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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENCONTRO EM BERLIM / Ian Fleming
ENCONTRO EM BERLIM / Ian Fleming

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

 

 

 

 

 

Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

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Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

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Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

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Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENCONTRO_EM_BERLIM.jpg

 

Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENCONTRO_EM_BERLIM.jpg

 

Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

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Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

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Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

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Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENCONTRO_EM_BERLIM.jpg

 

Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENCONTRO_EM_BERLIM.jpg

 

Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

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Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

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Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

CONTINUA

Era, excepcionalmente, um dia de calor no começo de junho. James Bond tirou o paletó. Não se deu ao trabalho de pendurá-lo no cabide que Mary Goodnight tinha colocado, por conta própria (essas mulheres!), atrás da porta verde do seu escritório contíguo no Ministério de Obras. Deixou o paletó cair no chão. No mundo inteiro tudo estava quieto. Os sinais de entrada e saída tinham, durante semanas, seguido a rotina. O SITREP diário de alto sigilo, e até os jornais, bocejavam no vácuo.
Bond detestava estes períodos vazios. Súbito, o zunido áspero do telefone vermelho invadiu a sala. No segundo toque, ele apanhou o fone.
— Sir?
— Sir.
Vestiu o paletó e passou ao escritório contíguo, resistindo ao impulso de despentear a convidativa nuca do pescoço dourado de Mary Goodnight.
Disse-lhe "M", e caminhou ao longo do corredor bem atapetado, entre os silvos e zunidos abafados da Seção de Comunicações, até o elevador e ao oitavo andar.
Como a expressão da Srta Moneypenny nada transmitisse, Bond registrou que este ia ser mais um serviço de rotina, uma chatice, e foi com esse espírito que preparou a sua entrada por aquela porta fatídica.
Havia uma visita — um estranho.
M disse com secura: — Dr. Fanshawe, não creio que o senhor conheça o comandante Bond, do meu Departamento de Investigações.
O estranho era de meia-idade, rosado, bem nutrido e vestia-se um tanto afetadamente. Bond avaliou-o como algo literário, um crítico talvez, e solteiro.
M disse: — O Dr. Fanshawe é uma conhecida autoridade em joias antigas. É também, embora isso seja confidencial, assessor da Alfândega de Sua Majestade e do CID para tais assuntos. Foi-nos indicado, na verdade, por nossos amigos do MIS. É algo a ver com a nossa Srta Freudenstein.

 

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Bond ergueu as sobrancelhas. Maria Freudenstein era um agente secreto que trabalhava para a KGB soviética no coração do serviço secreto. Pertencia ao corpo central do MOD, mas num compartimento estanque criado especialmente para ela, e suas tarefas confinavam-se a operar o Código Púrpura — um código que também tinha sido criado especialmente para ela.

Seis vezes por dia era responsável pela tradução em linguagem cifrada e pelo despacho de longos SITREPs neste código ao CIA em Washington. Essas mensagens eram produzidas pela Seção 100, responsável pelo trabalho dos agentes duplos. Eram na verdade uma mistura engenhosa de fatos verídicos, revelações inofensivas e uma pitada ocasional da mais grosseira informação falsa.

Maria Freudenstein, que o serviço sabia ser agente soviética já antes de contratá-la, tinha sido ajudada a furtar a chave do Código Púrpura com a intenção de que os russos tivessem um acesso completo a estes SITREPs — que pudessem interceptá-los e decifrá-los — e assim, quando fosse preciso, se alimentassem de informação falsa.

Era uma operação altamente sigilosa que precisava ser dirigida com extrema delicadeza, mas havia três anos que funcionava serenamente e, se Maria Freudenstein também recolhia uma certa quantidade de fofocas de restaurante na sede do serviço, este era um risco necessário, e ela não era atraente o bastante para formar ligações que pudessem representar uma ameaça à segurança.

M voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Talvez o Dr. pudesse explicar ao comandante Bond do que se trata.

— Certamente, certamente — o Dr. Fanshawe encarou rapidamente Bond. — Trata-se do seguinte, comandante. O senhor ouviu falar de Fabergé, sem dúvida. O famoso joalheiro russo.

— O que fez ovos de Páscoa espetaculares para o czar e a czarina antes da revolução.

— Sim, essa foi uma de suas especialidades. E fez muitas outras peças primorosas do que poderíamos de maneira mais geral descrever como objetos de arte. Hoje, nos salões de vendas, os melhores exemplares alcançam preços fabulosos — cinquenta mil libras e mais. Recentemente entrou neste país o espécime mais maravilhoso de todos — a chamada Esfera de Esmeralda*, uma obra de arte suprema, até então só conhecida através de um esboço feito pelo próprio grande artista. Esse tesouro chegou pelo correio registrado de Paris e veio endereçado a esta mulher de quem sabemos, Srta Maria Freudenstein.

— Um ótimo presentinho. E posso saber como o doutor teve conhecimento disso?

— Sou, conforme já contou o seu chefe, assessor da Alfândega de Sua Majestade para joalheria antiga e obras de arte semelhantes. O valor declarado do pacote foi cem mil libras. Isso era fora do comum. Existem métodos de abrir clandestinamente tais pacotes. Abriram-no — sob mandado do Ministério do Interior — e fui chamado para examinar o conteúdo e fazer uma avaliação. Reconheci imediatamente a Esfera de Esmeralda pela descrição e pelo esboço publicados no trabalho definitivo sobre Fabergé, do Sr. Kenneth Snowman. Disse que o preço declarado bem poderia ter sido feito por baixo. Mas o que encontrei de interesse particular foi o documento anexo que dava, em russo e francês, a procedência deste objeto inestimável. O Dr. Fanshawe fez um gesto na direção de uma cópia fotostática do que parecia ser uma breve árvore genealógica, sobre a escrivaninha à frente de M.

— Esta é uma cópia que mandei fazer. Sucintamente, declara que a Esfera foi encomendada pelo avô da Srta Freudenstein diretamente a Fabergé em 1917 — sem dúvida como um meio de transformar alguns dos seus rublos num objeto portátil e de grande valor. Ao morrer, em 1918, passou para o seu irmão e, então, em 1950 para a mãe da Srta Freudenstein. Ela, ao que parece, deixou a Rússia quando criança e viveu nos círculos de russos brancos émigrés em Paris. Nunca se casou, mas deu à luz uma filha ilegítima, esta garota Maria. Parece que morreu no ano passado e algum amigo ou testamentário — o papel não está assinado — transmitiu a Esfera a sua proprietária legítima, Srta Maria Freudenstein. Eu não tinha razões para interrogar esta moça, embora, como podem imaginar, meu interesse fosse dos mais vivos, até que no mês passado Sotheby’s anunciou que levaria a leilão a peça, descrita como “a propriedade de uma senhora”, daqui a uma semana. A pedido do Museu Britânico — pigarreou — e de outras partes interessadas, fiz, então, investigações discretas e encontrei-me com a senhora que, com perfeito domínio de si, confirmou a história tão incrível contida nos papéis de procedência. Foi então que soube que ela pertencia ao corpo central do Ministério da Defesa e passou por minha mente um tanto desconfiada a ideia de que era, quando menos, estranho que um funcionário subordinado, presumivelmente ocupado em tarefas delicadas, recebesse de um instante para o outro um presente no valor de cem mil libras ou mais do estrangeiro. Conversei com um funcionário graduado do MI5 com quem tenho algum contato através de meu trabalho para a Alfândega de Sua Majestade e fui devidamente encaminhado a este... este departamento.

O Dr. Fanshawe estendeu as mãos e lançou a Bond um olhar breve.

— E é isto, comandante, tudo o que tenho a contar-lhe.

M interrompeu: — Obrigado, doutor. Apenas uma ou duas perguntas para terminar. O senhor examinou este objeto, esta bola de esmeralda e a proclamou genuína?

— Certamente. E o mesmo fez o Sr. Snowman, de Wartski’s, os maiores especialistas e negociantes de Fabergé no mundo. Trata-se, sem dúvida, da peça desconhecida cujo registro único só se tinha, até agora, através do esboço de Carl Fabergé.

— E quanto à procedência? Que dizem os especialistas a respeito?

— A história parece exata. As maiores peças de Fabergé foram quase sempre encomendadas por particulares. A Senhorita Freudenstein diz que seu avô era um homem imensamente rico antes da revolução — um fabricante de porcelana. Noventa e nove porcento de todos os trabalhos de Fabergé conseguiram sair. Existem apenas umas poucas peças conservadas no Kremlin — descritas simplesmente como “exemplos pré-revolucionários da joalheria russa”. A opinião oficial soviética sempre foi a de que não passavam de bugigangas capitalistas. Oficialmente, eles as desprezam.

— Quer dizer que os soviéticos ainda conservam alguns exemplares da obra deste homem Fabergé. É possível que essa coisa de esmeralda permanecesse escondida em qualquer parte do Kremlin durante todos estes anos?

— Seguramente. O tesouro do Kremlin é vasto. Ninguém sabe o que é que eles têm escondido. Só recentemente foi que colocaram em exposição aquilo que queriam expor.

M tragou o seu cachimbo. Seus olhos através da fumaça eram afáveis. — Portanto, teoricamente, nada impede que esta bola de esmeralda tivesse sido desenterrada do Kremlin, equipada com uma história falsa para estabelecer propriedade; e transferida para o estrangeiro como recompensa a algum amigo da Rússia por serviços prestados?

— Nada impede. Seria um método engenhoso de recompensar o beneficiário sem depositar somas de vulto na sua conta bancária.

— Mas a recompensa monetária final dependeria da quantia alcançada pela venda do objeto — o preço do leilão, por exemplo?

— Exatamente.

— E quanto o senhor espera quo este objeto alcance no Sotheby’s?

— Impossível dizer. Wartski’s certamente farão um lance. Mas o certo é que muito dependeria da altura a que fossem forçados por outros licitantes. De qualquer forma, não seria menos do que cem mil libras, creio.

— Hum! — A boca de M voltou-se para baixo. — Pedaço dispendioso de joalheria.

O Dr. Fanshawe ficou obviamente chocado com essa revelação desavergonhada do filistinismo de M.

Bond queria conduzir o Dr. Fanshawe para fora da sala a fim de que pudessem atacar os aspectos profissionais deste estranho negócio. Pôs-se de pé. Falou a M: — Bem, sir, acho que é tudo que precisava saber. Não há dúvida que as coisas acabarão na mais perfeita paz e ordem (que mentira infernal!) Com a diferença única de que uma de suas funcionárias se tornará uma mulher muito feliz. Mas o Dr. Fanshawe foi muito gentil, dando-se a todo este trabalho.

Voltou-se para o Dr. Fanshawe: — Gostaria que um carro do Ministério o levasse a algum lugar?

— Não, obrigado, muito obrigado. Será agradável caminhar através do parque.

Mãos se apertaram, bons dias foram desejados e Bond acompanhou o doutor até a porta. Bond voltou à sala. M tinha tirado de uma gaveta um volumoso fichário, selado com a estrela vermelha de alto sigilo e já mergulhara na sua leitura. Bond voltou a sentar-se e esperou. A sala estava em silêncio exceto pelo farfalhar dos papéis. Que também parou quando M extraiu uma folha tamanho ofício de cartolina azul usada para registros confidenciais sobre os funcionários, e cuidadosamente percorreu com a vista a floresta de tipos muito juntos em ambos os lados.

Finalmente, enfiou-a de volta no fichário e olhou para o alto: — Sim, disse ele, e os olhos azuis brilhavam de interesse. — Tudo se encaixa muito bem. A jovem nasceu em Paris em 1935. Mãe muito ativa na Resistência durante a guerra. Ajudou o funcionamento de um ponto de fuga muito bem sucedido e não se deixou apanhar. Depois da guerra, a garota frequentou a Sorbonne e então conseguiu emprego na Embaixada, no escritório do adido naval, como intérprete.

— Você sabe o resto. Foi envolvida — algum caso sexual pouco atraente — por alguns velhos amigos de sua mãe, dos tempos da Resistência, que então trabalhavam para a NKVD, e a partir desse momento vem trabalhando sob controle. Requereu, sem dúvida instruída, a cidadania britânica. Sua saída da Embaixada e a atuação da mãe com a Resistência ajudaram-na a conseguir a cidadania em 1959, e ela nos foi então recomendada pelo Foreign Office. Mas foi aí que cometeu o seu grande erro. Pediu-nos um ano de prazo antes de vir trabalhar conosco, e foi em seguida localizada pela rede Hutchinson na escola de espionagem de Leningrado. Ali presumivelmente recebeu o treinamento usual e tivemos que decidir o que faríamos com ela. A Seção 100 bolou a operação Código Púrpura e você sabe o resto. Trabalha há três anos dentro da sede para a KGB e agora está recebendo a sua recompensa — esta bola de esmeralda no valor de cem mil libras.

— E o fato é interessante por dois motivos. Primeiro a KGB está totalmente agarrada ao Código Púrpura, caso contrário não faria este pagamento fantástico. São boas notícias. Significa que podemos esquentar o material que estamos passando. Segundo, explica algo que nunca podemos entender — que essa garota até agora não tenha recebido pagamento por seus serviços. Estávamos preocupados com isso. Tinha uma conta no seu banco que só registrava seu cheque de pagamento mensal de cerca de cinquenta libras. E ela vinha vivendo só com isso. Agora está recebendo a sua recompensa numa grossa soma por meio dessa bugiganga. Tudo muito satisfatório.

Bond sentiu que existiam algumas arestas por aparar neste problema — uma, em particular. Disse suavemente: — Chegamos alguma vez a assinalar o seu controle local? Como é que recebe as instruções?

— Não precisa disso — falou M com impaciência. — Uma vez de posse do Código Púrpura, tudo o que tinha a fazer era manter-se no emprego. Que diabo, rapaz, ela sopra novidades nos ouvidos deles seis vezes por dia. Que tipo de instruções precisariam enviar? Duvido até que os homens da KGB em Londres saibam da sua existência — talvez o diretor-residente sim, mas, como você sabe, nem o conhecemos. Daria meus olhos para descobrir.

Bond subitamente teve um lampejo de intuição. — Pode ser que este negócio no Sotheby’s nos mostrasse — nos mostrasse quem é ele.

— Que diabo de história é esta, 007?

— Bem, sir — a voz de Bond era calma e segura — lembre o que este Dr. Fanshawe disse sobre um outro licitante — alguém que forçasse esses negociantes do Wartski até o preço máximo. Se os russos parecem não conhecer ou ligar muito para Fabergé, como sugere o Dr. Fanshawe, pode ser que não tenham também uma ideia muito clara do valor desta coisa. Podem imaginar que valha o seu valor material — vamos dizer dez ou vinte mil libras pela esmeralda. Aquela soma faria muito mais sentido que a pequena fortuna que a moça vai ganhar se o Dr. Fanshawe estiver certo. Bem, se o diretor-residente é o único homem que sabe dessa garota, será também o único homem a saber que ela está sendo paga. Portanto, será o outro licitante. Será enviado ao Sotheby’s e instruído para forçar o preço a sair pelo teto. Estou certo disto. Assim poderemos identificá-lo e descobrir coisas sobre ele, suficientes para mandá-lo de volta a seu país. Nem chegará a saber como foi que o pegaram. Nem a KGB Se eu puder ir ao leilão e apanhá-lo, e o local estará cheio de câmaras e haverá os registros do leilão, poderemos conseguir que o Foreign Office o declare persona non grata dentro de uma semana. E os diretores-residentes não crescem em árvores. Talvez leve muitos meses até que a KGB possa indicar um substituto para ele.

M falou pensativamente: — É capaz que você tenha encontrado alguma coisa em tudo isso.

Olhou pela grande janela em direção da silhueta dentada dos prédios de Londres. Finalmente disse: — Está bem, 007. Vá ao chefe do Estado-Maior e ponha a máquina em funcionamento. Eu acerto as coisas com Cinco. O território é deles, mas a presa é nossa .

Wartski tem uma fachada moderna, modesta, em Regent Street, 138. A vitrina, com uma mostra reduzida de joalheria moderna e antiga, não dava a menor ideia do que estes eram os maiores negociantes de Fabergé no mundo, mas o interior, com a coleção de Autorizações Reais emolduradas da Rainha Mary, da rainha-mãe, da rainha, do Rei Paulo da Grécia e do improvável Rei Frederico IX da Dinamarca, sugeriam que esse não era um joalheiro comum.

James Bond perguntou pelo Sr. Kenneth Snowman. Um homem de boa aparência e bem vestido nos seus 40 anos veio cumprimentá-lo. Bond disse suavemente: — Sou do CID. Podemos ter uma conversa? Talvez o senhor queira verificar minhas credenciais primeiro? Meu nome é James Bond. Mas o senhor terá que ir diretamente ao chefe ou ao seu PA. Não estou exatamente na força da Scotland Yard. Faço uma espécie de trabalho de ligação.

Os olhos inteligentes e observadores nem mesmo pareceram olhar além dele. — Vamos descer.

Foi à frente mostrando o caminho, descendo uma escada estreita, coberta por um tapete espesso, até uma vasta e brilhante sala-mostruário que era obviamente o verdadeiro cofre do tesouro da loja. Ouro e diamantes e pedras lapidadas cintilavam nos estojos iluminados que cobriam as paredes em volta.

— Sente-se. Cigarro?

Bond tirou um dos seus. — É sobre esta peça Fabergé que será leiloada amanhã no Sotheby’s — esta Esfera de Esmeralda.

— Ah, sim — as sobrancelhas claras do Sr. Snowman sulcaram-se ansiosamente. — Espero que não haja nenhum problema com a peça.

— Não do seu ponto de vista. Mas estamos muito interessados na venda em si. Conhecemos a proprietária, a Srta Freudenstein. Achamos que é possível haver uma tentativa de levantar os lances artificialmente. Estamos interessados no outro licitante — isto é, presumindo que a sua firma encabece o leilão.

— Bem, é... sim — disse o Sr. Snowman com uma franqueza bastante cautelosa. — É certo que vamos procurar arrematá-la. Mas será vendida a um preço enorme. Entre nós, esperamos que o Museu de Vitória e Alberto concorra e provavelmente o Metropolitano de Nova York. Mas é algum facínora que os senhores estão procurando? Se for, não se preocupem. Isso não é para a sua classe.

Bond disse: — Não. Não estamos procurando um facínora.

Perguntou a si mesmo até que ponto devia ir com esse homem. Porque as pessoas são cuidadosas com os segredos de sua própria profissão, isso não quer dizer que serão cuidadosas com os segredos da nossa. Bond apanhou uma placa de madeira e marfim que estava sobre a mesa. Dizia:

Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo comprador:

E depois de se retirar ele então se jactará.

Provérbios XX, 14.

 


Bond achou engraçado. E disse: — Pode-se ler toda a história do bazar, do negociante e do freguês atrás desta citação disse ele. Olhou para o Sr. Snowman bem nos olhos. — Preciso daquele faro, daquele tipo de intuição nesto caso. O senhor me dará uma ajuda?

— Certamente. Se o senhor me disser em que posso ajudá-lo — fez um gesto com a mão. — Se são segredos que o preocupam, por favor não receie. Os joalheiros estão habituados aos segredos. A Scotland Yard provavelmente dará à minha firma uma folha corrida limpa a esse respeito. Deus sabe, temos tido muito contato com ela através destes anos.

— E se lhe dissesse que sou do Ministério da Defesa?

— Dá no mesmo — disse o Sr. Snowman. — O senhor pode naturalmente ter a mais absoluta confiança em minha discrição!

Bond chegou a uma decisão. — Está certo. Bem, tudo isso está sob os Atos Oficiais Secretos, naturalmente. Suspeitamos que o outro licitante que fará provavelmente concorrência à sua firma será um agente soviético. Minha missão é estabelecer a sua identidade. Não posso contar-lhe mais, sinto. E na verdade o senhor não precisa saber de mais nada. Tudo o que quero é ir com o senhor ao Sotheby’s amanhã à noite e que o senhor me ajude a localizar o homem. Não prometemos medalhas, lamento, mas ficaríamos imensamente gratos ao senhor.

Os olhos do Sr. Kenneth Snowman brilharam com entusiasmo. — Naturalmente. Sinto-me contente em ajudar de qualquer forma. Mas — mostrou um ar duvidoso — o senhor sabe que não vai ser tão fácil assim. Peter Wilson, o diretor do Sotheby’s, que estará orientando o leilão, seria a única pessoa capaz de nos revelar com certeza — isto é, se o licitante quiser permanecer incógnito. Existem dezenas de maneiras de concorrer a um leilão sem fazer qualquer movimento. Mas se o licitante fixar o seu método, o seu código, por assim dizer, com Peter Wilson antes da venda, Peter não daria a ninguém, em hipótese alguma, conhecimento do código. Seria mostrar o jogo do licitante, revelar o seu limite. E isso é um segredo fechado, como o senhor pode imaginar, nas salas de leilão.

— Eu provavelmente estarei dando o ritmo. Já sei até que ponto posso ir — para um cliente, a propósito — mas meu trabalho seria muito mais fácil se soubesse até onde o outro licitante pretende ir. No caso, o que o senhor me contou foi um grande auxílio. Aconselharei ao meu homem que coloque ainda mais alto os seus lances. Se este sujeito seu for corajoso poderá fazer-me uma pressão fortíssima. E haverá outros em campo, certamente. Parece que será uma noite e tanto. Vão transmiti-la pela televisão. Publicidade maravilhosa, naturalmente. Deus meu, se soubessem que existia uma história de capa e espada dentro desta venda, haveria um tumulto! Muito bem, algo mais além disso? Basta apenas localizar esse homem, nada mais?

— É tudo. Quanto acha o senhor que esta coisa alcançará? O Sr. Snowman batucou nos dentes com uma lapiseira de ouro. — Bem, quer dizer, é aí que devo manter-me em silêncio. Sei até que preço posso ir, mas isso é segredo do meu cliente.

Fez uma pausa, com um ar pensativo. — Digamos que, se sair por menos de cem mil libras, ficaremos surpresos.

— Entendido — disse Bond. — E como é que posso assistir ao leilão?

O Sr. Snowman exibiu uma eleganle carteira de crocodilo e extraiu dois pedacinhos de cartão impresso. Entregou um deles. — Este é o de minha mulher. Conseguirei um outro lugar para ela na sala. B5 — bem situado no centro à frente. O meu é B6.

O Sr. Snowman levantou-se da cadeira. — O senhor gostaria agora de ver alguns Fabergés? Temos aqui algumas peças que meu pai comprou do Kremlin por volta de 1927. Poderão dar-lhe alguma ideia sobre essa confusão toda, embora, naturalmente, a Esfera de Esmeralda seja incomparável, muito mais fina do que qualquer coisa de Fabergé que posso mostrar-lhe, com exceção dos Ovos de Páscoa Imperiais.

Mais tarde, ofuscado pelos diamantes, pelo ouro multicolorido, pelo brilho sedoso dos esmaltes translúcidos, James Bond subiu e deixou a Caverna de Aladim sob a Regent Street e foi então passar o resto do dia nos escritórios monótonos em volta de Whitehall, planejando detalhes áridos e minuciosos para identificar e fotografar um homem numa sala cheia de gente, um homem que ainda não tinha um rosto ou uma identidade mas que era certamente o espião soviético número um em Londres.

Durante todo o dia seguinte, a excitação de Bond aumentou.

Conseguiu inventar um pretexto para percorrer a pequena sala em que a Srta Maria Freudenstein e duas assistentes trabalhavam nas máquinas cifradas que manipulavam os despachos no Código Púrpura.

Apanhou o arquivo en clair — tinha liberdade de acesso à maior parte do material na sede — e percorreu com os olhos os parágrafos cuidadosamente editados que, dentro de mais ou menos meia hora, seriam recebidos, picotados e não lidos, por algum funcionário subalterno do CIA em Washington e, em Moscou, levados com reverência a um alto funcionário da KGB

Brincou com as duas jovens assistentes, mas Maria Freudenstein se limitou a lançar-lhe um sorriso polido do outro lado de sua máquina, e a pele de Bond arrepiou-se ante esta proximidade da traição e do segredo negro e mortífero encerrado debaixo da blusa branca de babados.

Era uma garota sem graça com uma pele pálida, um tanto espinhenta, cabelos negros e uma vaga aparência de pouco banho. Uma garota assim não seria amada, teria poucos amigos, carregaria alguns complexos — em particular por ser filha ilegítima — e uma queixa contra a sociedade. Talvez seu único prazer na vida fosse o segredo triunfal que acalentava dentro daquele peito liso — o conhecimento de que era mais esperta que todos à sua volta, que diariamente revidava contra o mundo — o mundo que a desprezava ou apenas a ignorava devido à sua maneira desgraciosa — revidava com toda a sua força. Um dia eles se arrependeriam!

Era um comportamento neurótico comum — a vingança do patinho feio contra a sociedade.

Bond seguiu pelo corredor até o seu escritório. Esta noite aquela garota teria feito uma fortuna, receberia os seus trinta dinheiros multiplicados por mil. Talvez o dinheiro mudasse o seu caráter e lhe trouxesse a felicidade. Ela poderia pagar os melhores especialistas em beleza, as melhores roupas, um belo apartamento.

Mas M dissera que ia esquentar a operação Código Púrpura, tentando um jogo de enganar num nível mais perigoso. Seria um trabalho arriscado. Um passo em falso, uma mentira pouco cautelosa, uma falsidade verificável em alguma mensagem e a KGB sentiria o cheiro do rato. Uma reincidência e eles descobririam que estavam sendo iludidos e provavelmente tinham sido iludidos descaradamente por três anos. Uma revelação tão vergonhosa traria uma rápida vingança. Deduziriam que Maria Freudenstein atuara como agente duplo, trabalhando para os britânicos bem como para os russos. Seria inevitavelmente liquidada, sem demora.

James Bond olhou pela janela as árvores no parque e sacudiu os ombros. Graças a Deus nada tinha a ver com isto! O destino da jovem não estava em suas mãos. Fora apanhada pela máquina sórdida da espionagem e teria muita sorte se conseguisse viver o bastante para gastar um décimo da fortuna que ganharia dentro de poucas horas nas salas de leilão.

Havia uma fila de carros e táxis bloqueando a George Street atrás do Sotheby’s. Bond pagou o táxi e juntou-se às pessoas que se infiltravam por baixo do toldo e subiam as escadas. O porteiro uniformizado que verificou o seu ingresso entregou-lhe um catálogo e Bond subiu a ampla escadaria com uma multidão elegante e animada, seguiu ao longo de uma galeria e penetrou na principal sala de leilões, já apinhada de gente. Dirigiu-se ao seu lugar ao lado do Sr. Snowman, que escrevia cifras num bloco apoiado sobre o joelho, e olhou em redor.

A sala de teto alto era talvez grande como uma quadra de tênis. Quadros e tapeçarias variados pendiam das paredes verde-oliva e baterias de câmaras da televisão e outras (entre as quais a do fotógrafo do MI5 com um passe de imprensa de The Sunday Times) agrupavam-se com os seus manipuladores numa plataforma construída em frente e bem no meio de uma gigantesca tapeçaria com cenas de caça.

Havia talvez uma centena de negociantes e espectadores sentados atentamente nas pequenas cadeiras douradas. Todos os olhares se concentravam no leiloeiro esguio e bem apessoado que falava suavemente do elevado púlpito de madeira. Vestia um imaculado dinner jacket com um cravo vermelho na lapela. Falava sem ênfase e sem gestos. A voz quieta prosseguiu calmamente, sem pressa, enquanto na plateia os licitantes igualmente impassíveis assinalavam suas respostas à ladainha.

À medida que avançavam os lances, Bond deixou o seu lugar e foi pelo corredor até o fundo da sala onde o excesso de audiência se espalhava pela Nova Galeria e pelo Saguão de Entrada para assistir ao leilão na televisão em circuito fechado.

Inspecionou casualmente a multidão procurando algum rosto que pudesse reconhecer dentre os duzentos membros do pessoal da Embaixada Soviética cujas fotografias, obtidas clandestinamente, tinha estudado durante os últimos dias. Mas no meio de um público que desafiava qualquer classificação uma mistura de negociantes, colecionadores amadores e o que se podia englobar de um modo geral como ricos em busca de prazer não havia um único traço, quanto mais um rosto que pudesse reconhecer exceto através das colunas sociais. Um ou dois rostos amarelados podia ser que fossem russos, mas podiam igualmente pertencer a uma meia dúzia de outras raças europeias. Havia alguns óculos escuros aqui e ali, mas óculos escuros não são mais disfarce.

Bond voltou a seu lugar ao lado do Sr. Snowman. Presumivelmente o homem teria de se revelar quando os lances começassem. O Sr. Snowman voltou-se para Bond: — Tenho que prestar atenção aos lances e por alguma razão desconhecida se considera indelicado olhar por cima do ombro para ver quem está fazendo lances contra a gente — isto é, se você pertence a este comércio — e portanto só poderei localizá-lo se estiver em algum lugar à minha frente e temo que isto seja pouco provável, pois são na maioria negociantes; mas você pode olhar em redor à vontade.

— O que você deve fazer é observar os olhos de Peter Wilson e então verificar para quem ele está olhando, ou quem está olhando para ele. Se você conseguir localizar o homem, o que poderá ser muito difícil, observe todo movimento que ele fizer, até os menores gestos. Tudo que o homem faça — cocar a cabeça, puxar a ponta da orelha ou seja lá o que for — pertencerá a um código que ele combinou com Peter Wilson. É pena, mas ele não fará nada de muito óbvio, como erguer o catálogo. Entendeu? — E não esqueça que ele poderá não fazer absolutamente nenhum movimento até bem no final quando me levou ao ponto que julga o meu máximo e então fará o sinal de desistência. Veja bem — o Sr. Snowman sorriu — quando chegarmos ao último estágio vou esquentar a coisa para o lado dele e tentar fazê-lo mostrar a mão. Isto supondo, naturalmente, que sejamos ainda os dois únicos licitantes.

Parecia enigmático: — E eu lhe asseguro que seremos.

Vendo a certeza do homem, James Bond sentiu que seguramente o Sr. Snowman tinha recebido instruções para conseguir a Esfera de Esmeralda a qualquer custo.

Um silêncio súbito caiu sobre a sala quando um alto pedestal envolto em veludo negro foi trazido com cerimônia e colocado em frente da tribuna do leiloeiro. Então uma bela caixa oval do que parecia veludo branco foi posta no topo do pedestal e, com reverência, um carregador idoso em uniforme cinza com mangas, lapela e cinto côr de vinho abriu-a e tirou o Lote 42, colocou-o sobre o veludo negro e levou a caixa.

A bola de críquete de esmeralda polida em sua maravilhosa base reluzia com um fogo verde sobrenatural e as joias em sua superfície e no meridiano opalescente piscaram com suas variegadas cores.

Houve um suspiro de admiração da audiência e até os funcionários e especialistas atrás da tribuna e sentados no elevado balcão de contabilidade ao lado do leiloeiro, acostumados a ver desfilar à sua frente as joias das coroas europeias, inclinaram-se a fim de olhar melhor.

James Bond abriu o catálogo. Ali estava, em tipos grandes e em prosa tão pegajosa e luxuriante como um sorvete de caramelo:

 

0 GLOBO TERRESTRE. Criado em 1917 por Carl Fabergé para um fidalgo russo, agora propriedade de sua neta.


42. UM GLOBO TERRESTRE DE FABERGÉ MUITO IMPORTANTE. Uma esfera talhada de uma peça matriz extraordinariamente grande de esmeralda siberiana pesando aproximadamente mil e trezentos quilates e de uma côr soberba e translucidez intensa, representa um globo terrestre apoiado numa elaborada armação com arabescos de rocaille finamente cinzelada em ouro quatre-couleur e incrustada com uma profusão de diamantes-rosas e pequenas esmeraldas de côr intensa formando um relógio de mesa. Em volta dessa armação seis putti se divertem entre formas de nuvens executadas em perfeita imitação do natural entalhadas em cristal de rocha de fino acabamento e cobertas por tênues fios de diamantes-rosas.

O globo em si, cuja superfície foi meticulosamente entalhada com um mapa do mundo tendo as principais cidades indicadas por diamantes de brilho intenso encravados em engastes circulares de ouro, efetua uma rotação mecânica em torno de um eixo controlado por um pequeno dispositivo de relojoaria, de G. Moser, assinado, que se acha oculto na base, e é envolto por uma cintura fixa de ouro esmaltado com ostra opalescente ao longo de uma faixa reservada em técnica de champlevé sobre uma moiré guillochage com números pintados em esmalte sépia pálido servindo como mostrador do relógio, e um único rubi triangular sangue-de-pombo da Birmânia de 5 quilates encravado na superfície do orbe, indicando a hora. Altura: 7 1/2 polegadas. Mestre-executante: Henrik Wigström. Na caixa original de abertura dupla em veludo branco, forrada de cetim, oviforme com a chave de ouro embutida na base.*

 

Após um olhar breve e investigador em volta da sala, o Sr. Wilson bateu suavemente o martelo. — Lote 42 — um objeto de arte por Carl Fabergé.

Uma pausa. — Vinte mil libras, para começar.

O Sr. Snowman sussurrou a Bond: — Isso quer dizer que provavelmente ele tem um lance de pelo menos cinquenta. É apenas para pôr as coisas em movimento.

Catálogos tremularam. — E trinta, quarenta, cinquenta mil libras, alguém cobre o lance? E sessenta, setenta e oitenta mil libras. E noventa.

Uma pausa e então: — Cem mil libras, quem cobre o lance?

Irrompeu uma salva de palmas. As câmaras tinham-se voltado para um homem bastante jovem, um de três numa plataforma elevada à esquerda do leiloeiro que falavam agora suavemente em telefones. O Sr. Snowman comentou: — Aquele é um dos rapazes do Sotheby’s. Está em ligação direta com a América. Imagino que seja o lance do Metropolitano, mas podia ser qualquer outro interessado. Agora chegou minha hora de trabalhar.

O Sr. Snowman agitou rapidamente o seu catálogo enrolado.

— E dez — disse o leiloeiro. O homem falou ao telefone e fez um gesto com a cabeça. — E vinte. Novamente um sinal do Sr. Snowman.

— E trinta.

O homem ao telefone parecia estar dizendo ao bocal maior número de palavras do que da vez anterior — talvez dando os seus cálculos de até quanto poderia subir o preço. Fez um ligeiro gesto de cabeça na direção do leiloeiro e Peter Wilson retirou o olhar do jovem e percorreu a sala com os olhos.

— Cento e trinta mil libras, quem cobre o lance? — Repetiu calmamente.

O Sr. Snowman disse em voz baixa a Bond: — Agora esteja alerta. A América parece que desistiu. Chegou o momento do nosso homem começar a me empurrar.

James Bond deixou o seu lugar e foi instalar-se entre um grupo de repórteres num canto à esquerda da tribuna.

Os olhos de Peter Wilson dirigiam-se para o canto direito do fundo da sala. Bond não pôde detectar nenhum movimento, mas o leiloeiro anunciou: — E quarenta mil libras.

Olhou para o Sr. Snowman. Após uma longa pausa, o Sr. Snowman levantou cinco dedos. Bond pensou que isso fazia parte do processo de esquentar a coisa. Ele mostrava relutância, sugerindo que já estava próximo do fim do pavio.

— Cento e quarenta e cinco mil libras — novamente o olhar penetrante até o fundo da sala. Novamente nenhum movimento. Mas ainda desta vez algum sinal fora trocado. — Cento e cinquenta mil libras.

Houve um murmúrio de comentários e algumas palmas irregulares. Desta vez a reação do Sr. Snowman foi ainda mais Ienta e o leiloeiro repetiu duas vezes o último lance. Por fim, olhou diretamente para o Sr. Snowman: — Contra o cavalheiro.

Finalmente o Sr. Snowman ergueu cinco dedos.

— Cento e cinquenta e cinco mil libras.

James Bond começava a suar. Não tinha feito nenhum progresso até ali. O leiloeiro repetiu o lance.

E agora houve um minúsculo movimento. No fundo da sala, um homem atarracado num terno escuro ergueu a mão e tirou discretamente seus óculos escuros. Era um rosto macio, indefinível — o tipo do rosto que poderia pertencer a um gerente de banco, um membro do Lloyd’s ou um médico. Este deve ter sido o código combinado com o leiloeiro. Enquanto o homem permanecesse de óculos escuros, ele aumentaria os lances em dezenas de milhares. Quando tirasse os óculos, teria desistido.

Bond lançou um rápido olhar para a plataforma dos cinegrafistas. Sim, o fotógrafo do Ml5 o estava seguindo. Também tinha visto o movimento. Ergueu a câmara deliberadamente e viu-se o brilho rápido de um flash. Bond voltou ao seu lugar e sussurrou a Snowman: — Pegamos o homem. Ficarei em contato com o senhor. Muito obrigado.

O Sr. Snowman apenas mexeu a cabeça. Seus olhos permaneceram grudados no leiloeiro.

Bond deixou o seu lugar e caminhou rapidamente pelo corredor enquanto o leiloeiro dizia pela terceira vez: — Cento e cinquenta e cinco mil libras, quem cobre o lance? — E então baixava o martelo: — É seu, sir.

Bond chegou ao fundo da sala antes que o público, aplaudindo, se pusesse de pé. A sua presa estava encurralada entre as cadeiras douradas. Agora tinha recolocado os óculos escuros e Bond colocou também os seus. Conseguiu infiltrar-se pela multidão e chegar até atrás do homem enquanto o público tagarela derramava-se pelas escadas. Os cabelos desciam pela nuca no pescoço um tanto volumoso do homem. Tinha uma ligeira corcunda, talvez apenas uma deformação óssea, no alto de suas costas. Bond subitamente lembrou. Era Piotr Malinowski, que tinha entre o pessoal da Embaixada o título oficial de “Adido Agrícola”. Pois sim!

Na rua o homem começou a caminhar apressadamente em direção da Conduit Street. James Bond entrou calmamente no táxi com o motor ligado e a bandeira baixa. — É ele. Vá com calma.

— Sim senhor — disse o chofer do MI5, afastando-se da calçada.

O homem tomou um táxi na Bond Street. Era fácil acompanhá-lo no tráfego noturno. A satisfação de Bond cresceu quando o táxi do russo virou ao norte do parque e seguiu ao longo de Bayswater. Era apenas uma questão de verificar se faria a curva na entrada particular em Kensington Palace Gardens, onde a primeira mansão à esquerda é o edifício sólido da Embaixada Soviética. Se isso acontecesse, o caso estava encerrado. Os dois policiais de patrulha, os costumeiros guardas da Embaixada, tinham sido especialmente escolhidos naquela noite. Era sua tarefa confirmar que o passageiro do táxi que seguiam tinha de fato entrado na Embaixada Soviética.

E então, com as provas colhidas pelo serviço secreto e as provas de Bond e do fotógrafo do MI5, haveria o bastante para o Foreign Office declarar o camarada Piotr Malinowski persona non grata sob a acusação de atividades de espionagem e mandá-lo fazer as malas. No implacável jogo de xadrez que é o trabalho do serviço secreto, os russos teriam perdido uma rainha. Teria sido uma visita muito satisfatória às salas de leilão.

O táxi que seguiam chegou ao portão e entrou. Bond sorriu com satisfação impiedosa. Inclinou-se para a frente:

— Obrigado, chofer. Por favor, leve-me à sede, sim?

*O lema desta esfera magnífica é o mesmo que havia inspirado Fabergé uns 15 anos antes, conforme evidenciado no globo terrestre em miniatura que faz parte da Coleção Real em Sandringham. (Ver figura 280 em A Arte de Carl Fabergé, por A. Kenneth Snowman.)


James Bond acusa!


(OCTOPUSSY)


— Quer saber de uma coisa? — disse o Major Dexter Smythe ao polvo de sua particular estima. — Se a sorte me ajudar, você vai saborear um pitéu dos mais raros!

Falara alto e o seu bafo embaciara o vidro da máscara Pirelli, usada nos mergulhos. Observando a cabeça escura do molusco, o Major firmou-se na areia e se pôs de pé. A água lhe chegara à altura das axilas. Tirou a máscara. Cuspiu nela. Espalhou a saliva no vidro redondo. Limpou-a e, uma vez desembaciada, ajustou a tira de borracha por trás da cabeça. E, então, mergulhou de novo.

 

 

                                         CONTINUA