e levou-a aos lábios.

– A senhora educou-me para ser duque, minha mãe. Desgraçaria o meu título se permitisse que um homem do meu nível morresse numa terra estrangeira por causa da minha cobardia.

– Quem me dera tê-lo educado para ser um camponês – desejou a mãe em voz baixa.

– Senhora duquesa – disse ele, fazendo uma profunda reverência que mostrava o profundo respeito que sentia pela mãe.

Ela ergueu o queixo e depois curvou-se também numa reverência.

– Preferia não ter orgulho num filho que caminha para o perigo – declarou com os olhos brilhantes de lágrimas.

– Levo comigo a sua bênção – disse Quin ignorando as palavras dela e respondendo à expressão que lhe lia no olhar. Era uma coisa que estava a aprender com Olivia. Se se concentrasse, podia perceber o que as pessoas sentiam só de olhar atentamente para os olhos delas.

A mãe voltou-se e subiu a escada com os ombros rígidos e a cabeça erguida.


26

Os Perigos da Poesia ao Luar

Eram quase três horas quando saíram do porto de Dover num barco chamado Day Dream, uma escuna com uma pequena cabina logo acima da superfície da água. Olivia estava junto à vigia, a olhar para a água negra que a proa rasgava e que parecia ter para onde ir.

Levamos o barco a remos até uma pequena enseada, se bem a entendo – disse Quin por detrás do ombro de Olivia. Observava um mapa pormenorizado da costa francesa com o sargento Grooper, o soldado que os viera buscar. Embora Grooper tivesse vindo buscar o pai de Rupert.

Pobre Canterwick. Estava como morto. Olivia fora vê-lo antes de partirem e dissera-lhe que ia a França procurar Rupert e trazê-lo para casa. Talvez ele a tivesse ouvido.

– Sim – disse Grooper. – A cabana é mesmo aqui – apontou para uma pequena enseada com o dedo gordo. – Decorei o nome da cidade: Wizard, moveu de novo o dedo.

– Wissant – corrigiu-o Quin. – Creio que significa areia branca.

Olivia apertou mais a capa. Quin interrogara Grooper durante mais de duas horas, extraindo dele o caminho exato pela costa francesa que os homens de Rupert haviam tomado. Estavam numa chalupa, desesperados para não serem capturados. Não houvera qualquer problema até o estado de Rupert se tornar tão precário que começaram a ter medo de prosseguir viagem.

– Ardia em febre – contou Grooper atrás dela. – Dizia coisas sem nexo acerca dos campos verdes e assim. E de uma senhora que deixara em Inglaterra.

Olivia voltou-se e sorriu ao soldado.

– Pode dizer-me se ele perguntou por alguém com o nome de Lucy?

– É isso! Enquanto descíamos a costa era Lucy e mais Lucy – olhou-a. – Estou pensando que talvez a senhora se chame Lucy.

– Não, Mister Grooper, esta é a Lucy. – Apontou para a cadelinha que dormia no cesto a seus pés.

As frondosas sobrancelhas de Grooper quase saltaram.

– É a primeira vez que vi um homem preocupar-se tanto com um cão. Não me importo de lhe dizer. Olivia não julgou necessário prestar qualquer esclarecimento acerca de Rupert e da sua devoção por Lucy, portanto, limitou-se a acenar com a cabeça. Quin inclinava-se sobre o mapa decorando todas as fendas da costa. O casaco justo acentuava a largura dos ombros. Os ossos da face destacavam-se mais do que o habitual. E a madeixa branca do cabelo caía-lhe para a testa.

– O que mais me preocupa é que haja aqui uma guarnição muito perto da cabana – disse Quin, passando o dedo pela enseada onde Rupert poderia ser encontrado. – Viu soldados fazendo exercícios aqui perto?

– Estive aí apenas meia hora – respondeu Grooper. – Não sou homem para me deixar ficar junto à cama de um doente. Parti para Inglaterra assim que o major ficou instalado num catre. Não tínhamos muito tempo – abanou a cabeça. – Ainda vejo o pai dele de cada vez que fecho os olhos, a inclinar-se para o lado e a cair no chão. Deveria ter contado as coisas com mais calma a Sua Senhoria. Mas disse-lhe tudo bruscamente.

– Não foi o senhor – disse Olivia. – Foram as notícias que o perturbaram e não o senhor. Por muito delicado que tivesse sido, o duque pensou poder perder o filho que muito ama.

– Percebi isso – respondeu Grooper. – E não me importo de lhe dizer que todos os homens da companhia sentem o mesmo pelo major. Esperança Perdida, era assim que nos chamavam, porque ninguém esperava que fizéssemos o que quer que fosse – ergueu o queixo. – Éramos os homens que mais ninguém queria, sabia?

Olivia abanou a cabeça.

– Os outros recrutadores do exército não nos aceitaram e fomos deixados para trás, nem sei bem porquê. Pensaram que eu era demasiado velho, embora conheça o campo de batalha tão bem, se não melhor, do que qualquer outro homem. Havia outros que tinham sido feridos em serviço e que foram simplesmente mandados para casa.

Olivia compadeceu-se.

– Para casa? Para casa fazer o quê? Fazer malha? Não se diz a um soldado que vá para casa só por ter perdido uns dedos dos pés ou ter uma perna aleijada.

– Mas o marquês não concordou? – perguntou Olivia.

– A princípio fiquei nervoso. Era certo que ele não pensava como nós. Mas depois percebi como ele era. E, assim que percebi, o teria seguido para toda a parte.

Olivia sorriu.

– Até na subida das muralhas, não é verdade?

– É verdade. Sabe, as outras companhias já o haviam tentado, iam sempre a meio da noite, pensando que surpreendiam os franciús. Mas claro que não os apanhavam desprevenidos. Pois bem, o major disse que as subiríamos ao meio-dia e foi o que fez. Não parecia estar preocupado e, de fato, nenhum de nós o estava.

– É a atitude de um chefe nato – afirmou Quin. Endireitara-se, pusera o mapa de lado e inclinara-se sobre a mesa a ouvir.

Grooper acenou afirmativamente.

– Nessa altura tínhamos já atravessado Portugal até Badajoz e sabíamos que ele era um tipo como devia ser. Nos escutava. Dizia o que pensava e não falava mal de nós – fez uma pausa. – Sabem, era um pensador estranho.

Era uma maneira de definir Rupert, pensou Olivia.

– Então tomaram o forte.

– Foi canja – disse Grooper inchado de orgulho. – Sabem, os franciús estavam todos a almoçar. E quando eles comem... comem. São três pratos, quatro, cinco. Todos, até ao soldado mais baixo. O major sabia. Teve um preceptor francês e sabia como eles eram. E nos explicou de uma maneira que todos compreendemos.

Olivia sorriu. Gostava de pensar que Rupert fora aqui recebido com respeito e não com velado desdém.

– Derrubámos logo umas quantas sentinelas e tomámos o forte. E também não matámos muitos soldados franceses; deixámo-los fugir diretamente da mesa do almoço para San Cristobal. O major não gosta de mortes, a menos que seja para salvar a própria vida.

Olivia sorriu.

– Rupert é assim mesmo.

– O marquês foi ferido na luta? – perguntou Quin.

Grooper abanou a cabeça.

– Foi uma coisa do diabo... com perdão da palavra, minha senhora. Estava tudo bem e segurámos o forte durante três dias, até as forças inglesas poderem vir ter conosco. Mas não pensaram que conseguíssemos, sabe, ainda por cima porque as primeiras tentativas tinham falhado – o desagrado ouvia-se na voz. – Segurámos o forte e fizemos muito bem. Tínhamos todos os franciús na prisão, mas demos-lhes cobertores e muita comida. Porque o major disse que um francês privado de comida luta como uma ratazana encurralada. Certamente que, se estivessem aconchegados e bem alimentados, não se preocupariam muito. Nem tentariam fugir.

– Então o que aconteceu? – perguntou Olivia.

– O major, bem, gostava de caminhar sobre as muralhas à noite – referiu Grooper. – O guarda lá em cima... – Aclarou a garganta. – Bom, disse que o major estava a recitar poesia – a última palavra saiu relutante, como se confessasse que Rupert começara a fumar ópio.

– Recitar poesia não é geralmente considerado uma atividade perigosa – observou Quin.

– Não sou muito dado a poesias – reconheceu Grooper, conseguindo tornar implícito que considerava a poesia como pertencendo à mesma categoria da traição. – O major estava lá em cima nas muralhas, passeando a olhar para a Lua e mergulhou de cabeça.

– Estava a olhar para a Lua?

– Encontrámos um bocado de papel com uns versos acerca da Lua. De qualquer forma, a queda afetou-lhe o cérebro. Não recuperou os sentidos por um dia e pensámos que tivesse ido desta para melhor. Mas depois começou falando dessa Lucy... pensámos que fosse a senhora dele... por isso decidimos que tínhamos de o levar para Inglaterra. O médico de Wellington disse que teríamos de esperar até o major morrer para trazer o corpo.

– Ainda bem que não esperaram – interrompeu Olivia.

– O major não era como os outros comandantes – preocupava-se de fato conosco. – Grooper falava em voz um pouco rouca. – Colocámo-lo numa carroça e levámo-lo para a praia, depois apanhámos uma chalupa e trouxemo-lo para a costa norte de França, o que foi canja. E teríamos seguido para Inglaterra, só que pensámos que poderia ficar pior com o balanço das ondas. Podia magoar mais a cabeça.

Olivia pousou a mão na manga de Grooper.

– Fez o que tinha fazendo. Talvez o senhor duque não lhe tenha dito isto antes de desfalecer, mas está-lhe tremendamente grato, tal como eu.

– Não sei se o teríamos feito, se soubéssemos que Lucy é um cão – disse o sargento olhando para as mãos.

– Nesse caso, ainda bem que teve a ideia.

– Devemos estar perto da costa – disse Quin, interrompendo a conversa. – Olivia, espere aqui com o sargento Grooper – parecia pensar ser ele a ter a última palavra neste caso. – O capitão vai lançar a âncora e eu descerei o barco a remos para ir buscar o marquês.

– Não – disse Olivia mantendo a voz calma. – Tenciono ir também no barco a remos.

– Peço-lhe que não o faça.

– Não vim até aqui para ficar sentada ao largo. Se Rupert estiver vivo, pode não estar capaz de se aventurar a uma viagem num barco a remos, tal como o calcularam Grooper e os seus colegas soldados.

– Quando discutimos pela primeira vez esta possibilidade, não nos apercebemos que havia uma guarnição de soldados franceses muito próximo da cabana. Tenho grandes dúvidas de que Rupert e os dois homens que se mantiveram a seu lado estejam ainda em liberdade.

Olivia apertou os lábios para que não tremessem.

– É verdade que Rupert não é uma pessoa com muita sorte.

– Tenho a certeza de que podemos recuperar o seu corpo se pagarmos o suficiente aos franceses – disse Quin sem rodeios. – Levamo-lo para Inglaterra para ser enterrado com honras como pertence à sua posição e aos seus feitos. Mas não terá necessidade de arriscar a sua vida nesta aventura, Olivia. Eu levarei Rupert para casa – na sua voz havia uma intensidade que transformava as suas palavras numa promessa.

Olivia sentia as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. Excetuando o pai, Rupert nunca tivera quem o defendesse. E agora tinha aquele duque magnífico e descomprometido. Tinha a certeza de que Quin nunca permitiria o mais leve insulto ao seu antigo rival.

– Rupert se sentiria honrado em conhecê-lo – assegurou ela com a voz entrecortada, apesar dos esforços. – E eu irei consigo no barco a remos.

– Não!

– Se não permitir que o acompanhe, irei ter consigo poucos momentos após atacar o pobre Grooper e nadar até à praia.

– Não há necessidade disso – disse Grooper, que parecia divertido com a escaramuça. – Que nunca digam que eu me meti entre um casal.

– Não somos casados – explicou Quin, com os olhos fixos em Olivia.

Grooper abanou a cabeça.

– E eu que pensava que a nobreza não tinha os mesmos costumes livres que o resto das pessoas. Não há dúvida que discutem como se já tivessem passado pela igreja.

– Sou uma excelente nadadora – insistiu Olivia, ignorando os comentários pouco proveitosos do sargento. Tentava afirmar-se, mas no momento em que as palavras lhe saíram da boca e viu a centelha de dor nos olhos de Quin, percebeu de que cometera um erro terrível.

Imediatamente se colocou ao lado dele e lhe passou um braço pela cintura.

– Não saltarei para a água. Prometo que não – tocou com os lábios nos dele. – Se Rupert estiver vivo, tenho de estar com ele. Ele há de reconhecer-me; nunca o viu a si.

– Levo comigo a Lucy.

Olivia sabia que, lá no fundo, teria de fazer o que desejava.

– Não pode tomar esta decisão por mim.

– Não será seguro para si – Quin falava em voz entrecortada, aflita.

Sem ser notado, Grooper subiu os degraus do convés, fechando a porta atrás de si.

– Não pode garantir a minha segurança – disse Olivia aproximando-se para sentir o peito dele de encontro ao seu. – Nem eu posso garantir a sua.

– Que diabo, Olivia, esses idiotas meteram Rupert numa cabana nas barbas de toda uma guarnição de soldados franceses. Se eles a capturarem... não.

– Não me capturam – disse ela, sentindo a agonia cortante do olhar dele cortar o coração. – Não cheguei até aqui a França para ficar simplesmente à espera no Day Dream. – Depois teve uma inspiração. – Não me vão capturar porque estarei consigo.

– Comigo – resmungou Quin, apertando o maxilar.

– Quero ficar consigo. Não só estarei em segurança, como não poderia suportar a tensão de não saber o que se passava consigo – sentiu remorsos de o manipular. – E se esses soldados avistam o Day Dream?

– Não avistam – disse ele. – Vamos fundear ao largo e apagar a lanterna.

Mas os olhos dele procuravam-lhe o rosto. Estava a escutá-la.

– Não posso deixá-lo morrer só – colocava na voz toda a sua força de vontade.

– Minha querida – Quin passou-lhe suavemente o polegar pela linha do lábio inferior. – Rupert está morto. Estou tentando imaginar como trazer o seu corpo até à enseada sem alertar os soldados. E se por alguma possibilidade remota estiver vivo, terei a Lucy comigo. Decerto será suficiente para as apresentações.

– Não! – Olivia nunca pensara que alguém como Quin pudesse amá-la. Mesmo assim, sabia instintivamente que ele teria, mas teria mesmo, de a respeitar. Teria de confiar nela, mesmo que o seu instinto o recusasse. – O pai dele não está. Sou a única pessoa no mundo que se preocupa com ele, Quin. A única. Tenho de ir ter com ele – olhou-o nos olhos. – A minha segurança pessoal é secundária.

É uma questão de ética.

Houve um momento de tensão e silêncio.

– Tem razão – disse Quin por fim relutante.

Ela prendeu a respiração.

Quin abraçou-a.

– É mesmo seu.

– Que quer dizer com isso? – perguntou ela num murmúrio.

– Ama a sua irmã o suficiente para desistir de mim. Ama Rupert, aquele pobre tonto. Ama Lucy com a pálpebra mordida. Até ama os seus pais que tanta falta de bom senso demonstraram ter.

Ela aclarou a garganta.

– Omitiu uma pessoa nessa lista.

– É a pessoa mais leal que conheço, Olivia. Nunca trairia os segredos de Rupert; nunca roubaria um homem que a sua irmã quisesse. Por isso, percebo que não poderia viver consigo própria se não se esforçasse por ficar ao lado de Rupert.

Olivia abriu a boca para dizer qualquer coisa acerca do amor, qualquer coisa acerca de como amava o homem complicado, duro e ao mesmo tempo fascinante que tinha diante de si, mas ouviu-se o ruído de uma queda na água, seguida do som de uma âncora a ser lançada o mais cuidadosamente possível.

– Muito bem – disse Quin muito sério. – Não me agrada, mas compreendo.

Olivia pôs-se em bicos de pés para lhe dar mais um leve beijo nos lábios.

– Amo-te.

As mãos de Quin apertaram-lhe os braços e ele beijou-a. Nada disse, mas não tinha importância. Olivia compreendia o amor como qualquer outra mulher e quando um homem olhava para uma mulher com desejo, posse e carinho ao mesmo tempo... é porque a ama, quer o diga ou não.

Olivia sorriu.

– O barco a remos está à nossa espera. Vamos então.


27

E Um Longo Caminho antes de Ir Dormir 6

No convés, a primeira coisa de que Quin se apercebeu foi que o barco a remos era demasiado pequeno, pouco maior do que a sua banheira. Mal aguentaria com o seu peso, muito menos com o seu e o de Olivia. E certamente seria impossível trazer nele uma terceira pessoa, morta ou viva. O capitão do Day Dream inclinou-se e falou em voz baixa.

– É o único que temos com os remos camuflados. Atravessa a água com menos ruído que um homem a urinar numa poça de água. Não há melhor para quem precisa de chegar à praia sem se fazer notar.

O homem tinha toda a aparência de ser contrabandista. Quin fez uma pausa, depois acenou com a cabeça, soltando conscientemente a tensão do maxilar. Se sobrevivessem às horas mais próximas, não desejava ir-se abaixo como o pai de Rupert; já reparara no efeito extremamente pernicioso que a tensão exercia no corpo humano.

Seria absurdo haver dois duques mortos, ambos noivos de Olivia e nenhum com um herdeiro vivo. Baixou cuidadosamente da escuna para o barquinho e estendeu a mão a Olivia a quem o capitão ajudava a descer. Tiveram de se sentar com as pernas dobradas, joelhos contra joelhos e Lucy aconchegada nos braços de Olivia. A centelha de desejo que sempre sentia com o toque dela, geralmente tão emocionante, irritava-o agora, estimulando a já subjacente sensação de pânico.

Mas fez deslizar os remos camuflados para a água e, na verdade, o barco fazia menos ruído do que uma cana ao vento. Viam-se rochas a bombordo e, a pouca distância, uma mancha de areia brilhava ao luar.

Calculou mentalmente o local exato em que a enseada entrava no mar e com grande satisfação avistou um local escuro, onde previra que ele se encontrasse.

Algures um maçarico-real cantou um hino noturno, com as notas a acompanhar o som suave das ondas. Os olhos de Olivia brilhavam.

– Adoro o cheiro do mar – murmurou, a sua voz não mais que um fio de som dentro da noite.

Na verdade, a água não cheirava como aquela entidade terrível que lhe engolira e roubara o filho. Cheirava a sal e a algas e recordava-lhe a infância quando todas as características físicas do mundo eram um mistério a aguardar solução.

Mais adiante uma breve faísca iluminou a escuridão, levemente ao lado da enseada. Quin tocou no joelho de Olivia e apontou.

– Rupert?

– A guarnição – virou a bombordo, dirigindo-se diretamente para a sombra escura que assinalava a boca da enseada.

Talvez tivessem sorte... entrassem e saíssem como uma raposa.

Depois o barquinho deslizou pela pequena enseada que estava cheia de ramos, tal como Grooper descrevera. Quin continuava pensando em como poderiam retirar-se os três pela enseada, tendo em conta o tamanho do barco. Não seria possível.

Teria de levar primeiro Olivia ao Day Dream, para que ficassem a bordo em segurança, e depois regressar para ir buscar o cadáver de Rupert.

O barco deslizava como um fantasma pela água e a corrente inclinava-se lentamente e de novo para a direita. Um segundo depois estavam na praia. Quin saiu do barco, empurrou-o para terra e veio rapidamente ajudar Olivia e Lucy.

Abraçou-a por um momento.

– Não te quero aqui – murmurou.

– Vamos – disse ela quase ao ouvido.

Quin deu-lhe a mão. Era terrível gostar de alguém. Como fora possível ter-se esquecido? Dantes preocupava-se sempre que Alfie estava doente. A ansiedade era cansativa.

Subiram a margem e voltaram à esquerda. Na sua imaginação, Quin seguia o dedo de Grooper no mapa, traduzindo as distâncias em passos. As suas capacidades matemáticas estavam a ser muito úteis nesta situação.

Avançaram em silêncio, sentindo mais o caminho do que vendo-o; algum tempo depois, a escura parede exterior de uma cabana surgiu precisamente onde esperavam. Quin colocou uma mão no ombro de Olivia e apertou numa mensagem muda. Ela acenou afirmativamente, com os olhos enormes à luz do luar.

Quin seguiu a parede da cabana, voltou a esquina e empurrou suavemente a porta. Sentiu um breve movimento no interior e murmurou imediatamente:

– Deus salve o rei.

A porta abriu-se para dentro. Quin penetrou na escuridão total e esperou que a porta se fechasse atrás de si. Depois acendeu-se uma lanterna e a chama trêmula iluminou o rosto de dois exaustos soldados ingleses.

– Graças a Deus que chegou – murmurou um deles.

– Ele está vivo?

Um aceno de cabeça.

– Mas muito mal.

– Os vossos nomes?

– Togs – outro aceno. – E ele é Paisley.

Quin apontou para a lanterna. Apagaram-na de novo e ele saiu para logo voltar com Olivia, segurando-lhe a mão quente.

Quando acenderam de novo a lanterna, a luz incidiu sobre as superfícies planas do rosto dela, sobre as madeixas de cabelo que lhe escapavam por baixo do capuz, pela linha generosa do seu lábio inferior.

– Lucy! – Tog soltou uma exclamação abafada e cheia de significado. Achavam-na digna do risco que as suas vidas haviam corrido. Quin percebeu-o nos olhos dos dois homens e um gemido mudo subiu-lhe na garganta, sobressaltando-o.

Olivia abanou a cabeça, abriu a capa e colocou a cadelinha de Rupert no chão. Sorriu para os rostos admirados e apontou.

– Esta é a Lucy.

– E o marquês? – perguntou Quin.

Deixara de pensar em cadáveres e fazia agora cálculos desesperados, perguntando a si próprio como seria possível meter Olivia e Rupert, gravemente ferido, no barco a remos. Ficar para trás estava fora de questão; Olivia nunca poderia remar sozinha para chegar ao Day Dream. Teria de levar primeiro um e depois voltar para vir buscar o outro – o que significava ter sempre de abandonar um durante algum tempo.

Togs sacudiu a cabeça e correu a cortina grosseira que tapava o canto para revelar a pequena figura deitado num colchão no chão.

Olivia correu para lá e caiu de joelhos no chão. Lucy já lá estava, farejando a face do dono agitando nervosa a fina cauda.

Pegou na mão de Rupert. Era estranho perceber como os dedos dele eram longos e delicados. Nada como a mão forte de Quin, mas eram belos à sua maneira.

Inclinou-se e chamou.

– Rupert! – ele não se mexeu.

Lucy encostava-se a Olivia a tremer e, depois, saltou de repente, aterrando no peito de Rupert. Olivia estendeu a mão para a retirar, mas a cadela lambia a face, o nariz e as pálpebras.

– Rupert – disse então Olivia em voz baixa e urgente. – Trouxe-lhe a Lucy. É a Lucy.

As pálpebras de Rupert tremeram. Ela acariciou a mão com mais força e olhou para Quin.

– Está acordando! – murmurou.

Lucy continuava a lamber Rupert, banhando a face e a orelha com a língua. Ele abriu a boca e pronunciou um nome em voz baixa.

– Lucy.

Olivia inclinou-se mais.

– Rupert, sou eu, Olivia. Eu e a Lucy viemos buscá-lo para o levar para casa.

Por uns segundos, ele nada disse. Depois os olhos dele concentraram-se no focinho pontiagudo de Lucy e nos seus olhos brilhantes. Esboçou um trémulo sorriso nos seus lábios exangues. Depois olhou para Olivia.

– Sabia que viria.

Falava em tom arrastado. Com um nó no estômago, Olivia percebeu de que um fio de sangue lhe escorria de um ouvido.

Abafou um soluço na garganta. Não parecia poder viver muito mais.

Sentiu as mãos de Quin apertarem-lhe os ombros. Ele acocorou-se ao lado do catre.

– Lorde Mont... Ela abanou a cabeça.

Quin falou de novo, em voz calma e profunda.

– Rupert, viemos buscá-lo para o levar para casa. Os olhos de Rupert afastaram-se de Lucy.

– Quem...?

– Chamo-me Quin.

– Ah. – Tinha os olhos quase fechados. – Um longo caminho a percorrer.

– Sim – concordou Quin.

Leu a verdade no rosto de Rupert, mesmo antes de ele poder falar.

– Um longo caminho...

A mão de Olivia fechou-se no pulso de Quin.

– Temos de o levar para o barco. Já. Do contrário... vai morrer aqui, nesta enxovia.

Rupert não parecia ter a vontade indomável que conduzira uma companhia de cem soldados a invadir as muralhas de uma fortaleza. No seu rosto havia uma espécie de aceitação que falava por si própria. Quin pensou que ele morreria em breve.

– Não poderemos ficar aqui mais do que umas horas – disse.

– Os franciús quase nos apanharam esta manhã – contou Togs. – Ouvimo-los... estavam quase a entrar na cabana, mas um dos cães assustou um pato e preferiram ir atrás do almoço. Não tínhamos barco porque mandámos Grooper nele.

Quin franziu a testa, olhando para o silencioso Paisley.

– Ele não fala – disse Togs. – Nem uma única palavra. É o melhor marinheiro de todos nós. Trouxe o barco até aqui, mas não pôde ir buscá-lo porque não fala. O major disse que para ele não fazia diferença, desde que soubesse pegar numa arma como devia ser.

O homem silencioso acenou com a cabeça.

– Ficaram ambos com ele – disse Olivia, a sorrir apesar do medo, olhando os rostos exaustos dos homens.

– É o nosso comandante – disse Togs e Paisley acenou, comovido.

Eram homens bons. Quin teria também de os tirar dali, antes que, de manhã, os franceses dessem mais uma vez com a cabana e decidissem explorar.

A tensão aumentava no peito de Quin. Rupert estava perto da morte e os dois soldados estavam exaustos a ponto de desmaiarem. Apostava que quase nada teriam comido nos últimos dias.

Acocorou-se, suficientemente próximo para se aperceber do aroma quente e floral de Olivia e disse calmamente:

– Tenho de te deixar aqui por algum tempo, minha querida.

Ela voltou o rosto e os seus lábios tocaram os dele, doces e arrebatados.

– Era exatamente isso que estava pensando.

– Venho buscar-te, provavelmente, dentro de uma hora.

Quin percebeu que Rupert abrira de novo os olhos e que os observava.

– Está... feliz – as palavras flutuavam no ar. Quin teve de aclarar a voz.

– Vou levá-lo para o barco – passou a mão por baixo do tronco de Rupert e descobriu que praticamente nada pesava.

– Leve a Lucy – murmurou a Olivia.

Olivia retirou a cadelinha do peito de Rupert, mas deteve Quin antes que este pegasse no ferido. Rupert parecia muito doente e muito jovem. Nem parecia ter dezesseis anos, quanto mais dezoito.

– Conseguiu, Rupert – murmurou Olivia inclinando-se mais. – O seu pai está tão feliz e tão orgulhoso de si. Coroou de glória o nome dos Canterwick. – Mesmo com tão pouca luz, conseguiu ler-lhe um fraco sorriso nos olhos, um sorriso cansado. – E é um poeta maravilhoso – disse ela, acariciando o rosto com a mão. – Tem de curar-se, para que possa escrever mais poesia.

Ele abanou levemente a cabeça.

A verdade lia-se no rosto. Olivia tinha os olhos rasos de lágrimas.

– Então voe, Rupert. Seja livre. Deixa toda a escuridão para nós.

Lá estava de novo o sorriso. Rupert voltou ligeiramente a cabeça, tocou-lhe na mão com os lábios e fechou os olhos.

Olivia ficou imóvel por um momento e deixou cair uma lágrima no cobertor grosseiro. Depois, Quin acariciou o cabelo e ela levantou-se.

Esperou até que Quin se erguesse com Rupert nos braços.

– Se ele morrer – disse ela –, não pode deixá-lo. Ele não pode morrer naquele barco, apenas com Grooper à cabeceira. Está ouvindo?

A voz dela mal se ouvia acima do grito de um pássaro, contudo, ele percebeu todas as palavras.

– Não, Olivia! – implorava e protestava ao mesmo tempo.

– A patrulha francesa vem de manhã – disse ela. – Só de manhã – olhou para o rosto de Rupert.

Tinha razão. Rupert, provavelmente, não viveria até de manhã, mas se esperassem na cabana... havia homens que levavam a morrer mais do que as horas até de madrugada. E se fosse esse o caso, seriam todos apanhados.

Olivia entregou a Quin a trela de Lucy e enrolou no pulso. Lá fora a noite era ainda muito escura sem vestígios de madrugada no ar. Quin teria tempo de remar pela pequena enseada, chegar ao Day Dream a tempo de fazer com que Rupert ficasse confortável... tinha tempo.

Quando se instalaram no barco a remos, operação que requereu grande subtileza, dadas as diminutas proporções do barco, Rupert deixou de respirar.

Lucy soltou um pequeno ganido e lambeu a face; o peito de Rupert agitou-se de novo.

Quin manobrou os remos, mas tinha de ficar em silêncio, em silêncio... não podia remar com força, de contrário os remos bateriam na água e fariam ruído.

Quando por fim chegou ao Day Dream, Grooper esperava-o junto à amurada. Com o soldado a içá-lo lá de cima foi rápido levar Rupert para bordo, mas ao ver o seu adorado major inconsciente, os olhos de Grooper abriram-se mais. Era um homem de ação, o homem que atravessara a Mancha para avisar a família de Rupert, mas não era pessoa que suportasse ver os outros a sofrer.

Conseguiram meter Rupert na cama e Quin cobriu-o com um cobertor e colocou Lucy a seu lado.

A viagem desde a cabana, embora muito curta, fora muito difícil e Quin apercebia-se de que para Rupert fora atroz. O seu rosto parecia cada mais abatido e a respiração era a respiração breve de um homem no limite da sua tolerância. Agarrava o pelo de Lucy com os dedos apertados.

– Brande – gritou Quin, mas percebeu de que Grooper, tendo esgotado as suas capacidades, fugira para o convés. Abriu um armário de onde arrancou uma garrafa que era afinal o melhor conhaque francês a que até os duques só de vez em quando tinham acesso. Oh, nada como um contrabandista.

Voltou e colocou umas gotas de brande na boca de Rupert. O marquês soltou uma exclamação sufocada e abriu os olhos.

Uma sensação de impotência sua conhecida apertou o coração de Quin. Sabia que deveria dizer alguma coisa, mas não tinha ideia do que poderia ser. Era como se tivesse de novo Evangeline na sua frente, quando esta o acusava de não passar de um insensível bocado de madeira e ele não fazia a mínima ideia do que ela queria dele.

Provavelmente, Rupert gostaria de ouvir poesia – mas Quin não sabia poemas. Os seus preceptores nunca se haviam incomodado com tal coisa. Sentia-se terrivelmente frustrado. Se, ao menos, Rupert quisesse informações acerca de padrões de ondas...

– Quem... – os olhos de Rupert observavam-no, confuso.

– Sou amigo de Olivia – recordou-lhe Quin. – Trouxemos a Lucy para o ver e vamos levá-lo para casa do seu pai, para Inglaterra.

Os dedos de Rupert enrolaram as orelhas de Lucy e deram-lhe um pequeno puxão. Lucy farejou a mão.

– É um longo caminho – disse ele.

Quin concordou silenciosamente. O que se deveria dizer a uma pessoa que estava a morrer? Um salmo, talvez, só que não se lembrava de nenhum.

– Dormir – disse Rupert, fechando de novo os olhos.

De repente, e sem saber como, lembrou-se do poema de Rupert como se Olivia lhe tivesse recitado momentos antes. Antes que o esquecesse, disse-o em voz alta:

– Esperto, luminoso, um pássaro cai junto a nós, a escuridão amontoa-se nas árvores.

Naquele contexto não fazia sentido, mas repetiu-o, mais lentamente.

O rosto de Rupert iluminou-se e disse qualquer coisa, tão baixo, que Quin quase não ouviu.

– E voam... – um longo silêncio. A respiração parou. Mas recomeçou.

Quin olhou desesperado para a vigia. Não havia ainda sinais da madrugada. Sabia o que diria Olivia. Sabia o que ela queria. Sabia...

O peito de Rupert deixou mais uma vez de se mexer. Depois respirou de novo, com um pequeno gemido sufocado.

Quin sentou-se, segurando com força na mão do homem que lhe oferecia Olivia, que escrevera um poema que falava da morte de Alfie e que voava com os pardais caídos das árvores.

E, durante todo este tempo, a pessoa que lhe era mais querida estava numa praia estrangeira, sem ele, guardada apenas por dois soldados exaustos e trémulos.

Que diabo, mas ele devia amá-la para...

O pensamento foi como um trovão dentro da sua cabeça. Ficou imóvel ao ver que Rupert deixara de novo de respirar, mas já antes o fizera... Amor?

Quando ainda era pequeno, a mãe dissera-lhe que o amor... o que dissera ela acerca do amor?

Que era perigoso e não para as pessoas do nível deles. Que era impulsivo e um sinal de que as pessoas eram tolas e mal-educadas.

Mas... quando lhe dissera que ele era incapaz de amar?

Amava Olivia mais do que a própria vida, mais do que a luz, mais do que... tudo.

A parte analítica do seu cérebro que estivera a contar em silêncio, falou, sugerindo que o pássaro voava, abrindo caminho num outro céu, num céu silencioso.

Quin olhou para baixo e viu que era verdade.

Rupert partira. Quin libertou suavemente a sua mão e aconchegou mais o lençol de Rupert.

Lucy enrolou-se junto ao corpo do dono. Ergueu o longo focinho e olhou para Quin, ganindo um pouco. Ele não podia arranjar Rupert como ela lhe estava a pedir, mas também não lhe parecia certo deixá-la junto ao dono morto. Por isso, agarrou-a, meteu-a debaixo do casaco e subiu as escadas a correr.

Uma vez na água, atirou-se aos remos, mais depressa do que devia, fazendo-os bater na água, descrevendo arcos...

Tinha tempo. Ainda tinha tempo. O seu coração repetia vezes sem conta a mesma frase. O céu a oriente nem sequer estava rosado. Não era ainda madrugada. Tinha tempo.

Tentou abrandar, aquietar os remos... não conseguia deter-se, remava o mais depressa possível. Mesmo assim estava atrasado.

6Verso de um poema de Robert Frost acerca de promessas a cumprir. (N. da T.)


28

Uma Putain, Duas Putains...

Depois de Quin partir, Olivia esperou fora da cabana, com a capa bem apertada e o capuz na cabeça, a cabeça encostada às tábuas. Soprava um leve vento que trazia consigo o cheiro a peixe podre e o perfume apimentado e doce de morangos esmagados.

As estrelas pareciam demasiado brilhantes para a primavera. Deveriam apenas ser tão distintas e claras nas mais frias noites de inverno. Os minutos passavam... até que por fim percebeu que Quin não voltara diretamente, mas que ficara à espera à cabeceira de Rupert.

As estrelas cintilavam sobre ele, mas não derramou lágrimas, o que, para ela, era uma questão de orgulho. Nada de lágrimas. Para se distrair começou à procura de uma estrela cadente, embora soubesse tratar-se de uma tola superstição pensar que indicava a criação de um anjo.

E mantinha-se atenta ao ruído das botas dos soldados ou a um chorrilho de graçolas em francês. Os homens que haviam cuidado de Rupert tinham adormecido no chão dizendo-lhe que os acordasse se ouvisse alguma coisa.

– O batalhão marcha sempre à mesma hora todas as manhãs – dissera-lhe Togs com a voz rouca do alívio de ter entregado a outra pessoa os cuidados de Rupert. – Ainda faltam muitas horas.

As estrelas não caíram, mas continuava à procura delas quando uma mão lhe tapou a boca e a puxou para dentro do bosque. Ficou demasiado surpreendida para poder gritar.

Não era de madrugada! Nem se via ainda o mínimo raio de luz, também não ouvira as garçolas francesas, nem o bater das botas a avisá-la.

Quando se recompôs e começou a reagir era demasiado tarde. Com um movimento rápido foi empurrada para o chão e caiu de bruços. Tantos anos de lições de francês tinham-na posto em forma.

– Aidez-moi! – gritou logo que a mão lhe destapou a boca. – Lâchez-moi immédiatemment! Coquin! Vermines! – A única resposta foi um lenço malcheiroso tão apertado na boca que lhe puxava a cabeça para trás.

Ainda a gritar, embora os gritos fossem abafados, Olivia voltou-se, tentando dar um pontapé ao homem que a prendia ao chão. Mas o seu captor atou-lhe rapidamente uma corda aos pulsos, levantou-a e empurrou-a rudemente.

– Allez! – A palavra soou como que uma pedra enorme a partir um vidro. Depois uma pancada entre os ombros obrigou-a a avançar. – Avance!

Olivia seguiu, dizendo para consigo que Quin chegaria de um momento para o outro, que os soldados ingleses acordariam para dar pela sua falta. Avistou um bocado da manga da camisa do homem que a empurrava. Era azul e estava rasgada, parecendo o tipo de camisas grossas que se lembrava de ver nos pescadores da Bretanha quando lá fora em pequena. Não era a farda de um soldado. O coração batia-lhe tão acelerado que o sentia pulsar nos ouvidos.

Quando saíram do bosque, o céu já se iluminava a oriente. Continuaram a andar, através dos arbustos, o cheiro do mar pungente no vento. Olivia tentou morder o lenço para tentar livrar-se dele, mas em vão. Tropeçava intencionalmente para tentar demorar-se mais, mas o homem limitava-se a endireitá-la e batia-lhe nas costas com uma coisa dura.

Aquelas pancadas violentas provocavam-lhe dores nas costas e, pela primeira vez, sentiu-se de fato assustada. Um batalhão de soldados franceses era uma coisa. Certamente não machucariam uma mulher, mesmo inglesa. E se este bruto pertencesse a um grupo de contrabandistas? Ou de piratas? Ou de vulgares criminosos?

Todas as possibilidades eram desagradáveis.

Seguiam a linha da costa e as suas curvas quando o homem subitamente a conduziu para um pequeno trilho que levava ao interior, por cima das falésias. As saias de Olivia prenderam-se num forte espinheiro e ela deteve-se pensando que o homem a ajudaria a soltar-se. Mas, pelo contrário, empurrou-a de novo com o objeto duro, obrigando-a a cair para a frente e a saia desprendeu-se com o som de um rasgão. Olivia sentia agora as costas em fogo.

Tinha os olhos cheios de lágrimas, mas, se não chorara a morte de Rupert, ou pouco a chorara, a última coisa que a faria desperdiçar lágrimas seria aquela situação ridícula. Não era perigosa, disse para consigo; era, isso sim, ridícula. Quin a salvaria assim que desse pela sua falta.

O importante agora é que Quin estava com Rupert.

Além do mais, Rupert já não estava naquela cabana mal-cheirosa, mas numa cama como devia ser, no Day Dream com Quin. Se havia pessoa que desejava que acompanhasse no leito de morte era Quin, com os seus olhos sinceros e o som tranquilizador da sua voz.

Depois daquilo que lhe pareceram horas, saíram dos arbustos e entraram num pátio de gravilha no extremo oposto do qual se encontrava um edifício de pedra, de dois andares, rodeado por um muro. Havia uma sentinela no portão.

– Quem vem lá – perguntou sem grande interesse.

De repente, Olivia sentiu-se muito calma. Pelo menos, agora perceberia o que estava acontecendo. Tinham chegado a um lado qualquer.

– Uma putain que usava a cabana do Père Blanchard – o seu captor falava em voz átona e desferiu violento empurrão em direção ao portão.

Olivia quase caiu aos pés da sentinela. O soldado era magro e tinha um ar enfastiado, com um bigode tão farfalhudo que parecia que no seu rosto tinham crescido asas.

– Não sou uma putain – exclamou ela, com a voz estrangulado pelo lenço. Olivia tinha quase a certeza de que putain queria dizer rameira ou mulher da noite. Fosse como fosse, tinha a certeza de que não era uma coisa agradável.

A sentinela semicerrou os olhos e a seguir fitou o homem que estava atrás de Olivia.

– De que serve trazê-la para aqui? – perguntou. – Manda-a de volta para a aldeia.

– Ela não é de cá, por isso não pode ser. Não a conheço – Olivia ergueu o queixo e lançou à sentinela um olhar furibundo, para que mandasse que lhe tirassem o lenço da boca e assim poder falar.

– É bonita – disse ele, sem reparar no olhar, provavelmente porque estava muito ocupado a olhar-lhe para o peito. – Tira a capa, Bessette.

Com um puxão a capa desapareceu dos ombros de Olivia.

– Gorda como uma perdiz – disse a sentinela com um sorriso cheio de dentes. – Vende os seus préstimos, madame?

Olivia abanou a cabeça furiosa.

– Mais uma esposa desobediente – puxou o bigode até o rosto parecer desequilibrado. – Onde vai parar o mundo. Le Capitaine ou Madame Fantomas?

– Madame. Não precisamos incomodar Le Capitaine com esta. Pensa que conseguimos vinte francos do marido para que ele a recupere? Vês a capa? Tem um belo forro e está muito bem feita.

– Talvez seja da petit bourgeoisie. A madame decidirá. Tira-lhe o lenço da boca, Bessette. Tenho de garantir que não se trata de uma espiã. Le Capitaine quereria saber. Bessette soltou uma exclamação de desprezo.

– Le Capitaine está conservado em brande e não saberia que fazer com uma espiã, mesmo que a tivesse na frente. Esta não é espiã. Estava encostada à cabana do Père Blanchard, fresca como uma alface, à espera de alguém. Sabe que só há uma razão para uma mulher lá ir.

– Devíamos queimar essa cabana – disse a sentinela, puxando de novo pelo bigode.

Bessette começou a tirar-lhe o lenço e Olivia preparou um chorrilho de francês vitriólico, mas o guarda acenou com a mão.

– Leva-a à Madame Fantomas. Lembra-te de que recebemos excelentes presuntos quando encontrámos a mulher do carniceiro, dobrada sobre o balcão do farmacêutico, lembra-te? Diz à madame que queremos a nossa parte como é habitual.

Olivia sentiu vontade de gritar de raiva.

– Esta madame é violenta – acrescentou a sentinela, olhando-a finalmente nos olhos e recuando um passo. – Leva-a, Bessette, não podem ver-me de conversa com uma rameira. A minha mulher pode saber.

– E a sua senhora não é boa de assoar – disse Bessette com um riso rouco. – Principalmente se lhe contarem como esta é, só ancas e peitos, mesmo como um homem gosta.

– É verdade – respondeu a sentinela, demorando o olhar nos seios de Olivia. – Será melhor não lhe bateres assim, Bessette. O marido atira-se a você se lhe vir nódoas negras.

Bessette soltou uma exclamação de desprezo.

– Depois de saber onde eu a encontrei, isso é que era bom.

Entrando pelo portão, em vez de subirem os degraus da entrada, voltaram à direita. Olivia foi forçada a baixar a cabeça quando desceram um lanço de degraus de pedra úmidos e fundos que chegavam diretamente a uma cozinha enorme.

Chamar antiquada à cozinha, seria fazer-lhe um elogio. Era primitiva. O aposento parecia escavado na pedra, com algumas tentativas para alisar as paredes. Tinham sido abertos dois buracos usados como lareiras, aparentemente com ventilação para o exterior.

Mas cheirava a cozinha: havia frangos nos espetos e um aroma a farinha e fermento no ar. Quatro ou cinco jovens vestindo fardas em vários estádios de desmazelo, voltavam os espetos, afiavam facas ou lavavam batatas. No meio do aposento havia uma mesa comprida sobre a qual uma mulher amassava com feroz energia.

Pela primeira vez desde que fora raptada, Olivia deixou de torcer os pulsos numa vã tentativa de se soltar da corda que os atava e olhou à sua volta. Madame Fantomas – porque devia ser ela – era como um circo incorporado numa pessoa: uma mulher enorme com ar de pirata. Tinha o cabelo negro puxado para cima da cabeça num penteado semelhante a uma fonte, por cima de umas sobrancelhas em arco e uma boca pintada com carmim. Usava um vestido decotado e sobre ele um avental salpicado de sangue com todo o conjunto polvilhado de farinha. Penduradas ao pescoço, por cima do vestido e do avental, trazia vários colares de contas: turquesas enormes, fios de ouro e até uma cruz. Eram colares como Olivia nunca havia visto.

Madame amassava um enorme bocado de massa, dobrando os músculos poderosos quando estendia, enrolava e dobrava a massa. Depois, afastava-a para o lado e estendia a mão para um copo de vinho tinto que tinha a seu lado, fazendo tilintar os anéis no vidro do copo. Tinha todos os dedos enfeitados com anéis, em número suficiente para pendurar todo o reposteiro de uma cama. Os olhos pareciam-se com os de um ganso que Olivia vira uma vez fugir e picar um padeiro. Olhos de louca.

– Trouxe-lhe uma putain – disse Monsieur Bessette, atrás do ombro de Olivia. – Encontrei-a na cabana do Père Blanchard à espera do homem.

– Putain uma fava – exclamou a madame com ar de desprezo. – Tira-lhe essa coisa da boca, idiota. Apanhaste uma dama da sociedade... e de nacionalidade ainda por determinar – sem afastar os olhos de Olivia, puxou um bocado de massa crua e comeu-a. – Talvez ande à procura de marido, mas parece-me que é uma trés-coquette, que se quis divertir um bocado.

Bessette não se preocupou em desatar o lenço; limitou-se a puxá-lo pela cabeça de Olivia.

Houve um segundo de silêncio, depois duas coisas aconteceram ao mesmo tempo: Olivia soltou uma violenta enfiada de frases em francês, um comentário acerca de Bessette, juntamente com a ilegalidade do rapto em geral, enquanto Madame Fantomas girava sobre si mesma e berrava: – Isto sabe a comida de porcos.

E assim dizendo, pegou no enorme monte de massa mole e atirou-o à parede da cozinha.

Olivia interrompeu o discurso A massa bateu na parede e escorreu até ao chão de tijolos irregulares.

– Deem de comer à putain! – ordenou a madame, mas todos ficaram a olhar. – Já!

– Não sou uma putain! – gritou Olivia apercebendo-se de que teria de fazer tanto barulho como a madame se quisesse ser ouvida. – Estava apenas à espera do regresso do meu noivo. E não quero comer nada.

– Pode não ser uma putain, mas é uma idiota com sotaque inglês – disse a madame servindo-se de mais um gole. – Que diabo faz uma mulher inglesa na cabana do Père Blanchard? Será então uma espiã?

– Certamente que não!

– Ainda bem, porque aqui não há nada que espiar senão um capitão bêbado e um grupo de rapazes franceses com uns tomates tão pequenos que nem seguram as calças – apontou para os rapazes que voltavam os espetos.

– Não sou espiã – declarou Olivia. – Exijo que me soltem. O meu noivo deve andar à minha procura.

– A putain! – berrou a madame voltando a cabeça para olhar para um rapaz que estava num dos extremos da cozinha. Depois voltou-se para Olivia. – Espia ou não, o que faz aqui? Porque não nos aparecem muitas mulheres contrabandistas. Não que pareça ser uma delas.

O rapaz pôs-se de pé, veio do outro extremo da cozinha e retirou a tampa de um tacho de barro cujo conteúdo borbulhava... e era a fonte do cheiro avinagrado da levedura que crescia. Passou-o para uma tigela rasa no outro extremo da mesa. Provavelmente aquilo seria para a putain.

– Estou neste país numa missão de misericórdia – explicou Olivia mantendo a cabeça erguida. – Estou noiva de um duque e exijo saber com que autoridade este miserável me capturou e me trouxe aqui. E quero que me soltem as mãos!

– Ora vejam só! Uma virgem – ironizou a madame com um sorriso irônico. – Não será o meu dia de sorte?

Olivia voltou-se para Bessette. Aquele era um homem entroncado com uma enorme cabeça e orelhas que se destacavam como pétalas de uma flor cor-de-rosa.

– O senhor! – disse furiosa. – Monsieur Bessette, tem de cortar imediatamente estas cordas dos meus pulsos, já! – Depois voltou-lhe as costas e abanou as mãos na direção do homem.

Para sua satisfação e alívio, sentiu-o mexer no cordel.

– O cogumelo – ordenou madame. O rapaz despejou um fio de um líquido escuro e malcheiroso na levedura borbulhante e começou a mexer.

– Trata-a bem! – vociferou madame, provavelmente referindo-se à levedura e não a Olivia.

Quando sentiu as mãos livres, Olivia sacudiu-as, tentando restabelecer a circulação, depois cruzou os braços e voltou-se para madame.

– Devo concluir que a senhora tenha o hábito de raptar mulheres só porque lhe apetece?

– Não, a menos que valham algum dinheiro.

– Quanto quer? – perguntou Olivia – Por quê?

– Suponho que tenha de pagar a minha liberdade.

– O seu francês é bom de mais para uma simples donzela inglesa – declarou madame semicerrando os olhos e ignorando o comentário de Olivia. – A senhora é uma espiã.

– Foi a senhora que disse que aqui nada havia para espiar.

– É verdade. Então... veio espiar-me a mim.

Olivia revirou os olhos.

– Acredite, madame, ninguém que eu conheço tem o mais leve interesse em si ou na sua cozinha, embora ela fosse ideal para uma exposição acerca da cozinha primitiva entre os povos selvagens.

– Nem pense! – disse madame, batendo com a mão na tábua enfarinhada, de tal modo que se ergueu uma nuvem no ar. – Todos os padeiros de Paris e Londres querem a receita do meu pão. E a senhora... a senhora veio cá porque ouviu falar do meu grande talento.

– Não sei nada do seu pão – declarou Olivia.

– Então é uma selvagem! O grande Napoleão em pessoa declarou que o meu pão era abençoado pelos deuses. E não partilho os segredos da minha putain seja com quem for. Com ninguém! – A voz dela transformou-se num grito.

Olivia manteve-se firme. Embora parecesse paradoxal, sentia-se agora muito calma. Assustavam-na grupos de soldados dedicados à pilhagem e a violar mulheres, mas batalhas com uma cozinheira lunática faziam parte da rotina de governar uma casa.

– Está muito enganada se pensa que alguém quer roubar a receita desse cozinhado nojento.

– É uma espiã – declarou madame. – Uma espiã cozinheira. E uma grande mentirosa, como todos os ingleses.

– Não sou – disse Olivia irritada.

Madame enumerou as possíveis mentiras.

– Virgem? Acho que não.

Olivia abriu a boca, mas logo a fechou.

– Noiva de um duque? Pouco provável. Tem bom aspeto, mas não é uma beleza. Noiva de um negociante de fazendas, talvez, mas não de um duque. – Voltou-se e puxou um cordão de campainha junto à parede. – Terá de ir para as catacumbas até Le Capitaine acordar. O que bebeu ele ontem à noite?

– Duas garrafas, madame – respondeu um dos rapazes que fazia girar um espeto.

Ela soltou uma exclamação de desdém.

– Então só acordará lá para a noite – pegou no aro das chaves. – Mete-a lá no fundo, Petit. Olivia olhou para o rapaz.

– Trata-se de uma dama – protestou ele. – As damas não podem ir para as celas.

– A sorte dela é terem deixado de usar a guilhotina – replicou madame, bebendo o resto do vinho. – Faziam-no muito bem em Paris. Havia pessoas que ganhavam a vida a arrancar as cabeças dos aristocratas. Bessette, vai com eles.

– Exijo falar com o responsável desta instituição! – disse Olivia furiosa.

– Sou eu – declarou madame.

– A senhora! A senhora é uma criada e não o comandante desta guarnição.

– Vinho! – gritou madame. Um dos rapazes foi a correr servir-lhe mais vinho tinto. – Sou eu, enquanto Le Capitaine está bêbado ou a dormir, o que quer dizer que ele é durante uma hora e eu durante as outras vinte e três.

Olivia olhou para o vinho tinto.

– Fortalece-me o sangue – disse madame a sorrir. Pegou no saco da farinha e salpicou a mesa. – Deem-me um bocado daquela putain. Vou recomeçar.

Bessette agarrou no braço de Olivia com força.

– É consigo. Será preciso atá-la outra vez?

Olivia abanou a cabeça fitando os olhos azul-claros do homem.

– Provavelmente, o meu noivo vai matá-lo quando descobrir como me tratou. Bessette riu, mostrando os dentes escuros.

– Não seria o primeiro tentando. Espero que não se importe que eu fique com a sua capa. Posso vendê-la por dez sous.

– Não precisa de lhe arrancar o braço – disse o jovem soldado avançando.

Madame nem ergueu os olhos da farinha que deitava delicadamente sobre a levedura espumosa.

– Putain inglesa, não pense seduzir o pobre rapaz para que lhe dê a chave do seu aposento. A única maneira de lá sair é pela minha cozinha. E eu nunca deixo o pão. Nunca.


29

Tesouro Perdido

Quin acordara Togs e Paisley de um sono profundo, sabendo já que não faziam ideia do que acontecera a Olivia. Não valia a pena atacar os ingleses exaustos; como poderia censurá-los por estarem a dormir quando ela desaparecera, depois do que tinham passado? Agora andavam por ali como dois sonâmbulos.

O coração de Quin batia-lhe na garganta, de forma tão violenta que tinha dificuldade em pronunciar palavras. Mandou-os para a escuna, com instruções para que enviassem Grooper no barco a remos e que este esperasse por ele na enseada. Fez uma pausa para se recompor e para investigar a posição exata da guarnição francesa em relação à cabana. Partiu a passo firme, com Lucy a correr a seu lado. Se os soldados franceses não tivessem capturado Olivia, ele os obrigaria a ajudarem na busca.

Enquanto percorria a praia e depois uma zona de arbustos baixos, meditava nas várias possibilidades. Sim, Inglaterra estava em guerra com França, o que tinha um significado diferente para os dois povos – e ele não estava inteiramente convencido que uma guarnição de província sentisse grandes desejos de capturar uma dama inglesa.

Embora as possibilidades de um duque inglês submeter sozinho toda uma guarnição francesa, que se serviria de tudo desde pistolas a baionetas, não era boa e de nada serviria a Olivia se ele acabasse trespassado por uma baioneta numa valente mas falhada tentativa de a resgatar.

Nesse momento uma lebre atravessou-se no caminho. Baixou os olhos e viu que Lucy continuava a correr a seu lado com a rapidez que as suas pequenas pernas lhe permitiam.

Quin fez uma pausa para pegar na cadela e partir de novo. Calculava estar muito próximo. De fato, pouco depois, e logo a seguir aos arbustos, surgiu a sebe de um pátio coberto de gravilha no extremo do qual, por trás de um muro, se encontrava uma estrutura de tijolo.

A guarnição não parecia preparada para ação militar. A gravilha tinha sido espalhada sem arrancar uma ou outra flor silvestre que ondulava suavemente na zona aparentemente designada para os exercícios. Viu uma sentinela sentada ao portão, a dormir. Quin passou por ele, entrou no pátio e subiu a correr os degraus da entrada principal com Lucy debaixo do braço.

Lá dentro, posou Lucy no chão e meteu a cabeça na recepção poeirenta, num gabinete pouco utilizado e numa messe muito comprida. Ao fundo, encontrou um aposento com marcas de grande utilização. À sua volta, havia caixas abertas com espingardas, sugerindo que se tratava do armeiro, mas Quin calculou que a muito usada mesa de bilhar no centro mereceria certamente mais atenção.

Dirigiu-se à escada sem encontrar vivalma, com o ruído das patinhas de Lucy a tornar o silêncio ainda mais profundo. Porém, o primeiro quarto que espreitou estava ocupado. Quin deteve-se à porta a avaliar a situação. Um homem enorme e malcheiroso ressonava ruidosamente deitado de barriga para baixo numa cama, cujos lençóis já haviam visto melhores dias. Numa mesa no extremo oposto do quarto cintilava uma fileira de garrafas de brande, da mesma espécie do que ele fizera Rupert beber na escuna. Numa cadeira encontrava-se atirado o casaco manchado do capitão.

Havia uma pequena pistola sobre a mesa de cabeceira; retirou a bala e lançou o saco de pólvora pela janela aberta. Depois colocou-a onde a encontrara, puxou a camisa do capitão e abanou-o.

O homem resmungou e mudou de posição. Quin recuou ao sentir o bafo a brande rançoso.

Meio minuto depois, o capitão acordava numa cama encharcada. Quin vira-se obrigado a despejar na cabeça o jarro da água e foi apenas a ameaça do bacio que conseguiu pôr o homem de pé.

– Quem diabo é o senhor? – perguntou ele com o rosto pálido à luz do sol, os olhos vermelhos e parados. Estendeu um braço para se amparar à parede.

Quin apontou uma das pistolas à cabeça do homem.

– Vim à procura da minha noiva. É inglesa e foi raptada na praia há umas horas. Ignorando a pistola, o capitão sentou-se, tremendo como uma espiga de trigo ao vento.

– Para aqui não viria nenhuma mulher inglesa. Não sei se já reparou, mas estamos em guerra convosco.

– Os seus homens capturaram-na?

– Duvido. A maioria é demasiado jovem para encontrar as suas próprias pilas sem um mapa. Preciso de dormir. Ponha-se a andar daqui, ouviu? – atirou-se para a cama encharcada e fechou os olhos.

Quin olhou em volta e viu uma garrafa de brande meia. Despejou-a também na cabeça do capitão, que se endireitou com o rosto contorcido.

– Mas que raio? – gritou com voz rouca. – O senhor é maluco?

– Encontre a minha noiva – exigiu Quin em voz calma. Levantou a pistola e atirou à primeira garrafa de brande da fila, fazendo com que Lucy estremecesse e começasse a ladrar. Houve estilhaços de vidro e brande pelo chão e o aroma pesado encheu o quarto.

– Pare! – gritou o capitão. – O senhor não está bom da cabeça. Todos os ingleses são doidos varridos. Quin mudou de pistola e disparou contra a segunda garrafa.

– Sou o doido que vai mandá-lo prender como contrabandista se não mandar o seu regimento procurar a minha noiva. Não me importo que os seus rapazes sejam jovens. Ou a descobre ou destruo todas as garrafas que por aqui há e garanto que a sua operação de contrabando também acaba imediatamente.

– E como o fará sendo um malfadado inglês? – mas tratava-se apenas de uma fanfarronada. Era um homem fraco e indeciso que escolhia sempre o caminho da menor resistência. Puxou então o cordão da campainha.

Um minuto depois um soldado muito jovem meteu a cabeça no quarto franzindo o nariz ao sentir o cheiro.

– Oui, mon capitaine?

– O regimento saiu em patrulha?

– Não. Ainda estão todos a descansar.

Quin acabou de carregar a pistola e atirou à terceira garrafa.

– Manda-os levantar e que sigam imediatamente para a praia! – gritou o capitão ao ouvir o som do vidro a cair no chão. – Encontrem a mulher deste homem. Une anglaise. Mon dieu, a minha cabeça mata-me – caiu de novo na cama.

O jovem soldado fez continência ao seu capitão moribundo e olhou depois para Quin.

– Íamos agora patrulhar a praia em busca de contrabandistas, como fazemos todas as manhãs e todas as tardes – disse sem trair minimamente o fato de estarem num paraíso de contrabandistas. – Procuraremos a sua esposa, senhor.

– Ainda bem – disse Quin dominando-se. Tinha consciência de se sentir quase em estado de pânico. Se os soldados não tinham capturado Olivia, e obviamente não tinham, então onde raio estaria ela?

Começou a descer a escada. Revistaria todas as casas de Wissan e depois regressaria para saber se a patrulha descobrira alguma coisa.

O pior é que conhecia aquela sensação, cobria-lhe os ombros como uma capa a que estava habituado, mas que odiava. Sentira-a quando Evangeline levara Alfie e se dirigira para o canal da Mancha. Sentira na boca o seu sabor amargo enquanto galopara para Dover na esperança de os interceptar no pontão.

Quase o enlouquecera quando ficara a olhar para a água. E sentia-a agora. Não era seguro amar uma pessoa.

A mãe tinha razão a esse respeito.

Mas era demasiado tarde para evitar aquele estado.


30

A Princesa e a...

Bessette seguido por Petit encaminhou Olivia através de uma porta e por um corredor húmido e gelado com teto em abóbada. O corredor descrevia uma curva à esquerda e as suas paredes eram de vez em quando interrompidas por portas sólidas, com aberturas de grades à altura do ombro.

– Que lugar é este? – perguntou Olivia – As catacumbas – respondeu o jovem soldado. – Construíram o armeiro aqui por cima e decidiram usar as catacumbas como cozinha e celas. Estamos no extremo. Ela deu-lhe a melhor cela... tem um buraco num canto.

Bessette abriu a porta de par em par e mostrou-lhe um quarto de pedra, nu, apenas com uma cadeira pouco segura caída de lado. Claro que havia um buraco malcheiroso no extremo oposto. Uma janela alta e pequena, também com grades, revelava o céu e um pouco de erva; afinal ela estava para todos os efeitos numa cave.

– Não pode deixar-me aqui – disse Olivia pegando-lhe num braço. – O meu noivo é duque. E eu sou uma dama.

– Odeio os ducs – disse Bessette sorrindo-lhe mais uma vez. – E também não gosto de Napoleão, mas o que eu mais odeio são os aristocratas – atirou-a para dentro e fechou a porta. Puxou a chave e entregou-a a Petit que os seguira sempre pelo corredor.

– Não deixes que esta te seduza para que lhe dês a chave – aconselhou. – Madame Fantomas não é para brincadeiras quando se zanga. Pensa no rolo da massa.

– O que a madame pensa não terá qualquer importância quando o meu noivo vos apanhar. A única resposta foi o som dos passos a afastarem-se no corredor.

Olivia respirou fundo, o que foi um erro. Quase vomitou com o fedor que vinha do buraco. Provavelmente, se habituaria ao cheiro em poucos minutos. Ou talvez entrasse ar fresco pela janela. Talvez quando as galinhas tivessem dentes.

Precisava pensar que, àquela hora, Rupert já partira ou... não. O que significava que Quin já teria regressado à praia e andaria à sua procura. Deveria estar desvairado.

A sua situação não era tão terrível como Quin calculara. Afinal, não caíra nas mãos de uma guarnição de soldados sedentos de sangue inglês. Uma padeira louca e um capitão beberrão não lhe causavam grande susto; se morresse ali, seria do cheiro.

Endireitou a cadeira e limpou o assento com a bainha do vestido estragado, colocando-se de maneira a que pudesse ver para fora da janela. A erva inclinava-se em determinado sítio e ela subiu à cadeira para ver se passava alguém, mas era apenas um gato preto à caça de um rato.

Quando ouviu a chave mover-se na fechadura, a luz era mais forte e tinha um tom amarelado, o mesmo soldado jovem, Petit, meteu a cabeça na porta.

– Mademoiselle – murmurou –, preparámos uma coisinha melhor para si. Pelo menos até que mon capitaine acorde. Tenho a certeza que a vai deixar ir assim que perceber que a senhora está aqui. Mas ninguém, senão ele, pode ir contra Madame Fantomas.

– Gostaria de ir para um sítio onde não houvesse um buraco – disse-lhe Olivia.

Petit tinha provavelmente dezesseis anos, embora parecesse ainda mais novo. Tinha os olhos da cor dos ovos dos piscos.

– Decidimos que a honra francesa não nos permite deixar uma dama num quarto assim, mesmo que seja espiã.

Ela riu.

– Garanto-lhe que não sou.

– Como pôde ver, a madame é uma fúria – disse ele, mantendo a porta aberta. – Não a irritamos porque não vale a pena e além do mais pesa o dobro de qualquer um de nós. Uma vez, um homem chamado Oboe deu-lhe um beliscão e ela bateu-lhe do lado da cabeça com um rolo da massa. Nunca recuperou a audição desse ouvido.

Escoltou-a a uma cela próxima, que não tinha buraco e por isso não se sentia o mau cheiro. A diferença mais importante da primeira era que, encostada à parede, debaixo da janela, havia um monte de colchões cada um forrado com um tecido diferente. As coberturas eram às riscas e às flores, o que as fazia parecer completamente incongruentes na cela húmida e fria e o monte de colchões chegava-lhe à altura da cabeça, mas havia uma pequena escada encostada a ele.

– Cada um de nós trouxe o seu colchão para aqui – disse Petit apontando para a pilha. – Somos vinte e empilhámos catorze. Pensámos que seria o suficiente para não sentir a humidade.

– São todos tão simpáticos – exclamou Olivia. – Na verdade, estava a começar a ficar muito fatigada.

– As damas não devem dormir no chão. A minha maman seria capaz de me matar. Dá-me licença que a ajude? – passou para o lado da escada.

– Merci beaucoup – agradeceu ela. Pegou-lhe na mão e subiu a escada, deixando-se cair para o colchão mais alto. Pôs-se de joelhos e olhou para baixo. O nariz de Petit estava ao nível do seu poleiro e de repente sentiu-se em posição precária.

– Será melhor deitar-se – disse ele. – Pode partir a cabeça como um ovo, se cair daí.

Ela acenou afirmativamente.

– Por acaso saberá se o meu noivo, o duque de Sconce, veio à minha procura?

– Não nos permitem sair a esta hora. Posso descobrir às quatro da tarde, quando sairmos em patrulha.

– Merci – disse ela, mas ouviu-se um barulho no corredor e ele recuou, batendo firmemente com a porta atrás de si.

Por momentos, Olivia ficou sentada, com a cabeça junto ao teto de pedra. Estava cansada e sentia-se tonta. Os colchões eram grumosos e irregulares, mas colocavam-na ao nível da pequena janela, que por sua vez estava ao nível de uma camada de erva brilhante.

Por fim, deitou-se em frente à janela vendo a erva balançar. Apesar de serem tantos, os colchões eram notavelmente desconfortáveis. Parecia-lhe ter um vulto nas costas, como se houvesse uma pedra metida lá dentro.

Voltou-se para um lado e para o outro, tentando encontrar uma posição confortável que evitasse o alto e lhe permitisse adormecer. Por fim, enrolou-se à volta desse vulto, desejando ficar imóvel. Enquanto dormia descontraiu-se e acordou, horas depois, com uma coisa dura a magoá-la no meio das costas.

Apalpou a coisa dura – não era um bocado de palha, pois era duro de mais para isso. Viu que o sol tinha avançado pelo quarto e chegava agora à parede oposta.

Nesta altura, Petit abriu a porta.

– Olá – disse ela em voz baixa.

– Boa tarde, mademoiselle – segurava um tabuleiro. – Trouxe-lhe qualquer coisa para comer. A madame dorme a sesta de tarde, embora infelizmente não saia da cozinha.

Subiu um degrau e entregou-lhe o tabuleiro.

– O pão é dela – disse apontando. – Embora a madame seja completamente louca, há padeiros em Paris que adorariam saber o que ela põe na putain.

– Valha-me Deus – disse Olivia. – Sabe se o duque veio à minha procura? – acrescentou ansiosa. Petit acenou afirmativamente com os olhos a brilhar.

– Ele obrigou mon capitaine a sair da cama e nunca se levanta antes da noite. O seu duque quase destruiu o quarto. Infelizmente, Le Capitaine não fazia ideia de que a senhora estivesse aqui.

Olivia gemeu.

– O duque foi-se embora?

– Sim, mas voltará dentro de mais ou menos uma hora. Antes de voltar para a cama, Le Capitaine prometeu enviar a patrulha à sua procura. Bessette planeia pedir ao seu duque cinquenta guinéus, mas madame diz que a senhora vale pelo menos cem.

– Nesse caso, sairei ao cair da noite.

– Que tal o colchão? – perguntou Petit com uma expressão estranha no rosto.

– Embora não queira parecer ingrata, tenho um pouco de receio de cair. Posso perguntar porque puseram tantos em cima uns dos outros?

O rapaz corou e pareceu subitamente ainda mais novo.

– Pensámos que se pareceria muito com uma simples cama se juntássemos apenas um ou dois colchões.

– Mas é uma cama.

– Sim, mas se se parecesse com uma cama, havia sempre a possibilidade de Bessette poder preparar-se para... – acenou com a mão. – A senhora estaria aqui numa cama, percebe. Mas assim é difícil chegar a si.

– O senhor é brilhante – disse Olivia com sinceridade. – Se houver alguma recompensa em dinheiro, vou garantir que siga na sua direção.

O rapaz sorriu.

– A ideia foi minha, mas todos contribuímos. Então, está confortável aí em cima, minha senhora? O colchão é... fofo?

– Claro – declarou Olivia, faltando agora à verdade. Hesitou um pouco, mas depois perguntou-lhe.

– Não será demasiado jovem para ser soldado?

– Tenho quase dezesseis anos – disse com orgulho. – Mas também nada acontece nesta guarnição – acrescentou quase fazendo beicinho. – Le Capitaine está apenas interessado em brande. A minha mãe obrigou-me a vir para aqui em vez de me juntar a um regimento como deve ser – parecia aborrecido.

Olivia sorriu-lhe.

– Creio que a sua mãe é muito sensata.

– Petit! São horas da revista! – As palavras ecoaram pelo longo corredor de pedra.

– Será necessária uma distração que faça com que a madame saia da cozinha – disse ele, com os olhos castanhos a brilhar. – Qualquer coisa que perturbe a guarnição antes que o duque entregue a Bessette os guinéus que ele exige – sorriu. – Vou pensar no assunto.

Desapareceu, batendo com a porta. Olivia ouviu a chave dar a volta.

– Uma distração? De que serviria se ela não pudesse fugir daquela cela? Passou a mão pelo colchão irregular, pensando na luz dos olhos de Petit. Quase diria que lhe tentara dar uma pista acerca dos colchões.

Olivia passou as pernas para fora e pôs-se de pé na escada. Meteu a mão entre o primeiro e o segundo colchão, mas continuava a sentir o alto sob os dedos. Tentou os outros dois a seguir, e os outros antes desses...

Era uma chave.

Uma chave metida entre os colchões, uma grande chave de ferro que parecia exatamente igual à que o jovem soldado usara para entrar na cela. Um sorriso se abriu no rosto. Podia esperar que Petit criasse a distração que prometera e depois sair do edifício diretamente para os braços de Quin. E se Madame Fantomas tentasse detê-la a caminho da cozinha, seria ela a bater-lhe na cabeça com o rolo da massa.

Soaram gritos no corredor.

– Espia, o que acha do meu pão? Olivia sorriu.

– Já comi melhor – respondeu também a gritar.

– Putain!


31

O Ladrar de Cérbero

Quin estava furioso, exausto e prestes a entrar em pânico quando chegou à aldeia de Wissan. Lucy estava também muito cansada, por isso ele metera-a dentro do casaco, o que não era cómodo nem para ele nem para a cadela. Depois percebeu que ninguém sabia nada acerca de une anglaise, embora tivessem conhecimento de que alguns soldados ingleses, um deles gravemente ferido, haviam vivido na cabana do Père Blanchard.

– Os soldados não fizeram mal a ninguém – disse o ferreiro a Quin, com os braços cruzados sobre o seu peito formidável. – Sim, eram ingleses – encolheu os ombros. – E o senhor também. Apostava que Bessette raptou a sua mulher.

Quin semicerrou os olhos.

– Bessette?

– É um javardo intriguista. Deve tê-la entregue à Madame Fantomas e vai querer uma recompensa.

– Onde posso encontrar essa Madame Fantomas?

O ferreiro soltou uma exclamação de desdém.

– Onde havia de ser? Na guarnição, mesmo nas barbas daquele bêbado idiota.

– Não fales contra Le Capitaine – disse a mulher do ferreiro, aparecendo à porta por trás dele. – Com ele os nossos rapazes estão em segurança. – Olhou para a madeixa de cabelo branco que caía sobre a testa de Quin. – O senhor foi tocado por um anjo?

– Parece que foi mais pelo demónio – respondeu ele.

Dirigiu-se para a guarnição que ficava perto da aldeia, subindo a estrada. Nunca pensou poder sentir-se tão fatigado nem tão sujo. Perdera havia muito a fita do cabelo. Cada centímetro da sua roupa estava coberto de pó ou pior um pouco.

Mas sempre que interrogava os aldeãos essa sujidade jogara a seu favor: tinha a nítida impressão que, se por um lado, poderiam não se mostrar ansiosos em ajudar um membro da aristocracia – qualquer que fosse a nacionalidade –, a expressão e a roupa de um louco tinham dado resultado.

Quando chegou à guarnição, a sentinela estava acordada.

– Quero a minha noiva – declarou Quin, dispensando os preliminares.

– Posso dizer-lhe quem a tem, mas preciso de alguma coisa para as minhas dores – puxou nervosamente o bigode.

Quin inclinou-se para o homem e falou-se numa voz calma, mas terrível.

– Tive um dia muito comprido. As suas dores? Seria um prazer para mim arrancar-lhe a cabeça para que esquecesse tudo o que lhe dói.

– Bessette está à sua espera atrás do edifício – disse a sentinela recuando.

Transação concluída e Quin deu a volta ao edifício da guarnição com uma pistola na mão e outra metida no cinto.

– Aqui! – chamou-o uma voz escondida nas árvores.

Lucy farejava uma das janelas junto ao chão.

– Anda! – chamou-a Quin dirigindo-se para o bosque.

A cadela ignorou-o, ladrando a uma presa invisível. Possivelmente uma ratazana. Foi direito a ela, mas um homem corpulento saiu da sombra do bosque. O ferreiro tinha razão: javardo era um nome que lhe assentava como uma luva.

– O senhor tem a minha noiva – vociferou Quin, deixando Lucy à procura da ratazana e dirigindo-se ao homem.

Qualquer coisa no aspeto de Quin deve tê-lo enervado, pois deixou de sorrir e esfregou as mãos.

– Terá de me pagar cinquenta guinéus pela minha proteção – disse bruscamente. – Estava à espera junto à cabana do Père Blanchard. Recebemos sempre uma recompensa quando apanhamos uma mulher a vadiar por onde não deve. Entre os homens. Já para não mencionar o fato de nenhum inglês ter permissão para desembarcar nestas praias, como suponho que saiba.

Quin levou de novo a mão à coronha da arma.

– Não tenho.

Bessette mudou de posição para demonstrar que também ele estava armado. Os seus olhinhos de javardo brilharam.

– Vou então pedir-lhe que vá buscar o dinheiro antes de lhe entregar a sua mulher.

– Se eu regressar a Inglaterra para ir buscar o dinheiro, não há qualquer garantia de poder voltar imediatamente – declarou Quin. – Os países em guerra não costumam ter carreiras de barcos regulares.

Bessette cuspiu o seu charuto nojento aos pés de Quin, não os atingindo por pouco.

– Os barcos vão e vêm todos os dias, por isso poderá estar de volta amanhã de manhã. Se der alguma coisa para a sua subsistência, não a apresentaremos aos prazeres que apenas os franceses...

Quin lançou rapidamente a mão esquerda ao lenço de Bessette e enrolou à volta do pescoço com tanta força que o homem nem teve tempo de tomar fôlego. Viu calmamente o rosto bulboso ficar da cor de uma beterraba; atrás dele havia uma confusão qualquer, mas não quis arriscar-se a voltar a cabeça. Preferiu procurar no rosto de Bessette a expressão flácida que indicaria que ele estaria prestes a expirar por falta de ar.

– A minha noiva! Já – gritou quando isso aconteceu.

Bessette gorgolejava. Quin não percebia o que ele estava dizendo. Por um lado, o francês estrangulado era difícil de perceber, por outro, Lucy ladrava furiosamente algures, atrás dele. Provavelmente, os soldados teriam regressado da inútil patrulha.

Com a mão livre, retirou a pistola das calças de Bessette e atirou-a para o chão, metendo a sua nas pregas macias da barriga do homem.

– É um chantagista de trampa, se não pior, e estou convencido que a aldeia ficaria melhor sem você – apertou de novo o lenço. Esperou e depois alargou-o o suficiente para que Bessette pudesse pedir clemência.

– Onde está ela?

– Madame Fantomas – disse Bessette num murmúrio de voz. Mas os olhos dele mexeram-se. Quin reparou, calculou as probabilidades e afastou-se para o lado exatamente quando Bessette tentava desferir uma joelhada nas suas partes baixas.

– Onde posso encontrar a madame? – atrás dele, Lucy continuava a ladrar.

– Nas catacumbas – sussurrou Bessette, quase sufocado. Depois deixou-se cair. Quin alargou o lenço, deixando-o cair de joelhos, mas mantendo a arma junto à cabeça do homem.

– A Madame Fantomas meteu-a nas catacumbas – o ombro de Bessette moveu-se ligeiramente. O idiota planeava outro ataque. Um pontapé rápido e bem apontado da bota de Quin e o homem caiu no chão, com as mãos entre as pernas e um guincho agudo.

– Onde ficam as catacumbas? – perguntou Quin. – Pegou na pistola de Bessette e esvaziou a câmara. Depois ficou imóvel, apercebendo-se de que lhe cheirava a fumo.

Deu meia volta e descobriu que uma coluna de fumo saía das pequenas janelas junto ao chão. Não era de estranhar que Lucy ladrasse daquela forma. Havia qualquer coisa a arder.

Que raio, não tinha tempo para aquilo; tinha de encontrar as catacumbas. Mas Bessette fugira para o bosque assim que lhe virara as costas. Quin ainda pensou ir atrás dele, mas provavelmente precisariam da sua ajuda para apagar o fogo. O capitão bêbado não lhe parecia capaz de o fazer e provavelmente nem conseguira ainda sair da cama.

Correu para o lado do edifício, baixando a cabeça para evitar a nuvem de fumo negro que saía das janelas. Tinha um cheiro acre e muito desagradável, como se água putrefata se tivesse incendiado.

Lucy corria à frente dele e quando a viu teve um pensamento tão terrível que quase se deixou cair. Não acreditava que Lucy ladrasse para Olivia – significaria que as catacumbas estavam situadas por baixo da guarnição?

Entrou a correr no pátio cheio de soldados que andavam de um lado para o outro num perfeito caos. Ninguém parecia ser capaz de organizar um esforço concertado para apagar o incêndio. O capitão estava em cima da escada aos berros e agitando os braços. Os homens corriam para a porta transportando caixotes que tilintavam suavemente. Parecia que o brande tinha prioridade.

Uma mão puxou o braço de Quin.

– Senhor! Senhor!

Voltou-se. Tinha diante de si um soldado muito jovem e assustado, com o rosto negro de fuligem.

– Ela está ali – disse o rapaz ofegante. – Depois da cozinha. Deveria ter saído quando a madame abandonasse a cozinha. Tinha a chave! Mas não saiu e eu não consigo lá ir com tanto fumo. – Com a mão trêmula, o rapaz apontava para a porta de onde saía o fumo como um lençol ao vento. – As catacumbas – disse sufocado. – Ela está nas catacumbas e não há outra saída!

Quin olhou a tempo de ver Lucy correr por baixo do fumo e desaparecer pela porta. Soltou um impropério, tirou o casaco e arrancou com força uma manga da camisa de linho.

– Não te importes com o maldito capitão e com o brande – gritou ao rapaz. – Têm de apagar o incêndio! Organiza os homens.

Sem esperar por uma resposta, atou a manga da camisa em redor do nariz e da boca, desceu os degraus a toda a pressa, acocorado para evitar o fumo mais espesso. Olivia. Olivia. Olivia. Parecia que o nome dela lhe percorria o corpo a cada batimento do seu coração.

Semicerrou os olhos ao fundo das escadas e percebeu de que se encontrava na cozinha. Depois da cozinha, dissera o rapaz. Viu o fumo sair pela chaminé incendiada, provavelmente alimentando-se com os anos de gordura acumulada. Não via a porta, mas ouvia os latidos de Lucy algures à sua direita. Avançou nessa direção, quase cego e sufocado.

O fumo era ainda mais denso no corredor à sua frente. Gritou o nome de Olivia, engoliu fumo, dobrou-se e quase caiu. Acocorou-se junto ao pavimento, voltando a cabeça para manter a face junto à pedra fria e foi recompensado com uma baforada de ar quase limpo. Sustendo a respiração avançou, acocorou-se mais uma vez, respirou de novo. Porém, inalou tanto fumo que teve a sensação de que o incêndio estava nos seus pulmões e não na chaminé.

No entanto, Olivia estava ali, algures. Cinco anos antes, não se lançara às águas gélidas e traiçoeiras do Canal para salvar Alfie. Nunca poderia ter salvado Alfie. Mas podia seguir por aquele maldito corredor. Não permitiria que outra pessoa que amava morresse sem poder respirar.

Mais uma golfada de ar e avançou de novo, tentando pensar contra os protestos do seu corpo. Tinha de encontrar Olivia e levá-la para junto de uma daquelas janelas. Eram pequenas, demasiados estreitas para fazendo passar por elas, mas, se conseguisse içá-la até lá, Olivia poderia respirar. O ar no chão era extremamente escasso, mesmo mantendo o nariz junto das lajes. De fato, a parte inexoravelmente calculista do seu cérebro informava-o de que morreria dentro de poucos minutos senão respirasse ar puro.

Mas respirou de novo e a negra verdade causou-lhe um formigueiro nas extremidades. Não sobreviveria. Não conseguia encontrar Olivia, nem salvá-la. A verdade é que sentia os pulmões a arder.

Mesmo assim, sabia que desta vez fizera tudo o que estivera ao seu alcance: não se deixara ficar, impotente, no ancoradouro. Lançara-se à água.

Fez um esforço para continuar a rastejar e ouviu depois um latido abafado. Estendeu a mão, pensando tocar no pelo de Lucy, mas sentiu um braço. Um braço inerte.

Uma janela. Tinha de a levar para junto de uma janela. Tinham de ir ambos para junto de uma janela. Apalpou o braço, pronunciou o nome dela ofegante, mas teve de encostar de novo o rosto às lajes do chão. Sorveu o ar que restava, sentiu-se sufocado, tentou mais uma vez. Olivia estava deitada de barriga para baixo e era isso que a poderia ter salvado.

Recusou-se pensando em qualquer outra possibilidade.

Estava deitada no limiar. Quin tentou espreitar para dentro do quarto, mas o fumo negro e pesado tudo obscurecia. Porém, Lucy ladrara junto a uma janela... sem pensar mais, Quin inalou nova golfada de ar, ergueu-se com dificuldade e puxou o corpo inerte de Olivia para dentro do quarto. O seu corpo apressou-o na tentativa desesperada de encontrar ar. Deixando Olivia cair, inspirou nova golfada de fumo e dobrou-se sobre si próprio, tossindo com tanta força que pensou fraturar as costelas.

Manchas negras flutuavam-lhe diante dos olhos, tropeçou e caiu por cima de um catre macio. Encostou-se a ele por segundos, tentando recuperar as forças. Sabia que a janela estava ali em cima; se pudesse içar Olivia ali para cima, poderia encostar-lhe o rosto à janela.

Teriam de abandonar o pouco ar que havia junto ao chão, mas a parte lógica do seu cérebro registava que a perda de visão não era unicamente devida ao fumo. A sua vista desaparecia com a falta de oxigénio nos pulmões. Não poderiam sobreviver se não chegassem àquela janela. Quin acocorou-se, respirou fundo, conseguiu colocar o corpo inerte de Olivia sobre o seu ombro e ergueu-se com dificuldade. O fato de não se admirar quando encontrou uma escada exatamente onde precisava era sinal do seu diminuído poder mental. Colocou o pé no primeiro degrau.

Lucy. Encostou Olivia à escada, estendeu a mão para baixo e sentiu pelo, pegou então na cadela pelo pescoço.

As manchas negras dançavam diante dos olhos, como uma tempestade vinda do mar. Quanto tempo teria antes de ficar inconsciente? Um minuto? Menos? Arrancou a saia de Olivia, deixou cair Lucy dentro dela e meteu a dobra do pano na boca, segurando-a entre os dentes.

Colocou o outro pé na escada. Sentia as coxas como barras de aço, inflexíveis, terrivelmente pesadas. Mas fez um esforço até conseguir colocar Olivia sobre o último colchão. E aí estava a janela. Deus te abençoe, Lucy, pensou.

Lucy libertou-se, pôs-se de pé e correu para o ar livre. Quin sorveu-o também e puxou Olivia colocando-lhe a boca junto das grades da janela. A jovem não se movera. Estava perfeitamente inerte.

Morta, pensou ele. Estava morta.

– Vá lá, Olivia – disse e a voz saía-lhe rouca. – Respira, que raio, respira!

Porém, o rosto dela estava inerte junto às grades. Quin não conseguia ver sinais de vida. Invadiu-o uma dor terrível. Sentia o coração partir-se ali mesmo, naquela cela cheia de fumo.

– Não me deixes! – gritou em voz rouca. Agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a. – Não me deixes.

À medida que a sua visão se tornava mais nítida, apercebia-se de que o rosto de Olivia estava levemente azulado. Lembrou-se de repente que deveria ver se havia pulsação, mas quando lhe encostou a mão ao peito, nada sentiu. Depois percebeu de que tentava encontrar o bater do coração do lado oposto do peito.

– Tenho o cérebro confuso – murmurou. – Tem de respirar – insistiu com violência. Abanou-a de novo, desejando que ela abrisse os olhos, mas a cabeça tombou-lhe para trás como uma flor num caule partido. O rosto dela pairava diante dos olhos e percebeu de que estava a chorar e de que lhe passava as mãos pelo peito em busca do bater do coração que não conseguia encontrar. Lucy também ali estava, ladrando ao ouvido da dona.

Porém, Olivia não se movia. Nunca mais se moveria. Quin baixou o rosto para o pescoço dela tentando sentir o esquivo e maravilhoso perfume de Olivia, mas apenas sentiu o cheiro a fumo.

Sentiu um aperto no peito e todo o desgosto que nunca exprimira se escapou em soluços tão fortes que o seu corpo estremeceu como se tivesse um ataque. Não conseguia conter-se; o mundo transformara-se num turbilhão de desgosto. Alfie, Olivia e até Evangeline e Rupert... todos mortos. Os gritos rasgavam o peito, trazendo consigo palavras que nunca pronunciara em voz alta, porque um duque controla-se sempre, um duque nunca implora.

Mas este duque implorava.

Por favor, Deus, ajuda-me, ajuda-me.

Por fim, percebeu de que via Lucy a lamber o rosto de Olivia: o fumo ia aos poucos desaparecendo da cela. O fogo da chaminé deveria ter sido extinto. Ouviu o latido de Lucy que lhe pareceu o de um Grand Danois.

Talvez o ladrar de Cérbero, o cão que guarda os portões do Hades.

O seu último soluço trouxe consigo uma estranha claridade, uma profunda calma.

– Não consigo suportar isto – disse Quin falando em voz alta. – Não consigo suportar isto de novo. Não podia voltar para a sua casa estéril, para as folhas cobertas de equações matemáticas, para as ordens rigorosas de sua mãe. Sem Olivia e sem Alfie não valia a pena viver.

Lucy continuava a lamber a face de Olivia. Quin estendeu a mão para a afastar – e pensou ver Olivia estremecer. Agarrou-lhe os ombros e puxou-a para si.

– Por favor, Olivia! Respira, por favor! Nada.

Puxou o corpo dela para si e embalou-o, permitindo que aquelas malditas lágrimas continuassem a cair.

Olivia tossiu.

Nessa noite em França, Tarquin Brook-Chatfield, duque de Sconce, fez uma triste figura. Nunca se esqueceria e sempre sentiria um leve embaraço. O homem que nunca chorara, nem sequer no funeral do filho, soluçava agora. E quando Olivia Mayfair Lytton recuperou os sentidos a tossir e dorida, mas à parte isso de perfeita saúde, ela – que também nunca chorava – também chorou.


32

O Guerreiro e a Amazona

–Foi o colchão – disse Olivia a Petit duas horas depois. Estava sentada numa cadeira no meio do pátio, respirando lufadas de ar fresco, vindo do mar. Doía-lhe o peito, mas já se sentia muito melhor. Um banho muito quente ajudara.

– Os vossos colchões nos salvaram a vida.

Mas havia uma expressão aflita no olhar de Petit.

– Fui eu, foi por minha causa que quase perdemos a vida! Tapei as chaminés para obrigar a madame a sair da cozinha e depois uma delas incendiou-se. Quando percebi que não tinha usado a chave, não consegui atravessar todo aquele fumo. Falhei.

– Foi um acidente – disse-lhe Olivia. – Mas tem de me prometer nunca mais fazer uma coisa tão perigosa.

– Nunca mais – prometeu Petit em voz sufocada. – Nunca, nunca, nunca.

– Pode redimir-te – disse Quin, aparecendo por trás dele. – Leva a Lucy até ao barco a remos que está junto à cabana do Père Blanchard, por favor – e entregou-lhe a cadelinha. – Está muito cansada por ter andado sempre conosco. Dá-a a um soldado chamado Grooper, que deve estar à espera.

– Vou a correr – disse Petit transformando as palavras em ações e desaparecendo pelo portão.

– Meu Deus – Olivia ficou a vê-lo partir. Uma das orelhas de Lucy ainda se via empurrada para trás pelo vento. – A Lucy deve pensar que vai numa corrida.

– Petit foi apanhar a estrada – disse Quin. – Nós vamos cortar pelo bosque e encontramo-lo pouco depois de chegar, mesmo àquele passo – inclinou-se e levantou-a com um movimento suave. – São horas de irmos para casa.

– Não deve fazer isso! – protestou Olivia. – Não pode! Peso muito. – Mas ele limitou-se a pousar um beijo na testa e a sair do pátio, deixando para trás a sórdida guarnição.

Doía-lhe o corpo, mas nunca cedeu à fadiga. Tinham de percorrer meia légua até à enseada onde o barco a remos os esperava, mas os músculos do duque pareciam feitos de aço.

Olivia estava calada, lançara os braços ao pescoço e encostara a face ao peito dele, tão grata, tão viva se sentia que nem conseguia falar. Mas, quando atravessaram o bosque e ouviu o som da água a correr, insistiu em que ele a pusesse no chão.

– Estamos quase no Day Dream – protestou Quin. – Quero sair deste maldito país.

Ela fez-lhe uma festa no rosto.

– Por favor?

Ele gemeu, mas posou-a no chão.

Era o princípio da noite e o ar estava quente e cheirava a flores. As campainhas estendiam-se até à beira de um riozinho preguiçoso ladeado por carvalhos jovens.

– São tão bonitas – murmurou Olivia, ajoelhando sobre uma mancha de flores.

Quin resmungou.

– Desfruta-as agora porque não vai voltar a vê-las. Nunca mais voltaremos a França. Olivia soltou uma gargalhada.

– Claro que voltaremos, depois de a guerra acabar. Um dia quero conhecer a noiva de Petit e saber se o capitaine bêbado deixou de beber. Além do mais, ouvi a sua combinação para que o conhaque fosse enviado regularmente para Littlebourne Manor.

– O melhor que provei em muitos anos – Quin parecia impenitente.

– Detesto dizer, mas o pão da madame era espantosamente bom. Digno de uma viagem a França – a voz dela desvaneceu-se enquanto olhava para ele.

Quin também tomara banho e lavara as marcas de sujidade que o faziam parecer um ladrão na noite. Mesmo assim havia nele algo de diferente. As maçãs do rosto, que pareciam aristocráticas em Inglaterra, eram agora rudes e selvagens. Estava sem casaco e uma manga da camisa fora arrancada desnudando o braço musculoso. Era a figura de um vingador.

– O que é – perguntou ele, olhando-a com ar aborrecido.

– Parece um guerreiro – respondeu ela, todo o seu corpo estremecendo de um modo pouco civilizado à violência mal suprimida que latejava nele.

Quin acocorou-se junto dela e os músculos das coxas evidenciaram-se de tal modo que ela passou os dedos por eles. Uma dama nunca deveria reparar naquelas coisas. A mãe dela ficaria escandalizada, mas ele não se importava absolutamente nada.

– Pensei que te perdera – disse ele num tom decidido e firme. – Fiquei louco, por isso, Olivia, talvez deva avisar-te de que talvez nunca mais seja o mesmo.

Ele pôs-se de joelhos para ficarem com os olhos ao mesmo nível.

– O meu último pensamento antes de ter desmaiado foi para você. Sabia que virias. Amo-te, Quin.

– Nunca percebi grande coisa acerca do amor – disse ele, sem lhe tocar. – Mas sei que adoro o modo como fazes frente à minha mãe, as tuas anedotas sem graça, as tuas quintilhas humorísticas, o teu vestido violeta e a maneira como sobes às árvores e lanças papagaios. – Ela sorriu. Aquilo bastava-lhe.

– A minha mãe disse-me há muito tempo – continuou – que era bom sermos uma família pouco emotiva, porque o amor era perigoso. Demonstrei a hipótese dela apaixonando-me por Evangeline.

Olivia mordeu o lábio, pronta a argumentar.

– Mas a você amo-te muito mais. – A voz dele subiu e quase estremeceu, mas ficou de novo firme. – Amo-te mais do que qualquer outra coisa neste mundo, mais do que à minha própria vida. Se o amor é perigoso, então não quero viver em segurança – falava em voz rouca e num tom radical e duplamente sincero pelo desejo que demonstrava.

Olivia inclinou-se para trás ainda de joelhos.

– Só de olhar para você fico com uma dor... aqui – posou a mão no estômago e depois mais abaixo. – E aqui.

A expressão do rosto dele tornou-se sensual.

– Olivia – murmurou. – Não – disse depois, tentando que a palavra parecesse uma ordem, mas ela tinha a certeza que os guerreiros casavam com as amazonas, o que significava que deveria tornar-se tão corajosa como uma amazona. Não que a história fosse o seu ponto forte.

– Não tenho medo quando está comigo – abriu o botão de cima do seu vestido de aldeã que lhe fora amavelmente oferecido para substituir o fato de viagem estragado. – Não tive medo de Bessette porque vi o que fizeste com ele na fortaleza.

Quin apertou os maxilares.

– Infelizmente, o canalha vai sobreviver. Se eu soubesse que ele te tinha feito essas nódoas negras, teria dado uma sova de morte logo da primeira vez que o encontrei. Ela sorriu e abriu mais dois botões.

– E não tenho medo dos soldados franceses, porque todos eles por aqui têm a mesma idade do teu primo Justin, embora possam não ser assim tão poéticos.

– Não me surpreenderia que Petit tivesse voltado ao seu quarto para rascunhar uns versos a uma deusa da lua inglesa. – Quin olhava-lhe para as mãos.

Olivia abriu o último botão e deixou escorregar o vestido dos ombros.

– Principalmente – disse, pondo-se de pé. – Já não tenho medo de mim mesma nem do meu próprio corpo. O vestido caiu-lhe aos pés, deixando-a em camisa.

– Não tem espartilho – resmungou ele, sem se mexer. – Vou destruir todos os espartilhos que existem em Inglaterra.

– Que mal há num espartilho? – perguntou ela provocando-o e levantando lentamente, muito lentamente a bainha da camisa.

– Aperta-te – disse ele com os olhos em chamas. – Não suporto ver as tuas curvas apertadas.

Olivia sabia que o seu sorriso era radiante; não sentiu o mínimo embaraço quando fez passar a camisa pela cabeça e a atirou para o lado. Quin ficou imóvel, um homem musculoso e selvagem acocorado aos pés dela. Olivia esperava-o simplesmente naquela extensão de campainhas, com um raio do sol da tarde a brincar-lhe sobre os seios e sobre o ventre, deixando que ele a olhasse pelo tempo que quisesse.

Para falar verdade, posicionou as pernas da melhor maneira possível – os joelhos juntos, levemente dobrados. Nunca se sentira tão sensual nem mais desejável. Estar nua ao ar livre, embora (ou talvez especialmente por isso) Quin estivesse ainda vestido, era embriagador. Todo o seu corpo se suavizava e cantava de desejo.

Mesmo assim, ele não se moveu, com aquela nova postura feroz que era agora sua.

– Olivia – disse por fim em voz rouca.

– Sim?

Ele podia sentir-se feroz, mas ela era uma mulher, a sua mulher. Olivia viu o fogo arder-lhe no olhar e as mãos trémulas. Por ela.

– Afasta as pernas.

Ela tomou a postura pouco modesta que ele desejava e, mesmo assim, não se sentiu embaraçada.

– É perfeita – disse em voz rouca. – E é minha.

De repente, envolveu as ancas nos seus braços fortes e passou-lhe a língua entre as pernas fazendo-a gritar.

– Como o mel – disse, repetindo o gesto para fazendo perder o fôlego. Uma dor doce e insistente espalhou-se rapidamente pelas pernas de Olivia, que entrelaçou os dedos na seda do cabelo dele para se apoiar.

Quin demorou-se, segurando-a depois de ela perder a força nas pernas, passando-lhe as mãos pelas curvas voluptuosas do traseiro, a sua língua tão exigente como o resto do corpo. Não parou enquanto ela não soluçou de prazer, trêmula, tentando falar, mas incapaz de encontrar palavras.

Quin levantou-se e tirou a camisa pela cabeça. Momentos depois, Olivia estava deitada de costas sobre um monte de roupa e de campainhas, com um corpo nu e duro sobre ela. Mas tinha o maxilar apertado e uma expressão preocupada.

– Não posso conter-me, Olivia. E ainda posso fazer-te doer.

Mas ela chegava-se já a ele, puxando-lhe os braços.

– Sinto-me vazia – murmurou. – Quer-te dentro de mim. Ele tocou-a com uma mão e fechou os olhos.

– Estás tão pronta – disse com a voz enrouquecida.

– Oh! – exclamou ela, encostando-se ao dedo dele, à carícia dura do polegar. – Eu... pode... sim! – O sol dourado entrou de novo nela para lhe percorrer as veias.

Quin esperou que os espasmos acalmassem, depois colocou-lhe as mãos enormes debaixo do traseiro. Tinha no rosto uma expressão desesperada, mas ao mesmo tempo cautelosa.

– Quero o teu... – disse ela, mas teve de se deter com a respiração entrecortada.

Um leve riso iluminou o olhar.

– Não te atreva falando num ariete, Olivia Lytton.

Ela estendeu os lábios, encantada com o modo como ele os olhava.

– Mas eu quero – e era verdade.

Se possível, Quin sentiu-se ainda maior do que da primeira vez. Mas tudo foi diferente; ela gritou quando ele investiu, mas não de dor. Ergueu instintivamente as pernas e fechou-as em redor das ancas dele, segurando-o com força.

Um grito breve saiu-lhe dos lábios.

– Não... tão depressa não – disse ele ofegante. Apoiou-se nos cotovelos e beijou-a. – Amo-te – as palavras saíram em voz baixa e firme, como a promessa de um guerreiro. Recuou e investiu de novo. Depois parou. – Não há razão para viver sem você, Olivia. Nenhuma razão.

Olivia sentiu os lábios trémulos e os olhos cheios de lágrimas. Mas ele baixou a cabeça e beijou-a mais uma vez.

– Nada de lágrimas – disse ele. – Estás viva. Estou vivo. Estamos vivos.

– Amo-te – disse ela com as mãos trémulas, tentando puxá-lo ainda mais para si. – Amo-te tanto, Quin. – Os olhos de ambos encontraram-se. – Por favor – disse ela, sem saber o que estava a pedir. Mas Quin sabia e ela tomou o que ele lhe ofereceu, tomou-o e retribuiu.


33

O Mérito das Palavras Simples

Quin não encontrou as palavras certas senão depois de se terem lavado no riozinho e se terem vestido. Mas, pelo menos, dessa vez, não se incomodou que as palavras que queria dizer não surgissem imediatamente: o que ele e Olivia sentiam ultrapassava a linguagem. Quin apercebia-se que era como a luz, uma coisa simples que se dividia num arco-íris quando examinada de perto.

– Mudaste o meu coração – disse ele por fim – Nunca me sentirei bem se não souber onde está.

O brilho dos olhos de Olivia ameaçava transbordar de novo. Mas ela sentia-se segura nos braços de Quin. Este começou a andar, baixando a cabeça para lhe limpar as lágrimas com beijos.

Para chegarem à enseada protegida pelas árvores, tinham ainda de percorrer um longo caminho através do bosque e ele não dormia havia dois dias. Porém, os murmúrios de Olivia davam-lhe força, tal como tudo o que ela lhe dizia, até as quintilhas mais tolas só significavam uma coisa: ela amava aquele homem frio e pouco emotivo que Evangeline considerara incapaz de ser amado.

Quando chegaram ao barco a remos, Grooper dormia na margem com Lucy enroscada debaixo do braço. E o mundo, o mundo de Quin, estava no seu devido lugar, tal como estaria para o resto da sua vida.

Quando a carruagem chegou a Littlebourne seguida por outra, coberta de negro, que trazia o corpo de Rupert, toda a casa os veio receber.

O duque de Canterwick – ainda pouco firme depois de tanto tempo inconsciente – agarrou-se às mãos de ambos e agradeceu-lhes por terem trazido o filho para casa. Depois partiu, completamente arrasado.

A duquesa viúva de Sconce quebrou o seu mais estimado mandamento no que dizia respeito à compostura de uma dama e debulhou-se em lágrimas à vista de todos.

Ms. Georgiana Lytton soltou um grito, agarrou a irmã e abanou-a com força. Não vale a pena dizer que os soluços e o pranto de felicidade indicam que uma pessoa pôs de lado (nem que seja por momentos) preceitos como A sua compostura deve sempre aumentar a sua honra. Felizmente os pais de Georgie e Olivia não estavam ali para ver dispensadas as leis gerais do universo (pelo menos na ideia de Mrs. Lytton).

A pobre Mrs. Lytton teria ficado ainda mais chocada se tivesse ouvido a conversa das filhas no final do dia.

– Mas não consegue suportar Lady Cecily por mais de meia hora! Vai ficar louca dentro de uma semana. Não te lembra da viagem para aqui quando você e eu...

– Não interessa – disse Georgiana com firmeza. – O sobrinho de Lady Cecily é professor universitário em Oxford, Olivia. Professor universitário!

Olivia posou a xícara de chá e olhou para a irmã.

– Deve ser bom ser professor universitário.

Georgiana ignorou aquilo; estava cheia de entusiasmo, coisa que não parecia própria da sua pessoa.

– Mister Holmes começa uma série de conferências sobre a Mecanique Céleste, de Laplace, e os Principia, de Newton, na semana que vem. As mulheres não podem assistir a essas conferência, mas claro que não vai impedir a própria tia!

– E a sua acompanhante. Mas, Georgie, tem a certeza que consegue aguentar? Lembra-te que a docência parece ser uma característica da família. Arriscas-te a ter de suportar horas a ouvir as opiniões de Lady Cecily acerca dos processos digestivos.

– Lady Cecily é muito boa, Olivia. Vê bem; vai assistir a todas essas conferências só por minha causa.

– Vai fazer exatamente o que eu faria no seu lugar e dormir o tempo todo.

– Se tivesse de ser acompanhante de um assassino para ir a uma dessas conferências, a faria – disse Georgiana com convicção.

– Levantas uma questão interessante – respondeu Olivia, maliciosa. – Será que o santo Mister Bumtrinket, o defunto marido da própria Lady Cecily, se finou de uma morte suspeita, talvez de uma poção comprada a um charlatão de Veneza?

– Olivia! – exclamou Georgiana chocada como sempre.

– Pior! E se é levada a cometer um homicídio?

– Para com isso! Esta ser muito inconveniente.

– Era uma vez uma velha faladora chamada Bumtrinket, que falava todo o dia e toda a noite, cantava como um grilo – disse Olivia rindo às gargalhadas e fugindo quando a irmã a quis agarrar pela manga. – Falava sem cessar, estava sempre a cantar. Até que o namorado tratou de a açoitar!

– É muito malvada! – A princesa perfeita correu atrás da princesa imperfeita à volta do sofá da biblioteca antes de se lembrar que a dignidade, a virtude, a afabilidade e o comportamento evitavam o assalto ao corpo.

O mundo de Olivia, como o de Quin estava firmemente construído. Georgie poderia partir para Oxford, renunciando a um lugar de duquesa, mas as sobras do programa de duquesificação nunca a abandonariam. E Olivia estava prestes a realizar o maior desejo da mãe... embora, verdade fosse dita, o seu sucesso estivesse diretamente ligado com as falhas desse mesmo programa.

Quin e Olivia caminhavam atrás do duque de Canterwick quando Rupert foi enterrado com todas as honras: não no túmulo da família, mas na Abadia de Westminster como convinha a um herói inglês que caminhara pelas nuvens da glória. O seu lugar ficou marcado com uma simples placa de mármore com o seu nome gravado e um fragmento de um estranho poema.

Anos depois, um jovem poeta de nome Keats refletiria longamente sobre a inscrição durante toda uma tarde. Passado algum tempo, um poeta de meia-idade chamado Auden sentiu-se fascinado por ele uma semana inteira. Cinquenta anos depois, uma dissertação erudita discutiria as complexidades da fragmentação... mas isso seria, no futuro, um quebra-cabeças que ficaria para os interessados nas voltas da língua.

Para Tarquin Brook-Chatfield, duque de Sconce, as palavras complicadas nunca tinham a mesma força encantatória de antes do seu segundo casamento. Nunca se preocupava por não poder encontrar as certas.

Havia apenas uma expressão que de fato interessava e que o casal repetia constantemente:

– Amo-te; amo-te; amo-te.

– Amo-te.


Epílogo

Treze anos depois

A jovem tinha cabelo cor de ébano com uma madeixa branca caída para a testa. Lady Penelope Brook-Chatfield não sabia ainda – embora, com doze anos, começasse a aperceber-se – que era a mais bela dama da sua idade entre Kent e Londres e talvez até depois da capital. Lábios de cereja, maçãs do rosto salientes e o grito de uma amazona.

– Ainda por cima – resmungava Quin –, vai ser um horror. Vão fazer fila para a pedir em casamento e depois teremos de dar uma compensação ao seu pobre marido.

– Ora – disse Olivia em tom indolente, desfrutando do calor do verão à sombra do ulmeiro favorito de ambos, aquele que ficava no extremo de Ladybird Ridge e sob cujos ramos esvoaçavam pequenas borboletas.

Penelope corria por ali, atrás de um dos primos com um grito que fazia lembrar uma das novas locomotivas a vapor.

– O meu pai também é! – gritava. – O meu pai é valente!

– Não parece valente – comentou Olivia, metendo as mãos no cabelo de Quin, que, deitado na manta a seu lado, murmurava coisas para o ventre inchado que se erguia entre os dois.

– Estou tratando bem do bebê novo – disse ele depositando um beijo no lugar certo. – Vou guardar toda a minha valentia para os primeiros pretendentes da menina Penelope.

Na árvore, por cima deles, ouvia-se um restolhar.

– Cuidado – avisou Quin. – A sua mãe está aqui e temos de ser muito cuidadosos nestes dias, bem sabe.

– Eu sei.

Chovera muito naquele verão e a árvore estava carregada de folhas escuras. Um par de pernas finas surgiu da copa e balançaram um momento até Quin se pôr de pé, agarrá-las e colocar o filho no chão.

– Papá! – guinchou Penelope correndo para eles, com o cabelo ao vento. Devia ter perdido outra fita.

– A tia Georgie diz que o papai nunca matou piratas, por isso vá lá dizer-lhe que faz isso muitas vezes!

– Devia ensinar-lhe melhor o que pode e não pode fazer uma milícia local – murmurou Olivia

Quin pôs as mãos nas ancas e gritou:

– Diz à tia Georgiana que é o tio Justin que é bom a dar cabo dos piratas. Penelope chegou, toda ela pernas e cabelo sedoso. Agarrou-lhe na mão.

– Isso é absurdo, papai. Bem sabe que o tio Justin está sempre ocupado a cantar. Se quisesse matar um pirata, podia fazê-lo antes do pequeno-almoço. Venha dizer isso à tia Georgie – e arrastou-o atrás de si.

Master Leo Rupert, que detinha o título de Lorde Calderon (embora ainda não o soubesse), caiu de joelhos diante da mãe para lhe mostrar uma coleção de raminhos, todos precisamente do mesmo tamanho. Leo era imaginativo, sonhador e muito mais sossegado do que Penelope. Pensava o mais que podia, muito mais que as outras crianças de cinco anos.

– Pode construir-me qualquer coisa com os pauzinhos? – perguntou Olivia sentando-se com alguma dificuldade. – Talvez uma casa.

– Sou demasiado pequeno para construir uma casa – declarou Leo com uma sombra de enfado. – As pessoas da minha idade não constroem casas, sabe muito bem – guardou cuidadosamente os pauzinhos no bolso e levantou-se com os joelhos sujos.

– Que vai fazer com eles?

– Alfie e eu vamos construir uma estrada. Vou pedir ao tio Justin que nos ajude – depois lançou um sorriso à mãe, um sorriso ainda mais belo por ser grave e raramente usado.

– Onde está a Lucy?

– Está sentada na charrete – disse Olivia. – Sabe que agora a Lucy não gosta de sair do colo da vovó.

– Vou mostrar os pauzinhos à vovó – disse afastando-se

Olivia viu-o partir e ficou pensando. O marido voltou e sentou-se atrás dela, pousando as mãos abertas no ventre e puxando-a para o seu peito quente.

– Este bebê é maior do que os outros dois – observou.

– Quin, acha que é mesmo verdade que o Leo brinca sempre com um amigo chamado Alfie... que só ele consegue ver?

Quin puxou-a ainda mais para si e beijou-lhe a orelha.

– Julgas que ele o faz porque o seu papai fica contente?

Olivia encostou a cabeça ao ombro dele.

– Não. O Leo diria que o Alfie é seu amigo como tantas vezes o disse neste último ano. Quanto ao tamanho da minha barriga, começo pensando que possam ser gêmeos.

– Que possam ser gêmeos? – exclamou Quin. – Não poderá repensar essa ideia. Não sei bem se podemos nos arranjar com mais dois.

Olivia riu.

– Será este o mesmo homem que disse que queria a casa cheia de crianças?

– Foi antes de saber o barulho que fazem. Com os dois de Georgiana e o menino de Justin que chega amanhã... e sabe que essa criança é um perfeito terror, Olivia... os alicerces da casa tremem.

– Beija-me – pediu Olivia erguendo os olhos para o belo príncipe guerreiro que tinha por marido.

O primeiro beijo foi de adoração, mas gradualmente foi-se aprofundando até se transformar num beijo possessivo. As mãos de Quin percorreram o ventre e depois os seios numa curva mais suave e voluptuosa.

– Não pode – disse Olivia um pouco ofegante algum tempo depois. Tinham ambos uma respiração apressada.

– Vamos para casa – disse-lhe ele ao ouvido. – Quero-te. Quero a minha mulher numa tarde de um domingo do verão inglês. Quero-a nua, deitada na nossa cama, para que possa...

Penelope veio aos saltos para junto deles.

– Estão outra vez aos beijos? A vovó diz que é hora de irmos para casa e a ama disse que temos tarte de limão para o lanche. Venham! – E partiu a correr com as botas a brilhar por baixo das saias.

Quin ajudou a sua amada a levantar-se, tomou-lhe a mão e divertiu-a até à charrete murmurando tais sugestões que ela chegou rosada ao final de Ladybird Ridge.

– Ora – exclamou a duquesa ao ver o rosto de Olivia. – Não me espanta que esteja muito calor. A Lucy também já se sente mal.

Quin inclinou-se e puxou a orelha de Lucy.

– Então temos de ir para casa – disse, acenando ao criado que conduzia a segunda charrete com os filhos e os primos. Tomou as rédeas da sua. – Não podemos incomodar a Lucy. E creio que a minha mulher precisaria também de...

Olivia deu-lhe uma cotovelada.

– De uma sesta – disse ele, beijando-lhe o nariz.

A duquesa viúva olhou para os dois e depois para os belos campos que se espraiavam na propriedade dos Sconce. Nem todos os dias agradecia a Deus ter escolhido Georgiana para realizar os testes absurdos que havia imaginado e que Georgiana tivesse trazido Olivia.

Mas quase todos os dias.

 

 

                                                   Eloisa James         

 

 

 

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