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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ECHO PARK / Michael Connelly
ECHO PARK / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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HIGH TOWER - 1993
Era o carro que eles estavam procurando. A placa sumira, mas Harry Bosch não tinha dúvida. Era um Honda Accord 1987, a pintura marrom há muito desbotada pelo sol. Fora atualizado em 1992 com o adesivo verde da campanha de Clinton no para-choque, mas agora até o adesivo estava desbotado. Fora feito com tinta barata, não era para durar muito. Era do tempo em que a eleição estava aparentemente perdida. O carro estava parado em uma garagem individual tão estreita que Bosch se perguntou como o motorista conseguira sair. Ele sabia que teria que dizer ao pessoal da Polícia Científica para redobrar o cuidado na verificação de impressões digitais do lado de fora do carro e na parede interna da garagem. Eles não iam gostar muito de ouvir aquilo, mas ele ficaria muito ansioso se não dissesse. A garagem tinha uma porta de correr verticalmente, com uma alça de alumínio. Não era bom para digitais, mas Bosch também apontaria isso para o pessoal da Científica.
- Quem o encontrou? Perguntou ele a um dos policiais. Eles tinham acabado de atravessar a fita amarela na entrada do beco sem saída formado pelas duas fileiras de garagens individuais dos dois lados da rua e na entrada do complexo de apartamentos High Tower.
- O administrador, respondeu o policial mais graduado. - A garagem é de um apartamento que agora está vago, então ele achava que estava vazia. Alguns dias atrás ele a abriu porque precisava guardar uns móveis e outras coisas e viu o carro. Ele pensou que pudesse ser alguém visitando algum dos outros inquilinos e deixou passar alguns dias, mas o carro continuou no mesmo lugar, então ele começou a perguntar aos inquilinos sobre ele. Ninguém conhecia o carro. Ninguém sabia de quem era. Então ele ligou para nós porque pensou que o carro poderia ser roubado, já que estava sem as placas. Eu e meu parceiro estávamos com o boletim sobre Gesto no para-brisa. Assim que chegamos aqui, foi fácil juntar as coisas.
Bosch balançou a cabeça afirmativamente e se aproximou da garagem. Respirou fundo pelo nariz. Já fazia dez dias que Marie Gesto havia desaparecido. Se ela estivesse no porta-malas, ele teria sentido o cheiro. Seu parceiro, Jerry Edgar, se juntou a ele.
- Alguma coisa? Perguntou ele.
- Acho que não.
- Ótimo.
- Ótimo?
- Eu não gosto de casos que envolvem porta-malas.
- Se ao menos encontrássemos a vítima, ajudaria no trabalho.

 

 

 


 

 

 


Aquela conversa era só provocação, e os olhos de Bosch percorreram o carro, à procura de alguma coisa que pudesse ajudá-los. Sem conseguir ver nada, ele tirou um par de luvas de látex do bolso do casaco, assoprou-as como se fossem balões para esticar a borracha e colocou-as nas mãos. Ergueu os braços como um cirurgião entrando em um centro cirúrgico e se virou de lado para tentar entrar na garagem e chegar à porta do motorista sem tocar nem se encostar a nada. À medida que entrava na garagem, ele deslizava mais e mais para o escuro. Afastou teias de aranha do rosto. Saiu da garagem de novo e perguntou ao patrulheiro se poderia usar a lanterna que ele trazia no cinto. Depois de voltar à garagem, acendeu a lanterna e jogou o foco de luz através da janela do Honda. Examinou primeiro o banco de trás. As botas e o capacete de equitação estavam em cima do banco. Havia um pequeno saco plástico ao lado das botas, com o logotipo do supermercado M
ayfair. Não saberia dizer o que havia dentro do saco, mas notou que aquilo abria um ângulo na investigação sobre o qual ele ainda não havia pensado.


Passou para frente. No banco do passageiro havia uma pilha de roupas bem dobradas sobre um par de tênis de corrida. Ele reconheceu a calça jeans e a camiseta de manga comprida, a roupa que Marie Gesto estava usando quando foi vista pela última vez por testemunhas, se dirigindo a Beachwood Canyon para cavalgar. Por cima da camiseta havia um par de meias cuidadosamente dobradas, uma calcinha e um sutiã. Bosch sentiu o golpe surdo de temor no peito. Não por entender as roupas como uma confirmação de que Marie Gesto estivesse morta. No fundo, ele já sabia disso. Todo mundo sabia, até mesmo os pais que apareceram na TV e imploraram pela volta da filha em segurança. Esse fora o motivo pelo qual o caso havia sido tirado de Pessoas Desaparecidas e realocado para a Homicídios de Hollywood. Foram as roupas que incomodaram Bosch. A maneira cuidadosa como estavam dobradas. Foi ela quem fez aquilo? Ou será que foi a pessoa que a tirou deste mundo? Aquelas pergunti
nhas sempre o incomodavam, enchendo de medo seu vazio interior. Depois de examinar o restante do carro através do vidro, Bosch saiu cuidadosamente da garagem.

- Alguma coisa? Perguntou Edgar de novo.

- As roupas dela. O equipamento de equitação. Talvez umas compras de supermercado. Tem um Mayfair no fim da Beachwood. Pode ser que ela tenha parado lá a caminho dos estábulos. Edgar balançou a cabeça afirmativamente. Uma nova pista para verificar, um lugar onde procurar testemunhas.

Bosch saiu de baixo da porta e olhou para cima, para os apartamentos High Tower. Era um lugar incomum em Hollywood. Um conglomerado de apartamentos de granito construídos nas colinas atrás do Hollywood Bowl. O estilo era “Streamline Moderne”, todos ligados ao centro pela estrutura estreita que abrigava o elevador, a torre alta que batizava a rua e todo o complexo. Bosch tinha morado naquele bairro por um tempo quando era criança. De sua casa, em Camrose, ele podia ouvir as orquestras ensaiando na concha acústica nos dias de verão. Se ficasse em pé no telhado, conseguiria ver os fogos de artifício no Quatro de Julho e no final da temporada. À noite ele via as luzes das janelas na High Tower brilhando. Via também o elevador passar na frente delas ao subir, deixando mais uma pessoa em sua casa. Quando criança, ele pensava que morar em um lugar onde tivesse que pegar um elevador para ir para casa era o máximo do luxo.

- Onde está o administrador? Perguntou ao patrulheiro com duas listras nas mangas.

- Ele subiu. Disse para pegar o elevador até o fim e que a porta dele é a primeira no final da passarela.

- Ok, vamos subir. Vocês esperam aqui pelo pessoal da Divisão de Investigações Científicas e da Garagem da Polícia. Não deixem o pessoal do reboque tocar no carro até que a Científica dê uma olhada nele.

- Pode deixar.

O elevador da torre era um pequeno cubo que balançou com o peso deles quando Edgar abriu uma porta de correr e eles entraram. Então a porta se fechou automaticamente e eles tiveram também que fechar uma outra porta de segurança. Havia apenas dois botões, 1 e 2. Bosch apertou o 2 e o elevador subiu balançando. Era um lugar pequeno, com espaço suficiente para no máximo quatro pessoas antes que todos começassem a sentir o hálito uns dos outros.

- Vou dizer uma coisa, comentou Edgar, - Com certeza ninguém neste lugar tem piano.

- Brilhante dedução, Watson, disse Bosch.

Ao chegarem ao nível superior, abriram as portas e saíram sobre uma passarela de concreto suspensa entre a torre e os apartamentos separados construídos na encosta. Bosch se virou e olhou para trás, para além da torre, e encontrou uma vista que abrangia quase toda Hollywood, acrescida de uma brisa de montanha. Olhou para cima e viu um falcão de cauda vermelha planando sobre a torre, como se os estivesse vigiando.

- É aqui, disse Edgar.

Bosch se virou para ver seu parceiro apontando para uma pequena escada que levava à porta de um dos apartamentos. Embaixo da campainha havia uma placa onde se lia ADMINISTRADOR. Antes que chegassem à porta, ela foi aberta por um homem magro de barba branca. Ele se apresentou como Milano Kay, o administrador do complexo de apartamentos. Depois de se identificarem, Bosch e Edgar perguntaram se podiam ver o apartamento vago que correspondia à garagem em que estava o Honda. Kay foi à frente. Eles voltaram, passando pela torre e percorrendo outra passarela que levava à porta de um apartamento. Kay destrancou a porta com uma chave.

- Eu conheço este lugar, disse Edgar. Este complexo e o elevador já apareceram em filmes, não é?

- Isso mesmo, respondeu Kay. - Algumas vezes nos últimos anos.

Fazia sentido, pensou Bosch. Um lugar tão incomum como aquele não iria escapar aos olhos da indústria local. Kay abriu a porta e fez um gesto para que Bosch e Edgar entrassem primeiro. O apartamento era pequeno e estava vazio. Havia uma sala, uma cozinha com uma pequena mesa embutida e um quarto com banheiro. Tinha menos de 40 metros quadrados, e Bosch sabia que, mobiliado, pareceria ainda menor. Mas a vista é que importava naquele imóvel. Uma parede curva com janelas oferecia a mesma visão de Hollywood que se tinha da passarela da torre. Uma porta de vidro levava para uma varanda que acompanhava a curva do vidro. Bosch saiu e notou que a vista se ampliava do lado de fora. Ele conseguia ver as torres do centro da cidade através da mistura de fumaça e neblina. Sabia que a vista seria ainda melhor à noite.

- Há quanto tempo este apartamento está vago? Perguntou.

- Cinco semanas, respondeu Kay.

- Eu não vi uma placa de ALUGA-SE lá embaixo. Bosch olhou para baixo e viu os dois patrulheiros esperando pela Polícia Científica e pelo caminhão de reboque da garagem da polícia. Estavam em lados opostos da viatura, encostados no capô, de costas um para o outro. Não parecia ser uma parceria muito bem-sucedida.

- Eu nunca preciso colocar placas, explicou Kay. - A notícia de que temos um apartamento vago geralmente circula com rapidez. Muita gente quer morar aqui. É um lugar original de Hollywood. Além disso, eu o estou reformando, repintando e fazendo pequenos consertos. Não estava com a menor pressa.

- Quanto é o aluguel? Perguntou Edgar.

- Mil por mês. Edgar assobiou. Pareceu alto para Bosch também. Mas a vista lhe dizia que haveria alguém a pagar por ela.

- Quem saberia que a garagem lá embaixo estava vazia? Perguntou ele, retomando o foco.

- Poucas pessoas. Os moradores daqui, é claro, e nas últimas semanas mostrei o lugar para muitos interessados. Eu geralmente mostro a garagem. Quando saio de férias, há um inquilino que mais ou menos toma conta das coisas para mim. Ele mostrou o apartamento também.

- A garagem fica destrancada?

- Sim. Não há nada ali para ser roubado. Quando chegam novos inquilinos, eles podem optar por colocar um cadeado, se quiserem. Eu os deixo à vontade para escolher, mas sempre recomendo que coloquem.

- O senhor tem algum tipo de registro das pessoas para quem mostrou o apartamento?

- Na verdade, não. Pode ser que eu ainda tenha alguns números de telefone, mas é inútil guardar o nome das pessoas, a menos que venham a alugar. E, como podem ver, isso não aconteceu. Bosch balançou a cabeça afirmativamente. Seria difícil explorar aquele ângulo. Muitas pessoas sabiam que a garagem estava vazia, destrancada e disponível.

- E o inquilino anterior? Perguntou. - O que aconteceu com ele?

- Na verdade, era uma mulher, respondeu Kay. - Morou aqui durante cinco anos, tentando fazer sucesso como atriz. Acabou desistindo e voltou para casa.

- É uma cidade difícil. E onde era a casa dela?

- Eu mandei o dinheiro do depósito para Austin, Texas. Bosch balançou a cabeça de novo. - Ela morava aqui sozinha?

- Tinha um namorado que a visitava e ficava bastante tempo, mas acho que o namoro acabou antes de ela sair.

- Vamos precisar desse endereço no Texas. Kay concordou com um movimento de cabeça. - Os policiais disseram que o carro pertencia a uma garota desaparecida, disse ele.

- Uma mulher jovem, disse Bosch. Ele enfiou a mão em um bolso interno do paletó e tirou uma fotografia de Marie Gesto. Mostrou-a para Kay e perguntou se ele a reconhecia como uma das pessoas que teriam olhado o apartamento. Ele disse que não.

- Nem mesmo da TV? Perguntou Edgar. - Ela está desaparecida há dez dias e saiu no noticiário.

- Eu não tenho TV, detetive, disse Kay. Sem televisão. Nesta cidade aquilo o qualificava como um livre-pensador, Bosch considerou.

- Ela apareceu nos jornais também, tentou Edgar.

- Eu leio os jornais de vez em quando, disse Kay. - Eu os pego no latão de reciclagem lá embaixo. Geralmente estão velhos quando eu os leio. Mas não vi nenhuma matéria sobre ela.

- Ela desapareceu há dez dias, disse Bosch. - Isso foi no dia 9, quinta-feira. Lembra-se de alguma coisa nessa data? Alguma coisa incomum por aqui? Kay balançou a cabeça.

- Eu não estava aqui. Estava em férias na Itália. Bosch sorriu.

- Eu adoro a Itália. Para onde foi? O rosto de Kay se iluminou.

- Fui até o lago Como e depois para uma cidadezinha de montanha chamada Asolo. É onde Robert Browning morou. Bosch balançou a cabeça como se conhecesse os lugares e soubesse quem era Robert Browning.

- Temos companhia, disse Edgar. Bosch seguiu o olhar do parceiro até o beco sem saída que era a entrada do complexo. Um caminhão de uma emissora de televisão com uma antena parabólica em cima e um grande número 9 pintado nas laterais parou na frente da faixa amarela de contenção. Um dos patrulheiros estava andando na direção do veículo. Harry voltou a olhar para o administrador.

- Sr. Kay, vamos precisar conversar de novo mais tarde. Se puder, veja quais números ou nomes consegue encontrar de pessoas que viram o apartamento ou ligaram pedindo informações sobre ele. Também vamos precisar conversar com a pessoa que ficou cuidando das coisas quando o senhor esteve na Itália e precisaremos do nome e endereço da antiga inquilina que voltou para o Texas.

- Sem problema.

- E vamos precisar conversar com o resto dos inquilinos para descobrir se alguém viu o carro sendo deixado na garagem. Vamos tentar não ser muito inconvenientes.

- Nada disso será um problema. Vou ver o que consigo desenterrar em relação aos números.

Eles saíram do apartamento e caminharam com Kay de volta ao elevador. Despediram-se do administrador e desceram, o cubo de aço balançando de novo antes de iniciar a descida.

- Harry, eu não sabia que você adorava a Itália, comentou Edgar.

- Nunca estive lá. Edgar balançou a cabeça, percebendo que fora uma tática para fazer Kay falar, para poder registrar mais informações sobre o álibi.

- Você está desconfiado dele? Perguntou.

- Na verdade, não. Só estou cobrindo todos os ângulos. Além disso, se tivesse sido ele, por que guardar o carro em uma das garagens deste lugar? Por que chamar a gente?

- É. Mas, por outro lado, talvez ele seja esperto o suficiente para saber que acharíamos que ele é esperto o suficiente para fazer isso. Entende o que eu quero dizer? Talvez ele esteja nos passando a perna, Harry. Talvez a garota tenha vindo ver o lugar e as coisas tenham dado errado. Ele esconde o corpo, mas sabe que não pode mover o carro porque poderia ser pego pelos patrulheiros. Então espera dez dias e nos chama como se pensasse que pode ser roubado. - Então talvez você deva verificar o álibi italiano dele, Watson.

- Por que eu sou o Watson? Por que não posso ser o Holmes?

- Porque o Watson é o cara que fala demais. Mas, se quiser, posso começar a chamá-lo de “Homes”. Talvez fique melhor.

- O que está lhe incomodando, Harry? Bosch pensou na roupa cuidadosamente dobrada no banco da frente do Honda. Sentiu a pressão dentro do peito de novo. Como se seu corpo estivesse enrolado em um fio que fosse apertado por trás.

- O que está me incomodando é que tenho um pressentimento ruim sobre este caso.

- Que tipo de pressentimento ruim?

- O tipo que me diz que nunca vamos encontrá-la. E se nunca a encontrarmos, então nunca vamos encontrá-lo.

- O assassino? O elevador parou bruscamente com um solavanco. Bosch abriu as portas. No final do túnel curto que levava à entrada e às garagens, ele viu uma mulher segurando um microfone e um homem segurando uma câmera de televisão.

- É, disse ele. - O assassino.

 

PARTE UM

O ASSASSINO

CAPÍTULO 1

O telefonema veio enquanto Harry Bosch e sua parceira, Kiz Rider, estavam em suas mesas na Unidade de Casos Abertos/Não Resolvidos, terminando a papelada do caso Matarese. No dia anterior eles haviam passado seis horas em uma sala com Victor Matarese, discutindo o assassinato, em 1996, de uma prostituta chamada Charisse Witherspoon. DNA extraído de sêmen encontrado na garganta da vítima e guardado por dez anos revelou ser idêntico ao de Matarese. Foi um tiro no escuro. O perfil de DNA dele fora arquivado pelo Departamento de Justiça em 2002, depois de uma acusação de estupro violento. Passaram-se mais quatro anos até que Bosch e Rider reabriram o caso Witherspoon, conseguiram a amostra de DNA e enviaram para o laboratório estadual sem saber o que poderia acontecer. Foi um caso que se estabeleceu inicialmente no laboratório. Mas, pelo fato de Charisse Witherspoon ter sido uma prostituta ativa, fazer o teste de DNA não foi uma decisão automática. O
DNA poderia pertencer a alguém que tivesse estado com ela antes que seu assassino aparecesse e acertasse sua cabeça várias vezes com um pedaço de pau. Assim, o caso não se resolveria com a ajuda da ciência, e sim com a ajuda da sala de interrogatórios e do que eles conseguissem com Matarese. Às oito da manhã eles o acordaram na casa em que fora colocado para cumprir sua condicional no caso de estupro e o levaram para o Parker Center. As primeiras cinco horas na sala de interrogatórios foram exaustivas. Na sexta hora ele finalmente cedeu e entregou tudo, confessando ter matado Witherspoon e mais três outras mulheres, todas prostitutas que ele havia assassinado no sul da Flórida antes de vir para Los Angeles. Quando Bosch ouviu a voz no sistema interno de som pedindo para atender à linha um, pensou que fosse o pessoal de Miami retornando sua ligação. Não era.

- Bosch, disse ele pegando o telefone.

- Freddy Olivas. Homicídios, Divisão Noroeste. Estou aqui nos Arquivos Públicos procurando uma pasta e eles dizem que você a retirou.

- Eu tirei vários arquivos daí, disse Bosch. - Sobre qual estamos falando?

- Gesto. Marie Gesto. É um caso de 1993. Bosch não respondeu de imediato. Sentiu um aperto no estômago. Isso sempre acontecia quando ele pensava em Gesto, mesmo 13 anos depois. Em sua mente, a imagem que sempre aparecia era a daquelas roupas dobradas com tanto cuidado sobre o banco da frente do carro.

- Sei, está comigo. Qual é o problema? Ele notou que Rider levantou a cabeça ao notar a mudança no seu tom de voz. As mesas dos dois ficavam em um vão na sala e eram colocadas uma em frente à outra, de forma que Bosch e Rider ficavam um de frente para o outro quando trabalhavam ali.

- É um assunto meio delicado, disse Olivas. - Confidencial. Está relacionado a um caso que estou investigando e o promotor só quer dar uma olhada no arquivo. Será que eu poderia dar uma passada por aí e pegar a pasta com você?

- Você tem um suspeito, Olivas? Olivas não respondeu de imediato, e Bosch fez outra pergunta. - Quem é o promotor? Mais uma vez não houve resposta. Bosch decidiu não ceder. - Veja bem, Olivas, o caso está em curso. Estou trabalhando nele e tenho um suspeito. Se você quiser conversar comigo, então vamos conversar. Se você tem alguma coisa do seu lado, então eu faço parte dela. Caso contrário, eu estou ocupado. Tenha um bom dia. Ok? Bosch estava prestes a desligar quando Olivas finalmente falou. O tom amigável tinha desaparecido de sua voz.

- Vou lhe dizer uma coisa, Figurão, vou dar um telefonema. Ligo para você já, já. Ele desligou sem se despedir. Bosch olhou para Rider. - Marie Gesto, disse ele. - A promotoria quer o arquivo.

- Esse caso é seu. Quem era no telefone?

- Um cara da Noroeste. Freddy Olivas. Conhece? Rider balançou a cabeça afirmativamente. - Não o conheço pessoalmente, mas já ouvi falar dele. É o principal investigador no caso Raynard Waits. Você sabe qual é. Agora Bosch reconhecia o nome.

O caso Waits era importante. Olivas provavelmente o via como sua passagem para o grande show. O Departamento de Polícia de Los Angeles estava organizado em 19 divisões geográficas, cada uma delas com uma delegacia e seu próprio departamento de investigação. As unidades de Homicídios cuidavam dos casos menos complicados e os cargos eram vistos como trampolins para os esquadrões de elite da DFH, Divisão de Furtos-Homicídios, cuja base era o quartel-general da polícia em Parker Center. Esse era o grande show. E um desses esquadrões era a Unidade de Abertos/Não Resolvidos. Bosch sabia que, se o interesse de Olivas no arquivo de Gesto estivesse mesmo que remotamente ligado ao caso Waits, então ele guardaria com cuidado sua posição contra a intromissão vinda da DFH.

- Ele não disse o que está acontecendo por lá? Perguntou Rider.

- Ainda não. Mas deve ser alguma coisa. Não me disse nem quem era o promotor com quem ele está trabalhando.

- Ricochete.

- O quê? Ela repetiu mais devagar.

- Rick O’Shea. Ele estava com o caso de Waits. Duvido que Olivas tenha alguma coisa a mais. Eles terminaram a preliminar e estão indo para julgamento.

Bosch não disse nada enquanto refletia sobre as possibilidades. Richard “Ricochete” O’Shea chefiava a Seção de Ações Penais Especiais do gabinete da Promotoria. Era uma figura importante e estava em vias de ficar mais importante ainda. Depois que fora divulgado que o procurador efetivo não queria ser reeleito, O’Shea estava entre o punhado de promotores e advogados que se candidataram ao cargo. Ele conseguira mais votos no primeiro turno, mas não exatamente a maioria. O segundo turno estava se transformando em uma corrida muito mais acirrada, mas O’Shea ainda corria por dentro. Ele tinha o apoio do atual Procurador, conhecia o cargo pelo avesso e possuía um currículo invejável como promotor que vencera grandes casos, um atributo aparentemente raro no gabinete da Promotoria na última década.

Seu adversário se chamava Gabriel Williams. Ele estava correndo por fora e suas credenciais incluíam atividade como promotor, mas havia passado as duas últimas décadas no setor privado, principalmente cuidando de casos de direitos civis. Ele era negro, enquanto O’Shea era branco. Estava concorrendo com a promessa de ser o vigia e reformador das práticas de cumprimento da lei no condado. Enquanto os partidários de O’Shea ridicularizavam a plataforma de Williams e suas qualificações para o cargo de promotor máximo, era evidente que sua posição periférica e plataforma reformista estavam ganhando posições no jogo eleitoral. A diferença entre os dois estava diminuindo. Bosch sabia o que estava acontecendo nas campanhas de Williams e O’Shea porque este ano ele tinha acompanhado as eleições com um interesse que nunca havia demonstrado.

Em uma disputa discutível para um assento na câmara dos vereadores, ele estava apoiando um candidato chamado Martin Maizel. Maizel era um veterano que representava um distrito na área leste bem longe de onde Bosch morava. Ele era visto, de maneira geral, como o típico político que fazia promessas em bastidores e estava preso aos interesses dos grandes investidores em detrimento dos de seu próprio distrito. Mesmo assim, Bosch havia feito contribuições generosas para a campanha dele e esperava ver sua reeleição. Seu adversário era um antigo chefe de polícia chamado Irvin R. Irving, e Bosch faria qualquer coisa a seu alcance para ver Irving derrotado. Assim como Gabriel Williams, Irving estava prometendo reformas e o alvo de sua campanha era sempre o departamento de Polícia de Los Angeles. Bosch havia batido de frente com Irving inúmeras vezes enquanto trabalhara no departamento. Ele não queria ver aquele homem ocupando um lugar na câmara dos ver
eadores.

As histórias de eleições e os resumos de noticiários que eram publicados quase diariamente no Times tinham mantido Bosch bem informado sobre outras disputas além daquela que envolvia Maizel e Irving. Ele sabia tudo sobre a briga na qual O’Shea estava envolvido. O promotor estava alimentando sua candidatura com anúncios que valorizavam seu perfil e com processos destinados a mostrar o valor de sua experiência. No mês passado ele havia explorado com sucesso a audiência preliminar no caso Raynard Waits por meio de manchetes diárias e boletins televisivos de destaque.

O acusado de duplo assassinato fora detido em Echo Park ao ser parado tarde da noite em uma batida policial. Os policiais descobriram, no assoalho da van do sujeito, sacos de lixo de onde pingava sangue. Uma busca posterior revelou pedaços dos corpos de duas mulheres dentro dos sacos. Se alguma vez houvera um episódio violento e evidente que um candidato à Promotoria pudesse usar para conseguir a atenção da mídia, esse certamente era o caso do Homem do Saco de Echo Park. O problema é que as manchetes agora estavam em suspenso. Waits tinha sido encaminhado para julgamento no final da audiência preliminar e, visto que era um caso para pena de morte, esse julgamento e as consequentes manchetes que o acompanhariam iriam ocorrer dali a muitos meses e muito depois da eleição. O’Shea precisava de algo novo para voltar ao noticiário e manter o impulso da campanha. Agora Bosch tinha que descobrir o que o candidato queria em relação ao caso Gesto.

- Você acha que Gesto poderia estar relacionada a Waits? Perguntou Rider.

- O nome dele não apareceu em 1993, disse Bosch. - Nem Echo Park. O telefone tocou e ele atendeu rapidamente. - Abertos/Não Resolvidos. Aqui é o detetive Bosch. Em que posso ajudá-lo?

- Aqui é Olivas. Traga o arquivo até o décimo sexto andar às 11 horas. Você vai ter uma reunião com Richard O’Shea. Você está dentro, Figurão.

- Estaremos aí.

- Espere aí. Que merda é essa de estaremos? Eu disse você, você é quem vai trazer o arquivo.

- Eu trabalho com uma parceira, Olivas. Ela vai comigo. Bosch desligou sem se despedir. Olhou para Rider.

- Estamos dentro, às onze.

- E Matarese?

- A gente pensa em alguma coisa.

Ele pensou por alguns instantes, e então se levantou e foi até um arquivo de metal trancado que ficava atrás dele. Pegou o arquivo de Gesto e levou-o até sua mesa. Desde que saíra da aposentadoria e voltara ao trabalho, um ano antes, ele havia tirado aquela pasta dos Arquivos Públicos em três ocasiões. Em cada uma delas leu o processo todo, deu telefonemas, fez algumas visitas e conversou com algumas das pessoas cujos nomes haviam aparecido na investigação 13 anos atrás. Rider conhecia o caso e sabia o que significava para ele. Ela lhe dava o espaço de que ele precisava para investigá-lo quando não havia mais nada premente. Mas o esforço deu em nada. Não havia DNA, nem impressões digitais, nenhuma pista sobre o paradeiro de Gesto, embora para ele não houvesse dúvidas de que ela estava morta, e nada concreto que levasse a seu sequestrador. Bosch tinha investigado repetidamente o único homem que estivera mais próximo de ser um suspeito
, e não tinha chegado a parte alguma. Ele conseguiu reconstituir o trajeto de Marie Gesto de seu apartamento até o supermercado, mas nada além. Tinha o carro dela em uma garagem nos apartamentos High Tower, mas não conseguiu chegar à pessoa que o deixara lá.

Bosch tinha muitos casos não resolvidos em sua história pessoal. Não dá para resolver todos, e qualquer um que trabalhe em Homicídios reconhece isso. Mas ele não conseguia se livrar do caso Gesto. Vez por outra trabalhava no caso durante mais ou menos uma semana, chegava a um beco sem saída e então devolvia a pasta para os Arquivos Públicos, pensando que tinha feito tudo o que estava ao seu alcance. Mas isso só durava alguns meses: logo ele estaria no balcão preenchendo o requerimento para retirar o arquivo novamente. Não ia desistir.

- Bosch, gritou um dos outros detetives. - Miami na linha dois. Bosch sequer tinha ouvido o telefone tocar.

- Eu atendo, disse Rider. - Sua cabeça está em outro lugar. Ela pegou o telefone, e mais uma vez Bosch abriu o arquivo de Gesto.

 

CAPÍTULO 2

Bosch e Rider se atrasaram dez minutos devido ao acúmulo de pessoas esperando para entrar nos elevadores. Ele odiava ir até o Edifício de Tribunais Criminais, e a causa eram os elevadores. A espera e o empurra-empurra só para conseguir um lugar em um deles lhe davam uma ansiedade sem a qual ele poderia viver muito bem. Na recepção do escritório da Promotoria, no décimo sexto andar, lhes disseram que esperassem uma pessoa que iria acompanhá-los até a sala de O’Shea. Depois de alguns minutos, um homem apareceu e apontou para a pasta que Bosch estava carregando.

- Trouxe? Perguntou ele. Bosch não o reconheceu. Era um latino moreno escuro em um terno cinza.

- Olivas?

- É. Você trouxe o arquivo?

- Eu trouxe o arquivo.

- Então vamos, Figurão.

Olivas retornou na direção da porta por onde havia entrado. Rider fez menção de segui-lo, mas Bosch colocou uma das mãos no braço dela. Quando Olivas olhou para trás e viu que eles não o estavam acompanhando, parou.

- Vocês vêm ou não? Bosch deu um passo na direção dele.

- Olivas, vamos deixar uma coisa clara antes de irmos a qualquer parte. Se você me chamar de “Figurão” de novo eu vou enfiar o arquivo no seu rabo sem tirar da pasta. Olivas ergueu as mãos, como se estivesse se rendendo.

- Tudo bem.

Ele segurou a porta e eles o seguiram pelo saguão interno. Entraram em um corredor comprido e viraram duas vezes à direita antes de chegar ao escritório de O’Shea. Era uma sala ampla, em especial pelos padrões de promotores públicos. Na maioria dos casos, os promotores dividiam os escritórios, dois ou quatro em uma sala, e realizavam suas reuniões em horários rigidamente marcados nas salas de entrevistas das extremidades de cada corredor. Mas o gabinete de O’Shea tinha o dobro do tamanho normal, com espaço para uma mesa do tamanho de um piano e um ambiente separado com poltronas. Ser o chefe da Promotoria de Casos Especiais obviamente tinha seus benefícios. Ser o potencial herdeiro do cargo máximo também.

O’Shea saudou-os de trás da mesa, ficando em pé para cumprimentá-los com um aperto de mãos. Ele tinha uns 40 anos, era bem-apessoado, de cabelos bem escuros. Era baixo, como Bosch já sabia, embora nunca o tivesse encontrado antes. Ele havia reparado, ao assistir na televisão a uma cobertura do julgamento preliminar de Waits, que a maioria dos repórteres que se aglomeravam em torno de O’Shea do lado de fora da sala do tribunal era mais alta do que o homem para quem apontavam seus microfones. Pessoalmente, Bosch gostava de promotores baixos. Eles estavam sempre tentando compensar com alguma coisa e geralmente era o réu que acabava pagando por isso. Todos se sentaram, O’Shea atrás de sua mesa, Bosch e Rider em cadeiras de frente para ele, e Olivas do lado direito da mesa, em uma cadeira colocada em frente a diversos cartazes com os dizeres COM RICK O’SHEA ATÉ A VITÓRIA encostados à parede.

- Obrigado por virem até aqui, detetives, disse O’Shea. - Vamos começar desanuviando o ambiente um pouco. Freddy me disse que vocês dois tiveram um atrito. Ele olhava para Bosch enquanto falava.

- Eu não tenho qualquer problema com Freddy, disse Bosch. - Eu nem conheço Freddy direito para chamá-lo de Freddy.

- Eu devo lhe dizer que qualquer relutância da parte dele no sentido de lhe passar as informações sobre o que temos aqui foi uma ordem direta minha, tendo em vista a natureza delicada do que estamos fazendo. Então, se você está bravo, fique bravo comigo.

- Eu não estou bravo, disse Bosch. - Estou feliz. Pergunte à minha parceira; eu fico assim quando estou feliz. Rider confirmou com um movimento da cabeça.

- Ele está feliz, disse ela. - Definitivamente feliz.

- Então está certo, disse O’Shea. - Todo mundo está feliz. Então vamos trabalhar.

O’Shea estendeu a mão e colocou-a sobre uma pasta-arquivo sanfonada no lado direito da mesa. A pasta estava aberta, e Bosch viu que ela continha diversas divisões com marcadores azuis. Bosch estava muito longe para conseguir ler o que estava escrito nelas, especialmente sem colocar os óculos que recentemente passara a levar consigo.

- Vocês estão familiarizados com o processo de Raynard Waits? Perguntou O’Shea. Bosch e Rider confirmaram com a cabeça.

- Teria sido meio difícil não acompanhá-lo, disse Bosch. O’Shea balançou a cabeça afirmativamente e deu um leve sorriso.

- É, nós abrimos o jogo na frente das câmeras. O sujeito é um açougueiro. É um homem muito mau. Dissemos desde o início que iríamos pedir a pena de morte.

- Pelo que eu ouvi falar e pelo que vi, ele é um candidato ideal, disse Rider em tom de incentivo. O’Shea concordou sombriamente.

- Há uma razão para vocês estarem aqui. Antes de explicar o que temos, quero pedir que vocês me contem sobre sua investigação do caso Marie Gesto. Freddy disse que vocês retiraram a pasta dos Arquivos Públicos três vezes no ano passado. Há alguma coisa acontecendo? Bosch pigarreou depois de decidir dar antes de receber.

- Pode-se dizer que cuidei do caso durante 13 anos. Voltei a pegá-lo em 1993, quando ela desapareceu.

- Mas não descobriu nada? Bosch balançou a cabeça.

- Não havia corpo. Tudo o que encontramos foi o carro dela, e isso não era o bastante. Nunca prendemos ninguém por isso.

- Nem mesmo um suspeito?

- Investigamos muita gente, um sujeito em especial. Mas não conseguimos estabelecer as ligações e por isso ninguém foi promovido ao nível de suspeito ativo. Então eu me aposentei em 2002 e o caso foi para os Arquivos Públicos. Alguns anos se passaram e as coisas não aconteceram como eu havia planejado na aposentadoria, e eu acabei voltando para o trabalho. Isso foi no ano passado.

Bosch não achou que fosse necessário contar a O’Shea que ele havia feito uma cópia da pasta do caso Gesto e levado consigo, junto com diversos outros casos que ainda estavam abertos, ao deixar o distintivo para trás e ir embora em 2002. A cópia dos arquivos era uma infração às regras do departamento, e quanto menos pessoas soubessem disso, melhor.

- No ano passado eu retirei a pasta do caso Gesto todas as vezes que tive um pouco de tempo para trabalhar nele, continuou. - Mas não consegui material para um exame de DNA, nem qualquer evidência latente. Só trabalho externo, batendo perna. Falei com os principais implicados de novo, todo mundo que consegui encontrar. Ainda tem um sujeito lá fora que eu sempre achei que pudesse ser o maior suspeito, mas nunca consegui provar nada. Conversei com ele duas vezes este ano, pressionei bem.

- E?

- Nada.

- Quem é?

- O nome dele é Anthony Garland. É uma das grandes fortunas de Hancock Park. Já ouviu falar de Thomas Rex Garland, o magnata do petróleo? O’Shea confirmou com um movimento da cabeça. - Bem, T. Rex, como o chamam, é pai de Anthony.

- Qual é a conexão de Anthony com Gesto?

- Conexão talvez fosse uma palavra forte demais. O carro de Marie Gesto foi encontrado na garagem de um prédio de apartamentos em Hollywood. O apartamento ao qual a garagem correspondia estava vazio. Nossa percepção das coisas naquele momento era de que o fato de o carro ter ido parar lá não era uma simples coincidência. Achamos que a pessoa que escondeu o carro ali sabia que o apartamento estava vazio e que escondê-lo naquele lugar seria uma boa opção.

- Certo. Anthony Garland sabia sobre a garagem ou ele conhecia Marie?

- Ele sabia sobre a garagem. Sua ex-namorada havia morado no apartamento. Ela havia rompido com ele e voltado para o Texas. Então ele conhecia o apartamento e sabia que a garagem estava vazia.

- Isso não é muita coisa. Foi tudo o que conseguiu?

- Basicamente. Também achamos que não era muita coisa, mas aí nós conseguimos a foto da ex-namorada com o Departamento de Trânsito e descobrimos que ela e Marie eram muito parecidas. Começamos a pensar que talvez Marie tivesse sido algum tipo de vítima substituta. Ele não conseguia mais nada com a ex-namorada porque ela tinha ido embora, então ele teria ido para cima de Marie.

- Vocês foram até o Texas?

- Duas vezes. Falamos com a garota e ela nos contou que o principal motivo para sua separação de Anthony tinha sido o temperamento dele.

- Ele foi violento com ela?

- Ela disse que não. Disse que foi embora antes que chegasse a esse ponto. O’Shea se inclinou para frente.

- Então Anthony Garland conhecia Marie? Perguntou ele.

- Não sabemos. Não temos certeza disso. Até o momento em que seu pai colocou um advogado no caso e ele parou de falar conosco, negava que a conhecesse.

- Quando foi isso? Quero dizer, o advogado.

- Naquela época, e agora. Eu voltei a falar com ele algumas vezes este ano. Eu o pressionei e ele correu para trás dos advogados de novo. Advogados diferentes desta vez. Conseguiram arranjar uma liminar contra mim. Convenceram um juiz a me mandar ficar longe de Anthony quando ele não tivesse um advogado consigo. Meu palpite é de que eles convenceram o juiz com suborno. Essa é a maneira de T. Rex Garland conseguir as coisas. O’Shea se recostou de novo, balançando a cabeça, pensativo.

- Esse Anthony Garland tem alguma passagem pela polícia, antes ou depois de Gesto?

- Não, nenhuma. Ele não é um membro muito produtivo da sociedade; pelo que sei, vive do que o velho lhe dá. Ele cuida da segurança do pai e de suas diversas empresas. Mas nunca descobri nada associado a crime.

- Não seria razoável pensar que alguém que tivesse raptado e matado uma jovem tivesse outras atividades criminosas em sua ficha? Essas coisas geralmente não são incomuns, ou são? - Se ficar dentro das estatísticas, você está certo. Mas sempre há exceções à regra. Além disso, tem o dinheiro do velho. Dinheiro arranja muita coisa, faz muita coisa desaparecer. Mais uma vez, O’Shea balançou a cabeça afirmativamente, como se estivesse aprendendo sobre crime e criminosos pela primeira vez. A representação foi ruim.

- Qual ia ser seu próximo passo? Perguntou ele.

- Eu não tinha mais o que fazer. Mandei a pasta do caso de volta para os Arquivos Públicos e achei que estava tudo acabado. Então, algumas semanas atrás, eu fui até lá e a retirei novamente. Eu não sei o que ia fazer. Talvez conversar com os amigos mais recentes de Garland, tentar descobrir se alguma vez ele havia mencionado Marie Gesto ou qualquer coisa relacionada a ela. Eu só tinha certeza de que não ia desistir. O’Shea pigarreou, e Bosch sabia que ele agora iria dizer a razão de eles estarem ali.

- O nome Ray ou Raynard Waits alguma vez apareceu em todos esses anos investigando o desaparecimento de Gesto? Bosch olhou para ele por um momento, o estômago revirado.

- Não, não apareceu. Deveria? O’Shea tirou uma das pastas do arquivo sanfonado e abriu-a sobre a mesa. Tirou de cima um documento que parecia uma carta.

- Como eu já disse, nós tornamos público que vamos pedir a pena de morte para Waits, disse ele. - Depois da audiência preliminar, acho que ele captou a mensagem. Entrou com um recurso relacionado à provável causa de ter sido parado no trânsito. Mas isso não vai levar a nada, como ele e seu advogado sabem. Uma defesa com base em insanidade também não funcionaria. Esse sujeito é tão calculista e organizado quanto qualquer outro assassino que eu tenha processado. Então eles responderam na semana passada com isto aqui. Antes de mostrar a vocês, tenho que ter certeza de que vocês entendem que isto é a carta de um advogado. É uma oferta de acordo. Não importa o que aconteça, se formos em frente com isto ou não, as informações contidas nesta carta são confidenciais. Se optarmos por ignorar esta oferta, nenhuma investigação poderá ser feita com base nas informações desta carta. Vocês entendem isso? Rider balançou a cabeça
afirmativamente. Bosch não. - Detetive Bosch? Insistiu O’Shea. - Talvez eu não devesse vê-la, então, disse Bosch. - Talvez eu não devesse estar aqui.

- Foi você quem não quis dar o arquivo a Freddy. Se o caso significa tanto assim para você, então acho que você devia estar aqui. Bosch finalmente concordou.

- Está bem, disse ele. O’Shea lhes passou a folha de papel, e Bosch e Rider se inclinaram para frente para lê-la juntos. Mas antes Bosch tirou os óculos do bolso e colocou-os.

12 de setembro de 2006

Richard O’Shea,

Assistente da Promotoria Escritório da Promotoria do Condado de Los Angeles

Sala 16-11 West Temple Street, 210 Los Angeles,

CA 90012-3210

Re: Califórnia vs. Raynard Waits

Prezado Sr. O’Shea:

O objetivo desta carta é abrir as discussões relacionadas a uma disposição no presente caso. Todas as declarações doravante apresentadas que estejam relacionadas com essas discussões são feitas com o entendimento de que são inadmissíveis segundo o § 1153 do Código de Evidências da Califórnia, o § 1192.4 do Código Penal da Califórnia e O Povo vs. Tanner ; 45 3º Tribunal de Apelações da Califórnia fls. 345, 350, 119 Diário da Justiça da Califórnia, fl. 407 (1975). Ofereço para sua consideração a possibilidade de o senhor Waits estar disposto a partilhar com o senhor e com investigadores à sua escolha, nos termos e condições apresentados abaixo, informações relacionadas a nove homicídios, excluindo os dois no caso acima referido, e a se declarar culpado das acusações do caso acima referido, em troca da concordância do Estado em não requerer a pena de morte para as acusações de homicídio em curso, nem
apresentar acusações relacionadas aos homicídios sobre os quais ele poderia fornecer informações.

Além disso, em retribuição pela cooperação e pelas informações que seriam proporcionadas pelo senhor Waits, o senhor concordaria que todas e quaisquer declarações do senhor Waits e quaisquer informações delas derivadas não seriam usadas contra ele em qualquer processo criminal; nenhuma informação pertinente a este acordo poderia ser divulgada a nenhuma agência estadual ou federal de cumprimento da lei, a menos e até que tais agências, por meio de seus representantes, concordem em atender aos termos e condições deste acordo; nenhuma declaração ou outras informações apresentadas pelo senhor Waits durante qualquer oferta de acordo ou discussão “extraoficial” poderão ser usadas contra ele nas acusações do presente caso; o senhor também não poderá investigar quaisquer pistas sugeridas por quaisquer declarações ou informações apresentadas pelo réu, ou delas fazer uso derivativo.

Na ocasião em que o presente caso for levado a julgamento, se o senhor Waits apresentar testemunho materialmente diferente de quaisquer declarações feitas ou de informações apresentadas durante as ofertas ou discussões, então o senhor poderá, sem dúvida, acusá-lo em relação à incoerência de tais declarações ou informações. Sou de opinião que as famílias das vítimas, oito jovens mulheres e um homem, obteriam, de certa forma, uma sensação de conclusão do caso com o conhecimento do que aconteceu a seus entes queridos e, em oito desses casos, seriam capazes de realizar as cerimônias religiosas e sepultamentos adequados depois que o Sr. Waits conduzir os seus investigadores aos locais onde essas vítimas agora jazem.

Além disso, essas famílias encontrarão, talvez, algum conforto em saber que o Sr. Waits estará cumprindo uma pena de prisão perpétua sem a possibilidade de livramento condicional. O Sr. Waits se dispõe a fornecer informações relacionadas a nove homicídios conhecidos e desconhecidos entre 1992 e 2003. Como oferta inicial de credibilidade e boa-fé, ele sugere que os investigadores revejam a investigação da morte de Daniel Fitzpatrick, de 63 anos, que morreu queimado em sua loja de penhores no Hollywood Boulevard no dia 30 de abril de 1992. Os arquivos da investigação revelarão que o Sr. Fitzpatrick estava armado e em pé atrás da grade de segurança na frente de sua loja quando foi incendiado por um assaltante que usou fluido de isqueiro e um isqueiro de butano. A lata de fluido para isqueiros da marca EasyLight foi deixada para trás, em pé na frente da grade de segurança. Essa informação nunca foi tornada pública. Além disso, c
omo demonstração adicional de sua credibilidade e boa-fé, o Sr. Waits sugere que os arquivos de investigação relacionados ao desaparecimento, em setembro de 1993, de Marie Gesto, sejam revistos.

Os registros revelarão que, embora o paradeiro da Srta. Gesto nunca tenha sido determinado, seu carro foi localizado pela polícia na garagem de um prédio de apartamentos em Hollywood conhecido como High Tower. O carro continha as roupas da senhorita Gesto e equipamento equestre, além de um saco de mercearia contendo um pacote de meio quilo de cenouras. A senhorita Gesto pretendia usar as cenouras para alimentar os cavalos dos quais ela tratava em troca de horários de equitação nos estábulos do Sunset Ranch em Beachwood Canyon. Da mesma forma, essa informação nunca foi tornada pública.

No caso de um acordo poder ser estabelecido, o mesmo se enquadra nas exceções de restrição do estado da Califórnia contra acordos em caso de delitos graves, assim como, sem a cooperação do Sr. Waits, são insuficientes as evidências e testemunhas materiais para provar as acusações do Estado em relação a esses nove homicídios. Além disso, a clemência do Estado em relação à pena de morte é totalmente discricionária e não representa uma mudança substancial na sentença. (§ 1192.7º do Código Penal da Califórnia.) Peço-lhe a gentileza de entrar em contato comigo caso o acima exposto seja aceitável.

Atenciosamente,

Maurice Swann,

DP 101 Broadway Suíte 2

Los Angeles, CA 90013

Bosch notou que havia lido quase toda a carta sem respirar. Engoliu um pouco de ar, mas o gesto não desfez o aperto gelado que estava se formando em seu peito.

- Você não vai concordar com isso, vai? Perguntou ele. O’Shea encarou-o por um momento antes de responder.

- Na verdade, eu estou negociando com Swann no momento. Essa foi a oferta inicial. Eu melhorei consideravelmente a fatia que cabe ao Estado desde que recebemos essa carta.

- De que maneira?

- Ele vai ter que confessar em todos os casos. Vamos conseguir 11 condenações por assassinato. “E você vai ganhar mais manchetes a tempo para as eleições”, Bosch pensou, mas não disse.

- Mas ainda assim ele sai livre? Perguntou Bosch.

- Não, detetive, ele não sai livre. Ele nunca mais vai ver a luz do dia. Você já esteve lá em Pelican Bay, o lugar para onde mandam os condenados por crimes sexuais. Parece um ótimo lugar para colocá-lo.

- Mas sem pena de morte. Você está dando isso a ele. Olivas sorriu de maneira afetada, como se Bosch não visse o óbvio.

- Sim, isso nós estamos dando a ele, disse O’Shea. - É tudo o que estamos dando. Sem pena de morte e ele desaparece para sempre em uma prisão.

Bosch balançou a cabeça, olhou para Rider e de volta para O’Shea. Não disse nada porque sabia que não era ele quem decidia.

- Mas, antes de aceitarmos esse acordo, disse O’Shea, - Precisamos ter muita certeza sobre os nove casos. Waits não é idiota. Isso tudo pode ser um truque para evitar a injeção letal, ou pode ser a verdade. Quero colocá-los trabalhando nisso com Freddy para descobrir tudo. Eu faço os lances e vocês vão ter liberdade para agir. Essa vai ser a missão. Nem Bosch nem Rider responderam. O’Shea pressionou-os. - É óbvio que ele sabe coisas sobre os casos que foram citados na carta. Freddy confirmou o que foi dito sobre Fitzpatrick. Ele foi morto durante os tumultos depois do veredicto sobre Rodney King. Morreu queimado atrás da grade de sua loja de penhores. Estava armado até os dentes na ocasião e o que não está claro é como seu assassino chegou perto o bastante para atear fogo nele. A lata de EasyLight foi encontrada do jeito que Waits disse, em pé na frente da grade de segurança. Não pudemos confirmar a menção ao caso Gesto porque
você estava com o arquivo, detetive Bosch. Você já confirmou a parte sobre a garagem. Ele acertou na questão das roupas e das cenouras? De maneira relutante, Bosch confirmou com um movimento da cabeça.

- O carro era informação pública, disse ele. - A imprensa falou muito a respeito. Mas o saco de cenouras era nossa carta na manga. Ninguém sabia sobre aquilo, exceto eu, meu parceiro na época e o perito que abriu o saco. Nós seguramos essa informação porque foi isso que nos fez pensar que ela havia cruzado o caminho dele. As cenouras vieram de um supermercado Mayfair na Franklin na parte baixa de Beachwood Canyon. Descobrimos que era rotina para ela parar lá antes de ir para os estábulos. No dia em que desapareceu, ela seguiu essa rotina. Saiu com as cenouras e provavelmente seu assassino veio atrás. Encontramos testemunhas que a viram no supermercado. Mais nada depois disso. Até encontrarmos o carro.

O’Shea assentiu. Apontou para a carta, que ainda estava na mesa na frente de Bosch e de Rider.

- Então isso aí é ótimo.

- Não, não é, disse Bosch. - Não faça isso.

- Não faça o quê?

- Não faça o acordo.

- E por que não?

- Porque se foi ele quem pegou Marie Gesto e a matou, e matou aquelas oito pessoas, talvez tenha até mesmo cortado todas em pedaços como as duas que encontraram com ele, então ele é alguém que não merece viver, seja na prisão ou fora dela. Deviam prendê-lo, lhe aplicar a injeção e mandá-lo para o buraco no chão que é o lugar dele.

O’Shea concordou com um movimento da cabeça, como se aquela fosse uma consideração válida.

- E quanto a todos aqueles casos abertos? Contra-argumentou ele. - Veja bem, eu não gosto da ideia desse sujeito morando em um quarto particular em Pelican Bay mais do que você. Mas temos a responsabilidade de esclarecer esses casos e de fornecer resposta para as famílias daquelas pessoas. Além disso, é bom você lembrar, nós anunciamos que estamos pedindo a pena de morte. Isso não significa que ela seja automática. Temos que ir a julgamento, vencer, e então temos que fazer tudo de novo para conseguir que o júri recomende a morte. Tenho certeza de que você sabe que existe um sem-número de coisas que podem dar errado. Apenas um membro do júri pode atravancar o caso. E é preciso apenas um para impedir a pena de morte. De toda forma, basta ter um juiz mole para ignorar qualquer recomendação do júri.

Bosch não respondeu. Ele sabia como o sistema funcionava, como podia ser manipulado e como nada era certo. Ainda assim, aquilo o incomodava. Também sabia que uma prisão perpétua nem sempre significava uma prisão perpétua. Todo ano pessoas como Charles Manson e Sirhan Sirhan ganhavam uma chance. Nada dura para sempre, nem mesmo uma prisão perpétua.

- Além disso, há o fator custo, continuou O’Shea. - Waits não tem dinheiro, mas Maury Swann pegou o caso por motivo de publicidade. Se levarmos a julgamento, ele vai estar pronto para a briga. Maury é um advogado muito bom. Podemos esperar especialistas anulando nossos especialistas, análises científicas anulando as nossas análises... O julgamento vai durar meses e custar uma fortuna à administração pública. Sei que vocês não querem ouvir o argumento de que dinheiro é algo a ser considerado neste caso, mas essa é a realidade. Eu já estou com o pessoal do escritório de administração de orçamento no meu pé. Esta oferta pode ser a melhor maneira, e a mais segura, de garantir que esse homem não prejudique mais ninguém no futuro. - A melhor maneira? Perguntou Bosch. - Se quer a minha opinião, não é a maneira correta. O’Shea pegou uma caneta e bateu com ela de leve na mesa antes de responder.

- Detetive Bosch, por que retirou o arquivo do caso Gesto tantas vezes? Bosch notou que Rider havia se virado e estava olhando para ele. Ela já havia feito àquela mesma pergunta mais de uma vez.

- Eu já lhe disse, respondeu ele. - Tirei porque tinha sido meu caso. Eu ficava incomodado com o fato de nunca termos prendido ninguém por ele.

- Em outras palavras, ele o assombrava. Bosch confirmou com a cabeça de maneira hesitante. - Marie tinha família? Bosch confirmou mais uma vez.

- Tinha pais em Bakersfield. Eles tinham muitos planos para ela.

- Pense neles. E pense nas outras famílias. Não podemos lhes dizer que Waits é o culpado até que saibamos com certeza. Meu palpite é que eles vão querer saber e que estão desejosos para trocar esse conhecimento pela vida dele. É melhor que se declare culpado por todos eles do que nós o pegarmos apenas por dois. Bosch não se manifestou. Já havia registrado sua objeção. Sabia que agora era a hora de trabalhar. Rider estava com a mesma disposição.

- Quanto tempo nós temos para fazer isso? Ela perguntou.

- Quero agir rapidamente, respondeu O’Shea. - Se isto aqui é legítimo, quero resolver logo e acabar com isso.

- Tem que ser antes da eleição, certo? Perguntou Bosch. Ele se arrependeu imediatamente da pergunta. Os lábios de O’Shea formaram uma linha fina. Ele ruborizou na área ao redor dos olhos.

- Detetive, disse ele. - Admito isso. Estou concorrendo em uma eleição e o fato de resolver 11 assassinatos com condenações seria muito bom para a minha causa. Mas não venha sugerir que a eleição é minha única motivação aqui. Toda noite em que aqueles pais que tinham planos para sua filha vão dormir sem saber onde ela está ou o que aconteceu a ela é uma noite de terrível dor em minha opinião. Mesmo depois de 13 anos. Então quero agir rapidamente e de maneira segura, e você pode guardar para si mesmo suas especulações sobre qualquer outra coisa.

- Tudo bem, disse Bosch. - Quando vamos falar com o sujeito? O’Shea olhou para Olivas e depois de novo para Bosch.

- Bem, acho que deveríamos fazer uma troca de arquivos primeiro. Você se inteira rapidamente sobre o Waits e eu quero que Freddy se familiarize com o arquivo de Gesto. Assim que isso for feito, vamos marcar alguma coisa com Maury Swann. Que tal amanhã?

- Amanhã está bem, disse Bosch. - Swann vai participar da entrevista? O’Shea confirmou.

- Maury vai estar presente em tudo. Ele vai explorar cada ângulo, provavelmente vai acabar com um contrato para um livro e um filme antes que tudo acabe. Quem sabe até um papel de âncora convidado na TV Tribunal.

- É bom, comentou Bosch, - Pelo menos ele ficaria fora dos tribunais.

- Nunca tinha pensado nisso, disse O’Shea. - Você trouxe o arquivo de Gesto? Bosch abriu sua pasta no colo e tirou um arquivo de investigação, um calhamaço encadernado de 7 centímetros de espessura, geralmente conhecido como inquérito. Ele o passou para O’Shea, que se virou e entregou tudo a Olivas. - E eu vou lhe dar isto, disse O’Shea. Recolocou o arquivo na pasta sanfonada, fazendo-a deslizar sobre a mesa. - Boa leitura, disse ele. - Vocês têm certeza sobre amanhã?

Bosch olhou para Rider para ver se ela apresentava alguma objeção. Eles tinham um dia antes de terem que enviar o arquivo de Matarese para a Procuradoria. Mas o trabalho estava praticamente terminado, e ele sabia que Rider poderia cuidar do resto. Quando Rider não disse nada, Bosch olhou de novo para O’Shea.

- Estaremos prontos, respondeu ele.

- Então vou ligar para Maury e marcar tudo.

- Onde está Waits?

- Aqui neste prédio, disse O’Shea. - Ele está em uma cela de segurança máxima e isolado. - Ótimo, disse Rider.

- E quanto às outras sete? Perguntou Bosch.

- O que têm elas?

- Nada de arquivos?

- O texto da oferta, e também Maury Swann, indica que essas mulheres nunca foram encontradas e possivelmente nunca foram dadas como desaparecidas, disse O’Shea. - Waits está querendo nos levar a elas, mas não há nada que possamos fazer como preparação para esses casos. Bosch concordou. - Alguma outra questão? Perguntou O’Shea, sinalizando que a reunião havia acabado.

- Nós lhe diremos, disse Bosch.

- Sei que estou me repetindo, mas acho que preciso fazer isso, disse O’Shea. - Esta investigação é extraoficial. Aquele texto é uma oferta que faz parte de uma negociação judicial. Nada naquele texto ou qualquer coisa que ele nos diga jamais poderá ser usado para abrir um processo contra ele. Se nada disso der certo, vocês não poderão usar as informações para ir atrás dele. Isso está claro? Bosch não respondeu. - Está claro, disse Rider.

- Há uma exceção que eu negociei. Se ele mentir, se vocês em qualquer momento o pegarem em uma mentira, ou se qualquer informação que ele lhes der durante o processo se revelar intencionalmente falsa, o acordo fica suspenso e podemos ir atrás dele por tudo o que fez. Ele também já está ciente disso. Bosch balançou a cabeça afirmativamente. Levantou-se. Rider se levantou também. - Vocês precisam que eu telefone a alguém para liberar vocês para fazer isso? Perguntou O’Shea. - Posso dar um empurrãozinho, se for preciso. Rider balançou a cabeça.

- Acho que não, disse ela. - Harry já estava trabalhando no caso Gesto. As sete mulheres podem ser desconhecidas, mas deve haver uma pasta nos Arquivos sobre o homem da loja de penhores. A Abertos/Não Resolvidos pode participar. Nós falaremos com nosso supervisor.

- Muito bem, então. Assim que tiver a entrevista marcada, eu telefono. Enquanto isso, todos os meus números estão aí na pasta. Os de Freddy também.

Bosch acenou com a cabeça para O’Shea e lançou um olhar para Olivas antes de se dirigir para a porta.

- Detetives? Disse O’Shea. Bosch e Rider se viraram para ele. Ele estava em pé agora. Queria lhes apertar as mãos. - Espero que estejam do meu lado nisto, disse O’Shea. Bosch lhe apertou a mão, sem ter certeza se O’Shea estava falando do caso ou da eleição. Disse:

- Se Waits pode me ajudar a devolver Marie Gesto a seus pais, então eu estou do seu lado.

Aquilo não era um resumo muito exato do que ele achava, mas foi suficiente para que pudesse sair dali.

 

CAPÍTULO 3

De volta a Abertos/Não Resolvidos, eles se sentaram no escritório do supervisor e colocaram-no a par dos desenvolvimentos daquele dia. Abel Pratt estava a quatro semanas da aposentadoria, depois de 25 anos no cargo. Ele era atencioso com eles, mas não exageradamente. Em um dos lados de sua mesa havia uma pilha de guias de viagem para as ilhas do Caribe. Seu plano era se aposentar, sair da cidade e encontrar uma ilha para morar com a família. Era um sonho de aposentadoria comum entre policiais, se afastar de toda a perversidade testemunhada durante tanto tempo no serviço. No entanto, a realidade era que, depois de uns seis meses na praia, a ilha passava a ser bastante tediosa. Um detetive nível três de Roubos e Homicídios, de nome David Lambkin, tinha sido indicado para ser o chefe da delegacia depois da saída de Pratt. Era um especialista em crimes sexuais reconhecido nacionalmente e fora escolhido para o cargo porque muitos dos casos frios nos quais eles t
rabalhavam naquela unidade tinham motivação sexual. Bosch estava ansioso para trabalhar com ele e teria preferido passar as informações a ele, e não a Pratt, mas não havia tempo.

Eles trabalhavam com quem estava lá, e uma das coisas positivas sobre Pratt era que ele lhes daria carta branca até sair do cargo. Só não queria qualquer respingo, nenhum problema sobrando para ele resolver. Queria um último mês no cargo tranquilo e sem novidades. Assim como a maioria dos policiais com 25 anos no departamento, Pratt era um antiquado. Pertencia à velha escola. Preferia a máquina de escrever ao computador. Enrolada pela metade no cilindro da IBM Selectric ao lado de sua mesa havia uma carta na qual ele estava trabalhando quando Bosch e Rider entraram. Bosch deu uma olhada rápida no papel enquanto sentava e viu que era uma carta para um cassino nas Bahamas. Pratt estava tentando arranjar um emprego de segurança no paraíso, e isso já dizia tudo sobre onde estava seu pensamento naqueles dias. Depois de ouvir todas as informações, Pratt deu sua aprovação para que eles trabalhassem com O’Shea e só se animou ao expressar uma adver
tência em relação a Maury Swann, advogado de Raynard Waits.

- Deixe-me lhes contar uma coisa sobre Maury, disse Pratt. - Seja lá o que vocês fizerem ao encontrá-lo, não apertem a mão dele.

- Por que não? Perguntou Rider.

- Eu já tive um problema com ele. Isso foi há muito tempo. Era um membro de gangue envolvido em um homicídio. Todo dia, quando começávamos a sessão, Maury fazia questão de me cumprimentar com um aperto de mão, e depois fazia o mesmo com o promotor. Ele provavelmente teria apertado a mão do juiz também, se tivesse uma oportunidade para isso.

- E?

- E depois que o cliente dele foi acusado, ele tentou conseguir uma redução na pena delatando os outros envolvidos no assassinato. Uma das coisas que o marginal me contou durante o interrogatório foi que ele achava que eu era sujo. Contou que, durante o julgamento, Maury havia lhe dito que conseguiria comprar a todos nós. Eu, o promotor, todo mundo. Então o criminoso mandou sua garota arrumar o dinheiro, e Maury lhe explicou que, sempre que apertava nossas mãos, ele estava nos subornando. Sabe como é, passando dinheiro para a nossa mão. Ele sempre dava aqueles apertos de mão usando as duas mãos também. Ele realmente fazia o cara acreditar nisso, e acabava ficando com o dinheiro.

- Puta merda! Exclamou Rider. - E vocês não abriram um processo contra ele? Pratt descartou a ideia com um aceno de mão.

- Seria um processo posterior ao delito e, além disso, uma besteira do tipo a nossa palavra contra a dele. Não teria dado em nada... Não com Maury gozando de uma boa posição na Ordem dos Advogados e tudo o mais. Mas desde essa época eu ouço dizer que Maury adora apertar a mão dos outros. Por isso, quando entrarem naquela sala com ele e Waits, não apertem a mão dele.

Eles saíram da sala de Pratt rindo da história e voltaram para suas mesas. A divisão de trabalho tinha sido estabelecida no caminho de volta do fórum. Bosch ficaria com Waits, e Rider com Fitzpatrick. Eles conheceriam muito bem os detalhes quando se sentassem à mesa na frente de Waits na sala de interrogatório no dia seguinte. Uma vez que Rider tinha que ler menos no caso Fitzpatrick, ela também terminaria a papelada de Matarese. Isso significava que Bosch estava liberado para estudar com profundidade o mundo de Raynard Waits. Depois de pegar o arquivo de Fitzpatrick para Rider, ele optou por levar ao café a pasta sanfonada que O’Shea lhes dera. Sabia que quase todo o pessoal da hora do almoço já teria ido embora, e ele poderia espalhar o material e trabalhar sem a distração dos telefones tocando e o bate-papo da sala da Abertos/Não Resolvidos. Precisou usar um guardanapo para limpar uma mesa de canto, mas em seguida começou a examinar o que tin
ha em mãos.

Havia três arquivos sobre Waits: o inquérito do Departamento de Polícia de Los Angeles, compilado por Olivas e Ted Colbert, seu parceiro na divisão de Homicídios da Divisão Noroeste, um arquivo sobre uma prisão anterior e o arquivo do processo de acusação compilado por O’Shea. Bosch decidiu ler o inquérito primeiro. Rapidamente tomou conhecimento de quem era Raynard Waits e sobre os detalhes de sua prisão. O suspeito tinha 34 anos e morava em um apartamento térreo na Sweetzer Avenue em West Hollywood. Não era muito alto, 1,60m, e pesava uns 65 quilos. Era o proprietário e único funcionário de uma empresa de limpeza de janelas residenciais chamada Clear View Residential Glass Cleaners. Segundo os relatórios policiais, ele chamou a atenção de dois patrulheiros, um novato chamado Arnolfo Gonzalez e seu colega e treinador, Ted Fennel, à 1h50 do dia 11 de maio. Os oficiais haviam sido designados para uma Equipe de Resposta ao Crime que es
tava vigiando uma área em Echo Park devido a um surto de roubos a domicílios que vinha ocorrendo nas noites dos jogos dos Dodgers em casa.

Embora de uniforme, Gonzalez e Fennel estavam em um carro-patrulha sem identificação perto da interseção da Stadium Way com Chávez Ravine Place. Bosch conhecia o lugar. Ficava na parte mais afastada do complexo do Estádio Dodger e acima da área em Echo Park que o pessoal da ERC estava vigiando. Ele também sabia que os dois estavam seguindo uma estratégia padrão da ERC: ficar fora do perímetro da área alvo e seguir qualquer veículo ou pessoas que parecessem suspeitos ou deslocados. Segundo o relatório preenchido por Gonzalez e Fennel, eles desconfiaram do possível motivo de uma van ostentando nas duas laterais as palavras “Clear View Residential Glass Cleaners” estar circulando às duas da manhã. Eles a seguiram a distância e Gonzalez usou um binóculo de visão noturna para ver a placa do carro. Então digitou o número no terminal móvel do carro, os policiais escolheram usar o computador de bordo em vez do rádio para o caso de
o ladrão que estava operando naquela vizinhança estar equipado com um rastreador que detectasse o rádio da polícia.

O computador lhes devolvera um alerta. A placa estava registrada para um Ford Mustang com um endereço em Claremont. Acreditando que a placa da van era roubada e que agora provavelmente tinham um motivo para pará-la, Fennel acelerou, colocou a sirene sobre o carro e eles pararam a van na Figueroa Terrace, perto do cruzamento com a Beaudry Avenue. “O motorista do veículo parecia agitado e colocou metade do corpo para fora através da janela da van para conversar com o policial Gonzalez, em uma tentativa de impedir que o policial realizasse uma avaliação visual do interior do veículo”, era o que se lia no relato resumido sobre a detenção. “O policial Fennel se aproximou do veículo pelo lado do passageiro e iluminou o interior da van com sua lanterna. Sem entrar no veículo, o policial Fennel conseguiu notar o que pareciam ser vários sacos de lixo de plástico preto sobre o assoalho do veículo, na frente do banco de passageiros. Um líquido que pa
recia ser sangue podia ser visto escorrendo da boca fechada de um dos sacos e por sobre o assoalho da van.”

Segundo o relato, “perguntou ao motorista se aquilo que estava vazando de um dos sacos era sangue, e ele declarou que havia se cortado no começo do dia, quando uma enorme janela de vidro que ele estava limpando se quebrou”. Ele declarou que havia usado vários pedaços de pano para limpar o sangue. Quando lhe foi solicitado que mostrasse o corte, o motorista sorriu e de repente tentou dar a partida no veículo. O policial Gonzalez colocou o corpo através da janela e tentou detê-lo. Depois de uma breve luta, o motorista foi retirado do veículo, colocado no chão e algemado. Em seguida, foi levado para o banco de trás do carro sem identificação. O policial Fennel descobriu que o primeiro saco continha membros de um corpo humano.

Unidades de investigação foram convocadas imediatamente à cena. A carteira de motorista do homem retirado da van identificava-o como Raynard Waits. Ele foi levado para uma cela comum na Divisão Noroeste, enquanto era realizada em sua van e nos sacos plásticos uma investigação que durou toda a noite em Figueroa Terrace. Só depois que os detetives Olivas e Colbert, que estavam de plantão naquela noite, assumiram a investigação e retraçaram alguns dos passos de Gonzalez e Fennel é que se descobriu que o policial novato havia digitado o número errado da placa no computador, escrevendo F quando o correto seria E, o que os levou para a placa do Mustang em Claremont. Em termos policiais, aquilo foi um “erro de boa-fé”, o que significava que a causa provável de terem parado a van ainda seria válida, porque os policiais estavam agindo de boa-fé quando um erro verdadeiro tinha sido cometido. Bosch supôs que essa era a base do recurso sobre o q
ual Rick O’Shea tinha comentado antes.

Bosch deixou de lado a pasta com o inquérito e abriu o arquivo do processo de acusação. Folheou rapidamente a documentação até encontrar uma cópia do recurso. Passou os olhos por ela e encontrou o que esperava. Waits estava alegando que digitar número de placa errado era prática constante para o Departamento de Polícia de Los Angeles, empregada com frequência quando os policiais que faziam parte dos esquadrões especiais queriam parar e revistar um veículo sem um motivo legítimo para fazer isso. Embora um juiz de um tribunal superior tenha considerado que Gonzalez e Fennel haviam agido de boa-fé e sustentado a legalidade da revista, Waits estava recorrendo da decisão ao Tribunal de Recursos. Bosch voltou para o inquérito. Apesar da questão sobre a legalidade de ele ter sido parado e revistado, a investigação de Raynard Waits havia andado rapidamente.

Na manhã seguinte à prisão, Olivas e Colbert haviam conseguido um mandado de busca para investigar o apartamento da Sweetzer Avenue onde Waits morava sozinho. Uma revista que durou quatro horas e um exame completo do apartamento pela Polícia Científica resultaram em diversas amostras de cabelo e sangue humano retiradas da pia do banheiro e do sifão da banheira, e também um compartimento oculto no assoalho contendo diversas joias femininas e várias fotos em polaroide de mulheres jovens nuas que pareciam estar dormindo, inconscientes ou mortas. Em uma despensa havia um freezer vertical que estava vazio, a não ser pelas duas amostras de pelos pubianos encontradas por um técnico da DIC.

Enquanto isso, os três sacos plásticos encontrados na van tinham sido transportados para o escritório do legista e abertos. Descobriu-se que continham partes dos corpos de duas jovens, que haviam sido igualmente estranguladas e desmembradas depois da morte. Digno de nota era o fato de que as partes de um dos corpos mostravam sinais de terem sido congeladas e depois descongeladas. Embora nenhuma ferramenta de corte tenha sido encontrada no apartamento de Waits ou na van, ficou claro, com base nas evidências reunidas, que embora os policiais Gonzalez e Fennel estivessem procurando um ladrão, eles haviam tropeçado no que parecia ser um assassino serial em atividade. Acreditava-se que Waits já teria se livrado de suas ferramentas, ou as teria escondido, e estava em vias de se livrar dos corpos de duas vítimas quando chamou a atenção dos policiais. As indicações eram de que poderia haver outras vítimas. Os relatórios na pasta detalhavam os esforços f
eitos nas muitas semanas seguintes para identificar os dois corpos e também as outras mulheres que estavam nas fotos encontradas no apartamento. Waits, é claro, não ofereceu ajuda a esse respeito, contratando os serviços de Maury Swann na manhã de sua captura e optando por permanecer em silêncio em meio aos procedimentos de cumprimento da lei, e Swann preparou um ataque sobre a causa provável de Waits ter sido abordado no trânsito. Apenas uma das duas vítimas conhecidas foi identificada. Impressões digitais tiradas de uma das mulheres desmembradas foram reconhecidas pelo banco de dados do FBI.

Ela foi identificada como uma fugitiva de 17 anos de Davenport, estado de Iowa. Lindsey Mathers havia fugido de casa dois meses antes de ser encontrada na van de Waits, e os pais não tinham tido notícias dela durante esse tempo. Com fotos fornecidas pela mãe da jovem, os detetives conseguiram refazer sua trilha em Los Angeles. Ela foi reconhecida por assistentes sociais em diversos abrigos de Hollywood. Tinha usado diversos nomes para evitar ser identificada e possivelmente mandada para casa. Havia indícios de que estava envolvida com uso de drogas e prostituição de rua. Marcas de agulha encontradas em seu corpo durante a autópsia foram atribuídas a uma contínua e extensa prática de injeção de drogas. Um exame de sangue revelou a presença de heroína. Os assistentes sociais que ajudaram a identificar Lindsey Mathers também viram as fotos polaroide encontrados no apartamento de Waits e conseguiram fornecer diversos nomes diferentes para ao menos t
rês das mulheres. As histórias delas eram semelhantes à jornada de Mathers. Eram fugitivas, possivelmente envolvidas em prostituição como meio de financiar as drogas.

Com base nas evidências e informações reunidas, estava claro para Bosch que Waits era um predador e que o seu alvo eram jovens mulheres cujo desaparecimento não seria imediatamente notado, marginais de uma sociedade que não se importava com elas e, portanto, de quem ninguém sentiu falta quando desapareceram. As polaroides tiradas do compartimento oculto no apartamento de Waits estavam na pasta, protegidas por um plástico, quatro por página. Havia oito páginas com diversas fotos de cada mulher. Um relatório de análise anexado dizia que a coleção de fotos continha imagens de nove mulheres diferentes, as duas cujos restos foram encontrados na van de Waits e sete desconhecidas. Bosch sabia que as sete desconhecidas provavelmente eram as sete mulheres sobre as quais Waits estava se oferecendo para falar, além de Marie Gesto e do homem da loja de penhores, mas ele estudou as fotos mesmo assim, em busca do rosto de Marie Gesto. Ela não apareceu. Os ros
tos nas fotos pertenciam a mulheres que não haviam causado o mesmo tipo de comoção que Marie Gesto.

Bosch se recostou e tirou os óculos de leitura para descansar os olhos por alguns instantes. Se lembrou de um de seus primeiros instrutores nos Homicídios. O detetive Ray Vaughn tinha especial compaixão por aqueles a quem chamava de “os ninguéns do assassino”, as vítimas que não importavam. Ele ensinou a Bosch desde o começo que na sociedade as vítimas não são todas iguais, mas para o verdadeiro detetive elas deveriam ser. “Cada uma delas era a filha de alguém”, Ray Vaughn lhe dissera. “Cada uma delas era importante.” Bosch esfregou os olhos. Pensou na oferta de Waits de esclarecer nove assassinatos, inclusive os de Marie Gesto e Daniel Fitzpatrick e daquelas sete mulheres que nunca chamaram a atenção de ninguém. Alguma coisa não parecia certa em relação a isso. Fitzpatrick era uma anomalia por ser homem e pelo fato de o assassinato aparentemente não ter motivação sexual. Ele sempre supusera que o assassinato de Marie Gesto
estava ligado a sexo. Mas ela não era uma vítima descartável. Ela havia entrado com tudo no radar. Será que Waits tinha aprendido com ela? Será que tinha aperfeiçoado sua arte depois do assassinato dela para garantir que nunca atrairia novamente a pressão da polícia e da imprensa? Bosch pensou que talvez a pressão que ele mesmo aplicou no caso Gesto tenha sido a causa de uma mudança em Waits, o que teria tornado um assassino mais hábil e astuto. Se isso fosse verdade, então ele teria que lidar com a culpa mais tarde.

Naquele momento ele tinha que focar sua atenção no que estava à sua frente. Recolocou os óculos e voltou para os arquivos. As evidências contra Waits eram incontestáveis. Não havia nada como ser pego com pedaços de corpos dentro do carro. Era o pesadelo de um advogado de defesa; era o sonho de um promotor. O caso atravessou tranquilamente a audiência preliminar quatro dias depois, e em seguida o escritório da Promotoria aumentou as apostas com o anúncio de O’Shea de que iria pedir a pena de morte. Bosch tinha um bloco de anotações ao lado da pasta aberta para que pudesse escrever algumas perguntas para O’Shea, Waits ou para os outros. O bloco estava em branco quando ele chegou ao final de sua revisão do inquérito e do arquivo do processo. Agora ele escreveu as únicas perguntas que lhe vieram à mente. Se Waits matou Gesto, por que não havia nenhuma foto dela no apartamento dele? Waits morava em West Hollywood. O que ele estava fazendo e
m Echo Park?

A primeira pergunta poderia facilmente ser explicada. Bosch sabia que os assassinos evoluíam. Waits poderia ter aprendido com o assassinato de Gesto que ele precisava de lembranças. As fotos poderiam ter começado depois de Gesto. A segunda pergunta era mais preocupante para ele. Não havia nenhum relatório na pasta que pudesse respondê-la. Pensou-se apenas que Waits estava a caminho para se livrar dos corpos, possivelmente para enterrá-los na área de parques que rodeavam o Estádio Dodger. Nenhuma outra investigação a esse respeito foi pedida. Mas para Bosch aquilo era algo a se considerar. Echo Park estaria há pelo menos meia hora de carro do apartamento de Waits em West Hollywood. Era muito tempo para ficar dirigindo um veículo cheio de sacos com pedaços de corpos. Além disso, Griffith Park, que era maior e tinha mais bolsões de terreno isolado e de difícil acesso do que a área ao redor do estádio, ficava mais perto do apartamento em Wes
t Hollywood e teria sido uma escolha melhor para ele se livrar dos corpos. Para Bosch aquilo significava que Waits tinha em mente um destino específico em Echo Park. Isso não fora considerado, ou fora considerado sem importância na investigação original.

Em seguida ele escreveu duas palavras. Perfil psicológico? Nenhum estudo psicológico do réu tinha sido realizado, e Bosch estava um pouco surpreso com aquilo. “Talvez”, pensou, tenha sido uma decisão estratégica da promotoria. O’Shea teria optado por não seguir esse caminho talvez por não saber aonde ele iria levar. Ele queria julgar Waits com os fatos e mandá-lo para a câmara da morte. Não queria ser o responsável por abrir uma porta para uma possível alegação de insanidade. “Mesmo assim”, pensou Bosch, um estudo psicológico poderia ter sido útil para entender o réu e seus crimes. Deveria ter sido feito. Com ou sem a cooperação do envolvido, um perfil poderia ter sido elaborado com base nos próprios crimes e também no que se sabia sobre Waits por meio de sua história, os achados em seu apartamento e as entrevistas feitas com as pessoas que ele conhecia e para quem havia trabalhado. Esse perfil poderia ter sido útil par
a O’Shea como uma vantagem contra qualquer tentativa da defesa de alegar insanidade. Agora era tarde demais. O departamento tinha uma equipe de psicologia pequena e não haveria como Bosch conseguir que qualquer coisa fosse feita antes da entrevista com Waits no dia seguinte. E uma requisição ao FBI resultaria, na melhor das hipóteses, em uma espera de dois meses.

Bosch de repente teve uma ideia sobre o que fazer, mas decidiu elaborá-la um pouco mais antes de agir. Colocou as perguntas de lado por um momento e se levantou para pegar mais um pouco de café. Estava usando uma caneca de café de verdade que havia trazido da Unidade de Abertos/Não Resolvidos porque as preferia às de plástico. Sua caneca tinha vindo de um famoso escritor e produtor de televisão chamado Stephen Cannell, que passara algum tempo com a Abertos/Não Resolvidos fazendo pesquisas para um projeto. Impresso ao redor da caneca estava o principal conselho de Cannell sobre escrita. Dizia: O QUE O BANDIDO ESTÁ TRAMANDO? Bosch gostava daquela pergunta porque achava que um detetive de verdade também deveria pensar sobre ela.

Voltou para a mesa e olhou o último arquivo. Era fino e o mais velho dos três. Colocou de lado o pensamento sobre Echo Park e perfil psicológico, se sentou e abriu a pasta. Ela continha os relatórios e a investigação relacionada à prisão de Waits em fevereiro de 1993. Foi o único sinal no radar envolvendo Waits até sua prisão na van com os pedaços de corpos 13 anos depois. Os relatórios diziam que Waits tinha sido preso no quintal de uma casa no bairro de Fairfax depois que uma vizinha com insônia olhou por acaso através de uma janela enquanto andava por sua casa escura. Ela viu um homem olhando para as janelas de trás da casa ao lado. A mulher acordou o marido e ele rapidamente saiu em silêncio da casa, saltou sobre o homem e segurou-o até a chegada da polícia. Descobriu-se que o homem tinha uma chave de fenda e ele foi acusado de voyeurismo. Não tinha um documento de identificação e deu o nome Robert Saxon para os policiais. Diss
e que tinha apenas 17 anos. Mas sua mentira durou pouco, e ele foi identificado como Raynard Waits, 21 anos, pouco tempo depois, quando uma impressão digital tirada durante o processo de prisão encontrou uma equivalente nos registros do Departamento de Trânsito, em uma carteira de habilitação emitida nove meses antes para Raynard Waits. O documento apresentava o mesmo dia e mês de nascimento, com uma diferença. Ela dizia que Raynard Waits era quatro anos mais velho do que Robert Saxon afirmava ser.

Uma vez identificado, Waits confessou à polícia durante o interrogatório que estava procurando uma casa para assaltar. No entanto, constava do relatório que a janela para a qual ele estivera olhando correspondia ao quarto de uma garota de 15 anos que morava na casa. Ainda assim, Waits evitou qualquer associação com crime de natureza sexual em um acordo negociado por seu advogado, Mickey Haller. Foi sentenciado há 18 meses em regime aberto e, segundo os relatórios, cumpriu com bom comportamento e sem violações. Bosch notou que o incidente era um primeiro aviso do que estava por vir. Mas o sistema estava sobrecarregado e era ineficiente para reconhecer o perigo que havia em Waits. Ele examinou as datas e viu que enquanto Waits estava completando sua pena de maneira positiva aos olhos do sistema judiciário, ele também estava se aperfeiçoando, passando de espreitador a assassino. Marie Gesto fora atacada antes

que ele terminasse de cumprir a pena.

- E aí? Bosch ergueu os olhos e tirou rapidamente os óculos para que pudesse enxergar de longe. Rider havia descido para pegar café. Ela estava segurando uma caneca O que o bandido está tramando? O escritor tinha dado uma para todo mundo na divisão.

- Quase no fim, disse ele. - E você?

- Já acabei com o material que O’Shea nos deu. Pedi ao Arquivo de Evidências a caixa sobre Fitzpatrick.

- O que tem nela?

- Não estou muito certa, mas o inventário listou o conteúdo como registros de penhores. Foi por isso que pedi. E, enquanto espero, vou terminar os relatórios sobre Matarese e deixar tudo pronto para amanhã. Dependendo da hora em que conseguirmos falar com Waits, ou eu encaminho Matarese primeiro ou por último. Você almoçou?

- Esqueci. O que você viu na pasta de Fitzpatrick? Ela puxou a cadeira na frente de Bosch e sentou.

- Quem cuidou do caso foi a Força-Tarefa de Crimes Relacionados a Tumultos, que teve vida curta, se lembra deles? Bosch balançou a cabeça, confirmando. - Eles apresentaram uma média de solução de casos em torno de dez por cento, disse ela.

- Basicamente, qualquer um que tenha feito qualquer coisa durante aqueles três dias se safou, a menos que tenha sido pego por uma câmera, como aquele moleque que acertou uma tijolada no motorista de caminhão enquanto um helicóptero da TV estava bem em cima dele.

Bosch se lembrou de que houve mais de cinquenta mortes durante os três dias de tumultos em 1992 e poucas foram resolvidas e explicadas. Aqueles foram dias sem lei nem regras na cidade. Ele se lembrava de andar pelo meio do Hollywood Boulevard e ver prédios em chamas dos dois lados da rua. A loja de penhores de Fitzpatrick ficava em um daqueles prédios.

- Era uma tarefa impossível, disse ele.

- Eu sei, disse Rider. - Não dava para abrir processos com base em todo aquele caos. Dá para dizer pela pasta de Fitzpatrick que eles não gastaram muito tempo com o caso. Trabalharam na cena do crime com uma fileira de policiais da SWAT guardando o local. Tudo foi rapidamente descartado como violência aleatória, apesar de ter havido algumas coisas que, por rotina, eles deveriam ter examinado.

- Como o quê?

- Bom, para começo de conversa, parece que Fitzpatrick era um conservador. Tirava as digitais dos polegares de todos que traziam coisas para penhorar.

- Era a vantagem dele caso recebesse objetos roubados.

- Exatamente. E qual penhorista naquela época fazia isso voluntariamente? Ele também mantinha uma lista de clientes que não eram bem-vindos por diversos motivos e daqueles que reclamaram ou que o ameaçaram. Ao que parece, não é incomum as pessoas retornarem para comprar de volta o que penhoraram, apenas para descobrir que o prazo de resgate terminou e o objeto foi vendido. Elas ficam loucas de raiva, às vezes ameaçam o penhorista, e assim por diante. A maior parte dessas informações veio de um cara que trabalhava para ele na loja. Ele não estava lá na noite do incêndio.

- E essa lista foi verificada?

- Parece que estavam verificando um por um quando alguma coisa aconteceu. Eles pararam e consideraram o caso como violência aleatória associada aos tumultos. Fitzpatrick foi incendiado com fluido de isqueiro. Metade das lojas no Boulevard foi incendiada da mesma maneira. Então pararam de perder tempo com esse caso e passaram para outro. Estavam com dois caras trabalhando no caso. Um se aposentou e o outro trabalha em Pacific. Agora é sargento, está no turno da noite. Deixei uma mensagem para ele.

Bosch sabia que não precisava perguntar se Raynard Waits era um dos nomes da lista. Isso teria sido a primeira coisa que Rider lhe diria.

- Talvez seja mais fácil falar com o cara aposentado, sugeriu Bosch. - Os aposentados sempre querem conversar. Rider concordou com um aceno de cabeça.

- É uma ideia, ela disse.

- Outra coisa é que Waits usou um nome falso quando foi preso em 1993, acusado de voyeurismo. Robert Saxon. Eu sei que você verificou se Waits estava na lista. Tente ver se há algum Saxon também.

- Tudo bem.

- Olhe, eu sei que está atrás de todas essas coisas, mas você teria tempo de fazer uma busca no AUTOTRACK sobre Waits ainda hoje?

Na divisão de trabalho da parceria deles, ela fazia a maior parte do trabalho em computadores. AUTOTRACK era um banco de dados que fornecia o histórico de endereços de um indivíduo por meio de registros do Departamento de Trânsito e outras fontes. Era tremendamente útil para descobrir a trajetória das pessoas ao longo do tempo.

- Acho que posso dar um jeito.

- Eu só quero ver onde ele morava. Não consigo entender por que ele estava em Echo Park, e parece que ninguém mais prestou muita atenção a isso.

- Pensei que fosse para se livrar dos sacos.

- Certo, imaginamos isso. Mas por que em Echo Park? Ele morava perto de Griffith Park e ali provavelmente teria sido um lugar melhor para enterrar ou se livrar de corpos. Não sei, alguma peça está faltando, algo não se encaixa direito. Acho que ele estava indo para algum outro lugar que conhecia.

- Ele teria optado pela distância. Sabe como é, deve ter pensado que, quanto mais longe dele, melhor. Bosch assentiu com a cabeça, mas não estava convencido. - Acho que vou dar uma volta por lá.

- Para quê? Acha que vai encontrar o lugar onde ele ia enterrar aqueles sacos? Você está dando uma de vidente para cima de mim agora, Harry?

- Ainda não. Só quero ver se consigo ter algum insight em relação a Waits antes de falarmos de verdade com o sujeito. A menção do nome provocou uma careta em Bosch e ele balançou a cabeça.

- O que foi? Perguntou Rider.

- Sabe o que estamos fazendo aqui? Estamos ajudando a manter esse cara vivo. Um sujeito que retalha mulheres e as mantém no freezer até ficar sem espaço e ter que se livrar delas como se fossem lixo. Esse é o nosso trabalho, encontrar a maneira de deixá-lo viver. Rider franziu a testa.

- Eu sei como você se sente, Harry, mas vou lhe dizer uma coisa: eu de certo modo estou do lado de O’Shea nisto. Acho que é melhor que todas as famílias saibam e que possamos esclarecer todos os casos. Como foi com a minha irmã. Nós queríamos saber.

Quando Rider era adolescente, sua irmã mais velha foi assassinada em um tiroteio de rua. O caso tinha sido esclarecido e três bandidos foram presos. Foi a principal razão para ela se tornar policial.

- Provavelmente é como você e a sua mãe, também, acrescentou ela. Bosch levantou os olhos.

Sua mãe fora assassinada quando ele era garoto. Mais de três décadas depois, ele resolveu o crime sozinho porque queria saber.

- Você está certa, disse ele. - Mas é só que agora nada disso se encaixa direito para mim, só isso!

- Por que você não vai dar esse passeio e espairece um pouco? Eu ligo se alguma coisa aparecer no AUTOTRACK.

- Acho que vou fazer isso mesmo. Ele começou a fechar e guardar as pastas com os arquivos.

 

CAPÍTULO 4

Nas sombras das torres do centro da cidade e iluminado pelas luzes do Estádio Dodger, Echo Park era um dos bairros mais antigos e inconstantes de Los Angeles. Ao longo das décadas ele foi o destino dos imigrantes de classe baixa da cidade, os italianos apareceram primeiro, e depois os mexicanos, chineses, cubanos, ucranianos e todos os outros. Durante o dia, um passeio pela rua principal do Sunset Boulevard poderia exigir conhecimentos em cinco ou mais línguas para se ler o que estava escrito nas fachadas das lojas. À noite era o único lugar na cidade em que o ar podia ser atravessado pelo som das armas das gangues, os vivas por alguma bola bem rebatida no jogo de beisebol e os latidos dos coiotes, tudo isso ao mesmo tempo. Hoje em dia Echo Park também era o destino favorito de uma outra classe de recém-chegados: os jovens e descolados. O pessoal “maneiro”. Artistas, músicos e escritores estavam se mudando para lá. Cafés e lojas de roupas de ótima q
ualidade se espremiam ao lado de lojas de miudezas e quiosques de frutos do mar. Uma onda de pessoas de classe alta inundava os apartamentos e as colinas abaixo do estádio de beisebol. Aquilo significava que o perfil do lugar estava mudando. Significava que os preços dos imóveis estavam altos, afastando à força a classe trabalhadora e as gangues.

Bosch havia morado por pouco tempo em Echo Park quando era garoto. E, muitos anos atrás, houve um bar de policiais em Sunset chamado Short Stop. Mas os policiais não eram mais bem-vindos ali. O lugar oferecia serviço de manobristas e alimentação para a multidão de Hollywood, duas coisas que certamente mantinham longe o policial que não estava de serviço. Para Bosch, o bairro de Echo Park havia saído do radar. Não era um lugar que ele frequentasse. Era uma região por onde passava, um atalho no seu trajeto até o Escritório do Legista para trabalhar, ou para se divertir em um jogo dos Dodgers.

Do centro da cidade ele pegou a via expressa 101 na direção norte até a Echo Park Road, e em seguida continuou indo para o norte, em direção à região de ladeiras onde Raynard Waits fora preso. Ao passar pelo lago Echo, viu a estátua conhecida como Dama do Lago guardando os nenúfares, as palmas das mãos para cima como uma vítima de assalto. Quando garoto, ele havia morado durante quase um ano com sua mãe nos Apartamentos Sir Palmer, do outro lado do lago, mas fora uma época ruim para ela e para ele, e todas as lembranças tinham sido apagadas. Ele se recordava vagamente daquela estátua, mas de quase mais nada. Virou à direita na Sunset e seguiu para a Beaudry. Dali subiu a ladeira até Figueroa Terrace. Parou no meio-fio perto do cruzamento onde Waits tinha sido abordado. Uns poucos bangalôs construídos nos anos 30 e 40 ainda estavam ali, mas a maioria das casas era construção em blocos de concreto do pós-guerra. Eram modestas, com qu
intais cercados e janelas com barras. Os carros estacionados nas entradas não eram novos nem brilhantes. Era um bairro de classe operária que Bosch sabia ser agora, em grande parte, composto por latinos e asiáticos. Os fundos das casas no lado oeste teriam boas vistas das torres do centro, com o Edifício DWP na frente e no centro. As casas do lado leste teriam quintais que se estendiam sobre o terreno irregular dos aclives. E no topo desses aclives estavam as áreas de estacionamento mais afastadas do complexo que continha o estádio de beisebol.

Pensou sobre a van da empresa de lavar janelas de Waits e se perguntou de novo por que estivera naquela rua e naquele bairro. Não era o tipo de bairro onde teria fregueses. De qualquer forma, não era o tipo de rua onde se esperava ver uma van comercial às duas da manhã. Os dois policiais agiram corretamente ao reparar nela. Bosch estacionou e desligou o carro. Saiu e olhou ao redor e em seguida se inclinou sobre o automóvel enquanto refletia sobre as coisas. Ele ainda não conseguia entender. Por que Waits tinha escolhido aquele lugar? Depois de algum tempo ele abriu o celular e ligou para sua parceira.

- Já fez a pesquisa no AUTOTRACK? Perguntou.

- Acabei de fazer. Onde você está?

- Echo Park. Apareceu alguma coisa aqui por perto?

- Não, eu só estava olhando. O lugar mais a leste que aparece é o complexo de apartamentos Montecito, em Franklin.

Bosch sabia que o Montecito não ficava perto de Echo Park, mas não era longe de High Tower, onde o carro de Marie Gesto fora encontrado.

- Quando ele esteve no Montecito? Perguntou Bosch.

- Depois de Gesto. Ele se mudou para lá... Deixe-me ver... Em 1999 e saiu no ano seguinte. Ficou durante um ano.

- Mais alguma coisa que valha a pena?

- Não, Harry. O de sempre. O sujeito mudava de casa a cada um ou dois anos. Acho que não gostava de ficar parado.

- Tudo bem, Kiz. Obrigado.

- Você vai voltar para o escritório?

- Daqui a pouco.

Fechou o telefone e voltou para o carro. Pegou a Figueroa Lane até chegar a Chávez Ravine Place e parar em outro cruzamento. Houve uma época em que toda essa área era conhecida apenas como Chávez Ravine. Mas isso foi antes da cidade tirar todas as pessoas dali e passar máquinas de terraplenagem sobre os bangalôs e cabanas que elas chamavam de lar. Um grande projeto habitacional deveria ter sido erguido na ravina, com playgrounds, escolas e áreas comerciais que atrairiam de volta as pessoas que haviam sido deslocadas. Mas, depois que limparam toda a área, o projeto habitacional desapareceu dos planos da administração pública, e um estádio de beisebol apareceu no seu lugar. Para Bosch parecia que, até onde conseguia se lembrar em Los Angeles, o dilema sempre estivera ali. Ultimamente Bosch andava ouvindo o CD de Ry Cooder chamado Chávez Ravine. Não era jazz, mas não tinha importância. Era um jazz à sua própria maneira. Ele gostava de IT 92S JUST WORK FOR ME, uma canção triste sobre um motorista de trator que veio até a ravina para derrubar as casinhas dos pobres e que se recusava a se sentir culpado em relação a isso.

Pegou a esquerda na Chávez Ravine e em poucos minutos chegou à Stadium Way e ao lugar onde Waits havia atraído a atenção dos policiais pela primeira vez ao passar rumo a Echo Park. Diante do sinal de parada obrigatória, ele examinou o cruzamento. Stadium Way era a principal via para os enormes estacionamentos do estádio. Para Waits ter entrado no bairro por aquele lado, como constava do relatório de prisão, ele devia ter vindo do centro, do estádio ou da Pasadena Freeway. Esse não seria o caminho que ele faria se tivesse vindo do lugar onde morava em West Hollywood. Bosch quebrou a cabeça com isso por alguns momentos, mas decidiu que não havia informações suficientes para chegar a qualquer conclusão. Waits poderia ter dirigido através de Echo Park, para garantir que não fosse seguido, e teria atraído a atenção dos policiais depois de fazer o retorno para voltar para casa. Percebeu que havia muita coisa sobre Waits que ele não sabia
, e o incomodava o fato de que no dia seguinte estaria cara a cara com o assassino. Bosch se sentia despreparado. Mais uma vez considerou uma ideia que havia tido antes, mas dessa vez não hesitou. Abriu o telefone e ligou para o escritório de campo do FBI em Westwood.

- Estou procurando uma agente chamada Rachel Walling, disse ele à telefonista. - Não sei bem em qual local ela está.

- Espera um. Aparentemente, ela quis dizer “um minuto”.

Enquanto esperava, ouviu a buzina de um carro que aparecera atrás dele. Bosch atravessou o cruzamento, fez o retorno e então estacionou embaixo de um eucalipto. Por fim, depois de quase dois minutos, sua ligação foi transferida e atendida, e uma voz masculina disse:

- Tática.

- Agente Walling, por favor.

- Espera um.

- Certo, disse Bosch depois de ouvir um clique.

Mas dessa vez a transferência foi feita rapidamente, e Bosch ouviu a voz de Rachel Walling pela primeira vez em um ano. Ele hesitou e ela quase desligou sem dizer nada.

- Rachel, aqui é Harry Bosch. Agora ela hesitou antes de responder.

- Harry...

- Então, o que significa “Tática”?

- É só um nome para a divisão. Ele entendeu. Ela não respondeu por que era coisa confidencial e a linha provavelmente estava grampeada. - Por que você está ligando, Harry?

- Porque preciso de um favor. Na verdade, eu preciso da sua ajuda.

- Com o quê? Eu estou meio ocupada por aqui.

- Então não se preocupe. Pensei que talvez você pudesse... Bem, deixa para lá, Rachel. Não é grande coisa. Eu me arranjo.

- Tem certeza?

- Tenho sim. Vou deixar você voltar para a Tática, seja lá o que for. Cuide-se.

Ele fechou o telefone e tentou não deixar que a voz dela e a lembrança que ela evocava o distraíssem da tarefa à sua frente. Voltou a olhar para o cruzamento e notou que provavelmente estava na mesma posição em que estava o carro dos policiais Gonzalez e Fennel quando eles avistaram a van de Waits. O eucalipto e as sombras da noite tinham lhes proporcionado uma boa cobertura. Bosch estava com fome agora, pois perdera a hora do almoço. Resolveu seguir pela via expressa até Chinatown e pegar alguma coisa para viagem, e comer na sala da divisão. Voltou para a rua e estava se perguntando se devia ligar para o escritório para saber se alguém queria alguma coisa do restaurante Chinese Friends quando seu celular tocou. Ele olhou o visor, mas a ligação era de um número restrito. Atendeu mesmo assim.

- Sou eu.

- Rachel.

- Eu quis passar para o meu celular. Houve uma pausa. Bosch sabia que acertara em relação aos telefones da Tática. - Como tem passado Harry?

- Bem.

- Então você realmente fez o que disse que ia fazer. Voltou para a polícia. Eu li sobre você no ano passado, sobre aquele caso lá em Valley.

- É, foi o meu primeiro caso depois que voltei. Desde aquela época, os outros casos têm sido mais discretos. Até aparecer essa coisa em que estou trabalhando agora.

- E foi por isso que você me telefonou? Bosch reparou no tom de voz dela.

Fazia mais de 18 meses desde a última vez em que haviam se falado. E isso fora no fim de uma semana intensa na qual os caminhos dos dois se cruzaram em um caso, quando ele estava trabalhando como autônomo antes de voltar para o departamento e Walling tentava ressuscitar sua carreira no FBI. O caso levou Bosch de volta para o pessoal de azul-escuro e Walling para o escritório de campo em Los Angeles. Se a Tática, seja lá o que fosse, era uma melhoria em relação ao cargo anterior dela em Dakota do Sul, Bosch não saberia dizer. O que ele de fato sabia é que antes de ela cair em desgraça e ser colocada na reserva nas Dakotas, havia sido uma profiler, uma profissional que elabora perfis psicológicos, na Unidade de Ciência do Comportamento em Quantico.

- Eu liguei porque achei que talvez você estivesse interessada em colocar algumas das suas velhas habilidades para funcionar novamente, disse ele.

- Você quer dizer fazer um perfil?

- Mais ou menos. Amanhã Preciso ficar frente a frente em uma sala com um assassino serial confesso e não sei nada sobre como fazê-lo falar. Esse sujeito quer confessar nove assassinatos em um acordo para evitar a execução. Preciso ter certeza de que ele não está nos manipulando. Preciso descobrir se ele está falando a verdade antes de começarmos a contar para todas as famílias, as famílias que conhecemos, que pegamos o cara certo.

Ele esperou por um momento para que ela reagisse. Como isso não aconteceu, ele a pressionou.

- Eu tenho os crimes, algumas cenas de crime e avaliações da Polícia Científica. Tenho o inventário do apartamento dele e fotos. Mas não tenho uma forma de lidar com ele. Liguei porque queria saber se poderia mostrar a você algumas dessas coisas e, sabe como é, talvez você me dar algumas ideias sobre como abordá-lo. Houve um outro longo silêncio antes dela responder.

- Onde você está Harry? Ela perguntou por fim.

- Agora? Agora estou indo para Chinatown buscar um arroz frito com camarão. Ainda não consegui almoçar.

- Eu estou no centro da cidade. Posso encontrar com você. Também não almocei.

- Você sabe onde fica o Chinese Friends?

- Claro. Que tal daqui a meia hora?

- Eu vou fazendo o pedido.

Bosch fechou o telefone e sentiu uma excitação que sabia vir de outra coisa que não era a ideia de Rachel Walling poder ajudá-lo com o caso Waits. O último encontro deles havia terminado mal, mas o incômodo da ocasião havia desaparecido com o tempo. O que havia restado em sua lembrança era a noite em que haviam feito amor em um quarto de motel em Las Vegas, quando ele acreditou ter encontrado uma alma gêmea. Olhou o relógio. Ainda tinha tempo de sobra mesmo se fosse pedir a comida antes de ela chegar. Em Chinatown estacionou na frente do restaurante e abriu o telefone de novo. Antes de entregar o arquivo de Gesto para Olivas, havia anotado nomes e telefones dos quais talvez fosse precisar. Em seguida ligou para Bakersfield, para a casa dos pais de Marie Gesto. O telefonema não seria um completo choque para eles. O hábito dele sempre fora o de ligar para eles todas as vezes que retirava o arquivo para dar uma olhada no caso. Achava que era algum consol
o que os pais soubessem que ele não havia desistido. A mãe da mulher desaparecida atendeu ao telefone.


- Irene, aqui é Harry Bosch. Ah! Sempre havia aquele tom inicial de esperança e empolgação quando um deles atendia.

- Nada ainda, Irene, disse ele rapidamente. - Eu tenho apenas uma pergunta para fazer a você e ao Dan, se não se importarem.

- Claro, claro. É bom falar com você.

- É bom falar com você também. Há mais de dez anos que ele realmente não via Irene e Dan Gesto. Depois de dois anos eles tinham parado de ir a Los Angeles na esperança de encontrar a filha, abandonado o apartamento dela e ido para casa. Depois disso, Bosch sempre telefonava.

- Qual é a sua pergunta, Harry?

- É um nome, na verdade. Você se lembra de Marie ter alguma vez mencionado alguém chamado Ray Waits? Talvez Raynard Waits. Raynard é um nome incomum. Talvez você se lembre.

Ele notou a respiração dela falhar e soube imediatamente que havia cometido um erro. A recente prisão e as audiências no tribunal envolvendo Waits haviam chegado à imprensa em Bakersfield. Ele deveria saber que Irene ficaria de olho em coisas desse tipo em Los Angeles. Ela devia saber do que Waits estava sendo acusado. Ela saberia que ele estava sendo chamado de “o Homem do Saco de Echo Park”.

- Irene? Ele adivinhou que a imaginação dela havia dado um voo terrível. - Irene, não é o que você pensa. Eu só estou investigando um pouco esse sujeito. Parece que você ouviu falar nele nos noticiários.

- Claro. Aquelas pobres garotas. Terminar daquele jeito. Eu... Ele sabia o que ela estava pensando, talvez não o que estivesse sentindo.

- Você consegue se lembrar de ter ouvido falar nele antes de as notícias aparecerem? O nome. Você se recorda se sua filha o mencionou?

- Não, eu não me lembro dele, graças a Deus.

- Seu marido está aí? Pode perguntar a ele?

- Ele não está aqui. Ainda está no trabalho. Dan Gesto havia dado tudo de si na busca de sua filha desaparecida. Depois de dois anos, quando nada mais lhe sobrara, espiritual, física ou financeiramente, voltou para Bakersfield e passou a trabalhar em uma loja John Deere. Vender tratores e ferramentas a fazendeiros era o que o mantinha vivo agora.

- Pode perguntar quando ele chegar em casa e me ligar se ele se lembrar do nome?

- Pode deixar Harry.

- Outra coisa, Irene. O apartamento de Marie tinha aquela janela alta na sala de visitas. Lembra-se disso?

- Claro. Naquele primeiro ano nós fomos até aí no Natal, em vez de ela vir para cá. Queríamos que ela sentisse que era uma via de mão dupla. Dan colocou a árvore naquela janela e podiam se ver as luzes em qualquer lado do quarteirão.

- Certo. Você sabe se ela alguma vez contratou algum lavador de janelas para manter aquela janela limpa? Houve um longo silêncio enquanto Bosch esperava. Era um buraco na investigação, um ângulo que ele deveria ter analisado 13 anos atrás, mas sequer havia pensado nele.

- Eu não me lembro Harry. Desculpe.

- Tudo bem, Irene. Tudo bem. Lembra quando você e Dan voltaram para Bakersfield e você tirou tudo do apartamento?

- Lembro. Ela disse isso com a voz embargada. Ele sabia que ela estava chorando agora e que o casal sentira que, de certa forma, eles estavam abandonando a filha e também a esperança quando voltaram para casa depois de dois anos de busca e espera.

- Você guardou tudo? Todos os papéis, notas e todas as coisas que demos para vocês depois que acabamos a investigação? Ele sabia que, se houvesse um recibo de algum lavador de janelas, aquilo seria uma pista que teria sido verificada. Mas tinha que lhe perguntar mesmo assim, para confirmar a negativa, para se certificar de que não tinha passado despercebido.

- Sim, nós temos. Está tudo no quarto dela. Temos um quarto com as coisas dela. Para o caso de ela... Voltar algum dia. Bosch sabia que a esperança deles nunca morreria completamente até que Marie fosse encontrada, de um jeito ou de outro.

- Entendo, disse ele. - Preciso que você dê uma boa olhada naquela caixa, Irene. Se puder. Quero que procure um recibo de um lavador de janelas. Verifique os talões de cheque e veja se ela pagou algum lavador de janelas. Procure uma empresa chamada Clear View Residential Glass Cleaners, ou talvez alguma abreviatura disso. Ligue para mim se encontrar alguma coisa. Está bem, Irene? Você tem uma caneta aí? Acho que o número do meu celular mudou desde a última vez que nos falamos.

- Tudo bem, Harry, disse Irene. - Pode dizer.

- O número é três-dois-três, dois-quatro-quatro, cinco-seis-três-um. Obrigado, Irene. Preciso ir agora. Mande lembranças para o seu marido.

- Pode deixar. Como está a sua filha, Harry? Ele fez uma pausa. No decorrer dos anos, parecia que ele havia lhes contado tudo a seu respeito. Era uma forma de manter firme o elo e a promessa de encontrar a filha deles.

- Ela está bem. Ela é demais.

- Em que ano está?

- No terceiro, mas eu não a vejo muito. No momento, ela está morando em Hong Kong com a mãe. Eu estive lá no mês passado, fiquei uma semana. Agora eles têm uma Disneylândia lá. Ele não sabia por que havia dito a última frase.

- Deve ser muito especial quando você está com ela.

- É mesmo. Ela também me manda e-mails agora. É melhor nisso do que eu. Era terrível falar sobre a própria filha para uma mulher que havia perdido a sua e não sabia onde nem por quê.

- Espero que ela volte logo, disse Irene Gesto.

- Eu também. Até logo, Irene. Pode ligar no meu celular sempre que quiser.

- Até logo, Harry. Boa sorte. Ela sempre dizia boa sorte no final de cada conversa.

Bosch ficou sentado no carro, pensando sobre a contradição em seu desejo de que sua filha morasse com ele ali em Los Angeles. Temia pela segurança da filha naquele lugar distante onde ela morava agora. Queria estar perto para poder protegê-la. Mas será que trazê-la para uma cidade onde garotas desapareciam sem deixar vestígios ou acabavam em pedaços dentro de sacos de lixo seria um gesto que implicaria segurança? No fundo ele sabia que estava sendo egoísta e que nunca conseguiria realmente protegê-la, não importando onde ela morasse. Todas as pessoas tinham que achar seu caminho neste mundo. Lá fora eram as regras de Darwin que valiam, e tudo o que ele podia esperar era que o caminho dela nunca cruzasse com o de alguém como Raynard Waits. Juntou os arquivos e saiu do carro.

 

CAPÍTULO 5

Bosch não viu a placa de FECHADO até chegar à porta do Chinese Friends. Só então notou que o restaurante fechava no meio da tarde antes de começar a movimentação da hora do jantar. Ele abriu o telefone para ligar para Rachel Walling, mas se lembrou de que ela havia bloqueado o número ao ligar para ele. Sem nada a fazer, a não ser esperar, comprou um exemplar do Times em uma caixa na calçada e passou os olhos pelas páginas encostado no carro. Examinou as manchetes rapidamente, com a sensação de que estava perdendo tempo ou o pique ao ler o jornal. A única coisa que leu com algum interesse foi uma notinha relatando que Gabriel Williams, o candidato a Promotor, havia conseguido o apoio da Congregação de Igrejas Cristãs do Condado Sul. Não era uma grande surpresa, mas era significativo porque sinalizava um primeiro indício de que o voto das minorias estava indo para Williams, o advogado dos direitos civis. O texto também mencionava que W
illiams e Rick O’Shea apareceriam na noite seguinte em uma reunião dos candidatos patrocinada pela Cidadãos para uma Liderança Sensível, outra coalizão que representava a área sul. Os candidatos não iriam se enfrentar em um debate, mas fariam discursos e responderiam perguntas da plateia. A CLS iria anunciar seu apoio mais tarde. Também compareceriam à reunião os candidatos à Câmara Irvin Irving e Martin Maizel.

Bosch abaixou o jornal e divagou por um momento, pensando em aparecer na reunião e isolar Irving do público, lhe perguntando como a sua experiência como trambiqueiro no Departamento de Polícia o habilitava para um cargo eletivo. Saiu do devaneio quando um carro federal sem identificação estacionou na frente do seu. Ficou observando Rachel Walling descer do carro. Estava vestida de maneira comum, com calças pretas, um blazer e uma blusa de cor creme. O cabelo castanho-escuro agora estava pelos ombros, e provavelmente isso era o mais comum de tudo. Ela parecia ótima, e Bosch voltou mentalmente para aquela noite em Vegas.

- Rachel, disse ele, sorrindo.

- Harry. Ele foi ao encontro dela. Aquele foi um momento estranho. Ele não sabia se a abraçava, beijava ou apenas lhe apertava a mão. Houve aquela noite em Vegas, mas ela fora seguida daquele dia em Los Angeles, nos fundos da casa dele, quando tudo havia desmoronado e as coisas terminaram antes de realmente terem começado. Ela o poupou de ter de fazer uma escolha estendendo a mão e tocando de leve no braço dele.

- Pensei que você ia entrar e pedir a comida.

- Por algum motivo eles estão fechados. Só abrem para o jantar depois das cinco. Você quer esperar ou quer ir a outro lugar?

- Onde?

- Eu não sei. Tem o Philippe’s. Ela balançou a cabeça com convicção.

- Estou cansada do Philippe’s. A gente come lá sempre. Para falar a verdade, eu não almocei lá hoje porque todo mundo na divisão foi para lá.

- O pessoal da Tática, né? Se ela estava cansada de um restaurante no centro, então Bosch sabia que ela não estava trabalhando no escritório principal em Westwood. - Eu conheço um lugar. Eu dirijo e você pode dar uma olhada nos arquivos. Ele recuou e abriu a porta do carro. Teve que tirar os arquivos do banco do passageiro para que ela pudesse entrar. Em seguida ele lhe passou os arquivos, deu a volta e entrou no carro. Jogou o jornal no banco de trás.

- Uau, o estilo deste aqui é tão Steve McQueen, disse ela, se referindo ao Mustang. - O que aconteceu com aquele carro esporte? Bosch deu de ombros.

- Quis mudar um pouco. Acelerou o carro para brincar com ela e saiu. Seguiu na direção da Sunset e depois rumou para Silver Lake. O trajeto iria fazê-los passar por Echo Park.

- O que exatamente você quer de mim, Harry? Ela abriu a primeira pasta que estava em seu colo e começou a ler.

- Quero que você dê uma olhada e em seguida me diga suas impressões sobre esse sujeito. Vou conversar com ele amanhã e quero ter qualquer vantagem que conseguir arranjar. Quero ter certeza de que se alguém vai ser manipulado, será ele, e não eu.

- Ouvi falar sobre esse cara. É o Açougueiro de Echo Park, certo?

- Na verdade eles o chamam de Homem do Saco.

- Entendi.

- Eu tenho uma ligação anterior com o caso.

- Qual é?

- Em 1993 eu estava trabalhando fora da Divisão de Hollywood. Peguei um caso envolvendo uma garota desaparecida. O nome dela era Marie Gesto e ela nunca foi encontrada. Foi uma coisa importante na época, ganhou muito espaço na mídia. Esse cara com quem vou falar, Raynard Waits, diz que esse é um dos casos que ele vai nos entregar. Ela olhou para ele e depois de volta para a pasta.

- Sabendo como você se envolve em um caso com o coração, Harry, eu me pergunto se é sensato você lidar com esse homem agora.

- Eu estou bem. O caso ainda é meu. E se envolver em um caso com o coração é a maneira de agir do verdadeiro detetive. É a única maneira. Ele olhou rapidamente para ela, a tempo de vê-la fazer cara de tédio.

- Falou o Mestre Zen dos Homicídios. Onde estamos indo?

- Um lugar chamado Duffy’s, em Silver Lake. Vamos chegar lá em cinco minutos e você vai adorar. Só não comece a levar os seus colegas de trabalho lá. Isso arruinaria o lugar.

- Prometo.

- Ainda dá tempo?

- É como eu disse, eu não almocei. Mas eu realmente preciso voltar para lá em algum momento ainda hoje.

- Então você está trabalhando fora do tribunal federal? Ela respondeu enquanto continuava a olhar e a virar as páginas da pasta.

- Não, estamos fora do campus.

- Um daqueles endereços secretos dos federais, né?

- Você sabe como é. Se eu lhe contar, vou ter de matá-lo. Bosch concordou com a piada com um movimento da cabeça.

- Isso significa que você não pode me contar o que é Tática?

- Não é nada. Forma reduzida de Inteligência Tática. Somos coletores. Analisamos dados não processados que tiramos da Internet, de transmissões de celulares e de imagens via satélite. Na verdade é bem tedioso.

- Mas é legal?

- Por enquanto.

- Parece alguma coisa ligada a terrorismo.

- A não ser pelo fato de nós passarmos pistas com frequência para a DEA. E no ano passado descobrimos mais de trinta golpes diferentes na Internet relacionados à ajuda para as vítimas do furacão. Como eu disse, são dados não processados. Podem levar a qualquer parte.

- E você trocou as amplas áreas vazias de Dakota do Sul pelo centro de Los Angeles.

- No que diz respeito à escolha profissional, foi a coisa certa a fazer. Não me arrependo. Mas realmente sinto falta de algumas coisas daquela região. De qualquer forma, deixa eu me concentrar nisto aqui. Você quer a minha opinião sobre isto, certo?

- Quero, sim, desculpe. Manda ver.

Ele dirigiu em silêncio por mais uns poucos minutos e então estacionou na frente da pequena fachada de um restaurante. Levou o jornal consigo para dentro. Ela lhe disse para pedir o mesmo prato que o dele. Mas quando o garçom apareceu e Bosch pediu uma omelete, ela mudou de ideia e começou a examinar o cardápio.

- Pensei que você tinha dito que era almoço, não café-da-manhã.

- Também não tomei o café-da-manhã. E a omelete daqui é ótima. Ela pediu um sanduíche de peito de peru e devolveu o cardápio.

- Meu aviso é que minhas observações vão ser muito superficiais, disse ela quando ficaram sozinhos. - É óbvio que não vai haver tempo suficiente para eu traçar um perfil psicológico completo. Eu só vou chegar perto. Bosch assentiu.

- Eu sei disso, disse ele. - Mas não tenho tempo para lhe dar, então vou ficar com qualquer coisa que você possa me oferecer. Ela não disse mais nada e voltou às pastas.

Bosch passou os olhos pelas páginas de esportes, mas não estava muito interessado na má atuação dos Dodgers no jogo da noite anterior. Nos últimos anos seu gosto pelo jogo havia diminuído notadamente. Ele estava usando o jornal como um anteparo, de forma que pudesse segurá-lo e parecer que estava lendo enquanto, na verdade, olhava para Rachel. A não ser pelo cabelo mais curto, ela havia mudado muito pouco desde a última vez em que a vira. Ainda era muito atraente, envolta em um ar incompreensível de perda. Eram os olhos dela. Não eram os olhos endurecidos de policial que ele já vira em tantos outros rostos, inclusive em seu próprio quando se olhava no espelho. Eram olhos de quem se machucara de dentro para fora. Os olhos dela eram os de uma vítima, e isso o atraía para ela.

- Por que você está me olhando? Perguntou ela de repente.

- Que foi?

- Você é tão óbvio.

- Eu só estava... Ele foi salvo pelo garçom, que apareceu trazendo os pratos de comida.

Walling colocou as pastas de lado, e ele notou um leve sorriso no rosto dela. Continuaram em silêncio depois que começaram a comer.

- Que delícia! Disse ela por fim. - Estou morrendo de fome.

- Eu também.

- E o que você estava procurando?

- Quando?

- Quando estava fingindo ler o jornal, mas não estava lendo de verdade.

- Bom, eu... Acho que eu estava tentando ver se você estava realmente interessada em olhar esse material. Sabe como é, tive a impressão de que você está muito ocupada. Talvez não queira se envolver com esse tipo de coisa de novo. Ela ergueu metade do sanduíche, mas parou a meio caminho de dar uma mordida.

- Eu odeio o meu trabalho, ok? Ou melhor, eu odeio o que estou fazendo atualmente. Mas vai melhorar. Mais um ano e vai ficar melhor.

- Ótimo. E isto aqui? Tudo bem? Ele apontou para as pastas que estavam na mesa ao lado do prato dela.

- Sim, tudo bem, mas tem muita coisa. Não consigo nem começar a ajudar. É uma sobrecarga de informações.

- Eu só tenho hoje.

- Por que você não pode adiar a entrevista?

- Porque a entrevista não é exatamente minha. E porque tem política no meio. O promotor está concorrendo para o cargo de Procurador. Ele precisa de manchetes. Ele não vai ficar esperando por mim. Ela concordou com um movimento da cabeça.

- Até a vitória com Rick O’Shea.

- Eu tive que me enfiar à força no caso por causa de Gesto. Eles não vão diminuir a velocidade só por minha causa. Ela colocou a mão sobre a pilha de pastas como se fosse absorver alguma coisa delas que pudesse ajudá-la a tomar uma decisão.

- Me deixe ficar com essas pastas quando voltarmos. Eu termino meu trabalho, bato o ponto e continuo trabalhando nelas. Vou até a sua casa hoje à noite e lhe dou o que eu tiver. Tudo. Ele olhou fixamente para ela, procurando um sentido oculto naquelas palavras.

- Quando?

- Não sei, assim que eu terminar. Mais tardar às nove horas. Amanhã começo a trabalhar bem cedo. Pode ser assim? Ele concordou. Não estava esperando por aquilo. - Você ainda mora naquela casa no topo da colina? Perguntou ela.

- Moro. Continuo por lá. Na Woodrow Wilson.

- Ótimo. Minha casa é no fim da Beverly, não é muito longe. Passo na sua casa. Eu me lembro da vista. Bosch não respondeu. Não tinha certeza sobre o que havia convidado a entrar em sua vida. - Posso lhe dar algo para pensar até a noite? Perguntou ela. - Talvez até investigar um pouquinho?

- Claro. O que é?

- O nome. Esse é o verdadeiro nome dele? Bosch franziu a testa. Ele nunca tinha pensado no nome. Supôs que era verdadeiro. Waits estava preso. Suas impressões digitais teriam sido lançadas no sistema para confirmação de identidade.

- Suponho que sim. As digitais dele batiam com as que tínhamos de uma prisão anterior. Naquela vez ele tentou dar um nome falso, mas uma digital no sistema do Departamento de Trânsito identificou-o como Waits. Por quê?

- Você sabe o que é uma reynard? Escreve-se Reynard, com R-e-y em vez de R-a-y. Bosch balançou a cabeça. Aquilo era muito estranho. Ele não havia sequer pensado a respeito do nome.

- Não, o que é?

- É um nome para uma raposa macho jovem. Uma fêmea jovem é vixen e o macho é reynard. Estudei folclore europeu na faculdade, no tempo em que eu achava que queria ser diplomata. No folclore medieval francês, existe uma raposa que é chamada de Reynard. Ele é um trickster, um trapaceiro, um impostor. Há histórias e épicos sobre a raposa maquinadora chamada Reynard. A personagem tem aparecido em livros diversas vezes durante os séculos, especialmente em livros infantis. Pode pesquisar no Google quando voltar para o escritório e tenho certeza de que vai encontrar muitas ocorrências.

Bosch assentiu com a cabeça. Não ia dizer a ela que não sabia como usar o Google. Ele mal sabia como mandar e-mails para sua filha de 8 anos. Ela bateu um dedo sobre a pilha de pastas.

- Uma raposa jovem seria uma raposa pequena, disse ela. - Pelo descritivo, o senhor Waits parece ser de estatura pequena. Pense tudo isso no contexto do nome completo dele e... - A pequena raposa espera, disse Bosch. A jovem raposa espera. O trapaceiro espera.

- Pela fêmea. Talvez essa seja a maneira pela qual ele vê suas vítimas. Bosch concordou. Ele estava impressionado.

- Deixamos passar isso. Posso verificar a identidade assim que voltar.

- E eu espero ter mais coisas para você à noite. Ela voltou a comer, e ele voltou a olhar para ela.

 

CAPÍTULO 6


Logo que deixou Rachel Walling em seu carro, Bosch abriu o telefone e ligou para sua parceira. Rider contou que estava terminando a papelada sobre o caso Matarese e que logo eles estariam com tudo pronto e poderiam apresentar a denúncia no escritório da Procuradoria no dia seguinte.

- Ótimo. Mais alguma coisa?

- Peguei a caixa com as coisas de Fitzpatrick dos Arquivos de Evidências, e acabaram sendo duas caixas.

- Contendo o quê?

- A maior parte é de velhos registros de penhor, e tenho certeza de que ninguém nunca olhou para eles. Estavam encharcados depois que o incêndio foi apagado. O pessoal de Crimes de Tumultos os colocou em tubos plásticos e eles estão embolorando lá dentro desde aquela época. E, meu amigo, como eles fedem!

Bosch balançou a cabeça afirmativamente enquanto registrava essa informação. Era um beco sem saída e isso não importava. Raynard Waits estava prestes a confessar o assassinato de Daniel Fitzpatrick mesmo assim. Ele sabia que Rider via a situação da mesma maneira. Uma confissão não coagida é um Royal Flush. Ganha de qualquer coisa.

- Você teve alguma notícia de Olivas ou de O’Shea? Perguntou Rider.

- Ainda não. Eu ia telefonar para Olivas, mas quis falar com você primeiro. Você conhece alguém no setor de licenciamento municipal?

- Não, mas se você quiser que eu telefone para lá, posso fazer isso amanhã de manhã. Eles estão fechados agora. O que você está procurando? Bosch olhou o relógio. Não tinha percebido como já era tarde. Imaginou que aquela omelete no Duffy’s ia ter que contar como café-da-manhã, almoço e jantar.

- Eu estava pensando que a gente poderia dar uma olhada na empresa de Waits para ver há quanto tempo ele a tinha, se alguma vez houve reclamações, esse tipo de coisa. Olivas e o parceiro dele deveriam ter feito isso, mas não há nada nos arquivos a esse respeito. Ela ficou em silêncio por um momento antes de falar.

- Você acha que isso pode ter sido a ligação com a High Tower?

- Talvez. Ou talvez com Marie. O apartamento dela tinha uma enorme janela panorâmica. Não é algo que eu me lembre de termos discutido na ocasião. Mas talvez tenhamos deixado passar.

- Harry, você nunca deixa passar nada, mas vou ver isso agora mesmo.

- A outra coisa é o nome do sujeito. Pode ser falso.

- Como assim?

Ele contou a ela sobre o contato com Rachel Walling e o pedido para que olhasse as pastas. A princípio, isso foi recebido com um silêncio retumbante, porque Bosch havia cruzado uma daquelas linhas invisíveis do DPLA ao convidar o FBI para analisar o caso sem aprovação do comando, mesmo sendo o convite a Walling algo não oficial. Mas quando Bosch contou a Rider sobre Reynard, a Raposa, ela abandonou o silêncio e se tornou cética.

- Você acha que nosso assassino serial lavador de janelas tinha especialização em folclore medieval?

- Eu não sei, respondeu ele. - Walling diz que ele pode ter tirado isso de um livro infantil. Não importa. Tem o suficiente aí para eu achar que devemos dar uma olhada em certidões de nascimento, para garantir que exista alguém chamado Raynard Waits. Na primeira pasta, quando foi preso por voyeurismo em 1993, ele foi fichado sob o nome de Robert Saxon, esse foi o nome que ele deu, mas então eles chegaram a Raynard Waits quando as digitais foram passadas para o computador do Departamento de Trânsito.

- O que você está vendo aí, Harry? Se eles tinham o polegar dele no arquivo naquela época, eu acho que, no final das contas, o nome não é falso.

- Talvez. Mas você sabe que não é impossível conseguir uma carteira de habilitação com nome falso neste estado. E se de fato Saxon era seu nome verdadeiro, mas o computador soltou seu pseudônimo e ele resolveu ficar com ele? Já vimos acontecer antes.

- Então por que manter o nome depois disso? Ele tinha um registro com o nome Waits. Por que não voltar a usar Saxon, ou seja, lá como ele realmente se chame?

- Boas perguntas. Eu não sei. Mas temos que investigar.

- Bom, nós o pegamos, qualquer que seja o nome dele. Vou entrar com Raynard, a Raposa no Google agora mesmo.

- Digite com e. Ele aguardou e ouviu os dedos dela no teclado do computador.

- Consegui, disse ela por fim. - Tem muita coisa sobre Reynard, a Raposa.

- Foi isso que Walling me disse. Houve um silêncio por um instante enquanto Rider lia. Então ela falou.

- Aqui diz que parte da lenda é que Reynard, a Raposa, tinha um castelo secreto que ninguém conseguia achar. Ele usava todo o tipo de truques para atrair suas vítimas. Em seguida ele as levava para o castelo e as comia. A informação pairou no ar sem ser comentada. Por fim, Bosch falou.

- Você tem tempo de fazer outra busca no AUTOTRACK e ver se consegue alguma coisa relacionada a Robert Saxon?

- Claro. Não havia muita convicção no tom de voz dela. Mas Bosch não ia facilitar. Ele queria manter as coisas andando. - Leia a data de nascimento dele para mim no relatório de prisão, disse Rider.

- Não posso. Não estou com ele aqui.

- Onde está? Não estou vendo em cima da sua mesa.

- Eu dei as pastas para a Agente Walling. Vou pegá-las de volta mais tarde esta noite. Você vai ter que buscar o relatório de prisão no computador. Houve um silêncio prolongado antes que Rider respondesse.

- Harry, aquelas são as pastas oficiais da investigação. Você sabe que não deveria passá-las para ninguém. E vamos precisar delas amanhã para a entrevista.

- Já falei, eu vou recuperá-las esta noite.

- Tomara que sim. Mas eu preciso dizer uma coisa, parceiro, você está dando uma de caubói de novo, e eu não gosto muito disso.

- Kiz, eu só estou tentando fazer as coisas andarem. E quero estar preparado para aquele cara na entrevista de amanhã. O que Walling vai me trazer pode nos dar uma vantagem.

- Ótimo. Eu confio em você. Talvez em algum momento você venha a confiar em mim o bastante para pedir a minha opinião antes de sair por aí tomando decisões que afetam a nós dois. Bosch sentiu o rosto se inflamar, principalmente porque sabia que ela estava certa. Não disse nada porque sabia que um pedido de desculpas por deixá-la de fora não ia adiantar. - Liga de novo se Olivas nos der o horário de amanhã, disse ela.

- Pode deixar.

Depois de fechar o telefone, Bosch pensou sobre as coisas por um momento. Tentou ultrapassar seu constrangimento pela indignação de Rider. Concentrou-se no caso e no que havia deixado de fora da investigação até aquele ponto. Depois de alguns minutos, reabriu o telefone, ligou para Olivas e perguntou se haviam marcado uma hora e um lugar para a entrevista com Waits.

- Amanhã de manhã, dez horas, respondeu Olivas. - Não se atrase.

- Você ia me contar Olivas, ou eu deveria ter descoberto isso por telepatia?

- Eu mesmo acabei de ficar sabendo. Você me ligou antes que eu pudesse ligar para você. Bosch ignorou a desculpa dele.

- Onde?

- No gabinete da Promotoria. Ele vai ser trazido da segurança máxima e colocado em uma sala de interrogatório aqui.

- Você está na Promotoria agora?

- Eu tinha umas coisas para discutir com o Rick. Bosch deixou isso no ar sem responder. - Mais alguma coisa? Perguntou Olivas.

- É, eu tenho uma pergunta, disse Bosch. - Onde está o seu parceiro nisso tudo, Olivas? O que aconteceu com Colbert?

- Ele está no Havaí. Vai voltar na semana que vem. Se esse negócio durar até lá, ele vai participar. Bosch se perguntou se Colbert sequer sabia o que estava acontecendo, ou se estava fora, de férias, em um caso que podia fazer sua carreira. Por tudo o que Bosch sabia a respeito de Olivas, não seria uma surpresa se ele estivesse tramando para deixar o parceiro de fora em um caso importante.

- Dez horas, então? Perguntou Bosch.

- Dez.

- Mais alguma coisa que eu deveria saber Olivas? Ele estava curioso para saber por que Olivas estava no gabinete da Promotoria, mas não queria perguntar diretamente.

- Na verdade, tem mais uma coisa. Pode-se dizer que é uma coisa meio delicada. Eu estava conversando com Rick a esse respeito.

- E o que é?

- Bom, adivinha o que eu estou olhando aqui. Bosch soltou a respiração com força. Olivas ia prolongar o assunto. Bosch conhecera-o há menos de um dia e já sabia sem dúvida que não gostava dele e nunca viria a gostar.

- Não tenho ideia, Olivas. O que é?

- Os seus formulários 51 do caso Gesto.

Ele estava se referindo à Cronologia de Investigação, um relatório mantido por data e horário de todos os aspectos de um caso, desde relatos da movimentação e horários dos detetives, passando por anotações sobre mensagens e telefonemas de rotina até investigações junto à imprensa e informações fornecidas por cidadãos. Geralmente a lista era escrita à mão com todos os tipos de sinais de taquigrafia e abreviações empregadas à medida que a lista era atualizada no decorrer de cada dia, às vezes de hora em hora. Então, quando uma página estava cheia, ela era datilografada em um formulário chamado 51, que estaria completo e legível quando e se o caso fosse para os tribunais, e os advogados, juízes e membros do júri precisassem rever os arquivos da investigação. As páginas originais manuscritas eram, então, descartadas.

- O que têm eles? Perguntou Bosch.

- Estou olhando para a última linha da página 14. A listagem é do dia 29 de setembro de 1993, seis e quarenta da noite. Deve ser a hora de encerrar as atividades. As iniciais no lançamento são JE. Bosch sentiu um gosto amargo na boca. Seja lá onde Olivas estivesse querendo chegar, ele estava adorando fazer isso aos poucos.

- Obviamente, disse ele com impaciência, deve ser as iniciais de meu parceiro na época, Jerry Edgar. O que diz o lançamento, Olivas?

- Aqui diz... Vou ler para você. Diz: “Robert Saxon, data de nascimento três do onze de setenta e um. Viu a história no Times. Estava em Mayfair e viu MG sozinha. Ninguém a seguia.” Dá o número de telefone de Saxon e só isso. Mas é o suficiente, Figurão. Você sabe o que significa? Bosch sabia.

Ele acabara de dar o nome Robert Saxon para Kiz Rider investigar. Ou era um nome falso ou talvez fosse o nome verdadeiro do homem conhecido atualmente por Raynard Waits. Aquele nome nos formulários 51 agora ligavam Waits ao caso Gesto. Significava também que 13 anos atrás Bosch e Edgar tiveram, pelo menos, uma possibilidade rápida de investigar Waits/Saxon. Mas por razões que ele não sabia ou das quais não se lembrava, eles nunca foram atrás daquilo. Ele não se lembrava daquele lançamento específico no formulário. Havia dezenas de páginas na Cronologia de Investigação preenchidas com lançamentos de uma ou duas linhas. Lembrar-se de todos eles, mesmo com seus frequentes retornos à investigação nos últimos anos, teria sido impossível. Ele precisou de um bom tempo para recuperar a voz.

- Essa é a única menção no inquérito? Perguntou ele.

- Que eu tenha visto, disse Olivas.

- Eu já olhei tudo duas vezes. Até tinha deixado passar na primeira vez em que li tudo. Então, na segunda vez, eu disse: “Ei, eu conheço esse nome.” É um nome falso que Waits usou no começo dos anos 90. Deve estar nos arquivos que você tem.

- Eu sei. Eu vi.

- Significa que ele telefonou para vocês, Bosch. O assassino ligou para vocês, e você e seu parceiro cagaram tudo. Parece que ninguém foi atrás dele nem investigou o nome nos computadores. Vocês tinham o nome falso do assassino e um número de telefone e não fizeram nada. É claro, vocês não sabiam que era o assassino. Só um cidadão telefonando para contar o que viu. Ele deve ter tentado manipular vocês de alguma maneira, e descobrir mais alguma coisa sobre o caso.

Só que o Edgar não foi atrás. Já era tarde e ele provavelmente queria tomar o primeiro Martini. Bosch não disse nada, e Olivas ficou bem satisfeito por preencher o vazio na conversa.

- É uma pena, sabe? Talvez tudo isso pudesse ter terminado ali, naquele momento. Acho que vamos perguntar a Waits sobre isso amanhã de manhã.

Olivas e suas mesquinharias não mais importavam a Bosch. As farpas não podiam penetrar a nuvem escura e espessa que estava descendo sobre ele. Pois sabia que se o nome Robert Saxon tinha aparecido na investigação de Gesto, então por rotina ele deveria ter sido investigado nos computadores. Teria apontado para um registro semelhante no banco de dados de nomes falsos que os teria levado a Raynard Waits e sua prisão anterior por voyeurismo. Isso o teria tornado um suspeito. Não apenas uma pessoa de interesse como Anthony Garland. Um suspeito importante. E isso indubitavelmente teria levado a investigação para uma direção totalmente nova. Mas isso nunca aconteceu. Aparentemente nem Edgar nem Bosch tinham feito a pesquisa sobre o nome. Era um descuido que agora Bosch sabia que provavelmente custara a vida das duas mulheres que acabaram dentro de sacos de lixo e de outras sete sobre as quais Waits ia lhes contar no dia seguinte.

- Olivas? Disse Bosch.

- O que é Bosch?

- Não deixe de levar o inquérito amanhã com você. Quero ver os formulários 51.

- Ah, pode deixar. Vamos precisar dele para fazer a entrevista.

Bosch fechou o telefone sem mais uma palavra. Sentiu o ritmo de sua respiração aumentar. Em pouco tempo estava quase hiperventilando. Sentia um calor intenso que vinha do contato das costas com o encosto do banco e estava começando a transpirar. Abriu as janelas e tentou diminuir o ritmo da respiração. Estava perto de Parker Center, mas parou o carro próximo a uma calçada. Era o pesadelo de qualquer detetive. O pior cenário que podia haver. Uma pista ignorada ou desperdiçada, permitindo que algo terrível estivesse solto no mundo. Algo tenebroso e maligno, destruindo uma vida após outra enquanto se movimentava através das sombras. Era verdade que todos os detetives cometiam erros e tinham que conviver com arrependimentos. Mas Bosch instintivamente sabia que aquele era virulento. Ele iria crescer, e crescer por dentro, até que escurecesse tudo e ele se tornasse a última vítima, a última vida destruída.

Saiu de novo com o carro e entrou no fluxo do tráfego para ter mais ar entrando pelas janelas. Fez um retorno cantando os pneus e rumou para casa.

 

CAPÍTULO 7

Da varanda na parte de trás de sua casa, Bosch via o céu começar a desaparecer. Ele morava na Woodrow Wilson Drive em uma casa construída sobre vigas em balanço que se pendurava no alto de uma colina como uma personagem de desenho animado se pendura na beira de um precipício. Às vezes Bosch se sentia como essa personagem. Como naquela noite. Ele estava bebendo vodca em doses generosas com gelo, a primeira vez que ele tomava uma bebida alcoólica mais forte desde que havia voltado ao trabalho um ano antes. A vodca dava à sua garganta a sensação de que ele tinha engolido uma tocha, mas isso não era problema. Ele estava tentando incinerar seus pensamentos e cauterizar suas terminações nervosas. Bosch se considerava um verdadeiro detetive, alguém que absorvia tudo em seu íntimo e que se preocupava. Todo mundo é importante, ou ninguém é importante. Isso é o que ele sempre dizia. Isso fazia com que ele fosse bom em seu trabalho, mas também
o deixava vulnerável. Os erros podiam afetá-lo, e aquele era o pior de todos os erros.

Ele balançou a vodca e o gelo e tomou outro bom gole até esvaziar o copo. Como algo tão gelado podia queimar de maneira tão intensa quando descia pela garganta? Ele voltou para dentro de casa e colocou mais vodca no copo com gelo. Desejou ter limão para espremer na bebida, mas não tinha parado em lugar nenhum a caminho de casa. Na cozinha, com mais bebida no copo, pegou o telefone e ligou para o celular de Jerry Edgar. Ainda sabia o número de cor. O número de telefone de um parceiro era algo que jamais se esquece. Edgar atendeu e Bosch ouviu barulho de TV no fundo. Ele estava em casa.

- Jerry, sou eu. Preciso perguntar uma coisa.

- Harry? Onde você está?

- Em casa, colega. Mas estou trabalhando em um dos nossos velhos casos.

- Ah, me deixa percorrer a lista das obsessões de Harry Bosch. Vejamos... Fernandez?

- Não.

- Aquela garota, o nome era Spike qualquer coisa?

- Não.

- Desisto, cara. Você tem fantasmas demais para eu me lembrar de todos.

- Gesto.

- Merda, eu devia ter falado nela primeiro. Eu sei que você tem trabalhado nele de vez em quando desde que voltou à ativa. Qual é a pergunta?

- Tem um lançamento nos formulários 51. Tem as suas iniciais nele. Diz que um sujeito chamado Robert Saxon telefonou e disse que a viu no Mayfair. Edgar esperou um momento antes de responder.

- Só isso? Esse é o lançamento?

- Só isso. Você se lembra de ter falado com esse cara?

- Porra, Harry, eu não me recordo nem de lançamentos nos casos em que trabalhei no mês passado. É para isso que temos os 51. Quem é Saxon? Bosch balançou o copo e tomou um gole antes de responder. O gelo bateu em sua boca e a vodca escorreu pelo queixo. Ele enxugou com a manga do paletó e então recolocou o fone diante da boca.

- Ele é o cara... Eu acho.

- Você pegou o assassino, Harry?

- Estou bem perto disso. Mas... Nós podíamos tê-lo prendido naquela época. Talvez.

- Eu não me lembro de ninguém chamado Saxon telefonando para mim. Ele devia estar tentando se divertir quando nos ligou. Harry, você está bêbado, cara?

- Quase lá.

- Qual é o problema, cara? Se você pegou o sujeito, antes tarde do que nunca. Você devia estar contente. Eu estou. Já ligou para os pais dela? Bosch estava apoiado contra o balcão da cozinha e sentiu necessidade de se sentar. Mas o telefone era de fio e ele não podia ir para a sala ou para a varanda. Tomando cuidado para não derramar sua bebida, ele escorregou até o chão, as costas contra os armários.

- Não, eu não liguei para eles.

- O que está acontecendo aí, Harry? Você está falando enrolado para cacete e isso significa que alguma coisa está errada. Bosch esperou um momento.

- O que está errado é que Marie Gesto não foi a primeira e não foi a última. Edgar ficou em silêncio enquanto registrava o que ouvira. O som da televisão no fundo desapareceu e então ele falou com a voz fraca de uma criança que pergunta qual vai ser seu castigo.

- Quantas vieram depois?

- Parece que foram nove, disse Bosch em voz igualmente baixa. - Provavelmente amanhã vou ficar sabendo mais.

- Porra, murmurou Edgar. Bosch concordou. Uma parte dele estava brava com Edgar e queria culpá-lo por tudo. Mas a outra parte dizia que eles eram parceiros e que dividiam as coisas boas e as ruins. Aqueles formulários 51 estavam no inquérito para os dois lerem e agirem de acordo.

- Então você não se lembra do telefonema?

- Não, nada. Faz muito tempo. Tudo o que posso dizer é que se não houve acompanhamento, então o telefonema não pareceu legítimo ou eu tirei tudo o que podia de quem telefonou. De qualquer forma, se ele era o assassino, estava só brincando com a gente.

- É, mas a gente não passou o nome no computador. Teria gerado um registro semelhante nos arquivos de nomes falsos. Talvez ele quisesse isso. Os dois ficaram em silêncio enquanto suas mentes peneiravam as areias do desastre. Por fim, Edgar falou.

- Harry, foi você quem descobriu isso? Quem mais sabe?

- Um cara dos Homicídios, Divisão Noroeste, foi quem descobriu. Ele está com o arquivo de Gesto. Ele sabe e um promotor que está trabalhando com o suspeito também sabe. Não importa. Nós fizemos uma cagada. “E pessoas morreram”, ele pensou, mas não disse.

- Quem é o promotor? Perguntou Edgar. - Isso pode ser controlado?

Bosch sabia que Edgar já estava adiante, pensando sobre como limitar o prejuízo para a carreira que uma coisa daquelas poderia causar. Bosch se perguntou se o sentimento de culpa de Edgar em relação às nove vítimas que vieram depois de Marie Gesto havia simplesmente desaparecido ou fora convenientemente compartimentalizado. Edgar não era um detetive de verdade. Ele deixava o coração de fora.

- Duvido, disse Bosch. - E realmente não dou a mínima. A gente devia ter ido para cima desse cara em 93, mas deixamos passar e ele está por aí retalhando mulheres desde aquela época.

- Como assim, retalhando? Você está falando do Homem do Saco de Echo Park? Qual é o nome dele, Waits? Ele era o nosso cara? Bosch confirmou com um movimento da cabeça e apertou o copo gelado contra a têmpora esquerda.

- Isso mesmo. Ele vai confessar amanhã. Vai acabar aparecendo porque Rick O’Shea vai usar isso. Não vai ter como esconder porque algum repórter esperto vai perguntar se alguma vez Waits tinha aparecido na época das investigações do caso Gesto.

- Então a gente responde que não, porque essa é a verdade. O nome de Waits nunca apareceu. Era um nome falso e não precisamos contar a respeito. Você tem que fazer O’Shea entender isso, Harry. A voz dele tinha um tom de urgência. Bosch agora lamentou ter telefonado. Ele queria que Edgar dividisse com ele o peso da culpa, e não que pensasse em uma maneira de evitá-la.

- Está bem, Jerry.

- Harry, para você é fácil falar isso. Você já se aposentou e voltou. Eu estou em vias de conseguir uma das duas vagas para Detetive Nível 2 na Divisão de Roubos e Homicídios, e se esse negócio for revelado vai ferrar qualquer chance que eu tenha. Bosch agora queria desligar. - Como eu disse, está bem. Vou fazer o que puder Jerry. Mas, sabe, às vezes, quando a gente faz uma cagada, tem que aguentar as consequências.

- Não dessa vez, parceiro. Agora não. Enfureceu Bosch o fato de Edgar ter recorrido ao velho “pacto de parceiros”, convocando Bosch a protegê-lo por lealdade e pela regra não escrita de que os laços da parceria duram para sempre e são mais fortes até do que o casamento.

- Eu falei que vou fazer o que puder, disse ele a Edgar. - Preciso desligar agora, parceiro.

Ele se levantou do chão e colocou o fone no gancho. Antes de voltar para a varanda, colocou mais gelo em seu copo com vodca. Lá fora, foi até o parapeito e apoiou os cotovelos sobre ele. O barulho do tráfego da via expressa na base da colina era um ruído contínuo ao qual já estava acostumado. Olhou para o céu e viu que o pôr do sol estava de uma cor rosa sujo. Viu um falcão de cauda vermelha flutuando em uma corrente de ar. Isso o fez se lembrar de um que tinha visto no dia em que encontraram o carro de Marie Gesto. O telefone celular começou a tocar e ele teve dificuldade para tirá-lo do bolso do paletó. Acabou conseguindo, por fim, e abriu-o antes de perder a chamada. Não teve tempo de ver quem estava chamando no visor. Era Kiz Rider.

- Harry, ficou sabendo?

- É, fiquei. Acabei de falar com o Edgar sobre isso. Ele só está preocupado em proteger a carreira e suas chances na DRH.

- Harry, sobre o que você está falando? Bosch fez uma pausa. Estava confuso.

- Aquele babaca do Olivas não lhe contou? Pensei que a esta altura ele já teria contado para o mundo todo.

- Contado o quê? Eu estava telefonando para saber se a entrevista foi marcada para amanhã. Bosch notou o erro que tinha cometido. Foi até a beirada da varanda e jogou a bebida por cima do parapeito.

- Às dez horas da manhã no gabinete da Promotoria. Vão colocá-lo em uma sala especial lá. Desculpe Kiz, acho que me esqueci de ligar para você.

- Você está bem? Parece que andou bebendo.

- Estou em casa, Kiz. Posso fazer isso aqui.

- Por que você pensou que eu estava ligando? Bosch segurou a respiração, organizou as ideias e então falou.

- Edgar e eu, nós deveríamos ter prendido Waits, ou Saxon, ou seja lá que nome ele tenha, em 1993. Edgar falou com ele por telefone e ele usou o nome Saxon. Mas nenhum de nós verificou o nome no computador. Nós fizemos uma bela cagada, Kiz. Agora ela estava em silêncio enquanto pensava sobre o que ele havia dito. Não levou muito tempo para ela notar a conexão com Waits que o nome falso lhes daria.

- Lamento Harry.

- Diga isso para as nove vítimas que vieram depois. Ele estava olhando fixamente para o mato logo abaixo da varanda.

- Você vai ficar bem?

- Eu estou bem. Eu só preciso descobrir como superar isso para estar pronto amanhã.

- Você acha que a esta altura dos acontecimentos você deve se manter no caso? Talvez alguma das outras equipes da Abertos/Não Resolvidos devesse assumir para nós. Bosch reagiu imediatamente. Ele não tinha certeza sobre como ia lidar com aquele erro fatal de 13 anos atrás, mas não ia se afastar agora.

- Não, Kiz, eu não vou deixar o caso. Eu posso ter deixado o cara escapar em 1993, mas não vou deixar agora.

- Tudo bem, Harry. Ela não desligou, mas não disse mais nada depois disso. Bosch pôde ouvir uma sirene passando lá embaixo. - Harry, eu posso dar uma sugestão? Ele sabia o que esperar.

- Claro.

- Acho que você devia colocar a bebida de lado e começar a pensar em amanhã. Quando entrarmos naquela sala, os erros cometidos no passado não vão importar. Tudo vai girar em torno daquele momento com o sujeito. Vamos precisar ficar gelados. Bosch sorriu. Pensou que não ouvia aquela expressão desde que estivera em patrulha no Vietnã.

- Ficar gelados, disse ele.

- Isso mesmo. Você quer se encontrar comigo na sala da divisão e vamos juntos a pé dali?

- Tudo bem. Vou chegar lá cedo. Quero passar pelo Registro Geral primeiro. Bosch ouviu baterem na porta da frente e voltou a entrar na casa.

- Eu também, então, disse Rider. Encontro você na divisão. Você vai ficar bem esta noite? Bosch abriu a porta da frente e viu Rachel Walling em pé ali, segurando as pastas com as duas mãos.

- Vou, Kiz, disse ele ao telefone. - Eu vou ficar bem. Boa-noite. Ele fechou o telefone e convidou Rachel a entrar.

 

CAPÍTULO 8

Pelo fato de já ter estado ali antes, Rachel não se deu o trabalho de olhar a casa. Ela colocou as pastas sobre a pequena mesa na área de jantar e olhou para Bosch.

- Qual é o problema? Você está bem?

- Estou bem. Eu meio que esqueci que você vinha.

- Posso ir embora se...

- Não, eu gostei de você ter vindo. Teve mais tempo para olhar o material?

- Um pouquinho. Tenho algumas anotações e algumas ideias que poderão ajudá-lo amanhã. E, se você quiser que eu esteja lá, posso dar um jeito... Extraoficialmente. Bosch balançou a cabeça.

- Oficialmente, extraoficialmente, não importa. Esse jogo é de Rick O’Shea, e se eu colocar um agente do FBI, então vou ser expulso antes do final do primeiro tempo. Ela sorriu e balançou a cabeça.

- Todo mundo pensa que tudo o que o FBI quer são as manchetes dos jornais. Nem sempre é assim.

- Eu sei, mas não posso transformar isso em uma demonstração para O’Shea. Aceita alguma coisa para beber? Ele indicou uma cadeira perto da mesa para que ela pudesse se sentar. - O que você está tomando?

- Eu estava tomando vodca. Acho que vou passar para o café agora.

- Pode me preparar uma vodca com tônica? Ele concordou.

- Posso preparar uma sem tônica, disse ele.

- Suco de tomate?

- Não.

- Suco de cranberry?

- Só vodca.

- Harry, o durão. Acho que vou ficar com o café. Ele foi até a cozinha para colocar água para ferver. Ouviu-a puxar uma cadeira e se sentar. Ao voltar, viu que ela havia espalhado as pastas sobre a mesa e tinha uma página cheia de anotações à sua frente. - Você já conseguiu alguma coisa em relação ao nome? Perguntou ela.

- Está sendo feito. Vamos começar cedinho amanhã e espero que saibamos alguma coisa antes de entrar às dez horas naquela sala com o sujeito. Ela assentiu com a cabeça e esperou que ele se sentasse de frente para ela.

- Está pronto? Perguntou ela.

- Pronto. Ela se inclinou para frente e olhou suas anotações, falando primeiro sem levantar os olhos delas.

- Seja lá quem ele for, seja lá qual for seu nome, é óbvio que ele é inteligente e manipulador, disse ela. - Repare na altura dele. Baixo e ligeiramente forte. Isso significa que ele tinha uma boa lábia. De alguma forma, ele conseguiu fazer com que essas vítimas o acompanhassem. Esse é o principal aspecto. É improvável que ele tenha usado força física, pelo menos não no início. Ele é pequeno demais para isso. Em vez disso, ele usava charme e astúcia e tinha prática naquilo. Mesmo que uma garota tenha acabado de descer do ônibus no Hollywood Boulevard, ela vai estar alerta e terá algum grau de esperteza ao andar pelas ruas. Ele era mais esperto. Bosch concordou.

- O trapaceiro, disse ele. Ela balançou a cabeça afirmativamente e apontou para uma pequena pilha de documentos.

- Fiz um pouco de pesquisa na Internet sobre isso, disse ela. - Na história de Reynard, ele é frequentemente descrito como um membro do clero e é capaz de persuadir as pessoas a se aproximar dele de forma que possa agarrá-las. O clero na época, estamos falando do século XII, era a autoridade máxima. Hoje em dia seria diferente. A autoridade máxima seria o governo, especialmente representado pela polícia.

- Você está dizendo que ele pode ter se passado por policial?

- É só uma ideia, mas é possível. Ele precisava ter alguma coisa que funcionasse.

- E quanto a uma arma? Ou dinheiro? Ele pode simplesmente ter mostrado umas verdinhas. Essas mulheres... Essas garotas fariam coisas por dinheiro.

- Acho que era mais do que uma arma e mais do que dinheiro. Para usar qualquer uma dessas coisas, ainda assim é preciso aproximação. Dinheiro não faz baixar os limites de segurança. Tinha que ser alguma coisa mais. O estilo ou a lábia dele, alguma coisa mais do que dinheiro, ou além dele. Quando elas tivessem se aproximado, então ele usaria a arma. Bosch concordou e fez algumas anotações em um caderno que tirou de uma prateleira atrás do lugar onde estava sentado.

- O que mais? Perguntou ele.

- Você sabe há quanto tempo ele tinha aquela firma?

- Não, mas vamos saber amanhã de manhã. Por quê?

- Bem, porque isso mostra outra dimensão das habilidades dele. Mas meu interesse não é só porque ele tinha seu próprio negócio. Também estou curiosa em relação à escolha do tipo de firma. Isso permitia a ele ter mobilidade e percorrer toda a cidade. Se você visse a van dele no bairro, aquilo não seria motivo para preocupação, a não ser tarde da noite, o que obviamente levou à queda dele. E o trabalho também possibilitava que ele entrasse nas casas das pessoas. Tenho curiosidade para saber se ele começou a firma para ajudar a preencher suas fantasias, ou se já tinha a firma antes de começar a agir sob esses impulsos.

Bosch fez mais algumas anotações. Rachel tinha uma boa perspectiva com suas perguntas sobre o trabalho dele. Ele tinha perguntas que estavam no mesmo plano. Será que Waits tinha essa firma 13 anos atrás? Será que ele tinha lavado janelas na High Tower e sabia sobre o apartamento vazio? Talvez isso revelasse um outro erro, alguma conexão que eles tinham deixado passar.

- Sei que não preciso lhe dizer isto, Harry, mas você vai ter que ter cuidado, vai ter que ser cauteloso com ele. Ela levantou os olhos de suas anotações.

- Por quê?

- Alguma coisa sobre o que vejo aqui, e obviamente esta é uma resposta muito apressada a muito material, alguma coisa não se encaixa nisso tudo.

- O que é? Ela pensou antes de responder.

- Você tem que se lembrar de que ele foi pego por um lance de sorte. Policiais procurando um ladrão tropeçaram em um assassino. Até o momento em que aqueles policiais encontraram os sacos em sua van, Waits era completamente desconhecido das autoridades. Ele estava voando abaixo do radar há anos. Como eu disse, isso mostra que ele tinha um certo nível de astúcia e habilidade. E diz alguma coisa sobre a patologia também. Ele não estava mandando bilhetes para a polícia como o Zodíaco ou o BTK. Ele não estava exibindo suas vítimas como uma afronta à sociedade ou para zombar da polícia. Era discreto. Movia-se abaixo da superfície. E, com a exceção das duas primeiras mortes, ele escolhia vítimas que poderiam desaparecer sem deixar muitos rastros para trás. Entende o que eu digo?

Bosch hesitou por um momento, sem ter certeza se queria contar a ela sobre o erro que ele e Edgar haviam cometido tantos anos atrás. Ela leu o rosto dele.

- O que foi? Ele não respondeu. - Harry, eu não quero perder meu tempo com isto. Se tiver alguma coisa que você sabe que eu preciso saber, então me diga, senão talvez seja melhor eu me levantar e ir embora.

- Espere só um pouco até eu pegar o café. Espero que você goste puro. Ele se levantou, foi até a cozinha e colocou café em duas canecas. Encontrou alguns pacotinhos de açúcar e adoçante em uma cesta onde jogava os envelopes de condimentos que vinham com os pedidos para viagem e os trouxe para Rachel. Ela colocou adoçante em sua caneca.

- Muito bem, disse ela depois do primeiro gole. - O que você não está me contando?

- Meu parceiro e eu cometemos um erro quando estávamos trabalhando nesse caso em 1993. Eu não sei se isso contradiz o que você acabou de dizer sobre Waits ficar abaixo do radar, mas parece que ele telefonou para nós naquela ocasião. Umas três semanas depois de a investigação ter começado. Ele falou com meu parceiro por telefone e usou um nome falso. Pelo menos nós pensamos que era um nome falso. Com essa história de Reynard, a Raposa, que você descobriu, talvez ele tenha usado seu nome verdadeiro. De qualquer forma, nós estragamos tudo. Não fomos averiguar o sujeito.

- Como assim?

Ele lhe contou, devagar e com relutância, sobre o telefonema de Olivas e sua descoberta do nome falso de Waits nos formulários 51. Ela olhou para a mesa e balançou a cabeça afirmativamente enquanto ele contava tudo. Com a caneta que estava segurando, ela fez um círculo na página de anotações à sua frente.

- E o resto é história, disse ele. - Ele continuou indo em frente... E matando pessoas.

- Quando você descobriu isso? Perguntou ela.

- Logo depois de deixar você hoje. Ela fez um movimento de cabeça.

- O que explica por que você estava tomando tanta vodca.

- Acho que sim.

- Eu pensei... Não importa o que eu pensei.

- Não, não foi por ter visto você, Rachel. Ver você foi... Quero dizer, é... Na verdade muito bom. Ela pegou a caneca e bebeu, e então olhou para a papelada e pareceu se fortalecer para continuar.

- Bom, eu não vejo como o fato de ele ter ligado para vocês naquela época altere as minhas conclusões, disse ela. - É verdade que parece não combinar com o perfil dele ter feito contato usando qualquer nome. Mas você tem que se lembrar de que o caso Gesto aconteceu nos primeiros estágios de formação dele. Há diversos aspectos envolvendo Gesto que não se encaixam com o resto. Assim, não teria sido tão incomum se fosse o único caso em que ele fez contato.

- Certo. Ela consultou suas anotações de novo, continuando a evitar os olhos dele desde que Bosch havia contado sobre o erro.

- Mas onde eu estava antes de você falar disso?

- Você dizia que depois dos dois primeiros assassinatos ele escolhia vítimas que pudesse fazer desaparecer sem muito alarde.

- Exatamente. O que estou dizendo é que ele estava se satisfazendo com as próprias ações. Ele não precisava que ninguém mais soubesse o que ele estava fazendo. Ele não estava se excitando com a atenção. Ele não queria atenção. Sua realização pessoal era autocontrolada. Não precisava de um componente externo ou público.

- Então, o que está incomodando você? Ela ergueu os olhos para ele.

- Como assim?

- Não sei. Mas tenho a impressão de que você está incomodada com alguma coisa no perfil que você mesma fez do sujeito. Alguma coisa em que não acredita. Ela confirmou com a cabeça, reconhecendo que ele a interpretara corretamente.

- É só que o perfil dele não confirma alguém que cooperaria a esta altura do jogo, alguém que contaria a vocês sobre os outros crimes. O que eu vejo aqui é alguém que nunca confessaria os assassinatos. Nenhum deles. Ele negaria, ou no mínimo se calaria, até que pusessem uma agulha em seu braço.

- Tudo bem, então isso é uma contradição. Mas todos esses caras não são cheios de contradições? Eles são todos atrapalhados de alguma maneira. Nenhum perfil jamais é cem por cento, certo? Ela concordou com um movimento da cabeça.

- É verdade. Mas ainda é algo que não se encaixa, então acho que o que estou tentando dizer é que, do ponto de vista dele, existe alguma outra coisa. Um objetivo maior, se você quiser. Um plano. Toda essa história de confissão é um indicativo de manipulação. Bosch balançou a cabeça como se o que ela tivesse dito fosse óbvio.

- Claro que é. Ele está manipulando O’Shea e o sistema. Está usando isso para evitar a injeção.

- Talvez sim, mas pode haver outros motivos também. Tenha cuidado. Ela disse essas palavras com firmeza, como se estivesse repreendendo um subordinado ou mesmo uma criança.

- Não se preocupe, eu terei, disse Bosch. Ele decidiu não se estender naquilo. - O que você acha do desmembramento? Perguntou ele. - O que isso nos diz?

- Na verdade passei a maior parte do meu tempo estudando as autópsias. Eu sempre acreditei que se pode descobrir muito com as vítimas de um assassino. Em todos os casos, a causa da morte foi determinada como estrangulamento. Não havia ferimentos de arma branca nos corpos. Houve apenas o desmembramento. São duas coisas diferentes. Acho que o desmembramento foi simplesmente parte da limpeza. Foi uma maneira para ele se livrar facilmente dos corpos. Mais uma vez, demonstra as habilidades dele, planejamento e organização. Quanto mais eu leio, mais noto como tivemos sorte ao pegá-lo naquela noite. Ela correu um dedo pela folha de anotações que havia escrito e então continuou. - Acho os sacos bastante intrigantes. Três sacos para duas mulheres. Um saco continha as duas cabeças e as quatro mãos. Era como se ele possivelmente tivesse um plano ou destino separado para o saco que continha os identificadores; as cabeças e as mãos. Eles conseguiram determin
ar para onde ele estava indo quando o pararam? Bosch deu de ombros.

- Não realmente. A suposição era de que ele ia enterrar os sacos em algum lugar perto do estádio, mas isso na verdade não funciona, porque eles o viram se afastando do estádio e entrando no bairro. Ele estava dirigindo para longe do estádio, das florestas e dos lugares onde poderia enterrar os sacos. Havia alguns terrenos vazios no bairro e acesso às ladeiras abaixo do estádio, mas a mim parece que, se ele ia enterrá-las, não precisaria ter ido a um bairro. Ele se afundaria no parque, onde havia menos chance de ser notado.

- Exatamente. Ela olhou para alguns de seus outros documentos.

- O que foi? Perguntou Bosch.

- Bem, esse negócio de Reynard, a Raposa, talvez não tenha nada a ver com tudo isso. Pode ser tudo coincidência.

- Mas, na história, Reynard tinha um castelo que era seu esconderijo secreto. Ela ergueu as sobrancelhas.

- Eu não sabia que você tinha um computador, muito menos que sabia fazer pesquisa on-line.

- Eu não sei. Minha parceira fez a busca. Mas vou lhe dizer uma coisa, eu estava naquele bairro pouco antes de telefonar para você hoje. Eu não vi nenhum castelo. Ela balançou a cabeça.


- Não entenda tudo de maneira tão literal, disse ela.

- Bem, ainda resta uma grande pergunta sobre essa história de Reynard, disse ele.

- Qual?

- Você olhou o formulário de ocorrência na pasta? Ele não falou com Olivas e seu parceiro, mas respondeu às perguntas de praxe na cadeia quando deu entrada. Ele disse que seu nível de escolaridade era segundo grau. Não tinha nível superior. Veja bem, o que eu quero dizer é que esse cara é um lavador de janelas. Como é que ele poderia saber sobre essa raposa medieval?

- Eu não sei. Mas, como eu já disse, a personagem tem aparecido de maneira recorrente em todas as culturas. Livros infantis, programas de televisão, há inúmeras maneiras pelas quais a personagem pode ter exercido algum impacto sobre esse homem. E não subestime a inteligência dele porque ele vive de lavar janelas. Ele era proprietário e dirigia uma firma. Isso é significativo no sentido de demonstrar algumas de suas capacidades. O fato de ele ter atuado como assassino com impunidade por tanto tempo é outro forte indicador de inteligência. Bosch não estava completamente convencido. Ele disparou outra pergunta que a levaria para uma nova direção.

- Como se encaixam as duas primeiras mortes? Ele passou de um grande espetáculo público com os tumultos e depois uma enorme exposição na mídia com Marie Gesto para, como você diz, mergulhar completamente abaixo da superfície.

- O modus operandi de todo assassino serial muda. A resposta simples é que ele estava em uma curva de aprendizado. Acho que o primeiro assassinato, com a vítima masculina, foi algo casual. Como se fosse um assassinato só pela farra. Ele pensava em matar há muito tempo, mas não tinha certeza se conseguiria. De repente se viu em uma situação, o caos dos tumultos, na qual poderia testar a si próprio. Era uma oportunidade para ver se ele poderia realmente matar alguém e em seguida sair impune. O sexo da vítima não era importante. A identidade da vítima não era importante. Naquele momento ele apenas queria descobrir se conseguia fazê-lo, e praticamente qualquer vítima serviria. Bosch podia notar aquilo. Ele concordou.

- Então ele fez, disse ele. - E aí chegamos a Marie Gesto. Ele escolhe uma vítima que atrai a polícia e a atenção da mídia.

- Ele ainda estava aprendendo, planejando, disse ela. - Ele sabia que conseguia matar e agora queria sair para caçar. Ela foi sua primeira vítima. Ela cruzou o caminho dele, alguma coisa nela se encaixou em sua programação de fantasias e ela simplesmente se tornou uma presa. Naquela época o foco dele estava em obtenção de vítimas e autoproteção. Naquele caso ele escolheu mal. Escolheu uma mulher de quem sentiriam muita falta e cujo desaparecimento iria gerar uma reação imediata. Ele provavelmente não sabia disso ao entrar nesse jogo. Mas ele aprendeu com isso, com a pressão que atraiu para si. Bosch assentiu com a cabeça. - De qualquer forma, depois de Gesto ele aprendeu a acrescentar um terceiro elemento ao seu foco: o histórico da vítima. Ele se certificou de escolher vítimas que não só atendessem às necessidades de sua programação, mas que também viessem das margens da sociedade, para que suas idas e vindas não fossem nota
das, e muito menos causassem alarde.

- E então ele ia para baixo da superfície.

- Exatamente. Ele submergia e ficava lá. Até que tivemos sorte em Echo Park. Bosch assentiu. Tudo aquilo era bastante útil.

- Faz a gente pensar, não? Comentou. - Sobre quantos desses caras estão aí fora. Os assassinos submersos. Walling assentiu com a cabeça.

- É. Às vezes isso me mata de medo. Fico me perguntando durante quanto tempo esse cara teria matado se não tivéssemos tido tanta sorte. Ela deu outra olhada em suas anotações e não disse mais nada.

- Isso é tudo o que você tem? Perguntou Bosch. Walling olhou atravessado para ele, e Bosch notou que havia escolhido mal as palavras. - Não foi bem isso o que eu quis dizer, corrigiu rapidamente. - Tudo isso é ótimo e vai me ajudar muito. Eu só quis perguntar se tem mais alguma coisa sobre a qual você queira conversar? Ela sustentou o olhar dele por um momento antes de responder.

- Sim, tem mais uma coisa. Mas não é sobre isso.

- Então o que é?

- Você tem que dar um tempo em relação àquele telefonema, Harry. Não pode permitir que aquilo o deixe na pior. O trabalho que você tem à frente é importante demais.

Bosch concordou, mas não estava sendo sincero. Era fácil para ela dizer aquilo. Ela não teria que viver com os fantasmas de todas as mulheres sobre as quais Raynard Waits começaria a lhes contar na manhã seguinte.

- Não descarte o que eu disse desse jeito, continuou Rachel. - Você sabe em quantos casos já trabalhei em quais o sujeito continuava matando? Sabe quantas vezes recebíamos telefonemas e bilhetes desses bandidos, mas não conseguíamos prendê-los antes que a próxima vítima estivesse morta?

- Eu sei, eu sei.

- Todos nós temos fantasmas. Faz parte do trabalho. Em algumas linhas de trabalho, isso ocupa uma parte maior do que em outras. Eu tive um chefe que costumava dizer o seguinte: se você não aguenta os fantasmas, saia da casa mal-assombrada. Ele concordou novamente, dessa vez olhando diretamente para ela. Estava sendo sincero dessa vez. - Quantos casos de assassinato você resolveu, Harry?

- Não sei. Eu não faço um controle disso.

- Talvez devesse fazer.

- Em que você está pensando?

- Estou pensando no seguinte: quantos daqueles assassinos teriam matado de novo se você não os tivesse prendido? Aposto que não são poucos.

- Provavelmente.

- Está vendo? A longo prazo, você já acertou muito mais do que errou. Pense nisso.

- Certo.

Em sua mente passou de maneira rápida a imagem de um daqueles assassinos. Bosch havia prendido Roger Boylan há muitos anos atrás. Ele tinha uma picape com caçamba coberta. Usou maconha para atrair duas jovens a entrar no carro quando estava estacionado em Hansen Dam. Ele as estuprou e matou, injetando nas duas uma superdose de tranquilizante para cavalos. Em seguida jogou os corpos delas em um brejo seco que havia ali perto. Quando Bosch colocou as algemas nele, Boylan só teve uma coisa a dizer. “Que pena. Eu estava só começando”. Bosch ficou pensando em quantas vítimas poderia ter havido se ele não o tivesse capturado. Ele se perguntou se poderia trocar Roger Boylan por Raynard Waits e considerar tudo um empate. De um lado, ele achava que podia fazer isso. De outro, sabia que aquilo não era um jogo. O verdadeiro detetive sabia que sair empatado em relação a homicídios não era o suficiente. Nem de longe.

- Espero ter ajudado, disse Rachel. Ele tirou o olhar da lembrança sobre Boylan e lançou-o sobre os olhos de Rachel.

- Acho que sim. Acho que saberei melhor com quem e com o quê estarei lidando quando entrar naquela sala com ele amanhã. Ela se levantou da mesa.

- Eu me referia àquela outra coisa. Bosch se levantou.

- Aquilo também. Você ajudou muito. Ele deu a volta ao redor da mesa para acompanhá-la até a porta.

- Tenha cuidado, Harry.

- Eu sei. Você já disse. Mas não precisa se preocupar. Vai ser uma situação de segurança absoluta.

- Não me refiro tanto ao perigo físico quanto ao psicológico. Proteja-se, Harry. Por favor.

- Pode deixar, disse ele. Era o momento de ir para a porta, mas Rachel estava hesitando. Ela olhou para as pastas espalhadas sobre a mesa e em seguida para Bosch.

- Eu estava esperando que você me telefonasse algum dia, disse ela. - Mas não sobre um caso. Bosch precisou de alguns momentos para voltar ao presente.

- Pensei que pelas coisas que eu disse... O que dissemos... Que...

Ele não tinha certeza sobre como terminar o que dizia. Ela estendeu o braço e colocou a mão de leve no peito dele. Ele se aproximou, entrando no espaço dela. Então colocou os braços ao redor dela e puxou-a para si.

 

CAPÍTULO 9

Mais tarde, depois de terem feito amor, Bosch e Rachel continuaram na cama, conversando sobre tudo em que podiam pensar, menos sobre o que haviam acabado de fazer. Acabaram voltando a falar sobre o caso e sobre a entrevista com Raynard Waits no dia seguinte.

- Não consigo acreditar que depois desse tempo todo eu vou me sentar frente a frente com o assassino dela, disse Bosch. - É como se fosse um sonho. Para falar a verdade, eu já sonhei que estava prendendo esse cara. Quero dizer, nunca era Waits no sonho, mas eu sonhei que tinha resolvido o caso.

- Quem era no sonho? Perguntou ela. A cabeça dela estava sobre o peito dele. Bosch não conseguia ver seu rosto, mas sentia o perfume de seu cabelo. Sob o lençol, ela havia colocado uma das pernas sobre a dele.

- Era esse cara que eu sempre pensei que fosse o culpado. Mas nunca consegui provar nada contra ele. Acho que, por ele sempre ter sido um idiota, eu queria que fosse ele.

- Mas ele tinha alguma ligação com Gesto? Bosch tentou dar de ombros, mas ficou difícil com os corpos dos dois tão entrelaçados.

- Ele sabia sobre a garagem onde encontramos o carro e tinha uma ex-namorada que era uma sósia de Gesto. E também tinha problemas para lidar com sua raiva. Nenhuma evidência de verdade. Eu simplesmente achei que era ele. Eu o segui uma vez durante o primeiro ano da investigação. Ele estava trabalhando como segurança nos campos de petróleo atrás de Baldwin Hills. Você sabe onde fica?

- Você está falando daquele lugar onde se podem ver as bombas de petróleo quando a gente passa por La Cienega vindo do aeroporto?

- É, isso. É esse o lugar. Bom, a família desse moleque era dona de um pedaço desses campos, e o pai dele estava tentando endireitá-lo, acho eu. Sabe como é, fazê-lo trabalhar para ganhar a vida, muito embora eles tivessem todo o dinheiro do mundo. Então ele estava trabalhando de segurança lá e eu o estava vigiando certo dia. Ele encontrou uns garotos que estavam vadiando por ali, tinham invadido a cerca e estavam fazendo bagunça. Eram apenas garotos, talvez 13 ou 14 anos. Dois garotos da vizinhança mais próxima.

- O que ele fez com eles?

- Ele os atraiu, depois os algemou a uma das bombas. Estavam um de costas para o outro, e ficaram algemados nesse tubo que era uma espécie de âncora para a bomba. E então ele voltou para sua picape e foi embora.

- Ele os deixou lá?

- Foi isso que eu pensei que ele estava fazendo, mas ele ia voltar. Eu estava olhando com um binóculo de um cume perto de La Cienega e podia ver todo o campo de petróleo dali. Ele estava com outro sujeito e se dirigiram até essa cabana onde acho que guardavam amostras do petróleo que estavam bombeando do chão. Entraram ali e saíram com dois baldes daquela coisa, colocaram na caçamba da picape e voltaram para onde estavam os garotos. Então jogaram toda aquela merda em cima dos dois moleques. Rachel levantou o corpo, se apoiando em um dos cotovelos, e olhou para ele.

- E você ficou olhando isso acontecer?

- É como eu disse, eu estava em um cume em La Cienega do outro lado de onde eles estavam. Antes de construírem casas ali. Se ele fosse fazer mais alguma coisa, eu iria tentar interferir de alguma maneira, mas então ele os soltou. Além disso, eu não queria que ele soubesse que eu o estava vigiando. Naquele momento, ele não sabia que eu suspeitava dele em relação a Gesto. Ela balançou a cabeça como se tivesse entendido e não questionou mais a falta de uma ação por parte dele.

- Simplesmente os soltou? Perguntou ela.

- Ele tirou as algemas dos rapazes, chutou o traseiro de um deles e deixou que fossem embora. Consegui notar que eles estavam assustados e chorando. Rachel balançou a cabeça, enojada.

- Como se chama esse sujeito?

- Anthony Garland. É filho de Thomas Rex Garland. Você já deve ter ouvido falar dele. Rachel balançou a cabeça, sem reconhecer o nome.

- Bom, pode ser que Anthony não tenha sido o assassino de Gesto, mas ele me parece um completo idiota. Bosch concordou.

- Ele é mesmo. Você quer vê-lo?

- Como assim?

- Eu tenho um vídeo com os “melhores momentos”. Em 13 anos eu o entrevistei três vezes. Cada uma das entrevistas foi filmada.

- Você tem a fita aqui? Bosch balançou a cabeça afirmativamente, sabendo que ela poderia achar estranho ou despropositado o fato de ele estudar fitas de interrogatório em casa.

- Eu as copiei para uma única fita. Trouxe para casa na última vez em que trabalhei no caso. Rachel pareceu pensar na resposta dele antes de decidir.

- Então coloque a fita. Vamos dar uma olhada nesse cara.

Bosch saiu da cama, vestiu a cueca e acendeu o abajur. Foi até a sala de visitas e olhou no armário embaixo da televisão. Ele tinha diversas fitas com cenas de crime dos casos mais antigos e também muitas outras fitas e DVDs. Por fim, localizou uma fita VHS em cuja caixa estava escrito GARLAND e levou-a para o quarto. Sobre a cômoda, havia uma televisão com um videocassete embutido. Ligou-a, colocou a fita e se sentou na beirada da cama com o controle remoto. Rachel ficou sob a colcha, e enquanto a fita estava sendo colocada no ponto certo, ela estendeu um pé e bateu as pontas dos dedos nas costas dele.

- É isso que você faz com todas as garotas que traz para cá? Mostra a elas suas técnicas de interrogatório? Bosch olhou para ela e sua resposta foi quase em tom sério.

- Rachel, você é a única pessoa no mundo com quem posso fazer isso. Ela sorriu.

- Acho que entendi Bosch. Ele voltou a olhar para a tela. A fita estava rodando. Ele tirou o som da televisão com o controle remoto.

- Esta primeira foi no dia 11 de março de 1994. Quase seis meses depois que Gesto desapareceu, e estávamos atirando para todos os lados. Não tínhamos o suficiente para prendê-lo, nem de longe, mas consegui convencê-lo a ir até a delegacia prestar um depoimento. Ele não sabia que eu estava de olho nele. Pensou que ia apenas conversar sobre o apartamento onde sua ex-namorada morava.

Na tela havia uma imagem granulada e colorida de uma saleta com uma mesa e dois homens sentados. Um deles era um Harry Bosch de aparência muito mais jovem, e o outro, um homem de vinte e poucos anos com cabelo oxigenado de surfista. Anthony Garland. Estava usando uma camiseta com a palavra LAKERS no peito. As mangas eram justas nos braços, e uma tatuagem podia ser vista em seu bíceps esquerdo. Um desenho de arame farpado preto lhe envolvia os músculos do braço.

- Ele se apresentou voluntariamente. Chegou parecendo que ia passar o dia na praia. Vamos ver... Aumentou o volume. Na tela, Garland estava olhando ao redor com um leve sorriso no rosto.

- Então é aqui que acontece, é? Perguntou Garland.

- Onde acontece o quê? Perguntou Bosch.

- Você sabe, onde vocês quebram os bandidos e eles confessam todos os crimes. Ele sorriu, se fazendo de tímido.

- Às vezes, disse Bosch. - Mas vamos conversar sobre Marie Gesto. Você a conhecia?

- Não. Já falei que não a conhecia. Nunca a vi antes na minha vida.

- Antes do quê?

- Antes de vocês me mostrarem a fotografia dela.

- Então se alguém me dissesse que você a conhecia, essa pessoa estaria mentindo?

- Mentindo para caralho. Quem lhe contou essa merda?

- Mas você sabia sobre a garagem vazia no High Tower, certo?

- É. A minha namorada tinha acabado de sair de lá, então, eu sabia que o lugar estava vazio. Isso não significa que eu escondi o carro lá. Escuta aqui, vocês já me perguntaram todas essas coisas lá em casa. Achei que tinha alguma coisa nova acontecendo aqui. Eu estou preso ou algo assim?

- Não, Anthony, você não está preso. Eu só quis que você viesse até aqui para podermos dar uma olhada nessas coisas.

- Eu já olhei essas coisas com vocês.

- Mas isso foi antes de sabermos algumas outras coisas sobre você e sobre ela. Agora é importante percorrer os mesmos passos de novo. Fazer um registro formal disso. O rosto de Garland pareceu se contorcer momentaneamente de raiva. Ele se inclinou sobre a mesa.

- Que coisas? De que porra você está falando? Eu não tive nada a ver com isso. Eu já disse isso no mínimo umas duas vezes. Por que vocês não estão lá fora procurando a pessoa que fez? Bosch esperou até que Garland se acalmasse um pouco antes de responder.

- É porque talvez eu ache que estou com a pessoa que fez.

- Vai se foder, cara. Vocês não têm nada contra mim porque não têm nada para achar. Eu já disse isso desde o primeiro dia. Não fui eu. Agora foi a vez de Bosch se inclinar sobre a mesa. Os rostos deles estavam separados por uns 30 centímetros.

- Eu sei o que você nos contou, Anthony. Mas isso foi antes de eu ir a Austin e conversar com a sua namorada. Ela me contou umas coisas sobre você, Anthony, que francamente exigem que eu preste um pouco mais de atenção.

- Ela que se foda. É uma vagabunda.

- É mesmo? Se ela é tudo isso, então por que você ficou bravo com ela quando o abandonou? Por que ela teve que correr de você? Por que simplesmente não a deixou ir?

- Porque ninguém me abandona. Eu as abandono. Certo? Bosch recuou e balançou a cabeça.

- Certo. Então, com o maior número de detalhes de que você conseguir se lembrar, me conte o que fez no dia 9 de setembro do ano passado. Conte-me aonde você foi e quem você viu.

Usando o controle remoto, Bosch começou a avançar a fita.

- Ele não tinha um álibi para a hora em que acreditamos que Marie foi agarrada fora do supermercado. Mas podemos avançar aqui, porque essa parte da entrevista durou um século.

Rachel agora estava sentada na cama atrás dele com o lençol ao redor do corpo. Bosch olhou para ela.

- Até aqui, o que você acha desse cara? Ela encolheu os ombros nus.

- Ele parece o típico riquinho idiota. Mas isso não faz dele um assassino. Bosch concordou.

- O que você vai ver agora se passou dois anos depois. Os advogados da firma do papaizinho dele jogaram uma medida liminar na minha cara e eu só poderia entrevistar o moleque na presença de um advogado. Então não tem muita novidade aqui, mas tem uma coisa que eu quero que você veja. O advogado dele é Dennis Franks, um associado de Cecil Dobbs, um figurão de Century City que cuida das coisas para o T. Rex.

- T. Rex?

- O pai. Thomas Rex Garland. Gosta de ser chamado de T. Rex.

- Faz sentido.

Bosch diminuiu o avanço da fita para poder ver melhor o ponto certo da ação. Na tela, Garland estava sentado em frente a uma mesa com um homem à sua direita. À medida que a imagem se movia com rapidez, o advogado e seu cliente conversaram muitas vezes, falando um no ouvido do outro. Bosch finalmente colocou em velocidade normal e o áudio reapareceu. Era Franks, o advogado, quem estava falando.

- Meu cliente cooperou totalmente com vocês, mas vocês continuam a incomodá-lo no trabalho e em casa com essas suspeitas e perguntas que não têm um mínimo de respaldo em evidências.

- Eu estou trabalhando nessa parte, senhor, disse Bosch. - E, quando conseguir, não vai haver um único advogado no mundo que possa ajudá-lo.

- Vai se foder, Bosch! Disse Garland. - É melhor você nunca vir atrás de mim sozinho, cara. Eu lhe jogo no lixo. Franks coloca a mão sobre o braço de Garland, tentando acalmá-lo. Bosch ficou em silêncio por alguns instantes antes de responder.

- Você quer me ameaçar agora, Anthony? Você acha que eu sou um daqueles adolescentes que você algemou nos campos de petróleo e em quem derramou petróleo cru? Você acha que vou me afastar com o rabo entre as pernas? O rosto de Garland se contraiu e ficou carregado. Seus olhos pareciam bolas de gude pretas imóveis.

Bosch apertou o botão de pausa no controle remoto do videocassete.

- Aí, disse ele a Rachel, apontando para a tela com o controle. - Era isso que eu queria que você visse. Olha o rosto dele. Perfeita raiva, em estado puro. Foi por isso que eu pensei que fosse ele.

Walling não respondeu. Bosch olhou de relance para ela, e ela parecia alguém que já tinha visto o rosto da perfeita raiva, em estado puro. Parecia quase intimidada pela imagem. Bosch se perguntou se ela havia visto aquilo nos rostos dos assassinos que havia enfrentado, ou no de alguma outra pessoa. Bosch se voltou para a televisão e apertou o botão de avanço rápido novamente.

- Agora a gente dá um salto de quase dez anos, quando eu falei com ele em abril passado. Franks tinha sumido, e um novo sujeito estava cuidando do caso no escritório de Dobbs. Ele pisou na bola e nunca mais voltou para falar com o juiz depois que a primeira liminar expirou. Então fiz outra tentativa com ele. Ele ficou surpreso em me ver. Eu o peguei um dia quando ele saía do Kate Mantilini na hora do almoço. Ele provavelmente pensava que eu havia sumido há muito tempo de sua vida.

Ele parou o avanço rápido e apertou o play. Na tela, Garland parecia mais velho e maior. O rosto dele havia aumentado e o cabelo, que agora começava a rarear, estava bem curto. Usava uma camisa branca com gravata. As entrevistas filmadas o acompanharam do fim da juventude até boa parte da fase adulta. Dessa vez ele estava sentado em uma sala de entrevistas diferente. Aquela era no Parker Center.

- Se não estou preso, então eu deveria estar livre para ir embora, disse ele. - Estou livre para ir embora?

- Eu estava esperando que você respondesse a algumas perguntas primeiro, disse Bosch.

- Eu respondi todas as suas perguntas anos atrás. Isso é vingança, Bosch. Você não vai desistir. Você não vai me deixar em paz. Estou livre para ir embora ou não?

- Onde você escondeu o corpo dela? Garland balançou a cabeça.

- Meu Deus, isso é inacreditável. Quando é que isso vai acabar?

- Nunca vai acabar Garland. Não até que eu a encontre, e não até que você seja preso.

- Isso é uma puta loucura! Você é louco, Bosch. O que posso dizer para fazer vocês acreditarem em mim? O que posso...

- Pode me dizer onde ela está e então vou acreditar em você.

- Isso é uma coisa que não posso fazer, porque eu não...

Bosch de repente desligou a televisão com o controle remoto. Pela primeira vez notou o quanto estivera obcecado pelo caso, indo atrás de Garland de maneira tão implacável quanto um cão perseguindo um carro. Ele não percebia o tráfego, não percebia que bem na sua frente, no inquérito, estava a pista para o verdadeiro assassino. Assistir àquela fita com Walling havia acumulado uma humilhação atrás da outra. Ele havia pensado que, ao lhe mostrar a fita, ela notaria por que seu foco havia estado sobre Garland. Ela entenderia e o absolveria pelo erro. Mas agora, vendo através do prisma da iminente confissão de Waits, ele não conseguia sequer absolver a si mesmo. Rachel se inclinou na direção dele e lhe tocou as costas, seus dedos macios traçando um risco que acompanhava a espinha.

- Acontece com todos nós, disse ela. Bosch concordou. “Não comigo”, pensou.

- Acho que quando tudo isso acabar, vou ter que encontrá-lo e pedir desculpas, disse ele.

- Ele que se foda. Continua sendo um idiota. Eu nem me incomodaria com isso. Bosch sorriu. Ela estava tentando facilitar as coisas para ele.

- Você acha? Ela puxou para trás o elástico da cueca dele e soltou-o com força contra suas costas.

- Eu acho que tenho pelo menos mais uma hora antes de começar a pensar em ir para casa. Bosch se virou para olhar para ela, e ela sorriu.

 

CAPÍTULO 10

Na manhã seguinte Bosch e Rider andaram do prédio que abrigava o Registro Geral até o ETC e, apesar da espera por um elevador, ainda assim chegaram ao gabinete da Promotoria vinte minutos adiantados. O’Shea e Olivas estavam prontos para recebê-los. Todos ocuparam as mesmas cadeiras de antes. Bosch reparou que os cartazes antes apoiados contra a parede não estavam mais lá. Eles provavelmente tinham sido colocados em uso em algum lugar, talvez enviados para o auditório onde a reunião com os candidatos estava agendada para aquela noite. Ao sentar, Bosch viu o inquérito do caso Gesto sobre a mesa de O’Shea. Ele o pegou sem perguntar nada e imediatamente abriu-o no registro cronológico. Folheou os formulários 51 até que encontrou a página do dia 29 de setembro de 1993. Olhou o lançamento sobre o qual Olivas havia falado na noite anterior. Era, como fora dito a Bosch, o último lançamento do dia. Bosch sentiu uma profunda sensação de desgosto
invadi-lo novamente.

- Detetive Bosch, todos nós cometemos erros, disse O’Shea. - Vamos seguir em frente e fazer o melhor que pudermos hoje. Bosch levantou os olhos para ele e acabou concordando. Ele fechou o inquérito e recolocou-o sobre a mesa. O’Shea continuou. - Fiquei sabendo que Maury Swann está na sala de entrevistas com o senhor Waits e está pronto. Eu estive pensando sobre isso e quero falar sobre um caso por vez e em ordem. Começamos com Fitzpatrick e, quando estivermos satisfeitos com a confissão, passamos para o caso Gesto, e quando estivermos satisfeitos passamos para o próximo, e assim por diante. Todos concordaram, exceto Bosch.

- Eu não vou estar satisfeito até encontrar os restos dela, disse ele. Foi a vez de O’Shea concordar. Ele levantou um documento que estava em cima da mesa.

- Eu entendo. Se vocês puderem localizar a vítima com base nas declarações de Waits, então ótimo. Se for uma questão de ele nos levar até o corpo, eu tenho uma ordem de soltura pronta para ser levada ao juiz. Eu diria que, se chegarmos ao ponto de tirarmos esse homem da cadeia, então a segurança terá de ser extraordinária. Vai haver muita movimentação e não podemos cometer nenhum erro. O’Shea olhou vagarosamente para cada um dos detetives para se certificar de que eles haviam entendido a gravidade da situação. Ele estaria arriscando sua campanha e sua vida política na segurança de Raynard Waits.

- Vamos estar prontos para qualquer coisa, disse Olivas. O olhar de preocupação no rosto de O’Shea não mudou.

- Você vai garantir a presença de alguns policiais fardados, certo? Perguntou ele.

- Acho que não é necessário; uniformes atraem a atenção, respondeu Olivas. - Podemos cuidar dele. Mas, se você quiser, nós os teremos por perto.

- Acho que seria bom tê-los por perto, sim.

- Não tem problema. Ou podemos ter uma viatura nos acompanhando ou alguns policiais da própria cadeia. O’Shea balançou a cabeça em sinal de aprovação.

- Então estamos prontos para começar?

- Tem uma coisa, disse Bosch. - Não sabemos ao certo quem é aquele na sala de entrevistas esperando por nós, mas temos muita certeza de que o nome dele não é Raynard Waits. Um olhar de surpresa apareceu no rosto de O’Shea e imediatamente se espalhou por todos. Olivas ficou boquiaberto e se inclinou para frente.

- Nós o pegamos pelas digitais, protestou Olivas. - Pelos antecedentes. Bosch concordou.

- Certo, os antecedentes. Como vocês sabem, quando ele foi preso há 13 anos atrás por voyeurismo, primeiro deu o nome de Robert Saxon junto com a data de nascimento, 3 de novembro de 1975. Esse é o mesmo nome que ele usou mais tarde naquele ano, quando telefonou para falar sobre Gesto, só que na ocasião ele deu a data de nascimento como 3 de novembro de 1971. Mas quando ele foi preso por voyeurismo e jogaram as digitais dele no computador, elas bateram com o polegar na carteira de motorista de Raynard Waits, com uma data de nascimento de 3 de novembro de 1971. Então continuamos tendo o mesmo dia e mês, mas anos diferentes. De toda forma, quando confrontado com a digital, ele admitiu ser Raynard Waits, dizendo que havia dado o nome e o ano falsos porque esperava ser tratado como menor. Tudo isso está na pasta.

- Mas aonde isso nos leva? Disse O’Shea com impaciência.

- Deixe-me terminar. Ele conseguiu sursis pela acusação de voyeurismo porque era réu primário. Nos dados biográficos do relatório da condicional ele disse que nasceu e cresceu em Los Angeles, certo? Acabamos de vir do Registro Geral. Não há registro de que Raynard Waits tenha nascido em Los Angeles, naquela data ou em qualquer outra. Houve muitos Robert Saxons nascidos em Los Angeles, mas nenhum no dia 3 de novembro de nenhum dos anos mencionados nos arquivos.

- A questão fundamental, disse Rider, - É que não sabemos quem é o homem com quem estamos prestes a falar. O’Shea se afastou da mesa e levantou. Andou de um lado para outro no espaçoso escritório enquanto pensava sobre essa última informação.

- Ok, você está dizendo que o Departamento de Trânsito tinha as impressões erradas no arquivo ou que houve algum tipo de confusão? Bosch se virou em sua cadeira para poder olhar para O’Shea enquanto respondia.

- Eu estou dizendo que esse cara, seja lá quem ele realmente for, pode ter ido ao Departamento de Trânsito, uns 13 ou 14 anos atrás, para estabelecer uma identidade falsa. O que é preciso para tirar uma carteira de motorista? Prova de idade. Naquela época, podiam se comprar identidades e certidões de nascimento falsas em Hollywood Boulevard sem problemas. Ou ele pode ter subornado algum funcionário do Departamento de Trânsito, pode ter feito muitas outras coisas. A questão é: não existe registro de ele ter nascido aqui em Los Angeles, como ele disse que nasceu. Isso coloca todo o resto em dúvida.

- Talvez essa seja a mentira, disse Olivas. - Talvez ele seja Waits e tinha mentido sobre ter nascido aqui. Como as pessoas que nascem em Riverside, elas dizem para todo mundo que são de Los Angeles. Bosch balançou a cabeça. Ele não aceitou a lógica de Olivas.

- O nome é falso, insistiu Bosch. - O nome Raynard é um trocadilho com o nome de um personagem do folclore medieval chamado Reynard, a Raposa. Escreve-se com e, mas a pronúncia é a mesma. Coloque isso junto ao sobrenome e você tem “a pequena raposa espera”. Entenderam? Vocês não podem me convencer de que alguém lhe deu esse nome quando ele nasceu. Aquilo causou um silêncio momentâneo na sala.

- Eu não sei, disse O’Shea, pensando em voz alta. - Parece meio forçada essa conexão medieval.

- Só é forçada porque não podemos estabelecê-la de maneira definitiva, contra-argumentou Bosch. - Se querem saber minha opinião, é mais forçada a ideia de que esse seria realmente o nome dele.

- Então o que é que você está querendo dizer? Perguntou Olivas. - Que ele mudou o nome e continuou a usá-lo, mesmo depois de ter sido preso? Isso não faz sentido para mim.

- Não faz sentido para mim também. Mas ainda não sabemos a história que há por trás disso.

- Certo. Então o que é que você está sugerindo que façamos? Perguntou O’Shea.

- Não muito, disse Bosch. - Só estou levantando a questão. Mas acho que temos que registrar isso quando subirmos. Sabe como é, vamos pedir para que ele declare como se chama. Data e local de nascimento. Como se fosse rotina no começo das entrevistas. Se ele nos disser que é Waits, vamos pegá-lo na mentira mais para frente e poderemos processá-lo por tudo. Você disse que esse era o acordo: se ele mentir, se ferra. Podemos usar tudo isso contra ele.

O’Shea estava em pé ao lado da mesinha do café atrás de onde Bosch e Rider estavam sentados. Bosch se virou novamente, para observá-lo digerindo a sugestão. O promotor remoía a ideia e balançava a cabeça.

- Não sei que mal pode haver, disse ele finalmente. - Só deixar registrado, e não fazer mais nada. Algo bem sutil e com jeito de rotina. Podemos voltar a falar com ele sobre isso mais tarde, se descobrirmos mais alguma coisa a esse respeito... Bosch olhou para Rider.

- Você começa com ele, perguntando sobre o primeiro caso. Sua primeira pergunta pode ser sobre o nome dele.

- Pode deixar, disse ela. O’Shea voltou para sua mesa.

- Tudo bem, então, disse ele. - Estamos prontos? Está na hora de irmos. Vou tentar ficar todo o tempo que minha agenda permitir. Não se ofendam se de vez em quando eu me intrometer e fizer uma pergunta. A resposta de Bosch foi se levantar. Rider acompanhou-o e em seguida Olivas.

- Uma última coisa, disse Bosch. - Ontem ficamos sabendo de uma história sobre Maury Swann que talvez vocês devam saber. Bosch e Rider se alternaram contando a história que Abel Pratt havia lhes contado.

Quando acabaram, Olivas estava rindo e balançando a cabeça, e, pela expressão no rosto de O’Shea, Bosch sabia que ele estava contando quantas vezes havia apertado a mão de Maury Swann no tribunal. Talvez ele estivesse preocupado com potenciais consequências políticas. Bosch se dirigiu para a porta do escritório. Sentia uma mistura de empolgação e apreensão aumentando dentro de si. Estava empolgado porque sabia que finalmente estava prestes a descobrir o que havia acontecido com Marie Gesto há tanto tempo. Ao mesmo tempo, estava apreensivo em relação ao que ia descobrir. E estava apreensivo com o fato de que os detalhes que em breve descobriria, colocariam um fardo bastante pesado sobre ele. Um fardo que teria que transferir para um pai e uma mãe ansiosos em Bakersfield.

 

CAPÍTULO 11

Dois policiais uniformizados estavam em pé ao lado da porta da sala de entrevistas na qual estava sentado o homem que chamava a si próprio de Raynard Waits. Eles se afastaram e deixaram o grupo do promotor entrar. A sala continha uma mesa comprida. Waits e seu advogado de defesa, Maury Swann, estavam sentados em um dos lados dela. Waits estava exatamente no meio, e Swann à sua esquerda. Quando os investigadores e o promotor entraram, apenas Maury Swann ficou em pé. Waits estava preso aos braços de sua cadeira com algemas de plástico. Swann, um homem magro com óculos de armação preta e uma exuberante cabeleira grisalha, estendeu a mão, mas ninguém a apertou. Rider pegou a cadeira que estava do outro lado da mesa, bem na frente de Waits, e Bosch e O’Shea se sentaram cada um de um lado dela. Uma vez que Olivas ficaria fora do revezamento de entrevistadores por algum tempo, ele pegou a última cadeira que havia sobrado e que estava ao lado da porta.

O’Shea fez as apresentações, mas novamente ninguém se importou em apertar as mãos de ninguém. Waits usava um macacão laranja com uma inscrição em preto sobre o peito. CADEIA DO CONDADO DE LOS ANGELES ISOLAMENTO. A segunda linha não pretendia ser um comentário, mas servia muito bem como um. Significava que Waits estava em estado de isolamento na cadeia, sozinho em uma cela, sem que fosse permitido contato com a população carcerária em geral. Essa medida era tomada como forma de proteção para Waits e para os demais presos. Enquanto estudava o homem que estivera caçando durante 13 anos, Bosch notou que a coisa mais assustadora sobre Waits era sua aparência comum. Levemente encorpado, tinha o rosto de qualquer cidadão. De feições agradáveis e delicadas, cabelo curto e escuro, ele era a própria imagem da normalidade. A única indicação do mal que havia nele se encontrava nos olhos. Castanho-escuros e profundos, eles possuíam um
vazio que Bosch reconhecia dos outros assassinos com quem sentara frente a frente no decorrer dos anos. Não havia nada lá. Apenas uma vacuidade que nunca poderia ser preenchida, não importando quantas vidas ele roubasse.

Rider ligou o gravador que estava sobre a mesa e começou a entrevista perfeitamente, sem dar motivo a Waits para suspeitar de que estava caindo em uma armadilha já na primeira pergunta da sessão.

- Como provavelmente já lhe foi explicado pelo Sr. Swann, vamos gravar cada uma das sessões e entregar as fitas para o seu advogado, que ficará com elas até que tenhamos um acordo completo. O senhor entende e aprova isso?

- Sim, disse Waits.

- Ótimo, disse Rider. - Então vamos começar com uma fácil. Para fins de registro, pode declarar seu nome, data e local de nascimento? Waits se inclinou para frente e fez uma cara de quem estava afirmando o óbvio para crianças.

- Raynard Waits, disse ele com impaciência. - Nascido em 3 de novembro de 1971, na cidade dos ranchos... Ah, quero dizer, dos anjos. A cidade dos anjos.

- Se o senhor se refere a Los Angeles, poderia, por favor, declarar isso?

- Sim, Los Angeles.

- Obrigada. O seu primeiro nome é incomum. Poderia soletrá-lo para a gravação? Waits concordou. Mais uma vez, foi um bom lance de Rider. Aquilo tornaria ainda mais difícil para o homem que estava na frente deles argumentar mais tarde que não tinha mentido conscientemente durante a entrevista. - O senhor sabe qual é a origem desse nome?

- Acho que meu pai tirou do meio do rabo dele. Eu não sei. Pensei que a gente ia conversar sobre gente morta, e não sobre essas merdas.

- Nós vamos Sr. Waits. Nós vamos.

Bosch sentiu uma enorme sensação de alívio por dentro. Sabia que estavam prestes a enfrentar uma narrativa de horrores, mas sentiu que já haviam pegado Waits em uma mentira que poderia acionar uma armadilha fatal sobre ele. Agora havia uma chance de que ele não conseguisse fugir daquilo para uma cela particular e uma vida de celebridade sustentada pelo dinheiro público.

- Queremos gravar tudo na ordem certa, disse Rider. - A oferta de seu advogado sugere que o primeiro homicídio em que o senhor esteve envolvido foi a morte de Daniel Fitzpatrick em Hollywood no dia 13 de abril de 1992. Isso está correto? Waits respondeu com o tipo de atitude prosaica que se esperaria de alguém ensinando o caminho para o posto de gasolina mais próximo. A voz dele estava calma e inexpressiva.

- Sim, eu o queimei vivo atrás daquela grade de segurança que ele tinha. Pelo jeito ele não estava tão seguro atrás dela. Nem mesmo com todas as suas armas.

- Por que fez isso?

- Porque queria ver se conseguia. Eu andava pensando sobre isso há muito tempo e só queria me testar. Bosch pensou sobre o que Rachel Walling lhe dissera na noite anterior. Ela chamara de “assassinato só pela farra”. Ao que parece, ela estava certa.

- O que quer dizer com “me testar”, Sr. Waits? Perguntou Rider.

- Quero dizer que existe uma linha lá fora na qual todo mundo pensa, mas poucos têm coragem de atravessar. Eu queria ver se conseguia atravessá-la.

- Quando diz que estava pensando nisso há muito tempo, estava pensando no Sr. Fitzpatrick em especial? A contrariedade brilhou nos olhos de Waits. Era como se ele a estivesse tolerando.

- Não, sua cadela imbecil, respondeu ele calmamente. - Eu estava pensando em matar alguém. Entende? Toda a minha vida eu quis fazer isso. Rider ignorou o insulto sem hesitar e continuou.

- Por que escolheu Daniel Fitzpatrick? Por que escolheu aquela noite?

- Bom, porque eu estava assistindo a TV e vi a cidade toda desmoronando. Era um caos lá fora e eu sabia que a polícia não conseguiria fazer nada a respeito. Foi um momento em que as pessoas faziam tudo o que queriam. Vi um cara na televisão falando sobre Hollywood Boulevard e sobre como os lugares estavam em chamas, e decidi sair para ver. Eu não queria que a TV me mostrasse. Queria ver por mim mesmo.

- Foi de carro para lá?

- Não, dava para ir a pé. Naquela época eu morava em Fountain, perto de LaBrea. Eu fui andando. Rider tinha o arquivo de Fitzpatrick aberto à sua frente. Ela olhou para ele por um momento, organizando os pensamentos e elaborando o próximo grupo de perguntas. Isso deu a O’Shea a oportunidade de interferir.

- De onde veio o fluido de isqueiro? Ele perguntou. - Levou com você do seu apartamento? Waits mudou o foco para O’Shea.

- Pensei que era a sapatão que faria as perguntas, disse ele.

- Todos nós fazemos as perguntas, disse O’Shea. - E será que o senhor poderia deixar os ataques pessoais fora de suas respostas?

- Com você não, senhor promotor. Não quero falar com o senhor. Só com ela. E com eles. Ele apontou para Bosch e Olivas.

- Deixe-me voltar um pouco antes de chegarmos ao fluido de isqueiro, disse Rider delicadamente, colocando O’Shea de lado. - O senhor disse que andou de Fountain até Hollywood Boulevard. Aonde o senhor foi e o que viu? Waits sorriu e balançou a cabeça para Rider.

- Eu acertei, não foi? Disse ele.

- Eu sempre sei. Sempre consigo farejar quando uma mulher gosta de boceta.

- Sr. Swann, disse Rider, - O senhor poderia, por favor, dizer ao seu cliente que estamos aqui para que ele responda perguntas, e não o contrário? Swann colocou a mão sobre o antebraço esquerdo de Waits, que estava preso no braço da cadeira.

- Ray, disse ele. - Não brinque. Apenas responda as perguntas. Lembre-se, nós queremos isto. Nós trouxemos isto para eles. O show é nosso. Bosch viu um rubor lento se mover pelo rosto de Waits quando ele se virou e olhou para seu advogado. Mas então aquilo desapareceu e ele voltou a olhar para Rider.

- Eu vi a cidade queimando, foi isso o que eu vi. Ele sorriu depois de dar a resposta. - Era como um quadro de Hieronymus Bosch. Ele se virou para Bosch ao dizer isso. Bosch ficou congelado por um momento. Como ele sabia? Waits balançou a cabeça na direção do peito de Bosch. - Está no seu crachá. Bosch havia se esquecido de que eles tinham colocado crachás de identificação ao entrarem no escritório da Promotoria. Rider apresentou rapidamente a próxima pergunta.

- Muito bem, para que lado o senhor andou ao chegar a Hollywood Boulevard?

- Peguei a direita e fui para leste. Os maiores incêndios estavam daquele lado.

- O que havia em seus bolsos? A pergunta pareceu colocá-lo em pausa.

- Não sei. Não me lembro. Minhas chaves, eu acho. Cigarros e um isqueiro, só isso.

- O senhor estava com sua carteira?

- Não, eu não queria ter um documento de identidade comigo. Caso a polícia me parasse. - O senhor já estava com o fluido de isqueiro?

- Isso mesmo. Pensei que pudesse me juntar à festa, ajudar a queimar a cidade até o toco. Então passei por aquela loja de penhores e tive uma ideia melhor.

- O senhor viu o Sr. Fitzpatrick?

- Sim, eu o vi. Estava em pé dentro de sua gaiola de segurança segurando uma escopeta. Ele também estava usando um coldre, como se fosse Wyatt Earp ou algum desses caubóis.

- Descreva a loja de penhores. Waits deu de ombros.

- Um lugar pequeno. Chamava-se Irish Pawn. Tinha esse luminoso de neon que fazia brilhar um trevo de três folhas verde e então três bolas, que são o símbolo de uma loja de penhores, eu acho. Fitzpatrick estava em pé lá, olhando para mim enquanto eu passava.

- E o senhor continuou andando?

- No começo, sim. Passei pela loja e depois pensei no desafio, sabe? Como eu poderia chegar nele sem levar um tiro da porra daquela bazuca enorme que ele estava segurando?

- O que o senhor fez?

- Eu tirei a lata de EasyLight do bolso da minha jaqueta e enchi a boca com o líquido. Guardei na boca como aqueles caras lá em Venice que cospem fogo. Então deixei a lata de lado e tirei um cigarro e o meu isqueiro. Eu não fumo mais. É um péssimo hábito. Ele olhou para Bosch ao dizer isso.

- E depois? Perguntou Rider.

- Voltei para a loja daquele babaca e caminhei na direção da cerca de segurança. Eu agi como se estivesse procurando um lugar protegido onde pudesse acender meu cigarro. Estava ventando naquela noite, entende?

- Entendo.

- Então ele começou a gritar para eu ir embora, me xingando. Ele veio para bem perto da grade para gritar comigo. E eu estava contando com isso. E sorriu orgulhoso sobre como seu plano havia dado certo. - O sujeito bateu com a arma na grade de metal para chamar a minha atenção. Veja bem, ele viu as minhas mãos, então não notou o perigo. E quando ele estava a menos de um metro, eu acendi o isqueiro e olhei bem nos olhos dele. Tirei o cigarro da boca e cuspi todo o fluido de isqueiro na cara dele. É claro, o líquido acertou o isqueiro e eu virei a porra de um lança-chamas. Ele ficou com a cara cheia de fogo antes de notar o que o tinha acertado. Deixou cair a escopeta bem depressa para poder bater as chamas com as mãos. Mas as roupas pegaram fogo também e logo ele tinha virado uma criatura torradinha. Foi como ser atingido por napalm, cara. Waits tentou erguer o braço esquerdo, mas não conseguiu. Estava preso no braço da cadeira pelo pulso. Ele se
virou e ergueu a mão. - Infelizmente, eu queimei um pouco a mão. Fez bolha e tudo o mais. Doeu para valer também. Não consigo imaginar o que aquele babaca do Wyatt Earp sentiu. Se quiser saber, acho que não é uma boa maneira de morrer.

Bosch olhou para a mão erguida. Viu uma descoloração no tom da pele, mas nenhuma cicatriz. A queimadura não tinha sido profunda. Depois de um longo silêncio, Rider fez outra pergunta.

- O senhor procurou atendimento médico para a sua mão?

- Não, achei que não seria muito inteligente da minha parte, considerando a situação. E, pelo que ouvi, os hospitais estavam transbordando de gente. Então fui para casa e cuidei dela eu mesmo.

- Quando o senhor colocou a lata de fluido de isqueiro na frente da loja?

- Ah, isso foi quando eu estava me afastando. Eu simplesmente peguei, limpei e coloquei no chão de novo.

- Em algum momento, o senhor Fitzpatrick gritou por socorro? Waits demorou a responder, como se estivesse pensando na pergunta.

- Bem, isso é difícil de dizer. Ele estava gritando alguma coisa, mas não tenho certeza se era por socorro. Ele meio que parecia um animal para mim. Uma vez, quando eu era criança, eu fechei a porta no rabo do meu cachorro. Lembrei-me disso.

- Em que o senhor estava pensando quando voltava para casa?

- Eu estava pensando, porra, que demais! Eu finalmente consegui! E eu sabia que não ia me dar mal também. Se quiser saber a verdade, eu me senti como se fosse invencível.

- Quantos anos o senhor tinha?

- Eu tinha... Tinha vinte, cara, e consegui fazer aquilo, porra!

- Alguma vez pensou no homem que matou, que queimou até a morte?

- Não, não realmente. Ele simplesmente estava ali. Estava ali para ser pego. Como o resto que veio depois. Era como se eles estivessem ali para mim.

Rider passou mais quarenta minutos interrogando-o, extraindo pequenos detalhes que, no entanto, combinavam com aqueles que estavam nos relatórios de investigação. Por fim, às 11h15, ela pareceu relaxar a postura e se afastou de seu lugar à mesa. Virou-se para olhar para Bosch e O’Shea.

- Acho que tenho o bastante por enquanto, disse ela. - Talvez agora possamos fazer um pequeno intervalo. Ela desligou o gravador, e os três investigadores e O’Shea saíram no corredor para conversar. Swann ficou na sala de entrevistas com seu cliente.

- O que você acha? Perguntou O’Shea a Rider. Ela balançou a cabeça.

- Estou satisfeita. Creio que não há dúvida de que foi ele. Ele resolveu o mistério de sobre como se aproximou de Fitzpatrick. Não acho que ele esteja nos contando tudo, mas ele sabe muitos detalhes. Ou foi ele, ou ele estava bem ali. O’Shea olhou para Bosch.

- Podemos continuar? Bosch pensou sobre isso por um momento. Ele estava pronto.

Enquanto assistia Rider entrevistar Waits, sua raiva e seu asco haviam aumentado. O homem na sala de entrevistas havia demonstrado um desprezo insensível por sua vítima que Bosch reconheceu como o perfil clássico do psicopata. Como antes, ele estava apreensivo pelo que ouviria em seguida daquele homem, mas estava pronto para ouvi-lo.

- Vamos lá, disse ele. Todos voltaram para a sala de entrevistas, e Swann imediatamente sugeriu que eles parassem para o almoço.

- Meu cliente está com fome.

- Tem que alimentar o cachorro, acrescentou Waits com um sorriso. Bosch balançou a cabeça, tomando conta da sala.

- Ainda não, disse. - Ele almoça quando todos nós formos almoçar.

Ele se sentou na cadeira bem na frente de Waits e ligou o gravador novamente. Rider e O’Shea assumiram as cadeiras ao lado dele, e Olivas se sentou novamente na cadeira perto da porta. Bosch havia recuperado o arquivo de Gesto que estava com Olivas, mas ele permanecia fechado à sua frente na mesa.

- Vamos passar agora para o caso Marie Gesto, disse ele.

- Ah, a doce Marie, disse Waits. Ele olhou para Bosch com um brilho nos olhos.

- A oferta de seu advogado sugere que você sabe o que aconteceu a Marie Gesto quando ela desapareceu em 1993. Isso é verdade? Waits franziu a testa e confirmou com um movimento da cabeça.

- Sim, receio que sim, disse ele em tom de zombaria.

- Você sabe o paradeiro atual de Marie Gesto ou o local de seus restos?

- Sim, eu sei. Ali estava, o momento que Bosch esperava há 13 anos.

- Ela está morta, não está? Waits olhou para ele e assentiu. - Isso é um sim? Bosch perguntou para que houvesse o registro na gravação.

- Isso é um sim. Ela está morta.

- Onde ela está? Waits abriu um largo sorriso, o sorriso de um homem que não possui um único átomo de arrependimento ou culpa em seu DNA.

- Ela está bem aqui, detetive, disse ele. - Ela está bem aqui comigo. Assim como as outras. Bem aqui comigo. O sorriso se tornou uma gargalhada, e Bosch quase passou por cima da mesa para pegá-lo. Mas Rider colocou a mão sobre a perna dele por debaixo da mesa. Aquilo o acalmou imediatamente.

- Espere um segundo, disse O’Shea. - Vamos sair de novo, e desta vez eu gostaria que você nos acompanhasse, Maury.

 

CAPÍTULO 12


O’Shea saiu para o corredor primeiro e conseguiu andar de um lado para outro duas vezes antes que todos os outros saíssem da sala de entrevistas. Então instruiu os dois policiais a entrarem na sala e ficarem de olho em Waits. Em seguida a porta foi fechada.

- Que porra é essa, Maury? Vociferou O’Shea. - Não vamos passar o tempo lá dentro estabelecendo as bases para uma defesa por insanidade para você. Isto é uma confissão, e não uma manobra de defesa. Swann levantou as palmas das mãos para cima, em um gesto que queria dizer “O que posso fazer?”.

- É óbvio que o sujeito tem problemas, disse ele.

- Besteira. Ele é um assassino frio e está lá fazendo pose de Hannibal Lecter. Isto aqui não é um filme, Maury. Isto é real. Você ouviu o que ele disse sobre Fitzpatrick? Ele estava mais preocupado com uma pequena queimadura na mão do que com o sujeito em cujo rosto ele colocou fogo. Então vou lhe dizer uma coisa: volte lá e fique uns cinco minutos com o seu cliente. Dê um jeito nele, ou vamos embora e será cada um por si. Bosch estava concordando inconscientemente. Ele gostava da raiva na voz de O’Shea. Também gostava do rumo que aquilo estava tomando.

- Vou ver o que posso fazer, disse Swann. Ele voltou para a sala de entrevistas e os policiais saíram para que o advogado e seu cliente tivessem privacidade. O’Shea continuou a andar de um lado para outro enquanto se acalmava.

- Desculpem por isso, disse ele para ninguém em especial. - Mas eu não vou deixá-los controlar esta situação.

- Eles já estão controlando a situação, disse Bosch. - Pelo menos, Waits está. O’Shea olhou para Bosch, pronto para brigar.

- O que você está dizendo?

- Estou dizendo que estamos todos aqui por causa dele. O fato é que estamos todos envolvidos em um esforço para salvar a vida dele, a pedido dele mesmo. O’Shea balançou a cabeça enfaticamente.

- Não vou ficar repassando esse assunto com você, Bosch. A decisão foi tomada. A esta altura, se você não está no barco, o elevador fica no fim do corredor à esquerda. Eu faço a sua parte na entrevista. Ou o Freddy pode fazer. Bosch esperou um momento antes de responder. - Eu não disse que não estava no barco. O caso Gesto é meu e eu vou com ele até o fim.

- Que bom, disse O’Shea, cheio de sarcasmo. - É uma pena que você não tenha sido tão atento lá em 1993.

Ele foi até a porta da sala de entrevistas e bateu com força. Bosch olhou fixamente para as costas dele com a raiva aflorando de algum lugar bem lá no fundo. Swann abriu a porta quase imediatamente.

- Estamos prontos para continuar, disse ele, se afastando para deixá-los entrar. Depois que todos retomaram suas cadeiras e o gravador foi religado, Bosch passou por cima da raiva de O’Shea e fixou os olhos em Waits novamente. Ele repetiu a pergunta.

- Onde ela está? Waits sorriu de leve, como se estivesse tentado a atrapalhar as coisas novamente, mas então o sorriso se tornou uma expressão maliciosa e ele respondeu.

- No topo das colinas.

- Em que lugar das colinas?

- Lá em cima, perto dos estábulos. Foi lá que eu a peguei. Bem no momento em que ela estava saindo do carro.

- Ela está enterrada?

- Sim, ela está enterrada.

- Onde exatamente ela está enterrada?

- Eu teria que lhe mostrar. É um lugar que eu conheço, mas não sei descrever... Eu teria que mostrar para vocês.

- Tente descrevê-lo.

- É só um lugar na floresta perto de onde ela estacionou. Você entra ali e tem uma trilha e eu saí da trilha. Afastei-me bem dela. Vocês poderiam ir até lá procurar e poderiam tanto encontrar em pouco tempo ou talvez nunca encontrar o local. Tem muita terra ali. Lembro-me que eles deram busca lá em cima, mas nunca a encontraram.

- E depois de 13 anos você acredita que poderia nos levar a esse local?

- Não são 13 anos. Um repentino fluxo de horror tomou conta de Bosch. Era repugnante demais pensar na ideia de que ele a havia mantido como prisioneira. - Não é o que você está pensando, detetive, disse Waits.

- Como você sabe o que estou pensando?

- Eu apenas sei. Mas não é o que você está pensando. Marie está enterrada há 13 anos. Mas não faz 13 anos desde a última vez que estive lá. É isso o que estou dizendo. Eu a visitei, detetive. Eu a visitei lá com bastante frequência. Então com certeza posso levá-los lá. Bosch fez uma pausa, tirou uma caneta e fez uma anotação na parte interna do arquivo de Gesto. Era algo sem a menor importância. Aquilo apenas lhe deu um momento para se desvencilhar das emoções que estavam aflorando.

- Vamos voltar ao começo, disse ele. - Você conhecia Marie Gesto antes de setembro de 1993?

- Não, não conhecia.

- Você nunca a tinha visto antes do dia em que a raptou?

- Não que eu me lembre.

- Onde você a viu pela primeira vez?

- No Mayfair. Eu a vi fazendo compras e ela era bem o meu tipo. Eu a segui.

- Onde?

- Ela entrou no carro e subiu em direção a Beachwood Canyon. Estacionou na área de pedrisco abaixo dos estábulos. Acho que o lugar se chama Sunset Ranch. Não havia ninguém por perto quando ela estava saindo, então decidi pegá-la.

- Não planejou isso antes de vê-la na loja?

- Não, eu entrei lá para comprar Gatorade. Era um dia quente. Eu a vi e decidi naquele exato momento que tinha que tê-la. Sabe, foi um impulso. Não pude fazer nada a respeito, detetive.

- Você a abordou na área abaixo dos estábulos? Ele assentiu.

- Eu parei bem do lado dela com a minha van. Ela nem deu bola. A área de estacionamento fica na base da colina, longe do rancho, longe dos estábulos. Não havia ninguém por perto, ninguém que pudesse ver. Era perfeito. Era como se Deus dissesse que eu podia tê-la.

- O que você fez?

- Entrei na traseira da van e abri a porta deslizante do lado onde ela estava. Eu tinha uma faca e simplesmente saí e disse a ela para entrar. E ela entrou. Foi realmente uma operação simples. Ela não causou nenhum problema. Ele falou como se fosse uma babá relatando o comportamento de uma criança depois que os pais voltaram para casa.

- E depois? Perguntou Bosch.

- Eu pedi para ela tirar as roupas e ela me atendeu. Ela me disse que faria qualquer coisa que eu quisesse desde que eu não a machucasse. Eu concordei com isso. Ela dobrou suas roupas com muito cuidado. Como se achasse que teria a oportunidade de vesti-las novamente.

Bosch esfregou a mão sobre a boca. A parte mais difícil de seu trabalho eram as ocasiões em que estava frente a frente com um assassino, quando via imediatamente a interseção de seu mundo distorcido e aterrorizador com a realidade.

- Continue, disse ele para Waits.

- Você sabe o resto. Nós fizemos sexo, mas ela não era boa nisso. Não conseguia relaxar. Então eu fiz o que tinha que fazer.

- E o que foi isso? Os olhos de Waits se fixaram nos de Bosch.

- Eu a matei, detetive. Coloquei as mãos ao redor do pescoço dela e apertei, e apertei mais forte ainda e fiquei observando os olhos dela ficarem imóveis. E então terminei.

Bosch olhou fixamente para ele, mas não conseguiu abrir a boca. Eram momentos como aquele que faziam com que ele se sentisse inadequado como detetive, momentos nos quais ele era intimidado pela perversidade que podia existir sob a forma humana. Eles se entreolharam por um longo momento, até que O’Shea falou.

- Você fez sexo com o cadáver dela? Ele perguntou.

- Isso mesmo. Enquanto ela ainda estava quente. Eu sempre digo que uma mulher está em sua melhor forma quando está morta, mas ainda quente. Waits olhou de relance para Rider para ver se havia conseguido alguma reação. Ela não demonstrou nada.

- Waits, disse Bosch. - Você é um lixo humano imprestável. Waits olhou de volta para Bosch e recolocou a expressão irônica no rosto.

- Se esse é o seu melhor lance, detetive Bosch, então terá que fazer algo muito melhor. Porque só vai ficar pior para você daqui para frente. Sexo é nada. Vida ou morte é algo transitório. Mas eu tirei a alma dela, e ninguém jamais vai tirá-la de mim. Bosch olhou para o arquivo aberto à sua frente, mas não viu as palavras impressas nos documentos. Por fim ele disse:

- Vamos em frente. O que fez em seguida?

- Dei uma arrumada na van. Sempre tenho rolos de plástico para revestimento dentro da van. Eu a embrulhei e preparei para o enterro. Então saí e tranquei a van. Levei as coisas dela de volta para o carro. Estava com as chaves também. Entrei no carro dela e fui embora. Achei que essa seria a melhor maneira de me livrar da polícia.

- Para onde você foi?

- Você sabe para onde fui detetive. Para o High Tower. Eu sabia que tinha uma garagem vazia por lá que eu poderia usar. Mais ou menos uma semana antes, fui procurar trabalho lá e o gerente por acaso mencionou que havia um apartamento vago. Ele me mostrou porque eu fingi que estava interessado.

- Ele mostrou a garagem também?

- Não, só apontou de longe. Quando eu estava saindo, reparei que estava sem o cadeado.

- Então você levou o carro de Marie Gesto para lá e o colocou na garagem.

- Isso mesmo.

- Alguém o viu? Você viu alguém?

- Não e não. Eu fui muito cuidadoso. Lembre-se, eu tinha acabado de matar alguém.

- E a sua van? Quando você voltou a Beachwood para pegá-la?

- Eu esperei anoitecer. Pensei que seria melhor porque eu tinha que cavar. Tenho certeza de que você me entende.

- Nessa van estava pintado o nome da sua firma?

- Não, não naquela época. Tinha começado há pouco tempo e ainda não estava tentando atrair atenção. A maior parte dos meus trabalhos era por indicação. Ainda não tinha uma licença municipal. Tudo isso veio mais tarde. Na verdade, aquela era outra van. Isso foi há 13 anos atrás. Eu comprei uma van nova depois.

- Como você voltou para os estábulos para pegar a sua van?

- Tomei um táxi.

- Lembra-se de qual empresa?

- Eu não me recordo porque eu não o chamei. Depois de deixar o carro no High Tower eu andei até um restaurante que costumava frequentar quando morava em Franklin. O Bird’s... Você já foi lá? Excelente frango assado. De qualquer forma, foi uma longa caminhada. Eu jantei e, quando era tarde o bastante, pedi que eles chamassem um táxi para mim. Voltei até o lugar onde estava a van, só que pedi ao motorista que me deixasse perto dos estábulos, para não parecer que a van era minha. Quando tive certeza de que não havia ninguém por perto, eu fui até a van e encontrei um lindo e discreto lugar para plantar minha florzinha.

- E você ainda consegue encontrar esse lugar?

- Sem dúvida.

- Você cavou um buraco?

- Cavei.

- Com que profundidade?

- Não sei, não muito fundo.

- O que você usou para cavar?

- Eu tinha uma pá.

- Você sempre carregava uma pá na sua van de lavador de janelas?

- Na verdade, não. Eu a encontrei apoiada na parede de um celeiro perto dos estábulos. Acho que era para limpar as baias, esse tipo de coisa.

- Você a colocou de volta depois que terminou?

- É claro, detetive. Eu roubo almas, não pás. Bosch olhou para o arquivo à sua frente.

- Quando foi a última vez em que você esteve no local onde enterrou Marie Gesto?

- Hummm, há pouco mais de um ano. Eu geralmente ia até lá no dia 9 de setembro. Sabe como é, para comemorar nosso aniversário. Este ano eu estava meio amarrado, como você sabe. Ele sorriu de bom humor. Bosch sabia que, em termos gerais, ele havia passado por tudo. Tudo se resumia em saber se Waits podia realmente levá-los ao corpo e se o pessoal da investigação forense confirmaria a história dele.

- Houve um momento depois do assassinato em que a imprensa deu muita atenção ao desaparecimento de Marie Gesto, disse Bosch. - Lembra-se disso?

- Claro. Aquilo me ensinou uma bela lição. Eu nunca mais agi de maneira impulsiva. Depois daquilo, fiquei mais cuidadoso em relação às flores que colhia.

- Você ligou para os investigadores do caso, não é?

- Para falar a verdade, liguei sim. Eu me lembro disso. Eu liguei e disse a eles que a tinha visto no Mayfair e que ela estava sozinha.

- Por que você ligou? Waits deu de ombros.

- Sei lá. Eu simplesmente achei que seria divertido. Sabe como é, falar de verdade com um dos homens que estava me caçando. Era você?

- Meu parceiro.

- É, a minha ideia era afastar o foco do Mayfair. Afinal de contas, eu tinha estado lá e pensei, quem sabe, que talvez alguém pudesse me descrever. Bosch concordou.

- Você deu o nome de Robert Saxon quando telefonou. Por quê? Waits deu de ombros de novo.

- Era apenas um nome que eu usava de vez em quando.

- Não é o seu nome verdadeiro?

- Não, detetive, você sabe o meu nome verdadeiro.

- E se eu dissesse que não acredito em porra nenhuma do que você disse aqui hoje? O que você diria?

- Eu diria para vocês me levarem até Beachwood Canyon e eu posso provar cada palavra do que disse aqui.

- É, bom, nós vamos ver isso. Bosch recuou a cadeira e disse aos outros que queria falar com eles no corredor. Deixando Waits e Swann para trás, eles saíram para o ar mais fresco do corredor.

- Será que vocês podem nos dar um pouco de espaço aqui? Perguntou O’Shea para os dois policiais. Quando todos estavam no corredor e a porta da sala de entrevistas estava fechada, O’Shea continuou. - Está ficando abafado lá dentro, disse ele.

- É, com todas as bobagens que ele está falando, disse Bosch.

- E então, Bosch? Perguntou o promotor.

- Então é que eu não acredito nele.

- Por que não?

- Porque ele tem todas as respostas. E algumas delas não funcionam. Nós passamos uma semana com as empresas de táxi, olhando registros para todos os passageiros pegos ou deixados em algum lugar. Sabíamos que, se o cara tinha levado o carro dela para o High Tower, então ele iria precisar de alguma condução para voltar para seu próprio carro. Os estábulos foram um dos locais que verificamos. Todas as empresas de táxi da cidade. Ninguém pegou ou deixou passageiro ali, nem durante o dia e nem à noite. Olivas se intrometeu na conversa se posicionando ao lado de O’Shea.

- Isso não dá um resultado cem por cento, Bosch, e você sabe disso, disse ele. - Um taxista poderia ter feito uma corrida sem registrar. Eles fazem isso o tempo todo. Há também os táxis de licença restrita, que só podem pegar passageiros por meio de chamada, mas que acabam pegando passageiros na rua ilegalmente. Eles ficam perto dos restaurantes por toda a cidade.

- Mesmo assim eu não engulo as bobagens que ele disse. Ele tem uma resposta para tudo. A pá estava esperando por ele encostada ao celeiro. Como ele ia enterrar Marie se não tivesse visto que a pá estava ali? O’Shea abriu os braços.

- Tem uma forma de testá-lo, disse ele.

- Nós o levamos para uma excursão de campo e se ele nos levar até o corpo daquela garota, então os pequenos detalhes que incomodam você não vão mais importar. Por outro lado, se não acharmos o corpo, então não tem acordo.

- Quando vamos? Perguntou Bosch.

- Vou falar com o juiz hoje. Vamos amanhã de manhã, se você quiser.

- Espere um pouco, disse Olivas. - E quanto às outras sete? Ainda temos muita coisa para conversar com esse desgraçado. O’Shea ergueu a mão em um movimento que pedia calma.

- Vamos fazer um teste usando o caso Gesto. Ou ele disse a verdade, ou não. E então a gente retoma a partir disso. O’Shea se virou e olhou diretamente para Bosch. - Você vai estar preparado para isso? Perguntou. Bosch assentiu.

- Estou pronto há 13 anos.

 

CAPÍTULO 13

Naquela noite Rachel levou o jantar depois de ligar primeiro para saber se Bosch estava em casa. Bosch colocou música no aparelho de som, e Rachel, depois de pegar os pratos na cozinha, serviu a comida na mesa da sala de jantar. O jantar era carne assada com creme de milho. Ela trouxera uma garrafa de Merlot também, e Bosch levou cinco minutos para encontrar um saca-rolha nas gavetas da cozinha. Não conversaram sobre o caso até que estivessem sentados à mesa, um de frente para o outro.

- E então, perguntou ela, - Como foi hoje? Bosch deu de ombros antes de responder.

- Foi tudo bem. As suas observações sobre tudo foram muito úteis. Amanhã é a excursão de campo, e, nas palavras de Rick O’Shea, vai ser a ocasião em que ou ele cala a boca, ou nós calamos.

- Excursão de campo? Para onde?

- Na parte alta de Beachwood Canyon. Ele diz que foi lá que a enterrou. Eu fui de carro até lá hoje, depois da entrevista, e dei uma olhada por ali, não consegui notar nada, mesmo usando a descrição que ele fez. Em 1993 nós mandamos os policiais vasculharem a área durante três dias e eles não encontraram nada. As florestas são densas lá em cima, mas ele diz que consegue encontrar o local.

- Você acha que foi ele?

- Parece que sim. Ele convenceu todos os outros, e, além disso, tem o telefonema que ele nos deu na época. Aquilo foi bastante convincente.

- Mas...?

- Não sei. Talvez seja o meu ego que não está pronto para aceitar que eu estava errado, que durante 13 anos eu estava olhando para um cara e estava enganado sobre ele. Acho que ninguém quer encarar esse tipo de coisa. Bosch se concentrou em seu prato por alguns momentos. Tomou um gole de vinho depois de uma garfada de carne assada e limpou a boca com um guardanapo. - Puxa, isto aqui está excelente. Onde você comprou? Ela sorriu.

- Só mais um restaurante.

- Não, esta é a melhor carne assada que eu acho que comi na vida.

- É um lugar chamado Jar. Eles dizem que é a abreviatura de Just Another Restaurant, “só mais um restaurante”.

- Ah, entendi.

- Fica em Beverly, perto de onde moro. Eles têm um bar comprido onde se pode comer. Quando me mudei para cá, eu comia sempre lá. Sozinha. Suzanne e Preech sempre cuidaram de mim. Eles me deixam levar comida para viagem, e não é esse tipo de restaurante.

- Eles são os cozinheiros?

- Chefs. Suzanne também é a proprietária. Eu adoro sentar no bar e ficar observando as pessoas que entram e vasculham o lugar para ver quem é quem. Muitas celebridades vão lá. Também é frequentado por gastrônomos e por pessoas comuns. São os mais interessantes.

- Alguém uma vez disse que se você investigar um assassinato por tempo suficiente, você acaba conhecendo uma cidade inteira. Talvez seja a mesma coisa em relação a sentar no bar de um restaurante.

- E mais fácil de fazer. Harry, você está mudando de assunto ou vai me contar sobre a confissão de Raynard Waits?

- Vou chegar lá. Pensei que a gente ia terminar de comer primeiro.

- Foi ruim assim, é?

- Não é isso. Acho que eu preciso descansar um pouco daquilo. Sei lá. Ela balançou a cabeça demonstrando entender. Serviu mais vinho para os dois.

- Gostei da música. Quem é? Bosch balançou a cabeça afirmativamente, a boca cheia mais uma vez.

- Eu chamo isso de “milagre em uma caixa”. John Coltrane e Thelonious Monk no Carnegie Hall. O concerto foi gravado em 1957 e a fita ficou dentro de uma caixa sem qualquer etiqueta durante quase cinquenta anos. Simplesmente ficou lá, esquecida. Aí alguém da Biblioteca do Congresso estava examinando todas as caixas e fitas de concertos e reconheceu o que eles tinham lá. No ano passado eles finalmente lançaram a gravação.

- É lindo.

- É mais do que lindo. É um milagre pensar que ficou lá todo esse tempo. Foi preciso a pessoa certa para encontrar a fita. Para reconhecê-la. Ele olhou para os olhos dela por um momento. Voltou a olhar para o prato e viu que tinha uma última garfada.

- O que você teria feito para o jantar se eu não tivesse telefonado? Perguntou Rachel. Bosch olhou para ela e deu de ombros. Ele terminou de comer e começou a lhe contar sobre a confissão de Raynard Waits. - Ele está mentindo, disse ela depois que Bosch terminou.

- Sobre o nome? Já estamos verificando isso.

- Não, sobre o plano. Na verdade, a falta de plano. Ele contou a vocês que viu Marie no Mayfair, seguiu-a e a pegou. Não, de jeito nenhum. Essa eu não engulo. A coisa toda não me parece algo que tenha sido feito no calor do momento. Houve um plano por trás disso, quer ele esteja contando ou não. Bosch concordou. Ele tinha a mesma sensação de incômodo sobre aquela confissão.

- Acho que vamos ficar sabendo mais coisas amanhã, disse ele.

- Eu gostaria de estar junto. Bosch balançou a cabeça.

- Não posso transformar isso em um caso federal. Além disso, não é mais o que você faz. O seu pessoal não deixaria você ir, mesmo que fosse convidada.

- Eu sei. Mas ainda assim eu posso continuar querendo ir.

Bosch se levantou e começou a retirar os pratos. Eles trabalharam lado a lado na pia e, depois que estava tudo limpo e guardado, levaram a garrafa para a varanda. Ainda havia o bastante para que cada um tomasse meio copo. O frio da noite os aproximou enquanto estavam em pé apoiados no parapeito e olhavam as luzes em Cahuenga Pass.

- Você vai ficar aqui esta noite? Perguntou Bosch.

- Vou.

- Sabe, não precisa telefonar. Vou lhe dar uma chave. É só aparecer. Ela se virou e olhou para ele. Ele a enlaçou pela cintura.

- Tão rápido assim? Está dizendo que está tudo perdoado?

- Não há o que perdoar. O passado já passou e a vida é muito curta. Você sabe, todos aqueles chavões.

Ela sorriu, e eles selaram o momento com um beijo. Terminaram o vinho e foram para o quarto. Fizeram amor lenta e silenciosamente. Em um determinado momento, Bosch abriu os olhos, olhou para ela e perdeu seu ritmo. Ela notou.

- Que foi? Ela sussurrou.

- Nada. É que você fica com os olhos abertos.

- Estou olhando para você.

- Não, não está. Ela sorriu e virou o rosto para não encará-lo.

- Esta é uma hora meio esquisita para uma discussão, disse ela. Ele sorriu e usou a mão para virar o rosto dela. Ele a beijou e os dois ficaram com os olhos abertos. No meio do beijo eles começaram a rir.

Bosch precisava de intimidade e adorava a fuga que isso lhe proporcionava. Sabia que ela tinha consciência disso também. O presente dela para ele era tirá-lo do mundo. E era por isso que o passado não importava mais. Ele fechou os olhos, mas não parou de sorrir.

 

PARTE DOIS

A EXCURSÃO DE CAMPO

CAPÍTULO 14

A reunião dos veículos pareceu levar uma eternidade para Bosch, mas por volta de dez e meia da manhã de quarta-feira a comitiva finalmente estava saindo da garagem subterrânea do Edifício dos Tribunais Criminais. O primeiro carro da fila não possuía qualquer identificação. Olivas estava dirigindo. Um policial da carceragem estava no banco do passageiro, enquanto, atrás, Raynard Waits estava sentado entre Bosch e Rider. O prisioneiro estava de macacão laranja, algemado nos pulsos e tornozelos. As algemas em seus pulsos estavam presas a uma corrente passada em torno da cintura. Outro carro sem identificação, dirigido por Rick O’Shea, levava Maury Swann e um cinegrafista da Promotoria. Os dois carros foram seguidos por duas vans, uma da DIC (Divisão de Investigações Científicas) do Departamento de Polícia de Los Angeles e a outra do escritório do legista. O grupo estava preparado para localizar e desenterrar o corpo de Marie Gesto.

Era um dia perfeito para uma excursão de campo. Uma chuva rápida na noite anterior havia limpado o céu, que estava azul brilhante, com apenas os últimos tufos de nuvens altas à vista. As ruas ainda estavam molhadas e brilhantes. A precipitação também havia impedido a temperatura de aumentar com a subida do sol. Embora nunca possa ser um bom dia quando se tem que desenterrar o corpo de uma mulher de 22 anos, o esplendor do céu ofereceria algum equilíbrio à horrível tarefa a ser realizada. Os veículos se mantiveram em formação rígida se dirigindo para o norte pela via expressa 101 através do acesso da Broadway. O trânsito estava pesado no centro da cidade e mais vagaroso devido às ruas molhadas. Bosch pediu a Olivas que abrisse um pouco a janela para entrar ar fresco e na esperança de afastar o fedor que vinha do corpo de Waits. Era evidente que não haviam permitido ao assassino confesso tomar banho nem receber um macacão limpo naque
la manhã.

- Por que não vai em frente e acende um, detetive? Disse Waits. Uma vez que estavam sentados ombro a ombro, Bosch teve alguma dificuldade para se virar e olhar para Waits.

- Eu quero a janela aberta por sua causa, Waits. Você fede. Eu não fumo há cinco anos.

- Claro que não.

- Por que você acha que me conhece? Eu nunca tinha lhe visto antes. O que lhe faz pensar que me conhece, Waits?

- Eu não conheço. Conheço o seu tipo. Você tem uma personalidade compulsiva, detetive. Casos de assassinato, cigarros, talvez até o álcool que percebo exalando dos seus poros. Você não é muito difícil de se ler. Waits sorriu e Bosch olhou para o outro lado. Pensou nas coisas por um momento, antes de falar novamente.

- Quem é você? Perguntou ele.

- Está falando comigo? Perguntou Waits.

- É, estou falando com você. Eu quero saber. Quem é você?

- Bosch, interrompeu Olivas rapidamente de trás do volante. - O acordo é para não interrogarmos Waits sem que Maury Swann esteja presente. Então o deixe em paz.

- Isto não é um interrogatório. Só estou jogando conversa fora aqui atrás.

- É, bom, não me importa como você chama o que está fazendo. Não faça. Bosch podia ver Olivas olhando para ele pelo espelho retrovisor. Eles se encararam até que Olivas teve que colocar os olhos de novo na direção. Bosch se inclinou para frente para poder olhar Rider, que estava ao lado de Waits. Ela virou os olhos para ele. Era seu olhar “pare de ser encrenqueiro”.

- Maury Swann, disse Bosch. - Ele é um advogado bom para cacete, sem dúvida. Arrumou para este homem um acordo para a vida toda.

- Bosch! Disse Olivas.

- Eu não estou falando com ele. Estou falando com a minha parceira. Bosch se recostou novamente, decidindo não continuar. Ao seu lado as algemas tiniram quando Waits tentou ajeitar sua posição.

- Você não precisava aceitar o acordo, detetive Bosch, disse ele em voz baixa.

- A escolha não foi minha, disse Bosch sem olhar para ele. - Se tivesse sido, não estaríamos fazendo isto. Waits concordou com a cabeça.

- Olho por olho, cara, disse ele.

- Eu deveria ter adivinhado. Você é o tipo de homem que...

- Waits, disse Olivas rispidamente. - Fica de boca fechada.

Olivas estendeu a mão na direção do painel e ligou o rádio. O som alto de música de mariachis explodiu nos alto-falantes. Ele imediatamente apertou o botão para cortar o som.

- Porra, quem foi o último a dirigir este carro? Perguntou ele a ninguém em especial.

Bosch sabia que Olivas estava disfarçando. Estava constrangido por não ter mudado a estação ou abaixado o volume na última vez em que dirigiu o carro. Continuaram em silêncio. Eles estavam cortando por Hollywood agora, e Olivas ligou o pisca-pisca e se dirigiu para a pista de saída para a Gower Avenue. Bosch se virou para olhar pela janela de trás e ver se os outros três veículos ainda estavam atrás deles. O grupo permanecia junto. Mas Bosch agora podia ver um helicóptero voando sobre os veículos. Tinha um enorme número 4 na parte de baixo da fuselagem. Bosch se virou de novo e olhou para Olivas pelo espelho retrovisor.

- Quem chamou a imprensa, Olivas? Foi você ou o seu chefe?

- Meu chefe? Eu não sei do que você está falando. Olivas olhou de relance para ele pelo espelho, mas depois voltou os olhos rapidamente para a direção. Foi um movimento furtivo demais. Bosch sabia que ele estava mentindo.

- É, tá bom. O que você vai ganhar com isso? O Ricochete vai tornar você chefe de investigações depois que ele ganhar? É isso? Agora Olivas olhou para ele pelo espelho.

- Eu não estou indo a parte alguma no departamento. Posso muito bem ir para onde sou respeitado e meu potencial é reconhecido.

- Ora, é isso que você diz para si mesmo na frente do espelho todas as manhãs?

- Vai se foder, Bosch.

- Cavalheiros, cavalheiros, disse Waits. - Será que podemos ser amigos aqui?

- Cala a boca, Waits, disse Bosch. - Você pode não estar se importando que isto esteja se transformando em propaganda para o candidato O’Shea, mas eu sim. Olivas pare o carro. Quero falar com O’Shea. Olivas balançou a cabeça.

- De jeito nenhum. Não com um prisioneiro sob custódia aqui dentro.

Eles estavam chegando ao fim do acesso à Gower. Olivas entrou rapidamente à direita e eles se aproximaram de um semáforo na Franklin. Ele abriu assim que chegaram, e eles atravessaram a Franklin e começaram a subir a Beachwood Drive. Olivas não teria que parar até que chegassem na parte mais alta. Bosch tirou o telefone celular e ligou para o número que O’Shea dera a todos de manhã antes de saírem.

- O’Shea.

- É o Bosch. Não acho que seja muito esperto convocar a imprensa para esta situação. O’Shea ficou em silêncio um momento antes de responder.

- Eles estão a uma distância segura. Estão no ar.

- E quem vai esperar por nós no topo da Beachwood?

- Ninguém, Bosch. Eu fui muito claro com eles. Eles podiam nos seguir pelo ar, mas qualquer um que estivesse em terra iria comprometer esta operação. Não precisa se preocupar. Eles estão trabalhando comigo. Sabem que têm que manter um bom relacionamento.

- Está bem. Bosch fechou o telefone e enfiou-o no bolso.

- Você precisa se acalmar, detetive, disse Waits.

- E você, Waits, precisa ficar quieto.

- Só estou tentando ajudar.

- Então cala a porra da sua boca.

O carro voltou a ficar em silêncio. Bosch decidiu que sua raiva sobre o helicóptero da imprensa e tudo o mais era uma distração da qual ele não precisava. Tentou tirar isso tudo da cabeça e pensar no que estava à frente.

Beachwood Canyon era um bairro tranquilo no declive das montanhas de Santa Monica entre Hollywood e Los Feliz. Não tinha o charme rústico e arborizado de Laurel Canyon, mais a oeste, mas era preferido por seus moradores por ser mais sossegado, mais seguro e reservado. Ao contrário da maioria das passagens para oeste, Beachwood terminava no topo, em um beco sem saída. Não era uma rota para atravessar as montanhas e, consequentemente, o tráfego em Beachwood não se devia a pessoas que estavam apenas passando. Devia-se a pessoas que eram de lá. Isso lhe dava o aspecto de um verdadeiro bairro.

Enquanto subiam, notaram que o letreiro de Hollywood no topo do Monte Lee estava diretamente visível através do para-brisa. Fora colocado ali há mais de oitenta anos para anunciar o conjunto residencial Hollywood Land no topo de Beachwood. O letreiro acabou sendo encurtado e hoje em dia anunciava muito mais um estado de espírito do que qualquer outra coisa. A única indicação oficial que sobrou de Hollywood Land era o portal de pedra semelhante a uma fortaleza que fica a meio caminho de Beachwood. O portal, com sua placa histórica celebrando o conjunto residencial, levavam a uma pequena vila em forma de círculo com lojas, um pequeno mercado e o escritório imobiliário de Hollywood Land. Mais para cima, na área sem saída no topo, ficava Sunset Ranch, o ponto de partida de mais de 80 quilômetros de trilhas para cavalos que se estendiam pelas montanhas e entravam e atravessavam o Griffith Park.

Era ali que Marie Gesto trocava trabalho doméstico nos estábulos por horas de cavalgada. Foi ali que o cortejo lúgubre, composto por investigadores, especialistas em recuperação de cadáveres e um assassino algemado, finalmente parou. O estacionamento do Sunset Ranch era apenas uma clareira nivelada que ficava abaixo da construção principal. Haviam jogado e espalhado cascalho no local. As pessoas que visitavam o rancho tinham que estacionar seus carros ali e então ir a pé até os estábulos que ficavam na parte de cima. O estacionamento era isolado e cercado por florestas densas. A área não podia ser vista do rancho, e fora com isso que Waits havia contado quando ficou à espreita de Marie Gesto e a raptou. Bosch esperou impacientemente no carro até que Olivas soltasse as travas das portas traseiras. Então saiu e olhou para o helicóptero que estava voando em círculos acima deles. Teve que se esforçar para manter sua raiva sob controle. Fec
hou a porta do carro e se certificou de que ela estava trancada. O plano era deixar Waits trancado até que todos estivessem certos de que a área estava segura. Bosch caminhou diretamente para O’Shea, que estava saindo do carro.

- Ligue para o seu contato no Canal Quatro e peça a eles que subam mais uns 150 metros. O barulho é uma distração que nós não...

- Já fiz isso, Bosch. Certo? Escute, eu sei que você não gosta da presença da imprensa, mas nós vivemos em uma sociedade aberta e o público tem o direito de saber o que está acontecendo aqui.

- Especialmente quando isso pode ajudar na sua eleição, certo? O’Shea falou com ele num tom de impaciência.

- Instruir os eleitores é o que significa uma campanha. Com licença, nós temos que achar um corpo.

O’Shea se afastou bruscamente dele e foi até Olivas, que mantinha vigilância perto do carro onde estava Waits. Bosch reparou que um policial também estava montando guarda na traseira do carro. Segurava uma escopeta em prontidão. Rider se aproximou de Bosch.

- Harry, você está bem?

- Nunca estive melhor. É só tomar cuidado com essas pessoas.

Ele estava observando O’Shea e Olivas. Agora eles conversavam sobre alguma coisa. O som do motor do helicóptero impedia Bosch de ouvir o que eles estavam falando. Rider colocou a mão sobre o braço dele em um gesto de calma.

- Vamos esquecer a política e acabar logo com isso, disse Rider. - Há uma coisa mais importante do que tudo isso. Vamos encontrar Marie e levá-la para casa. Isso é o que importa. Bosch olhou para a mão dela sobre seu braço, notou que ela estava certa e concordou.

- Certo.

Alguns minutos depois O’Shea e Olivas reuniram todos em um círculo no estacionamento de cascalho. Além dos advogados, investigadores e do policial, havia dois especialistas em recuperação de cadáveres da equipe do legista municipal, junto a uma arqueóloga forense chamada Kathy Kohl e um técnico forense do DPLA, além de um cinegrafista da Promotoria. Bosch já trabalhara com a maioria deles antes. O’Shea esperou até que o cinegrafista tivesse ligado a câmera antes de se dirigir à equipe.

- Ok, pessoal, estamos aqui em uma tarefa horrível, a de encontrar e recolher os restos mortais de Marie Gesto, disse ele sombriamente. - Raynard Waits, o homem que está no carro, vai nos levar ao local onde nos contou que a enterrou. Nossa preocupação prioritária aqui é a segurança do suspeito e a segurança de todos vocês o tempo todo. Tenham cuidado e fiquem alerta. Quatro de nós estão armados. O Sr. Waits continuará algemado e sob os olhos vigilantes dos detetives e do policial Doolan, com a escopeta. O Sr. Waits vai mostrar o caminho e todos nós estaremos observando seus menores movimentos. Quero que o vídeo e a sonda de gás venham conosco, enquanto o resto de vocês espera aqui. Quando encontrarmos o local e confirmarmos o corpo, vamos recuar até que o senhor Waits volte para o carro, e aí todos vocês irão para o local, que, é claro, será tratado como cena de crime. Alguma pergunta até aqui? Maury Swann ergueu a mão.

- Eu não vou ficar aqui, disse ele. - Vou ficar com o meu cliente o tempo todo.

- Tudo bem, Sr. Swann, disse O’Shea. - Mas não acho que o senhor esteja vestido de maneira adequada. Era verdade.

Inexplicavelmente, Swann tinha colocado um terno para ir a uma escavação. Todos os outros estavam vestidos de maneira apropriada. Bosch estava de jeans, botas de sola de borracha e um velho moletom da academia com as mangas cortadas. Rider estava com uma roupa semelhante. Olivas estava de jeans, camiseta e um blusão de náilon com a identificação do Departamento de Polícia nas costas. Os outros na equipe estavam vestidos da mesma forma.

- Não me importo, disse Swann. - Se eu estragar os meus sapatos, lanço como despesas de trabalho. Mas vou ficar com o meu cliente. E isso não é negociável.

- Tudo bem, disse O’Shea. - Apenas não chegue muito perto nem fique no caminho.

- Sem problema.

- Ok, pessoal, vamos lá, disse ele.

Olivas e o policial foram até o carro para pegar Waits. Bosch ouviu o ruído do helicóptero aumentar à medida que a equipe de notícias descia para conseguir um ângulo melhor para sua câmera. Depois que ajudaram Waits a sair do carro, suas algemas foram verificadas por Olivas e ele foi levado para a clareira. O policial ficou quase 2 metros atrás dele com a escopeta levantada e pronta. Olivas segurava firme a parte de cima do braço esquerdo de Waits. Eles pararam quando chegaram perto dos outros no grupo.

- Sr. Waits, um aviso, em tempo, disse O’Shea. - Se fizer qualquer tentativa de fugir, esses policiais irão atirar no senhor. Entendeu isso?

- Claro, disse Waits. - E tenho certeza de que fariam isso com prazer.

- Então estamos entendidos. Mostre-nos o caminho.

 

CAPÍTULO 15

Waits conduziu-os em direção a uma trilha de lama que saía da parte mais baixa da área de estacionamento. Ela desaparecia sob a cobertura criada por um bosque de acácias, carvalhos brancos e mata densa. Ele andava sem hesitar, como se soubesse exatamente para onde estava indo. Em pouco tempo o grupo estava sob a sombra, e Bosch imaginou que o cinegrafista no helicóptero não estava conseguindo muita coisa que pudesse aproveitar de cima da cobertura de folhas. O único que falava era Waits.

- Não falta muito, disse Waits, como se fosse um guia de parque levando-os a alguma cachoeira escondida.

O caminho se tornou mais estreito à medida que a quantidade de árvores e mato aumentava, e a aparência da trilha passou de bem percorrida para pouco usada. Eles estavam em um trecho no qual poucos excursionistas se aventuraram. Olivas teve que mudar a posição em que estava, segurando Waits pelo braço e caminhando ao seu lado, para ficar atrás do assassino, com uma das mãos segurando a corrente da cintura por trás. Era evidente que Olivas não ia soltar seu suspeito, e isso tranquilizava Bosch. O que não era tranquilizador era que a nova posição bloqueava a mira de todos caso Waits resolvesse tentar fugir. Bosch havia atravessado inúmeras florestas na vida. Na maioria das vezes, elas eram do tipo em que a pessoa fica atenta ao que se passa a distância e à possibilidade de uma emboscada, e ao mesmo tempo olha bem onde pisa, para evitar armadilhas. Dessa vez ele mantinha os olhos focados nos dois homens que se moviam à sua frente, Waits e Olivas
. O terreno começou a ficar mais difícil à medida que a trilha seguia o declive da montanha. O solo estava macio e úmido, não só pela precipitação da noite passada, mas também por toda a chuva do ano anterior.

Em alguns lugares Bosch sentiu que suas botas afundavam e grudavam no lodo. E em um momento houve o som de galhos se quebrando atrás dele e em seguida o baque surdo de um corpo atingindo a lama. Embora Olivas e o policial Doolan parassem e se virassem para ver o que era aquela agitação, Bosch não tirou os olhos de Waits. Atrás de si ele ouviu Swann praguejar e os outros perguntando se ele estava bem enquanto o ajudavam a se levantar. Depois que Swann parou de praguejar e a equipe se reagrupou, eles continuaram descendo a encosta. O avanço era lento, uma vez que a má sorte de Swann fez com que todos passassem a andar com muito mais cuidado do que antes. Depois de mais cinco minutos eles pararam diante do despenhadeiro de um declive muito íngreme. Era um lugar onde o peso da água que havia empoçado no chão causara um deslizamento de lama nos últimos meses. A terra havia desaparecido perto de um carvalho, expondo metade de suas raízes. O declive tinha
quase 3 metros de profundidade.

- Ora, isto não estava aqui da última vez em que vim, disse Waits em um tom de voz que indicava estar incomodado pela inconveniência.

- Esse é o caminho? Perguntou Olivas, apontando para o fundo do declive.

- É, confirmou Waits. - Precisamos descer ali.

- Tudo bem, espere um minuto. Olivas se virou e olhou para Bosch.

- Bosch, por que você não desce primeiro e depois eu o mando para você?

Bosch concordou e se aproximou do declive. Agarrou um dos galhos mais baixos do carvalho para se equilibrar enquanto testava a estabilidade do solo na inclinação íngreme. O chão se desfazia e estava escorregadio.

- Ruim, disse ele. - Isso aqui vai ser como um escorregador até lá embaixo. E depois que descermos como faremos para voltar para cima? Olivas soltou a respiração com força, frustrado.

- Então o que vamos...

- Tinha uma escada em cima de uma das vans, sugeriu Waits. Todos olharam para ele por um momento.

- Ele está certo. O pessoal da perícia tem uma escada na caminhonete deles, disse Rider. - Nós a pegamos, colocamos lá embaixo, subimos e descemos à vontade. Simples. Swann interrompeu a conversa do grupo.

- Simples, a não ser pelo fato de que o meu cliente não vai subir e descer aquela inclinação, nem vai subir e descer escadas com as mãos acorrentadas à cintura, disse ele. Após uma pausa momentânea, todos olharam para O’Shea.

- Acho que podemos pensar em alguma coisa, disse ele.

- Espere um pouco, disse Olivas. - Não vamos tirar as...

- Então ele não vai descer, disse Swann. - É simples assim. Não vou permitir que o coloquem em perigo. Ele é meu cliente e minha responsabilidade para com ele não é só no foro legal, mas em todas as... O’Shea ergueu as mãos tentando acalmar a situação.

- Uma das nossas responsabilidades é a segurança do acusado, disse ele. - Maury tem razão. Se o Sr. Waits cair da escada por não poder usar as mãos, então somos responsáveis. E aí temos um problema. Tenho certeza de que, com todos vocês portando armas e espingardas, nós podemos controlar esta situação durante os dez segundos que ele levará para descer a escada.

- Vou pegar a escada, disse a técnica forense. - Pode segurar isto? O nome dela era Carolyn Cafarelli, e Bosch sabia que a maioria das pessoas chamava-a de Cal. Ela deu a sonda de gás, um aparelho amarelo em forma de T, para Bosch e tomou o caminho de volta pela trilha.

- Vou ajudá-la, disse Rider.

- Não, disse Bosch. - Todos que tiverem uma arma ficam com Waits. Rider concordou, percebendo que ele estava certo.

- Eu me arranjo, gritou Cafarelli de longe. - Ela é de alumínio leve.

- Só espero que ela consiga encontrar o caminho de volta, disse O’Shea depois que ela saiu. Durante os primeiros minutos eles esperaram em silêncio, até que Waits falou com Bosch. - Está ansioso, detetive? Perguntou ele. - Agora que estamos tão perto. Bosch não respondeu. Ele não ia deixar Waits entrar em sua cabeça. Waits tentou de novo. - Eu penso em todos os casos em que você trabalhou. Quantos são como este? Quantas são como Marie? Aposto que ela...

- Waits, cala a porra da sua boca, ordenou Olivas.

- Ray, por favor, disse Swann, a voz calma.

- Só estou jogando conversa fora com o detetive.

- Bom, converse só com você, disse Olivas.

O silêncio retornou durante mais alguns minutos, até que ouviram o som de Cafarelli carregando a escada pela floresta. Ela a bateu algumas vezes em galhos baixos, mas finalmente levou-a até onde eles estavam. Bosch ajudou-a a deslizar a escada pela inclinação e eles se certificaram de que ela estava firme. Quando se ergueu e virou de novo para o grupo, Bosch viu que Olivas estava soltando uma das mãos de Waits da corrente passada ao redor da cintura do prisioneiro. Ele deixou a outra mão presa.

- A outra mão, detetive, disse Swann.

- Ele pode subir com uma das mãos livres, insistiu Olivas.

- Lamento detetive, mas não vou permitir isso. Ele tem que poder se segurar para interromper uma queda, caso escorregue. Precisa das duas mãos livres.

- Ele consegue se virar com uma só.

Enquanto a discussão prosseguia, Bosch se virou sobre a escada e desceu de costas. A escada estava firme. Lá embaixo, olhou ao redor e notou que não havia uma trilha visível. Daquele ponto em diante, a trilha para o corpo de Marie Gesto não era tão óbvia quanto fora na parte de cima. Ele olhou para cima e esperou.

- Freddy, faça o que ele pede, instruiu O’Shea com uma voz de aborrecimento. - Policial, desça primeiro e fique pronto com essa escopeta para o caso de o Sr. Waits ter alguma ideia estranha. Detetive Rider, tem a minha permissão para tirar sua arma do coldre. Você fica aqui em cima com Freddy e fique atenta também. Bosch subiu alguns degraus da escada para que o policial pudesse lhe passar a escopeta com cuidado. Então desceu e se afastou enquanto o policial uniformizado descia pela escada. Bosch lhe devolveu a arma e voltou para a escada.

- Jogue as algemas, gritou Bosch para Olivas. Bosch pegou as algemas e então tomou posição dois degraus acima na escada. Waits começou a descer enquanto o cinegrafista ficou na beirada e registrou sua descida. Quando Waits estava a três degraus do final da escada, Bosch estendeu a mão e agarrou a corrente da cintura para guiá-lo até o chão.

- É isso aí, Ray, sussurrou ele por trás. - É a sua única chance. Tem certeza de que não quer tentar sair correndo? Já seguro no chão, Waits se afastou da escada e se virou para Bosch, estendendo as mãos para ser algemado. Seus olhos estavam fixos nos de Bosch.

- Não, detetive, eu acho que gosto bastante de viver.

- Achei que sim. Bosch lhe prendeu as mãos na corrente da cintura e olhou para cima à espera dos outros. - Ok, estamos seguros.

Um por um os outros desceram a escada. Uma vez que haviam se reagrupado na parte de baixo, O’Shea olhou ao redor e viu que não havia mais uma trilha. Eles poderiam ir para qualquer direção.

- Muito bem, para onde? Perguntou ele a Waits. Waits virou em um semicírculo como se visse a área pela primeira vez.

- Hummmm... Olivas quase perdeu a paciência.

- É melhor você não estar aprontando nenhuma...

- Por ali, disse Waits, se fazendo de intimidado enquanto indicava a direita do declive. - Perdi a direção por um segundo.

- Espere um pouco, disse Olivas. - Ou você nos leva ao corpo agora mesmo, ou nós voltamos, vamos a julgamento e você ganha a injeção de suco do além que está esperando por você. Entendeu?

- Entendi. E, como eu disse, é por ali.

O grupo se moveu através do mato com Waits à frente, Olivas segurando a corrente por trás e a escopeta nunca a menos de um metro e meio de distância. O chão naquele nível era mais macio e mais barrento. Bosch sabia que o escoamento das últimas chuvas de primavera provavelmente tinha descido aquela inclinação e se juntado ali. Ele sentia os músculos das coxas se contraírem, pois cada passo era um esforço para tirar as botas da lama grudenta. Depois de cinco minutos chegaram a uma pequena clareira sombreado por um carvalho alto e completamente desenvolvido. Bosch viu Waits olhando para cima e seguiu seus olhos. Uma faixa de cabelo branco-amarelada balançava pendurada em um galho acima de suas cabeças.

- Que engraçado, disse Waits. - Antigamente era azul.

Bosch sabia que na época do desaparecimento de Marie, se acreditava que ela estava com o cabelo amarrado com uma faixa azul que era, na verdade, um elástico recoberto por tecido. Uma amiga que a havia visto no começo daquele último dia forneceu uma descrição do que ela estava usando. A faixa não estava com as roupas cuidadosamente dobradas que tinham sido encontradas no carro no High Tower. Bosch olhou a faixa de prender cabelos. Treze anos de chuva e exposição ao sol haviam feito a cor desaparecer. Bosch abaixou os olhos para Waits, e o assassino esperava por ele com um sorriso.

- Aqui estamos detetive. Você finalmente encontrou Marie.

- Onde? O sorriso de Waits aumentou.

- Você está em pé sobre ela. Bosch deu um passo para trás bruscamente, e Waits gargalhou. - Não se preocupe, detetive Bosch, acho que ela não se importa. Qual foi o grande homem que escreveu sobre dormir o grande sono? Sobre não se importar com a torpeza de como se morre ou sobre o lugar onde se fica? Bosch olhou para ele por um longo momento, se questionando novamente sobre a afetação literária do lavador de janelas. Waits pareceu ler os pensamentos dele. - Eu estou na cadeia desde maio, detetive. Já li bastante.

- Afaste-se, disse Bosch. Waits abriu as mãos algemadas em um gesto de rendição e se moveu na direção do tronco do carvalho. Bosch olhou para Olivas.

- Prendeu de novo?

- Prendi.

Bosch olhou para o chão. Ele havia deixado pegadas no solo barrento, mas também parecia que tinha havido outra perturbação mais recente no solo. Era como se um animal tivesse feito um pequeno buraco no chão, ou para guardar ou para enterrar alguma coisa. Bosch fez um sinal para a técnica forense, apontando para o centro da clareira. Cafarelli avançou com a sonda de gás, e Bosch apontou o local diretamente embaixo da faixa de cabelo desbotada. A técnica enfiou a ponta da sonda no solo macio e facilmente afundou-a uns 30 centímetros na terra. Ela ligou o leitor e começou a estudar o mostrador eletrônico. Bosch avançou para olhar por cima do ombro dela. Ele sabia que a sonda media o nível de metano no solo. Um corpo enterrado libera gás metano ao se decompor. Mesmo um corpo embrulhado em plástico.

- Temos uma leitura, disse Cafarelli. - Está acima dos níveis normais.

Bosch balançou a cabeça afirmativamente. Sentiu-se estranho por dentro. Incomodado. Estivera com aquele caso por mais de uma década e uma parte dele gostava de estar apegado ao mistério de Marie Gesto. Mas, embora não acreditasse em algo chamado conclusão do caso, precisava saber a verdade. Sentia que a verdade estava prestes a se revelar, e ainda assim isso era desconcertante. Ele precisava saber a verdade para seguir em frente, mas como poderia seguir em frente se não precisava mais encontrar e vingar Marie Gesto? Olhou para Waits.

- A que profundidade ela está?

- Não muito fundo, respondeu Waits casualmente. - Em 1993 nós tivemos uma seca, lembra? O chão estava duro, cara, eu me acabei cavando um buraco para ela. Minha sorte foi que ela era pequenininha. Mas, de qualquer forma, foi por isso que eu mudei o esquema. Depois dessa, parei de cavar buracos enormes.

Bosch desviou o olhar dele e voltou para Cafarelli. Ela estava fazendo outra leitura com a sonda. Procurava delinear o local do túmulo mapeando as leituras mais elevadas de metano. Todos observaram em silêncio aquela tarefa sombria. Depois de fazer diversas leituras seguindo um padrão de matriz, Cafarelli finalmente moveu a mão no sentido norte-sul para indicar a provável posição do corpo. Então marcou os limites da sepultura riscando o solo com a ponta da sonda. Ao terminar, havia marcado um retângulo de um metro e oitenta por 60 centímetros. Era um túmulo pequeno para uma vítima pequena.

- Muito bem, disse O’Shea. - Vamos levar o Sr. Waits de volta e prendê-lo no carro e então trazer a equipe de escavação.

O Promotor disse a Cafarelli que ela deveria ficar ali no local para não haver dúvidas sobre a integridade da cena do crime. O resto do grupo se dirigiu de volta para a escada. Bosch era o último na fila indiana, sua mente profundamente envolta em pensamentos sobre a área que estavam atravessando. Havia algo de sagrado nela. Era solo consagrado. Bosch esperava que Waits não tivesse mentido para eles. Esperava que Marie Gesto não tivesse sido forçada a andar até seu túmulo ainda viva.

Na escada, Rider e Olivas subiram primeiro. Bosch então levou Waits para a escada, lhe soltou as mãos e fez com que ele começasse a subir. Enquanto o assassino subia, o policial apontava a escopeta, com o dedo no gatilho, para as costas dele. Naquele momento, Bosch notou que poderia escorregar no chão barrento, cair sobre o policial e possivelmente fazer com que a escopeta disparasse e acertasse Waits mortalmente. Ele desviou o olhar da tentação e olhou para cima. Sua parceira estava olhando para baixo e para ele, e o olhar dela lhe dizia que ela acabara de ler seus pensamentos. Bosch tentou fazer cara de inocente. Abriu as mãos ao mesmo tempo em que seus lábios pronunciaram um Que foi? Rider balançou a cabeça em desaprovação e se afastou da beirada. Bosch notou que ela estava segurando a arma ao lado do corpo. Quando chegou ao topo da escada, Waits foi recebido por Olivas de braços abertos.

- As mãos, disse Olivas.

- É claro, detetive.

Do ângulo de visão em que se encontrava Bosch só conseguia ver as costas de Waits. Pela postura de Waits, Bosch conseguia notar que ele havia juntado as mãos na frente do corpo para ser preso à corrente da cintura novamente. Mas então houve um movimento inesperado. Uma rápida mudança na postura do prisioneiro, que se inclinou demais na direção de Olivas. Bosch instintivamente sabia que alguma coisa estava errada. Waits estava tentando pegar a arma de Olivas no coldre sob o blusão de náilon.

- Ei! Gritou Olivas em pânico. - Ei!

Mas antes que Bosch ou qualquer outra pessoa reagisse, Waits usou seu impulso e força sobre Olivas para girar a posição de seus corpos, de forma que as costas do detetive agora estavam viradas para o topo da escada. O policial não tinha ângulo para disparar. Bosch também não. Com um movimento semelhante ao de um pistom, Waits ergueu o joelho e acertou Olivas duas vezes entre as pernas. Olivas começou a cair, e houve dois tiros rápidos, abafados por seu corpo. Waits empurrou o detetive pela beirada e Olivas caiu pela escada em cima de Bosch. Waits então desapareceu do campo de visão.

O peso de Olivas derrubou Bosch com força sobre a lama. Enquanto lutava para pegar sua arma, Bosch ouviu mais dois tiros vindos de cima e os gritos de pânico daqueles que estavam na parte de baixo. Ouviu som de correria atrás de si. Com Olivas ainda sobre seu corpo, olhou para cima, mas não conseguiu ver nem Waits nem Rider. Então o prisioneiro apareceu na beirada do despenhadeiro, segurando calmamente uma arma. Ele atirou neles, e Bosch sentiu dois impactos no corpo de Olivas. Ele se tornou o escudo de Bosch. O disparo da escopeta do policial rasgou o ar, mas a carga de chumbo se cravou com um estrondo no tronco de um carvalho à esquerda de Waits. Waits devolveu fogo no mesmo momento, e Bosch ouviu o policial cair como se fosse uma mala derrubada.

- Corra seu covarde! Gritou Waits. - Como é que está o seu acordo de merda agora?

Ele disparou duas vezes indistintamente no mato abaixo. Bosch conseguiu soltar sua arma e disparou contra Waits no topo da escada. Waits recuou para ficar fora de mira e usou a mão que estava livre para agarrar a escada pelo primeiro degrau e puxá-la para a parte de cima do declive. Bosch empurrou o corpo de Olivas para o lado e se levantou, a arma apontada e pronta caso Waits aparecesse de novo. Mas então ouviu o som de correria vindo de cima e notou que Waits tinha fugido.

- Kiz! Gritou Bosch.

Não houve resposta. Bosch verificou rapidamente Olivas e o policial, mas viu que ambos estavam mortos. Recolocou a arma no coldre e subiu o declive com dificuldade, usando raízes expostas como pontos de apoio. O chão cedia à medida que ele enfiava os pés nele. Uma raiz arrebentou em sua mão e ele escorregou para baixo.

- Kiz, fale comigo!

Mais uma vez, sem resposta. Ele tentou novamente, dessa vez procurando subir o íngreme declive por um ângulo em vez de tentar subir em linha reta. Agarrando raízes e enfiando o pé com força na terra, finalmente conseguiu chegar ao topo e rastejar por cima da beirada. Ao sair completamente, viu Waits se afastando através das árvores na direção da clareira, onde os outros esperavam. Ele sacou a arma novamente e disparou mais cinco tiros, mas Waits não reduziu a velocidade. Bosch se levantou, pronto para a perseguição. Mas então ele viu o corpo de sua parceira deitado, encolhido e ensanguentado no mato ali perto.

 

CAPÍTULO 16

Kiz Rider estava com o rosto para cima, segurando o pescoço com uma das mãos enquanto a outra jazia inerte a seu lado. Os olhos dela estavam arregalados e procuravam ver as coisas, mas sem foco. Era como se fosse cega. O braço inerte estava tão ensanguentado que Bosch demorou um pouco para localizar a entrada da bala na palma da mão, pouco abaixo do polegar. O tiro havia atravessado a mão, e ele sabia que não era tão sério quanto o ferimento no pescoço. Sangue estava escorrendo continuamente por entre os dedos de Rider. A bala devia ter acertado a artéria carótida, e Bosch sabia que a perda de sangue ou a diminuição de oxigênio no cérebro poderiam matar sua parceira em minutos, se não em segundos.

- Tudo bem, Kiz, disse ele se ajoelhando ao lado dela. - Estou aqui.

Ele notou que a pressão que a mão esquerda dela estava exercendo sobre o ferimento no lado direito do pescoço era insuficiente para parar o sangramento. Ela estava perdendo a força para continuar aguentando.

- Deixe-me cuidar disso aqui, disse ele. Ele moveu a mão por baixo da mão dela e pressionou contra o que agora ele percebia ser dois ferimentos, um de entrada e outro de saída da bala. Podia sentir o sangue pulsando contra a palma da mão.

- O’Shea! Gritou ele.

- Bosch? O’Shea respondeu de onde estava, na parte baixa do declive.

- Onde ele está? Você o matou?

- Ele fugiu. Preciso que você pegue o rádio de Doolan e chame a equipe de resgate. Agora! Levou um momento para O’Shea responder, a voz em pânico.

- Doolan foi baleado. Freddy também!

- Eles estão mortos, O’Shea. Você precisa pegar o rádio. Rider está viva e precisamos levá-la...

Ouviram-se dois tiros à distância, seguidos por um grito. Era uma voz feminina, e Bosch pensou em Kathy Kohl e nas pessoas que estavam na área de estacionamento. Mais dois tiros, e Bosch ouviu uma mudança no som do helicóptero. Ele estava se afastando. Waits estava atirando nele.

- Ande logo, O’Shea! Gritou ele. - Estamos ficando sem tempo. Como não ouviu resposta, ele pegou a mão de Rider e a apertou contra o ferimento no pescoço novamente. - Aguenta firme, Kiz. Aperte o mais que puder, eu volto logo.

Bosch levantou de um pulo e pegou a escada que Waits havia puxado para cima. Ele a abaixou de novo, posicionando-a entre os corpos de Olivas e Doolan, e desceu rapidamente. O’Shea estava de joelhos ao lado do corpo de Olivas. Os olhos do promotor estavam tão arregalados e vazios quanto os do policial morto a seu lado. Swann estava parado em pé na clareira com uma expressão de pasmo no rosto. Cafarelli tinha voltado da área da sepultura e estava ajoelhada ao lado de Doolan, tentando virá-lo para pegar o rádio. O policial havia caído de peito para baixo depois de ter sido baleado por Waits.

- Cal, deixa que eu faça isso, ordenou Bosch. - Sobe e ajuda a Kiz. Precisamos parar o sangramento no pescoço.

Sem dizer uma palavra, a técnica subiu apressadamente a escada e saiu do campo de visão. Bosch virou o corpo de Doolan e viu que ele tinha sido atingido na testa. Seus olhos estavam abertos e ele parecia surpreso. Bosch tirou o rádio do cinto de equipamentos de Doolan, fez o anúncio de “policial abatido” e requisitou um resgate aéreo e paramédico na área de estacionamento do Sunset Ranch. Logo que se assegurou de que a ajuda médica estava a caminho, relatou que um suspeito de assassinato havia escapado da custódia e estava armado. Deu uma descrição detalhada de Raynard Waits, e em seguida prendeu o rádio no cinto. Voltou para a escada e enquanto subia gritou para O’Shea, Swann e para o cinegrafista que ainda estava segurando a câmera e gravando toda a cena.

- Subam aqui, todos vocês. Precisamos carregá-la até a área de estacionamento para esperar o resgate. O’Shea, em estado de choque, continuou a olhar para Olivas.

- Eles estão mortos! Bosch gritou de cima.

- Não há nada que possamos fazer por eles. Preciso de vocês aqui em cima.

Ele voltou para Rider. Cafarelli estava segurando o seu pescoço, mas Bosch notou que o tempo ficava curto. A vida estava abandonando os olhos de sua parceira. Bosch se abaixou, pegou a mão que não estava machucada e a segurou. Ele a esfregou entre suas mãos. Notou que Cafarelli havia usado uma faixa de cabelo para envolver o ferimento na outra mão de Rider.

- Vamos, Kiz, aguenta aí. Vem vindo o resgate aéreo e nós vamos tirar você daqui.

Olhou ao redor para ver o que poderia usar e então teve uma ideia ao ver Maury Swann aparecer na escada. Aproximou-se rapidamente da beirada e ajudou o advogado de defesa a subir o último degrau. O’Shea estava subindo atrás dele, e o cinegrafista esperava sua vez.

- Deixe a câmera aí, ordenou Bosch.

- Não posso. Sou respons...

- Se você a trouxer aqui para cima, eu pego e jogo o mais longe que puder.

Ele colocou o equipamento no chão, tirou a fita digital da câmera e colocou-a em um dos bolsos grandes de suas calças militares. Então subiu pela escada. Depois que todos estavam em cima, Bosch puxou a escada e carregou-a até Rider. Colocou-a no chão ao lado da detetive.

- Ok, vamos usar a escada como maca. Dois homens de cada lado e, Cal, eu preciso que você ande ao nosso lado e mantenha a pressão no pescoço dela.

- Pode deixar, disse ela.

- Tudo bem, vamos colocá-la sobre a escada.

Bosch se posicionou ao lado do ombro direito de Rider enquanto os outros três homens assumiam suas posições junto às pernas e ao outro ombro. Eles a ergueram e cuidadosamente a colocaram sobre a escada. Cafarelli continuou com as mãos no pescoço de Rider.

- Precisamos ter cuidado, pediu Bosch. - Se inclinarmos esse troço, ela vai cair. Cal, não a deixe escorregar da escada.

- Entendi. Vamos embora.

Eles ergueram a escada e começaram a retornar pela trilha. O peso de Rider, distribuído entre os quatro homens, não era um problema. Mas a lama, sim. Por duas vezes Swann escorregou com seus sapatos de tribunal, e a maca improvisada quase virou. Em cada uma dessas vezes Cafarelli realmente abraçou Rider junto com a escada e a manteve no lugar. Levou menos de dez minutos para chegarem à clareira. Bosch imediatamente viu que a van do legista tinha sumido, mas Kathy Kohl e seus dois assistentes ainda estavam lá, ilesos e ao lado da van da DIC. Bosch examinou o céu em busca de um helicóptero, mas não encontrou nenhum. Mandou que colocassem Rider ao lado da van da DIC. Carregando-a no último trecho com um dos braços enganchado na escada, ele usou a mão livre para operar o rádio.

- Onde está o meu resgate aéreo? Gritou ele para o controlador de chamadas.

A resposta foi que a ajuda estava a caminho, com chegada prevista em um minuto. Eles abaixaram vagarosamente a escada até o chão e olharam ao redor para ver se havia espaço suficiente para o helicóptero pousar. Atrás de si ele ouviu O’Shea interrogando Kohl.

- O que aconteceu? Para onde Waits foi?

- Ele saiu da floresta e atirou no helicóptero da televisão. Então ele pegou a nossa van com a arma apontada para nós e desceu a colina.

- O helicóptero o seguiu?

- Não sabemos. Acho que não. Ele foi embora quando Waits começou a atirar.

Bosch ouviu o som de um helicóptero se aproximando e torceu para que não fosse o helicóptero do Canal Quatro voltando. Caminhou para o meio da parte mais aberta do estacionamento e esperou. Em poucos instantes um helicóptero de resgate prateado alcançou o cume da montanha, e Bosch começou a acenar os braços. Dois paramédicos saltaram da aeronave no instante em que ela pousou. Um deles carregava uma mala de equipamentos, enquanto o outro trazia uma maca dobrável. Eles se ajoelharam, cada um de um lado de Rider, e começaram a trabalhar. Bosch ficou em pé e observou, os braços cruzados com força sobre o peito. Viu um deles colocar uma máscara de respiração nela enquanto o outro lhe aplicava uma intravenosa. Eles então começaram a examinar os ferimentos. Para si mesmo, Bosch repetia o mantra Aguenta, Kiz, Aguenta, Kiz, Aguenta, Kiz... Era mais como uma oração. Um dos paramédicos se virou para o helicóptero e fez um sinal para o piloto,
girando um dedo erguido no ar. Bosch sabia que aquilo significava que eles tinham que ir embora. O tempo seria fundamental naquela corrida. O motor do helicóptero começou a acelerar. O piloto estava pronto. A maca foi desdobrada e Bosch ajudou os paramédicos a colocarem Rider sobre ela. Ele então pegou em uma das alças e ajudou-os a carregá-la até o helicóptero.

- Posso ir junto? Bosch gritou enquanto se aproximavam da porta aberta do helicóptero.

- O quê? Gritou um dos paramédicos.

- POSSO IR JUNTO? O paramédico balançou a cabeça.

- Não, senhor. Precisamos de espaço para tratar dela. Vai ser por pouco. Bosch concordou. - Para onde vocês a estão levando?

- Para o St. Joseph. Bosch assentiu novamente.

O St. Joseph ficava em Burbank. Pelo ar era apenas do outro lado da montanha, no máximo cinco minutos de voo. De carro seria um trajeto longo ao redor da montanha e através de Cahuenga Pass. Rider foi cuidadosamente colocada dentro do helicóptero, e Bosch recuou. Quando a porta estava para ser fechada, ele quis gritar alguma coisa para sua parceira, mas não conseguiu encontrar as palavras. A porta se fechou rapidamente e era tarde demais. Ele decidiu que se Kiz estivesse consciente e se importasse com essas coisas, ela saberia o que ele dissera. O helicóptero levantou voo enquanto Bosch se afastava, imaginando se tornaria a ver Kiz Rider viva. Assim que o helicóptero se afastou, um carro-patrulha surgiu subindo a colina em alta velocidade e entrando na área de estacionamento, as luzes azuis piscando. Dois policiais uniformizados da Divisão de Hollywood saltaram. Um deles estava com a arma na mão e apontou-a para Bosch. Coberto de lama e sangue, Bosch entend
eu o motivo.

- Eu sou policial! Meu distintivo está no bolso de trás.

- Então mostra para a gente, disse o homem com a arma. - Bem devagar! Bosch tirou a carteira com o distintivo e abriu-a. O distintivo passou pelo exame e a arma foi abaixada.

- Volte para o carro, ordenou ele. - Precisamos ir! Bosch correu para a porta de trás do carro. Os dois policiais entraram e Bosch lhes disse para voltar para Beachwood.

- E depois para onde? Perguntou o motorista.

- Vocês têm que me levar do outro lado da montanha, ao St. Joseph. Minha parceira estava naquele helicóptero. - Pode deixar. Código três, meu chapa.

O motorista acionou o comando que acrescentaria a sirene às luzes de emergência que já estavam piscando e pisou fundo no acelerador. O carro fez um retorno cantando os pneus e espalhando pedrisco e começou a descer a colina. A suspensão era elevada, como a maioria dos carros que o DPLA colocava nas ruas. O carro virava perigosamente nas curvas durante a descida, mas Bosch não se importava. Ele tinha que chegar ao local onde Kiz estava. Em um determinado momento quase colidiram com um carro-patrulha que estava se dirigindo para a cena do crime na mesma velocidade. Por fim, na metade da descida, o motorista diminuiu a velocidade quando passaram pela área de compras repleta de pedestres na vila de Hollywood Land.

- Pare! Gritou Bosch. O motorista respondeu com eficiência e os freios gritaram. - Volte um pouco. Acabei de ver a van.

- Que van?

- Só volte um pouco!

O carro-patrulha deu ré e voltou, passando pelo mercado da vizinhança. Na área de estacionamento lateral Bosch viu a van azul-clara do legista estacionada na última fila.

- Nosso prisioneiro se soltou e conseguiu uma arma. Ele pegou a van.

Bosch lhes deu uma descrição de Waits e o aviso de que ele não hesitou para usar a arma. Contou também sobre os dois policiais mortos na floresta. Eles decidiram vasculhar a área de estacionamento primeiro e depois entrar no mercado. Requisitaram apoio, mas decidiram não esperar por ele. Saíram empunhando suas armas. Fizeram uma busca pelo estacionamento sem encontrar nada, e deixaram a van do legista por último. Estava destrancada e vazia. Mas na parte de trás Bosch encontrou um macacão laranja jogado no chão. Ou Waits estava usando outras roupas por baixo do macacão, ou ele havia conseguido roupas novas na parte de trás da van.

- Tenham cuidado. Bosch avisou os outros. - Ele pode estar usando qualquer coisa. Fiquem perto de mim. Eu sei como ele é.

Em formação cerrada eles entraram na loja pelas portas automáticas da frente. Uma vez lá dentro, Bosch rapidamente notou que havia chegado tarde demais. Um homem com um crachá de gerente preso na camisa estava consolando uma mulher que chorava histericamente com uma das mãos no rosto. O gerente viu os dois policiais uniformizados e fez um sinal para que se aproximassem. Ele sequer pareceu notar toda a lama e sangue nas roupas de Bosch.

- Fomos nós que chamamos, disse o gerente. - A Sra. Shelton aqui acabou de ter seu carro roubado. A Sra. Shelton confirmou com um movimento da cabeça, chorosa.

- A senhora pode nos dar uma descrição de seu carro e de como o homem que o levou estava vestido? Perguntou Bosch.

- Acho que sim, choramingou ela.

- Ok, escutem aqui, disse Bosch para os dois policiais. - Um de vocês fica aqui e pega a descrição das roupas que ele está usando e do carro e manda para o rádio. O outro sai e me leva para o St. Joseph. Vamos embora.

O motorista levou Bosch, e o outro policial ficou para trás. Em três minutos eles saíram cantando pneus de Beachwood Canyon e se dirigiam para Cahuenga Pass. No rádio, ouviram a transmissão de um alerta para um BMW 540 prata que estaria associado a um 187 LEO, o código para assassinato de um policial. A descrição do suspeito dizia que ele estava usando um macacão branco folgado, e Bosch notou que ele tinha encontrado uma muda de roupas na parte de trás da van da Investigação Forense. A sirene estava abrindo o caminho para eles, mas Bosch avaliou que ainda estavam a 15 minutos de distância do hospital. Teve uma sensação desagradável sobre aquilo. Teve uma sensação desagradável sobre tudo. Não achava que chegariam lá a tempo. Tentou afastar esse pensamento da mente. Tentou pensar em Kiz Rider viva, bem e sorrindo para ele, repreendendo-o como sempre fazia. E, quando chegaram à autoestrada, ele se concentrou em esquadrinhar todas as o
ito pistas do tráfego que rumavam para o norte, à procura de um BMW prateado com um assassino ao volante.

 

CAPÍTULO 17

Bosch cruzou a entrada do atendimento de emergência com passos largos e o distintivo à mostra. Uma recepcionista estava sentada atrás de um balcão, pegando informações de um homem acomodado em uma cadeira à sua frente. Quando Bosch se aproximou, viu que o homem embalava o braço esquerdo como se fosse um bebê. O pulso estava torcido em um ângulo completamente estranho.

- Onde está a policial que foi trazida pelo resgate? Perguntou ele, sem se importar em interromper.

- Não tenho informação sobre isso, senhor, respondeu a mulher. - Se o senhor puder...

- Onde posso obter essa informação? Onde está o médico?

- O médico está com a paciente, senhor. Se eu pedisse a ele para sair e falar com o senhor, aí ele não ia mais cuidar da policial, não é?

- Então ela ainda está viva?

- Senhor, eu não posso lhe dar qualquer informação agora. - Se o senhor puder...

Bosch se afastou do balcão e foi na direção de um pequeno corredor que terminava em portas duplas. Apertou um botão na parede que as fazia abrir automaticamente. Atrás de si ouviu a recepcionista gritando com ele. Não parou. Atravessou as portas e entrou na área de atendimento de emergência. Havia oito cubículos cortinados para os pacientes, quatro de cada lado do salão, e os postos dos médicos e enfermeiras ficavam no meio. O lugar estava agitado. Do lado de fora de um dos cubículos de pacientes, à direita, Bosch viu um dos paramédicos do helicóptero e foi ao encontro dele.

- Como ela está?

- Ela está se aguentando. Perdeu muito sangue e... Ele parou ao se virar e ver que era Bosch quem estava ao seu lado. - Creio que o senhor não deveria estar aqui, detetive. Acho melhor o senhor ir para a sala de espera e...

- Ela é minha parceira e quero saber o que está acontecendo.

- Ela está com um dos melhores médicos de atendimento de emergência da cidade tentando mantê-la viva. Meu palpite é que ele irá fazer exatamente isso. Mas o senhor não pode ficar aqui olhando.

- Senhor? Bosch se virou. Um homem com um uniforme de uma empresa de segurança privada estava se aproximando com a mulher da recepção. Bosch levantou as mãos.

- Eu só quero saber o que está acontecendo.

- Senhor, precisa vir comigo, por favor, disse o guarda. Ele colocou a mão no braço de Bosch. Bosch puxou o braço bruscamente.

- Eu sou detetive da polícia. Não precisa colocar a mão em mim. Eu só quero saber o que está acontecendo com a minha parceira.

- O senhor será informado de tudo na hora certa. Se puder vir, por favor... O guarda cometeu o erro de tentar pegar Bosch pelo braço novamente. Dessa vez Bosch não puxou o braço. Ele afastou a mão do homem com um tapa.

- Eu falei para não...

- Calma, calma, disse o paramédico. - Vou lhe dizer uma coisa, detetive: vamos até as máquinas tomar um café ou coisa assim e eu lhe conto tudo o que está acontecendo com a sua parceira, ok? Bosch não respondeu. O paramédico melhorou a oferta. - Eu posso até arrumar um uniforme novo para o senhor tirar essas roupas cheias de lama e sangue. Que tal?

Bosch cedeu, o segurança balançou a cabeça em aprovação e o paramédico mostrou o caminho, parando primeiro em um almoxarifado e adivinhando que o detetive devia vestir M. Ele tirou um uniforme azul-claro completo das prateleiras e entregou-o a Bosch. Eles então foram até o fim do corredor, na sala de descanso das enfermeiras, onde havia máquinas operadas por moedas que serviam café, refrigerantes e petiscos. Bosch pegou um café puro. Ele estava sem moedas, mas o paramédico tinha.

- Quer se limpar e trocar primeiro essa roupa? Pode usar o banheiro que fica ali.

- Diga primeiro o que você sabe.

- Sente-se. Eles se sentaram um de frente para o outro em uma mesa redonda. O paramédico estendeu a mão sobre a mesa. - Dale Dillon. Bosch lhe apertou a mão rapidamente.

- Harry Bosch.

- Prazer em conhecê-lo, detetive Bosch. A primeira coisa que tenho a fazer é agradecê-lo pelo que fez no meio daquela lama. O senhor e os outros que estavam lá provavelmente salvaram a vida de sua parceira. Ela perdeu muito sangue, mas é uma guerreira. Eles a estão consertando e com sorte ela vai ficar bem.

- É muito grave?

- É grave, mas é um daqueles casos em que eles não sabem até ela estabilizar. A bala acertou uma de suas artérias carótidas. É nisso que eles estão trabalhando agora, aprontando-a para levá-la ao centro cirúrgico para consertar a artéria. Enquanto isso, uma vez que ela perdeu muito sangue, o risco agora é de um derrame. Então ela ainda não está fora de perigo, mas, se ela conseguir evitar o derrame, deve sair dessa situação bem. “Bem” significa viva e funcionando, com muita fisioterapia à frente. Bosch concordou. - Essa é a versão não oficial. Eu não sou médico e não deveria ter lhe contado nada disso. Bosch sentiu seu celular vibrando no bolso, mas ignorou-o. - Eu agradeço o que fez, disse ele.

- Quando é que poderei vê-la?

- Não tenho ideia, meu amigo. Eu só trago os pacientes para cá. Eu contei tudo o que sabia e isso provavelmente foi demais. Se for esperar por aqui, sugiro que lave o rosto e mude de roupa. Do jeito que está o senhor provavelmente está assustando as pessoas. Bosch concordou e Dillon se levantou. Ele havia neutralizado uma situação potencialmente explosiva na área de emergência e seu trabalho estava terminado.

- Obrigado, Dale.

- Sem problema. Vá com calma com ela e se por acaso encontrar o segurança, talvez o senhor queira... Ele deixou a frase no ar.

- Pode deixar, disse Bosch.

Depois que o paramédico saiu, Bosch entrou no banheiro e tirou o moletom. Pelo fato de não haver bolsos nas calças de médico e nenhum lugar para carregar sua arma, telefone, distintivo e outras coisas, decidiu ficar com seus jeans sujos. Olhou-se no espelho e viu que tinha sangue e sujeira espalhados pelo rosto. Levou os cinco minutos seguintes se lavando, passando sabonete e água nas mãos, até que finalmente viu a água escorrer transparente pelo ralo. Quando saiu do banheiro, reparou que alguém havia entrado na sala de descanso e tomado ou jogado fora seu café. Procurou por moedas no bolso novamente, mas não conseguiu encontrar nenhuma. Bosch voltou para a área de recepção da emergência, que agora estava lotada de policiais, uniformizados e à paisana. Seu supervisor, Abel Pratt, estava entre os que vestiam terno. Seu rosto parecia ter sido drenado de todo o sangue. Ele viu Bosch e se aproximou imediatamente.

- Harry, como ela está? O que aconteceu?

- Eles não me deram nenhuma informação oficial. O paramédico que a trouxe disse que parece que ela vai ficar bem, a menos que algo novo aconteça.

- Graças a Deus! O que aconteceu lá em cima?

- Não tenho certeza. Waits arranjou uma arma e começou a atirar. Sabe se eles conseguiram descobrir alguma coisa sobre o paradeiro dele?

- Ele largou o carro que roubou perto da estação da Red Line em Hollywood Boulevard. Eles não sabem onde ele está, porra. Bosch pensou naquilo. Sabia que se Waits tinha entrado no metrô na Red Line, ele poderia ir a qualquer lugar de North Hollywood até o centro da cidade. A linha do centro tem uma parada perto de Echo Park.

- Eles estão procurando em Echo Park?

- Eles estão procurando em todo lugar, meu amigo. O pessoal da TEP está vindo aqui para conversar com você. Eu achei que você não ia querer sair para voltar ao Parker Center.

- Certo.

- Bem, você sabe como cuidar disso. Apenas conte como aconteceu.

- Certo.

Os investigadores da subdivisão de Tiroteio Envolvendo Policial não seriam um problema. Até onde Bosch podia ver, ele não tinha feito nada errado na maneira como cuidara da situação. De toda forma, a equipe da TEP era uma mera formalidade.

- Eles ainda vão demorar um pouco, disse Pratt. - Estão lá no Sunset Ranch agora entrevistando os outros. Como é que ele conseguiu uma arma, porra? Bosch balançou a cabeça.

- Olivas chegou perto demais quando ele estava subindo a escada. Foi nesse momento que ele a pegou e começou a atirar. Olivas e Kiz estavam em cima. Tudo foi muito rápido, e eu estava embaixo deles.

- Puta merda!

Pratt balançou a cabeça, e Bosch sabia que ele queria fazer mais perguntas sobre o que tinha acontecido e como. Provavelmente estava tão preocupado com sua própria situação quanto com a melhora de Rider. Bosch resolveu que precisava lhe contar sobre o aspecto que poderia estar relacionado a um problema de contenção.

- Ele não estava algemado, disse em voz baixa. - Tivemos que tirar as algemas para ele poder subir uma escada. Waits ia ficar sem as algemas por no máximo trinta segundos, e foi nesse instante que ele agiu. Olivas deixou que se aproximasse demais. Foi assim que tudo começou. Pratt pareceu atordoado. Falou lentamente, como se não estivesse entendendo.

- Vocês tiraram as algemas dele?

- O’Shea mandou.

- Ótimo. Eles podiam pôr a culpa nele. - Não quero nenhuma consequência para a Abertos/Não Resolvidos. Não quero nada disso em cima de mim. Essa não é bem a minha ideia sobre como me aposentar depois de 25 anos, porra.

- E quanto a Kiz? Você não vai deixá-la na mão, vai?

- Não, eu não vou deixá-la na mão. Eu vou apoiar Kiz, mas não vou apoiar O’Shea. Ele que se foda.

O telefone de Bosch vibrou novamente e dessa vez ele o tirou do bolso para olhar o visor. Estava escrito “Número Desconhecido”. Atendeu mesmo assim, para escapar das perguntas, dos julgamentos e das estratégias de acobertamento de Pratt. Era Rachel.

- Harry, nós acabamos de receber o comunicado sobre Waits. O que aconteceu?

Bosch notou que ia contar e recontar a história durante o dia todo e possivelmente pelo resto da vida. Pediu licença e entrou em um nicho onde havia telefones públicos e um bebedouro, para poder falar com privacidade. Da maneira mais concisa possível, contou a ela o que tinha acontecido em Beachwood Canyon e como estava a situação com Rider. À medida que contava a história, repassou as lembranças visuais do momento em que viu Waits pegar a arma. Repassou também o esforço para parar o sangramento e salvar sua parceira. Rachel se ofereceu para ir até a emergência, mas Bosch convenceu-a a não ir, dizendo que não tinha certeza sobre quanto tempo ficaria lá e lembrando a ela que provavelmente seria entrevistado pelos investigadores da TEP.

- Eu lhe vejo à noite? Perguntou ela.

- Se eu conseguir acabar tudo e Kiz estiver estável. Caso contrário, talvez eu fique por aqui.

- Eu vou para a sua casa. Ligue se souber de novidades.

- Pode deixar.

Bosch saiu do nicho e viu que a sala de espera da emergência estava começando a ficar lotada com o pessoal da imprensa e com policiais. Adivinhou que aquilo provavelmente significava que todos sabiam que o chefe de polícia estava a caminho. Bosch não se importava. Talvez a presença do chefe na emergência fizesse com que o hospital desse alguma informação sobre a condição de sua parceira. Ele se aproximou de Pratt, que estava em pé com o Capitão Norona, que era seu chefe e chefe da Divisão de Roubos e Homicídios.

- O que vai acontecer com a escavação? Bosch perguntou a ambos.

- Mandei Rick Jackson e Tim Marcia lá para cima, respondeu Pratt.

- Eles vão cuidar disso.

- O caso é meu, disse Bosch, um leve tom de protesto na voz.

- Não é mais, disse Norona. - Você vai ficar com o pessoal da TEP até eles terminarem tudo. Você é o único com um distintivo que estava lá e ainda consegue falar sobre o assunto. Isso é prioritário. A escavação de Gesto é secundária, e Marcia e Jackson vão cuidar de tudo.

Bosch sabia que não adiantava discutir. O capitão estava certo. Embora houvesse mais quatro pessoas presentes no tiroteio que saíram ilesas, a descrição e a memória de Bosch é que teriam maior peso. Houve uma agitação na entrada da emergência quando vários homens com câmeras de TV nos ombros se acotovelaram para conseguir um bom lugar de cada lado das portas duplas. Quando as portas se abriram, um grupo de pessoas entrou, com o chefe de polícia no meio. O chefe se dirigiu para a recepção, onde encontrou Norona. Eles falaram com a mesma mulher que rejeitara Bosch antes. Dessa vez ela foi a própria imagem da cooperação, pegando o telefone imediatamente e fazendo uma ligação. Era óbvio que ela sabia quem era importante e quem não era. Dentro de três minutos o cirurgião-chefe do hospital apareceu e convidou o chefe para entrar para uma conversa em particular. Quando começaram a atravessar as portas, Bosch se juntou ao grupo de co
mandantes e assistentes que compunham o séquito do chefe.

- Com licença, Dr. Kim, chamou uma voz atrás do grupo. Todos eles pararam e se viraram. Era a mulher da recepção. Ela apontou para Bosch e disse: - Ele não está com esse grupo. O chefe notou Bosch pela primeira vez e corrigiu-a.

- Não tenho dúvida de que ele está com o grupo, disse, em um tom de voz que repelia qualquer tipo de refutação. A expressão no rosto da mulher demonstrou seu constrangimento. O grupo seguiu em frente e o Dr. Kim guiou-o até um dos cubículos que não estava sendo usado. Eles se aglomeraram em torno de uma cama vazia.

- Chefe, a sua policial está sendo...

- Detetive. Ela é detetive.

- Desculpe. Sua detetive está sendo tratada na UTI pelos Drs. Patel e Worthing. Não posso interromper o trabalho deles agora para que tragam notícias a vocês, então estou preparado para responder às perguntas que tiverem.

- Ótimo. Ela vai sobreviver? Perguntou o chefe sem rodeios.

- Achamos que sim. Essa não é realmente a questão. A questão é se haverá danos permanentes, e vai demorar um pouco até sabermos isso. Uma das balas danificou uma de suas carótidas. A carótida transporta sangue e oxigênio para o cérebro. A esta altura ainda não sabemos como foi a interrupção do fluxo e que dano pode ter ocorrido.

- Não se podem fazer exames para avaliar isso?

- Sim senhor, existe sim, e, no momento, estamos monitorando preliminarmente as atividades cerebrais de rotina. Até agora as notícias são boas.

- Ela consegue falar?

- Não no momento. Ela foi anestesiada durante a cirurgia e vai demorar muitas horas antes que talvez possa voltar a falar. Ênfase em “talvez”. Não saberemos até tarde da noite de hoje ou amanhã, quando ela acordar. O chefe assentiu.

- Obrigado, Dr. Kim. O chefe fez menção de sair e todos se posicionaram para sair também. Então ele se virou para o cirurgião-chefe. - Dr. Kim, disse ele em voz baixa. - Em certa época essa mulher trabalhou diretamente comigo. Eu não quero perdê-la.

- Estamos fazendo o melhor que podemos chefe. Não vamos perdê-la.

O chefe de polícia balançou a cabeça afirmativamente. Quando o grupo se misturou se dirigindo para as portas que davam para a sala de espera, Bosch sentiu um aperto de mão no ombro. Virou-se e viu que era o chefe. Ele puxou Bosch para o lado para uma conversa em particular.

- Detetive Bosch, como vai?

- Estou bem, chefe.

- Obrigado por trazê-la para cá tão rápido.

- Na hora não pareceu tão rápido, mas eu não estava sozinho. Outros ajudaram. Trabalhamos juntos.

- Certo, é, eu sei. O’Shea já está nos noticiários falando sobre como a carregou para fora da floresta. Aproveitando a situação. Bosch não ficou surpreso por ouvir aquilo. - Ande comigo por um momento, detetive, disse o chefe. Eles atravessaram a sala de espera e saíram na área de entrada de ambulâncias. O chefe de polícia não falou até que estivessem fora do prédio e do alcance dos ouvidos dos outros. - Nós vamos levar uma enorme cacetada por isso, disse ele por fim. - Temos um maldito assassino serial confesso andando solto pela cidade. Eu quero saber o que aconteceu naquela montanha, detetive. Como é que as coisas puderam dar tão terrivelmente erradas?

Bosch balançou a cabeça, contrito. Sabia que o que havia acontecido em Beachwood Canyon seria como uma bomba explodindo e enviando uma onda de choque através da cidade e do departamento.


- Essa é uma boa pergunta, chefe, respondeu ele. - Eu estava lá, mas não tenho certeza sobre o que aconteceu. Mais uma vez, Bosch começou a contar a história.

 

CAPÍTULO 18

Aos poucos a imprensa e a polícia foram saindo da sala de espera da emergência. De certa forma, Kiz Rider foi um desapontamento por não ter morrido. Se isso tivesse acontecido, tudo teria se tornado uma entrevista para os programas de televisão. Eles entram, começam a transmitir ao vivo e em seguida passam para o próximo local e a próxima coletiva à imprensa. Mas ela aguentou firme e as pessoas não podiam ficar esperando. À medida que o tempo passou, o número de pessoas na sala de espera diminuiu até sobrar apenas Bosch. Rider não estava envolvida em nenhum relacionamento e os pais tinham saído de Los Angeles depois da morte da irmã dela, então não havia ninguém, além de Bosch, esperando por uma oportunidade de vê-la. Pouco antes das cinco da tarde, o Dr. Kim atravessou as portas duplas procurando o chefe de polícia ou pelo menos alguém de uniforme ou acima da patente de detetive. Ele teve que se contentar com Bosch, que se levanto
u para receber as notícias.

- Ela está indo bem. Está consciente, e suas capacidades de comunicação não verbal são boas. Não está falando devido ao trauma no pescoço e está entubada, mas os sinais iniciais são todos positivos. Não houve derrame, nem infecção, tudo parece bem. O outro ferimento está estabilizado e vamos lidar com ele amanhã. Ela já teve cirurgia suficiente para um dia. Bosch concordou. Sentiu um tremendo alívio lhe inundando o corpo. Kiz ia conseguir.

- Posso vê-la?

- Por uns minutos, mas, como eu disse, ela ainda não está falando. Venha comigo.

Bosch seguiu o cirurgião-chefe e mais uma vez atravessaram as portas duplas. Passaram pela sala de emergência e foram para a unidade de terapia intensiva. Kiz estava no segundo quarto à direita. Seu corpo parecia pequeno na cama, cercado por todos aqueles equipamentos, monitores e tubos. Os olhos dela estavam semicerrados e não se mexeram quando ele entrou em seu campo de visão. Ele sabia que ela estava consciente, mas não muito.

- Kiz, disse Bosch. - Como vai, parceira? Ele estendeu o braço e segurou a mão que não estava ferida. - Não tente responder. Eu não devia ter perguntado nada. Eu só queria ver você. O cirurgião-chefe acabou de me dizer que você vai ficar bem. Vai ter que fazer um pouco de fisioterapia, mas depois vai ficar novinha em folha.

Ela não conseguia falar nem fazer qualquer som porque tinha um tubo que lhe descia pela garganta. Mas ela lhe apertou a mão, e Bosch entendeu como uma resposta positiva. Ele puxou uma cadeira que estava encostada na parede para poder continuar segurando a mão dela. Durante a meia hora seguinte ele lhe disse muito pouca coisa. Ficou apenas segurando a mão, apertando-a de vez em quando. Às cinco e meia uma enfermeira entrou no quarto e disse a Bosch que dois homens estavam perguntando por ele na sala de espera da emergência. Bosch apertou a mão de Rider pela última vez e disse que voltaria no dia seguinte pela manhã.

Os dois homens esperando por ele eram investigadores da TEP. Os nomes deles eram Randolph e Osani. Randolph era o tenente encarregado da unidade. Ele investigava tiroteios envolvendo policiais há tanto tempo que havia supervisionado as investigações nas quatro últimas vezes em que Bosch havia disparado sua arma. Eles o levaram até o carro para poderem conversar em particular. Com um gravador no banco ao seu lado, Bosch contou sua história, começando pelo início de sua participação na investigação. Randolph e Osani não fizeram perguntas até que Bosch começou a recontar a excursão daquela manhã com Waits. Naquele ponto eles fizeram muitas perguntas obviamente destinadas a extrair respostas que combinassem com o plano preconcebido do departamento para lidar com o desastre daquele dia. Ficava claro que eles queriam determinar que as decisões importantes, se não todas as decisões, vieram através do escritório da Promotoria e de Rick O=9
2Shea. Isso não queria dizer que o departamento planejasse anunciar que o desastre deveria ser colocado na porta do escritório de O’Shea. Mas o departamento estava se preparando para se defender de algum ataque.

Então, quando Bosch recontou a discordância momentânea sobre se Waits deveria descer as escadas sem algemas ou não, Randolph pressionou-o para obter as citações exatas do que fora dito e por quem. Bosch sabia que era a última entrevista deles. Provavelmente já tinham conversado com Cal Cafarelli, Maury Swann e O’Shea e seu cinegrafista.

- Vocês assistiram ao vídeo? Bosch perguntou depois de terminar de contar seu ponto de vista sobre as coisas.

- Ainda não. Mas vamos assistir.

- Bem, tudo deve estar lá. Acho que o cara estava filmando quando o tiroteio começou. Na verdade, eu mesmo gostaria de ver a fita.

- Bom, para ser honesto, estamos tendo um probleminha com isso, disse Randolph.

- Corvin diz que deve ter perdido a fita no meio do mato.

- Corvin é o cinegrafista?

- Certo. Diz que deve ter caído do bolso dele quando vocês estavam carregando Rider na escada. Ainda não conseguimos confirmar. Bosch concordou e mentalmente fez a matemática da política. Corvin trabalhava para O’Shea. A fita deveria mostrar O’Shea instruindo Olivas a tirar as algemas de Waits.

- Corvin está mentindo, disse Bosch. - Ele estava usando aquele tipo de calças que tem um monte de bolsos, certo? Para carregar equipamento. Calças militares. Eu definitivamente vi quando ele tirou a fita da câmera e a colocou em um daqueles bolsos com aba na lateral da perna. Aconteceu quando ele era o último lá no fundo. Só eu vi isso. Mas não teria caído. Ele fechou a aba. A fita está com ele.

Randolph apenas assentiu com a cabeça, como se supusesse durante todo o tempo que as coisas que Bosch dissera eram a situação, como se escutar uma mentira não fosse algo incomum para a Unidade de TEP.

- A fita tem O’Shea dizendo a Olivas para tirar as algemas de Waits, disse Bosch. - Esse não é o tipo de vídeo que O’Shea iria querer ver nos noticiários ou nas mãos do DPLA em ano de eleição ou em qualquer outro. Então a questão é saber se Corvin está guardando a fita para fazer sua própria jogada com O’Shea ou se O’Shea mandou que ele escondesse a fita. Eu apostaria em O’Shea. Randolph sequer se deu o trabalho de um movimento de cabeça em sinal de concordância para qualquer uma daquelas afirmações. Em vez disso, falou:

- Ok, vamos repassar tudo mais uma vez desde o começo, assim podemos deixar você ir embora daqui.

- Claro, disse Bosch, entendendo que estavam lhe dizendo que a questão da fita não era de sua conta. - Estou à disposição.

Bosch terminou de contar a história pela segunda vez antes das sete horas e pediu a Randolph e Osani uma carona com eles de volta ao Parker Center para pegar seu carro. No caminho de volta, os homens da TEP não discutiram a investigação. Randolph sintonizou na KFWB exatamente às sete horas e eles ouviram a versão da imprensa sobre os acontecimentos em Beachwood Canyon e as últimas informações sobre a busca a Raynard Waits. Uma terceira notícia dizia respeito às consequências políticas da fuga. Se as eleições precisavam de alguma controvérsia, Bosch e companhia certamente haviam providenciado isso. Dos candidatos à Câmara dos Vereadores até o oponente de Rick O’Shea, todos apresentaram críticas à maneira pela qual o DPLA e o gabinete da Promotoria haviam conduzido a excursão fatal. O’Shea procurou se distanciar da catástrofe que potencialmente eliminava suas chances na eleição por meio de uma declaração que o caracteri
zava como um mero observador na excursão, um observador que não tomou decisões relacionadas à segurança e ao transporte do prisioneiro. Ele disse que confiava no DPLA para tudo isso. A notícia concluiu com uma menção à coragem de O’Shea ao ajudar a salvar uma detetive da polícia que estava ferida, carregando-a para a segurança enquanto o fugitivo armado estava à solta nas matas da área. Depois de ouvir o suficiente, Randolph desligou o rádio.

- Esse cara, o O’Shea... Disse Bosch. - Ele resolveu tudo. Vai ser um excelente Procurador. - Sem dúvida, disse Randolph.

Bosch se despediu dos homens da TEP na garagem atrás do Parker Center e caminhou até um estacionamento pago ali perto, onde tinha uma vaga reservada, para pegar seu carro. Estava exausto por tudo que havia acontecido, mas ainda faltava pelo menos uma hora para escurecer. Ele rumou para a autoestrada em direção a Beachwood Canyon. No caminho ligou o celular sem bateria no carregador e ligou para Rachel Walling. Ela já estava em sua casa.

- VOU demorar um pouco, disse ele. - Eu estou voltando a Beachwood.

- Por quê?

- Porque é o meu caso e eles estão lá em cima trabalhando nele.

- Certo. Você devia estar lá. Bosch não respondeu. Apenas escutou o silêncio depois disso. Era confortante.

- Vou para casa assim que puder, disse ele finalmente.

Bosch fechou o telefone enquanto saía da autoestrada na Gower, e poucos minutos depois estava subindo a Beachwood Drive. Perto do topo, fez uma curva no mesmo instante em que duas vans estavam descendo. Ele as reconheceu: uma delas era um carro funerário, seguida pela van da DIC com a escada presa ao teto. Ele sentiu um vazio abrir em seu peito. Sabia que eles estavam voltando da escavação. Marie Gesto estava naquela primeira van. Quando chegou ao estacionamento, viu Marcia e Jackson, os dois detetives que haviam sido designados para assumir a escavação, tirando os macacões que usavam sobre as roupas e jogando-os no porta-malas aberto de seu carro. Eles haviam terminado o trabalho daquele dia. Bosch estacionou ao lado deles e saiu do carro.

- Harry, como está a Kiz? Marcia perguntou imediatamente.

- Eles dizem que ela vai ficar bem.

- Ainda bem.

- Que confusão, hein? Comentou Jackson. Bosch apenas assentiu com a cabeça.

- O que vocês acharam?

- Nós a achamos, disse Marcia. - Ou melhor, nós encontramos um corpo. Vai ser preciso fazer uma identificação dentária. Vocês têm os registros dentários, certo?

- No arquivo que está em cima da minha mesa.

- Vamos pegá-lo e levá-lo para a Mission.

O escritório do legista municipal ficava na Mission Road. Um legista com experiência odontológica iria comparar radiografias dentais de Gesto com outras tiradas do corpo recolhido no local para onde Waits os levara naquela manhã. Marcia fechou o porta-malas do carro e ele e seu parceiro olharam para Bosch.

- Você está bem? Perguntou Jackson.

- Dia longo, disse Bosch.

- E, pelo que andei ouvindo, pode ser que os dias fiquem mais longos ainda, disse Marcia. - Até pegarem esse sujeito. Bosch concordou. Sabia que eles queriam saber como aquilo podia ter acontecido. Dois policiais mortos e um na UTI. Mas ele estava cansado de contar a história.

- Escutem, disse ele, - Eu não sei por quanto tempo vou ficar pendurado com esse troço. Vou tentar me livrar de tudo amanhã, mas é óbvio que não depende de mim. De qualquer forma, se vocês conseguirem uma identificação, eu agradeceria se vocês deixassem que eu telefonasse para os pais. Eu converso com eles há 13 anos. Eles vão querer ouvir a notícia de mim. Eu quero dar a notícia.

- Tudo bem, Harry, disse Marcia.

- Eu nunca reclamei por não ter que fazer uma notificação, acrescentou Jackson.

Conversaram por mais alguns minutos e então Bosch olhou para cima e avaliou a luz do dia, que estava esmorecendo. Na floresta, a trilha já deveria estar envolta em sombras profundas. Ele perguntou se eles tinham uma lanterna no carro que pudessem lhe emprestar.

- Eu devolvo amanhã, prometeu, embora todos soubessem que ele talvez não voltasse no dia seguinte.

- Harry, não tem escada na floresta, disse Marcia. - O pessoal da DIC levou aquela embora. Bosch deu de ombros e olhou para suas calças e botas cobertas de lama.

- Talvez eu me suje um pouco, disse ele. Marcia sorriu enquanto abria o porta-malas e retirava de lá uma lanterna Maglite.

- Você quer que a gente fique por aqui? Perguntou, passando para Bosch a pesada lanterna. - Se você escorregar ali e quebrar o tornozelo será só você e os coiotes a noite toda.

- Não, eu vou ficar bem. E, de qualquer forma, eu estou com o meu celular. Além disso, eu gosto de coiotes.

- Tenha cuidado lá. Bosch ficou por perto enquanto eles entravam no carro e saíam.

Verificou o céu de novo e se dirigiu para a trilha pela qual Waits os havia levado naquela manhã. Demorou cinco minutos para chegar ao declive onde tinha acontecido o tiroteio. Bosch ligou a lanterna e por alguns instantes passeou o facho de luz pela área. O lugar fora pisoteado pelo pessoal do legista, pelos investigadores da TEP e pelos técnicos da Polícia Científica. Não havia mais nada para ver. Por fim, ele escorregou pelo declive usando a mesma raiz de árvore que havia usado de manhã para subir. Em mais dois minutos chegou à clareira, agora delineada pela fita amarela da polícia, amarrada em duas árvores em cantos opostos. No centro havia um buraco retangular escavado com pouco mais de um metro de profundidade. Bosch se abaixou para passar sob a fita e entrou no solo sagrado dos mortos ocultos.

 

PARTE TRÊS

SOLO SAGRADO

CAPÍTULO 19

Pela manhã, Bosch estava fazendo café para si e para Rachel quando recebeu o telefonema. Era seu chefe, Abel Pratt.

- Harry, você não vem trabalhar hoje. Acabei de receber a informação. Bosch não se surpreendeu completamente com aquilo.

- De quem?

- Do sexto andar. O pessoal da TEP ainda não concluiu os trabalhos, e, como o assunto está quente na imprensa, eles querem que você fique de fora por alguns dias até saberem onde isso tudo vai parar. Bosch não disse nada.

O sexto andar era onde ficava o departamento administrativo. O “eles” a que Pratt se referia era um grupo de comandantes que só pensavam em conjunto e que se apavoravam todas as vezes que algum caso tinha muita repercussão na TV ou na política, e aquele caso cumpria os dois quesitos. Bosch não ficou surpreso com o telefonema, apenas desapontado. Quanto mais as coisas mudavam, mais elas ficavam na mesma.

- Você viu o noticiário na noite passada? Pratt perguntou.

- Não, eu não assisto ao noticiário.

- Talvez devesse começar a assistir. Agora estamos com Irvin Irving todo ouriçado se metendo nessa confusão, e o alvo dele é você especificamente. Fez um discurso ontem à noite na área sul, dizendo que recontratar você foi um exemplo da incompetência do chefe e da corrupção moral do departamento. Eu não sei o que você fez para esse cara, mas ele realmente tem tesão por você, meu amigo. “Corrupção moral”, isso é puro descontrole.

- É, logo, logo ele vai me culpar por ter hemorroidas. O sexto andar vai me apoiar em relação a ele ou à TEP?

- Ora, Harry, você acha que eu ia estar a par desse tipo de conversa? Eu só recebi um telefonema no qual me mandavam dar um telefonema, entende o que eu digo?

- Entendo.

- Mas veja a questão por este ângulo: com o Irving em cima de você desse jeito, a última coisa que o chefe faria seria se livrar de você, porque isso faria parecer que Irving estava certo. Assim, a forma como eu vejo isso tudo é que eles querem seguir as regras e deixar tudo bem certo antes de fechar o caso. Portanto, aproveite seu período de trabalho em casa e mantenha contato.

- É, e você teve outras notícias sobre Kiz?

- Bom, eles não precisam se preocupar com trabalho em casa para ela. Ela não vai a parte alguma.

- Não foi isso que eu quis dizer.

- Eu sei o que você quis dizer.

- E? Era como tirar o rótulo de uma garrafa de cerveja. Nunca saía tudo de uma vez.

- E eu acho que Kiz pode estar encrencada. Ela estava lá em cima com Olivas quando Waits agiu. A pergunta é: por que ela não atirou nele quando teve oportunidade? É como se ela tivesse ficado apavorada, Harry, e isso significa que pode sobrar para ela nisso tudo. Bosch concordou. A abordagem política de Pratt sobre o caso parecia perfeita. Aquilo fez com que Bosch se sentisse mal. Naquele momento, Rider tinha que lutar para sobreviver. Mais tarde ela iria lutar para manter seu emprego. Ele sabia que, não importando qual fosse a luta, ficaria ao lado dela até o fim.

- Tudo bem, disse ele. - Alguma novidade sobre Waits?

- Nada, meu amigo. Ele sumiu no vento. Provavelmente deve estar no México há essa hora. Se aquele sujeito sabe o que é bom para ele, ele nunca mais vai colocar a cabeça acima do nível do mar.

Bosch não tinha tanta certeza sobre isso, mas não expressou sua discordância. Alguma coisa, algum instinto, lhe dizia que Waits estava na moita, sim, mas que ele não tinha ido muito longe. Ele pensou sobre o metrô da Red Line onde Waits aparentemente tinha desaparecido e as muitas paradas que havia entre Hollywood e o centro da cidade. Lembrou-se da lenda de Reynard, a Raposa, e do castelo secreto.

- Harry. Preciso desligar, disse Pratt. - Você vai ficar bem?

- Sim, claro, estou bem. Obrigado por me contar, chefe.

- Tudo bem, meu amigo. Tecnicamente, você tem que entrar em contato comigo todos os dias até que recebamos a informação de que você está de volta à ativa.

- Pode deixar. Bosch desligou o telefone.

Alguns minutos depois, quando Rachel entrou na cozinha, ele a serviu de café em um copo térmico que veio com o Lexus que ela alugou quando se transferiu para Los Angeles. Ela havia trazido o copo na noite anterior. Estava vestida e pronta para o trabalho.

- Não tenho nada para o café-da-manhã, disse ele. - Se você tiver tempo, podemos ir até o Du-par’s para comer alguma coisa.

- Não, tudo bem. Preciso ir. Ela abriu um pacotinho de adoçante e despejou o conteúdo no café. Abriu a geladeira e tirou uma caixa de leite que trouxera na noite anterior. Acrescentou um pouco de leite ao café e colocou a tampa no copo. - O que foi aquele telefonema que você acabou de receber? Ela perguntou.

- Meu chefe. Eu acabei de ser posto de lado enquanto tudo isso está acontecendo.

- Ah, querido... Ela se aproximou e o abraçou.

- De certa forma, é rotina. A imprensa e a política do caso fazem disso uma necessidade. Vou ter que trabalhar em casa até que o pessoal da TEP encerre o caso e me libere de qualquer delito.

- Você vai ficar bem?

- Já estou bem.

- O que você vai fazer?

- Não sei. Trabalhar em casa não significa que eu tenha só que ficar em casa. Então eu vou até o hospital para ver se eles me deixam conversar um pouquinho com a minha parceira. Depois eu vejo o que faço.

- Quer almoçar comigo?

- Sim, claro, ótima ideia. Eles haviam rapidamente passado para uma fase de bem-estar doméstico que agradava a Bosch. Era quase como se eles não tivessem que conversar. - Escute, eu estou bem. Vá trabalhar e eu tento me encontrar com você perto do horário do almoço. Eu telefono.

- Tudo bem, lhe vejo mais tarde, então. Ela lhe deu um beijo no rosto antes de sair pela porta da cozinha até o abrigo do carro. Ele dissera a ela que usasse o abrigo nos dias em que viesse ficar com ele.

Bosch bebeu mais uma xícara de café na varanda de trás da casa que dava para o Cahuenga Pass. O céu ainda estava claro pela chuva de dois dias atrás. Aquele seria mais um lindo dia no paraíso. Decidiu ir até o Du-par’s sozinho para tomar o café-da-manhã antes de ir ao hospital para ver como estava Kiz. Poderia comprar os jornais, ver o que havia sido relatado sobre os acontecimentos do dia anterior e então levá-los para Kiz, talvez até mesmo lê-los para ela se ela quisesse. Voltou para dentro e decidiu sair com o terno e a gravata que havia vestido naquela manhã antes de receber o telefonema de Pratt. Serviço domiciliar ou não, ele ia agir e se vestir como um detetive. Foi até o armário e da prateleira mais alta tirou uma caixa que continha cópias dos arquivos do caso que ele havia feito quatro anos atrás, quando estava aposentado. Procurou pelos maços de papel até encontrar uma cópia do inquérito de Marie Gesto. Jackson e Ma
rcia iriam ficar com o original, uma vez que agora eram eles que estavam conduzindo a investigação. Bosch decidiu levar a cópia consigo para o caso de precisar de alguma coisa para ler enquanto visitava Rider ou se Jackson ou Marcia telefonassem querendo fazer alguma pergunta.

Desceu a colina e rumou para Ventura Boulevard, seguindo a oeste por ali até Studio City. No Du-par’s comprou exemplares do Los Angeles Times e do Daily News nas caixas na frente do restaurante e entrou, pedindo torradas com manteiga e café no balcão. A história de Beachwood Canyon estava na primeira página dos dois jornais. Ambos exibiam fotos coloridas de Raynard Waits, e os artigos enfatizavam a caçada ao assassino louco, a formação de uma força-tarefa do DPLA e um número de telefone gratuito para qualquer pista que ajudasse a encontrar Waits. Os editores dos jornais provavelmente consideraram esse ângulo mais importante e mais atraente para seus leitores do ponto de vista das vendas do que o assassinato de dois policiais no cumprimento do dever, além de um policial ferido. As histórias continham informações liberadas durante as diversas entrevistas coletivas realizadas no dia anterior, mas poucos detalhes sobre o que realmente havia aconte
cido nas matas que ficam no topo de Beachwood Canyon. Segundo as reportagens, tudo estava sob investigação permanente e as informações estavam sendo guardadas a sete chaves pelos encarregados.

As curtas notas biográficas dos policiais envolvidos no tiroteio e do policial Doolan eram, no máximo, incompletas. Os dois policiais que foram assassinados por Waits eram pais de família. A detetive ferida, Kizmin Rider, havia recentemente se separado de “uma companheira de vida”, uma forma velada de dizer que ela era homossexual. Bosch não reconheceu os nomes dos repórteres nas histórias e pensou que talvez eles não conhecessem bem a rotina policial e não tivessem fontes suficientemente próximas da investigação para revelar detalhes mais apurados sobre o que estava acontecendo. Nas páginas que davam continuidade às reportagens nos dois jornais ele encontrou colunas com comentaristas enfocando a reação política ao tiroteio e à fuga. Os dois jornais citavam diversas autoridades locais que, em sua maioria, afirmavam que era cedo demais para dizer se o incidente de Beachwood iria ajudar ou atrapalhar a campanha de Rick O’Shea. Embora o c
aso dele houvesse degringolado horrivelmente, as reportagens sobre seus esforços abnegados para salvar a policial ferida enquanto um assassino armado estava à solta na mesma área poderiam representar um equilíbrio positivo. Dizia uma dessas autoridades:

Nesta cidade, a política é como os negócios cinematográficos; ninguém sabe de nada. Isso poderia ser a melhor coisa que aconteceria a O’Shea. Poderia ser a pior.

É claro que o oponente de O’Shea, Gabriel Williams, era citado em profusão nos dois jornais, chamando o incidente de uma desgraça imperdoável e colocando toda a culpa em O’Shea. Bosch pensou na fita de vídeo desaparecida e se perguntou o quanto ela valeria para o pessoal que apoiava Williams. “Talvez”, pensou ele, Corvin, o cinegrafista, já a tivesse encontrado. Nos dois jornais Irvin Irving conseguiu dar seus palpites, e, ao fazê-lo, elegeu Bosch como alvo para o epítome daquilo que estava errado no departamento de polícia, algo que Irving, como vereador, iria consertar. Ele disse que Bosch nunca deveria ter sido recontratado pelo departamento no ano anterior, e que Irving, quando era subcomissário, havia feito campanha contra. Os jornais diziam que Bosch estava sob investigação pela divisão de TEP do departamento e que não fora encontrado para comentar. Nenhum dos dois jornais noticiou que a TEP rotineiramente realizava investigações
de todo o tiroteio que envolvia um policial, e assim o que foi apresentado ao público parecia algo incomum e, portanto, suspeito. Bosch reparou que a coluna no Times tinha sido escrita por Keisha Russell, que trabalhara com os casos policiais durante muitos anos antes de finalmente chegar a um nível de exaustão que a levou a pedir uma nova editoria. Acabara indo para política, uma editoria com sua própria alta taxa de exaustão.

Ela havia telefonado e deixado uma mensagem para Bosch na noite anterior, mas ele não estivera com vontade de falar com uma repórter, mesmo que confiasse nela. Ele ainda tinha os números dela programados em seu celular. Na época em que havia feito a cobertura policial, Bosch fora a fonte dela em diversas ocasiões e, em retribuição, ela o ajudara muitas vezes. Ele colocou os jornais de lado e deu as primeiras mordidas na torrada. Seu café tinha açúcar e xarope de bordo, e ele sabia que a grande quantidade de açúcar iria mantê-lo durante o dia. Depois de consumir cerca de metade de sua refeição, ele puxou o celular e ligou para o número da repórter. Ela atendeu imediatamente.

- Keisha., disse ele. - Harry Bosch.

- Harry Bosch, disse ela. - Ora, há quanto tempo!

- Bom, agora que você é uma figurona na cena política...

- Ah, mas agora é política e polícia se encontrando em uma violenta colisão, não é? Por que não retornou o meu telefonema ontem?

- Porque você sabe que não posso comentar sobre uma investigação em andamento, especialmente uma investigação na qual eu esteja envolvido. Além disso, você ligou depois que o meu telefone ficou sem bateria. Só peguei sua mensagem quando cheguei em casa, e provavelmente foi depois do seu horário de fechamento.

- Como está sua parceira? Perguntou ela, trocando a voz brincalhona por um tom sério.

- Está se aguentando.

- E você saiu ileso como foi noticiado?

- No sentido físico, sim.

- Mas não no político.

- Isso mesmo.

- Bom, a história já está no jornal. Ligar para comentar e se defender agora não funciona muito bem.

- Não estou ligando para comentar ou para me defender. Não gosto do meu nome no jornal.

- Ah, então eu já entendi. Você quer falar extraoficialmente e ser o meu “Garganta Profunda” nisso tudo?

- Não exatamente. Ele a ouviu soltando a respiração, frustrada.

- Então por que está ligando, Harry?

- Em primeiro lugar, eu sempre gostei de ouvir a sua voz, Keisha. Você sabe disso. E, em segundo lugar, na área de política, você provavelmente tem linhas diretas com todos os candidatos. Sabe como é, assim você pode conseguir que eles façam um comentário rápido sobre qualquer assunto que aparece em um determinado dia. Certo? Exatamente como aconteceu ontem. Ela hesitou antes de responder, tentando interpretar o rumo que aquela conversa estava tomando.

- Sim, nós somos conhecidos por conseguir encontrar pessoas quando temos que fazer isso. A não ser detetives da polícia mal-humorados. Às vezes esses são um problema. Bosch sorriu.

- Você está certa, disse ele.

- O que nos leva à razão de você estar telefonando.

- Certo. Eu quero o número que me permita falar diretamente com Irvin Irving. Dessa vez a pausa foi mais longa.

- Harry, eu não posso lhe dar esse número. Eu fiquei sabendo em confiança, e se ele descobrir que eu dei...

- Pare com isso. Ele passou em confiança para você e para todos os outros repórteres que cobrem a campanha, e você sabe disso. Ele não saberia quem me deu o número a menos que eu contasse para ele, e eu não vou contar. Você sabe que pode confiar em mim quando digo isso.

- Ainda assim eu não me sinto muito à vontade para fazer isso sem a permissão dele. Se você quiser que eu ligue para ele e pergunte se posso...

- Ele não vai falar comigo, Keisha. Essa é a questão. Se ele quisesse conversar comigo, eu poderia deixar uma mensagem no quartel-general da campanha... Que fica onde mesmo?

- Na Broxton em Westwood. Ainda não me sinto à vontade para lhe dar o número. Bosch pegou rapidamente o Daily News, que estava dobrado na página com a história sobre as consequências políticas. Ele leu a linha de autoria do artigo.

- Tudo bem, bom, talvez Sarah Weinman ou Duane Swierczynski se sintam à vontade para me dar o número. Talvez eles possam querer cobrar um favor de alguém que está no meio disso tudo.

- Tudo bem, Bosch, tudo bem, você não precisa ir falar com eles, ok? Você não tem jeito.

- Eu quero falar com Irving.

- Tudo bem, mas não conte onde você conseguiu o número.

- É óbvio que não. Ela lhe deu o número e ele o memorizou. Prometeu ligar de volta quando tivesse alguma coisa relacionada ao incidente em Beachwood Canyon que pudesse dar a ela.

- Olha, não precisa ser ligado à política, insistiu ela. - Qualquer coisa que tenha a ver com o caso, ok? Eu ainda posso escrever um artigo sobre a polícia se conseguir uma história.

- Entendi Keisha.

- Obrigado.

Ele fechou o telefone e deixou dinheiro para a conta e a gorjeta em cima do balcão. Ao sair do restaurante, reabriu o telefone e apertou as teclas do número que a repórter havia acabado de lhe dar. Irving atendeu depois de seis toques, sem se identificar.

- Irvin Irving?

- Sim, quem é?

- Eu só queria agradecer por você ter confirmado tudo o que eu sempre pensei a seu respeito. Você não passa de um oportunista político e um picareta. Você era assim no departamento e é isso o que você é fora dele.

- É o Bosch? É o Harry Bosch? Quem lhe deu este número?

- Alguém do seu pessoal. Acho que alguém da sua turma não gosta da mensagem que você anda passando.

- Não se preocupe com isso, Bosch. - Não se preocupe com nada disso. Quando eu entrar, você pode começar a contar os dias até que...

Mensagem entregue, Bosch fechou o telefone. Era ótima a sensação de ter dito o que ele acabara de dizer, sem se preocupar se Irving era um oficial superior que podia dizer e fazer qualquer coisa que quisesse sem reação por parte daqueles que ele menosprezava. Satisfeito com sua reação às histórias dos jornais, Bosch entrou no carro e dirigiu até o hospital.

 

CAPÍTULO 20

No final do corredor que levava à UTI, Bosch passou por uma mulher que havia acabado de sair do quarto de Kiz Rider. Ele a reconheceu: era a antiga namorada de Kiz. Eles haviam se conhecido rapidamente alguns anos antes, quando Bosch encontrou Rider por acaso no Playboy Jazz Festival, no Hollywood Bowl. Ele a cumprimentou com um movimento de cabeça quando passou, mas ela não parou para conversar. Ele bateu uma vez na porta do quarto de Rider e entrou. Sua parceira parecia muito melhor do que no dia anterior, mas longe de estar cem por cento. Ela estava consciente e atenta quando Bosch entrou no quarto, e seus olhos seguiram-no até a lateral da cama. Haviam retirado o tubo de sua boca, mas o lado direito de seu rosto estava caído e Bosch imediatamente receou que ela tivesse sofrido um derrame durante a noite.

- Não se preocupe, disse ela, as palavras lentas, arrastadas. - Eles anestesiaram o meu pescoço e atingiu a metade do meu rosto também. Ele apertou a mão dela.

- Tudo bem, disse ele. - Tirando isso, como você está se sentindo?

- Não muito bem. Está doendo, Harry. Doendo para valer. Ele assentiu.

- Entendo.

- Tenho uma cirurgia da mão esta tarde. Isso vai doer também.

- Mas depois você vai começar a se recuperar. Fisioterapia e todas aquelas coisas que vão lhe fazer bem.

- Tomara que sim. Ela parecia estar deprimida, e Bosch não sabia o que dizer. Catorze anos atrás, quando ele tinha mais ou menos a idade dela agora, Bosch acordara no hospital depois de levar um tiro no ombro esquerdo. Ele ainda se lembrava da dor aguda que aparecia sempre que os efeitos da morfina começavam a diminuir.

- Eu trouxe os jornais, disse ele. - Você quer que leia para você?

- Tudo bem. Acho que as notícias não devem ser nem um pouco boas.

- Não, nem um pouco. Ele ergueu a primeira página do Times para que ela pudesse ver a foto de Waits. Então passou a ler a matéria principal e depois a continuação. Ao terminar, olhou para ela. Ela parecia angustiada. - Você está bem?

- Você devia ter me deixado Harry, e ido atrás dele.

- Sobre o que você está falando?

- Na floresta. Você poderia ter alcançado ele. Em vez disso, você me salvou. Agora olha a merda em que você está.

- Faz parte, Kiz. A única coisa em que eu conseguia pensar era em dar um jeito de lhe levar para um hospital. Eu me sinto muito culpado por tudo.

- E do que você se sente culpado?

- De muitas coisas. Quando saí da aposentadoria no ano passado, eu fiz você sair do escritório do chefe para ser minha parceira novamente. Você não estaria lá ontem se...

- Ah, por favor! Cala a porra dessa boca! Ele não se lembrava de ela ter usado esse tipo de linguagem alguma vez antes. Fez o que ela mandou. - Só cala a boca, disse ela. - Chega disso. O que mais você trouxe para mim? Bosch levantou a cópia do inquérito de Gesto.

- Ah, nada. Trouxe este aqui para mim. Para ler se você estivesse dormindo ou coisa assim. É a cópia do arquivo de Gesto que fiz na primeira vez em que me aposentei.

- E o que você vai fazer com isso?

- É o que eu disse, ia dar uma lida nele. Não paro de pensar que nós deixamos passar alguma coisa.

- Nós?

- Eu. Alguma coisa que eu deixei passar. Ultimamente tenho ouvido muito uma gravação de Coltrane e Monk tocando juntos no Carnegie Hall. Ela ficou bem ali, nos arquivos do Carnegie, por uns cinquenta anos até que alguém a encontrou. A questão é a seguinte: o cara que a encontrou tinha que conhecer o som deles para saber o que eles tinham na caixa nos arquivos. - E como isso tem relação com o arquivo de Gesto? Bosch sorriu. Ela estava em uma cama de hospital com dois ferimentos de bala e mesmo assim não se abalava.

- Não sei. Fico pensando que existe alguma coisa aqui e que sou o único que pode encontrá-la.

- Boa sorte. Por que não senta nessa cadeira e lê o seu arquivo? Acho que vou dormir um pouco.

- Tudo bem, Kiz. Vou ficar quieto. Ele tirou uma cadeira que estava encostada na parede e colocou-a perto da cama. Quando sentou, ela falou novamente.

- Eu não vou voltar Harry. Ele olhou para ela. Não era o que queria ouvir, mas não ia contestar. Pelo menos, não naquele momento.

- O que você quiser Kiz.

- Sheila, minha ex-namorada, veio me visitar. Ela viu o noticiário e veio me ver. Disse que vai tomar conta de mim até eu melhorar. Mas ela não quer que eu volte para a polícia. O que explicava o motivo dela não ter falado com Bosch no corredor. - Isso sempre foi um ponto de discórdia entre a gente, sabe?

- Eu me lembro de você ter contado isso uma vez. Escute, você não tem que me contar nada disso agora.

- Mas a questão não é só a Sheila. Sou eu. Eu não devia ser policial. Mostrei isso ontem.

- Sobre o que você está falando? Você é uma das melhores policiais que conheço. Ele viu uma lágrima rolar pelo rosto dela.

- Eu fiquei apavorada lá, Harry. Porra, eu fiquei muito apavorada e deixei que ele... Simplesmente atirasse em mim.

- Não faça isso consigo mesma, Kiz.

- Aqueles homens estão mortos por minha causa. Quando ele agarrou Olivas, eu não consegui me mexer. Só fiquei olhando. Eu devia ter atirado nele, mas fiquei ali parada. Fiquei parada ali e deixei-o atirar em mim em seguida. Em vez de erguer minha arma, eu ergui a mão.

- Não, Kiz. Você não tinha ângulo para atirar nele. Se tivesse disparado, poderia ter atingido Olivas. Depois disso era tarde demais. Ele esperava que ela entendesse que ele estava lhe dizendo o que falar quando o pessoal da TEP aparecesse.

- Não, eu Preciso admitir. Eu...

- Kiz, se você quer sair, tudo bem. Eu apoio sua decisão cem por cento. Mas não vou apoiar essa outra merda. Entende? Ela tentou virar o rosto para o outro lado, mas as ataduras no pescoço a impediram.

- Tudo bem, disse ela. Mais lágrimas apareceram, e Bosch sabia que nela havia feridas mais profundas do que as do pescoço e da mão. - Sabe, você deveria ter ficado por cima, disse ela.

- Sobre o que você está falando?

- Lá no mato, com a escada. Se você estivesse em cima em vez de mim, nada disso teria acontecido. Porque você não teria hesitado, Harry. Você teria arrebentado ele. Bosch balançou a cabeça.

- Ninguém sabe como vai reagir em uma determinada situação até que esteja nessa situação.

- Eu fiquei paralisada.

- Ouça, vá dormir Kiz. Fique melhor e então tome sua decisão. Se você não voltar, eu vou entender. Mas eu sempre vou lhe apoiar Kiz. Não importa o que aconteça ou aonde você vá. Ela usou a mão esquerda para enxugar o rosto.

- Obrigada, Harry. Ela fechou os olhos e ele ficou observando enquanto Kiz finalmente relaxava. Ela murmurou alguma coisa que Bosch não conseguiu entender e em seguida adormeceu.

Bosch ficou olhando para ela e pensou em como seria não tê-la mais como parceira. Eles tinham trabalhado bem juntos, como uma família. Ele ia sentir falta daquilo. Não queria pensar no futuro naquele momento. Abriu a cópia do inquérito e decidiu começar a ler sobre o passado. Começou da primeira página, no relato sobre o crime. Alguns minutos depois, ele tinha acabado aquela parte e estava prestes a começar a ler os relatos das testemunhas quando o telefone começou a vibrar em seu bolso. Saiu do quarto para atender à chamada no corredor. Era o tenente Randolph da Unidade de Tiroteio Envolvendo Policial.

- Lamento termos tirado você da ativa enquanto estamos cuidando disto, disse ele.

- Tudo bem. Eu sei o motivo.

- É, tem muita pressão.

- O que posso fazer por vocês, tenente?

- Eu pensei que você poderia passar aqui pelo Parker Center para dar uma olhada em uma fita de vídeo que conseguimos.

- Vocês conseguiram a fita do cinegrafista de O’Shea? Houve uma pausa antes da resposta de Randolph.

- Nós temos uma fita dele, sim. Não tenho certeza se é uma fita completa, e é isso que quero que você veja. Sabe como é, para nos dizer o que poderia estar faltando. Você pode vir até aqui?

- Estarei aí em 45 minutos.

- Ótimo. Vou esperar. Como está a sua parceira? Bosch se perguntou se Randolph sabia onde ele estava.

- Ela está se aguentando. Eu estou no hospital agora, mas ela ainda está inconsciente.

Ele esperava adiar o máximo possível a entrevista da TEP com Rider. Em alguns dias, depois que tivesse se livrado dos analgésicos e com a mente clara, ela talvez pensasse melhor antes de entregar que havia ficado paralisada quando Waits agiu.

- Estamos esperando para saber quando poderemos entrevistá-la, disse Randolph.

- Eu diria que provavelmente daqui a alguns dias.

- Provavelmente. De qualquer forma, vejo você daqui a pouco. Obrigado por vir até aqui.

Bosch fechou o telefone e voltou para o quarto. Recolheu o inquérito da cadeira onde o havia deixado e deu uma olhada em sua parceira. Ela estava dormindo. Ele saiu do quarto em silêncio. Bosch fez o trajeto em um bom tempo e telefonou a Rachel para dizer que estava tudo certo para o almoço, uma vez que ele ia estar no centro da cidade. Concordaram em ir a um bom restaurante e ela disse que faria reserva no Water Grill para o meio-dia. Ele disse que a encontraria lá. A divisão da TEP ficava no terceiro andar do Parker Center, no extremo oposto à Divisão de Roubos e Homicídios. Randolph tinha um escritório particular com um equipamento de vídeo montado em uma estante. Ele estava sentado atrás da mesa, enquanto Osani mexia no equipamento, preparando-o para rodar a fita. Randolph indicou a Bosch a única cadeira que havia sobrado.

- Quando vocês conseguiram a fita? Perguntou Bosch.

- Foi entregue esta manhã. Corvin disse que levou 24 horas para se lembrar de que a havia colocado em um daqueles bolsos que você mencionou. Isso, é claro, só aconteceu depois que eu lembrei a ele que havia uma testemunha que vira a fita ir parar no bolso.

- E vocês acham que ela foi alterada?

- Vamos ter certeza depois que eu a passar para a DIC, mas, sim, ela foi editada. Encontramos a câmera dele na cena do crime, e o Osani aqui foi esperto o bastante para anotar o número que estava no contador. Quando você roda esta fita, o número do contador não é o mesmo. Estão faltando uns dois minutos de fita. Por que você não a coloca, Reggie?

Osani colocou a fita para rodar e Bosch assistiu o começo, com a reunião de investigadores e técnicos no estacionamento do Sunset Ranch. Corvin esteve perto de O’Shea o tempo todo e havia um fluxo ininterrupto de filme que parecia sempre manter o candidato à Procuradoria no centro. Isso continuou enquanto o grupo seguia Waits dentro da floresta e até que pararam no alto do íngreme declive. E aí ficou claro que havia um corte onde deveria se presumir que Corvin tivesse desligado a câmera e depois ligado novamente. Não havia na fita a discussão sobre se as algemas deveriam ser retiradas dos pulsos de Waits. O vídeo cortava do momento em que Kiz Rider dizia que eles poderiam usar a escada do pessoal da DIC até Cafarelli voltando para o local com a escada. Osani parou a fita para que pudessem conversar.

- É provável que ele tenha desligado a câmera enquanto esperávamos pela escada, disse Bosch. - Isso provavelmente demorou uns dez minutos, no máximo. Mas ele provavelmente não a desligou até depois da discussão sobre as algemas de Waits.

- Você tem certeza?

- Não, estou só supondo. Mas eu não estava de olho em Corvin. Estava de olho em Waits.

- Certo.

- Desculpe por isso.

- Não precisa se desculpar. Não quero que você me dê nada além do que de fato aconteceu.

- Alguma das outras testemunhas confirmou o que eu disse? Eles disseram ter ouvido a discussão sobre tirar as algemas dele?

- Cafarelli, a técnica da DIC, ouviu. Corvin disse que não e O’Shea disse que isso nunca aconteceu. Então ficamos com duas pessoas do DPLA dizendo que sim, e dois da Promotoria dizendo que não. E sem a fita para corroborar qualquer um dos lados. Exemplo clássico de questão controversa.

- E quanto a Maury Swann?

- Ele seria o desempate, a não ser pelo fato de não falar com a gente. Diz que, no interesse de seu cliente, ele não vai se manifestar. Aquilo não surpreendeu Bosch, vindo de um advogado de defesa.

- Tem mais alguma edição que vocês queiram me mostrar?

- É possível. Continue Reggie.

Osani reiniciou o vídeo, que os mostrou descendo a escada e se dirigindo para a clareira onde Cafarelli usou a sonda minuciosamente para marcar a localização do corpo. A filmagem foi ininterrupta. Corvin simplesmente ligou a câmera e filmou tudo, provavelmente com a ideia de que iria editá-la mais tarde se a fita fosse requisitada em alguma audiência no tribunal. Ou possivelmente para um documentário de campanha. A filmagem continuou e documentou o retorno do grupo à escada. Rider e Olivas subiram e Bosch tirou as algemas de Waits. Mas quando o prisioneiro começou a subir pela escada, a filmagem foi cortada no exato momento em que ele atingia os últimos degraus e Olivas estava inclinado para baixo para segurá-lo.

- É isso? Perguntou Bosch.

- É isso, disse Randolph.

- Eu me lembro de que, depois do tiroteio, quando mandei Corvin deixar a câmera e subir para ajudar a carregar a Kiz, ele estava com ela sobre o ombro. Estava filmando.

- É, bom, perguntamos por que a fita terminava, e ele afirmou que achava que ia ficar sem fita. Queria guardar um pouco para quando o pessoal da escavação chegasse para recuperar o corpo. Então desligou a câmera quando Waits estava subindo a escada.

- Isso faz sentido para você?

- Não sei? E para você?

- Nenhum. Acho que isso é bobagem. Ele tinha tudo na fita.

- Isso é só uma opinião.

- Tudo bem, disse Bosch. - A questão é, por que cortar a fita nesse ponto? O que havia nela?

- Diga você. Você estava lá.

- Eu já contei tudo de que consegui me lembrar.

- Bom, é melhor você se lembrar de mais coisas. Você não está muito bem nessa fita.

- Do que você está falando?

- Não aparece na fita a discussão sobre se o sujeito deveria ou não ficar algemado. O que aparece na fita é Olivas tirando as algemas para ele descer e você tirando as algemas para ele subir de volta. Bosch notou que Randolph estava certo e que a fita fazia parecer que ele havia tirado as algemas de Waits sem conversar sobre isso com os outros.

- O’Shea está armando contra mim.

- Eu não sei se alguém está armando para alguém. Deixe-me perguntar uma coisa: quando a merda atingiu o ventilador lá fora e Waits pegou a arma e começou a atirar, você se lembra de ver O’Shea em algum momento? Bosch balançou a cabeça.

- Eu tinha ido parar no chão com Olivas em cima de mim. Estava preocupado em saber onde Waits estava, e não O’Shea. Tudo o que posso dizer é que ele não estava no meu campo de visão. Ele estava em algum lugar atrás de mim.

- Talvez fosse isso que Corvin tinha na fita. O’Shea se afastando correndo como um covarde.

Ao usar a palavra covarde, Randolph ativou alguma coisa em Bosch. Ele agora se lembrava. Lá de cima do declive Waits havia chamado alguém, presumivelmente O’Shea, de covarde. Bosch se lembrou de ouvir o som de alguém correndo atrás de si. O’Shea tinha corrido. Bosch refletiu sobre aquilo. Em primeiro lugar, O’Shea não tinha uma arma para se proteger do homem que ele ia colocar na prisão para sempre. Sem dúvida, correr de uma arma não seria algo inesperado ou irracional. Teria sido um gesto de autopreservação, e não de covardia. Mas, uma vez que O’Shea era candidato ao posto máximo da Promotoria no condado, sair correndo sob quaisquer circunstâncias provavelmente não seria uma boa imagem, especialmente se estivesse em um vídeo no noticiário das seis.

- Estou lembrando agora, disse Bosch. - Waits chamou alguém que correu de covarde. Deve ter sido O’Shea.

- Mistério resolvido, disse Randolph. Bosch voltou a olhar para a tela.

- Podemos voltar a fita e olhar aquela última parte de novo? Perguntou. - Quero dizer, antes do lugar onde houve o corte.

Osani apertou os botões e eles assistiram em silêncio a partir do momento em que as algemas eram tiradas de Waits pela segunda vez.

- Pode dar uma pausa imediatamente antes do corte? Pediu Bosch.

Osani congelou a imagem na tela. Ela mostrava Waits já na metade da escada e Olivas estendendo a mão para baixo para segurá-lo. O ângulo em que o corpo de Olivas estava tinha feito seu blusão se abrir. Bosch pôde ver a arma dele em um coldre do lado esquerdo do quadril, com a presilha aberta para que pudesse tirar a arma com um movimento rápido. Bosch se levantou e chegou mais perto do monitor. Pegou uma caneta e bateu na tela com a ponta.

- Você reparou nisso? Perguntou ele. - Parece que ele estava com a presilha do coldre aberta. Randolph e Osani estudaram a tela. A presilha de segurança do coldre era algo em que obviamente eles não tinham reparado antes.

- Pode ser que ele quisesse estar pronto para o caso de o prisioneiro fazer alguma coisa, disse Osani. - Está dentro das normas.

Nem Bosch nem Randolph responderam. Se aquilo estava ou não dentro das normas do departamento, era uma curiosidade que não podia ser explicada, uma vez que Olivas estava morto.

- Pode desligar Reg, disse Randolph por fim.

- Não, pode passar mais uma vez? Pediu Bosch. - Só essa parte da escada?

Randolph concordou e fez um sinal para Osani, e a fita foi recolocada. Bosch tentou usar as imagens no monitor para recuperar o momento e para conduzi-lo à sua própria lembrança do que acontecera quando Waits chegou ao final da escada. Ele se lembrou de ter olhado para cima, de ter visto Olivas ser virado de forma que suas costas ficassem voltadas para quem estava embaixo e de ter ficado sem visão clara para atirar em Waits. Ele agora se lembrava de ter se perguntado onde estava Kiz e por que ela não tinha reagido. Então houve os tiros e Olivas estava caindo de costas em sua direção. Bosch ergueu as mãos para tentar diminuir o impacto. No chão, com Olivas sobre seu corpo, ele ouviu mais tiros e em seguida a gritaria. A gritaria. Esquecida no meio do pânico e da correria impulsionada por adrenalina. Waits tinha se aproximado da borda do declive e atirado neles. E tinha gritado. Ele chamou O’Shea de covarde por sair correndo. Mas havia dito mais coisas,
além disso. Corra seu covarde! O que você acha daquela merda de acordo agora? Bosch havia esquecido o insulto no meio de toda aquela confusão de tiroteio, fuga e do esforço para salvar Kiz Rider. No meio da carga de medo que surgiu com todos aqueles momentos. O que aquilo significava? O que Waits quis dizer quando se referiu ao trato como “aquela merda de acordo”?

- O que foi? Perguntou Randolph. Bosch olhou para ele, saindo do meio de seus pensamentos.

- Nada. Eu estava tentando me concentrar no que aconteceu nos momentos que não estão na fita.

- Parece que você se lembrou de alguma coisa.

- Eu só me lembrei de como cheguei perto de ser morto como Olivas e Doolan. Olivas caiu em cima de mim. Acabou me servindo de escudo. Randolph concordou com um movimento da cabeça. Bosch queria sair dali. Queria pegar sua lembrança, “O que você acha daquela merda de acordo agora?”, e trabalhar nela. Queria transformá-la em pó e analisá-la no microscópio.

- Tenente, tem mais alguma coisa para mim agora?

- Agora não.

- Então eu vou indo. Pode me ligar se precisar de mim.

- Você me liga quando lembrar daquilo que não consegue agora. Ele lançou para Bosch um olhar de quem sabia das coisas. Bosch desviou o olhar. - Certo.

Bosch saiu do escritório da TEP e foi para o saguão onde ficavam os elevadores. Devia ter saído do prédio naquele momento. Em vez disso, apertou o botão para subir.

 

CAPÍTULO 21

A lembrança do que Waits havia dito mudava as coisas. Para Bosch, aquilo significava que alguma coisa acontecera em Beachwood Canyon e era algo sobre o qual ele não tinha a menor ideia. Seu primeiro pensamento foi recuar e refletir sobre tudo antes de agir. Mas a reunião na TEP lhe dera um motivo para estar no Parker Center e ele planejou aproveitá-lo ao máximo antes de ir embora. Entrou na sala 503, onde ficavam os escritórios da Unidade de Abertos/Não Resolvidos, e foi na direção do nicho onde ficava sua mesa. A sala da divisão estava quase vazia. Deu uma olhada na estação de trabalho que era compartilhada por Marcia e Jackson e viu que eles não estavam lá. Bosch tinha que passar pela porta aberta da sala de Abel Pratt para chegar à sua própria estação de trabalho, então decidiu ser aberto. Colocou a cabeça na entrada e viu o chefe acomodado na sua mesa. Comia uvas-passas que tirava de uma caixinha vermelha que parecia infantil. Fico
u surpreso ao ver Bosch.

- Harry, o que está fazendo aqui? Perguntou ele.

- O pessoal da TEP me chamou para ver o vídeo que o cara que estava com O’Shea fez da excursão a Beachwood.

- Ele filmou o tiroteio?

- Não exatamente. Declarou que a câmera estava desligada. As sobrancelhas de Pratt arquearam.

- Randolph não acredita nele?

- Difícil dizer. O sujeito ficou com a fita até hoje de manhã e parece que ela pode ter sido alterada. Randolph vai mandar para a DIC averiguar. Escuta, pensei que já que estou aqui eu poderia levar algumas pastas de volta para os Arquivos para não ficarem rodando por aí. A Kiz também tinha retirado algumas pastas, e vai demorar um pouco até que ela as retome.

- Acho que isso é uma boa ideia. Bosch assentiu. - Ei, disse Pratt, a boca cheia de passas. - Acabei de receber notícias de Tim e Rick. Eles estão saindo do legista. A autópsia foi esta manhã e eles conseguiram uma identificação. Confirmaram que era Marie Gesto. Por análise de arcada dentária. Bosch assentiu novamente enquanto considerava a inexorabilidade daquela notícia. A busca por Marie Gesto havia acabado.

- Então acho que acabou.

- Eles disseram que você notificaria os pais. Que você queria fazer isso.

- É. Mas provavelmente vou esperar até a noite, quando Dan Gesto voltar do trabalho. Vai ser melhor se os dois, pai e mãe, estiverem juntos.

- Faça como achar melhor. Nós vamos ficar na moita deste lado. Vou ligar para o escritório do legista e pedir para eles não divulgarem até amanhã.

- Obrigado. Tim ou Rick disseram alguma coisa sobre a causa da morte?

- Parece que foi estrangulamento manual. O hióide estava fraturado. Ele tocou na parte da frente do pescoço, caso Bosch não se lembrasse de onde ficava o frágil osso hióide. Bosch só havia trabalhado em uns cem casos de estrangulamento em sua carreira, mas não se deu o trabalho de dizer nada. - Lamento, Harry. Eu sei o quanto você estava ligado a esse caso. Quando começou a tirar a pasta de arquivos a cada dois meses, eu descobri que significava alguma coisa para você. Bosch concordou com a cabeça, mais para si mesmo do que para Pratt.

Foi até sua mesa, pensando na confirmação da identificação do corpo e se lembrando de como, 13 anos atrás, ele estivera quase convencido de que Marie Gesto nunca seria encontrada. Era sempre estranho como as coisas acabavam acontecendo. Ele começou a juntar as pastas relacionadas à investigação de Waits. Marcia e Jackson tinham o inquérito do caso Gesto, mas Bosch não se importou com isso, pois tinha sua própria cópia no carro. Foi até a mesa de sua parceira para juntar o material que ela estava usando sobre Daniel Fitzpatrick, o dono da loja de penhores que Waits disse ter assassinado durante os tumultos de 1992, e viu duas caixas de plástico no chão. Abriu uma delas e viu que ela continha os registros de penhor recuperados da loja incendiada. Bosch se lembrou de Rider ter mencionado aqueles documentos. O cheiro de bolor que saía deles acertou-o em cheio, e ele recolocou a tampa na caixa. Decidiu que iria levar aquelas também, mas isso
significaria passar duas vezes pela porta aberta de Pratt para levar tudo para seu carro, e isso daria duas oportunidades a seu chefe para ser curioso em relação ao que Bosch realmente pretendia fazer. Bosch estava começando a pensar em deixar as caixas para trás quando teve sorte. Pratt saiu de sua sala e veio falar com ele.

- Eu não sei quem resolveu que uvas-passas é um bom alimento para beliscar, disse ele. - Ainda estou com fome. Quer alguma coisa lá de baixo, Harry? Uma rosquinha ou qualquer outra coisa?

- Não, obrigado, estou bem. Vou levar estas coisas até lá e sair daqui. Bosch reparou que Pratt estava segurando um de seus guias, que geralmente ficavam empilhados em sua mesa. Na capa estava escrito Caribe.

- Fazendo pesquisa? Perguntou Bosch.

- É. Dando uma olhada nas coisas. Já ouviu falar de um lugar chamado Nevis?

- Hã-hã. Bosch já tinha ouvido falar de alguns dos lugares sobre os quais Pratt perguntava durante suas pesquisas. - Aqui diz que dá para comprar um velho engenho de açúcar em um terreno de 32 mil metros quadrados por menos de 400 mil. Porra, eu consigo mais do que isso só com a minha casa.

Aquilo era provavelmente verdadeiro. Bosch nunca fora à casa de Pratt, mas sabia que ele possuía uma propriedade em Sun Valley que era grande o bastante para que ele pudesse ter alguns cavalos. Ele morava lá há quase vinte anos e estava sentado sobre uma mina de ouro em termos de valor imobiliário. Mas havia apenas um problema. Algumas semanas atrás, Rider estava em sua mesa e ouviu Pratt ao telefone em sua sala fazendo perguntas sobre guarda de filhos e comunhão de bens. Ela contou a Bosch sobre o telefonema e os dois deduziram que Pratt estava conversando com um advogado especializado em divórcios.

- Você quer produzir açúcar? Perguntou Bosch.

- Não, rapaz, isso era o que a propriedade costumava ser antigamente. Agora você provavelmente a compra, conserta e transforma em uma pensão ou coisa assim. Bosch assentiu com a cabeça. Pratt estava se mudando para um mundo que ele não conhecia e com o qual não se importava. - De qualquer forma, disse Pratt, percebendo que não tinha mais público, - Falo com você mais tarde. E, a propósito, é legal que você tenha vindo bem-vestido para a reunião com o pessoal da TEP. A maioria dos caras que ficam trabalhando em casa teria vindo para cá de jeans e camiseta, parecendo mais um suspeito do que um policial.

- Claro. Tudo bem.

Pratt saiu do escritório, e Bosch esperou trinta segundos até ele pegar o elevador. Colocou uma pilha de pastas dentro de uma das caixas de evidências e saiu com ela. Conseguiu levá-la para baixo até o carro e voltar antes que Pratt voltasse da cantina. Então pegou a segunda caixa e saiu. Ninguém questionou o que ele estava fazendo ou para onde ia com aquele material. Depois de sair do estacionamento, Bosch olhou o relógio e viu que tinha menos de uma hora livre antes do horário que havia marcado com Rachel para almoçar. Não era tempo suficiente para chegar em casa, deixar os documentos lá e voltar, além do mais, isso seria um desperdício de tempo e gasolina. Pensou em cancelar o almoço para poder ir para casa imediatamente e começar a revisar a papelada, mas decidiu não fazer isso, porque Rachel poderia dar bons palpites e talvez até tivesse algumas ideias sobre o que Waits quisera dizer quando gritou durante o tiroteio. Podia também ch
egar mais cedo ao restaurante e começar sua revisão enquanto esperava por ela. Mas sabia que aquilo poderia ser um problema se um freguês ou um garçom por acaso visse alguma das fotos que estavam nos inquéritos. A principal biblioteca da cidade ficava no mesmo quarteirão que o restaurante, e ele decidiu ir para lá. Poderia trabalhar um pouco em um dos cubículos individuais e depois encontrar Rachel a tempo no restaurante.

Depois de estacionar na garagem embaixo da biblioteca, ele carregou os inquéritos dos casos Gesto e Fitzpatrick consigo e tomou o elevador. Dentro das dependências da extensa biblioteca, encontrou um cubículo aberto na sala de obras de referência e começou a trabalhar na revisão dos documentos que havia trazido. Uma vez que havia recomeçado a ler os arquivos de Gesto no quarto de Rider no hospital, decidiu continuar com eles e terminar sua revisão. Folheando o conteúdo do inquérito na ordem em que estavam os documentos e relatórios, ele só chegou à Cronologia de Investigação no final, porque era geralmente a última peça a ser arquivada. Leu rapidamente os formulários 51 e nada que havia sobre as ações de investigação, as pessoas entrevistadas ou os telefonemas recebidos lhe pareceu mais importante do que foram ao serem acrescentados originalmente à cronologia. Então, de repente, ficou perplexo com uma coisa que não tinha vist
o na cronologia. Folheou rapidamente as páginas para trás até que encontrou o formulário 51 do dia 29 de setembro de 1993 e procurou a anotação que fazia referência ao telefonema que Jerry Edgar havia recebido de Robert Saxon.

Não estava lá. Bosch se inclinou para frente para ler o documento mais de perto. Aquilo não fazia sentido. No inquérito oficial o lançamento estava lá. Robert Saxon, o nome falso de Raynard Waits. A data da anotação era 29 de setembro de 1993, e o horário do telefonema foi 18h40. Olivas o encontrara durante sua revisão do caso, e, no dia seguinte, no escritório de O’Shea, Bosch o tinha visto claramente. Ele o examinara com cuidado, sabendo que era a confirmação de um erro que possibilitara a Waits mais 13 anos de liberdade para matar. Mas a anotação não estava na cópia do inquérito que estava com Bosch.

Mas que diabo era aquilo? A princípio Bosch não conseguiu entender. A cópia da cronologia à sua frente fora feita quatro anos antes, quando Bosch decidira se aposentar. Ele havia secretamente feito cópias dos inquéritos de diversos casos abertos que ainda o corroíam por dentro. Eram os seus casos para a aposentadoria. Seu plano tinha sido o de trabalhar neles por conta própria e quando quisesse, para resolvê-los antes que finalmente pudesse abandonar a missão e poder se sentar em uma praia no México com uma vara de pescar em uma das mãos e uma Corona na outra. Mas as coisas não funcionavam daquele jeito. Bosch havia aprendido que a missão era mais bem realizada com um distintivo e voltara ao trabalho. Depois de ser nomeado com Rider para a Unidade de Abertos/Não Resolvidos, um dos primeiros inquéritos de assassinato que ele havia tirado dos Arquivos fora o caso Gesto. A pasta que havia retirado continha os arquivos de investigação que eram
atualizados cada vez que ele ou qualquer outra pessoa trabalhavam com eles. O que tinha na sua frente era uma cópia que havia ficado em uma prateleira de seu armário e que há quatro anos não era atualizada. Mesmo assim, como é que um podia ter uma anotação em formulário 51 em 1993 e o outro não ter? A lógica daquilo ditava apenas uma resposta. O registro oficial da investigação tinha sido alterado. A anotação que continha o nome de Robert Saxon fora acrescentada depois que Bosch havia feito sua cópia do inquérito.

É claro que a falsa anotação poderia ter sido acrescentada no espaço de quatro anos, mas o bom senso dizia a Bosch que ele estava lidando com dias, e não anos. Poucos dias atrás, Freddy Olivas havia ligado para ele querendo saber onde estava o inquérito. Olivas pegou-o e foi ele quem descobriu a anotação sobre Robert Saxon. Fora Olivas que chamara a atenção para aquilo. Bosch folheou a cronologia. Quase todas as páginas que correspondiam às datas da investigação inicial estavam completamente preenchidas com anotações que traziam data e hora. Apenas a página de 29 de setembro tinha um espaço na parte inferior da folha. Aquilo teria possibilitado que Olivas retirasse a página da pasta, datilografasse a anotação sobre Saxon e a recolocasse em seu lugar, armando a base para sua suposta descoberta dessa ligação entre Waits e Gesto. Em 1993, Bosch e Edgar preenchiam os formulários 51 em uma máquina de escrever na sala da divisã
o de Hollywood. Agora tudo era feito em computadores, mas ainda havia muitas máquinas de escrever na maioria das salas de esquadrão para os policiais da velha guarda, como Bosch, que não conseguiam aceitar muito bem a ideia de trabalhar em um computador.

Bosch sentiu uma pesada mistura de alívio e raiva tomando conta de si. O fardo da culpa pelo erro que ele e Edgar supostamente haviam cometido estava desaparecendo. Eles estavam livres e ele precisava contar aquilo para Edgar assim que pudesse. Mas não conseguiu aproveitar a sensação, ainda não, devido à crescente raiva que sentia por ter sido enganado por Olivas. Levantou-se e saiu do cubículo. Saiu da sala de obras de referência e foi para a área da rotunda principal da biblioteca, onde um mosaico circular no alto das paredes contava a história da fundação da cidade. Bosch sentia vontade de gritar alguma coisa, de exorcizar seus demônios interiores, mas ficou em silêncio. Um segurança passou andando rapidamente pelo piso da estrutura semelhante a uma caverna, talvez a caminho de prender algum ladrão de livros ou um exibicionista no meio das estantes. Bosch observou-o passar e então voltou ao trabalho.

De volta ao cubículo, tentou refletir sobre o que havia acontecido. Olivas tinha adulterado o inquérito, datilografando uma anotação de duas linhas na cronologia que faria Bosch acreditar que havia cometido um erro enorme nos estágios iniciais da investigação. A anotação dizia que Robert Saxon havia telefonado para relatar que vira Marie Gesto no Supermercado Mayfair na tarde em que ela havia desaparecido. E mais nada. Para Olivas, o conteúdo do telefonema não fora importante, e sim a identidade de quem havia ligado. De alguma maneira, Olivas quis implicar Raynard Waits naquele inquérito. Por quê? Para colocar Bosch em algum estado de culpa que possibilitaria a Olivas assumir o controle da atual investigação? Bosch descartou essa hipótese. Olivas já tinha o controle. Ele era o principal investigador no caso Waits, e a presença de Bosch há tanto tempo na investigação do caso Gesto não iria mudar isso. Bosch estava envolvido, é cla
ro, mas não era ele quem dava as cartas. Era Olivas quem estava na frente, e, portanto, plantar o nome de Robert Saxon não era necessário. Tinha que haver outro motivo.

Bosch pensou por um tempo naquilo, mas chegou apenas à fraca conclusão de que Olivas precisava ligar Waits a Gesto. Ao colocar o nome falso do assassino no inquérito, ele recuava 13 anos no tempo e estabelecia uma firme ligação entre Raynard Waits e Marie Gesto. Mas Waits estava prestes a confessar que havia assassinado Gesto. Não podia haver ligação mais forte do que uma confissão espontânea. Ele ia até mesmo levar as autoridades ao corpo. A notação na cronologia seria uma conexão menor se comparada a essas duas. Então, por que colocá-la no inquérito? No final das contas, Bosch estava confuso pelo risco que Olivas havia assumido. Ele havia alterado o registro oficial de uma investigação de assassinato aparentemente por um motivo insignificante. Arriscara-se a Bosch descobrir a farsa e desmascará-lo. Correra o risco de a farsa possivelmente ser revelada nalgum dia por um advogado esperto como Maury Swann no tribunal. E fez tudo isso sa
bendo que não precisaria fazê-lo, sabendo que Waits estaria firmemente ligado ao caso com uma confissão. Agora Olivas estava morto e não podia ser confrontado. Não havia ninguém para explicar o porquê. A não ser Raynard Waits. O que você acha daquela merda de acordo agora? E talvez Rick O’Shea.

Bosch pensou sobre todas aquelas coisas e em um instante tudo se juntou. Bosch de repente notou por que Olivas havia se arriscado e colocado o espectro de Raynard Waits no inquérito de Marie Gesto. Percebeu com uma clareza que não deixava espaço para dúvida. Raynard Waits não matara Marie Gesto. Levantou-se de um pulo e começou a reunir os arquivos. Segurando-os com as duas mãos, correu pela biblioteca em direção à saída. Seus passos ecoavam atrás dele no grande salão como se uma multidão estivesse atrás dele. Bosch olhou para trás, mas não havia ninguém.

 

CAPÍTULO 22


Bosch havia perdido a noção do tempo na biblioteca. Estava atrasado. Rachel já estava sentada e esperava por ele. Segurava um cardápio grande que ocultava a expressão de aborrecimento em seu rosto, enquanto Bosch era levado até a mesa por um garçom.

- Desculpe, disse Bosch enquanto sentava.

- Tudo bem, respondeu ela. - Mas eu já fiz o meu pedido. Eu não sabia se você ia aparecer ou não. Ela passou o cardápio para ele. No mesmo instante, ele o devolveu para o garçom.

- Vou querer a mesma coisa que ela, disse ele. - E por enquanto só água está bem. Ele bebeu do copo que já estava cheio enquanto o garçom se afastava rapidamente. Rachel sorriu para ele, mas não de maneira simpática.

- Você não vai gostar. É melhor chamá-lo novamente.

- Por quê? Eu gosto de frutos do mar.

- Porque eu pedi sashimi. Outro dia você me contou que não gosta de frutos do mar crus. A notícia lhe trouxe uma pausa momentânea, mas ele decidiu pagar pelo erro de ter chegado tarde.

- Vai tudo para o mesmo lugar, disse ele, colocando de lado o assunto. - Mas por que chamam este lugar de Water Grill se não colocam a comida na grelha?

- Boa pergunta.

- Vamos esquecer isso. Precisamos conversar. Preciso de sua ajuda, Rachel.

- Com o quê? O que aconteceu?

- Acho que Raynard Waits não matou Marie Gesto.

- Como assim? Ele levou vocês até o corpo. Você está dizendo que não era Marie Gesto?

- Não, a identidade foi confirmada hoje na autópsia. Não há dúvida de que era Marie Gesto naquele túmulo.

- E foi Waits quem levou vocês até lá, certo?

- Certo.

- E foi Waits quem confessou tê-la matado, certo?

- Certo.

- Segundo a autópsia, a causa da morte estava de acordo com essa confissão?

- Sim, pelo que eu ouvi, estava.

- Então, Harry, o que você disse não faz sentido. Com tudo isso, como ele pode não ser o assassino?

- Porque está acontecendo alguma coisa sobre a qual não sabemos, sobre a qual eu não sei. Olivas e O’Shea tinham alguma jogada que o envolvia. Não tenho certeza sobre o que era, mas tudo acabou dando merda em Beachwood Canyon. Ela ergueu as duas mãos em um gesto que dizia “pode parar”.

- Por que você não começa do começo? Conte-me apenas os fatos. Sem teorias, sem conjecturas. Conte apenas o que você tem.

Ele contou tudo a ela, começando com a adulteração do inquérito por Olivas e concluindo com um relato detalhado do que havia acontecido quando Waits começou a subir a escada em Beachwood Canyon. Ele contou o que Waits havia gritado para O’Shea e o que fora tirado do vídeo da excursão. Ele precisou de 15 minutos para fazer isso, e nesse tempo o almoço foi servido. É claro que veio rápido, pensou Bosch. Não precisou ser cozido! Sentiu-se com sorte por ser ele quem estava falando. Aquilo lhe dava uma boa desculpa para não comer o peixe cru que fora colocado na sua frente. Quando terminou de recontar a história, pôde ver que a mente de Rachel já estava trabalhando em todas aquelas informações. Ela estava processando tudo.

- Não faz sentido colocar Waits no inquérito, disse ela. - Tudo bem, cria a conexão dele com o caso, mas ele já estaria envolvido por conta de sua confissão e o fato de ele levar vocês até o corpo. Então, por que se importar com o inquérito? Bosch se inclinou sobre a mesa para responder.

- Por duas coisas. Número um, Olivas achou que talvez precisasse nos vender a confissão. Ele não tinha a menor ideia de se eu seria capaz de achar furos nela, então quis ter algum tipo de garantia. E colocou Waits no arquivo. E me colocou em uma posição de estar pré-condicionado a acreditar na confissão.

- Ok, e número dois?

- É aí que a coisa fica complicada, disse ele. - Colocar Waits no inquérito era uma maneira de me pré-condicionar, mas também de me tirar da jogada. Ela olhou para ele, mas o que ele dizia não fazia sentido.

- É melhor você explicar isso.

- É aqui que deixamos os fatos conhecidos de lado e falamos sobre o que eles poderiam significar. Teorias, conjecturas, seja lá que nome você dê. Olivas colocou aquela informação na cronologia e em seguida jogou aquilo na minha cara. Ele sabia que se eu a visse e acreditasse nela, iria acreditar que eu e meu parceiro havíamos feito uma tremenda besteira lá em 1993, que eu iria acreditar que pessoas morreram em consequência desse erro. O peso de todas aquelas mulheres que Waits matou desde aquela época estaria sobre mim.

- Ok.

- E isso iria me ligar a Waits em um nível emocional de ódio puro. Sim, eu procurei o cara que matou Marie Gesto durante 13 anos. Mas acrescentar à situação todas aquelas outras mulheres, colocando as mortes delas nas minhas costas, iria fazer com que as coisas chegassem ao limite quando eu me encontrasse cara a cara com ele. Isso iria me distrair.

- Distrair em relação a quê?

- Em relação ao fato de que Waits não a matou. Ele estava confessando o assassinato de Marie Gesto, mas ele não a matou. Ele fez algum tipo de acordo com Olivas e provavelmente com O’Shea para assumir a culpa dessa morte porque ele já ia ser acusado por todas as outras. Eu estava tão transtornado por meu ódio que não via o que estava na minha frente. Eu não estava prestando atenção nos detalhes, Rachel. Tudo o que eu queria fazer era subir na mesa e enforcar aquele sujeito.

- Você está se esquecendo de uma coisa.

- Do quê? Agora foi a vez dela de se inclinar sobre a mesa, mantendo a voz baixa para não perturbar os outros clientes.

- Ele levou você ao corpo. Se não a matou, como sabia o caminho no meio do mato? Como é que levou vocês exatamente até ela? Bosch concordou com a cabeça. Aquela era uma boa pergunta, mas ele já havia pensado na resposta.

- Não é impossível. Ele poderia ter sido instruído em sua cela por Olivas. Poderia ser algum truque tipo João e Maria, uma trilha marcada de tal forma que apenas ele notaria os marcadores. Vou voltar a Beachwood esta tarde. Meu palpite é que desta vez, olhando com cuidado, vou encontrar esses marcadores. Bosch estendeu a mão, pegou o prato vazio dela e trocou pelo seu, que estava cheio. Ela não fez objeção.

- Então você está dizendo que toda a excursão foi algo armado para convencer você, disse ela. - Que Waits recebeu informações básicas sobre o assassinato de Marie Gesto e apenas as regurgitou durante a confissão, depois alegremente levou vocês, como se fosse Chapeuzinho Vermelho andando pela floresta, até o local onde ela estava enterrada. Ele assentiu.

- É, é isso o que estou dizendo. Quando se resume tudo nesses termos, soa um pouco forçado, eu sei, mas...

- Mais que um pouco.

- O quê?

- Mais que um pouco forçado. Para começar, como Olivas sabia os detalhes para passar para Waits? Como ele sabia onde ela estava enterrada para poder marcar a trilha para que Waits a seguisse? Você está dizendo que Olivas matou Marie Gesto? Bosch balançou a cabeça enfaticamente. Achou que ela estava exagerando um pouco naquela lógica de advogada do diabo e começou a ficar aborrecido.

- Não, eu não estou dizendo que Olivas era o assassino. Estou dizendo que o assassino chegou até ele. Ele e O’Shea. O verdadeiro assassino foi até eles e fez algum tipo de acordo.

- Harry, isso parece tão... Ela não terminou a frase. Remexeu o sashimi no prato com os pauzinhos, mas comeu muito pouco. O garçom aproveitou o momento para se aproximar da mesa.

- A senhora não gostou do seu sashimi? Perguntou ele com a voz trêmula.

- Não, eu... Ela parou ao notar que tinha o prato quase cheio à sua frente. - Acho que eu não estava com muita fome.

- Ela não sabe o que está perdendo, disse Bosch, sorrindo. - Eu achei delicioso. O garçom tirou os pratos da mesa e disse que voltaria com o cardápio de sobremesas.

- “Achei delicioso”, disse Walling em tom de zombaria. - Seu tonto.

- Desculpe. O garçom trouxe o cardápio de sobremesa, mas ambos recusaram e pediram café. Walling permaneceu em silêncio depois disso, e Bosch decidiu esperar que ela falasse.

- Por que agora? Perguntou ela por fim. Bosch balançou a cabeça.

- Eu não sei exatamente.

- Quando foi a última vez que você pegou o caso e trabalhou de fato nele?

- Uns cinco meses atrás. O último vídeo que mostrei a você naquela noite... Aquela foi a última vez em que trabalhei nele. Eu estava prestes a fazer uma outra tentativa.

- O que você fez além de voltar a Garland novamente?

- Tudo. Falei com todo mundo. Bati em todas as mesmas portas novamente. Eu só cheguei a Garland no final.

- Você acha que foi Garland que falou com Olivas?

- Para Olivas e talvez para O’Shea fazerem um acordo, precisaria ser alguém com cacife. Muito dinheiro e poder. Os Garlands têm as duas coisas. O garçom trouxe o café e a conta. Bosch colocou um cartão de crédito sobre ela, mas o garçom já tinha ido embora.

- Você não quer rachar, pelo menos? Rachel perguntou. -Você nem comeu.

- Tudo bem. Ouvir o que você tem para dizer faz valer a pena.

- Aposto que você diz isso para todas as garotas.

- Só para as que são agentes federais. Ela balançou a cabeça. Ele viu a dúvida voltando nos olhos dela. - Que foi?

- Não sei, só que...

- Só o quê?

- E se você examinar a questão pela perspectiva de Waits?

- E?

- É algo tão improvável, Harry. É como uma daquelas conspirações idiotas. A pessoa pega todos os fatos a posteriori e os reordena de modo que se encaixem a alguma teoria forçada. Marilyn Monroe não morreu de overdose; os Kennedys usaram a máfia para matá-la. Coisas desse tipo.

- E quanto à perspectiva de Waits?

- O que estou me perguntando é: por que ele faria isso? Por que ele confessaria um assassinato que não cometeu? Bosch fez um gesto de recusa com as duas mãos, como se estivesse afastando alguma coisa de si.

- Essa é fácil, Rachel. Ele faria isso porque não tinha nada a perder. Ele já estava preso como o Homem do Saco de Echo Park. Se ele fosse a julgamento, com certeza iria ganhar uma injeção de suco do além, como Olivas lembrou a ele no outro dia. Assim, sua única chance de viver era confessar seus crimes; e se, digamos, o investigador e o promotor quisessem que ele acrescentasse mais um assassinato, o que Waits iria dizer a respeito? Sem acordo? Não se engane, eles estavam com a vantagem, e se dissessem a Waits para pular, ele teria concordado e dito: “Em quem?” Ela concordou. - E havia mais uma coisa, acrescentou Bosch. - Ele sabia que haveria uma excursão e aposto que isso lhe deu esperança. Ele sabia que poderia ter uma chance de escapar. Depois que lhe disseram que ele iria à frente mostrando o caminho pela floresta, essa chance se ampliou e sem dúvida a cooperação dele ficou melhor. Toda sua motivação era provavelmente a de ir junto
na excursão. Ela concordou novamente.

Ele não sabia dizer se a convencera de alguma coisa. Ficaram em silêncio por um longo momento. O garçom apareceu e levou o cartão de crédito. O almoço tinha acabado.

- Então o que você vai fazer? Ela perguntou.

- Como eu lhe disse, a próxima parada é Beachwood Canyon. Depois disso eu vou atrás do homem que pode explicar tudo para mim.

- O’Shea? Ele nunca vai falar com você.

- Eu sei. É por isso que não vou falar com ele. Pelo menos, ainda não.

- Você vai atrás de Waits? Ele conseguiu ouvir um tom de dúvida na voz dela.

- Isso mesmo.

- Ele já sumiu há muito tempo, Harry. Você acha que ele ia ficar por aí? Ele matou dois policiais. A expectativa de vida dele em Los Angeles é zero. Você acha que ele iria ficar por aí quando cada pessoa com uma arma e um distintivo no país está procurando por ele com licença para matar? Ele balançou a cabeça lentamente.

- Ele ainda está por aqui, disse Bosch com convicção. - Tudo o que você disse está certo, mas você se esqueceu de uma coisa. Ele tem a vantagem agora. Passou a ter quando escapou. E, se for esperto, e parece que é, ele vai usá-la. Ele vai ficar por aí e vai usar O’Shea ao máximo.

- Você está pensando em chantagem?

- Qualquer coisa. Waits tem a verdade. Ele sabe o que aconteceu. Se ele puder fazer com que acreditem que ele representa um perigo para O’Shea e toda sua máquina política, e se ele conseguir entrar em contato com O’Shea, ele agora poderá fazer o candidato pular. Ela concordou.

- Você levantou uma boa questão sobre ter vantagem, disse ela. - E se essa sua grande conspiração tivesse acontecido como planejado? Sabe como é, Waits é punido por Gesto e todas as outras e vai para Pelican Bay ou San Quentin para cumprir prisão perpétua. Então os conspiradores têm esse cara sentado em uma cela e ele tem todas as respostas, e a vantagem. Ele ainda é um perigo para O’Shea e para toda sua máquina política. Por que o futuro Procurador do condado de Los Angeles iria se colocar nessa posição?

O garçom trouxe o cartão de crédito de volta com o recibo. Bosch acrescentou a gorjeta e assinou-o. Aquele tinha sido o almoço mais caro que ele não comeu. Ele ergueu os olhos para Rachel quando acabou de assinar o recibo.

- Boa pergunta, Rachel. Eu não sei a resposta exata para ela, mas suponho que O’Shea ou Olivas, ou alguém, tinha um plano para uma solução final. E talvez tenha sido por esse motivo que Waits decidiu fugir. Ela franziu a sobrancelha.

- Ninguém vai convencer você do contrário, não é?

- Ainda não.

- Bem, boa sorte. Acho que você vai precisar.

- Obrigado, Rachel. Ele se levantou e ela também.

- Você deixou seu carro com o manobrista? Ela perguntou.

- Não, parei na garagem da biblioteca. Aquilo significava que eles iam sair do restaurante por portas diferentes. - Vejo você esta noite? Perguntou ele.

- Se eu não ficar retida. Ficamos sabendo sobre um caso que está chegando do quartel-general de Washington. Que tal se eu telefonar para você? Ele respondeu que tudo bem e caminhou com ela até a porta que levava para a garagem onde os manobristas aguardavam. Abraçou-a e se despediu.

 

CAPÍTULO 23

Saindo do centro, Bosch subiu a Hill Street até a Caesar Chávez e virou à esquerda. Ela logo se tornou a Sunset Boulevard e ele dirigiu através dela até Echo Park. Ele não estava esperando ver Raynard Waits atravessando um farol ou saindo de uma clínica médica ou de um dos escritórios da imigração que se enfileiravam pela rua. Mas Bosch estava se baseando totalmente em seus instintos nesse caso, e eles lhe diziam que Echo Park ainda estava no jogo. Quanto mais dirigia, mais entendia o bairro e melhor seria sua busca. Com instintos ou sem eles, de uma coisa estava certo. Waits tinha sido preso inicialmente quando estava a caminho de um lugar específico em Echo Park. Bosch ia encontrá-lo. Parou em uma área de estacionamento proibido perto de Quintero Street e caminhou até o restaurante Pescado Mojado. Pediu camarones a la diabla e mostrou a foto de Waits para o homem que anotou seu pedido e para os fregueses que estavam esperando na fila. Recebeu
o costumeiro balanço da cabeça de cada um deles, e a conversa em espanhol desapareceu gradualmente. Bosch levou seu prato de camarões para uma mesa e comeu rapidamente.

Do Echo Park ele foi para casa trocar o terno por jeans e um moletom. Então pegou o carro novamente e foi a Beachwood Canyon, subindo até o topo da colina. A área do estacionamento abaixo da Sunset Ranch estava vazia, e Bosch se perguntou se toda a atividade e a atenção da mídia no dia anterior haviam afastado os cavaleiros. Saiu do carro e abriu o porta-malas. Tirou de lá uma corda enrolada de 10 metros de comprimento e entrou no mato pela mesma trilha na qual seguira Waits no dia anterior. Dera apenas alguns passos dentro da trilha quando seu celular começou a vibrar. Ele parou, pegou o telefone do bolso do jeans e viu na tela que a chamada era de Jerry Edgar. Bosch havia deixado uma mensagem para ele mais cedo, antes de ir para casa.

- Como está a Kiz?

- Está melhorando. Você devia visitá-la, cara. Devia passar por cima de todas as suas desavenças e ir visitá-la. Você nem mesmo telefonou ontem.

- Não se preocupe, eu vou fazer isso. Na verdade, estava pensando em sair mais cedo daqui e dar uma passada por lá. Você vai estar lá?

- Talvez. Ligue pra mim quando estiver indo e vou tentar encontrar você lá. De qualquer forma, não foi realmente por isso que liguei. Tenho algumas coisas para lhe contar. Em primeiro lugar, eles confirmaram a identidade na autópsia hoje. Era Marie Gesto. Edgar ficou em silêncio por um instante antes de responder.

- Você já falou com os pais dela?

- Não, ainda não. O Dan tem aquele emprego de vendedor de tratores. Eu ia ligar para lá à noite, depois que ele já tiver voltado e eles estiverem juntos.

- Isso é o que eu faria. Que mais você tem Harry? Tenho um sujeito em uma sala aqui e estou prestes a entrar lá e arrebentar o traseiro dele por um caso de estupro seguido de homicídio em que estamos trabalhando.

- Desculpe interromper. Pensei que você tivesse me telefonado.

- Eu telefonei cara, mas eu estava retornando a sua ligação rapidinho caso fosse alguma coisa importante.

- É importante. Pensei que você gostaria de saber: acho que aquela anotação que foi encontrada nos formulários 51 desse caso foi falsificada. Acho que quando tudo se resolver, vamos ficar livres disso. Dessa vez não houve hesitação na resposta de seu antigo parceiro.

- O que você está dizendo? Que Waits nunca nos ligou naquela época?

- Isso mesmo.

- Então como é que a anotação apareceu na cronologia?

- Alguém a colocou lá. Recentemente. Alguém tentando me ferrar.

- Merda! Bosch conseguia ouvir a raiva e a sensação de alívio na voz de Edgar. - Eu não durmo desde que você me ligou contando essa merda, Harry. Eles não ferraram só você, meu chapa.

- Foi o que imaginei. Foi por isso que liguei. Ainda não consegui compreender tudo, mas é isso o que está parecendo. Quando eu conseguir toda a história, eu passo para você. Agora volta para a sua entrevista e acerta o sujeito.

- Harry, meu chapa, você ganhou o meu dia. Eu vou entrar naquela sala e mastigar os ossos daquele babaca.

- É bom ouvir isso. Liga pra mim se você for ver a Kiz.

- Pode deixar.

Mas Bosch sabia que Edgar estava só falando da boca para fora. Ele não ia visitar Kiz, muito menos estava no meio de um caso importante como havia dito. Depois de fechar e guardar o telefone, Bosch olhou ao seu redor e examinou os arredores. Olhou para cima e para baixo, do chão para a copa das árvores, e não viu quaisquer marcas óbvias. Pensou que não teria havido necessidade de uma trilha com marcas enquanto Waits estivera na trilha bem definida. Se houvesse marcadores do caminho, eles estariam no fundo do declive. Ele foi naquela direção.

No topo do precipício, passou a corda ao redor do tronco do carvalho branco que havia ali e conseguiu descer a superfície íngreme até o nível mais baixo. Deixou a corda no lugar e mais uma vez avaliou a área do chão até a copa das árvores. Não viu nada que pudesse marcar claramente o caminho para o local da sepultura, onde Marie Gesto tinha sido encontrada. Começou a andar até aquele local, procurando talhos nos troncos das árvores, fitas em galhos, qualquer coisa que Waits pudesse ter usado para marcar o caminho. Bosch chegou ao local do túmulo sem ver uma única indicação de uma trilha marcada. Ficou desapontado. A ausência de descobertas ia contra a teoria que ele havia exposto para Rachel Walling. Mas Bosch tinha certeza de que estava certo em seu raciocínio e se recusou a acreditar que não havia uma trilha. Pensou que era possível que quaisquer marcas que tivesse havido por ali pudessem ter sido pisoteadas e apagadas pelo exérc
ito de investigadores e técnicos que havia aparecido por ali no dia anterior.

Recusando-se a desistir, voltou para o declive e então se virou e olhou na direção do local do túmulo. Tentou posicionar sua mente. Waits havia entrado ali. Ele nunca havia estado naquele local antes, mas tinha que escolher prontamente uma direção para seguir enquanto todos os outros o observavam. Como será que ele fez? Bosch ficou imóvel, pensando e olhando para a floresta na direção do local do túmulo. Não se moveu durante uns cinco minutos. Em seguida encontrou a resposta. A meia distância na linha de visão que conduzia ao local do túmulo havia um eucalipto alto. Ele se dividia no nível do solo e dois troncos completamente desenvolvidos se erguiam a pelo menos 15 metros através da cobertura de outras árvores. Na divisão, a cerca de 3 metros do chão, estava um galho que havia caído e ficado preso entre os troncos. A formação composta pelo tronco dividido e aquele galho criava uma letra A invertida que era claramente reconhecí
vel e poderia ser notada rapidamente por alguém que estivesse olhando a floresta e procurando especificamente por ela.

Bosch caminhou na direção do eucalipto, certo de ter encontrado o primeiro marcador que Waits tinha seguido. Quando chegou à posição, ele olhou novamente na direção do local do túmulo. Perscrutou vagarosamente a paisagem até que mais uma vez notou uma irregularidade que era óbvia e singular em relação à adjacência imediata. Caminhou em direção a ela. Era um jovem carvalho da Califórnia. O que o tornou notável para Bosch de longe foi o fato de estar sem seu equilíbrio natural. Ele havia perdido a ramificação simétrica de seus galhos porque lhe faltava um dos galhos mais baixos. Bosch andou até ele e olhou para um toco quebrado no tronco onde um galho de uns 10 centímetros de espessura estivera preso a cerca de 2 metros e meio de altura. Segurando-se a um galho mais baixo e se erguendo sobre a árvore, ele conseguiu examinar mais de perto o local quebrado e descobriu que a quebra não fora natural. O toco mostrava um corte liso
na parte de cima do galho. Alguém havia serrado o galho perto do tronco e depois puxado para quebrá-lo. Bosch não era especialista em poda, mas achou que o corte e a parte quebrada pareciam ter sido feitos recentemente. A parte exposta da madeira estava clara e não havia indicação de novo crescimento ou de restauração natural. Bosch voltou ao chão e olhou ao seu redor. O galho retirado não estava à vista em parte alguma. Fora levado embora para não ser notado e não causar suspeita. Para ele, aquilo era mais uma prova de que haviam deixado uma trilha marcada para Waits seguir.

Ele se virou e olhou na direção da última clareira. Estava a menos de 20 metros do local do túmulo, e conseguiu facilmente determinar o que ele acreditava ser o último marcador. No alto de um carvalho que fazia sombra sobre o local do túmulo havia um ninho que parecia ser a casa de algum pássaro grande, uma coruja ou um falcão. Ele andou até a clareira e olhou para cima. A faixa de cabelo que, segundo Waits, marcava o lugar tinha sido removida pelo pessoal da Polícia Científica. Olhando mais acima na árvore, Bosch não conseguiu ver o ninho de onde estava. Olivas havia planejado tudo muito bem. Ele havia usado três marcadores que podiam ser reconhecidos apenas a distância. Nada que atraísse um segundo olhar daqueles que estavam seguindo Waits, e, no entanto eram três marcadores que poderiam facilmente levá-lo ao local do túmulo. Quando seus olhos baixaram para o túmulo aberto a seus pés, ele se lembrou de que havia reparado em uma per
turbação no solo no dia anterior. Ele havia atribuído isso a algum animal que remexera a terra. Agora ele acreditava que a perturbação fora deixada pela primeira escavação do solo para confirmar o local do túmulo.

Olivas estivera ali antes de qualquer um deles. Ele fora até lá para marcar a trilha e para confirmar o local do túmulo. Ou alguém lhe contou onde ficava o túmulo, ou ele tinha sido levado até lá pelo verdadeiro assassino. Bosch há alguns segundos olhava fixamente para o túmulo e reconstituía o cenário até que notou que estava ouvindo vozes. Pelo menos dois homens conversavam, o som de suas vozes se aproximando. Bosch podia ouvi-los se movendo pelo mato, suas passadas pesadas sobre a lama e as folhas caídas. Eles estavam vindo da mesma direção da qual Bosch viera. Ele se moveu rapidamente pela pequena clareira e se escondeu atrás do enorme tronco de um carvalho. Esperou e logo soube que os homens haviam atingido a clareira.

- Bem aqui, disse a primeira voz. - Ela ficou bem aqui durante 13 anos.

- Tá brincando! Que medo!

Bosch não ousou olhar de trás da árvore para não se arriscar. Não importava quem eles fossem, imprensa, policiais ou mesmo turistas, ele não queria ser visto ali. Os dois homens ficaram na clareira e jogaram conversa fora por alguns momentos. Por sorte, nenhum dos dois se aproximou do tronco de carvalho onde Bosch estava. Por fim, Bosch ouviu a primeira voz dizer:

- Bom, vamos acabar isto e dar o fora daqui.

Os homens se afastaram na direção por onde tinham vindo. Bosch olhou de trás da árvore e conseguiu vê-los de relance antes que desaparecessem no mato. Viu Osani e outro homem que supôs ser da Unidade de TEP. Depois de lhes dar uma boa dianteira, Bosch saiu de trás da árvore e atravessou a clareira. Posicionou-se atrás de um velho eucalipto e ficou observando enquanto os homens da TEP voltavam ao local onde tinha havido um deslizamento de lama. Osani e seu colega fizeram tanto barulho caminhando através do mato que foi muito fácil para Bosch voltar ao declive. Protegido pelo barulho deles, chegou ao eucalipto que fora o primeiro marcador para Waits e observou os dois homens enquanto se preparavam para tirar medidas da parte mais baixa do declive até o topo. Havia uma escada agora, posicionada de maneira muito semelhante à escada do dia anterior.

Bosch notou que os dois homens estavam colocando em ordem o relatório oficial. Estavam medindo distâncias que ou tinham sido esquecidas ou consideradas desnecessárias no dia anterior. Hoje, diante das consequências políticas envolvidas, tudo era necessário. Osani subiu pela escada até o topo enquanto seu parceiro ficou embaixo. Ele então tirou uma trena do cinto e puxou várias vezes a fita, passando a ponta para o colega. Fizeram as medições, e Osani gritava os números, que eram anotados pelo parceiro em um caderno. Pareceu a Bosch que eles estavam tomando várias medidas, desde o local no chão onde ele havia estado no dia anterior até as posições em que Waits, Olivas e Rider tinham estado. Bosch não tinha a menor ideia sobre qual seria a importância de tais medidas para a investigação.

O telefone de Bosch começou a vibrar em seu bolso e ele rapidamente o tirou e desligou. Antes de a tela apagar ele viu que o número tinha prefixo 485, que ele sabia ser de Parker Center. Alguns segundos depois Bosch ouviu o som de um telefone celular na clareira onde Osani e o outro homem estavam trabalhando. Bosch espiou de trás da árvore e viu Osani tirar o telefone do cinto. Escutou por um momento e então girou o corpo em 360 graus, olhando atentamente para a floresta ao seu redor. Bosch se escondeu de novo.

- Não, Tenente, disse Osani. - Não o vimos por aqui. O carro está no estacionamento, mas nós não o vimos. Não vimos ninguém aqui. Osani escutou mais um pouco e disse “sim” várias vezes antes de fechar o telefone e recolocá-lo no cinto.

Voltou a trabalhar com a trena e dentro de um ou dois minutos os dois homens da TEP tinham aquilo de que precisavam. O parceiro de Osani subiu pela escada e então os dois a puxaram para o topo do declive. Foi naquele momento que Osani reparou na corda presa ao tronco do carvalho branco na beirada do declive. Ele colocou a escada no chão e foi até a árvore. Tirou a corda do tronco e começou a enrolá-la. Olhou para a floresta enquanto fazia isso. E Bosch foi para trás de um dos dois troncos do eucalipto. Alguns minutos depois eles tinham ido embora, caminhando ruidosamente através da floresta em direção à área de estacionamento, a escada sendo carregada entre os dois. Bosch foi até o declive, mas esperou até que não conseguisse mais ouvir os homens da TEP antes de usar as raízes como apoio para subir.

Quando chegou à área de estacionamento, não havia mais sinal de Osani e de seu parceiro. Bosch religou seu telefone e esperou que o visor mostrasse que o aparelho estava pronto para ser usado. Queria ver se a pessoa que havia telefonado de Parker Center havia deixado uma mensagem. Antes de poder ouvir, o telefone começou a vibrar em sua mão. Reconheceu o número: era de uma das linhas da Unidade de Abertos/Não Resolvidos. Atendeu.

- Bosch falando.

- Harry, onde você está? Era Abel Pratt. Havia um tom de urgência em sua voz.

- Em lugar nenhum. Por quê?

- Onde você está? Alguma coisa dizia a Bosch que Pratt sabia exatamente onde ele estava.

- Estou em Beachwood Canyon. O que está acontecendo? Houve um momento de silêncio antes de Pratt responder, o tom de urgência substituído por aborrecimento.

- O que está acontecendo é que acabei de receber um telefonema do tenente Randolph, da TEP. Ele disse que tem um Mustang registrado no seu nome parado na área de estacionamento aí em cima. Eu disse a ele que aquilo era muito estranho, porque Harry Bosch está em trabalho domiciliar e supostamente está muito longe da investigação em Beachwood Canyon. Pensando rapidamente, Bosch inventou algo que pensou ser uma saída daquela situação.

- Escute, não estou investigando nada. Estou procurando uma coisa. Perdi a minha moeda de desafio aqui ontem. Eu só a estou procurando.

- O quê?

- Minha moeda da DRH. Deve ter caído do meu bolso quando eu estava descendo o barranco ou algo assim. Cheguei em casa ontem à noite e ela não estava no meu bolso.

Enquanto falava, Bosch enfiou a mão no bolso e tirou a moeda que ele afirmava ter perdido. Era uma moeda de metal pesada do tamanho e diâmetro de uma ficha de cassino. Um dos lados tinha um distintivo de detetive em ouro e o outro exibia a caricatura de um detetive, terno, chapéu, arma e um queixo exagerado, delineados contra um fundo com a bandeira norte-americana. Era conhecida como ficha ou moeda de desafio e era uma prática assimilada das unidades militares especializadas e de elite. Ao ser aceito em uma unidade, um soldado recebe uma moeda de desafio e deve carregá-la consigo sempre. Em qualquer lugar e a qualquer hora um colega de unidade pode pedir para ver a moeda. Isso geralmente acontece em um bar ou cantina. Se o soldado não estiver com a moeda, ele paga a conta. Essa tradição tem sido observada há muitos anos na DRH. Bosch recebera sua moeda depois de voltar da aposentadoria.

- Que se foda a moeda, Harry, disse Pratt com raiva. - Com 10 dólares você pode substituí-la. Fique longe da investigação. Vá para casa e fique em casa até eu falar de novo com você. Fui claro?

- Sim.

- Além do mais, que porra é essa? Se você perdeu a sua moeda aí, o pessoal da Científica já a teria encontrado. Eles varreram o lugar com o detector de metal à procura de cartuchos. Bosch concordou.

- Eu acho que esqueci esse detalhe.

- Ah é, Harry, você esqueceu? Você está brincando comigo?

- Não, chefe, não estou. Eu esqueci. Eu estava entediado e decidi vir procurá-la. Vi o pessoal de Randolph e decidi ficar de cabeça baixa. Só não pensei que eles investigariam a placa do meu carro.

- Bom, foi isso o que eles fizeram. E em seguida eu recebi o telefonema. Eu não gosto de desdobramentos desse tipo, Harry. Você sabe disso.

- Estou indo para casa agora mesmo.

- Ótimo. E fique lá.

Pratt não esperou a resposta de Bosch. Ele desligou e Bosch fechou o telefone. Atirou a moeda para cima com o polegar, pegou-a na palma da mão, o lado do distintivo para cima, e guardou-a no bolso. Em seguida caminhou até o carro.

 

CAPÍTULO 24

Alguma coisa naquela ordem de ir para casa fez com que Bosch não fosse para casa. Depois de sair de Beachwood Canyon, deu uma parada no St. Joe para ver como estava Kiz Rider. Ela havia mudado de lugar novamente. Tinha saído da UTI e fora transferida para o andar dos pacientes comuns. Não estava em um quarto particular, mas a outra cama da dependência estava vazia. Eles sempre faziam isso para os policiais. Falar ainda era difícil para ela, e o mal-estar da depressão que havia demonstrado naquela manhã não tinha passado. Bosch não ficou muito tempo. Passou para ela os votos de melhoras de Jerry Edgar e então saiu, finalmente indo para casa como haviam mandado e levando para dentro as duas caixas e os arquivos que havia tirado da Unidade de Abertos/Não Resolvidos.

Colocou as caixas no chão da sala de jantar e espalhou os arquivos sobre a mesa. Havia muito material, e ele sabia que provavelmente poderia se ocupar pelo menos por uns dois dias com o que havia trazido do escritório. Foi até o aparelho de som e ligou-o. Sabia que o disco de Coltrane e Monk no Carnegie Hall já estava lá. O aparelho estava em modo aleatório e a primeira música a ser tocada se chamava “Evidence”. Bosch tomou aquilo como um bom sinal e foi para a mesa. Para começar, precisava fazer um inventário do que ele tinha exatamente, para poder decidir qual abordagem usar para a revisão do material. O primeiro item, e o mais importante, era a cópia do registro de investigação no caso atual pelo qual Raynard Waits estava sendo processado. Ele já fora entregue por Olivas, mas não fora estudado de perto por Bosch e Rider porque suas atribuições e prioridades eram os casos Fitzpatrick e Gesto. Na mesa Bosch também tinha o inquérito
de Fitzpatrick que Rider havia tirado dos Arquivos e sua cópia secreta do inquérito de Gesto, cuja revisão ele já havia completado. Por fim, no chão, havia as duas caixas plásticas contendo os registros de penhores que tinham sido resgatados depois que a loja de Fitzpatrick foi incendiada e em seguida encharcada pelas mangueiras dos bombeiros durante os tumultos de 1992.

Havia uma pequena gaveta na lateral da mesa da sala de jantar. Bosch achava que tinha sido projetada para guardar talheres, mas tendo em vista que ele usava mais a mesa para trabalhar do que para comer, a gaveta continha um sortimento de canetas e blocos de papel. Ele tirou um de cada, decidindo que precisava anotar os aspectos importantes da atual investigação. Depois de vinte minutos e três folhas arrancadas e amassadas, seus pensamentos em forma livre haviam preenchido menos de meia folha. / prisão Echo Park fuga (Red Line) Quem é Waits? Onde está o castelo? (destino: Echo Park) Beachwood Canyon / armação, confissão falsa. Quem se beneficia? Por que agora?

Bosch estudou as anotações por alguns momentos. Sabia que as duas últimas perguntas que ele havia escrito eram o ponto de partida. Se as coisas tivessem saído de acordo com o plano, quem teria se beneficiado com a confissão falsa de Waits? O próprio Waits, se livrando da pena de morte. Mas o verdadeiro vencedor era o verdadeiro assassino. O caso teria sido fechado, todas as investigações seriam interrompidas. O verdadeiro assassino iria escapar da justiça. Bosch olhou para as duas perguntas novamente. Quem se beneficia? Por que agora? Ele as analisou cuidadosamente e então inverteu sua ordem e analisou-as novamente. Chegou a uma única conclusão. Suas contínuas investigações no caso Marie Gesto haviam criado a necessidade de que alguma coisa fosse feita agora. Ele teve que acreditar que havia batido forte demais na porta de alguém e que todo o plano de Beachwood Canyon surgira devido à pressão que ele continuava a exercer sobre o caso. Essa
conclusão levou à resposta a outra pergunta na parte de baixo da folha. Quem se beneficia? Bosch escreveu: Anthony Garland / Hancock Park.

Durante 13 anos o instinto de Bosch lhe dissera que Garland era o culpado. Mas, além de seus instintos, não havia uma evidência que ligasse Garland diretamente ao assassinato. Bosch ainda não havia se inteirado das evidências, se é que havia alguma, desenvolvidas durante a escavação do corpo e a autópsia, mas duvidava que depois de 13 anos houvesse alguma coisa que pudesse ser usada, nem DNA nem dados forenses que pudessem ligar o assassino ao corpo. Garland era suspeito pela teoria da “vítima substituta”. Isto é, sua raiva da mulher que o abandonou levou-o a matar uma mulher que o fazia se lembrar da primeira. Os psiquiatras diriam que é uma teoria praticamente impossível, mas agora Bosch revirava-a do avesso. “Faça as contas”, pensava ele.

Garland era o filho de Thomas Rex Garland, o rico barão do petróleo de Hancock Park. O’Shea estava envolvido em uma batalha eleitoral bastante disputada, e dinheiro era a gasolina que mantinha funcionando o motor da campanha. Não era inconcebível que tivesse sido feita uma abordagem discreta a T. Rex, um acordo estabelecido, um plano executado. O’Shea recebe o dinheiro de que precisa para vencer a eleição, Olivas ganha a promoção de chefe dos investigadores com a aprovação de O’Shea e Waits leva a culpa por Gesto enquanto Garland sai passeando. Dizia-se que Los Angeles era um lugar ensolarado para pessoas sombrias. Mais do que a maioria das pessoas, Bosch sabia muito bem disso. Ele não hesitou em acreditar que Olivas tinha feito parte de um plano desse tipo. E a ideia de O’Shea, um promotor de carreira, vendendo sua alma para conseguir uma posição mais elevada também não lhe deu um minuto de sossego. “Corra, seu covarde! O que você a
cha daquela merda de acordo agora?”.

Ele abriu o telefone e ligou para Keisha Russell no Times. Depois de diversos toques, olhou o relógio e viu que passava um pouco das cinco. Percebeu que ela provavelmente estava trabalhando no fechamento da edição e que não iria atender o telefone. Deixou uma mensagem, pedindo que ela retornasse o telefonema. Uma vez que já era o final da tarde, Bosch decidiu que ganhara o direito de tomar uma cerveja. Foi à cozinha e tirou uma Anchor Steam da geladeira. Ficou feliz por ter escolhido um produto sofisticado e de alta qualidade na última vez em que comprou cerveja. Levou a garrafa para a varanda dos fundos e ficou olhando o movimento da hora do rush tomar conta da via expressa lá embaixo. O tráfego começou a se arrastar e o som incessante das buzinas de carros de todas as variedades começou. Ele estava longe o suficiente para que o som não incomodasse. Bosch ficou contente por não estar lá embaixo. Seu telefone vibrou e ele o tirou do bolso. Era Kei
sha Russell retornando a ligação.

- Desculpe, eu estava revisando as matérias de amanhã com o editor.

- Espero que você tenha escrito o meu nome certo.

- Na verdade, você não saiu nessa, Harry. Que surpresa, hein?

- Fico feliz em ouvir isso.

- O que você pode fazer por mim?

- Ah, na verdade eu ia pedir para você fazer uma coisa por mim.

- É claro que ia. E o que seria?

- Você é repórter de política agora, certo? Isso significa que você analisa contribuições de campanha?

- Sim. Eu reviso cada uma das entradas de dinheiro de todos os meus candidatos. Por quê? Ele voltou para dentro e abaixou o aparelho de som.

- O que vou lhe dizer é confidencial, Keisha. Eu queria saber quem tem apoiado a campanha de Rick O’Shea.

- O’Shea? Por quê?

- Eu conto quando puder. Agora eu só preciso da informação.

- Por que você sempre faz isso comigo, Harry?

Era verdade. Eles tinham vivido aquilo muitas vezes no passado. Mas a história deles era a de que Bosch sempre cumpria sua palavra ao dizer que lhe contaria as coisas quando pudesse. Ele nunca a enganara. Assim os protestos dela eram uma brincadeira, uma simples introdução antes de ela fazer o que Bosch queria que ela fizesse. Aquilo também fazia parte do relacionamento entre os dois.

- Você sabe o porquê, disse ele, fazendo sua parte. - Ajude-me com isso e vai haver alguma coisa para você quando chegar a hora certa.

- Algum dia eu vou querer decidir quando é a hora certa. Espere um pouco. Bosch ouviu um clique e ela sumiu por quase um minuto.

Enquanto esperava, ficou em pé perto dos documentos espalhados sobre a mesa da sala de jantar. Sabia que estava perdendo tempo com esse ângulo sobre O’Shea e Garland. Eles não podiam ser atingidos no momento. Estavam protegidos pelo dinheiro, pela lei e pelas regras de evidência. Bosch sabia que o ângulo correto de investigação era ir até Raynard Waits. Seu trabalho era encontrá-lo e expor o caso.

- Ok, disse Russell ao voltar à linha. - Tenho a relação mais atualizada de doadores. O que você quer saber?

- O quão atualizado é “atualizada”?

- Esta aqui é da semana passada. Sexta-feira.

- Quem são os principais contribuintes dele?

- Não há ninguém que seja realmente grande, se é isso o que você quer dizer. Ele basicamente está conduzindo a campanha com gente comum. A maioria dos seus contribuintes são colegas advogados. Quase todos eles. Bosch pensou na firma de advocacia em Century City que cuidava das coisas para a família Garland e que conseguira ordens judiciais impedindo Bosch de interrogar Anthony Garland sobre Marie Gesto sem a presença de um advogado. O chefe da firma era Cecil Dobbs.

- Um desses advogados é Cecil Dobbs?

- Hum... Sim, C. C. Dobbs, endereço em Century City. Ele deu mil. Bosch se lembrava do advogado de sua coleção de entrevistas com Anthony Garland que haviam sido gravadas.

- E um tal de Dennis Franks?

- Franks, aqui. Muitas pessoas dessa firma contribuíram.

- Como assim?

- Bem, de acordo com a lei eleitoral, você tem que fornecer endereço residencial e comercial quando faz uma contribuição. Dobbs e Franks têm um endereço comercial em Century City e, vamos ver... Nove, dez, onze pessoas forneceram o mesmo endereço. Cada uma delas deu mil dólares também. Provavelmente são todos os advogados da mesma firma.

- Então são 13 mil dólares de lá. É isso?

- De lá é isso, sim.

Bosch pensou se devia perguntar especificamente se o nome de Garland estava na lista de contribuintes. Não queria que ela fizesse telefonemas ou ficasse se intrometendo em sua investigação.

- Nenhuma empresa grande como contribuinte?

- Nada de grande importância. Por que não me conta o que está procurando, Harry? Você pode confiar em mim. Ele decidiu tentar.

- Você vai ter que guardar segredo até eu mandar. Sem telefonemas, sem perguntas. Você ouve e guarda, certo?

- Certo, até você mandar.

- Garland. Thomas Rex Garland, Anthony Garland, algum desses na lista?

- Hummm, não. Anthony Garland não era o moleque de quem você desconfiava no caso de Marie Gesto?

Bosch quase xingou em voz alta. Ele esperava que ela não fizesse a conexão. Uma década antes, quando infernizava os policiais, ela descobrira uma requisição de mandado de busca que ele havia encaminhado para revistar a casa de Anthony Garland. A requisição fora negada por falta de causa provável, mas o pedido estava registrado nos Arquivos Públicos, e, naquela época, Russell, sempre a repórter diligente, esquadrinhava rotineiramente os mandados de busca no fórum. Bosch a convencera a não escrever uma história identificando o filho de uma família local ligada ao petróleo como suspeito no assassinato de Gesto, mas uma década mais tarde ela ainda se lembrava do nome.

- Você não vai poder fazer nada com isso, Keisha, ele reagiu.

- O que você está fazendo? Raynard Waits confessou ter matado Gesto. Você está dizendo que isso é besteira?

- Não estou dizendo nada. Eu simplesmente estava curioso a respeito de uma coisa, só isso. Agora, você não pode fazer nada com isso. Nós temos um acordo. Não diga nada até eu mandar.

- Você não é o meu chefe, Harry. Como é que você vem para mim falando como se fosse meu chefe?

- Desculpe, eu só não quero que você saia por aí como uma doida com essa informação. Pode arruinar o que estou fazendo. Temos um acordo, certo? Você acabou de dizer que eu podia confiar em você. Passou-se um bom tempo antes que ela respondesse.

- Sim, temos um acordo. E, sim, você pode confiar em mim. Mas se você estiver encaminhando o caso para a direção em que estou pensando, quero atualizações e relatórios. Não vou simplesmente ficar aqui sentada esperando você entrar em contato só depois que tiver reunido tudo o que quer. Se não tiver notícias de você, Harry, eu vou ficar nervosa. Quando eu fico nervosa, faço umas coisas meio loucas, acabo dando uns telefonemas meio loucos. Bosch balançou a cabeça. Nunca deveria ter ligado para ela.

- Entendo Keisha, disse ele. - Você vai ter notícias minhas.

Fechou o telefone, se perguntando que novo monstro ele tinha acabado de soltar sobre a terra e quando ele iria voltar para mordê-lo. Confiava em Russell, mas apenas na medida em que podia confiar em qualquer repórter. Terminou sua cerveja e foi buscar outra na cozinha. Assim que tirou a tampa, o telefone vibrou. Era Keisha Russell de novo.

- Harry, você já ouviu falar das Indústrias GO!?

Ele já ouvira falar. Indústrias GO! Era a atual denominação corporativa de uma empresa que começara suas atividades oitenta anos atrás como Indústrias de Petróleo Garland. A companhia tinha um logotipo no qual a palavra GO! Era provida de rodas e inclinada para frente para parecer um carro em alta velocidade.

- O que tem ela?

- Escritório central em uma das torres do ARCO Plaza. Contei 12 empregados da GO! Dando contribuições de mil dólares para O’Shea. Que tal?

- Ótimo Keisha. Obrigado por ligar de novo.

- O’Shea recebeu dinheiro para colocar a culpa da morte de Gesto em Waits? É isso? Bosch gemeu no telefone.

- Não, Keisha, não foi isso que aconteceu e não é isso que estou investigando. Se você fizer algum telefonema relacionado a isso, vai comprometer o que estou fazendo e poderia colocar você, a mim e outras pessoas em perigo. Agora, por favor, deixe isso quieto, até que eu possa lhe contar exatamente o que está acontecendo e quando você poderá usar a informação.

Mais uma vez ela hesitou antes de responder. E foi nesse espaço de silêncio que Bosch começou a se perguntar se ainda deveria confiar nela. Talvez a mudança da polícia para a política tivesse mudado alguma coisa nela. Talvez, como acontece com a maior parte das pessoas que trabalham no domínio da política, seu senso de integridade tivesse sido soterrado pela exposição à mais antiga profissão do mundo: a prostituição política.

- Ok, Harry, entendi. Só estava querendo ajudar. Mas lembre do que eu disse. Quero ter notícias suas. E logo!

- Você vai ter Keisha. Boa-noite.

Ele fechou o telefone e tentou afastar suas preocupações com a repórter. Pensou na informação que havia conseguido com ela. Entre a GO! E a firma de advocacia de Cecil Dobbs, O’Shea tinha recebido pelo menos 25 mil dólares em contribuições de campanha de pessoas que poderiam ser ligadas diretamente aos Garlands. Era algo público e legal, mas mesmo assim era uma forte indicação de que Bosch estava no caminho certo. Sentiu uma sensação agradável no estômago. Agora tinha com o que trabalhar. Tinha apenas que encontrar a perspectiva correta de onde trabalhar. Foi até a mesa na sala de jantar e examinou os diversos relatórios e registros policiais espalhados à sua frente. Pegou a pasta marcada WAITS - INFORMAÇÕES GERAIS e começou a ler.

 

CAPÍTULO 25


Visto pela perspectiva da execução da lei, Raynard Waits era uma raridade como suspeito de assassinato. Quando sua van foi parada em Echo Park, o DPLA na verdade tinha capturado um assassino que nenhum departamento ou agência estava procurando. Não havia qualquer arquivo sobre ele em nenhuma mesa ou computador em parte alguma. Não havia um perfil elaborado pelo FBI e nem um relatório de antecedentes para consulta. Eles tinham um assassino nas mãos e tinham que começar do zero com ele. Isso apresentou todo um novo ângulo de investigação para o detetive Freddy Olivas e seu parceiro, Ted Colbert. O caso chegou até eles com um ímpeto que simplesmente os arrastou. Tudo se tornou uma questão de seguir em frente, em direção a um indiciamento à condenação. Havia pouco tempo ou disposição de olhar o passado.

Waits tinha sido preso na posse de sacos contendo partes dos corpos de duas mulheres assassinadas. Aquilo fora um feito impressionante e havia barrado a necessidade de saber exatamente quem eles haviam prendido e o que o levara a estar naquela van, naquela rua e naquele horário. Em consequência, havia pouca coisa no arquivo que pudesse ajudar Bosch. O arquivo continha registros da investigação relacionados às tentativas de identificar as vítimas e de reunir as evidências materiais para a iminente instauração do processo. As informações de apoio no arquivo eram apenas dados simples sobre Waits, fornecidos pelo próprio suspeito ou selecionados por Olivas e Colbert durante as buscas rotineiras nos computadores. O aspecto decisivo é que eles sabiam pouco sobre o homem que estavam processando, mas o que sabiam era suficiente.

Bosch completou sua leitura do arquivo em vinte minutos. Quando terminou, mais uma vez tinha menos da metade de uma página do bloco com anotações. Ele havia elaborado uma descrição do desenvolvimento dos acontecimentos em ordem cronológica que mapeava as prisões, confissões e o uso dos nomes Raynard Waits e Robert Saxon. 30/04/92 - Daniel Fitzpatrick assassinado, Hollywood 18/05/92 - Raynard Waits, nasc. 03/11/71, CH emitida, Hollywood 01/02/93 - Robert Saxon, nasc. 03/11/75 - preso, voyeurismo - Identificado como Raynard Waits, nasc. 03/11/71, por meio da digital na CH 09/09/93 - Marie Gesto raptada, Hollywood 11/05/06 - Raynard Waits, nasc. 03/11/71, preso 187 Echo Park.

Bosch estudou aquela cronologia. Encontrou duas coisas dignas de nota. Waits supostamente não tirou carteira de habilitação antes dos 20 anos, e, qualquer que fosse o nome que usasse, sempre forneceu o mesmo mês e dia de nascimento. Embora tenha informado 1975 como seu ano de nascimento em uma tentativa de ser considerado menor de idade, ele regularmente informou 1971 nas outras vezes. Bosch sabia que o segundo procedimento era uma estratégia frequentemente empregada por pessoas que mudavam de identidade. Mudavam de nome, mas mantinham alguns dos outros detalhes iguais para evitar se confundir ou esquecer informações básicas, um deslize óbvio, especialmente se um policial estiver perguntando. Bosch sabia, pelas buscas de registros feitas no começo da semana, que não havia certidão de nascimento de Raynard Waits ou de Robert Saxon com data de nascimento 03/11 no Condado de Los Angeles. A conclusão a que ele e Kiz Rider haviam chegado com base nisso e
ra que os dois nomes eram falsos. Mas agora Bosch pensava que talvez a data de nascimento, 03/11/71, não fosse falsa. Talvez Waits, ou seja lá quem ele fosse, tivesse mantido sua verdadeira data de nascimento ao mudar de nome. Bosch agora estava analisando a diferença entre a data do assassinato de Fitzpatrick e a data de emissão da carteira de habilitação de Waits. Era menos de um mês. Ele acrescentou a isso o fato de que, de acordo com os registros, Waits não havia requerido uma carteira de motorista antes dos 20 anos. Bosch achou improvável que um garoto crescendo em Los Angeles esperasse até ter 20 anos para tirar sua habilitação. Era mais uma indicação de que Raynard Waits não era seu nome.

Bosch começou a ter uma intuição. Como um surfista esperando pela onda certa para começar a remar com as mãos, ele sentiu que sua onda estava chegando. Pensou que aquilo para o qual estava olhando era o nascimento de uma nova identidade. Dezoito dias depois de ter assassinado Daniel Fitzpatrick, protegido pelos tumultos, o homem que o matou entrou em um escritório do Departamento de Trânsito em Hollywood e requisitou uma carteira de habilitação. Ele deu 3 de novembro de 1971 como data de nascimento e o nome Raynard Waits. Ele teria que fornecer uma certidão de nascimento, mas isso não teria sido difícil de arranjar se ele conhecesse as pessoas certas. Não em Hollywood. Não em Los Angeles. Tirar uma certidão de nascimento falsa teria sido uma empreitada fácil, quase sem risco. Bosch acreditava que o assassinato de Fitzpatrick e a mudança de identidade estavam relacionados. Era causa e efeito. Alguma coisa relacionada ao assassinato havia feit
o com que o assassino mudasse sua identidade. Isso desmentia a confissão feita dois dias antes por Raynard Waits. Ele havia caracterizado o assassinato de Daniel Fitzpatrick como um assassinato por pura emoção, uma oportunidade para se entregar a uma fantasia antiga. Ele saiu de sua trajetória para mostrar Fitzpatrick como uma vítima escolhida ao acaso, escolhida simplesmente porque estava ali. Mas se esse era realmente o caso, e se o assassino não tinha uma conexão anterior com a vítima, então por que o assassino agiu quase imediatamente para se reinventar com uma nova identidade? Dentro de 18 dias, o assassino conseguiu uma certidão de nascimento falsa e tirou uma nova carteira de motorista. Nascia Raynard Waits.

Bosch sabia que havia uma contradição naquilo que estava considerando. Se o assassinato de Fitzpatrick tivesse ocorrido da maneira que Waits havia confessado, então não haveria motivo para ele criar uma nova identidade rapidamente. Mas os fatos, a cronologia do assassinato e a emissão da carteira de motorista, contradiziam isso. A conclusão para Bosch era óbvia. Havia uma conexão. Fitzpatrick não era uma vítima aleatória. Ele podia, na verdade, estar ligado de alguma maneira a seu assassino. E foi por isso que seu assassino mudou de nome. Bosch se levantou e levou sua garrafa vazia para a cozinha. Decidiu que aquelas duas cervejas eram o bastante. Ele precisava ficar esperto e manter o equilíbrio na onda. Voltou para o aparelho de som e colocou a obra-prima. KIND OF BLUE. Aquele disco nunca deixava de lhe dar energia. ALL BLUES foi a primeira faixa que tocou, e foi como sair com quatro ases em uma mesa de pôquer. Era sua favorita e ele a deixou toca
ndo. Voltando à mesa, abriu o inquérito de Fitzpatrick e começou a ler. Kiz Rider havia lidado com ele antes, mas ela simplesmente se envolvera em uma revisão para se preparar para a confissão de Waits. Ela não estava procurando pela conexão oculta que Bosch agora buscava.

A investigação da morte de Fitzpatrick fora realizada por dois detetives temporariamente designados para a Força-Tarefa de Crimes Relacionados a Tumultos. Na melhor das hipóteses, o trabalho deles foi superficial. Poucas pistas foram seguidas, porque, em primeiro lugar, não havia muitas, e, em segundo lugar, devido ao esmagador manto de ineficácia que caiu sobre todos os casos associados aos tumultos. Quase todos os atos de violência associados aos três dias de agitação generalizada foram fortuitos. As pessoas roubaram, estupraram e assassinaram indiscriminadamente e à vontade, simplesmente porque podiam fazer isso. Nenhuma testemunha do ataque a Fitzpatrick fora localizada. Nenhuma evidência forense fora encontrada além da lata de fluido de isqueiro, e ela fora limpa. A maioria dos registros da loja tinha sido destruída pelo fogo ou pela água. O que sobrou foi colocado em duas caixas e ignorado. O caso foi tratado como um beco sem saída desde
o seu início. Foi abandonado e arquivado. O inquérito era tão fino que Bosch terminou sua leitura da primeira à última página em menos de vinte minutos. Ele não fez anotações, não teve ideias, não viu conexões. Sentiu a maré baixando. Seu passeio sobre a onda estava chegando ao fim.

Pensou em pegar outra cerveja na geladeira e atacar o caso mais uma vez no dia seguinte. Então a porta da frente se abriu e Rachel Walling entrou, segurando embalagens para viagem do restaurante chinês. Bosch empilhou os relatórios sobre a mesa da sala de jantar para que eles tivessem espaço para comer. Rachel trouxe pratos da cozinha e abriu as embalagens. Bosch tirou as duas últimas Anchors da geladeira. Conversaram sobre assuntos sem importância por um tempo e então ele contou a ela o que tinha feito desde a hora do almoço e o que tinha descoberto. Ele podia dizer pelos comentários reservados dela que Rachel não se convencera com a descrição da trilha que ele encontrara em Beachwood Canyon. Mas quando mostrou a ela a cronologia que havia desenvolvido, ela prontamente concordou com suas conclusões sobre a mudança de identidade do assassino depois da morte de Fitzpatrick. Ela também concordou que, embora eles não tivessem o verdadeiro nome do
assassino, eles talvez tivessem sua verdadeira data de nascimento. Bosch olhou para as duas caixas plásticas sobre o chão.

- Então acho que vale a tentativa, disse ele. Ela se inclinou de lado para poder ver o que ele estava olhando. - O que são?

- A maior parte é de recibos de penhores. Todos os registros salvos depois do incêndio. Em 1992 eles estavam todos molhados. Eles jogaram todos nessas caixas e se esqueceram deles. Ninguém nunca olhou todos eles.

- É isso o que você pretende fazer esta noite, Harry? Ele olhou para ela e sorriu. Ele assentiu.

Depois que terminaram de comer decidiram que cada um ficaria com uma das caixas. Bosch sugeriu que tirassem todos os papéis lá fora, na varanda, devido ao cheiro de mofo que sairia das caixas depois de abertas. Rachel concordou prontamente. Bosch arrastou as caixas para fora e então pegou duas caixas de papelão na garagem. Eles sentaram em cadeiras na varanda e começaram a trabalhar. Preso com fita adesiva na parte de cima da caixa que Bosch escolheu estava um cartão 3 x 5 que dizia ARQUIVO PRINCIPAL. Bosch tirou a tampa e usou-a para tentar abanar o cheiro desagradável que saía. A caixa continha principalmente recibos de penhor cor-de-rosa e cartões 3 x 5 que pareciam ter sido colocados dentro dela com uma pá. Não havia nada ordenado ou bem-arrumado naqueles registros. Os danos causados pela água foram grandes. Muitos dos recibos haviam grudado enquanto molhados, e a tinta em outros estava desbotada e impedia a leitura. Bosch olhou para Rachel e viu
que ela estava lidando com as mesmas coisas.

- Isto está ruim, Harry, disse ela.

- Eu sei. Faça o melhor que puder. Talvez seja a nossa última chance.

Não havia forma de começar, a não ser metendo a mão na massa. Bosch tirou um maço de recibos, colocou-o no colo e começou a ver um por um, tentando ler o nome, endereço e data de nascimento de cada cliente que havia empenhado alguma coisa com Fitzpatrick. Cada vez que examinava um recibo, fazia uma marca no canto superior com uma caneta vermelha que viera da mesa da sala de jantar e o jogava na caixa de papelão do outro lado de sua cadeira. Ficaram trabalhando nisso durante meia hora, sem conversar, quando Bosch ouviu o telefone da cozinha tocar. Pensou em não atender, mas sabia que poderia ser um telefonema de Hong Kong. Ele se levantou.

- Eu nem sabia que você tinha uma linha de telefone comum, disse Walling.

- Pouca gente tem. Ele atendeu ao telefone no oitavo toque. Não era sua filha. Era Abel Pratt.

- Só estou vendo se você está aí, disse ele. - Imaginei que se eu ligasse para o número da sua casa e você dissesse que está em casa, então você realmente estaria em casa.

- Por quê? Estou em prisão domiciliar agora?

- Não, Harry, eu só estou preocupado com você, só isso.

- Escute, eu não vou fazer nada errado, ok? Mas trabalho domiciliar não significa que eu tenha que ficar em casa 24 horas por dia, sete dias por semana. Eu já verifiquei isso com o sindicato.

- Eu sei, eu sei. Mas quer dizer que você não deve tomar parte de nenhuma investigação.

- Tudo bem.

- O que você está fazendo, então?

- Estou sentado na minha varanda com uma amiga. Estamos tomando uma cerveja e saboreando o ar noturno. Tudo bem para você, chefe?

- Alguém que eu conheça?

- Duvido. Ela não gosta de policiais. Pratt riu e pareceu que Bosch finalmente o tranquilizara quanto ao que ele estava fazendo.

- Então vou deixar você voltar para lá. Tenha uma boa noite, Harry.

- Eu terei se conseguir ficar longe do telefone. Amanhã eu dou uma passada por lá.

- Estou por lá.

- E eu estou por aqui. Boa-noite. Ele desligou, vasculhou a geladeira em busca de cervejas escondidas ou perdidas e voltou para a varanda de mãos vazias.

Rachel estava esperando por ele com um sorriso no rosto e segurando um cartão 3 x 5 manchado de água. Preso a ele por um clipe havia um recibo de penhor.

- Olha isso aqui, disse ela. Ela passou o recibo para ele, e Bosch entrou de novo, onde a iluminação estava melhor. Ele leu o cartão primeiro.

Cliente Insatisfeito - 02/12/92 Cliente reclamou que propriedade foi vendida antes de expirar o período de noventa dias do penhor. Foi mostrado recibo de penhor e constatado engano do cliente. Cliente reclamou que nos noventa dias não deveriam ser incluídos fins de semana e feriados. Xingou/Bateu a porta. DGF O recibo cor-de-rosa de penhor preso ao cartão de reclamação tinha o nome Robert Foxworth, a data de nascimento 03/11/71 e um endereço na Fountain em Hollywood. O item penhorado em 8 de outubro de 1991 estava listado como um “medalhão de herança”. Foxworth recebera 80 dólares por ele. Havia uma impressão digital no canto direito embaixo do recibo. Bosch conseguia ver os sulcos de uma impressão digital, mas a tinta ou tinha se desgastado ou se dissolvido no papel devido à umidade dentro da caixa.

- A data de nascimento bate, disse Rachel. - Além disso, o nome está relacionado em dois níveis.

- Como assim?

- Bom, ele pegou o Robert quando usou o nome Robert Saxon e pegou a Raposa, que é Fox, em Foxworth quando usou Raynard. Talvez seja daí que tenha surgido o Raynard. Se o nome verdadeiro dele é Foxworth. Talvez, quando ele era criança, seus pais lhe contassem histórias sobre uma raposa chamada Reynard.

- Se o nome verdadeiro dele for Foxworth, repetiu Bosch. - Talvez nós apenas tenhamos encontrado outro pseudônimo.

- Talvez. Mas pelo menos é alguma coisa que você não tinha antes. Bosch concordou. Podia sentir sua empolgação aumentar. Ela estava certa. Finalmente ele tinha um novo ângulo para investigar. Bosch pegou o celular.

- Vou mandar investigar o nome nos computadores para ver o que acontece. Ligou para o plantão da central e pediu para um dos operadores de serviço que fizesse uma busca cruzando o nome e a data de nascimento que haviam encontrado em um recibo de penhor. O resultado foi negativo e não havia registro da existência de uma carteira de motorista. Ele agradeceu ao operador e desligou o telefone. - Nada, disse ele. - Nem mesmo uma carteira de motorista.

- Mas isso é bom, disse Rachel. - Não percebe? Robert Foxworth estaria prestes a completar 35 anos agora. Se não há qualquer histórico nem uma habilitação válida, então isso é mais uma confirmação de que ele não existe mais, que está ou morto ou se tornou outra pessoa.

- Raynard Waits. Ela balançou a cabeça. - Acho que eu estava esperando uma carteira de habilitação com um endereço em Echo Park, disse Bosch. - Acho que é pedir demais.

- Talvez não. Existe alguma maneira neste estado de verificar carteiras de habilitação que perderam a validade? Robert Foxworth, se esse for o nome verdadeiro dele, provavelmente tirou a carteira ao fazer 16 anos em 1987. Depois que ele mudou de identidade, ela perdeu a validade. Bosch avaliou aquilo. Ele sabia que o estado só havia passado a exigir impressão digital dos motoristas depois do começo dos anos 1990. Isso significava que Foxworth poderia ter tirado uma carteira de motorista no final dos anos 1980 e não haveria jeito de ligá-lo à sua nova identidade de Raynard Waits.

- Eu poderia verificar com o Departamento de Trânsito pela manhã. Isso não dá para eu conseguir esta noite com o pessoal do plantão.

- Há mais uma coisa que você pode verificar amanhã, disse ela. - Você se lembra do perfil rápido e imperfeito que eu fiz na outra noite? Eu disse que esses primeiros crimes não eram desvios. Ele os elaborou. Bosch entendeu.

- Um disfarce de delinquente juvenil? Ela balançou a cabeça.

- Talvez Robert Foxworth tenha sido fichado... Isto é, se é que esse é seu nome verdadeiro. Também não daria para esclarecer isso pelo plantão. Ela estava certa.

A legislação estadual impedia que os prontuários de menores fornecessem informações de um delinquente até a idade adulta. O nome pode ter saído limpo quando Bosch telefonou para o plantão pedindo a pesquisa, mas isso não significava que era totalmente limpo. Quanto à informação sobre a carteira de motorista, Bosch teria que esperar até de manhã, quando poderia ver o prontuário no Departamento de Condicional. Mas, assim que suas esperanças retornaram, ele as derrubou novamente.

- Espere um pouco, isso não funciona, disse ele. - As impressões dele deveriam ter combinado. Quando buscaram as impressões digitais de Raynard Waits, eles teriam achado as digitais de Robert Foxworth quando menor de idade. A ficha dele poderia não estar disponível, mas as digitais ficam no sistema.

- Talvez sim, talvez não. Dois sistemas separados. Duas burocracias separadas. O cruzamento de informações nem sempre funciona.

Aquilo era verdade, mas era mais pensamento positivo do que qualquer outra coisa. Bosch agora havia reduzido o ângulo do menor delinquente a uma possibilidade longínqua. Era mais provável que Robert Foxworth nunca tivesse estado no sistema de infratores juvenis. Bosch estava começando a pensar que o nome era apenas mais uma identidade falsa em uma lista. Rachel tentou mudar de assunto.

- O que você acha desse medalhão que ele penhorou? Perguntou ela.

- Não tenho ideia.

- O fato de ele querer reavê-lo é interessante. O que me faz pensar que talvez não fosse roubado. Como se talvez pertencesse a alguém em sua família e ele precisasse recuperá-lo.

- Acho que explicaria por que ele xingou e bateu a porta. Ela balançou a cabeça. Bosch bocejou e imediatamente notou o quanto estava cansado. Estivera correndo o dia todo apenas para chegar àquele nome e às incertezas que o acompanhavam. O caso estava se amontoando em sua mente. Rachel pareceu ler os pensamentos dele.

- Harry, por que não paramos enquanto estamos com a vantagem e tomamos mais uma cerveja?

- Não sei qual é a vantagem que temos, mas outra cerveja cairia muito bem, disse Bosch. - Só tem um problema com isso.

- Qual?

- Não tem mais cerveja.

- Harry, você chamou uma garota para vir até aqui fazer o seu servicinho sujo e ajudar a resolver o caso, e tudo o que você dá a ela é uma cerveja? O que há de errado com você? E vinho? Você tem vinho? Bosch balançou a cabeça entristecido.

- Mas estou indo comprar.

- Ótimo. Estou indo para o quarto. Vou esperar você lá.

- Então não vou demorar.

- Para mim tinto, ok?

- Pode deixar.

Bosch saiu de casa rapidamente. Havia estacionado o carro na rua para que Rachel pudesse usar a garagem quando chegasse. Ao sair pela porta da frente, ele notou um veículo parado do outro lado da rua, duas casas para baixo. O veículo, um SUV prateado, chamou sua atenção por estar estacionado em uma área proibida. Era proibido estacionar naquela área porque ficava perto demais da próxima curva na rua. Um carro poderia fazer a curva naquele ponto e facilmente colidir com qualquer outro carro que estivesse estacionado ali. Quando Bosch se aproximou da rua, o SUV saiu de repente, sem acender os faróis. Fez a curva rapidamente na direção norte e desapareceu. Bosch correu até seu carro, entrou e foi atrás do SUV. Dirigiu tão rápido quanto podia se mantendo seguro. Em dois minutos tinha percorrido a rua curva até o cruzamento da Mulholland Drive. Não havia sinal do SUV, que poderia ter ido em qualquer uma das outras três direções no cruzamento.


“Merda!”. Bosch ficou parado no cruzamento durante muito tempo, pensando no que tinha acabado de ver e o que aquilo poderia significar. Decidiu que ou não significava nada ou significava que alguém estava vigiando sua casa e, portanto, vigiando-o. Mas naquele momento não havia nada que ele pudesse fazer. Virou à esquerda e entrou na Mulholland, percorrendo-a em velocidade segura até Cahuenga. Sabia que havia uma loja de bebidas perto da Lankershim. Rumou para lá, olhando pelo retrovisor o tempo todo.

 

CAPÍTULO 26

Serviço domiciliar ou não, Bosch vestiu um terno ao sair no dia seguinte. Sabia que aquela roupa lhe daria uma aura de autoridade e confiança para lidar com os burocratas do governo. E vinte minutos depois das nove aquilo compensara. Ele tinha uma pista concreta. Os arquivos do Departamento de Trânsito haviam revelado uma carteira de motorista emitida para um tal Robert Foxworth no dia 3 de novembro de 1987, o dia em que ele fizera 16 anos e estava apto a dirigir. A carteira nunca foi renovada na Califórnia, mas não havia nenhum registro no DT de que o portador tivesse falecido. Isso significava que Foxworth ou tinha se mudado para outro estado e tirado uma carteira lá, ou que resolvera não mais dirigir, ou que havia mudado de identidade. Bosch estava apostando na terceira opção. O endereço na carteira era a pista. Ele dava a residência de Foxworth como Departamento da Infância e Serviços Familiares do Condado de Los Angeles, 3075 Wilshire Blvd.,
Los Angeles.

Em 1987 ele era menor e estava sob a custódia do condado. Ou seja, ele não tinha pais ou eles foram considerados desqualificados para criá-lo e ele foi tirado deles. A designação do DISF como seu endereço significava que ou ele estava morando em um dos alojamentos do departamento ou que fora colocado no programa de adoção. Bosch sabia de tudo isso porque também tivera uma designação dessas em sua primeira carteira de motorista. Ele também estivera sob a custódia do condado. Ao sair dos escritórios do DT na Spring Street, Bosch sentiu uma renovada onda de energia. Havia atravessado o que, na noite anterior, parecia ser um beco sem saída, transformando-o em uma pista concreta. Quando estava indo para o carro, seu telefone vibrou e ele atendeu sem interromper o passo e sem olhar o visor, esperando que fosse Rachel e que ele pudesse partilhar as boas notícias com ela.

- Harry, onde você está? Ninguém atendeu ao telefone da sua casa. Era Abel Pratt. Bosch estava ficando cansado dessa vigilância constante.

- Estou indo visitar a Kiz. Tudo bem com você?

- Claro, Harry, a não ser pelo fato de que você deveria ter ligado para mim.

- Uma vez por dia. Não são nem dez horas.

- Eu quero notícias suas todas as manhãs.

- Está bem. Amanhã é sábado, eu telefono mesmo assim? E domingo?

- Não exagera. Só estou tentando cuidar de você, e você sabe disso.

- Claro chefe. Como quiser.

- Acho que você já ouviu a última. Bosch parou no mesmo instante.

- Pegaram Waits?

- Não, quem me dera.

- Então o que é?

- Está em todos os jornais. Todo mundo está agitado aqui. Uma garota foi raptada na rua em Hollywood ontem à noite. Foi colocada em uma van no Hollywood Boulevard. A divisão tinha mandado instalar aquelas novas câmeras de rua no ano passado, e uma delas captou parte do rapto. Eu não vi as imagens, mas estão dizendo que é o Waits. Ele mudou de aparência, acho que raspou a cabeça, mas estão dizendo que foi ele. Eles entram, começam a transmitir ao vivo e em seguida passam para o próximo local e a próxima entrevista coletiva à imprensa. Bosch sentiu um baque seco no peito. Estava certo ao pensar que Waits não ia sair da cidade. Agora desejou ter errado em seu julgamento. Enquanto refletia sobre essas coisas, notou que ainda pensava no assassino como Raynard Waits. Não importava que ele realmente fosse Robert Foxworth, Bosch sabia que sempre pensaria nele como Waits.

- Conseguiram anotar a placa da van? Perguntou.

- Não, estava coberta. Tudo que conseguiram ver foi que era uma van tipo Econoline toda branca. Como a outra que ele usou, só que mais velha. Escuta, Preciso desligar. Eu só queria saber de você. Felizmente, hoje é o último dia. O pessoal da TEP vai terminar e você vai voltar para a unidade.

- É, isso seria ótimo. Mas, escute aqui, durante a confissão Waits disse que tinha uma van diferente nos anos 90. Talvez a força-tarefa pudesse destacar alguém para dar uma olhada em registros antigos no DT que pudessem estar no nome dele. Talvez eles encontrem uma placa que possa servir nessa van.

- Vale a tentativa. Vou falar com eles.

- Certo.

- Fique perto de casa, Harry. E mande lembranças para Kiz.

- Certo.

Bosch fechou o telefone, feliz porque havia conseguido pensar rapidamente na desculpa de que ia visitar Kiz. Mas também sabia que estava se tornando um bom mentiroso com Pratt e isso não o deixava muito contente. Bosch entrou no carro e rumou para Wilshire Boulevard. O telefonema de Pratt havia aumentado seu senso de urgência. Waits tinha raptado outra mulher, mas não havia nada nos arquivos que indicasse que ele matava as vítimas imediatamente. Isso significava que a última vítima ainda podia estar viva. Bosch sabia que, se conseguisse chegar até Waits, poderia salvá-la.

Os escritórios do DIFS estavam lotados e barulhentos. Ele esperou no balcão de registros durante 15 minutos antes de ser atendido por uma funcionária. Depois de anotar a informação de Bosch e digitá-la em um computador, ela informou que realmente havia um arquivo relacionado a Robert Foxworth, data de nascimento 03/11/1971, mas que, para vê-lo, ele precisaria de uma ordem judicial que o autorizasse a pesquisar os registros. Bosch apenas sorriu. Estava empolgado demais pelo fato de que realmente ainda havia um arquivo para se aborrecer com mais uma frustração. Agradeceu à funcionária e disse que voltaria com uma ordem judicial.

Bosch saiu no sol. Sabia que agora estava em uma encruzilhada. Dançar em torno da verdade sobre onde estava durante os telefonemas de Abel Pratt era uma coisa. Mas se fosse solicitar um mandado de busca nos arquivos do DIFS sem a aprovação do departamento, sob a forma de aprovação de algum supervisor, então estaria passando completamente dos limites. Estaria fazendo uma investigação ilegal e cometendo um delito passível de demissão. Pensou que poderia levar o que tinha para Randolph da TEP ou para a Força-Tarefa de Fugitivos e deixá-los conduzir o caso, ou ele poderia optar pela rota da ilegalidade e aceitar as possíveis consequências. Desde que voltara da aposentadoria, Bosch se sentia menos limitado pelas regras e regulamentos do departamento. Já havia se desligado uma vez e sabia que se a pressão fosse muito grande ele conseguiria fazer isso novamente. A segunda vez seria mais fácil. Não queria que a situação chegasse a esse ponto,
mas faria o que tivesse que fazer se fosse preciso. Tirou o celular e fez a única chamada que sabia que o impediria de fazer uma escolha entre duas opções ruins. Rachel Walling atendeu no segundo toque.

- Então, o que está acontecendo por aí na Tática? Perguntou ele.

- Ah, a gente sempre tem alguma coisa acontecendo por aqui. Como é que foi lá no centro da cidade? Você ficou sabendo que Waits raptou outra mulher ontem à noite?

Rachel tinha o hábito de fazer mais de uma pergunta ao mesmo tempo, especialmente quando estava empolgada. Bosch lhe contou que ficara sabendo sobre o rapto e então fez um relato sobre suas atividades da manhã.

- Então o que você vai fazer?

- Bom, eu estava pensando em ver se o FBI não estaria interessado em acompanhar o caso.

- E qual aspecto do caso atrairia a atenção da esfera federal?

- Ah, você sabe, corrupção de funcionários públicos, delitos relacionados a finanças de campanha, rapto, gatos e cachorros morando juntos, o de sempre. Ela continuou séria.

- Não sei Harry. Você abre essa porta e não tem como dizer onde ela vai dar.

- Mas eu tenho alguém do lado de dentro. Alguém que vai estar atento e proteger o caso.

- Errado. Eles provavelmente não me deixariam nem chegar perto disso. Não é o meu grupo e existe um conflito de interesses.

- Que conflito? Nós já trabalhamos juntos antes.

- Só estou lhe dizendo como isso provavelmente vai ser recebido.

- Escute, eu preciso de um mandado de busca. Se eu passar dos limites para conseguir um, provavelmente não poderei mais voltar. Sei que vai ser a gota d’água com Pratt, com certeza. Mas se eu puder dizer que fui incluído em uma investigação federal, então isso me forneceria uma explicação válida. Isso me daria uma saída. Tudo o que quero é olhar o arquivo de Foxworth no DISF. Acho que isso vai nos levar até seja lá o que for em Echo Park. Ela ficou em silêncio por um longo momento antes de responder.

- Onde você está agora?

- Ainda estou no DISF.

- Vá comprar uma rosquinha ou algo assim. Vou para aí assim que puder.

- Tem certeza?

- Não, mas é isso o que vamos fazer. Ela desligou o telefone.

Bosch fechou o seu e olhou à sua volta. Em vez de comprar uma rosquinha, foi até uma caixa de jornais e pegou a edição matinal do Times. Sentou-se na floreira que havia em toda a frente do prédio do DISF e procurou pelo jornal matérias sobre Raynard Waits ou sobre as investigações em Beachwood Canyon. Não havia nenhum material sobre o rapto no Hollywood Boulevard porque ele havia ocorrido durante a noite e muito depois do fechamento do jornal. A cobertura da história de Waits tinha saído da primeira página da seção de cidades, mas ainda era extensa. Havia três matérias no total. O relato mais proeminente era sobre a caçada nacional, até agora malsucedida, ao assassino serial que havia fugido. A maioria das informações já tinha se tornado obsoleta pelos acontecimentos da noite. Não havia mais caçada em nível nacional. Waits ainda estava na cidade. Essa história se destacava na seção emoldurada por duas colunas laterais. Um
a delas era uma atualização sobre o andamento da investigação, apresentando alguns detalhes do que havia acontecido durante o tiroteio e a fuga, e a outra história era uma atualização política. Esta matéria fora escrita por Keisha Russell, e Bosch rapidamente passou os olhos por ela para ver se alguma coisa do que haviam conversado sobre o financiamento da campanha de Rick O’Shea tinha aparecido no jornal. Por sorte, não havia nada, e ele sentiu sua confiança nela aumentar.

Bosch terminou de ler as matérias e ainda não havia sinal de Rachel. Passou para outras partes do jornal, estudando as matérias mais importantes sobre eventos esportivos para os quais não dava a mínima e lendo as críticas de filmes que nunca iria ver. Quando não havia mais nada para ler, colocou o jornal de lado e começou a andar de um lado para outro na frente do edifício. Estava ansioso, preocupado em perder a vantagem que as descobertas daquela manhã haviam lhe dado. Tirou o telefone para ligar para ela, mas decidiu ligar para o Hospital St. Joseph para saber como estava Kiz. Ele fora transferido para o setor de enfermagem no terceiro andar e colocado em espera. Enquanto aguardava, Bosch viu Rachel finalmente chegar em um carro federal. Ele fechou o telefone, atravessou a calçada e se encontrou com ela quando ela estava descendo.

- Qual é o plano? Perguntou ele, como forma de saudação.

- O quê? Sem “como vai?” ou “obrigado por ter vindo”?

- Obrigado por ter vindo. Qual é o plano? Começaram a entrar no prédio.

- O plano é o plano federal. Eu entro lá e jogo para cima do encarregado toda a força e o peso do governo deste grande país. Aceno com o espectro do terrorismo e ele nos dá o arquivo. Bosch parou.

- Você chama isso de plano?

- Tem funcionado muito bem para nós há mais de cinquenta anos. Ela não parou. Ele agora teve que se apressar para alcançá-la.

- Como você sabe que é um encarregado?

- Porque sempre é. Qual o caminho? Ele apontou para frente no corredor principal. Rachel não interrompeu suas passadas.

- Eu não fiquei esperando durante quarenta minutos para isso, Rachel.

- Você tem uma ideia melhor?

- Eu tive uma ideia melhor. Um mandado de busca federal, lembra?

- Isso nunca daria certo, Bosch. É o que eu lhe disse: eu abro essa porta e você acaba pisoteado. Isto é melhor. Entramos e saímos. Se eu conseguir o arquivo para você, eu consegui o arquivo. Não importa como.

Ela estava dois passos à frente dele agora, movida por um impulso federal. Bosch secretamente começou a acreditar. Ela atravessou as portas duplas embaixo da placa que dizia REGISTROS com uma autoridade e presença de comando que não podiam ser questionadas. A funcionária com a qual Bosch havia falado antes estava no balcão falando com outro cidadão. Walling se aproximou e não esperou um convite para falar. Tirou suas credenciais de dentro do bolso do casaco com um movimento rápido.

- FBI. Preciso falar com o seu gerente sobre um assunto urgente. A funcionária olhou para ela sem se impressionar.

- Falo com a senhora assim que term...

- Você já está falando comigo agora, querida. Vá chamar o seu chefe ou eu mesma faço isso. É uma urgência de vida ou morte.

A expressão no rosto da mulher pareceu indicar que ela nunca havia visto tanta grosseria antes. Sem uma palavra para o cidadão que estava à sua frente ou para qualquer outra pessoa, ela se afastou do balcão e se dirigiu para uma porta atrás de uma fileira de cubículos. Eles esperaram menos de um minuto. A funcionária voltou pela mesma porta, seguida por um homem usando uma camisa de mangas curtas e uma gravata de cor castanha. Ele veio diretamente para Rachel Walling.

- Eu sou o Sr. Osborne. Em que posso ajudá-la?

- Precisamos ir até sua sala, senhor. É um assunto muito confidencial.

- Venham por aqui, por favor. Ele apontou para uma porta giratória no final do balcão. Bosch e Walling caminharam até ela e a tranca fez um leve zumbido antes de abrir. Eles seguiram Osborne até o fundo e entraram pela porta de trás de seu escritório. Rachel deixou que ele olhasse suas credenciais depois que se sentou em uma mesa enfeitada com empoeirados objetos alusiva aos Dodgers. Havia um sanduíche do Subway embrulhado ocupando a frente e o centro da mesa.

- Do que se trata esta...

- Sr. Osborne, eu trabalho para a Unidade de Inteligência Tática aqui em Los Angeles. Tenho certeza de que o senhor entende o que isso significa. E este é o detetive Harry Bosch do DPLA. Estamos trabalhando em uma investigação conjunta de grande importância e urgência. Descobrimos, por meio de sua funcionária, a existência de um arquivo que pertence a um indivíduo de nome Robert Foxworth, data de nascimento 3/11/71. É de importância vital que nos seja permitido examinar esse arquivo imediatamente. Osborne concordou com a cabeça, mas o que ele disse não combinou com o gesto.

- Eu compreendo. Mas aqui no DISF nós trabalhamos sob uma legislação muito precisa. As leis estaduais que protegem as crianças. As fichas dos menores sob nossa custódia não são abertas ao público sem uma ordem judicial. Minhas mãos estão amarr...

- Meu senhor, Robert Foxworth não é mais um menor. Ele tem 34 anos. O arquivo talvez contenha informações que podem nos levar a evitar uma grave ameaça a esta cidade. Vai, sem sombra de dúvida, salvar vidas.

- Eu sei, mas vocês têm que entender que não estamos...

- Eu entendo. Eu entendo perfeitamente que, se não virmos esse arquivo agora, estaremos falando sobre perdas de vidas humanas. O senhor não quer isso na sua consciência, Sr. Osborne, e nem nós. É por isso que estamos no mesmo time. Eu faço um acordo com o senhor. Nós revisaremos o arquivo bem aqui no seu escritório e na sua presença. Enquanto isso, eu dou um telefonema e instruo um membro de minha equipe na Tática para providenciar uma ordem judicial. Cuidarei para que seja assinada por um juiz e entregue ao senhor até o fim do expediente de hoje.

- Bom... Eu teria que requisitá-lo da seção de arquivamento.

- E essa seção fica neste prédio?

- Sim, lá embaixo.

- Então, por favor, ligue para eles e peça para mandarem o arquivo para cá. Nós não temos muito tempo.

- Esperem aqui. Vou cuidar disso pessoalmente.

- Obrigada, Sr. Osborne. O homem saiu do escritório, e Walling e Bosch se sentaram em cadeiras na frente da mesa dele. Rachel sorriu. - Agora vamos torcer para ele não mudar de ideia, disse ela.

- Você é muito boa, disse ele. - Eu digo para a minha filha que ela poderia convencer uma zebra a abandonar suas listras. Acho que você conseguiria fazer isso com um tigre.

- Se eu conseguir isso, você me deve outro almoço no Water Grill.

- Ótimo. Mas sem sashimi.

Eles esperaram pela volta de Osborne por quase 15 minutos. Quando voltou, ele estava carregando uma pasta com quase 3 centímetros de espessura. Ele entregou-a a Walling, que a pegou enquanto levantava. Bosch entendeu a dica e também se levantou.

- Devolveremos isto ao senhor assim que possível, disse ela. - Obrigada, Sr. Osborne.

- Espere um pouco! Você disse que iria examiná-la aqui mesmo. Rachel estava se encaminhando para a porta do escritório, com a mesma determinação de antes.

- Não há mais tempo, Sr. Osborne. Precisamos ir. O senhor terá seu arquivo de volta amanhã de manhã. Ela já estava saindo. Bosch seguiu-a, fechando a porta em cima das últimas palavras de Osborne.

- E quanto à ordem judici... Quando passaram por trás da funcionária, Walling pediu que ela abrisse a porta. Rachel se manteve dois passos à frente de Bosch enquanto seguiam pelo corredor principal. Ele gostava de andar atrás dela e lhe admirava a postura. Presença de comando no nível máximo.

- Será que tem um Starbucks aqui por perto onde possamos sentar e dar uma olhada nesta coisa? Eu queria ver o que temos aqui antes de voltar.

- Sempre tem um Starbucks por perto.

Na calçada, andaram em direção a leste até que chegaram a uma pequena lanchonete com um balcão com banquinhos. Era mais fácil do que procurar um Starbucks, então eles entraram. Enquanto Bosch pediu dois cafés ao homem que estava atrás do balcão, Rachel abriu o arquivo. Quando os cafés foram colocados sobre o balcão e pagos, ela já estava uma página à frente dele. Estavam sentados lado a lado, e, assim que acabava de ler, ela passava cada página para ele. Trabalharam em silêncio e nenhum deles tomou seu café. O pedido do café apenas havia lhes comprado um espaço no balcão para trabalhar. O primeiro documento no arquivo era uma cópia da certidão de nascimento de Foxworth. Ele tinha nascido no Hospital Queen of Angels. A mãe estava registrada como Rosemary Foxworth, data de nascimento 21/6/54, Filadélfia, Pensilvânia, e o pai estava registrado como desconhecido. O endereço da mãe era um apartamento na Orchid Avenue em Holl
ywood. Bosch localizou o endereço no meio da área que agora era chamada de Kodak Center, parte do plano de renovação e reconstituição de Hollywood. Agora a área estava cheia de tapetes vermelhos, vidro e ostentação, mas em 1971 o bairro era patrulhado por prostitutas e traficantes. A certidão de nascimento também registrava o nome do médico que fizera o parto e de uma assistente social do hospital envolvida no caso.

Bosch fez as contas. Rosemary Foxworth tinha 17 anos quando teve o filho. Não havia registro de um pai, presente ou ausente. Nenhum pai conhecido. A presença de uma assistente social significava que o condado estava pagando a conta do parto e que o endereço residencial não representava um bom começo para o bebê Robert. Tudo isso levou a uma imagem que se revelava como uma foto polaroide na mente de Bosch. Ele conjecturou que Rosemary Foxworth tinha fugido da Filadélfia, que chegara a Hollywood e dividira um apartamento barato com outras na mesma condição dela. Ela provavelmente trabalhava como prostituta nas ruas das redondezas. Provavelmente usava drogas. Deu à luz o garoto e então o condado acabou se intrometendo e o tirou dela.

À medida que Rachel lhe passava mais documentos, a triste história era comprovada. Robert Foxworth foi retirado da guarda de sua mãe com 2 anos de idade e levado para o sistema do DISF. Durante os próximos 16 anos de sua vida ele entrou e saiu de casas de adoção e instituições para jovens. Bosch reparou que entre os locais por onde Foxworth havia passado estava a McLaren Youth Hall, em El Monte, um lugar onde ele próprio havia passado muitos anos quando criança. O arquivo estava repleto de avaliações psiquiátricas realizadas anualmente ou depois dos frequentes retornos de Foxworth das casas de adoção. No geral, o arquivo mapeava a jornada de uma vida arruinada. Triste, sim. Incomum, não. Era a história de uma criança tirada de seu único progenitor e em seguida igualmente maltratada pela instituição que a acolhera. Foxworth vagueou de um lugar a outro. Não teve um lar verdadeiro, nem uma família. Provavelmente nunca soube o que er
a ser querido ou amado. A leitura daquelas páginas fez aflorar lembranças em Bosch. Duas décadas antes da passagem de Foxworth pelo sistema, Bosch havia trilhado seu próprio caminho. Havia sobrevivido a seu próprio conjunto de cicatrizes, mas os danos não eram nada se comparados às feridas de Foxworth.

O próximo documento que Rachel lhe passou era um atestado de óbito de Rosemary Foxworth. Ela morreu em 5 de março de 1986, de complicações decorrentes do uso de drogas e de hepatite C. Tinha morrido na enfermaria prisional do Centro Médico da Universidade da Califórnia do Sul. Robert Foxworth teria 14 anos.

- Aqui, aqui, disse Rachel de repente.

- Que foi?

- A estada mais longa dele em qualquer casa de adoção foi em Echo Park. E qual o nome das pessoas com quem ele ficou? Harlan e Janet Saxon.

- Qual é o endereço?

- 710 Figueroa Lane. Ele ficou lá de 1983 a 1987. Um total de quatro anos. Deve ter gostado deles, e acho que eles também gostaram dele. Bosch se inclinou para olhar o documento na frente dela.

- Ele estava em Figueroa Terrace, apenas a alguns quarteirões desse endereço, quando foi parado com os corpos nos sacos, disse ele.

- Se eles o tivessem seguido só por mais um minuto, teriam encontrado o lugar!

- Se era para lá que ele estava indo.

- Tem que ser o lugar para onde ele estava indo.

Ela passou a página para ele e foi para a próxima. Mas Bosch desceu do banco e se afastou do balcão. Já havia lido o suficiente por enquanto. Estivera procurando por uma ligação com Echo Park e agora sabia que tinha. Estava pronto para colocar de lado o trabalho de pesquisa. Estava pronto para agir.

- Harry, esses relatórios dos psiquiatras do tempo em que era adolescente... Ele estava falando umas merdas bem doentias aqui.

- Como o quê?

- Muita raiva contra mulheres. Mulheres jovens e promíscuas. Prostitutas, usuárias de drogas. Você sabe qual é o aspecto psicológico disso? Você sabe o que eu acho que ele acabou fazendo?

- Não e não. O que é?

- Ele estava matando a mãe repetidas vezes. Todas aquelas mulheres e garotas desaparecidas pelas quais ele foi acusado. Aquela de ontem à noite. Para ele, elas eram como a mãe. E ele queria matá-la por tê-lo abandonado. E talvez matá-las antes que elas fizessem a mesma coisa... Trouxessem uma criança ao mundo. Bosch concordou.

- É um belo trabalho de psiquiatria. Se tivéssemos tempo, você provavelmente conseguiria decifrar a alma dele. Mas ela não o abandonou. Eles o tiraram dela. Ela balançou a cabeça.

- Não importa, disse. - Abandono em decorrência de estilo de vida. O estado não teve escolha a não ser interferir e tirá-lo dela. Drogas, prostituição, o cenário completo. Por ser uma mãe inadequada, ela o abandonou nessa instituição profundamente imperfeita na qual ele ficou encurralado até ser velho o suficiente para se virar sozinho. Na mente dele, isso constituiu abandono.

Bosch balançou a cabeça lentamente. Achava que ela estava certa, mas a situação toda o deixava pouco à vontade. Parecia muito pessoal para Bosch, muito semelhante a seu próprio caminho. A não ser por uma curva aqui e outra ali, Bosch e Foxworth tinham feito jornadas semelhantes. Foxworth estava fadado a matar sua própria mãe repetidas vezes. Um psiquiatra da polícia certa vez disse a Bosch que ele estava fadado a resolver o assassinato de sua própria mãe repetidas vezes.

- O que foi? Bosch olhou para ela. Ainda não havia contado a Rachel sua própria história de sordidez. Não queria as habilidades analíticas dela voltadas para ele.

- Nada, disse ele. - Só estou pensando.

- Você está com cara de quem viu um fantasma, Bosch. Ele deu de ombros. Walling fechou o arquivo sobre o balcão e finalmente pegou a xícara de café para bebericar. - E agora? Perguntou ela. Bosch olhou para ela por um longo momento antes de responder.

- Echo Park, disse ele.

- Que tal pedir apoio?

- Vou investigar primeiro, depois eu requisito apoio. Ela balançou a cabeça.

- Eu vou com você.

 

PARTE QUATRO

O CACHORRO QUE VOCÊ ALIMENTA

CAPÍTULO 27

Bosch e Walling usaram o Mustang de Bosch, uma vez que ele lhes daria pelo menos algum nível de disfarce se comparado ao carro federal dela, que tinha toda a aparência de um veículo ligado às autoridades policiais. Dirigiram até Echo Park, mas não se aproximaram da casa dos Saxon no número 710 da Figueroa Lane. Havia um problema. Figueroa Lane era uma rua curta que se estendia por um quarteirão começando no final da Figueroa Terrace e fazendo uma curva abaixo da Chávez Ravine. Não havia como passar por lá sem ser notado. Mesmo em um Mustang. Se Waits estava lá e de olho em uma possível investida da polícia, ele teria a vantagem de vê-los antes. Bosch parou o carro no cruzamento da Beaudry com o Figueroa Terrace e tamborilou os dedos sobre o volante.

- Ele escolheu um bom lugar para o castelo secreto, disse. - Não há como chegar perto sem ser visto. Especialmente durante o dia. Rachel concordou.

- Os castelos medievais eram construídos no topo das colinas pelo mesmo motivo.

Bosch olhou para a esquerda, na direção do centro da cidade, e viu os altos edifícios se erguendo acima dos telhados das casas da Figueroa Terrace. Um dos edifícios mais altos e mais próximos era a sede do Departamento de Água e Energia. Ficava diretamente do outro lado da autoestrada.

- Tive uma ideia, disse ele. Eles saíram daquele bairro e rumaram de volta para o centro da cidade. Bosch entrou na garagem do DAE e estacionou em uma das vagas para visitantes. Abriu o porta-malas e puxou o kit de vigilância que sempre mantinha no carro. Tirou um par de binóculos potentes, uma câmera de vigilância e um saco de dormir enrolado.

- O que você vai fotografar? Perguntou Walling.

- Nada. Mas ela tem uma boa objetiva e talvez você queira olhar com ela enquanto eu uso os binóculos.

- E o saco de dormir?

- Talvez tenhamos que deitar no telhado. Não quero que sua roupinha bacana de federal se suje.

- Não se preocupe comigo. Preocupe-se com você.

- Eu estou preocupado com aquela garota que Waits agarrou. Vamos embora. Eles atravessaram a garagem em direção aos elevadores.

- Você reparou que ainda o chama de Waits, apesar de agora nós sabermos com certeza que o nome dele é Foxworth? Perguntou ela enquanto subiam.

- É, reparei. Acho que é porque, quando estávamos cara a cara, ele era Waits. Quando começou a atirar, ele era Waits. E esse nome acabou grudando. Ela balançou a cabeça e não disse mais nada sobre aquilo, embora Bosch achasse que ela provavelmente tinha um ângulo psicológico para analisar aquela situação.

Quando chegaram ao saguão, Bosch foi a um balcão de informações, mostrou seu distintivo e credenciais e pediu para ver o supervisor de segurança. Disse ao homem do balcão que era urgente. Em menos de dois minutos um negro alto com calças cinzentas e um paletó azul-escuro sobre a camisa branca atravessou uma porta e veio diretamente na direção deles. Dessa vez Bosch e Walling mostraram suas credenciais e o homem pareceu bastante impressionado pela combinação federal-local.

- Hieronymus, disse ele, lendo a identidade policial de Bosch. - Chamam você de Harry?

- Isso mesmo. O homem estendeu a mão e sorriu.

- Jason Edgar. Acho que você e meu primo já foram parceiros. Bosch sorriu, não só pela coincidência, mas porque sabia que teria a cooperação daquele homem. Colocou o saco de dormir debaixo de seu outro braço e lhe apertou a mão.

- Isso mesmo. - Ele me contou que tinha um primo no DAE. Você costumava arranjar informações sobre contas para ele. É um prazer conhecê-lo.

- Igualmente, meu chapa. O que temos aqui? Se o FBI está envolvido, estamos falando de uma situação de terrorismo? Rachel ergueu uma das mãos em um gesto de calma.


- Não exatamente, disse ela. - Jason, nós estamos apenas procurando um lugar onde possamos olhar a vizinhança do outro lado da autoestrada em Echo Park. Estamos interessados em uma casa e não podemos chegar perto sem chamar atenção, entende? Estávamos pensando que talvez de um dos escritórios aqui ou do telhado nós pudéssemos ter um bom ângulo e ver o que está acontecendo lá.

- Eu tenho o lugar perfeito, disse Edgar sem hesitar. - Venham comigo.

Ele os levou de volta aos elevadores e teve que usar uma chave para ligar o botão indicador do décimo quinto andar. Enquanto subiam, explicou que o prédio estava sendo reformado. No momento, a reforma tinha chegado ao décimo quinto andar. Toda a área daquele andar fora esvaziada, esperando a chegada da equipe do empreiteiro para começar a obra.

- Vocês terão o andar inteiro só para vocês, disse ele. - Podem escolher o ângulo que quiserem para um PO. Bosch assentiu. PO era ponto de observação. Isso lhe disse alguma coisa sobre Jason Edgar.

- Onde você serviu? Ele perguntou.

- Fuzileiros Navais, Tempestade no Deserto, toda aquela coisa. Foi por isso que eu não fui para o DP. Estava com a minha cota de áreas de guerra bem cheia. Este trabalho é bem sossegado, das nove as cinco, baixo nível de estresse e igualmente interessante, se é que você me entende.

Bosch não entendeu, mas concordou com um movimento da cabeça. As portas do elevador se abriram e eles saíram em um andar bastante amplo e envidraçado. Edgar levou-os à parede de vidro que dava para Echo Park.

- Afinal, do que se trata tudo isso? Perguntou Edgar. Bosch tinha certeza de que aquele momento chegaria. Tinha uma resposta pronta.

- Há um lugar lá embaixo que achamos que está sendo usado como esconderijo para fugitivos. Só queremos ver se há realmente alguma coisa para ver. Entende?

- Claro.

- Há mais uma coisa que você pode fazer para nos ajudar, disse Walling. Bosch se virou para ela junto com Edgar. Estava igualmente curioso.

- Do que precisa? Perguntou Edgar.

- Você poderia verificar o endereço nos seus computadores e nos dizer quem é que está pagando os serviços de água e luz?

- Sem problema. Mas antes vou situar vocês aqui.

Bosch acenou com a cabeça para Rachel. Aquela era uma ótima ideia. Não só tiraria o curioso Edgar do caminho por algum tempo, mas também poderia lhes proporcionar informações valiosas sobre a casa em Figueiroa Lane. Na parede de vidro que ia do chão ao teto no lado norte do edifício, Bosch e Walling olharam para baixo e para Echo Park, do outro lado da 101. Estavam mais longe do local que iriam vigiar do que Bosch havia pensado que estariam, mas ainda tinham uma boa vantagem. Ele mostrou a Rachel os marcadores geográficos.

- Lá está Fig Terrace, disse ele. - Aquelas três casas acima da curva estão em Fig Lane. Ela concordou. Figueroa Lane tinha apenas três casas. Daquela altura e distância, aquele trecho parecia uma lembrança de última hora, a descoberta tardia de um empreiteiro de que ele poderia enfiar mais três casas na encosta da colina depois que o projeto da rua principal já estava estabelecido.

- Qual delas é o número 710? Ela perguntou.

- Boa pergunta.

Bosch colocou o saco de dormir no chão e levantou os binóculos. Estudou as três casas, procurando uma indicação de numeração. Por fim concentrou o foco em uma lata de lixo preta que estava na frente da casa do meio. Alguém havia pintado 712 em grandes números brancos, em uma tentativa de evitar que fosse roubada. Bosch sabia que os números aumentavam à medida que a rua se afastava do centro da cidade.

- A da direita é a 710, disse ele.

- Já vi, disse ela.

- Então esse é o endereço? Perguntou Edgar. - 710 Fig Lane?

- Figueroa Lane, disse Bosch.

- Entendi. Eu vou ver o que consigo descobrir. Se alguém vier aqui e perguntar o que vocês estão fazendo, diga para ligar para mim no 338. É o meu ramal.

- Obrigado, Jason.

- Sem problema. Edgar voltou para os elevadores. Bosch pensou em algo e chamou-o.

- Jason, este vidro tem película refletora, não é? Ninguém pode nos ver lá de fora, certo? - É, sem problema. Você poderia ficar pelado aí e ninguém o veria lá de fora. Mas não tente isso à noite, porque aí a história é outra. A luz interna muda as coisas e quem está do lado de fora pode ver do lado de dentro. Bosch assentiu.

- Obrigado.

- Quando eu voltar, eu trago umas cadeiras.

- Isso seria ótimo. Depois que Edgar desapareceu no elevador, Walling disse:

- Bom, pelo menos vamos poder ficar sentados quando estivermos sem roupa na frente da janela. Bosch sorriu.

- Tive a impressão de que ele sabia tudo aquilo por experiência própria, disse ele.

- Tomara que não.

Bosch ergueu os binóculos e olhou a casa no número 710 da Figueroa Lane. O estilo era semelhante ao das outras duas na rua; construídas no alto da encosta com degraus que levavam a uma garagem que dava para a rua recortada no declive abaixo da casa, que tinha telhas vermelhas e decoração com motivos espanhóis. Mas enquanto as outras casas da rua estavam bem pintadas e cuidadas, a 710 parecia decaída. A tinta cor-de-rosa havia desbotado. O declive entre a garagem e a casa estava tomado por mato. O mastro que se erguia no canto da varanda da frente não tinha bandeira. Bosch ajustou o foco e passou de janela em janela, procurando indícios de ocupação, esperando ter sorte e ver o próprio Waits olhando para fora. A seu lado ele ouviu Walling tirando algumas fotos. Ela estava usando a câmera.

- Acho que não tem filme aí. Não é digital.

- Tudo bem. É só força do hábito. E eu não esperaria que um dinossauro como você tivesse uma câmera digital.

Por trás dos binóculos, Bosch sorriu. Tentou pensar em uma resposta à altura, mas deixou passar. Voltou a concentrar sua atenção na casa. O estilo da construção era muito comum nos bairros mais antigos da cidade. Enquanto com as novas construções o contorno do terreno determinava o projeto, as casas no lado inclinado da Figueroa Lane eram de um estilo mais imponente. No nível da rua, o declive fora escavado para fazer a garagem. Então, acima dela, a ladeira fora recortada para formar um terraço, e uma casa pequena de um andar fora construída. As montanhas e ladeiras por toda a cidade foram moldadas dessa forma nas décadas de 40 e 50 à medida que a cidade se espalhava através das áreas planas e crescia sobre as ladeiras como uma maré cheia. Bosch reparou que no topo das escadas que subiam do lado da garagem até a varanda da frente havia uma pequena plataforma de metal. Verificou a escada novamente e viu os trilhos de metal.

- Há um elevador na escada, disse ele. - Seja quem for que more lá agora, usa cadeira de rodas.

Ele não viu qualquer movimento atrás das janelas que podiam ser vistas de onde eles estavam. Baixou o foco para a garagem. Havia uma porta comum e portas duplas para a garagem que tinham sido pintadas de cor-de-rosa muito tempo atrás. O que havia sobrado da tinta estava acinzentado agora e a madeira rachara em diversos lugares pela exposição direta ao sol da tarde. Uma das portas da garagem parecia estar fechada em um ângulo irregular em relação ao calçamento. Não parecia mais estar funcionando. A porta de entrada tinha uma janela, mas havia uma persiana abaixada por trás dela. Atravessando de um lado a outro sobre as duas portas da garagem havia uma fileira de pequenas janelas quadradas, mas elas estavam recebendo a luz do sol direta e o reflexo impedia Bosch de ver lá dentro. Bosch ouviu a campainha do elevador e abaixou os binóculos pela primeira vez. Olhou para trás e viu Jason Edgar carregando duas cadeiras na direção deles.

- Perfeito, disse Bosch. Ele pegou uma das cadeiras e posicionou-a perto do vidro para que pudesse se sentar nela ao contrário e apoiar os cotovelos no encosto da cadeira, a posição clássica de observação. Rachel posicionou sua cadeira de maneira a sentar normalmente nela.

- Você conseguiu verificar os registros, Jason? Ela perguntou.

- Consegui, disse Edgar. - As contas de serviços daquele endereço saem no nome de Janet Saxon há 21 anos.

- Obrigada.

- Sem problema. Isso é tudo que vocês precisam que eu faça por enquanto? Bosch ergueu os olhos para Edgar.

- Jerry, você... Quero dizer, Jason... Você foi de grande ajuda. Agradecemos muito. Nós provavelmente vamos ficar por aqui mais um pouco e depois vamos embora. Você quer que o avisemos ou que deixemos estas cadeiras em algum lugar?

- Ah, é só dizer ao cara que fica lá no saguão quando estiverem saindo. Ele me manda uma mensagem. E pode deixar as cadeiras. Eu cuido delas depois.

- Pode deixar. Obrigado.

- Boa sorte. Espero que peguem o sujeito. Todos trocaram apertos de mãos, e Edgar voltou para o elevador.

Bosch e Walling voltaram a observar a casa na Figueroa Lane. Bosch perguntou a Rachel se ela preferia revezar com ele e ela disse não. Ele perguntou se ela preferia usar os binóculos e ela disse que continuaria com a câmera. A objetiva da máquina na verdade lhe permitia ter um foco mais próximo do que a do binóculo. Vinte minutos se passaram e não se viu nenhum movimento na casa. Bosch havia passado o tempo movendo os binóculos entre a casa e a garagem, mas agora os estava apontando para a mata densa que ficava acima, procurando outro ponto de observação possível que os colocasse mais próximos. Walling falou, empolgada.

- Harry, a garagem.

Bosch abaixou o foco para a garagem. O sol havia se escondido atrás de uma nuvem e o brilho saíra da fileira de janelas sobre as portas da garagem. Bosch notou a descoberta de Rachel. Através das janelas da porta da garagem, que parecia ainda estar funcionando, ele pôde ver a parte traseira de uma van branca.

- Fiquei sabendo que uma van branca foi usada no rapto de ontem à noite, disse Walling.

- Foi o que ouvi também. Fazia parte do alerta pelo rádio. Ele estava empolgado. Uma van branca na casa onde Raynard Waits havia morado. - É isso aí! Ele gritou. - Ele tem que estar lá dentro com a garota. Rachel, nós temos que ir! Eles se levantaram e correram para o elevador.

 

CAPÍTULO 28

Enquanto saíam da garagem do DAE, os dois discutiram se deveriam pedir apoio ou não. Walling era a favor. Bosch era contra.

- Escute. Tudo o que temos é uma van branca, disse ele. - Pode ser que ela esteja naquela casa, mas talvez ele não esteja. Se entrarmos com tudo, nos arriscamos a perdê-lo. Então eu só quero olhar mais de perto. Podemos pedir apoio quando chegarmos lá. Se precisarmos. Ele acreditava que seu ponto de vista era razoável, mas o dela também era.

- E se ele estiver lá dentro? Ela perguntou. - Nós dois poderíamos estar indo na direção de uma emboscada. Precisamos, pelo menos, de uma equipe de apoio, Harry, para fazer isso da maneira correta e segura.

- Nós podemos chamá-los quando chegarmos lá.

- Aí vai ser tarde demais. Eu sei o que você está fazendo. Você quer pegar esse cara sozinho e não se importa de arriscar a vida daquela garota, e as nossas, para conseguir isso.

- Você quer pular fora, Rachel?

- Não, eu não quero pular fora, Harry.

- Ótimo. Eu quero que você esteja lá. Uma vez tomada a decisão, a discussão foi encerrada.

Figueroa Street passava por trás do prédio do DAE. Bosch entrou na rua pelo lado leste sob a 101, atravessou a Sunset e então seguiu por ela para o norte. A Figueroa Street se transformou em Figueroa Terrace, e eles foram com o carro até o lugar onde a rua terminava e a Figueroa Lane se curvava sobre a crista da colina. Bosch estacionou o carro junto ao meio-fio antes de subir a rua.

- Vamos a pé e ficamos perto das garagens até chegarmos à casa, disse ele. - Se ficarmos bem perto, ele não terá ângulo para nos ver se estiver na casa.

- E se ele não estiver na casa? E se ele estiver na garagem esperando por nós?

- Aí a gente dá um jeito. Vamos verificar primeiro a garagem e depois subimos até a casa.

- As casas estão no lado da colina. Ainda teremos que atravessar a rua. Ele olhou para ela por cima do carro depois que desceram.

- Rachel, você está comigo ou não?

- Eu já disse, estou com você.

- Então vamos.

Bosch saiu andando rapidamente pela calçada que levava colina acima. Tirou o telefone do bolso e desligou-o para que não houvesse a possibilidade de ele vibrar quando estivessem entrando furtivamente na casa. Ele estava ofegante quando chegaram à parte de cima. Rachel estava bem atrás dele e não mostrava o mesmo nível de falta de oxigenação. Bosch já não fumava há anos, mas os danos de 25 anos como fumante já tinham sido causados. A única exposição visual à casa cor-de-rosa que eles tiveram foi no final da rua quando chegaram ao topo e tiveram que atravessar até as garagens alinhadas do outro lado da rua. Saíram andando normalmente, Bosch segurando Walling pelo braço e sussurrando em seu ouvido.

- Estou usando você para ocultar o meu rosto, disse ele. - Ele já me viu, mas nunca viu você.

- Isso não faz diferença, disse ela, depois de atravessarem. - Se ele nos visse, pode apostar que saberia o que está acontecendo.

Ele ignorou a observação e se aproximou da frente das garagens que haviam sido construídas ao longo da linha da calçada. Chegaram rapidamente ao número 710, e Bosch foi até as janelas em cima de uma das portas. Colocando as mãos em concha sobre o vidro sujo, olhou lá dentro e viu que o interior estava completamente preenchido pela van e por caixas empilhadas, tambores e outras sucatas. Não viu qualquer movimento, nem ouviu um único som. Uma porta na parede do fundo da garagem estava fechada. Bosch foi até a porta lateral da garagem e verificou a maçaneta.

- Trancada, sussurrou.

Recuou e olhou para as duas portas de enrolar. Rachel agora estava em pé ao lado da mais distante, inclinada bem próxima a ela para tentar ouvir alguma coisa. Olhou para Bosch e balançou a cabeça. Nada. Ele olhou para baixo e viu que havia uma alça no final de cada uma das portas, mas nenhum mecanismo de fechadura à vista. Agachou-se na frente da primeira e tentou puxá-la para cima. Ela subiu uns 3 centímetros e então parou. Estava trancada pelo lado de dentro. Ele tentou a segunda porta e obteve o mesmo resultado. A porta cedia uns poucos centímetros e então parava. Pelo movimento mínimo que cada porta fazia, Bosch conjecturou que elas teriam sido trancadas por dentro com cadeados.

Bosch se ergueu e olhou para Rachel. Balançou a cabeça e apontou para cima, querendo dizer que era hora de subirem até a casa. Eles foram até a escada de concreto e começaram a subir em silêncio. Bosch foi à frente e parou a quatro degraus do topo. Ele se agachou e tentou recuperar o fôlego. Olhou para Rachel. Ele sabia que estavam indo depressa demais. Ele estava indo depressa demais. Não havia outra maneira de entrar na casa a não ser pela porta da frente. Bosch avaliou as janelas uma por uma. Não viu movimento, mas pensou ter ouvido o som de uma televisão ou um rádio vindo lá de dentro. Sacou a arma, era uma reserva que ele havia tirado do armário do corredor naquela manhã, e subiu os degraus restantes, segurando a arma abaixada ao lado do corpo enquanto atravessava silenciosamente a varanda até a porta da frente. Bosch sabia que a falta de um mandado não seria um problema ali. Waits havia raptado uma mulher, e a natureza de vida e mort
e da situação claramente os deixava em território livre para agir.

Colocou a mão na maçaneta, girando-a. A porta estava destrancada. Bosch abriu a porta lentamente, reparando que havia uma rampa de 6 centímetros sobre a soleira para facilitar a passagem de uma cadeira de rodas. Quando a porta se abriu, o som do rádio ficou mais alto. Uma estação evangélica, um homem falando sobre o êxtase iminente. Eles entraram. À direita havia uma sala de visitas com uma sala de jantar ao fundo. Em frente, depois de uma abertura em arco, ficava a cozinha. Um corredor à esquerda levava para o resto da casa. Sem olhar para Rachel, ele apontou para a direita, indicando que ela iria naquela direção enquanto ele seguiria em frente e verificaria a cozinha antes de seguir pelo corredor à esquerda. Ao chegar sob a estrutura em arco, Bosch olhou para Rachel e viu-a atravessando a sala de visitas, segurando com as duas mãos a arma levantada. Ele entrou na cozinha e viu que estava limpa e arrumada, sem um só prato na pia. O rádio esta
va sobre o balcão. O locutor dizia a seus ouvintes que aqueles que não acreditassem seriam deixados para trás. Havia outro arco que levava da cozinha à sala de jantar. Rachel veio por ele, apontou a arma para cima ao ver Bosch e balançou a cabeça. Nada. Sobrava o corredor que levava aos quartos e ao resto da casa.

Bosch voltou para a área de entrada pelo caminho que Rachel fizera. Quando virou para entrar no corredor, ficou surpreso ao ver uma mulher idosa sentada em uma cadeira de rodas na soleira da porta que dava para o corredor. No colo ela segurava um revólver de cano longo. Parecia ser pesado demais para seu braço frágil erguer.

- Quem está aí? Perguntou ela com a voz forte. A cabeça dela estava virada em um ângulo. Embora os olhos estivessem abertos, eles estavam voltados para o chão, e não para Bosch. Era o ouvido dela que estava virado na direção dele, e ele notou que ela era cega. Ele ergueu a arma e apontou para ela.

- Sra. Saxon? Tenha calma. Meu nome é Harry Bosch. Eu só estou procurando o Robert. Uma expressão de perplexidade lhe apareceu no rosto.

- Quem?

- Robert Foxworth. Ele está aqui?

- Você errou de casa, e como ousa entrar aqui sem bater?

- Eu...

- Bobby usa a garagem. Eu não o deixo usar a casa. Todos aqueles produtos químicos têm um cheiro horrível. Bosch começou a se aproximar dela, os olhos no revólver o tempo todo.

- Desculpe Sra. Saxon. Pensei que ele estivesse aqui. Ele tem vindo aqui ultimamente?

- Ele vem e vai. Ele vem aqui em cima só para me dar o aluguel, só isso.

- Pela garagem? Ele estava chegando mais perto.

- Foi o que eu disse. Para que você quer falar com ele? Você é amigo dele?

- Eu só quero conversar com ele. Bosch estendeu a mão rapidamente e lhe tirou a arma.

- Ei! Isso é para me proteger.

- Tudo bem, Sra. Saxon. Eu devolvo depois. Acho que precisa dar uma limpada nela. E colocar óleo. Assim a senhora vai ter certeza de que vai funcionar se algum dia realmente precisar usá-la.

- Eu preciso dela.

- Vou levar lá embaixo, na garagem, e pedir para o Bobby limpar. Depois eu trago de volta.

- Acho bom mesmo. Bosch verificou a arma. Estava carregada e parecia pronta para funcionar. Colocou-a na cintura, na parte de trás das calças, e olhou para Rachel. Ela estava em pé 2 metros atrás dele, quase na entrada. Fez um movimento com a mão, imitando o gesto de virar uma chave. Bosch entendeu.

- A senhora tem a chave da porta da garagem, Sra. Saxon? Perguntou ele.

- Não, Bobby veio aqui e pegou a chave de reserva.

- Tudo bem, Sra. Saxon. Vou ver com ele. Ele se moveu para a porta da frente. Rachel se juntou a ele e os dois saíram. Na metade da escada para a garagem, Rachel agarrou o braço dele e sussurrou.

- Precisamos chamar o apoio. Agora!

- Tudo bem, pode chamar, mas eu vou entrar na garagem. Se ele estiver lá dentro com a garota, não podemos esperar.

Bosch se soltou do aperto dela e continuou a descer. Ao chegar à garagem, ele olhou mais uma vez através das janelas de cima e não viu qualquer movimento lá dentro. Seus olhos se fixaram na porta na parede do fundo. Ainda estava fechada. Foi até a porta lateral da garagem e abriu um pequeno canivete preso a seu chaveiro. Começou a trabalhar na fechadura da porta e colocou a lâmina atravessada sobre a lingueta. Fez um gesto com a cabeça indicando a Rachel que ficasse pronta e puxou a porta para abri-la. Mas ela não abriu. Ele tentou de novo, puxando com força. De novo a porta não abriu.

- Está trancada por dentro, sussurrou ele. - Isso significa que ele está aí dentro.

- Não, não significa. Pode ser que ele tenha saído por uma das portas da garagem. Ele balançou a cabeça.

- Elas estão trancadas pelo lado de dentro, sussurrou ele. - Todas as portas estão trancadas pelo lado de dentro. Rachel entendeu e concordou.

- O que vamos fazer? Sussurrou ela. Bosch pensou por um momento e então deu a ela suas chaves.

- Volta lá e traz o carro. Quando chegar aqui, estaciona de ré até chegar bem aqui. Aí você abre o porta-malas.

- O que você vai...

- Faz o que eu digo. Vai! Ela correu pela calçada na frente das garagens e então atravessou a rua e desapareceu colina abaixo.

Bosch se aproximou da porta de enrolar que parecia estar fechada de maneira estranha. Ela estava fora de alinhamento, e ele sabia que seria a melhor das duas para tentar entrar. Bosch ouviu o enorme motor do Mustang antes de ver seu carro aparecer na rua. Rachel dirigiu rapidamente até ele. Ele recuou até a parede da garagem para dar a ela o máximo de espaço de manobra. Ela quase fez uma curva completa na rua e então deu marcha a ré em direção à garagem. O porta-malas foi aberto, e Bosch imediatamente procurou a corda que guardava no fundo. Não estava lá. Ele então se lembrou de que Osani a levara depois de tê-la descoberto em Beachwood Canyon. “Merda!”. Vasculhou o porta-malas até encontrar um pedaço de corda de varal que certa vez havia usado para prender a tampa do porta-malas quando estava transportando um móvel para o Exército da Salvação. Amarrou rapidamente uma das pontas da corda a um gancho para reboque embaixo do para-choqu
e do carro e a outra ponta na alça que ficava na parte de baixo da porta da garagem. Sabia que alguma coisa iria ceder. A porta, a alça ou a corda. Tinha uma chance em três de conseguir abrir a porta. Rachel tinha saído do carro.

- O que você está fazendo? Perguntou ela. Bosch fechou o porta-malas com o mínimo de barulho.

- Vamos abrir essa porta. Entre de novo no carro e vá para frente. Devagar. Um puxão muito repentino pode arrebentar a corda. Vamos, Rachel. Anda logo.

Sem dizer nada, ela entrou novamente no carro, engatou a marcha e o carro começou a se mover para frente. Ela olhou pelo espelho retrovisor, e ele fez um gesto com o dedo que pedia para ela continuar indo para frente. A corda ficou tesa e então Bosch pôde ouvir o som da porta da garagem rangendo à medida que a pressão aumentava. Recuou e ao mesmo tempo sacou a arma novamente. A porta da garagem cedeu de repente e subiu uns 30 centímetros.

- Para! Gritou Bosch, sabendo que não havia mais a necessidade de falar baixo.

Rachel parou o carro, mas a corda continuou tesa e a porta da garagem ficou aberta. Bosch avançou rapidamente e aproveitou seu impulso para se abaixar e rolar por baixo da porta. Levantou-se dentro da garagem com a arma levantada e pronta para ação. Varreu o espaço com o olhar, mas não viu ninguém. Mantendo os olhos na porta dos fundos, andou de lado até a van. Puxou com força a maçaneta de uma das portas e verificou rapidamente seu interior. Estava vazia. Bosch se moveu para a parede do fundo, abrindo caminho através de uma pista de obstáculos com latões, rolos de plástico, pacotes de toalhas, rodos e outros equipamentos para lavar janelas. Havia um forte cheiro de amônia e outros produtos químicos. Os olhos de Bosch estavam começando a se encher de água. As dobradiças da porta nos fundos eram visíveis e Bosch sabia que ela abriria na direção dele.

- FBI! Gritou Walling lá de fora.

- Vou entrar!

- Tudo bem! Bosch gritou em resposta.

Ele a ouviu entrando pela porta da garagem, mas manteve sua atenção na parede do fundo. Moveu-se na direção dela, atento o tempo todo para qualquer som. Posicionando-se ao lado da porta, Bosch colocou a mão na maçaneta e virou-a. A porta estava destrancada. Olhou para Rachel, que estava atrás, pela primeira vez. Ela estava em posição de combate em um ponto que formava um ângulo com a porta. Ela confirmou com um movimento da cabeça, e ele, com um movimento rápido, abriu a porta e entrou. O lugar estava escuro, sem janelas, e ele não viu ninguém. Sabia que era um alvo em pé na frente da luz que entrava pela porta e mudou de posição. Viu a cordinha que acionava uma lâmpada presa ao teto e puxou-a com força. A corda arrebentou em sua mão, mas a lâmpada acendeu, o soquete pendurado balançando de um lado para outro. Ele estava em um quarto de despejo com uns 3 metros de profundidade. Não havia ninguém ali.

- Limpo! Rachel entrou e eles ficaram parados, examinando o quarto.

Uma bancada lotada de latas velhas de tinta, diversos tipos de ferramentas e lanternas estavam à direita. Quatro bicicletas velhas e enferrujadas estavam empilhadas contra a parede esquerda, junto com cadeiras dobráveis e caixas de papelão amassadas. A parede do fundo era um bloco de concreto. Pendurada nela estava uma bandeira velha e empoeirada para o mastro que ficava na parte da frente da casa. No chão em frente havia um ventilador elétrico de pé alto, as pás recobertas de pó e uma crosta de sujeira. Era como se alguém tivesse tentado soprar para fora o cheiro fétido e úmido daquele quarto.

- Merda! Disse Bosch. Ele abaixou a arma, se virou e passou por Rachel voltando para a garagem. Ela o seguiu. Bosch balançou a cabeça e tentou tirar um pouco daquele incômodo nos olhos esfregando-os. Ele não entendia. Será que era tarde demais? Será que estava atrás da pista errada o tempo todo? - Dê uma olhada na van, disse ele. - Veja se tem algum sinal da garota.

Rachel passou por trás dele para ir até a van, e Bosch foi até a porta lateral da garagem para buscar falhas em sua convicção de que tinha que haver alguém na garagem. Ele tinha que estar certo. Havia um trinco de segurança na porta, o que significava que ela só poderia ter sido trancada por dentro. Ele foi até as portas da garagem e se abaixou para olhar os mecanismos de trancamento. Estava certo mais uma vez. Ambas tinham cadeados presos por dentro. Tentou decifrar o enigma. Todas as três portas tinham sido trancadas pelo lado de dentro. Isso queria dizer que ou havia alguém na garagem ou que havia um ponto de saída que ele ainda não tinha identificado. Mas isso parecia impossível. A garagem era escavada diretamente no declive da colina. Não havia a possibilidade de existir uma porta dos fundos. Ele estava verificando o teto, conjecturando se seria possível que houvesse uma passagem que levasse até a casa em cima, quando Rachel gritou de d
entro da van.

- Achei um rolo de fita de vedação, disse ela. - Tem pedaços usados dela no chão com cabelos. Aquilo alimentou a crença de Bosch de que estava no lugar certo. Ele se aproximou do lado em que a porta da van estava aberta. Olhou para Rachel e pegou o telefone. Reparou na rampa para cadeira de rodas na van.

- Vou pedir reforços e chamar o pessoal da perícia, disse ele. - Nós o perdemos.

Teve que religar o telefone e, enquanto esperava que o aparelho voltasse à vida, notou algo. O ventilador de pedestal no quarto do fundo não estava apontado para as portas da garagem. Se a ideia era arejar o ambiente, qualquer um teria apontado o ventilador na direção da porta. O celular vibrou em sua mão e aquilo o distraiu. Olhou a tela e viu que tinha uma mensagem. Apertou a tecla para ver o que era e descobriu que acabara de perder uma ligação de Jerry Edgar. Retornaria a chamada mais tarde. Teclou o número do setor de Comunicações e pediu ao encarregado para conectá-lo com a Força-Tarefa de Fugitivos que estava cuidando do caso Raynard Waits. Um policial que se identificou como Freeman atendeu.

- Aqui é o detetive Harry Bosch. Tenho um...

- Harry! Cuidado! Rachel tinha gritado.

A realidade entrou em câmera lenta. Em um único segundo Bosch olhou para Rachel, que estava na porta da van, o olhar dela passando por cima do ombro dele e dirigido para o fundo da garagem. Sem pensar, ele pulou para frente e de encontro a ela, prendendo-a com um abraço e jogando-a no assoalho da van com força. Quatro tiros foram disparados atrás dele seguidos pelo som instantâneo das balas atingindo o metal e de vidro quebrando. Bosch rolou para o lado e se levantou com a arma na mão. Viu de relance uma figura se abaixando e entrando no quartinho do fundo. Disparou seis tiros na direção da porta e se moveu agachado para se encostar à parede do lado direito.

- Rachel, você está bem?

- Estou bem. Atingiu você?

- Acho que não!

- Era ele! Era o Waits. Os dois olharam para a porta do quartinho. Ninguém voltou por ela.

- Você o acertou? Sussurrou Rachel.

- Acho que não.

- Pensei que a gente tivesse verificado tudo naquele quarto.

- Eu também. Bosch se levantou, ainda mirando a porta. Percebeu que a luz lá de dentro estava apagada. - Eu deixei cair o celular, disse ele. - Peça reforços. Ele começou a se mover na direção da porta.

- Harry, espere. Ele pode...

- Peça reforços! E não se esqueça de dizer a eles que eu estou aqui.

Ele se afastou para a esquerda e se aproximou da porta por um ângulo que pudesse lhe dar o máximo de visão do espaço interior. Mas, com a lâmpada apagada, o quarto estava totalmente imerso em escuridão e ele não conseguia ver qualquer movimento. Começou a dar pequenos passos usando o pé direito primeiro e mantendo a posição de tiro. Atrás de si ouviu Rachel ao telefone se identificando e pedindo para ser transferida para o setor de Comunicações do DPLA. Bosch chegou à soleira e virou a arma rapidamente para cobrir a parte do quarto da qual ele não tinha ângulo. Entrou e se afastou para a direita. Nenhum movimento e nenhum sinal de Waits. O quarto estava vazio. Ele olhou para o ventilador e confirmou seu erro. O ventilador estava apontado na direção da bandeira que estava pendurada na parede dos fundos. O ventilador não fora usado para arejar o ambiente. Fora usado para jogar ar para dentro. Bosch deu dois passos na direção da bande
ira. Estendeu a mão, pegou-a pela borda e puxou-a para baixo, rasgando-a.

Na parede, a quase um metro do chão, havia a entrada de um túnel. Cerca de uma dúzia de blocos de concreto tinham sido removidos para criar uma abertura de mais de um metro quadrado e a escavação dentro da encosta da colina continuava daquele ponto. Bosch se agachou do lado direito, que era mais seguro, para olhar a abertura. O túnel era fundo e escuro, mas ele viu um leve brilho de luz a uns 30 metros para frente. Percebeu que o túnel fazia uma curva e que havia uma fonte de luz depois da curva. Bosch se aproximou e notou que conseguia ouvir um som que vinha do túnel. Era um choramingo bem baixo. Era um som terrível, mas ao mesmo tempo era lindo. Significava que, apesar de todos os horrores pelos quais havia passado durante a noite, a mulher que Waits havia raptado ainda estava viva. Bosch estendeu a mão na direção da bancada e pegou a lanterna mais brilhante que viu. Ligou-a: nada aconteceu. Tentou outra e conseguiu um facho de luz fraco. Teria que
se virar com aquela. Jogou o facho de luz dentro do túnel e confirmou que o primeiro trecho estava livre. Deu um passo na direção do túnel.

- Harry, espere! Ele se virou e viu Rachel na porta. - Os reforços estão a caminho, sussurrou ela. Bosch balançou a cabeça.

- Ela está aí dentro. Está viva.

Ele se voltou para o túnel novamente e passou a luz da lanterna por toda a parte. Ainda estava tudo livre até a curva. Ele desligou a lanterna para economizar a pilha. Olhou de novo para Rachel e em seguida deu um passo na direção da escuridão.

 

CAPÍTULO 29

Bosch hesitou um momento na entrada do túnel até que seus olhos se acostumassem à escuridão. Então começou a se mover. Não precisou rastejar. O túnel era largo o suficiente para que ele se movesse agachado. Com a lanterna na mão direita e a arma levantada na esquerda, manteve os olhos na luz fraca à sua frente. O som da mulher chorando ficava mais alto à medida que ele avançava. Depois de 3 metros dentro do túnel o cheiro rançoso que ele havia notado do lado de fora se tornou um fedor muito mais forte de decomposição. Embora fosse muito forte, não era algo novo para ele. Quase quarenta anos antes, ele fora um “rato de túnel” do Exército dos Estados Unidos, participando de mais de cem missões nos túneis do Vietnã. O inimigo às vezes enterrava seus mortos nas paredes de barro dos túneis. Aquilo os tirava da vista, mas o cheiro de decomposição era impossível de esconder. Depois que atingia o nariz, era igualmente imposs EDvel de esquecer.

Bosch sabia que estava indo na direção de algo horrível, que as vítimas desaparecidas de Raynard Waits estavam em algum lugar à frente, no túnel. Na noite em que Waits foi parado na van, era para lá que ele estava indo. Mas Bosch não conseguiu evitar pensar que talvez aquele fosse seu próprio destino também. Já haviam se passado muitos anos e muito chão tinha sido percorrido, mas parecia que ele nunca tinha realmente deixado os túneis para trás, que sua vida tinha sido sempre um movimento lento através da escuridão em espaços apertados a caminho de alguma luz bruxuleante. Ele sabia que era, naquela época, agora e para sempre, um rato de túnel. Os músculos de suas coxas ardiam pelo esforço de se mover agachado. O suor começou a fazer seus olhos arderem também. E, quando chegou mais perto da curva, Bosch viu a luz mudando e mudando de novo, e notou que aquilo era causado pela ondulação de uma chama. Era a luz de uma vela.

A um metro e meio da curva, Bosch parou e descansou enquanto apurava o ouvido. Atrás dele, pensou ter ouvido sirenes. Os reforços estavam a caminho. Tentou se concentrar no que podia ser ouvido no túnel à frente, mas havia apenas o som intermitente da mulher chorando. Seguiu em frente. Quase imediatamente a luz à frente se apagou e o choramingo aumentou e ganhou um tom de urgência. Bosch parou subitamente. Então ouviu uma risada nervosa vinda da frente, seguida pela voz conhecida de Raynard Waits.

- É você, detetive Bosch? Bem-vindo à minha toca de raposa. Bosch ouviu mais risadas e, em seguida, silêncio. Ele deixou se passarem dez segundos. Waits não disse mais nada.

- Waits? Solta ela. Manda ela para cá.

- Não, Bosch. Agora ela está comigo. Se alguém entrar aqui, eu mato ela na hora. E guardo a última bala para mim.

- Waits, não. Escuta. Deixe-a sair e eu entro. Vamos trocar.

- Não, Bosch. Eu gosto da situação do jeito que está.

- Então o que vamos fazer? Precisamos conversar e você precisa se salvar. Não temos muito tempo. Solte a garota. Alguns segundos se passaram e então a voz saiu da escuridão.

- Me salvar de quê? Para quê? Os músculos de Bosch estavam prestes a ter cãibras. Ele se abaixou cuidadosamente, se sentando encostado no lado direito do túnel. Tinha certeza de que a luz de vela vinha da esquerda. A curva do túnel era para a esquerda. Manteve a arma em posição, mas agora havia cruzado os punhos com a lanterna erguida e pronta também.

- Não tem saída, disse ele. - Desiste e sai daí. O acordo que você fez ainda está valendo. Você não precisa morrer. E nem a garota.

- Eu não me importo de morrer, Bosch. É por isso que estou aqui. Porque eu não me importo nem um pouco, porra. Eu só quero que seja nos meus termos. Não nos termos do Estado, nem de mais ninguém. Nos meus termos. Bosch notou que a mulher estava silenciosa. Ele se perguntou o que teria acontecido. Será que Waits a tinha silenciado? Será que ele...?

- Waits, o que aconteceu? Ela está bem?

- Ela desmaiou. Acho que foi muita agitação. Ele riu e então ficou em silêncio. Bosch decidiu que precisava manter Waits falando. Se Waits fosse distraído por Bosch, ele desviaria a atenção da mulher e do que, com certeza, estava sendo planejado fora do túnel.

- Eu sei quem você é, disse ele em voz baixa. Waits não mordeu a isca. Bosch tentou de novo. - Robert Foxworth. Filho de Rosemary Foxworth. Criado pela municipalidade. Em lares de adoção, reformatórios. Você morou aqui com os Saxons. Durante um tempo você morou no McLaren Youth Hall em El Monte. E eu também, Robert. As palavras de Bosch foram recebidas com um longo silêncio. Mas então a voz saiu da escuridão, em tom baixo.

- Eu não sou mais Robert Foxworth.

- Entendo.

- Eu odiava aquele lugar. McLaren. Eu odiava todos eles.

- Foi fechado alguns anos atrás. Depois que um garoto morreu lá.

- Eles que se fodam e que aquele lugar se foda também. Como você descobriu Robert Foxworth? Bosch sentiu que a conversa estava ganhando um ritmo. Entendeu a dica que Waits estava lhe dando ao falar de Robert Foxworth como se fosse uma pessoa diferente. Agora ele era Raynard Waits.

- Não foi tão difícil, respondeu Bosch. - Nós descobrimos por meio do caso Fitzpatrick. Encontramos o recibo da casa de penhores e cruzamos as datas de nascimento. O que era o medalhão que foi penhorado? Houve um silêncio longo antes da resposta.

- Era de Rosemary. Era tudo que ele tinha dela. Ele teve que penhorar o medalhão, e, quando voltou para recuperá-lo, aquele porco do Fitzpatrick já tinha vendido. Bosch assentiu com a cabeça. Conseguira fazer com que Waits respondesse as perguntas, mas não tinha muito tempo. Decidiu pular para o presente.

- Raynard. Conte sobre a armação. Conte-me sobre O’Shea e Olivas. Apenas silêncio. Bosch tentou de novo. - Eles usaram você. O’Shea usou você e ele simplesmente vai se livrar de tudo. É isso o que você quer? Você morre aqui neste buraco e ele se livra de tudo? Bosch colocou a lanterna no chão para poder enxugar o suor que lhe escorria pelos olhos. Então teve que tatear no escuro do túnel para poder encontrá-la novamente.

- Eu não posso lhe entregar O’Shea nem Olivas, disse Waits na escuridão. Bosch não entendeu. Será que estava errado? Retrocedeu em sua linha de raciocínio e recomeçou do princípio.

- Você matou Marie Gesto? Houve um longo silêncio.

- Não, não matei, disse Waits por fim.

- Então como era essa armação? Como você podia saber onde estava o...

- Pense um pouco, Bosch. Eles não são burros. Eles não iam se comunicar diretamente comigo. Bosch concordou. Tinha entendido.

- Maury Swann, disse ele. - Ele intermediou o acordo. Conte o que aconteceu.

- O que tem para contar? Era uma armação, cara. Ele disse que a coisa toda era fazer com que você acreditasse. Disse que você estava perturbando as pessoas erradas e tinha que se convencer.

- Que pessoas?

- Isso ele não me disse.

- Maury Swann disse isso?

- Disse, mas não importa. Você não pode pegar o Swann também. Isso é comunicação entre o advogado e seu cliente. Não dá para mexer nisso. É um dos privilégios. Além disso, seria a minha palavra contra a dele. Isso não leva a nada, e você sabe disso. Bosch realmente sabia.

Maury Swann era um advogado duro na queda e membro respeitado da Ordem dos Advogados. Também era um queridinho da imprensa. Não havia meios de abordá-lo apenas com as palavras de um cliente criminoso, ainda por cima, um assassino em série. Fora uma jogada de mestre de O’Shea e de Olivas usá-lo como intermediário.

- Isso não importa, disse Bosch. - Quero saber como tudo aconteceu. Conta. Um longo silêncio se passou antes que Waits respondesse.

- Swann foi até ele com a ideia de propor um acordo. Eu esclarecia todos os casos em troca da minha vida. Ele fez isso sem o meu conhecimento. Se tivesse me perguntado, eu teria dito para não se incomodar. Eu preferiria tomar a injeção há passar quarenta anos em uma cela. Você entende isso, Bosch. Você é o tipo de sujeito para quem às coisas são olho por olho. Gosto disso em você acredite ou não. Ele parou de falar, e Bosch teve que incentivá-lo.

- E então o que aconteceu?

- Certa noite, na prisão, eu fui levado para a sala dos advogados e Maury estava lá. Ele me disse que queria discutir um acordo. Mas disse que só iria funcionar se eu lhes fizesse um favor extra. Confessar um crime que não cometi. Ele me disse que haveria uma excursão de campo e eu teria que levar certo detetive até o corpo. Esse detetive teria que ficar convencido sobre a autoria, e levá-lo até o corpo seria a única maneira de fazer isso. Esse detetive era você, Bosch. - E você concordou.

- Quando ele disse que haveria uma excursão de campo, eu concordei. Essa foi a única razão. Significava sair na luz do dia. Eu vi uma oportunidade nisso.

- E você foi levado a acreditar que essa oferta, esse acordo, veio diretamente de O’Shea e de Olivas?

- E de quem mais ele viria?

- Alguma vez Maury Swann usou os nomes deles em conexão com o acordo?

- Ele disse que aquilo era o que eles queriam que eu fizesse. Disse que tinha vindo diretamente deles. Eles não fariam o acordo se eu não fizesse aquele favorzinho extra. Eu tinha que confessar a morte de Gesto e levá-lo até ela, ou não haveria porra nenhuma de acordo. Entendeu?

- É, entendi. Bosch sentiu o rosto ficar quente de tanta raiva. Tentou canalizá-la, colocá-la de lado para que ficasse pronta para ser usada, mas não naquele momento.

- Como é que você conseguiu os detalhes que me passou durante a confissão?

- Com Swann. Ele os conseguiu com eles. Ele disse que tinha os dados da investigação original.

- E ele lhe disse como encontrar o corpo na floresta?

- Swann me disse que haveria marcadores na floresta. Ele me mostrou fotografias e me disse como levar todo mundo para lá. Foi fácil. Na noite anterior à minha confissão eu estudei tudo. Bosch ficou em silêncio enquanto pensava como fora conduzido facilmente até lá. Desejara uma coisa com tanta intensidade e durante tanto tempo que aquilo o deixara cego.

- E o que você iria ganhar com tudo isso, Raynard?

- Você quer dizer do ponto de vista deles? A minha vida, cara. Eles estavam me oferecendo a minha vida. Era pegar ou largar. Mas a verdade é que eu não me importava com isso. Eu lhe falei cara, quando o Maury disse que ia ter uma excursão de campo, eu sabia que poderia ter uma chance de fugir... E de visitar a minha... Minha toca de raposa uma última vez. Aquilo era o bastante para mim. Eu não me importava com mais nada. Eu também não me importava se morresse tentando. Bosch tentou pensar no que deveria fazer ou no que perguntar em seguida. Pensou em usar o celular para ligar para o promotor ou para um juiz e fazer Waits confessar no telefone. Colocou a lanterna no chão de novo e enfiou a mão no bolso, mas então se lembrou de que havia deixado cair o aparelho quando saltou sobre Rachel e o tiroteio começou na garagem. - Ainda está aí, detetive?

- Estou aqui. E quanto a Marie Gesto? Swann lhe disse por que você teve que confessar o assassinato de Marie Gesto? Waits riu.

- Nem precisou fazer isso. Ficou bem óbvio que tinha uma armação. Seja lá quem tenha matado Gesto estava tentando tirar você do pé dele.

- Nenhum nome foi mencionado?

- Não, nenhum nome. Bosch balançou a cabeça. Ele não tinha nada. Nada relacionado a O’Shea ou a Anthony Garland, ou a qualquer outra pessoa. Bosch olhou para o outro lado do túnel, na direção da garagem. Não conseguia ver nada, mas sabia que havia pessoas lá. Eles haviam coberto aquela entrada para evitar a iluminação por trás. Bosch sabia que iriam aparecer a qualquer momento.

- E a sua fuga? Perguntou ele para manter o diálogo. - Aquilo foi planejado ou de improviso?

- Um pouco das duas coisas. Eu me encontrei com Swann na noite anterior à excursão. Ele me contou como eu levaria vocês ao corpo. Ele me mostrou as fotos e me contou sobre as marcas nas árvores e sobre como elas começariam a aparecer depois que chegássemos a um lugar onde tinha havido um deslizamento e nós teríamos que descer escalando. Foi então que eu soube. Soube que poderia ter uma chance. Então eu disse a ele que teriam de me desalgemar se eu tivesse que escalar alguma coisa. Eu disse a ele que não haveria acordo nenhum se tivesse que fazer qualquer escalada com as mãos algemadas ao lado do meu corpo.

Bosch se lembrou de O’Shea desconsiderando a opinião de Olivas e dizendo a ele que tirasse as algemas. A relutância de Olivas fora uma representação para Bosch. Tudo fora uma representação encenada para ele. Tudo fora falso e ele fora enganado de maneira perfeita. Bosch ouviu o som de homens rastejando atrás de si no túnel. Ligou a lanterna e os viu. Era uma equipe da SWAT. Coletes pretos de Kevlar, rifles automáticos, óculos de visão noturna. Eles estavam chegando. A qualquer momento iriam jogar uma granada de luz no túnel e começariam a avançar. Ele apagou a lanterna. Pensou na mulher. Sabia que Waits iria matá-la no instante em que eles entrassem em ação.

- Você esteve mesmo no McLaren? Perguntou Waits.

- Estive. Foi antes da sua época, mas eu estive lá. Ficava no dormitório B. Era o mais próximo dos campos de beisebol, então a gente sempre chegava lá primeiro e pegava o melhor equipamento. Era uma história que só podia ser contada por quem havia realmente estado lá, a melhor em que Bosch conseguiu pensar naquele momento. Ele passara a maior parte da vida tentando esquecer McLaren.

- Talvez você tenha estado lá mesmo, Bosch.

- Eu estive.

- E olhe para a gente agora. Você seguiu o seu caminho, e eu o meu. Acho que eu alimentei o cachorro errado.

- Como assim? Que cachorro?

- Você não se lembra. Em McLaren eles costumavam contar aquela historinha sobre todo homem ter dois cachorros dentro de si. Um bom e um mau. Eles brigam o tempo todo porque apenas um deles pode ser o macho alfa, aquele que manda nas coisas.

- E?

- E o que vence é sempre o cachorro que você escolhe para alimentar. Eu alimentei o cachorro errado. Você alimentou o cachorro certo. Bosch não soube o que dizer. Atrás de si no túnel ele ouviu um som metálico. Eles iam lançar a granada. Levantou-se rapidamente, com a esperança de que eles não atirariam nele pelas costas.

- Waits, eu vou entrar.

- Não, Bosch.

- Eu lhe dou a minha arma. Fique olhando o facho da lanterna. Vou lhe dar a minha arma. Ele ligou a lanterna e jogou o facho sobre a curva à frente no túnel. Moveu-se para frente e quando chegou à curva estendeu seu braço esquerdo no cone de luz. Segurava a arma pelo cano para que Waits visse que ela não representava perigo. - Vou entrar agora.

Bosch entrou na curva e na última câmara do túnel. O espaço tinha pelo menos uns 3 metros e meio de largura, mas ainda não era alto o bastante para ele ficar em pé. Ele se ajoelhou e varreu a câmara com a luz da lanterna. O raio de luz fraco e cor de âmbar revelou uma cena medonha de ossos, crânios e carne e cabelos em decomposição. O mau cheiro era muito forte, e Bosch teve que se segurar para conter a ânsia de vômito. O facho de luz caiu sobre o rosto do homem que Bosch conhecera como Raynard Waits. Ele estava apoiado na parede mais afastada da toca, sentado no que parecia ser um trono esculpido em pedra e barro. À sua esquerda a mulher que ele raptara estava deitada, nua e inconsciente, sobre um cobertor. Waits apontava o cano da arma de Freddy Olivas para a têmpora dela.

- Agora, calma, disse Bosch. - Eu lhe dou a minha arma. Só não a machuque mais. Waits sorriu, sabendo que estava em completo controle da situação.

- Bosch, você é um tolo até o fim.

Bosch abaixou o braço e jogou a arma do lado direito do trono. Quando Waits estendeu a mão para pegá-la, ele tirou o cano da outra arma da cabeça da mulher. Bosch deixou cair a lanterna e colocou a mão nas costas ao mesmo tempo, encontrando o cabo do revólver que havia tirado da senhora cega. O cano longo encontrou um alvo. Bosch disparou duas vezes, acertando Waits no centro do peito com os dois tiros. Waits foi jogado para trás, contra a parede. Bosch viu seus olhos se arregalarem e em seguida perderem aquele brilho que separa a vida da morte. O queixo caiu e a cabeça fez um movimento brusco para frente. Bosch rastejou até a mulher e tomou o pulso. Ela ainda estava viva. Ele a cobriu com o cobertor em que ela estava deitada. Então gritou para os outros no túnel.

- Aqui é o Bosch. Está tudo bem. Estamos bem. Raynard Waits está morto.

Uma luz muito clara brilhou do outro lado da curva na entrada do túnel. Era uma luz cegante e ele sabia que homens com armas estariam esperando do outro lado. De toda forma, ele se sentia seguro agora. Moveu-se lentamente em direção à luz.

 

CAPÍTULO 30

Depois de sair do túnel, Bosch foi levado para fora da garagem por dois membros da SWAT usando máscaras de gás. Foi entregue nas mãos dos ansiosos membros da Força-Tarefa para Fugitivos e outras unidades associadas ao caso. Randolph e Osani da TEP estavam por ali também, assim como Abel Pratt da Unidade de Abertos/Não Resolvidos. Bosch olhou à sua volta procurando Rachel Walling, mas não a viu em parte alguma. Logo em seguida, saiu do túnel a última vítima de Waits. A jovem foi carregada até uma ambulância que a aguardava e levada imediatamente para o hospital para ser examinada e tratada. Bosch tinha absoluta certeza de que sua própria imaginação não conseguiria superar os verdadeiros horrores pelos quais ela havia passado. Mas ele sabia que o importante era que ela estava viva.

O líder da força-tarefa queria que Bosch se sentasse em uma das vans e contasse sua história, mas Bosch disse que não queria ficar em um espaço fechado. Mesmo ali, ao ar livre na Figueroa Lane, ele não conseguia tirar o cheiro do túnel de seu nariz e reparou que todos os membros da força-tarefa que haviam se reunido ao redor dele no começo tinham dado um ou dois passos para trás. Viu uma mangueira de jardim presa a uma torneira junto da escada que levava à casa ao lado da 710. Foi até ela, abriu-a e se inclinou sobre o jato de água, deixando-a correr no cabelo, rosto e pescoço. Aquilo lhe encharcou completamente as roupas, mas ele não se importou. A água lavou boa parte da sujeira, do suor e do mau cheiro, e ele sabia que, de qualquer forma, as roupas agora teriam que ir para o lixo. O chefe da força-tarefa era um sargento chamado Bob McDonald, que viera da Divisão de Hollywood. Por sorte, Bosch o conhecia de outros tempos na divisão e i
sso preparou a cena para um interrogatório cordial. Bosch notou que aquilo era apenas um aquecimento. Ele teria que se submeter a uma entrevista formal com Randolph e a TEP até o final do dia.

- Onde está a agente do FBI? Perguntou Bosch. - Onde está Rachel Walling?

- Está sendo entrevistada, disse McDonald. - Estamos usando uma das casas dos vizinhos para isso.

- E a senhora que estava lá em cima? McDonald balançou a cabeça.

- Ela está bem, disse ele. - Ela é cega e está em uma cadeira de rodas. Eles ainda estão conversando com ela, mas parece que Waits morou aqui quando criança. Era um lar para adoção e o nome verdadeiro dele é Robert Foxworth. Ela não consegue mais se locomover sozinha, então passa a maior parte do tempo lá em cima. A assistência social traz comida para ela. Foxworth a ajudava financeiramente alugando a garagem. Ele guardava materiais para a lavagem de janelas lá. E uma van velha. Tem uma rampa para cadeira de rodas nela. Bosch concordou.

Pensou que Janet Saxon não tinha a menor ideia sobre quais outros usos seu antigo filho adotivo dava para aquela garagem. McDonald disse a Bosch que era a hora de ele contar a história, e foi o que Bosch fez, retomando passo a passo tudo o que fizera depois de descobrir a conexão entre Waits e o dono da loja de penhores, Fitzpatrick. Não houve perguntas. Ainda não. Ninguém perguntou por que ele não chamou a força-tarefa, nem falou com Randolph, ou Pratt, ou qualquer outra pessoa. Eles escutaram e simplesmente ficaram com a história dele. Bosch não estava muito preocupado. Ele e Rachel tinham salvado a garota e ele tinha matado o bandido. Tinha certeza de que esses dois feitos permitiriam que ele ficasse acima de todas as transgressões de protocolo e regulamentos e salvasse seu emprego.

Bosch precisou de vinte minutos para contar a história, e então McDonald disse que iriam fazer um intervalo. Quando o grupo ao seu redor se espalhou, Bosch viu seu chefe esperando para falar com ele. Bosch sabia que aquela conversa não seria fácil. Pratt finalmente viu um espaço e se aproximou. Parecia ansioso.

- E então, Harry, o que ele lhe contou lá dentro? Bosch ficou surpreso pelo fato de Pratt não ter pulado em cima dele por ter agido por conta própria, sem autoridade. Mas não ia reclamar disso. De maneira resumida, descreveu o que havia descoberto por meio de Waits sobre a armação em Beachwood Canyon.

- Ele me disse que tudo foi orquestrado por meio de Swann, disse ele. - Swann foi o intermediário. Ele levou a proposta de acordo de Olivas e O’Shea para Waits. Waits não tinha matado Gesto, mas concordou em levar a culpa pela morte dela. Aquilo fazia parte de um acordo para evitar a pena de morte.

- Só isso?

- É o suficiente, não é?

- Por que Olivas e O’Shea fariam isso?

- Pelos motivos mais antigos da história. Dinheiro e poder. E a família Garland tem muito das duas coisas.

- Anthony Garland era a pessoa em quem estávamos interessados no caso Gesto, certo? O sujeito que arranjou aquelas ordens judiciais para manter você longe.

- É, até que Olivas e O’Shea usaram Waits para me convencer do contrário.

- Você tem mais alguma coisa além do que ele lhe contou lá dentro? Bosch balançou a cabeça.

- Não muito. Eu descobri 25 mil em contribuições para a campanha de O’Shea vindos dos advogados de T. Rex Garland e da companhia de petróleo. Mas foi tudo feito legalmente. Prova uma conexão, nada mais.

- Vinte e cinco parece pouco para mim.

- E é. Mas estes 25 é tudo o que sabemos. Se investigarmos um pouco, provavelmente acharemos mais.

- Você contou tudo isso ao McDonald e à sua equipe?

- Só o que Waits me contou lá. Não lhes contei sobre as contribuições. Apenas o que Waits disse.

- Você acha que vão atrás do Maury Swann por isso? Bosch pensou um momento antes de responder.

- De jeito nenhum. Seja lá o que foi dito entre eles era informação privilegiada. Além disso, ninguém iria atrás dele baseado na palavra de um doido morto como Waits. Pratt chutou o chão. Não tinha mais nada a dizer ou a perguntar. - Escute chefe, desculpa por tudo isto, disse Bosch. - Sobre não ter sido totalmente sincero com você sobre o que eu estava fazendo, com aquele negócio de trabalho domiciliar e tudo o mais. Pratt rejeitou aquilo com um gesto.

- Tudo bem, cara. Você teve sorte. Acabou fazendo algo bom e apagando o bandido. O que vou dizer em relação a isso? Bosch balançou a cabeça, agradecendo. - Além disso, eu já estou para me aposentar, continuou Pratt. - Mais três semanas e você passa a ser problema de outra pessoa. Ela pode decidir o que fazer com você.

Kiz Rider voltando ou não, Bosch não queria sair da unidade. Tinha ouvido dizer que David Lambkin, o novo chefe, que vinha da DRH, era uma boa pessoa com quem trabalhar. Bosch esperava que, quando tudo aquilo tivesse acabado, ele ainda fizesse parte da Unidade de Abertos/Não Resolvidos.

- Puta merda! Pratt sussurrou. Bosch seguiu os olhos dele até um carro que havia parado no perímetro perto do qual os caminhões da imprensa e os repórteres estavam tentando conseguir entrevistas e declarações rápidas. Rick O’Shea estava saindo do lado do passageiro. Bosch imediatamente sentiu um gosto amargo na boca. Fez menção de ir até o Promotor, mas Pratt segurou-o pelo braço. - Harry, vai com calma.

- Que porra ele está fazendo aqui?

- O caso é dele, rapaz. Ele pode aparecer por aqui se quiser. E é melhor você ficar frio. Não mostre as suas cartas para ele, ou nunca conseguirá pegá-lo.

- E enquanto isso ele faz o seu número na frente das câmeras e transforma isto em outro comercial de campanha? Besteira. O que eu devia fazer era ir até lá e chutar o rabo dele bem na frente das câmeras.

- É, isso seria muito inteligente, Harry. Muito sutil. Iria ajudar muito a situação. Bosch se libertou de Pratt, mas apenas deu um passo para o lado e se encostou a um dos carros de polícia. Cruzou os braços e manteve a cabeça abaixada até que ficasse mais calmo. Sabia que Pratt estava certo.

- É só mantê-lo longe de mim.

- Isso vai ser meio difícil, porque ele está vindo bem na sua direção. Bosch ergueu os olhos no momento exato em que O’Shea e os dois homens que compunham o seu séquito chegaram onde ele estava.

- Detetive Bosch, como vai?

- Nunca estive melhor. Bosch manteve os braços cruzados sobre o peito. Não queria que uma das suas mãos se soltasse e involuntariamente se movesse na direção de O’Shea.

- Obrigado pelo que fez aqui hoje. Obrigado por salvar aquela jovem. Bosch apenas balançou a cabeça enquanto olhava para o chão. O’Shea se virou para os homens que estavam com ele e para Pratt, que continuou por perto para o caso de ter que tirar Bosch de cima do promotor. - Posso falar com o detetive Bosch a sós? Os subordinados de O’Shea se afastaram. Pratt hesitou até que Bosch fez um movimento com a cabeça, dizendo que tudo estava bem. Bosch e O’Shea ficaram sozinhos. - Detetive, já me informaram o que Waits, ou eu deveria dizer, Foxworth, lhe revelou lá no túnel.

- Que bom.

- Espero que não dê qualquer crédito ao que um assassino em série confesso e confirmado disse sobre os homens que o estavam processando, especialmente sobre um que não está mais aqui para se defender. Bosch se afastou do para-lama do carro-patrulha e finalmente deixou cair os braços ao lado do corpo. Suas mãos estavam fechadas em punhos.

- Você está falando sobre o seu amiguinho Olivas?

- Sim, estou. E posso lhe dizer por sua postura que você realmente acredita naquilo que Foxworth supostamente lhe contou.

- Supostamente? O quê, agora sou eu que está inventando coisas?

- Alguém está. Bosch se inclinou alguns centímetros na direção dele e falou em voz baixa.

- O’Shea, se afaste de mim. Eu posso bater em você. O Promotor deu um passo para trás, como se já tivesse sido esmurrado.

- Você está errado, Bosch. Ele estava mentindo.

- Ele estava confirmando o que eu já sabia antes de entrar naquele túnel. Olivas era sujo. Ele colocou o lançamento no inquérito ligando falsamente Raynard Waits a Gesto. Ele foi até lá e marcou uma trilha para Waits seguir e nos levar ao corpo. E ele não teria feito nada disso sem que alguém lhe dissesse para fazê-lo. Ele não era esse tipo de pessoa. Não era inteligente o bastante para isso. O’Shea olhou fixamente por um longo momento. A implicação nas palavras de Bosch era muito clara.

- Não posso dissuadi-lo dessa bobagem, posso? Bosch olhou para ele e em seguida desviou o olhar.

- Dissuadir? Sem chance. E eu não me importo o que isso vai ou não causar na campanha, Sr. Promotor. Esses são os fatos incontestáveis e não preciso de Foxworth ou do que ele disse para prová-los.

- Então acho que terei que apelar para uma autoridade superior a você. Bosch deu meio passo na direção dele. Dessa vez ele realmente entrou no espaço de O’Shea.

- Você sentiu esse cheiro? Sentiu esse cheiro em mim? Esse é a porra do fedor pútrido da morte. Estou com ele por todo o corpo. Mas pelo menos eu posso lavá-lo até sair.

- O que isso quer dizer?

- O que você quiser. Quem é a sua autoridade superior? Vai ligar para o T. Rex Garland em seu escritório reluzente? O’Shea respirou fundo e balançou a cabeça confuso.

- Detetive, eu não sei o que aconteceu com você naquele túnel, mas o que você está falando não está fazendo muito sentido. Bosch concordou.

- É, bom, logo vai fazer sentido. Antes das eleições, com certeza.

- Ajude-me com isso, Bosch. O que exatamente eu não estou entendendo aqui?

- Eu não acho que você não esteja entendendo alguma coisa. Você sabe de tudo, O’Shea, e, antes de tudo acabar, o mundo todo vai saber também. De alguma forma, de algum jeito, eu vou pegar você, os Garlands e todo mundo que tiver participado disto. Pode apostar nisso. Agora O’Shea deu um passo na direção de Bosch.

- Você está dizendo que fui eu que fiz isso, que armei tudo isso, para T. Rex Garland? Bosch começou a rir. O’Shea era um ator perfeito até o fim.

- Você é bom, disse ele. - Isso eu admito. Você é bom.

- T. Rex Garland é um contribuinte válido de minha campanha. Às claras e tudo legal. Como você pode ligar isso ao...

- Então por que diabos você não mencionou que ele era um contribuinte válido e legal quando toquei nesse assunto outro dia e lhe disse que ele era o meu suspeito no caso Gesto?

- Porque isso teria complicado as coisas. Eu nunca me encontrei, nem sequer falei com nenhum dos Garlands. T. Rex contribuiu para a minha campanha. E daí? O sujeito espalha dinheiro por todas as eleições do condado. Se tocasse nesse assunto naquele momento, eu estaria motivando a sua desconfiança. Eu não queria isso. Agora vejo que a tenho mesmo assim.

- Você fala tanta merda. Você...

- Vá se foder, Bosch. Não existe ligação.

- Então não temos mais nada para conversar.

- Temos sim. Eu tenho algo a dizer. Faça a sua melhor jogada com essa besteirada toda e vamos ver quem continua em pé no final.

Ele se virou e foi embora, vociferando uma ordem para seus homens. Queria um telefone com uma linha segura. Bosch se perguntou para quem seria a primeira chamada: T. Rex Garland ou o chefe de polícia. Bosch tomou uma decisão rápida. Ia ligar para Keisha Russell e soltá-la sobre eles. Iria dizer a ela que estava livre para investigar as contribuições de campanha que Garland havia canalizado para O’Shea. Colocou a mão no bolso e então se lembrou de que seu telefone ainda estava em algum lugar na garagem. Caminhou naquela direção e parou diante da fita amarela que estava atravessada sobre a porta totalmente aberta atrás da van branca. Cal Cafarelli estava na garagem, dirigindo a análise forense da cena. Ela usava uma máscara-filtro pendurada no pescoço. Bosch sabia dizer pela expressão em seu rosto que ela já havia estado na cena macabra que se encontrava no final do túnel. E ela nunca seria a mesma novamente. Ele a chamou com um gesto.

- Como está indo, Cal?

- Está indo tão bem quanto se esperaria depois de ver uma coisa daquelas.

- Tudo bem. Eu sei.

- Vamos ficar por aqui boa parte da noite. O que posso fazer por você, Harry?

- Você encontrou um celular em algum lugar por aqui? Perdi o meu quando as coisas começaram a acontecer. Ela apontou para o chão perto do pneu da frente da van.

- É aquele ali? Bosch olhou e viu seu telefone caído sobre o concreto. A luz vermelha de mensagens estava piscando. Ele reparou que alguém havia desenhado um círculo ao redor do aparelho no concreto com giz. Aquilo não era bom sinal. Bosch não queria que seu telefone fosse inventariado como evidência. Talvez nunca mais o recuperasse.

- Posso pegá-lo de volta? Estou precisando dele.

- Lamento Harry. Ainda não. Este lugar ainda não foi fotografado. Nós começamos pelo túnel e estamos vindo nesta direção. Vai demorar um pouco.

- Então que tal se você o entregar para mim, eu o uso bem aqui e lhe devolvo quando for a hora das fotos? Parece que tenho algumas mensagens me esperando.

- Harry, pare com isso. Ele sabia que aquela sugestão ia contra umas quatro regras da coleta de evidências.

- Tudo bem, então me avise quando eu puder pegá-lo de volta. Só espero que seja antes de a bateria acabar.

- Pode deixar Harry.

Ele deu as costas para a garagem e viu Rachel Walling andando na direção da fita amarela que marcava o perímetro externo da cena do crime. Havia um carro dos federais ali e um homem de terno e óculos escuros estava esperando por ela. Era óbvio que ela havia pedido um transporte. Bosch apertou o passo na direção da fita, chamando-a. Ela parou e esperou por ele.

- Harry, disse ela. - Você está bem?

- Agora estou. E você, Rachel?

- Eu estou bem. O que aconteceu com você? Ela indicou com a mão as roupas molhadas dele.

- Tive que entrar debaixo da mangueira de água. Estava péssimo. Preciso de um banho de umas duas horas. Você está indo embora?

- Estou. Por enquanto eles não têm mais perguntas para mim. Bosch moveu a cabeça na direção do homem de óculos escuros que estava 3 metros atrás dela.

- Você está encrencada? Perguntou ele em voz baixa.

- Ainda não sei. Acho que vou ficar bem. Você pegou o bandido e salvou a garota. Como isso poderia ser ruim?

- Nós pegamos o bandido e salvamos a garota, corrigiu Bosch. - Mas em toda instituição e burocracia tem sempre alguém que consegue achar um jeito de transformar algo bom em merda. Ela olhou para ele e assentiu.

- Eu sei, disse ela. Olhar dela o congelou, e ele notou que agora estavam diferentes.

- Você está brava comigo, Rachel?

- Brava? Não.

- Então o que é?

- Não é nada. Preciso ir.

- Você me telefona, então?

- Quando eu puder. Até logo, Harry. Ela deu dois passos na direção do carro que a esperava, mas então parou e se virou para ele. - Aquele com quem você estava conversando perto do carro era O’Shea, não era?

- Era.

- Tenha cuidado, Harry. Se deixar suas emoções tomarem conta de você do jeito que aconteceu aqui hoje, O’Shea pode lhe trazer muito sofrimento. Bosch sorriu de leve.

- Você sabe o que se diz sobre a dor, não sabe?

- Não, o quê?

- Dizem que dor é a fraqueza saindo do corpo. Ela balançou a cabeça.

- Bem, isso é uma grande bobagem. Não teste essa ideia, a menos que tenha que fazer isso. Até logo, Harry.

- Até mais, Rachel.

Ele ficou olhando enquanto o homem de óculos escuros erguia a fita para ela passar por baixo. Ela entrou no banco do passageiro na frente e os Óculos Escuros levou-os embora. Bosch sabia que alguma coisa havia mudado na maneira como ela o via. Suas ações na garagem e sua entrada no túnel tinham-na feito mudar de ideia a respeito dele. Ele aceitou isso e pensou que talvez nunca mais a visse novamente. Decidiu que aquilo seria mais uma coisa pela qual ele culparia Rick O’Shea. Voltou para a cena, onde Randolph e Osani estavam à sua espera. Randolph estava guardando o celular.

- Vocês dois de novo, disse Bosch.

- Isso está parecendo um déjà-vu contínuo, não é? Disse Randolph.

- Algo assim.

- Detetive, nós desta vez precisamos levá-lo até Parker Center para realizar uma entrevista mais formal. Bosch concordou. Ele conhecia o protocolo. Desta vez não era sobre um tiroteio no meio das árvores ou do mato. Ele havia matado uma pessoa, então daquela vez seria diferente. Eles precisariam apurar cada detalhe.

- Estou pronto, disse ele.

 

CAPÍTULO 31

Bosch estava sentado em uma sala de entrevistas na Unidade de Tiroteio Envolvendo Policial em Parker Center. Randolph havia permitido que ele tomasse um banho no vestiário que havia no porão, e ele mudara de roupa, agora vestia um jeans e um blusão da West Coast Choppers que ele deixava guardados em um armário para as ocasiões em que estivesse no centro da cidade e precisasse passar despercebido. Ao sair do vestiário, ele havia jogado o terno que usara em uma lata de lixo. Agora estava reduzido a apenas dois. O gravador que estava em cima da mesa foi ligado, e, usando folhas separadas, Osani leu para ele seus direitos constitucionais e também a declaração de direitos dos policiais. A separação das garantias objetivava salvaguardar o indivíduo e o policial de algum ataque injusto do governo, mas Bosch sabia que, na hora do aperto forte vindo de cima, e feito em uma daquelas saletas, nenhum pedaço de papel conseguiria lhe dar muita proteção. Teria
que se defender sozinho. Ele disse que havia entendido seus direitos e concordou em ser entrevistado. Randolph assumiu naquele momento.

A seu pedido, Bosch contou mais uma vez a história do tiroteio com Robert Foxworth, vulgo Raynard Waits, começando pela descoberta feita na revisão dos arquivos do caso Fitzpatrick e terminando com as duas balas que ele havia disparado contra o peito de Foxworth. Randolph fez poucas perguntas até que Bosch tivesse terminado de contar sua história. Em seguida, fez muitas perguntas detalhadas sobre os movimentos de Bosch na garagem e depois no túnel. Mais de uma vez ele perguntou a Bosch por que ele não havia dado ouvidos às palavras de cautela da agente do FBI, Rachel Walling. Aquela pergunta disse a Bosch não só que Rachel havia sido entrevistada pela TEP, mas que ela não havia dito coisas especialmente favoráveis sobre seu caso. Isso foi um grande desapontamento para Bosch, mas ele tentou manter seus pensamentos e sentimentos sobre Rachel fora daquela sala de entrevistas. Para Randolph, ele repetiu como um mantra uma frase que, acreditava, iria funda
mentalmente lhe ganhar o dia, não importando o que Randolph, Rachel ou qualquer outra pessoa pensasse sobre suas ações e procedimentos.

- Era uma situação de vida ou morte. Uma mulher estava em risco e atiraram contra nós. Achei que não podia ficar esperando o apoio ou qualquer outra pessoa. Eu fiz o que tinha que fazer. Tive o máximo de cautela que pude e só usei força letal quando foi necessário.

Randolph seguiu em frente e o foco de suas próximas perguntas foi sobre os tiros em Robert Foxworth. Ele perguntou a Bosch o que pensou quando Foxworth lhe revelou que Bosch fora levado a acreditar que o caso Gesto estava resolvido. Também perguntou a Bosch o que ele pensou quando viu os restos das vítimas de Foxworth espalhados pela câmara no final do túnel. Perguntou, por último, em que ele estava pensando quando apertou o gatilho e matou o profanador e assassino daquelas vítimas. Bosch pacientemente respondeu a cada pergunta, mas finalmente chegou a seu limite. Alguma coisa não estava correta naquela entrevista. Era quase como se Randolph estivesse usando um roteiro.

- O que está acontecendo aqui? Perguntou Bosch. - Estou aqui sentado, contando tudo a vocês. O que vocês não estão me contando?

Randolph olhou para Osani e em seguida de volta para Bosch. Ele se inclinou para frente, os braços sobre a mesa. Tinha o costume de ficar virando uma aliança de ouro na mão esquerda. Bosch tinha reparado nisso na última vez. Sabia que era um anel da Universidade da Califórnia do Sul. Nada de mais. Muitos dos dirigentes do departamento tinham frequentado os cursos noturnos na UCS. Randolph olhou de novo para Osani e estendeu a mão para desligar o gravador, mas apoiou os dedos sobre as teclas.

- Detetive Osani, você poderia nos arranjar umas garrafas de água? Toda essa conversa e minha voz está se acabando. Provavelmente, o mesmo está acontecendo também com o detetive Bosch. Vamos esperar até a sua volta.

Osani se levantou e Randolph desligou o gravador. Não voltou a falar até que a porta da sala de entrevistas estivesse fechada.

- A questão, detetive Bosch, é que só temos a sua palavra sobre o que aconteceu naquele túnel. A mulher estava inconsciente. Havia apenas você e Foxworth, e ele não saiu vivo de lá.

- Isso mesmo. Você está dizendo que minha palavra não é aceitável?

- Eu estou dizendo que a sua descrição dos eventos pode ser perfeitamente aceitável. Mas a investigação forense pode apresentar uma interpretação que não esteja de acordo com a sua declaração. Entende? Tudo pode ficar confuso rapidamente. As coisas podem ficar abertas tanto à interpretação quanto à má interpretação. Interpretação tanto pública quanto política. Bosch balançou a cabeça. Ele não entendia o que estava acontecendo.

- E daí? Perguntou ele. - Não me importo com o que o público ou os políticos pensam. Waits forçou a ação naquele túnel. Era claramente uma situação de matar ou ser morto e eu fiz o que tinha que fazer. Mas não havia testemunhas de sua descrição dos acontecimentos. - E a agente Walling?

- Ela não entrou no túnel. Ela o avisou para não entrar.

- Sabe, tem uma mulher no hospital da UCS que provavelmente não estaria viva agora se eu não tivesse entrado. O que está acontecendo aqui, tenente? Randolph começou a brincar com o anel de novo. Parecia alguém que não gostava das coisas que seu dever o convocava a fazer.

- Acho que por hoje é o bastante. Você passou por muita coisa. O que vamos fazer é deixar as coisas em aberto por alguns dias até chegarem os resultados da perícia. Você vai continuar em regime de trabalho domiciliar. Assim que tivermos tudo em ordem, eu o chamarei novamente para ler e assinar seu depoimento.

- Eu perguntei o que está acontecendo, tenente.

- E eu lhe contei o que está acontecendo.

- Você não me contou o suficiente. Randolph afastou a mão de seu anel. Aquilo teve o efeito de enfatizar a importância do que ele ia dizer em seguida.

- Você salvou a refém e resolveu o caso. Isso é ótimo. Mas você foi precipitado em suas ações e teve sorte. Se acreditarmos na sua história, então você atirou em um homem que estava ameaçando a sua vida e a de outras pessoas. No entanto, os fatos e a investigação forense poderão facilmente levar a outra interpretação, talvez uma que indique que o homem em quem você atirou estava tentando se render. Assim, o que vamos fazer é ir com calma com tudo isso. Em poucos dias teremos tudo certo. E então nós passaremos a informação para você. Bosch estudou-o, sabendo que ele estava entregando uma mensagem não tão escondida em suas palavras.

- Isso tem a ver com Olivas, não é? O funeral está marcado para amanhã, o chefe vai estar lá, e vocês querem manter Olivas como um herói que foi morto no cumprimento do dever. Randolph voltou a girar seu anel.

- Não, detetive Bosch, você entendeu errado. Se Olivas era sujo, ninguém iria se abalar de preocupação com a reputação dele. Bosch concordou. Ele agora entendia.

- Então tem a ver com O’Shea. Ele falou com alguma autoridade muito alta. Ele me disse que faria isso. Aí essa autoridade falou com você. Randolph se recostou na cadeira e olhou para o teto, como se estivesse procurando uma resposta adequada.

- Há muitas pessoas neste departamento e também na comunidade que acreditam que Rick O’Shea seria um excelente Procurador, disse ele. - Elas também acreditam que ele seria um bom amigo para ficar ao lado do DPLA. Bosch fechou os olhos e balançou a cabeça devagar. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Randolph continuou. - O adversário dele, Gabriel Williams, se aliou a um eleitorado que é contra a polícia. As coisas não seriam muito boas para o DPLA se ele fosse eleito. Bosch abriu os olhos e olhou fixamente para Randolph.

- Você vai realmente fazer isso? Perguntou. - Você vai deixar esse cara escapar porque acha que ele poderia ser amigo do departamento? Randolph balançou a cabeça entristecido.

- Eu não sei sobre o que você está falando, detetive. Só estou fazendo uma observação política. Mas uma coisa eu sei. Não existe evidência, real ou imaginária, dessa conspiração de que você está falando. Se você acha que o advogado de Robert Foxworth vai fazer qualquer outra coisa além de negar a conversa que você resumiu aqui, então você é um tonto. Por isso, não seja um tonto. Seja esperto. Fique na sua. Bosch levou um momento para se recompor.

- Quem deu a ordem?

- O que disse?

- Até onde O’Shea foi na hierarquia? Não teria sido diretamente com você. Ele deve ter ido mais alto. Quem lhe mandou me derrubar? Randolph abriu as mãos e balançou a cabeça.

- Detetive, eu não tenho a menor ideia do que você está falando.

- Certo. Claro que não. Bosch se levantou. - Então, acho que você vai redigir o meu depoimento do jeito que mandaram e eu assino ou não. É bem simples. Randolph concordou com a cabeça, mas não disse nada. Bosch se abaixou e colocou as duas mãos sobre a mesa para poder chegar perto do rosto de Randolph. - Você vai ao funeral do policial Doolan, tenente? Vai ser logo depois que puserem Olivas debaixo da terra. Lembra-se dele, aquele em quem Waits atirou no rosto? Pensei que talvez você quisesse ir ao funeral para explicar à família dele sobre escolhas que precisaram ser feitas e sobre como o homem diretamente atrás daquela bala poderia ser um amigo do departamento e, portanto, não precisa enfrentar as consequências de seus atos. Randolph olhava fixamente para a parede do outro lado da mesa. Não disse nada.

Bosch endireitou o corpo e abriu a porta com força, assustando Osani, em pé do lado de fora. Ele não estava trazendo garrafas de água. Bosch abriu caminho empurrando-o para o lado e saiu da sala da divisão. No elevador, Bosch apertou o botão para subir. Esperou, andou de um lado para outro e refletiu sobre a possibilidade de levar sua queixa diretamente ao sexto andar. Viu-se entrando apressadamente no gabinete do chefe de polícia e exigindo saber se ele tinha consciência do que estava sendo feito em seu nome e sob seu comando. Mas quando o elevador abriu, abandonou a ideia e apertou o botão 5. Sabia que era impossível entender completamente os níveis bizantinos de burocracia e política no departamento. Se não tomasse cuidado, poderia acabar reclamando sobre toda a bobagem com a própria pessoa que a criara. A Unidade de Abertos/Não Resolvidos estava deserta quando ele chegou lá. Passava um pouco das quatro e a maioria dos detetives trabalhava
em turnos das sete às quatro, o que lhes permitia ir para casa antes da hora do rush. Se não houvesse nada acontecendo, eles saíam às quatro em ponto. Mesmo uma demora de 15 minutos poderia lhes custar uma hora no trânsito nas autoestradas. O único que ainda estava por ali era Abel Pratt, e isso porque, como supervisor, ele tinha que trabalhar das oito às cinco. Regras da casa.

Bosch acenou ao passar pela porta aberta do escritório de Pratt, a caminho de sua mesa. Bosch se deixou cair na cadeira, exausto pelos acontecimentos do dia e pelo peso da armação departamental. Abaixou os olhos e viu que sua mesa estava coberta de recados em pequenos papéis cor-de-rosa. Começou a lê-los, um por um. A maioria vinha de colegas em diferentes divisões e delegacias. Todos pediam retorno. Bosch sabia que eles queriam cumprimentá-lo pelos tiros ou coisas assim. Sempre que alguém consegue matar um bandido em jogo limpo, os telefones não param de tocar. Havia diversas mensagens de repórteres, inclusive de Keisha Russell. Bosch sabia que estava em dívida com ela, mas ia esperar até chegar em casa. Havia também um recado de Irene Gesto, e Bosch adivinhou que ela e o marido queriam saber se havia algum fato novo na investigação. Ele havia ligado para eles na noite anterior para lhes dizer que sua filha fora encontrada e que a identidade
fora confirmada. Colocou aquele recado no bolso. Serviço domiciliar ou não, ele ia retornar a ligação deles. Depois de completada a autópsia, o corpo seria liberado e finalmente eles poderiam, depois de 13 anos, reclamar sua filha e levá-la para casa. Ele não podia lhes contar que havia sido feita justiça com o assassino da filha, mas, pelo menos, podia ajudá-los a levá-la para casa.

Havia também um recado de Jerry Edgar, e Bosch se lembrou de que seu velho parceiro tinha ligado para o seu celular pouco antes do tiroteio em Echo Park. A pessoa que pegara o recado, seja lá quem fosse, havia escrito “Disse que é importante” no papel, sublinhando a frase. Bosch verificou a hora marcada no papel e notou que aquela chamada tinha sido feita antes do tiroteio também. Edgar não tinha ligado para parabenizá-lo por ter abatido um bandido. Supôs que Edgar ficara sabendo que Harry havia conhecido seu primo e que queria jogar conversa fora a esse respeito. Naquele momento, Bosch não estava querendo esse tipo de conversa. Bosch não estava interessado em nenhum dos outros recados, então os empilhou e colocou em uma gaveta de sua mesa. Sem mais nada a fazer, começou a endireitar os papéis e pastas que estavam em cima da mesa. Pensou se deveria ligar para o pessoal da investigação forense e tentar reaver seu celular e seu carro da cena de
crime em Echo Park.

- Acabei de receber a informação. Bosch levantou os olhos. Pratt estava em pé na soleira de sua sala. A camisa estava para fora da calça, a gravata frouxa ao redor do pescoço.

- Que informação?

- Da TEP. Você vai continuar em regime de trabalho domiciliar, Harry. Preciso mandar você para casa. Bosch abaixou os olhos para a mesa.

- E qual é a novidade? Já estou indo. Pratt fez uma pausa enquanto tentava interpretar o tom de voz de Bosch.

- Está tudo bem, Harry? Perguntou ele.

- Não, não tem nada bem. A armação está feita, e quando a armação está feita, nada pode estar bem. Nem de longe.

- Sobre o que você está falando? Eles vão dar cobertura a Olivas e O’Shea? Bosch ergueu os olhos para ele.

- Acho que eu não deveria falar com você, chefe. Poderia comprometê-lo. Você não iria querer as consequências.

- Eles estão falando a sério sobre o caso, hein? Bosch hesitou, mas respondeu.

- É, eles estão bem sérios. Estão querendo me machucar se eu não jogar o jogo deles. E parou naquele ponto.

Não queria ter tido essa conversa com seu supervisor. Na posição de Pratt, as lealdades se situavam nas duas extremidades da hierarquia. Não importava o fato de ele estar apenas a algumas semanas da aposentadoria. Pratt tinha que participar do jogo até o sinal tocar.

- Meu celular ficou lá, faz parte da cena do crime, disse ele, estendendo a mão para o telefone. Só vim aqui dar um telefonema e depois vou embora.

- Eu estava me perguntando o que teria acontecido com o seu telefone, disse Pratt. - Alguns dos rapazes tentaram ligar para você e disseram que você não estava atendendo.

- O pessoal da investigação forense não deixou que eu o tirasse da cena. Nem o telefone e nem o carro. O que eles queriam?

- Acho que eles queriam levar você para tomar umas no Nat’s. É possível que eles estejam indo para lá.

O Nat’s era uma espelunca perto de Hollywood Boulevard. Não era um bar de policiais, mas um número razoável de policiais que não estavam de serviço passavam por ali todas as noites. Em número suficiente para que a gerência mantivesse a versão mais pesada de I FOUGHT THE LAW com o The Clash tocando há vinte anos. Bosch sabia que se ele aparecesse no Nat’s o hino punk seria tocado em uma homenagem ao recém-despachado Robert Foxworth, vulgo Raynard Waits. I fought the law but the law won...Bosch quase podia ouvi-los todos cantando o refrão.

- Você vai? Ele perguntou a Pratt.

- Talvez mais tarde. Preciso fazer uma coisa antes. Bosch assentiu.

- Acho que não estou com muita vontade. Dessa vez vou passar.

- Como quiser. Eles vão entender.

Pratt não se moveu da soleira e então Bosch pegou o telefone. Ligou para o número de Jerry Edgar para não cair em contradição com a mentira que acabara de dizer, a de que precisava dar um telefonema. Mas Pratt continuou na frente da porta, o braço apoiado no batente enquanto perscrutava a sala da divisão. Ele realmente estava tentando tirar Bosch dali. Edgar atendeu o telefonema.

- É o Bosch, você ligou?

- É, cara, liguei.

- Eu estava meio ocupado.

- Eu sei. Fiquei sabendo. Bons tiros, os de hoje, parceiro. Você está bem?

- É, estou. Sobre o que você queria falar?

- É só uma coisa que pensei que talvez você quisesse saber. Não sei se ainda interessa.

- O que foi? Disse Bosch com impaciência.

- Meu primo Jason me ligou do DAE. Disse que viu você hoje.

- É, bom sujeito. Ele nos ajudou muito.

- É, bom, eu não estava interessado em como ele tratou você. Estou tentando lhe dizer que ele me ligou e disse que havia uma coisa que talvez você quisesse saber, mas você não deixou um cartão com ele, nem um número de telefone ou coisa assim. Ele contou que cinco minutos depois que você e a agente do FBI saíram, um outro policial apareceu e pediu para falar com ele. Pediu na recepção para falar com o cara que estava ajudando os policiais.

Bosch se inclinou para frente sobre sua mesa. De repente, ficou bastante interessado no que Edgar estava lhe contando.

- Ele disse que esse cara mostrou um distintivo, disse que estava monitorando a sua investigação e perguntou a Jason o que você e a agente queriam. Meu primo levou-o até o andar onde vocês tinham estado e foi até a janela com o sujeito. Eles estavam lá, olhando para a casa em Echo Park, quando você e a agente apareceram lá embaixo. Eles viram vocês entrando na garagem.

- E depois?

- O sujeito saiu correndo de lá. Pegou um elevador e desceu.

- O seu primo conseguiu pegar o nome desse cara?

- Sim, o sujeito disse que era o detetive Smith. Quando mostrou a identificação, ele estava com os dedos cobrindo uma parte do nome.

Bosch sabia que aquele era um truque velho, usado na maioria das vezes quando os detetives passavam dos limites e não queriam seus verdadeiros nomes em circulação. O próprio Bosch havia usado esse recurso algumas vezes.

- E quanto à descrição? Ele perguntou.

- Ele me passou isso também. Disse que era um cara branco, um metro e oitenta. Tinha cabelos grisalhos e bem curtos. Vamos ver, cinquenta e poucos anos, terno azul, camisa branca e gravata listrada. Tinha uma bandeira dos Estados Unidos na lapela.

A descrição combinava com uns 50 mil homens nas proximidades do centro. E Bosch estava olhando para um deles. Abel Pratt ainda estava em pé na soleira de sua sala. Estava olhando para Bosch com as sobrancelhas erguidas, em interrogação. Não estava usando o paletó, mas Bosch podia vê-lo pendurado em um gancho na porta atrás dele. Havia uma bandeira dos Estados Unidos na lapela. Bosch abaixou os olhos para a mesa.

- Até que horas ele trabalha? Perguntou ele calmamente.

- Normalmente eu acho que ele fica até as cinco. Mas tem um monte de gente por lá, cuidando da cena em Echo Park.

- Tudo bem, obrigado pela dica. Ligo mais tarde para você. Bosch desligou o telefone antes que Edgar pudesse dizer qualquer coisa. Ergueu os olhos e Pratt ainda estava olhando fixamente para ele.

- O que foi isso? Perguntou ele.

- Ah, uma coisinha que apareceu relacionada ao caso Matarese. Aquele que enviamos esta semana. Parece que, no final, teremos uma testemunha. Isso vai ajudar no julgamento. Bosch disse isso da maneira mais casual que conseguiu. Levantou e olhou para o chefe. - Mas não se preocupe. Vou esperar até sair do regime domiciliar.

- Ótimo. É bom ouvir isso.

 

CAPÍTULO 32

Bosch caminhou na direção de Pratt. Chegou perto demais dele, lhe invadindo o espaço pessoal, o que fez com que Pratt entrasse em seu escritório e voltasse para sua mesa. Era isso o que Bosch queria. Ele se despediu e desejou um bom fim de semana. Bosch se dirigiu então para a porta da sala da divisão. A Unidade de Abertos/Não Resolvidos tinha três carros que eram usados por seus oito detetives e por um supervisor. Os carros eram usados por quem os pegasse primeiro, e as chaves ficavam penduradas em ganchos ao lado da porta da sala da divisão. Qualquer detetive que pegasse um carro escrevia o nome e a hora provável de retorno em um quadro branco pendurado abaixo das chaves. Quando chegou à porta, Bosch abriu-a completamente para bloquear a visão que Pratt podia ter das chaves penduradas. Havia dois conjuntos de chaves nos ganchos. Bosch pegou um deles e saiu. Alguns minutos mais tarde ele saiu da garagem atrás de Parker Center e seguiu na direçã
o do DAE. A correria louca para sair do centro da cidade antes do final da tarde estava apenas começando e ele percorreu os sete quarteirões rapidamente. Estacionou o carro ilegalmente na frente da fonte que ficava na entrada do prédio e saiu rapidamente do carro. Olhou o relógio enquanto se aproximava da porta de entrada. Faltavam vinte minutos para as cinco. Um segurança uniformizado saiu, acenando para ele.

- Você não pode estacionar...

- Eu sei. Bosch lhe mostrou o distintivo e apontou para o rádio no cinto do homem. - Você consegue falar com Jason Edgar nesse negócio?

- Edgar? Consigo. Sobre o que...

- Entre em contato com ele e diz que o detetive Bosch está esperando por ele aqui na frente. Preciso falar com ele o mais rápido possível. Agora, por favor. Bosch se virou e voltou para o carro. Entrou e esperou cinco minutos até que Jason Edgar saísse pelas portas de vidro. Quando chegou ao carro, Edgar abriu a porta do passageiro para olhar dentro, e não para entrar.

- Qual é o problema, Harry? - Recebi seu recado. Entra. Edgar entrou no carro com relutância. Bosch saiu com o carro enquanto Edgar ainda estava fechando a porta. - Espera um pouco! Onde estamos indo? Eu não posso simplesmente sair.

- Só vai levar alguns minutos.

- Onde estamos indo?

- Parker Center. Não vamos nem sair do carro.

- Preciso informá-los.

Edgar tirou um rádio do cinto. Entrou em contato com o centro de segurança do DAE e disse que estaria fora das instalações por meia hora, resolvendo uma questão policial. Ele recebeu um código de mensagem entendida e recolocou o rádio no cinto.

- Você deveria ter falado comigo antes, disse ele a Bosch. - O meu primo disse que você tem o costume de agir primeiro e perguntar depois.

- Ele disse isso, é?

- É, disse. O que vamos fazer em Parker Center?

- Fazer a identificação do policial que falou com você depois que fui embora hoje.

O tráfego já havia piorado. Muita gente que trabalhava das nove as cinco querendo chegar em casa. As tardes de sexta-feira eram especialmente agitadas. Bosch finalmente entrou na garagem da polícia às dez para as cinco e esperou que não fosse tarde demais. Encontrou uma vaga para estacionar na primeira fila. A garagem era uma estrutura aberta e o espaço permitia ter visão da San Pedro Street, que passava entre Parker Center e a garagem.

- Você tem um celular? Perguntou Bosch.

- Tenho. Bosch lhe passou o número geral de Parker Center e disse para ligar e pedir para falar na Unidade de Abertos/Não Resolvidos. As chamadas transferidas do número principal não mostravam o número de quem estava chamando. O nome ou número de Edgar não apareceriam nas linhas da ANR.

- Só quero ver se alguém atende, disse Bosch. - Se alguém atender, pergunte por Rick Jackson. Quando lhe disserem que ele não está lá, não deixe recado. Diga que vai ligar no celular dele e desligue. O telefonema de Edgar foi atendido e ele seguiu o roteiro que Bosch havia lhe dado. Ao terminar, olhou para Bosch.

- Alguém chamado Pratt atendeu.

- Ótimo. Ele ainda está lá.

- E o que significa isso tudo?

- Eu queria ter certeza de que ele não tinha ido embora. Ele vai sair às cinco e, quando o fizer, vai atravessar a rua bem ali. Quero ver se ele é o cara que lhe disse estar monitorando a minha investigação.

- Ele é da Corregedoria?

- Não. Ele é o meu chefe. Por precaução, Bosch abaixou o quebra-sol para evitar ser visto.

Eles estavam estacionados a quase 30 metros da faixa para pedestres que Pratt usaria para chegar à garagem, mas ele não sabia para onde Pratt iria depois que entrasse na estrutura. Como supervisor de esquadrão, ele tinha o direito de estacionar um carro particular na garagem da polícia, e a maioria das vagas para isso ficavam no segundo nível. Havia dois grupos de escadas e uma rampa que davam acesso à parte de cima. Se Pratt subisse a rampa a pé, ele passaria ao lado da posição em que estava Bosch. Edgar fez perguntas sobre o tiroteio em Echo Park, e Bosch as respondeu de maneira lacônica. Ele não queria falar a respeito, mas tinha acabado de arrancar o sujeito de seu posto e por isso Precisava responder de alguma maneira. Era apenas uma questão de cortesia. Por fim, às 5h01 ele viu Pratt sair pelas portas dos fundos de Parker Center e descer a rampa que levava às portas de entrada da cadeira. Ele caminhou até a San Pedro e começou a atravess
á-la com um grupo de quatro outros supervisores de detetives que também estavam indo para casa.

- Ok, disse Bosch, interrompendo Edgar no meio de uma pergunta. - Veja aqueles caras atravessando a rua. Qual deles foi ao DAE hoje? Edgar estudou o grupo atravessando a rua. Ele tinha uma visão direta de Pratt, que estava andando ao lado de outro homem atrás do grupo.

- É aquele último cara, disse Edgar sem hesitar. - Aquele que está colocando os óculos escuros. Bosch olhou de novo. Pratt havia acabado de colocar seu ray-ban. Bosch sentiu uma pressão contra o peito, como se fosse o pior caso de azia que tivesse tido. Manteve os olhos sobre Pratt e observou-o se afastar do grupo depois que atravessaram a rua. Ele estava indo para o lance de escadas mais afastado. - E agora, o que vai fazer? Vai segui-lo? Bosch se lembrou de Pratt dizendo que tinha alguma coisa para fazer depois do trabalho.

- Eu queria, mas não posso. Preciso levar você de volta para o DAE.

- Não se preocupe com isso, cara. Eu volto a pé. E, do jeito que o trânsito está, eu provavelmente chegarei antes. Edgar abriu a porta e saiu. Ele olhou de volta para Bosch. - Não sei o que está acontecendo, mas boa sorte, Harry. Espero que você pegue quem está procurando.

- Obrigado, Jason. A gente se vê qualquer dia desses.

Depois que Edgar saiu, Bosch manobrou e saiu da garagem. Foi pela San Pedro até a Temple porque supôs que Pratt pegaria esse caminho até a autoestrada. Estivesse ou não indo para casa, a autoestrada era a escolha mais provável. Bosch atravessou a Temple e parou no meio-fio em uma área de estacionamento proibido. A posição lhe dava um bom ângulo para a saída da garagem da polícia. Em dois minutos um SUV prateado saiu da garagem e foi na direção da Temple. Era um Jeep Commander com um estilo quadrado e retrô. Bosch identificou Pratt atrás do volante. Ele imediatamente casou as dimensões e a cor do Commander com aquelas do misterioso SUV que ele vira perto de sua casa na noite anterior.

Bosch se abaixou no banco quando o Commander se aproximou da Temple. Ouviu-o fazendo a curva e depois de alguns segundos se ergueu atrás do volante. Pratt estava parado no semáforo da Temple com a Los Angeles Street e ia virar à direita. Bosch esperou que ele virasse e então saiu para segui-lo. Pratt entrou nas congestionadas pistas que iam para norte na 101, se juntando ao cortejo do tráfego na hora do rush. Bosch pegou o acesso e se enfiou em uma fila de carros cerca de seis veículos atrás do Jeep. Ele tinha sorte pelo fato de o carro de Pratt ter uma bola branca com uma carinha na ponta da antena de rádio. Era um brinde de uma rede de comida pronta. Aquilo permitiu a Bosch seguir o Jeep sem ter que chegar muito perto. Ele estava em um Crown Vic, e só faltava ter uma placa em neon no teto com a palavra Polícia. Devagar e sempre Pratt seguiu seu caminho para o norte com Bosch seguindo a distância. Quando a autoestrada passou por Echo Park, ele olhou pe
la encosta e viu que a cena do crime e o sarau da imprensa continuavam a todo vapor na Figueroa Lane. Contou dois helicópteros da imprensa que ainda estavam circulando por ali. Ele se perguntou se seu carro seria guinchado da cena ou se ele poderia voltar até lá mais tarde e recuperá-lo.

Enquanto dirigia, Bosch tentou juntar tudo o que tinha sobre Pratt. Não havia muita dúvida sobre o fato de Pratt o estar seguindo desde que ele entrara em regime de trabalho domiciliar. O SUV dele era igual ao SUV que estivera em sua rua na noite anterior, e Pratt fora identificado por Jason Edgar como o policial que o seguira até o prédio do DAE. Não era plausível pensar que ele estivesse seguindo Bosch simplesmente para ver se ele estava cumprindo as regras do regime de trabalho domiciliar. Precisava haver outro motivo, e Bosch só conseguia pensar em uma coisa. O caso.

Assim que fez essa suposição, outras coisas rapidamente se juntaram e elas apenas serviram para atiçar o fogo que estava queimando no peito de Bosch. Pratt havia contado a história sobre Maury Swann no começo da semana, e aquilo deixava claro que eles se conheciam. Embora ele tivesse apresentado uma história negativa sobre o advogado de defesa, isso poderia ter sido um disfarce ou uma tentativa de se distanciar de alguém de quem ele fosse próximo e com quem possivelmente estava trabalhando. Também era óbvio para Bosch o fato de Pratt ter consciência de que Bosch havia considerado Anthony Garland como pessoa de interesse no caso Gesto. Bosch havia rotineiramente informado Pratt de suas atividades na reabertura do caso. Pratt também foi notificado quando os advogados de Garland conseguiram uma nova ordem judicial impedindo Bosch de falar com Garland sem a presença de um de seus advogados. Por fim, e talvez a coisa mais importante, Pratt tinha acesso a
o inquérito de Gesto. A maior parte do tempo a pasta ficava sobre a mesa de Bosch. Podia ter sido Pratt quem inseriu a conexão falsa com Robert Saxon, vulgo Raynard Waits. Ele poderia ter plantado a conexão muito tempo antes de o inquérito ser entregue a Olivas. Ele poderia tê-la plantado para que Olivas a descobrisse.

Bosch notou que todo o plano para Raynard Waits confessar o assassinato de Marie Gesto e levar os investigadores até o corpo poderia ter se originado totalmente com Abel Pratt. Ele estava em uma posição perfeita de intermediário que podia tanto monitorar Bosch quanto as outras partes envolvidas. E ele notou que, ao incluir Swann no plano, não precisaria mais de Olivas ou de O’Shea. Quanto mais pessoas em uma conspiração, maior a probabilidade de que ela fracasse ou não dê em nada. Tudo o que Swann tinha a fazer era dizer a Waits que o promotor e o investigador estavam por trás de tudo e ele plantaria uma trilha falsa para alguém como Bosch seguir. Bosch sentiu uma onda de calor lhe queimar a nuca. Percebeu que podia estar errado a respeito de tudo o que pensava meia hora atrás. Totalmente errado. No final das contas, talvez Olivas não estivesse sujo. Talvez ele tenha sido usado, de maneira tão hábil quanto o próprio Bosch fora usado, e talve
z O’Shea fosse culpado apenas de manobra política, levar crédito indevido, redirecionando a culpa para longe do verdadeiro culpado.

O’Shea poderia ter arranjado uma armação no departamento para deter as acusações de Bosch apenas porque elas seriam politicamente danosas, e não por serem verdadeiras. Bosch repensou essa teoria e ela se sustentou. Não havia problemas ou falhas de qualquer espécie. Era um plano que tinha tudo para dar certo. A única coisa que faltava era um motivo. Por que um sujeito que tinha passado 25 anos no departamento e estava prestes a se aposentar aos 50 de idade arriscaria tudo em um esquema desses? Como é que um sujeito que passou 25 anos de sua vida caçando bandidos deixava um assassino escapar? Depois de trabalhar em mais de mil casos de assassinato, Bosch sabia que o motivo era, com frequência, o componente mais difícil de se compreender do crime. Era óbvio que dinheiro poderia ser uma motivação, e a desintegração de um casamento também poderia ter seu papel. Mas esses eram denominadores comuns desastrosos nas vidas de muitas pessoas. Não
podiam explicar prontamente o porquê de Abel Pratt ter ultrapassado os limites.

Bosch bateu a palma da mão com força sobre o volante. Colocando a questão do motivo de lado, ele estava constrangido e com raiva de si mesmo. Pratt era seu chefe. Eles tinham feito refeições juntos, trabalhado em casos juntos, contado piadas e conversado sobre seus filhos. Pratt estava se encaminhando para uma aposentadoria que todos no departamento acreditavam ser nada menos do que totalmente merecida. Era hora de receber um duplo salário, receber a pensão do departamento e arrumar um emprego de segurança lucrativo nas ilhas, onde o pagamento era alto e as horas de trabalho eram poucas. Todo mundo tinha essa ambição e ninguém invejaria. Era o paraíso, o sonho de todo policial. Mas agora Bosch conseguia ver através de tudo isso.

- É tudo conversa mole, disse ele em voz alta no carro.

 

CAPÍTULO 33


Trinta minutos depois, Pratt saiu da autoestrada em Cahuenga Pass. Ele pegou a Barham Boulevard para nordeste até a Burbank. O tráfego ainda estava pesado, e Bosch não teve problemas para segui-lo mantendo a distância. Pratt passou pela entrada dos fundos da Universal e pela entrada da frente da Warner Bros. Então fez algumas curvas rápidas e parou perto do meio-fio na frente de uma fileira de casas na Catalina, perto de Verdugo. Bosch seguiu dirigindo rapidamente, pegou a primeira à direita e deu a volta no quarteirão. Apagou os faróis antes de completar a volta e sair perto das casas novamente. Estacionou perto do meio-fio a cerca de meio quarteirão do SUV de Pratt e se abaixou no banco. Quase imediatamente Bosch viu Pratt em pé na rua, olhando para os dois lados antes de atravessar. Mas ele estava demorando demais para fazer isso. A rua estava livre, mas Pratt continuava olhando para frente e para trás. Ele estava procurando alguém ou verificando
se tinha sido seguido. Bosch sabia que a coisa mais difícil do mundo era seguir um policial que esperava por isso. Ele se abaixou mais ainda no carro. Por fim, Pratt começou a atravessar a rua, ainda olhando continuamente para um lado e para outro, e, quando chegou na outra calçada, se virou e a subiu de costas. Deu alguns passos para trás, examinando a área nas duas direções. Quando seu olhar alcançou o carro de Bosch, ele se fixou no veículo durante um longo momento. Bosch ficou paralisado. Ele não achava que Pratt o tinha visto, havia se abaixado o máximo possível, mas o outro poderia ter reconhecido o carro ou como um veículo da polícia com chapa fria ou como um dos carros designados especialmente para a Unidade de Abertos/Não Resolvidos. Se ele fosse até lá para verificar, Bosch sabia que seria pego sem ter como se explicar. E sem uma arma. Por questão de rotina, Randolph havia confiscado sua arma de apoio para uma análise balíst
ica relacionada ao tiroteio com Robert Foxworth.

Pratt começou a andar na direção do carro de Bosch. Bosch segurou a maçaneta da porta. Se necessário, ele sairia do carro e correria na direção da Verdugo, onde haveria tráfego e pessoas. Mas de repente Pratt parou, sua atenção desviada para alguma coisa atrás dele. Ele se virou e olhou para o topo dos degraus que levavam à casa na frente da qual ele havia parado. Bosch seguiu o olhar dele e viu que a porta da frente da casa estava parcialmente aberta e uma mulher olhava para fora e chamava Pratt, sorrindo. Ela estava escondida atrás da porta, mas um de seus ombros nus estava exposto. A expressão no rosto dela mudou quando Pratt disse alguma coisa e fez sinal para que ela entrasse. Ela fez um biquinho com os lábios e mostrou a língua para ele. Ela desapareceu da porta, deixando-a entreaberta uns 15 centímetros. Bosch pensou que seria bom ter sua câmera, mas ela estava em seu carro em Echo Park. No entanto, ele não precisava de evidênci
as fotográficas para saber que conhecia a mulher que aparecera na porta e que ela não era a Sra. Pratt, Bosch havia conhecido a mulher dele em uma festa recente da divisão, quando anunciara a aposentadoria.

Pratt olhou na direção do carro de Bosch novamente e então se voltou para a casa geminada. Subiu os degraus, entrou e fechou a porta. Bosch esperou e, como previu, Pratt afastou a cortina e deu uma olhada na rua. Bosch ficou abaixado enquanto os olhos de Pratt passavam pelo Crown Vic. Não havia dúvida de que o carro havia atraído a suspeita de Pratt, mas Bosch notou que a atração do sexo proibido havia sobrepujado seu instinto de verificar o carro. Houve um movimento brusco e Pratt foi puxado para trás, se afastando da janela, e a cortina voltou ao seu lugar. Bosch se ergueu no banco imediatamente, deu a partida no carro e manobrou para fazer o retorno do lugar onde estava. Pegou a direita na Verdugo e rumou para Hollywood Way. Não havia dúvidas de que o Crown Vic tinha sido percebido. Pratt procuraria por ele assim que saísse daquela casa. Mas o Aeroporto de Burbank ficava ali perto. Bosch pensou que poderia largar o Crown Vic no aeroporto, alugar um
carro e voltar àquela rua em menos de meia hora.

Enquanto dirigia tentou identificar a mulher que havia visto na porta da casa. Usou algumas rotinas de relaxamento mental que empregava no tempo em que hipnotizar as testemunhas era algo aceito nos tribunais. Em pouco tempo estava localizando as imagens do nariz e da boca da mulher, as partes que haviam acionado seu centro de reconhecimento. E pouco depois ele se lembrou. Ela era uma jovem e atraente funcionária civil do departamento e trabalhava no escritório que ficava no final do corredor da Unidade de Abertos/Não Resolvidos. Era um escritório de Recursos Humanos, conhecido como “Contrata & Despede”, porque era o lugar onde as duas coisas aconteciam. Pratt estava pulando a cerca, esperando o movimento da hora do rush passar, em um ninho de amor em Burbank. Nada mal se conseguisse fazer isso e não ser pego. Bosch se perguntou se a Sra. Pratt sabia das atividades extracurriculares do marido. Ele entrou no aeroporto e foi para a área de estacionamento com man
obristas, achando que ali seria mais rápido. O homem com casaco vermelho que pegou o Crown Vic dele perguntou quando Bosch iria retornar.

- Não sei, disse Bosch, sem pensar no assunto. - Preciso escrever alguma coisa no recibo, disse o homem.

- Amanhã, disse Bosch. - Se eu tiver sorte.

 

CAPÍTULO 34

Bosch voltou para a Catalina Street em 35 minutos. Dirigiu o Taurus alugado passando pela fileira de casas geminadas e viu que o Jeep de Pratt ainda estava estacionado. Dessa vez encontrou um local no lado norte da casa e estacionou ali. Enquanto se acomodava dentro do carro e vigiava, ligou o telefone celular que havia alugado junto com o carro. Ligou para o celular de Rachel Walling, mas só conseguiu a caixa postal. Encerrou a chamada sem deixar mensagem.

Pratt não saiu até que tivesse escurecido completamente. Ficou parado na frente das casas embaixo da luz de um dos postes, e Bosch reparou que ele estava usando roupas diferentes agora. Vestia jeans e uma blusa escura de manga comprida. A mudança de indumentária dizia a Bosch que a ligação com a mulher do “Contrata & Despede” provavelmente era algo mais do que casual. Pratt tinha roupas na casa dela. Mais uma vez, Pratt olhou de um lado para outro na rua, os olhos pairando por mais tempo em direção ao lado sul, onde antes o Crown Vic tinha chamado sua atenção. Aparentemente satisfeito com o fato de o carro ter ido embora e ele não estar sendo observado, Pratt foi até o Commander e saiu. Fez um retorno e seguiu na direção sul para a Verdugo. Em seguida, virou à direita. Bosch sabia que se Pratt estava procurando por alguém que o estivesse seguindo, diminuiria a velocidade e observaria pelo retrovisor, atento para todos os veículos que sa EDssem da Catalina e viessem em sua direção. Então ele fez o retorno e foi um quarteirão para o norte até a Clark Avenue. Virou à esquerda e acelerou o fraco motor do carro. Andou cinco quarteirões até a Califórnia Street e virou à esquerda rapidamente. No final do quarteirão ele chegaria à Verdugo. Era um movimento arriscado. Talvez Pratt já estivesse longe, mas Bosch estava agindo por intuição. Ver o Crown Vic havia assustado seu chefe. Ele estaria em alerta total.

Bosch acertara na escolha. No exato instante em que chegou na Verdugo, viu o Commander prateado de Pratt passar na sua frente. Ele obviamente tinha se demorado na Verdugo, procurando alguém que o estivesse seguindo. Bosch deixou que ele tomasse alguma distância e então virou à direita para segui-lo. Pratt não fez quaisquer manobras evasivas depois do primeiro esforço para se livrar de algum perseguidor. Ficou na Verdugo até a North Hollywood e então virou para o sul na Cahuenga. Bosch quase o perdeu na curva, mas passou o farol no vermelho. Estava claro agora que Pratt não ia para casa, Bosch sabia que ele morava do lado oposto, no vale norte. Pratt estava se dirigindo para Hollywood, e Bosch achou que ele estava apenas planejando se encontrar com os outros membros da divisão no Nat’s. Mas a meio caminho de Cahuenga Pass ele virou à direita, pegando a Woodrow Wilson Drive, e Bosch sentiu sua pulsação acelerar um pouco. Pratt agora estava indo para
a própria casa de Bosch. A Woodrow Wilson rodeava a lateral das montanhas Santa Monica, uma curva fechada atrás da outra. Era uma rua desolada, e a única maneira de seguir um veículo era de farol apagado e se mantendo pelo menos uma curva atrás das luzes de freio do carro que ia à frente. Bosch conhecia aquelas curvas muito bem. Morava na Woodrow Wilson há mais de 15 anos e podia dirigir por ali quase dormindo, algo que realmente havia feito em algumas ocasiões. Mas seguir Pratt, um policial consciente de que poderia estar sendo seguido, era uma dificuldade incomum.

Bosch tentou ficar duas curvas atrás. Isso significava que ele perdia a visão das luzes do carro de Pratt de vez em quando, mas nunca por muito tempo. Quando estava a duas curvas de sua casa, Bosch pôs o carro alugado em ponto morto e acabou parando antes da última curva. Bosch saiu, fechou a porta sem fazer muito barulho e andou depressa pela curva. Ficou perto da sebe que guardava a casa e estúdio de um famoso pintor que morava no quarteirão. Continuou andando até poder ver o SUV de Pratt. Ele havia se encostado ao meio-fio duas casas antes da casa de Bosch. Os faróis de Pratt agora estavam apagados e parecia que ele estava apenas sentado ali, observando a casa. Bosch olhou para sua casa e viu luzes acesas nas janelas da cozinha e da sala de jantar. Conseguia ver a ponta da traseira de um carro aparecendo em sua garagem. Reconheceu o Lexus e viu que Rachel Walling estava lá. Apesar de ter ficado feliz com a possibilidade de ela estar lá esperando por el
e, Bosch estava preocupado com o que Pratt poderia estar tramando. Parecia que Pratt estava fazendo exatamente o mesmo que na noite anterior, apenas observando e possivelmente tentando determinar se Bosch estava em casa. Bosch ouviu um carro se aproximando atrás de si. Virou-se e começou a andar em direção a seu carro, como se estivesse dando um passeio noturno. O carro passou por ele lentamente, e Bosch em seguida se virou e voltou para a sebe. O carro se aproximou por trás do Jeep de Pratt, em vez de passar ao lado, e Pratt saiu de novo, as luzes do SUV se acendendo enquanto ele pisava fundo no acelerador. Bosch se virou e correu na direção de seu carro alugado. Entrou rapidamente e saiu. Enquanto dirigia, apertou a tecla de religar do telefone alugado e logo a linha de Rachel estava tocando. Dessa vez, ela atendeu.

- Alô?

- Rachel, é o Harry. Você está na minha casa?

- Estou. Eu estava esper...

- Venha para fora. Vou pegar você. Rápido.

- Harry, o que é...

- Venha para fora e traga sua arma. Agora.

Ele desligou e parou bruscamente na frente da casa. Ainda conseguiu ver o brilho de luzes de freio desaparecendo na curva à frente. Mas sabia que aquelas pertenciam ao carrão que havia assustado Pratt. Pratt estava bem à frente. Bosch se virou e olhou para sua porta da frente, pronto para buzinar, mas Rachel estava saindo.

- Feche a porta, gritou Bosch através da janela do passageiro que estava aberta. Rachel fechou a porta e correu até o carro. - Entre. Rápido! Ela pulou para dentro do carro e Bosch saiu antes de ela fechar a porta.

- O que está acontecendo?

Ele fez um resumo para ela enquanto passava em alta velocidade pelas curvas que subiam até Mulholland. Ele contou a ela que fora seu chefe, Abel Pratt, que bolara toda a armação, e que aquilo que havia acontecido em Beachwood Canyon tinha sido seu plano. Contou a ela que pela segunda noite seguida ele estivera vigiando a sua casa.

- Como você sabe de tudo isso?

- Eu apenas sei. Vou conseguir provar tudo mais tarde. Por ora, é um fato.

- O que ele estava fazendo aqui fora?

- Não sei. Tentando ver se eu estava em casa, acho.

- Seu telefone tocou.

- Quando?

- Pouco antes de você ligar para o meu celular. Eu não atendi.

- Provavelmente era ele. Alguma coisa está acontecendo.

Eles chegaram à última curva e o cruzamento da Mulholland estava à frente. Bosch viu as luzes traseiras de um veículo grande no exato momento em que desapareceram à direita. Outro carro se aproximou do cruzamento. Era o carro que fizera Pratt ir embora. Ele passou direto pelo cruzamento, sem parar para olhar a transversal.

- O primeiro deve ter sido Pratt. Ele virou à direita. Bosch chegou ao cruzamento e também virou à direita.

Mulholland era a serpente ondulante que acompanhava o cume das montanhas através da cidade. Suas curvas eram menos fechadas que as da Woodrow Wilson. Também era uma rua mais movimentada, com muitos carros. Ele conseguiria seguir Pratt sem causar muita suspeita. Eles se aproximaram rapidamente do veículo que tinha virado e confirmaram que era o Commander de Pratt. Bosch então diminuiu a velocidade e durante os dez minutos seguintes seguiu Pratt pela área montanhosa. As luzes brilhantes do Vale se espalhavam lá embaixo no lado norte. Era uma noite clara e eles podiam ver toda a extensão até as montanhas escuras no lado mais distante das luzes. Eles ficaram na Mulholland, atravessando o cruzamento com a Laurel Canyon Boulevard, e continuaram em direção oeste.

- Eu estava esperando na sua casa para dizer adeus, disse Rachel de repente. Depois de um momento de silêncio, Bosch respondeu.

- Eu sei. Eu entendo.

- Acho que você não entende.

- Você não gostou da maneira como agi hoje, o modo como fui atrás de Waits. Eu não sou o homem que você pensou que eu fosse. Já ouvi isso antes, Rachel.

- Não é isso, Harry. Ninguém nunca é a pessoa que a gente pensa que é. Eu posso viver com isso. Mas uma mulher tem que se sentir segura com um homem. E isso inclui os momentos em que eles não estão juntos. Como é que posso me sentir segura tendo visto em primeira mão o jeito como você trabalha? Não importa se é o jeito que eu faria as coisas ou não. Não estou falando sobre nós de policial para policial. Estou falando sobre nunca poder me sentir segura e à vontade. Eu ficaria pensando toda a noite se aquela seria a noite em que você não voltaria para casa. Eu não posso aguentar isso.

Bosch notou que estava acelerando demais o carro. As palavras dela tinham feito com que ele inconscientemente apertasse o pedal com mais força. Bosch estava chegando perto demais de Pratt. Ele diminuiu e se afastou das luzes traseiras uns 90 metros.

- É um trabalho perigoso, disse ele. - Pensei que você, mais do que qualquer outra pessoa, sabia disso.

- Eu sei. Eu sei. Mas o que eu vi hoje com você foi imprudência. Eu não quero ter que me preocupar com alguém que é imprudente. Eu já tenho muita coisa com que me preocupar por aqui sem precisar disso. Bosch soltou a respiração com força. Fez um gesto na direção das luzes vermelhas que se moviam na frente deles.

- Tudo bem, disse ele. - Vamos conversar sobre isso mais tarde. Esta noite vamos nos concentrar no que estamos fazendo. Como se tivesse recebido uma sugestão, Pratt virou bruscamente para a esquerda na Coldwater Canyon Drive e começou a descer em direção a Beverly Hills. Bosch demorou o máximo que acreditou ser possível e virou no mesmo lugar. - Bom, ainda assim estou contente porque você está comigo, disse ele.

- Por quê?

- Porque se ele terminar em Beverly Hills eu não vou precisar chamar o pessoal local, porque estou com uma agente federal.

- Estou feliz por fazer alguma coisa.

- Você está com a sua arma?

- Sempre. Você não está com a sua?

- Faz parte da cena do crime. Não sei quando vou recuperá-la. E essa é a segunda arma que tiraram de mim esta semana. Deve ser algum tipo de recorde. Maior número de armas perdidas durante tiroteios imprudentes. Ele olhou rapidamente para ela, para ver se a estava irritando. Ela não demonstrou nada.

- Ele está virando, disse ela. Bosch retornou sua atenção para a estrada e viu o pisca-pisca da esquerda do Commander ligado. Pratt fez a curva e Bosch passou reto. Rachel se abaixou para poder ver a placa na rua. - Gloaming Drive, disse ela. A Gloaming continua bastante naquela direção, mas é sem saída. Eu já estive aqui antes. A próxima rua era a Stuart Lane. Bosch usou-a para fazer a volta e rumou novamente para a Gloaming. - Você sabe aonde ele pode estar indo? Perguntou Rachel.

- Não tenho ideia. Que eu saiba, para a casa de alguma outra namorada.

Gloaming era outra rua de montanha cheia de curvas. Mas essa era a única similaridade com a Woodrow Wilson Drive. As casas da região custavam facilmente pelo menos um milhão de dólares, e todas tinham gramados e cercas muito bem cuidados, sem uma folhinha fora do lugar. Bosch dirigiu devagar, procurando o Jeep Commander prateado.

- Ali, disse Rachel. Ela apontou de sua janela para um Jeep estacionado na área de retorno de uma mansão com estilo rústico francês. Bosch continuou andando e estacionou a duas casas de distância. Eles saíram e retornaram andando. - West Coast Choppers? Ela não tinha conseguido ver a frente da blusa enquanto ele dirigia.

- Esta roupa me ajudou em um caso em que tive de me infiltrar.

- Legal.

- Minha filha me viu usando uma vez. Eu disse a ela que era do meu dentista.

O portão que dava para o caminho de entrada de carros estava aberto. A caixa de correio em ferro fundido não tinha nome. Bosch a abriu e olhou dentro. Tiveram sorte. Havia correspondência, uma pequena pilha presa com um elástico. Ele a tirou de lá e colocou o envelope de cima contra a luz de um poste próximo para poder ler.

- Maurice; é a casa de Maury Swann, disse ele.

- Legal, disse Rachel. - Acho que eu devia ter sido advogada de defesa.

- Você seria ótima trabalhando com criminosos.

- Vai se foder, Bosch. A troca de gozações terminou com uma voz em tom alto vinda de trás de uma cerca alta mais afastada da área de retorno e do lado esquerdo da casa.

- Eu disse para entrar! Ouse viu um barulho de pancada na água, e Bosch e Walling rumaram na direção desse som.

 

CAPÍTULO 35

Bosch examinou a cerca com os olhos, procurando alguma abertura. Parecia não haver nenhuma na frente. Quando se aproximaram, ele fez um sinal para que Rachel seguisse a cerca para a direita enquanto ele iria pela esquerda. Ele notou que ela estava segurando a arma abaixada ao lado do corpo. A cerca tinha pelo menos 3 metros e era tão espessa que Bosch não conseguia ver luz vinda da piscina ou da casa. Mas, à medida que foi andando, ele ouviu o som de pancadas na água e vozes, uma das quais reconheceu como a de Abel Pratt. As vozes estavam próximas.

- Por favor, eu não sei nadar. Eu não alcanço o fundo!

- Então por que você tem uma piscina? Continua batendo os braços.

- Por favor! Eu não vou... Por que contaria a alguém sobre...

- Você é advogado, e os advogados gostam de contemplar todas as possibilidades.

- Por favor.

- Vou lhe dizer uma coisa: se eu tiver a menor desconfiança de que você está brincando com possibilidades para cima de mim, a próxima vez não vai ser em uma piscina. Vai ser na porra do Oceano Pacífico. Entendeu?

Bosch chegou a um caramanchão onde a bomba de filtragem da piscina e os aquecedores estavam instalados em uma pequena área de concreto. Havia também uma pequena abertura na cerca para o limpador de piscina entrar. Ele entrou pela abertura e saiu sobre ladrilhos que rodeavam uma enorme piscina oval. Encontrava-se 6 metros atrás de Pratt, que estava em pé na borda, olhando para um homem na água. Pratt segurava um comprido varão azul com uma das pontas curvas. Servia para puxar alguém em perigo para a borda, mas Pratt o segurava de maneira que ficasse fora do alcance do homem. Ele tentava desesperadamente segurar a ponta curva, mas todas as vezes Pratt a afastava rapidamente. Era difícil identificar o homem na água como Maury Swann. A piscina estava escura com as luzes apagadas. Os óculos de Swann tinham desaparecido e seu cabelo parecia ter escorregado para a parte de trás da cabeça como um deslizamento de lama. Sobre sua careca brilhante havia um ped
aço de fita adesiva que segurava a peruca no lugar certo. O som do filtro da piscina encobriu os passos de Bosch. Ele conseguiu andar sem ser percebido até ficar a 2 metros de Pratt, antes de falar.

- O que está acontecendo, chefe? Pratt rapidamente abaixou o varão sobre a água de forma que Swann conseguisse alcançar o gancho.

- Aguenta firme, Maury! Gritou Pratt. - Você vai ficar bem. Swann agarrou o varão e Pratt começou a puxá-lo para a borda da piscina. - Peguei você, Maury, disse Pratt. - Não se preocupe.

- Não precisa se preocupar com a encenação de salva-vidas, disse Bosch. - Eu ouvi tudo. Pratt ficou imóvel e olhou para Swann na água. Ele estava a um metro da borda.

- Nesse caso, disse Pratt. Ele soltou o varão e levou a mão direita às costas na linha da cintura.

- Não faça isso! Era Walling. Ela havia conseguido atravessar a cerca. Estava do outro lado da piscina, apontando a arma para Pratt. Pratt ficou imóvel e pareceu estar tomando uma decisão quanto a sacar a arma ou não. Bosch se aproximou dele por trás e arrancou a arma das calças dele. - Harry! Gritou Rachel. - Eu estou de olho nele. Pegue o advogado.

Swann estava afundando. O varão azul estava afundando junto com ele. Bosch se aproximou rapidamente da borda da piscina e o agarrou. Puxou Swann para a superfície. O advogado começou a tossir e a cuspir água. Ele segurou com força no varão e Bosch o conduziu até a parte rasa. Rachel deu a volta até Pratt e mandou-o colocar as mãos atrás da cabeça. Maury Swann estava nu. Ele subiu os degraus que havia na parte rasa cobrindo as bolas murchas com uma das mãos e tentando recolocar o topete postiço com a outra. Desistindo no meio do caminho, rasgou a peruca e jogou-a com força no chão, onde caiu com barulho de pano molhado. Ele foi diretamente para a pilha de roupas que estava ao lado de um banco e começou a se vestir, ainda completamente molhado.

- E então, o que estava acontecendo aqui, Maury? Perguntou Bosch.

- Nada que seja da sua conta. Bosch concordou.

- Entendi. Um sujeito aparece aqui para jogar você na piscina e olhar enquanto você se afoga, talvez para tentar parecer que foi suicídio ou um acidente, e você não quer que seja da conta de ninguém.

- Foi uma diferença de opiniões, só isso. Ele estava me dando um susto, não estava me afogando.

- Isso quer dizer que você e ele tinham um acordo antes de terem esse desacordo agora?

- Não vou responder isso.

- Por que ele estava lhe dando um susto?

- Não preciso responder a nenhuma das suas perguntas.

- Então talvez fosse o caso de irmos embora e deixar vocês dois terminarem o desacordo. Talvez isso fosse a melhor coisa a fazer aqui.

- Faça o que quiser.

- Sabe o que eu acho? Acho que, com seu cliente, Raynard Waits, morto, há apenas uma pessoa que pode ligar o detetive Pratt aos Garlands. Acho que o seu parceiro aqui estava se livrando dessa ligação porque estava ficando assustado. Você estaria no fundo dessa piscina se não tivéssemos aparecido por aqui.

- Você pode fazer e pensar o que quiser. Mas o que eu estou lhe dizendo é que tivemos uma desavença. Ele apareceu enquanto eu estava dando as minhas braçadas noturnas e nós discordamos em relação a um assunto.

- Pensei que você não soubesse nadar, Maury. Não foi isso o que você disse?

- Eu não tenho mais nada para falar com você, detetive. Pode sair da minha propriedade agora.

- Ainda não, Maury. Por que não termina de se vestir e se junta a nós ali no lado mais fundo? Bosch deixou-o ali enquanto ele lutava para colocar as pernas molhadas nas calças de seda. Do outro lado da piscina, Pratt agora estava algemado e sentado em um banco de concreto.

- Não vou dizer nada até falar com um advogado, disse ele.

- Bom, tem um bem ali colocando a roupa, disse Bosch. - Talvez você possa contratá-lo.

- Eu não vou falar nada, Bosch, repetiu Pratt.

- Ótima decisão, gritou Swann do outro lado. - Regra número um: nunca fale com a polícia. Bosch olhou para Rachel e quase riu.

- Dá para acreditar nisso? Dois minutos atrás ele estava tentando afogar o sujeito, e agora o sujeito está lhe dando aconselhamento jurídico grátis.

- Aconselhamento legal idôneo, disse Swann. Swann andou até onde os outros estavam esperando. Bosch reparou que suas roupas estavam grudadas em seu corpo molhado.

- Eu não estava tentando afogá-lo, disse Pratt. - Estava tentando ajudá-lo. Mas isso é tudo que vou dizer. Bosch olhou para Swann.

- Feche o zíper, Maury, e sente aqui. Bosch indicou um lugar ao lado de Pratt.

- Não, acho que não, replicou Swann. Ele deu um passo em direção à casa, mas Bosch deu dois passos e lhe cortou a frente.

- Sente-se, disse ele. - Você está preso.

- Por quê? Perguntou Swann com indignação.

- Duplo assassinato. Vocês dois estão presos. Swann riu como se estivesse lidando com uma criança. Agora que estava vestido, ele tinha recuperado um pouco da afetação.

- E que assassinatos seriam esses?

- Do detetive Fred Olivas e do policial Derek Doolan. Agora Swann balançou a cabeça, o sorriso ainda no rosto.

- Suponho que essas mortes se enquadrem em morte quando da comissão de um outro crime, uma vez que existem muitas evidências de que nós realmente não apertamos o gatilho que disparou as balas que mataram Olivas e Doolan.

- É sempre bom tratar com um advogado. Odeio ter que ficar explicando a lei sempre.

- É uma pena que precise que a lei seja explicada para você, detetive Bosch. Isso se aplica apenas quando alguém é morto durante a comissão de um crime sério. Se essa condição é satisfeita, então co-conspiradores na empreitada criminosa podem ser acusados de assassinato. Bosch concordou.

- Entendi o que você disse, ele comentou. - E entendi vocês.

- Então tenha a gentileza de me dizer que crime foi esse em que eu estaria envolvido. Bosch pensou um momento antes de responder.

- Que tal indução a perjúrio e obstrução da justiça? Poderíamos começar por aí e subir até corrupção de um funcionário público, talvez com auxílio e incitação de fuga de custódia.

- E poderíamos terminar por aí também, disse Swann. - Eu estava representando o meu cliente. Eu não cometi nenhum desses crimes, e você não tem uma única prova de que eu os tenha cometido. Se me prender, isso simplesmente vai evidenciar a sua ruína e seu constrangimento. Ele se levantou.

- Boa-noite a todos. Bosch se aproximou e colocou a mão sobre o ombro de Swann. Conduziu-o de volta ao banco.

- Senta aí, porra. Você está preso. Vou deixar que os promotores decidam sobre condições e crimes. Não dou a mínima para essa merda. No que me diz respeito, dois policiais estão mortos e a carreira da minha parceira vai terminar por sua causa, Maury. Então vá se foder. Bosch olhou para Pratt, que estava sentado, um leve sorriso no rosto.

- É bom ter um advogado em casa, Harry, disse ele. - Acho que o Maury apresentou um bom argumento. Talvez você devesse pensar nisso antes de fazer qualquer coisa precipitada. Bosch balançou a cabeça.

- Vocês não vão escapar desta, disse ele. - De jeito nenhum. Ele esperou um momento, mas Pratt não disse nada. - Eu sei que foi você quem armou tudo, disse Bosch. - Tudo o que aconteceu em Beachwood Canyon foi bolado por você. Foi você quem fez o acordo com os Garlands, e depois foi falar com o Maury aqui, que o levou para Waits. Você adulterou o inquérito depois que Waits lhe deu um nome falso para incluir ali. Maury pode estar certo sobre essa conversa de morte na comissão de outro crime, mas há mais do que o suficiente aí para obstrução, e se eu conseguir isso, eu peguei vocês. Isso significa nada de ilha ou pensão, chefe. Significa que você está acabado. Os olhos de Pratt abaixaram do rosto de Bosch para as águas escuras da piscina. - Eu quero os Garlands e você pode entregá-los a mim, disse Bosch. Pratt balançou a cabeça sem tirar os olhos da água. - Então faça como quiser, disse Bosch. - Vamos.

Ele fez um sinal para que Pratt e Swann se levantassem. Eles obedeceram. Bosch virou Swann de costas para poder algemá-lo. Enquanto fazia isso, olhou para Pratt por cima do ombro do advogado.

- Depois que ficharmos você, quem quer que chamemos para cuidar da fiança: sua esposa ou a garota do “Contrata & Despede”? Pratt se sentou imediatamente, como se tivesse sido atingido por um soco. Bosch estava guardando aquilo com um último disparo. E manteve a pressão. - Qual delas iria para a ilha com você? Para a sua fazenda? Meu palpite é que seria a... Como é mesmo o nome?

- O nome dela é Jessie Templeton. E eu percebi você me seguindo até a casa dela esta noite.

- É, e eu percebi que você notou. Mas me diga uma coisa: o quanto Jessie Templeton sabe sobre esta história, e o quanto vai resistir depois que eu tiver fichado você e for vê-la?

- Bosch, ela não sabe de nada. Deixe-a fora disso. Deixe minha mulher e filhos fora disso também. Bosch balançou a cabeça.

- Não é assim que funciona. Você sabe disso. Nós vamos virar tudo de cabeça para baixo e sacudir até ver o que cai. Eu vou encontrar o dinheiro que os Garlands lhe pagaram e vou ligar isso a você, a Maury Swann, a todo mundo. Só espero que você não tenha usado sua namorada para escondê-lo. Porque, se foi isso o que fez, ela vai se dar mal também.

Pratt se inclinou para frente no banco. Bosch teve a impressão de que se as mãos dele não estivessem algemadas às suas costas, ele as estaria usando naquele momento para segurar a cabeça e esconder o rosto do mundo. Bosch fora para cima dele como um homem com um machado cortando uma árvore. Ela agora mal parava em pé. Precisava só de um empurrãozinho e iria cair. Bosch conduziu Swann até Rachel, que o segurou com firmeza por um dos braços. Bosch então se voltou para Pratt.

- Você alimentou o cachorro errado, disse Bosch.

- E o que isso quer dizer?

- Todo mundo tem escolhas e você fez a errada. O problema é que não pagamos por nossos erros sozinhos. Nós levamos pessoas com a gente. Bosch caminhou até a beira da piscina e olhou para a água. Ela brilhava na superfície, mas era impenetravelmente escura abaixo dela. Ele aguardou, mas não demorou muito tempo para a árvore cair.

- A Jessie não precisa tomar parte nisso, e minha mulher não sabe sobre ela, disse Pratt. Era uma oferta inicial. Pratt ia falar. Bosch bateu o pé na beirada de azulejos e se virou para encará-lo. - Eu não sou promotor, mas aposto que alguma coisa poderia ser negociada.

- Pratt, você está cometendo um grande erro! Disse Swann, um tom de urgência na voz. Bosch foi até Pratt, bateu a mão em seus bolsos até encontrar as chaves do Commander e tirou-as dele.

- Rachel, leve o Sr. Swann até o carro do detetive Pratt. Será melhor para transportá-lo. Nós já vamos. Ele jogou as chaves para Rachel, que conduziu Swann até a abertura na cerca por onde ela havia entrado. Swann teve que ser empurrado. Ele olhava por cima do ombro enquanto andava e gritava para Pratt.

- Não fale com esse homem, berrou ele. - Está me ouvindo? Não fale com ninguém! Você vai colocar todos nós na cadeia! Swann continuou gritando conselhos de advogado através da cerca. Bosch esperou até ouvir a porta do carro se fechar e abafar o som da voz de Swann. Ele então ficou parado na frente de Pratt e reparou que o suor estava pingando da testa dele e escorrendo pelo rosto.

- Eu não quero Jessie nem a minha família envolvida, disse Pratt. - E eu quero um acordo. Liberdade, aposentadoria e pensão.

- Você quer muito para alguém que contribuiu para a morte de duas pessoas. Bosch começou a andar de um lado para outro, tentando pensar em uma maneira de as coisas darem certo para os dois. Rachel voltou, atravessando a cerca. Bosch olhou para ela e estava prestes a perguntar por que havia deixado Swann sozinho.

- Travas de porta à prova de crianças, disse ela. - Ele não vai conseguir sair. Bosch assentiu e voltou sua atenção para Pratt.

- Como eu estava dizendo, você quer muita coisa, continuou ele. - O que vai dar em troca?

- Eu posso lhe dar os Garlands, fácil, disse Pratt desesperadamente. - Anthony me levou lá em cima duas semanas atrás e me mostrou o corpo da garota. E Maury Swann, esse eu posso lhe entregar de bandeja. O sujeito é tão sujo quanto... Ele não terminou a frase.

- E quanto a você? Pratt abaixou os olhos e balançou a cabeça lentamente. Bosch tentou colocar tudo de lado para poder pensar com calma na oferta de Pratt. O sangue de Freddy Olivas e do policial Derek Doolan estava nas mãos de Pratt. Bosch não sabia se conseguiria acertar um acordo desses com um promotor. Não sabia sequer se ele mesmo aceitaria aquele acordo. Mas, naquele momento, estava disposto a tentar, se aquilo significasse que ele finalmente conseguiria pegar o homem que tinha matado Marie Gesto.

- Sem promessas, disse ele. - Vamos falar com um promotor. Bosch passou para a última pergunta importante. - E quanto a O’Shea e Olivas? Pratt balançou a cabeça negativamente uma vez.

- Eles estavam limpos.

- Garland passou pelo menos 25 mil para a campanha de O’Shea. Isso está documentado. - Ele estava apenas cobrindo suas apostas. Se O’Shea ficasse desconfiado, T. Rex poderia mantê-lo na linha porque poderia parecer um tipo de compensação. Bosch concordou. Sentiu o ardor da humilhação pelas coisas que havia pensado sobre O’Shea e lhe dito. - Isso não foi a única coisa que você entendeu errado, disse Pratt.

- Ah é, e o que mais?

- Você disse que eu estava com os Garlands nesse negócio. Eu não estava. Eles vieram até mim, Harry. Bosch balançou a cabeça. Ele não acreditava em Pratt pelo simples motivo de que se os Garlands tivessem tido a ideia de comprar um policial, o primeiro movimento que fariam seria tentar a fonte de seu problema. Isso nunca aconteceu, o que fazia Bosch se sentir seguro de que o esquema fora elaborado por Pratt enquanto ele tentava fazer um malabarismo com sua aposentadoria, um possível divórcio, uma amante e quaisquer outros segredos que tivesse na vida. Ele fora até os Garlands para propor aquilo. Tinha ido até Maury Swann também.

- Conte isso ao promotor, disse Bosch. - Talvez ele se importe. Ele olhou para Rachel e ela assentiu. - Rachel, você leva o Jeep com Swann. Eu levo o detetive Pratt no meu carro. Quero mantê-los separados.

- Boa ideia. Bosch fez um sinal para que Pratt se levantasse.

- Vamos. Pratt se levantou de novo e ficou cara a cara com Bosch.

- Harry, você tem que saber de uma coisa primeiro.

- E o que é?

- Não era para ninguém se machucar, ok? Era um plano perfeito no qual ninguém ia se machucar. Foi o Waits... Ele transformou tudo naquela merda que aconteceu na floresta. Se ele tivesse feito apenas o que lhe mandaram, todo mundo ainda estaria vivo e todo mundo estaria feliz. Até mesmo você. Você teria resolvido o caso Gesto. Fim da história. Era assim que deveria ter sido. Bosch teve que se esforçar para conter a raiva.

- Belo conto de fadas, disse ele. - Tirando a parte da história em que a princesa nunca acorda e o verdadeiro assassino fica impune, todos viveram felizes para sempre. Continue contando essa história para si mesmo. Quem sabe um dia você vai conseguir conviver com ela.

Bosch segurou-o bruscamente pelo braço e conduziu-o na direção da abertura na cerca.

 

PARTE CINCO

ECHO PARK

CAPÍTULO 36

Às dez da manhã de uma segunda-feira, Abel Pratt saiu de seu carro e atravessou o gramado verde de Echo Park até um banco no qual um senhor de idade estava sentado sob os braços protetores da Dama do Lago. Havia cinco pombos descansando nos ombros, nas mãos e um sobre a cabeça, mas ela não dava sinais de aborrecimento ou cansaço. Pratt enfiou o jornal dobrado que carregava na lata de lixo completamente cheia que havia ao lado da estátua e se sentou no banco ao lado do velho. Ele olhou para as águas calmas do lago Echo à frente deles. O velho, que segurava uma bengala ao lado do joelho e usava um paletó marrom-claro com um lenço também marrom no bolso do peito, falou primeiro.

- Eu me lembro de uma época em que se podia vir aqui com a família em um domingo sem ter que se preocupar em levar um tiro desse pessoal de gangues. Pratt pigarreou.

- É com isso que está preocupado, Sr. Garland? O pessoal das gangues? Bom, vou lhe dar uma dica. Agora é uma das horas mais seguras em qualquer bairro da cidade. A maioria do pessoal das gangues não sai da cama até o meio da tarde. É por isso que, sempre que saímos com mandados, fazemos isso de manhã. Sempre os pegamos na cama. Garland balançou a cabeça em aprovação.

- É bom saber disso. Mas não é com isso que estou preocupado. Estou preocupado com você, detetive Pratt. Nosso negócio foi concluído. Eu esperava nunca mais ter notícias suas. Pratt se inclinou para frente e examinou o parque com os olhos. Estudou as fileiras de mesas do outro lado do lago, onde os velhos jogavam dominó. Seus olhos então passaram pelos carros estacionados perto do meio-fio que rodeava o parque.

- Onde está Anthony? Perguntou ele.

- Logo ele aparece. Está tomando algumas precauções. Pratt assentiu.

- Precauções são uma boa coisa, disse ele.

- Não gosto deste lugar, disse Garland. - Está cheio de gente feia, e isso inclui você. Por que estamos aqui?

- Espere um pouco, disse uma voz vinda de trás deles. - Não diga mais uma palavra, pai. Anthony Garland tinha se aproximado pelo lado de fora do campo de visão dos dois. Ele deu a volta pela estátua, chegando ao banco na beira do lago. Ficou em pé na frente de Pratt e fez um sinal para que ele se levantasse.

- Levante, disse ele.

- O que é? Pratt protestou ligeiramente.

- Apenas levante. Pratt fez o que lhe estava sendo pedido, e Anthony Garland retirou um pequeno bastão eletrônico do bolso de seu paletó. Começou a passá-lo de cima para baixo na frente de Pratt, dos pés à cabeça. - Se você estiver transmitindo um sinal de radiofrequência, isto aqui vai acusar.

- Ótimo. Sempre me perguntei se eu não estava com um negócio desses. Com essas mulheres lá de Tijuana, nunca se sabe. Ninguém riu. Anthony Garland pareceu satisfeito com a varredura e começou a guardar o bastão mágico. Pratt fez menção de sentar.

- Espere, disse Garland. Pratt continuou em pé, e Garland começou a passar as mãos sobre o corpo de Pratt, como segunda precaução. - Não dá para ter muita certeza quando se trata de um cara sujo como você, detetive. Ele moveu as mãos até a cintura de Pratt.

- Isso é a minha arma, disse Pratt. Garland continuou revistando. - Isso é o meu celular. As mãos desceram mais ainda. - E isso é o meu saco.

Garland então desceu pelas duas pernas e, quando estava satisfeito, disse a Pratt que ele podia sentar. O detetive retornou a seu lugar ao lado do velho. Anthony Garland continuou em pé na frente do banco, as costas viradas para o lago, os braços cruzados sobre o peito.

- Ele está limpo, disse.

- Tudo bem, então, disse T. Rex. - Podemos conversar. Do que se trata, detetive Pratt? Pensei ter deixado claro para você: você não nos chama. Você não nos ameaça. Você não nos diz onde e quando estar.

- Se eu não os tivesse ameaçado, vocês teriam vindo? Nenhum dos Garlands respondeu, e Pratt sorriu com presunção e balançou a cabeça afirmativamente. - Sem mais perguntas.

- Por que estamos aqui? Perguntou o velho. - Eu deixei bem claro antes. Não quero meu filho envolvido em nada disso. Por que ele teve que vir até aqui?

- Bem, porque eu meio que estava com saudades dele desde nosso pequeno passeio na floresta. Nós temos uma ligação, não é, Anthony? Anthony não respondeu. Pratt continuou fazendo pressão. - Quero dizer, se um sujeito leva uma pessoa até um corpo em uma floresta, eu diria que normalmente eles ficariam bem unidos. Mas não tive notícias de Anthony desde que fomos até Beachwood juntos.

- Eu não quero que você fale com o meu filho, disse T. Rex Garland. - Não fale com o meu filho. Você foi comprado e pago, detetive, entendeu? Esta é a única vez em que você convoca uma reunião comigo. Eu convoco você. Você não me convoca. O velho não olhava para Pratt enquanto falava. Seus olhos estavam fixos na direção do lago. A mensagem era clara. Pratt não era digno de sua atenção.

- É, tudo isso estava muito bem, mas as coisas mudaram, disse Pratt. - Caso você não tenha lido os jornais, nem visto os noticiários na TV, as coisas viraram uma merda lá. O velho continuou sentado, mas esticou os braços para frente e colocou as palmas da mão sobre a cabeça de dragão dourada e brilhante no topo de sua bengala. Ele falou calmamente.

- E de quem é a culpa? Você nos disse que conseguiria manter Raynard Waits na linha, junto com o advogado. Você nos disse que ninguém se machucaria. Chamou de operação limpa. Agora, veja só no que você nos envolveu. Pratt levou alguns instantes para responder.

- Você se envolveu sozinho. Você queria uma coisa e eu era o fornecedor. Não importa de quem é a culpa, o fato é que agora eu preciso de dinheiro. T. Rex Garland balançou a cabeça lentamente.

- Você recebeu um milhão de dólares, disse ele.

- Tive que dividir com Maury Swann, respondeu Pratt.

- Os custos de seu subcontrato não eram e não são problemas meus.

- O valor do pagamento era para o caso de tudo acontecer sem problemas. Waits levava a culpa por Gesto, caso encerrado. Agora há complicações, investigações acontecendo, e eu preciso lidar com elas.

- Mais uma vez, não é problema meu. Nosso acordo acabou. Pratt se inclinou para frente no banco e apoiou os cotovelos nos joelhos.

- Não acabou ainda, T. Rex, disse ele. - E talvez você devesse se preocupar. Porque, sabe quem me visitou na sexta à noite? Harry Bosch, e ele estava com uma agente do FBI. Eles me levaram para uma pequena reunião com o senhor Rick O’Shea. Acontece que, antes de Bosch detonar o Waits, o desgraçado contou a Bosch quem matou Marie Gesto. Então isso coloca Bosch de volta na sua cola, Júnior. E coloca todos eles na minha cola. Eles quase já destrincharam a história toda, percebendo a ligação entre mim e Maury Swann. Eles só precisam de alguém que preencha as lacunas, e uma vez que não podem ter Swann, querem que essa pessoa seja eu. E já começaram a fazer pressão. Anthony Garland resmungou e bateu o pé no chão com seus caros mocassins.

- Que merda! Eu sabia que essa coisa iria... Seu pai ergueu a mão pedindo silêncio.

- Bosch e o FBI não importam, disse o velho. - Tudo gira em torno do que O’Shea vai fazer, e nós já cuidamos dele. Ele já está comprado e pago. Só que ainda não sabe disso. Assim que eu o informar sobre sua situação, ele vai fazer o que eu lhe disser. Isso se quiser ser o procurador geral. Pratt balançou a cabeça.

- Bosch não vai desistir. Há 13 anos que ele trabalha no caso. Não vai desistir agora.

- Então você cuida disso. Essa é a sua parte no acordo. Eu cuidei de O’Shea. Você cuida de Bosch. Vamos embora, filho. O velho começou a se levantar, usando a bengala para apoiar o corpo. O filho se aproximou para ajudá-lo.

- Esperem um pouco, disse Pratt. - Vocês não vão a parte alguma. Eu disse que quero mais dinheiro, e estou falando sério. Eu cuido de Bosch, mas então vou ter que desaparecer. Preciso de mais dinheiro para fazer isso. Anthony Garland apontou com raiva para Pratt no banco.

- Seu desgraçado maldito, disse ele. - Foi você quem veio até nós. Toda essa maldita história é plano seu, do começo ao fim. Você sai e arranja duas pessoas mortas, e então tem a coragem de voltar e pedir mais dinheiro para a gente? Pratt deu de ombros e abriu as mãos.

- Estou diante de uma escolha aqui, como vocês. Eu poderia ficar vendo como as coisas andam e o quanto chegam perto de mim. Ou eu poderia desaparecer agora mesmo. O que você deveria saber é que eles sempre fazem acordos com os peixes pequenos para pegar os peixes grandes. Eu sou peixe pequeno, Anthony. O peixe grande? Esse deve ser você. Ele se virou para olhar para o velho. - E o peixe grandão? Esse deve ser você. T. Rex Garland concordou. Ele era um homem de negócios pragmático. Agora parecia ter entendido a gravidade da situação.

- Quanto? Perguntou ele. - Quanto para desaparecer? Pratt não hesitou.

- Quero outro milhão de dólares, e para você vai ser um dinheiro muito bem empregado se o der a mim. Eles não podem chegar a nenhum de vocês sem mim. Se eu desaparecer, o caso está encerrado. Então é um milhão e o preço não é negociável. Qualquer valor abaixo disso para mim não justifica o risco. Vou fazer um acordo e me arriscar.

- E quanto a Bosch? Perguntou o velho. - Você já disse que ele não vai desistir. Agora que ele sabe que Raynard Waits não...

- Eu cuido dele antes de desaparecer, disse Pratt, interrompendo-o. Ponho isso no acordo de graça. Pratt enfiou a mão no bolso e tirou um pedaço de papel com números impressos. Ele o fez escorregar pelo banco até chegar ao velho. - Aí está o número da conta bancária e o código de acesso. A mesma coisa de antes. Pratt se levantou. - Vou lhes dizer uma coisa: conversem entre si. Eu vou até ali na casa de barcos dar uma mijada. Quando eu voltar, vou precisar de uma resposta.

Pratt saiu andando, passando por Anthony, chegando perto, cada um sustentando o olhar duro e cheio de ódio do outro.

 

CAPÍTULO 37

Harry Bosch estudou os monitores na van de vigilância. O FBI tinha trabalhado a noite toda montando câmeras em oito locais no parque. Todo um lado do interior da van estava coberto com uma fileira de telas digitais que mostravam vários ângulos do banco onde T. Rex Garland estava sentado e seu filho, que aguardava em pé a volta de Abel Pratt. As câmeras estavam localizadas em quatro lâmpadas que iluminavam a trilha dentro do parque, duas nos canteiros, no farol de imitação que ficava em cima da casa de barcos e no pombo falso que estava pousado no topo da cabeça da Dama do Lago. Além disso, os técnicos da agência montaram receptores de som por micro-ondas fazendo uma triangulação com o banco. A varredura sonora era auxiliada por microfones direcionais localizados no pombo falso, em um canteiro de flores e no jornal dobrado que Pratt havia colocado na lata de lixo que havia ali perto. Um técnico de som do FBI chamado Jerry Hooten estava sentado
na van, usando um enorme par de fones de ouvido e manipulando os controles de áudio para obter um som mais limpo.

Bosch e os outros conseguiam ver Pratt e os Garlands e ouvir a conversa deles palavra por palavra. Os outros eram Rachel Walling e Rick O’Shea. O Promotor estava sentado na frente e ao centro, as telas de vídeo espalhadas diante de si. Aquele era seu show. Walling e Bosch estavam sentados cada um de um lado dele. O’Shea tirou os fones de ouvido.

- O que vamos fazer? Perguntou ele. - Ele vai telefonar. O que eu digo para ele? Três das telas mostravam Pratt prestes a entrar no banheiro do parque. De acordo com o plano, ele esperaria até que não houvesse ninguém no banheiro e então ligaria para o número da van de vigilância com seu celular. Rachel colocou os fones de ouvido ao redor do pescoço e Bosch fez o mesmo.

- Eu não sei, disse ela. - É você quem decide, mas não temos muita coisa que possa ser considerada uma confissão do filho em relação a Gesto.

- Era isso que eu estava pensando, respondeu O’Shea.

- Eu não sei, disse Bosch. - Quando Pratt falou sobre o fato de ele tê-lo levado pela floresta até o corpo, Anthony não negou.

- Mas também não admitiu, disse Rachel.

- Mas se um sujeito estivesse sentado ali falando com você a respeito de ter encontrado um corpo que você enterrou, e se você não soubesse sobre o que ele estava falando, acho que você diria alguma coisa.

- Bom, isso pode ser um argumento para o júri, disse O’Shea. - Só estou dizendo que ele ainda não apresentou nada que eu pudesse chamar de declaração de confissão. Precisamos de algo mais.

Bosch concordou, reconhecendo que ele tinha razão. Na manhã de sábado havia se decidido que a palavra de Pratt não seria suficiente. Seu testemunho de que Anthony Garland o levara ao corpo de Marie Gesto e que ele recebera um pagamento de T. Rex Garland não seria suficiente para estabelecer uma acusação sólida. Pratt era um policial corrupto, e elaborar o processo com base em seu testemunho era arriscado demais em uma época na qual os júris desconfiavam muito do comportamento e da integridade da polícia. Eles precisavam ter confissões dos dois Garlands para que o caso tivesse uma base sólida.

- Vejam, tudo o que estou dizendo é: acho que tudo isso é bom, mas ainda não chegamos lá, disse O’Shea. - Precisamos ir direto ao...

- E quanto ao velho? Perguntou Bosch. - Acho que Pratt o deixou se cagando de medo.

- Eu concordo, disse Rachel. - Ele está ferrado. Se você mandá-lo de volta para lá, diga para pressionar Anthony. Como se aproveitando uma deixa, se ouviu um som grave e baixo que indicava a entrada de uma chamada. O’Shea, pouco familiarizado com o equipamento, levantou um dedo sobre o console e procurou o botão certo para apertar.

- Aqui, disse Hooten. Ele apertou um botão que abria a linha do celular.

- Aqui é da van, disse O’Shea. - Você está no viva-voz.

- Como me saí? Perguntou Pratt.

- É um começo, disse O’Shea.- Por que demorou tanto para ligar?

- Eu realmente tive que dar uma mijada.

Enquanto O’Shea falava com Pratt sobre voltar ao banco e tentar mais uma vez conseguir uma confissão de Anthony Garland, Bosch recolocou os fones de ouvido para ouvir a conversa que estava acontecendo no banco. Pelo visual que vinha das telas parecia que Anthony Garland estava discutindo com o pai. O velho estava apontando um dedo para ele. Bosch pegou a conversa no meio.

- É a nossa única saída, disse Anthony Garland.

- Eu disse não! Ordenou o velho. - Você não pode fazer isso. Você não vai fazer isso.

Na tela, Anthony se afastou do pai e depois voltou quase no mesmo instante. Parecia que estava preso a uma corrente invisível. Curvou-se perto do pai e dessa vez apontou o dedo. O que falou foi dito em voz tão baixa que os microfones do FBI captaram apenas um murmúrio. Bosch apertou as mãos sobre os fones de ouvido, mas não conseguiu entender.

- Jerry, disse ele. - Pode melhorar isso? Bosch apontou para as telas. Hooten colocou os fones de ouvido e começou a trabalhar nos indicadores de áudio. Mas já era tarde demais. A conversa íntima entre pai e filho havia acabado. Anthony Garland havia endireitado o corpo na frente do pai e dado as costas para ele. Estava olhando o lago em silêncio. Bosch recuou um pouco para poder ver a tela que mostrava um ângulo sobre o banco focalizado por uma das câmeras posicionadas junto às lâmpadas da trilha perto da água. Era a única tela que mostrava o rosto de Anthony naquele momento. Bosch viu a raiva em seus olhos. Já havia visto aquilo antes. O queixo de Anthony estava rígido e ele balançava a cabeça. Ele se virou para o pai.

- Desculpe pai. Dizendo isso, ele começou a andar na direção da casa de barcos. Bosch o viu dar passadas largas em direção à porta dos banheiros. Viu a mão dele procurando algo dentro do paletó. Bosch arrancou rapidamente os fones de ouvido.

- Anthony está indo para o banheiro masculino! Disse ele. - Acho que ele tem uma arma! Bosch se levantou de um pulo e empurrou Hooten de lado para chegar à porta da van. Desconhecendo como funcionava a maçaneta, Bosch se atrapalhou tentando abri-la. Atrás de si ouviu O’Shea gritando comandos no microfone do rádio.

- Todo pessoal, avançar! Avançar! O suspeito está armado. Eu repito, o suspeito está armado!

Bosch finalmente conseguiu sair da van e começou a correr na direção da casa de barcos. Não havia sinal de Anthony Garland. Ele já estava lá dentro. Bosch estava em um ponto mais afastado no parque, a mais de 100 metros de distância. Outros agentes e investigadores do escritório da Promotoria estavam posicionados mais próximos, e Bosch os viu correndo com as armas na mão também em direção à casa de barcos. Assim que o primeiro homem, um agente do FBI, chegou à porta, o som de disparos ecoou de dentro do banheiro. Quatro tiros rápidos. Bosch sabia que a arma de Pratt estava descarregada. Era falsa. Ele precisava ter uma arma para o caso de os Garlands o revistarem. Mas Pratt estava em custódia, enfrentando acusações. Haviam tirado as balas dele. Enquanto Bosch olhava, o agente que estava na porta assumiu posição de combate, gritou “FBI!” e entrou. Quase imediatamente se ouviram mais tiros, mas o som desses foi completamente difere
nte dos quatro primeiros. Bosch sabia que aqueles tinham vindo da arma do agente. Quando Bosch chegou ao banheiro, o agente saiu, a arma a seu lado. Segurava um rádio perto da boca.

- Dois caídos no banheiro, disse ele. - O local está seguro. Exausto pela corrida, Bosch engoliu um pouco de ar e andou na direção da porta. - Detetive, esta é uma cena de crime, disse o agente. Ele colocou a mão na frente do peito de Bosch. Bosch empurrou-a para o lado.

- Dane-se. Ele entrou no banheiro e viu os corpos de Pratt e de Garland no chão sujo de concreto.

Pratt levara dois tiros no rosto e dois no peito. Garland tomou três tiros no peito. Os dedos da mão direita de Pratt estavam tocando a manga do paletó de Garland. Poças de sangue no chão floresciam de ambos os corpos e logo iriam se misturar. Bosch olhou por alguns momentos, estudando os olhos abertos de Anthony. A ira que Bosch havia visto momentos antes desaparecera, substituída pelo olhar vazio de morte. Ele saiu do banheiro e olhou para o banco. O velho, T. Rex Garland estava sentado inclinado para frente, o rosto entre as mãos. A bengala com a cabeça brilhante de dragão caíra sobre a grama.

 

CAPÍTULO 38

Todo o Echo Park foi fechado para a investigação. Pela terceira vez em uma semana, Bosch foi entrevistado a respeito de um tiroteio, só que desta vez foram os federais que fizeram as perguntas, e sua participação foi periférica porque ele não tinha disparado uma arma. Ao terminar, foi até um carrinho de mariscos que estava parado no meio-fio, atendendo uma multidão de espectadores que estavam do lado de fora da fita amarela. Ele pediu um taco de camarão e um refrigerante e levou-os até um dos carros federais que estavam ali por perto. Estava apoiado sobre o para-lama dianteiro, almoçando, quando Rachel Walling se aproximou.

- Parece que Anthony Garland tinha uma autorização de porte de arma oculta, disse ela. - Era necessária para seu trabalho de segurança. Ela se inclinou casualmente sobre o para-lama ao lado dele. Bosch concordou.

- Acho que deveríamos ter verificado isso, disse ele. Comeu o último bocado, limpou a boca com um guardanapo e então o juntou com a embalagem em papel-alumínio aonde viera o taco, transformando tudo em uma bola.

- Eu me lembrei da sua história, disse ela.

- Qual história? Perguntou ele.

- Aquela que você me contou sobre Garland molestando aqueles garotos no campo de petróleo.

- O que tem?

- Você disse que ele apontou uma arma para eles.

- Isso mesmo. Ela não disse nada. Olhou para o lago. Bosch balançou a cabeça como se não tivesse certeza sobre o que estava acontecendo. Por fim, ela falou.

- Você sabia sobre o porte de arma e sabia que Anthony ia estar armado, não sabia? Era uma pergunta, mas ela falou como uma afirmação.

- Rachel, o que você está dizendo?

- Estou dizendo que você sabia. Você sabia há muito tempo que Anthony andava armado. Você sabia o que poderia acontecer hoje. Bosch abriu as mãos.

- Veja bem, aquele negócio com os garotos aconteceu 12 anos atrás. Como é que eu poderia saber que ele tinha uma arma hoje? Ela desencostou do para-lama e ficou de frente para ele.

- Quantas vezes você falou com Anthony nos últimos anos? Quantas vezes você o apertou? Bosch apertou mais ainda a bola de alumínio em seu punho.

- Escute, eu nunca...

- Você está me dizendo que em todas essas vezes você nunca tinha descoberto uma arma? Você não verificou se havia portes de arma? Você não sabia que havia uma probabilidade muito grande de que ele traria uma arma, e sua raiva descontrolada, para uma reunião como a de hoje? Se soubéssemos que esse sujeito andava armado, nós nunca teríamos armado isto tudo, para começar. Bosch sorriu aborrecido e balançou a cabeça, incrédulo.

- Qual foi o seu comentário no outro dia sobre conspirações idiotas? Marilyn não morreu de overdose; os Kennedys mandaram matá-la. Bosch sabia que Anthony traria uma arma para o encontro e ia começar a atirar? Rachel, tudo isso soa a...

- E quanto ao que você disse sobre ser um verdadeiro detetive? Ela olhou firme para ele.

- Rachel, escute. Não havia jeito de alguém prever o que aconteceria aqui. Não havia como...

- Previsto, esperado, feito acontecer acidentalmente, qual é a diferença? Você se lembra do que disse a Pratt outra noite na piscina?

- Eu disse muitas coisas a ele. A voz dela assumiu um tom de tristeza.

- Você disse a ele sobre as escolhas que todos fazemos. Ela apontou para a casa de barcos do outro lado do gramado. - E, Harry, eu acho que esse é o cachorro que você escolheu alimentar. Espero que esteja contente com isso. E espero que isso tudo combine perfeitamente bem com a maneira de ser do verdadeiro detetive.

Ela se virou e saiu andando na direção da casa de barcos e da aglomeração de investigadores que lotavam a cena do crime. Bosch deixou-a ir. Por muito tempo ele não se mexeu. As palavras dela tinham passado por ele como os sons de uma montanha-russa. Estrondos surdos e gritos agudos. Ele apertou a bola de alumínio na mão e atirou-a na direção de uma lata de lixo ao lado do carrinho de mariscos. Errou longe.

 

CAPÍTULO 39

Kiz Rider atravessou as portas duplas em uma cadeira de rodas. Ela achava aquilo constrangedor, mas essa era a norma do hospital. Bosch estava esperando por ela com um sorriso e um buquê de flores que havia comprado de um vendedor na saída da autoestrada perto do hospital. Assim que a enfermeira permitiu, ela se levantou e saiu da cadeira. Abraçou Bosch de maneira hesitante, como se fragilizada, e agradeceu a ele por ter vindo para levá-la para casa.

- Estacionei bem ali na frente, disse ele. Com o braço sobre as costas dela, ele a conduziu até o Mustang. Ele a ajudou a entrar, colocou no porta-malas uma sacola cheia de cartões e lembranças que ela recebera e deu a volta até o lado do motorista. - Quer ir a algum lugar antes? Perguntou ele depois de entrar no carro.

- Não, só para casa. Mal posso esperar para dormir na minha cama.

- Eu sei como é isso. Ele deu a partida no carro e saiu, rumando para a autoestrada. Rodaram em silêncio. Quando ele passou pela 134, o vendedor de flores ainda estava no canteiro central. Rider olhou para o buquê em sua mão, notou que Bosch comprara as flores na última hora e começou a rir. Bosch riu também.

- Ai, merda, isso dói! Disse ela, tocando o pescoço com a mão.

- Desculpe.

- Tudo bem, Harry. Eu preciso rir. Bosch balançou a cabeça, concordando.

- Sheila vai aparecer hoje? Ele perguntou.

- Vai, depois do trabalho.

- Que bom. Ele balançou a cabeça afirmativamente porque não havia mais nada a fazer. Os dois voltaram a ficar em silêncio.

- Harry, eu segui o seu conselho, disse Rider depois de alguns minutos.

- Qual conselho?

- Eu lhes disse que não tinha posição para tiro. Eu lhes disse que não queria atingir Olivas.

- Isso é ótimo, Kiz. Ele pensou sobre as coisas por alguns momentos.

- Isso significa que você vai manter o seu distintivo? Perguntou ele.

- Sim, Harry, eu vou ficar com o meu distintivo... Mas não com o meu parceiro. Bosch olhou para ela. - Eu conversei com o chefe, disse Rider. - Depois que terminar a fisioterapia, eu vou voltar a trabalhar no escritório dele, Harry. Espero que isso esteja bem para você.

- Qualquer coisa que você quiser está bem para mim. Você sabe disso. Estou contente porque você vai ficar.

- Eu também. Mais alguns minutos se passaram, e quando ela falou novamente foi como se a conversa não tivesse sido interrompida. - Além disso, lá no sexto andar eu vou poder ficar de olho em você, Harry. Quem sabe manter você fora das brigas burocráticas e políticas. Deus sabe que você ainda vai precisar de mim de vez em quando. O sorriso de Bosch foi largo. Ele não pôde evitar. Gostava da ideia de que ela estivesse um andar acima dele. Para ficar de olho e cuidar dele.

- Eu gosto disso, disse ele. - Acho que nunca tive um anjo da guarda antes.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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