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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENQUANTO EU RESPIRAR / A. K. Raimundi
ENQUANTO EU RESPIRAR / A. K. Raimundi

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

  

 

Aos vinte anos, a minha vida mudou para sempre.
Um completo clichê quando digo isso, eu sei. Sei que há pessoas que se interrogam quando digo isso. Olham-me de modo estranho, como se questionando o que poderia ter acontecido para eu dizer esse tipo de coisa. A minha história não pode ser resumida em duas ou três frases, não pode ser apresentada sinteticamente de modo que as pessoas compreendam de imediato.
Acredito que mesmo eu contando é preciso sentir, vivenciá-la para entender. Tenho trinta e cinco anos, mas ainda consigo me lembrar de tudo como se fosse hoje, todos esses anos completamente frescos em minha memória, todos os sentimentos, as dúvidas, o medo.
Houve momentos em que desejei fazer com que os ponteiros do relógio andassem para trás para me livrar de toda essa tristeza, de tudo que meus pais passaram ao meu lado, por tudo que Alissya passou, mas tenho a sensação de que, se o fizesse, desapareceria também a alegria. E então, retirando tudo, nada sobraria, não sobraria as covinhas no sorriso de Alissya com cada mínima vitória, ou cada infernal ensinamento que tive no meio de tanta escuridão.
Suspiro e sinto que tudo regressa de novo. Fecho os olhos e os anos começam a andar para trás, como os ponteiros de um relógio rodando em sentido contrário. As lições que fui aprendendo vão ficando menos claras, e a minha inocência ou estupidez da idade regressa à medida que aquele ano agitado vai aproximando. Depois, como eu, o mundo começa a mudar: as estradas estreitam-se e algumas se transformam em cascalho, os subúrbios são substituídos por quintas, as ruas do centro da cidade enchem-se de gente. Abro os olhos e me detenho. Estou em frente ao restaurante Tomillos, quando olho para a fachada do famoso mexicano da cidade, sei exatamente o que vem a seguir.
Luke Dinally, filho único, grande jogador de basquete na escola e um conquistador de marca maior. Ver os anos de colégio passando pelos olhos me traz saudade, dos amigos que se foram, das janelas das meninas que invadia no meio da madrugada, mas vamos um pouco mais além...
Prometo não deixar nada de fora.
No início podem até sorrir e depois vão chorar. E quando a lágrima escorrer no seu rosto, no mesmo instante um sorriso estará presente. Não digam que não os avisei.
Meu nome é Luke Dinally, eu sobrevivi... Somente isso que posso falar agora, sobrevivi a dor, sobrevivi a escuridão. E no meio de tudo isso eu encontrei meu anjo, encontrei o motivo para sorrir enquanto eu respirar...

 

 

 

 

 

 

Capítulo 1

Luke Dinally


Dia 03 de janeiro, início de um ano espetacular para mim, início do novo século e com ele somente bons frutos poderiam vir, todos estavam empolgados com o jogo de basquete que se aproximava, eu estava nos meus melhores dias. Finalmente entraria na faculdade com bolsa integral pelo meu desempenho nas quadras, finalmente meus sonhos começariam a se realizar e todo o esforço seria recompensado.

Saio de casa e olho à minha volta. O céu encoberto e cinzento, fecho o casaco, me protegendo da brisa gélida que vinha ao encontro do meu corpo, como dizia minha mãe, melhor prevenir do que remediar. E não seria nada legal perder o jogo por conta de um resfriado idiota.

Fazia uma semana que o treinador intensificou os jogos para que estivéssemos todos preparados. E nada, quando digo nada, digo nem que um raio abrisse a Terra ao meio poderíamos faltar ao treino. Atravessei a rua vendo o carro de Jamie parado na outra esquina.

— E aí seu marica, vamos logo. Eu não quero correr dez vezes em volta da quadra porque você dormiu demais! – gritou debruçado sobre a janela do carro.

— Foi mal, — disse – não escutei o despertador.

— Aposto que ficou até tarde na janela de sua namorada ontem.

Olhei para trás com um sorriso matreiro, era óbvio que meus amigos sabiam o porquê do meu atraso, mas uma noite tentando convencer Belina Wattson a dar o segundo passo, que para ela seria um grande passo. Para mim seria mais uma transa.

— Qualquer dia o Sr. Wattson dá um tiro nas suas bolas Luke. – Brian disse rindo no banco de trás.

Sacudi a cabeça tirando algumas mechas do cabelo que caiam no rosto com o vento.

— Esse cara se acha muito!

— A diferença é que sei quando me esconder se um pai está por perto Jamie, não preciso pular uma sacada quebrando o braço como Brian faz.

Meus amigos caíram na risada, esse era nosso passatempo preferido, comentar nossas estripulias nas janelas alheias.

Jamie estacionou seu Ford Taurus atrás do colégio, na vaga de sempre. Saímos correndo o restante do caminho para evitar nos atrasar mais ainda.

— Aí estão eles! – treinador Train ergueu seu bigode em desagrado. – Mais um atraso eu deixarei vocês no banco de reserva. Acredito que não sejam esses seus planos para o grande jogo não é Dinally?

— Não senhor, desculpe o atraso.

Arranquei o casaco começando o aquecimento junto com o time, o restante, foram duas horas de muito treino e jogadas ensaiadas, alguns tombos, mas era o que se esperava num verdadeiro jogo de basquete. A ansiedade estava corroendo meu corpo, todos estão ansiosos por esse jogo, mais uma oportunidade de derrotar os The Bulls, mas para mim esse jogo tinha um sabor especial. O treinador Train tinha me chamado para uma conversa em particular duas semanas antes, falando de se ter a possibilidade de olheiros estarem no meio da plateia. Como estávamos alcançando vitória atrás de vitória nosso time ficou na mira dos holofotes e isso foi bom para mim que era o Armador Principal da equipe.

— Dinally, espere um momento.

Virei-me vendo o treinador acompanhado de outro homem, vindo em minha direção.

— Sim, treinador.

— Quero apresentá-lo ao Sr. Konnor. – Train indicou o homem vestido de terno ao seu lado.

Sequei minha mão na toalha, pronto para cumprimentá-lo. – Muito prazer, senhor.

— O prazer é todo meu garoto. Train fala muito sobre você.

Sorri trocando um olhar com meu treinador.

— O Sr. Konnor é um dos técnicos da UCLA, ele estará presente no jogo. – Train ergueu a sobrancelha, como se me dissesse que logo esse seria meu novo treinador.

— Será um excelente jogo senhor, nosso time está mais do que preparado.

— Estarei de olho em você meu rapaz.

Concordei com a cabeça sorrindo.

— Você está preparado filho? – Train questionou.

— Sim, mais que tudo, treinador.

— Ótimo.

Entrei no vestiário com os dois em meu encalço, eles conversavam sobre o time, as jogadas que o treinador Train estava orgulhoso por nós estarmos efetuando com perfeição, sempre dando um jeito de me incluir na conversa.

Joguei a camisa suada longe, sentindo uma pontada nas costas, uma dorzinha aguda estranha, mas passageira, pois com a mesma rapidez que surgiu foi embora.

— Espero que todos aproveitem para descansarem quando o último treino acabar. – disse alto chamando atenção do time.

Um “sim senhor” foi falado em uníssono.

— E nada de estripulias entendeu, Sr. Bandle? – disse puxando Jamie para a conversa.

— Sim, senhor.

Jamie esperou o treinador e o outro homem deixarem o vestiário para soltar uma gargalhada. – Se ele sabe que iremos aproveitar o fim de semana para que nos dá esse aviso?

— Talvez para colocar juízo em seu cérebro meu amigo.

Robin bateu em meu ombro se juntando a nós.

— Idiota. – Jamie soltou junto com uma careta.

— Luke, você viu suas costas?

Virei olhando para Robin. – O que tem?

— Cara você está repleto de hematomas, dá uma olhada no espelho.

— Ah, ele deve ter tido uma noite selvagem com Belina, ontem. – Brian zombou.

— Nada disso, — gritou Jamie. – provavelmente ele se esfolou para entrar debaixo da cama dela quando o Sr. Wattson apareceu.

Todos riam, caminhei até a pia, ficando de costas. Minha coluna estava coberta de manchas vermelhas e algumas meio arroxeadas, como se tivesse tomado uma surra para valer.

— Parem de falar merda, — disse ainda analisando minha coluna. – não tem nada mais o que fazer?

— Uau Luke ficou irritadinho, ele teve uma noite de amassos com o sogrão. – Brian zombou ainda mais, fazendo até mesmo eu rir do seu comentário idiota.

Virei indo até minha mala, retirei uma camisa limpa colocando-a. – Parem de encher, vamos sair daqui e comer, estou morrendo de fome.


O som podia ser ouvido do lado de fora da casa dos Fishers. Como sempre, se os pais estavam viajando, as gêmeas davam um jeito de darem uma festa, o panfleto simples que foi entregue hoje no centro podia não chamar tanto a atenção, mas sabíamos que seria uma boa festa.

“Smells Like Teen Spirit ” do Nirvana nos saudou quando atravessamos a porta da frente, o lugar já estava completamente lotado e com forte cheiro de cerveja. Brian saiu literalmente pulando ao som da música, Jamie passou na minha frente empurrando Bianca para o meio da multidão.

— Para iniciar a noite, uma cerveja. – Robin disse, entregando as garrafas para nós.

Jamie já estava entornando a sua, seguimos para uma segunda sala de estar, onde havia uma mesa de bilhar, vozes e risadas estridentes tomavam o ambiente, os caras estavam empolgados numa conversa sobre as meninas e suas possíveis vitórias para levá-las para cama.

Sentei na beirada da mesa, tomando goles generosos de minha cerveja, se tinha uma coisa que eu amava depois de uma Harley Davidson era o bom rock e dessa vez a coletânea escolhida para festa estava de bom gosto. Fixei meus olhos na garota dançando sozinha na improvisada pista de dança, ela remexia o quadril de forma sensual, talvez um pouco demais para “Killing In The Name ”, ela atraia uma considerável atenção do público masculino. Quando se virou em minha direção abrindo um sorriso sugestivo retribui com uma piscada.

— Aproveite que seu “carrapatinho” não está aqui. – Jamie sussurrou em meu ouvido.

Sorri batendo minha garrafa na dele ainda de olhos na garota, ela era um espetáculo, seu corpo estava à mostra com aquela saia de couro, os cabelos caiam por suas costas quase chegando ao quadril. Ela ergueu o dedo indicador, curvando-o, me chamando. Afastei-me da mesa, caminhando tranquilamente entre as pessoas, ela dançou por alguns instantes ao meu redor, fazendo questão de esbarrar sua bunda em minha perna.

Não deixei que a música terminasse para arrastá-la para fora dali, conduzindo-a para a varanda, encostando seu corpo na parede.

— Você dança bem.

— Que bom que gostou Dinally.

— Você sabe meu nome? Devo conhecê-la?

Ela esboçou um sorriso passando a mão pelo meu abdômen. – Quem não conhece o grande astro do basquete e além do mais, estudamos biologia juntos dois anos atrás.

— Biologia, interessante.

Cheguei meu rosto perto dela sentindo seu perfume forte, algo doce demais e isso me fez ter uma pontada na cabeça.

— Acho que podemos ir para um lugar, você sabe, onde podemos ficar sozinhos. – sussurrou em meu pescoço, fazendo um arrepio tomar minha pele.

Esperei alguns segundos para que a repentina pontada tivesse aliviado a pressão.

— Vamos. – peguei sua mão nos afastando dali. – Quero ver o que mais você sabe fazer.


Eu estava exausto, um cansaço se abateu sobre mim, pela primeira vez não acompanhei o ritmo do treinamento. Mas em vez de ir para casa, aqui estava eu rendido pelos apelos mimados de Belina.

— Você está longe.

— Estou cansado, eu avisei que não estava legal.

Tirei o braço do rosto olhando para ela que fazia sua melhor cena com direito a biquinho e tudo.

— Luke estamos sozinhos, meus pais saíram com os pais de Bianca.

— O que adianta estarmos sozinhos se vamos ficar apenas em beijos, Belina? Você começa com seus joguinhos e quando eu realmente desejo algo você foge.

— Não precisa ser grosso.

Bufei tampando novamente meu rosto com o braço. Senti Belina se movimentar na cama, assim como a senti sentando sobre meu corpo. Eu já estava cansando disso, toda vez atravessava nossos bairros, escalava sua janela no segundo andar para ficarmos assim. Ela me provocava até eu forçar a barra e depois pedia tempo, alegando medo.

— Bel, pare. – pedi tentando ser gentil.

Sua mão se infiltrou por dentro de minha camisa, levantando-a.

— Luke.

Permaneci em silêncio, eu não daria bola para seus pedidos.

— Luke, olha para mim.

Respirei fundo tirando o braço novamente de meus olhos. – O que foi? Eu disse não.

— Não estou falando disso e sim disso. – disse apontando para minha barriga.

Ergui um pouco o tronco vendo o que ela estava falando, perto de minha tatuagem, pegando parte da flecha que cortava a rosa dos ventos uma enorme mancha avermelhada. Era a terceira que eu via surgir no meu corpo desde o treino na segunda-feira, porém eu acreditei que era coisas de jogo, colisões algo desse tipo.

— O que foi isso?

— Não sei.

— Luke, como você não sabe?

— Não sei, está bem? — desci a camisa, tirei Belina de cima de mim já pegando minhas coisas.

— Aonde você vai?

— Vou embora Belina, como disse hoje não é um bom dia.

— Luke! – ela esperneou. – Desculpe, vamos começar novamente, venha, volte para cama.

— Esqueça Belina. – retruquei pulando para fora de sua janela.


Saltei do carro rindo da idiotice de meus amigos, olhei para a placa neon meio caída. Bar Bing Bong . Quem tinha escolhido esse nome, Deus! Era péssimo.

— Vamos que hoje a cerveja é metade do valor. – Robin disse trocando um cumprimento com Jamie.

— Não se esqueçam que ainda temos treinos e o jogo no domingo.

— Largue de ser careta, Dinally. – retrucou Jamie. – está parecendo minha mãe.

— Isso mesmo Luke, essa banda é demais, foi pura sorte ela fazer um show aqui nessa espelunca. – Brian virou para mim com um sorriso pidão no rosto.

O segurança olhou para nosso grupo torcendo os lábios, pela sua cara ele achava que fazíamos parte dos arruaceiros. Mesmo assim carimbou nossas mãos liberando nossa entrada. Andamos pelo bar repleto de pessoas, algumas dançavam ao som da banda que tocava animando todos. O balcão estava cheio, era quase impossível chegar perto do bar para pedir uma bebida. Jamie fez sinal mostrando uma mesa vazia no canto, perto do palco, caminhei olhando as garotas dançarem rindo, tentando chamar atenção dos integrantes da banda, que eu tinha certeza que no fim da noite levaria pelo menos algumas delas para uma volta no camarim.

— Está vendo aquela? – Brian indicou uma garota que dançava puxando frequentemente sua amiga. Que por sinal não parecia muito a vontade de estar no meio daquela multidão se chocando com frequência.

— Qual? – perguntei aceitando a garrafa que Robin conseguiu com seu amigo barman.

— A de saia colada e blusa amarrada. É a sobrinha do Padre Maciel, Marta.

— Uau, Deus abençoe! O padre sabe que sua sobrinha não é tão ligada aos ensinamentos pregados por ele? – zombei.

Brian riu jogando a cabeça para trás.

Encarei mais um pouco a cena, a tal Marta parecia mais uma promíscua do que propriamente uma garota querendo se divertir. Desviei meus olhos para sua amiga, que ao contrário de Marta, vestia uma calça jeans escura, uma blusa com algum tipo de frase, seus cabelos estavam presos no alto da cabeça, mas com as luzes coloridas passando pela plateia não conseguia diferenciar a cor.

E quando eu encarei seu rosto, foi como se congelasse o tempo, era como se tivessem colocado o mundo no mudo, o que foi estranho, pois eu via pelo canto dos olhos as pessoas em minha volta rindo, conversando, mas eu estava olhando apenas para aqueles olhos escuros, sei que eram escuros, pois eles pareciam enormes buracos, extremamente atrativos para mim.

Lindos.

De tirar o fôlego.

Ela fixou seu rosto no meu ou estava apenas olhando para além de mim, mas logo fui puxado por Jamie, exigindo minha atenção.

Depois daquele momento eu não consegui mais encontrar a garota, era como se ela tivesse virado fumaça, por vezes encontrei Marta, mas a garota não estava ali. Será que tudo não passou de uma coisa de minha cabeça?


— Finalmente último treino, eu não aguentava mais.

— Menos conversa Bandle, estou achando que quer um lugar no banco. – Train gritou do outro lado da quadra.

— Não, senhor! – Jamie disse se afastando.

Encarei Matt ensaiando sua jogada, esse cara era um verdadeiro pé no saco, sempre querendo tomar as jogadas ensaiadas, ou tentar pegar meu lugar como armador no time.

— Passe a bola Matt, ou deseja levá-la para casa? – perguntei o provocando.

Ele me fuzilou com o olhar jogando a bola para Robin, corri até o centro da quadra esperando pelo pequeno giro que Robin daria, como previsto interceptei roubando a bola de suas mãos, correndo para o lado oposto, pronto para jogá-la na cesta quando senti um cotovelo bater com tudo em minha costela, me fazendo perder o ar por um instante, caindo sentado no chão.

Train soou o apito parando a jogada, passei a mão no rosto sentindo algo escorrer de meu nariz.

— Você está legal, Dinally?

— Sim, estou. – disse tirando o filete de sangue que saiu de meu nariz.

— Estou achando que o Matt devia tomar uma água treinador, antes que alguém quebre seu nariz.

— Nada de violência, Matt para o vestiário. – disse ríspido. – Vocês, ajudem o seu amigo e vão para o vestiário também. Espero que vocês estejam com tamanha gana de vencer este jogo, como estão de se destruírem.

Levantei meio tonto.

— Vem cara, eu te ajudo. – Robin colocou meu braço sobre seu ombro me sustentando pelo caminho.

— Eu tinha certeza que Tobias tinha acertado sua costela.

— Eu também, mas pelo visto não. – respondi ainda olhando para minha mão com sangue.


Capítulo 2

Luke Dinally


Todas as terças, quintas e sábados eu trabalhava como garçom no Tomillos, um trabalho temporário enquanto não começava a faculdade. Algo nada desejado pelos meus pais. Hendri Dinally era o tipo pai militar aposentado de uma típica cidade sulista e de maneira que minha mãe, uma senhora simpática, meiga e gentil era uma verdadeira dona de casa, muito querida por todos. O tipo de mãe que a maioria das pessoas sonhavam.

Eu não era o típico adolescente rebelde que vivia causando problemas para meus pais, podíamos sair ás escondidas de casa à noite, escrever nos vidros dos automóveis, de vez em quando, até mesmo praticar algumas arruaças por aí ou invadir a piscina do prefeito. Mas nada que pudessem nos chamar de “garotos malvados”, mas causava aquele olhar entre as mães: “Não andem com esses garotos”.

Pois bem, era apenas mais um turno no Tomillos, longas cinco horas atendendo os adolescentes esfomeados de Beaufort.

— Finalmente chegou no horário.

— Boa tarde, Tony. – cumprimentei sorrindo. – Sabe se tivesse aquela Harley Davidson, chegaria com certeza no horário.

Tony soltou sua risada alta e grossa, chamando atenção para si. – Chegue no horário por todo verão que te darei o bônus para você finalmente comprar sua moto rapaz.

— Então é melhor eu começar agora. — atravessei o balcão puxando meu avental.

Desde os meus quinze anos eu namorava a moto do Sr. Garber. Na primeira vez que vi a Harley Davidson o sol batia forte na parte cromada, fazendo-a brilhar sob o calor daquele dia. Desde então nunca tirei de minha mente aquela moto, hipnotizado por seus detalhes cromados, com alforjes de couro desgastado. Pensando em quão prazeroso seria pilotá-la, o vento soprando contra meu corpo, a vibração e o motor roncando ao ganhar estradas. Sim, já me imaginava viajando por longas estradas, parando algumas horas para comer e esticar as pernas, mas logo voltando para a estrada.

Meus pais eram totalmente contra, alegavam que um adolescente com uma moto, era a mesma coisa que dar uma arma, ou seja, mesmo tendo diversas discussões eles sabiam que eu iria comprar a moto. Ou como meu pai deixou bem claro depois de dar um murro na mesa de jantar. “Esqueça isso Luke, você não vai comprar moto nenhuma com o meu dinheiro, se quiser que vá trabalhar.”

Aí surgia o Tomillos, em uma das noites que eu e meus amigos andávamos à toa pelo centro, passamos em frente ao mexicano, Tony o gordo carrancudo como chamávamos estava colocando uma placa na porta de “precisa-se de ajudante”. Não era um salário alto nem nada, mas o pouco que eu ganharia, se juntasse um pouco, conseguiria comprar a tão sonhada moto.

Eu já podia me ver andando por aí com ela, desbravando estradas, curtindo a vida de moto. Foi com esse pensamento que me despedi dos meus amigos e entrei no restaurante aquele dia. Tony não havia gostado muito de mim, para ele, eu estava ali apenas para atrapalhar o andamento do seu serviço.

Como ele próprio dizia “O que o jogadorzinho de Beaufort quer aqui, ou melhor, o astro do basquete iria sujar as mãos limpando mesas?”. Bom, foi comprovado que eu não só daria conta do trabalho, como um ano após entrar eu realmente gostava daquilo. Até me afeiçoei com Tony, vendo mais do que um viúvo rancoroso que todos viam.


— E aí Luke, manda uma cerveja para nós. – gritou Jamie, do fundo do salão, Bianca sentava em seu colo, ancorada em seu pescoço.

Deixei as Tortillas na mesa do casal Grenne, seguindo para a mesa dos meus amigos. – Para de gritar seu esperto, logo Tony começará a descontar as vezes que vocês veem aqui.

— Teremos um Luau hoje, consegue enrolar seus velhos? – perguntou Brian.

— Achei que tinham levado a sério a ameaça do treinador. – zombei.

— Assim como levamos a sério quando o diretor quis nos expulsar por lotar sua casa de papel higiênico no Halloween.

— Por favor, Luke, vamos. – Belina largou seu espelho portátil para grudar em meu corpo.

Aceitei sua boca colar em meu pescoço. – Isso quer dizer que vamos...

Belina sorriu, suas bochechas ficando vermelhas.

— Menino Dinally, acho que a Harley não tem mais importância. – Tony gritou da janela da cozinha. – Seus amigos deveriam contribuir, comendo mais de minha comida do que tumultuando meu restaurante.

— Preciso voltar ao trabalho.

Tirei Belina de cima de mim, pegando novamente minha bandeja.

— Ás nove estarei na porta de sua casa Dinally. — Jamie anunciou enchendo as mãos com as balas que Tony deixava nas mesas para os clientes. – Nada de dar para trás.

Despedi-me deles confirmando que iria a esse tal Luau, voltando para as quatro horas restantes do meu expediente.


Ás nove da noite, meus pais já faziam seus preparativos para dormir. Nada fora do comum para uma quinta-feira, a não ser pelo feixe de luz que o carro de Jamie produziu em nossa janela.

— Se o senhor me der licença, já vou para meu quarto.

— Pode ir. – meu pai apagou a luz do abajur. – Você tem que descansar mesmo, tem que estar preparado para o grande jogo.

Dei um sorriso de lado, ninguém estava mais ansioso do que eu para arrasar no jogo de domingo, minhas chances eram enormes, as chances de um dos olheiros me notarem eram máximas. Finalmente a grande chance de Luke Dinally entrar em uma universidade como o grande jogador. Basquete era minha paixão, algo que meu pai e o treinador Train sempre incentivaram e forçaram meu potencial ao máximo, e, hoje, eu estava no nível mais alto, jogadas decoradas, técnicas passando na mente e pronto para ter os olhos de todos os olheiros em mim.

Passei por minha mãe ao pé da escada, dando um beijo em sua testa.

— Boa noite querido, bom descanso.

— Boa noite, mãe.

Subi devagar até meu quarto, evitando chamar atenção para mim, entrei fechando a porta com um baque seco. Como sempre não demorou muito para ouvir os passos dos meus pais seguindo para o próprio quarto, peguei no armário minha jaqueta de couro, parando apenas por um segundo para analisar novamente minha barriga e costas. As manchas não sumiam, muito pelo contrário. Durante esses últimos dias apareceram mais, inclusive nos meus braços.

Minha mãe tinha notado certa manhã, mas como eu estava sobre forte treinamento, acreditou que era devido aos meus tombos na quadra, mas aquilo não era dos treinos excessivos, nem de tombos, muito menos por eu subir em meio às plantas na casa de Belina. Eu não sabia o que era aquilo.

Abri minimamente a porta, vendo a luz do quarto dos meus pais se apagar pela fresta debaixo da porta.

Como todas as vezes eu sabia que minha mãe fazia vista grossa para as minhas saídas, aliviando meu lado de tomar uma bronca do Sr. Dinally. Passei uma das pernas pelo peitoral da janela, vendo Jamie parado do outro lado da rua, na janela do banco traseiro Bianca acenava animada me chamando.

Andei em silêncio pelo telhado descendo pela rota de fuga tantas vezes utilizadas, chegando com rapidez ao chão.

— Vejo que os velhos não perceberam nada. – Jamie disse ligando seu Ford Taurus.

— Devo dizer que você foi sútil como sempre.

— Sutileza é meu nome seu idiota, vamos logo, quero minha cerveja.


Ao contrário do que muitos podem pensar, nosso Luau não seria numa praia, o Luau estava acontecendo numa fábrica desativada, onde todos os anos a turma inventava umas festinhas regadas ao bom rock e cervejas contrabandeadas dos nossos pais. Jamie era o responsável pela bebida, óbvio, alguns também diziam que ele tinha algo especial para aqueles que gostavam de ter uma experiência a mais.

Isso eu não poderia afirmar, nunca cheguei perto de drogas, nunca fiz parte da turma dos viciados, eu andava com os famosos descolados, a turma do basquete e com Jamie. Que tinha o dom de transitar sem dificuldade em todas as turmas.

A primeira coisa que vi quando entramos no estacionamento abandonado da antiga fábrica, de peças para carros, foi a grande fogueira, a segunda foi “The Breeders” tocando alto demais para uma pequena festinha.

Saltei do carro assim que Jamie parou perto da fogueira, cumprimentando algumas pessoas que já conhecia. Belina se jogou em minhas costas, beijando meu ombro.

— Achei que não viria mais.

Dei um sorriso segurando suas pernas em volta de minha cintura. – Eu disse que viria, me passa sua cerveja.

— Essa noite vai ser boa demais! – Brian gritou mais distante de nós, fazendo os mais de quinze adolescentes comemorarem juntos.

— Descobri um lugar para nós dois. – Belina sussurrou em meu ouvido.

— Eu estou louco para vê-lo.

— Ah para de viadagem! – Jamie bateu em meu ombro, me empurrando um pouco para o lado. – Ele quer entrar nas suas calcinhas, Belina.

— Idiota!

Gargalhei apenas, era verdade, não tinha como negar que eu já estava cansado desses joguinhos que Belina fazia comigo e ela sabia, ficou claro quando nos vimos pela última vez.

Robin saiu do meio da galera vindo até nós, tragando seu cigarro e debaixo do braço duas garrafas de cerveja.

— Grande Luke Dinally, uma merecida festinha para nosso astro no basquete. Que você esmague os The Bulls no domingo meu amigo!

Sorri cumprimentando-o com minha garrafa. – Você já está completamente bêbado.

— Ah, Luke, Luke, estamos apenas no começo da noite, dê um trago aqui e vê se relaxa meu amigo.

— Dispenso.

Tirei Belina de minhas costas, tomando um gole da cerveja.

— Luke é careta, uma vez filho de militar, sempre soldadinho.

— Vai à merda Jamie, fala como se não comesse as merdas que seu pai despeja em você. – Retruquei.

Todo mundo riu, fazendo Jamie se irritar.

— Só não quebro sua cara porque gosto de você Dinally. – Ameaçou com o dedo em riste para mim.


Essa noite já estava fadada para algo ruim acontecer, não só por ter jovens bêbados dirigindo, mas por eu estar de carona com Jamie, que não só estava no nível mais alto de álcool como também tinha entrado fundo nas dos viciados, ficando completamente descontrolado.

Eu não o julgava, éramos jovens, imprudentes, queríamos aproveitar tudo, achando que nada aconteceria conosco. Já passava das três da madrugada quando eles começaram a se mexer para irmos embora, eu me mantinha sóbrio. Belina e Bianca estavam tão chapadas, como Jamie e Brian estavam bêbados.

— Eu levo o carro. – disse tentando puxar a chave do Taurus das mãos de Jamie.

— Vai se foder Dinally, eu estou bem.

Ele não estava bem, mal conseguia me olhar sem vacilar nos próprios pés, mas eu sabia que de nada adiantaria brigar com ele por isso, seria inútil e não me levaria para casa.

Fiz questão de sentar no banco do passageiro, me mantendo atento nos movimentos que ele fazia na direção. Tudo poderia ter acabado bem, se Brian e Robin no carro de trás não começassem a acelerar e chamar Jamie para uma corrida na estrada vazia.

— Pare com isso Jamie. – Bianca protestou do banco de trás.

Jamie gargalhou alto pisando mais fundo no acelerador, olhei por cima do ombro vendo os rostos assustados de Bianca e Belina, apertem os cintos foi tudo que sussurrei para elas. Brian emparelhou o carro do lado de Jamie, brincando de ziguezague na pista, freando e cantando pneu. Como disse, éramos imprudentes e mesmo que eu não estivesse participando como peça principal disso, não deixava de ser culpado.

Eu estava no carro. Estava ciente que todos ali não tinham condições de dirigir.

“De um livro cheio de mortes

Lendo como morreremos sozinhos

E se formos bons nos deitaremos para descansar

Em qualquer lugar que queiramos ir”


Foi o último refrão de “Like a Stone” que eu escutei antes do carro de Brian sumir atrás de nós e eu focar meus olhos no carro que vinha direto em nossa frente, Jamie não desviou, acredito que pelo alto nível de álcool e drogas ele não conseguiu, mesmo que quisesse. O barulho ensurdecedor da batida, os pneus fazendo barulho do outro carro se jogando para fora da pista na intenção de desviar e minha cabeça batendo com força no vidro.

Estava atordoado, minha cabeça latejava, meu estômago doía. Pisco algumas vezes para me situar do que realmente aconteceu. Jamie está desacordado ao meu lado, mas respirando, assim como Belina e Bianca que choravam copiosamente no banco de trás.

— Belina, ligue para emergência.

— Vamos ser presos. – Bianca se desespera.

— Ligue agora, batemos em outro carro, podem ter pessoas feridas ali.

Chuto a porta algumas vezes para conseguir sair do carro, Brian e Robin vem correndo ao encontro do nosso carro. Os olhares assustados, pálidos pelo susto.

— Cuide das meninas, eu vou ver o outro carro.

Tento andar o mais rápido que consigo, porém a dor nas costelas queima pelo meu corpo. O carro conforme sua tentativa de desviar acabou batendo numa árvore, ficando totalmente destruído.

Um nó apertou minha garganta e meu peito quando vejo que dentro do carro estava uma família. A mulher estava inconsciente, mas o homem fixou seus olhos em mim, engolindo em seco.

— Chamamos a ambulância, eles já estão chegando. – digo debruçado pela janela.

— Minhas...

— Fique calmo senhor, eles estão chegando.

— Minhas filhas, olhe minhas filhas. – sussurrou apertando o machucado no peito dos estilhaços do vidro.

Corro para a porta do banco de trás, vendo que duas meninas, a mais nova estava chorando, devia ter por volta de quatro a cinco anos, já a mais velha estava desacordada encostada sobre a porta. Sua testa estava manchada de sangue, seus cabelos cor de mogno caiam sobre seu rosto, porque essa garota tinha aquela sensação que era conhecida por mim? O som das ambulâncias me tirou do meu estado petrificado, logo os paramédicos estavam colocando todos na ambulância e nos levando para o hospital.


— Ele teve sorte, apenas lesões superficiais, nada que repouso não possa ajudá-lo.

— Ele tem um jogo importante doutor, ele é Armador Principal do basquete.

— Eu entendo Sr. Dinally, mas essa temporada vai terminar sem o nosso astro nas quadras.

Ouvi de longe o choro contido de minha mãe, os bipes das máquinas ao meu lado denunciando que tinha acordado, nessa hora eu realmente preferia estar dormindo a enfrentar meu pai, e pior, seu olhar de decepção.

Como eu havia falado, não importava que não fosse eu na direção, eu estava lá, era tão imprudente quanto os outros. E Hendri Dinally não aceitava isso.

— Vou deixá-los a sós.

Escutei a porta sendo aberta e logo depois sendo fechada.

— Pode abrir esses olhos Luke. – disse meu pai.

Obedeci, encarando o rosto aliviado de minha mãe primeiramente e o rosto sem expressão do meu pai.

— Você quase matou uma família hoje.

Aquele nó surgiu em minha garganta novamente ao me lembrar da garota, de seu cabelo escuro cheio de ondas caindo pesado e sujo de sangue por seu rosto.

— Pai...

— Nem invente desculpas, você saiu escondido com aquele drogado do Jamie Bandle. Achou mesmo que sairia impune dessa?

— Pai...

— Cale a boca, você já fez estragos demais, agradeça por aquela família estar viva. – meu pai pegou o casaco da cadeira saindo do quarto.

— Seu pai está nervoso, quando recebemos a notícia, acreditamos que você tinha... – minha mãe passou a mão pelo rosto enxugando as lágrimas.

— Desculpa mãe, eu realmente estou errado.

Ela passou a mão delicadamente pelo meu rosto, com um sorriso mínimo nos lábios. – Vamos deixar os ânimos se acalmarem, sabe como seu pai é.

Suspirei deitando minha cabeça novamente no travesseiro.

— Como eles estão? – perguntei depois de alguns minutos em silêncio.

— Seus amigos ficaram bem, mas arcaram com as consequências.

— Estou perguntando da família, a menina de cabelos escuros... – desviei os olhos para a parede, evitando olhar para minha mãe.

— Eles estão bem, o pai teve que passar por uma cirurgia, mas a mulher e as filhas estão acordadas, vão ficar bem.

Respirei secretamente aliviado, eu queria que ela ficasse bem.


— Por que eu não recebo alta? – retruquei novamente para minha mãe.

— O Doutor disse que vem conversar conosco, tenha paciência.

Fazia uma semana desde que sofri o acidente, no início as dores de cabeça eram passageiras, assim como a enorme vontade de vomitar, porém com o passar dos dias, sintomas apareceram e ficaram mais fortes, o que bastou para minha mãe me arrastar até o hospital.

No mesmo instante que minha mãe se calou a porta do meu quarto abriu, trazendo meu pai e o doutor Valter.

— Boa tarde meu garoto, vejo que está impaciente.

— Quero ir logo para casa. – comentei. – Estou aqui há nove horas.

— Ligia, Valter quer conversar conosco. – meu pai estava sério demais para quem tinha dado entrada no hospital com um resfriado qualquer.

Para minha mãe minha febre, dores de cabeça constantes e as manchas vermelhas em meu corpo era sinal que estava algo totalmente errado.

— Bom, como falei quando chegaram aqui, realizei alguns exames com Luke. E foi constado que ele tem Leucemia.

— O quê?

— Como assim? – praticamente gritei.

— Acalme-se, garoto.

— Estes sintomas não são necessariamente sinônimo de Leucemia. Uma infecção, ou qualquer outro problema também podem causar estes sintomas. Contando que você recentemente sofreu um acidente de carro, suas dores constantes de cabeça, poderia ser naturalmente sobre isso. – o médico fez uma pequena pausa. – Ainda temos que realizar mais testes, fazer mais exames para realmente ver que estágio nós estamos, mas nas fases iniciais da Leucemia Crônica, assim como da Leucemia Aguda, os sintomas podem não aparecer, durante muito tempo. Muitas vezes, quando surgem os sintomas, estes são geralmente ligeiros, no início, e vão piorando gradualmente. Na Leucemia Aguda, os sintomas surgem e pioram rapidamente.

— Acredito que houve um engano, eu não tenho câncer, não tenho Leucemia, estou bem, isso é apenas um resfriado qualquer. – retruco tentando ficar de pé, mas a fraqueza me domina assim como a dor no estômago e a vontade de vomitar.

— Luke, precisamos fazer os exames, só assim poderemos tratá-lo.

— Luke sei como isso deve ser difícil, na realidade fizemos o exame por três vezes, todos mostraram que você tem a LMA. Você tem apresentado dores musculares, febre repentina, manchas vermelhas e hematomas pelo corpo. Isso não é normal e gostaria muito de dizer que isso tem a ver com o acidente de carro, mas não tem.

— LMA? O que isso agora, inventaram uma sigla rebuscada para morte? – explodi.

— Fique calmo, Luke. Escute o médico. – meu pai me encarava sério, mas por um instante eu vi seus olhos vacilarem.

— Eu vou explicar tudo Luke, vamos realizar os outros exames e vamos dar início no procedimento. Em casos como esse o melhor a fazermos é iniciar o tratamento o mais rápido possível, quanto mais rápido o tratamento, mais rápido pode ser sua melhora. – o médico se mantinha calmo, como se estivesse falando algo simples, sem se abalar ou realmente se importar.

Mas era minha vida ali, era sobre mim!

Eu me senti impotente, de mãos atadas, tudo estava passando como pequenos flashes por minha mente, onde um cara como eu teria câncer? Onde um jogador forte e sempre saudável teria câncer? Eu não fumava, não consumia drogas e me alimentava bem. Aquilo não estava certo, nada estava certo, esse médico não podia estar certo. Ou podia? Eu teria mesmo câncer, teria mesmo essa doença infernal dentro de mim, comendo a vida e os sonhos que eu queria realizar?

De todas as perguntas que surgiram na minha mente naquele instante eu não sabia respondê-las, não sabia nem o que era realmente Leucemia, o que isso implicava na minha vida. A única certeza que eu tinha é que o Luke Dinally que eu conhecia estava morrendo. Disso eu tenho certeza, assim como todos os sonhos que pareciam tão certos alguns dias atrás, tinham caído por entre meus dedos como areia.


Capítulo 3

Luke Dinally


Respirei fundo olhando pela ampla janela da sala, Tony mais uma vez estava sentado no sofá de minha casa, encarando-me.

— Aprecio o silêncio. – disse cruzando a perna pela nona vez. – Tem algo sábio escondido nele, sempre podemos aprender.

— Já disse que pode parar de vir aqui. – retruquei olhando para seu rosto.

Tinha pedido para minha mãe dispensá-lo, mas lógico que ela não seria rude nem mesmo com Tony. Acredito que eu aturava suas visitas frequentes porque ele era um dos únicos que restaram do que era minha vida. Seus comentários por vezes me tiravam a paciência. Minha relação com Tony era de amor e ódio, ele era meu amigo, mas também meu pior inimigo quando soltava seus conselhos.

— Deixe de ser estúpido moleque. – esbravejou sorrindo.

Eu nunca entendia quando ele dava uma bronca sorrindo, era contraditório.


Geralmente quando você ou sua vida é posta em uma bolha de questionamentos sobre tudo que você conhece ou já fez, ou quando você recebe uma notícia como a que recebi. Você secretamente deseja que o médico tenha o mesmo tato, ou até a gentileza que você vê em filmes, mas minha vida não era um dos filmes água com açúcar que minha mãe assistia e afirmo que o Doutor Valter, conhecido dos meus pais durante anos, assim como a maioria dos moradores de nossa pacata cidade não teve isso. Ele simplesmente despejou no meu peito que eu estava morrendo.

Minha mãe colocou na cabeça que eu estava deprimido, praticamente virei um suicida, o que gerava vigílias constantes na porta do meu quarto durante os dias. Provavelmente ela deduziu isso porque eu não estava me alimentando direito, porque com a bateria de exames e o passar das semanas fui me sentindo cada vez mais fraco e mais longe do Luke Dinally que fui um dia, era como se ao ser pronunciada minha doença tinha caído sobre minha cabeça uma terrível tempestade.

Parei de sair de casa e raramente aparecia ou ficava na presença dos meus pais. Sempre que procurava sobre meu estado atual, depressão é o efeito colateral mais alarmante. Só que depressão não é um efeito do câncer, da Leucemia em si, ela é um efeito da morte, de você saber que sua vida, seus planos não vão se tornar realidade. Você não fica depressivo porque têm uma doença consumindo seu corpo e destruindo seu sangue, você fica depressivo por saber que mesmo, numa hipótese que dê tudo certo, você sempre viverá com essa dúvida pairando sobre você. “Quando ela voltará?” porque o que mais havia na internet era casos onde a pessoa pensou ter se livrado por completo e mal passava um ano ela estava doente de novo. Depressão não era um sintoma do câncer, era um sintoma da morte, como um grande abutre sentado em seu ombro.

O jogo que tanto esperei não pude participar, deixando Matt em meu lugar, livre para fazer seus passes e ganhar a atenção dos olheiros. Soube poucos dias depois que ele havia ganho a bolsa integral para universidade, mas quem precisa de universidade quando sua cabeça parece que vai explodir, quando seu corpo é coberto de hematomas que você não sabe de onde vieram, ou quando você se sente frequentemente cansado, isso porque você fez o simples movimento de sair da cama. Quando acorda com os lençóis encharcados de suor, mas seu corpo tremendo de frio, ou talvez quando você sabe que seus cabelos, que sempre foram um charme para as garotas, iriam começar a ficar no travesseiro pela manhã?

Meus pais começaram a frequentar mais a igreja, assim como as missas de domingo, como se Deus fosse se redimir por me dar essa doença. Como se as horas que eles passassem escutando os louvores ou se confessando por o que eles acreditavam que tinham feito fosse alterar algo, como se eu dormisse e acordasse curado, como se tudo não passasse de um enorme pesadelo. Bem, queria eu que fosse isso, mas eu pouco me importava, se isso deixava minha mãe mais tranquila, que ela fosse todos os dias rezar com o Padre Maciel, e que Deus os abençoe.

— Luke, o Padre Maciel tem um grupo de apoio, sua mãe e eu concordamos que pode ser muito bom para você. – meu pai disse durante o jantar.

Parei de mexer em meu refogado de brócolis de um lado para o outro, levantei minimamente o olhar. – Que Deus abençoe o padre e sua genialidade.

— Deixe de grosseria. – esbravejou meu pai.

— Estamos tentando te ajudar.

Suspirei de leve, empurrei meu prato para frente. – Me recuso a ficar encarando pessoas que estão com a morte rondando-as e escutar uma pessoa falar que sabe o que estou passando. Vocês não sabem o que estou passando.

— Luke, não sei mais como ajudá-lo. Você tem que iniciar seu tratamento. – minha mãe virou o rosto tentando esconder a lágrima que escorreu.

— Já conversei com o Doutor Valter, ele me encaminhou para um especialista, o tratamento começa semana que vem, agora você quer me ajudar? Não me force a ir para um centro de autoajuda.

— Luke, você não é mais criança, precisa retomar sua vida. – a voz grave de meu pai saiu algumas oitavas mais altas. – Eu nunca pensei que diria isso, mas até seus amigos encrenqueiros você não vê mais. Você não sai mais do quarto, você não vai até o quintal jogar basquete. Você ainda está vivo.

— Vamos ver até quando. – retruquei baixo.

— Não fale isso Luke. – minha mãe me repreendeu.

— Se vocês não perceberam eu vou morrer, isso é tão certo quanto ao discurso sobre Deus, que o querido padre Maciel fará amanhã! – me endireitei na cadeira, apoiando os cotovelos na beirada da mesa. – Sabe, se o Deus de vocês é tão bondoso, tão certo por que ele não mata aqueles que realmente são maus? E mais uma coisa, faça um favor para mim, não diga que eu sou forte, que estou passando por tudo isso e sairei mais forte. Como disse, vocês não sabem o que estou passando, não quero esses olhares de pena. “Ah, tadinho do Luke” “Coitado, tinha tantos sonhos”. Vocês acham que não escuto suas conversas, acham que me tornei invisível por que estou com câncer? Então aqui vai uma notícia, eu não estou surdo, estou com Leucemia, pode falar a palavra não vai arrancar um pedaço de vocês. Isso ela faz de mim.

Meus pais ficaram calados, minha mãe tentava esconder as lágrimas que escorriam pelo seu rosto, enquanto meu pai pela primeira vez na vida parecia ter tomado um soco. Essa era a melhor descrição da sua expressão. O jantar já estava perdido há muito tempo, por isso quando a campainha tocou foi como se um anjo cantasse entre nós. Levantei lentamente pela fraqueza frequente, vendo isso como uma forma de escapar de vez dessa conversa.

Estava no primeiro degrau da escada quando meu pai tornou a me chamar, fazendo-me retornar para nossa sala, dando de cara com Tony.

— Olá moleque, como você está? – perguntou sorrindo.

— Vivo.

— Isso é bom, eu trouxe uma coisa para você. – Tony trocou um olhar rápido com meus pais, o que foi estranho. – Mas você precisa tirar sua bunda de dentro de casa.

— Valeu a tentativa. – respondi virando de costas.

— Pare de ser mal-agradecido, vire-se e venha ver seu moleque.

Respirei fundo, engolindo a resposta malcriada que azedou em minha boca pronta para respondê-lo.

— Vamos moleque, eu tenho algo para você.

Acompanhei Tony até a entrada de casa, a noite estava quente, muito mais quente do que parecia lá de dentro, mas não foi o tempo ameno de Beaufort que chamou minha atenção ou os vizinhos sentados nas portas de suas casas. E sim, a Harley Davidson que tanto sonhei, a lataria preta reluzente, aquele designer futurista que levava as pessoas que eram apaixonadas por duas rodas a loucura.

— Espero que ainda sonhe com essa belezinha. – Tony zombou jogando a chave da moto para mim.

— Não tenho como pagar por ela. – disse ainda com os olhos grudados na moto, andei devagar admirando a moto dos meus sonhos. Permitindo meus dedos tocarem de leve seu banco de couro, o tanque com a marca branca e vermelha que tanto admirava da série.

— Se você me prometer que irá se cuidar e parar de se fazer de coitado, essa moto é sua. – Tony gesticulava aquele dedo gordo em minha direção. – Meu nível de clientela feminina praticamente ficou escasso desde que saiu do Tomillos. Quem sabe um dia você decida ser um homem e volta a trabalhar.

Pela primeira vez em semanas eu senti vontade de sorrir, me sentia até enferrujado quando o sorriso foi brotando de forma singela pelo meu rosto.

— Temos um trato Dinally. – Tony segurou meu pescoço dando um leve apertão. – Volte para sua vida, ela não vai ficar esperando por você.


Vai ter um dia, um dia comum, pode ser uma tarde de domingo ou um dia ensolarado, em que tudo deixará de existir, todos nós, todas as coisas que conhecemos e acreditamos ser para sempre. Na realidade, tudo pode durar para sempre, afinal se morrermos amanhã, tudo que passamos, as pessoas que conhecemos, as coisas que fizemos, terá durado para sempre.

Hoje inicia meu tratamento, segundo os médicos eu passaria por três fases, a Indução, Consolidação e Manutenção. Fui diagnosticado com Leucemia Mieloide Aguda, ou seja, a LMA está relacionada a diminuição da produção de células normais da medula óssea. E nesse exato momento, sentado nessa sala repleta de cadeiras iguais, o cheiro de antibactericida ardia meu nariz. Ajeitei-me melhor na cadeira vendo a enfermeira vir ao meu encontro.

— Oi Luke, meu nome é Sam. – disse com um sorriso verdadeiro no rosto.

— Oi.

— Eu vou acompanhar você durante suas sessões, hoje vamos iniciar a indução.

— Eu sei. – disse de forma rude.

— Ela vai eliminar do seu sangue as células de Leucemia e reduzir o número na medula óssea, é como um stop em seu corpo, você pode ter alguns efeitos colaterais, afinal estamos injetando um nível alto de drogas em seu sistema.

— Ok.

— Qualquer tipo de sintoma, por favor, informe o médico, desde náusea, perda de apetite, fadiga, perda de cabelo. Tudo isso é importante.

Suspirei pesadamente.

— Quando isso terminar, você será um rapaz muito mais forte.

Lá vinha de novo essa história de força, eu com certeza faria uma lista sobre o que não dizer para alguém com câncer. Nesse primeiro mês escutei mais asneiras e palavras falsas que toda minha vida. As pessoas achavam que ficar em silêncio e não dizer nada era errado, aí abriam suas bocas e soltavam merdas. “Você está passando por um plano de Deus” essa era a pior, sério as pessoas achavam que tudo tinha algo com Deus, ou então elas queriam que você se revoltasse contra ele. O que levando em consideração de ter uma doença corroendo seu ser, você ter que abandonar seus sonhos, médicos falando de possibilidades sobre você não sobreviver ou não responder bem ao tratamento já eram motivos suficientes para me fazer virar contra a fé.

Voltei minha atenção para a enfermeira, notando sua mão apoiada na minha, uma forma clara de apoio, mas eu não queria a pena de ninguém, não queria ninguém me tratando como um coitadinho qualquer.

— Podemos começar.

A enfermeira foi até o outro lado da sala colocando uma máquina ao meu lado, pegou alguns instrumentos, a bolsa de remédios e começou a ajeitar tudo. Não desviei os olhos, acompanhei todo o processo. Da colocação do acesso em minha veia até ela ligando a máquina e explicando que aquilo era como uma bomba, fazia o controle de medicação que entraria na minha veia, assim como apitaria caso tenha bolha de ar, ou qualquer problema com a entrada do medicamento.

— Luke, nesse primeiro processo você ficará uma hora, qualquer apito que o aparelho faça me chame. – Ela ajeitou o jaleco, anotou algo na prancheta. – Sugiro que beba bastante água, isso ajuda no tratamento.

— Quanto tempo vou ficar aqui?

— Cerca de três a quatro horas, você terá a segunda fase que dura duas horas.

Deitei a cabeça no travesseiro.

— Suas sessões serão de quinze em quinze dias, daqui a pouco eu retorno.

A primeira hora passou rápido, realmente rápido. Logo a tal enfermeira Sam estava de volta com outro tipo de bolsa e cânula ligada a ela. Também chegou um rapaz, devia ter alguns anos a mais que eu, ele se sentou na poltrona na minha frente, um enfermeiro começou o mesmo processo que o meu. Eu observava tudo curioso, vi quando ele se sentiu enjoado, quando o enfermeiro o auxiliou até o banheiro e quando voltou estava mais pálido e fraco.

— É sua primeira sessão? – perguntou me encarando.

— Sim.

— Meu nome é Isaac, eu tenho Linfoma de Hodgkin.

— Luke, eu tenho LMA. – me ajeitei melhor na poltrona. – Isso faz parecer que somos gados marcados.

Isaac gargalhou em meio a tosse. – Verdade, pensando por esse lado não é legal se apresentar assim para uma pessoa.

— Quanto tempo você tem câncer?

— Há um ano e meio, fui diagnosticado já no terceiro estágio, eu não sei bem como funciona isso, mas sei que estou no terceiro estágio. – disse rindo. – E você? Qual é sua história?

— Eu descobri depois de um acidente de carro.

— Não, não sua história com câncer, a gente sabe que por mais que todos tenham um start ela vem do mesmo jeito, né? Malditas células podres. – Isaac ria de tudo e por um instante me passou pela cabeça que ele estava com a mente confusa devido à medicação.

Ele continuava me encarando, analisando minha expressão fechada.

— Não vá me dizer que você é daquelas pessoas que encarnam com a doença, culpando-a por tudo? Conheci tantas pessoas assim. Sabe? Dá pena, as pessoas ficam tão fixadas no termo que esquecem que o câncer é como uma estação de trem, você pega o vagão, mas logo pode se livrar dele. Que o real motivo para se preocupar era os dias que passavam por seus narizes enquanto eles reclamavam. – ele fez uma pequena pausa ajeitando o braço no apoio da cadeira. – Sabe Luke, nos esquecemos de contemplar as coisas belas da vida, esquecemos de olhar e agradecer pelo dia que temos. Ai quando pegamos uma doença assim, que nos coloca para tomar chá com a Dona Morte, nos desesperamos, reclamamos de Deus, do Universo, de tudo.

Eu não sabia o que falar, não depois disso. Por isso preferi o simples, aquilo que eu conhecia bem. – Era jogador de basquete, estava quase recebendo uma bolsa na UCLA.

— Uau, isso sim é história, adoraria escutar. – disse empertigando-se para frente.

— Quem sabe num outro momento.

Olhei para o relógio pela milésima vez, contando as mínimas progressões que ele fazia, logo poderia sair daqui. Esse cheiro de gente doente estava me dando enjoo, meu estômago estava apertado, como se um gigante o esmagasse.

— Dê-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar as que posso, e no seu caso paciência. – Isaac disse do outro lado, seus olhos fundos por olheiras me encaravam. Ele parecia muito mais abatido do que havia chegado.

— Está tão nítido assim?

Ele deu um meio sorriso. – Um pouco, talvez mais aparente por você se contorcer de cinco em cinco minutos na poltrona. Ou pelas caretas constantes.

— Só quero ir embora, esse negócio queima.

— Eu parei de desejar isso há muito tempo, por isso descobri que ser paciente era algo que poderia e deveria aprender a ser.

— Você não vai para casa?

— Não, eu cheguei ao estágio onde minha família já não se importa de fazer uma visita, apenas um moribundo do terceiro estágio. – Isaac retirou a touca revelando sua cabeça careca, ele coçou distraidamente.

— Sinto muito. Você sempre morou em Beaufort? – perguntei curioso, numa cidade pequena era difícil você não reconhecer um morador.

— Não, sou de Chesnee. O hospital me transferiu para cá, não tinham como me manter.

Eu realmente sentia por Isaac, não conseguia imaginar viver dentro de um hospital, eu não tinha meus amigos, não tinha mais as garotas aos meus pés, muito menos meus sonhos, mas eu tinha meus pais. Que mesmo com as palavras rudes ou eu afastando-os sempre estavam lá.

— Sabe, não estou reclamando, eu poderia estar pior. – Isaac deu de ombros. – Eu ainda consigo andar sem ajuda, posso ter meus horários de passeio pelos corredores do hospital, tenho amigos, trato o hospital como uma grande sala de espera, onde conheço pessoas e vidas. Eu estou vivo, isso conta para algo, não?

Engoli o nó em minha garganta. – Acho que conta.

Sam entrou na sala sorrindo para nós. – Vejo que já conheceu Isaac, fico feliz, prevejo uma grande amizade.

— Você é gentil Sam, na verdade, estava contando para nosso principiante que isso aqui é uma verdadeira colônia de férias, mas que ele precisa conquistar seu lugar ao sol. – Isaac ergueu a sobrancelhas brincando. – Eu não facilitarei para você cara do cabelo bonito.

Foi involuntário, uma risada escapou pelos meus lábios.

— Luke, você está liberado. – Sam retirou o cateter, o acesso, assim como a máquina me dando espaço para levantar. – Espere uns três minutos antes de sair correndo mocinho. Está sentindo algo?

— Não, talvez um pouco de enjoo.

— Espere aqui, vou trazer algo para aliviar, depois você pode ir.

Sam voltou poucos minutos depois com um copinho de plástico, o remédio amarelo fedia a vomito, mas tomei tudo numa golada só. Quando o enjoo finalmente se acalmou fiquei de pé pronto para ir.

— Vejo você daqui quinze dias. Não se esqueça, qualquer coisa ligue para seu médico e informe.

— Tudo bem. Até mais, Isaac.

Ele abriu os olhos lentamente, sorrindo. – Nos vemos em breve, e, por favor, traga um doce na próxima vez. Eu adoro aqueles com creme no meio.

— Isaac! – advertiu Sam do outro lado da sala.

— Eu vou tentar contrabandear alguns.

— Assim com certeza você ganhará um lugar ao sol meu amigo, como ganha. – disse fechando os olhos novamente.


Capítulo 4

Luke Dinally


Abri a porta da garagem e lá estava ela debaixo da capa de proteção. Joguei longe a capa de lona que protegia a moto, meu coração batia forte de ansiedade, o dia estava quente e eu precisava sentir o vento bater em meu corpo, precisava de um momento humanamente possível, por um segundo esquecer que eu era um cara com planos frustrados, sonhos engavetados e com uma doença dentro de mim.

Hoje eu queria ser apenas Luke Dinally.

Subi na moto pela primeira vez, sentindo o peso de sua lataria, sentindo praticamente a expectativa que ela devia estar sentindo ao ser ligada, o motor roncando alto, poderoso e pronto para ganhar as estradas. Quando desejei comprar uma Harley Davidson foi justamente para isso, pegar as estradas, conhecer lugares, me aventurar.

Deixei que ela ganhasse velocidade aos poucos, atravessei o jardim de casa, passei pelos vizinhos saindo do meu bairro, ganhando quilômetros, sentindo o sol sobre minha cabeça, o vento batendo contra meu peito. Logo estava perto do centro, virei algumas ruas pegando a Bay St a moto facilmente atingiu os 100 km/h margeando a água, entre os bairros e a visão dos barcos ancorados no pequeno porto da Bay St, eu ia me sentindo vivo. Fiz um pequeno desvio pegando a King St, passando em frente ao Tomillos, Tony estava na frente do restaurante conversando com outro homem, mas o ronco alto do motor chamou sua atenção, que na hora esboçou um sorriso me reconhecendo. Acelerei um pouco mais, passando em frente ao Vital Records voltando para minha trajetória inicial. O farol estava aberto permitindo a passagem, mesmo assim uma mulher atravessou a rua, me fazendo frear a moto com tudo, parando literalmente centímetros dela, quase atropelando-a e me fazendo cair da moto.

Ela me encarava com os olhos arregalados, alguns cadernos estavam espalhados pelo chão. Seu cabelo castanho batia com força contra o rosto.

— Você está maluca? Como você atravessa assim numa avenida? Está querendo se matar? – despejei em cima dela.

— Meu Deus!

Pronto, completamente maluca. Ela parecia prestes a desmaiar, seus olhos se fixaram nos meus. Puta merda! Que olhos, tinha um tom de mistério e inocência. Desci meus próprios olhos por seu rosto, seus cabelos estavam soltos e revoltos entorno da face, seus lábios rosados...

— Mil desculpas, eu sou nova na cidade. – ela disparou a falar.

E eu ainda estava hipnotizado por sua boca, havia algo nela que me prendia. Algo que eu já tinha visto.

—... Eu sinto muito, realmente. – ela continuava dizendo.

— Eu ajudo você recolher suas coisas. – disse colocando a moto de pé, vendo que essa queda tinha feito um pequeno arranhão em sua lataria, mas eu não contava com a náusea que me tomou. Parei alguns segundos de olhos fechados, respirando devagar, sentindo aos poucos meu estômago se aquietar.

— Você está bem?

— Sim, vamos recolher logo isso. – retruquei.

Ajudei recolher os cadernos repletos de anotações do chão empilhando-os em seus braços.

— Desculpa novamente por isso, eu não estava prestando atenção.

— Você teve sorte que consegui frear a tempo, senão agora estaríamos ambos no hospital.

Ela estremeceu levemente.

— Você está bem? – perguntei novamente.

— Sim, tenho horror a hospital. Eu sofri um acidente no começo do ano.

Era isso, ela era a garota do acidente, os mesmos cabelos castanhos pesados, o rosto. Aquele acidente tinha mudado tudo em minha vida.

— Você estava com seus pais e sua irmã no carro. – deixei escapar.

— Sim... Como você sabe? – ela me perguntou desconfiada.

— Cidade pequena, — dei de ombros omitindo a verdade. – todo mundo sabe de tudo.

— Estou percebendo. – ela rolou minimamente os olhos com um suspiro. – Meu nome é Alissya Rayven.

— Luke Dinally.

— Bom saber, obrigada por não me atropelar. – disse sorrindo. – Nos vemos por aí Luke Dinally.

— Talvez, não. – retruquei ranzinza.

Ela afastou uma mecha de seu cabelo do pescoço, me encarou de verdade, como se pudesse olhar através de mim. – Acredito que vamos nos encontrar novamente, afinal ninguém se cruza sem motivo.

— Provavelmente não, a não ser que a pessoa não preste atenção para onde vai e atravesse na frente de minha moto.

Ela esboçou um sorriso, me deixando confuso.

— Tudo tem um motivo Luke, tudo tem uma motivação.

Pode parecer mero clichê, mas Alissya me deixava paralisado, seus cabelos castanhos como o mais escuro mogno balançando ao seu redor enquanto atravessava a rua, foram capazes de me deixar pregado no lugar, seus olhos de um tom de chocolate me prendiam e não sei porque ainda estava aqui, olhando a garota se afastar, colocar os fones de ouvido totalmente distraída do que acontecia ao seu redor e sumir rua abaixo com seus cadernos a tiracolo.


— Luke, estávamos preocupados.

Fechei a porta sentando no sofá. Minha mãe estava de pé me encarando como se tivesse visto um fantasma, meu pai por outro lado encarava a TV.

— Estou bem.

— Por favor, Luke nos avise quando for sair. Não sabia mais onde procurá-lo.

— Eu sai por um instante, já vou me recolher.

Passei por minha mãe dando o beijo de sempre em sua bochecha subindo para meu quarto.

Naquela noite os efeitos colaterais da minha primeira quimioterapia me dominaram como uma praga na plantação de milho. Meu corpo suava frio, os tremores acabaram me acordando junto com a náusea forte.

— Luke? – Minha mãe colocou a cabeça para dentro do quarto. – escutei seus murmúrios.

— Está... Muito... Frio.

Minha mãe colocou a mão sobre minha testa arregalando os olhos. – Luke, você está queimando de febre.

— Hendri, Hendri pegue o carro.

— Para mãe, isso é apenas o efeito do tratamento. – retruquei tentando ficar de pé.

— Eu ajudo, eu o coloco debaixo do chuveiro. – meu pai entrou no quarto tirando as cobertas de cima de mim. – Vamos Luke, me ajude.

Forço meu corpo para frente, com a ajuda do meu pai ficando de pé, meus olhos recaem sobre o travesseiro. Algumas mechas do meu cabelo estavam ali, pousadas em meu travesseiro como uma lembrança da minha doença, lembrança que por mais que eu tivesse um dia feliz, um mísero instante de felicidade, ou que sentisse que tudo tivesse sido como sempre foi. Isso não era real, eu não estava vivendo verdadeiramente, eu estava doente e isso não mudaria.


Capítulo 5

Luke Dinally


— Olha, ele voltou! – Isaac exclamou do outro lado da sala, assim que me viu.

Sentei-me na poltrona com ajuda do enfermeiro, que logo se afastou para preparar minha segunda quimioterapia.

— Tem sido difícil?

Olhei para Isaac, mas eu não estava com vontade nenhuma de falar, na verdade acho que minha voz nem sairia pelo tempo que não a usava. Depois do primeiro dia que acordei com os efeitos do tratamento tudo parecia rolar uma enorme ladeira abaixo, meu cabelo caía com uma frequência enorme, mais hematomas apareceram em minhas costas e barriga, mal conseguia me alimentar sem colocar tudo para fora. Isso somado a fraqueza foi motivo para eu me trancar no quarto e não ter nem vontade de falar.

— Sei o que você está passando e ao contrário do que todo mundo diz não vou dizer que você sairá mais forte disso. – Isaac continuava puxando assunto. – Eu mesmo não sei se vou sair vivo disso, ou sequer quantos dias tenho, mas caso queira conversar. Eu estou no quarto 210 C.

Olhei novamente para ele, fazendo uma confirmação com a cabeça. Estendi o braço deixando que o enfermeiro colocasse o acesso e engatasse a cânula para iniciar minha segunda quimioterapia e assim encerrar meu primeiro ciclo.


— Como você está se sentindo Luke?

O enfermeiro me ajudou a sentar na cadeira de frente para o médico, minha mãe sentou na outra me olhando apreensiva.

— Eu andei olhando seus exames, seu hemograma está muito baixo, suas plaquetas, Leucócitos, hemoglobina. Realmente teve uma queda muito brusca durante sua primeira quimioterapia e a segunda.

— O que isso quer dizer, Doutor?

— Isso quer dizer que vamos dar entrada na internação.

— Internação? – perguntei, minha voz falhou depois de tanto tempo sem uso. – Eu estava bem, consegui sair de casa. Por que devo me internar?

— Infelizmente Luke, Leucemia é uma doença muito silenciosa, em questão de dias ela pode piorar muito o caso, você está com noventa e três por cento de Blastos na medula. O normal gira em torno de dois até quatro por cento de Blastos. Não podemos comparar seu caso com outros, cada paciente tem um tipo de reação, tive pacientes que passaram mal todo o processo de quimioterapia e tratamento contra o câncer, tem outros que no começo não apresentam nada. Não podemos comparar.

— Quando ele será internado?

— Hoje mesmo, agora no caso. – o médico se levantou quando a porta do consultório se abriu. – Sam levará você no seu quarto, ela me informou que você conheceu Isaac. Acredito que você ficará bem, estando num quarto próximo dele, será uma companhia.

Fui transferido para uma cadeira de rodas, sendo levado para meu quarto, minha mãe seguia segurando minha mão. Senti sua mão tremer levemente na minha.

— Estarei aqui todos os dias, Luke. – minha mãe deu um beijo em minha testa quando fui colocado na cama.

— Eu sei.

— Sra. Dinally, sinto muito, mas agora precisamos preparar o Luke. – Sam disse com a voz mais doce para minha mãe.

— Tudo bem, tudo bem. Eu volto mais tarde filho, vou em casa buscar suas coisas.

— Fique tranquila, mãe.

Ela deu um sorriso torto me deixando sozinho no quarto com os enfermeiros.

— Você continuará tomando a quimioterapia de indução, como já tomou hoje sua taxa da Daunorrubicina, vou deixar você descansar. – Sam ajeitou a coberta em meu corpo. – Qualquer sintoma Luke preciso que você aperte essa campainha aqui do lado.

— Ok.

— Amanhã você começa vinte e quatro horas de infusão com a bomba, caso precise ir ao banheiro um enfermeiro pode vir te ajudar na locomoção do suporte, assim como seu banho, para que você não se machuque e que não pare com o tratamento.

— Quantos dias?

— O tratamento é de seis a sete dias. Bom, pelo menos nesse primeiro instante. Vamos ver como seu organismo vai reagir com o tratamento.

O outro enfermeiro tirou o termômetro do meu corpo conferindo minha temperatura. – Vou trazer um antitérmico.

Sam concordou vendo seu colega sair do quarto, soltou um suspiro voltando seus olhos para mim.

— Aguente menino, use essa sua “marrentice” para seu tratamento, seja esperto. Sei que você não quer ficar aqui olhando para minha cara, então reaja.

— Não sei se tenho outra opção. – disse desviando meu olhar para a janela.

— Lógico que tem, daqui algum tempo você vai cruzar comigo nesse corredor pronto para ganhar a vida lá fora.

Suspirei me mantendo em silêncio.

— Luke, se você quiser corto seu cabelo. Sei que ele começou a cair, vai ser como tirar um curativo de um machucado eu prometo.

— Tudo bem.

— Eu vou preparar as coisas, volto logo.

Como não disse mais nada, Sam saiu do quarto fechando a porta atrás de si.

— Luke?

Olhei em direção a porta, não sei quanto tempo se passou ou por quanto tempo eu dormi. Minha boca estava seca e minhas costas doíam por ficar muito tempo na mesma posição.

— Eu trouxe as coisas para cortar seu cabelo. – Sam anunciou empurrando uma cadeira para o meio do quarto. – Também trouxe uma toca, caso você se sinta desconfortável.

— Tudo bem.

— Eu vou ajudá-lo.

— Não precisa!

Sam travou no mesmo lugar olhando para mim, fiz todo esforço que ainda havia dentro de mim para levantar da cama, colocar um pé de cada vez no chão. Coisa que dois meses atrás eu teria feito sem saber da importância ou da falta que isso faria para mim hoje.

Andei com calma até a cadeira, sentia os músculos das minhas pernas tremerem com o esforço, pelo canto dos olhos via também Sam preparada para me pegar quando eu vacilasse, mas eu não deixaria isso acontecer, nem que toda força saísse de mim.

— Peguei essa máquina com um amigo.

— Tanto faz. – respondi de forma rude, passei a mão em uma mecha que caía em meu rosto, olhando os fios negros saírem por entre meus dedos. – Corte isso de uma vez.

Escutei o barulho da máquina sendo ligada, ela passando aos poucos de minha nuca até o meio de minha cabeça e meus cabelos caindo no chão. Aos poucos a máquina avançava mais, mais cabelos caiam sobre meus ombros, pelo chão. Eu tinha receio de realmente encarar, ou de olhar para frente, pela porta do banheiro aberto e olhar o espelho, eu não queria ver.

Fechei os olhos com força sentindo a máquina passar ao lado de minha orelha, têmporas e perto da testa, sentindo os cabelos caírem pelo meu rosto, em direção ao chão. Uma dor aguda tomou meu peito, era estranho, como se eu precisasse explodir, gritar, precisasse de algo.

Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, o barulho da máquina cessou.

— Eu vou ajudá-lo a se limpar.

— Saia daqui.

— Luke.

— Saia Sam, me deixe sozinho!

— Luke foi melhor assim, logo eles estarão ainda mais lindos. – a voz de Sam falhava.

— Eu já falei para me deixar em paz! Saia, me deixe aqui! – gritei em meio a lágrimas.

Ouvi seu suspiro pesado em minhas costas e quando ela saiu fechando a porta atrás de si. Isso foi como a abertura de uma comporta, o choro saiu forte e nebuloso de dentro do meu peito, assim como o grito.

Nesse instante eu não sabia se gritava com Deus, se gritava para extravasar toda essa emoção acumulada e pesada dentro de mim, eu sei que chorava. Eu olhava para o espelho e não via mais o que sempre vi, não via mais o Luke Dinally, não via mais o jogador de basquete invencível como meus amigos me chamavam. Não tinha mais os tais amigos que sempre tive.

Ali estava um rosto pálido, os olhos fundos pelas olheiras. Abafei o grito colocando a mão sobre minha boca, chorando em silêncio.


Capítulo 6

Alissya Rayven


Duas batidas baixas na porta do meu quarto me fizeram tirar os olhos da partitura de música.

— Aly, posso entrar?

Sorri para meu pai. – Entre pai.

Meu pai entrou sorrindo, dando uma olhada em meu quarto, ou o que restava dele. Tudo estava encaixotado no canto, as únicas coisas que restavam eram meus cadernos e algumas coisas pessoais.

— Tudo pronto para nossa viagem?

— Sim.

— Sua mãe quer sair cedo. – meu pai sentou-se na beirada de minha cama. – tenho certeza que será bom para todos.

— Vai ser, pai. – esbocei um sorriso encorajando-o.

— Sei que você não queria essa mudança, sei dos seus sonhos.

Dobrei as pernas apoiando o queixo em meus joelhos.

— Tudo vai dar certo pai, confio no destino.

Meu pai me deu um sorriso ainda maior, levantou-se dando um beijo em minha testa. – Realmente você é meu anjo Aly.

Dei uma risada. – Sou apenas uma garota que vive mais sonhando do que propriamente vivendo.

— Continue sonhando minha Aly, mergulhe no mundo dos sonhos. Durma bem.


Beaufort, Carolina do Sul.

Essa era minha nova cidade, pacata, casas grandes, ladeadas por enormes quintais. Bom, não era nada como Dallas. Porém, eu estava gostando, mesmo que isso colocasse alguns quilômetros entre eu e meus sonhos, na verdade, uns bons mil quilômetros.

Mas isso não me desanimaria, não mesmo. O que eram dez horas sentada dentro de um carro em comparação ao seu sonho? Nada.

Talvez nada até o dia que eu finalmente fosse aceita na Juilliard, ou quem sabe para Columbia. Mas até lá, esse seria meu lar, a pacata e simpática cidade de Beaufort.

— Eu disse para não pegarmos estrada durante a noite.

Fui tirada dos meus pensamentos pela minha mãe, mais uma vez ela estava criticando meu pai por não ter passado a noite em qualquer hotel de beira de estrada.

— Fique calma Melissa, logo iremos chegar.

Olhei para o retrovisor trocando um sorriso com meu pai. Sabe aquele ditado que as filhas são mais agarradas ao pai? Nesse caso era completamente verdade, eu e meu pai tínhamos uma cumplicidade que poucas vezes tinha visto em outras filhas. E eu era extremamente grata a isso, enquanto minha mãe era enérgica, meu pai era todo tomado pelo grande coração.

Jules dormia em sua cadeirinha, nenhum pouco incomodada com seu redor, minha irmã era um anjinho. Quando estava dormindo!

Dei um sorriso recolocando os fones de ouvido, apoiei minha cabeça ao encosto fechando novamente os olhos. Por poucos minutos, a freada brusca do carro me fez arregalar os olhos prestando atenção ao que estava acontecendo, um carro veio em alta velocidade em nossa direção. Meu pai pouco teve o que fazer, mesmo desacordada, ou com um resto de consciência preso no presente eu escutei quando ele pediu socorro para alguém, assim como o barulho das ambulâncias ao longe.

Não foi uma chegada relativamente boa, mas com sorte todos estávamos bem. Meu pai apesar de recorrer a uma cirurgia na perna, pelo fato das ferragens do carro terem machucado para valer, estava bem, depois de poucos dias. E fizemos de tudo para apagar aquela noite de nossas memórias, meu pai não prestou queixa contra os adolescentes bêbados que tinham invadido a pista quase matando minha família, mesmo que minha mãe gritasse com os policiais que queria sim realizar a queixa. Durante o período de observação que passei no hospital não vi nenhum deles, mas fiquei sabendo que eram dois meninos e duas meninas, porém estava mais preocupada com minha família, minha mãe mesmo tendo sido encontrada desacordada, como eu, tinha machucados leves, eu apenas abri o supercílio com a batida. Jules graças à segurança de sua cadeirinha não tinha feito nada, apenas foi o susto mesmo.

Como disse meu pai foi aquele que mais se machucou, com a intenção de nos salvar e até mesmo salvar aqueles jovens, jogou o carro para fora da pista, batendo de frente com uma árvore. Pelo impacto da batida teve ferimentos no rosto pelo vidro quebrado e na perna, uma das ferragens do carro entrou em sua tíbia levando-o para cirurgia e algumas sessões de fisioterapia, quando saísse do repouso.


Faziam vinte dias que estávamos morando em Beaufort e eu estava adorando tudo, o clima sempre quente, daqueles que gotículas de suor apareciam na testa assim que saíamos de casa, até de nossa nova rotina. Minha mãe continuava em casa cuidando de Jules e meu pai, mesmo com o tempo de afastamento ainda trabalhava em casa.

— Aly! Desça aqui.

Larguei meu caderno atendendo o chamado de meu pai. Parei no pé da escada o vendo todo arrumado.

— Que tal fazer companhia para seu velho? – perguntou com um sorriso no rosto.

— Primeira fisioterapia?

— Sim.

Estremeci de leve, eu tinha pego meio trauma de hospitais.

— Poxa, você me deixará sozinho nessa?

Suspirei sacudindo a cabeça da careta de pidão que meu pai lançava em minha direção.

— Cadê a mamãe?

— Saiu para um passeio com Jules.

— Você sabe que ficará me devendo uma, né?

Ele soltou uma gargalhada. – Que tal uma paleta naquele restaurante do centro?

— Fechado, volto em cinco minutos.

Corri escada acima trocando meu short por uma calça e minha regata do pijama por uma blusa simples. Logo me encontrando com meu pai, sentado no banco do motorista me esperando.

Meu pai ligou o som na sua estação de Jazz favorita, tamborilando o volante com os dedos enquanto dirigia.

— Como andam seus planos? – perguntou depois de alguns minutos de silêncio.

Dei de ombros. – Esperando, já enviei minha carta de admissão faz um mês. Até agora nenhum retorno.

— Essas coisas são assim mesmo minha menina, demoram um pouco.

— Eu quero tanto pai, mesmo que mamãe continue brigando. – suspirei. – Eu quero ir longe, meus sonhos são para longe.

— Sei disso Aly, vou te ajudar com sua mãe, você sabe que ela sempre teve seus próprios planos para você. Assim como tem para Jules. – disse sorrindo.

Olhei pela janela admirando uma espécie de campo aberto, as poucas árvores ali eram largas, grandes, dando uma enorme sombra pelo gramado. Ali seria um ótimo lugar para mim, bem debaixo daquela Nogueira.

— Siga sonhando Alissya, siga sempre sonhando.

— Sempre pai.


Meu pai tinha sido aconselhado pelo médico a realizar seis sessões de fisioterapia para fortalecimento do músculo, algo normal, devido ao acidente, por isso aqui estávamos, atravessando os corredores do hospital. Deixei que ele seguisse para sua sessão, me sentando na sala de espera. Acredito que não tinha passado nem vinte minutos e eu já estava impaciente, joguei a revista de volta no cesto grande em minha frente e sai observando os corredores.

Atravessei corredores repletos de portas fechadas, subi e desci no elevador, até parar em um corredor diferente, bom, não tão diferente já que estávamos em um hospital, mas esse tinha poucas portas, duas estavam abertas e eu escutei risos.

Andei devagar em direção ao som, parando quando dois rapazes saíram de um dos quartos, o que estava empurrando uma cadeira de rodas sorria amplamente, mas f oi só quando o que estava sentado virou o rosto que eu reconheci quem era.

— Luke? – perguntei timidamente.

Ele arregalou os olhos, travando a boca em uma linha fina.

— Nos encontramos novamente.

Mesmo que aquele rapaz não lembrasse em nada ao Luke Dinally que eu cruzei algumas semanas atrás, ali estava ele. Pálido, com olheiras fundas nos olhos verdes que tanto me hipnotizaram naquele dia, com uma touca na cabeça, junto com um casaco largo no corpo.

— Luke, sou eu, Alissya. – disse.

Talvez ele não se lembrasse de mim.

— Eu sei quem você é. – respondeu roucamente.

— Sabia que nos encontraríamos de novo, mas não esperava que fosse aqui, você está bem?

Dei mais alguns passos parando bem perto deles.

— Estou ótimo, passar bem. – disse cruzando os braços sobre o peito.

Mordi o canto interno de minha boca.

— Eu sou Isaac, prazer. – o outro rapaz estendeu a mão para mim.

— Alissya.

— Bonito nome, garota bonita. – disse com um sorriso.

— Obrigada. – sorri colocando uma mecha do meu cabelo, que teimava em cair no rosto.

— Se nos der licença temos que ir.

Olhei novamente para Luke, vendo seu rosto franzido, fechado.

— Ah, desculpe. Eu...

Isaac sorriu como quem se desculpava pela grosseria do amigo, mas seguiu com a cadeira para o final do corredor, deixando-me parada olhando para eles.

— Bons rapazes. – sussurrou uma mulher de meia idade, surgindo ao meu lado.

Sorri.

— Meu nome é Sam, você é amiga do Luke?

— Alissya. E, não sei. Achei que era.

— Não fique triste menina, ele está ranzinza assim desde que chegou, está sendo difícil. – ela pegou uma toalha branca com emblema do hospital do carrinho no canto do corredor. – Mas quem pode culpá-lo?

— Desculpe ser... Intrometida, mas ele parece bastante mal, o que ele tem?

— Leucemia, Luke está lutando contra Leucemia.

— Leucemia? – repeti incrédula. — Eu cruzei com ele poucas semanas atrás, ele estava bem, nunca desconfiaria que ele tivesse Leucemia.

— Sim, infelizmente. Um garoto tão forte, com um quadro tão complicado. A doença de Luke agiu de forma silenciosa por um bom tempo, quando foi diagnosticado ele já estava num quadro clínico avançado.

Olhei para a tal enfermeira engolindo em seco, eu não sabia o que falar, eu não queria mais ficar ali.

— Preciso ir, até mais.

— Até.


— O que aconteceu meu bem? Você está calada, nem o sorvete te animou.

— Desculpe, pai.

— Aconteceu alguma coisa? – meu pai tirou os olhos da avenida para me encarar por um instante.

— Nada demais, apenas não gosto muito de hospitais.

— Desculpe, eu não sabia que isso atingia você ainda.

— Sem problemas pai, terei que perder essa fobia um dia.

Virei meu rosto para a janela, observando o caminho de volta para casa, aproveitando o silêncio que se seguiu.

Naquela noite consegui dormir após as três da madrugada, ainda passava pela minha cabeça o encontro com Luke. A enfermeira informando seu caso e todas as matérias que encontrei na internet sobre a doença, meu coração ficou pesado, não sei se pelo fato de ter o conhecido quando ainda estava bem, os cabelos pretos displicentes caindo no rosto, os jeans pretos rasgados no joelho, os braços fortes enquanto me ajudava a recolher meus cadernos que tinham caído com o choque de quase ser atropelada. E da ligeira palpitação que tive quando ele olhou no fundo dos meus olhos, me prendendo naquele mar verde que eram os seus.


Capítulo 7

Luke Dinally


Cento e sessenta e oito horas passaram, 10.080 gotas caindo na cânula ligada ao meu corpo.

Sim, eu estava contando. Isso diminuía por incrível que pareça minha pressa para retirar essa bomba de meu braço.

Por isso me vi ajeitando o corpo quando o enfermeiro entrou junto de Sam.

— Vejo que temos um paciente ansioso.

— Tire isso de mim. – implorei.

Ela sorriu, ajeitando meu braço, examinou meu acesso, mediu minha pressão, verificou minha temperatura. Tudo me deixando ainda mais impaciente.

— Bom, o doutor Patrick quer vê-lo. Você se sente bem para ir até o consultório dele caminhando?

— Sim.

— Luke? – advertiu.

Respirei fundo. – Não estou mentindo, estou bem dessa vez.

Ela esboçou um sorriso terminando de retirar toda a aparelhagem, pronta para me acompanhar. Hoje era o último dia do ciclo de infusão, eu estava ansioso para saber se tinha feito algum progresso. Durante os primeiros dias eu realmente tinha passado mal, minha alimentação consistia no soro que era injetado por via intravenosa, com o passar do quarto dia eu consegui pela primeira vez me alimentar, não era lá um manjar dos deuses, mas era bom sentir algo em minha boca sem ser o gosto de ferro.

A porta do consultório estava aberta, o médico de costas analisando uns papéis. Bati de leve duas vezes, anunciando minha chegada.

— Pode entrar meu rapaz. – disse cumprimentando-me.

—Diga logo.

— Calma, vamos com calma. Como você está?

— Estou bem.

Ele me encarou com uma sobrancelha arqueada.

— É verdade, realmente me sinto melhor.

— Enjoos?

— Poucos, apenas pela manhã.

— Febre?

— Nenhuma, Doutor. – respondeu Sam.

— Isso é bom. – o médico de meia idade fez algumas anotações em meu prontuário. – Luke você entende que não é porque está alguns dias tendo bons resultados que está totalmente curado?

— Entendo.

— Sua primeira parte foi feita, seu hemograma apresentou melhoras e a diminuição dos Blastos. Porém, como já havia comunicado para você na outra consulta teremos que realizar o transplante de medula. Seu nome já foi inserido, mas sabemos que muitas vezes encontrar um doador é complicado, além de ter todo tipo de procedimento. No seu caso, você passou pela fase de indução, sua biópsia mostrou a queda de Blastos, por isso estou permitindo que retorne para casa, retome seus afazeres, esteja ciente de suas dificuldades, você ainda pode, e deverá ter alguns empecilhos ou até mesmo sintomas. Isso é normal, passamos pela primeira fase, ainda não vencemos a guerra, você tem o compromisso de consultas periódicas semanais, assim como os exames até que realize seu transplante.

— Depois desse transplante, eu estou livre disso?

— Se for bem-sucedido e se a remissão for atingida, você entrará na fase de consolidação, ou seja, essa parte do tratamento será realizada para destruir qualquer célula leucêmica remanescente e prevenir a recidiva. Em todo caso Luke, o transplante indicado para você é o halogênico.

— Você pode falar numa linguagem que eu entenda? – questionei de forma rude.

— Luke, querido. O que o Doutor está dizendo é que no seu tipo é melhor uma medula doada por outra pessoa compatível com seu tipo de tecido. – Sam respondeu totalmente calma, acredito que ela já não estava mais se importando com minhas grosserias. – O outro tipo de transplante no seu caso não adiantaria, pois sua medula precisaria ser retirada antes de todo o procedimento quimioterápico para que tudo ocorresse bem.

— Quanto tempo demora esse procedimento?

— Isso varia muito, podemos achar um doador compatível amanhã, como daqui três semanas, cinco meses.

Suspirei pesadamente.

— Já assinei sua alta, seus pais estão esperando por você no quarto. Entendo que você deseja que as coisas sejam passadas diretamente para você, respeito sua vontade, como você é maior de idade o torna responsável por suas decisões, mas espero que você conte para sua família sobre seu quadro.

— Contarei.

Ele confirmou com um gesto de cabeça, guardando os papéis dentro de uma pasta.

— Espero que fique bem, mas já sabe...

— ...qualquer tipo de efeito, dores, qualquer coisa que sentir ligarei imediatamente para você. – completei.

— Isso mesmo garoto.


— Deixei seu quarto como você gosta.

Parei de ajeitar minhas coisas para encarar minha mãe parada na porta, seu rosto estava com expressão de cansaço, os cabelos castanhos que sempre estavam soltos e vistosos, hoje estavam presos em um rabo de cavalo simples. A maquiagem que sempre esteve presente, hoje era quase inexistente. Esse foi um dos motivos para que eu proibisse que qualquer notícia fosse passada para ela, minha mãe não estava aguentando esse peso em suas costas. Meu pai por outro lado, depois de minha internação não apareceu uma única vez no hospital, não esperaria menos. Desde que me entendo por gente ele é fechado e sério, sempre senhor Hendri Dinally.

— Obrigado mãe, é bom estar em casa. – sai de minha posição parado perto da cama para abraçar minha mãe. Ela me apertou contra o peito deixando um soluço escapar.

— Ah, Luke.

— Ei, chega. Não quero vê-la chorando. – retruquei com um sorriso.

Ela me soltou sorrindo, deixando-me sozinho no quarto.


Cerca de duas semanas após sair do hospital, eu tinha feito mais uma bateria de exames, meu quadro estava sempre em avanço, mesmo que mínimo e isso só pararia completamente quando tivesse o transplante, ainda não havia surgido um doador, eu continuava na lista de espera. Meus pais tinham feito o exame para verem se existia a possibilidade, mas ambos no último teste foram descartados. Minha chance estava em alguém por aí. Poderia ser até alguém que não havia doado a medula, que não sabia da importância que isso representava na minha vida ou na de outras pessoas que sofriam a mesma doença.

Decidi sair com Brian um sábado à noite para assistir a um jogo do Campeonato Estadual de Basquete de Beaufort, ele ficou parado em frente minha casa por duas horas esperando minha resposta. Poderia ser bom e eu estava com saudade de sair pelas ruas, por isso concordei. Após o jogo, fomos à beira do mar, vendo as pessoas passearem de carro de um lado para o outro, quando notei Alissya descendo a rua. Ela caminhava tranquilamente, sorrindo para todos que passavam ao lado dela, vestindo uma calça jeans surrada e uma blusa do The Breeders . Fiquei de costas, puxando a gola do casaco de couro para cima, disfarçando minha identidade.

— Ela é a menina do acidente. – comentou Brian ainda olhando Alissya descer a rua do centro.

— Eu sei.

— Até que ela é bem bonitinha.

— Cala essa boca, Brian. — resmunguei.

— O que foi? Estou constatando um fato, ela é gata. Marta comentou que ela se mudou com a família, estão morando perto do parque.

Olhei por cima do ombro vendo-a seguir para as ruas menos povoadas, fugindo da agitação do centro.

— Sabe, você sumiu...

— Nem comece com isso Brian, se vocês realmente tivessem se importado teriam ido ao hospital, afinal se para fofocar, Beaufort é tão boa, imagino que vocês já sabiam de minha doença.

Brian se calou por um instante.

— Desculpe cara, sério mesmo.

— Deixe isso para lá, – disse me levantando. – estou indo.

Olhei para onde Alissya sumiu, reconhecendo o caminho que ela estava fazendo. Subi em minha moto, coloquei o capacete, seguindo a mesma direção.

Não sei porque estava seguindo aquela garota, já que sempre me sentia desconfortável em sua frente, mas eu estava seguindo. Logo a vi sentada debaixo de uma enorme Nogueira, o que uma pessoa faria às nove horas da noite debaixo de uma Nogueira, com apenas uma lanterna e uma mochila? Deixei a moto deslizar, parando perto de onde ela estava.

— Por mais que Beaufort seja uma cidade pacata, acredito que ficar debaixo de uma Nogueira no final da noite pode ser perigoso, até mesmo para uma cidade como essa.

Ela sorriu ainda encarando um pequeno bloco apoiado nas pernas, mordeu levemente a ponta da caneta antes de olhar e jogar a luz de sua lanterna em mim. Um suspiro inaudível saiu de meus lábios, eu tinha me esquecido como ela era bonita, mesmo ali levemente iluminada por sua lanterna e o farol de minha moto, mentira! Eu não esqueci, passei dias repassando meu encontro com ela no hospital, as covinhas que apareceram em seu rosto quando sorriu, ou o jeito que jogava o cabelo para trás.

Eu não tinha sido nem um pouco educado naquele dia.

— Não acredito que irá aparecer algum assassino em série. – disse dando de ombros.

— Olha eu não teria medo disso, e, sim dos bêbados que podem cruzar seu caminho.

Só de pensar em algum marmanjo tentando se aproveitar dela, por estar em um lugar vazio e silencioso trinquei meus dentes de raiva. Beaufort não era conhecida pelos crimes hediondos, tivemos apenas dois assassinatos marcantes na cidade nos anos 80.

— Você está convidado a se juntar. – disse – Se quiser.

— Estou indo para casa.

Ela concordou com um gesto de cabeça. — Fico contente que tenha saído do hospital.

— Mas isso não me faz mais saudável. – retruquei.

— Bom, não. Porém te faz livre, livre para viver os dias, livre para fazer o que quiser.

Soltei uma risada sarcástica, não era a primeira vez que ouvia isso.

— Sabe Luke, esses dias eu escrevi algo... – ela interrompeu o que estava dizendo para mergulhar as mãos dentro da bolsa, procurando por algo. – Achei!

Segurei o riso, essa garota não podia ser normal.

Alissya levantou-se, tirou o resto de grama colado na parte de trás do jeans, caminhando em minha direção.

— Quero que fique com ele.

Olhou diretamente para mim com um brilho muito carinhoso.

— Leia somente em sua casa. — disse-me enfiando o pedaço de papel no bolso de minha jaqueta.

— Obrigado — respondi. Um pequeno nó estava se formando no meu estômago.

Alissya sorriu para mim novamente de maneira alegre.

— Eu posso te dar uma carona?

— Não é preciso, – murmurou. – por mais que sua oferta seja muito boa, acredito que sua moto não foi feita para esse tipo de coisa. – completou rindo.

Isso era verdade a Harley não tinha um banco de carona muito confortável, na verdade, o banco propriamente dito era quase inexistente.

— Acredito que posso dar um jeito.

Ela sorriu mais uma vez e eu fiquei me perguntando por que ela sempre via necessidade de mostrar os dentes? Por que sorrir sempre?

— Agradeço, mas esta uma noite lindíssima, voltarei caminhando tranquilamente.

— Se é assim. – disse com um dar de ombros, ligando a moto.

— Você não é nada do que aparenta, Luke Dinally.

Olhei novamente para Alissya pegando suas coisas do chão. – Por que diz isso?

— Porque você pode tentar ser grosseiro, rude, ou o que possa fazer para afastar as pessoas de você. Eu entendo, você está ferido, com medo até, mas isso não te torna aquilo que tenta parecer.

— Você não me conhece.

— Talvez não, — disse sorrindo. — ou talvez eu veja mais do que você deixa transparecer.

Fiquei parado encarando aquela menina colocar a bolsa no ombro esquerdo e se afastar voltando para o centro movimentado de Beaufort.

Que criatura mais... O que Alissya era e o principal, por que mexia tanto comigo a ponto de me arrancar a fala?


“Durante a nossa vida, conhecemos

Pessoas que vêm e que vão,

Outras ficam, ficam e vão ficando.

Outras somente vêm e vão.

Existem também aquelas que, vêm ficam e depois vão.

Mas existem aquelas que vêm e se vão

com uma enorme vontade de ficar, aconchegar, de morar

Apenas deixe-as entrar.”


Tirei os olhos do papel, as palavras já decoradas rondavam pelo meu cérebro, me deixando ainda mais intrigado em quem era Alissya Rayven.

— Luke?

Levantei os olhos encarando meu pai parado na soleira da porta.

— Trouxe seus remédios.

— Claro.

Levantei, arrumando os travesseiros na cama. Meu pai depositou uma pequena bandeja ao meu lado, já se virando para sair, mas parou por um instante.

— Eu vi que saiu hoje com seu amigo.

Pronto, lá vinha o general Hendri Dinally me passar um belo de um sermão.

— Sim, fui ao centro.

Ele se virou encarando-me. – Fico contente que esteja retomando sua vida.

Fui pego totalmente de surpresa.

– Eu também pai, eu também.


Capítulo 8

Luke Dinally


— É bom te ter de volta filho.

Sorri ajeitando a touca na cabeça, à parte incomoda para mim, ainda era a queda do meu cabelo. Sei que um dia eles voltariam a crescer, quem sabe quando toda a droga de medicamentos pesados saísse do meu corpo. Mas ainda assim era estranho andar pela cidade que me conhecia desde bebê e as pessoas ficarem te encarando, cochichando sobre você quando acreditavam que você não poderia ouvir.

— É bom estar por aqui, e que me lembre eu tenho uma dívida para pagar.

Tony bateu com sua mão gorda e pesada em meu ombro. – Já estava na hora, sei que você não vai atrair tanta mulher para meu restaurante com essa sua nova cara de ovo. Porém, é ótimo vê-lo fora de casa finalmente e confesso que você está mais bonitinho assim, era coisa de mulherzinha você ficar jogando o cabelo toda vez que um rabo de saia aparecia por aqui.

— Você não tem outra pessoa para encher o saco, Tony?

Ele soltou uma grande gargalhada.

— Vai para o trabalho, você está me fazendo perder dólares.

Dei a volta no balcão pegando um avental do Tomillos na segunda prateleira. Era uma quarta-feira atípica, havia poucas mesas livres, sua maioria era adolescentes aproveitando o final da tarde. Eu me sentia bem, depois que sai da internação foram poucos dias com sintomas, estava me sentindo bem, entre tantas coisas que poderiam dar errado nesse momento, eu estava bem.

— Vamos Luke, mesa sete está esperando. – gritou da cozinha.

— Ele é sempre assim. – uma garota resmungou voltando da aérea dos clientes.

Levantei os olhos vendo a garota em si, seus cabelos estavam presos em um coque bagunçado. Uma maquiagem pesada cobria todo seu rosto.

— Vejo que conheceu a Estranha. – Tony empurrou uma bandeja em meus braços.

— Meu nome é Esten. – retrucou a menina.

— É tanto faz. – disse voltando para a cozinha.

— Tony é assim mesmo, logo ele começa a chamá-la pelo seu nome.

— Não estou nem aí, só quero a grana para sair dessa cidade.

Eu compreendia seu pensamento, eu mesmo pensei isso diversas vezes, subir na moto e sumir pelas estradas, parando de cidade em cidade, mas isso ficou para trás, como todo um planejamento de vida. Passei pelo balcão indo até a mesa sete, deixando os pratos do casal, o sino da porta tocou anunciando um novo cliente. Pelo canto do olho vi Esten passar por mim em direção a eles.

— Tenham um bom apetite.

Depositei a bandeja no balcão seguindo para as mesas opostas, retirando os pratos e copos, estava na metade do salão quando escutei a voz dela. Eu fiquei com um buraco na boca do estômago, eu não queria me virar.

— Essa mesa aqui está ótima. – a voz de Alissya chegou como um sussurro até mim.

— O que você irá comer, nossa eu estou com muita fome. – a outra garota sussurrou.

Continuei arrumando as mesas, me mantendo de costas.

— Você está sempre com fome, Marta.

Marta, Brian tinha comentado sobre essa tal Marta quando saímos e também tínhamos encontrado com ela uma vez no bar. Era difícil esquecer seu jeito espalhafatoso e o fato que se jogava para todos que usavam calças.

Eu sabia que meu “esconderijo” não demoraria muito para ser descoberto, mesmo que Tony não tivesse gritado meu nome fazendo a intrigante Alissya olhar pelo restaurante procurando por mim. Ela iria me ver, de qualquer jeito. Virei em sua direção sendo pego por aqueles olhos castanhos profundos, sentindo como se tivesse um buraco de um tamanho de uma bola de boliche em meu estômago.

Ela fez um pequeno aceno com a mão, enquanto sua amiga tagarelava, por um instante a amiga seguiu o olhar de Alissya, encarando-me.

Virei parando em outra mesa retomando minha atividade.

— Luke Dinally? Não acredito. – sua amiga disse alto o suficiente para eu ouvir.

— Você o conhece? – Alissya perguntou.

— Quem não conhece Luke Dinally? Ele era o melhor jogador de basquete da cidade, os Hunther venceram diversas temporadas com Luke como Armador principal do time. Matt meu namorado sempre teve uma espécie de desavença com ele, foi por causa da doença dele que Matt ganhou a bolsa na faculdade como melhor Armador, sabe, não que eu deseje isso para ninguém, mas... Sabe, você é nova aqui, acredito que não quer logo se meter com um problema.

— Como assim? – escutei Alissya questionar.

— Ah, você sabe, Dinally é um cara doente. Poucos dias de vida, pelo menos é isso que falam.

Deixei a bandeja cair de minhas mãos fazendo um barulho enorme pelo restaurante, chamando atenção para mim. Eu sabia que ela estava me olhando, sabia que todos me encaravam, todos sabiam que o doente estava provavelmente sendo atrapalhado , derrubando as coisas por não aguentar uma simples bandeja. Levantei os olhos encarando Alissya, sua boca estava um pouco aberta como se ela soubesse que eu ouvi toda sua conversa, um pouco mais adiante reconheci um grupo de garotos que estudaram comigo, no meio deles estava Belina e Bianca, sussurrando e me encarando de volta.

Meus pés fraquejaram por um momento.

— Luke? Filho, você está bem? – Tony veio em meu socorro, apertando meu antebraço como se tivesse pronto para me segurar se eu passasse mal.

— Eu preciso de um pouco de ar. – disse trincando o maxilar.

— Saia pela porta dos fundos, não deixarei que ninguém apareça por lá.

Praticamente forcei meu corpo a correr para os fundos do Tomillos, por um momento eu acreditei que aguentaria, acreditei que estava confiante e pronto para ter a cidade apontando o dedo, mas eu não estava, eu não estava preparado para ver os outros cochichando e apontando o dedo para mim. Encostei na moto respirando fundo, deixando o ar entrar em meu corpo e sair novamente, repetindo o processo até que a fraqueza fosse realmente embora.

— Luke?

Eu não me virei sabia que seria ela, sabia que ela queria se desculpar por sua amiga.

— Me deixe em paz, Alissya.

— Você não sabe mesmo como ser educado com as pessoas?

— Você sabe perceber quando está sendo inconveniente nos lugares? Se veio se desculpar sobre sua amiga, não perca seu tempo. Ela está certa, procure alguém que não seja um problema para você. – disse me virando.

Alissya fechou a cara. – Eu só queria saber como você estava.

— Estou ótimo.

Ela fez menção de ir embora, mas retornou, chegando mais perto de mim. – Sua doença não te dá motivo para ser um babaca com as pessoas, agora se você não tem educação não culpe sua doença.

Desviei os olhos, encarando os carros passando pela rua.

— Muitas pessoas passam por momentos que não desejamos nem para nosso pior inimigo. Mas tenho certeza que nenhuma delas ignora o mundo ou decide ser grosseiro porque está doente.

— Você não sabe de nada.

— Pode ser, pode ser que eu não conheça você, que não tenha realmente motivos para perder com um cara que quer descontar sua raiva no mundo.

Senti ela aproximando mais de mim. – Ou talvez eu sabia o porquê você tenta mostrar algo que não é, querer afastar as pessoas porque você acredita sinceramente que vai morrer não é o que fará com que elas se afastem, senão nem seus pais deixariam você entrar em casa.

Virei-me dando de cara com Alissya, praticamente centímetros de mim, tendo apenas minha moto como barreira, seus olhos castanhos brilhavam pelo reflexo do sol.

— Que tal começarmos de novo? – perguntou abrindo um lindo sorriso.

Suspirei olhando para aquela garota que conseguia matar com um sorriso.

— Meu nome é Alissya, mas isso você já sabe, cidade pequena é meio previsível. – acrescentou uma piscada para mim.

— Sério, isso?

— Sim. – disse mantendo sua mão estendida em minha direção. – Se você não pegar minha mão como um bom cavalheiro vou achar que quer ser rude, e isso não é nada legal.

Peguei sua mão, sentindo a pele macia sobre a minha. Alissya tinha cheiro de morango, somente agora centímetros dela eu reparei em seu cheiro de frutas vermelhas.

— Luke.

— Luke é um nome legal, parece de cachorro, mas admiro a coragem dos seus pais.

Nem mesmo eu consegui deixar de sorrir depois dessa e Alissya percebeu. — Olha ele sorriu!

— Não se acostume.

Ela me observou sorrindo. – Pode ser, mas guardarei esse momento.

Revirei os olhos.

— Você pode até não acreditar, mas vai ter um dia que você vai gostar de mim e nesse dia seu cérebro vai quase fritar.

— Eu duvido, você é irritante.

— Acredito que é uma qualidade. Algumas pessoas tendem a serem bonitas, atléticas, outras mandam muito bem em algo. Eu sou irritante.

Olhei para aquela garota não acreditando, de onde ela havia tirado essa ideia que não era bonita, ela era a garota mais bonita que eu havia visto. Alissya veio em minha direção, apoiando as mãos sobre meu peito me fazendo congelar no lugar, deu um beijo em minha bochecha e sorriu.

— Até mais garoto problema.

Ela voltou para o restaurante ainda sorrindo e por todo momento que se afastava deixando-me pregado no chão pela segunda vez, eu acompanhei seus movimentos até sumir de minhas vistas.


Capítulo 9

Alissya Rayven


Marta não era a melhor pessoa de Beaufort, na verdade ela tinha grande facilidade de falar mal das pessoas e depois soltar um singelo sorriso como se fosse a garota mais doce.

Mas uma coisa que Marta era boa, é saber sobre as fofocas e ainda como ela fazia questão de falar “namorar o Armador Principal” como se isso a deixasse um pouco mais inteligente, ou menos falada. Marta foi a primeira pessoa que conheci quando estávamos nos mudando para Beaufort, sobrinha do padre Maciel, cujo acreditava fielmente que ela era uma moça religiosa e respeitável. Bem, nessa parte nem tanto. Porém foi através dela que em uma manhã ajudando minha vizinha Sra. Reynalds em sua floricultura que Marta entrou, puxou assunto e me disse onde Luke Dinally morava. Eu ainda conhecia pouco da cidade, mesmo tendo andado bastante por aí, depois de passar a tarde organizando as pilhas de fichas e organizar a floricultura peguei a bicicleta e fui ao endereço que Marta havia me passado.

Segundo ela, Luke morava num bairro de casas grandes e conservadas, assim como o senhor Dinally era um homem sério e muito respeitado na cidade e sua mãe era tão doce e gentil que as pessoas tinham prazer em cumprimentá-la na rua. O percurso durou pouco mais de dez minutos, parei no canto da calçada admirando a bela casa em minha frente, um amplo jardim decorado com flores de todos os tipos, um pequeno caminho de pedras levava até a porta.

Desci da bicicleta indo em direção a porta, eu sabia que corria o risco de Luke me expulsar daqui com sua grosseria, mas eu estava disposta a arriscar.

Toquei a campainha, uma senhora abriu a porta. Ela tinha olhos verdes como Luke, seus cabelos estavam soltos em volta do rosto, seu vestido ia até seus joelhos. Realmente ela era linda.

— Posso ajudá-la?

— Sim, desculpe. Sou Alissya. – disse estendendo minha mão para ela.

— Prazer Alissya, Ligia.

— Eu sou amiga do Luke, queria saber como ele está. – pigarreie. – Ele não tem aparecido no Tomillos.

— Ah, querida, entre. Fico muito contente que Luke esteja fazendo novos amigos. – ela sorriu toda simpática, permitindo que entrasse em sua casa.

— Muito obrigada.

Foi difícil conter minha expressão de espanto, a casa era ainda mais elegante do que lá fora, observei os quadros na parede, diversas fotos de Luke em diversos momentos, sozinhos ou com os pais, todas as fotos ele sorria.

— Meu Luke era um menino sorridente.

Voltei meus olhos para a senhora Dinally, vendo que por trás da maquiagem leve, dos cabelos arrumados ali estava uma mãe cansada, cansada de esperar, cansada de confiar que a doença regrediria e sobre tudo, o peso que estava levando nas costas.

— Quem está aí?

Virei ouvindo a voz de Luke vindo pelo pequeno corredor, logo ele estava parado me encarando.

— O que você está fazendo aqui?

Ele não estava com a touca preta de sempre, sua cabeça estava à mostra, os olhos estavam com olheiras mais profundas e ele se mantinha meio curvado, ele tinha piorado. Esse era o motivo porque não estava mais indo no Tomillos.

— Isso é maneira de tratar sua amiga? Não ligue para ele Alissya, vou colocar mais um lugar na mesa, você janta conosco.

— Não precisa! – Luke logo retrucou.

— Eu adoraria.

Ele me encarava com os lábios encrespados, esperou sua mãe sumir em direção ao outro cômodo para jogar sua fúria em cima de mim.

— O que você quer?

— Eu vim te ver.

— Como conseguiu meu endereço?

— Cidade pequena. – disse num dar de ombros.

Ele ainda me analisava, ficamos alguns segundo trocando olhares até que ele suspirou apertando a ponte do nariz entre os olhos. – Espero que goste de sopa, é isso que temos ultimamente.

— Por mim, está ótimo.

Ele respirou fundo seguindo pelo corredor, indo para onde sua mãe havia sumido poucos minutos atrás.

Examinei demoradamente os quadros, vendo uma parte de Luke em cada foto pendurada na parede, como se cada um contasse um dia, um momento feliz dele. Muitas, ele estava acompanhado de uma bola de basquete, tinha fotos de sua formatura no colégio ao lado de uma garota estilo capa de revista, fotos dele fazendo caretas, ou simplesmente olhando para câmera. Luke era feliz, ele só precisava encontrar o caminho de volta.

Os móveis pareciam esculpidos a mão, combinando perfeitamente com o ambiente em que estavam, como se fosse especificamente para aquele lugar. Segui para o final do corredor dando de cara com uma enorme sala de jantar, a Sra. Dinally arrumava a mesa com perfeição, na cabeceira o Sr. Dinally lia tranquilamente seu livro, Luke por outro lado estava olhando seriamente para os próprios dedos.

— Luke cadê seus modos, apresente sua amiga para seu pai. – a mãe de Luke saiu da cozinha carregando uma enorme vasilha decorada, colocando-a no centro da mesa.

— Pai, essa é Alissya Rayven.

O pai de Luke abandonou a leitura, deixando o livro ao seu lado, olhou-me por alguns segundos antes de abrir um singelo sorriso.

— Seja bem-vinda Alissya. Sente-se.

— Muito obrigada, senhor.

— Hendri, apenas Hendri.

Luke encarava de seu pai para mim, como se estivesse vendo dois completos estranhos em sua frente.

— Conte para nós como você conheceu Luke, ele não costuma falar muito de sua vida. – a mãe de Luke disse.

Pelo canto do olho vi que ele revirava os olhos ao mesmo tempo em que tirava do bolso uma touca preta, cobrindo sua cabeça careca.

— Nos conhecemos no centro.

— Você é nova na cidade. – constatou Hendri.

— Sim, me mudei faz poucos meses, na verdade, todos pelo visto já me conhecem, sou a menina do acidente. – disse em tom irônico.

Morar em cidade pequena tinha disso, algumas pessoas me chamavam como a “menina que sofreu o acidente” isso era péssimo, mas eu entendia essa alma fofoqueira sulista delas.

— Acidente? – a mãe de Luke trocou um olhar com seu marido, voltando-se para mim.

— Sim, quando estávamos na estrada um carro nos atingiu, alguns jovens bêbados. Não que eu me importe mais com isso, sei que o carma vai persegui-los.

Luke engasgou, cuspindo a sopa para todo lado na mesa.

— Luke querido, tudo bem?

— Sim.

Ele olhava diretamente para mim, fixando seus olhos verdes somente em mim.

— Esta sopa está deliciosa Sra. Dinally. – disse quebrando aquela conexão, eu estava começando a ficar sem ar.

— Ligia, nada de senhora.

— O seu pai trabalha em quê?

— Por favor, pai.

— Estou apenas querendo saber mais da sua amiga, algum problema nisso?

Luke não respondeu, apenas soltou um suspiro resignado.

— Meu pai trabalhava na prefeitura de Dallas, na verdade, ele continua. Ele trabalha com exportação e minha mãe era musicista, mas teve que abandonar a carreira para tomar conta de mim e agora de minha irmã Jules.

— Nossa, vocês moravam em Dallas, o que os fez vir para Beaufort? Você pensa em fazer faculdade na Universidade de Beaufort?

— Na verdade, não. – sorri repousando a colher ao lado do prato. – Eu pretendo ir para Juilliard ou Columbia, estou esperando a carta de admissão.

— O sonho de Luke era ir para UCLA, quando ele descobriu a doença ele tinha um jogo muito importante.

— Chega. – Luke sussurrou.

— Foi uma verdadeira perda, Luke sempre foi o melhor jogador do colégio e tinha vaga garantida na UCLA, o próprio treinador ficou arrasado de colocar outra pessoa no lugar dele...

— Eu disse chega, mãe! – Luke explodiu ficando de pé, os punhos cerrados, tremendo minimamente.

O silêncio tomou a mesa, como se ao ficar de pé Luke tivesse aberto um enorme buraco na sala. Engoli em seco me levantando.

— Muito obrigada pelo convite para o jantar, senhor e senhora Dinally.

— Apareça quando quiser. – Hendri disse de forma baixa. – Peço desculpas por esse rompante de Luke.

— Não precisa se desculpar, na verdade, os planos de Luke podem ter sido adiados, mas como diz uma pessoa muito importante para mim, devemos sonhar sempre, viver sonhando.

— Eu levo você até a porta. – Luke disse dando a volta na mesa.

Atravessei a porta da frente parando para olhar o céu cheio de estrelas antes de me virar para Luke. Ele estava com as mãos dentro dos bolsos da calça, seu olhar me avaliava.

— Sua mãe é encantadora. – disse.

— Suponho que sim.

Suspirei pesadamente me virando, caminhando de volta para minha bicicleta.

— Alissya?

Virei-me novamente para ele.

— Obrigado pelo poema.

— De nada, Luke.

— Alissya?

Mordi o lábio inferior tentando segurar o sorriso que queria despontar em minha boca ao escutá-lo chamando meu nome. – Sim.

— Obrigado por ter vindo, eu realmente gostei.

— Quase nem percebi. – brinquei, conseguindo arrancar dele um quase sorriso, mas para mim aquele sorriso querendo romper a fachada séria que ele impunha, era como um prêmio.

— Costuma pensar no futuro, Luke? – perguntei.

Ele pareceu surpreso, uma ruga se formou em sua testa.

— Não mais.

— Não imagina onde você estará daqui um ano, qual vai ser a primeira coisa que realizará depois de ficar curado?

— Não tenho mais sonhos Alissya, não tenho mais planejamentos, se é isso que você quer saber.

— Todos têm sonhos.

— Eu não tenho, acredite.

Eu havia percebido uma coisa, entre tantas com Luke, toda vez que um assunto o desagradava ele franzia o nariz.

— Tem sim, você só precisa olhar mais para o horizonte em vez dos próprios pés. – disse subindo na bicicleta.

— Isso é alguma daquelas suas metáforas malucas?

— Talvez sim, talvez não. Boa noite, Luke.

— Você é maluca. – gritou enquanto eu me afastava.

Olhei para trás abrindo um enorme sorriso, ele tinha sonhos e eu estaria aqui para ajudá-lo a vê-los.


Capítulo 10

Luke Dinally


Deitado em minha cama, meus olhos fixos no teto branco sem graça, sem pensamentos rondando-me, sem a mínima vontade de adormecer. Eu apenas estava ali, olhando para o teto do meu quarto, piscando quando meus olhos já estavam secos demais por encarar o nada.

Escutei um barulho do lado de fora, um barulho alto que atravessou minha janela fechada. O barulho persistiu, era como se alguém escalasse a parede de minha casa. Suspirei ignorando, devia ser apenas um gato arruaceiro. Olhei para o relógio em minha cabeceira vendo que passava das duas da madrugada, meus olhos desviaram-se para a janela vendo uma sombra parada ali, a lanterna iluminou meu quarto.

— Luke?

Sentei na cama não acreditando em meus ouvidos. Não era possível.

Sai da cama, acendi o abajur, abri a janela vendo Alissya apoiando-se no parapeito, seus olhos iam de momentos em momentos para o chão como se estivesse analisando qual altura teria.

— Será um belo tombo. – disse lendo seus pensamentos.

— Não sou muito fã de altura, agradeceria se você me ajudasse.

Suspirei terminando de abrir minha janela, passei meu braço por sua cintura puxando-a para dentro do quarto.

— Posso saber o porquê de ter escalado minha janela? – questionei com a sobrancelha erguida. – você tem sorte de não ter batido no quarto de meus pais.

— Me pareceu uma boa ideia quando pensei. – suas bochechas estavam vermelhas pelo frio que ela devia ter enfrentado até aqui. – E eu raciocinei que seria mais provável que a janela dos seus pais ficasse virada para frente da casa. – completou dando de ombros.

Voltei para a janela, fechando-a.

— O que você está fazendo?

— Fechando a janela para que não congelemos aqui dentro. – retruquei.

— Seu quarto é bonito e organizado. – disse surpresa.

Olhei para meu quarto, depois voltando meus olhos para ela.

— Você esperava meias jogadas, toalha fedida e cuecas sujas pelo chão?

— Esperava algo assim. – disse com um sorriso.

Alissya andou pelo meu quarto, observando minhas coisas, parou em frente à prateleira dos meus troféus, mexeu nos poucos livros que tinha, andou mais um pouco sorrindo para mim, e então sentou-se na ponta de minha cama.

Soltei um suspiro. – Está um pouco tarde, você não acha?

— Talvez. O que você fazia em uma sexta-feira à noite?

Ergui a sobrancelha, encostando-me no parapeito da janela.

— Sei lá, saía com meus amigos, ficávamos de bobeira pela cidade, ou íamos em alguma festa.

— Faz um bom tempo que não vou a uma festa, minhas amigas em Dallas adoravam se meter em confusões.

— Seus pais sabem que você saiu por aí?

— Meu pai deve ter escutado a porta da frente se fechar. – disse dando de ombros. – Será que hoje está tendo alguma festa pela pacata Beaufort?

Cocei o pescoço olhando para aquela garota. – Provavelmente.

— Que tal irmos? – perguntou animada.

— Não acho que estou sendo bem visto em festa no momento. – retruquei.

— Bobagem!

— Isso é normal? – questionei.

— O que é normal? Ir a festas sem se importa como as outras pessoas olham para você? – ela andou até a cadeira de minha mesa de estudos, sentando-se nela.

— Não. O fato de você sair de casa e seu pai não ir correndo atrás de você.

— Meu pai confia em mim. – disse balançando a cadeira, totalmente à vontade em meu quarto.

— Uma mãe ficaria louca da vida se sua filha saísse às duas da madrugada pela cidade.

— Minha mãe não é lá muito preocupada comigo.

Vi o sorriso dela esmorecer um pouco. – Relacionamento complicado?

— Um pouco.

— Sei como é isso.

Passamos alguns minutos em silêncio nos olhando até que ela ficou de pé, pegou meu casaco jogando-o em minha direção.

— Venha, vamos ver as estrelas Dinally.

— Você deve ter enlouquecido, lá fora está congelando.

— Vamos lá Dinally, não seja covarde.

Respirei fundo olhando para aquela garota, Alissya me tirou de frente da janela já a abrindo, colocando uma das pernas para fora.

— Só tome cuidado para não cair. – retruquei vestindo meu casaco.

Ela passou ficando de pé no telhado olhando para mim. Deus, o que eu estava fazendo?

Passei pela janela vendo Alissya subindo pelo telhado, sentando-se na parte mais alta, com certeza ela era maluca. Andei devagar pelo telhado, sentando-me ao lado dela.

— Aqui tem uma vista linda.

Olhei para frente, meu bairro tinha as casas espaçadas, quintais grandes, para mim era apenas uma vista comum.

— Olha. – disse apontando para o céu.

O céu estava escuro, mas ao mesmo tempo brilhante repleto de estrelas.

— Alguns estudiosos dizem que você pode prever coisas através das estrelas. Que as estrelas dizem algo para você, lógico que seriam anos de estudos para isso, mas eu me contento em admirá-las.

— Isso é “balela”.

Ela suspirou. – Como pode ter uma visão dessas em sua frente e não ver a beleza?

— Acredito que não tem motivos para eu ver a beleza em tudo ultimamente. – retruquei.

— Sempre tem um motivo para se ver a beleza.

— Eu tenho Leucemia, Alissya.

Ela soltou um suspiro chegando mais perto, apoiou seu queixo em meu ombro me pegando totalmente de surpresa. – Você está vivo Luke Dinally, tem um propósito para tudo isso. E antes que retruque com mais uma resposta mal-educada, observe as coisas boas que a vida traz para você.


Por muita insistência de meus pais eu segui com eles para a missa de domingo. Estar presente escutando durante uma hora o culto do padre Maciel chegava a ser pior que os sintomas do câncer e por falar neles, os sintomas tinham me consumido depois de minha aventura de trabalhar no Tomillos, mal me alimentava, tudo que entrava encontrava uma maneira de sair, assim como comecei a ter sangramentos, por esse motivo e mais alguns, meus pais insistiram que fosse a missa antes de ser internado.

Entrei na igreja encarando meus próprios pés, não seria nada agradável ver o rosto do povo de Beaufort me encarando.

— “Esta é a confiança que temos ao nos aproximarmos de Deus: se pedirmos alguma coisa de acordo com a sua vontade, Ele nos ouve. E se sabemos que Ele nos ouve em tudo o que pedimos, sabemos que temos o que Dele pedimos” — recitou o padre.

Meus pais decidiram se sentar na terceira fileira, na direção do altar onde o padre estava parado, eu não levantei meu olhar nem por um segundo, puxei a touca mais para baixo e fiquei encarando meus próprios dedos.

— Algumas coisas para acontecer não requer somente da nossa fé em Deus, é preciso você ir buscá-las meus filhos, Deus sempre nos mostrará nosso caminho até Ele, ou até seu objetivo, mas é preciso perseverança para alcançá-los. Ele conduzirá conforme a vontade Dele, nada acontecerá se você não sair do lugar. Você busca melhoria, mexa-se para isso, você busca a cura? O que você está fazendo para obtê-la?

Suspirei, fechando os olhos por um segundo. Claro, Deus somente me deu a doença, para a cura eu preciso correr, buscar e conquistá-la. Quanta banalidade!

— Hoje estamos com uma apresentação especial, venha minha filha. – padre Maciel fez uma pausa.

O som que tomou a pequena igreja aguçou minha curiosidade, fazendo erguer o olhar a sua procura, era uma melodia calma, ela me transmitia isso, me envolvia como se estivesse somente eu e a música naquela igreja. Meu olhar se fixou no lado oposto do altar, vendo uma garota de costas tocando um violino, ela parecia ter tanta intimidade com o instrumento que eu fiquei hipnotizado, seu cabelo preso no alto da cabeça balançava conforme ela tocava, a música ficou mais intensa, mesmo sua melodia sendo suave. Era como se aquela garota despejasse todo seu sentimento no violino, ela era o encantador e eu por um instante fui a serpente.

Quando ela parou de tocar eu ainda estava encarando, as pessoas aplaudiram e ela se virou, fixando seu olhar diretamente em mim. Como se tivesse sentido minha presença.

Alissya sorriu, guardou seu instrumento na maleta e sentou-se na primeira fileira ao lado dos que deveria ser sua família, deu uma pequena espiada por cima do ombro em minha direção, mas logo retornou seu olhar para frente respondendo algo que seu pai dizia. Olhei para sua mãe, sentada com uma menina pequena no colo, ela não estava nem perto de esboçar alguma reação, muito pelo contrário, seus lábios estavam encrespados e seu olhar se tornava duro ao mirá-lo em Alissya.

— Aquela não era sua amiga, filho? – minha mãe sussurrou em meu ouvido.

— Sim, ela mesma.


Parei em frente à porta do quarto de Issac, ele estava paquerando descaradamente a nova enfermeira.

— Eu sou a melhor coisa que ocorrerá em seu plantão Lucia, pode confiar.

— Esse sem noção está causando problemas? – perguntei rindo.

A enfermeira sorriu para mim, terminando de limpar o acesso de Isaac.

— Poxa meu amigo, você atrapalhou nosso romance.

Sacudi a cabeça em negativa, mas um sorriso estava presente em meus lábios. – Você deveria tomar uma injeção na língua, quem sabe assim para de falar bobeiras.

Entrei mais em seu quarto empurrando a bomba de quimioterapia.

— Como você está? Achei que já teriam feito o transplante.

Sentei na poltrona ajeitando toda a parafernália que me acompanhava. – Não, estão fazendo um teste com um possível doador, mas por enquanto eu tenho que ficar aqui.

— Bom, eu farei esse sacrifício de ser sua companhia. – disse Isaac. – eu sei, não precisa chorar, nem agradecer.

— Você é patético. – brinquei.

Uma batida na porta chamou nossa atenção.

— Vejo que meus rapazes estão se divertindo, mas vou ter que estragar esse momento. – Sam dizia sorrindo.

— Poxa Sam, primeiro nosso amigo cabeça de ovo aqui estraga minha cantada e agora você interrompe um papo de homem. – ele fez um barulho de desagrado com os lábios, nos fazendo rir. – Precisarei informar o gerente do hotel, isso não está dando certo.

— Isaac, pare de cantar as novas enfermeiras. – Sam advertiu rindo.

— Eu não consigo, é meio difícil quando elas miram os belos seios em minha direção.

— Isaac!

Eu soltei uma verdadeira gargalhada, surpreendendo até a mim mesmo.

— Você também mocinho vamos logo, antes que o médico me dê uma chamada.


— Você está com febre, por isso fique de repouso, o enfermeiro já veio colher seu hemograma e os outros exames?

— Sim.

— Ótimo, hoje já saberemos se a indução realmente foi cem por cento aproveitada.

— O que seria isso?

— É um exame para nos certificarmos que a remissão deu certo, ou seja, que você, seu corpo tenha o mínimo de câncer possível, o mínimo de Blastos. Assim podemos autorizar o transplante, seu doador também está fazendo os exames, se tudo correr bem, o transplante será feito.

Eu me sentia aliviado com isso, mas será mesmo que eu poderia acreditar que logo estaria livre dessa doença? Todos os dias eu fazia exames de sangue, exames do fígado, alguns sintomas se intensificaram nesse segundo ciclo.

— Você tem que tomar os devidos cuidados Luke, pois nesse momento seu corpo está propício a pegar infecções, você não pode estar nem no mesmo ambiente que uma pessoa gripada. Eu vou deixar em sua ficha para que a enfermeira Samanta venha para seus passeios, é importante para você sair da cama, fazer seus músculos e circulação se agitarem.

— Tudo bem.


— Você precisa concordar, esse filme é bom. – Isaac falou pela milésima vez sentado na poltrona.

Hoje eu estava pior que os outros dias, estava com falta de ar, - que me tomava em todos os movimentos - tomando antitérmicos de três em três horas, pois a febre não cedia. Logo cedo eu soube que meu possível doador nos últimos testes foi descartado e meu nome novamente inserido na lista de pessoas aguardando pela medula óssea.

— Esse filme é péssimo. – sussurrei de forma lenta.

— Eu gosto.

Virei meu rosto seguindo a voz, dando de cara com Alissya.

— Oi moça bonita. – Isaac disse todo animado.

— Oi Isaac, como você está hoje?

— Sempre bem, um dia de cada vez. – Isaac disse sorrindo.

Bufei virando o rosto.

— Isso é muito bom. – Alissya entrou mais em meu quarto, limpou as mãos com álcool, colocou o avental que estava ao lado da porta cumprindo as normas.

Quando ela se virou para mim e me pegou encarando-a, Alissya abriu um sorriso e por um instante eu me esqueci de onde estava, eu só foquei em seu sorriso.

— Como você está, Luke?

Dei de ombros.

— Ah esse daí está mais ranzinza do que tudo, – Isaac disse olhando para a TV. – ainda mais hoje que descobriu que seu doador não pode ajudá-lo.

— Doador?

— Eu preciso fazer um transplante de medula. Meus pais por algum motivo não podem me doar e a pessoa que tinha tudo para ser um bom doador, não é mais. – disse.

Alissya pousou sua mão na minha.

— Não me venha com aquelas metáforas malucas.

Ela riu. – Você não falou comigo depois da missa.

— Você toca muito bem.

Ela manteve o sorriso, mas não era um sorriso tão feliz como os outros.

— Você não gosta de tocar? – perguntei.

— É minha paixão.

— Por que sinto um “mas”?

— Minha mãe era musicista, ela teve seu sonho interrompido por mim, sua carreira estava no auge, ela tinha tudo para estar nas maiores apresentações, mas descobriu que estava grávida. E para ela, eu seguir esse dom, essa paixão é como se fosse uma afronta.

— Isso é uma merda.

— Sabe, nem todos temos vidas perfeitas, na verdade duvido que tenha um ser humano no mundo que seja completamente feliz. Nada é perfeito Luke, estamos sempre sendo postos a provas, a obstáculos. É assim que crescemos. – ela suspirou. – Veja, eu posso não ser aceita na Juilliard, já se passaram meses e ainda não recebi admissão para o teste.

— Teste?

— Sim, mesmo sendo aceita na faculdade eu tenho que passar na audição, irei ser posta à prova por quatro jurados.

— Você vai passar. – disse.

— Quem sabe. – retrucou dando de ombros.

— Eu sei. – disse sério.

— Você está sendo positivo, Luke Dinally?

Revirei os olhos. – Não se acostume.

— Mas vou guardar esse momento. – repetiu o que havia falado na primeira vez que sorri de sua piada.


Não tinha percebido que havia adormecido, minha boca estava seca e meu braço um pouco dormente. O sol já estava se pondo, deixando apenas pequenos rastros passarem pela janela e tocarem a cama. Peguei a garrafinha de água que sempre estava próximo de mim, tomando uma boa parte do seu conteúdo.

— Ela gosta de você.

Olhei para o pé da cama, Isaac estava com um casaco por cima do avental do hospital, sentado confortável em sua cadeira de rodas.

— Quem?

— Não se faça de tolo, você sabe que ela gosta de você.

Olhei em direção a Alissya que dormia apoiada em minha cama, sua mão estava próxima a minha, como se tivéssemos adormecido de mãos dadas.

— E você gosta dela. – Isaac constatou.

— Acredito que seus remédios estejam muito fortes. – respondi de forma irônica.

Isaac esboçou um sorriso. – O único cego aqui é você, você gosta dela Luke, apenas não quer enxergar isso.

Olhei novamente para o rosto sereno de Alissya dormindo, eu não podia dizer que ela não mexia com algo dentro de mim, por que estaria mentindo. Porém eu não sabia se isso de fato era gostar dela, poderia ser apenas empatia por tentar de todas as formas ser minha amiga.


Capítulo 11

Alissya Rayven


Acordei com uma dor aguda no pescoço pela forma que adormeci ao lado de Luke, ainda podia sentir a sensação de sua mão na minha. Mas quando abri realmente os olhos ele não estava lá, sua cama estava vazia e fria.

Levantei depressa dando a volta no quarto, Isaac estava em sua própria cama, caminhei até seu quarto parando em sua porta, pronta para bater.

— Entre Alissya.

— Eu acabei dormindo. – confessei sem graça.

— Nunca mais assisto filme com vocês, me deixaram praticamente falando sozinho.

— Onde Luke está?

Issac abaixou a revista de palavras cruzadas, deixando-as sobre as pernas, olhando para mim. – Luke foi fazer um exame.

— Ele está bem?

— Fique tranquila, é algo rotineiro, ainda mais que ele está esperando pelo transplante.

— Ele não encontrou nenhum possível doador?

— Nenhum, os últimos três foram apenas fracassos.

— Onde faz esse tipo de exame, de compatibilidade? – perguntei.

Isaac ergueu a sobrancelha para mim, analisando o que eu havia falado.

— Como a vida é engraçada, você pode não perceber de primeira qual rumo ela levará, mas você pode observar as dicas que ela te deixa. – ele deu uma risada baixa olhando para mim. – acredito que você deva procurar o doutor Patrick, ele é o oncologista do hospital e cuida do caso de Luke.

Descobri através de um dos enfermeiros que passavam que o doutor Patrick ficava em seu consultório no terceiro andar, rezei para que ele estivesse sozinho, queria me informar sobre o transplante, queria saber se eu poderia ser uma doadora.

Bati duas vezes na porta esperando por alguma resposta, estava preste a bater uma terceira quando ouvi um fraco “entre”.

— Com licença, Doutor.

Ele me encarou parada na porta de seu consultório, o médico devia ter em torno de uns quarenta anos, sua barba era bem aparada, seu cabelo com algumas mechas grisalhas. De todo mais, ele era bastante bonito.

— Entre, você é?

— Alissya Rayven. – disse estendendo minha mão em sua direção.

— Em que posso ajudá-la Alissya? – ele se encostou na cadeira relaxado, sua voz era baixa e calma. Parecia ser o tipo de pessoa que mesmo numa situação de pânico se manteria calmo e tranquilo em meio ao caos.

— Sou amiga de Luke Dinally.

— Claro, Luke. – ele falou com um sorriso no rosto.

— Eu gostaria de saber o que preciso fazer para ser doadora, na verdade, eu queria fazer um teste de compatibilidade e ser a doadora do Luke.

— Isso é uma atitude generosa, não são todas as pessoas que pensam assim, ainda temos muitas pessoas que se negam a doar por preceitos ou receio.

— Eu não sei nada sobre o assunto, mas sei que ele precisa, e se eu for compatível posso estar salvando ele dessa doença.

— Srta. Rayven para ser um doador é preciso ter entre dezoito a cinquenta e cinco anos. Ter boa saúde, a medula óssea é retirada de ossos da bacia por meio de punções, mas elas se recompõem em apenas quinze dias, portanto você não correrá nenhum risco.

— Eu tenho vinte anos, posso doar. Quais documentos são necessários? – perguntei.

— Os doadores preenchem um formulário com dados pessoais e é coletada uma amostra de sangue com cerca de 5 ml para os testes. São nesses testes que iremos determinar se você é compatível, se suas características genéticas são compatíveis com o do Luke. – o doutor Patrick fez uma pausa. – Geralmente esses dados são armazenados e o sistema informa quem receberá esse transplante, veja bem temos uma lista de pacientes precisando da medula, mas entendo que sua doação seria estritamente ao senhor Dinally, correto?

— Sim.

— Sendo assim, podemos fazer como se você fosse um parente, uma prima distante, algo do tipo.

— Onde pego os papéis e onde posso fazer a coleta da amostra?

— Eu tenho os papéis disponíveis aqui no hospital, se tiver certeza disso posso pedir para uma enfermeira entregar a você. A coleta é feita aqui mesmo no hospital, se fosse de forma tradicional encaminharia você para um dos hemocentros do Estado e lá seria realizado todo procedimento.

— Tenho certeza disso. – respondi convicta. — Eu quero ser a doadora de Luke.

O médico pegou o telefone esperando ser atendido. – Gabriel pegue os documentos da doação de medula, por gentileza.

Ele escutou o que a pessoa disse, logo respondendo. – Sim, estou no aguardo.

— Srta. Rayven, devo alertá-la que é muito comum não ser compatível, nesses casos a compatibilidade entre as células do doador e do receptor há muitas chances de não se encontrar. Em média é coisa de uma em cem mil.

— Tenho fé, Doutor.

Ele sorriu. – Isso é essencial.


— Alissya você mal tocou na comida. – retrucou minha mãe.

— Estou sem fome. – empurrei mais um pouco da salada para o lado.

— Aconteceu alguma coisa filha?

Levantei os olhos encarando meu pai. – Eu tenho um assunto para conversar com vocês.

— Se for de novo sobre sua ida para Nova York esqueça Alissya, aqui tem ótimas faculdades.

— Mãe não é sobre isso e eu não vou desistir de Julliard, pensei que havia aceitado minha opinião.

Minha mãe encrespou os lábios dando mais uma colherada na boca de Jules.

— O que você tem para nos falar Aly? – meu pai perguntou.

— Eu quero ser doadora de medula óssea, estive hoje no hospital.

— Que absurdo! Da onde você me tira essas ideias?

— Melissa, se acalme, escute sua filha.

— Eu quero e vou doar minha medula, conversei com o médico sobre essa possibilidade, inclusive como maior de idade eu autorizei ele fazer uma retirada maior, assim poderia salvar não só uma, mas duas vidas.

— Acho essa atitude linda minha filha.

— Você tem cabeça nas nuvens igual sua filha Roger. – Minha mãe largou o prato olhando diretamente para mim. – Bem que a Sra. Landon disse que você estava andando com aquele garoto doente.

— Garoto doente? – meu pai questionou.

— Sim, o filho dos Dinally, Georgiana me disse tudo. Alissya estava inclusive na casa deles na semana passada, enquanto ela disse que ia ajudar na floricultura.

— Chega mãe, pelo amor de Deus, ninguém tem culpa se você está amargurada com a vida. – explodi, quase nunca eu elevava a voz para mim mãe, mesmo com todos os disparates dela. – Se você não percebeu eu sou uma mulher feita, sei o que faço e como faço de minha vida.

Suspirei tentando manter a calma, em nada adiantaria brigar com ela.

— Se me dão licença eu vou para meu quarto.

— Toda, querida. – disse meu pai.

Subi correndo a escada, fechando a porta assim que entrei em meu quarto, me jogando na cama. Desde que voltei a tocar minha mãe ficou ainda mais irritada e brava comigo, tudo era motivo de briga. Nem mesmo meu pai entendia porque ela tinha tamanha aversão em me ver tocar, no fundo eu sabia que era por ter abandonado sua carreira.

Quando minha mãe aceitou o pedido de namoro do jovem Roger, não imaginou que logo após dois anos estaria com casamento marcado e muito menos que eu estaria em seu ventre. Para Melissa Celin, futura senhora Rayven seu futuro era claro e cristalino como água, seria a melhor musicista de Julliard. Então em uma de suas melhores apresentações minha mãe sofreu um desmaio, sendo conduzida ao médico descobriu que suas constantes tonturas e falta de apetite teria um nome, Alissya.

Todos os planos de minha mãe foram colocados de lado pela gestação, pelo casamento, depois por cuidar de mim. Anos passaram, eu cresci e sempre fui apaixonada por música, passava mais horas com os fones de ouvido do que sem eles. Logo minha mãe notou meu talento e tratou de me desacreditar disso, ainda lembro suas palavras quando vi seu violino jogado no fundo de nosso sótão. “Música é para aqueles que não tem planejamento na vida, não seja sonhadora Alissya, tenha planos e viva com os pés no chão”.

Porém eu nunca consegui me manter muito tempo na Terra, e com o passar dos anos foi ficando cada vez mais difícil dizer não para essa parte de minha vida.

— Aly, querida?

Sacudi a cabeça saindo de meus devaneios.

— Você está bem?

— Sim pai, estava com pensamento longe.

— Sinto muito pelo que sua mãe disse, eu não quero que você largue sua música. – meu pai sentou-se ao meu lado na cama, segurando minha mão.

— Não tem como pai, seria como arrancar uma parte de mim, como um braço, uma perna...

— Você tocou muito bem na igreja, padre Maciel quer vê-la mais aos domingos. – disse todo orgulhoso.

— Vou aparecer.

Encostei a cabeça em seu ombro, sentindo seu perfume.

— Devo me preocupar com seu amigo, ou com sua decisão de doar a medula?

— Não, pai.

— Percebo que você gosta dele, qual doença ele tem?

— Leucemia.

— Cristo. – exclamou. – Espero que ele melhore.

— Eu também.

Ele soltou um suspiro pesado.

— Quase ia me esquecendo, chegaram essas cartas mais cedo. – ele retirou duas cartas do bolso interno do casaco entregando-me.

Assim que visualizei o emblema na carta meu coração se apertou, ali estava o que eu tanto esperava, minha resposta para meus sonhos. Segurei as cartas encarando por alguns segundos, com receio de abrir.

— Abra, estou ficando nervoso. – confessou meu pai com um sorriso.

Respirei fundo rasgando primeiro a carta da Columbia, desdobrei o papel, podia sentir meus batimentos cardíacos nos ouvidos de tão nervosa que estava.

— “Cara Alissya, é admirável suas notas e sua carta de recomendação. Porém devemos informar que não contemos mais vagas para a graduação de Literatura Inglesa, desejamos um futuro brilhante”.

Olhei para meu pai que tinha a mesma expressão que eu deveria estar, nesse momento eu acreditei que estávamos sendo espelhos um do outro.

— Abra a outra. – encorajou.

— E se for um não?

— Então eles terão perdido uma excelente violinista.

Sorri para meu pai, rasgando a parte de cima da carta, minhas mãos tremiam devido ao nervosismo. Abri com cuidado, aquele nó crescente em minha garganta, assim como as lágrimas descendo por meu rosto.

— Leia.

— “Cara Alissya, é com enorme honra que lhe dou os parabéns, seu vídeo de admissão foi de uma qualidade surpreendente, esperamos que esteja preparada para nosso teste. Caso passe com mérito, você será muito bem-vinda a Faculdade Julliard. Esteja presente no dia dez de abril, ás 11 horas no Lincoln Center, Nova York para sua audição”.

— Você conseguiu!

— Consegui, eu consegui pai. – disse abraçando forte meu pai.

Sentia suas lágrimas caindo em meu ombro assim como as minhas sujavam sua camisa.

Eu consegui, o primeiro passo para meu sonho estava dado. E ali nos braços de meu pai, só havia mais uma pessoa que eu queria muito contar sobre isso. Luke, era nele que estava pensando, era para ele que eu queria correr e contar sobre isso.


Capítulo 12

Luke Dinally


— Encontramos um doador. — anunciou Doutor Patrick assim que entrou na sala de quimioterapia.

Eu simplesmente suspirei, já havia recebido essa notícia antes.

— Faremos o teste de compatibilidade hoje mesmo, assim que os resultados saírem eu venho comunicar você.

— Tudo bem.

— Como você está se sentindo hoje Luke?

— Muita falta de ar, cansaço.

— Vou pedir para Sam fazer alguns exames em você, temos que nos certificar que você esteja pelo menos bem e com um número de leucócitos e plaquetas bom para quando chegar a hora do transplante.

Concordei com a cabeça.

O médico havia me informado que caso o doador aparecesse e esse fosse realmente compatível comigo eu entraria numa fase de quimioterapia para o transplante, nesse estágio eu não poderia sair do hospital, mesmo que quisesse. De todo, a doença era como uma enorme montanha-russa, daquelas que você nunca sabe em qual curva você irá cair. Existia dias bons, onde eu não tinha quase ou nenhum sintoma, mas existia também os picos mais graves da doença, onde a febre era tão intensa que qualquer medicamento que eu tomasse me assegurava apenas umas duas horas, antes dela retornar. Quando iniciei meu tratamento quimioterápico eu realmente passei mal com os efeitos colaterais, perdi muito peso, mal conseguia manter a alimentação dentro do meu estômago. Agora, no entanto, mesmo tendo os sintomas e toda essa montanha-russa emocional eu conseguia ingerir alimentos, parei de perder peso, e segundo a simpática enfermeira Sam eu estava mais gordinho, lógico, se você colocasse no papel a quantidade de cortisona que tomava somado ao soro, logo eu poderia voar como um balão.


— Vamos, adivinhe minha novidade – Alissya falou novamente.

— Não sei, vai desistir de me perseguir? – disse rindo.

Ela soltou um suspiro jogando as mechas de seu cabelo para trás, percebi que eu gostava quando fazia isso.

— Não persigo você. Você se acha de mais.

— Eu deveria, era um astro em ascensão.

— Luke Dinally, o terror das menininhas e um excelente jogador de basquete. – ela ironizou. – devia ter um monte de mentirosas sobre seu pé.

Sorri relembrando daqueles tempos, ser um astro na época de escola sempre foi bom.

— Pelo menos ninguém nunca enfiou minha cabeça na privada. – zombei.

— Ei, eu comentei isso porque estávamos dividindo momentos, não era para ser um triunfo seu.

— Como você conseguiu isso?

Ela suspirou novamente apoiando a cabeça nos joelhos dobrados. – Eu xinguei uma valentona do colégio. Isso foi no dia do meu aniversário.

— Isso sim é presente de grego.

— Luke, quando é seu aniversário?

— Dia 20 de maio.

— Podemos comemorar, tenho certeza que até lá você estará livre disso. – Alissya se animava rapidamente quando tinha uma oportunidade, e eu vi em seus olhos que essa minha pequena confissão me renderia planos mirabolantes.

Depois daquele dia que dormimos de mãos dadas, sim, não posso mais me fazer de tolo, eu sabia disso. Mas enfim, depois daquele dia, Alissya me visitava com frequência no hospital, não só a mim, como a Isaac também. Infelizmente o quadro dele estava cada dia pior e o amigo canastrão e falador foi proibido de sair da cama, sempre que as enfermeiras estavam longe íamos até seu quarto comer doces e conversar, até que alguma enfermeira ou médico nos expulsasse de lá.

Nesse dia Isaac estava fazendo uma radioterapia de urgência, por isso Alissya e eu ficamos no meu quarto conversando.

— Podemos pedir uma licença médica, poderíamos andar naquela sua Harley. – divagou sonhadora.

— Duvido que os médicos aceitem isso.

— Sabe, uma pessoa disse um dia que para tudo na vida sempre temos o não, que só teríamos que buscar o sim. Por isso, você não tem nada a perder em comunicar o médico sobre sua vontade.

— Você fica estudando esse tipo de metáfora antes de dormir? – perguntei rindo.

— É algo que vem naturalmente.

Ficamos nos encarando, cada dia estava mais fácil ficar perto dela, cada dia eu me perdia em seus trejeitos, em seu olhar.

— Ah... Eu, quase esqueci de contar. – Alissya disse sem jeito. – Fui aceita na Julliard.

— Uau, meus parabéns. – exclamei feliz de verdade, eu via como isso era importante para ela, sabia desde que a vi tocando que música era como um sopro de ar em seus pulmões, como basquete foi um dia para mim.

— Eu terei uma audição dia dez, queria muito que você pudesse ir.

— Podemos ver, uma pessoa disse que sempre temos que ir em busca do sim, pois o não nós já temos. – recitei o que ela havia me falado, e seu sorriso em resposta foi de arrancar o pouco ar que continha em meus pulmões.

— Boa tarde. – Sam entrou no quarto acompanhada por outra enfermeira e o doutor Patrick.

— Sam, boa tarde. – Alissya cumprimentou.

— Luke, trouxe seu lanche da tarde e outro para você Aly. – Sam deixou as bandejas em nossa frente.

A enfermeira que Isaac adorava deixar encabulada trocou a bolsa do soro, limpou meu acesso e se retirou pedindo licença.

— Luke, tenho boas notícias.

— Diga de uma vez doutor. – Alissya vibrou do outro lado da cama.

— Seu doador é compatível com você.

— Sério? Não tem nenhum erro dessa vez?

— Nada, ele por incrível que pareça é cem por cento compatível. – disse olhando para mim e Alissya.

— Isso é muito bom, eu vou me curar Aly, eu vou me curar. – disse sem acreditar, finalmente eu poderia me ver livre desse mal.

— Luke isso é ótimo, eu sabia que você encontraria alguém. – Alissya apertou minimamente minha mão.

— Podemos marcar o transplante para daqui vinte dias, nesse período você e o transplantado se preparam para o dia.

— Doutor, não posso. – disse vendo os rostos de Alissya, do médico e de Sam se virarem para mim como se tivesse dado um tapa em suas faces.

— Como assim, Luke? – Alissya foi a primeira a questionar.

— Eu preciso de uma licença, um único dia, preciso fazer algo antes disso.

— Luke você entende a gravidade de esperar? Tivemos sorte de você corresponder bem a tudo que passou, você conseguiu o doador que tanto queria, esta numa posição que pode ter dias bons e dias ruins e nos dias ruins pode correr o risco de uma infecção. Acreditei que você tinha passado na consulta com o infectologista e ele havia explicado os riscos que você tem agora.

— Eu sei de tudo isso, mas eu preciso ir à Nova York.

— Luke, não. – Alissya ficou de pé ao lado da cama.

— Alissya eu preciso estar com você, eu quero.

— Luke, seu médico está certo, você corre riscos sérios. – Sam argumentou.

— É algo que eu quero fazer. – disse convicto. – Quem me garante que o transplante dará certo, temos a probabilidade negativa também.

— Não fale asneiras, Luke! – Alissya estava brava, a mínima ruga entre suas sobrancelhas dizia isso.

Doutor Patrick suspirou, passou as mãos pelo cabelo colocando-as na cintura novamente.

— Que dia?

— Dez de abril.

— Daqui dez dias? – ele balançou a cabeça suspirando novamente. – Pelo visto esse casal está me forçando a realizar muitas coisas fora da verdadeira ética da qual eu sempre trabalhei.

— Nós não somos...

— Um casal. – Alissya completou encabulada, virou me encarando como quem se desculpa.

Sam ergueu a sobrancelha nos olhando.

— Luke, você vai assinar um termo abdicando o hospital e eu de qualquer eventualidade que te ocorra nessa viagem. Você sabe os riscos que corre ao deixar o hospital, você está ciente de tudo.

— Sim estou, eu assino o tal papel.

— Vou chamar seus pais para uma reunião, infelizmente não posso deixar isso de fora.

— Sou maior de idade. – retruquei.

— Mesmo assim, hoje mesmo pedirei para seus pais virem aqui.

— Tanto faz.

Patrick balançou a cabeça pegando novamente a prancheta, pronto para sair. – E mais uma coisa, é apenas um dia. No dia seguinte quero você aqui, pronto para sua internação.

— Sim, senhor. – disse sorrindo.


Alissya tinha ido embora fazia algumas horas, estava naquele estado entre a consciência e o sono quando meus pais entraram em meu quarto. Meu pai como era a primeira vez que vinha aqui examinou todos os detalhes do quarto, até mesmo o banheiro. Minha mãe sentou na beirada da cama, sorrindo para mim. Meu pai foi o primeiro a comunicar sobre a reunião com o médico, pela voz mansa que ultimamente ele andava usando eu não sabia o quanto de reprimenda ou decepção existia ali.

— Luke você acha uma boa ideia, ainda mais agora que você tem o doador?

— Mãe eu sei o que faço, isso é importante para mim.

— O médico nos informou dos riscos e principalmente do termo que você terá que assinar. – meu pai parou ao lado da janela, se virando para mim.

— Eu sei dos riscos, sei que posso ter uma viagem tranquila ou morrer no caminho. Como pode ser que dê tudo errado nesse transplante e eu acabe morrendo do mesmo jeito, ou não.

— Luke não acredito que seja uma boa ideia.

— Ligia, nosso filho já é um homem, ele sabe o que é melhor. – meu pai soltou um pigarro. – Se você acredita, se esse é seu desejo. Pode ir, eu assino os papéis por você.

— Pai?

— Estou falando sério, mas não me faça me arrepender.

Eu fiquei contente, ter o apoio do meu velho pai era bom, há muitos anos eu não via esse cara em minha frente, não o Sr. Dinally do dia a dia, o ex-militar duro e sempre sério. Mas meu pai, aquele que sentava comigo na grama alta do nosso jardim e consertava minha bicicleta ou aquele que se escondeu comigo por duas horas dentro de uma sorveteria por ter quebrado o vaso raro de minha mãe, ou até mesmo das noites que perdíamos o sono e íamos para o fundo do quintal jogar basquete, os anos podem endurecer uma pessoa, seja por experiências, ou pelo simples fato da pessoa estar tão acostumada com a rotina, com o cotidiano que esquecia as coisas simples.

Eu falando assim vocês podem se questionar do que aconteceu com o Luke de alguns meses atrás, a questão é que mesmo eu sendo como era, mesmo eu ainda sentindo ódio dentro de mim, por ter essa doença, eu aprendi certas coisas no meio do caminho, tinha tirado algumas lições com as pessoas que me rodeavam.


Capítulo 13

Alissya Rayven


Eu estava nervosa, minhas mãos suavam, meu estômago estava constantemente enjoado. Eu não pensei em tudo que Luke estava enfrentando ao sair do hospital e cair em uma viagem de dez horas comigo, mas olhando agora ele estava correndo sérios riscos e a culpa seria toda minha e de minha boca grande. Arrisquei uma olhada para ele dormindo ao meu lado, tínhamos pego um voo cedo, planejei milhares de vezes isso, uma viagem curta com o mínimo de exposição que ele pudesse receber.

Luke reclamou por todo o caminho do hospital até o aeroporto quando disse que para seu bem usaria máscara, mas foi um meio dos médicos darem certa proteção para ele, mesmo que mínima. Também fiz questão de agradecer ao doutor Patrick por não contar que eu tinha sido sua doadora, alguns dias depois que fui informada que era totalmente compatível com Luke, logo tratei de tomar as medicações que ele me receitou e depois de cinco dias estava fazendo o processo de punção. Segundo Sam eu ficaria com o corpo dolorido por alguns dias e seria melhor se repousasse, mas de resto não tinha nenhum risco ou qualquer coisa que me fizesse ficar realmente mal.

— Você está nervosa. – Luke disse me surpreendendo.

— Um pouco.

— Muito, posso sentir sua mão tremer na minha. – ele abriu os olhos encarando nossas mãos unidas.

Qual hora eu peguei sua mão e não senti?

— Sinto muito, não percebi que havia pego sua mão.

Tentei tirar a mão, mas Luke apertou meus dedos entre os deles, olhando fundo em meus olhos, esses olhos verdes me sugavam e me davam paz, era como se ele silenciasse tudo em volta, como se calasse o mundo apenas com seu olhar.

Acalme-se Alissya, amigos, isso é o correto, não pense asneira.

O táxi parou em frente ao auditório da faculdade me arrancando dos devaneios. Abri a bolsa pegando o dinheiro para o motorista, deixando alguns trocados para gorjeta. Luke tinha saído do carro e estava examinando toda a fachada, uma enorme escadaria nos levava até o anfiteatro, onde seriam as audições. Olhei para o relógio satisfeita por chegar uma hora antes, ajeitei a case do violino em meu ombro subindo os degraus.

A manhã estava agradável, fresca, o céu de Nova York estava limpo, sem sinal de nuvens, dentro do anfiteatro havia diversas pessoas andando de um lado para o outro, alguns tocavam pela última vez. Ao atravessar o pequeno espaço, vi que não havia ninguém na plateia, apenas os jurados na ampla mesa na frente para o palco.

Um homem alto vestido de terno totalmente alinhado veio em minha direção. – Seu nome e sobrenome.

— Alissya Rayven. – minha voz tremia pelo nervosismo.

— E o senhor? – perguntou erguendo a sobrancelha para Luke.

— Estou acompanhando ela.

— Os acompanhantes são proibidos de sair dos bastidores, é proibido ficar perto do palco ou se sentar no auditório. Compreendeu?

— Sim.

— Irei chamar por ordem de chegada, preste atenção chamarei somente uma vez.

— Sim, senhor. – respondi prontamente.

Olhei nervosa para os outros, para o palco. Em poucos minutos o homem engravatado retornou aos bastidores, chamando pelo primeiro candidato.

Um rapaz saiu dos fundos, alisando seu suéter de aparência cara, seu cabelo loiro era bem alinhado e ele tinha cara de burguês, daqueles que não precisavam ter seus corações arrancados de tanto nervosismo em uma audição, pois sabiam que o dinheiro dos pais compraria uma vaga para ele, mesmo assim ele seguiu para o palco.

Poucos minutos se passaram em silêncio, logo uma melodia chegou aos bastidores, ele tocava piano, percebi algumas notas em tons errados na canção, mas de todo ele foi bem. Logo em seguida foi uma menina, ela estava vestida como uma bailarina clássica, andou todo o caminho na ponta de sua sapatilha, alta e elegante, parecendo um cisne.

Aos poucos o lugar foi ficando vazio, alguns retornavam com cara de choro, outros xingando e rasgando partituras e isso só aumentava meu nervosismo. Restavam três pessoas além de mim, senti Luke pegando minha mão, chamando minha atenção. E por um instante eu permiti acalmar as batidas do meu coração olhando para os olhos tranquilos de Luke.

— Estou nervosa.

Ele sorriu, eu amava quando ele sorria, eu sabia admirar um ato tão simbólico, mas que com Luke era algo realmente sincero e importante, ele não era dado a sorrisos.

— Não fique, essa vaga é sua.

Um garoto passou pelo meu lado esbravejando os jurados, Luke pegou meu queixo com as mãos trazendo de volta meu olhar para ele.

— Srta. Rayven, eles estão aguardando. – escutei o homem dizer ainda com os olhos colados em Luke.

— Me deseje sorte. – pedi com um sorriso.

— Boa sorte, Aly.

Peguei meu violino e a partitura, eu tinha escolhido para hoje a música “La Naissance” era complexa, tinha tantas explosões de sentimento na música que se uma nota fosse tocada de forma errônea destruía toda a composição.

Coloquei a partitura no pedestal perto do pianista, cumprimentei com um aceno os jurados, ajeitei o violino sob meu queixo, respirei fundo fazendo um aceno de positivo para o outro músico, ele começou a tocar as notas suaves no piano logo mostrando minha deixa.

Fechei os olhos sentindo as cordas serem tocadas, a música me embalar no seu ritmo calmo, mas ao mesmo tempo crescente, sua melodia suave foi se tornando grave, como uma tempestade se formando no horizonte, esperei o momento certo e então comecei a dedilhar as cordas entrando no verso mais importante, de olhos fechados deixei a melodia me envolver, sentia a música sair poderosa intercalando com as sinfonias suaves, para se erguer novamente e encerrar.

Respirei fundo ainda de olhos fechados, tirei o violino do queixo, agradeci o rapaz por ter me acompanhado no piano e finalmente olhei para os jurados.

O júri era formado de três homens e uma mulher, todos me encaravam com cara de poucos amigos.

— Foi uma apresentação surpreendente. – disse o da ponta.

— Srta. Rayven, você teve algum parente que estudou na Julliard, o sobrenome Celin, não me é de todo estranho. – disse a mulher mais velha.

— Sim, minha mãe, senhora.

— Qual nome de sua mãe, menina? – perguntou o outro.

— Melissa Celin, ela tocava piano. – expliquei.

Dois homens se entreolharam, sussurraram algo para os outros e então os quatro se viraram para mim.

— Srta. Rayven, espero que você tenha um pouco ou mais desse talento que nos mostrou hoje, não me faça estar equivocada. – disse a mulher.

— Seja muito bem-vinda a Julliard Srta. Rayven.

— Muito, muito obrigada – disse praticamente me contendo para não pular de alegria.


Capítulo 14

Luke Dinally


Esperei que ela entrasse no auditório, eu queria muito estar naquela sala, mas por algum motivo banal isso era proibido, portanto tive que me contentar em esperar nos bastidores.

Foram alguns minutos em completo silêncio e uma apreensão gigantesca dentro de mim, até que ouvi o som de seu violino, Aly tocava com o coração, suas notas eram precisas e harmônicas, não que eu entendesse de algo assim, mas ela tocava com a alma. Somente um completo tolo não veria o talento dela. Eu estava feliz por Alissya, sabia que conseguiria entrar na Juilliard, sabia que logo ela estaria longe, mesmo que isso me incomodasse, mesmo que fosse perder sua companhia. Ela estava seguindo seus sonhos e de maneira nenhuma eu tiraria isso dela.

A música foi ficando mais lenta, mais doce, até que o silêncio tomou o auditório e o bastidor. Eu me mexia nervoso nos meus próprios pés, Aly veio correndo em minha direção praticamente pulando em meu colo e me abraçando.

— Eu consegui Luke, eu consegui.

— Eu sabia disso. – comemorei apertando-a mais em meus braços.

— Eu ainda não acredito.

Ela me soltou de seu abraço, mas seu rosto ficou próximo de mim, tão próximo que eu consegui sentir seu hálito tocando meu rosto, podia examinar fundo os seus olhos castanhos, sua boca em formato de um pequeno coração e seu perfume de frutas vermelhas. Passei a ponta de meus dedos pelo seu rosto, foi um daqueles momentos que eu não via mais ninguém, apenas Alissya e eu, senti vontade de beijá-la, senti curiosidade de saber se os lábios dela seriam tão macios quanto aparentavam. Alissya sorriu sem graça, se afastando do meu corpo.

— Uau!

— Pois é, você conseguiu. – disse sem graça.

— É.

As bochechas de Alissya estavam coradas, ela desviou os olhos sorrindo e isso fez meu coração dar um salto, uma reação totalmente inesperada.


— Você tem certeza que está se sentindo bem, veio calado a viagem toda? – ela me encarava preocupada.

— Estou me sentindo indisposto apenas.

Mas eu estava mentindo, quando acordei pela manhã estava sentindo muita falta de ar, o que ocasionou uma tosse e com ela os sangramentos esporádicos, eu não queria que Alissya soubesse, ela teria se sentido culpada e isso era tudo que eu não desejava. Por isso telefonei para o quarto dela no hotel dizendo que me atrasaria um pouco, e por todas as vezes que sentia a necessidade de tossir eu pedia licença me trancando no banheiro da aeronave.

No desembarque meus pais aguardavam a gente na saída, consegui driblar eles também dizendo que estava me sentindo bem, apenas cansado, mas ao entrar no hospital a coisa mudou, Sam percebeu meu sangramento e logo comunicou o doutor Patrick, ele não disse nada apenas me olhou sério, soltou um suspiro e pediu para que passasse por alguns exames na mesma hora.

E então veio mais uma complicação.

— Luke, você está com uma infecção se manifestando em seu pulmão. – anunciou Patrick sentando em minha frente. – Você já estava apresentando os sintomas, porém ele ficou mais visível, ou seja, pudemos somente agora saber qual é essa infecção.

— O que isso quer dizer? Eu não vou receber o transplante? – tirei um pouco a máscara de oxigênio do rosto para que ele entendesse o que eu estava falando.

— Sim, ainda vai receber o transplante, mas estou encaminhando você para CTI, assim como a Doutora Renata vai acompanhá-lo e tratar essa infecção.

— Como assim CTI?

— Luke, não podemos fazer nenhum procedimento sem curar essa infecção que está se alastrando pelo seu pulmão. Seu hemograma mostrou outra queda brusca de plaquetas, você será induzido ao coma...

— Coma? Você só pode estar brincando. – praticamente gritei com o médico.

— Entendo sua revolta, mas o quanto antes resolvermos, poderemos marcar o transplante. Nesse coma, você será submetido ao processo de retirar essa infecção do pulmão.

O que adiantava eu escutar as pessoas dizendo que eu teria que viver, me agarrar a vida que ainda tinha, agradecer por isso e quando eu realmente desejava fazer isso eu recebia a notícia que minha doença tinha piorado ao ponto de me internar no CTI. Como o médico disse em poucos minutos a equipe do hospital fez minha transferência. O processo todo não era tão desesperador, como a ideia em si era, quando menos esperei meu corpo foi ficando mais leve, era como se eu caísse num sono profundo.

Alguns dizem que ao entrarmos em coma, nossa mente entra num estágio de quase morte, segundo o neurologista falou para mim poucos minutos antes de começarem o processo, a diferença entre o coma e o sono é que o sono por sua vez é um estado fisiológico e o coma patológico. Por isso sempre tem aquele questionamento, uma pessoa em coma escuta? Sente quando seu corpo é tocado, mesmo que seja um pequeno formigamento no local?

Será que quando falarem comigo eu vou escutar?

Bom, eu afirmo que escutei e isso foi uma surpresa, pois parecia que estava trancado em uma enorme caixa preta, era difícil ter dimensão sobre algo e até seria mentiroso se falasse que eu estava sentindo ou sabendo exatamente o que estava acontecendo comigo, mas eu escutava. Escutei quando a voz de Alissya chegou até mim, escutei quando meus pais também se comunicaram com meu corpo inerte.

O doutor Mikael, neurologista do hospital, também tinha me contado que esse tipo de contato é importante para um paciente em estado de coma, era como se a pessoa que fizesse uma mínima comunicação estivesse cuidando dos pensamentos e consciência do paciente e isso era necessário na visão dele, como se para não esquecermos que antes de nos sentirmos vivos, também precisamos estar vivos no desejo do outro.


Capítulo 15

Luke Dinally

Vinte dias depois.


Abrir os olhos, focar a visão e começar a entender o que foi que aconteceu com você, no caso comigo foi meu primeiro pensamento racional.

Desci os olhos pelo meu corpo, eu estava nu, um lençol cobria o meu corpo, meus braços estavam contidos na cama. O ato de respirar fundo doeu um pouco em meu peito, mas mesmo com a pontada mínima isso era bom, era como voltar de um lugar onde você não sabia que estava. Tentei chamar por alguém mais minha voz não saía, eu conseguia ouvir os barulhos das máquinas, os bipes eletrônicos perto de mim, mas minha voz tinha sumido, um cano estava preso em minha garganta indo até outra máquina. Eu queria que alguém notasse que eu havia acordado, uma enfermeira passou ao meu lado, anotando algo em sua prancheta, tentei gesticular, chamar por ela de alguma forma. Mas ela não me deu nenhuma atenção.

Era como se eu não tivesse lá, naquele momento onde os médicos e enfermeiros passavam na frente de meu leito, eu era invisível para eles. Senti a indiferença, como se fosse um nada jogado num leito, como um objeto que tivesse perdido a importância jogado no canto do quarto, esquecido por todos, o choro veio queimando meu peito, escorrendo pelo meu rosto.

— Luke?

Olhei novamente para a ponta da cama vendo Isaac, sentando em uma cadeira de rodas, seu rosto estava magro, quase esquelético, seus olhos fundos, mas ali estava um sorriso.

Quanto tempo eu fiquei desacordado?

— Enfermeira! Enfermeira! – gritou olhando para mim.

Uma enfermeira apareceu correndo, notando que eu realmente estava acordado.

Se você falasse que eu iria me sentir importante num momento assim, por pessoas estranhas me olhando, eu teria chamado você de tolo, mas era exatamente como eu estava me sentindo. Esqueci que estava com uma traqueostomia, de sonda, possivelmente nu, com frio. Ali, deitado naquela cama tudo que era tão importante ao fato de ser egoísta se tornava banal, era tão ridículo se preocupar com isso sendo tratado por outras pessoas com carinho, você depender de outras pessoas de hora em hora.

Passado poucas horas que eu estava me sentindo totalmente desperto do mundo ao meu redor, médicos e alguns fisioterapeutas conversaram comigo, me explicaram tudo que eu havia passado, desde a pequena complicação no início do tratamento onde eles realmente acharam que eu não sairia vivo, assim como das conversas com meus pais para prepará-los se algo pior acontecesse. No início foi um choque perceber que eu passei vinte dias no CTI, porém a infecção foi combatida e meus pulmões estavam limpos novamente, pelo tempo que fiquei em coma passaria por algumas sessões de fisioterapia, era como reaprender o que você já sabia, a falar, andar, sentar. Todo um trabalho de reabilitação para que eu finalmente pudesse ser transferido para o quarto.

Os dias passavam sem eu ter noção do que estava acontecendo aqui, não havia janelas, não sabia que horas eram, quando meus pais chegavam, as visitas pareciam curtas demais e ao saírem era como se passasse dias entre uma e outra. Em uma delas minha mãe entregou uma carta de Alissya, ela passou dias fechada ao meu lado, mas em certo momento senti curiosidade em lê-la.

“Luke,

Você pode rasgar essa carta, sei que corro esse risco, mas eu precisava saber como você está. Ando conversando com sua mãe. Ela informou que você havia acordado, sinto por não estar aí, mas como você já deve ter escutado as aulas começaram e eu precisei arrumar um lugar para ficar em Nova York.

Em momentos me culpo por ter trazido você, sei que você piorou por nosso ato insano como todos falam, mas foi bom ter você ao meu lado. Minha mãe aceitou minha ida até que de maneira cordial, ela sabia no fundo que eu viria, ela querendo ou não.

A faculdade é incrível, já comentei sobre isso? Novamente queria que estivesse aqui, quem sabe quando você sair do hospital, prevejo isso muito em breve. Isaac disse que agora os médicos voltariam a focar realmente na Leucemia e a realizar o transplante, isso é muito bom. Sobre nosso amigo canastrão, sinto que ele está pior, mas é difícil perceber com tantas metáforas tolas que ele me manda e você ainda questionava minhas poucas metáforas... Você será meus olhos em Beaufort.

Espero que esteja bem hoje,

Sua Alissya C. Rayven.”


Dobrei a carta respirando fundo.


O câncer não se importa com seus sonhos, seus desejos ou suas vontades e muito menos com seus sentimentos. Se você gosta da sua vida, do seu cabelo ou da sua aparência. Apenas espera as condições perfeitas, pois em algum momento alguma pessoa vai ser um bom abrigo, onde ele irá crescer evoluir e te explodir por dentro.

Então, você tem a opção de viver com o que foi dado ou não, mas é como um grande jogo de basquete, seus oponentes estão ali, prontos para te derrubarem na primeira chance. Eu sempre fui um ótimo armador e se eu queria ter uma única chance de derrubar esse câncer e marcar minha cesta de três pontos, tinha que arriscar todas as minhas jogadas.


Depois de mais duas sessões de quimioterapia finalmente fui submetido ao começo do tratamento para realizar o transplante, a médica falou tudo o que poderia dar certo e o que poderia dar errado, assim como o Doutor Valter quando descobri a doença, a médica foi direta, comentando os riscos como se estivesse listando suas tarefas do dia a dia. Tive que assinar cerca de quinze papéis sobre um tal de “Tratamento experimental” como eles chamam, pois era assim que se referiam ao transplante de medula. Qualquer semelhança com um rato de laboratório nessa hora foi mera coincidência, é claro. Passei por diversos médicos, até dentista, por incrível que pareça eles tinham que ter todas as avaliações, dizendo que eu estava apto e sem nenhum problema a mais de saúde.

Como a medula que me foi doada já estava preparada para ser transplantada não houve preparo como teria no caso de ter um irmão ou parente em minha família compatível comigo, que precisaria passar por testes e certo resguardo até o momento de fazer a doação. Já no meu caso fui submetido a duas sessões de quimioterapia pré-transplante, durante seis dias antes de chegar realmente o momento.

— Luke?

Olhei em direção a porta vendo Sam parada.

— Chegou a hora, vim preparar você para o transplante.

Meu estômago se contraiu, mesmo eu sabendo tudo que aconteceria a partir do momento que pisasse no centro cirúrgico ou até pelas diversas conversas com os médicos eu estava com receio, olhei para meus pais sentados no sofá sorrindo para mim.

Dois dias antes eu fiz uma cirurgia para a colocação do cateter Hickman, por onde eu receberia a infusão. Quando me deitaram no leito, o médico e os enfermeiros prepararam a bolsa contendo as medulas ao meu lado, assim como checando os instrumentos, checando frequentemente minha pressão, eu sentia minhas mãos tremerem e suarem. O doutor Patrick conectou a bolsa de sangue no acesso central, era estranho uma bolsa tão pequena daquelas conter a chance da minha vida. Porém era exatamente isso, cada gota de sangue que descia pela cânula, entrando no cateter, era uma gota de vida inundando minhas veias.

Senti-me um pouco tonto durante o processo, mas segundo os enfermeiros isso era normal e até mesmo esperado.

No quinto dia pós-transplante eu realmente me senti mal e com todos os efeitos colaterais que os médicos me alertaram que a quimioterapia pré-transplante poderia me dar, afinal essa quimioterapia era justamente para destruir com todas as minhas medulas originais, como se limpasse meu corpo para a nova medula. Medulas essas que estavam espalhadas por todo meu corpo, dos dedos dos pés até o pescoço, nossa esperança era que conforme os dias fossem passando essas medulas se ajustassem, que fossem produzidas mais a cada dia e por fim eu receberia o resultado que estava curado. Eu havia perdido a conta de quantas transfusões realizei em todo esse processo, vendo que eu era um em dez mil de novos casos, onde nem todos, ou uma grande parte, não conseguiria sobreviver. Notei o quanto era importante a doação, mesmo que fosse apenas de sangue. Sem essas bolsas de sangue, por exemplo, eu não teria passado por essa parte do tratamento, onde a medula ainda estava se adaptando ao meu organismo e só depois que isso me ocorresse começaria a produção de sangue. Por isso essas transfusões eram tão importantes.

Tinha se passado vinte dias que havia recebido meu transplante, aguardava o médico retornar com os resultados dos meus exames, finalmente dizendo se tudo deu certo ou não. Olhei para o lado vendo as cartas ainda fechadas de Alissya. Depois do transplante Patrick havia revelado que Alissya foi minha doadora. Não sabia dizer o que se passava dentro de mim depois dessa notícia, quando eu pensava em Alissya era como se um sol interno aquecesse meu coração. Aquela garota sempre sorrindo passou por todas as minhas barreiras, uma por uma, com suas metáforas malucas, com seus vários sorrisos, seus olhos brilhantes e seu jeito sempre sonhadora de ser.

Abri uma de suas quatro cartas, olhando aquelas letrinhas miúdas ocupando quase a folha inteira.


“Para o garoto que não sabia sorrir

Querido Luke, espero que você esteja bem hoje. Eu não sei se deveria ainda desejar felicidades por seu aniversário, francamente você como amigo está sendo um merda! E quando digo isso imagine-me com mãos no quadril e uma expressão bem brava.

P.S.: Andei frequentando umas aulas de teatro, eu até que gostei.

Faz um mês que não tenho uma notícia sua, sabe, não custaria nada se você pegasse um papel e me escrevesse. Eu adoraria.

Sinto saudade de conversar com você, mesmo que esteja rabugento como sempre, quando toco me lembro de você, de quando eu realmente fui aceita para Julliard e você estava aqui, me esperando ansioso nos bastidores.

Falando em faculdade, minha vida está uma loucura. Farei minha primeira apresentação daqui um mês. Gostaria muito que você fosse, caso queira eu estou mandando os convites dentro do envelope. Seria bom olhar para a plateia e ver seu rosto.

Outro dia estava caminhando no centro e vi uma coisa, isso me fez lembrar de você. E quando você olhar para essa coisa quero que sempre lembre que você não está sozinho, eu estou aqui.

E se caso precisar, eu estarei aqui.

Fique bem hoje Luke Dinally e sorria por mim.

Sempre sua, Aly.”


Peguei o envelope vendo que ela realmente havia me mandado os convites para sua apresentação, não só para mim como para meus pais também. Virei o envelope deixando o conteúdo cair e junto com ele um chaveiro, virei em minhas mãos vendo que era uma bola de basquete e nela estava gravado Luke e Aly. Ver aquilo me queimou por dentro, ele era uma promessa que Alissya sempre estaria comigo, mesmo eu não tendo feito nada para isso. Relembrei de sua audição, do nosso quase beijo, de sentir o corpo dela colado no meu, mesmo que por uma pequena fração de segundos.

Você poderia se apaixonar por uma pessoa sem tê-la beijado uma única vez?

Peguei o outro envelope, abrindo sua segunda carta:


“Luke...

Você não estava lá, quando abriram as cortinas do Lincoln Center, você não estava lá. Foi nisso que pensei toda minha apresentação.

Eu toquei a música “Rain”, o público gostou. Mas o mérito não foi todo meu, Gaby e Tyler me ajudaram.

Gaby toca violino, está na mesma turma que eu. Ela é uma boa pessoa e uma boa amiga, mesmo que me de grandes desfalques na despensa (ela consegue comer como uma família de refugiados). Tyler tem me acompanhado em todos os ensaios, ele é da turma avançada, mas é sempre gentil e generoso comigo. Temos passado algum tempo juntos, é estranho dizer isso para você.

Não sei porque você não responde minhas cartas, Isaac disse que você nem tem lido, aí me pergunto por que ainda escrevo para você. Isaac disse que você recebeu o transplante, estou na torcida para que seu corpo aceite, também me disse que você mal sai do quarto. Juro que não entendo você, Luke Dinally.

Espero que você esteja bem hoje.

Sempre sua, Aly.”


Senti-me um pouco enciumado com esse Tyler, mas eu não tinha esse direto. Alissya nunca demonstrou que queria algo além de minha amizade e por que demonstraria? Quem iria querer estar ao lado ou apresentar aos pais um leucêmico? Quem namoraria alguém com prazo de validade? Eu com certeza não.

Abri a terceira carta:


“Dinally, isso está realmente ficando chato. Você sabe o significado de via de mão dupla? Sinto-me como se tivessem batido a porta em minha cara. Sim, é isso que você faz ao receber minhas cartas e não respondê-las.

Ontem recebi mais um convite, irei me apresentar com a orquestra de Nova York, será uma apresentação grande. Muitas pessoas assistindo, uma grande responsabilidade.

Hoje fiquei bons minutos olhando essa folha em branco, realmente decidindo se escrevia ou não para você. Bom se você está recebendo essa carta é porque sabe o que decidi. Eu poderia acreditar que o correio anda extraviando minhas cartas, que você sim tenha escrito nem que seja meia folha para mim, mas eu sei bem que o Luke Dinally, garoto que não sabe ser educado com os outros nem mesmo pegou em um papel para isso. Dizem que quando temos persistência com alguma pessoa, que sabemos que dificilmente mudará, é uma prova de amor, então aqui vai, eu devo te amar Luke Dinally.

Espero que esteja bem hoje.

Sua quase sempre, Aly.”


Respirei fundo pegando a última carta, essa era o dobro das outras.


“Encurvo-me perante o silêncio do mar.
Olho para o horizonte e entrego-me à linha do destino.
Por vezes, a geografia é uma esquina escondida. Pensei que desta não o fosse. Mas a distância existe. Eu, aqui! Tu, aí!
Talvez um dia nos seja favorável. Dizes que há demasiado sentir nas minhas linhas. É natural! Faço amor com as palavras. É por elas que expresso o meu desejo e o meu querer. Faço-o com toda a plenitude da minha livre vontade.
Não posso ansiar pelo teu abraço? Ou por descansar no teu peito?
Nem vale a pena dizer que não, porque não o consigo impedir. Sim. Eu sei que as circunstâncias são distintas. Mas serão para sempre? E mesmo que assim aconteça quer isso dizer que não sentimos o que sentimos?

Há alturas em que apenas nós somos. Todo o resto jorra da nossa origem! Contudo, também há, realmente, a possibilidade de abrandar.
Se te for necessário, jamais imporei a minha vontade. Mas as cores não voltarão a ser as mesmas nem nós voltaremos a ser iguais.
O que nos faz, toca-nos profundamente. Tanto que abala as colunas da existência pelo reconhecimento do que já houve.

Encurvo-me perante o silêncio do mar.
Venho aqui à procura dos afagos do vento. É por eles que sinto tua alma, mesmo tão distante de mim. E peço-lhes, humildemente, que levem os meus pensamentos até ti.

(Abraços do Vento – Jorge Gomes)

Três meses que não nos falamos, ou que não recebo uma palavra sequer vinda de ti, se por acaso não entendeu o que o poema diz, eu terei o maior prazer em decifrá-lo para você.

Eu te amo Luke, por meses questionei esse sentimento crescendo como uma erva daninha sobre meu peito, dias a fio trocando noites em claro pensando nisso. Eu estaria louca se achasse que você sente algo? Foram meses tentando um tipo de resposta sua, como o poema diz não forçarei minha vontade em cima de ti, pois sei que ninguém pode domá-lo, e um sentimento tão belo como o amor não deve ser obrigado, ele deve chegar abrindo janelas e trazendo o sol, deve nos fazer sorrir por besteiras faladas ao telefone ou mesmo que por cartas.

Curvo-me ao teu silêncio e deixo-me ir, pois sei que um simples afago seu me fará retornar. Você se lembra do seu presente de aniversário? Se ainda tiver, essa é minha prova que estarei aí, em pensamento, em sentimento por aqui, torcendo por ti. Sei que você terá um futuro incrível, sei que você logo irá ser lembrado em jornais e pelos campos por aí como maior armador dos Estados Unidos, (Não torça a boca, eu sei que você alçará um voo longo).

Siga sonhando Luke Dinally, siga sonhando.

Um dia minha vida cruzou com um garoto e eu me apaixonei. Ele me consumiu com sua escuridão e por uma razão insana, o tal rapaz não conseguiu me manter afastada.

Era uma vez um cara, que fez eu me apaixonar por suas imperfeições. Por breves olhares trocados e beijos quase roubados, eu tenho certeza que ele também se apaixonou.


Sempre sua, Aly.”


Meu peito estava pesado, Alissya era uma dessas pessoas que todos amavam logo de cara, seu jeito feliz era como se ela vivesse sobre um brilho todo dela, se ela dedicava um sorriso para você, automaticamente você se sentia aquecido por dentro.

O sorriso dela era perfeito, Alissya sempre sorria fazendo uma espécie de biquinho, até abrir realmente o sorriso. Uma vez acusei-a de seduzir as pessoas com seu charme, ela me chamou de tolo e disse que somente uma pessoa sem educação poderia confundir gentileza e simpatia com charme barato. Lembrei-me do dia que ela subiu pela sacada de minha casa e só parou de castigar minha janela quando decidi abri-la permitindo sua entrada. Nessa noite nos sentamos no telhado, admirando as estrelas e brigamos para descobrir quem tinha mais razão sobre o universo. Alissya ganhou e em troca ela me deu um beijo na bochecha, isso soaria patético demais para aquele antigo Luke, o cara acostumado a levar todas as meninas na lábia, mas aquele beijo me deixou sem ar.


Capítulo 16

Luke Dinally

Oito meses depois.


Tirei o capacete olhando para a paisagem que o mirante me dava, passei a mão pela cabeça sentindo meu cabelo curto, mas para mim isso era maravilhoso. Desliguei a moto ficando ainda sentado sobre ela.

Recebi alta quarenta dias após meu transplante, a medula tinha se adaptado perfeitamente com meu corpo, aumentando rapidamente o número de plaquetas e meu hemograma foi considerado satisfatório depois de longos meses. Eu ainda teria o compromisso de realizar exames, alguns, semestrais, outros, anuais, até completar cinco anos de transplantado. Pois somente após cinco anos eu realmente saberia se a doença não me atacaria novamente, não que eu não estivesse saudável ou livre da Leucemia, mas havia chances de ela retornar. Assim como a grande quantidade de remédio que eu fui receitado a tomar mesmo de alta, diminuía de pouco em pouco. Tudo isso era considerado uma imensa vitória para mim, era bom retornar para casa, poder acordar e fazer o que eu desejava sem sentir todos os sintomas ou ficar preocupado que eu poderia acordar no dia seguinte e passar tudo outra vez.

Isaac continuava no hospital, seu caso não tinha mais solução ou cura. Por isso todo o processo de quimioterapia e radioterapia foi cessado. Todas as segundas e quartas-feiras, como hoje, eu ia visitá-lo, passava o dia com ele. Muitas vezes apenas sentado ao seu lado enquanto ele dormia, ou até mesmo olhando pela janela em silêncio. Isso era uma das coisas mais tristes que eu via. Meu amigo sempre foi tão feliz, tão espontâneo mesmo sofrendo de Linfoma, enquanto eu era o mal-agradecido que só sabia reclamar, ele sorria para vida, abraçava os momentos como se aqueles fossem seus últimos, e se no dia seguinte acordasse ele faria tudo novamente.

Era triste entrar em seu quarto e ver a luz se apagando dentro dele, notar que seus sorrisos já não eram assim tão sinceros ou que ele não falava as metáforas que tanto me acostumei a ouvir.

Liguei a moto, recoloquei meu capacete e segui para o hospital. Antes de entrar eu sempre respirava fundo, não só por ter lembranças terríveis do que vivi ali, mas por saber que meu amigo poderia não estar vivo.

— Bom dia, Sam. – cumprimentei a doce enfermeira com um beijo no rosto.

— Bom dia querido, dia de visita?

— Sim, como ele está?

Ela soltou um suspiro resignado. – Mal, cada dia um pouco pior que o outro, como sempre.

— Ele teve alguma crise?

— Não meu rapaz, porém pode estar meio inconsciente, pela medicação utilizada para aliviar a dor.

Concordei com a cabeça, estava me afastando quando Sam me fez parar brutamente.

— Aly veio aqui.

Virei olhando para seu rosto, sua sobrancelha erguida como quem analisava minhas reações.

Engoli em seco. – Veio?

— Sim, na segunda-feira, quando você não pôde vir. Ela está bonita. – Sam sorriu, talvez se divertindo com minha tentativa de “não ter reações”. – Veio acompanhada.

Tentei ignorar o frio na barriga, eu sabia que ela estava com alguém, sabia, pois secretamente assisti uma de suas apresentações na internet, Alissya estava ainda mais linda de quando a conheci, seus cabelos estavam mais curtos, com um corte moderno e combinando com seus vinte e dois anos. Mas quando ela terminou de tocar, agradeceu e sorriu, eu vi a minha Aly ali tentando escapar pelos cantos daquele sorriso duro e profissional.

Ela ainda tocava com a alma, tocava com amor e paixão. Foi quando a câmera seguiu pelas pessoas, se focando novamente em Alissya que eu vi o rapaz alto e muito bem-apessoado que estava abraçando-a, mas não era um abraço qualquer aquele que damos em nossas tias ou parentes distantes, era um abraço com intimidade, um abraço de um cara que sabia cada parte daquele corpo.

— Ela está bem?

Sam assentiu. – Linda, feliz. Ela continua com o mesmo jeito Aly de ser.

Suspirei, eu queria que Aly fosse feliz, ela merecia.

Durante minha estadia no hospital, mesmo depois de ler todas as cartas dela e reler algumas eu não consegui escrever para ela. Eu ainda tinha o chaveiro em formato da bola de basquete que ela havia gravado nossos nomes, ele sempre me acompanhava. Quando vi o tal vídeo de sua apresentação ela também parecia feliz, parecia ter conseguido realizar todos seus sonhos.

Despedi-me de Sam seguindo para o quarto de Isaac, quando bati uma vez na porta entrando em seu quarto dei de cara com ele desperto, sorri recebendo em troca seu sorriso frágil.

— Como estamos hoje? – perguntei sentando na beirada de sua cama.

— Nada diferente de ontem, mas acredito que melhor que estarei possivelmente amanhã.

— E você continua falando asneiras. – retruquei.

— E você ainda continua aqui. – disse.

Peguei sua mão dando um singelo aperto. – Estarei sempre.

— Preferia quando você era ranzinza Dinally, está quase virando uma mulherzinha. – brincou tossindo um pouco.

Soltei uma gargalhada.

— Estou contente por ver um pouco do meu amigo ai. – comentei recebendo seu sorriso fraco.

— Você já sabe o resultado da faculdade?

Soltei um suspiro, esse era outro motivo para eu estar ali, logo estaria seguindo para Califórnia, começando meu semestre e não podia deixar de sentir pesar e um aperto no peito em pensar que terei que deixar Isaac aqui. Mesmo sabendo que ele seria muito bem cuidado, ele esteve ao meu lado nas piores crises contra a doença, não me parecia justo deixá-lo quando ele precisava de um amigo.

Quando tomei coragem de enviar minha carta de admissão foi uma surpresa para todos, afinal meu sonho sempre foi ser um jogador profissional de basquete. Então, pode imaginar quando entrei em casa segurando minha carta de admissão para uma das faculdades mais tradicionais e respeitadas de Medicina dos Estados Unidos.

Nesse tempo que passei doente eu percebi o quanto era importante o trabalho dos médicos, enfermeiras, do quanto eu poderia contribuir.

— Fui aceito na Stanford, sabe, terei realmente que dar duro para me manter, mas é isso que quero fazer.

— Então nosso astro do basquete trocou suas bolas e empurrões nas quadras por sangue e pacientes rabugentos? – Isaac zombou.

— Sim.

— Olha, parece que o carma realmente existe.

Sorri feliz por ter Isaac em minha vida.

Ficamos por um momento em silêncio.

— Estou feliz por você Dinally, estou realmente orgulhoso, estaria mais se você não tivesse sido um completo idiota e perdido a garota dos seus sonhos.

— De novo isso? – retruquei olhando em seus olhos.

— Sim, para você ver o tamanho de minha indignação. Você poderia ter sido um homem de sorte, hoje é só um panaca curado do câncer.

Balancei a cabeça ficando de pé. – E você deveria manter sua boca fechada.

Percebi que Isaac estava tentando disfarçar sua falta de ar, olhei para a máquina percebendo um botãozinho vermelho se mostrando presente ali.

— Vou chamar a enfermeira para dar uma olhada em seu oxigênio, já volto.

— Luke?

Parei, voltando novamente para ele.

— Tenho que agradecer a você.

— Por que essa história de me agradecer?

— Nunca pensei que iria gostar tanto de um rapaz chato como você, mas posso dizer que você alegrou meus dias aqui. – Isaac tossiu novamente, puxando o ar com força.

— Para de bobeira, depois eu que estou virando mulherzinha, me deixe procurar logo por um enfermeiro para olhar a bomba de oxigênio.

Issac esboçou um sorriso. – Luke? Corra atrás de Alissya, não a perca de vez, senão você será um cara frustrado no futuro.

Engoli em seco, totalmente desconfortável.

— Você é a escuridão dela e ela é a sua luz. – disse respirando com mais força na máscara. – Dois opostos que se atraem e se completam.

— Eu já volto, aí continuamos essa conversa maluca.

Eu estava preocupado com sua falta de ar e ficar ali conversando sobre esse assunto não me ajudaria e nem mesmo a Isaac.

Sai apressado pelo corredor em busca de uma enfermeira, bati em algumas portas de quartos, mas não havia ninguém. Foi quando um apito soou por todo andar, voltei meus olhos em direção ao quarto de Isaac, assim como surgiu um médico correndo do corredor oposto, logo alguns enfermeiros seguiram seus passos empurrando uma máquina pesada. Sai em disparada pelo corredor, voltando para o quarto, um dos enfermeiros me deteve na porta, os médicos tentavam reanimar meu amigo, mas sem sucesso. Depois de três tentativas fracassadas eles anunciaram a hora do óbito.

— Tente de novo. – ordenei.

— Não temos mais o que fazer rapaz. – disse o médico jogando as luvas no lixo do quarto.

— Tente! – gritei. – Tente de novo.

— Eu sinto muito.

— Você não sente droga nenhuma, faça seu trabalho e tente de novo.

— Eu lamento. – o médico respondeu tentando sair do quarto.

— Luke, Luke.

— Você não lamenta nada, ele não era nada para você, mal olhava para o rosto dele. – empurrei o enfermeiro puxando a máquina eu estava pronto para ligá-la quando senti as mãos de Sam me detendo. — Ele era meu amigo, tente reanimá-lo agora. Tente! – gritei, mas meu corpo já permitia que os braços de Sam me envolvessem e que o choro tomasse forma e saísse de dentro de mim.


Capítulo 17

Alissya Rayven


“Diga que vai se lembrar de mim

Ali parada em um belo vestido,

Olhando o pôr do sol, querido.

Diga que você vai me ver de novo

Mesmo que seja apenas em seus sonhos

mais selvagens.”


Aplaudi colocando um sorriso no rosto. – Vocês foram incríveis, tenho certeza que será uma grande apresentação.

Tyler saiu de trás do piano, vindo ao meu encontro.

— Você é suspeita minha querida. – disse beijando o canto de minha boca.

Mantive meu sorriso trocando um rápido olhar com Gaby, ela sabia que eu não nutria sentimentos por Tyler, era apenas um carinho muito grande, mas não era o mesmo que ele dedicava para mim.

Nós três estamos vivendo nossos sonhos, Tyler estava no auge de sua carreira, sendo convidado para tocar em praticamente toda Nova York, Gaby e eu estávamos quase nos formando e oportunidades não faltavam, daqui alguns meses teríamos nosso primeiro concerto, algo grande e os ensaios e cobranças viraram nosso assunto principal.

Dentre tudo isso havia se passado três anos, três anos desde que enviei minha última carta para Luke. Três anos que vi o rosto dele pela última vez, trinta e seis meses de saudade, de um sentimento enraizado dentro de mim. Ano passado consegui uma folga em minhas aulas e no trabalho e voltei para a pequena cidade de Beaufort, ao chegar descobri com dor no peito que Isaac havia falecido, enfraquecido demais pelo câncer, mas deixando lembranças e saudade de suas falas inteligentes. Antes de ir para casa dos meus pais, passei na residência dos Dinally, a mãe de Luke me recebeu com um enorme sorriso e um abraço, onde me contou toda emocionada as coisas da qual Luke havia superado nesses últimos anos.

Ele venceu a Leucemia, como sempre tive certeza que faria, após um ano ele não tinha mais nenhum resquício que a doença retornaria, assim como também, fiquei sabendo que ele estava em Stanford, cursando Medicina. O que me pegou de surpresa já que seu sonho sempre foi o basquete.

Isso era maravilhoso, ele merecia ter um futuro brilhante pela frente, merecia ter de volta o brilho de vida naqueles olhos verdes.

— Você nos acompanhará?

Virei o rosto abandonando meus pensamentos. – Acompanhar no quê?

— Que mundo estava amor? – Tyler questionou sorrindo.

Eu gostava quando ele sorria, Tyler era um homem extremamente bonito e charmoso em seus vinte e sete anos.

— Desculpe, eu estava repassando algumas coisas que preciso fazer.

— Estamos querendo ir naquele novo restaurante do centro, você topa ir? – Tyler repetiu a pergunta que havia perdido por conta dos meus devaneios.

— Sim claro, vou apenas pegar minha bolsa nos bastidores.

— Eu pego, também preciso pegar minha pasta de partitura.

Soltei um suspiro vendo Tyler se afastar.

— Você precisa dar um basta. – retrucou Gaby.

— Basta?

— Sim, em você e Tyler, não duvido nada dele comprar uma aliança de compromisso. – ela deu uma espiada para onde Tyler havia ido, verificando que não estava por perto.

— Eu sei disso, pode me chamar de egoísta, eu gosto da presença dele. Tyler sabe bem que entre nós não há nada.

— Não há nada na sua cabeça amiga, para ele existe algo sim, mesmo que não declarado. As pessoas veem como ele praticamente gravita ao seu redor.

Respirei fundo.

— Além do mais, sentir-se bem com a presença de uma pessoa não quer dizer que você sente algo por ela e nós duas sabemos que seu coração não tem espaço para mais ninguém.

— Gaby.

— Não me venha com essa Aly, te conheço tempo suficiente para saber que você estava agora mesmo pensando no Dinally.

— Isso é passado.

— Será mesmo? Ou você está tentando se enganar? – questionou erguendo a sobrancelha. – Dê um fim nisso antes que seja tarde demais.

— O que será tarde demais? – Tyler apareceu ao meu lado, colocando a mão na minha cintura.

— Eu estava falando para Aly que não devia ficar alimentando aquele mendigo estranho que mora perto de nosso prédio. – Gaby trocou um olhar comigo. – Não sabemos nada dele e se for um maluco?

— Isso é verdade, você tem que tomar cuidado, querida.

Sorri mais uma vez.

— Esse seu coração grande pode te complicar um dia. – continuou Tyler.


De banho tomado, me enfiei na cozinha do meu pequeno apartamento no centro, preparando algo para comer. Considerando que o tempo estava quente, até mesmo para Nova York, e eu ainda teria um turno no trabalho, fiz uma salada com frango grelhado. Estava colocando a comida na mesa quando a campainha tocou, abandonei meu lugar abrindo a porta, dando de cara com Tyler do outro lado.

— Tyler? Você não iria trabalhar até mais tarde?

— Sim, já estou indo, passei apenas para roubar um beijo e entregar isso. – ele tirou das costas uma caixa de bombons.

— Muito obrigada, adoro esse chocolate.

— Eu sei. – disse se gabando.

Dei um passo para trás permitindo sua entrada, ele estava com o cabelo molhado indicando banho recente, seu perfume preenchia o ar a minha volta, seu uniforme do trabalho impecável como todo resto.

— Estava fazendo uma salada com frango, quer comer?

‘Tyler me abraçou dando um beijo em meu pescoço. – Não querida, vim mesmo para entregar seus bombons. Quer uma carona para o trabalho?

— Não precisa, obrigada.

— Eu adoraria perder uns minutos com você, faz muito tempo que não ficamos realmente juntos. – disse colado em meu pescoço.

— Muitos ensaios, apresentações, fora o trabalho, praticamente chego morta no final do dia.

Tyler se afastou olhando para meu rosto. – Quando poderei conhecer sua família?

Engoli em seco, nas últimas semanas Tyler tinha se fixado nessa ideia de conhecer meus pais.

— Eu não sei, podemos marcar algo. – disse tentando fugir do assunto.

— Sua irmã não vem passar o fim de semana com você? Podemos combinar de buscá-la, assim conheço sua família e ainda podemos programar um fim de semana incrível para sua irmã. – disse todo animado.

— É, podemos. – respondi com falsa animação.

Tyler selou seus lábios nos meus, agarrando-me pela cintura, seu celular começou a tocar.

Salva pelo gongo, pensei. Ao mesmo tempo me odiando por isso.

— Eu preciso ir, não quer mesmo uma carona? – disse ainda com os olhos no visor do telefone.

— Não, obrigada.

— Está certo, te ligo mais tarde.

Tyler me deu um beijo na testa saindo apressado do meu apartamento. Senti que agia como uma tola. Também me sentindo a pior mulher da face da Terra, Tyler era um homem doce, sempre amigo e solidário. Mas esse era o problema, ele era amigo, não passava disso. Esse grande erro começou quando no primeiro ano de faculdade, assim que encerraram as aulas eu e Gaby aceitamos sair com Tyler e sua turma, o resultado foi muita música, cervejas e eu voltando para casa com Tyler, o resto pode-se imaginar o que aconteceu.

Era como se eu quisesse me enganar por todo esse tempo, pensando que poderia colocar outra pessoa em meu coração quando ele sempre foi preenchido pelo vazio e escuridão de Luke Dinally. Acredito que algumas pessoas até ficam com outras porque, em suas cabeças é o correto a se fazer, achando que, com o tempo, podem acabar aprendendo a amá-las e serem felizes. Eu pensei isso por algum tempo, mas não era isso que acontecia.

A questão é que Luke Dinally tinha fechado a porta para mim, tinha me mandado embora sem nem ao menos dizer tchau. Naquele momento eu não sabia o que pensar. Minha cabeça e meu coração estavam em eterno conflito.


Capítulo 18

Luke Dinally


Tirei as luvas e o avental jogando no lixo ao sair do quarto. Sentei em uma das cadeiras no corredor, respirando fundo, notando que faltavam poucas horas para ir para casa.

— Luke?

Olhei para o outro lado vendo Brenda, vindo ao meu encontro.

— Oi, você precisa de algo? Desculpe por ainda não ter passado na recepção acabei de sair do quarto de Rebecca.

— Tudo bem, não tem problema. – ela sentou-se ao meu lado olhando para porta do quarto. – Você gosta mesmo dessa menina e ela de você.

— Gosto, eu vejo muito de mim nela. Sei que é até inapropriado, mas eu quero que ela saiba que não está sozinha. Isso faz uma grande diferença.

Brenda sorriu olhando para mim. – Você faz um excelente trabalho, tenho certeza que será um bom médico quando se formar.

— Obrigado, Dra. Brenda.

— Apenas Brenda.

Brenda era uma mulher linda, aos trinta e cinco anos esbanjava beleza e profissionalismo, era uma das médicas mais queridas pelos pacientes.

— Preciso ir, ainda tenho que passar no PS e conferir se precisam de ajuda.

— Claro, depois pode ir para casa descansar. A noite está tranquila.

— Obrigado – me levantei sorrindo, seguindo meu caminho.

Coloquei o casaco puxando um pouco para o alto a gola, andando calmamente pelas ruas, o centro estava animado por ser uma sexta-feira, muitas pessoas na rua, risadas, música. Passei a mão pelo cabelo, ele já estava raspando na gola da camisa social que eu usava. Como eu morava perto do hospital andava todos os dias, quando me mudei para Califórnia estranhei tudo, foi até difícil a adaptação, mas a última coisa que faria era desistir.

Quando escutei as palavras do médico que eu não tinha mais câncer, que não havia nenhum indício da Leucemia retornar para meu corpo foi como se eu tivesse livre, foi exatamente assim que me senti. Lembro que eu juntei poucas coisas pessoais numa mala, amarrei-a em minha moto e peguei estrada.

No primeiro dia de faculdade conheci Otto, ele era viciado em videogame e muito inteligente. Seu plano era se formar em Cardiologia, notas para isso ele com certeza teria, mesmo sendo um amante de festas e adorar passar a noite em claro na frente da TV, era uma boa pessoa e quando estava no hospital fazendo parte do grupo de voluntariados era excelente com os pacientes.

Eu sempre soube o que faria, em qual área queria seguir. Por isso mal titubeie quando escrevi minha área de atuação. Oncologia.

Algumas pessoas dizem que você pode receber um sinal do céu que está no caminho certo, eu devo ter recebido. Foi uma surpresa ter minha mão segurada por uma menina de sete anos enquanto verificava os pacientes, ver seus enormes olhos castanhos marejados e um pequeno sorriso aparecer em seu rosto. Aquilo me deixou com um aperto no peito, saber que aquela menina sofria pela mesma doença que eu sofri quase quatro anos atrás.

O nome dela era Rebecca, ela vinha lutando contra o câncer desde os cinco anos de idade, estava há um ano internada no hospital e finalmente poderia receber seu transplante de medula.

Foi então que tive mais certeza que estava no caminho correto, eu seria Oncologista infantil.

Sai de meus pensamentos vendo uma menina sentada na Roth Way tocando violão, ela cantava alto, mal se importando com as pessoas que passavam, alguns pensavam que ela estava cantando por algumas esmolas, mas eu sabia que não era isso, ela cantava para ela, somente para ela. Isso me fez lembrar de Alissya, não que algum dia eu tenha esquecido. Muito pelo contrário, eu me lembrava todos os malditos dias e todos os dias eu me repreendia por não ter procurado por ela.

Uma vez viajei até Nova York, mas era como procurar uma agulha em um enorme palheiro. Fiquei três horas parado em frente a Julliard, mas Alissya não passou pelas enormes escadarias da faculdade.

— Ei, Dinally.

Virei-me dando de cara com Jaqueline, ela se aproximou com um enorme sorriso.

— Estava indo procurá-lo, Otto disse que ainda estava no plantão. – ela me deu um leve beijo nos lábios. — Desculpe. – acrescentou com falsa vergonha.

Afastei-me devagar para não ferir seus sentimentos, Jaqueline nutria uma paixão por mim, ou uma atração, que seja. E eu me sentia mal por isso, pois mesmo deixando claro que nunca teríamos nada, ela insistia que a esperança era a última que morria e que um dia, um dia qualquer eu poderia olhá-la com outros olhos.

— Estava indo para casa.

— Que tal sairmos para comer algo? – perguntou.

— Não é uma boa ideia Jaque, estou cansado e amanhã tenho plantão logo cedo.

Ela suspirou. – Alguém já te falou que você anda mais com o grupo de voluntários enfiado no hospital do que fazendo outra coisa?

— Sim, já me falaram isso. – respondi sorrindo.

— Tudo bem, quem sabe qualquer dia desses?

— Claro, vamos marcar algo.

— Ótimo! Tem um restaurante Vegano excelente, sei que você prefere carne, mas não irá se arrepender. — Ela sorriu amplamente, deu mais um beijo em minha bochecha e saiu na direção contrária, me deixando mais uma vez com peso na consciência.


— Já pediu a comida?

— Hã?

— Já pediu a comida? Que mundo você está Dinally? – Otto veio em minha direção arrancando o telefone de minhas mãos.

— Desculpe, eu me perdi em pensamentos.

— E eu morrendo de fome. — Otto discou o número da pizzaria mais próxima. – Você está estranho cara e faz dias. – argumentou esperando ser atendido.

Respirei fundo me jogando no sofá.

— Uma pizza para 745 O’Connor Ln. – Otto fez uma pausa. – Isso mesmo pode ser a de sempre. – completou desligando o telefone.

Ele andou até a sala, se jogando no outro sofá, os olhos colados em mim. – Desembucha Dinally, o que está acontecendo. É a garota da música?

— Quem?

Ele revirou os olhos.

— A menina que você tanto chama quando dorme, ou o motivo de você ter adquirido um estranho gosto para músicas clássicas.

— Ela mesma. – confessei.

— Cara, se ela depois de todos esses anos continua mexendo com sua cabeça, o que você está fazendo aqui, com sua bunda sentada no sofá?

Meus lábios se abriram, fiz menção de dizer algo, mas nada saiu. Eu tinha ouvido isso anos antes de Isaac.

— Eu já teria ido atrás dela.

— Eu não sei mais nada dela, não sei se continua em Nova York ou está em outro lugar.

— Bom nisso posso ajudar, passa meu computador.

Passei seu notebook, Otto rapidamente abriu digitando de maneira frenética no teclado.

— Qual o nome dela mesmo?

— Alissya Rayven.

— Vamos lá. – ele analisou a tela por alguns minutos, me deixando nervoso.

— Diga alguma coisa.

Ele sorriu entregando o computador para mim. Na tela estava uma matéria enorme falando sobre os talentos na música, onde o nome de Alissya era sempre citado.

— O que é tudo isso?

— Sua garota irá fazer parte de um dos concertos mais importantes em Nova York, daqui algumas semanas. É sua grande chance. – Otto estalou os dedos, colocando os braços atrás da cabeça. – Pelo que diz aí, ela será uma das homenageadas.

— Não sei, eu sumi, como vou aparecer na frente dela? “Oi Alissya, eu sumi, mas te amo?” – zombei.

— Olha eu daria um tapa no seu rosto se fosse ela, mas você só poderá ver se será essa a reação dela quando chegar lá.


Capítulo 19

Luke Dinally


Estacionei a moto, vendo as pessoas entrarem no teatro bem vestidas, alguns homens de terno, as mulheres com vestidos elegantes. Dei uma espiada em minha roupa, minha calça jeans preta, minha blusa branca e a jaqueta de couro, eu não estava vestido para aquilo, mas era o que teria para hoje.

Da Califórnia até Nova York eram quarenta e quatro horas, sete estados, dois dias de viagem com poucas paradas ou apenas sete horas de avião, o que nem cogitei como uma escolha. Sai correndo do hospital três dias antes do concerto, tinha conseguido trocar meus turnos para que pudesse realizar essa viagem, passei em casa apenas para um banho e pegar uma pequena mala e peguei estrada, mal tinha dormido, parei por poucas horas para esticar as pernas em alguns hotéis de beira de estrada, mas fiquei o tempo todo olhando o teto ou então o relógio, com medo de perder a hora. Além do mais, a sensação de subir em minha moto e pegar estrada foi o que sempre sonhei.

Entreguei meu ingresso para um dos seguranças que estava na porta, Otto conseguiu pegar um lugar perto do palco para mim, sentei em minha poltrona sentindo um frio tomar minha espinha, a plateia aplaudiu quando os músicos ocuparam seus lugares no palco, mas Alissya não estava ali no meio dos violinistas. Um rapaz começou a tocar o piano, os violinistas começaram em total sincronia, era lindo de se ver, você conseguia sentir facilmente a energia da música.

Um foco de luz surgiu no canto do palco, vindo até o centro e ali estava Alissya, tocando um solo em seu violino, como na primeira vez que a vi tocando, ela dava tudo de si, do lugar que eu estava conseguia ver e sabia que seus olhos estavam fechados, ela não perdeu seu amor pela música. Sabia que ela sentia a música dentro de si, assim como seu corpo acompanhava os movimentos de seus braços. Os outros músicos voltaram a acompanhá-la fazendo a música crescer, seguindo as ordens do maestro.

Mesmo encantado com aquele concerto eu não conseguia desgrudar meus olhos de Alissya. Ela parecia brilhar no palco, o restante dos músicos ficou em silêncio enquanto Alissya tocava o que pareceu os últimos acordes do concerto, então toda a plateia ficou de pé aplaudindo, eu acompanhei vendo-a sorrir para os colegas e para a plateia.

Como meu plano, eu teria que ser rápido, sabia que como era um concerto e ela uma das estrelas principais, com certeza receberia alguns convidados nos bastidores ou até mesmo em um camarim. Sai de meu lugar, andando apressado pelo corredor de pessoas que já iam embora.

— Por favor. – disse tocando de leve o ombro de uma mulher.

— Sim.

— Eu sou irmão de Alissya Rayven, eu queria muito dar um abraço nela, você acharia que é possível?

A mulher me mediu da cabeça aos pés, eu rezei para que ela não pedisse um documento para comprovar a veracidade do que falei, ela soltou um suspiro. – Tudo bem, mas seja breve. É só seguir o corredor até o final, primeira porta a esquerda.

— Muito obrigado.

Segui pelo corredor, andando apressado, o som de vozes e o som de taças se chocando foi ficando mais alto. Respirei fundo, passei a mão pelo cabelo tentando parecer mais apresentável. Ela estava no meio do camarim, sorrindo e tomando o champanhe, conversando com as pessoas ali presentes. Ainda mais linda, ainda mais repleta de vida e me enchendo com sua luz. Acompanhei seus movimentos em câmera lenta, ela se virou sorrindo ainda de algo falado para ela, mas assim que seus olhos se fixaram em mim, aquele sorriso morreu.

— Luke? O que você está fazendo aqui?

— Eu soube do seu concerto, você estava magnífica lá em cima. – engoli o nó que se formava em minha garganta.

— Obrigada, vejo que você está bem, como estão as coisas, sua família? Faz tempo que não nos vemos. – disparou em falar.

— Estão todos bem. Podemos conversar a sós? – perguntei olhando para as pessoas que estavam no camarim.

— Claro. – ela se virou fazendo um sinal, logo todos tinham nos deixado fechando a porta, o silêncio entre nós parecia estralar.

— Aly, a última vez que nos vimos ainda queima em minha memória, sei que fui tolo, idiota, chame do que quiser, você mandou diversas cartas, eu li todas, acredite.

— Luke, isso não importa mais.

— Importa sim, importa muito para mim. – dei um passo para frente, Alissya acompanhou dando outro para trás. – Eu precisava vir aqui, na sua frente pedir desculpas, eu sempre estou voltando para aquele dia que nos sentamos em meu telhado, sempre estou voltando para sua carta, eu sei todas as palavras, gravei até cada floreio que você faz nas letras.

— Luke, por favor.

— Eu queria ter percebido o que tinha, o que você era para mim naquela época, hoje poderia ser tudo diferente. Eu voltaria cada mísero dia, e em todos diria o que eu sinto por você. Alissya você esteve ao meu lado quando poucos fizeram, você aturou cada reclamação, cada momento de dor, você estava lá. – ela se mantinha em silêncio me encarando. – Você me deu a vida Aly, você é a responsável por eu poder realizar meu sonho, por eu poder respirar a cada novo dia. Você me deu seu amor e eu só conseguia dizer adeus e te dar meu silêncio.

— Luke é tarde demais para desculpas, não precisamos...

— Precisamos, você precisa escutar cada palavra que deveria ter escrito. Eu deveria ter ligado em seus aniversários, eu olho para as estrelas e só consigo lembrar de você encostada em mim falando de como as pessoas podem desvendar o futuro através delas. E quando você escreveu que me deixaria, e que levaria meu silêncio como uma negativa ao seu amor, eu tive vontade de gritar, eu não quero isso, eu não desejo nem por um segundo que você fique longe de mim. Agora em pé em sua frente eu não posso deixar de pronunciar que eu amo seu cabelo quando o vento bate sobre ele, levando algumas mechas para seus lábios, que eu queria levá-la para todas as viagens que conversamos, que eu adoro desafiá-la, só para ver o simples encrespar no lábio que você costuma fazer, que você tem cheiro de morango. Eu comecei a detestar a fruta só por me lembrar de você...

— Luke, pare.

— Aly eu te...

A porta abriu de forma bruta interrompeu o que eu estava preste a dizer, o homem que estava mais cedo aqui passou por mim, indo ao encontro de Alissya, segurando sua cintura.

— Querida podemos ir? Clark nos chamou para comemorar no bistrô, estamos apenas esperando você.

Senti como se um buraco tivesse se abrindo debaixo de meus pés, Alissya mantinha seus olhos colados em mim e o homem continuava com o braço sobre sua cintura de forma possessiva.

— Luke, foi ótimo vê-lo novamente.

Concordei com a cabeça sentindo meus olhos marejados.

Alissya passou por mim com seu acompanhante, evitei respirar quando seu cheiro chegou perto demais, tudo que eu não precisava era o cheiro dela impregnado dentro de mim.


Capítulo 20

Alissya Rayven


“Porque você me deixou aqui para queimar?

Sou muito jovem para estar tão machucada

Por que você não se importa?

Eu te dei tudo de mim

Meu sangue, meu coração e minhas lágrimas

Por que não se importa?

Eu estava lá, quando ninguém estava

Agora você se foi e eu estou aqui”


Meu coração deu um salto, meus joelhos ficaram fracos e meu corpo estremeceu. Foi isso que senti quando virei e dei de cara com Luke Dinally parado na porta do meu camarim, vestido com seus jeans surrados, sua jaqueta de couro, seus cabelos estavam exatamente como eu me recordava de nosso primeiro encontro, talvez um pouco maior.

Engoli em seco, sabia que tinha que falar alguma coisa, mas não saía. Abri e fechei a boca diversas vezes, meus pés pareciam enraizados no lugar. Meu coração palpitava na velocidade de mil quilômetros por hora.

— Aly, eu te...

Meus olhos automaticamente se arregalaram quando Luke começou a dizer, mal notei que Tyler tinha entrando no camarim, mal entendi o que ele falou, apenas concordei ainda olhando para Luke. Deixei que Tyler me levasse para fora, para longe de Luke.

— Aly, por favor.

Virei olhando para Luke ainda parado me encarando. Podia sentir seu perfume vindo até mim, o cheiro almiscarado que eu amava quando ia visitá-lo. Deus, eu sentia falta daquele cheiro. Meus dedos praticamente formigavam com a vontade de tocar seu rosto, sentir seus cabelos por entre meus dedos.

— Agora não é o momento Luke, e acredito que o momento tenha passado.

— Não faça isso conosco. – ele sussurrou novamente, ignorando por completo a presença de Tyler ao meu lado.

— Você fez. – desvencilhei-me do braço de Tyler voltando para onde Luke estava, parando a centímetros dele. – Eu entendo que você estava confuso, que a última coisa que você poderia pensar seria em usar ou dar um termo para nós. Eu fui compreensiva Luke, acredite, fui até demais. Como você me disse, eu estava lá, principalmente como sua amiga e você não pôde nem retribuir um pouco da amizade que eu lhe dei.

— Eu te amo, Alissya. – ele disse olhando no fundo dos meus olhos.

Abaixei a cabeça respirando fundo.

— Você não pode aparecer aqui, três anos depois e esperar que tudo seja do mesmo jeito. Não pode esperar que continuemos de onde paramos, pois não é assim.

Luke assentiu.

— Alissya, acredito que devemos ir. – Tyler pegou minha mão de modo firme, sua voz mostrava que não estava nada contente, afinal quem estaria?

— Eu não esperava que fosse Aly, mas aceito de bom grado a batalha que terei pela frente.

— Acredito que você já disse o suficiente meu amigo.

Vi o peito de Tyler se estufar.

— Vamos embora. – disse puxando sua mão, tudo que eu não queria era uma briga entre eles, e eu tinha muita coisa para esclarecer para Tyler, tinha que ajeitar as coisas. Não era justo com ele, muito menos comigo, ele precisava saber que tudo não passou de um caso, que tudo não passou de solidão, carência e um coração partido.


Tyler encostou-se no sofá, coçando o queixo.

— Eu não vou pedir para não me odiar, eu mesmo estaria me odiando nesse momento.

— Nunca poderia odiá-la, eu sempre enganei a mim mesmo Aly, eu sempre estive com você, para você, mas você não, você sempre foi minha amiga e continuará sendo. Mas nunca foi alguém que passou disso.

Fechei os olhos por um instante. – Desculpe Ty.

— Não peça desculpas. – Tyler passou a mão em meu rosto chegando mais perto.

— Odeio-me por partir seu coração.

Ele riu. – Doce Alissya, sempre entendi que você não tinha lugar para mim como seu namorado. Você é uma pessoa pura, não sente necessidade em ferir os outros e poucas vezes vi você sendo rude. – Tyler pegou minhas mãos na dele. – Você nunca me prometeu nada.

Respirei fundo um pouco mais aliviada, por ele ter entendido.

— Você vai ficar bem?

Assenti, mesmo não tendo certeza sobre isso, os olhos verdes de Luke me perseguiam toda vez que fechava meus olhos, mesmo que por um breve piscar de olhos.


Capítulo 21

Luke Dinally


Subi na moto sentindo os pingos da chuva caírem sobre mim, em poucos quilômetros ela me pegou por completo, a chuva forte me deixou encharcado, desacelerei procurando um bar onde pudesse me abrigar até que ela cessasse ou que pudesse pelo menos comer algo. Encontrei um afastado do centro, sua fachada era simples e com aspecto bem limpo. Estacionei a moto no meio de dois carros, tirei o capacete na soleira do bar, assim como a jaqueta encharcada.

— Chuva cruel. – disse o rapaz por de trás do balcão.

— Sim. – sentei em um dos bancos altos puxando um cardápio para perto.

— Mas não parece a chuva que tornou sua noite difícil.

Ele fez menção de colocar um copo com uma bebida escura em minha frente, mas logo neguei pedindo uma água e uma porção de fritas, isso enganaria meu estômago até amanhã.

— Mulher? – continuou perguntando de maneira inoportuna.

Franzi o cenho, sem saber onde ele estava querendo chegar com esse papo.

— Não precisa dizer nada, conheço bem essa expressão de quem foi chutado por uma mulher. Ela vale a pena?

Ri da ironia que isso soava. Acredito que nunca compreenderia o quanto Alissya era valiosa, o quanto era importante.

— Definitivamente sim.

— Então lute por isso.

Chegava a ser cômico a quantidade de “incentivos” que estava recebendo, eu já sabia que tinha sido tolo. O universo não precisava esfregar mais em minha cara.


Deitado no quarto de beira de estrada, eu repassava tudo em minha mente, odiava o fato que nesse momento Alissya poderia estar aconchegada nos braços de outro alguém, mas pensando friamente, seria justo com o outro cara? Afinal eu perdi Alissya, eu fechei a porta em sua cara quando ela só queria meu amor.

Eu não deixaria de lutar, sentia-me mal pelo cara, mas Alissya nunca pertenceu a ele, como Isaac falou poucos minutos antes de sua morte: “Ela era minha luz e eu a sua escuridão”.

Eu precisava descobrir onde ela estava morando, precisava vê-la sozinha, sem que alguém pudesse nos interromper. Mas infelizmente isso teria que esperar, eu tinha que voltar para a faculdade, tinha que voltar para o hospital. Isso não me faria desistir, apenas adiaria meus planos por motivo de força maior.

Eu mostraria para Alissya que eu era o homem de sua vida.


— Quem sabe ficar de joelhos, implorando pelo amor dela? – Otto sussurrou para mim.

Revirei os olhos reabastecendo o leito com luvas descartáveis.

— Sério, derrube esse cara e pegue sua garota Quarterback!

Segurei o riso, terminei de ajeitar as coisas parando para olhar Otto. Que ficava quase irreconhecível em seu jaleco de médico, seu cabelo penteado para trás, totalmente comportado, nem um pouco o velho Otto que era viciado em videogame e doces.

— Você sabe que Quarterback é do futebol, né?

— É, é, pode ser.

— Vou pegar uma folga na quinta-feira, vou para Nova York. – anunciei.

Otto pegou seu estetoscópio pendurando-o no pescoço, saindo comigo do quarto do paciente.

— Como dizem, “na guerra e no amor vale tudo”.

Dei uma olhada pelo canto dos olhos.

— Que foi? É um provérbio. – Otto disse dando de ombros.

— Tudo bem meu amigo, mas acredito que você está sob o efeito da abstinência do videogame.

Otto me olhou carrancudo, fazendo-me rir.


Cheguei à Nova York bem cedo, mesmo eu querendo muito fazer a viagem de moto tinha conseguido apenas um dia de folga, por isso percorri todo o trajeto apreensivo dentro de um avião com mais duzentas pessoas.

No momento que pousei fiz mais uma anotação mental sobre essa cidade, além de ser um verdadeiro caos pela manhã, todas as vezes sofria com a chuva. Enquanto deixei a Califórnia num calor até que ameno para quem vivia lá. Nova York me recebia com tempo frio e chuva, muita chuva. Aluguei um carro, digitei o endereço de Alissya no GPS e percorri os cinquenta minutos até seu apartamento. Alissya morava em Manhattan, a rua era larga, ladeada dos dois lados por prédios de uns quatro andares, os portões baixos. Mal podia dizer que isso era seguro. Encostei o carro, desligando seu motor, a chuva castigava o vidro dificultando minha visão. Procurei pelo número 677, era um prédio todo branco. Pelo que tinha notado você só entraria se fosse autorizado pelo morador ou se tivesse chave e de maneira nenhuma Alissya iria permitir minha entrada.

Não depois de como me recebeu no dia do concerto.

Olhei pelo retrovisor vendo uma menininha correr na chuva, rindo feliz de sua traquinagem, meus olhos foram para a mulher que andava um pouco mais atrás escondida pelo guarda-chuva. Tomei coragem descendo do carro, eu ficaria plantado em sua porta caso Alissya decidisse não abrir.

Só o fato de atravessar a rua me fez ficar encharcado, joguei o cabelo para trás tirando-o do rosto, os trovões soavam alto assim como os relâmpagos iluminavam o céu escurecido pela tempestade.

— Venha Lissy, venha para chuva.

Olhei para frente vendo a menina se virar chamando a outra, ela devia ter uns oito para nove anos. Seus cabelos desciam por suas costas em uma trança, seu vestido e casaco floridos estavam ensopados, mas ela pouco se importava.

Parei em frente ao prédio, olhando para cima, olhando para a janela do terceiro andar para ser mais específico, torcendo para que Alissya me atendesse e me escutasse.

Senti um puxão em minha jaqueta, o que me fez olhar para baixo.

— Ei, você também gosta de chuva? – perguntou a menina toda atrevida.

Soltei uma risada abaixando no nível de seus olhos. – Eu até gosto.

Ela sorriu olhando para mim, tinha alguma coisa naquela garotinha que me lembrava alguém.

— Qual é seu nome? – perguntou.

— Luke, e você?

Vi que a mulher que acompanhava a menina apertou o passo, chegando mais perto, mas a chuva forte e o guarda-chuva tampando o rosto dela, dificultou que eu visse algo concreto.

— Jules. – disse a menina, ao mesmo tempo em que seu nome era gritado.

Fiquei de pé olhando para a mulher, que não era mais tão desconhecida para mim, assim como ela parou de andar, mantendo alguns metros entre nós.

— Alissya.

— Você conhece minha irmã? – Jules perguntou ainda me encarando.

— Entre Jules, tome um banho, logo irei. – Alissya ordenou ainda com os olhos colados em mim.

Seu rosto ficava ainda mais lindo sendo banhado pela chuva e eu tinha certeza que seu cheiro devia estar ainda mais evidente.

— Lissy. – resmungou a pequena.

Alissya endureceu o olhar, estendendo um molho de chaves para sua irmã.

— Foi legal conhecer você, Luke. – despediu-se pegando a chave e indo para dentro do prédio.

— Foi ótimo te conhecer também. – retribui.

Alissya acompanhou com o olhar sua irmã entrar no prédio, só então voltando o olhar para mim. – O que você faz aqui? Como descobriu onde moro?

— Liguei para seus pais. – confessei.

— Você ligou para meus pais? – repetiu elevando a voz.

— Para seu pai, já que quer saber.

Ela parecia um pouco irritada enquanto se afastava, caminhando para o prédio. Mas também estava absolutamente linda, os cabelos soltos e molhados da chuva colavam em seu corpo, Alissya tinha mudado muito nesses três anos, ela tinha ganhado mais corpo, ou eu que nunca notei que seu corpo era cheio de curvas. Seu vestido azul escuro contrastava com sua pele clara e seus cabelos escuros. Peguei-me pensando em como seria passar minhas mãos por aquele corpo, sentir realmente sua pele, sentir seu corpo colado no meu.

— Preciso que você me escute.

Ela se virou, voltando para onde eu estava parado, ficando centímetros de mim. – Pare com isso.

— Você o ama? – perguntei questionando sobre o homem com quem ela saiu depois do concerto.

Alissya suspirou. – Não tenho nada com Tyler. E não o amo.

Tyler, então aquele era o tal Tyler que ela descreveu na carta para mim.

— E isso não é da sua conta, Dinally.

— Alissya eu fiz merda, magoei você, ignorei você, fui errado em tantas maneiras, mas como poderia dizer que eu era louco por você se estava morrendo? Não seria justo...

— Sabe o que não é justo, Dinally? – perguntou chegando mais perto. – Não posso esconder o que sinto por você. Mas você errou, você não precisava escrever uma carta dizendo que me amava, ou até mesmo que me queria por perto. Porém, você tinha obrigação como amigo.

— Eu sinto muito, Aly. Isso pode parecer algo ensaiado, mas eu realmente sinto. Se pudesse faria tudo diferente.

— Mas você não pode. – afirmou empinando o queixo.

— Não, não posso. Mas...

Aproximando-me de Alissya, coloquei um dedo sob seu queixo. Ela olhou em meus olhos, vi um pouco de resistência surgir, suas mãos se firmaram em meu peito, como se fosse conseguir conter meu próximo passo.

— Eu te amo, Alissya. E esse amor sempre esteve aqui, mesmo quando eu fui tolo de mais para notá-lo, mesmo quando eu dormia ao seu lado segurando sua mão na cama de hospital, mesmo quando você discutia comigo sobre a vida e sobre ter fé. Eu tive. Tive fé que mesmo depois de todos esses anos você possa me aceitar, que eu possa provar que eu te amei e continuo te amando. Só me diga o que fazer. O que eu preciso fazer? – Minha garganta estava seca, continuei olhando para o fundo de seus olhos castanhos. Não me importava mais com os relâmpagos ou trovões sobre nós, nem mesmo a chuva me incomodava mais.

Ela respirou fundo, suas mãos não mostravam mais a mesma resistência de momentos atrás.

— Beije-me. Eu quero e preciso que me beije, Luke Dinally.

Não hesitei, coloquei minhas mãos em seu rosto, trazendo-a para mim, dando o que queria e o que Alissya precisava de mim, porque era o que eu também queria e precisava. No momento que meus lábios tocaram os lábios molhados pela chuva de Alissya o mundo parou.

Era como se fossemos duas peças se encaixando com perfeição.

“Você é a escuridão dela e ela sua luz”.

Criando uma trilha por seu lábio, mordisquei-o antes de realmente beijá-la. Aly soltou um suspiro, agarrando meus cabelos. Fazendo meu corpo estremecer pelo seu toque. Minha pulsação acelerou, Alissya correspondia cada novo toque, quando nossas línguas se tocaram foi uma explosão de sentimentos dentro de mim, elas se enroscavam, se apreciavam e o mais importante, se amavam. Estava colocando naquele beijo mais do que poderia dizer com palavras.

Alissya se afastou encostando sua testa na minha, ambos sem ar.

— Luke...

— Eu queria muito entrar. – confessei.

— Eu também, mas minha irmã está aqui e tenho uma colega de apartamento.

— Eu não posso ficar, tenho que retornar para Califórnia.

Ela se afastou olhando para mim. – Hoje?

— Sim, — passei a mão por seu rosto. – consegui apenas um dia de folga.

— Você volta?

Sorri puxando seu rosto para mais um beijo. – Mesmo que você não me queira.

— Isso é impossível. – Alissya contemplou olhando para o céu sorrindo. – a chuva parou e nem sentimos.

— Deus está contente por nós. – deixei escapar.

Alissya segurou o riso erguendo uma das sobrancelhas. – Luke Dinally tem fé?

— Uma garota me ensinou a ter, três anos atrás.

Ela abriu um sorriso lindo colando sua boca novamente na minha.


Capítulo 22

Alissya Rayven


Como era possível que Luke me fizesse querê-lo ainda mais, mesmo com todos esses anos? Meu coração quase saiu do peito quando o vi parado conversando com Jules, naquele dia, parecia que estava tudo em câmera lenta, ele levantando no melhor estilo bad boy, passando a mão pelos cabelos molhados. Aquele sorriso meio de lado que ele dava, Luke estava ainda mais bonito e quando me perguntou o que poderia fazer para me ter ao seu lado eu só conseguia me fixar em um pensamento. Do porquê ainda estávamos separados, eu amava aquele garoto, amava quando se fechava dentro de si, pois era quando mais precisava de uma mão para guiá-lo. Amei três anos atrás, com tudo que nos separava e amo ainda mais agora vendo-o na minha frente.

Sentir os lábios dele tocando os meus foi como ir ao céu e voltar carregada por um anjo, como uma pessoa pode se encaixar perfeitamente em você? Quando lia sobre almas gêmeas eu duvidava desse tipo de coisa, sobre ter uma alma por aí esperando pelo momento certo de entrar em nossa vida. Mas como duvidar agora que eu sentia o toque de Luke ainda queimar em minha pele?

Eu fantasiava com ele, com seu toque, com sua mão descendo pelo meu corpo em um puro ato de curiosidade. Então nossos olhares se cruzariam, ele beijaria meu pescoço, meu ombro, beijos lentos sendo distribuídos me fazendo arfar.


Estava uma linda manhã de sábado, depois de dois dias de chuva constante quando o sol apareceu nas primeiras horas do sábado me despertou. Jules estava toda animada com a possibilidade de irmos ao Central Park, por isso praticamente arrastei Gaby da cama, arrumei as coisas e pouco depois do almoço estávamos caminhando, enquanto Jules corria em nossa frente, brincando com tudo que via.

— Como você está lidando com isso? – Gaby perguntou quando estendemos a toalha do piquenique no gramado.

— Se eu falasse que não estava esperando pela aparição de Luke, estarei mentindo, secretamente eu pedia por isso. – dei de ombros pegando um lanche da cesta. – Foi um choque, mas eu o amo.

— Deu para notar que ele também. Os olhos dele praticamente cintilaram quando viu você no camarim.

Sorri e assenti. Não sabia ao certo como ficaríamos, morávamos longe, tínhamos nossos trabalhos, faculdades. Eu estava entrando no último ano da Julliard e Luke ainda tinha dois anos pela frente na faculdade de Medicina.

— Vou pensar em um dia de cada vez. – disse acenando para Jules, que sorriu e voltou a brincar.


Deitei na cama equilibrando o telefone no ouvido.

— Irei para Beaufort na segunda-feira.

— Beaufort? – Luke perguntou com a voz cansada.

— Sim, levarei minha irmã e vou aproveitar para passar o dia com meus pais. – suspirei escutando o barulho de uma porta se fechando do outro lado da linha. – Poderíamos nos ver depois.

— Eu quero muito, mas não vou conseguir ir até Beaufort, mesmo que seja para voltar no mesmo dia. Tenho prova no dia seguinte e vou fazer um plantão no hospital.

Senti que a voz de Luke ficou com um toque triste ao falar sobre o hospital.

— Aconteceu algo?

— Tem uma garotinha, ela tem apenas oito anos.

— Eu sinto muito, Lu.

— Tudo bem. – escutei seu suspiro.

Luke havia me contado sobre o trabalho voluntário que ele fazia no hospital, o que começou com uma forma de ganhar pontos extras para faculdade se tornou um verdadeiro trabalho para ele. Eu sentia tanto orgulho, sentia tanto amor quando ele falava sobre suas conquistas e seus sonhos, principalmente por anos atrás ele ter acreditado que não poderia viver nada disso. Meu peito se encheu ainda mais de amor e respeito por Luke, quando contou que estava na faculdade de Medicina para se tornar Oncologista Infantil e mais ainda, quando ele contou do motivo para isso.

Luke Dinally nunca se veria ou aceitaria que alguém falasse isso, mas ele tinha uma alma linda, uma alma repleta de amor.


— Aly?

— Sim?

— Quero fazer um jantar para você, quando você precisa retornar para Nova York?

— Quinta-feira, tenho um turno a noite no trabalho. – comentei.

— Vou mandar meu endereço por mensagem. Meu colega está em um Congresso, teremos a casa para nós. O que você acha de vir passar dois dias comigo?

— Você cozinha, Dinally? – perguntei rindo.

— Muito bem, os anos de sobrevivência na faculdade me ensinaram.

— Combinado então, vamos ver se você realmente cozinha.

— Aly?

Percebi que o cansaço e sono provavelmente estavam dominando-o.

— Sim.

— Amo você . – sussurrou.

— Eu amo você, garoto que não sorri.


Capítulo 23

Luke Dinally


Ás sete horas da noite sentei no sofá olhando para o relógio de pulso, Aly deveria chegar a qualquer minuto. Tinha arrumado toda a casa, até mesmo as coisas de Otto, Deus sabia como ele era capaz de tornar a casa um caos com suas bagunças.

Quando a campainha tocou eu praticamente estava colado a porta.

— Oi. – Aly me cumprimentou com um lindo sorriso, seu cabelo estava preso dando uma visão limpa de seu rosto, seu cheiro de frutas vermelhas me envolveu. Puxei-a pela cintura, colando nossos corpos, beijei seus lábios tentando aniquilar um pouco da saudade que se acumulava em meu peito.

— Oi. – disse soltando-a.

— O cheiro até que está interessante. – zombou.

Deixei que ela entrasse em minha casa rindo de sua provocação. Ela passou olhando por todo o apartamento, soltei sua mão para fechar a porta.

— Sua casa é linda. – Alissya parou no meio da sala de estar, olhando a ampla estante de livros.

Cheguei por trás dela abraçando-a, colei minha boca em seu pescoço sentindo seu perfume. – Estou feliz por tê-la aqui.

— Eu também.

Alissya se virou abraçando-me pelo pescoço. – Me conte sobre seus encontros amorosos, o que mais gosta na faculdade, me conte sobre você.

Soltei uma risada. – Você está querendo saber se tenho alguma admiradora no Campus?

Aly me deu um tapa de leve no ombro. – Luke Dinally.

— Não tenho admiradoras Srta. Rayven, minha popularidade por aqui fica entre os livros e os corredores do hospital.

Peguei seu lábio inferior entre os meus, puxando-o de leve. Alissya correspondeu de forma imediata ao meu toque, seus braços me apertaram, não deixando nem um espaço entre nós.

— Vamos, temos um jantar nos esperando. – disse em seus lábios.

Alissya me seguiu até a cozinha, eu tinha ficado a tarde toda na internet pesquisando uma receita, lógico que eu queria impressioná-la e não confessaria que minhas habilidades na cozinha eram macarrão com queijo e um arroz empapado.

— O que você está aprontando nessa cozinha?

— Eu não sabia se você comia de tudo, apostei todas as minhas fichas no salmão grelhado com legumes.

— Por mim parece ótimo. – Alissya sentou na banqueta da cozinha. – Me conte sobre a menina.

Olhei para Alissya respirando fundo. Coloquei os legumes em uma travessa de vidro. – Ela é linda, doce e muito inteligente.

— Devo sentir ciúmes? – brincou.

Sorri dando a volta na cozinha, deixei a travessa na bancada.

— Ela parece muito com Isaac, mesmo tão pequena é tão inteligente, aceita bem sua doença, ela não dá trabalho para ninguém.

— Queria ter estado perto quando tudo aconteceu. – Alissya disse olhando para as próprias mãos.

Deixei tudo que estava fazendo, indo até ela. Puxei seu rosto para o meu dando um selinho em seus lábios. – Sabe qual foi a última coisa que ele me disse?

Ela fez um gesto de negação.

— Ele me disse para não ser idiota e perdê-la para sempre.

Ela sorriu encostando sua cabeça em meu peito. Beijei o topo de sua cabeça guardando todos esses momentos na memória.


Espiava Aly deitada sobre minhas pernas enquanto assistia filme, eu sorria e brincava com ela a cada lágrima que ela derramava por conta do filme. Era engraçado de ver como ela se desmanchava com filme água com açúcar.

— Pare de rir... Isso não tem graça. – disse fungando.

Puxei seu corpo, fazendo-a se sentar sobre mim. Aly sustentava meu olhar, passava minhas mãos por suas costas sentindo aquele pedaço de pele se arrepiar.

Alissya desceu sua boca sobre meu pescoço, suas mãos se infiltraram pela minha camisa, fazendo um carinho em meu abdômen. Ela não sabia o quanto eu a amava, palavras nunca pareciam suficientes, por isso eu mostraria com meu corpo, com minha alma, para que ela nunca mais duvidasse do meu sentimento. Iria amá-la devagar, com paixão e com todo desejo que percorria meu corpo. Iria amá-la com riso e dores, até que a luz entrasse pela janela e nos despertasse para um novo dia.

Olhei no fundo dos seus olhos pedindo sua permissão, meus dedos enganchados em sua camisa, ela fez um aceno permitindo que aquela peça de roupa não atrapalhasse mais.

Admirei as curvas de seus seios, admirei sua pele clara, Alissya era perfeita, um verdadeiro anjo. Meu anjo. Seus dedos puxaram devagar minha blusa, jogando-a longe junto com a sua. Vi seus olhos descerem para minha cintura, vendo pela primeira vez minha tatuagem.

— Não sabia que tinha. – disse apontando a rosa dos ventos sendo cortada pela flecha. – Tem algum significado especial?

Beijei sua testa. – Eu fiz escondido de meus pais, tinha dezessete anos. Mas a ideia central é “confie no destino”.

Alissya ficou de pé, levando meu olhar com ela. Abriu lentamente o botão de sua calça, deixando-a escorrer pelo corpo, ficando apenas com sua lingerie rosa claro. Repeti seus gestos, segurei sua cintura puxando seu corpo para o meu, ela enroscou suas pernas em minha volta, aceitando ser levada para meu quarto.

— Você me ama? – ela soltou quando a coloquei deitada no meio da cama.

— Amo. – suspirei em seu pescoço.

— Então, mostre-me.

Beijei sua boca, beijei seu pescoço. Eu queria que ela sentisse e me visse provando cada centímetro de sua pele, de seu corpo. Inclinei-me encaixando meu corpo no dela e naquela noite eu amei Alissya Rayven até o ar faltar de meus pulmões, até que ambos nos aconchegamos um sobre o outro caindo no sono profundo.


Capítulo 24

Alissya Rayven


O ano tinha se passado de forma turbulenta, poderíamos facilmente resumi-los em pontes aéreas e saudades. Com minha formatura vieram os convites para os recitais e concertos, Luke sempre que podia estava comigo, acompanhava -me e era o primeiro a aplaudir de pé. Mas ele também se tornou muito ausente, não por qualquer problemas em nosso relacionamento, mas por seus estudos e trabalho.

Ele estava a um passo de sua formatura, suas provas finais chegando. Muitas vezes mal conseguíamos nos falar no telefone, isso quando ele não adormecia e me deixava pendurada na linha.

“O amor é paciente e benigno, não arde em ciúmes; o amor não se ufana, não se ensoberbece; O amor não é rude nem egoísta, não se exaspera e não se ressente do mal. O amor não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. Está sempre pronto para perdoar, crer, esperar e suportar o que vier.” 1

Fechei o livro deixando-o de lado. Seria um pouco difícil falar que o amor não é causador do ciúme quando você vê seu namorado e conversando com uma mulher que só não tinha se atirado para seu colo porque devo ter chegado a tempo. Não que eu duvidasse de Luke, mas dizer que o ciúmes não me causou um esquentar, seria mentira.

— Meus pais convidaram para passar a noite de Natal com eles. – Luke saiu do banheiro secando os cabelos, tirando-me dos pensamentos.

— Meus pais fizeram o mesmo convite. – disse rindo.

— Não queria passar sem você.

Luke jogou a toalha longe, subindo na cama. Seu olhar passeou por meu corpo, enquanto engatinhava para cima de mim.

— Podemos fazer o seguinte, passamos o Natal com seus pais e no ano novo saímos para jantar com os meus. Acredito que meus pais já tenham até a reserva no restaurante Flautem’s.

— Por mim, só não quero passar longe de você. – disse dando de ombros, seus olhos grudaram nos meus, refletindo tudo que passava dentro de mim.

Luke fez um caminho de beijos por minha barriga, meus braços, no meio de meus seios. Tudo de forma lenta e deliciosa. — Eu te amo. – sussurrou chegando ao meu ouvido.

— Para sempre. – correspondi em meio um gemido causado por seus beijos.


— Você sente falta daqui? – perguntei olhando para onde tudo começou.

Luke diminuiu a velocidade do carro alugado, dando uma olhada em volta. A cidade tinha sofrido algumas modificações, mas era a boa e velha Beaufort, mesmo no fim de tarde as luzes de Natal estavam acessas, deixando o pequeno centro ainda mais animado e lindo. Um dos meus passeios preferidos quando morava aqui era caminhar até o centro, o outro era escalar a janela de Luke.

— Beaufort foi muito boa para mim, nasci e cresci aqui. Passei pelo momento mais difícil de minha vida e também pelo mais lindo. – Luke segurou minha mão dando um beijo no dorso. – Deus tem minha eterna gratidão, me deu um anjo.

Sorri entrelaçando meus dedos. – Temos sempre que acreditar, as coisas não acontecem por acaso, nenhum caminho é traçado sem o planejamento divino. Eu seria sua Luke, mesmo se não tivesse nos cruzado naquele acidente.

Luke torceu um pouco a boca, deixando minha mão sobre sua coxa, voltando a dirigir.

Pouco depois de realmente ficarmos juntos Luke contou que era um dos envolvidos no acidente, não que isso fosse modificar algo. Eu sabia que minha vida teria encontrado uma maneira de cruzar com Luke Dinally, mesmo que ele não tivesse dentro daquele carro, porém deixei que ele contasse, senti que era importante para ele falar sobre isso, mesmo depois de tantos anos. No final sentei em seu colo, dei um beijo longo em seus lábios, sentido o amor aquecer meu peito e disse que o amava.

— Sinto-me mal por chegar em sua casa de mãos vazias Lu.

— Já disse para não se preocupar, pelo que conheço dona Ligia tem comida para alimentar a população toda de Beaufort.

— Mesmo assim. – meus olhos se cravaram em uma pequena doçaria do outro lado da rua. – Ali, pare ali Luke.

Ele bufou, balançando a cabeça em negativa. – Só você.

Luke parou em uma vaga um pouco distante, dei a volta no carro esperando que descesse, entrelaçando nossos dedos caminhando tranquilamente pela rua.

— Que tipo de doce seus pais gostam?

Ele sorriu colocando um braço sobre meu ombro. – Qualquer coisa, escolha qualquer co...

Travei no lugar vendo Luke olhar para uma mesa, uma turma estava rindo alto, as meninas sentadas no colo dos rapazes. Até que atenção deles caiu sobre nós.

— Luke?

— Brian. – Luke retribuiu de forma rude, apertando minimamente minha mão.

Reconheci Marta sentada no colo de um dos rapazes, ela deu um sorrisinho em minha direção, mesmo acreditando que foi totalmente falso retribui seu gesto.

— Quanto tempo não nos vemos, Dinally. – disse outro homem mal-encarado, ele fumava um cigarro jogando a fumaça nos rostos dos outros, seus olhos eram fundos, como um viciado.

— Jamie.

Senti Luke trincar seu maxilar. Aqueles só poderiam ser os antigos amigos de Luke, aqueles que provocaram o acidente, aqueles que quando ele mais precisou de amigos viraram as costas e o descartaram como um nada.

— Lu, preciso voltar.

Luke olhou para mim.

— Esqueci o dinheiro no carro, amor. – disse acrescentando um sorriso.

Ele sabia muito bem que eu estava mentindo, mas Luke concordou, virando as costas para a turma, sem se despedir. Seu aperto se tornou mais suave a cada passo que dávamos em direção ao carro.

— Não achei que cruzaria com eles. – comentou fechando a porta. – Sempre acreditei que aquilo que me ofereciam era amizade, mas isso mudou quando eu conheci Isaac. Ele sim foi meu melhor amigo, ele sim me mostrou como é ser amigo de alguém.

Peguei sua mão, fazendo um carinho no dorso. – Também sinto falta dele.

Ele me olhou por um instante. – Você iria comigo em um lugar?

— Claro, mas vamos nos atrasar para o jantar.

— Pode ser depois, sei que minha mãe me arrancaria o fígado por atrasar.


Tivemos um jantar agradável, Ligia e Hendri nos receberam com muitos abraços, ambos estavam muito felizes por Luke retornar para casa depois de tanto tempo, ainda mais numa época como o Natal. Observei Luke sorrindo grande parte do tempo e isso acalentou meu coração, depois do jantar o senhor Dinally nos convidou para tomar uma taça de vinho na varanda, tanto Luke como eu nos negamos, preferindo nosso suco.

A rua estava bastante movimentada, as crianças brincavam, com seus novos brinquedos, os pais assim como nós estavam sentados nas varandas amplas de suas casas.

— Logo irá se formar Doutor. – Hendri comentou, arrancando um sorriso amplo de Ligia.

— Muito em breve, fui escolhido como orador. – Luke comentou orgulhoso.

— E você Alissya, continua tocando? – Ligia começou uma conversa paralela. – Encontrei com sua mãe algumas semanas atrás, ela estava tão orgulhosa de você.

— Sim, permaneço tocando na Orquestra de Nova York e alguns concertos do qual sou convidada.

Sorri, mesmo achando difícil minha mãe comentar com os vizinhos sobre mim, ela não acompanhava minha carreira ou meus feitos na faculdade, diferente de meu pai, que eu poderia tocar em uma banca de jornal no meio de Nova York, que ele se despencava até lá.

— Aly, amor. – chamou-me. – Podemos ir?

— Claro.

— Mais já meu filho? Fique um pouco mais, deixei seu quarto preparado, sei que não é lá grande coisas para vocês mais... – a mãe de Luke disparou de falar.

Luke ficou de pé dando um beijo carinhoso em sua testa. – Nos hospedamos no Inveraray Farmhouse, não se preocupe.

— Que pena, mas vocês voltam antes de partirem não? – Hendri perguntou.

— Sim, ficaremos até o Ano Novo.

— Isso é ótimo. – exclamou Ligia sorridente.

— Foi um prazer passar o Natal com vocês. – disse despedindo-me dos pais de Luke.

— O prazer foi todo nosso filha, fico muito feliz que estejam juntos.

Abracei os pais de Luke, entrando no carro, rumo ao destino desconhecido que Luke tanto desejava ir.


— Você está muito cansada? – Questionou olhando-me pelo canto dos olhos.

— Não.

— Prometo não me demorar, mas aconselho que coloque o casaco.

Luke seguiu para a parte mais vazia da cidade, aos poucos o movimento e as casas residenciais foram ficando para trás. Luke parou o carro em frente ao cemitério, desligou o motor e ficou encarando as lápides na luz fraca da calçada.

Soltando um suspiro pesado, colocou o casaco em silêncio saindo do carro. Fiz o mesmo saindo para o ar frio de dezembro, o ar de nossa respiração saía em pequenas baforadas. Vi quando ele pegou um buquê pequeno no banco de trás, assim como uma lanterna.

Eu sabia onde ele estava indo e respeitei seu momento, deixei que fosse à frente, não perturbei seus pensamentos, não exigi que ele estivesse presente, pois sabia simplesmente de olhar que Luke estava preso em suas memórias. Caminhamos um pouco no meio das árvores grandes e das lápides tendo o cuidado de não pisar em nada, respeitando quem estava ali, em seu descanso eterno.

Não tinha sido uma caminhada longa, logo Luke foi diminuindo o ritmo, até parar, iluminando uma lápide ajoelhou-se na grama úmida, tocando timidamente aquele pedaço de mármore, colocando as flores silvestres ali.

“Isaac Benjamin Mills.

Um amigo leal e irmão querido, nem mesmo a morte apagará seu brilho.”

Ajoelhei-me ao seu lado, segurando sua mão. Luke me olhou apertando meus dedos entre os seus.

— Ele teria gostado de nos ver assim. – sussurrou.

— Ele soltaria alguma metáfora maluca, ou viria com aqueles provérbios inteligentes.

— Isaac sempre terá sido um grande homem.

Luke suspirou concordando. – Ele foi um grande homem para mim, sei que onde ele estiver está bem e feliz. Se uma coisa que aprendi com ele foi que temos que viver, mesmo que seja por poucos minutos, por breves momentos. Pois a vida é como uma estação de trem...

— Uma hora você embarcará para longe. – completei seu pensamento.

Luke me olhou dando um beijo casto em meus lábios. – Amo você, Aly.

— Eu também. – disse apoiando a cabeça sobre seu ombro, ficando ali, na presença das estrelas e de nosso amigo, que deixou uma saudade imensurável em nosso peito.


Capítulo 25

Luke Dinally


Na véspera do Ano Novo tínhamos concordado em jantar com seus pais, fomos a um pequeno restaurante, junto ao canal em Morehead. O restaurante estava todo organizado e decorado para a virada do ano, as mesas com toalhas brancas, velas douradas, os talheres perfeitamente arrumados.

A questão é que eu não queria mais esperar, não queria que passasse mais um dia longe de Alissya, enfrentamos tudo que um relacionamento podia nos dar. Com a proximidade de minha formatura eu queria ter finalmente Alissya para mim, de todas as formas.

Indiquei o caminho para ela, seu vestido azul claro deixava suas curvas ainda mais lindas, seus cabelos estavam presos no alto da cabeça, mas algumas mechas já se soltavam do coque trabalhoso que tinha feito. Em parte, aquilo era culpa minha, não aguentei vê-la sair do quarto arrumada e linda do jeito que estava, puxei-a ao meu encontro, selando seus lábios com os meus, demorando-me naquele beijo, sentindo seu cheiro de frutas vermelhas tão bem conhecido por mim.

Os pais de Alissya já nos esperavam assim como a pequena Jules, que saiu correndo ao nosso encontro. A mesa que o senhor Rayven reservou ficava no deck, onde podíamos contemplar o luar e ver os fogos sentados em nossa mesa. Uma pianista embalava nossa noite com músicas suaves e alegres.

Ajeitei a gravata incomodado, eu literalmente odiava isso. Alissya estranhou por eu vestir-me de forma tão formal, mas disse que seria por questão de respeito ao seu pai, o que a fez sorrir, tirando a pequena ruga de sua testa. Mas na verdade, dois dias antes, quando Aly resolveu visitar Sam no hospital eu inventei uma desculpa e segui para a casa de seus pais assim que ela saiu.

Roger me recebeu com um sorriso, convidando-me para entrar e sentar na sala de estar.

Minha garganta estava seca e minhas mãos suavam.

— Sr. Rayven, eu queria conversar com o senhor em particular.

— Roger apenas Luke, aconteceu algo? – perguntou sentando-se na minha frente, seu braço pousado tranquilamente no encosto do sofá.

— Eu queria aproveitar que iremos jantar juntos no Ano Novo. Eu desejo muito que o senhor aceite... Eu gostaria de me casar com sua filha.

Não sei o que estava pensando, mas passado um momento em silêncio ele felizmente sorriu, levantou-se me puxando para um abraço.

Respiro fundo saindo dos meus devaneios, meus dedos passando de forma distraída pelo meu bolso sentindo a aliança de minha avó, meus pais ficaram felizes com a notícia e mesmo querendo fazer algo por conta da notícia, respeitaram quando pedi para manter em segredo.

— Aconteceu algo, Luke? – Alissya me olhava preocupada. – Você está bem?

— Eu preciso falar uma coisa com você.

Segurei sua mão, acariciando os nós de seus dedos. – Você me ama?

Senti os olhares de seus pais colados em nós, Sr. Rayven já sabia o que viria, mas a mãe de Alissya era a que me preocupava. Eu sabia do relacionamento complicado que as duas tinham, Melissa não conseguiu seguir seu sonho e o fato de Aly ter tanto talento e dom para música mexia com a relação das duas, principalmente por Alissya decidir seguir tal sonho. No fundo eu só queria que elas ficassem bem, sei o quanto essa barreira entre ela e sua mãe afetava Aly, mesmo que ela não demonstre.

Ela sorriu, olhando por um momento para seus pais.

— Sim.

— Uma vez você disse que queria minha felicidade. – Senti meu coração acelerar, a ponto de sentir a sua pulsação em minha garganta.

— Claro que quero, por que desta pergunta estranha?

— Então você pode me fazer um favor?

Ela me encarava, alternando o olhar entre mim e seus pais. – Luke, que conversa maluca é essa? Podemos conversar depois do jantar?

— Não, tem que ser agora, eu preciso disso.

Tirei o anel solitário, devagar, do bolso. Aliança essa que havia passado de geração em geração por minha família. Não conseguia descrever de forma satisfatória a intensidade dos sentimentos que me rondavam naquele momento, a amizade sempre presente entre nós, o amor tão crescente, o redemoinho que passamos nesses cinco anos. Enquanto a olhava nos olhos, a simples compreensão que Alissya era tudo para mim, de como eu me sentia ansioso quando não estava perto dela, a saudade constante por morarmos longe um do outro. Eu, pela primeira vez agradeci aos céus por tudo que me aconteceu, agradeci os ensinamentos que tive, até mesmo do câncer. Pois Deus me ensinou a ser vivo novamente, me ensinou a valorizar a vida em minha volta.

Sentindo um impulso de coragem para fazer as palavras saírem de minha boca, inclinei-me para mais perto dela e respirei fundo. E foi assim que as palavras pularam de minha boca:

— Casa comigo?


Capítulo 26

Alissya Rayven


Olhei para o espelho vendo a imagem refletida, o vestido branco rendado descia por todo meu corpo, decidimos nos casar em Beaufort assim como moraríamos lá depois da formatura. Luke não quis nem esperar sua formatura na faculdade, queria casar antes.

Pois bem, no dia 15 de março estávamos nos casando.

Olhei ao redor vendo o buquê de flores do campo que me esperava. Gaby aceitou meu convite para tocar em meu casamento, Tyler também estava presente entre os convidados, fiquei feliz por vê-lo namorando. Duas batidas soaram na porta, estava na hora.

— Entre. – dei uma última olhada no espelho vendo minhas bochechas rosadas pela expectativa.

— Você está linda.

Virei vendo minha mãe belíssima em seu vestido rosa claro, seus cabelos loiros estavam soltos. Ela entrou fechando a porta atrás de si.

— Desculpe atrapalhá-la. Eu queria falar com você antes de tudo.

Esperei que ela se sentisse confortável.

Ela mexeu no buquê, alisou a toalha sobre a mesa. – Eu devo desculpas a você.

— Mãe...

Ela fez um sinal para que me calasse. – Eu devia ter apoiado você, devia ter sido uma mãe melhor. Nesses anos eu deveria ter acompanhado seus sonhos, eu dever... – Um soluço escapou de seus lábios, corri até seu encontro, puxando-a para um abraço, ambas chorávamos, abraçadas uma na outra, até que nosso choro foi interrompido com a porta sendo novamente aberta.

— Mamãe, tio Luke já está aqui. – Jules entrou rodopiando, vendo seu vestido na cor marfim brilhar e girar ao seu redor. – Você desistiu de casar, Lissy?

Rimos de Jules, ainda abraçadas.

— Não pequena encrenqueira.

— Então acho bom ir logo, senão ele que desiste de você.

Sequei as lágrimas, refazendo a maquiagem. Olhei para minha mãe pelo espelho, ela sorria, um sorriso alegre, livre de todo rancor que a corroeu no passado.

— Você está uma noiva linda, vou chamar seu pai.

Segurei sua mão em meu ombro detendo-a no lugar. – Eu te amo, mãe.

— Eu também Aly, muito.


A igreja estava abarrotada de gente, amigos da faculdade, familiares, Sam e o Dr. Patrick estavam entre eles, Otto. Todos que amávamos e que nos amavam, estavam ali. Jules ia em minha frente jogando pétalas de rosas pelo caminho saltitando alegre até Luke, meus olhos se encheram de lágrimas quando ele se abaixou, dando um beijo nas bochechas de minha irmã.

Gaby começou a tocar a “Bela e a Fera” no violino, anunciando minha entrada. Sempre foi meu sonho entrar ao som dessa música. Luke tinha adorado a ideia, dizendo que era perfeita para nós.

Sorri ao escutar o primeiro verso da música, era como tivesse sido escrita para nós.


“Conto tão antigo como o tempo

A verdade como pode ser

Mesmo mal sendo amigos

Então alguém cede

inesperadamente


Basta mudar um pouco

Bem pouco para dizer o mínimo

Ambos levemente assustados

Nenhum preparado”

 

Luke mexia constantemente em sua gravata, seus olhos colados nos meus. Percorri lentamente a nave da igreja, enquanto todos os convidados nos observavam em silêncio. Mas tudo que me interessava era ele, sabia que ele estava tão nervoso quanto eu, seus olhos estavam marejados, um sorriso lindo nos lábios.

 

“Sempre a mesma coisa

Sempre uma surpresa

Sempre como antes

Sempre tão certo

À medida que o sol nascerá


Conto tão antigo como o tempo

melodia tão antiga quanto a canção”


Meu pai deu-me um beijo na testa, apertou a mão de Luke, passando-me para ele. Senti Luke respirando fundo, beijou-me delicadamente na testa, ficando ali por alguns segundos.


“Estranho doce e amargo

Achando que você pode mudar

Aprendendo que você esteve errado


Certo como o sol

Surge no leste

conto tão antigo como o tempo

canção tão velha quanto a rima


A Bela e a Fera”

 

— Você está linda. – sussurrou.

— Luke Dinally e Alissya Rayven, — começou o padre Maciel. – que casal mais lindo, o amor emana de vocês e hoje me foi dado à missão de casá-los.

Sorri para Luke que me encarava.

— O amor é uma das lutas mais lindas que podemos travar durante nossa vida, pois é nele que nos sentimos vivos. Acredito que o noivo tem algo a dizer.

Luke afrouxou novamente a gravata.

— Eu poderia enumerar as coisas que me fizeram te amar, poderia dizer facilmente que você foi a coisa mais maluca que me aconteceu. – Ele deu uma risada baixa, sendo acompanhado pelos nossos convidados. – Aly, você entrou na minha vida no momento que eu nunca pensaria ser possível. Você me ensinou sobre a vida, você me ensinou a vivê-la. Se hoje estou aqui vivo, é por causa do seu amor. Porque você viu algo em mim que eu mesmo não via.

Luke fez uma pausa, pegando a caixinha onde nossas alianças estavam. – Eu, Luke Dinally, prometo amar-te todos os dias de minha vida, na alegria, na tristeza, na saúde e na doença. Mesmo com todas as suas metáforas malucas. Amarei você até meu último suspiro, pois você é meu anjo, você é meu motivo para sorrir enquanto eu respirar.

— Alissya Rayven, você aceita Luke Dinally como seu legítimo esposo? Para amá-lo e respeitá-lo enquanto ambos viverem? – perguntou o padre Maciel.

— Aceito.

— Luke Dinally...

— Sim, sim. – Luke interrompeu o padre sorrindo. – Posso beijar minha esposa?

Padre Maciel riu. – Pode beijar a noiva.

Luke tomou-me pela cintura, selando meus lábios com o dele, num beijo profundo e apaixonado. Minhas mãos agarraram seus cabelos sem nenhuma vontade de soltá-lo, mesmo quando os convidados começaram a aplaudir.

Interrompemos nosso beijo sorrindo, felizes e completos. Éramos Sr. e Sra. Dinally.


Capítulo 27

Luke Dinally


— Sinto-me honrado por estar aqui, sendo o orador na formatura. – Passei a mão pela calça, tentando conter o nervosismo. Meus olhos logo captaram Alissya e meus pais sentados no meio da plateia. – Nosso tempo é limitado, nossos dias são contados como se fossem pequenos relógios ambulantes. Nascemos sem nada para começar, e morreremos apenas com aquilo que aprendemos, você tem que confiar em alguma coisa, Deus, destino, vida, sonhos, qualquer coisa. Pois sem sonhos e a confiança que eles um dia irão se realizar, você não seguirá em frente. Um homem sem sonhos é um homem vazio, eu já fui um homem vazio, quando me descobri com Leucemia, realmente acreditei que minha vida tinha chegado ao fim.

Respirei, fazendo uma pequena pausa. – E mesmo não querendo acreditar, mesmo que todas as possibilidades mostrassem o contrário, a esperança cresceu em meu coração, como meu melhor amigo me disse certo momento: Você precisa encarar a vida de frente, você precisa encará-la como se fosse algo que cairia entre seus dedos, para dar valor no hoje, no agora. E isso fará toda a diferença.

— Algumas vezes a vida irá atingi-los com dureza, passando por cima do que vocês mais acreditam. Não percam a fé. Sempre se perguntem se hoje fosse o último dia de nossas vidas, o que faríamos? Quais sonhos conquistaríamos? Por onde começaríamos? Nosso tempo é limitado, então que comecemos por hoje, realizando alguns de nossos sonhos.

Os alunos, familiares e professores de toda a universidade aplaudiram de pé, sentia-me grato por isso, sentia-me grato por estar ali, por eu mesmo realizar meu sonho, por minha vida, por tudo que havia conquistado.

Logo o Diretor começou a chamar os formandos pelos nomes, entregando os canudos e dando os parabéns. Assim que recebi o meu andei depressa até as pessoas que mais amava, Alissya e meus pais. A quem devia tudo, a quem devia minha fé, minha vida e o amor de todos os dias.


Todo dia é como um novo amanhecer, como se Deus nos dissesse “Você tem mais um dia, meu filho”. Então é sua missão viver essa oportunidade, muitas vezes nos questionamos e não aceitamos algo que venha acontecer, nos viramos contra Deus e seus propósitos. Muitas vezes não entendemos do porquê caímos, do porquê sofremos perdas ou porque nem todos os dias são felizes.

Eu gosto de pensar que nada acontece ao acaso, tudo bem, eu não tinha esses pensamentos. Era mais do tipo que não aceitava e culpava a todos, sem nem mesmo imaginar que se estava passando por aquilo era porque eu deveria aprender algo naquela caminhada. E com tudo isso eu aprendi que o que realmente importa não é a situação em que estamos, mas a direção para qual nos movemos.

Aos vinte anos minha vida mudou completamente.

O que eu sempre acreditei ser o melhor, ou ser para sempre perdeu seu valor e outros me foram ensinados. Aos vinte anos minha vida foi posta em xeque e eu aos ensinamentos que ela tinha para mim.

Hoje parado aqui eu não poderia tirar nada disso, nem trocaria tudo que vivi por uma vida diferente. Ao me sentar na varanda de nossa casa em Beaufort, nove anos mais tarde, recordando daqueles anos de minha vida, lembro-me de tudo tão intensamente que é como se tivesse ainda preso no tempo, nas lembranças e nos ensinamentos. Lembro-me de todas as batalhas enfrentadas, de todas as vitórias conquistadas, por menores que fossem. Lembro-me com dor no peito do amigo, um verdadeiro irmão que perdi, mas sempre estaria sendo lembrado em nossos corações. Naquele ano não tive apenas sofrimento, aquele ano eu vivi o verdadeiro significado da amizade, naquele ano eu tive Alissya, conheci a mulher da minha vida.

Alissya era mais do que a mulher que eu amava, ela era minha amiga, ela me ajudou a ser o homem que sou hoje. Com seus sorrisos constantes, sua vontade e sua paixão pela vida, seu amor e principalmente sua fé em mim. Lembro como se ainda tivesse parado no altar da igreja, com meu pai ao lado, nossos amigos e familiares como testemunhas e Alissya caminhando até mim.

Um dos momentos mais maravilhosos da minha vida.

Respiro fundo inalando o ar fresco do final da primavera, vejo os anos passando por meus olhos, vejo minha infância, os momentos felizes e os tristes também, sinto o vento bater por meu rosto e é como ponteiros de um relógio rodando rapidamente, passando os anos pelos meus olhos, todos os momentos. Quando torno a abrir meus olhos já não tenho mais meus vinte e poucos anos. Mas isso não tem importância alguma, sorrio ligeiramente admirando Isaac Rayven Dinally brincando na grama. Seus cabelos castanhos brilhando com os reflexos do sol, bochechas gorduchas rosadas, suas mãozinhas gordas brigando com um brinquedo e suas pequenas gargalhadas quando consegue finalmente colocá-lo na boca.

A brisa suave toca-me novamente, trazendo o frescor do final de tarde.

— Pensamento longe meu amor?

Alissya abraça-me por trás, dando um beijo em meu pescoço. Ergo meu olhar, olhando para o céu, seu rosto tampa a visão parcial do sol se pondo, formando um halo em volta de si. Meu anjo.

— Pensando em como amo você e tudo que me deu.

— Mamama. – gagueja meu pequeno menino, engatinhando em direção a mãe.

Alissya solta-me pegando nosso filho no colo, nossos olhares se encontram e tudo que sinto é paz, amor e vida.

Ali estava meu motivo para respirar todos os dias.

 

 

                                                 A. K. Raimundi

 

 

 

LEUCEMIA MIELOIDE AGUDA

 

A Leucemia é uma doença maligna dos glóbulos brancos, na maioria das vezes, não conhecida. Ela tem como principal característica o acúmulo de células jovens (blásticas) anormais na medula óssea, que substituem as células sanguíneas normais. A medula é o local de formação das células sanguíneas, ocupa a cavidade dos ossos, principalmente esterno e bacia. (conhecida popularmente por tutano). Nela são encontradas as células mães ou precursoras, que originam os elementos figurados do sangue: glóbulos brancos, glóbulos vermelhos (hemácias ou eritrócitos) e plaquetas.

Os principais sintomas da Leucemia decorrem do acúmulo dessas células na medula óssea, prejudicando ou impedindo a produções dos glóbulos vermelhos (causando anemia), dos glóbulos brancos (causando infecções) e das plaquetas (causando hemorragias ou sangramentos esporádicos). Depois de instalada, a doença progride rapidamente, de forma silenciosa ou não, exigindo com isso que o tratamento seja iniciado logo após o diagnóstico e a classificação da Leucemia.

Segundo as estimativas de Incidência de Câncer no Brasil para 2016, publicados pelo INCA, mais de 596.070 novos casos de câncer surgiram. A Leucemia atingiu 5.540 homens e 4.220 mulheres.

As manifestações clínicas da Leucemia Aguda são secundárias a proliferação excessiva de células imaturas da medula óssea, que se infiltram os tecidos do organismo, tais como: amígdalas, linfonodos (ínguas), pele, baço, rins, sistema nervoso central (SNC) e outros. A fadiga, palpitação e anemia aparecem pela redução da produção dos eritrócitos pela medula óssea. Infecções que podem levar ao óbito são causadas pela redução dos leucócitos normais (responsáveis pela defesa do corpo, onde o paciente fica exposto durante todo o tratamento). Assim como sangramentos, dores nas articulações, dores de cabeça, náuseas, vômitos, visão dupla e desorientação.

Como geralmente não se conhece a causa da Leucemia, o tratamento tem como objetivo destruir as células leucêmicas, para que a medula óssea volte a produzir células normais. O grande progresso para obter cura total da doença foi conseguido com a associação de medicamentos poliquimioterápicos, controle das complicações infecciosas e hemorrágicas e prevenção ou combate da doença no sistema nervoso central (cérebro e medula espinhal). Para alguns casos, é indicado o transplante de medula óssea. O tratamento é feito em várias fases, a primeira tem a finalidade de atingir a remissão completa, ou seja, um estado de aparente normalidade que se obtém após a quimioterapia. Esse resultado é conseguido entre um e dois meses após o início do tratamento, quando os exames não mais evidenciam células leucêmicas.

Entretanto, há casos onde comprovam que mesmo depois desse processo ainda restam no organismo células leucêmicas, onde pode até haver a recaída do paciente em seu quadro. Os caminhos tomados no tratamento dependem do tipo de leucemia (linfoide ou mieloide). No caso de linfoides o tratamento pode durar mais de dois anos e um ano mais ou menos na mieloide. Até que o paciente esteja totalmente curado.

(Dados do INCA – Instituto Nacional do Câncer)

                                                                  

 

 

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