Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESCONDIDA / P.C. Cast e Kristin Cast
ESCONDIDA / P.C. Cast e Kristin Cast

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

O sono de Lenobia estava tão agitado que aquele sonho familiar adquiriu uma sensação de realidade que ultrapassou o reino etéreo das fantasias do subconsciente. E se tornou, desde o começo, dolorosamente real demais.
Começou com uma lembrança. Décadas e então séculos vagaram à deriva, deixando Lenobia jovem e ingênua de novo, no porão de carga do navio que a havia levado da França para a América – de um mundo a outro. Foi durante essa viagem que Lenobia conheceu Martin, o homem que deveria ter sido seu Consorte pela sua vida inteira. Mas, em vez disso, ele morrera jovem demais e havia levado o amor dela para o túmulo junto com ele.
No seu sonho, Lenobia podia sentir a leve ondulação do navio e o cheiro de cavalo, feno, peixe e mar – e Martin. Sempre Martin. Ele estava em pé na sua frente, olhando fixamente para ela com olhos ansiosos cor de azeitona e âmbar. Ela havia acabado de dizer a ele que o amava.
– É impossível – Martin estendeu o braço, pegou a mão dela e a levantou com delicadeza, fazendo a memória se repetir em sonho na sua mente. Ele levantou o próprio braço, alinhando-o lado a lado com o braço dela. – Você vê a diferença, não vê?
A Lenobia do sonho deu uma pequena exclamação de dor sem palavras. O som da voz dele! Aquele sotaque crioulo característico – profundo, sensual, único. A lembrança do som agridoce da sua voz e do seu belo sotaque havia mantido Lenobia longe de Nova Orleans por mais de duzentos anos.
– Não – a jovem Lenobia respondeu à pergunta dele depois de olhar para os braços encostados dos dois, um marrom e um branco. – Tudo o que eu vejo é você.
Ainda profundamente adormecida, Lenobia, a Mestra dos Cavalos da Morada da Noite de Tulsa, se remexeu agitada, como se o seu corpo estivesse tentando forçar a sua mente a despertar. Mas nesta noite a sua mente não obedeceu. Nesta noite os sonhos prevaleceram.
A sequência de memórias se alterou e se transformou em outra cena, ainda no porão de carga do mesmo navio, ainda com Martin, mas alguns dias depois. Ele estava entregando para ela um colar longo de couro amarrado a uma pequena bolsa tingida de um profundo azul safira. Martin colocou-o no pescoço dela, dizendo:
– Este gris-gris a protege, chérie .
Tão rápida quanto uma batida de coração, a memória se ondulou e o tempo foi adiantado para um século à frente. Uma Lenobia mais velha, mais sábia e menos ingênua estava segurando entre suas mãos a bolsa de couro envelhecida, que havia se partido e cujo conteúdo estava caindo para fora – treze coisas, justamente como Martin tinha dito para ela. Mas a maioria dessas coisas havia se tornado irreconhecível durante o século em que ela usara o talismã. Lenobia se lembrou de um cheiro fraco de zimbro, do toque macio do barro granulado antes de ele se transformar em pó e da pequena pena de pomba que se desintegrou entre seus dedos. Mas, acima de tudo, Lenobia se lembrava da onda de alegria fugaz que ela sentira quando, no meio dos restos em decomposição do amor e da proteção de Martin, ela descobriu algo que o tempo não havia sido capaz de destruir. Era um anel de ouro, com uma esmeralda em forma de coração rodeada por minúsculos diamantes.
– O coração de sua mãe... o seu coração... o meu coração – Lenobia sussurrou enquanto deslizava a peça pelo seu dedo anular. – Eu ainda sinto a sua falta, Martin. Eu nunca o esqueci. Eu prometi isso.

 

 

 


 

 

 


E então as memórias do sonho voltaram no tempo novamente, levando Lenobia para Martin outra vez, só que desta vez eles não estavam se encontrando no porão de carga de um navio no mar e se apaixonando. Essa memória era sombria e terrível. Mesmo sonhando, Lenobia sabia o lugar e a data: Nova Orleans, 21 de março de 1788, pouco tempo depois do pôr do sol.

Os estábulos haviam explodido em um incêndio e Martin a salvara, carregando-a para longe das chamas.

– Oh, não! Martin! Não! – Lenobia havia gritado para ele, e agora ela choramingava, lutando para despertar antes que ela tivesse que reviver o fim terrível da sua lembrança.

Ela não acordou. Em vez disso, ela ouviu o seu único amor repetir as palavras que haviam partido o seu coração dois séculos atrás, sentindo tudo novamente como se fosse uma ferida fresca e em carne viva.

– Tarde demais, chérie. É tarde demais para nós neste mundo. Mas eu vou vê-la de novo. Meu amor por você não acaba aqui. Meu amor por você não vai acabar nunca... Vou encontrá-la de novo, chérie. Isso eu prometo.

Quando Martin capturou o humano do mal que havia tentado escravizá-la, e então voltou com ele para a estrebaria em chamas, salvando a vida de Lenobia, a Mestra dos Cavalos finalmente conseguiu acordar com um choro soluçante e violento. Ela se sentou na cama e, com a mão trêmula, tirou o cabelo ensopado de suor do seu rosto.

O primeiro pensamento de Lenobia ao despertar foi em sua égua. Através da conexão psíquica que elas tinham, ela podia sentir que Mujaji estava agitada, quase em pânico.

– Shhhh, minha bonitona. Volte a dormir. Eu estou bem – Lenobia falou em voz alta, enviando pensamentos tranquilizantes para a égua negra com a qual ela tinha um vínculo especial. Sentindo-se culpada por ter deixado Mujaji perturbada, ela abaixou a cabeça e começou a girar carinhosamente o anel de esmeralda em volta do seu dedo.

– Pare de ser tão tola – Lenobia disse a si mesma com firmeza. – Foi só um sonho. Eu estou em segurança. Não estou lá de novo. O que aconteceu naquela ocasião não pode me machucar mais do que já machucou – Lenobia mentiu para si mesma. Eu posso me ferir de novo. Se Martin voltou, se ele realmente voltou, meu coração pode se ferir novamente. Outro soluço tentou escapar de Lenobia, mas ela pressionou seus lábios e controlou suas emoções à força.

Ele pode não ser Martin, ela disse a si mesma racionalmente. Travis Foster, o novo humano contratado por Neferet para auxiliá-la nos estábulos, era simplesmente uma bela distração – ele e sua grande e bonita égua Percherão.

– Provavelmente, era exatamente isso o que Neferet pretendia quando o contratou – Lenobia resmungou. – Ela só queria me distrair. E a Percherão dele é só uma estranha coincidência – Lenobia fechou os olhos e bloqueou as lembranças que se levantavam do passado. Então ela repetiu em voz alta: – Travis pode não ser Martin reencarnado. Eu sei que a minha reação a ele é surpreendentemente forte, mas já faz muito tempo desde que eu tive um amante.

Você nunca mais teve um amante humano. Você prometeu isso – sua consciência a lembrou.

– Então simplesmente já passou da hora de eu ter um amante vampiro, mesmo se for por pouco tempo. E esse tipo de distração vai ser uma coisa boa para mim – Lenobia tentou ocupar sua imaginação considerando e depois rejeitando uma lista de guerreiros Filhos de Erebus bonitões, mas os olhos de sua mente não estavam vendo seus corpos fortes e musculosos, e sim imaginando olhos castanhos cor de uísque tingidos de um verde-oliva familiar e um sorriso fácil... – Não! – ela não iria pensar nisso. Ela não iria pensar nele.

Mas e se a alma de Martin realmente estiver em Travis? A mente inquieta de Lenobia sussurrou sedutoramente. Ele deu sua palavra de que me encontraria de novo. Talvez ele tenha conseguido.

– E então? – Lenobia se levantou e começou a andar de um lado para outro. – Eu conheço bem demais a fragilidade dos humanos. Eles são tão facilmente mortos, e hoje em dia o mundo é ainda mais perigoso do que era em 1788. O meu amor terminou em sofrimento e chamas uma vez. E uma vez já é o bastante – Lenobia parou e colocou seu rosto entre as mãos quando seu coração percebeu a verdade e bombeou-a através de seu corpo e de sua alma, tornando-se realidade. – Eu sou uma covarde. Se Travis não é Martin, eu não quero me entregar a ele e correr o risco de amar outro humano. E se ele é Martin que voltou para mim, eu não posso suportar o inevitável, pois vou perdê-lo de novo.

Lenobia sentou-se pesadamente na velha cadeira de balanço que ela havia colocado ao lado da janela do seu quarto. Ela gostava de ler ali. Se não conseguisse dormir, sua janela era voltada para o leste, de modo que ela podia assistir ao nascer do sol e olhar para os jardins ao lado do estábulo. Lenobia não conseguia deixar de apreciar a luz da manhã, por mais irônico que isso fosse para uma vampira. No fundo do seu coração, vampira ou não, ela seria eternamente uma garota que amava as manhãs, os cavalos e um humano alto, com a pele cor de cappuccino, que havia morrido muito tempo atrás quando ele ainda era jovem demais.

Seus ombros desabaram. Ela não costumava pensar tanto em Martin havia décadas. A memória reavivada dele era uma espada de dois gumes. Por um lado, ela amava se lembrar do seu sorriso, do seu cheiro, do seu toque. Por outro lado, a sua lembrança também evocava o vazio que a sua ausência tinha deixado. Por mais de duzentos anos, Lenobia havia sofrido por uma possibilidade perdida – uma vida desperdiçada.

– O nosso futuro foi queimado e arrancado de nós. Destruído pelas chamas do ódio, da obsessão e do mal – Lenobia balançou a cabeça e enxugou os olhos. Ela precisava recuperar o controle sobre as suas emoções. O mal ainda estava queimando e abrindo terreno no campo da Luz e do bem. Ela inspirou o ar profundamente para se centrar e voltou seus pensamentos para um assunto que nunca falhou em acalmá-la, não importando o quão caótico o mundo ao redor dela tivesse se tornado: cavalos e Mujaji, em particular. Sentindo-se mais calma agora, Lenobia se concentrou de novo, atingindo aquela parte superespecial do seu espírito que Nyx tocara ­– e que recebera o dom da sua afinidade com cavalos – no dia em que a Lenobia de dezesseis anos havia sido Marcada. Ela encontrou sua égua facilmente e, no mesmo instante, sentiu-se culpada pela sua agitação refletida em Mujaji.

– Shhh – Lenobia a tranquilizou novamente, repetindo em voz alta a sensação de segurança que ela estava enviando através do seu elo com a égua. – Eu só estou sendo tola e autoindulgente. Isso vai passar, eu prometo, minha querida – Lenobia projetou uma maré de ternura e amor sobre sua égua da cor da noite e, como sempre, Mujaji recuperou a calma.

Lenobia fechou os olhos e soltou um longo suspiro. Ela podia visua­lizar sua égua, negra e bela como a noite, finalmente se tranquilizando, levantando uma pata traseira e caindo num sono sem sonhos.

A Mestra dos Cavalos se concentrou na sua égua, afastando o turbilhão que a chegada do jovem cowboy ao seu estábulo havia causado dentro dela. Amanhã, ela prometeu para si mesma, amanhã eu vou deixar claro para Travis que nós nunca vamos ser mais do que patroa e empregado. A cor dos seus olhos e o jeito com que ele me faz sentir, tudo isso vai começar a acalmar quando eu me distanciar dele... Isso tem que... tem que...

Finalmente, Lenobia adormeceu.

Neferet

Shadowfax atendeu prontamente ao chamado de Neferet, apesar de o felino não ser ligado a ela. Felizmente, as aulas já haviam terminado por esta noite, portanto, quando o grande Maine Coon a encontrou no meio do ginásio, o lugar estava com as luzes parcialmente apagadas e totalmente vazio – não havia nenhum estudante por perto; o próprio Dragon Lankford também estava ausente, mas provavelmente por pouco tempo. Ela tinha visto apenas alguns novatos vermelhos no caminho até ali. Neferet sorriu, satisfeita por pensar em como ela havia colocado os vermelhos do mal na Morada da Noite. Quantas possibilidades adoráveis e caóticas eles apresentaram – especialmente depois de ela ter certeza de que o círculo de Zoey seria quebrado e que a melhor amiga dela, Stevie Rae, ficaria arrasada, sofrendo com a perda do seu amante.

A constatação de que ela iria assegurar dor e sofrimento futuros para Zoey agradou infinitamente Neferet, mas ela era disciplinada demais para se permitir começar a tripudiar antes que o feitiço de sacrifício estivesse terminado e os seus comandos fossem postos em andamento. Apesar de a escola estar surpreendentemente quieta esta noite, quase abandonada, na verdade qualquer um podia aparecer no ginásio. Neferet precisava trabalhar rapidamente e em silêncio. Haveria tempo de sobra para se regozijar com os frutos do seu trabalho mais tarde.

Ela falou suavemente com o gato, atraindo-o para mais perto dela, e quando ele estava próximo o bastante ela se ajoelhou ao seu nível. Neferet pensou que ele desconfiaria dela – os gatos sabem das coisas. Eles eram muito mais difíceis de enganar do que humanos, novatos ou até mesmo vampiros. O próprio gato de Neferet, Skylar, havia se recusado a se mudar para a nova cobertura dela no edifício Mayo, preferindo ficar espreitando nas sombras da Morada da Noite, observando-a deliberadamente com seus grandes olhos verdes.

Mas Shadowfax não era tão precavido.

Neferet acenou. Shadowfax veio até ela, encurtando vagarosamente o último espaço que os separava. O grande gato não foi amigável – ele não se esfregou contra ela, marcando-a afetivamente com o seu cheiro –, mas veio até ela. A sua obediência era tudo o que importava para Neferet. Ela não queria o amor dele; ela queria a sua vida.

A Tsi Sgili, Consorte imortal das Trevas e ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, sentiu apenas uma vaga e remota sombra de remorso quando a sua mão esquerda acariciou o grande Maine Coon cinza tigrado. O seu pelo era macio e grosso sobre o seu corpo ágil e atlético. Como Dragon Lankford, o guerreiro que o gato havia escolhido como seu, Shadowfax era poderoso e estava em pleno vigor. Era uma pena que ele fosse necessário para atender a um propósito maior. Um propósito superior.

O remorso de Neferet não equivalia a hesitação. Ela usou o seu dom concedido pela Deusa – a afinidade com felinos – e canalizou afeto e confiança através da palma da sua mão para o gato já confiante. Enquanto sua mão esquerda o acariciava, encorajando-o a se arquear e começar a ronronar, a sua mão direita sorrateiramente puxou o seu afiado athame 1 , com o qual ela rapidamente, de modo preciso, cortou o pescoço de Shadowfax.

O grande gato não emitiu nenhum som. O seu corpo deu um espasmo, tentando se lançar para longe de Neferet, mas a mão dela agarrou o pelo do animal, segurando-o tão perto que o seu sangue respingou, quente e úmido, sobre o corpete do seu vestido de veludo verde.

Os filamentos de Trevas que estavam sempre em volta de Neferet pulsaram e estremeceram na expectativa.

Neferet os ignorou.

O gato morreu mais rápido do que ela imaginara, e Neferet ficou feliz por isso. Ela não tinha imaginado que ele fosse encará-la, mas o gato guerreiro sustentou o olhar dela mesmo depois de desabar no chão arenoso do ginásio, quando ele já não podia mais combatê-la, mas ainda assim ficou deitado respirando com dificuldade, contorcendo-se em silêncio e encarando-a.

Trabalhando rapidamente, enquanto o gato ainda estava vivo, Neferet começou o feitiço. Usando a lâmina do seu athame ritual, Neferet desenhou um círculo em volta do corpo moribundo de Shadowfax, de modo que o sangue que se empoçava em volta dele escorria para dentro do círculo, e um fosso escarlate em miniatura se formou.

Então ela pressionou uma palma da mão dentro do sangue fresco e quente, levantou-se do lado de fora do círculo, ergueu as duas mãos – uma ensanguentada, a outra segurando a faca com a ponta escarlate – e entoou:

“Com este sacrifício eu comando

as Trevas controladas pela minha mão.

Aurox, obedeça-me!

A morte de Rephaim acontecerá”.

Neferet fez uma pausa, permitindo que os filamentos pegajosos, negros e frios se esfregassem contra ela e se agrupassem em toda a volta do círculo. Ela sentiu a sua ânsia, a sua necessidade, o seu desejo, o seu perigo. Mas, acima de tudo, ela sentiu o seu poder.

Para completar o feitiço, ela mergulhou o athame dentro do sangue e escreveu diretamente na areia com ele, fechando o encantamento:

“Através do pagamento de sangue, dor e batalha,

Eu forço o Receptáculo a ser minha arma!”.

Concentrando-se na imagem de Aurox em sua mente, Neferet entrou no círculo e cravou o punhal no corpo de Shadowfax, espetando-o no chão do ginásio enquanto ela soltava as gavinhas de Trevas para que elas pudessem consumir o seu banquete de sangue e dor.

Quando o gato estava completamente drenado e morto, Neferet disse:

– O sacrifício está concluído. O feitiço foi feito. Façam como eu ordeno. Forcem Aurox a matar Rephaim. Façam Stevie Rae a quebrar o círculo. Façam com que o feitiço de revelação falhe. Agora!

Como um ninho agitado de cobras, os filamentos subordinados às Trevas serpentearam para dentro da noite, afastando-se do ginásio e indo em direção a um campo de lavandas e ao ritual que já estava em andamento.

Neferet olhou-os atentamente, sorrindo de satisfação. Um filamento de Trevas em particular, grosso como o seu braço, chicoteou através da porta que se abria do ginásio para o estábulo. A atenção de Neferet foi atraída naquela direção pelo som abafado de vidro quebrado.

Curiosa, a Tsi Sgili deslizou até lá. Tomando cuidado para não fazer barulho e disfarçando-se nas sombras, Neferet espiou o estábulo. Os seus olhos esmeralda se arregalaram com uma agradável surpresa. O filamento grosso de Trevas havia sido desajeitado. Ele havia derrubado um dos lam piões a gás que ficavam pendurados não muito longe das pilhas de feno de ótima qualidade que Lenobia era sempre tão meticulosa em escolher para as suas criaturas. Neferet assistiu, fascinada, quando o primeiro ramo de feno pegou fogo, crepitou e então, com uma renovada onda amarela e um poderoso som de whoosh, incendiou-se completamente.

Neferet olhou para a longa fileira de baias de madeira fechadas. Ela só conseguia ver os contornos escuros e indistintos de alguns dos cavalos. A maioria estava dormindo. Alguns estavam pastando preguiçosamente, já acomodados para o amanhecer que se aproximava e para o descanso que o dia iria proporcionar a eles até o pôr do sol, quando os estudantes chegariam para as suas aulas intermináveis.

Ela olhou de volta para o feno. Um fardo inteiro foi engolfado em chamas. O cheiro de fumaça foi levado até ela, e era possível ouvir o som crepitante do fogo se alimentando e crescendo, como uma besta descontrolada.

Neferet saiu do estábulo, fechando a pesada porta que dava para o ginásio com firmeza. Parece que provavelmente Stevie Rae não vai ser a única a sofrer depois desta noite. Esse pensamento satisfez Neferet, e ela saiu do ginásio e da matança que ela havia causado ali, sem ver a pequena gata branca que caminhou até o corpo imóvel de Shadowfax, deitou ao lado dele e fechou os olhos.

Lenobia

A Mestra dos Cavalos acordou com um terrível pressentimento. Confusa, Lenobia esfregou as mãos no rosto. Ela havia pegado no sono na cadeira de balanço perto da janela e esse súbito despertar parecia mais um pesadelo do que realidade.

– Isso é tolice – ela resmungou sonolenta. – Preciso encontrar meu centro de novo. – A meditação a havia ajudado a silenciar seus pensamentos no passado. Resolutamente, Lenobia inspirou profundamente o ar para se purificar.

Foi com essa inspiração profunda que Lenobia sentiu o cheiro – fogo. Mais especificamente, um estábulo em chamas. Ela cerrou os dentes. Desapareçam, fantasmas do passado! Sou velha demais para esse tipo de jogo. Então um agourento som crepitante fez Lenobia afastar o último resquício de sono que havia obscurecido a sua mente. Ela se moveu rapidamente até a janela e abriu as pesadas cortinas pretas. A Mestra dos Cavalos olhou para o seu estábulo e arfou de horror.

Não era um sonho.

Não era a sua imaginação.

Em vez disso, era um pesadelo real.

Chamas estavam lambendo as laterais do edifício. Enquanto ela observava, as portas duplas no canto da sua visão foram abertas pelo lado de dentro e, contra o pano de fundo de uma onda de fumaça e labaredas ardentes, estava a silhueta de um cowboy alto guiando uma enorme Percherão cinza e uma égua negra como a noite para fora.

Travis soltou as éguas, tocando-as para os jardins da escola e para longe do estábulo em chamas; então, ele correu de volta para a boca flamejante do edifício.

Tudo dentro de Lenobia ficou vivo quando aquela visão extinguiu o seu medo e a sua dúvida.

– Não, Deusa. De novo, não. Eu não sou mais uma garota assustada. Desta vez, o fim dele vai ser diferente!


2 Lenobia

Lenobia saiu em disparada de seu quarto e desceu correndo a pequena escada que ligava o seu alojamento ao piso térreo e ao estábulo. A fumaça estava se infiltrando feito cobras por debaixo da porta. Ela controlou o seu pânico e encostou a mão na madeira. Não estava quente, então ela empurrou a porta, avaliando a situação rapidamente enquanto entrava no estábulo. O fogo estava ardendo mais furiosamente no fundo do edifício, na área onde o feno e a ração eram estocados. Era também a área mais próxima à baia de Mujaji e à grande baia para animais prenhes onde a Percherão Bonnie e Travis haviam se instalado.

– Travis! – ela gritou, levantando o braço para proteger o rosto do calor das labaredas crescentes, enquanto corria para dentro do estábulo, abrindo as baias e libertando os cavalos mais próximos a ela. Para fora, Persephone, vá! Lenobia empurrou a égua clara, que estava congelada de pavor, recusando-se a sair de sua baia. Quando Persephone passou por ela em disparada em direção à saída, Lenobia chamou de novo: – Travis! Cadê você?

– Estou levando para fora os cavalos que estavam mais perto do fogo! – ele gritou quando uma jovem égua acinzentada correu da direção de onde vinha a voz de Travis e quase passou por cima de Lenobia.

– Calma! Calma, Anjo – Lenobia a tranquilizou, conduzindo a égua aterrorizada até a saída.

– A saída leste está bloqueada pelas chamas e eu... – as palavras de Travis foram cortadas quando a janela da selaria explodiu e estilhaços de vidro quente voaram pelo ar.

– Travis! Saia daqui e ligue para o 911! – Lenobia gritou enquanto abria a baia mais próxima e libertava um capão, detestando o fato de ela não ter pegado o seu telefone e feito ela mesma a chamada antes de sair do quarto.

– Eu acabei de ligar! – respondeu uma voz não familiar. Lenobia olhou através da fumaça e das chamas e viu uma novata correndo na sua direção, guiando uma égua alazã que estava totalmente em pânico.

– Está tudo bem, Diva – Lenobia automaticamente acalmou o cavalo, pegando a correia da garota. Ao seu toque, a égua se aquietou, e Lenobia soltou a correia do cabresto, encorajando-a a galopar para fora pela porta mais próxima atrás dos outros cavalos em fuga. Ela puxou a garota para trás com ela, afastando-se do calor que aumentava, dizendo: – Quantos cavalos estão... – Lenobia perdeu a fala quando viu que o crescente na testa da garota era vermelho.

– Acho que só sobraram alguns – a novata vermelha estava com a mão trêmula quando enxugou o suor com fuligem do seu rosto, gaguejando as palavras. – E-eu peguei Diva porque sempre gostei dela e pensei que ela podia se lembrar de mim. Mas até ela estava assustada. Realmente assustada.

Então Lenobia reconheceu a garota: Nicole. Ela tinha uma aptidão com cavalos e um modo natural de montar antes de morrer, ressuscitar e se juntar ao grupo do mal de Dallas. Mas não havia tempo para questionar a garota. Não havia tempo para nada, exceto levar os cavalos – e Travis – para um local seguro.

– Você fez bem, Nicole. Você pode entrar de novo lá?

– Sim – Nicole concordou trêmula. – Não quero que eles se queimem. Farei qualquer coisa que você mandar.

Lenobia colocou a mão no ombro da garota.

– Eu só preciso que você abra as baias e saia do caminho. Eu vou guiá-los para um local seguro.

– Ok, ok. Eu consigo fazer isso – Nicole concordou. Ela soou aflita e assustada, mas seguiu Lenobia sem hesitação, e as duas correram de volta para o turbilhão de calor dentro do estábulo.

– Travis! – Lenobia tossiu, tentando enxergar através da fumaça cada vez mais espessa. – Você está me ouvindo?

Mais alto que o som crepitante das chamas, ele gritou:

– Sim! Estou aqui atrás. Fechado na baia!

– Abra a baia! – Lenobia se recusou a ceder ao seu próprio pânico. – Abra todas as baias! Eu consigo chamar os cavalos para mim, para um local seguro. Posso fazê-los sair. Siga-os. Posso guiar todos vocês para fora!

– Já abri! – Travis gritou logo depois, do meio da fumaça e do calor.

– Já abri todas aqui também! – Nicole gritou bem mais perto.

– Agora sigam os cavalos e saiam do estábulo! – Lenobia berrou antes de começar a correr para trás, para longe do fogo e em direção à porta dupla da saída que ela deixou bem aberta. Em pé, na frente da porta, ela levantou os braços, com as palmas voltadas para fora, e imaginou que estava extraindo poder diretamente do Mundo do Além e do reino místico de Nyx. Lenobia abriu seu coração, sua alma e seu dom concedido pela Deusa e gritou: – Venham, meus belos filhos e filhas! Sigam minha voz e meu amor e vivam!

Pareceu haver um estouro da manada, com cavalos saindo em disparada do meio das labaredas e da fumaça escura. O terror deles era tão palpável para Lenobia que era quase como um ser vivo. Ela compreendeu isso – o seu medo das chamas, do fogo e da morte – e canalizou força e serenidade para si mesma e para os cavalos que passavam por ela galopando em direção aos jardins da escola.

A novata vermelha saiu cambaleando e tossindo atrás deles.

– Acabou. Todos os cavalos saíram – ela disse, desabando no gramado.

Lenobia deu um aceno rápido de cabeça para Nicole por consideração. Suas emoções estavam concentradas na manada agitada atrás dela, e seus olhos estavam focados na fumaça espessa e nas chamas flamejantes diante dela, das quais Travis não saía.

– Travis! – ela gritou.

Não houve nenhuma resposta.

– O fogo está se espalhando rápido – a novata vermelha falou ainda tossindo. – Ele pode estar morto.

– Não – Lenobia respondeu com firmeza. – Não desta vez – ela se voltou na direção da manada, chamando a sua amada égua negra. – Mujaji!

O cavalo relinchou e veio trotando até ela. Lenobia levantou a mão, fazendo-a parar.

– Fique calma, doçura. Cuide dos meus outros filhos. Empreste a eles a sua força e serenidade, assim como o meu amor – Lenobia disse.

Com relutância, porém obedientemente, a égua começou a andar ao redor do bando de cavalos assustados, agrupando-os. Satisfeita, Lenobia se virou, inspirou duas vezes profundamente e entrou em disparada na boca do estábulo em chamas.

O calor estava terrível. A fumaça era tão densa que era como tentar respirar um líquido efervescente. Por um instante, Lenobia foi transportada de volta para aquela noite horrível em Nova Orleans e para outro celeiro em chamas. Os sulcos grossos das cicatrizes nas suas costas latejaram como uma memória fantasma de dor, e por um momento o pânico reinou, enraizando Lenobia no passado.

Então ela o escutou tossir, e o seu pânico foi despedaçado pela esperança, permitindo que o presente e a força verdadeira da vontade de Lenobia superassem o seu medo.

– Travis! Eu não estou te vendo! – ela gritou e arrancou a parte de baixo de sua camisola, entrou na baia mais próxima e mergulhou o pano na água do cocho.

– Saia... daqui... – ele disse entre uma tosse seca e outra.

– Nem ferrando. Já vi um homem queimar por minha causa. Não gosto nada disso. – Lenobia colocou o tecido ensopado sobre ela como um manto com capuz e avançou mais para dentro da fumaça e do calor, seguindo a tosse de Travis.

Ela o encontrou perto de uma baia aberta. Ele havia caído e estava tentando se levantar, mas só havia conseguido se ajoelhar e estava curvado para frente, quase vomitando e tossindo. Lenobia não hesitou. Ela entrou na baia e molhou o tecido rasgado na água do cocho da baia de novo.

– O quê...? – outra tosse o acometeu enquanto ele franzia os olhos para ela. – Não! Saia...

– Eu não tenho tempo para discutir. Apenas deite-se – ela falou. Como ele não se moveu rápido o bastante, ela deu uma rasteira por baixo dos seus joelhos. Ele caiu de costas com um gemido e ela estendeu o tecido molhado sobre o rosto e o peito dele. – Isso, assim mesmo. Na horizontal – Lenobia ordenou, enquanto foi até o cocho e rapidamente espalhou água pelo seu próprio rosto e cabelo. Então, antes que ele pudesse protestar ou estragar o plano dela se mexendo, ela agarrou as pernas de Travis e começou a puxá-lo.

Ele tinha que ser tão grande e pesado? A mente de Lenobia estava ficando confusa. As chamas estavam rugindo em volta dela, e ela tinha certeza de que podia sentir o cheiro de cabelo queimado. Bem, Martin também era grande... E então a mente dela parou de funcionar. Era como se o seu corpo estivesse se movendo no piloto automático, sem ninguém para dirigi-lo, exceto uma necessidade primordial de continuar arrastando aquele homem para longe do perigo.

– É ela! É Lenobia!

De repente, mãos fortes estavam ali, tentando tirar aquela carga dela. Lenobia lutou. A morte não vai vencer desta vez! Não desta vez!

– Professora Lenobia, está tudo bem. Você conseguiu.

Então a mente dela registrou o frescor do ar e foi capaz de entender o que estava acontecendo. Ela ofegou, inspirando o ar puro e tossindo o calor e a fumaça, enquanto mãos gentis a ajudaram a se sentar na grama e colocaram uma máscara sobre o seu nariz e sua boca, através da qual um ar ainda mais puro inundou os seus pulmões. Ela sugou o oxigênio e a sua mente clareou completamente.

Um enxame de bombeiros humanos lotava os jardins. Poderosas mangueiras estavam voltadas para o estábulo em chamas. Dois paramédicos estavam ao redor dela, observando-a, parecendo perdidos e obviamente surpresos com a rapidez com que ela estava se recuperando.

Ela arrancou a máscara do rosto.

– Não cuidem de mim. Cuidem dele! – ela puxou o tecido quente do corpo de Travis, que ainda estava imóvel demais. – Ele é humano. Ajudem-no!

– Sim, senhora – um dos paramédicos murmurou e então eles começaram a trabalhar em Travis.

– Lenobia, beba isto – alguém disse e uma taça foi colocada em suas mãos.

A Mestra dos Cavalos levantou os olhos e viu duas vampiras curandeiras da enfermaria da Morada da Noite, Margareta e Pemphredo, agachadas ao lado dela. Lenobia bebeu de uma vez todo o vinho, que estava bastante misturado com sangue, sentindo instantaneamente a energia vital que ele carregava formigar pelo seu corpo.

– É melhor você vir com a gente, professora – Margareta afirmou. – Você vai precisar de mais do que isso para se curar completamente.

– Mais tarde – Lenobia respondeu, deixando a taça de lado. Ela ignorou as curandeiras, bem como as sirenes, as vozes e o caos generalizado ao seu redor. Lenobia engatinhou em direção à cabeça de Travis. Os paramédicos estavam ocupados. O cowboy já estava usando uma máscara, e eles estavam dando uma injeção no seu braço. Os olhos dele estavam fechados. Mesmo por baixo da sujeira da fuligem, ela podia ver que o seu rosto estava escaldado e vermelho. Ele estava usando uma camiseta para fora da calça, que obviamente tinha vestido apressadamente por sobre o jeans. Os seus antebraços fortes estavam descobertos e cheios de bolhas. E as suas mãos... as suas mãos estavam queimadas e ensanguentadas.

Ela deve ter feito algum barulho involuntário – sinal da terrível dor de cabeça que estava sentindo –, pois Travis abriu os olhos. Eles eram exatamente como ela se lembrava: castanhos, com um tom de uísque e traços verde-oliva. Os seus olhares se encontraram e se fixaram um no outro.

– Ele vai sobreviver? – ela perguntou ao paramédico mais próximo.

– Eu já vi casos piores, e ele vai ter cicatrizes, mas nós temos que levá-lo ao hospital St. John o mais rápido possível. A inalação de fumaça foi pior do que as suas queimaduras – o humano fez uma pausa e, apesar de Lenobia não tirar os olhos de Travis, pôde escutar o sorriso na voz do paramédico. – Ele é um cara de sorte. Quase você não o encontra a tempo.

– Na verdade, levei duzentos e vinte e quatro anos para encontrá-lo, mas estou feliz que cheguei a tempo.

Travis começou a dizer algo, mas suas palavras foram cortadas por uma tosse seca horrível.

– Com licença, senhora. A maca chegou.

Lenobia se afastou para o lado, enquanto Travis era transferido para a maca com rodinhas, mas em nenhum momento eles deixaram de se olhar. Ela caminhou ao lado dele enquanto os paramédicos empurravam a maca até a ambulância que estava à espera. Antes de o colocarem lá dentro, ele tirou a máscara e, com uma voz áspera, perguntou:

– Bonnie? Ok?

– Ela está bem. Eu posso senti-la. Ela está com Mujaji. Vou cuidar dela. Vou cuidar de todos eles e deixá-los em segurança – ela assegurou a ele.

Ele estendeu a mão para Lenobia, e ela cuidadosamente tocou sua mão queimada e ensanguentada.

– Você vai cuidar de mim também? – ele conseguiu perguntar.

– Sim, cowboy. Você pode apostar sua bela e grande égua que eu vou – e sem se importar nem um pouco com os olhares de humanos, novatos e vampiros que ela podia sentir na direção dela, Lenobia se inclinou e o beijou suavemente na boca. – Procure por alegria e cavalos. Eu vou estar lá. Desta vez, cuidando para que você esteja a salvo.

– Bom saber. Minha mãe sempre dizia que eu precisava de alguém que cuidasse de mim. Espero que ela descanse em paz sabendo que eu consegui essa pessoa – a voz dele soou como se a sua garganta fosse uma lixa.

Lenobia sorriu.

– Você conseguiu, mas eu acho que é você que precisa aprender a descansar.

As pontas dos dedos dele tocaram a mão de Lenobia, e ele disse:

– Acho que agora eu vou conseguir. Eu só estava esperando encontrar o meu caminho de volta para casa.

Lenobia encarou aqueles olhos âmbar esverdeados que lhe eram tão familiares, tão incrivelmente parecidos com os de Martin, e imaginou que através deles ela podia enxergar a verdadeira natureza daquela alma também familiar – a bondade, a força, a honestidade e o amor que, de algum modo, haviam cumprido a sua promessa de voltar para ela. Lá no fundo do coração, Lenobia sabia que, apesar de no resto da aparência o cowboy alto e rijo não ter nenhuma semelhança com o seu amor perdido, ela havia encontrado o seu coração de novo. A emoção travou a sua voz, e tudo o que ela podia fazer era sorrir, concordar com a cabeça e virar a mão para que os dedos dele pousassem na sua palma – quente, forte e muito viva.

– Nós temos que levá-lo ao hospital, senhora – afirmou o paramédico.

Lenobia tirou sua mão de Travis com relutância, enxugou os olhos e disse:

– Você pode levá-lo por pouco tempo, mas eu o quero de volta. Logo – ela dirigiu o seu olhar, que parecia uma nuvem de tempestade, para o humano de jaleco. – Trate-o bem. Esse fogo no celeiro não é nada perto do meu temperamento inflamado.

– S-sim, senhora – o paramédico gaguejou, rapidamente colocando Travis dentro da ambulância.

Lenobia teve certeza de que ouviu a risada de Travis no meio da sua tosse horrorosa, antes de as portas da ambulância se fecharem e de eles partirem com a sirene piscando.

Ela estava parada ali, olhando a ambulância se afastar e preocupada com Travis, quando alguém próximo limpou a garganta de um jeito bem óbvio, atraindo a atenção de Lenobia instantaneamente. Ao se virar, ela enxergou o que a sua visão antes totalmente capturada por Travis havia ignorado. Parecia que a escola havia explodido. Cavalos movendo-se nervosamente o mais perto do muro leste que eles conseguiam chegar. Caminhões de bombeiros estavam estacionados nos jardins ao lado do estábulo, esguichando água de enormes mangueiras na direção do prédio ainda em chamas. Novatos e vampiros tinham se reunido em grupos assustados, parecendo impotentes.

– Calma, Mujaji, calma... Está tudo bem agora, minha doçura. – Lenobia fechou os olhos e se concentrou em usar o dom que a sua Deusa havia concedido a ela há mais de duzentos anos. Ela sentiu a bela égua negra responder imediatamente, relaxando da sua agitação e acabando com o resto do seu medo e nervosismo. Então Lenobia voltou sua conexão para a grande Percherão, que estava preocupada escavando o chão, movendo as orelhas, buscando algum sinal de Travis. – Bonnie, ele está bem. Você não tem com o que se preocupar – Lenobia falou suavemente, ecoando as ondas de emoção que ela estava transmitindo para a égua ansiosa. Bonnie se acalmou quase tão rápido quanto Mujaji, o que agradou bastante Lenobia e permitiu que ela direcionasse sua atenção facilmente para o resto dos cavalos. – Persephone, Anjo, Diva, Little Biscuit, Okie Dodger – ela enviou afeto e segurança individualmente para os cavalos –, sigam a liderança de Mujaji. Fiquem calmos. Sejam fortes. Vocês estão a salvo.

A pessoa próxima a ela limpou a garganta novamente, interrompendo a concentração dela. Irritada, Lenobia abriu os olhos e viu um humano parado na sua frente. Ele vestia um uniforme de bombeiro e a estava observando com as sobrancelhas arqueadas e uma curiosidade explícita.

– Você está falando com aqueles cavalos?

– Na verdade, estou fazendo muito mais do que isso. Dê uma olhada – ela fez um gesto para a manada diante dela.

Ele se virou, e o seu rosto registrou a sua surpresa.

– Eles se acalmaram bastante. Isso é bizarro.

– A palavra “bizarro” tem tantas conotações negativas. Prefiro a palavra “mágico”. – Lenobia fez um aceno de cabeça, despedindo-se do bombeiro, e então começou a andar a passos largos na direção do grupo de novatos que estavam aglomerados em volta de Erik Night e da professora P.

– Senhora, eu sou o capitão Alderman, Steve Alderman – ele disse, quase correndo para acompanhar o passo de Lenobia. – Estamos trabalhando para controlar o fogo, e eu preciso saber quem é o responsável pela escola.

– Capitão Alderman, eu gostaria de dizer que sou eu – Lenobia disse sombriamente. Então ela acrescentou: – Venha comigo. Vou resolver isso – a Mestra dos Cavalos se juntou a Erik, professora P. e seu grupo de novatos, que incluía um guerreiro Filho de Erebus, Kramisha, Shaylin e vários novatos azuis quinto-formandos e sexto-formandos. – Penthesilea, eu sei que Thanatos está com Zoey e o seu círculo, terminando o ritual na fazenda da Sylvia Redbird, mas onde está Neferet? – a voz de Lenobia soou como um chicote.

– E-eu simplesmente não sei! – a professora de Literatura respondeu trêmula, olhando por sobre o seu ombro para o estábulo em chamas. – Eu fui até os aposentos dela quando vi o fogo, mas não havia nenhum sinal dela.

– E ninguém tentou ligar para ela? – Kramisha perguntou.

– Não atende – Erik respondeu.

– Que maravilha – Lenobia resmungou.

– Posso supor então que, na ausência dessas pessoas que acabou de mencionar, você é a responsável aqui? – o capitão Alderman questionou Lenobia.

– É, parece que, como não sobrou ninguém, sou eu – ela disse.

– Bem, então você precisa fazer a contagem dos estudantes o mais rápido possível. Você e os professores precisam conferir imediatamente se todos os alunos estão presentes – ele indicou com o polegar um banco não muito longe de onde eles estavam. – Aquela garota com a lua vermelha na testa é a única garota que encontramos perto do celeiro. Ela não está ferida, apenas um pouco abalada. O oxigênio está limpando os pulmões dela surpreendentemente rápido. Mesmo assim, pode ser uma boa ideia que ela seja examinada no hospital St. John.

Lenobia deu uma olhada para Nicole, que estava sentada respirando profundamente com uma máscara de oxigênio, enquanto um paramédico conferia seus sinais vitais. Margareta e Pemphredo estavam por perto, fuzilando o paramédico com os olhos, como se ele fosse um inseto irritante.

– A nossa enfermaria está mais bem equipada para cuidar de novatos feridos do que um hospital humano – Lenobia afirmou.

– Como achar melhor, senhora. Você é a responsável aqui, e sei que vocês, vampiros, têm uma fisiologia própria. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Sem ofensas. Meu melhor amigo no ensino médio foi Marcado e Transformado. Eu gostava dele na época. E ainda gosto dele.

Lenobia controlou o sorriso.

– Não me senti ofendida, capitão Alderman. Nós estamos apenas falando a verdade. Os vampiros realmente têm necessidades fisiológicas diferentes das dos humanos. Nicole vai ficar bem aqui com a gente.

– Ótimo. Acho que é melhor enviar alguns rapazes para dentro daquele ginásio para procurar outros garotos que podem estar por perto – o capitão falou. – Parece que nós conseguimos evitar que o fogo se espalhasse, mas é melhor fazer uma busca nas partes adjacentes da escola.

– Acho que procurar no ginásio é uma perda de tempo para os seus homens – Lenobia afirmou, seguindo o que o seu instinto estava lhe dizendo. – Concentre-se em fazer com que eles acabem com o fogo no estábulo. O incêndio não começou sozinho. Isso precisa ser investigado, além de nos certificarmos de que nenhum dos nossos ficou preso nas chamas. Eu vou pedir que os nossos guerreiros façam buscas nas áreas adjacentes da escola, começando pelo ginásio.

– Sim, senhora. Parece que realmente nós chegamos aqui a tempo. O ginásio vai ter danos de fumaça e água, mas vai parecer muito pior do que realmente é. Acho que a estrutura permaneceu intata. É um edifício sólido, feito de pedras boas e espessas. Vai ser preciso alguma reforma, mas o seu esqueleto foi feito para durar – o bombeiro tocou no seu chapéu para cumprimentá-la e se afastou, gritando ordens para os homens mais próximos.

Bem, pelo menos algumas notícias boas, Lenobia pensou, tentando desviar os olhos do caos em combustão em que o seu estábulo tinha se transformado. Ela se virou de novo para o seu grupo.

– Onde está Dragon? Ainda no ginásio?

– Nós também não conseguimos encontrar Dragon – Erik respondeu.

– Dragon está desaparecido? – O estábulo tinha sido construído com uma parede compartilhada com o grande ginásio coberto. Até então, ela havia estado muito preocupada para pensar nisso, mas a ausência do líder dos Filhos de Erebus durante uma crise na escola era algo totalmente estranho. – Neferet e Dragon... Não gosto do fato de que nenhum deles está aqui. Isso é um mau presságio para a escola.

– Professora Lenobia, hum, eu vi Neferet.

Os olhos de todos se voltaram para a pequena garota de cabelos grossos e escuros que faziam as feições delicadas do seu rosto parecerem quase de boneca. Lenobia colocou um nome rapidamente naquele rosto: Shaylin, a novata recém-chegada na Morada da Noite de Tulsa e a única novata cuja Marca original era vermelha. No instante em que a conhecera alguns dias atrás, Lenobia pensou que havia algo muito estranho com ela.

– Você viu Neferet? – ela franziu os olhos para a novata. – Onde? Quando?

– Há mais ou menos uma hora – Shaylin respondeu. – Eu estava sentada do lado de fora do dormitório, olhando para as árvores. – Ela encolheu os ombros, nervosa, e acrescentou: – Eu era cega e, agora que eu não sou mais, gosto de olhar para as coisas. Adoro.

– Shaylin, e Neferet? – Erik a estimulou a continuar.

– Ah, sim, eu a vi andando pela calçada em direção ao ginásio. Ela, bem, ela parecia muito escura – Shaylin fez uma pausa, parecendo desconfortável.

– Escura? O que você quer dizer com...

– Shaylin tem um jeito único de ver as pessoas – Erik interrompeu. Lenobia o viu colocar a mão sobre o ombro de Shaylin para tranquilizá-la. – Se ela achou que Neferet parecia escura, então provavelmente foi bom você ter evitado que os bombeiros humanos fossem bisbilhotar no ginásio.

Lenobia queria questionar mais Shaylin, mas Erik encontrou o seu olhar e balançou a cabeça, quase imperceptivelmente. Lenobia sentiu um arrepio de mau pressentimento descendo pela sua espinha. Aquela premonição fez com que ela tomasse a decisão.

– Axis, vá com Penthesilea até o escritório da administração. Se Diana não estiver acordada, acorde-a. Pegue a lista de alunos e a distribua para os guerreiros Filhos de Erebus. Peça para que eles contem todos os estudantes e depois faça com que os estudantes apresentem-se aos seus mentores antes de voltarem aos dormitórios. – Quando a professora e o guerreiro saíram apressados, Lenobia encontrou o olhar franco de Kramisha. – Você pode fazer com que esses novatos – Lenobia fez uma pausa e seu gesto abrangeu todos os alunos com aparência desnorteada que estavam vagando pela área – se apresentem aos seus mentores?

– Sou uma poetisa. Eu consigo criar alguns pentâmetros iâmbicos incríveis. Isso significa que eu posso dar uma de chefe de alguns garotos assustados e sonolentos.

Lenobia sorriu para a garota. Ela já gostava de Kramisha mesmo antes de ela morrer e depois voltar como uma novata vermelha, que tinha tantas habilidades poéticas e proféticas que havia sido nomeada a nova vampira Poeta Laureada.

– Obrigada, Kramisha. Eu sabia que podia contar com você. Mas é bom se apressar. Não preciso dizer isso para você, mas está bem perto de amanhecer.

Kramisha bufou.

– Você está me dizendo isso? Eu vou ficar mais tostada do que aquele celeiro se eu não entrar em um lugar coberto logo.

Quando Kramisha saiu apressada, chamando os novatos espalhados, Lenobia encarou Erik e Shaylin.

– Nós três precisamos dar uma examinada no ginásio.

– É, eu concordo – Erik disse. – Vamos lá.

Mas Shaylin não saiu do lugar, e Lenobia percebeu que ela tirou a mão de Erik do seu ombro. Não de um jeito irritado, mas, sim, distraído. Ela viu a jovem novata vermelha olhar para o céu e suspirar. Lenobia notou que ela parecia se sentir importante, que ela exibia uma sensação de quem queria ou esperava algo.

– O que foi? – Lenobia perguntou para a garota, apesar de a última coisa que ela deveria fazer naquele momento era dar atenção para uma novata vermelha distraída e estranha.

Ainda olhando para cima, Shaylin falou:

– Onde está a chuva quando você precisa dela?

– Ahn? – Erik balançou a cabeça. – Do que você está falando?

– Chuva. Eu queria muito, muito mesmo que chovesse – a garota baixou os olhos do céu e se voltou para ele, encolhendo os ombros e parecendo um pouco sem jeito. – Juro que eu posso sentir um cheiro de chuva no ar. Isso iria ajudar os bombeiros e seria uma garantia dupla de que o fogo não vai se espalhar para o resto da escola.

– Os humanos estão conseguindo lidar com o fogo. Nós temos que examinar o ginásio. Não gosto do fato de Neferet ter sido vista entrando lá – Lenobia afirmou e começou a andar em direção ao ginásio, supondo que os dois iriam segui-la, mas ela hesitou ao perceber que Shaylin ainda continuava lá. Ela se virou para a novata e estava pronta para repreendê-la por insolência ou ignorância, mas Erik disse algo antes:

– Ei, isso é importante – ele falou com uma voz baixa e urgente para Shaylin. – Vamos com Lenobia conferir o ginásio. Os bombeiros já estão com as coisas sob controle. – Como Shaylin não saiu do lugar e continuou a resistir em ir até o ginásio, ele falou mais alto: – O que há com você? Já que Thanatos, Dragon e até Zoey e o seu grupo não estão aqui, a gente tem que tomar cuidado para não deixar ninguém pensar que nós podíamos...

– Erik, eu realmente acho que Lenobia está certa – Shaylin o interrompeu. – Eu só quero saber o que vai acontecer com ela.

Lenobia seguiu o olhar de Shaylin e encontrou Nicole, ainda sentada no banco, entre duas vampiras da enfermaria, com a pele rosa e manchada de fuligem.

– Ela faz parte do grupo de novatos vermelhos de Dallas. Eu não ficaria surpreso se ela tivesse algo a ver com o incêndio – Erik insinuou, claramente irritado. – Lenobia, acho que você deveria fazer com que Nicole vá até a enfermaria e fique trancada lá até nós descobrirmos o que realmente aconteceu aqui.

Antes de Lenobia responder, Shaylin já estava falando. Ela soou firme e muito mais sábia do que deveria ser aos dezesseis anos.

– Não. Façam com que ela vá até a enfermaria para ter certeza de que ela está bem, mas não a prendam lá.

– Shaylin, você não sabe o que está dizendo. Nicole está com Dallas – Erik afirmou.

– Bem, neste momento ela não está com ele. Ela está mudando – Shaylin respondeu.

– Realmente, ela me ajudou a tirar os cavalos do estábulo – Lenobia disse. – Se ela estivesse envolvida com o incêndio, teria sido muito mais fácil se esconder e fugir no meio da fumaça. Eu nunca saberia que ela esteve lá.

– Isso faz sentido. As cores dela estão diferentes... melhores. – E então Shaylin, com a sua firmeza e sabedoria se dissipando, arregalou os olhos para Lenobia: – Ah, desculpe. Eu falei demais. Preciso aprender a manter a minha boca fechada.

– Que atrocidade foi cometida nos jardins da escola esta noite!

A voz ressoou como um trovão sobre Lenobia. Pelos jardins da escola, movendo-se rapidamente em direção a eles, havia uma falange de vampiros e novatos, com Thanatos à frente, Zoey e Stevie Rae cada uma ao seu lado e, por mais bizarro que fosse, Kalona marchando logo atrás de Thanatos, com as asas abertas defensivamente, como se ele de repente tivesse se tornado o Anjo Guardião da Morte.

Foi nessa hora que o céu da noite se abriu e começou a chover.


3 Zoey

Eu já sabia antes mesmo de ver os caminhões dos bombeiros e a fumaça. Eu já sabia que o inferno ia se instalar na Morada da Noite no momento em que Thanatos testemunhou a verdade sobre os crimes de Neferet. Nesta noite, havia sido provado sem sombra de dúvidas que Neferet estava do lado das Trevas. Thanatos não havia perdido tempo para enxotá-la. No caminho de volta da fazenda de lavandas de vovó até a escola, a Grande Sacerdotisa da Morte havia feito uma chamada de emergência para a Itália e informado oficialmente o Conselho Supremo dos Vampiros de que Neferet não era mais uma Sacerdotisa de Nyx – que ela tinha escolhido as Trevas como seu Consorte. Neferet tinha sido vista como realmente era, algo que eu queria muito desde que eu havia percebido a sua verdade nojenta. Só que, agora que eu tinha realizado meu desejo, tive uma sensação terrível de que expulsar Neferet serviria mais para libertá-la do que para forçá-la a pagar pelas consequências das suas mentiras e traições.

Tudo parecia tão confuso e horroroso, como se a noite toda tivesse sido a metade final de um filme de terror medonho e sanguinolento: o ritual, assistir às imagens do assassinato da minha mãe, tudo o que tinha acontecido com Dragon, Rephaim, Kalona e Aurox... Aurox? Heath? Não, eu não posso pensar nisso! Não agora! Agora os estábulos estavam em chamas. Sério. Os cavalos da escola estavam relinchando e se aglomerando nervosamente perto do muro leste. Lenobia parecia chamuscada e coberta de fuligem. Erik, Shaylin e um monte de outros novatos estavam parados lá, chocados e ensopados porque, é claro, havia começado a cair uma chuva torrencial. E Nicole, a garota que era uma novata vermelha super do mal e a namorada vadia e detestável do Dallas, estava caída em um banco com dois paramédicos humanos em volta dela como se fosse o menino Jesus com asas douradas.

Eu queria apertar um botão, desligar aquele filme assustador e pegar no sono, deitada de conchinha com Stark, em segurança. Que inferno, eu queria fechar os olhos e voltar no tempo, quando o pior estresse que eu tinha era ter três namorados, e isso tinha sido muito, muito ruim.

Eu me chacoalhei mentalmente, fiz o melhor que podia para afastar o caos que me rodeava por dentro e por fora e me concentrei em Lenobia.

– Sim, o estábulo pegou fogo – ela estava explicando para a gente. – Nós não sabemos quem ou o que provocou isso. Algum de vocês viu Neferet?

– Nós não a vimos em pessoa, mas vimos a imagem dela em espírito que ficou gravada nas terras da avó de Zoey. – Thanatos levantou o queixo e, com uma voz forte e segura que se sobrepôs à chuva, declarou: – Neferet se aliou ao touro branco. Ela sacrificou a mãe de Zoey para ele. Ela vai ser uma inimiga poderosa, mas é inimiga de todos que seguem a Luz e a Deusa.

Percebi que esse anúncio chocou Lenobia, apesar de eu saber que a Mestra dos Cavalos já estava ciente de que Neferet era nossa inimiga havia meses. Mesmo assim, existia uma grande diferença entre imaginar algo e saber que o pior que você havia imaginado era verdade. Especialmente quando isso era tão horrível que quase fugia à compreensão. Então Lenobia limpou a garganta e perguntou:

– O Conselho Supremo a baniu?

– Eu relatei o que testemunhei esta noite – Thanatos disse, portando-se como a Grande Sacerdotisa da nossa Morada da Noite. – Foi determinado que Neferet se apresente perante o Conselho Supremo, que vai fazer justiça pela traição dela à nossa Deusa e aos nossos caminhos.

– Ela deve ter imaginado o que vocês iriam descobrir se o ritual desse certo – Lenobia afirmou.

– Sim, e é por isso que ela mandou aquela coisa dela atrás de nós... Para matar Rephaim e estragar o nosso círculo, acabando com o ritual de revelação – Stevie Rae falou, entrelaçando sua mão à de Rephaim, que estava parado, alto e forte, ao seu lado.

– Parece que não deu certo – Erik observou.

Ele estava perto de Shaylin. Agora que eu pensei nisso, parece que Erik estava passando muito tempo perto de Shaylin. Hummm...

– Bem, o plano dela teria funcionado – Stevie Rae explicou –, mas Dragon apareceu lá e segurou Aurox por um tempo – ela fez uma pausa e olhou para trás em direção a Kalona. Na verdade, ela deu seu típico sorriso doce e afetuoso para ele, antes de continuar. – Foi Kalona quem realmente salvou Rephaim. Kalona salvou o seu filho.

– Dragon! Então é com vocês que ele está – Erik exclamou, movendo-se para olhar atrás de nós, obviamente esperando ver Dragon.

Senti um aperto no estômago e pisquei com força para não cair em prantos. Como ninguém disse nada, respirei fundo e dei aquela notícia realmente triste e péssima.

– Dragon estava com a gente. Ele lutou para nos proteger. Bem, para proteger a nós e Rephaim. Mas... – perdi a fala, achando difícil dizer as próximas palavras.

– Mas Aurox furou Dragon com seus chifres até a morte, quebrando o feitiço que havia nos aprisionado e libertando-nos para que nós conseguíssemos chegar até Rephaim para protegê-lo – Stark não teve problemas em terminar para mim.

– Mas já era tarde demais – Stevie Rae acrescentou. – Rephaim também teria morrido se Kalona não tivesse aparecido a tempo de salvá-lo.

– Dragon Lankford está morto? – o rosto de Lenobia havia ficado imóvel e pálido.

– Está. Ele morreu como um guerreiro, fiel a si mesmo e ao seu Juramento. Ele se reencontrou com sua companheira no Mundo do Além – Thanatos concluiu. – Todos nós testemunhamos isso.

Lenobia fechou os olhos e abaixou a cabeça. Percebi que os lábios dela estavam se movendo, como que murmurando uma prece em voz baixa. Quando ela levantou a cabeça, seu rosto estava marcado por vincos de raiva e os seus olhos cinza pareciam nuvens de tempestade.

– Incendiar o meu estábulo foi uma distração que permitiu que Neferet escapasse.

– Parece provável – Thanatos concordou. Então a Grande Sacerdotisa fez uma pausa, como se estivesse escutando atentamente algo além do barulho da chuva, dos bombeiros e dos cavalos. Ela franziu os olhos e disse: – A Morte esteve aqui... Recentemente.

Lenobia balançou a cabeça.

– Não, os bombeiros já estão liberando o estábulo. Eu acredito que ninguém morreu lá.

– Não estou sentindo o espírito de um novato ou de um vampiro – Thanatos respondeu.

– Todos os cavalos saíram! – a voz de Nicole se levantou subitamente. Fiquei surpresa com o seu tom. Quero dizer, até aquele momento eu só tinha ouvido Nicole rindo sarcasticamente ou dizendo coisas maldosas. Agora Nicole soou como uma garota normal, preocupada com coisas como cavalos pegando fogo e o mal solto no mundo.

Mas Stevie Rae, assim como eu, conhecia uma Nicole muito diferente.

– Que diabo você está fazendo aqui, Nicole? – Stevie Rae perguntou.

– Ela estava ajudando Lenobia e Travis a tirar os cavalos do estábulo – Shaylin explicou.

– Sei, tenho certeza de que ela estava ajudando... logo depois de colocar fogo lá! – Stevie Rae afirmou.

– Sua vaca, você não pode falar assim comigo! – Nicole respondeu de um jeito sarcástico, sua voz ficando bem mais familiar.

– Se liga, Nicole – eu falei, colocando-me ao lado de Stevie Rae.

– Basta! – Thanatos levantou as mãos e o seu poder emanou, crepitando mais alto que a chuva e fazendo todos darem um salto. – Nicole, você é uma novata vermelha. Já passou da hora de você submeter a sua lealdade à única Grande Sacerdotisa da sua espécie. Você não vai xingá-la. Está entendido?

Nicole cruzou os braços e concordou com a cabeça uma vez. Ela não pareceu arrependida de jeito nenhum para mim, e a atitude dela, coroando todo o resto que tinha acontecido naquela noite, realmente me irritou. Eu a encarei e disse exatamente o que estava na minha cabeça:

– Você tem que entender que ninguém vai aturar mais a sua maldade. De agora em diante, as coisas vão ser diferentes.

– E você vai ter que passar por cima de mim para machucar Zoey – Stark disse.

– Você me usou para tentar matar Stevie Rae uma vez. Isso nunca mais vai acontecer – Rephaim subiu o tom.

– Zoey, Stevie Rae – Thanatos interveio enfaticamente. – Para serem respeitadas como Grandes Sacerdotisas, vocês precisam agir de modo adequado, assim como os seus guerreiros.

– Ela tentou nos matar. A nós duas! – Stevie Rae argumentou.

– Não recentemente! – Nicole gritou para Stevie Rae.

– Como nós podemos combater as grandes Trevas ancestrais que agora foram soltas no mundo se não passamos de crianças birrentas? – Thanatos falou em voz baixa. Ela não soou poderosa, nem sábia, nem forte. Ela soou cansada e sem esperança, e isso foi muito mais assustador do que o barulho crepitante que ela tinha feito antes.

– Thanatos está certa – eu concordei.

– Do que você está falando, Z.? Você sabe como Nicole é de verdade – Stevie Rae apontou para ela. – Assim como você sabia como Neferet era de verdade, mesmo quando ninguém acreditava em você.

– Estou falando que Thanatos está certa sobre a birra. Nós não podemos nem começar a combater Neferet se o nosso time não for forte e unido – olhei para Nicole. – O que significa: entre no nosso time ou vai pro inferno.

– Se ela está amaldiçoando, está falando sério – Aphrodite reforçou.

– Eu estou de acordo com ela – Damien afirmou.

– Assim como eu – Darius acrescentou.

– Eu também – Shaunee falou. Logo depois dela, Erin disse: – É.

– Eu já escolhi o meu lado – Kalona declarou solenemente. – Acho que é hora de os outros também escolherem.

– Eu sou nova por aqui, mas sei qual lado é o certo, e eu escolho o lado deles – Shaylin se aproximou mais de nós.

Erik a seguiu. Ele não disse nada, mas encontrou meu olhar e assentiu com a cabeça. Sorri para ele e me virei para encarar Thanatos, apoiada pela solidariedade do meu grupo.

– Nós não somos crianças birrentas. Nós só estamos cansados de receber ordens de pessoas que dizem que sabem o que é melhor, mas que parecem que continuam fazendo besteiras, até mais do que a gente.

– Ou seja, muitas – Aphrodite comentou ironicamente.

– Você não está ajudando – respondi automaticamente. Para Nicole, eu disse: – Então escolha o seu time.

– Ok. Eu escolho o Time Nicole – ela falou.

– Que na verdade significa Time Egoísta – Stevie Rae rebateu.

– Ou Time Detestável – Erin sugeriu.

– Ou Time Nada Atraente – Aphrodite acrescentou.

– Thanatos está indo embora – Lenobia disse rapidamente, indicando as costas da Grande Sacerdotisa.

– Como eu já previa – a voz de Kalona pareceu secar a chuva com a sua raiva. – Ela volta para o seu civilizado Conselho Supremo e nos deixa aqui para combater o mal.

Thanatos parou, virou-se e fuzilou o imortal alado com o seu olhar sombrio.

– Guerreiro juramentado, fique quieto! As minhas palavras não são menos desconfortáveis do que as suas. Estou indo é atrás da Morte. Infelizmente, isso não me leva para longe desta escola, nem vai me levar num futuro próximo. – Sem dizer mais nada, Thanatos continuou se afastando de nós, indo em direção à entrada fumegante do ginásio.

– Afe, ela é tão dramática – Aphrodite revirou os olhos. – Ela já disse que não é nenhum novato, vampiro ou cavalo. Então, e daí? Se a porra de um mosquito morre, nós temos que nos descabelar?

– Qual é o seu problema? – Nicole balançou a cabeça para Aphrodite. – Deusa! Você é mesmo uma bruxa histérica. Por que você não pensa antes de falar tanta besteira? Thanatos não está falando de insetos e merdas assim. Ela só pode estar falando de algum gato. É o único outro espírito de animal aqui com o qual ela se importa.

Aquilo calou Aphrodite, criando o que pareceu um vácuo gigante de silêncio, enquanto todos nós percebíamos que Nicole devia estar certa.

Eu perdi o fôlego.

– Ah, Deusa, não! Nala!

Franzindo os olhos para Nicole, Aphrodite disse:

– Relaxe, os nossos gatos estão na estação. Até aquele cachorro fedido. Não é nenhum dos nossos.

– A Duquesa não é fedida – Damien respondeu. – Mas, ah, eu estou tão feliz que ela e Cammy estão a salvo.

– Eu morreria se algo acontecesse a Belzebu – Shaunee afirmou.

– Eu também! – Erin complementou, soando mais protetora do que preocupada.

– Eu amo Nal – Stevie Rae encontrou meus olhos e nós duas piscamos para segurar as lágrimas.

– Os nossos familiares estão em segurança – a voz profunda de Darius pareceu me ancorar, pelo menos até Erik falar.

– Só porque o gato que morreu não era de nenhum de vocês, isso não torna a morte dele nem um pouco menos horrível – Erik pareceu bem mais maduro do que o normal. – Quem será que está no Time Egoísta agora?

Eu suspirei e já ia concordar com Erik, quando Nicole fez um som exasperado e saiu andando, seguindo o caminho que Thanatos tinha acabado de fazer.

– Aonde você pensa que vai? – Stevie Rae gritou para ela.

Nicole não parou. Ela também não se virou, mas sua voz chegou até nós.

– O Time Egoísta está indo ajudar Thanatos com o gato morto, seja o gato de quem for, porque o Time Egoísta gosta de animais. Eles são mais legais do que as pessoas. Ponto final.

– Eu não sei do que ela está falando – Aphrodite disse.

Revirei os olhos para ela.

– Isso tudo é teatrinho dela. Não dá pra confiar naquela garota – Stevie Rae olhou com raiva na direção de Nicole.

– Bom, eu posso dizer que Nicole quase morreu inalando fumaça ao me ajudar a libertar os cavalos – Lenobia afirmou.

– A cor dela está mudando – Shaylin sussurrou.

– Shhh – Erik falou para ela, tocando seu ombro.

– Ela tentou me matar! – Stevie Rae soou como se ela fosse explodir.

– Ah, que merda, quem não tentou te matar? Ou a Zoey. Ou a mim. Supere isso. – Aphrodite foi rápida e, antes que Stevie Rae pudesse rebater, ela levantou a mão, com a palma voltada para fora, e continuou: – Guarde isso para você. A menos que você, Stark e os outros novatos vermelhos que ficam torrados na luz do sol estejam planejando passar o dia aqui descobertos, é melhor a gente começar a embarcar no ônibus e voltar para a estação. Ah, e o menino-pássaro também vai virar cem por cento pássaro e zero por cento menino logo mais, o que eu tenho certeza de que é algo bem estranho em público.

– Eu detesto quando ela está certa – Stevie Rae disse para mim.

– Nem me fala – respondi. – Ok, por que vocês não reúnem todo mundo que deve voltar para a estação? Eu vou descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois encontro vocês no ônibus. Logo.

– Você quer dizer que você e eu vamos descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois os encontramos no ônibus. Logo – Stark me corrigiu.

Eu apertei a mão dele.

– Foi exatamente o que eu quis dizer.

– Eu também vou – Kalona afirmou. – Vou seguir Thanatos com vocês, mas não vou voltar para a estação – ele sorriu levemente quando desviou o olhar de mim e se voltou para o seu filho. – Mas logo vou ver vocês novamente.

Stevie Rae soltou a mão de Rephaim para se atirar nos braços de Kalona, apertando-o num abraço gigante, o que pareceu surpreendê-lo tanto quanto a nós, apesar de Rephaim assistir à cena com um sorriso enorme.

– Sim, com certeza a gente vai se ver logo. Obrigada de novo por aparecer para salvar o seu filho.

Kalona deu um tapinha nas costas dela desajeitadamente.

– De nada.

Então ela segurou a mão de Rephaim de novo e começou a caminhar na direção do estacionamento, dizendo:

– Ok, vamos esperar por vocês, mas lembrem-se, é batata que o sol vai nascer rapidinho.

Aphrodite sacudiu a cabeça e começou a andar de braços dados com Darius.

– Afinal, o que significa “é batata”? Será que ela pelo menos concluiu o ensino fundamental?

– Apenas a ajude a levar os garotos para o ônibus – respondi.

Felizmente, junto com a chuva havia começado a soprar um vento, e ambos encobriram a resposta de Aphrodite, enquanto ela, Darius e o resto do meu círculo, além de Shaylin e Erik, se afastavam – teoricamente para fazer o que eu havia pedido. O que me deixou sozinha com Stark, Lenobia e Kalona.

– Pronta? – Stark me perguntou.

– Sim, é claro – eu menti.

– Então lá vamos nós para o ginásio – Lenobia disse.

Enquanto seguia Thanatos e Nicole, eu tentei me preparar para algo terrível, mas a minha cota de coisas terríveis já estava completa por aquela noite, e tudo o que eu conseguia fazer era enxugar a chuva do meu rosto e colocar um pé na frente do outro. Na verdade, eu não estava pronta para nada além de uma boa cama.

Estava quente e seco dentro do ginásio e havia um cheiro de fumaça. A areia sob os nossos pés estava úmida e suja. Dragon detestaria ver este lugar bagunçado assim, era o que eu estava pensando quando Kalona apontou para o centro da arena mal iluminada, onde eu só conseguia discernir os vultos de Thanatos e Nicole.

– Lá... Logo ali – ele falou.

– A gente devia ter acendido as tochas – Lenobia murmurou enquanto nós caminhávamos pela areia encharcada. – Os humanos apagaram quase todos os lampiões junto com o fogo do estábulo.

Eu não quis dizer nada, mas a verdade é que fiquei feliz que estava difícil de enxergar, pois eu sabia que, seja lá o que fosse aquilo em volta do qual Thanatos e Nicole estavam, não ia ser nada bonito de ver. Mas guardei esse pensamento para mim mesma e segurei na mão de Stark, tirando força do seu aperto firme.

– Olhem por onde andam – Thanatos disse quando nos aproximamos de onde ela e Nicole estavam, sem levantar os olhos, ajoelhada no chão do ginásio. – Há evidências de feitiço aqui. Quero tudo preservado e examinado para que eu possa descobrir quem é responsável por esta atrocidade.

Dei uma espiada por sobre o ombro dela, sem entender muito bem o que eu estava vendo. Um círculo tinha sido traçado na areia, que parecia estranha e escura do lado de dentro do círculo. Havia duas bolas de pelo no centro. Ao lado, palavras escritas na areia. Franzi os olhos, tentando decifrá-las.

– Que diabo é isso? – perguntei.

Os vampiros vermelhos enxergam muito melhor no escuro, então, quando Stark colocou seu braço em volta de mim, eu sabia que era algo ruim. Muito ruim. Antes que eu repetisse a minha pergunta, Nicole enfiou a mão no seu bolso e pegou seu telefone.

– Vou tirar uma foto com flash. Vai incomodar os seus olhos, mas pelo menos a foto vai sair.

Ela estava certa. No instante seguinte, eu estava piscando, lacrimejando e vendo pontinhos. Kalona, cuja visão imortal era menos suscetível aos efeitos da luz do que qualquer vampiro, disse solenemente:

– Isso é obra eu sei de quem. Vocês não conseguem sentir a presença dela ainda pairando por aqui?

A minha visão se clareou e eu me aproximei mais, apesar de Stark tentar me puxar para trás. Tarde demais, entendi para o que eu estava olhando.

– Shadowfax! Ele está morto!

– Sacrificado em um ritual macabro – Thanatos afirmou.

– E Guinevere também – Nicole acrescentou.

Achei que eu fosse vomitar.

– O gato de Dragon e a gata de Anastasia? Os dois foram mortos? – perguntei.

Thanatos estendeu o braço e gentilmente passou a mão na lateral do corpo de Shadowfax e depois na gata bem menor que estava encolhida ao lado dele.

– Esta gata pequena não foi sacrificada. Ela não tomou parte no ritual. A tristeza parou o seu coração e a sua respiração. – A Grande Sacerdotisa se levantou e voltou-se para Kalona. – Você disse que sabe de quem isso é obra.

– Eu sei, assim como você sabe. Neferet sacrificou a gata do guerreiro. Isso foi feito como pagamento. As Trevas a obedecem, mas o preço por essa obediência é sangue, morte e dor. Esse preço precisa ser pago sempre, sem parar. As Trevas nunca se dão por satisfeitas – ele apontou para as palavras escritas no chão. – Aquilo prova o que eu digo.

Naquela luz fraca, eu conseguia ver os corpos dos gatos, mas para mim era difícil entender as palavras ao lado deles. Não precisei perguntar o que significavam. Segurando-me bem perto dele, Stark leu em voz alta:

– Através do pagamento de sangue, dor e batalha, eu forço o Receptáculo a ser minha arma!

– Receptáculo é como Neferet se refere a Aurox – Kalona explicou.

– Ah, grande Deusa, isso prova mais do que o fato de isto aqui ser obra de Neferet – o olhar sombrio de Thanatos encontrou o meu. – A morte de sua mãe não foi simplesmente um sacrifício aleatório para as Trevas. Foi o pagamento exigido para a criação do Receptáculo, Aurox, a criatura de Neferet.

Senti minhas pernas fraquejarem e me aproximei ainda mais de Stark. Senti como se o braço dele fosse a única coisa que estivesse me mantendo em pé.

– Eu sabia que aquele maldito menino-touro não era boa coisa – Stark disse. – Nem ferrando que ele é algum tipo de presente de Nyx.

– O Receptáculo é o oposto disso. Ele é uma criatura feita de dor e de morte pelas Trevas e controlada por Neferet – Thanatos afirmou.

Eu não podia contar a eles o que eu tinha visto através da pedra da vidência. Como eu poderia, com os braços de Stark em volta de mim, Dragon recém-morto e a atrocidade cometida contra os gatos? Mas eu estava em carne viva – muito cansada, ferida e confusa para vigiar minhas palavras e não falar o nome de Heath sem querer. Então, em vez disso, como uma retardada, eu soltei:

– Tem que haver algo mais em Aurox além disso! Lembra quando ele foi fazer uma pergunta para você depois da aula? Ele queria saber quem ele era; o que ele era. Você disse que ele podia decidir isso por ele mesmo e que ele não devia deixar que o seu passado controlasse o seu futuro. Por que uma criatura feita totalmente de Trevas, alguém que não é nada além do Receptáculo de Neferet, iria se preocupar em perguntar qualquer coisa sobre si mesmo?

– Você tem razão. Eu lembro que Aurox veio falar comigo – Thanatos assentiu. Seu olhar se voltou para os corpos dos gatos. – Talvez Aurox não seja um receptáculo completamente vazio. Talvez a interação dele conosco e com você em particular, Zoey, tenha tocado algum pedaço de consciência dentro dele.

Senti uma onda de emoção que fez Stark me olhar de modo alarmado e questionador.

– Ele estava dizendo a verdade! – eu expliquei. – Hoje à noite, logo antes de fugir, Aurox disse: “Eu escolhi um futuro diferente. Eu escolhi um futuro novo”. Ele quis dizer que não queria machucar Rephaim nem Dragon, mas que não conseguia evitar, já que Neferet o controlava.

– Isso faz sentido – Thanatos concordou, falando devagar, como se estivesse abrindo caminho verbalmente por um labirinto. – O sacrifício do familiar de Dragon Lankford foi preciso porque Neferet estava perdendo o controle sobre o seu Receptáculo. Todos nós vimos Aurox se transformar de touro em garoto e depois começar a se transformar de novo em touro quando ele fugiu.

– Você também deve ter visto como ele ficou atordoado quando virou Aurox de novo e viu o que ele tinha feito com Dragon – eu disse.

– Isso não muda o fato de que Aurox matou Dragon – Stark afirmou. Eu senti a tensão que emanava dele e odiei perceber que o seu rosto tinha uma expressão severa.

– Mas e se ele só matou Dragon porque Neferet fez esse sacrifício horrível com Shadowfax? – perguntei, tentando fazer Stark enxergar que poderia haver mais de uma resposta certa.

– Zoey, isso não faz com que Dragon esteja menos morto – Stark respondeu, tirando o braço que estava ao meu redor e se afastando um pouco de mim.

– Nem faz com que Aurox seja menos perigoso – Kalona acrescentou.

– Mas talvez faça com que ele seja uma ameaça menor do que nós imaginávamos a princípio – Thanatos falou racionalmente. – Se Neferet precisa conduzir um ritual de sacrifício desta extensão a cada vez que quer controlá-lo, ela vai ter que escolher cuidadosamente e ser bem seletiva sobre quando e como usá-lo.

– Ele disse várias vezes que tinha escolhido um futuro diferente – eu insisti.

– Z., isso não faz de Aurox um cara do bem – Stark afirmou, balançando a cabeça para mim.

– Sabe, as pessoas podem mudar – Nicole de repente deu sua opinião. Todos nós olhamos surpresos para ela. Obviamente, eu não era a única que tinha esquecido que ela estava ali.

Eu odiava concordar com Nicole, então só mordi meu lábio, em silêncio e inquieta.

– Aurox não é uma pessoa, não é um cara nem do bem nem do mal – a voz profunda de Kalona ressoou como uma bomba no ginásio escuro, atordoando meus nervos já combalidos. – Aurox é um Receptáculo. Uma criatura feita para ser a arma de Neferet. Teria ele uma consciência e a capacidade de mudar? – ele deu de ombros. – Nós só podemos imaginar isso. E sinceramente, isso importa? Não faz diferença se uma lança tem consciência. O que importa é quem está manejando a arma. Neferet, claramente, está manejando Aurox.

– Há quanto tempo você sabe disso? – contra-ataquei Kalona. Stark estava me encarando como se eu estivesse sendo irracional, mas eu não me contive. Mesmo que eu não soubesse como contar a eles, eu acreditava que tinha visto de relance a alma de Heath dentro de Aurox através da pedra da vidência. – Se você sabia o que Aurox era, por que nunca disse nada até agora?

– Ninguém me perguntou – Kalona respondeu.

– Isso não justifica – eu falei, descarregando toda a minha raiva, frustração e confusão com o enigma Aurox/Heath em cima de Kalona. – O que mais você escondeu de nós?

– O que mais você quer saber? – ele respondeu sem hesitar. – Apenas pense bem, jovem Sacerdotisa, se você realmente quer ouvir as respostas para as perguntas que fizer.

– Você deveria estar do nosso lado, lembra? – Stark disse, colocando-se entre mim e Kalona.

– Eu me lembro de mais do que você imagina, vampiro vermelho – Kalona falou.

– O que você quer dizer com isso? – Stark rebateu.

– Isso significa que você não foi sempre todo bonzinho! – Nicole gritou.

– Não se atreva a falar dele! – atirei minhas palavras contra ela.

– De novo, vocês brigam uns com os outros! – Thanatos gritou, e a ira na sua voz agitou o ar à nossa volta. – A nossa inimiga cometeu atrocidades na nossa própria casa. Ela não matou apenas uma ou duas vezes, mas várias. Ela se aliou ao maior mal que este mundo já conheceu. E, ainda assim, vocês se atacam entre si. Se nós não somos capazes de nos unir, então ela já nos derrotou.

Thanatos balançou a cabeça com tristeza. Ela deu as costas para nós e se voltou para os dois gatos. A Grande Sacerdotisa se ajoelhou ao lado dos seus corpos e, mais uma vez, passou a mão suavemente sobre cada um deles. Desta vez, o ar acima dos gatos começou a emitir uma luz trêmula, e os contornos brilhantes de Shadowfax e Guinevere se materializaram – só que eles não eram os gatos adultos que jaziam imóveis e frios no chão da arena. Eles eram filhotes. Gatinhos gorduchos e adoráveis.

– Vão ao encontro da Deusa, pequeninos – Thanatos falou com eles afetuosamente. – Nyx e aqueles a quem vocês mais amam esperam por vocês. – O pequeno Shadowfax estendeu uma patinha felpuda para brincar com a manga de Thanatos que estava balançando no ar, até que os dois gatos desapareceram em um sopro de luz.

Eu podia jurar ter ouvido o som distante da risada musical de Anastasia, e imaginei que ela e Dragon deviam estar em êxtase recepcionando os seus gatinhos no Mundo do Além.

O Mundo do Além...

Minha mãe estava lá, junto com Dragon, Anastasia, Jack e, se eu estivesse errada sobre o que vi dentro de Aurox, Heath estava lá também... Eu havia estado lá. Eu sabia que o Mundo do Além existia com tanta certeza quanto sabia que eu existia. Eu também sabia que era um lugar mágico e incrível e, mesmo que aquela não fosse a minha hora de morrer e ficar lá, a beleza daquele lugar ainda permanecia na minha mente e na minha alma, formando uma espécie de bolha de maravilhas e segurança, que era completamente o oposto do que o mundo real em volta de mim tinha se tornado.

– Seria tão mal assim se nós perdêssemos?

Não percebi que eu havia falado em voz alta até Stark sacudir meu ombro.

– Do que você está falando, Z.? Nós não podemos perder porque Neferet não pode ganhar. As Trevas não podem vencer.

Eu podia ver a sua preocupação e sentir o seu medo. Eu sabia que eu o estava assustando, mas não consegui me conter. Eu estava tão incrivelmente cansada de tudo ser uma batalha entre as Trevas e a Luz, entre a morte e o amor. Por que tudo não podia simplesmente terminar? Eu daria qualquer coisa para que tudo isso simplesmente acabasse!

– Qual é a pior coisa que pode acontecer? – eu me escutei dizendo e depois continuei sem pensar, respondendo à minha própria pergunta. – Neferet vai nos matar. Bem, estar morto não parece tão terrível – indiquei com a mão a direção onde os gatos haviam se manifestado recentemente.

– Afe, desistir totalmente? – Nicole murmurou em voz baixa, em desgosto.

– Zoey Redbird, a morte está longe de ser a pior coisa que pode acontecer a qualquer um de nós – Thanatos afirmou. – Sim, as Trevas parecem extremamente poderosas agora, principalmente depois de tudo que nós descobrimos nesta noite, mas também existe amor e Luz aqui. Pense em quanta tristeza as suas palavras iriam trazer para Sylvia Redbird.

Senti uma onda de culpa. Thanatos estava certa. Havia coisas piores do que morrer, e essas coisas piores acontecem com as pessoas que se deixa para trás. Abaixei a cabeça e me aproximei de Stark, pegando sua mão.

– Sinto muito. Vocês estão certos. Eu nunca devia ter dito isso.

Thanatos sorriu gentilmente para mim.

– Volte para a sua estação. Reze. Durma. Encontre conforto e orientação nas palavras que Nyx falou para nós: “Guardem a lembrança da cura que aconteceu aqui nesta noite. Vocês vão precisar dessa força e dessa paz para a luta que está a caminho”. – Ela hesitou, deu um forte suspiro e acrescentou: – Você é tão jovem.

Eu queria gritar: Eu sei! Sou jovem demais para salvar o mundo! Em vez disso, fiquei parada ali em silêncio, sentindo-me tola e inútil, enquanto Thanatos se abaixava e recolhia os corpos de Shadowfax e Guinevere, envolvendo-os em uma de suas volumosas saias, segurando-os com delicadeza e ternura, como se eles fossem bebês adormecidos. Então ela fez um gesto para Kalona, dizendo:

– Venha comigo. Preciso dar a triste notícia da morte do Mestre da Espada para os Filhos de Erebus. Enquanto eu faço isso, comece a construir uma pira para Dragon e estes pequenos. No momento em que eu acender a pira, irei oficialmente proclamar você como o guerreiro da Morte. – Sem se dirigir a mim outra vez, Thanatos saiu do ginásio. Kalona a seguiu sem nem olhar de relance para mim e Stark.

– Enfim, o time de vocês é um saco – Nicole se afastou de nós também, balançando a cabeça.

Eu podia sentir o olhar de Stark em mim. A mão dele, entrelaçada à minha, parecia rígida. Levantei os olhos para ele, certa de que ele ia me chacoalhar, gritar comigo ou pelo menos perguntar que diabo estava havendo comigo. De novo.

Em vez disso, ele abriu os braços e disse:

– Venha cá, Z. – e ele simplesmente me deu amor.


4 Aurox

Aurox correu, sem saber ou se importar para onde o seu corpo o estava levando. Ele só sabia que tinha que fugir do círculo, e de Zoey, antes que ele cometesse outra atrocidade. Os seus pés, completamente transformados em cascos fendidos e demoníacos, rasgavam o solo fértil, transportando-o em uma velocidade sobre-humana através dos campos de lavanda adormecidos pelo inverno. Como o vento que batia no seu corpo, as emoções oscilavam dentro de Aurox.

Confusão – ele não queria machucar ninguém, mas mesmo assim tinha matado Dragon e talvez até Rephaim.

Raiva – ele tinha sido manipulado, controlado contra a sua vontade!

Desespero – jamais acreditariam que ele não tinha a intenção de machucar ninguém. Ele era uma besta, uma criatura das Trevas. O Receptáculo de Neferet. Todos iriam odiá-lo. Zoey iria odiá-lo.

Solidão – mesmo assim, ele não era o Receptáculo de Neferet. Não importava o que havia acontecido naquela noite. Não importava como ela tinha conseguido controlá-lo. Ele não pertencia, não iria pertencer a Neferet. Não depois de ver o que ele tinha visto esta noite... e de sentir o que ele havia sentido.

Aurox havia sentido a Luz. Apesar de ele não ter sido capaz de abraçá-la, ele havia compreendido a força de sua bondade no círculo mágico e reconhecido a sua beleza na invocação dos elementos. Até aqueles filamentos repugnantes controlarem a besta dentro dele, Aurox tinha assistido, fascinado, ao ritual comovente que havia culminado com a Luz limpando o toque das Trevas na terra e nele, apesar de a purificação que sentiu ter durado apenas um momento. Que foi o bastante para que Aurox percebesse o que havia feito. E então a raiva justa e o ódio compreensível que os guerreiros sentiram tomaram conta dele, e Aurox só teve humanidade suficiente para fugir e não matar Zoey.

Aurox encolheu os ombros e gemeu quando a transformação de besta em garoto novamente ondulou pelo seu corpo, deixando-o descalço e com o peito nu, vestido apenas com um jeans rasgado. Uma fraqueza terrível dominou o seu corpo. Trêmulo e respirando com dificuldade, ele diminuiu a velocidade, passando a caminhar de modo vacilante. A sua mente era uma batalha. Ele sentia ódio por si mesmo. Aurox vagou a esmo antes do amanhecer, sem saber ou se importar com onde ele estava, até que ele não pode mais ignorar as necessidades físicas do seu corpo e seguiu o cheiro e o barulho de água. Na beira de um riacho cristalino, Aurox se ajoelhou e bebeu, até que o fogo dentro dele estivesse saciado. E então, dominado pela exaustão e pelas emoções, ele desabou. Um sono sem sonhos finalmente venceu a batalha dentro dele, e Aurox adormeceu.

Aurox despertou com o som dela cantando. Era uma voz tão serena e relaxante que no começo ele nem abriu os olhos. A voz dela era cadenciada, como a batida do coração, mas foi algo além do seu ritmo que tocou Aurox. Foi a emoção que inundava a sua canção. Não que ele a sentisse do mesmo modo que acontecia quando canalizava emoções violentas para alimentar a metamorfose que transformava o seu corpo de garoto em uma besta. A emoção na canção vinha da própria voz dela – alegre, cheia de vida, agradável. Ele não sentiu essas coisas junto com ela, mas elas trouxeram para ele imagens de alegria e permitiram que uma possível felicidade tocasse em sua mente desperta. Aurox não conseguia entender nenhuma das palavras, mas ele não precisava. A voz dela se elevava, e isso transcendia qualquer linguagem.

Mais completamente desperto, ele quis ver a dona da voz. Quis questioná-la sobre alegria. Para tentar entender como ele poderia criar aquele sentimento por si próprio. Aurox abriu os olhos e se sentou. Ele havia desabado não muito longe da casa da fazenda, perto da margem do pequeno córrego. Era uma faixa sinuosa de água límpida que corria calmamente, musicalmente, sobre areia e pedras. O olhar de Aurox seguiu o curso do riacho, à sua esquerda, até onde a mulher estava, usando um vestido sem mangas, com longas franjas de couro decoradas com contas e conchas. Ela dançava graciosamente, acompanhando o ritmo da sua canção com os pés descalços. Apesar de o sol estar apenas se levantando no horizonte e de a manhã estar fria, ela estava corada, animada, cheia de energia. A fumaça do feixe de plantas secas na mão dela flutuava ao seu redor, aparentemente no mesmo ritmo da canção.

Apenas observá-la fez com que Aurox se sentisse melhor. Ele não precisou canalizar a alegria dela – a alegria era palpável ao seu redor. O espírito dele se elevou porque a mulher estava tão tomada pela emoção que ela transbordava. Ela jogou a cabeça para trás, e o seu longo cabelo prateado com fios negros tocou facilmente a sua cintura fina. Ela ergueu os braços nus, como que abraçando o sol nascente, e então começou a se mover em círculo, marcando o compasso com os pés.

Aurox estava tão envolvido pela canção que não reparou que ela estava se virando na sua direção, e que iria vê-lo, até que os olhos deles se encontraram. Então ele a reconheceu. Era a avó de Zoey, que havia ficado no centro do círculo na noite anterior. Ele esperou que ela ofegasse ou gritasse ao vê-lo de repente ali, no extenso gramado na beira do seu riacho. Em vez disso, a sua dança alegre terminou. A sua canção cessou. E ela falou com uma voz clara e calma:

– Eu o reconheço, tsu-ka-nv-s-di-na. Você é o transmorfo que matou Dragon Lankford na noite passada. Você também tentou matar Rephaim, mas não conseguiu. E você ainda arremeteu contra minha amada neta, como se pretendesse machucá-la. Você está aqui para me matar também? – Ela ergueu os braços de novo, inspirou profundamente o ar frio e puro da manhã e concluiu: – Se for assim, então eu vou dizer ao céu que meu nome é Sylvia Redbird e que hoje é um bom dia para morrer. Eu irei até a Grande Mãe para encontrar meus ancestrais com o espírito cheio de alegria.

Então ela sorriu para ele.

Foi o sorriso dela que o quebrou. Ele se sentiu despedaçar e, com uma voz trêmula que ele mal reconheceu como sua, Aurox respondeu:

– Eu não estou aqui para matá-la. Estou aqui porque não tenho nenhum outro lugar para ir.

E então Aurox começou a chorar.

Sylvia Redbird hesitou por apenas um instante. Através das suas lágrimas, Aurox a observou erguendo a cabeça de novo e assentindo, como se ela tivesse recebido a resposta para alguma pergunta. Então ela caminhou graciosamente até ele, com as longas franjas de couro do seu vestido farfalhando musicalmente com os seus movimentos e o toque da brisa fria da manhã.

Ela não hesitou quando chegou perto dele. Sylvia Redbird se sentou, cruzando seus pés descalços, e então colocou os braços em volta de Aurox, aconchegando a cabeça dele no seu ombro.

Aurox nunca soube quanto tempo eles ficaram sentados assim, juntos. Só sabia que, quando ele chorou de modo soluçante, ela o acalentou e o balançou suavemente, para a frente e para trás, cantando uma cantiga bem baixinho, dando tapinhas nas suas costas no mesmo ritmo do coração dela.

Finalmente, ele se afastou, desviando o rosto de vergonha.

– Não, meu filho – ela disse, segurando os ombros dele e forçando-o a encontrar o seu olhar. – Antes de se afastar, conte-me por que você estava chorando.

Aurox enxugou o rosto, limpou a garganta e, com uma voz que soou para ele muito jovem e tola, respondeu:

– É porque eu sinto muito.

Sylvia Redbird sustentou o seu olhar.

– E? – ela o estimulou a continuar.

Ele soltou um longo suspiro e admitiu:

– E porque eu estou muito sozinho.

Sylvia arregalou seus olhos negros.

– Você é mais do que parece ser.

– Sim. Eu sou um monstro das Trevas, uma besta – ele concordou com ela.

Os lábios dela se curvaram em um sorriso.

– Uma besta costuma chorar de tristeza? As Trevas têm a capacidade de sentir solidão? Acho que não.

– Então por que eu me sinto tão tolo por chorar?

– Pense nisto: o seu espírito chorou. Ele precisou desse pranto porque sentiu tristeza e solidão. É você quem deve decidir se isso é tolo ou não. De minha parte, já decidi que não é vergonha nenhuma ser encontrado chorando lágrimas honestas. – Sylvia Redbird se levantou e estendeu uma mão pequena e ilusoriamente frágil para ele. – Venha comigo, meu filho. Minha casa está aberta para você.

– Por que você faria isso? Na noite passada, você me viu matar um guerreiro e ferir outro. Eu também podia ter matado Zoey.

Ela inclinou a cabeça para o lado e o examinou com atenção.

– Podia mesmo? Acho que não. Ou, pelo menos, acho que o garoto que eu estou vendo neste momento não seria capaz de matá-la.

Aurox sentiu que os seus ombros desabaram.

– Mas só você acredita nisso. Ninguém mais vai acreditar.

– Bem, tsu-ka-nv-s-di-na, eu sou a única pessoa aqui com você neste momento. O fato de eu acreditar não basta?

Aurox enxugou o rosto de novo e se levantou, um pouco inseguro. Então ele pegou com muito cuidado a delicada mão dela.

– Sylvia Redbird, o fato de você acreditar é o bastante neste momento.

Ela apertou a mão dele, sorriu e disse:

– Pode me chamar de Vovó.

– Do que você me chamou, Vovó?

Ela sorriu.

– Tsu-ka-nv-s-di-na é a palavra que meu povo usa para dizer touro.

Ele sentiu uma onda de calor e depois de frio.

– A besta na qual eu me transformo é mais terrível do que um touro.

– Então talvez chamar você de tsu-ka-nv-s-di-na tire um pouco do horror daquilo que dorme dentro de você. Há poder em nomear as coisas, meu filho.

– Tsu-ka-nv-s-di-na. Vou me lembrar disso – Aurox afirmou.

Ainda se sentindo trêmulo, ele caminhou com a velha mulher mágica até a pequena casa de fazenda que ficava no meio de campos de lavanda adormecidos. Ela era feita de pedra e tinha uma ampla e convidativa varanda na entrada. Vovó o guiou até um sofá macio de couro e entregou a ele um cobertor feito à mão para colocar nos seus ombros. Então ela disse:

– Quero pedir que você descanse o seu espírito.

Aurox fez o que ela pediu, enquanto Vovó cantarolava uma canção para si mesma, acendia a lareira e fervia água para o chá. Depois ela encontrou e deu para ele um suéter e sapatos macios de couro que estavam em outro quarto. Quando a sala ficou aquecida e a canção dela cessou, Vovó fez um gesto para que ele se juntasse a ela em uma pequena mesa de madeira, oferecendo a ele a comida que estava em um prato de cor púrpura.

Aurox provou o chá adoçado com mel e comeu o que estava no prato.

– O-obrigado, Vovó – ele disse com voz trêmula. – A comida está boa. A bebida está boa. Tudo aqui é tão bom.

– O chá é de camomila e hissopo. Eu uso esse chá para me ajudar a ficar calma e focada. Os cookies são de uma receita minha: chocolate com um toque de lavanda. Sempre acreditei que chocolate e lavanda são bons para a alma – Vovó sorriu e mordeu um cookie. Eles comeram em silêncio.

Aurox nunca tinha se sentido tão satisfeito. Ele sabia que não fazia sentido, mas de algum modo ele teve uma sensação de pertencimento ali com aquela mulher. Foi essa estranha mas maravilhosa sensação de pertencimento que permitiu que ele começasse a falar com o seu coração.

– Neferet ordenou que eu viesse até aqui na noite passada. Eu deveria interromper o ritual.

Vovó assentiu. A expressão dela não era surpresa, mas contemplativa.

– Ela não queria ser descoberta como a assassina da minha filha.

Aurox a observou com atenção.

– A sua filha foi assassinada. Você assistiu ao registro disso na noite passada, mas ainda assim está serena e alegre hoje. Onde você encontra tanta paz?

– Aqui dentro – ela respondeu. – Essa paz também vem da crença de que há mais coisas funcionando aqui do que podemos ver ou provar. Por exemplo, no mínimo eu deveria temê-lo. Alguns diriam que eu deveria odiá-lo.

– Muitos diriam isso.

– Ainda assim, eu não temo nem odeio você.

– Você... você está me confortando. Dando-me abrigo. Por quê, Vovó? – Aurox perguntou.

– Porque eu acredito no poder do amor. Acredito na escolha da Luz em vez das Trevas, da alegria ao invés do ódio, da confiança ao invés do ceticismo – Vovó afirmou.

– Então isso não tem nada a ver comigo. É simplesmente porque você é uma pessoa boa – ele falou.

– Eu acho que ser uma pessoa boa nunca é muito simples, você não acha? – ela disse.

– Eu não sei. Nunca tentei ser uma boa pessoa – ele passou a mão pelo seu cabelo loiro e grosso, como um sinal de frustração.

Os olhos de Vovó se enrugaram quando ela sorriu.

– Nunca mesmo? Na noite passada, uma imortal poderosa ordenou que você interrompesse um ritual e mesmo assim, milagrosamente, o ritual foi completado. Como isso aconteceu, Aurox?

– Ninguém vai acreditar na verdade sobre isso – ele desabafou.

– Eu vou – Vovó o encorajou. – Conte-me, meu filho.

– Eu vim até aqui para seguir as ordens de Neferet: matar Rephaim e distrair Stevie Rae, para que o círculo fosse quebrado e o ritual não funcionasse, mas eu não poderia fazer isso. Eu não poderia quebrar algo que estava tão cheio de Luz, tão bom – ele falou com pressa, querendo botar a verdade para fora antes que Vovó o parasse. – Então as Trevas tomaram posse de mim. Eu não queria me transformar! Eu não queria que aquela criatura feito touro emergisse! Mas eu não consegui controlá-la e, quando ela se fez presente, só lembrava da sua última ordem: matar Rephaim. Foi só a onda de elementos e o toque da Luz que detiveram a besta o suficiente para que eu recuperasse algum controle e fugisse.

– Foi por isso que você matou Dragon. Porque ele tentou proteger Rephaim – ela concluiu.

Aurox concordou, abaixando a cabeça de vergonha.

– Eu não queria matá-lo. Eu não pretendia matá-lo. As Trevas controlaram a besta, e a besta me controlou.

– Mas não agora. A besta não está aqui agora – Vovó disse suavemente.

Aurox encontrou o olhar dela.

– Ela está. A besta sempre está aqui – ele apontou para o meio do seu peito. – Ela está eternamente dentro de mim.

Vovó cobriu a mão dele com a sua.

– Pode ser, mas você também está aqui. Tsu-ka-nv-s-di-na, lembre-se de que você controlou a besta o suficiente para fugir. Talvez isso seja um começo. Aprenda a confiar em si mesmo, e então os outros podem aprender a confiar em você.

Ele balançou a cabeça.

– Não, você é diferente de todos os outros. Ninguém vai acreditar em mim. Eles só vão enxergar a besta. Ninguém vai se importar o bastante para confiar em mim.

– Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.

Aurox piscou os olhos, surpreso. Ele não tinha pensado nisso. As emoções dele estavam em um turbilhão tão grande que ele nem tinha percebido a extensão dos atos de Zoey.

– Ela realmente me protegeu – ele disse devagar.

Vovó acariciou a mão dele.

– Não deixe que a crença dela em você seja desperdiçada. Escolha a Luz, meu filho.

– Mas eu já tentei e falhei!

– Tente de novo, esforce-se mais – ela falou com firmeza.

Aurox abriu a boca para protestar, mas os olhos de Vovó calaram as suas palavras. O olhar dela disse que as suas palavras eram mais do que uma ordem: era uma crença de que ele era capaz.

Ele abaixou a cabeça novamente. Desta vez não de vergonha, mas devido a um lampejo incerto de esperança. Aurox levou um momento para saborear esse novo e maravilhoso sentimento. Então, gentilmente, ele tirou sua mão debaixo das mãos de Vovó e se levantou. Em resposta ao olhar questionador dela, ele disse:

– Tenho que aprender como fazer para provar que você está certa.

– E como você vai fazer isso, meu filho?

– Preciso encontrar a mim mesmo – ele falou sem hesitação.

Ela deu um sorriso afetuoso e iluminado. Inesperadamente, aquele sorriso o lembrou de Zoey, o que fez com que aquele lampejo incerto de esperança se expandisse até aquecer o seu interior.

– Aonde você vai? – ela quis saber.

– Aonde eu possa fazer o bem – ele respondeu.

– Aurox, meu filho, saiba que, desde que você controle a besta e não mate de novo, sempre pode encontrar abrigo aqui comigo.

– Nunca vou me esquecer disso, Vovó.

Quando ela o abraçou perto da porta, Aurox fechou os olhos e inspirou o aroma de lavanda e o toque de amor de uma mãe. Aquele aroma e aquele toque permaneceram com ele enquanto dirigia devagar de volta para Tulsa.

Aquele dia de fevereiro estava claro e, como o homem no rádio havia dito, quente o bastante para os carrapatos começarem a acordar. Aurox estacionou o carro de Neferet em uma das vagas da parte dos fundos da Utica Square, e então ele deixou que o seu instinto guiasse os seus passos enquanto caminhava do movimentado centro de compras até a rua detrás, chamada South Yorktown Avenue. Aurox sentiu o cheiro de fumaça antes de chegar ao grande muro de pedra que circundava a Morada da Noite.

Esse fogo é obra de Neferet. Tem o cheiro desagradável das Trevas que emanam dela, Aurox pensou. Ele não se permitiu imaginar o que aquele fogo podia ter destruído. Ele se concentrou em apenas seguir o seu instinto, que estava dizendo que ele deveria voltar para a Morada da Noite para encontrar a si mesmo e a sua redenção. O coração de Aurox estava batendo forte quando ele passou por ali despercebido e entrou nas sombras do muro, aproximando-se de modo rápido e silencioso da fronteira leste da escola. Então ele chegou perto de um velho carvalho que havia sido partido ao meio tão violentamente que uma parte dele estava apoiada contra o muro da escola.

Foi realmente fácil escalar o muro, agarrar os galhos desfolhados pelo inverno da árvore despedaçada e então aterrissar no chão do outro lado. Aurox se agachou na sombra da árvore. Como ele esperava, a luminosidade do sol havia esvaziado os jardins da escola, mantendo novatos e vampiros dentro dos edifícios de pedra, atrás de janelas com cortinas escuras. Ele deu a volta na base partida da árvore, analisando a Morada da Noite.

Era o estábulo que havia pegado fogo. Ele podia ver isso facilmente. Parecia que o incêndio não tinha se alastrado, apesar de ter deixado uma parede externa do estábulo no chão. Aquela abertura avariada já havia sido coberta com uma grossa lona preta. Aurox se encostou mais na árvore. Escolhendo cuidadosamente o seu caminho por entre os fragmentos espalhados da base quebrada da árvore e da confusão de galhos emaranhados, Aurox se perguntou por que ninguém tinha pensado em tirar aqueles escombros do outrora bem cuidado jardim. Mas ele não teve tempo de pensar muito nisso. Um corvo enorme de repente pousou em um galho inclinado bem na frente dele e começou uma série terrível e bem alta de grasnados e pios estranhamente perturbadores.

– Vá embora! Suma daqui! – Aurox sussurrou, fazendo barulhos para enxotar a grande ave, o que só fez com que a criatura explodisse em mais grasnados. Aurox se lançou na direção do corvo, com a intenção de sufocá-lo, mas seus pés ficaram presos em uma raiz exposta. Ele caiu para a frente, batendo no chão com força. Para o seu espanto, ele continuou caindo quando a terra se abriu embaixo dele, com o peso do seu corpo, e ele foi arremessado de ponta-cabeça para baixo, e foi caindo, caindo...

Até que Aurox sentiu uma dor terrível no lado direito da cabeça, e então o seu mundo ficou escuro.


5 Zoey

Eu havia adormecido aconchegada nos braços de Stark, então foi totalmente confuso acordar com ele me sacudindo, fuzilando-me com os olhos e quase gritando: “Zoey! Acorde! Pare com isso! Estou falando sério!”.

– Stark? Ahn? – eu me sentei, desalojando Nala, que havia se transformado em um donut laranja e gordo em cima do meu quadril. “Miiaaauuu!”, Nala resmungou e caminhou até a ponta da cama. Olhei para a minha gata e para o meu guerreiro: ambos estavam me encarando como se eu tivesse cometido um assassinato em massa. – O que foi? – falei em meio a um grande bocejo. – Eu só estava dormindo.

Stark pegou seu travesseiro e o estufou para ficar mais sentado na cama. Ele cruzou os braços, balançou a cabeça e desviou os olhos de mim.

– Acho que você estava fazendo muito mais do que apenas dormir.

Eu quis estrangulá-lo.

– Sério, o que há com você? – perguntei.

– Você disse o nome dele.

– O nome de quem? – fechei os olhos, tendo um flashback com aquele velho filme assustador chamado Vampiros de Almas 2 e me perguntando se Stark tinha se transformado em uma réplica alienígena dele mesmo.

– Do Heath! – Stark franziu a testa para mim. – Três vezes. Isso me acordou. – Ainda sem olhar para mim, ele disse: – Com o que você estava sonhando?

O que ele falou me deixou totalmente chocada, provocando uma batalha mental em mim. Com que diabo eu estava sonhando? Pensei no que tinha acontecido mais cedo. Lembrei de Stark me beijando antes de eu ir dormir. Lembrei que o beijo foi supergostoso, mas eu estava muito cansada e, em vez de fazer algo além de retribuir o beijo, tinha encostado a cabeça no ombro dele e desmaiado. Depois disso, eu não me lembrava de mais nada, até ele começar a me chacoalhar e a gritar comigo para que eu parasse.

– Não tenho a menor ideia – respondi honestamente.

– Você não precisa mentir para mim.

– Stark, eu não mentiria para você – afastei meu cabelo do rosto e toquei no braço dele. – Eu não me lembro de ter sonhado com nada.

Então ele olhou para mim. Os seus olhos estavam tristes.

– Você estava chamando Heath. Eu estou dormindo bem aqui ao seu lado, mas você estava chamando por ele.

O jeito com que ele falou me deu um aperto no coração. Eu detestava tê-lo magoado. Eu podia ter dito que era ridículo ele ficar bravo comigo por algo que eu tinha falado quando estava dormindo, algo de que eu nem me lembrava. Mas, ridícula ou não, a mágoa de Stark era real. Deslizei a minha mão para dentro da dele.

– Ei – eu disse baixinho. – Sinto muito.

Ele entrelaçou seus dedos aos meus.

– Você queria que ele estivesse aqui em vez de mim?

– Não – afirmei. Eu amava Heath desde que eu era criança, mas eu não trocaria Stark por ele. É claro que o resto da verdade era que, se fosse Stark quem tivesse sido assassinado, eu também não trocaria Heath por ele. Mas definitivamente aquilo era algo que Stark não precisava ouvir, nem agora nem nunca.

Amar dois caras era uma coisa confusa, mesmo quando um dos dois estava morto.

– Então você não estava chamando por Heath porque queria estar com ele em vez de mim?

– Eu quero você. Prometo – eu me inclinei para a frente e ele abriu os braços para mim. Eu me encaixei perfeitamente contra o peito dele e inspirei o seu cheiro familiar.

Ele beijou o topo da minha cabeça e me abraçou.

– Sei que é idiota ter ciúmes de um cara morto.

– É – falei.

– Especialmente porque na verdade eu gostava do cara morto.

– Pois é – concordei.

– Mas nós pertencemos um ao outro, Z.

Eu me inclinei para trás para poder olhar nos olhos dele.

– Sim – eu disse seriamente –, nós pertencemos. Por favor, nunca se esqueça disso. Não importa quanta loucura estiver rolando ao redor de nós... Eu posso lidar com isso, mas preciso saber que o meu guerreiro está do meu lado.

– Sempre, Z. Sempre – ele afirmou. – Eu te amo.

– Eu também te amo, Stark. Sempre – então eu o beijei e mostrei para ele que absolutamente não havia motivo algum para ele ter ciúme de ninguém. E, pelo menos por um tempinho, deixei que o calor do amor dele afugentasse a lembrança do que eu tinha visto quando olhei através da pedra da vidência naquela noite...

Da próxima vez que despertei, foi porque eu estava quente demais. Ainda estava nos braços de Stark, mas ele tinha se mexido um pouco e atirado sua perna por cima de mim, fazendo de mim um casulo com meu cobertor azul e felpudo. Desta vez, ele não estava dando uma de Namorado Louco. Ele estava fofo, dormindo como um garotinho.

Como sempre, Nala tinha feito sua cama no meu quadril, então antes que ela resmungasse eu a levantei um pouco, deslizando junto com ela para o lado mais frio da cama o mais silenciosamente possível. Totalmente adormecido, Stark fez um movimento vago com a sua mão da espada, como que estendendo o braço para me defender. Eu me concentrei em pensamentos felizes – refrigerante marrom, sapatos novos, gatinhos que não espirravam no meu rosto – e ele relaxou.

Tentei relaxar também – para valer. Nal me encarou. Cocei atrás da orelha dela e sussurrei:

– Desculpe por acordá-la. De novo.

Ela esfregou a cara no meu queixo, espirrou em mim e pulou de volta em cima do meu cobertor azul e felpudo. Então ela girou três vezes em círculo e voltou a ser um donut adormecido de pelos.

Suspirei. Eu precisava fazer como Nala, ficar encolhida e voltar a dormir, mas a minha mente estava desperta demais. E junto ao fato de estar desperta vinha o ato de pensar. Depois que fizemos amor, Stark havia murmurado meio sonolento:

– Nós estamos juntos. Todo o resto vai se resolver.

E eu tinha adormecido sentindo-me segura de que ele estava certo.

Mas agora que, infelizmente, eu estava totalmente consciente, não conseguia evitar aquela coisa toda de pensar demais e me preocupar demais. Apesar de eu supor que, se Stark soubesse o que eu imaginei ter visto através da pedra da vidência na noite passada, ele iria retirar aquele comentário de “todo o resto vai se resolver” e voltar ao papel de Senhor Tenho Ciúme de um Cara Morto.

Coloquei minha mão em cima da pequena pedra arredondada que pendia de uma fina corrente de prata em volta do meu pescoço e balançava inocentemente entre os meus seios. Parecia normal – como qualquer outro colar que eu poderia ter usado. Ela não estava irradiando nenhum calor estranho. Eu a tirei de debaixo da minha camiseta e a ergui devagar. Inspirei profundamente para me fortificar e dei uma olhada em Stark através da pedra.

Nada estranho aconteceu. Stark continuou sendo Stark. Virei o colar um pouco e olhei para Nala. Ela continuou sendo uma gata adormecida gorda e alaranjada.

Coloquei a pedra da vidência de novo embaixo da minha camiseta. E se eu tivesse imaginado tudo aquilo? Como Heath poderia estar em Aurox? Até Thanatos disse que Aurox tinha sido criado pelas Trevas através do sacrifício da minha mãe. Ele era um Receptáculo – uma criatura sob o controle de Neferet.

Mas ela precisou matar Shadowfax para controlá-lo totalmente, e Aurox tinha feito aquelas perguntas sobre o que ele realmente era para Thanatos.

Ok, mas alguma dessas coisas fazia diferença? Aurox não era Heath. Heath estava morto. Ele havia partido para um reino mais distante do Mundo do Além para o qual eu não pude ir porque Heath estava morto.

Refletindo a minha inquietação, Stark se remexeu, franzindo a testa em seu sono. A gata Nala rosnou de novo. Eu não queria de jeito nenhum que eles acordassem, então saí da cama em silêncio e andei nas pontas dos pés para fora do quarto, abaixando-me para passar embaixo do cobertor que Stark e eu usávamos como porta.

Refrigerante marrom. Eu precisava seriamente de uma dose de refrigerante marrom. Talvez eu tivesse sorte e encontrasse um pouco de cereal Count Chocula e um resto de leite que não estava azedo. Hum, só de pensar nisso eu me senti um pouco melhor. Eu realmente merecia um pouco do cereal que eu tanto amava no café da manhã.

Fui arrastando os pés pelo túnel mal iluminado, passando por corredores menores e outras portas fechadas com cobertores, atrás das quais meus amigos descansavam enquanto aguardávamos o sol se pôr. Até que entrei na área comum que usávamos como cozinha. O túnel meio que acabava ali, abrindo espaço para algumas mesas, laptops e geladeiras grandes.

– Deve ter sobrado um pouco de refrigerante marrom por aqui – murmurei para mim mesma, enquanto eu vasculhava a primeira geladeira.

– Tem na outra geladeira.

Dei um gritinho idiota e pulei de susto.

– Afe, Shaylin! Não fique espreitando pelos cantos assim. Você quase me fez fazer pipi nas calças.

– Desculpe, Zoey – ela foi até a segunda das três geladeiras e pegou uma lata de refrigerante marrom não diet, totalmente cheio de açúcar e cafeína, e o estendeu para mim com um sorriso de desculpas.

– Você não deveria estar dormindo? – sentei na cadeira mais próxima e dei um gole no meu refrigerante, tentando não parecer tão mal-humorada quanto eu estava.

– É, bem, eu estou cansada sim. Posso sentir que o sol não se pôs ainda, mas estou com muita coisa na cabeça. Entende o que quero dizer?

Bufei ligeiramente.

– Entendo perfeitamente o que você quer dizer.

– A sua cor está meio que desligada – Shaylin fez esse comentário de um jeito indiferente, como se ela tivesse acabado de falar algo tão normal quanto mencionar a cor da minha camiseta.

– Shaylin, na verdade eu não entendo muito bem sobre essa coisa de cor que você costuma falar.

– Eu também não sei muito bem o quanto entendo. Tudo o que sei é o que vejo e, se não penso muito sobre isso, normalmente faz sentido para mim.

– Ok, dê um exemplo de como isso normalmente faz sentido para você.

– Isso é fácil. Vou usar você como meu exemplo. As suas cores não mudam muito. Na maior parte do tempo, você é roxa com pontinhos prateados. Mesmo quando você estava se preparando para ir ao ritual na fazenda de sua avó, e sabia que isso seria algo difícil de assistir, as suas cores permaneceram as mesmas. Eu conferi porque... – ela perdeu a fala.

– Você conferiu porque... – eu a incentivei a continuar.

– Porque eu estava curiosa. Eu conferi as cores de todos antes de vocês saírem, mas, bem, acabei de perceber como isso soa invasivo.

Franzi minha testa para ela.

– Isso não é como se você estivesse lendo nossas mentes nem nada parecido. Ou é?

– Não! – ela me assegurou. – Mas quanto mais passa o tempo em que eu tenho essa coisa da Visão Verdadeira, e quanto mais eu pratico, mais real isso fica para mim. Zoey, eu acho que isso me diz coisas sobre as pessoas, coisas que às vezes elas preferem esconder.

– Como Neferet. Você disse que por dentro ela tem cor de olho de peixe morto, e por fora ela é deslumbrante.

– Sim, exato. Mas também como o que eu estou vendo em você. Mas, como Kramisha diria, eu não devo me meter onde não fui chamada.

– Por que você não me conta o que está vendo em mim, e depois eu digo se acho que você está se metendo onde não foi chamada ou não?

– Bem, desde que você voltou do ritual na fazenda de sua avó, as suas cores estão mais escuras – ela fez uma pausa e me encarou. Então ela balançou a cabeça e se corrigiu: – Não, isso não é totalmente preciso. As suas cores não estão apenas mais escuras, elas estão mais turvas. Como se o roxo e o prata tivessem sido misturados e cobertos de lama.

– Ok – falei devagar, começando a entender o que ela quis dizer com violação. – Entendi que você vê uma diferença em mim, e isso é meio estranho, principalmente porque você falou que minhas cores não costumam mudar. Mas o que isso significa para você?

– Ah, sim, desculpe. Acho que significa que você está confusa com alguma coisa, com algo sério. Isso está incomodando você. Realmente mexendo com a sua cabeça. É mais ou menos por aí?

Concordei com a cabeça.

– É mais ou menos por aí.

– E você se sente estranha por eu saber disso?

Assenti novamente.

– É, um pouco – pensei por um instante nisso e então acrescentei: – Mas aí vai a verdade: eu me sentiria menos estranha se soubesse que posso confiar que você não vai tagarelar para todo mundo que as minhas cores estão turvas e que eu estou realmente confusa com algo. Isso sim seria violação.

– Sim – ela soou triste. – Foi o que pensei também. Quero que você saiba que pode confiar em mim. Nunca fui fofoqueira. Além disso, esse dom que Nyx me deu quando fui Marcada, bem, é totalmente incrível. Zoey, eu posso ver novamente – Shaylin parecia que ia explodir em lágrimas. – Não quero estragar tudo. Vou usar esse dom do modo que Nyx quer que eu use.

Percebi que ela estava bastante perturbada e me senti mal por ela – principalmente por eu ter algo a ver com o fato de ela estar perturbada.

– Ei, Shaylin, está tudo bem. Eu entendo como é ter um dom pelo qual você sente uma grande responsabilidade e como é não querer estragar tudo. Caramba, você está falando com a Rainha de Meter os Pés pelas Mãos. – Fiz uma pausa e então acrescentei: – Isso é parte do motivo pelo qual estou confusa agora. Eu não quero tomar mais uma decisão errada, idiota e imatura. O que eu faço e digo afeta muito mais gente do que apenas eu. Quando tomo decisões ridículas, é como aquelas peças de dominó caindo uma atrás da outra. Novatos, vampiros e humanos, todos podem se ferrar. Isso é péssimo, mas não muda o fato de que eu realmente tenho um dom de Nyx e que sou responsável pelo modo como esse dom é usado.

Shaylin pensou um pouco no que falei, e eu dei um gole no meu refrigerante. Na verdade, eu estava gostando de conversar com ela. Era infinitamente melhor do que ficar quebrando a cabeça com Aurox, Heath, Stark, Neferet e...

– Ok, mas o que fazer nesta situação? – Shaylin interrompeu meus pensamentos. – O que fazer se eu vir as cores de uma pessoa mudarem? É minha responsabilidade contar isso para alguém... alguém como você?

– O que você quer dizer? Tipo, chegar para mim e falar: “Ei, Zoey, as suas cores estão todas turvas. O que está rolando?”?

– Bem, talvez, mas só se nós formos amigas. Mas eu estava pensando mais em algo como o que aconteceu hoje, quando eu vi Nicole. As cores dela eram como as do resto do grupo de Dallas: feito sangue misturado com tons de marrom e preto. Como algo sangrando no meio de uma tempestade de areia. Na noite passada, no estábulo, as cores dela tinham mudado. Ainda havia um vermelho enferrujado ali, mas parecia mais claro, mais brilhante, não no mau sentido. Mais como se estivesse ficando mais limpo. É estranho, mas juro que vi um pouco de azul nela. Mas não como o azul do céu. Mais como o mar. Foi isso que me fez pensar que o lado mau dela pode estar desaparecendo e, depois que pensei isso, senti que estava certa.

– Shaylin, o que você está dizendo é realmente confuso – afirmei.

– Não, para mim não é! Está ficando cada vez menos confuso. Eu simplesmente sei as coisas.

– Eu entendi e acredito que você está dizendo a verdade. O problema é que o seu saber é tão subjetivo. É como se você estivesse transformando a vida em uma prova, e as pessoas fossem as respostas, mas, em vez de as suas pessoas-respostas serem alternativas tipo verdadeiro ou falso, onde é fácil julgar se o que você captou é certo ou errado, elas são respostas dissertativas. E isso significa que o seu resultado pode variar dependendo de muitas coisas diferentes. Nada é preto ou branco – suspirei. Minha própria analogia estava fazendo minha cabeça doer.

– Mas, Zoey, a vida não é preto no branco ou verdadeiro e falso, nem as pessoas – ela deu um gole no seu refrigerante, o qual eu percebi que era claro. Fiquei pensando que eu realmente não entendia o refrigerante claro: não tinha cafeína e nunca parecia doce o bastante. Então ela continuou: – Mas eu entendo o que você está tentando dizer. Você acredita que eu vejo as cores das pessoas. Você só não acredita no julgamento que eu faço delas.

Eu comecei a negar e a dizer algo que iria fazer com que ela se sentisse melhor, mas um aperto dentro de mim me fez mudar de ideia. Shaylin precisava escutar a verdade.

– Sim, basicamente é isso.

– Bem – ela disse, endireitando os ombros e levantando o queixo –, eu acho que o meu julgamento é bom. Acho que ele está ficando cada vez melhor, e quero usar meu dom para ajudar. Eu sei que uma batalha está a caminho. Ouvi falar sobre o que Neferet fez com a sua mãe e sobre como ela escolheu as Trevas em vez da Luz. Você vai precisar de alguém como eu. Consigo ver o interior das pessoas.

Ela estava certa. Eu realmente precisava do dom dela, mas também precisava saber que podia confiar no seu julgamento.

– Ok, então vamos começar. Que tal você manter os olhos bem abertos? Conte-me se você vir a cor de alguém mudando.

– O primeiro caso que eu quero reportar é o de Nicole. Erik me contou sobre ela. Sei que ela foi realmente do mal no passado. Mas a verdade está nas cores dela, e elas dizem que ela está mudando.

– Está certo. Vou me lembrar disso – levantei as sobrancelhas para ela. – E por falar em se lembrar das coisas... Não quero ser maldosa nem nada parecido, mas você precisa ficar de olho em Erik. Ele não é sempre...

– Ele é arrogante e egoísta – ela me interrompeu, encontrando o meu olhar sem se alterar. – Ele se acha muito, por saber como é gostoso e talentoso. A vida tem sido fácil para ele, mesmo depois de você ter terminado com ele.

– Ele contou para você que eu terminei com ele? – não sabia dizer se ela estava sendo maliciosa ou não. Não parecia que ela estava sendo, mas, de novo, eu não a conhecia muito bem. Mas realmente eu tinha a impressão de que, toda vez que eu a via, eu via Erik. Não que me importasse. Sério. Não era ciúme. Era mais que eu me sentia responsável por adverti-la sobre ele.

– Ele não precisou me contar. Tipo, um bilhão de outros garotos fez isso antes dele – ela respondeu.

– Eu não tenho nenhum ressentimento em relação a Erik. Quero dizer, ele pode ficar com quem ele quiser. Se você gosta dele, por mim não tem problema nenhum – percebi que estava tendo um surto de diarreia verbal, mas eu não conseguia parar de falar. – E ele também não quer mais nada comigo. Acabou mesmo. Só que Erik é...

– É um cuzão – a voz de Aphrodite me salvou. Ela passou por nós bocejando e enfiou a cabeça em uma das geladeiras. – E agora você ouviu isso de duas ex-namoradas dele. Sendo que “ex” é a parte mais importante da frase – ela veio até a mesa e colocou na frente da cadeira vazia ao meu lado uma jarra de suco de laranja e uma garrafa, que eu imaginei ser um champanhe supercaro. – É claro que Z. não o chamou de cuzão. Ela estava sendo gentil – enquanto falava, Aphrodite voltou para a geladeira e abriu o freezer. Ouvi um barulho de vidro tinindo. Quando ela voltou para a mesa, estava segurando uma taça de cristal gelada, daquelas compridas e finas em que as pessoas bebem nas festas de Ano Novo na TV. – Já eu não sou tão gentil. Cu-zão. Esse é o nosso Erik – ela estourou a rolha da garrafa, derramou um pouquinho de suco de laranja na taça e então a encheu quase até transbordar com champanhe borbulhante. Ela abriu um sorriso para a taça e falou: – Mimosa ou, como diria minha mãe, o café da manhã dos campeões.

– Eu sei o que Erik é – Shaylin afirmou. Ela não pareceu irritada. Ela também não pareceu agradecida. Ela soou segura de si. – Eu também sei o que você é.

Aphrodite levantou uma sobrancelha loira para ela e deu um bom gole na sua Mimosa.

– Conta aí.

Oh-oh, pensei. Eu supunha que devia fazer algo para impedir o que estava para acontecer, mas era como estar parada em um trilho de trem tentando empurrar um carro para fora do caminho. Era mais provável que eu acabasse sendo atropelada pelo trem do que conseguisse salvar o carro. Então, em vez disso, fiquei olhando com cara de tonta e bebendo meu refrigerante.

– Você é prateada. Isso me lembra a luz da lua, o que me diz que você foi tocada por Nyx. Mas você também é amarela cor de manteiga, como a luz de uma pequena vela.

– E isso diz o que para você? – Aphrodite examinou as suas próprias unhas bem cuidadas, claramente sem se importar com a resposta de Shaylin.

– Isso me diz que, como uma pequena vela, você pode ser apagada facilmente.

Os olhos de Aphrodite se estreitaram e ela espalmou a mão contra a mesa.

– Já chega, garotinha nova. Eu já tenho passado por muita coisa, com toda essa merda de batalha contra as Trevas, para ter que aturar a sua boca mole ou a sua atitude de sabe-tudo – parecia que ela estava se preparando para avançar no pescoço de Shaylin. Eu estava pensando em correr para tentar encontrar Darius quando Stevie Rae surgiu na cozinha.

– E aí, pessoal! Bom dia! – ela disse e deu um grande bocejo. – Cara, estou cansada. Será que tem alguma lata de Mountain Dew na geladeira?

– Ah, que merda, agora não é de manhã. O sol já vai se pôr. E por que diabo está todo mundo acordado? – Aphrodite atirou as mãos para cima.

Stevie Rae franziu a testa para ela.

– É educado dizer “bom-dia” para as pessoas, mesmo que isso não seja tecnicamente correto. E eu gosto de acordar cedo. Não há nada de errado nisso.

– Ele é um pássaro! – Aphrodite falou, servindo-se de mais champanhe.

– Você já está bebendo?

– Sim. Quem é você? Uma versão caipira da minha mãe?

– Não, se eu fosse uma versão de sua mãe, eu não ia ligar para o fato de você beber no café da manhã, já que a sua mãe realmente tem problemas – Stevie Rae colocou a lata de Mountain Dew de volta na geladeira. – E agora que eu pensei nisso, tomar refrigerante no café da manhã provavelmente também não é uma boa ideia. Aposto que tem uma caixa de Lucky Charms por aqui em algum lugar.

– Esse cereal é magicamente delicioso – Shaylin comentou. – Se você encontrar, vou querer um pouco também.

– Count Chocula – como parecia que Aphrodite não ia matar ninguém (no momento), minha voz voltou a funcionar. – Se você vir uma caixa, eu quero.

– Que diabo há de errado com Mimosas? – Aphrodite estava dizendo. – Suco de laranja combina com café da manhã.

– E a parte do champanhe? É álcool – Stevie Rae argumentou.

– É Veuve Clicquot rosé. Isso significa champanhe bom, o que cancela a parte do álcool – Aphrodite afirmou.

– Você acredita mesmo nisso? – Shaylin perguntou.

Olhando para mim e claramente ignorando Shaylin, Aphrodite falou:

– O que é que está falando comigo?

– Estou com dor de cabeça e a gente ainda nem foi para a escola – eu disse para Aphrodite.

– O estábulo quase foi destruído pelo fogo e a nossa Grande Sacerdotisa foi expulsa por ser uma semideusa assassina. Acho que todos nós podemos faltar na aula hoje – Aphrodite sugeriu.

– Nananina – Stevie Rae rebateu. – Nós temos que ir para a escola por causa disso tudo. Thanatos vai precisar de nós. Além disso, vai haver a cerimônia da pira funerária para Dragon. Isso vai ser difícil, mas a gente precisa estar lá nessa hora.

Aquilo calou Aphrodite. Ela continuou a beber, enquanto Stevie Rae serviu um pouco de Lucky Charms (um cereal inferior a Count Chocula, apesar de ter marshmallows) para si mesma e para Shaylin, e todas nós ficamos um pouco melancólicas.

– Vou sentir falta de Dragon – falei. – Mas é muito legal que ele está com Anastasia de novo. E o Mundo do Além é incrível. Mesmo.

– Vocês realmente viram os dois se reencontrando, não viram? – Shaylin quis saber, com olhos arregalados.

– Todos nós vimos – eu respondi, sorrindo.

– Foi lindo – Stevie Rae comentou, fungando e enxugando os olhos.

– É – Aphrodite disse baixinho.

Shaylin limpou a garganta.

– Olha só, Aphrodite, eu não queria ter sido tão maldosa antes. O que eu falei foi errado. Eu não devia usar o meu dom dessa forma. Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua, mas isso não quer dizer que você vai se apagar. É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Aqui vai a verdade: essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Portanto, desculpe.

Aphrodite voltou seus olhos azuis e frios para Shaylin e disse:

– Ponha a loção no cesto.

– Ah, cara – eu falei. – Aphrodite, apenas tome o seu café da manhã. Shaylin, esse é um bom exemplo daquilo que a gente estava conversando antes. Eu não questiono o seu dom. Não duvido dele. Mas eu realmente tenho um pé atrás com o seu bom senso em decifrá-lo.

– Eu decifro o meu dom perfeitamente – Shaylin respondeu, soando incomodada e na defensiva. – Mas Aphrodite me tirou do sério. Então eu cometi um erro. Já pedi desculpas.

– Desculpas não aceitas – Aphrodite falou e deu as costas para Shaylin.

Foi nessa hora que Damien entrou apressado na cozinha, segurando o seu iPad – e parecendo mais descabelado do que normalmente ficava, depois do que ele gostava de chamar de seu “período de rejuvenescimento de beleza”. Ele veio direto até mim, ergueu o iPad e disse:

– Vocês têm que assistir a isso.

No começo, eu estava só ligeiramente curiosa quando vi a âncora do telejornal da noite do canal Fox23, a totalmente deslumbrante Chera Kimiko, falando. Nós adorávamos a Chera. Ela não só era bonita no nível de um vampiro como era também uma pessoa real, ao contrário dos âncoras tipo cabeças falantes de plástico que normalmente aparecem.

Aphrodite espiou por sobre o meu ombro para o iPad de Damien.

– Kimiko é clássica. Nunca vou me esquecer daquela vez em que ela cuspiu o chiclete bem no meio da notícia. Pensei que meu pai ia ficar...

– Chera é ótima, mas isto é péssimo – Damien a cortou. – E grave. Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa.

Ah, que inferno...


6 Zoey

Todos nós nos amontoamos em volta do iPad de Damien. Ele clicou no “Play” e o vídeo da Fox23 começou. A parte de baixo da tela trazia a legenda: CAOS NA MORADA DA NOITE DE TULSA? Então a tela foi preenchida por Neferet e um monte de caras de terno. Ela estava em pé em algum lugar realmente bonito, cheio de mármore e art déco . Senti que eu quase reconhecia aquele lugar. A voz de Chera Kimiko estava falando em off.

– Vampiros e violência? Você ficaria surpreso com quem está afirmando isso. A Fox23 traz uma reportagem exclusiva esta noite com uma ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa.

Um comercial idiota começou e, enquanto Damien tentava adiantá-lo, eu disse:

– Pela imagem parece que ela está em algum lugar no centro da cidade.

– É o lobby do edifício Mayo – Aphrodite falou de forma lacônica. – E aquele na frente dela é o meu pai.

– Aiminhadeusa! – os olhos de Stevie Rae ficaram gigantes e redondos. – Ela está dando uma entrevista coletiva junto com o prefeito?

– E com alguns vereadores. São os outros caras de terno que estão com ela – Aphrodite explicou.

Então o vídeo começou e todos nós ficamos calados e assistindo embasbacados.

– Eu estou aqui para romper meus laços oficial e publicamente com a Morada da Noite de Tulsa e o Conselho Supremo dos Vampiros – de algum modo, Neferet conseguia parecer régia e vítima ao mesmo tempo.

– Ela é tão cheia de merda – Aphrodite comentou.

– Shhh! – todos nós fizemos para ela, pedindo silêncio.

– Grande Sacerdotisa Neferet, por que a senhora cortaria os laços com o seu povo? – perguntou um dos repórteres.

– Nós não podemos ser considerados um só povo? Não somos todos seres inteligentes com a capacidade de amar e entender uns aos outros? – aparentemente, ela estava falando de modo retórico, pois não esperou por uma resposta. – As políticas dos vampiros se tornaram desagradáveis para mim. Muitos de vocês sabem que recentemente eu abri vagas de trabalho na Morada da Noite para a comunidade de Tulsa. Fiz isso por causa da minha convicção de que humanos e vampiros podem fazer mais do que apenas coexistir de modo constrangido. Nós podemos viver e trabalhar juntos, e até amar.

Stevie Rae fez barulho de vômito. Eu fiquei balançando a cabeça de um lado para o outro, sem acreditar no que ouvia.

– Eu recebi tanta resistência que o Conselho Supremo dos Vampiros enviou para Tulsa a sua Grande Sacerdotisa da Morte, Thanatos, para intervir. A atual administração dos vampiros promove violência e segregação. Apenas olhem para os últimos seis meses e o recorde de violência cada vez maior no centro de Tulsa. Vocês realmente acreditam que todos os ataques, principalmente aqueles envolvendo derramamento de sangue, têm relação com gangues humanas?

– Grande Sacerdotisa, a senhora está admitindo que vampiros atacaram humanos em Tulsa?

Neferet levou sua mão até o pescoço dramaticamente.

– Se eu soubesse disso com cem por cento de certeza, teria ido até a polícia imediatamente. Eu só tenho suspeitas e preocupações. Eu também tenho uma consciência, e é por isso que eu saí da Morada da Noite – ela deu um sorriso radiante. – Por favor, vocês não precisam mais me chamar de Grande Sacerdotisa. De agora em diante, eu sou simplesmente Neferet.

Mesmo pelo vídeo, pude perceber que o repórter ficou vermelho e sorriu para ela.

– Há rumores sobre um novo tipo de vampiro, com Marcas vermelhas. A senhora pode confirmar esses rumores? – perguntou outro repórter.

– Infelizmente, eu posso. Há, de fato, um novo tipo de vampiros e novatos. Aqueles Marcados em vermelho são deteriorados de certa forma.

– Deteriorados? A senhora pode nos dar um exemplo?

– Certamente. O primeiro que me vem à cabeça é James Stark, um novato que veio de Chicago depois de acidentalmente causar a morte do seu mentor. Ele se tornou o primeiro guerreiro vampiro vermelho.

Eu ofeguei.

– Aquela vaca está falando do seu namorado! – Aphrodite disse.

– E agora na noite passada Dragon Lankford, Mestre da Espada da escola há muito tempo, foi assassinado. Espetado pelos chifres de um touro até a morte. Lankford estava na companhia de James Stark quando aconteceu o “acidente” – ela enfatizou a palavra, para deixar claro que não acreditava que havia sido um acidente.

– A senhora está querendo dizer que esse vampiro Stark é perigoso?

– Temo que ele possa ser. Na verdade, muitos dos novos vampiros e novatos podem ser perigosos. Afinal de contas, a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa é a Morte.

– A senhora pode nos dar mais detalhes sobre...

Um dos homens de terno deu um passo à frente, cortando Neferet.

– Eu, mais do que todos, estou muito preocupado com esses acontecimentos na comunidade dos vampiros. Como muitos de vocês sabem, minha amada filha, Aphrodite, foi Marcada há quase quatro anos. Eu entendo muito bem que os vampiros não gostem que os humanos se intrometam nos seus assuntos pessoais, políticos e criminais. Há muito tempo eles tomam conta de si mesmos. Mas quero declarar a vocês e à nossa Morada da Noite local que, por resolução da Câmara dos Vereadores de Tulsa, nós vamos criar uma comissão para examinar as relações entre vampiros e humanos. Infelizmente, acabou o tempo que temos para perguntas por hoje – o homem que havia falado no microfone de Neferet era o pai de Aphrodite, prefeito de Tulsa. – Tenho apenas mais um breve anúncio para fazer. Começando imediatamente, Neferet foi admitida como membro da comissão da Câmara dos Vereadores sob o título de Agente de Ligação com os Vampiros. Deixem-me reiterar, Tulsa pretende se associar a vampiros que desejam viver em paz com os humanos. – Quando todos os repórteres começaram a falar ao mesmo tempo, ele levantou a mão e sorriu com certo ar de superioridade (que estranhamente lembrou Aphrodite). – Neferet vai ter uma coluna semanal no caderno Scene do jornal Tulsa World. Por enquanto, esse vai ser o fórum através do qual ela vai responder a todas as suas perguntas. Lembrem-se de que agora estamos apenas no começo de uma parceria. Precisamos caminhar devagar e gentilmente para não perturbar o delicado equilíbrio das relações entre vampiros e humanos.

Eu estava observando o rosto de Neferet em vez de olhar para o prefeito, e vi o jeito com que os olhos dela se estreitaram e a sua expressão se endureceu. Então o prefeito LaFont acenou para a câmera e a imagem voltou para Chera Kimiko no estúdio. Damien tocou no iPad, e a tela se apagou.

– Ah, que merda! Meu pai perdeu o resto de juízo perfeito que ainda restava depois de conviver com a minha mãe – Aphrodite afirmou.

– Ei, acho que ouvi alguém falar o meu nome – Stark entrou na cozinha, passando os dedos pela sua cabeça descabelada e dando pra mim aquele seu meio sorriso sexy e metidinho.

– Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa e de dizer a todos que você é um assassino perigoso – eu me escutei contando a ele.

– Ela fez o quê? – ele pareceu tão chocado quanto eu me sentia.

– É, e ela fez mais do que isso – Aphrodite continuou. – Ela se juntou ao meu pai e agora toda a cidade acredita que ela é toda boazinha e que nós somos todos sugadores de sangue.

– Ahn, o plantão de notícias é por nossa conta, Aphrodite – Stevie Rae a corrigiu. – Você não é mais uma sugadora de sangue.

– Ah, por favor. Como se os meus pais soubessem alguma coisa da minha vida. Não falo com nenhum dos dois há meses. Só sou a filha deles quando isso é conveniente para eles. Como agora.

– Se isso não fosse tão assustador, seria engraçado – Shaylin comentou.

– Neferet está fazendo com que pareça que ela rompeu com o Conselho Supremo e com a escola, e não que ela foi expulsa por matar a minha mãe – eu expliquei para Stark.

– Ela não pode fazer isso – Stark reagiu. – O Conselho Supremo dos Vampiros não vai deixar que ela faça isso.

– Meu pai está amando tudo isso – Aphrodite disse. Reparei que ela tinha deixado o champanhe de lado e que agora estava enchendo a taça apenas com suco de laranja. – Há anos ele quer descobrir como se aproximar dos vampiros. Depois que eles me esqueceram porque não me transformei em um clone da minha mãe, eles na verdade ficaram felizes quando fui Marcada.

Fiquei observando Aphrodite e lembrando do dia que agora parecia tão distante, em que eu havia escutado os pais dela a repreendendo por ela ter perdido a liderança das Filhas das Trevas para mim. Agora Aphrodite parecia a rainha do gelo de sempre, mas na minha lembrança eu ainda conseguia ouvir o som da mão da mãe dela dando uma bofetada no seu rosto e podia ver as lágrimas que ela teve que represar. Não deve ter sido fácil para ela ouvir o seu pai a chamar de “filha amada” quando a verdade era que tudo o que ele sempre quis foi usá-la.

– Por quê? O que os seus pais querem com os vampiros? – Stevie Rae perguntou.

– Ter acesso a mais dinheiro... mais poder... mais beleza. Em outras palavras, ser parte da turma legal. Isso é tudo o que eles sempre quiseram: ser bacanas e poderosos. Eles usam quem quer que seja para conseguir o que querem, incluindo a mim e, obviamente, Neferet – Aphrodite explicou, ecoando estranhamente o que eu estava pensando.

– Neferet não é o caminho para eles conseguirem nada disso – eu afirmei.

– Fala sério, Z., ela é mais louca que galinha agarrada pelo rabo – Stevie Rae falou.

– Bem, seja o que for que isso signifique, sim, mas não é só isso. Mais alguém reparou no olhar de Neferet quando o pai de Aphrodite estava falando? Ela definitivamente não gostou nada de como as coisas terminaram – eu disse.

– Uma comissão, uma coluna no jornal e “caminhar devagar e gentilmente” não parece algo em que a Consorte das Trevas estaria particularmente interessada – Damien concordou.

– E realmente ela não gostou de quando o prefeito interrompeu a pergunta sobre você ser perigoso – eu completei.

– Eu gostaria de ser perigoso para Neferet! – Stark vociferou, ainda parecendo totalmente chocado.

– O meu pai é muito bom em prometer uma coisa e fazer outra – Aphrodite lembrou. – Posso jurar para vocês que ele acha que pode fazer esse jogo com Neferet – ela balançou a cabeça. Não importava o quanto ela soava insensível, a expressão dela era tensa.

– A gente tem que ir para a Morada da Noite. Agora. Se Thanatos ainda não sabe sobre isso, ela precisa saber – afirmei.

Neferet

Os humanos são tão fracos, entediantes e terrivelmente simplórios, Neferet pensou enquanto observava o prefeito Charles LaFont sorrir de modo afetado, procurando apaziguar os ânimos e continuando a evitar qualquer pergunta direta sobre perigo, mortes e vampiros depois da coletiva de imprensa dela. Até esse homem que, dizem os rumores, é o próximo na fila para uma cadeira no Senado e supostamente é tão carismático e dinâmico... Neferet teve que disfarçar a sua risada sarcástica com uma tosse. Esse homem não era nada. Neferet esperava mais do pai de Aphrodite.

Pai! Uma voz ecoou do seu passado, alarmando-a e fazendo que Neferet agarrasse o corrimão de ferro ornamentado e o apertasse bruscamente. Ela teve que tossir de novo para ocultar o som de algo quebrando que veio do ferro forjado quando ela tirou sua mão dali. Foi então que a paciência dela acabou.

– Prefeito LaFont, você pode me acompanhar até a minha cobertura – as palavras deveriam ter soado como uma pergunta, mas a voz de Neferet não formulou a frase desse modo. O prefeito e os quatro vereadores que haviam participado da coletiva de imprensa se viraram na sua direção. Ela decifrou facilmente cada um deles.

Todos a achavam bonita e desejável.

Dois deles a desejavam com tanta intensidade que eles abandonariam suas esposas, suas famílias e suas carreiras para possuí-la.

Charles LaFont não era um deles. O pai de Aphrodite a cobiçava – disso não havia dúvida –, mas o seu principal desejo não era sexual. A maior necessidade de LaFont era alimentar a obsessão de sua mulher por status e aceitação social. De fato, era uma pena que ele não pudesse ser seduzido mais facilmente.

Todos eles a temiam.

Isso fez Neferet sorrir.

Charles LaFont limpou a garganta e ajeitou nervosamente a sua gravata.

– É claro, é claro. Será um prazer acompanhá-la.

Friamente, Neferet fez apenas um gesto de despedida com a cabeça para os outros homens e ignorou os olhares ávidos deles na sua direção enquanto ela e LaFont entravam no elevador para subir até a sua cobertura.

Ela não falou nada. Neferet sabia que ele estava nervoso e muito menos seguro de si do que fingia ser. Em público, a sua fachada era de charme natural, como se ele fosse merecedor de tudo o que a vida tinha a oferecer. Mas Neferet enxergava o humano amedrontado e bobo que se encolhia por baixo daquela superfície.

As portas do elevador se abriram e ela entrou no saguão de mármore do seu apartamento.

– Acompanhe-me em um drink, Charles – Neferet não deu a ele nenhuma oportunidade de recusa. Ela caminhou decididamente até o bar art déco ornamentado e encheu duas taças com um esplêndido vinho tinto.

Como ela sabia que ia acontecer, ele a seguiu.

Ela estendeu a ele uma das taças. Ele hesitou e ela deu uma gargalhada.

– É só um cabernet muito caro. Não está misturado com sangue, de forma alguma.

– Ah, claro – ele pegou a taça e riu nervosamente, parecendo um cachorrinho pequeno e medroso aos olhos dela.

Neferet detestava cachorros quase tanto quanto ela detestava homens.

– Eu tinha mais para revelar hoje do que apenas a informação sobre James Stark – ela disse friamente. – Acho que a nossa comunidade merece entender como os vampiros da Morada da Noite se tornaram perigosos.

– E eu acho que a comunidade não precisa entrar em pânico sem necessidade – LaFont contra-argumentou.

– Sem necessidade? – ela pronunciou as duas palavras incisivamente.

LaFont assentiu e coçou o queixo. Neferet sabia que ele achava que parecia sábio e benevolente. Mas, para ela, ele parecia fraco e ridículo.

Foi então que Neferet reparou nas mãos dele. Elas eram grandes e pálidas, com dedos grossos e, apesar do seu tamanho, pareciam macias e quase femininas.

O estômago de Neferet se embrulhou. Ela quase vomitou no vinho e por pouco não conseguiu manter o seu comportamento frio.

– Neferet? Você está bem? – ele perguntou.

– Sim – ela falou rapidamente. – Só estou confusa. Você está me dizendo que, ao alertar Tulsa sobre os perigos desses novos vampiros, estamos provocando pânico neles sem necessidade?

– É exatamente isso. Depois da coletiva de imprensa, Tulsa vai estar em alerta. A violência contínua não vai ser tolerada; ela vai ser detida.

– Mesmo? E como você pretende deter a violência dos vampiros? – a voz de Neferet era ilusoriamente amável.

– Bem, isso é muito simples. Vou continuar o que nós começamos hoje. Você alertou o público. Com você atuando como Agente de Ligação entre a cidade e o Conselho Supremo na nossa comissão recém-implementada, você será a voz da razão defendendo a coexistência entre humanos e vampiros.

– Então é com palavras que você vai deter a violência deles – ela disse.

– Sim, palavras faladas e escritas – ele concordou, parecendo muito satisfeito consigo mesmo. – Peço desculpas se falei fora de hora quando mencionei a coluna no jornal. Foi uma ideia de última hora do meu grande amigo Jim Watts, editor-chefe do caderno Scene do Tulsa World. Eu teria falado com você sobre isso antes, mas, desde que você apareceu no meu escritório hoje à tarde com o seu alerta, as coisas aconteceram rápido e publicamente.

Porque eu planejei as coisas dessa forma... porque eu coloquei o sistema inepto de vocês em ação. Agora chegou a hora de eu colocá-lo em ação, assim como fiz com os jornalistas e os vereadores.

– Quando eu o procurei, não esperava encontrar reticências nem estava planejando escrever.

– Talvez não, mas eu estou na política de Oklahoma há quase vinte anos e conheço o meu povo. Incitá-los de modo calmo e devagar é o que funciona com eles.

– Como se você estivesse tocando o gado? – Neferet falou sem esconder o desdém na sua voz.

– Bem, eu não usaria essa analogia, mas tenho percebido que criar comissões, fazer pesquisas na comunidade, obter um feedback da amostragem, tudo isso realmente contribui para uma engrenagem mais azeitada das políticas públicas da cidade – LaFont deu uma risadinha e tomou um gole de vinho.

Escondida nas dobras do seu vestido de veludo, Neferet fechou sua mão em punho e a apertou até que suas unhas feito garras perfurassem sua palma. Gotas escarlates quentes se empoçaram embaixo de suas unhas. Sem serem vistas pelo humano ignorante, as gavinhas de Trevas serpentearam subindo pelas pernas de Neferet, procurando... encontrando... bebendo...

Ignorando o calor gelado daquela dor familiar, Neferet encontrou o olhar de LaFont por sobre a taça de vinho dele. Rapidamente, ela abaixou a voz em uma calma cantiga.

“A paz com os vampiros não é o que você deseja.

Eles ardem com brilho e ímpeto demais, você inveja o seu fogo.

Reticências e escrever colunas, maldita seja essa ideia!

Você tem que fazer o que eu...”

O celular de LaFont começou a tocar. Ele piscou e a expressão embaçada que havia encoberto os seus olhos se clareou. Ele abaixou sua taça de vinho, tirou o telefone do bolso, franziu os olhos para ver a tela e então disse:

– É o chefe de polícia. – Ele tocou na tela e passou a mão pelo rosto, enquanto dizia: – Dean, que bom falar com você – LaFont fez um aceno de cabeça e levantou os olhos para Neferet. – Você vai me desculpar, tenho certeza, mas não posso falar sobre isso agora. Em breve nós falaremos sobre os detalhes da comissão e da coluna de perguntas e respostas.

Enquanto falava, o prefeito se retirou rapidamente para o elevador, deixando Neferet sozinha, exceto pelas famintas gavinhas de Trevas.

Neferet permitiu que elas bebessem dela apenas por mais alguns instantes. Então ela as afastou e lambeu as feridas frescas na palma de sua mão para que os cortes se fechassem.

Os filamentos de Trevas pulsaram ao redor dela, pairando no ar como um ninho de cobras flutuante, ansiosas para cumprir as ordens dela.

– Agora vocês me devem um favor – ela disse antes de pegar o telefone da cobertura e digitar o número de Dallas.

Ele pareceu nervoso ao atender:

– Eu vou matar o cuzão que me ligou tão cedo!

– Cale a boca, garoto! Escute e obedeça – Neferet sorriu ao ouvir o silêncio que se seguiu à sua ordem. Ela quase podia sentir o cheiro do medo dele através do telefone. Então ela falou rapidamente, adquirindo mais controle sobre o seu temperamento e mais exatidão enquanto instruía o vampiro vermelho. – Logo a escola vai saber que eu rompi com a Morada da Noite e me tornei membro de uma comissão da Câmara Municipal de Tulsa. Você sabe, é claro, que eu só planejo usar esses humanos para iniciar um conflito. Até eu procurá-lo de novo, você será as minhas mãos, olhos e ouvidos na Morada da Noite. Aja como se você quisesse se dar bem com o resto da escola agora que eu fui embora. Conquiste a confiança dos professores. Faça amizade com os novatos azuis e então faça o que os adolescentes fazem de melhor: apunhale-os pelas costas, espalhe boatos, crie panelinhas.

– Aquela horda de nerds da Zoey não vai confiar em mim.

– Eu disse para você calar a boca, escutar e obedecer! É claro que você não vai conseguir conquistar a confiança de Zoey; ela é próxima demais de Stevie Rae. Mas você pode romper aquele círculo fechado dela, que não é tão forte quanto você pensa. Observe as gêmeas, particularmente Erin. A água é mais facilmente manipulada e mais mutável do que o fogo – ela fez uma pausa, esperando que ele confirmasse que entendeu as suas ordens. Como ele não falou nada, ela disse rispidamente: – Agora você pode falar!

– Eu compreendi, Grande Sacerdotisa. Vou obedecê-la – ele garantiu a ela.

– Excelente. Aurox já voltou para a Morada da Noite?

– Não que eu tenha visto. Pelo menos ele não estava junto de nós, quando fomos agrupados e levados para o dormitório depois do fogo. Foi... foi você que provocou o incêndio? – Dallas fez a pergunta com hesitação.

– Sim, apesar de ter sido mais um acidente imprevisto do que uma manipulação intencional. O fogo causou muita destruição?

– Bem, ele queimou parte do estábulo e causou uma enorme confusão – ele respondeu.

– Algum cavalo ou novato morreu? – ela perguntou ansiosamente.

– Não. Aquele cowboy humano se feriu, mas foi só isso.

– Que pena. Agora vá fazer o que eu mandei. Quando eu voltar a controlar a Morada da Noite e reinar como Tsi Sgili, Deusa de todos os vampiros, você será regiamente recompensado – Neferet apertou o botão de desligar.

Ela estava tomando o seu vinho e pensando em uma morte lenta e dolorosa para Charles LaFont quando um barulho no quarto desviou a sua atenção. Ela havia se esquecido do jovem mensageiro do prédio que flertara descaradamente com ela na hora em que Neferet havia chegado naquela noite, mais cedo. Na ocasião, ele estava parecendo muito disposto a alimentá-la. Ele deveria estar menos disposto agora que tinha percebido que ela estava muito perto de drenar todo o seu sangue perigosamente. Neferet se levantou e caminhou até o quarto, levando sua meia taça de vinho. Ela iria saborear o medo dele no que havia sobrado do seu sangue.

Neferet sorriu.


7 Zoey

Stevie Rae e eu deveríamos encontrar Thanatos na sua sala de aula. Eu tinha ligado para ela quando estávamos no ônibus escolar a caminho da escola. Nós não havíamos conversado muito. Tudo o que ela tinha dito era que já sabia sobre a coletiva de imprensa de Neferet e que a gente devia ir direto para a sua sala.

A Morada da Noite estava com cheiro de fumaça.

Aquele fedor estava impregnado na escola inteira. Quando nós entramos no estacionamento, percebi que aquele cheiro ruim não era apenas de fumaça. Infelizmente, eu já tinha bastante experiência para reconhecer o aroma penetrante do medo.

O dia normal de escola não havia começado, aquilo era bem óbvio. Havia novatos em grupinhos andando e fofocando para lá e para cá. Eles definitivamente não estavam a caminho da primeira aula. Aquilo deveria ser legal. Quero dizer, qual garoto não ama um dia de neve, um vazamento de água ou qualquer coisa assim? Mas de algum modo aquilo não era legal. Passava uma sensação confusa e de falta de segurança.

– Ok, bem, eu sei que não é normal de minha parte dizer isto, mas acho que Thanatos deveria ter obrigado todo mundo a ir para a aula hoje – Aphrodite assustadoramente ecoou meus pensamentos de novo enquanto descíamos do ônibus. – Agora o que está rolando é essa merda e um pânico do tipo “a gente não vai conseguir ficar sem Neferet” – ela fez um gesto englobando tanto os grupinhos de novatos sussurrando quanto os vampiros e novatos que estavam fazendo dois trabalhos horríveis: limpar o entulho do estábulo e colocar tábuas e vigas no enorme monte de madeira que ia se tornar a pira funerária de Dragon Lankford.

– Eu concordo com você, minha bela – Darius disse sombriamente.

Em silêncio, fiz uma prece rápida mas fervorosa: Nyx, ajude-me a dizer e a fazer a coisa certa, ajudando os meus amigos, o meu círculo, a ficarem fortes e confiantes. Então eu encarei o meu grupo e segui os meus instintos.

– Ok, apesar de eu detestar admitir isso em voz alta, ou mesmo em voz baixa, Aphrodite está certa.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo loiro.

– É claro que estou.

– Esta escola precisa de uma boa dose de normalidade e, infelizmente, acho que nós somos o melhor tipo de normalidade que eles vão encontrar agora.

– Isso quer dizer que eles tão ferrados – Kramisha afirmou. Ela estava usando a sua peruca curta e loira e um sapato de couro envernizado preto com um salto de doze centímetros. A saia dela era curta e supercintilante. De algum modo, aquele visual louco tinha dado certo, fazendo-me pensar (por uns 2,5 segundos) em usar salto com mais frequência.

– Eu estou falando sério, Kramisha – eu disse.

– Eu também – ela replicou.

– Olha só, pessoal. Nós podemos ser normais. Um novo tipo de normalidade, mais interessante – Stevie Rae sugeriu, abrindo um sorriso para Rephaim.

Aphrodite bufou. Eu a ignorei, sorri para Stevie Rae e continuei falando.

– Nós vamos nos separar. Parte de vocês vai para o estábulo, outra parte vai até a pira de Dragon. Lembrem-se, sejam normais – eu os orientei com firmeza. – Ajam como vocês fariam normalmente. A gente precisa segurar a onda e ajudar a colocar as coisas de volta nos trilhos, de um jeito aparentemente controlável. Olhem, neste momento parece que nós fomos atacados por todos os lados. O estábulo pegou fogo. Os gatos foram assassinados. Dragon está morto. E agora Neferet não é apenas uma louca do mal. Ela é uma louca do mal que envolveu a comunidade dos humanos em coisas que estão muito longe da sua compreensão ou da sua capacidade de lidar com elas. Nós temos que ficar fortes e visíveis. Precisamos manter a Morada da Noite unida. Como eu falei para Thanatos na noite passada: nós somos muito mais do que crianças bir rentas e já é hora de nos levantarmos, ficarmos juntos e conquistarmos o respeito que merecemos.

– Sábio conselho, Sacerdotisa – Darius disse, fazendo-me ter vontade de abraçá-lo. – Eu vou para a pira de Dragon para espalhar a calma por lá – ele sorriu carinhosamente para Aphrodite. – Venha comigo. A sua influência vai ser boa para os guerreiros que estão desolados com a perda do Mestre da Espada.

– Normalmente, eu diria que vou aonde você for, bonitão – Aphrodite respondeu. – Mas eu preciso conversar um pouco com a Z., então eu vou com ela falar com Thanatos. Que tal eu encontrar com você na pira depois disso?

As palavras dela me surpreenderam e eu pensei no fato de que, exceto por aquele papo com Shaylin mais cedo, eu realmente não tinha falado com ninguém desde o ritual de revelação. O trajeto de volta no ônibus, com o corpo de Dragon, havia sido silencioso e difícil. E então aconteceu o incêndio, os gatos mortos e, felizmente, o sono, apesar de eu ainda não ter dormido o suficiente. Tudo isso significava que ninguém havia me puxado de lado para falar sobre Aurox. Será que Aphrodite estava se preparando para fazer isso? Dei uma olhada nela. Ela estava na ponta dos pés, dando um beijo em Darius. Ela parecia a mesma de sempre: louca pelo seu guerreiro e irritada com todo o resto.

– Eu também vou com Z. – a voz de Stevie Rae interrompeu a minha análise neurótica de Aphrodite. – Depois que terminarmos de falar com Thanatos, eu vou até a pira funerária. Vocês vão precisar construir uma fundação sólida lá, e a terra é o elemento certo para isso – ela deu um beijo rápido em Rephaim. – Você me encontra lá?

– Sim – ele retribuiu o beijo, tocando o queixo dela com carinho. Então ele olhou para mim. – Se ninguém tiver nenhuma objeção, eu gostaria de fazer uma ronda em volta do muro da escola, principalmente o muro leste. Se os filamentos de Trevas de Neferet estão serpenteando por aí, nós precisamos saber disso.

– Isso parece uma boa ideia. Vocês estão de acordo com isso? – perguntei, olhando para Stark e Darius. Os dois guerreiros assentiram. – Ok, ótimo. – Então voltei minha atenção para Stevie Rae. – Também acho que invocar o seu elemento é realmente uma boa ideia, Stevie Rae. Damien, Shaunee e Erin, mantenham os seus elementos por perto. Se eles puderem ajudar a fortalecer ou a apoiar as pessoas, invoquem-nos. Só não sejam totalmente óbvios e... – minha voz sumiu quando percebi o que eu estava dizendo. – Não. Isso é errado. Se vocês precisarem usar os seus elementos, sejam óbvios.

– Entendi o que você quis dizer, Z. – Damien afirmou. – Já está na hora de a Morada da Noite saber que há forças prodigiosas do bem trabalhando ao nosso lado contra todas essas Trevas.

– “Prodigiosas” significa muito grandes – Stevie Rae traduziu.

– Nós sabemos o que quer dizer – Kramisha protestou.

– Eu não sabia – Shaunee falou.

– Nem eu – Erin concordou.

Tive vontade de sorrir para as gêmeas e dizer que era legal vê-las fazendo comentários tipo gêmeas de novo, mas assim que Erin falou ela ficou corada e se afastou de Shaunee, que estava parecendo superdesconfortável. Então eu desisti – temporariamente – e fiz uma nota mental para acender uma vela vermelha e uma azul para as duas e pedir a Nyx para dar uma ajuda extra a elas. Se eu conseguisse tempo pra isso. Que inferno, se Nyx tivesse tempo pra isso.

Eu reprimi um suspiro e continuei falando.

– Ok, ótimo. Então, dividam-se em grupos. Vão fazer coisas normais, como pegar alguns livros de estudo e ir até a biblioteca.

– Isso não é o meu normal – escutei Johnny B. resmungar, fazendo os garotos em volta rirem.

Eu gostei do barulho das risadas deles. Aquilo era normal.

– Então vá jogar basquete ou fazer alguma coisa típica de garotos no ginásio – eu sugeri, sem conseguir não sorrir para eles.

– Eu vou pro refeitório. A cozinha dos túneis parece que foi atacada por um enxame de gafanhotos. Z., nós precisamos dar uma passada no mercado antes de voltar para lá – Kramisha me avisou.

– Sim, bem, isso é normal. Vá em frente. Leve quem não conseguiu comer antes de vir para a escola com você. E, pessoal, espalhem-se. Não fiquem apenas comendo em grupinhos. Conversem com os outros garotos – afirmei.

Os novatos emitiram sons de concordância e se organizaram, dividindo-se em pequenos grupos em volta de Darius, as gêmeas, Damien e Kramisha. Rephaim partiu sozinho. Eu o olhei se afastando por um tempo, pensando se algum dia ele iria realmente se enquadrar no grupo, e o que seria do seu relacionamento com Stevie Rae se ele não conseguisse. Dei uma olhada para a minha amiga. Ela estava olhando com total adoração para Rephaim. Mordi meu lábio e continuei a me preocupar.

– Você está bem, Z.? – a voz de Stark soou baixinha ao meu lado, e ele colocou o braço sobre os meus ombros.

– Sim – respondi, encostando-me nele por um momento. – Só estou me preocupando obsessivamente, como sempre.

Ele me abraçou.

– Tudo bem, desde que você não comece a chorar. Aquele seu choro cheio de catarro não é nada atrativo.

Dei um soquinho nele de brincadeira.

– Eu nunca choro.

– Ah, sim, claro, e você nunca fica cheia de catarro também – ele falou, dando aquele sorriso fofo e metidinho para mim.

– Eu sei! Incrível, não? – eu caçoei.

– Ceeeerto – ele estendeu a palavra e beijou o topo da minha cabeça.

– Ei – eu falei, ainda aninhada seguramente em seus braços. – Você pode ir até o estábulo para dar uma mão para Lenobia? Eu vou conversar com Thanatos e depois vou até o estábulo e encontro com você lá.

Stark hesitou apenas por um instante e senti os seus braços me apertando contra ele. Stark não queria se separar de mim, principalmente com toda essa loucura rolando, mas ele concordou e disse:

– Vou estar lá, esperando por você – então ele beijou minha testa e me soltou, partindo em direção ao estábulo.

Eu estremeci, arrepiada depois do calor do seu toque. Os outros garotos começaram a se afastar em grupos, ficando só Stevie Rae e Aphrodite comigo.

– Eu vou com vocês, mas esperem só um segundo. Primeiro preciso ligar para a minha mãe. Ela tem de saber que Neferet não é só cheia de papo furado, mas também é cheia de perigo – Aphrodite falou.

– Você acha que ela vai te escutar? – eu quis saber.

– É claro que não – ela respondeu sem hesitar. – Mas vou tentar assim mesmo.

– Por que você não liga para o seu pai? Afinal, ele é o prefeito, e não a sua mãe – Stevie Rae sugeriu.

– Na casa dos LaFont quem manda é a mulher. Se há alguma chance de abrir os olhos do Senhor Prefeito em relação a Neferet, isso tem que partir da minha mãe.

– Boa sorte – eu disse.

– Bem, seja como tiver que ser – Aphrodite pegou seu telefone e se afastou de nós.

Surpreendendo-me, Shaylin saiu de um dos grupos que estava indo embora e caminhou até mim.

– Posso ir com vocês? – a sua voz era gentil, mas ela havia falado claramente e seu queixo estava levantado, como se ela estivesse preparada para uma luta.

– Por que você quer ir com a gente? – eu questionei.

– Quero perguntar a Thanatos sobre as minhas cores. Sei que vocês me disseram para manter segredo sobre o meu dom, e eu entendo por quê. Definitivamente, isso é algo que Neferet não precisa saber. Mas ela não é mais Grande Sacerdotisa, e eu tenho perguntas para as quais preciso encontrar respostas. Como Damien falou, já faz muito tempo desde que outra pessoa teve a Visão Verdadeira. Bem, Thanatos é inteligente. E idosa. Imagino que talvez ela possa me dar algumas respostas. Se vocês não se importarem, é isso – ela concluiu rapidamente.

Olhei para Stevie Rae.

– Você é a Grande Sacerdotisa dela. Por você tudo bem?

– Não sei muito bem. O que você acha?

– Acho que, se nós não podemos confiar em Thanatos, estamos totalmente ferrados – respondi honestamente.

– Bem, então acho que está na hora de definir quem está no nosso time, e acredito que Thanatos faz parte das pessoas de bem. Portanto, por mim tudo bem.

– Sim, ok – eu disse.

– Obrigada – Shaylin agradeceu.

– Bem, foi uma perda de tempo – Aphrodite se juntou a nós enquanto colocava o seu telefone de volta dentro de sua bolsa Valentino dourada, cintilante e superfofa. – Pelo menos não foi uma perda de muito tempo.

– Ela não escutou nada do que você falou? – eu perguntei.

– Ah, ela escutou. Então ela disse que tinha duas palavras para mim: Nelly Vanzetti. E aí ela desligou.

– Ahn? – eu mostrei que não tinha entendido.

– Nelly Vanzetti é a psicanalista da minha mãe – Aphrodite explicou.

– E por que a sua mãe iria falar o nome dela para você? – Stevie Rae ainda não havia entendido.

– Porque, caipira, esse é o jeito de a minha mãe me dizer que eu estou parecendo completamente louca. Não que ela se importe se eu estou louca mesmo. Com isso ela estava dizendo que não se importa em me ouvir, mas que ela vai pagar a psicanalista dela para fazer isso – Aphrodite deu de ombros. – A mesma coisa de sempre.

– Isso é muito maldoso – Shaylin comentou.

Aphrodite franziu seus olhos azuis.

– Por que você está aqui?

– Ela tem um dom – Stevie Rae falou.

– O meu nível de “não dou a mínima” está muito baixo em relação a isso – Aphrodite rebateu.

– Tenho algumas perguntas para fazer a Thanatos – Shaylin esclareceu.

– Ela vai com a gente – afirmei.

– Tanto faz – Aphrodite deu um olhar de desdém para ela. – Então vá indo. Na frente de nós. Preciso conversar com estas duas, sem ouvidos coloridos escutando.

– Vá indo, Shaylin – eu disse antes que as duas começassem a discutir. De novo. – Nós vamos encontrá-la no escritório de Thanatos.

Shaylin assentiu, franziu as sobrancelhas para Aphrodite e foi embora.

Aphrodite ergueu as mãos.

– Sim, eu sei, eu devia ter sido mais gentil, blá-blá-blá. Mas ela me enerva. Ela me lembra demais uma mini-Kim Kardashian, o que significa que ela é inútil, irritante e visível demais.

Olhei para Stevie Rae, esperando que ela argumentasse com Aphrodite. Mas tudo o que ela fez foi balançar a cabeça e dizer:

– Estou cansada de ficar chutando um maldito cachorro morto.

– Cachorro morto? Isso é tudo o que você tem para dizer? Sério? – Aphrodite protestou.

– Eu não estou falando mais com você – Stevie Rae disse a ela.

– Ótimo. Agora, vamos passar para coisas importantes. Vocês não vão gostar de nenhuma das coisas que eu tenho para contar, mas precisam me ouvir. A menos que vocês queiram ser como a minha mãe.

– Nós estamos escutando – eu assegurei a ela.

Stevie Rae continuou de boca bem fechada, mas assentiu.

– Em primeiro lugar, caipira, você sabe que ficou toda cheia de olhares de adoração para Kalona desde que ele molhou o seu menino-pássaro e o ressuscitou e...

– Ele derramou lágrimas imortais no seu filho e magicamente o trouxe de volta da morte que estava próxima. Afe Maria, você estava lá! Você viu tudo – Stevie Rae exclamou.

– Você não está mais falando comigo, lembra? Mas você acabou de tocar no ponto em que eu queria. Apenas algumas horas atrás, a gente acreditava que Kalona era tão louco e perigoso quanto Neferet. Agora ele é o guerreiro da Morte. A escola toca vai ficar babando em cima dele, do mesmo modo que ficou quando ele emergiu do chão. Nós vamos demonstrar mais bom senso. Ou pelo menos eu vou demonstrar mais bom senso. Seria bom se vocês duas se juntassem a mim.

– Eu nunca vou confiar nele – eu disse em voz baixa as palavras que vieram do fundo do meu coração.

– Z., ele fez seu Juramento a Thanatos – Stevie Rae argumentou.

Encontrei o olhar dela.

– Ele matou Heath. Ele matou Stark. Ele só trouxe Stark de volta porque Nyx o forçou a pagar a dívida de vida que ele tinha por causa de Heath. Stevie Rae, eu estive no Mundo do Além com ele. Kalona perguntou quando Nyx o perdoaria. Ela respondeu que ele só poderia pedir isso quando fosse digno do perdão dela.

– Talvez ele esteja se esforçando para isso agora – ela disse.

– E talvez ele seja um assassino, estuprador, manipulador e mentiroso – Aphrodite contra-atacou. – Se Zoey e eu estivermos erradas, ótimo. Você pode dizer “eu avisei” e todos nós vamos rir e dar uma puta festa. Mas, se nós estivermos certas, não vamos ser pegas desprevenidas quando um imortal caído causar mais violência.

Stevie Rae suspirou.

– Eu sei... eu sei. Faz sentido. Eu não vou confiar cem por cento nele.

– Ótimo. Mas fique ligada no seu menino-pássaro também. Ele confia cem por cento no pai, o que significa que Kalona pode usá-lo. De novo.

A expressão de Stevie Rae se endureceu, mas ela concordou.

– Sim, vou ficar.

– Em segundo lugar – Aphrodite desviou a sua atenção para mim –, explique a merda estranha que passou pela sua cabeça quando você chamou aquele maldito touro de Heath na noite passada.

– O quê? – Stevie Rae deixou escapar. – Isso não é verdade, certo, Z.?

Ok, mentir seria fácil. Eu podia simplesmente dizer que obviamente Aphrodite tinha perdido a cabeça e estava ouvindo coisas. Afinal, uma montanha de coisas loucas havia acontecido ontem, tudo de uma vez. Isso sem falar em todos os elementos se manifestando tão poderosamente que nada mais era totalmente claro, exceto o assassinato da minha mãe por Neferet e o fato de ela ser a Consorte das Trevas.

E eu quase menti.

Então eu me lembrei do que o fato de mentir para os meus amigos tinha me custado antes – não apenas perder a confiança deles por um tempo, mas também havia me custado o meu respeito por mim mesma. Eu não me senti bem quando menti. Eu me senti fora de sincronia com a Deusa e com o caminho que eu acredito que ela quer que eu trilhe.

Então, inspirei profundamente e soltei a verdade em uma explosão de palavras:

– Eu olhei para Aurox através da pedra da vidência e vi Heath e isso me assustou e eu chamei o nome dele e Aurox se virou e olhou para mim antes de começar a se transformar de novo naquela coisa tipo touro e foi por isso que quando ele arremeteu contra mim eu simplesmente fiquei parada ali e disse a ele que ele não ia me machucar. Fim.

– Você ficou completamente louca. Que merda, acho que joguei fora antes da hora o telefone da psicanalista da minha mãe. Você precisa ser avaliada e medicada.

– Bem, eu vou ser mais gentil que Aphrodite, mas isso não faz o menor sentido, Z. Como Heath poderia estar ao redor de Aurox?

– Eu não sei! E ele não estava ao redor de Aurox. Foi como se Heath brilhasse sobre ele. Ou como se Heath fizesse uma sombra com um brilho da cor da pedra da lua sobre Aurox – tive vontade de gritar de frustração por não conseguir descrever o que eu havia vislumbrado.

– Como um fantasma? – Stevie Rae quis saber.

– Isso pode fazer um pouco mais de sentido – Aphrodite observou, concordando com Stevie Rae com a cabeça, como se as duas estivessem decifrando o que aconteceu. – Nós estávamos no meio de um ritual invocando a Morte. Heath está morto. Talvez a gente tenha atraído o fantasma dele.

– Eu não acredito nisso – falei.

– Mas você não tem certeza, certo? – Stevie Rae questionou.

– Não, eu não tenho certeza de nada, exceto que a pedra da vidência é magia antiga, e a magia antiga é forte e imprevisível. Ela nem deveria estar em lugar nenhum além da Ilha de Skye, então eu não sei o que está acontecendo com o fato de eu estar vendo coisas através dela aqui – atirei as mãos para cima. – Talvez eu tenha imaginado tudo. Talvez não. Isso é estranho, até para mim. Eu achei ter visto Heath, e então Aurox se transformou completamente naquela coisa feito touro e fugiu.

– Tudo aconteceu rápido demais – Stevie Rae comentou.

– Da próxima vez que você vir Aurox, tem que olhar para ele através dessa maldita pedra, com certeza – Aphrodite afirmou. – E não fique sozinha com ele.

– Eu não estou planejando isso! Eu nem sei onde ele está.

– Provavelmente, junto com Neferet de novo – Aphrodite respondeu.

Eu devia ter ficado de boca fechada, mas me ouvi dizendo:

– Ele disse que tinha escolhido um caminho diferente.

– É, logo depois de matar Dragon e de quase matar Rephaim – Aphrodite rebateu.

Suspirei.

– O que Stark acha disso? – Aphrodite perguntou. Como eu não falei nada, ela levantou uma sobrancelha loira. – Ah, entendi. Você não contou para ele, certo?

– Certo.

– Bem, eu não posso te censurar por isso, Z. – Stevie Rae falou gentilmente.

– Ele é o guerreiro dela. O seu Guardião – Aphrodite insistiu. – Por mais arrogante e irritante que ele seja, precisa saber que Zoey tem uma queda por Aurox.

– Eu não tenho!

– Ok, não por Aurox, mas por Heath, e você acha que Heath pode ser Aurox – Aphrodite balançou a cabeça. – Você percebe como isso soa como coisa de louco?

– Minha vida é uma coisa de louco – respondi.

– Stark precisa saber que você pode ser vulnerável a Aurox – Aphrodite disse com firmeza.

– Eu não sou vulnerável a ele!

– Diga a ela, caipira.

Stevie Rae não conseguiu olhar nos meus olhos.

– Stevie Rae?

Ela suspirou e finalmente olhou para mim.

– Se você acredita que existe uma chance, nem que seja mínima, de Heath estar rondando Aurox ou o que quer que seja, isso significa que você não vai pensar claramente em relação a ele. Eu sei. Se eu perdesse Rephaim e depois pensasse que o vi ao redor de outro cara, mesmo que isso parecesse loucura, esse cara seria capaz de me atingir. Aqui – ela apontou para o seu coração. – E isso, na maior parte das vezes, comanda aqui – ela apontou para a cabeça.

– Portanto, conte ao Cara do Arco o que você acha que viu – Aphrodite concluiu.

Eu detestava admitir, mas sabia que elas estavam certas.

– Certo. Vai ser péssimo, mas tudo bem. Vou contar para ele.

– E eu vou contar para Darius – Aphrodite avisou.

– Bem, e eu vou contar para Rephaim – Stevie Rae acrescentou.

– Por quê?! – eu queria explodir.

– Porque os guerreiros ao seu redor precisam saber disso – Aphrodite explicou.

– Está bem – respondi rangendo os dentes. – Mas só para eles. Estou cansada de um monte de gente falando sobre mim e meus problemas com os garotos.

– Bem, Z., você realmente arranja problemas com os garotos – Stevie Rae disse com um tom leve, enganchando o braço dela ao meu.

– Nós também precisamos contar isso para Thanatos – Aphrodite disse quando nós três começamos a caminhar em direção à sua sala de aula. – A afinidade dela é com a Morte. Faz sentido que ela entenda de fantasmas e coisas assim.

– Por que a gente não anuncia isso no Tulsa World e faz Neferet escrever uma maldita coluna de perguntas e respostas sobre o assunto? – eu reagi.

– Isso é quase um palavrão. Cuidado. “Maldita” é uma porta de entrada para o mundo dos palavrões. Quando você menos esperar, “foda” vai sair voando da sua boca – Aphrodite me ironizou.

– Foda voando? Isso soa errado – Stevie Rae falou para ela, balançando a cabeça.

Apertei o passo, praticamente arrastando Stevie Rae comigo e fazendo Aphrodite ter que dar uma corridinha para nos acompanhar. Eu não as escutei quando elas começaram a discutir sobre palavrões. Em vez disso, fiquei preocupada.

Eu me preocupei com a nossa escola.

Eu me preocupei com a questão Aurox/Heath.

Eu me preocupei em contar a Stark sobre a questão Aurox/Heath.

E eu me preocupei com a contração no meu estômago e com a possibilidade de a minha síndrome do intestino irritável surgir de repente no meio de tudo. De novo.


8 Shaunee

– Damien, acho que eu devo ficar bem longe do estábulo. Lenobia já teve uma dose bem grande de fogo recentemente – Shaunee olhou para Damien e Erin. Os três haviam se afastado quando Zoey disse para eles se dispersarem, mas, em vez de fazer isso, eles haviam ficado juntos, tentando imaginar onde cada um deles seria mais útil com os seus elementos.

– Você tem razão – Damien concordou. – Faz mais sentido que você vá até a pira de Dragon. Você vai ser útil por lá em breve.

Os ombros de Shaunee desabaram.

– É, eu sei, mas não estou nada ansiosa por isso.

– Simplesmente conecte-se ao seu elemento e vai ser fácil – Erin sugeriu.

Shaunee piscou surpresa para ela, não apenas por ela ter falado – Erin definitivamente estava evitando conversar com ela desde que as duas tinham virado ex-gêmeas –­, mas com o seu tom sem consideração. Ela estava falando sobre queimar o corpo de Dragon como se isso não fosse nada demais, como acender um fósforo.

– Nada em relação ao funeral de Dragon vai ser fácil, Erin. Com ou sem o meu elemento.

– Eu não quis dizer fácil para valer – Erin pareceu irritada. Shaunee pensou que ultimamente Erin sempre parecia irritada. – Só quis dizer que, quando você realmente se conecta ao seu elemento, as outras coisas não incomodam tanto. Mas talvez você não vá tão a fundo no seu elemento.

– Isso é besteira – Shaunee sentiu o calor de uma raiva crescente. – Minha afinidade com o fogo não é nem um pouco menor do que a sua afinidade com a água.

Erin deu de ombros.

– Tanto faz. Eu só estava tentando ajudá-la. De agora em diante, vou deixar de tentar – ela se virou para Damien, que estava olhando de uma para a outra, como se não soubesse se pulava no meio delas ou corria na direção oposta. – Eu vou para o estábulo. Lenobia vai ficar feliz de ver a água, e eu não tenho problemas em usar o meu elemento – sem dizer mais nada, Erin foi embora.

– Ela sempre foi assim? – Shaunee se ouviu perguntando para Damien algo que havia dias rondava a sua mente.

– Você tem que definir “assim”.

– Sem coração.

– Honestamente?

– Sim. Erin sempre foi tão sem coração?

– Isso é realmente muito difícil de responder, Shaunee – Damien falou gentilmente, como se estivesse pensando que precisava ser cuidadoso para que as suas palavras não a magoassem.

– Só me diga a verdade, mesmo se ela for dura – ela insistiu.

– Bem, então, honestamente, até vocês duas se separarem, era praticamente impossível saber como era cada uma individualmente. Nunca conheci nenhuma das duas sem a outra. Uma terminava as frases da outra. Era como se vocês fossem duas metades de um todo.

– Mas nem agora? – Shaunee o estimulou a continuar, quando ele hesitou.

– Não, agora é diferente. Agora vocês são indivíduos com personalidade própria – ele sorriu para ela. – O melhor jeito de colocar isso é que ficou bem óbvio para a maioria de nós que a sua personalidade é a com coração.

Shaunee ficou olhando Erin se afastar.

– Eu já sabia disso antes, e isso me incomodava. Sabe, o jeito com que ela era tão sarcástica, fofoqueira e maldosa. Mas também era tão divertido e legal estar com ela.

– Normalmente, divertido à custa de outras pessoas – Damien comentou. – Legal porque ela excluía os outros para parecer que ela era melhor do que todo o resto.

Shaunee encontrou o olhar dele.

– Eu sei. Agora eu vejo isso. Mas, antes, tudo o que eu conseguia ver era que nós éramos melhores amigas, e eu precisava de uma melhor amiga.

– E agora? – ele perguntou.

– Agora eu preciso conseguir gostar de mim mesma, e eu não posso fazer isso se eu for só a metade de uma pessoa inteira. Eu também estou cansada de sempre ter que dizer algo sarcástico, engraçadinho ou apenas simplesmente detestável – ela balançou a cabeça, sentindo-se triste e madura. – Isso não significa que eu ache Erin ridícula. Na verdade, quero que ela seja tão legal, divertida e incrível quanto eu acreditava que ela era. Só acho que acabei de descobrir que ela tem que ser, ou não ser, essas coisas por ela mesma. Isso não tem nada a ver comigo.

– Você é mais inteligente do que eu pensei que você fosse – Damien admitiu.

– Eu ainda sou péssima na escola.

Ele sorriu.

– Existem outros tipos de inteligência.

– Bom saber disso.

– Ei, não se subestime. Você poderia ser realmente boa na escola se você se esforçasse um pouco.

– Sei que isso parece uma coisa boa para você, mas por mim estou feliz com a parte dos “outros tipos de inteligência” – Shaunee falou, fazendo Damien rir. Depois acrescentou: – Eu vou até a pira. Talvez, se eu estiver por lá, possa ajudar.

– Ajudar os guerreiros ou a você mesma?

– Talvez ambos. Eu não sei – Shaunee respondeu com um suspiro.

– Vou acreditar que vai ajudar ambos – ele afirmou. – Vou andar por aí, como o ar. Vou tentar soprar para longe o resto de Trevas que ainda está impregnado neste lugar.

– Você também sente isso?

Ele assentiu.

– Posso sentir que a energia por aqui é ruim. Muita coisa negativa aconteceu em um período curto demais – Damien inclinou a cabeça, analisando Shaunee. – Agora que pensei mais nisso, não acho que você deve ficar longe do estábulo. O fogo não é mau. Você não é má. Lenobia sabe disso. Lembra como você fez os cascos dos cavalos se aquecerem para que a gente conseguisse cavalgar no meio daquela tempestade de gelo?

– Lembro – Shaunee respondeu, e aquela lembrança fez com que ela se sentisse mais leve.

– Então vá até a pira, ajude lá, mas vá até o estábulo também. Lembre a todos que o fogo pode fazer muito mais do que destruir. A forma como ele é manejado é o que importa.

– Imagino que você quer dizer algo como “o que importa é como o fogo é usado”?

Damien abriu o sorriso.

– Viu só, eu disse que você poderia ser boa na escola. “Manejar” é uma excelente palavra para o seu vocabulário: controlar ou dominar uma arte, uma disciplina etc.

– Você está fazendo a minha cabeça doer – Shaunee falou e ambos riram.

– Então, vou encontrar com você no estábulo mais tarde?

– Sim, vai.

Damien começou a se afastar, mas voltou e deu um abraço rápido e apertado em Shaunee.

– Estou feliz porque você se tornou uma pessoa própria. E se você precisar de um amigo, eu estou aqui – ele falou, e então saiu apressado em direção ao estábulo.

Shaunee piscou com força para segurar as lágrimas, observando o cabelo castanho e macio de Damien balançando na sua brisa própria.

– Fogo – ela sussurrou –, mande uma pequena faísca para Damien. Ele merece encontrar um cara gostoso que o faça feliz, principalmente porque ele sempre se esforça tanto para fazer os outros felizes.

Sentindo-se melhor do que estava se sentindo havia semanas, Shaunee começou a andar em outra direção. Os seus passos eram mais vagarosos, mais calculados do que os de Damien, mas ela não estava mais com medo de para onde estava indo. Ela também não estava ansiosa para a pira e para o fogo – ela não era Erin. Ela só não podia apagar a tristeza e a dor congelando os seus sentimentos. E sabe de uma coisa? Eu não ia querer ser fria e congelada por dentro, mesmo que isso significasse que eu não fosse me ferir tanto, ela decidiu em silêncio.

Shaunee estava se centrando e extraindo força do calor constante do seu elemento. Obrigada, Nyx. Eu vou tentar manejá-lo bem, era o que ela estava pensando quando a voz do imortal penetrou na sua mente.

– Eu ainda não te agradeci.

Shaunee levantou os olhos e viu Kalona em pé diante da grande estátua de Nyx que ficava na frente do seu templo. Ele estava usando uma calça jeans e um colete de couro muito parecido com o que Dragon costumava usar. Só que esse colete era maior e tinha fendas através das quais as asas negras de Kalona emergiam e então se dobravam sobre suas costas. Esse colete também não ostentava a insígnia da Deusa, mas era difícil pensar nisso com ele a encarando com aqueles olhos âmbar do outro mundo.

Ele é mesmo absolutamente, inumanamente maravilhoso. Shaunee afastou o pensamento da sua mente e em vez disso se concentrou no que ele havia dito.

– Agradecer a mim? Pelo quê?

– Por me emprestar o seu celular. Sem ele, Stevie Rae não teria conseguido me ligar. Se não fosse por você, Rephaim poderia estar morto.

O rosto de Shaunee ficou quente. Ela encolheu os ombros, sem saber por que de repente se sentia tão nervosa.

– Você foi o cara que veio quando ela ligou. Você simplesmente podia não ter atendido e continuaria sendo um pai de merda – Shaunee falou sem pensar e só depois percebeu o que tinha dito. Então ela fechou a boca e disse a si mesma: fique quieta!

Houve um silêncio longo e desconfortável, até que Kalona afirmou:

– O que você disse é verdade. Eu não tenho sido um bom pai para os meus filhos. Eu ainda não estou sendo um bom pai para todos os meus filhos.

Shaunee olhou para ele, imaginando o que ele queria dizer exatamente. A voz dele tinha soado estranha. Ela esperava que ele parecesse triste, sério ou até irritado. Em vez disso, pareceu surpreso e um pouco embaraçado, como se aqueles pensamentos tivessem acabado de ocorrer para ele. Ela queria poder ver a sua expressão, mas o rosto dele estava virado para o outro lado. Ele estava olhando para a estátua de Nyx.

– Bem – ela começou, sem saber muito bem o que dizer. – Você está melhorando o seu relacionamento com Rephaim. Talvez não seja tarde demais para consertar o seu relacionamento com os seus outros filhos também. Eu sei que, se o meu pai aparecesse e quisesse algo comigo, eu iria permitir. Pelo menos, eu daria uma chance a ele – o imortal virou a cabeça e ela o encarou. Shaunee se sentiu trêmula, como se aqueles olhos âmbar pudessem enxergar muito dela. – O que eu quero dizer é que acho que nunca é tarde demais para fazer a coisa certa.

– Você acredita mesmo nisso, honestamente?

– Sim. Ultimamente, acredito cada vez mais – Shaunee preferia que Kalona parasse de olhar para ela. – Então, quantos filhos você tem?

Ele deu de ombros. Suas asas enormes se levantaram um pouco e depois de acomodaram novamente.

– Perdi a conta.

– Parece que saber quantos filhos você tem é um bom jeito de começar aquela coisa toda de “quero ser um bom pai”.

– Saber algo e agir em relação a isso são coisas bem diferentes – ele falou.

– Sim, totalmente. Mas eu disse que é um bom meio de começar – Shaunee desviou o rosto na direção da estátua de Nyx. – Há outro bom ponto de partida.

– A estátua da Deusa?

Ela franziu a testa para ele, sentindo-se um pouco mais confortável sob o seu olhar.

– Não é só ficar perto da estátua dela. Tente pedir...

– O perdão dela não é concedido a todos nós! – a voz dele soou como um trovão.

Shaunee começou a tremer, mas ela desviou os olhos para a estátua de Nyx. Ela quase podia jurar que os seus belos lábios carnudos de mármore se curvaram em um sorriso bondoso para ela. Fosse ou não imaginação dela, aquilo deu a Shaunee o impulso de coragem que ela precisava, e a novata continuou apressadamente:

– Eu não ia dizer perdão. Eu ia dizer ajuda. Tente pedir a ajuda de Nyx.

– Nyx não iria me ouvir – Kalona falou tão baixo que Shaunee quase não o escutou. – Ela não me ouve há éons.

– Durante esses éons, quantas vezes você pediu ajuda a ela?

– Nenhuma – ele respondeu.

– Então como você sabe que ela não o está ouvindo?

Kalona balançou a cabeça.

– Você foi enviada a mim para ser a minha consciência?

Foi a vez de Shaunee balançar a cabeça em negação.

– Eu não fui enviada a você, e a Deusa sabe que eu já tenho problemas suficientes para lidar com a minha própria consciência. Tenho certeza absoluta de que não posso ser a consciência de ninguém mais.

– Eu não teria tanta certeza, novata jovem e ardente... Eu não teria tanta certeza – ele refletiu em voz alta. Então, abruptamente, Kalona se afastou dela, deu alguns passos largos e rápidos e se lançou no céu da noite.

Rephaim

Ele não se importava muito com o fato de que a maioria dos outros garotos ainda o evitava. Damien era legal, mas ele era legal com praticamente todo mundo, então Rephaim não tinha certeza se a gentileza do garoto tinha alguma coisa a ver com ele. Pelo menos Stark e Darius não estavam tentando matá-lo nem afastá-lo de Stevie Rae. Recentemente, Darius até parecia um pouco mais amigável. O guerreiro Filho de Erebus o tinha amparado quando ele tropeçou dentro do ônibus na noite anterior, ainda fraco depois de ser curado magicamente de um ferimento mortal.

Meu Pai me salvou e depois fez juramento comprometendo-se a ser guerreiro da Morte. Ele realmente me ama, e está escolhendo o lado da Luz em vez das Trevas. Pensar nisso fez Rephaim sorrir, apesar de o ex-Raven Mocker não ser tão ingênuo e crédulo quanto Stevie Rae e os outros pensavam. Rephaim queria que o seu pai continuasse no caminho de Nyx – queria isso muito mesmo. Mas ele, mais do que ninguém (exceto a própria Deusa), conhecia o ódio e a violência em que o imortal caído havia chafurdado por séculos.

O fato de Rephaim existir era prova da capacidade do seu pai de causar imensa dor nos outros.

Os ombros de Rephaim desabaram. Ele havia chegado à parte dos jardins da escola onde ficava o carvalho destruído – metade dele apoiada no muro, metade no chão. O centro da árvore velha e grossa parecia que tinha sido atingido por um raio atirado por um deus furioso.

Mas Rephaim sabia que não era isso.

O seu pai era um imortal, mas ele não era um deus. Kalona era um guerreiro, e um guerreiro caído.

Sentindo-se estranhamente perturbado, Rephaim passou os olhos pela ferida profunda que era aquela destruição no meio da árvore. Ele se sentou em um dos galhos caídos bem em frente à copa quebrada da árvore, analisando o tronco grosso que estava encostado no muro leste da escola.

– Isso precisa ser consertado – Rephaim falou em voz alta, preenchendo o silêncio da noite com a humanidade da sua própria voz. – Stevie Rae e eu podemos trabalhar nisso juntos. Talvez a árvore não esteja completamente perdida – ele sorriu. – A minha Vermelha me curou. Por que ela não poderia curar uma árvore?

A árvore não respondeu, mas enquanto Rephaim falava ele teve uma estranha sensação de déjà vu . Como se ele tivesse estado ali antes, não apenas em outro dia normal de escola. Ele sentiu uma sensação de ter estado ali com o vento sob suas asas e o azul brilhante do céu à luz do dia.

Rephaim enrugou a testa e esfregou a mão nela, sentindo o começo de uma dor de cabeça. Será que ele tinha vindo até ali durante o dia, enquanto ele era um corvo, quando a sua humanidade estava escondida tão profundamente dentro dele que aquelas horas passava como um borrão nebuloso e indistinto de sons, cheiros e visão?

A única resposta que veio até Rephaim foi aquela pulsação surda em suas têmporas.

O vento batia ao redor dele, farfalhando através dos galhos caídos, fazendo sussurrar as poucas folhas marrons do inverno que ainda estavam presas ao velho carvalho. Por um momento, pareceu que a árvore estava tentando falar com ele, tentando contar os seus segredos.

Rephaim desviou o olhar de volta para o centro da árvore. Sombras. Casca de árvore partida. Tronco despedaçado. Raiz exposta. E parecia que o chão perto do centro da árvore já havia começado a sofrer uma erosão, quase como se houvesse um buraco se formando abaixo dela.

Rephaim estremeceu. Já houve um buraco abaixo da árvore. Um buraco que havia aprisionado Kalona dentro da terra por séculos. A lembrança desses séculos e da terrível existência meio irreal e repleta de ódio, violência e solidão que ele havia vivido durante esse tempo ainda era parte do fardo pesado que Rephaim carregava.

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

A brisa farfalhou de novo. Aquele som era reconfortante, como se o sussurro ancestral da árvore pudesse ser a voz da Deusa.

– Vou entender isso como um sinal – Rephaim falou em voz alta para a árvore, pressionando a palma da sua mão contra o tronco ao lado dele. – Vou pedir a Stevie Rae para me ajudar a consertar a violência que te despedaçou. Logo. Dou minha palavra. Vou voltar logo.

Quando Rephaim se afastou para continuar a sua ronda pelo perímetro da escola, ele pensou ter ouvido um movimento bem embaixo da árvore e imaginou que fosse o velho carvalho o agradecendo.

Aurox

Aurox estava andando agitado de um lado para o outro, cobrindo com três passos aquele pequeno espaço vazio abaixo do carvalho despedaçado. Então ele se virou e deu três passos curtos de volta para o outro lado. Ele continuou para lá e para cá, para lá e para cá. Pensando... pensando... pensando... e desejando desesperadamente ter um plano.

A sua cabeça doía. Ele não havia quebrado o crânio quando caiu no buraco, mas o machucado na sua cabeça tinha sangrado e inchado. Ele estava com fome e com sede. Ele achava difícil descansar dentro da terra, apesar de o seu corpo estar exausto e de ele precisar dormir para poder se curar.

Por que ele tinha achado uma boa ideia voltar para esta escola e se esconder nos jardins onde viviam o professor que ele havia matado e o garoto que ele tinha tentado matar?

Aurox segurou sua cabeça com as mãos. Não fui eu! Ele queria gritar aquelas palavras. Eu não matei Dragon Lankford. Eu não ataquei Rephaim. Eu fiz uma escolha diferente! Mas a escolha dele não tinha importado. Ele havia se transformado em uma besta. E a besta espalhara um rastro de morte e destruição.

Havia sido tolice da parte dele ir até a escola. Tolice acreditar que ele poderia se encontrar ali ou fazer algum bem. Bem? Se alguém soubesse que ele estava se escondendo na escola, seria atacado, aprisionado e possivelmente morto. Apesar de ele não estar ali para ferir ninguém, isso não importaria. Ele iria absorver o ódio daqueles que o descobrissem e a besta emergiria. Ele não seria capaz de controlá-la. Os guerreiros Filhos de Erebus iriam cercá-lo e colocar um fim na sua existência miserável.

Eu já controlei a besta antes. Eu não ataquei Zoey. Mas será que ele teria a oportunidade de tentar explicar que não queria causar nenhum dano? Ou mesmo de ter um momento para testar o seu autocontrole e provar que ele era mais do que a besta dentro dele? Aurox recomeçou a andar de um lado para o outro. Não, a intenção dele não iria importar para ninguém na Morada da Noite. Tudo o que eles iriam ver era a besta.

Inclusive Zoey? Será que até mesmo ela ficaria contra ele?

“Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.” A voz de Vovó Redbird acalmou os seus pensamentos turbulentos. Zoey o havia protegido. Ela tinha acreditado que ele conseguia controlar a besta o suficiente para não machucá-la. A avó dela oferecera abrigo a ele. Podia ser que Zoey não o quisesse morto.

Mas os outros queriam.

Aurox não os censurava por isso. Ele merecia a morte. Apesar de ele ter recentemente começado a sentir e a desejar ter uma vida diferente, e fazer escolhas diferentes, isso não mudava o passado. Ele havia cometido atos violentos e desprezíveis. Ele tinha feito tudo o que a Sacerdotisa ordenara.

Neferet...

O nome dela, mesmo como uma palavra não pronunciada em sua mente, causou um arrepio pelo seu corpo agitado.

A besta dentro dele queria ir até a Sacerdotisa. A besta dentro dele precisava servi-la.

– Eu sou mais do que uma besta – a terra em volta dele absorveu suas palavras, abafando a humanidade de Aurox. Em desespero, ele agarrou uma raiz retorcida e começou a puxá-la para tentar subir e sair daquele buraco de terra.

– Isso precisa ser consertado – aquelas palavras chegaram até Aurox lá embaixo.

O corpo dele congelou. Ele reconheceu a voz: Rephaim. Vovó havia falado a verdade. O garoto sobrevivera.

O fardo invisível de Aurox ficou um pouco mais leve.

Aquela morte não precisava pesar na sua consciência.

Aurox se agachou, esforçando-se em silêncio para escutar com quem Rephaim estava falando. Ele não sentiu raiva nem violência. Certamente, se Rephaim tivesse a menor ideia de que Aurox estava escondido tão perto, o garoto seria tomado por sentimentos de vingança, não seria?

O tempo parecia passar devagar. O vento ficou mais forte. Aurox podia ouvi-lo chicoteando as folhas secas da árvore partida acima dele. Ele captou palavras que flutuaram com o ar frio: trabalhar... árvore... Vermelha me curou... Tudo na voz de Rephaim, sem nenhuma maldade, como se ele estivesse apenas refletindo em voz alta. E então a brisa levou até ele a prece do garoto:

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

Aurox mal respirava.

Rephaim estava pedindo ajuda da sua Deusa para perdoar a si mesmo? Por quê?

Aurox esfregou a testa latejante e se esforçou para pensar. A Sacerdotisa raramente tinha falado com ele, exceto para ordenar que ele cometesse um ato de violência. Mas ela havia falado quando ele estava por perto, como se Aurox não tivesse a capacidade de ouvi-la ou de formular pensamentos por si mesmo. O que ele sabia sobre Rephaim? Ele era o filho do imortal Kalona. Ele era amaldiçoado a ser um garoto de noite e um corvo de dia.

Amaldiçoado?

Ele havia acabado de escutar Rephaim rezando, e na sua prece ele havia agradecido o perdão de Nyx. Certamente, uma Deusa não iria amaldiçoar e perdoar ao mesmo tempo.

Então, com um princípio de surpresa, Aurox se lembrou do corvo que tinha grasnado para ele e feito tanto barulho que havia provocado a sua queda naquele buraco.

Será que aquele corvo podia ser Rephaim? O corpo de Aurox se tensionou quando ele se preparou para o confronto aparentemente inevitável que estava por vir.

– Dou minha palavra. Vou voltar logo – a voz de Rephaim chegou novamente até Aurox. O garoto estava indo embora, ainda que temporariamente. Aurox relaxou contra a parede de terra. O corpo dele doía e a sua mente zunia.

Era óbvio que ele não podia ficar naquele buraco, mas só isso era óbvio para Aurox.

Será que a Deusa de Rephaim, aquela que o havia perdoado, também o havia guiado até o buraco onde estava Aurox? Se fosse isso, era para mostrar a Aurox redenção ou vingança?

Será que ele devia se entregar, talvez para Zoey, e sofrer as consequências que fossem necessárias?

E se a besta emergisse de novo, e dessa vez ele não conseguisse controlá-la?

Será que ele deveria fugir?

Ou deveria procurar a Sacerdotisa e exigir respostas?

– Eu não sei nada – ele murmurou para si mesmo. – Eu não sei nada.

Com o peso da sua confusão e de toda a sua ânsia, Aurox abaixou a cabeça. Em silêncio e cheio de hesitação, ele imitou Rephaim e fez sua própria prece. Uma prece simples e sincera. E aquela foi a primeira vez na vida em que Aurox rezou.

Nyx, se você é mesmo uma Deusa misericordiosa, por favor, me ajude... Por favor...


C O N T I N U A

O sono de Lenobia estava tão agitado que aquele sonho familiar adquiriu uma sensação de realidade que ultrapassou o reino etéreo das fantasias do subconsciente. E se tornou, desde o começo, dolorosamente real demais.
Começou com uma lembrança. Décadas e então séculos vagaram à deriva, deixando Lenobia jovem e ingênua de novo, no porão de carga do navio que a havia levado da França para a América – de um mundo a outro. Foi durante essa viagem que Lenobia conheceu Martin, o homem que deveria ter sido seu Consorte pela sua vida inteira. Mas, em vez disso, ele morrera jovem demais e havia levado o amor dela para o túmulo junto com ele.
No seu sonho, Lenobia podia sentir a leve ondulação do navio e o cheiro de cavalo, feno, peixe e mar – e Martin. Sempre Martin. Ele estava em pé na sua frente, olhando fixamente para ela com olhos ansiosos cor de azeitona e âmbar. Ela havia acabado de dizer a ele que o amava.
– É impossível – Martin estendeu o braço, pegou a mão dela e a levantou com delicadeza, fazendo a memória se repetir em sonho na sua mente. Ele levantou o próprio braço, alinhando-o lado a lado com o braço dela. – Você vê a diferença, não vê?
A Lenobia do sonho deu uma pequena exclamação de dor sem palavras. O som da voz dele! Aquele sotaque crioulo característico – profundo, sensual, único. A lembrança do som agridoce da sua voz e do seu belo sotaque havia mantido Lenobia longe de Nova Orleans por mais de duzentos anos.
– Não – a jovem Lenobia respondeu à pergunta dele depois de olhar para os braços encostados dos dois, um marrom e um branco. – Tudo o que eu vejo é você.
Ainda profundamente adormecida, Lenobia, a Mestra dos Cavalos da Morada da Noite de Tulsa, se remexeu agitada, como se o seu corpo estivesse tentando forçar a sua mente a despertar. Mas nesta noite a sua mente não obedeceu. Nesta noite os sonhos prevaleceram.
A sequência de memórias se alterou e se transformou em outra cena, ainda no porão de carga do mesmo navio, ainda com Martin, mas alguns dias depois. Ele estava entregando para ela um colar longo de couro amarrado a uma pequena bolsa tingida de um profundo azul safira. Martin colocou-o no pescoço dela, dizendo:
– Este gris-gris a protege, chérie .
Tão rápida quanto uma batida de coração, a memória se ondulou e o tempo foi adiantado para um século à frente. Uma Lenobia mais velha, mais sábia e menos ingênua estava segurando entre suas mãos a bolsa de couro envelhecida, que havia se partido e cujo conteúdo estava caindo para fora – treze coisas, justamente como Martin tinha dito para ela. Mas a maioria dessas coisas havia se tornado irreconhecível durante o século em que ela usara o talismã. Lenobia se lembrou de um cheiro fraco de zimbro, do toque macio do barro granulado antes de ele se transformar em pó e da pequena pena de pomba que se desintegrou entre seus dedos. Mas, acima de tudo, Lenobia se lembrava da onda de alegria fugaz que ela sentira quando, no meio dos restos em decomposição do amor e da proteção de Martin, ela descobriu algo que o tempo não havia sido capaz de destruir. Era um anel de ouro, com uma esmeralda em forma de coração rodeada por minúsculos diamantes.
– O coração de sua mãe... o seu coração... o meu coração – Lenobia sussurrou enquanto deslizava a peça pelo seu dedo anular. – Eu ainda sinto a sua falta, Martin. Eu nunca o esqueci. Eu prometi isso.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/1b_ESCONDIDA.jpg

 


E então as memórias do sonho voltaram no tempo novamente, levando Lenobia para Martin outra vez, só que desta vez eles não estavam se encontrando no porão de carga de um navio no mar e se apaixonando. Essa memória era sombria e terrível. Mesmo sonhando, Lenobia sabia o lugar e a data: Nova Orleans, 21 de março de 1788, pouco tempo depois do pôr do sol.

Os estábulos haviam explodido em um incêndio e Martin a salvara, carregando-a para longe das chamas.

– Oh, não! Martin! Não! – Lenobia havia gritado para ele, e agora ela choramingava, lutando para despertar antes que ela tivesse que reviver o fim terrível da sua lembrança.

Ela não acordou. Em vez disso, ela ouviu o seu único amor repetir as palavras que haviam partido o seu coração dois séculos atrás, sentindo tudo novamente como se fosse uma ferida fresca e em carne viva.

– Tarde demais, chérie. É tarde demais para nós neste mundo. Mas eu vou vê-la de novo. Meu amor por você não acaba aqui. Meu amor por você não vai acabar nunca... Vou encontrá-la de novo, chérie. Isso eu prometo.

Quando Martin capturou o humano do mal que havia tentado escravizá-la, e então voltou com ele para a estrebaria em chamas, salvando a vida de Lenobia, a Mestra dos Cavalos finalmente conseguiu acordar com um choro soluçante e violento. Ela se sentou na cama e, com a mão trêmula, tirou o cabelo ensopado de suor do seu rosto.

O primeiro pensamento de Lenobia ao despertar foi em sua égua. Através da conexão psíquica que elas tinham, ela podia sentir que Mujaji estava agitada, quase em pânico.

– Shhhh, minha bonitona. Volte a dormir. Eu estou bem – Lenobia falou em voz alta, enviando pensamentos tranquilizantes para a égua negra com a qual ela tinha um vínculo especial. Sentindo-se culpada por ter deixado Mujaji perturbada, ela abaixou a cabeça e começou a girar carinhosamente o anel de esmeralda em volta do seu dedo.

– Pare de ser tão tola – Lenobia disse a si mesma com firmeza. – Foi só um sonho. Eu estou em segurança. Não estou lá de novo. O que aconteceu naquela ocasião não pode me machucar mais do que já machucou – Lenobia mentiu para si mesma. Eu posso me ferir de novo. Se Martin voltou, se ele realmente voltou, meu coração pode se ferir novamente. Outro soluço tentou escapar de Lenobia, mas ela pressionou seus lábios e controlou suas emoções à força.

Ele pode não ser Martin, ela disse a si mesma racionalmente. Travis Foster, o novo humano contratado por Neferet para auxiliá-la nos estábulos, era simplesmente uma bela distração – ele e sua grande e bonita égua Percherão.

– Provavelmente, era exatamente isso o que Neferet pretendia quando o contratou – Lenobia resmungou. – Ela só queria me distrair. E a Percherão dele é só uma estranha coincidência – Lenobia fechou os olhos e bloqueou as lembranças que se levantavam do passado. Então ela repetiu em voz alta: – Travis pode não ser Martin reencarnado. Eu sei que a minha reação a ele é surpreendentemente forte, mas já faz muito tempo desde que eu tive um amante.

Você nunca mais teve um amante humano. Você prometeu isso – sua consciência a lembrou.

– Então simplesmente já passou da hora de eu ter um amante vampiro, mesmo se for por pouco tempo. E esse tipo de distração vai ser uma coisa boa para mim – Lenobia tentou ocupar sua imaginação considerando e depois rejeitando uma lista de guerreiros Filhos de Erebus bonitões, mas os olhos de sua mente não estavam vendo seus corpos fortes e musculosos, e sim imaginando olhos castanhos cor de uísque tingidos de um verde-oliva familiar e um sorriso fácil... – Não! – ela não iria pensar nisso. Ela não iria pensar nele.

Mas e se a alma de Martin realmente estiver em Travis? A mente inquieta de Lenobia sussurrou sedutoramente. Ele deu sua palavra de que me encontraria de novo. Talvez ele tenha conseguido.

– E então? – Lenobia se levantou e começou a andar de um lado para outro. – Eu conheço bem demais a fragilidade dos humanos. Eles são tão facilmente mortos, e hoje em dia o mundo é ainda mais perigoso do que era em 1788. O meu amor terminou em sofrimento e chamas uma vez. E uma vez já é o bastante – Lenobia parou e colocou seu rosto entre as mãos quando seu coração percebeu a verdade e bombeou-a através de seu corpo e de sua alma, tornando-se realidade. – Eu sou uma covarde. Se Travis não é Martin, eu não quero me entregar a ele e correr o risco de amar outro humano. E se ele é Martin que voltou para mim, eu não posso suportar o inevitável, pois vou perdê-lo de novo.

Lenobia sentou-se pesadamente na velha cadeira de balanço que ela havia colocado ao lado da janela do seu quarto. Ela gostava de ler ali. Se não conseguisse dormir, sua janela era voltada para o leste, de modo que ela podia assistir ao nascer do sol e olhar para os jardins ao lado do estábulo. Lenobia não conseguia deixar de apreciar a luz da manhã, por mais irônico que isso fosse para uma vampira. No fundo do seu coração, vampira ou não, ela seria eternamente uma garota que amava as manhãs, os cavalos e um humano alto, com a pele cor de cappuccino, que havia morrido muito tempo atrás quando ele ainda era jovem demais.

Seus ombros desabaram. Ela não costumava pensar tanto em Martin havia décadas. A memória reavivada dele era uma espada de dois gumes. Por um lado, ela amava se lembrar do seu sorriso, do seu cheiro, do seu toque. Por outro lado, a sua lembrança também evocava o vazio que a sua ausência tinha deixado. Por mais de duzentos anos, Lenobia havia sofrido por uma possibilidade perdida – uma vida desperdiçada.

– O nosso futuro foi queimado e arrancado de nós. Destruído pelas chamas do ódio, da obsessão e do mal – Lenobia balançou a cabeça e enxugou os olhos. Ela precisava recuperar o controle sobre as suas emoções. O mal ainda estava queimando e abrindo terreno no campo da Luz e do bem. Ela inspirou o ar profundamente para se centrar e voltou seus pensamentos para um assunto que nunca falhou em acalmá-la, não importando o quão caótico o mundo ao redor dela tivesse se tornado: cavalos e Mujaji, em particular. Sentindo-se mais calma agora, Lenobia se concentrou de novo, atingindo aquela parte superespecial do seu espírito que Nyx tocara ­– e que recebera o dom da sua afinidade com cavalos – no dia em que a Lenobia de dezesseis anos havia sido Marcada. Ela encontrou sua égua facilmente e, no mesmo instante, sentiu-se culpada pela sua agitação refletida em Mujaji.

– Shhh – Lenobia a tranquilizou novamente, repetindo em voz alta a sensação de segurança que ela estava enviando através do seu elo com a égua. – Eu só estou sendo tola e autoindulgente. Isso vai passar, eu prometo, minha querida – Lenobia projetou uma maré de ternura e amor sobre sua égua da cor da noite e, como sempre, Mujaji recuperou a calma.

Lenobia fechou os olhos e soltou um longo suspiro. Ela podia visua­lizar sua égua, negra e bela como a noite, finalmente se tranquilizando, levantando uma pata traseira e caindo num sono sem sonhos.

A Mestra dos Cavalos se concentrou na sua égua, afastando o turbilhão que a chegada do jovem cowboy ao seu estábulo havia causado dentro dela. Amanhã, ela prometeu para si mesma, amanhã eu vou deixar claro para Travis que nós nunca vamos ser mais do que patroa e empregado. A cor dos seus olhos e o jeito com que ele me faz sentir, tudo isso vai começar a acalmar quando eu me distanciar dele... Isso tem que... tem que...

Finalmente, Lenobia adormeceu.

Neferet

Shadowfax atendeu prontamente ao chamado de Neferet, apesar de o felino não ser ligado a ela. Felizmente, as aulas já haviam terminado por esta noite, portanto, quando o grande Maine Coon a encontrou no meio do ginásio, o lugar estava com as luzes parcialmente apagadas e totalmente vazio – não havia nenhum estudante por perto; o próprio Dragon Lankford também estava ausente, mas provavelmente por pouco tempo. Ela tinha visto apenas alguns novatos vermelhos no caminho até ali. Neferet sorriu, satisfeita por pensar em como ela havia colocado os vermelhos do mal na Morada da Noite. Quantas possibilidades adoráveis e caóticas eles apresentaram – especialmente depois de ela ter certeza de que o círculo de Zoey seria quebrado e que a melhor amiga dela, Stevie Rae, ficaria arrasada, sofrendo com a perda do seu amante.

A constatação de que ela iria assegurar dor e sofrimento futuros para Zoey agradou infinitamente Neferet, mas ela era disciplinada demais para se permitir começar a tripudiar antes que o feitiço de sacrifício estivesse terminado e os seus comandos fossem postos em andamento. Apesar de a escola estar surpreendentemente quieta esta noite, quase abandonada, na verdade qualquer um podia aparecer no ginásio. Neferet precisava trabalhar rapidamente e em silêncio. Haveria tempo de sobra para se regozijar com os frutos do seu trabalho mais tarde.

Ela falou suavemente com o gato, atraindo-o para mais perto dela, e quando ele estava próximo o bastante ela se ajoelhou ao seu nível. Neferet pensou que ele desconfiaria dela – os gatos sabem das coisas. Eles eram muito mais difíceis de enganar do que humanos, novatos ou até mesmo vampiros. O próprio gato de Neferet, Skylar, havia se recusado a se mudar para a nova cobertura dela no edifício Mayo, preferindo ficar espreitando nas sombras da Morada da Noite, observando-a deliberadamente com seus grandes olhos verdes.

Mas Shadowfax não era tão precavido.

Neferet acenou. Shadowfax veio até ela, encurtando vagarosamente o último espaço que os separava. O grande gato não foi amigável – ele não se esfregou contra ela, marcando-a afetivamente com o seu cheiro –, mas veio até ela. A sua obediência era tudo o que importava para Neferet. Ela não queria o amor dele; ela queria a sua vida.

A Tsi Sgili, Consorte imortal das Trevas e ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, sentiu apenas uma vaga e remota sombra de remorso quando a sua mão esquerda acariciou o grande Maine Coon cinza tigrado. O seu pelo era macio e grosso sobre o seu corpo ágil e atlético. Como Dragon Lankford, o guerreiro que o gato havia escolhido como seu, Shadowfax era poderoso e estava em pleno vigor. Era uma pena que ele fosse necessário para atender a um propósito maior. Um propósito superior.

O remorso de Neferet não equivalia a hesitação. Ela usou o seu dom concedido pela Deusa – a afinidade com felinos – e canalizou afeto e confiança através da palma da sua mão para o gato já confiante. Enquanto sua mão esquerda o acariciava, encorajando-o a se arquear e começar a ronronar, a sua mão direita sorrateiramente puxou o seu afiado athame 1 , com o qual ela rapidamente, de modo preciso, cortou o pescoço de Shadowfax.

O grande gato não emitiu nenhum som. O seu corpo deu um espasmo, tentando se lançar para longe de Neferet, mas a mão dela agarrou o pelo do animal, segurando-o tão perto que o seu sangue respingou, quente e úmido, sobre o corpete do seu vestido de veludo verde.

Os filamentos de Trevas que estavam sempre em volta de Neferet pulsaram e estremeceram na expectativa.

Neferet os ignorou.

O gato morreu mais rápido do que ela imaginara, e Neferet ficou feliz por isso. Ela não tinha imaginado que ele fosse encará-la, mas o gato guerreiro sustentou o olhar dela mesmo depois de desabar no chão arenoso do ginásio, quando ele já não podia mais combatê-la, mas ainda assim ficou deitado respirando com dificuldade, contorcendo-se em silêncio e encarando-a.

Trabalhando rapidamente, enquanto o gato ainda estava vivo, Neferet começou o feitiço. Usando a lâmina do seu athame ritual, Neferet desenhou um círculo em volta do corpo moribundo de Shadowfax, de modo que o sangue que se empoçava em volta dele escorria para dentro do círculo, e um fosso escarlate em miniatura se formou.

Então ela pressionou uma palma da mão dentro do sangue fresco e quente, levantou-se do lado de fora do círculo, ergueu as duas mãos – uma ensanguentada, a outra segurando a faca com a ponta escarlate – e entoou:

“Com este sacrifício eu comando

as Trevas controladas pela minha mão.

Aurox, obedeça-me!

A morte de Rephaim acontecerá”.

Neferet fez uma pausa, permitindo que os filamentos pegajosos, negros e frios se esfregassem contra ela e se agrupassem em toda a volta do círculo. Ela sentiu a sua ânsia, a sua necessidade, o seu desejo, o seu perigo. Mas, acima de tudo, ela sentiu o seu poder.

Para completar o feitiço, ela mergulhou o athame dentro do sangue e escreveu diretamente na areia com ele, fechando o encantamento:

“Através do pagamento de sangue, dor e batalha,

Eu forço o Receptáculo a ser minha arma!”.

Concentrando-se na imagem de Aurox em sua mente, Neferet entrou no círculo e cravou o punhal no corpo de Shadowfax, espetando-o no chão do ginásio enquanto ela soltava as gavinhas de Trevas para que elas pudessem consumir o seu banquete de sangue e dor.

Quando o gato estava completamente drenado e morto, Neferet disse:

– O sacrifício está concluído. O feitiço foi feito. Façam como eu ordeno. Forcem Aurox a matar Rephaim. Façam Stevie Rae a quebrar o círculo. Façam com que o feitiço de revelação falhe. Agora!

Como um ninho agitado de cobras, os filamentos subordinados às Trevas serpentearam para dentro da noite, afastando-se do ginásio e indo em direção a um campo de lavandas e ao ritual que já estava em andamento.

Neferet olhou-os atentamente, sorrindo de satisfação. Um filamento de Trevas em particular, grosso como o seu braço, chicoteou através da porta que se abria do ginásio para o estábulo. A atenção de Neferet foi atraída naquela direção pelo som abafado de vidro quebrado.

Curiosa, a Tsi Sgili deslizou até lá. Tomando cuidado para não fazer barulho e disfarçando-se nas sombras, Neferet espiou o estábulo. Os seus olhos esmeralda se arregalaram com uma agradável surpresa. O filamento grosso de Trevas havia sido desajeitado. Ele havia derrubado um dos lam piões a gás que ficavam pendurados não muito longe das pilhas de feno de ótima qualidade que Lenobia era sempre tão meticulosa em escolher para as suas criaturas. Neferet assistiu, fascinada, quando o primeiro ramo de feno pegou fogo, crepitou e então, com uma renovada onda amarela e um poderoso som de whoosh, incendiou-se completamente.

Neferet olhou para a longa fileira de baias de madeira fechadas. Ela só conseguia ver os contornos escuros e indistintos de alguns dos cavalos. A maioria estava dormindo. Alguns estavam pastando preguiçosamente, já acomodados para o amanhecer que se aproximava e para o descanso que o dia iria proporcionar a eles até o pôr do sol, quando os estudantes chegariam para as suas aulas intermináveis.

Ela olhou de volta para o feno. Um fardo inteiro foi engolfado em chamas. O cheiro de fumaça foi levado até ela, e era possível ouvir o som crepitante do fogo se alimentando e crescendo, como uma besta descontrolada.

Neferet saiu do estábulo, fechando a pesada porta que dava para o ginásio com firmeza. Parece que provavelmente Stevie Rae não vai ser a única a sofrer depois desta noite. Esse pensamento satisfez Neferet, e ela saiu do ginásio e da matança que ela havia causado ali, sem ver a pequena gata branca que caminhou até o corpo imóvel de Shadowfax, deitou ao lado dele e fechou os olhos.

Lenobia

A Mestra dos Cavalos acordou com um terrível pressentimento. Confusa, Lenobia esfregou as mãos no rosto. Ela havia pegado no sono na cadeira de balanço perto da janela e esse súbito despertar parecia mais um pesadelo do que realidade.

– Isso é tolice – ela resmungou sonolenta. – Preciso encontrar meu centro de novo. – A meditação a havia ajudado a silenciar seus pensamentos no passado. Resolutamente, Lenobia inspirou profundamente o ar para se purificar.

Foi com essa inspiração profunda que Lenobia sentiu o cheiro – fogo. Mais especificamente, um estábulo em chamas. Ela cerrou os dentes. Desapareçam, fantasmas do passado! Sou velha demais para esse tipo de jogo. Então um agourento som crepitante fez Lenobia afastar o último resquício de sono que havia obscurecido a sua mente. Ela se moveu rapidamente até a janela e abriu as pesadas cortinas pretas. A Mestra dos Cavalos olhou para o seu estábulo e arfou de horror.

Não era um sonho.

Não era a sua imaginação.

Em vez disso, era um pesadelo real.

Chamas estavam lambendo as laterais do edifício. Enquanto ela observava, as portas duplas no canto da sua visão foram abertas pelo lado de dentro e, contra o pano de fundo de uma onda de fumaça e labaredas ardentes, estava a silhueta de um cowboy alto guiando uma enorme Percherão cinza e uma égua negra como a noite para fora.

Travis soltou as éguas, tocando-as para os jardins da escola e para longe do estábulo em chamas; então, ele correu de volta para a boca flamejante do edifício.

Tudo dentro de Lenobia ficou vivo quando aquela visão extinguiu o seu medo e a sua dúvida.

– Não, Deusa. De novo, não. Eu não sou mais uma garota assustada. Desta vez, o fim dele vai ser diferente!


2 Lenobia

Lenobia saiu em disparada de seu quarto e desceu correndo a pequena escada que ligava o seu alojamento ao piso térreo e ao estábulo. A fumaça estava se infiltrando feito cobras por debaixo da porta. Ela controlou o seu pânico e encostou a mão na madeira. Não estava quente, então ela empurrou a porta, avaliando a situação rapidamente enquanto entrava no estábulo. O fogo estava ardendo mais furiosamente no fundo do edifício, na área onde o feno e a ração eram estocados. Era também a área mais próxima à baia de Mujaji e à grande baia para animais prenhes onde a Percherão Bonnie e Travis haviam se instalado.

– Travis! – ela gritou, levantando o braço para proteger o rosto do calor das labaredas crescentes, enquanto corria para dentro do estábulo, abrindo as baias e libertando os cavalos mais próximos a ela. Para fora, Persephone, vá! Lenobia empurrou a égua clara, que estava congelada de pavor, recusando-se a sair de sua baia. Quando Persephone passou por ela em disparada em direção à saída, Lenobia chamou de novo: – Travis! Cadê você?

– Estou levando para fora os cavalos que estavam mais perto do fogo! – ele gritou quando uma jovem égua acinzentada correu da direção de onde vinha a voz de Travis e quase passou por cima de Lenobia.

– Calma! Calma, Anjo – Lenobia a tranquilizou, conduzindo a égua aterrorizada até a saída.

– A saída leste está bloqueada pelas chamas e eu... – as palavras de Travis foram cortadas quando a janela da selaria explodiu e estilhaços de vidro quente voaram pelo ar.

– Travis! Saia daqui e ligue para o 911! – Lenobia gritou enquanto abria a baia mais próxima e libertava um capão, detestando o fato de ela não ter pegado o seu telefone e feito ela mesma a chamada antes de sair do quarto.

– Eu acabei de ligar! – respondeu uma voz não familiar. Lenobia olhou através da fumaça e das chamas e viu uma novata correndo na sua direção, guiando uma égua alazã que estava totalmente em pânico.

– Está tudo bem, Diva – Lenobia automaticamente acalmou o cavalo, pegando a correia da garota. Ao seu toque, a égua se aquietou, e Lenobia soltou a correia do cabresto, encorajando-a a galopar para fora pela porta mais próxima atrás dos outros cavalos em fuga. Ela puxou a garota para trás com ela, afastando-se do calor que aumentava, dizendo: – Quantos cavalos estão... – Lenobia perdeu a fala quando viu que o crescente na testa da garota era vermelho.

– Acho que só sobraram alguns – a novata vermelha estava com a mão trêmula quando enxugou o suor com fuligem do seu rosto, gaguejando as palavras. – E-eu peguei Diva porque sempre gostei dela e pensei que ela podia se lembrar de mim. Mas até ela estava assustada. Realmente assustada.

Então Lenobia reconheceu a garota: Nicole. Ela tinha uma aptidão com cavalos e um modo natural de montar antes de morrer, ressuscitar e se juntar ao grupo do mal de Dallas. Mas não havia tempo para questionar a garota. Não havia tempo para nada, exceto levar os cavalos – e Travis – para um local seguro.

– Você fez bem, Nicole. Você pode entrar de novo lá?

– Sim – Nicole concordou trêmula. – Não quero que eles se queimem. Farei qualquer coisa que você mandar.

Lenobia colocou a mão no ombro da garota.

– Eu só preciso que você abra as baias e saia do caminho. Eu vou guiá-los para um local seguro.

– Ok, ok. Eu consigo fazer isso – Nicole concordou. Ela soou aflita e assustada, mas seguiu Lenobia sem hesitação, e as duas correram de volta para o turbilhão de calor dentro do estábulo.

– Travis! – Lenobia tossiu, tentando enxergar através da fumaça cada vez mais espessa. – Você está me ouvindo?

Mais alto que o som crepitante das chamas, ele gritou:

– Sim! Estou aqui atrás. Fechado na baia!

– Abra a baia! – Lenobia se recusou a ceder ao seu próprio pânico. – Abra todas as baias! Eu consigo chamar os cavalos para mim, para um local seguro. Posso fazê-los sair. Siga-os. Posso guiar todos vocês para fora!

– Já abri! – Travis gritou logo depois, do meio da fumaça e do calor.

– Já abri todas aqui também! – Nicole gritou bem mais perto.

– Agora sigam os cavalos e saiam do estábulo! – Lenobia berrou antes de começar a correr para trás, para longe do fogo e em direção à porta dupla da saída que ela deixou bem aberta. Em pé, na frente da porta, ela levantou os braços, com as palmas voltadas para fora, e imaginou que estava extraindo poder diretamente do Mundo do Além e do reino místico de Nyx. Lenobia abriu seu coração, sua alma e seu dom concedido pela Deusa e gritou: – Venham, meus belos filhos e filhas! Sigam minha voz e meu amor e vivam!

Pareceu haver um estouro da manada, com cavalos saindo em disparada do meio das labaredas e da fumaça escura. O terror deles era tão palpável para Lenobia que era quase como um ser vivo. Ela compreendeu isso – o seu medo das chamas, do fogo e da morte – e canalizou força e serenidade para si mesma e para os cavalos que passavam por ela galopando em direção aos jardins da escola.

A novata vermelha saiu cambaleando e tossindo atrás deles.

– Acabou. Todos os cavalos saíram – ela disse, desabando no gramado.

Lenobia deu um aceno rápido de cabeça para Nicole por consideração. Suas emoções estavam concentradas na manada agitada atrás dela, e seus olhos estavam focados na fumaça espessa e nas chamas flamejantes diante dela, das quais Travis não saía.

– Travis! – ela gritou.

Não houve nenhuma resposta.

– O fogo está se espalhando rápido – a novata vermelha falou ainda tossindo. – Ele pode estar morto.

– Não – Lenobia respondeu com firmeza. – Não desta vez – ela se voltou na direção da manada, chamando a sua amada égua negra. – Mujaji!

O cavalo relinchou e veio trotando até ela. Lenobia levantou a mão, fazendo-a parar.

– Fique calma, doçura. Cuide dos meus outros filhos. Empreste a eles a sua força e serenidade, assim como o meu amor – Lenobia disse.

Com relutância, porém obedientemente, a égua começou a andar ao redor do bando de cavalos assustados, agrupando-os. Satisfeita, Lenobia se virou, inspirou duas vezes profundamente e entrou em disparada na boca do estábulo em chamas.

O calor estava terrível. A fumaça era tão densa que era como tentar respirar um líquido efervescente. Por um instante, Lenobia foi transportada de volta para aquela noite horrível em Nova Orleans e para outro celeiro em chamas. Os sulcos grossos das cicatrizes nas suas costas latejaram como uma memória fantasma de dor, e por um momento o pânico reinou, enraizando Lenobia no passado.

Então ela o escutou tossir, e o seu pânico foi despedaçado pela esperança, permitindo que o presente e a força verdadeira da vontade de Lenobia superassem o seu medo.

– Travis! Eu não estou te vendo! – ela gritou e arrancou a parte de baixo de sua camisola, entrou na baia mais próxima e mergulhou o pano na água do cocho.

– Saia... daqui... – ele disse entre uma tosse seca e outra.

– Nem ferrando. Já vi um homem queimar por minha causa. Não gosto nada disso. – Lenobia colocou o tecido ensopado sobre ela como um manto com capuz e avançou mais para dentro da fumaça e do calor, seguindo a tosse de Travis.

Ela o encontrou perto de uma baia aberta. Ele havia caído e estava tentando se levantar, mas só havia conseguido se ajoelhar e estava curvado para frente, quase vomitando e tossindo. Lenobia não hesitou. Ela entrou na baia e molhou o tecido rasgado na água do cocho da baia de novo.

– O quê...? – outra tosse o acometeu enquanto ele franzia os olhos para ela. – Não! Saia...

– Eu não tenho tempo para discutir. Apenas deite-se – ela falou. Como ele não se moveu rápido o bastante, ela deu uma rasteira por baixo dos seus joelhos. Ele caiu de costas com um gemido e ela estendeu o tecido molhado sobre o rosto e o peito dele. – Isso, assim mesmo. Na horizontal – Lenobia ordenou, enquanto foi até o cocho e rapidamente espalhou água pelo seu próprio rosto e cabelo. Então, antes que ele pudesse protestar ou estragar o plano dela se mexendo, ela agarrou as pernas de Travis e começou a puxá-lo.

Ele tinha que ser tão grande e pesado? A mente de Lenobia estava ficando confusa. As chamas estavam rugindo em volta dela, e ela tinha certeza de que podia sentir o cheiro de cabelo queimado. Bem, Martin também era grande... E então a mente dela parou de funcionar. Era como se o seu corpo estivesse se movendo no piloto automático, sem ninguém para dirigi-lo, exceto uma necessidade primordial de continuar arrastando aquele homem para longe do perigo.

– É ela! É Lenobia!

De repente, mãos fortes estavam ali, tentando tirar aquela carga dela. Lenobia lutou. A morte não vai vencer desta vez! Não desta vez!

– Professora Lenobia, está tudo bem. Você conseguiu.

Então a mente dela registrou o frescor do ar e foi capaz de entender o que estava acontecendo. Ela ofegou, inspirando o ar puro e tossindo o calor e a fumaça, enquanto mãos gentis a ajudaram a se sentar na grama e colocaram uma máscara sobre o seu nariz e sua boca, através da qual um ar ainda mais puro inundou os seus pulmões. Ela sugou o oxigênio e a sua mente clareou completamente.

Um enxame de bombeiros humanos lotava os jardins. Poderosas mangueiras estavam voltadas para o estábulo em chamas. Dois paramédicos estavam ao redor dela, observando-a, parecendo perdidos e obviamente surpresos com a rapidez com que ela estava se recuperando.

Ela arrancou a máscara do rosto.

– Não cuidem de mim. Cuidem dele! – ela puxou o tecido quente do corpo de Travis, que ainda estava imóvel demais. – Ele é humano. Ajudem-no!

– Sim, senhora – um dos paramédicos murmurou e então eles começaram a trabalhar em Travis.

– Lenobia, beba isto – alguém disse e uma taça foi colocada em suas mãos.

A Mestra dos Cavalos levantou os olhos e viu duas vampiras curandeiras da enfermaria da Morada da Noite, Margareta e Pemphredo, agachadas ao lado dela. Lenobia bebeu de uma vez todo o vinho, que estava bastante misturado com sangue, sentindo instantaneamente a energia vital que ele carregava formigar pelo seu corpo.

– É melhor você vir com a gente, professora – Margareta afirmou. – Você vai precisar de mais do que isso para se curar completamente.

– Mais tarde – Lenobia respondeu, deixando a taça de lado. Ela ignorou as curandeiras, bem como as sirenes, as vozes e o caos generalizado ao seu redor. Lenobia engatinhou em direção à cabeça de Travis. Os paramédicos estavam ocupados. O cowboy já estava usando uma máscara, e eles estavam dando uma injeção no seu braço. Os olhos dele estavam fechados. Mesmo por baixo da sujeira da fuligem, ela podia ver que o seu rosto estava escaldado e vermelho. Ele estava usando uma camiseta para fora da calça, que obviamente tinha vestido apressadamente por sobre o jeans. Os seus antebraços fortes estavam descobertos e cheios de bolhas. E as suas mãos... as suas mãos estavam queimadas e ensanguentadas.

Ela deve ter feito algum barulho involuntário – sinal da terrível dor de cabeça que estava sentindo –, pois Travis abriu os olhos. Eles eram exatamente como ela se lembrava: castanhos, com um tom de uísque e traços verde-oliva. Os seus olhares se encontraram e se fixaram um no outro.

– Ele vai sobreviver? – ela perguntou ao paramédico mais próximo.

– Eu já vi casos piores, e ele vai ter cicatrizes, mas nós temos que levá-lo ao hospital St. John o mais rápido possível. A inalação de fumaça foi pior do que as suas queimaduras – o humano fez uma pausa e, apesar de Lenobia não tirar os olhos de Travis, pôde escutar o sorriso na voz do paramédico. – Ele é um cara de sorte. Quase você não o encontra a tempo.

– Na verdade, levei duzentos e vinte e quatro anos para encontrá-lo, mas estou feliz que cheguei a tempo.

Travis começou a dizer algo, mas suas palavras foram cortadas por uma tosse seca horrível.

– Com licença, senhora. A maca chegou.

Lenobia se afastou para o lado, enquanto Travis era transferido para a maca com rodinhas, mas em nenhum momento eles deixaram de se olhar. Ela caminhou ao lado dele enquanto os paramédicos empurravam a maca até a ambulância que estava à espera. Antes de o colocarem lá dentro, ele tirou a máscara e, com uma voz áspera, perguntou:

– Bonnie? Ok?

– Ela está bem. Eu posso senti-la. Ela está com Mujaji. Vou cuidar dela. Vou cuidar de todos eles e deixá-los em segurança – ela assegurou a ele.

Ele estendeu a mão para Lenobia, e ela cuidadosamente tocou sua mão queimada e ensanguentada.

– Você vai cuidar de mim também? – ele conseguiu perguntar.

– Sim, cowboy. Você pode apostar sua bela e grande égua que eu vou – e sem se importar nem um pouco com os olhares de humanos, novatos e vampiros que ela podia sentir na direção dela, Lenobia se inclinou e o beijou suavemente na boca. – Procure por alegria e cavalos. Eu vou estar lá. Desta vez, cuidando para que você esteja a salvo.

– Bom saber. Minha mãe sempre dizia que eu precisava de alguém que cuidasse de mim. Espero que ela descanse em paz sabendo que eu consegui essa pessoa – a voz dele soou como se a sua garganta fosse uma lixa.

Lenobia sorriu.

– Você conseguiu, mas eu acho que é você que precisa aprender a descansar.

As pontas dos dedos dele tocaram a mão de Lenobia, e ele disse:

– Acho que agora eu vou conseguir. Eu só estava esperando encontrar o meu caminho de volta para casa.

Lenobia encarou aqueles olhos âmbar esverdeados que lhe eram tão familiares, tão incrivelmente parecidos com os de Martin, e imaginou que através deles ela podia enxergar a verdadeira natureza daquela alma também familiar – a bondade, a força, a honestidade e o amor que, de algum modo, haviam cumprido a sua promessa de voltar para ela. Lá no fundo do coração, Lenobia sabia que, apesar de no resto da aparência o cowboy alto e rijo não ter nenhuma semelhança com o seu amor perdido, ela havia encontrado o seu coração de novo. A emoção travou a sua voz, e tudo o que ela podia fazer era sorrir, concordar com a cabeça e virar a mão para que os dedos dele pousassem na sua palma – quente, forte e muito viva.

– Nós temos que levá-lo ao hospital, senhora – afirmou o paramédico.

Lenobia tirou sua mão de Travis com relutância, enxugou os olhos e disse:

– Você pode levá-lo por pouco tempo, mas eu o quero de volta. Logo – ela dirigiu o seu olhar, que parecia uma nuvem de tempestade, para o humano de jaleco. – Trate-o bem. Esse fogo no celeiro não é nada perto do meu temperamento inflamado.

– S-sim, senhora – o paramédico gaguejou, rapidamente colocando Travis dentro da ambulância.

Lenobia teve certeza de que ouviu a risada de Travis no meio da sua tosse horrorosa, antes de as portas da ambulância se fecharem e de eles partirem com a sirene piscando.

Ela estava parada ali, olhando a ambulância se afastar e preocupada com Travis, quando alguém próximo limpou a garganta de um jeito bem óbvio, atraindo a atenção de Lenobia instantaneamente. Ao se virar, ela enxergou o que a sua visão antes totalmente capturada por Travis havia ignorado. Parecia que a escola havia explodido. Cavalos movendo-se nervosamente o mais perto do muro leste que eles conseguiam chegar. Caminhões de bombeiros estavam estacionados nos jardins ao lado do estábulo, esguichando água de enormes mangueiras na direção do prédio ainda em chamas. Novatos e vampiros tinham se reunido em grupos assustados, parecendo impotentes.

– Calma, Mujaji, calma... Está tudo bem agora, minha doçura. – Lenobia fechou os olhos e se concentrou em usar o dom que a sua Deusa havia concedido a ela há mais de duzentos anos. Ela sentiu a bela égua negra responder imediatamente, relaxando da sua agitação e acabando com o resto do seu medo e nervosismo. Então Lenobia voltou sua conexão para a grande Percherão, que estava preocupada escavando o chão, movendo as orelhas, buscando algum sinal de Travis. – Bonnie, ele está bem. Você não tem com o que se preocupar – Lenobia falou suavemente, ecoando as ondas de emoção que ela estava transmitindo para a égua ansiosa. Bonnie se acalmou quase tão rápido quanto Mujaji, o que agradou bastante Lenobia e permitiu que ela direcionasse sua atenção facilmente para o resto dos cavalos. – Persephone, Anjo, Diva, Little Biscuit, Okie Dodger – ela enviou afeto e segurança individualmente para os cavalos –, sigam a liderança de Mujaji. Fiquem calmos. Sejam fortes. Vocês estão a salvo.

A pessoa próxima a ela limpou a garganta novamente, interrompendo a concentração dela. Irritada, Lenobia abriu os olhos e viu um humano parado na sua frente. Ele vestia um uniforme de bombeiro e a estava observando com as sobrancelhas arqueadas e uma curiosidade explícita.

– Você está falando com aqueles cavalos?

– Na verdade, estou fazendo muito mais do que isso. Dê uma olhada – ela fez um gesto para a manada diante dela.

Ele se virou, e o seu rosto registrou a sua surpresa.

– Eles se acalmaram bastante. Isso é bizarro.

– A palavra “bizarro” tem tantas conotações negativas. Prefiro a palavra “mágico”. – Lenobia fez um aceno de cabeça, despedindo-se do bombeiro, e então começou a andar a passos largos na direção do grupo de novatos que estavam aglomerados em volta de Erik Night e da professora P.

– Senhora, eu sou o capitão Alderman, Steve Alderman – ele disse, quase correndo para acompanhar o passo de Lenobia. – Estamos trabalhando para controlar o fogo, e eu preciso saber quem é o responsável pela escola.

– Capitão Alderman, eu gostaria de dizer que sou eu – Lenobia disse sombriamente. Então ela acrescentou: – Venha comigo. Vou resolver isso – a Mestra dos Cavalos se juntou a Erik, professora P. e seu grupo de novatos, que incluía um guerreiro Filho de Erebus, Kramisha, Shaylin e vários novatos azuis quinto-formandos e sexto-formandos. – Penthesilea, eu sei que Thanatos está com Zoey e o seu círculo, terminando o ritual na fazenda da Sylvia Redbird, mas onde está Neferet? – a voz de Lenobia soou como um chicote.

– E-eu simplesmente não sei! – a professora de Literatura respondeu trêmula, olhando por sobre o seu ombro para o estábulo em chamas. – Eu fui até os aposentos dela quando vi o fogo, mas não havia nenhum sinal dela.

– E ninguém tentou ligar para ela? – Kramisha perguntou.

– Não atende – Erik respondeu.

– Que maravilha – Lenobia resmungou.

– Posso supor então que, na ausência dessas pessoas que acabou de mencionar, você é a responsável aqui? – o capitão Alderman questionou Lenobia.

– É, parece que, como não sobrou ninguém, sou eu – ela disse.

– Bem, então você precisa fazer a contagem dos estudantes o mais rápido possível. Você e os professores precisam conferir imediatamente se todos os alunos estão presentes – ele indicou com o polegar um banco não muito longe de onde eles estavam. – Aquela garota com a lua vermelha na testa é a única garota que encontramos perto do celeiro. Ela não está ferida, apenas um pouco abalada. O oxigênio está limpando os pulmões dela surpreendentemente rápido. Mesmo assim, pode ser uma boa ideia que ela seja examinada no hospital St. John.

Lenobia deu uma olhada para Nicole, que estava sentada respirando profundamente com uma máscara de oxigênio, enquanto um paramédico conferia seus sinais vitais. Margareta e Pemphredo estavam por perto, fuzilando o paramédico com os olhos, como se ele fosse um inseto irritante.

– A nossa enfermaria está mais bem equipada para cuidar de novatos feridos do que um hospital humano – Lenobia afirmou.

– Como achar melhor, senhora. Você é a responsável aqui, e sei que vocês, vampiros, têm uma fisiologia própria. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Sem ofensas. Meu melhor amigo no ensino médio foi Marcado e Transformado. Eu gostava dele na época. E ainda gosto dele.

Lenobia controlou o sorriso.

– Não me senti ofendida, capitão Alderman. Nós estamos apenas falando a verdade. Os vampiros realmente têm necessidades fisiológicas diferentes das dos humanos. Nicole vai ficar bem aqui com a gente.

– Ótimo. Acho que é melhor enviar alguns rapazes para dentro daquele ginásio para procurar outros garotos que podem estar por perto – o capitão falou. – Parece que nós conseguimos evitar que o fogo se espalhasse, mas é melhor fazer uma busca nas partes adjacentes da escola.

– Acho que procurar no ginásio é uma perda de tempo para os seus homens – Lenobia afirmou, seguindo o que o seu instinto estava lhe dizendo. – Concentre-se em fazer com que eles acabem com o fogo no estábulo. O incêndio não começou sozinho. Isso precisa ser investigado, além de nos certificarmos de que nenhum dos nossos ficou preso nas chamas. Eu vou pedir que os nossos guerreiros façam buscas nas áreas adjacentes da escola, começando pelo ginásio.

– Sim, senhora. Parece que realmente nós chegamos aqui a tempo. O ginásio vai ter danos de fumaça e água, mas vai parecer muito pior do que realmente é. Acho que a estrutura permaneceu intata. É um edifício sólido, feito de pedras boas e espessas. Vai ser preciso alguma reforma, mas o seu esqueleto foi feito para durar – o bombeiro tocou no seu chapéu para cumprimentá-la e se afastou, gritando ordens para os homens mais próximos.

Bem, pelo menos algumas notícias boas, Lenobia pensou, tentando desviar os olhos do caos em combustão em que o seu estábulo tinha se transformado. Ela se virou de novo para o seu grupo.

– Onde está Dragon? Ainda no ginásio?

– Nós também não conseguimos encontrar Dragon – Erik respondeu.

– Dragon está desaparecido? – O estábulo tinha sido construído com uma parede compartilhada com o grande ginásio coberto. Até então, ela havia estado muito preocupada para pensar nisso, mas a ausência do líder dos Filhos de Erebus durante uma crise na escola era algo totalmente estranho. – Neferet e Dragon... Não gosto do fato de que nenhum deles está aqui. Isso é um mau presságio para a escola.

– Professora Lenobia, hum, eu vi Neferet.

Os olhos de todos se voltaram para a pequena garota de cabelos grossos e escuros que faziam as feições delicadas do seu rosto parecerem quase de boneca. Lenobia colocou um nome rapidamente naquele rosto: Shaylin, a novata recém-chegada na Morada da Noite de Tulsa e a única novata cuja Marca original era vermelha. No instante em que a conhecera alguns dias atrás, Lenobia pensou que havia algo muito estranho com ela.

– Você viu Neferet? – ela franziu os olhos para a novata. – Onde? Quando?

– Há mais ou menos uma hora – Shaylin respondeu. – Eu estava sentada do lado de fora do dormitório, olhando para as árvores. – Ela encolheu os ombros, nervosa, e acrescentou: – Eu era cega e, agora que eu não sou mais, gosto de olhar para as coisas. Adoro.

– Shaylin, e Neferet? – Erik a estimulou a continuar.

– Ah, sim, eu a vi andando pela calçada em direção ao ginásio. Ela, bem, ela parecia muito escura – Shaylin fez uma pausa, parecendo desconfortável.

– Escura? O que você quer dizer com...

– Shaylin tem um jeito único de ver as pessoas – Erik interrompeu. Lenobia o viu colocar a mão sobre o ombro de Shaylin para tranquilizá-la. – Se ela achou que Neferet parecia escura, então provavelmente foi bom você ter evitado que os bombeiros humanos fossem bisbilhotar no ginásio.

Lenobia queria questionar mais Shaylin, mas Erik encontrou o seu olhar e balançou a cabeça, quase imperceptivelmente. Lenobia sentiu um arrepio de mau pressentimento descendo pela sua espinha. Aquela premonição fez com que ela tomasse a decisão.

– Axis, vá com Penthesilea até o escritório da administração. Se Diana não estiver acordada, acorde-a. Pegue a lista de alunos e a distribua para os guerreiros Filhos de Erebus. Peça para que eles contem todos os estudantes e depois faça com que os estudantes apresentem-se aos seus mentores antes de voltarem aos dormitórios. – Quando a professora e o guerreiro saíram apressados, Lenobia encontrou o olhar franco de Kramisha. – Você pode fazer com que esses novatos – Lenobia fez uma pausa e seu gesto abrangeu todos os alunos com aparência desnorteada que estavam vagando pela área – se apresentem aos seus mentores?

– Sou uma poetisa. Eu consigo criar alguns pentâmetros iâmbicos incríveis. Isso significa que eu posso dar uma de chefe de alguns garotos assustados e sonolentos.

Lenobia sorriu para a garota. Ela já gostava de Kramisha mesmo antes de ela morrer e depois voltar como uma novata vermelha, que tinha tantas habilidades poéticas e proféticas que havia sido nomeada a nova vampira Poeta Laureada.

– Obrigada, Kramisha. Eu sabia que podia contar com você. Mas é bom se apressar. Não preciso dizer isso para você, mas está bem perto de amanhecer.

Kramisha bufou.

– Você está me dizendo isso? Eu vou ficar mais tostada do que aquele celeiro se eu não entrar em um lugar coberto logo.

Quando Kramisha saiu apressada, chamando os novatos espalhados, Lenobia encarou Erik e Shaylin.

– Nós três precisamos dar uma examinada no ginásio.

– É, eu concordo – Erik disse. – Vamos lá.

Mas Shaylin não saiu do lugar, e Lenobia percebeu que ela tirou a mão de Erik do seu ombro. Não de um jeito irritado, mas, sim, distraído. Ela viu a jovem novata vermelha olhar para o céu e suspirar. Lenobia notou que ela parecia se sentir importante, que ela exibia uma sensação de quem queria ou esperava algo.

– O que foi? – Lenobia perguntou para a garota, apesar de a última coisa que ela deveria fazer naquele momento era dar atenção para uma novata vermelha distraída e estranha.

Ainda olhando para cima, Shaylin falou:

– Onde está a chuva quando você precisa dela?

– Ahn? – Erik balançou a cabeça. – Do que você está falando?

– Chuva. Eu queria muito, muito mesmo que chovesse – a garota baixou os olhos do céu e se voltou para ele, encolhendo os ombros e parecendo um pouco sem jeito. – Juro que eu posso sentir um cheiro de chuva no ar. Isso iria ajudar os bombeiros e seria uma garantia dupla de que o fogo não vai se espalhar para o resto da escola.

– Os humanos estão conseguindo lidar com o fogo. Nós temos que examinar o ginásio. Não gosto do fato de Neferet ter sido vista entrando lá – Lenobia afirmou e começou a andar em direção ao ginásio, supondo que os dois iriam segui-la, mas ela hesitou ao perceber que Shaylin ainda continuava lá. Ela se virou para a novata e estava pronta para repreendê-la por insolência ou ignorância, mas Erik disse algo antes:

– Ei, isso é importante – ele falou com uma voz baixa e urgente para Shaylin. – Vamos com Lenobia conferir o ginásio. Os bombeiros já estão com as coisas sob controle. – Como Shaylin não saiu do lugar e continuou a resistir em ir até o ginásio, ele falou mais alto: – O que há com você? Já que Thanatos, Dragon e até Zoey e o seu grupo não estão aqui, a gente tem que tomar cuidado para não deixar ninguém pensar que nós podíamos...

– Erik, eu realmente acho que Lenobia está certa – Shaylin o interrompeu. – Eu só quero saber o que vai acontecer com ela.

Lenobia seguiu o olhar de Shaylin e encontrou Nicole, ainda sentada no banco, entre duas vampiras da enfermaria, com a pele rosa e manchada de fuligem.

– Ela faz parte do grupo de novatos vermelhos de Dallas. Eu não ficaria surpreso se ela tivesse algo a ver com o incêndio – Erik insinuou, claramente irritado. – Lenobia, acho que você deveria fazer com que Nicole vá até a enfermaria e fique trancada lá até nós descobrirmos o que realmente aconteceu aqui.

Antes de Lenobia responder, Shaylin já estava falando. Ela soou firme e muito mais sábia do que deveria ser aos dezesseis anos.

– Não. Façam com que ela vá até a enfermaria para ter certeza de que ela está bem, mas não a prendam lá.

– Shaylin, você não sabe o que está dizendo. Nicole está com Dallas – Erik afirmou.

– Bem, neste momento ela não está com ele. Ela está mudando – Shaylin respondeu.

– Realmente, ela me ajudou a tirar os cavalos do estábulo – Lenobia disse. – Se ela estivesse envolvida com o incêndio, teria sido muito mais fácil se esconder e fugir no meio da fumaça. Eu nunca saberia que ela esteve lá.

– Isso faz sentido. As cores dela estão diferentes... melhores. – E então Shaylin, com a sua firmeza e sabedoria se dissipando, arregalou os olhos para Lenobia: – Ah, desculpe. Eu falei demais. Preciso aprender a manter a minha boca fechada.

– Que atrocidade foi cometida nos jardins da escola esta noite!

A voz ressoou como um trovão sobre Lenobia. Pelos jardins da escola, movendo-se rapidamente em direção a eles, havia uma falange de vampiros e novatos, com Thanatos à frente, Zoey e Stevie Rae cada uma ao seu lado e, por mais bizarro que fosse, Kalona marchando logo atrás de Thanatos, com as asas abertas defensivamente, como se ele de repente tivesse se tornado o Anjo Guardião da Morte.

Foi nessa hora que o céu da noite se abriu e começou a chover.


3 Zoey

Eu já sabia antes mesmo de ver os caminhões dos bombeiros e a fumaça. Eu já sabia que o inferno ia se instalar na Morada da Noite no momento em que Thanatos testemunhou a verdade sobre os crimes de Neferet. Nesta noite, havia sido provado sem sombra de dúvidas que Neferet estava do lado das Trevas. Thanatos não havia perdido tempo para enxotá-la. No caminho de volta da fazenda de lavandas de vovó até a escola, a Grande Sacerdotisa da Morte havia feito uma chamada de emergência para a Itália e informado oficialmente o Conselho Supremo dos Vampiros de que Neferet não era mais uma Sacerdotisa de Nyx – que ela tinha escolhido as Trevas como seu Consorte. Neferet tinha sido vista como realmente era, algo que eu queria muito desde que eu havia percebido a sua verdade nojenta. Só que, agora que eu tinha realizado meu desejo, tive uma sensação terrível de que expulsar Neferet serviria mais para libertá-la do que para forçá-la a pagar pelas consequências das suas mentiras e traições.

Tudo parecia tão confuso e horroroso, como se a noite toda tivesse sido a metade final de um filme de terror medonho e sanguinolento: o ritual, assistir às imagens do assassinato da minha mãe, tudo o que tinha acontecido com Dragon, Rephaim, Kalona e Aurox... Aurox? Heath? Não, eu não posso pensar nisso! Não agora! Agora os estábulos estavam em chamas. Sério. Os cavalos da escola estavam relinchando e se aglomerando nervosamente perto do muro leste. Lenobia parecia chamuscada e coberta de fuligem. Erik, Shaylin e um monte de outros novatos estavam parados lá, chocados e ensopados porque, é claro, havia começado a cair uma chuva torrencial. E Nicole, a garota que era uma novata vermelha super do mal e a namorada vadia e detestável do Dallas, estava caída em um banco com dois paramédicos humanos em volta dela como se fosse o menino Jesus com asas douradas.

Eu queria apertar um botão, desligar aquele filme assustador e pegar no sono, deitada de conchinha com Stark, em segurança. Que inferno, eu queria fechar os olhos e voltar no tempo, quando o pior estresse que eu tinha era ter três namorados, e isso tinha sido muito, muito ruim.

Eu me chacoalhei mentalmente, fiz o melhor que podia para afastar o caos que me rodeava por dentro e por fora e me concentrei em Lenobia.

– Sim, o estábulo pegou fogo – ela estava explicando para a gente. – Nós não sabemos quem ou o que provocou isso. Algum de vocês viu Neferet?

– Nós não a vimos em pessoa, mas vimos a imagem dela em espírito que ficou gravada nas terras da avó de Zoey. – Thanatos levantou o queixo e, com uma voz forte e segura que se sobrepôs à chuva, declarou: – Neferet se aliou ao touro branco. Ela sacrificou a mãe de Zoey para ele. Ela vai ser uma inimiga poderosa, mas é inimiga de todos que seguem a Luz e a Deusa.

Percebi que esse anúncio chocou Lenobia, apesar de eu saber que a Mestra dos Cavalos já estava ciente de que Neferet era nossa inimiga havia meses. Mesmo assim, existia uma grande diferença entre imaginar algo e saber que o pior que você havia imaginado era verdade. Especialmente quando isso era tão horrível que quase fugia à compreensão. Então Lenobia limpou a garganta e perguntou:

– O Conselho Supremo a baniu?

– Eu relatei o que testemunhei esta noite – Thanatos disse, portando-se como a Grande Sacerdotisa da nossa Morada da Noite. – Foi determinado que Neferet se apresente perante o Conselho Supremo, que vai fazer justiça pela traição dela à nossa Deusa e aos nossos caminhos.

– Ela deve ter imaginado o que vocês iriam descobrir se o ritual desse certo – Lenobia afirmou.

– Sim, e é por isso que ela mandou aquela coisa dela atrás de nós... Para matar Rephaim e estragar o nosso círculo, acabando com o ritual de revelação – Stevie Rae falou, entrelaçando sua mão à de Rephaim, que estava parado, alto e forte, ao seu lado.

– Parece que não deu certo – Erik observou.

Ele estava perto de Shaylin. Agora que eu pensei nisso, parece que Erik estava passando muito tempo perto de Shaylin. Hummm...

– Bem, o plano dela teria funcionado – Stevie Rae explicou –, mas Dragon apareceu lá e segurou Aurox por um tempo – ela fez uma pausa e olhou para trás em direção a Kalona. Na verdade, ela deu seu típico sorriso doce e afetuoso para ele, antes de continuar. – Foi Kalona quem realmente salvou Rephaim. Kalona salvou o seu filho.

– Dragon! Então é com vocês que ele está – Erik exclamou, movendo-se para olhar atrás de nós, obviamente esperando ver Dragon.

Senti um aperto no estômago e pisquei com força para não cair em prantos. Como ninguém disse nada, respirei fundo e dei aquela notícia realmente triste e péssima.

– Dragon estava com a gente. Ele lutou para nos proteger. Bem, para proteger a nós e Rephaim. Mas... – perdi a fala, achando difícil dizer as próximas palavras.

– Mas Aurox furou Dragon com seus chifres até a morte, quebrando o feitiço que havia nos aprisionado e libertando-nos para que nós conseguíssemos chegar até Rephaim para protegê-lo – Stark não teve problemas em terminar para mim.

– Mas já era tarde demais – Stevie Rae acrescentou. – Rephaim também teria morrido se Kalona não tivesse aparecido a tempo de salvá-lo.

– Dragon Lankford está morto? – o rosto de Lenobia havia ficado imóvel e pálido.

– Está. Ele morreu como um guerreiro, fiel a si mesmo e ao seu Juramento. Ele se reencontrou com sua companheira no Mundo do Além – Thanatos concluiu. – Todos nós testemunhamos isso.

Lenobia fechou os olhos e abaixou a cabeça. Percebi que os lábios dela estavam se movendo, como que murmurando uma prece em voz baixa. Quando ela levantou a cabeça, seu rosto estava marcado por vincos de raiva e os seus olhos cinza pareciam nuvens de tempestade.

– Incendiar o meu estábulo foi uma distração que permitiu que Neferet escapasse.

– Parece provável – Thanatos concordou. Então a Grande Sacerdotisa fez uma pausa, como se estivesse escutando atentamente algo além do barulho da chuva, dos bombeiros e dos cavalos. Ela franziu os olhos e disse: – A Morte esteve aqui... Recentemente.

Lenobia balançou a cabeça.

– Não, os bombeiros já estão liberando o estábulo. Eu acredito que ninguém morreu lá.

– Não estou sentindo o espírito de um novato ou de um vampiro – Thanatos respondeu.

– Todos os cavalos saíram! – a voz de Nicole se levantou subitamente. Fiquei surpresa com o seu tom. Quero dizer, até aquele momento eu só tinha ouvido Nicole rindo sarcasticamente ou dizendo coisas maldosas. Agora Nicole soou como uma garota normal, preocupada com coisas como cavalos pegando fogo e o mal solto no mundo.

Mas Stevie Rae, assim como eu, conhecia uma Nicole muito diferente.

– Que diabo você está fazendo aqui, Nicole? – Stevie Rae perguntou.

– Ela estava ajudando Lenobia e Travis a tirar os cavalos do estábulo – Shaylin explicou.

– Sei, tenho certeza de que ela estava ajudando... logo depois de colocar fogo lá! – Stevie Rae afirmou.

– Sua vaca, você não pode falar assim comigo! – Nicole respondeu de um jeito sarcástico, sua voz ficando bem mais familiar.

– Se liga, Nicole – eu falei, colocando-me ao lado de Stevie Rae.

– Basta! – Thanatos levantou as mãos e o seu poder emanou, crepitando mais alto que a chuva e fazendo todos darem um salto. – Nicole, você é uma novata vermelha. Já passou da hora de você submeter a sua lealdade à única Grande Sacerdotisa da sua espécie. Você não vai xingá-la. Está entendido?

Nicole cruzou os braços e concordou com a cabeça uma vez. Ela não pareceu arrependida de jeito nenhum para mim, e a atitude dela, coroando todo o resto que tinha acontecido naquela noite, realmente me irritou. Eu a encarei e disse exatamente o que estava na minha cabeça:

– Você tem que entender que ninguém vai aturar mais a sua maldade. De agora em diante, as coisas vão ser diferentes.

– E você vai ter que passar por cima de mim para machucar Zoey – Stark disse.

– Você me usou para tentar matar Stevie Rae uma vez. Isso nunca mais vai acontecer – Rephaim subiu o tom.

– Zoey, Stevie Rae – Thanatos interveio enfaticamente. – Para serem respeitadas como Grandes Sacerdotisas, vocês precisam agir de modo adequado, assim como os seus guerreiros.

– Ela tentou nos matar. A nós duas! – Stevie Rae argumentou.

– Não recentemente! – Nicole gritou para Stevie Rae.

– Como nós podemos combater as grandes Trevas ancestrais que agora foram soltas no mundo se não passamos de crianças birrentas? – Thanatos falou em voz baixa. Ela não soou poderosa, nem sábia, nem forte. Ela soou cansada e sem esperança, e isso foi muito mais assustador do que o barulho crepitante que ela tinha feito antes.

– Thanatos está certa – eu concordei.

– Do que você está falando, Z.? Você sabe como Nicole é de verdade – Stevie Rae apontou para ela. – Assim como você sabia como Neferet era de verdade, mesmo quando ninguém acreditava em você.

– Estou falando que Thanatos está certa sobre a birra. Nós não podemos nem começar a combater Neferet se o nosso time não for forte e unido – olhei para Nicole. – O que significa: entre no nosso time ou vai pro inferno.

– Se ela está amaldiçoando, está falando sério – Aphrodite reforçou.

– Eu estou de acordo com ela – Damien afirmou.

– Assim como eu – Darius acrescentou.

– Eu também – Shaunee falou. Logo depois dela, Erin disse: – É.

– Eu já escolhi o meu lado – Kalona declarou solenemente. – Acho que é hora de os outros também escolherem.

– Eu sou nova por aqui, mas sei qual lado é o certo, e eu escolho o lado deles – Shaylin se aproximou mais de nós.

Erik a seguiu. Ele não disse nada, mas encontrou meu olhar e assentiu com a cabeça. Sorri para ele e me virei para encarar Thanatos, apoiada pela solidariedade do meu grupo.

– Nós não somos crianças birrentas. Nós só estamos cansados de receber ordens de pessoas que dizem que sabem o que é melhor, mas que parecem que continuam fazendo besteiras, até mais do que a gente.

– Ou seja, muitas – Aphrodite comentou ironicamente.

– Você não está ajudando – respondi automaticamente. Para Nicole, eu disse: – Então escolha o seu time.

– Ok. Eu escolho o Time Nicole – ela falou.

– Que na verdade significa Time Egoísta – Stevie Rae rebateu.

– Ou Time Detestável – Erin sugeriu.

– Ou Time Nada Atraente – Aphrodite acrescentou.

– Thanatos está indo embora – Lenobia disse rapidamente, indicando as costas da Grande Sacerdotisa.

– Como eu já previa – a voz de Kalona pareceu secar a chuva com a sua raiva. – Ela volta para o seu civilizado Conselho Supremo e nos deixa aqui para combater o mal.

Thanatos parou, virou-se e fuzilou o imortal alado com o seu olhar sombrio.

– Guerreiro juramentado, fique quieto! As minhas palavras não são menos desconfortáveis do que as suas. Estou indo é atrás da Morte. Infelizmente, isso não me leva para longe desta escola, nem vai me levar num futuro próximo. – Sem dizer mais nada, Thanatos continuou se afastando de nós, indo em direção à entrada fumegante do ginásio.

– Afe, ela é tão dramática – Aphrodite revirou os olhos. – Ela já disse que não é nenhum novato, vampiro ou cavalo. Então, e daí? Se a porra de um mosquito morre, nós temos que nos descabelar?

– Qual é o seu problema? – Nicole balançou a cabeça para Aphrodite. – Deusa! Você é mesmo uma bruxa histérica. Por que você não pensa antes de falar tanta besteira? Thanatos não está falando de insetos e merdas assim. Ela só pode estar falando de algum gato. É o único outro espírito de animal aqui com o qual ela se importa.

Aquilo calou Aphrodite, criando o que pareceu um vácuo gigante de silêncio, enquanto todos nós percebíamos que Nicole devia estar certa.

Eu perdi o fôlego.

– Ah, Deusa, não! Nala!

Franzindo os olhos para Nicole, Aphrodite disse:

– Relaxe, os nossos gatos estão na estação. Até aquele cachorro fedido. Não é nenhum dos nossos.

– A Duquesa não é fedida – Damien respondeu. – Mas, ah, eu estou tão feliz que ela e Cammy estão a salvo.

– Eu morreria se algo acontecesse a Belzebu – Shaunee afirmou.

– Eu também! – Erin complementou, soando mais protetora do que preocupada.

– Eu amo Nal – Stevie Rae encontrou meus olhos e nós duas piscamos para segurar as lágrimas.

– Os nossos familiares estão em segurança – a voz profunda de Darius pareceu me ancorar, pelo menos até Erik falar.

– Só porque o gato que morreu não era de nenhum de vocês, isso não torna a morte dele nem um pouco menos horrível – Erik pareceu bem mais maduro do que o normal. – Quem será que está no Time Egoísta agora?

Eu suspirei e já ia concordar com Erik, quando Nicole fez um som exasperado e saiu andando, seguindo o caminho que Thanatos tinha acabado de fazer.

– Aonde você pensa que vai? – Stevie Rae gritou para ela.

Nicole não parou. Ela também não se virou, mas sua voz chegou até nós.

– O Time Egoísta está indo ajudar Thanatos com o gato morto, seja o gato de quem for, porque o Time Egoísta gosta de animais. Eles são mais legais do que as pessoas. Ponto final.

– Eu não sei do que ela está falando – Aphrodite disse.

Revirei os olhos para ela.

– Isso tudo é teatrinho dela. Não dá pra confiar naquela garota – Stevie Rae olhou com raiva na direção de Nicole.

– Bom, eu posso dizer que Nicole quase morreu inalando fumaça ao me ajudar a libertar os cavalos – Lenobia afirmou.

– A cor dela está mudando – Shaylin sussurrou.

– Shhh – Erik falou para ela, tocando seu ombro.

– Ela tentou me matar! – Stevie Rae soou como se ela fosse explodir.

– Ah, que merda, quem não tentou te matar? Ou a Zoey. Ou a mim. Supere isso. – Aphrodite foi rápida e, antes que Stevie Rae pudesse rebater, ela levantou a mão, com a palma voltada para fora, e continuou: – Guarde isso para você. A menos que você, Stark e os outros novatos vermelhos que ficam torrados na luz do sol estejam planejando passar o dia aqui descobertos, é melhor a gente começar a embarcar no ônibus e voltar para a estação. Ah, e o menino-pássaro também vai virar cem por cento pássaro e zero por cento menino logo mais, o que eu tenho certeza de que é algo bem estranho em público.

– Eu detesto quando ela está certa – Stevie Rae disse para mim.

– Nem me fala – respondi. – Ok, por que vocês não reúnem todo mundo que deve voltar para a estação? Eu vou descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois encontro vocês no ônibus. Logo.

– Você quer dizer que você e eu vamos descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois os encontramos no ônibus. Logo – Stark me corrigiu.

Eu apertei a mão dele.

– Foi exatamente o que eu quis dizer.

– Eu também vou – Kalona afirmou. – Vou seguir Thanatos com vocês, mas não vou voltar para a estação – ele sorriu levemente quando desviou o olhar de mim e se voltou para o seu filho. – Mas logo vou ver vocês novamente.

Stevie Rae soltou a mão de Rephaim para se atirar nos braços de Kalona, apertando-o num abraço gigante, o que pareceu surpreendê-lo tanto quanto a nós, apesar de Rephaim assistir à cena com um sorriso enorme.

– Sim, com certeza a gente vai se ver logo. Obrigada de novo por aparecer para salvar o seu filho.

Kalona deu um tapinha nas costas dela desajeitadamente.

– De nada.

Então ela segurou a mão de Rephaim de novo e começou a caminhar na direção do estacionamento, dizendo:

– Ok, vamos esperar por vocês, mas lembrem-se, é batata que o sol vai nascer rapidinho.

Aphrodite sacudiu a cabeça e começou a andar de braços dados com Darius.

– Afinal, o que significa “é batata”? Será que ela pelo menos concluiu o ensino fundamental?

– Apenas a ajude a levar os garotos para o ônibus – respondi.

Felizmente, junto com a chuva havia começado a soprar um vento, e ambos encobriram a resposta de Aphrodite, enquanto ela, Darius e o resto do meu círculo, além de Shaylin e Erik, se afastavam – teoricamente para fazer o que eu havia pedido. O que me deixou sozinha com Stark, Lenobia e Kalona.

– Pronta? – Stark me perguntou.

– Sim, é claro – eu menti.

– Então lá vamos nós para o ginásio – Lenobia disse.

Enquanto seguia Thanatos e Nicole, eu tentei me preparar para algo terrível, mas a minha cota de coisas terríveis já estava completa por aquela noite, e tudo o que eu conseguia fazer era enxugar a chuva do meu rosto e colocar um pé na frente do outro. Na verdade, eu não estava pronta para nada além de uma boa cama.

Estava quente e seco dentro do ginásio e havia um cheiro de fumaça. A areia sob os nossos pés estava úmida e suja. Dragon detestaria ver este lugar bagunçado assim, era o que eu estava pensando quando Kalona apontou para o centro da arena mal iluminada, onde eu só conseguia discernir os vultos de Thanatos e Nicole.

– Lá... Logo ali – ele falou.

– A gente devia ter acendido as tochas – Lenobia murmurou enquanto nós caminhávamos pela areia encharcada. – Os humanos apagaram quase todos os lampiões junto com o fogo do estábulo.

Eu não quis dizer nada, mas a verdade é que fiquei feliz que estava difícil de enxergar, pois eu sabia que, seja lá o que fosse aquilo em volta do qual Thanatos e Nicole estavam, não ia ser nada bonito de ver. Mas guardei esse pensamento para mim mesma e segurei na mão de Stark, tirando força do seu aperto firme.

– Olhem por onde andam – Thanatos disse quando nos aproximamos de onde ela e Nicole estavam, sem levantar os olhos, ajoelhada no chão do ginásio. – Há evidências de feitiço aqui. Quero tudo preservado e examinado para que eu possa descobrir quem é responsável por esta atrocidade.

Dei uma espiada por sobre o ombro dela, sem entender muito bem o que eu estava vendo. Um círculo tinha sido traçado na areia, que parecia estranha e escura do lado de dentro do círculo. Havia duas bolas de pelo no centro. Ao lado, palavras escritas na areia. Franzi os olhos, tentando decifrá-las.

– Que diabo é isso? – perguntei.

Os vampiros vermelhos enxergam muito melhor no escuro, então, quando Stark colocou seu braço em volta de mim, eu sabia que era algo ruim. Muito ruim. Antes que eu repetisse a minha pergunta, Nicole enfiou a mão no seu bolso e pegou seu telefone.

– Vou tirar uma foto com flash. Vai incomodar os seus olhos, mas pelo menos a foto vai sair.

Ela estava certa. No instante seguinte, eu estava piscando, lacrimejando e vendo pontinhos. Kalona, cuja visão imortal era menos suscetível aos efeitos da luz do que qualquer vampiro, disse solenemente:

– Isso é obra eu sei de quem. Vocês não conseguem sentir a presença dela ainda pairando por aqui?

A minha visão se clareou e eu me aproximei mais, apesar de Stark tentar me puxar para trás. Tarde demais, entendi para o que eu estava olhando.

– Shadowfax! Ele está morto!

– Sacrificado em um ritual macabro – Thanatos afirmou.

– E Guinevere também – Nicole acrescentou.

Achei que eu fosse vomitar.

– O gato de Dragon e a gata de Anastasia? Os dois foram mortos? – perguntei.

Thanatos estendeu o braço e gentilmente passou a mão na lateral do corpo de Shadowfax e depois na gata bem menor que estava encolhida ao lado dele.

– Esta gata pequena não foi sacrificada. Ela não tomou parte no ritual. A tristeza parou o seu coração e a sua respiração. – A Grande Sacerdotisa se levantou e voltou-se para Kalona. – Você disse que sabe de quem isso é obra.

– Eu sei, assim como você sabe. Neferet sacrificou a gata do guerreiro. Isso foi feito como pagamento. As Trevas a obedecem, mas o preço por essa obediência é sangue, morte e dor. Esse preço precisa ser pago sempre, sem parar. As Trevas nunca se dão por satisfeitas – ele apontou para as palavras escritas no chão. – Aquilo prova o que eu digo.

Naquela luz fraca, eu conseguia ver os corpos dos gatos, mas para mim era difícil entender as palavras ao lado deles. Não precisei perguntar o que significavam. Segurando-me bem perto dele, Stark leu em voz alta:

– Através do pagamento de sangue, dor e batalha, eu forço o Receptáculo a ser minha arma!

– Receptáculo é como Neferet se refere a Aurox – Kalona explicou.

– Ah, grande Deusa, isso prova mais do que o fato de isto aqui ser obra de Neferet – o olhar sombrio de Thanatos encontrou o meu. – A morte de sua mãe não foi simplesmente um sacrifício aleatório para as Trevas. Foi o pagamento exigido para a criação do Receptáculo, Aurox, a criatura de Neferet.

Senti minhas pernas fraquejarem e me aproximei ainda mais de Stark. Senti como se o braço dele fosse a única coisa que estivesse me mantendo em pé.

– Eu sabia que aquele maldito menino-touro não era boa coisa – Stark disse. – Nem ferrando que ele é algum tipo de presente de Nyx.

– O Receptáculo é o oposto disso. Ele é uma criatura feita de dor e de morte pelas Trevas e controlada por Neferet – Thanatos afirmou.

Eu não podia contar a eles o que eu tinha visto através da pedra da vidência. Como eu poderia, com os braços de Stark em volta de mim, Dragon recém-morto e a atrocidade cometida contra os gatos? Mas eu estava em carne viva – muito cansada, ferida e confusa para vigiar minhas palavras e não falar o nome de Heath sem querer. Então, em vez disso, como uma retardada, eu soltei:

– Tem que haver algo mais em Aurox além disso! Lembra quando ele foi fazer uma pergunta para você depois da aula? Ele queria saber quem ele era; o que ele era. Você disse que ele podia decidir isso por ele mesmo e que ele não devia deixar que o seu passado controlasse o seu futuro. Por que uma criatura feita totalmente de Trevas, alguém que não é nada além do Receptáculo de Neferet, iria se preocupar em perguntar qualquer coisa sobre si mesmo?

– Você tem razão. Eu lembro que Aurox veio falar comigo – Thanatos assentiu. Seu olhar se voltou para os corpos dos gatos. – Talvez Aurox não seja um receptáculo completamente vazio. Talvez a interação dele conosco e com você em particular, Zoey, tenha tocado algum pedaço de consciência dentro dele.

Senti uma onda de emoção que fez Stark me olhar de modo alarmado e questionador.

– Ele estava dizendo a verdade! – eu expliquei. – Hoje à noite, logo antes de fugir, Aurox disse: “Eu escolhi um futuro diferente. Eu escolhi um futuro novo”. Ele quis dizer que não queria machucar Rephaim nem Dragon, mas que não conseguia evitar, já que Neferet o controlava.

– Isso faz sentido – Thanatos concordou, falando devagar, como se estivesse abrindo caminho verbalmente por um labirinto. – O sacrifício do familiar de Dragon Lankford foi preciso porque Neferet estava perdendo o controle sobre o seu Receptáculo. Todos nós vimos Aurox se transformar de touro em garoto e depois começar a se transformar de novo em touro quando ele fugiu.

– Você também deve ter visto como ele ficou atordoado quando virou Aurox de novo e viu o que ele tinha feito com Dragon – eu disse.

– Isso não muda o fato de que Aurox matou Dragon – Stark afirmou. Eu senti a tensão que emanava dele e odiei perceber que o seu rosto tinha uma expressão severa.

– Mas e se ele só matou Dragon porque Neferet fez esse sacrifício horrível com Shadowfax? – perguntei, tentando fazer Stark enxergar que poderia haver mais de uma resposta certa.

– Zoey, isso não faz com que Dragon esteja menos morto – Stark respondeu, tirando o braço que estava ao meu redor e se afastando um pouco de mim.

– Nem faz com que Aurox seja menos perigoso – Kalona acrescentou.

– Mas talvez faça com que ele seja uma ameaça menor do que nós imaginávamos a princípio – Thanatos falou racionalmente. – Se Neferet precisa conduzir um ritual de sacrifício desta extensão a cada vez que quer controlá-lo, ela vai ter que escolher cuidadosamente e ser bem seletiva sobre quando e como usá-lo.

– Ele disse várias vezes que tinha escolhido um futuro diferente – eu insisti.

– Z., isso não faz de Aurox um cara do bem – Stark afirmou, balançando a cabeça para mim.

– Sabe, as pessoas podem mudar – Nicole de repente deu sua opinião. Todos nós olhamos surpresos para ela. Obviamente, eu não era a única que tinha esquecido que ela estava ali.

Eu odiava concordar com Nicole, então só mordi meu lábio, em silêncio e inquieta.

– Aurox não é uma pessoa, não é um cara nem do bem nem do mal – a voz profunda de Kalona ressoou como uma bomba no ginásio escuro, atordoando meus nervos já combalidos. – Aurox é um Receptáculo. Uma criatura feita para ser a arma de Neferet. Teria ele uma consciência e a capacidade de mudar? – ele deu de ombros. – Nós só podemos imaginar isso. E sinceramente, isso importa? Não faz diferença se uma lança tem consciência. O que importa é quem está manejando a arma. Neferet, claramente, está manejando Aurox.

– Há quanto tempo você sabe disso? – contra-ataquei Kalona. Stark estava me encarando como se eu estivesse sendo irracional, mas eu não me contive. Mesmo que eu não soubesse como contar a eles, eu acreditava que tinha visto de relance a alma de Heath dentro de Aurox através da pedra da vidência. – Se você sabia o que Aurox era, por que nunca disse nada até agora?

– Ninguém me perguntou – Kalona respondeu.

– Isso não justifica – eu falei, descarregando toda a minha raiva, frustração e confusão com o enigma Aurox/Heath em cima de Kalona. – O que mais você escondeu de nós?

– O que mais você quer saber? – ele respondeu sem hesitar. – Apenas pense bem, jovem Sacerdotisa, se você realmente quer ouvir as respostas para as perguntas que fizer.

– Você deveria estar do nosso lado, lembra? – Stark disse, colocando-se entre mim e Kalona.

– Eu me lembro de mais do que você imagina, vampiro vermelho – Kalona falou.

– O que você quer dizer com isso? – Stark rebateu.

– Isso significa que você não foi sempre todo bonzinho! – Nicole gritou.

– Não se atreva a falar dele! – atirei minhas palavras contra ela.

– De novo, vocês brigam uns com os outros! – Thanatos gritou, e a ira na sua voz agitou o ar à nossa volta. – A nossa inimiga cometeu atrocidades na nossa própria casa. Ela não matou apenas uma ou duas vezes, mas várias. Ela se aliou ao maior mal que este mundo já conheceu. E, ainda assim, vocês se atacam entre si. Se nós não somos capazes de nos unir, então ela já nos derrotou.

Thanatos balançou a cabeça com tristeza. Ela deu as costas para nós e se voltou para os dois gatos. A Grande Sacerdotisa se ajoelhou ao lado dos seus corpos e, mais uma vez, passou a mão suavemente sobre cada um deles. Desta vez, o ar acima dos gatos começou a emitir uma luz trêmula, e os contornos brilhantes de Shadowfax e Guinevere se materializaram – só que eles não eram os gatos adultos que jaziam imóveis e frios no chão da arena. Eles eram filhotes. Gatinhos gorduchos e adoráveis.

– Vão ao encontro da Deusa, pequeninos – Thanatos falou com eles afetuosamente. – Nyx e aqueles a quem vocês mais amam esperam por vocês. – O pequeno Shadowfax estendeu uma patinha felpuda para brincar com a manga de Thanatos que estava balançando no ar, até que os dois gatos desapareceram em um sopro de luz.

Eu podia jurar ter ouvido o som distante da risada musical de Anastasia, e imaginei que ela e Dragon deviam estar em êxtase recepcionando os seus gatinhos no Mundo do Além.

O Mundo do Além...

Minha mãe estava lá, junto com Dragon, Anastasia, Jack e, se eu estivesse errada sobre o que vi dentro de Aurox, Heath estava lá também... Eu havia estado lá. Eu sabia que o Mundo do Além existia com tanta certeza quanto sabia que eu existia. Eu também sabia que era um lugar mágico e incrível e, mesmo que aquela não fosse a minha hora de morrer e ficar lá, a beleza daquele lugar ainda permanecia na minha mente e na minha alma, formando uma espécie de bolha de maravilhas e segurança, que era completamente o oposto do que o mundo real em volta de mim tinha se tornado.

– Seria tão mal assim se nós perdêssemos?

Não percebi que eu havia falado em voz alta até Stark sacudir meu ombro.

– Do que você está falando, Z.? Nós não podemos perder porque Neferet não pode ganhar. As Trevas não podem vencer.

Eu podia ver a sua preocupação e sentir o seu medo. Eu sabia que eu o estava assustando, mas não consegui me conter. Eu estava tão incrivelmente cansada de tudo ser uma batalha entre as Trevas e a Luz, entre a morte e o amor. Por que tudo não podia simplesmente terminar? Eu daria qualquer coisa para que tudo isso simplesmente acabasse!

– Qual é a pior coisa que pode acontecer? – eu me escutei dizendo e depois continuei sem pensar, respondendo à minha própria pergunta. – Neferet vai nos matar. Bem, estar morto não parece tão terrível – indiquei com a mão a direção onde os gatos haviam se manifestado recentemente.

– Afe, desistir totalmente? – Nicole murmurou em voz baixa, em desgosto.

– Zoey Redbird, a morte está longe de ser a pior coisa que pode acontecer a qualquer um de nós – Thanatos afirmou. – Sim, as Trevas parecem extremamente poderosas agora, principalmente depois de tudo que nós descobrimos nesta noite, mas também existe amor e Luz aqui. Pense em quanta tristeza as suas palavras iriam trazer para Sylvia Redbird.

Senti uma onda de culpa. Thanatos estava certa. Havia coisas piores do que morrer, e essas coisas piores acontecem com as pessoas que se deixa para trás. Abaixei a cabeça e me aproximei de Stark, pegando sua mão.

– Sinto muito. Vocês estão certos. Eu nunca devia ter dito isso.

Thanatos sorriu gentilmente para mim.

– Volte para a sua estação. Reze. Durma. Encontre conforto e orientação nas palavras que Nyx falou para nós: “Guardem a lembrança da cura que aconteceu aqui nesta noite. Vocês vão precisar dessa força e dessa paz para a luta que está a caminho”. – Ela hesitou, deu um forte suspiro e acrescentou: – Você é tão jovem.

Eu queria gritar: Eu sei! Sou jovem demais para salvar o mundo! Em vez disso, fiquei parada ali em silêncio, sentindo-me tola e inútil, enquanto Thanatos se abaixava e recolhia os corpos de Shadowfax e Guinevere, envolvendo-os em uma de suas volumosas saias, segurando-os com delicadeza e ternura, como se eles fossem bebês adormecidos. Então ela fez um gesto para Kalona, dizendo:

– Venha comigo. Preciso dar a triste notícia da morte do Mestre da Espada para os Filhos de Erebus. Enquanto eu faço isso, comece a construir uma pira para Dragon e estes pequenos. No momento em que eu acender a pira, irei oficialmente proclamar você como o guerreiro da Morte. – Sem se dirigir a mim outra vez, Thanatos saiu do ginásio. Kalona a seguiu sem nem olhar de relance para mim e Stark.

– Enfim, o time de vocês é um saco – Nicole se afastou de nós também, balançando a cabeça.

Eu podia sentir o olhar de Stark em mim. A mão dele, entrelaçada à minha, parecia rígida. Levantei os olhos para ele, certa de que ele ia me chacoalhar, gritar comigo ou pelo menos perguntar que diabo estava havendo comigo. De novo.

Em vez disso, ele abriu os braços e disse:

– Venha cá, Z. – e ele simplesmente me deu amor.


4 Aurox

Aurox correu, sem saber ou se importar para onde o seu corpo o estava levando. Ele só sabia que tinha que fugir do círculo, e de Zoey, antes que ele cometesse outra atrocidade. Os seus pés, completamente transformados em cascos fendidos e demoníacos, rasgavam o solo fértil, transportando-o em uma velocidade sobre-humana através dos campos de lavanda adormecidos pelo inverno. Como o vento que batia no seu corpo, as emoções oscilavam dentro de Aurox.

Confusão – ele não queria machucar ninguém, mas mesmo assim tinha matado Dragon e talvez até Rephaim.

Raiva – ele tinha sido manipulado, controlado contra a sua vontade!

Desespero – jamais acreditariam que ele não tinha a intenção de machucar ninguém. Ele era uma besta, uma criatura das Trevas. O Receptáculo de Neferet. Todos iriam odiá-lo. Zoey iria odiá-lo.

Solidão – mesmo assim, ele não era o Receptáculo de Neferet. Não importava o que havia acontecido naquela noite. Não importava como ela tinha conseguido controlá-lo. Ele não pertencia, não iria pertencer a Neferet. Não depois de ver o que ele tinha visto esta noite... e de sentir o que ele havia sentido.

Aurox havia sentido a Luz. Apesar de ele não ter sido capaz de abraçá-la, ele havia compreendido a força de sua bondade no círculo mágico e reconhecido a sua beleza na invocação dos elementos. Até aqueles filamentos repugnantes controlarem a besta dentro dele, Aurox tinha assistido, fascinado, ao ritual comovente que havia culminado com a Luz limpando o toque das Trevas na terra e nele, apesar de a purificação que sentiu ter durado apenas um momento. Que foi o bastante para que Aurox percebesse o que havia feito. E então a raiva justa e o ódio compreensível que os guerreiros sentiram tomaram conta dele, e Aurox só teve humanidade suficiente para fugir e não matar Zoey.

Aurox encolheu os ombros e gemeu quando a transformação de besta em garoto novamente ondulou pelo seu corpo, deixando-o descalço e com o peito nu, vestido apenas com um jeans rasgado. Uma fraqueza terrível dominou o seu corpo. Trêmulo e respirando com dificuldade, ele diminuiu a velocidade, passando a caminhar de modo vacilante. A sua mente era uma batalha. Ele sentia ódio por si mesmo. Aurox vagou a esmo antes do amanhecer, sem saber ou se importar com onde ele estava, até que ele não pode mais ignorar as necessidades físicas do seu corpo e seguiu o cheiro e o barulho de água. Na beira de um riacho cristalino, Aurox se ajoelhou e bebeu, até que o fogo dentro dele estivesse saciado. E então, dominado pela exaustão e pelas emoções, ele desabou. Um sono sem sonhos finalmente venceu a batalha dentro dele, e Aurox adormeceu.

Aurox despertou com o som dela cantando. Era uma voz tão serena e relaxante que no começo ele nem abriu os olhos. A voz dela era cadenciada, como a batida do coração, mas foi algo além do seu ritmo que tocou Aurox. Foi a emoção que inundava a sua canção. Não que ele a sentisse do mesmo modo que acontecia quando canalizava emoções violentas para alimentar a metamorfose que transformava o seu corpo de garoto em uma besta. A emoção na canção vinha da própria voz dela – alegre, cheia de vida, agradável. Ele não sentiu essas coisas junto com ela, mas elas trouxeram para ele imagens de alegria e permitiram que uma possível felicidade tocasse em sua mente desperta. Aurox não conseguia entender nenhuma das palavras, mas ele não precisava. A voz dela se elevava, e isso transcendia qualquer linguagem.

Mais completamente desperto, ele quis ver a dona da voz. Quis questioná-la sobre alegria. Para tentar entender como ele poderia criar aquele sentimento por si próprio. Aurox abriu os olhos e se sentou. Ele havia desabado não muito longe da casa da fazenda, perto da margem do pequeno córrego. Era uma faixa sinuosa de água límpida que corria calmamente, musicalmente, sobre areia e pedras. O olhar de Aurox seguiu o curso do riacho, à sua esquerda, até onde a mulher estava, usando um vestido sem mangas, com longas franjas de couro decoradas com contas e conchas. Ela dançava graciosamente, acompanhando o ritmo da sua canção com os pés descalços. Apesar de o sol estar apenas se levantando no horizonte e de a manhã estar fria, ela estava corada, animada, cheia de energia. A fumaça do feixe de plantas secas na mão dela flutuava ao seu redor, aparentemente no mesmo ritmo da canção.

Apenas observá-la fez com que Aurox se sentisse melhor. Ele não precisou canalizar a alegria dela – a alegria era palpável ao seu redor. O espírito dele se elevou porque a mulher estava tão tomada pela emoção que ela transbordava. Ela jogou a cabeça para trás, e o seu longo cabelo prateado com fios negros tocou facilmente a sua cintura fina. Ela ergueu os braços nus, como que abraçando o sol nascente, e então começou a se mover em círculo, marcando o compasso com os pés.

Aurox estava tão envolvido pela canção que não reparou que ela estava se virando na sua direção, e que iria vê-lo, até que os olhos deles se encontraram. Então ele a reconheceu. Era a avó de Zoey, que havia ficado no centro do círculo na noite anterior. Ele esperou que ela ofegasse ou gritasse ao vê-lo de repente ali, no extenso gramado na beira do seu riacho. Em vez disso, a sua dança alegre terminou. A sua canção cessou. E ela falou com uma voz clara e calma:

– Eu o reconheço, tsu-ka-nv-s-di-na. Você é o transmorfo que matou Dragon Lankford na noite passada. Você também tentou matar Rephaim, mas não conseguiu. E você ainda arremeteu contra minha amada neta, como se pretendesse machucá-la. Você está aqui para me matar também? – Ela ergueu os braços de novo, inspirou profundamente o ar frio e puro da manhã e concluiu: – Se for assim, então eu vou dizer ao céu que meu nome é Sylvia Redbird e que hoje é um bom dia para morrer. Eu irei até a Grande Mãe para encontrar meus ancestrais com o espírito cheio de alegria.

Então ela sorriu para ele.

Foi o sorriso dela que o quebrou. Ele se sentiu despedaçar e, com uma voz trêmula que ele mal reconheceu como sua, Aurox respondeu:

– Eu não estou aqui para matá-la. Estou aqui porque não tenho nenhum outro lugar para ir.

E então Aurox começou a chorar.

Sylvia Redbird hesitou por apenas um instante. Através das suas lágrimas, Aurox a observou erguendo a cabeça de novo e assentindo, como se ela tivesse recebido a resposta para alguma pergunta. Então ela caminhou graciosamente até ele, com as longas franjas de couro do seu vestido farfalhando musicalmente com os seus movimentos e o toque da brisa fria da manhã.

Ela não hesitou quando chegou perto dele. Sylvia Redbird se sentou, cruzando seus pés descalços, e então colocou os braços em volta de Aurox, aconchegando a cabeça dele no seu ombro.

Aurox nunca soube quanto tempo eles ficaram sentados assim, juntos. Só sabia que, quando ele chorou de modo soluçante, ela o acalentou e o balançou suavemente, para a frente e para trás, cantando uma cantiga bem baixinho, dando tapinhas nas suas costas no mesmo ritmo do coração dela.

Finalmente, ele se afastou, desviando o rosto de vergonha.

– Não, meu filho – ela disse, segurando os ombros dele e forçando-o a encontrar o seu olhar. – Antes de se afastar, conte-me por que você estava chorando.

Aurox enxugou o rosto, limpou a garganta e, com uma voz que soou para ele muito jovem e tola, respondeu:

– É porque eu sinto muito.

Sylvia Redbird sustentou o seu olhar.

– E? – ela o estimulou a continuar.

Ele soltou um longo suspiro e admitiu:

– E porque eu estou muito sozinho.

Sylvia arregalou seus olhos negros.

– Você é mais do que parece ser.

– Sim. Eu sou um monstro das Trevas, uma besta – ele concordou com ela.

Os lábios dela se curvaram em um sorriso.

– Uma besta costuma chorar de tristeza? As Trevas têm a capacidade de sentir solidão? Acho que não.

– Então por que eu me sinto tão tolo por chorar?

– Pense nisto: o seu espírito chorou. Ele precisou desse pranto porque sentiu tristeza e solidão. É você quem deve decidir se isso é tolo ou não. De minha parte, já decidi que não é vergonha nenhuma ser encontrado chorando lágrimas honestas. – Sylvia Redbird se levantou e estendeu uma mão pequena e ilusoriamente frágil para ele. – Venha comigo, meu filho. Minha casa está aberta para você.

– Por que você faria isso? Na noite passada, você me viu matar um guerreiro e ferir outro. Eu também podia ter matado Zoey.

Ela inclinou a cabeça para o lado e o examinou com atenção.

– Podia mesmo? Acho que não. Ou, pelo menos, acho que o garoto que eu estou vendo neste momento não seria capaz de matá-la.

Aurox sentiu que os seus ombros desabaram.

– Mas só você acredita nisso. Ninguém mais vai acreditar.

– Bem, tsu-ka-nv-s-di-na, eu sou a única pessoa aqui com você neste momento. O fato de eu acreditar não basta?

Aurox enxugou o rosto de novo e se levantou, um pouco inseguro. Então ele pegou com muito cuidado a delicada mão dela.

– Sylvia Redbird, o fato de você acreditar é o bastante neste momento.

Ela apertou a mão dele, sorriu e disse:

– Pode me chamar de Vovó.

– Do que você me chamou, Vovó?

Ela sorriu.

– Tsu-ka-nv-s-di-na é a palavra que meu povo usa para dizer touro.

Ele sentiu uma onda de calor e depois de frio.

– A besta na qual eu me transformo é mais terrível do que um touro.

– Então talvez chamar você de tsu-ka-nv-s-di-na tire um pouco do horror daquilo que dorme dentro de você. Há poder em nomear as coisas, meu filho.

– Tsu-ka-nv-s-di-na. Vou me lembrar disso – Aurox afirmou.

Ainda se sentindo trêmulo, ele caminhou com a velha mulher mágica até a pequena casa de fazenda que ficava no meio de campos de lavanda adormecidos. Ela era feita de pedra e tinha uma ampla e convidativa varanda na entrada. Vovó o guiou até um sofá macio de couro e entregou a ele um cobertor feito à mão para colocar nos seus ombros. Então ela disse:

– Quero pedir que você descanse o seu espírito.

Aurox fez o que ela pediu, enquanto Vovó cantarolava uma canção para si mesma, acendia a lareira e fervia água para o chá. Depois ela encontrou e deu para ele um suéter e sapatos macios de couro que estavam em outro quarto. Quando a sala ficou aquecida e a canção dela cessou, Vovó fez um gesto para que ele se juntasse a ela em uma pequena mesa de madeira, oferecendo a ele a comida que estava em um prato de cor púrpura.

Aurox provou o chá adoçado com mel e comeu o que estava no prato.

– O-obrigado, Vovó – ele disse com voz trêmula. – A comida está boa. A bebida está boa. Tudo aqui é tão bom.

– O chá é de camomila e hissopo. Eu uso esse chá para me ajudar a ficar calma e focada. Os cookies são de uma receita minha: chocolate com um toque de lavanda. Sempre acreditei que chocolate e lavanda são bons para a alma – Vovó sorriu e mordeu um cookie. Eles comeram em silêncio.

Aurox nunca tinha se sentido tão satisfeito. Ele sabia que não fazia sentido, mas de algum modo ele teve uma sensação de pertencimento ali com aquela mulher. Foi essa estranha mas maravilhosa sensação de pertencimento que permitiu que ele começasse a falar com o seu coração.

– Neferet ordenou que eu viesse até aqui na noite passada. Eu deveria interromper o ritual.

Vovó assentiu. A expressão dela não era surpresa, mas contemplativa.

– Ela não queria ser descoberta como a assassina da minha filha.

Aurox a observou com atenção.

– A sua filha foi assassinada. Você assistiu ao registro disso na noite passada, mas ainda assim está serena e alegre hoje. Onde você encontra tanta paz?

– Aqui dentro – ela respondeu. – Essa paz também vem da crença de que há mais coisas funcionando aqui do que podemos ver ou provar. Por exemplo, no mínimo eu deveria temê-lo. Alguns diriam que eu deveria odiá-lo.

– Muitos diriam isso.

– Ainda assim, eu não temo nem odeio você.

– Você... você está me confortando. Dando-me abrigo. Por quê, Vovó? – Aurox perguntou.

– Porque eu acredito no poder do amor. Acredito na escolha da Luz em vez das Trevas, da alegria ao invés do ódio, da confiança ao invés do ceticismo – Vovó afirmou.

– Então isso não tem nada a ver comigo. É simplesmente porque você é uma pessoa boa – ele falou.

– Eu acho que ser uma pessoa boa nunca é muito simples, você não acha? – ela disse.

– Eu não sei. Nunca tentei ser uma boa pessoa – ele passou a mão pelo seu cabelo loiro e grosso, como um sinal de frustração.

Os olhos de Vovó se enrugaram quando ela sorriu.

– Nunca mesmo? Na noite passada, uma imortal poderosa ordenou que você interrompesse um ritual e mesmo assim, milagrosamente, o ritual foi completado. Como isso aconteceu, Aurox?

– Ninguém vai acreditar na verdade sobre isso – ele desabafou.

– Eu vou – Vovó o encorajou. – Conte-me, meu filho.

– Eu vim até aqui para seguir as ordens de Neferet: matar Rephaim e distrair Stevie Rae, para que o círculo fosse quebrado e o ritual não funcionasse, mas eu não poderia fazer isso. Eu não poderia quebrar algo que estava tão cheio de Luz, tão bom – ele falou com pressa, querendo botar a verdade para fora antes que Vovó o parasse. – Então as Trevas tomaram posse de mim. Eu não queria me transformar! Eu não queria que aquela criatura feito touro emergisse! Mas eu não consegui controlá-la e, quando ela se fez presente, só lembrava da sua última ordem: matar Rephaim. Foi só a onda de elementos e o toque da Luz que detiveram a besta o suficiente para que eu recuperasse algum controle e fugisse.

– Foi por isso que você matou Dragon. Porque ele tentou proteger Rephaim – ela concluiu.

Aurox concordou, abaixando a cabeça de vergonha.

– Eu não queria matá-lo. Eu não pretendia matá-lo. As Trevas controlaram a besta, e a besta me controlou.

– Mas não agora. A besta não está aqui agora – Vovó disse suavemente.

Aurox encontrou o olhar dela.

– Ela está. A besta sempre está aqui – ele apontou para o meio do seu peito. – Ela está eternamente dentro de mim.

Vovó cobriu a mão dele com a sua.

– Pode ser, mas você também está aqui. Tsu-ka-nv-s-di-na, lembre-se de que você controlou a besta o suficiente para fugir. Talvez isso seja um começo. Aprenda a confiar em si mesmo, e então os outros podem aprender a confiar em você.

Ele balançou a cabeça.

– Não, você é diferente de todos os outros. Ninguém vai acreditar em mim. Eles só vão enxergar a besta. Ninguém vai se importar o bastante para confiar em mim.

– Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.

Aurox piscou os olhos, surpreso. Ele não tinha pensado nisso. As emoções dele estavam em um turbilhão tão grande que ele nem tinha percebido a extensão dos atos de Zoey.

– Ela realmente me protegeu – ele disse devagar.

Vovó acariciou a mão dele.

– Não deixe que a crença dela em você seja desperdiçada. Escolha a Luz, meu filho.

– Mas eu já tentei e falhei!

– Tente de novo, esforce-se mais – ela falou com firmeza.

Aurox abriu a boca para protestar, mas os olhos de Vovó calaram as suas palavras. O olhar dela disse que as suas palavras eram mais do que uma ordem: era uma crença de que ele era capaz.

Ele abaixou a cabeça novamente. Desta vez não de vergonha, mas devido a um lampejo incerto de esperança. Aurox levou um momento para saborear esse novo e maravilhoso sentimento. Então, gentilmente, ele tirou sua mão debaixo das mãos de Vovó e se levantou. Em resposta ao olhar questionador dela, ele disse:

– Tenho que aprender como fazer para provar que você está certa.

– E como você vai fazer isso, meu filho?

– Preciso encontrar a mim mesmo – ele falou sem hesitação.

Ela deu um sorriso afetuoso e iluminado. Inesperadamente, aquele sorriso o lembrou de Zoey, o que fez com que aquele lampejo incerto de esperança se expandisse até aquecer o seu interior.

– Aonde você vai? – ela quis saber.

– Aonde eu possa fazer o bem – ele respondeu.

– Aurox, meu filho, saiba que, desde que você controle a besta e não mate de novo, sempre pode encontrar abrigo aqui comigo.

– Nunca vou me esquecer disso, Vovó.

Quando ela o abraçou perto da porta, Aurox fechou os olhos e inspirou o aroma de lavanda e o toque de amor de uma mãe. Aquele aroma e aquele toque permaneceram com ele enquanto dirigia devagar de volta para Tulsa.

Aquele dia de fevereiro estava claro e, como o homem no rádio havia dito, quente o bastante para os carrapatos começarem a acordar. Aurox estacionou o carro de Neferet em uma das vagas da parte dos fundos da Utica Square, e então ele deixou que o seu instinto guiasse os seus passos enquanto caminhava do movimentado centro de compras até a rua detrás, chamada South Yorktown Avenue. Aurox sentiu o cheiro de fumaça antes de chegar ao grande muro de pedra que circundava a Morada da Noite.

Esse fogo é obra de Neferet. Tem o cheiro desagradável das Trevas que emanam dela, Aurox pensou. Ele não se permitiu imaginar o que aquele fogo podia ter destruído. Ele se concentrou em apenas seguir o seu instinto, que estava dizendo que ele deveria voltar para a Morada da Noite para encontrar a si mesmo e a sua redenção. O coração de Aurox estava batendo forte quando ele passou por ali despercebido e entrou nas sombras do muro, aproximando-se de modo rápido e silencioso da fronteira leste da escola. Então ele chegou perto de um velho carvalho que havia sido partido ao meio tão violentamente que uma parte dele estava apoiada contra o muro da escola.

Foi realmente fácil escalar o muro, agarrar os galhos desfolhados pelo inverno da árvore despedaçada e então aterrissar no chão do outro lado. Aurox se agachou na sombra da árvore. Como ele esperava, a luminosidade do sol havia esvaziado os jardins da escola, mantendo novatos e vampiros dentro dos edifícios de pedra, atrás de janelas com cortinas escuras. Ele deu a volta na base partida da árvore, analisando a Morada da Noite.

Era o estábulo que havia pegado fogo. Ele podia ver isso facilmente. Parecia que o incêndio não tinha se alastrado, apesar de ter deixado uma parede externa do estábulo no chão. Aquela abertura avariada já havia sido coberta com uma grossa lona preta. Aurox se encostou mais na árvore. Escolhendo cuidadosamente o seu caminho por entre os fragmentos espalhados da base quebrada da árvore e da confusão de galhos emaranhados, Aurox se perguntou por que ninguém tinha pensado em tirar aqueles escombros do outrora bem cuidado jardim. Mas ele não teve tempo de pensar muito nisso. Um corvo enorme de repente pousou em um galho inclinado bem na frente dele e começou uma série terrível e bem alta de grasnados e pios estranhamente perturbadores.

– Vá embora! Suma daqui! – Aurox sussurrou, fazendo barulhos para enxotar a grande ave, o que só fez com que a criatura explodisse em mais grasnados. Aurox se lançou na direção do corvo, com a intenção de sufocá-lo, mas seus pés ficaram presos em uma raiz exposta. Ele caiu para a frente, batendo no chão com força. Para o seu espanto, ele continuou caindo quando a terra se abriu embaixo dele, com o peso do seu corpo, e ele foi arremessado de ponta-cabeça para baixo, e foi caindo, caindo...

Até que Aurox sentiu uma dor terrível no lado direito da cabeça, e então o seu mundo ficou escuro.


5 Zoey

Eu havia adormecido aconchegada nos braços de Stark, então foi totalmente confuso acordar com ele me sacudindo, fuzilando-me com os olhos e quase gritando: “Zoey! Acorde! Pare com isso! Estou falando sério!”.

– Stark? Ahn? – eu me sentei, desalojando Nala, que havia se transformado em um donut laranja e gordo em cima do meu quadril. “Miiaaauuu!”, Nala resmungou e caminhou até a ponta da cama. Olhei para a minha gata e para o meu guerreiro: ambos estavam me encarando como se eu tivesse cometido um assassinato em massa. – O que foi? – falei em meio a um grande bocejo. – Eu só estava dormindo.

Stark pegou seu travesseiro e o estufou para ficar mais sentado na cama. Ele cruzou os braços, balançou a cabeça e desviou os olhos de mim.

– Acho que você estava fazendo muito mais do que apenas dormir.

Eu quis estrangulá-lo.

– Sério, o que há com você? – perguntei.

– Você disse o nome dele.

– O nome de quem? – fechei os olhos, tendo um flashback com aquele velho filme assustador chamado Vampiros de Almas 2 e me perguntando se Stark tinha se transformado em uma réplica alienígena dele mesmo.

– Do Heath! – Stark franziu a testa para mim. – Três vezes. Isso me acordou. – Ainda sem olhar para mim, ele disse: – Com o que você estava sonhando?

O que ele falou me deixou totalmente chocada, provocando uma batalha mental em mim. Com que diabo eu estava sonhando? Pensei no que tinha acontecido mais cedo. Lembrei de Stark me beijando antes de eu ir dormir. Lembrei que o beijo foi supergostoso, mas eu estava muito cansada e, em vez de fazer algo além de retribuir o beijo, tinha encostado a cabeça no ombro dele e desmaiado. Depois disso, eu não me lembrava de mais nada, até ele começar a me chacoalhar e a gritar comigo para que eu parasse.

– Não tenho a menor ideia – respondi honestamente.

– Você não precisa mentir para mim.

– Stark, eu não mentiria para você – afastei meu cabelo do rosto e toquei no braço dele. – Eu não me lembro de ter sonhado com nada.

Então ele olhou para mim. Os seus olhos estavam tristes.

– Você estava chamando Heath. Eu estou dormindo bem aqui ao seu lado, mas você estava chamando por ele.

O jeito com que ele falou me deu um aperto no coração. Eu detestava tê-lo magoado. Eu podia ter dito que era ridículo ele ficar bravo comigo por algo que eu tinha falado quando estava dormindo, algo de que eu nem me lembrava. Mas, ridícula ou não, a mágoa de Stark era real. Deslizei a minha mão para dentro da dele.

– Ei – eu disse baixinho. – Sinto muito.

Ele entrelaçou seus dedos aos meus.

– Você queria que ele estivesse aqui em vez de mim?

– Não – afirmei. Eu amava Heath desde que eu era criança, mas eu não trocaria Stark por ele. É claro que o resto da verdade era que, se fosse Stark quem tivesse sido assassinado, eu também não trocaria Heath por ele. Mas definitivamente aquilo era algo que Stark não precisava ouvir, nem agora nem nunca.

Amar dois caras era uma coisa confusa, mesmo quando um dos dois estava morto.

– Então você não estava chamando por Heath porque queria estar com ele em vez de mim?

– Eu quero você. Prometo – eu me inclinei para a frente e ele abriu os braços para mim. Eu me encaixei perfeitamente contra o peito dele e inspirei o seu cheiro familiar.

Ele beijou o topo da minha cabeça e me abraçou.

– Sei que é idiota ter ciúmes de um cara morto.

– É – falei.

– Especialmente porque na verdade eu gostava do cara morto.

– Pois é – concordei.

– Mas nós pertencemos um ao outro, Z.

Eu me inclinei para trás para poder olhar nos olhos dele.

– Sim – eu disse seriamente –, nós pertencemos. Por favor, nunca se esqueça disso. Não importa quanta loucura estiver rolando ao redor de nós... Eu posso lidar com isso, mas preciso saber que o meu guerreiro está do meu lado.

– Sempre, Z. Sempre – ele afirmou. – Eu te amo.

– Eu também te amo, Stark. Sempre – então eu o beijei e mostrei para ele que absolutamente não havia motivo algum para ele ter ciúme de ninguém. E, pelo menos por um tempinho, deixei que o calor do amor dele afugentasse a lembrança do que eu tinha visto quando olhei através da pedra da vidência naquela noite...

Da próxima vez que despertei, foi porque eu estava quente demais. Ainda estava nos braços de Stark, mas ele tinha se mexido um pouco e atirado sua perna por cima de mim, fazendo de mim um casulo com meu cobertor azul e felpudo. Desta vez, ele não estava dando uma de Namorado Louco. Ele estava fofo, dormindo como um garotinho.

Como sempre, Nala tinha feito sua cama no meu quadril, então antes que ela resmungasse eu a levantei um pouco, deslizando junto com ela para o lado mais frio da cama o mais silenciosamente possível. Totalmente adormecido, Stark fez um movimento vago com a sua mão da espada, como que estendendo o braço para me defender. Eu me concentrei em pensamentos felizes – refrigerante marrom, sapatos novos, gatinhos que não espirravam no meu rosto – e ele relaxou.

Tentei relaxar também – para valer. Nal me encarou. Cocei atrás da orelha dela e sussurrei:

– Desculpe por acordá-la. De novo.

Ela esfregou a cara no meu queixo, espirrou em mim e pulou de volta em cima do meu cobertor azul e felpudo. Então ela girou três vezes em círculo e voltou a ser um donut adormecido de pelos.

Suspirei. Eu precisava fazer como Nala, ficar encolhida e voltar a dormir, mas a minha mente estava desperta demais. E junto ao fato de estar desperta vinha o ato de pensar. Depois que fizemos amor, Stark havia murmurado meio sonolento:

– Nós estamos juntos. Todo o resto vai se resolver.

E eu tinha adormecido sentindo-me segura de que ele estava certo.

Mas agora que, infelizmente, eu estava totalmente consciente, não conseguia evitar aquela coisa toda de pensar demais e me preocupar demais. Apesar de eu supor que, se Stark soubesse o que eu imaginei ter visto através da pedra da vidência na noite passada, ele iria retirar aquele comentário de “todo o resto vai se resolver” e voltar ao papel de Senhor Tenho Ciúme de um Cara Morto.

Coloquei minha mão em cima da pequena pedra arredondada que pendia de uma fina corrente de prata em volta do meu pescoço e balançava inocentemente entre os meus seios. Parecia normal – como qualquer outro colar que eu poderia ter usado. Ela não estava irradiando nenhum calor estranho. Eu a tirei de debaixo da minha camiseta e a ergui devagar. Inspirei profundamente para me fortificar e dei uma olhada em Stark através da pedra.

Nada estranho aconteceu. Stark continuou sendo Stark. Virei o colar um pouco e olhei para Nala. Ela continuou sendo uma gata adormecida gorda e alaranjada.

Coloquei a pedra da vidência de novo embaixo da minha camiseta. E se eu tivesse imaginado tudo aquilo? Como Heath poderia estar em Aurox? Até Thanatos disse que Aurox tinha sido criado pelas Trevas através do sacrifício da minha mãe. Ele era um Receptáculo – uma criatura sob o controle de Neferet.

Mas ela precisou matar Shadowfax para controlá-lo totalmente, e Aurox tinha feito aquelas perguntas sobre o que ele realmente era para Thanatos.

Ok, mas alguma dessas coisas fazia diferença? Aurox não era Heath. Heath estava morto. Ele havia partido para um reino mais distante do Mundo do Além para o qual eu não pude ir porque Heath estava morto.

Refletindo a minha inquietação, Stark se remexeu, franzindo a testa em seu sono. A gata Nala rosnou de novo. Eu não queria de jeito nenhum que eles acordassem, então saí da cama em silêncio e andei nas pontas dos pés para fora do quarto, abaixando-me para passar embaixo do cobertor que Stark e eu usávamos como porta.

Refrigerante marrom. Eu precisava seriamente de uma dose de refrigerante marrom. Talvez eu tivesse sorte e encontrasse um pouco de cereal Count Chocula e um resto de leite que não estava azedo. Hum, só de pensar nisso eu me senti um pouco melhor. Eu realmente merecia um pouco do cereal que eu tanto amava no café da manhã.

Fui arrastando os pés pelo túnel mal iluminado, passando por corredores menores e outras portas fechadas com cobertores, atrás das quais meus amigos descansavam enquanto aguardávamos o sol se pôr. Até que entrei na área comum que usávamos como cozinha. O túnel meio que acabava ali, abrindo espaço para algumas mesas, laptops e geladeiras grandes.

– Deve ter sobrado um pouco de refrigerante marrom por aqui – murmurei para mim mesma, enquanto eu vasculhava a primeira geladeira.

– Tem na outra geladeira.

Dei um gritinho idiota e pulei de susto.

– Afe, Shaylin! Não fique espreitando pelos cantos assim. Você quase me fez fazer pipi nas calças.

– Desculpe, Zoey – ela foi até a segunda das três geladeiras e pegou uma lata de refrigerante marrom não diet, totalmente cheio de açúcar e cafeína, e o estendeu para mim com um sorriso de desculpas.

– Você não deveria estar dormindo? – sentei na cadeira mais próxima e dei um gole no meu refrigerante, tentando não parecer tão mal-humorada quanto eu estava.

– É, bem, eu estou cansada sim. Posso sentir que o sol não se pôs ainda, mas estou com muita coisa na cabeça. Entende o que quero dizer?

Bufei ligeiramente.

– Entendo perfeitamente o que você quer dizer.

– A sua cor está meio que desligada – Shaylin fez esse comentário de um jeito indiferente, como se ela tivesse acabado de falar algo tão normal quanto mencionar a cor da minha camiseta.

– Shaylin, na verdade eu não entendo muito bem sobre essa coisa de cor que você costuma falar.

– Eu também não sei muito bem o quanto entendo. Tudo o que sei é o que vejo e, se não penso muito sobre isso, normalmente faz sentido para mim.

– Ok, dê um exemplo de como isso normalmente faz sentido para você.

– Isso é fácil. Vou usar você como meu exemplo. As suas cores não mudam muito. Na maior parte do tempo, você é roxa com pontinhos prateados. Mesmo quando você estava se preparando para ir ao ritual na fazenda de sua avó, e sabia que isso seria algo difícil de assistir, as suas cores permaneceram as mesmas. Eu conferi porque... – ela perdeu a fala.

– Você conferiu porque... – eu a incentivei a continuar.

– Porque eu estava curiosa. Eu conferi as cores de todos antes de vocês saírem, mas, bem, acabei de perceber como isso soa invasivo.

Franzi minha testa para ela.

– Isso não é como se você estivesse lendo nossas mentes nem nada parecido. Ou é?

– Não! – ela me assegurou. – Mas quanto mais passa o tempo em que eu tenho essa coisa da Visão Verdadeira, e quanto mais eu pratico, mais real isso fica para mim. Zoey, eu acho que isso me diz coisas sobre as pessoas, coisas que às vezes elas preferem esconder.

– Como Neferet. Você disse que por dentro ela tem cor de olho de peixe morto, e por fora ela é deslumbrante.

– Sim, exato. Mas também como o que eu estou vendo em você. Mas, como Kramisha diria, eu não devo me meter onde não fui chamada.

– Por que você não me conta o que está vendo em mim, e depois eu digo se acho que você está se metendo onde não foi chamada ou não?

– Bem, desde que você voltou do ritual na fazenda de sua avó, as suas cores estão mais escuras – ela fez uma pausa e me encarou. Então ela balançou a cabeça e se corrigiu: – Não, isso não é totalmente preciso. As suas cores não estão apenas mais escuras, elas estão mais turvas. Como se o roxo e o prata tivessem sido misturados e cobertos de lama.

– Ok – falei devagar, começando a entender o que ela quis dizer com violação. – Entendi que você vê uma diferença em mim, e isso é meio estranho, principalmente porque você falou que minhas cores não costumam mudar. Mas o que isso significa para você?

– Ah, sim, desculpe. Acho que significa que você está confusa com alguma coisa, com algo sério. Isso está incomodando você. Realmente mexendo com a sua cabeça. É mais ou menos por aí?

Concordei com a cabeça.

– É mais ou menos por aí.

– E você se sente estranha por eu saber disso?

Assenti novamente.

– É, um pouco – pensei por um instante nisso e então acrescentei: – Mas aí vai a verdade: eu me sentiria menos estranha se soubesse que posso confiar que você não vai tagarelar para todo mundo que as minhas cores estão turvas e que eu estou realmente confusa com algo. Isso sim seria violação.

– Sim – ela soou triste. – Foi o que pensei também. Quero que você saiba que pode confiar em mim. Nunca fui fofoqueira. Além disso, esse dom que Nyx me deu quando fui Marcada, bem, é totalmente incrível. Zoey, eu posso ver novamente – Shaylin parecia que ia explodir em lágrimas. – Não quero estragar tudo. Vou usar esse dom do modo que Nyx quer que eu use.

Percebi que ela estava bastante perturbada e me senti mal por ela – principalmente por eu ter algo a ver com o fato de ela estar perturbada.

– Ei, Shaylin, está tudo bem. Eu entendo como é ter um dom pelo qual você sente uma grande responsabilidade e como é não querer estragar tudo. Caramba, você está falando com a Rainha de Meter os Pés pelas Mãos. – Fiz uma pausa e então acrescentei: – Isso é parte do motivo pelo qual estou confusa agora. Eu não quero tomar mais uma decisão errada, idiota e imatura. O que eu faço e digo afeta muito mais gente do que apenas eu. Quando tomo decisões ridículas, é como aquelas peças de dominó caindo uma atrás da outra. Novatos, vampiros e humanos, todos podem se ferrar. Isso é péssimo, mas não muda o fato de que eu realmente tenho um dom de Nyx e que sou responsável pelo modo como esse dom é usado.

Shaylin pensou um pouco no que falei, e eu dei um gole no meu refrigerante. Na verdade, eu estava gostando de conversar com ela. Era infinitamente melhor do que ficar quebrando a cabeça com Aurox, Heath, Stark, Neferet e...

– Ok, mas o que fazer nesta situação? – Shaylin interrompeu meus pensamentos. – O que fazer se eu vir as cores de uma pessoa mudarem? É minha responsabilidade contar isso para alguém... alguém como você?

– O que você quer dizer? Tipo, chegar para mim e falar: “Ei, Zoey, as suas cores estão todas turvas. O que está rolando?”?

– Bem, talvez, mas só se nós formos amigas. Mas eu estava pensando mais em algo como o que aconteceu hoje, quando eu vi Nicole. As cores dela eram como as do resto do grupo de Dallas: feito sangue misturado com tons de marrom e preto. Como algo sangrando no meio de uma tempestade de areia. Na noite passada, no estábulo, as cores dela tinham mudado. Ainda havia um vermelho enferrujado ali, mas parecia mais claro, mais brilhante, não no mau sentido. Mais como se estivesse ficando mais limpo. É estranho, mas juro que vi um pouco de azul nela. Mas não como o azul do céu. Mais como o mar. Foi isso que me fez pensar que o lado mau dela pode estar desaparecendo e, depois que pensei isso, senti que estava certa.

– Shaylin, o que você está dizendo é realmente confuso – afirmei.

– Não, para mim não é! Está ficando cada vez menos confuso. Eu simplesmente sei as coisas.

– Eu entendi e acredito que você está dizendo a verdade. O problema é que o seu saber é tão subjetivo. É como se você estivesse transformando a vida em uma prova, e as pessoas fossem as respostas, mas, em vez de as suas pessoas-respostas serem alternativas tipo verdadeiro ou falso, onde é fácil julgar se o que você captou é certo ou errado, elas são respostas dissertativas. E isso significa que o seu resultado pode variar dependendo de muitas coisas diferentes. Nada é preto ou branco – suspirei. Minha própria analogia estava fazendo minha cabeça doer.

– Mas, Zoey, a vida não é preto no branco ou verdadeiro e falso, nem as pessoas – ela deu um gole no seu refrigerante, o qual eu percebi que era claro. Fiquei pensando que eu realmente não entendia o refrigerante claro: não tinha cafeína e nunca parecia doce o bastante. Então ela continuou: – Mas eu entendo o que você está tentando dizer. Você acredita que eu vejo as cores das pessoas. Você só não acredita no julgamento que eu faço delas.

Eu comecei a negar e a dizer algo que iria fazer com que ela se sentisse melhor, mas um aperto dentro de mim me fez mudar de ideia. Shaylin precisava escutar a verdade.

– Sim, basicamente é isso.

– Bem – ela disse, endireitando os ombros e levantando o queixo –, eu acho que o meu julgamento é bom. Acho que ele está ficando cada vez melhor, e quero usar meu dom para ajudar. Eu sei que uma batalha está a caminho. Ouvi falar sobre o que Neferet fez com a sua mãe e sobre como ela escolheu as Trevas em vez da Luz. Você vai precisar de alguém como eu. Consigo ver o interior das pessoas.

Ela estava certa. Eu realmente precisava do dom dela, mas também precisava saber que podia confiar no seu julgamento.

– Ok, então vamos começar. Que tal você manter os olhos bem abertos? Conte-me se você vir a cor de alguém mudando.

– O primeiro caso que eu quero reportar é o de Nicole. Erik me contou sobre ela. Sei que ela foi realmente do mal no passado. Mas a verdade está nas cores dela, e elas dizem que ela está mudando.

– Está certo. Vou me lembrar disso – levantei as sobrancelhas para ela. – E por falar em se lembrar das coisas... Não quero ser maldosa nem nada parecido, mas você precisa ficar de olho em Erik. Ele não é sempre...

– Ele é arrogante e egoísta – ela me interrompeu, encontrando o meu olhar sem se alterar. – Ele se acha muito, por saber como é gostoso e talentoso. A vida tem sido fácil para ele, mesmo depois de você ter terminado com ele.

– Ele contou para você que eu terminei com ele? – não sabia dizer se ela estava sendo maliciosa ou não. Não parecia que ela estava sendo, mas, de novo, eu não a conhecia muito bem. Mas realmente eu tinha a impressão de que, toda vez que eu a via, eu via Erik. Não que me importasse. Sério. Não era ciúme. Era mais que eu me sentia responsável por adverti-la sobre ele.

– Ele não precisou me contar. Tipo, um bilhão de outros garotos fez isso antes dele – ela respondeu.

– Eu não tenho nenhum ressentimento em relação a Erik. Quero dizer, ele pode ficar com quem ele quiser. Se você gosta dele, por mim não tem problema nenhum – percebi que estava tendo um surto de diarreia verbal, mas eu não conseguia parar de falar. – E ele também não quer mais nada comigo. Acabou mesmo. Só que Erik é...

– É um cuzão – a voz de Aphrodite me salvou. Ela passou por nós bocejando e enfiou a cabeça em uma das geladeiras. – E agora você ouviu isso de duas ex-namoradas dele. Sendo que “ex” é a parte mais importante da frase – ela veio até a mesa e colocou na frente da cadeira vazia ao meu lado uma jarra de suco de laranja e uma garrafa, que eu imaginei ser um champanhe supercaro. – É claro que Z. não o chamou de cuzão. Ela estava sendo gentil – enquanto falava, Aphrodite voltou para a geladeira e abriu o freezer. Ouvi um barulho de vidro tinindo. Quando ela voltou para a mesa, estava segurando uma taça de cristal gelada, daquelas compridas e finas em que as pessoas bebem nas festas de Ano Novo na TV. – Já eu não sou tão gentil. Cu-zão. Esse é o nosso Erik – ela estourou a rolha da garrafa, derramou um pouquinho de suco de laranja na taça e então a encheu quase até transbordar com champanhe borbulhante. Ela abriu um sorriso para a taça e falou: – Mimosa ou, como diria minha mãe, o café da manhã dos campeões.

– Eu sei o que Erik é – Shaylin afirmou. Ela não pareceu irritada. Ela também não pareceu agradecida. Ela soou segura de si. – Eu também sei o que você é.

Aphrodite levantou uma sobrancelha loira para ela e deu um bom gole na sua Mimosa.

– Conta aí.

Oh-oh, pensei. Eu supunha que devia fazer algo para impedir o que estava para acontecer, mas era como estar parada em um trilho de trem tentando empurrar um carro para fora do caminho. Era mais provável que eu acabasse sendo atropelada pelo trem do que conseguisse salvar o carro. Então, em vez disso, fiquei olhando com cara de tonta e bebendo meu refrigerante.

– Você é prateada. Isso me lembra a luz da lua, o que me diz que você foi tocada por Nyx. Mas você também é amarela cor de manteiga, como a luz de uma pequena vela.

– E isso diz o que para você? – Aphrodite examinou as suas próprias unhas bem cuidadas, claramente sem se importar com a resposta de Shaylin.

– Isso me diz que, como uma pequena vela, você pode ser apagada facilmente.

Os olhos de Aphrodite se estreitaram e ela espalmou a mão contra a mesa.

– Já chega, garotinha nova. Eu já tenho passado por muita coisa, com toda essa merda de batalha contra as Trevas, para ter que aturar a sua boca mole ou a sua atitude de sabe-tudo – parecia que ela estava se preparando para avançar no pescoço de Shaylin. Eu estava pensando em correr para tentar encontrar Darius quando Stevie Rae surgiu na cozinha.

– E aí, pessoal! Bom dia! – ela disse e deu um grande bocejo. – Cara, estou cansada. Será que tem alguma lata de Mountain Dew na geladeira?

– Ah, que merda, agora não é de manhã. O sol já vai se pôr. E por que diabo está todo mundo acordado? – Aphrodite atirou as mãos para cima.

Stevie Rae franziu a testa para ela.

– É educado dizer “bom-dia” para as pessoas, mesmo que isso não seja tecnicamente correto. E eu gosto de acordar cedo. Não há nada de errado nisso.

– Ele é um pássaro! – Aphrodite falou, servindo-se de mais champanhe.

– Você já está bebendo?

– Sim. Quem é você? Uma versão caipira da minha mãe?

– Não, se eu fosse uma versão de sua mãe, eu não ia ligar para o fato de você beber no café da manhã, já que a sua mãe realmente tem problemas – Stevie Rae colocou a lata de Mountain Dew de volta na geladeira. – E agora que eu pensei nisso, tomar refrigerante no café da manhã provavelmente também não é uma boa ideia. Aposto que tem uma caixa de Lucky Charms por aqui em algum lugar.

– Esse cereal é magicamente delicioso – Shaylin comentou. – Se você encontrar, vou querer um pouco também.

– Count Chocula – como parecia que Aphrodite não ia matar ninguém (no momento), minha voz voltou a funcionar. – Se você vir uma caixa, eu quero.

– Que diabo há de errado com Mimosas? – Aphrodite estava dizendo. – Suco de laranja combina com café da manhã.

– E a parte do champanhe? É álcool – Stevie Rae argumentou.

– É Veuve Clicquot rosé. Isso significa champanhe bom, o que cancela a parte do álcool – Aphrodite afirmou.

– Você acredita mesmo nisso? – Shaylin perguntou.

Olhando para mim e claramente ignorando Shaylin, Aphrodite falou:

– O que é que está falando comigo?

– Estou com dor de cabeça e a gente ainda nem foi para a escola – eu disse para Aphrodite.

– O estábulo quase foi destruído pelo fogo e a nossa Grande Sacerdotisa foi expulsa por ser uma semideusa assassina. Acho que todos nós podemos faltar na aula hoje – Aphrodite sugeriu.

– Nananina – Stevie Rae rebateu. – Nós temos que ir para a escola por causa disso tudo. Thanatos vai precisar de nós. Além disso, vai haver a cerimônia da pira funerária para Dragon. Isso vai ser difícil, mas a gente precisa estar lá nessa hora.

Aquilo calou Aphrodite. Ela continuou a beber, enquanto Stevie Rae serviu um pouco de Lucky Charms (um cereal inferior a Count Chocula, apesar de ter marshmallows) para si mesma e para Shaylin, e todas nós ficamos um pouco melancólicas.

– Vou sentir falta de Dragon – falei. – Mas é muito legal que ele está com Anastasia de novo. E o Mundo do Além é incrível. Mesmo.

– Vocês realmente viram os dois se reencontrando, não viram? – Shaylin quis saber, com olhos arregalados.

– Todos nós vimos – eu respondi, sorrindo.

– Foi lindo – Stevie Rae comentou, fungando e enxugando os olhos.

– É – Aphrodite disse baixinho.

Shaylin limpou a garganta.

– Olha só, Aphrodite, eu não queria ter sido tão maldosa antes. O que eu falei foi errado. Eu não devia usar o meu dom dessa forma. Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua, mas isso não quer dizer que você vai se apagar. É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Aqui vai a verdade: essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Portanto, desculpe.

Aphrodite voltou seus olhos azuis e frios para Shaylin e disse:

– Ponha a loção no cesto.

– Ah, cara – eu falei. – Aphrodite, apenas tome o seu café da manhã. Shaylin, esse é um bom exemplo daquilo que a gente estava conversando antes. Eu não questiono o seu dom. Não duvido dele. Mas eu realmente tenho um pé atrás com o seu bom senso em decifrá-lo.

– Eu decifro o meu dom perfeitamente – Shaylin respondeu, soando incomodada e na defensiva. – Mas Aphrodite me tirou do sério. Então eu cometi um erro. Já pedi desculpas.

– Desculpas não aceitas – Aphrodite falou e deu as costas para Shaylin.

Foi nessa hora que Damien entrou apressado na cozinha, segurando o seu iPad – e parecendo mais descabelado do que normalmente ficava, depois do que ele gostava de chamar de seu “período de rejuvenescimento de beleza”. Ele veio direto até mim, ergueu o iPad e disse:

– Vocês têm que assistir a isso.

No começo, eu estava só ligeiramente curiosa quando vi a âncora do telejornal da noite do canal Fox23, a totalmente deslumbrante Chera Kimiko, falando. Nós adorávamos a Chera. Ela não só era bonita no nível de um vampiro como era também uma pessoa real, ao contrário dos âncoras tipo cabeças falantes de plástico que normalmente aparecem.

Aphrodite espiou por sobre o meu ombro para o iPad de Damien.

– Kimiko é clássica. Nunca vou me esquecer daquela vez em que ela cuspiu o chiclete bem no meio da notícia. Pensei que meu pai ia ficar...

– Chera é ótima, mas isto é péssimo – Damien a cortou. – E grave. Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa.

Ah, que inferno...


6 Zoey

Todos nós nos amontoamos em volta do iPad de Damien. Ele clicou no “Play” e o vídeo da Fox23 começou. A parte de baixo da tela trazia a legenda: CAOS NA MORADA DA NOITE DE TULSA? Então a tela foi preenchida por Neferet e um monte de caras de terno. Ela estava em pé em algum lugar realmente bonito, cheio de mármore e art déco . Senti que eu quase reconhecia aquele lugar. A voz de Chera Kimiko estava falando em off.

– Vampiros e violência? Você ficaria surpreso com quem está afirmando isso. A Fox23 traz uma reportagem exclusiva esta noite com uma ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa.

Um comercial idiota começou e, enquanto Damien tentava adiantá-lo, eu disse:

– Pela imagem parece que ela está em algum lugar no centro da cidade.

– É o lobby do edifício Mayo – Aphrodite falou de forma lacônica. – E aquele na frente dela é o meu pai.

– Aiminhadeusa! – os olhos de Stevie Rae ficaram gigantes e redondos. – Ela está dando uma entrevista coletiva junto com o prefeito?

– E com alguns vereadores. São os outros caras de terno que estão com ela – Aphrodite explicou.

Então o vídeo começou e todos nós ficamos calados e assistindo embasbacados.

– Eu estou aqui para romper meus laços oficial e publicamente com a Morada da Noite de Tulsa e o Conselho Supremo dos Vampiros – de algum modo, Neferet conseguia parecer régia e vítima ao mesmo tempo.

– Ela é tão cheia de merda – Aphrodite comentou.

– Shhh! – todos nós fizemos para ela, pedindo silêncio.

– Grande Sacerdotisa Neferet, por que a senhora cortaria os laços com o seu povo? – perguntou um dos repórteres.

– Nós não podemos ser considerados um só povo? Não somos todos seres inteligentes com a capacidade de amar e entender uns aos outros? – aparentemente, ela estava falando de modo retórico, pois não esperou por uma resposta. – As políticas dos vampiros se tornaram desagradáveis para mim. Muitos de vocês sabem que recentemente eu abri vagas de trabalho na Morada da Noite para a comunidade de Tulsa. Fiz isso por causa da minha convicção de que humanos e vampiros podem fazer mais do que apenas coexistir de modo constrangido. Nós podemos viver e trabalhar juntos, e até amar.

Stevie Rae fez barulho de vômito. Eu fiquei balançando a cabeça de um lado para o outro, sem acreditar no que ouvia.

– Eu recebi tanta resistência que o Conselho Supremo dos Vampiros enviou para Tulsa a sua Grande Sacerdotisa da Morte, Thanatos, para intervir. A atual administração dos vampiros promove violência e segregação. Apenas olhem para os últimos seis meses e o recorde de violência cada vez maior no centro de Tulsa. Vocês realmente acreditam que todos os ataques, principalmente aqueles envolvendo derramamento de sangue, têm relação com gangues humanas?

– Grande Sacerdotisa, a senhora está admitindo que vampiros atacaram humanos em Tulsa?

Neferet levou sua mão até o pescoço dramaticamente.

– Se eu soubesse disso com cem por cento de certeza, teria ido até a polícia imediatamente. Eu só tenho suspeitas e preocupações. Eu também tenho uma consciência, e é por isso que eu saí da Morada da Noite – ela deu um sorriso radiante. – Por favor, vocês não precisam mais me chamar de Grande Sacerdotisa. De agora em diante, eu sou simplesmente Neferet.

Mesmo pelo vídeo, pude perceber que o repórter ficou vermelho e sorriu para ela.

– Há rumores sobre um novo tipo de vampiro, com Marcas vermelhas. A senhora pode confirmar esses rumores? – perguntou outro repórter.

– Infelizmente, eu posso. Há, de fato, um novo tipo de vampiros e novatos. Aqueles Marcados em vermelho são deteriorados de certa forma.

– Deteriorados? A senhora pode nos dar um exemplo?

– Certamente. O primeiro que me vem à cabeça é James Stark, um novato que veio de Chicago depois de acidentalmente causar a morte do seu mentor. Ele se tornou o primeiro guerreiro vampiro vermelho.

Eu ofeguei.

– Aquela vaca está falando do seu namorado! – Aphrodite disse.

– E agora na noite passada Dragon Lankford, Mestre da Espada da escola há muito tempo, foi assassinado. Espetado pelos chifres de um touro até a morte. Lankford estava na companhia de James Stark quando aconteceu o “acidente” – ela enfatizou a palavra, para deixar claro que não acreditava que havia sido um acidente.

– A senhora está querendo dizer que esse vampiro Stark é perigoso?

– Temo que ele possa ser. Na verdade, muitos dos novos vampiros e novatos podem ser perigosos. Afinal de contas, a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa é a Morte.

– A senhora pode nos dar mais detalhes sobre...

Um dos homens de terno deu um passo à frente, cortando Neferet.

– Eu, mais do que todos, estou muito preocupado com esses acontecimentos na comunidade dos vampiros. Como muitos de vocês sabem, minha amada filha, Aphrodite, foi Marcada há quase quatro anos. Eu entendo muito bem que os vampiros não gostem que os humanos se intrometam nos seus assuntos pessoais, políticos e criminais. Há muito tempo eles tomam conta de si mesmos. Mas quero declarar a vocês e à nossa Morada da Noite local que, por resolução da Câmara dos Vereadores de Tulsa, nós vamos criar uma comissão para examinar as relações entre vampiros e humanos. Infelizmente, acabou o tempo que temos para perguntas por hoje – o homem que havia falado no microfone de Neferet era o pai de Aphrodite, prefeito de Tulsa. – Tenho apenas mais um breve anúncio para fazer. Começando imediatamente, Neferet foi admitida como membro da comissão da Câmara dos Vereadores sob o título de Agente de Ligação com os Vampiros. Deixem-me reiterar, Tulsa pretende se associar a vampiros que desejam viver em paz com os humanos. – Quando todos os repórteres começaram a falar ao mesmo tempo, ele levantou a mão e sorriu com certo ar de superioridade (que estranhamente lembrou Aphrodite). – Neferet vai ter uma coluna semanal no caderno Scene do jornal Tulsa World. Por enquanto, esse vai ser o fórum através do qual ela vai responder a todas as suas perguntas. Lembrem-se de que agora estamos apenas no começo de uma parceria. Precisamos caminhar devagar e gentilmente para não perturbar o delicado equilíbrio das relações entre vampiros e humanos.

Eu estava observando o rosto de Neferet em vez de olhar para o prefeito, e vi o jeito com que os olhos dela se estreitaram e a sua expressão se endureceu. Então o prefeito LaFont acenou para a câmera e a imagem voltou para Chera Kimiko no estúdio. Damien tocou no iPad, e a tela se apagou.

– Ah, que merda! Meu pai perdeu o resto de juízo perfeito que ainda restava depois de conviver com a minha mãe – Aphrodite afirmou.

– Ei, acho que ouvi alguém falar o meu nome – Stark entrou na cozinha, passando os dedos pela sua cabeça descabelada e dando pra mim aquele seu meio sorriso sexy e metidinho.

– Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa e de dizer a todos que você é um assassino perigoso – eu me escutei contando a ele.

– Ela fez o quê? – ele pareceu tão chocado quanto eu me sentia.

– É, e ela fez mais do que isso – Aphrodite continuou. – Ela se juntou ao meu pai e agora toda a cidade acredita que ela é toda boazinha e que nós somos todos sugadores de sangue.

– Ahn, o plantão de notícias é por nossa conta, Aphrodite – Stevie Rae a corrigiu. – Você não é mais uma sugadora de sangue.

– Ah, por favor. Como se os meus pais soubessem alguma coisa da minha vida. Não falo com nenhum dos dois há meses. Só sou a filha deles quando isso é conveniente para eles. Como agora.

– Se isso não fosse tão assustador, seria engraçado – Shaylin comentou.

– Neferet está fazendo com que pareça que ela rompeu com o Conselho Supremo e com a escola, e não que ela foi expulsa por matar a minha mãe – eu expliquei para Stark.

– Ela não pode fazer isso – Stark reagiu. – O Conselho Supremo dos Vampiros não vai deixar que ela faça isso.

– Meu pai está amando tudo isso – Aphrodite disse. Reparei que ela tinha deixado o champanhe de lado e que agora estava enchendo a taça apenas com suco de laranja. – Há anos ele quer descobrir como se aproximar dos vampiros. Depois que eles me esqueceram porque não me transformei em um clone da minha mãe, eles na verdade ficaram felizes quando fui Marcada.

Fiquei observando Aphrodite e lembrando do dia que agora parecia tão distante, em que eu havia escutado os pais dela a repreendendo por ela ter perdido a liderança das Filhas das Trevas para mim. Agora Aphrodite parecia a rainha do gelo de sempre, mas na minha lembrança eu ainda conseguia ouvir o som da mão da mãe dela dando uma bofetada no seu rosto e podia ver as lágrimas que ela teve que represar. Não deve ter sido fácil para ela ouvir o seu pai a chamar de “filha amada” quando a verdade era que tudo o que ele sempre quis foi usá-la.

– Por quê? O que os seus pais querem com os vampiros? – Stevie Rae perguntou.

– Ter acesso a mais dinheiro... mais poder... mais beleza. Em outras palavras, ser parte da turma legal. Isso é tudo o que eles sempre quiseram: ser bacanas e poderosos. Eles usam quem quer que seja para conseguir o que querem, incluindo a mim e, obviamente, Neferet – Aphrodite explicou, ecoando estranhamente o que eu estava pensando.

– Neferet não é o caminho para eles conseguirem nada disso – eu afirmei.

– Fala sério, Z., ela é mais louca que galinha agarrada pelo rabo – Stevie Rae falou.

– Bem, seja o que for que isso signifique, sim, mas não é só isso. Mais alguém reparou no olhar de Neferet quando o pai de Aphrodite estava falando? Ela definitivamente não gostou nada de como as coisas terminaram – eu disse.

– Uma comissão, uma coluna no jornal e “caminhar devagar e gentilmente” não parece algo em que a Consorte das Trevas estaria particularmente interessada – Damien concordou.

– E realmente ela não gostou de quando o prefeito interrompeu a pergunta sobre você ser perigoso – eu completei.

– Eu gostaria de ser perigoso para Neferet! – Stark vociferou, ainda parecendo totalmente chocado.

– O meu pai é muito bom em prometer uma coisa e fazer outra – Aphrodite lembrou. – Posso jurar para vocês que ele acha que pode fazer esse jogo com Neferet – ela balançou a cabeça. Não importava o quanto ela soava insensível, a expressão dela era tensa.

– A gente tem que ir para a Morada da Noite. Agora. Se Thanatos ainda não sabe sobre isso, ela precisa saber – afirmei.

Neferet

Os humanos são tão fracos, entediantes e terrivelmente simplórios, Neferet pensou enquanto observava o prefeito Charles LaFont sorrir de modo afetado, procurando apaziguar os ânimos e continuando a evitar qualquer pergunta direta sobre perigo, mortes e vampiros depois da coletiva de imprensa dela. Até esse homem que, dizem os rumores, é o próximo na fila para uma cadeira no Senado e supostamente é tão carismático e dinâmico... Neferet teve que disfarçar a sua risada sarcástica com uma tosse. Esse homem não era nada. Neferet esperava mais do pai de Aphrodite.

Pai! Uma voz ecoou do seu passado, alarmando-a e fazendo que Neferet agarrasse o corrimão de ferro ornamentado e o apertasse bruscamente. Ela teve que tossir de novo para ocultar o som de algo quebrando que veio do ferro forjado quando ela tirou sua mão dali. Foi então que a paciência dela acabou.

– Prefeito LaFont, você pode me acompanhar até a minha cobertura – as palavras deveriam ter soado como uma pergunta, mas a voz de Neferet não formulou a frase desse modo. O prefeito e os quatro vereadores que haviam participado da coletiva de imprensa se viraram na sua direção. Ela decifrou facilmente cada um deles.

Todos a achavam bonita e desejável.

Dois deles a desejavam com tanta intensidade que eles abandonariam suas esposas, suas famílias e suas carreiras para possuí-la.

Charles LaFont não era um deles. O pai de Aphrodite a cobiçava – disso não havia dúvida –, mas o seu principal desejo não era sexual. A maior necessidade de LaFont era alimentar a obsessão de sua mulher por status e aceitação social. De fato, era uma pena que ele não pudesse ser seduzido mais facilmente.

Todos eles a temiam.

Isso fez Neferet sorrir.

Charles LaFont limpou a garganta e ajeitou nervosamente a sua gravata.

– É claro, é claro. Será um prazer acompanhá-la.

Friamente, Neferet fez apenas um gesto de despedida com a cabeça para os outros homens e ignorou os olhares ávidos deles na sua direção enquanto ela e LaFont entravam no elevador para subir até a sua cobertura.

Ela não falou nada. Neferet sabia que ele estava nervoso e muito menos seguro de si do que fingia ser. Em público, a sua fachada era de charme natural, como se ele fosse merecedor de tudo o que a vida tinha a oferecer. Mas Neferet enxergava o humano amedrontado e bobo que se encolhia por baixo daquela superfície.

As portas do elevador se abriram e ela entrou no saguão de mármore do seu apartamento.

– Acompanhe-me em um drink, Charles – Neferet não deu a ele nenhuma oportunidade de recusa. Ela caminhou decididamente até o bar art déco ornamentado e encheu duas taças com um esplêndido vinho tinto.

Como ela sabia que ia acontecer, ele a seguiu.

Ela estendeu a ele uma das taças. Ele hesitou e ela deu uma gargalhada.

– É só um cabernet muito caro. Não está misturado com sangue, de forma alguma.

– Ah, claro – ele pegou a taça e riu nervosamente, parecendo um cachorrinho pequeno e medroso aos olhos dela.

Neferet detestava cachorros quase tanto quanto ela detestava homens.

– Eu tinha mais para revelar hoje do que apenas a informação sobre James Stark – ela disse friamente. – Acho que a nossa comunidade merece entender como os vampiros da Morada da Noite se tornaram perigosos.

– E eu acho que a comunidade não precisa entrar em pânico sem necessidade – LaFont contra-argumentou.

– Sem necessidade? – ela pronunciou as duas palavras incisivamente.

LaFont assentiu e coçou o queixo. Neferet sabia que ele achava que parecia sábio e benevolente. Mas, para ela, ele parecia fraco e ridículo.

Foi então que Neferet reparou nas mãos dele. Elas eram grandes e pálidas, com dedos grossos e, apesar do seu tamanho, pareciam macias e quase femininas.

O estômago de Neferet se embrulhou. Ela quase vomitou no vinho e por pouco não conseguiu manter o seu comportamento frio.

– Neferet? Você está bem? – ele perguntou.

– Sim – ela falou rapidamente. – Só estou confusa. Você está me dizendo que, ao alertar Tulsa sobre os perigos desses novos vampiros, estamos provocando pânico neles sem necessidade?

– É exatamente isso. Depois da coletiva de imprensa, Tulsa vai estar em alerta. A violência contínua não vai ser tolerada; ela vai ser detida.

– Mesmo? E como você pretende deter a violência dos vampiros? – a voz de Neferet era ilusoriamente amável.

– Bem, isso é muito simples. Vou continuar o que nós começamos hoje. Você alertou o público. Com você atuando como Agente de Ligação entre a cidade e o Conselho Supremo na nossa comissão recém-implementada, você será a voz da razão defendendo a coexistência entre humanos e vampiros.

– Então é com palavras que você vai deter a violência deles – ela disse.

– Sim, palavras faladas e escritas – ele concordou, parecendo muito satisfeito consigo mesmo. – Peço desculpas se falei fora de hora quando mencionei a coluna no jornal. Foi uma ideia de última hora do meu grande amigo Jim Watts, editor-chefe do caderno Scene do Tulsa World. Eu teria falado com você sobre isso antes, mas, desde que você apareceu no meu escritório hoje à tarde com o seu alerta, as coisas aconteceram rápido e publicamente.

Porque eu planejei as coisas dessa forma... porque eu coloquei o sistema inepto de vocês em ação. Agora chegou a hora de eu colocá-lo em ação, assim como fiz com os jornalistas e os vereadores.

– Quando eu o procurei, não esperava encontrar reticências nem estava planejando escrever.

– Talvez não, mas eu estou na política de Oklahoma há quase vinte anos e conheço o meu povo. Incitá-los de modo calmo e devagar é o que funciona com eles.

– Como se você estivesse tocando o gado? – Neferet falou sem esconder o desdém na sua voz.

– Bem, eu não usaria essa analogia, mas tenho percebido que criar comissões, fazer pesquisas na comunidade, obter um feedback da amostragem, tudo isso realmente contribui para uma engrenagem mais azeitada das políticas públicas da cidade – LaFont deu uma risadinha e tomou um gole de vinho.

Escondida nas dobras do seu vestido de veludo, Neferet fechou sua mão em punho e a apertou até que suas unhas feito garras perfurassem sua palma. Gotas escarlates quentes se empoçaram embaixo de suas unhas. Sem serem vistas pelo humano ignorante, as gavinhas de Trevas serpentearam subindo pelas pernas de Neferet, procurando... encontrando... bebendo...

Ignorando o calor gelado daquela dor familiar, Neferet encontrou o olhar de LaFont por sobre a taça de vinho dele. Rapidamente, ela abaixou a voz em uma calma cantiga.

“A paz com os vampiros não é o que você deseja.

Eles ardem com brilho e ímpeto demais, você inveja o seu fogo.

Reticências e escrever colunas, maldita seja essa ideia!

Você tem que fazer o que eu...”

O celular de LaFont começou a tocar. Ele piscou e a expressão embaçada que havia encoberto os seus olhos se clareou. Ele abaixou sua taça de vinho, tirou o telefone do bolso, franziu os olhos para ver a tela e então disse:

– É o chefe de polícia. – Ele tocou na tela e passou a mão pelo rosto, enquanto dizia: – Dean, que bom falar com você – LaFont fez um aceno de cabeça e levantou os olhos para Neferet. – Você vai me desculpar, tenho certeza, mas não posso falar sobre isso agora. Em breve nós falaremos sobre os detalhes da comissão e da coluna de perguntas e respostas.

Enquanto falava, o prefeito se retirou rapidamente para o elevador, deixando Neferet sozinha, exceto pelas famintas gavinhas de Trevas.

Neferet permitiu que elas bebessem dela apenas por mais alguns instantes. Então ela as afastou e lambeu as feridas frescas na palma de sua mão para que os cortes se fechassem.

Os filamentos de Trevas pulsaram ao redor dela, pairando no ar como um ninho de cobras flutuante, ansiosas para cumprir as ordens dela.

– Agora vocês me devem um favor – ela disse antes de pegar o telefone da cobertura e digitar o número de Dallas.

Ele pareceu nervoso ao atender:

– Eu vou matar o cuzão que me ligou tão cedo!

– Cale a boca, garoto! Escute e obedeça – Neferet sorriu ao ouvir o silêncio que se seguiu à sua ordem. Ela quase podia sentir o cheiro do medo dele através do telefone. Então ela falou rapidamente, adquirindo mais controle sobre o seu temperamento e mais exatidão enquanto instruía o vampiro vermelho. – Logo a escola vai saber que eu rompi com a Morada da Noite e me tornei membro de uma comissão da Câmara Municipal de Tulsa. Você sabe, é claro, que eu só planejo usar esses humanos para iniciar um conflito. Até eu procurá-lo de novo, você será as minhas mãos, olhos e ouvidos na Morada da Noite. Aja como se você quisesse se dar bem com o resto da escola agora que eu fui embora. Conquiste a confiança dos professores. Faça amizade com os novatos azuis e então faça o que os adolescentes fazem de melhor: apunhale-os pelas costas, espalhe boatos, crie panelinhas.

– Aquela horda de nerds da Zoey não vai confiar em mim.

– Eu disse para você calar a boca, escutar e obedecer! É claro que você não vai conseguir conquistar a confiança de Zoey; ela é próxima demais de Stevie Rae. Mas você pode romper aquele círculo fechado dela, que não é tão forte quanto você pensa. Observe as gêmeas, particularmente Erin. A água é mais facilmente manipulada e mais mutável do que o fogo – ela fez uma pausa, esperando que ele confirmasse que entendeu as suas ordens. Como ele não falou nada, ela disse rispidamente: – Agora você pode falar!

– Eu compreendi, Grande Sacerdotisa. Vou obedecê-la – ele garantiu a ela.

– Excelente. Aurox já voltou para a Morada da Noite?

– Não que eu tenha visto. Pelo menos ele não estava junto de nós, quando fomos agrupados e levados para o dormitório depois do fogo. Foi... foi você que provocou o incêndio? – Dallas fez a pergunta com hesitação.

– Sim, apesar de ter sido mais um acidente imprevisto do que uma manipulação intencional. O fogo causou muita destruição?

– Bem, ele queimou parte do estábulo e causou uma enorme confusão – ele respondeu.

– Algum cavalo ou novato morreu? – ela perguntou ansiosamente.

– Não. Aquele cowboy humano se feriu, mas foi só isso.

– Que pena. Agora vá fazer o que eu mandei. Quando eu voltar a controlar a Morada da Noite e reinar como Tsi Sgili, Deusa de todos os vampiros, você será regiamente recompensado – Neferet apertou o botão de desligar.

Ela estava tomando o seu vinho e pensando em uma morte lenta e dolorosa para Charles LaFont quando um barulho no quarto desviou a sua atenção. Ela havia se esquecido do jovem mensageiro do prédio que flertara descaradamente com ela na hora em que Neferet havia chegado naquela noite, mais cedo. Na ocasião, ele estava parecendo muito disposto a alimentá-la. Ele deveria estar menos disposto agora que tinha percebido que ela estava muito perto de drenar todo o seu sangue perigosamente. Neferet se levantou e caminhou até o quarto, levando sua meia taça de vinho. Ela iria saborear o medo dele no que havia sobrado do seu sangue.

Neferet sorriu.


7 Zoey

Stevie Rae e eu deveríamos encontrar Thanatos na sua sala de aula. Eu tinha ligado para ela quando estávamos no ônibus escolar a caminho da escola. Nós não havíamos conversado muito. Tudo o que ela tinha dito era que já sabia sobre a coletiva de imprensa de Neferet e que a gente devia ir direto para a sua sala.

A Morada da Noite estava com cheiro de fumaça.

Aquele fedor estava impregnado na escola inteira. Quando nós entramos no estacionamento, percebi que aquele cheiro ruim não era apenas de fumaça. Infelizmente, eu já tinha bastante experiência para reconhecer o aroma penetrante do medo.

O dia normal de escola não havia começado, aquilo era bem óbvio. Havia novatos em grupinhos andando e fofocando para lá e para cá. Eles definitivamente não estavam a caminho da primeira aula. Aquilo deveria ser legal. Quero dizer, qual garoto não ama um dia de neve, um vazamento de água ou qualquer coisa assim? Mas de algum modo aquilo não era legal. Passava uma sensação confusa e de falta de segurança.

– Ok, bem, eu sei que não é normal de minha parte dizer isto, mas acho que Thanatos deveria ter obrigado todo mundo a ir para a aula hoje – Aphrodite assustadoramente ecoou meus pensamentos de novo enquanto descíamos do ônibus. – Agora o que está rolando é essa merda e um pânico do tipo “a gente não vai conseguir ficar sem Neferet” – ela fez um gesto englobando tanto os grupinhos de novatos sussurrando quanto os vampiros e novatos que estavam fazendo dois trabalhos horríveis: limpar o entulho do estábulo e colocar tábuas e vigas no enorme monte de madeira que ia se tornar a pira funerária de Dragon Lankford.

– Eu concordo com você, minha bela – Darius disse sombriamente.

Em silêncio, fiz uma prece rápida mas fervorosa: Nyx, ajude-me a dizer e a fazer a coisa certa, ajudando os meus amigos, o meu círculo, a ficarem fortes e confiantes. Então eu encarei o meu grupo e segui os meus instintos.

– Ok, apesar de eu detestar admitir isso em voz alta, ou mesmo em voz baixa, Aphrodite está certa.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo loiro.

– É claro que estou.

– Esta escola precisa de uma boa dose de normalidade e, infelizmente, acho que nós somos o melhor tipo de normalidade que eles vão encontrar agora.

– Isso quer dizer que eles tão ferrados – Kramisha afirmou. Ela estava usando a sua peruca curta e loira e um sapato de couro envernizado preto com um salto de doze centímetros. A saia dela era curta e supercintilante. De algum modo, aquele visual louco tinha dado certo, fazendo-me pensar (por uns 2,5 segundos) em usar salto com mais frequência.

– Eu estou falando sério, Kramisha – eu disse.

– Eu também – ela replicou.

– Olha só, pessoal. Nós podemos ser normais. Um novo tipo de normalidade, mais interessante – Stevie Rae sugeriu, abrindo um sorriso para Rephaim.

Aphrodite bufou. Eu a ignorei, sorri para Stevie Rae e continuei falando.

– Nós vamos nos separar. Parte de vocês vai para o estábulo, outra parte vai até a pira de Dragon. Lembrem-se, sejam normais – eu os orientei com firmeza. – Ajam como vocês fariam normalmente. A gente precisa segurar a onda e ajudar a colocar as coisas de volta nos trilhos, de um jeito aparentemente controlável. Olhem, neste momento parece que nós fomos atacados por todos os lados. O estábulo pegou fogo. Os gatos foram assassinados. Dragon está morto. E agora Neferet não é apenas uma louca do mal. Ela é uma louca do mal que envolveu a comunidade dos humanos em coisas que estão muito longe da sua compreensão ou da sua capacidade de lidar com elas. Nós temos que ficar fortes e visíveis. Precisamos manter a Morada da Noite unida. Como eu falei para Thanatos na noite passada: nós somos muito mais do que crianças bir rentas e já é hora de nos levantarmos, ficarmos juntos e conquistarmos o respeito que merecemos.

– Sábio conselho, Sacerdotisa – Darius disse, fazendo-me ter vontade de abraçá-lo. – Eu vou para a pira de Dragon para espalhar a calma por lá – ele sorriu carinhosamente para Aphrodite. – Venha comigo. A sua influência vai ser boa para os guerreiros que estão desolados com a perda do Mestre da Espada.

– Normalmente, eu diria que vou aonde você for, bonitão – Aphrodite respondeu. – Mas eu preciso conversar um pouco com a Z., então eu vou com ela falar com Thanatos. Que tal eu encontrar com você na pira depois disso?

As palavras dela me surpreenderam e eu pensei no fato de que, exceto por aquele papo com Shaylin mais cedo, eu realmente não tinha falado com ninguém desde o ritual de revelação. O trajeto de volta no ônibus, com o corpo de Dragon, havia sido silencioso e difícil. E então aconteceu o incêndio, os gatos mortos e, felizmente, o sono, apesar de eu ainda não ter dormido o suficiente. Tudo isso significava que ninguém havia me puxado de lado para falar sobre Aurox. Será que Aphrodite estava se preparando para fazer isso? Dei uma olhada nela. Ela estava na ponta dos pés, dando um beijo em Darius. Ela parecia a mesma de sempre: louca pelo seu guerreiro e irritada com todo o resto.

– Eu também vou com Z. – a voz de Stevie Rae interrompeu a minha análise neurótica de Aphrodite. – Depois que terminarmos de falar com Thanatos, eu vou até a pira funerária. Vocês vão precisar construir uma fundação sólida lá, e a terra é o elemento certo para isso – ela deu um beijo rápido em Rephaim. – Você me encontra lá?

– Sim – ele retribuiu o beijo, tocando o queixo dela com carinho. Então ele olhou para mim. – Se ninguém tiver nenhuma objeção, eu gostaria de fazer uma ronda em volta do muro da escola, principalmente o muro leste. Se os filamentos de Trevas de Neferet estão serpenteando por aí, nós precisamos saber disso.

– Isso parece uma boa ideia. Vocês estão de acordo com isso? – perguntei, olhando para Stark e Darius. Os dois guerreiros assentiram. – Ok, ótimo. – Então voltei minha atenção para Stevie Rae. – Também acho que invocar o seu elemento é realmente uma boa ideia, Stevie Rae. Damien, Shaunee e Erin, mantenham os seus elementos por perto. Se eles puderem ajudar a fortalecer ou a apoiar as pessoas, invoquem-nos. Só não sejam totalmente óbvios e... – minha voz sumiu quando percebi o que eu estava dizendo. – Não. Isso é errado. Se vocês precisarem usar os seus elementos, sejam óbvios.

– Entendi o que você quis dizer, Z. – Damien afirmou. – Já está na hora de a Morada da Noite saber que há forças prodigiosas do bem trabalhando ao nosso lado contra todas essas Trevas.

– “Prodigiosas” significa muito grandes – Stevie Rae traduziu.

– Nós sabemos o que quer dizer – Kramisha protestou.

– Eu não sabia – Shaunee falou.

– Nem eu – Erin concordou.

Tive vontade de sorrir para as gêmeas e dizer que era legal vê-las fazendo comentários tipo gêmeas de novo, mas assim que Erin falou ela ficou corada e se afastou de Shaunee, que estava parecendo superdesconfortável. Então eu desisti – temporariamente – e fiz uma nota mental para acender uma vela vermelha e uma azul para as duas e pedir a Nyx para dar uma ajuda extra a elas. Se eu conseguisse tempo pra isso. Que inferno, se Nyx tivesse tempo pra isso.

Eu reprimi um suspiro e continuei falando.

– Ok, ótimo. Então, dividam-se em grupos. Vão fazer coisas normais, como pegar alguns livros de estudo e ir até a biblioteca.

– Isso não é o meu normal – escutei Johnny B. resmungar, fazendo os garotos em volta rirem.

Eu gostei do barulho das risadas deles. Aquilo era normal.

– Então vá jogar basquete ou fazer alguma coisa típica de garotos no ginásio – eu sugeri, sem conseguir não sorrir para eles.

– Eu vou pro refeitório. A cozinha dos túneis parece que foi atacada por um enxame de gafanhotos. Z., nós precisamos dar uma passada no mercado antes de voltar para lá – Kramisha me avisou.

– Sim, bem, isso é normal. Vá em frente. Leve quem não conseguiu comer antes de vir para a escola com você. E, pessoal, espalhem-se. Não fiquem apenas comendo em grupinhos. Conversem com os outros garotos – afirmei.

Os novatos emitiram sons de concordância e se organizaram, dividindo-se em pequenos grupos em volta de Darius, as gêmeas, Damien e Kramisha. Rephaim partiu sozinho. Eu o olhei se afastando por um tempo, pensando se algum dia ele iria realmente se enquadrar no grupo, e o que seria do seu relacionamento com Stevie Rae se ele não conseguisse. Dei uma olhada para a minha amiga. Ela estava olhando com total adoração para Rephaim. Mordi meu lábio e continuei a me preocupar.

– Você está bem, Z.? – a voz de Stark soou baixinha ao meu lado, e ele colocou o braço sobre os meus ombros.

– Sim – respondi, encostando-me nele por um momento. – Só estou me preocupando obsessivamente, como sempre.

Ele me abraçou.

– Tudo bem, desde que você não comece a chorar. Aquele seu choro cheio de catarro não é nada atrativo.

Dei um soquinho nele de brincadeira.

– Eu nunca choro.

– Ah, sim, claro, e você nunca fica cheia de catarro também – ele falou, dando aquele sorriso fofo e metidinho para mim.

– Eu sei! Incrível, não? – eu caçoei.

– Ceeeerto – ele estendeu a palavra e beijou o topo da minha cabeça.

– Ei – eu falei, ainda aninhada seguramente em seus braços. – Você pode ir até o estábulo para dar uma mão para Lenobia? Eu vou conversar com Thanatos e depois vou até o estábulo e encontro com você lá.

Stark hesitou apenas por um instante e senti os seus braços me apertando contra ele. Stark não queria se separar de mim, principalmente com toda essa loucura rolando, mas ele concordou e disse:

– Vou estar lá, esperando por você – então ele beijou minha testa e me soltou, partindo em direção ao estábulo.

Eu estremeci, arrepiada depois do calor do seu toque. Os outros garotos começaram a se afastar em grupos, ficando só Stevie Rae e Aphrodite comigo.

– Eu vou com vocês, mas esperem só um segundo. Primeiro preciso ligar para a minha mãe. Ela tem de saber que Neferet não é só cheia de papo furado, mas também é cheia de perigo – Aphrodite falou.

– Você acha que ela vai te escutar? – eu quis saber.

– É claro que não – ela respondeu sem hesitar. – Mas vou tentar assim mesmo.

– Por que você não liga para o seu pai? Afinal, ele é o prefeito, e não a sua mãe – Stevie Rae sugeriu.

– Na casa dos LaFont quem manda é a mulher. Se há alguma chance de abrir os olhos do Senhor Prefeito em relação a Neferet, isso tem que partir da minha mãe.

– Boa sorte – eu disse.

– Bem, seja como tiver que ser – Aphrodite pegou seu telefone e se afastou de nós.

Surpreendendo-me, Shaylin saiu de um dos grupos que estava indo embora e caminhou até mim.

– Posso ir com vocês? – a sua voz era gentil, mas ela havia falado claramente e seu queixo estava levantado, como se ela estivesse preparada para uma luta.

– Por que você quer ir com a gente? – eu questionei.

– Quero perguntar a Thanatos sobre as minhas cores. Sei que vocês me disseram para manter segredo sobre o meu dom, e eu entendo por quê. Definitivamente, isso é algo que Neferet não precisa saber. Mas ela não é mais Grande Sacerdotisa, e eu tenho perguntas para as quais preciso encontrar respostas. Como Damien falou, já faz muito tempo desde que outra pessoa teve a Visão Verdadeira. Bem, Thanatos é inteligente. E idosa. Imagino que talvez ela possa me dar algumas respostas. Se vocês não se importarem, é isso – ela concluiu rapidamente.

Olhei para Stevie Rae.

– Você é a Grande Sacerdotisa dela. Por você tudo bem?

– Não sei muito bem. O que você acha?

– Acho que, se nós não podemos confiar em Thanatos, estamos totalmente ferrados – respondi honestamente.

– Bem, então acho que está na hora de definir quem está no nosso time, e acredito que Thanatos faz parte das pessoas de bem. Portanto, por mim tudo bem.

– Sim, ok – eu disse.

– Obrigada – Shaylin agradeceu.

– Bem, foi uma perda de tempo – Aphrodite se juntou a nós enquanto colocava o seu telefone de volta dentro de sua bolsa Valentino dourada, cintilante e superfofa. – Pelo menos não foi uma perda de muito tempo.

– Ela não escutou nada do que você falou? – eu perguntei.

– Ah, ela escutou. Então ela disse que tinha duas palavras para mim: Nelly Vanzetti. E aí ela desligou.

– Ahn? – eu mostrei que não tinha entendido.

– Nelly Vanzetti é a psicanalista da minha mãe – Aphrodite explicou.

– E por que a sua mãe iria falar o nome dela para você? – Stevie Rae ainda não havia entendido.

– Porque, caipira, esse é o jeito de a minha mãe me dizer que eu estou parecendo completamente louca. Não que ela se importe se eu estou louca mesmo. Com isso ela estava dizendo que não se importa em me ouvir, mas que ela vai pagar a psicanalista dela para fazer isso – Aphrodite deu de ombros. – A mesma coisa de sempre.

– Isso é muito maldoso – Shaylin comentou.

Aphrodite franziu seus olhos azuis.

– Por que você está aqui?

– Ela tem um dom – Stevie Rae falou.

– O meu nível de “não dou a mínima” está muito baixo em relação a isso – Aphrodite rebateu.

– Tenho algumas perguntas para fazer a Thanatos – Shaylin esclareceu.

– Ela vai com a gente – afirmei.

– Tanto faz – Aphrodite deu um olhar de desdém para ela. – Então vá indo. Na frente de nós. Preciso conversar com estas duas, sem ouvidos coloridos escutando.

– Vá indo, Shaylin – eu disse antes que as duas começassem a discutir. De novo. – Nós vamos encontrá-la no escritório de Thanatos.

Shaylin assentiu, franziu as sobrancelhas para Aphrodite e foi embora.

Aphrodite ergueu as mãos.

– Sim, eu sei, eu devia ter sido mais gentil, blá-blá-blá. Mas ela me enerva. Ela me lembra demais uma mini-Kim Kardashian, o que significa que ela é inútil, irritante e visível demais.

Olhei para Stevie Rae, esperando que ela argumentasse com Aphrodite. Mas tudo o que ela fez foi balançar a cabeça e dizer:

– Estou cansada de ficar chutando um maldito cachorro morto.

– Cachorro morto? Isso é tudo o que você tem para dizer? Sério? – Aphrodite protestou.

– Eu não estou falando mais com você – Stevie Rae disse a ela.

– Ótimo. Agora, vamos passar para coisas importantes. Vocês não vão gostar de nenhuma das coisas que eu tenho para contar, mas precisam me ouvir. A menos que vocês queiram ser como a minha mãe.

– Nós estamos escutando – eu assegurei a ela.

Stevie Rae continuou de boca bem fechada, mas assentiu.

– Em primeiro lugar, caipira, você sabe que ficou toda cheia de olhares de adoração para Kalona desde que ele molhou o seu menino-pássaro e o ressuscitou e...

– Ele derramou lágrimas imortais no seu filho e magicamente o trouxe de volta da morte que estava próxima. Afe Maria, você estava lá! Você viu tudo – Stevie Rae exclamou.

– Você não está mais falando comigo, lembra? Mas você acabou de tocar no ponto em que eu queria. Apenas algumas horas atrás, a gente acreditava que Kalona era tão louco e perigoso quanto Neferet. Agora ele é o guerreiro da Morte. A escola toca vai ficar babando em cima dele, do mesmo modo que ficou quando ele emergiu do chão. Nós vamos demonstrar mais bom senso. Ou pelo menos eu vou demonstrar mais bom senso. Seria bom se vocês duas se juntassem a mim.

– Eu nunca vou confiar nele – eu disse em voz baixa as palavras que vieram do fundo do meu coração.

– Z., ele fez seu Juramento a Thanatos – Stevie Rae argumentou.

Encontrei o olhar dela.

– Ele matou Heath. Ele matou Stark. Ele só trouxe Stark de volta porque Nyx o forçou a pagar a dívida de vida que ele tinha por causa de Heath. Stevie Rae, eu estive no Mundo do Além com ele. Kalona perguntou quando Nyx o perdoaria. Ela respondeu que ele só poderia pedir isso quando fosse digno do perdão dela.

– Talvez ele esteja se esforçando para isso agora – ela disse.

– E talvez ele seja um assassino, estuprador, manipulador e mentiroso – Aphrodite contra-atacou. – Se Zoey e eu estivermos erradas, ótimo. Você pode dizer “eu avisei” e todos nós vamos rir e dar uma puta festa. Mas, se nós estivermos certas, não vamos ser pegas desprevenidas quando um imortal caído causar mais violência.

Stevie Rae suspirou.

– Eu sei... eu sei. Faz sentido. Eu não vou confiar cem por cento nele.

– Ótimo. Mas fique ligada no seu menino-pássaro também. Ele confia cem por cento no pai, o que significa que Kalona pode usá-lo. De novo.

A expressão de Stevie Rae se endureceu, mas ela concordou.

– Sim, vou ficar.

– Em segundo lugar – Aphrodite desviou a sua atenção para mim –, explique a merda estranha que passou pela sua cabeça quando você chamou aquele maldito touro de Heath na noite passada.

– O quê? – Stevie Rae deixou escapar. – Isso não é verdade, certo, Z.?

Ok, mentir seria fácil. Eu podia simplesmente dizer que obviamente Aphrodite tinha perdido a cabeça e estava ouvindo coisas. Afinal, uma montanha de coisas loucas havia acontecido ontem, tudo de uma vez. Isso sem falar em todos os elementos se manifestando tão poderosamente que nada mais era totalmente claro, exceto o assassinato da minha mãe por Neferet e o fato de ela ser a Consorte das Trevas.

E eu quase menti.

Então eu me lembrei do que o fato de mentir para os meus amigos tinha me custado antes – não apenas perder a confiança deles por um tempo, mas também havia me custado o meu respeito por mim mesma. Eu não me senti bem quando menti. Eu me senti fora de sincronia com a Deusa e com o caminho que eu acredito que ela quer que eu trilhe.

Então, inspirei profundamente e soltei a verdade em uma explosão de palavras:

– Eu olhei para Aurox através da pedra da vidência e vi Heath e isso me assustou e eu chamei o nome dele e Aurox se virou e olhou para mim antes de começar a se transformar de novo naquela coisa tipo touro e foi por isso que quando ele arremeteu contra mim eu simplesmente fiquei parada ali e disse a ele que ele não ia me machucar. Fim.

– Você ficou completamente louca. Que merda, acho que joguei fora antes da hora o telefone da psicanalista da minha mãe. Você precisa ser avaliada e medicada.

– Bem, eu vou ser mais gentil que Aphrodite, mas isso não faz o menor sentido, Z. Como Heath poderia estar ao redor de Aurox?

– Eu não sei! E ele não estava ao redor de Aurox. Foi como se Heath brilhasse sobre ele. Ou como se Heath fizesse uma sombra com um brilho da cor da pedra da lua sobre Aurox – tive vontade de gritar de frustração por não conseguir descrever o que eu havia vislumbrado.

– Como um fantasma? – Stevie Rae quis saber.

– Isso pode fazer um pouco mais de sentido – Aphrodite observou, concordando com Stevie Rae com a cabeça, como se as duas estivessem decifrando o que aconteceu. – Nós estávamos no meio de um ritual invocando a Morte. Heath está morto. Talvez a gente tenha atraído o fantasma dele.

– Eu não acredito nisso – falei.

– Mas você não tem certeza, certo? – Stevie Rae questionou.

– Não, eu não tenho certeza de nada, exceto que a pedra da vidência é magia antiga, e a magia antiga é forte e imprevisível. Ela nem deveria estar em lugar nenhum além da Ilha de Skye, então eu não sei o que está acontecendo com o fato de eu estar vendo coisas através dela aqui – atirei as mãos para cima. – Talvez eu tenha imaginado tudo. Talvez não. Isso é estranho, até para mim. Eu achei ter visto Heath, e então Aurox se transformou completamente naquela coisa feito touro e fugiu.

– Tudo aconteceu rápido demais – Stevie Rae comentou.

– Da próxima vez que você vir Aurox, tem que olhar para ele através dessa maldita pedra, com certeza – Aphrodite afirmou. – E não fique sozinha com ele.

– Eu não estou planejando isso! Eu nem sei onde ele está.

– Provavelmente, junto com Neferet de novo – Aphrodite respondeu.

Eu devia ter ficado de boca fechada, mas me ouvi dizendo:

– Ele disse que tinha escolhido um caminho diferente.

– É, logo depois de matar Dragon e de quase matar Rephaim – Aphrodite rebateu.

Suspirei.

– O que Stark acha disso? – Aphrodite perguntou. Como eu não falei nada, ela levantou uma sobrancelha loira. – Ah, entendi. Você não contou para ele, certo?

– Certo.

– Bem, eu não posso te censurar por isso, Z. – Stevie Rae falou gentilmente.

– Ele é o guerreiro dela. O seu Guardião – Aphrodite insistiu. – Por mais arrogante e irritante que ele seja, precisa saber que Zoey tem uma queda por Aurox.

– Eu não tenho!

– Ok, não por Aurox, mas por Heath, e você acha que Heath pode ser Aurox – Aphrodite balançou a cabeça. – Você percebe como isso soa como coisa de louco?

– Minha vida é uma coisa de louco – respondi.

– Stark precisa saber que você pode ser vulnerável a Aurox – Aphrodite disse com firmeza.

– Eu não sou vulnerável a ele!

– Diga a ela, caipira.

Stevie Rae não conseguiu olhar nos meus olhos.

– Stevie Rae?

Ela suspirou e finalmente olhou para mim.

– Se você acredita que existe uma chance, nem que seja mínima, de Heath estar rondando Aurox ou o que quer que seja, isso significa que você não vai pensar claramente em relação a ele. Eu sei. Se eu perdesse Rephaim e depois pensasse que o vi ao redor de outro cara, mesmo que isso parecesse loucura, esse cara seria capaz de me atingir. Aqui – ela apontou para o seu coração. – E isso, na maior parte das vezes, comanda aqui – ela apontou para a cabeça.

– Portanto, conte ao Cara do Arco o que você acha que viu – Aphrodite concluiu.

Eu detestava admitir, mas sabia que elas estavam certas.

– Certo. Vai ser péssimo, mas tudo bem. Vou contar para ele.

– E eu vou contar para Darius – Aphrodite avisou.

– Bem, e eu vou contar para Rephaim – Stevie Rae acrescentou.

– Por quê?! – eu queria explodir.

– Porque os guerreiros ao seu redor precisam saber disso – Aphrodite explicou.

– Está bem – respondi rangendo os dentes. – Mas só para eles. Estou cansada de um monte de gente falando sobre mim e meus problemas com os garotos.

– Bem, Z., você realmente arranja problemas com os garotos – Stevie Rae disse com um tom leve, enganchando o braço dela ao meu.

– Nós também precisamos contar isso para Thanatos – Aphrodite disse quando nós três começamos a caminhar em direção à sua sala de aula. – A afinidade dela é com a Morte. Faz sentido que ela entenda de fantasmas e coisas assim.

– Por que a gente não anuncia isso no Tulsa World e faz Neferet escrever uma maldita coluna de perguntas e respostas sobre o assunto? – eu reagi.

– Isso é quase um palavrão. Cuidado. “Maldita” é uma porta de entrada para o mundo dos palavrões. Quando você menos esperar, “foda” vai sair voando da sua boca – Aphrodite me ironizou.

– Foda voando? Isso soa errado – Stevie Rae falou para ela, balançando a cabeça.

Apertei o passo, praticamente arrastando Stevie Rae comigo e fazendo Aphrodite ter que dar uma corridinha para nos acompanhar. Eu não as escutei quando elas começaram a discutir sobre palavrões. Em vez disso, fiquei preocupada.

Eu me preocupei com a nossa escola.

Eu me preocupei com a questão Aurox/Heath.

Eu me preocupei em contar a Stark sobre a questão Aurox/Heath.

E eu me preocupei com a contração no meu estômago e com a possibilidade de a minha síndrome do intestino irritável surgir de repente no meio de tudo. De novo.


8 Shaunee

– Damien, acho que eu devo ficar bem longe do estábulo. Lenobia já teve uma dose bem grande de fogo recentemente – Shaunee olhou para Damien e Erin. Os três haviam se afastado quando Zoey disse para eles se dispersarem, mas, em vez de fazer isso, eles haviam ficado juntos, tentando imaginar onde cada um deles seria mais útil com os seus elementos.

– Você tem razão – Damien concordou. – Faz mais sentido que você vá até a pira de Dragon. Você vai ser útil por lá em breve.

Os ombros de Shaunee desabaram.

– É, eu sei, mas não estou nada ansiosa por isso.

– Simplesmente conecte-se ao seu elemento e vai ser fácil – Erin sugeriu.

Shaunee piscou surpresa para ela, não apenas por ela ter falado – Erin definitivamente estava evitando conversar com ela desde que as duas tinham virado ex-gêmeas –­, mas com o seu tom sem consideração. Ela estava falando sobre queimar o corpo de Dragon como se isso não fosse nada demais, como acender um fósforo.

– Nada em relação ao funeral de Dragon vai ser fácil, Erin. Com ou sem o meu elemento.

– Eu não quis dizer fácil para valer – Erin pareceu irritada. Shaunee pensou que ultimamente Erin sempre parecia irritada. – Só quis dizer que, quando você realmente se conecta ao seu elemento, as outras coisas não incomodam tanto. Mas talvez você não vá tão a fundo no seu elemento.

– Isso é besteira – Shaunee sentiu o calor de uma raiva crescente. – Minha afinidade com o fogo não é nem um pouco menor do que a sua afinidade com a água.

Erin deu de ombros.

– Tanto faz. Eu só estava tentando ajudá-la. De agora em diante, vou deixar de tentar – ela se virou para Damien, que estava olhando de uma para a outra, como se não soubesse se pulava no meio delas ou corria na direção oposta. – Eu vou para o estábulo. Lenobia vai ficar feliz de ver a água, e eu não tenho problemas em usar o meu elemento – sem dizer mais nada, Erin foi embora.

– Ela sempre foi assim? – Shaunee se ouviu perguntando para Damien algo que havia dias rondava a sua mente.

– Você tem que definir “assim”.

– Sem coração.

– Honestamente?

– Sim. Erin sempre foi tão sem coração?

– Isso é realmente muito difícil de responder, Shaunee – Damien falou gentilmente, como se estivesse pensando que precisava ser cuidadoso para que as suas palavras não a magoassem.

– Só me diga a verdade, mesmo se ela for dura – ela insistiu.

– Bem, então, honestamente, até vocês duas se separarem, era praticamente impossível saber como era cada uma individualmente. Nunca conheci nenhuma das duas sem a outra. Uma terminava as frases da outra. Era como se vocês fossem duas metades de um todo.

– Mas nem agora? – Shaunee o estimulou a continuar, quando ele hesitou.

– Não, agora é diferente. Agora vocês são indivíduos com personalidade própria – ele sorriu para ela. – O melhor jeito de colocar isso é que ficou bem óbvio para a maioria de nós que a sua personalidade é a com coração.

Shaunee ficou olhando Erin se afastar.

– Eu já sabia disso antes, e isso me incomodava. Sabe, o jeito com que ela era tão sarcástica, fofoqueira e maldosa. Mas também era tão divertido e legal estar com ela.

– Normalmente, divertido à custa de outras pessoas – Damien comentou. – Legal porque ela excluía os outros para parecer que ela era melhor do que todo o resto.

Shaunee encontrou o olhar dele.

– Eu sei. Agora eu vejo isso. Mas, antes, tudo o que eu conseguia ver era que nós éramos melhores amigas, e eu precisava de uma melhor amiga.

– E agora? – ele perguntou.

– Agora eu preciso conseguir gostar de mim mesma, e eu não posso fazer isso se eu for só a metade de uma pessoa inteira. Eu também estou cansada de sempre ter que dizer algo sarcástico, engraçadinho ou apenas simplesmente detestável – ela balançou a cabeça, sentindo-se triste e madura. – Isso não significa que eu ache Erin ridícula. Na verdade, quero que ela seja tão legal, divertida e incrível quanto eu acreditava que ela era. Só acho que acabei de descobrir que ela tem que ser, ou não ser, essas coisas por ela mesma. Isso não tem nada a ver comigo.

– Você é mais inteligente do que eu pensei que você fosse – Damien admitiu.

– Eu ainda sou péssima na escola.

Ele sorriu.

– Existem outros tipos de inteligência.

– Bom saber disso.

– Ei, não se subestime. Você poderia ser realmente boa na escola se você se esforçasse um pouco.

– Sei que isso parece uma coisa boa para você, mas por mim estou feliz com a parte dos “outros tipos de inteligência” – Shaunee falou, fazendo Damien rir. Depois acrescentou: – Eu vou até a pira. Talvez, se eu estiver por lá, possa ajudar.

– Ajudar os guerreiros ou a você mesma?

– Talvez ambos. Eu não sei – Shaunee respondeu com um suspiro.

– Vou acreditar que vai ajudar ambos – ele afirmou. – Vou andar por aí, como o ar. Vou tentar soprar para longe o resto de Trevas que ainda está impregnado neste lugar.

– Você também sente isso?

Ele assentiu.

– Posso sentir que a energia por aqui é ruim. Muita coisa negativa aconteceu em um período curto demais – Damien inclinou a cabeça, analisando Shaunee. – Agora que pensei mais nisso, não acho que você deve ficar longe do estábulo. O fogo não é mau. Você não é má. Lenobia sabe disso. Lembra como você fez os cascos dos cavalos se aquecerem para que a gente conseguisse cavalgar no meio daquela tempestade de gelo?

– Lembro – Shaunee respondeu, e aquela lembrança fez com que ela se sentisse mais leve.

– Então vá até a pira, ajude lá, mas vá até o estábulo também. Lembre a todos que o fogo pode fazer muito mais do que destruir. A forma como ele é manejado é o que importa.

– Imagino que você quer dizer algo como “o que importa é como o fogo é usado”?

Damien abriu o sorriso.

– Viu só, eu disse que você poderia ser boa na escola. “Manejar” é uma excelente palavra para o seu vocabulário: controlar ou dominar uma arte, uma disciplina etc.

– Você está fazendo a minha cabeça doer – Shaunee falou e ambos riram.

– Então, vou encontrar com você no estábulo mais tarde?

– Sim, vai.

Damien começou a se afastar, mas voltou e deu um abraço rápido e apertado em Shaunee.

– Estou feliz porque você se tornou uma pessoa própria. E se você precisar de um amigo, eu estou aqui – ele falou, e então saiu apressado em direção ao estábulo.

Shaunee piscou com força para segurar as lágrimas, observando o cabelo castanho e macio de Damien balançando na sua brisa própria.

– Fogo – ela sussurrou –, mande uma pequena faísca para Damien. Ele merece encontrar um cara gostoso que o faça feliz, principalmente porque ele sempre se esforça tanto para fazer os outros felizes.

Sentindo-se melhor do que estava se sentindo havia semanas, Shaunee começou a andar em outra direção. Os seus passos eram mais vagarosos, mais calculados do que os de Damien, mas ela não estava mais com medo de para onde estava indo. Ela também não estava ansiosa para a pira e para o fogo – ela não era Erin. Ela só não podia apagar a tristeza e a dor congelando os seus sentimentos. E sabe de uma coisa? Eu não ia querer ser fria e congelada por dentro, mesmo que isso significasse que eu não fosse me ferir tanto, ela decidiu em silêncio.

Shaunee estava se centrando e extraindo força do calor constante do seu elemento. Obrigada, Nyx. Eu vou tentar manejá-lo bem, era o que ela estava pensando quando a voz do imortal penetrou na sua mente.

– Eu ainda não te agradeci.

Shaunee levantou os olhos e viu Kalona em pé diante da grande estátua de Nyx que ficava na frente do seu templo. Ele estava usando uma calça jeans e um colete de couro muito parecido com o que Dragon costumava usar. Só que esse colete era maior e tinha fendas através das quais as asas negras de Kalona emergiam e então se dobravam sobre suas costas. Esse colete também não ostentava a insígnia da Deusa, mas era difícil pensar nisso com ele a encarando com aqueles olhos âmbar do outro mundo.

Ele é mesmo absolutamente, inumanamente maravilhoso. Shaunee afastou o pensamento da sua mente e em vez disso se concentrou no que ele havia dito.

– Agradecer a mim? Pelo quê?

– Por me emprestar o seu celular. Sem ele, Stevie Rae não teria conseguido me ligar. Se não fosse por você, Rephaim poderia estar morto.

O rosto de Shaunee ficou quente. Ela encolheu os ombros, sem saber por que de repente se sentia tão nervosa.

– Você foi o cara que veio quando ela ligou. Você simplesmente podia não ter atendido e continuaria sendo um pai de merda – Shaunee falou sem pensar e só depois percebeu o que tinha dito. Então ela fechou a boca e disse a si mesma: fique quieta!

Houve um silêncio longo e desconfortável, até que Kalona afirmou:

– O que você disse é verdade. Eu não tenho sido um bom pai para os meus filhos. Eu ainda não estou sendo um bom pai para todos os meus filhos.

Shaunee olhou para ele, imaginando o que ele queria dizer exatamente. A voz dele tinha soado estranha. Ela esperava que ele parecesse triste, sério ou até irritado. Em vez disso, pareceu surpreso e um pouco embaraçado, como se aqueles pensamentos tivessem acabado de ocorrer para ele. Ela queria poder ver a sua expressão, mas o rosto dele estava virado para o outro lado. Ele estava olhando para a estátua de Nyx.

– Bem – ela começou, sem saber muito bem o que dizer. – Você está melhorando o seu relacionamento com Rephaim. Talvez não seja tarde demais para consertar o seu relacionamento com os seus outros filhos também. Eu sei que, se o meu pai aparecesse e quisesse algo comigo, eu iria permitir. Pelo menos, eu daria uma chance a ele – o imortal virou a cabeça e ela o encarou. Shaunee se sentiu trêmula, como se aqueles olhos âmbar pudessem enxergar muito dela. – O que eu quero dizer é que acho que nunca é tarde demais para fazer a coisa certa.

– Você acredita mesmo nisso, honestamente?

– Sim. Ultimamente, acredito cada vez mais – Shaunee preferia que Kalona parasse de olhar para ela. – Então, quantos filhos você tem?

Ele deu de ombros. Suas asas enormes se levantaram um pouco e depois de acomodaram novamente.

– Perdi a conta.

– Parece que saber quantos filhos você tem é um bom jeito de começar aquela coisa toda de “quero ser um bom pai”.

– Saber algo e agir em relação a isso são coisas bem diferentes – ele falou.

– Sim, totalmente. Mas eu disse que é um bom meio de começar – Shaunee desviou o rosto na direção da estátua de Nyx. – Há outro bom ponto de partida.

– A estátua da Deusa?

Ela franziu a testa para ele, sentindo-se um pouco mais confortável sob o seu olhar.

– Não é só ficar perto da estátua dela. Tente pedir...

– O perdão dela não é concedido a todos nós! – a voz dele soou como um trovão.

Shaunee começou a tremer, mas ela desviou os olhos para a estátua de Nyx. Ela quase podia jurar que os seus belos lábios carnudos de mármore se curvaram em um sorriso bondoso para ela. Fosse ou não imaginação dela, aquilo deu a Shaunee o impulso de coragem que ela precisava, e a novata continuou apressadamente:

– Eu não ia dizer perdão. Eu ia dizer ajuda. Tente pedir a ajuda de Nyx.

– Nyx não iria me ouvir – Kalona falou tão baixo que Shaunee quase não o escutou. – Ela não me ouve há éons.

– Durante esses éons, quantas vezes você pediu ajuda a ela?

– Nenhuma – ele respondeu.

– Então como você sabe que ela não o está ouvindo?

Kalona balançou a cabeça.

– Você foi enviada a mim para ser a minha consciência?

Foi a vez de Shaunee balançar a cabeça em negação.

– Eu não fui enviada a você, e a Deusa sabe que eu já tenho problemas suficientes para lidar com a minha própria consciência. Tenho certeza absoluta de que não posso ser a consciência de ninguém mais.

– Eu não teria tanta certeza, novata jovem e ardente... Eu não teria tanta certeza – ele refletiu em voz alta. Então, abruptamente, Kalona se afastou dela, deu alguns passos largos e rápidos e se lançou no céu da noite.

Rephaim

Ele não se importava muito com o fato de que a maioria dos outros garotos ainda o evitava. Damien era legal, mas ele era legal com praticamente todo mundo, então Rephaim não tinha certeza se a gentileza do garoto tinha alguma coisa a ver com ele. Pelo menos Stark e Darius não estavam tentando matá-lo nem afastá-lo de Stevie Rae. Recentemente, Darius até parecia um pouco mais amigável. O guerreiro Filho de Erebus o tinha amparado quando ele tropeçou dentro do ônibus na noite anterior, ainda fraco depois de ser curado magicamente de um ferimento mortal.

Meu Pai me salvou e depois fez juramento comprometendo-se a ser guerreiro da Morte. Ele realmente me ama, e está escolhendo o lado da Luz em vez das Trevas. Pensar nisso fez Rephaim sorrir, apesar de o ex-Raven Mocker não ser tão ingênuo e crédulo quanto Stevie Rae e os outros pensavam. Rephaim queria que o seu pai continuasse no caminho de Nyx – queria isso muito mesmo. Mas ele, mais do que ninguém (exceto a própria Deusa), conhecia o ódio e a violência em que o imortal caído havia chafurdado por séculos.

O fato de Rephaim existir era prova da capacidade do seu pai de causar imensa dor nos outros.

Os ombros de Rephaim desabaram. Ele havia chegado à parte dos jardins da escola onde ficava o carvalho destruído – metade dele apoiada no muro, metade no chão. O centro da árvore velha e grossa parecia que tinha sido atingido por um raio atirado por um deus furioso.

Mas Rephaim sabia que não era isso.

O seu pai era um imortal, mas ele não era um deus. Kalona era um guerreiro, e um guerreiro caído.

Sentindo-se estranhamente perturbado, Rephaim passou os olhos pela ferida profunda que era aquela destruição no meio da árvore. Ele se sentou em um dos galhos caídos bem em frente à copa quebrada da árvore, analisando o tronco grosso que estava encostado no muro leste da escola.

– Isso precisa ser consertado – Rephaim falou em voz alta, preenchendo o silêncio da noite com a humanidade da sua própria voz. – Stevie Rae e eu podemos trabalhar nisso juntos. Talvez a árvore não esteja completamente perdida – ele sorriu. – A minha Vermelha me curou. Por que ela não poderia curar uma árvore?

A árvore não respondeu, mas enquanto Rephaim falava ele teve uma estranha sensação de déjà vu . Como se ele tivesse estado ali antes, não apenas em outro dia normal de escola. Ele sentiu uma sensação de ter estado ali com o vento sob suas asas e o azul brilhante do céu à luz do dia.

Rephaim enrugou a testa e esfregou a mão nela, sentindo o começo de uma dor de cabeça. Será que ele tinha vindo até ali durante o dia, enquanto ele era um corvo, quando a sua humanidade estava escondida tão profundamente dentro dele que aquelas horas passava como um borrão nebuloso e indistinto de sons, cheiros e visão?

A única resposta que veio até Rephaim foi aquela pulsação surda em suas têmporas.

O vento batia ao redor dele, farfalhando através dos galhos caídos, fazendo sussurrar as poucas folhas marrons do inverno que ainda estavam presas ao velho carvalho. Por um momento, pareceu que a árvore estava tentando falar com ele, tentando contar os seus segredos.

Rephaim desviou o olhar de volta para o centro da árvore. Sombras. Casca de árvore partida. Tronco despedaçado. Raiz exposta. E parecia que o chão perto do centro da árvore já havia começado a sofrer uma erosão, quase como se houvesse um buraco se formando abaixo dela.

Rephaim estremeceu. Já houve um buraco abaixo da árvore. Um buraco que havia aprisionado Kalona dentro da terra por séculos. A lembrança desses séculos e da terrível existência meio irreal e repleta de ódio, violência e solidão que ele havia vivido durante esse tempo ainda era parte do fardo pesado que Rephaim carregava.

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

A brisa farfalhou de novo. Aquele som era reconfortante, como se o sussurro ancestral da árvore pudesse ser a voz da Deusa.

– Vou entender isso como um sinal – Rephaim falou em voz alta para a árvore, pressionando a palma da sua mão contra o tronco ao lado dele. – Vou pedir a Stevie Rae para me ajudar a consertar a violência que te despedaçou. Logo. Dou minha palavra. Vou voltar logo.

Quando Rephaim se afastou para continuar a sua ronda pelo perímetro da escola, ele pensou ter ouvido um movimento bem embaixo da árvore e imaginou que fosse o velho carvalho o agradecendo.

Aurox

Aurox estava andando agitado de um lado para o outro, cobrindo com três passos aquele pequeno espaço vazio abaixo do carvalho despedaçado. Então ele se virou e deu três passos curtos de volta para o outro lado. Ele continuou para lá e para cá, para lá e para cá. Pensando... pensando... pensando... e desejando desesperadamente ter um plano.

A sua cabeça doía. Ele não havia quebrado o crânio quando caiu no buraco, mas o machucado na sua cabeça tinha sangrado e inchado. Ele estava com fome e com sede. Ele achava difícil descansar dentro da terra, apesar de o seu corpo estar exausto e de ele precisar dormir para poder se curar.

Por que ele tinha achado uma boa ideia voltar para esta escola e se esconder nos jardins onde viviam o professor que ele havia matado e o garoto que ele tinha tentado matar?

Aurox segurou sua cabeça com as mãos. Não fui eu! Ele queria gritar aquelas palavras. Eu não matei Dragon Lankford. Eu não ataquei Rephaim. Eu fiz uma escolha diferente! Mas a escolha dele não tinha importado. Ele havia se transformado em uma besta. E a besta espalhara um rastro de morte e destruição.

Havia sido tolice da parte dele ir até a escola. Tolice acreditar que ele poderia se encontrar ali ou fazer algum bem. Bem? Se alguém soubesse que ele estava se escondendo na escola, seria atacado, aprisionado e possivelmente morto. Apesar de ele não estar ali para ferir ninguém, isso não importaria. Ele iria absorver o ódio daqueles que o descobrissem e a besta emergiria. Ele não seria capaz de controlá-la. Os guerreiros Filhos de Erebus iriam cercá-lo e colocar um fim na sua existência miserável.

Eu já controlei a besta antes. Eu não ataquei Zoey. Mas será que ele teria a oportunidade de tentar explicar que não queria causar nenhum dano? Ou mesmo de ter um momento para testar o seu autocontrole e provar que ele era mais do que a besta dentro dele? Aurox recomeçou a andar de um lado para o outro. Não, a intenção dele não iria importar para ninguém na Morada da Noite. Tudo o que eles iriam ver era a besta.

Inclusive Zoey? Será que até mesmo ela ficaria contra ele?

“Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.” A voz de Vovó Redbird acalmou os seus pensamentos turbulentos. Zoey o havia protegido. Ela tinha acreditado que ele conseguia controlar a besta o suficiente para não machucá-la. A avó dela oferecera abrigo a ele. Podia ser que Zoey não o quisesse morto.

Mas os outros queriam.

Aurox não os censurava por isso. Ele merecia a morte. Apesar de ele ter recentemente começado a sentir e a desejar ter uma vida diferente, e fazer escolhas diferentes, isso não mudava o passado. Ele havia cometido atos violentos e desprezíveis. Ele tinha feito tudo o que a Sacerdotisa ordenara.

Neferet...

O nome dela, mesmo como uma palavra não pronunciada em sua mente, causou um arrepio pelo seu corpo agitado.

A besta dentro dele queria ir até a Sacerdotisa. A besta dentro dele precisava servi-la.

– Eu sou mais do que uma besta – a terra em volta dele absorveu suas palavras, abafando a humanidade de Aurox. Em desespero, ele agarrou uma raiz retorcida e começou a puxá-la para tentar subir e sair daquele buraco de terra.

– Isso precisa ser consertado – aquelas palavras chegaram até Aurox lá embaixo.

O corpo dele congelou. Ele reconheceu a voz: Rephaim. Vovó havia falado a verdade. O garoto sobrevivera.

O fardo invisível de Aurox ficou um pouco mais leve.

Aquela morte não precisava pesar na sua consciência.

Aurox se agachou, esforçando-se em silêncio para escutar com quem Rephaim estava falando. Ele não sentiu raiva nem violência. Certamente, se Rephaim tivesse a menor ideia de que Aurox estava escondido tão perto, o garoto seria tomado por sentimentos de vingança, não seria?

O tempo parecia passar devagar. O vento ficou mais forte. Aurox podia ouvi-lo chicoteando as folhas secas da árvore partida acima dele. Ele captou palavras que flutuaram com o ar frio: trabalhar... árvore... Vermelha me curou... Tudo na voz de Rephaim, sem nenhuma maldade, como se ele estivesse apenas refletindo em voz alta. E então a brisa levou até ele a prece do garoto:

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

Aurox mal respirava.

Rephaim estava pedindo ajuda da sua Deusa para perdoar a si mesmo? Por quê?

Aurox esfregou a testa latejante e se esforçou para pensar. A Sacerdotisa raramente tinha falado com ele, exceto para ordenar que ele cometesse um ato de violência. Mas ela havia falado quando ele estava por perto, como se Aurox não tivesse a capacidade de ouvi-la ou de formular pensamentos por si mesmo. O que ele sabia sobre Rephaim? Ele era o filho do imortal Kalona. Ele era amaldiçoado a ser um garoto de noite e um corvo de dia.

Amaldiçoado?

Ele havia acabado de escutar Rephaim rezando, e na sua prece ele havia agradecido o perdão de Nyx. Certamente, uma Deusa não iria amaldiçoar e perdoar ao mesmo tempo.

Então, com um princípio de surpresa, Aurox se lembrou do corvo que tinha grasnado para ele e feito tanto barulho que havia provocado a sua queda naquele buraco.

Será que aquele corvo podia ser Rephaim? O corpo de Aurox se tensionou quando ele se preparou para o confronto aparentemente inevitável que estava por vir.

– Dou minha palavra. Vou voltar logo – a voz de Rephaim chegou novamente até Aurox. O garoto estava indo embora, ainda que temporariamente. Aurox relaxou contra a parede de terra. O corpo dele doía e a sua mente zunia.

Era óbvio que ele não podia ficar naquele buraco, mas só isso era óbvio para Aurox.

Será que a Deusa de Rephaim, aquela que o havia perdoado, também o havia guiado até o buraco onde estava Aurox? Se fosse isso, era para mostrar a Aurox redenção ou vingança?

Será que ele devia se entregar, talvez para Zoey, e sofrer as consequências que fossem necessárias?

E se a besta emergisse de novo, e dessa vez ele não conseguisse controlá-la?

Será que ele deveria fugir?

Ou deveria procurar a Sacerdotisa e exigir respostas?

– Eu não sei nada – ele murmurou para si mesmo. – Eu não sei nada.

Com o peso da sua confusão e de toda a sua ânsia, Aurox abaixou a cabeça. Em silêncio e cheio de hesitação, ele imitou Rephaim e fez sua própria prece. Uma prece simples e sincera. E aquela foi a primeira vez na vida em que Aurox rezou.

Nyx, se você é mesmo uma Deusa misericordiosa, por favor, me ajude... Por favor...


C O N T I N U A

O sono de Lenobia estava tão agitado que aquele sonho familiar adquiriu uma sensação de realidade que ultrapassou o reino etéreo das fantasias do subconsciente. E se tornou, desde o começo, dolorosamente real demais.
Começou com uma lembrança. Décadas e então séculos vagaram à deriva, deixando Lenobia jovem e ingênua de novo, no porão de carga do navio que a havia levado da França para a América – de um mundo a outro. Foi durante essa viagem que Lenobia conheceu Martin, o homem que deveria ter sido seu Consorte pela sua vida inteira. Mas, em vez disso, ele morrera jovem demais e havia levado o amor dela para o túmulo junto com ele.
No seu sonho, Lenobia podia sentir a leve ondulação do navio e o cheiro de cavalo, feno, peixe e mar – e Martin. Sempre Martin. Ele estava em pé na sua frente, olhando fixamente para ela com olhos ansiosos cor de azeitona e âmbar. Ela havia acabado de dizer a ele que o amava.
– É impossível – Martin estendeu o braço, pegou a mão dela e a levantou com delicadeza, fazendo a memória se repetir em sonho na sua mente. Ele levantou o próprio braço, alinhando-o lado a lado com o braço dela. – Você vê a diferença, não vê?
A Lenobia do sonho deu uma pequena exclamação de dor sem palavras. O som da voz dele! Aquele sotaque crioulo característico – profundo, sensual, único. A lembrança do som agridoce da sua voz e do seu belo sotaque havia mantido Lenobia longe de Nova Orleans por mais de duzentos anos.
– Não – a jovem Lenobia respondeu à pergunta dele depois de olhar para os braços encostados dos dois, um marrom e um branco. – Tudo o que eu vejo é você.
Ainda profundamente adormecida, Lenobia, a Mestra dos Cavalos da Morada da Noite de Tulsa, se remexeu agitada, como se o seu corpo estivesse tentando forçar a sua mente a despertar. Mas nesta noite a sua mente não obedeceu. Nesta noite os sonhos prevaleceram.
A sequência de memórias se alterou e se transformou em outra cena, ainda no porão de carga do mesmo navio, ainda com Martin, mas alguns dias depois. Ele estava entregando para ela um colar longo de couro amarrado a uma pequena bolsa tingida de um profundo azul safira. Martin colocou-o no pescoço dela, dizendo:
– Este gris-gris a protege, chérie .
Tão rápida quanto uma batida de coração, a memória se ondulou e o tempo foi adiantado para um século à frente. Uma Lenobia mais velha, mais sábia e menos ingênua estava segurando entre suas mãos a bolsa de couro envelhecida, que havia se partido e cujo conteúdo estava caindo para fora – treze coisas, justamente como Martin tinha dito para ela. Mas a maioria dessas coisas havia se tornado irreconhecível durante o século em que ela usara o talismã. Lenobia se lembrou de um cheiro fraco de zimbro, do toque macio do barro granulado antes de ele se transformar em pó e da pequena pena de pomba que se desintegrou entre seus dedos. Mas, acima de tudo, Lenobia se lembrava da onda de alegria fugaz que ela sentira quando, no meio dos restos em decomposição do amor e da proteção de Martin, ela descobriu algo que o tempo não havia sido capaz de destruir. Era um anel de ouro, com uma esmeralda em forma de coração rodeada por minúsculos diamantes.
– O coração de sua mãe... o seu coração... o meu coração – Lenobia sussurrou enquanto deslizava a peça pelo seu dedo anular. – Eu ainda sinto a sua falta, Martin. Eu nunca o esqueci. Eu prometi isso.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/1b_ESCONDIDA.jpg

 


E então as memórias do sonho voltaram no tempo novamente, levando Lenobia para Martin outra vez, só que desta vez eles não estavam se encontrando no porão de carga de um navio no mar e se apaixonando. Essa memória era sombria e terrível. Mesmo sonhando, Lenobia sabia o lugar e a data: Nova Orleans, 21 de março de 1788, pouco tempo depois do pôr do sol.

Os estábulos haviam explodido em um incêndio e Martin a salvara, carregando-a para longe das chamas.

– Oh, não! Martin! Não! – Lenobia havia gritado para ele, e agora ela choramingava, lutando para despertar antes que ela tivesse que reviver o fim terrível da sua lembrança.

Ela não acordou. Em vez disso, ela ouviu o seu único amor repetir as palavras que haviam partido o seu coração dois séculos atrás, sentindo tudo novamente como se fosse uma ferida fresca e em carne viva.

– Tarde demais, chérie. É tarde demais para nós neste mundo. Mas eu vou vê-la de novo. Meu amor por você não acaba aqui. Meu amor por você não vai acabar nunca... Vou encontrá-la de novo, chérie. Isso eu prometo.

Quando Martin capturou o humano do mal que havia tentado escravizá-la, e então voltou com ele para a estrebaria em chamas, salvando a vida de Lenobia, a Mestra dos Cavalos finalmente conseguiu acordar com um choro soluçante e violento. Ela se sentou na cama e, com a mão trêmula, tirou o cabelo ensopado de suor do seu rosto.

O primeiro pensamento de Lenobia ao despertar foi em sua égua. Através da conexão psíquica que elas tinham, ela podia sentir que Mujaji estava agitada, quase em pânico.

– Shhhh, minha bonitona. Volte a dormir. Eu estou bem – Lenobia falou em voz alta, enviando pensamentos tranquilizantes para a égua negra com a qual ela tinha um vínculo especial. Sentindo-se culpada por ter deixado Mujaji perturbada, ela abaixou a cabeça e começou a girar carinhosamente o anel de esmeralda em volta do seu dedo.

– Pare de ser tão tola – Lenobia disse a si mesma com firmeza. – Foi só um sonho. Eu estou em segurança. Não estou lá de novo. O que aconteceu naquela ocasião não pode me machucar mais do que já machucou – Lenobia mentiu para si mesma. Eu posso me ferir de novo. Se Martin voltou, se ele realmente voltou, meu coração pode se ferir novamente. Outro soluço tentou escapar de Lenobia, mas ela pressionou seus lábios e controlou suas emoções à força.

Ele pode não ser Martin, ela disse a si mesma racionalmente. Travis Foster, o novo humano contratado por Neferet para auxiliá-la nos estábulos, era simplesmente uma bela distração – ele e sua grande e bonita égua Percherão.

– Provavelmente, era exatamente isso o que Neferet pretendia quando o contratou – Lenobia resmungou. – Ela só queria me distrair. E a Percherão dele é só uma estranha coincidência – Lenobia fechou os olhos e bloqueou as lembranças que se levantavam do passado. Então ela repetiu em voz alta: – Travis pode não ser Martin reencarnado. Eu sei que a minha reação a ele é surpreendentemente forte, mas já faz muito tempo desde que eu tive um amante.

Você nunca mais teve um amante humano. Você prometeu isso – sua consciência a lembrou.

– Então simplesmente já passou da hora de eu ter um amante vampiro, mesmo se for por pouco tempo. E esse tipo de distração vai ser uma coisa boa para mim – Lenobia tentou ocupar sua imaginação considerando e depois rejeitando uma lista de guerreiros Filhos de Erebus bonitões, mas os olhos de sua mente não estavam vendo seus corpos fortes e musculosos, e sim imaginando olhos castanhos cor de uísque tingidos de um verde-oliva familiar e um sorriso fácil... – Não! – ela não iria pensar nisso. Ela não iria pensar nele.

Mas e se a alma de Martin realmente estiver em Travis? A mente inquieta de Lenobia sussurrou sedutoramente. Ele deu sua palavra de que me encontraria de novo. Talvez ele tenha conseguido.

– E então? – Lenobia se levantou e começou a andar de um lado para outro. – Eu conheço bem demais a fragilidade dos humanos. Eles são tão facilmente mortos, e hoje em dia o mundo é ainda mais perigoso do que era em 1788. O meu amor terminou em sofrimento e chamas uma vez. E uma vez já é o bastante – Lenobia parou e colocou seu rosto entre as mãos quando seu coração percebeu a verdade e bombeou-a através de seu corpo e de sua alma, tornando-se realidade. – Eu sou uma covarde. Se Travis não é Martin, eu não quero me entregar a ele e correr o risco de amar outro humano. E se ele é Martin que voltou para mim, eu não posso suportar o inevitável, pois vou perdê-lo de novo.

Lenobia sentou-se pesadamente na velha cadeira de balanço que ela havia colocado ao lado da janela do seu quarto. Ela gostava de ler ali. Se não conseguisse dormir, sua janela era voltada para o leste, de modo que ela podia assistir ao nascer do sol e olhar para os jardins ao lado do estábulo. Lenobia não conseguia deixar de apreciar a luz da manhã, por mais irônico que isso fosse para uma vampira. No fundo do seu coração, vampira ou não, ela seria eternamente uma garota que amava as manhãs, os cavalos e um humano alto, com a pele cor de cappuccino, que havia morrido muito tempo atrás quando ele ainda era jovem demais.

Seus ombros desabaram. Ela não costumava pensar tanto em Martin havia décadas. A memória reavivada dele era uma espada de dois gumes. Por um lado, ela amava se lembrar do seu sorriso, do seu cheiro, do seu toque. Por outro lado, a sua lembrança também evocava o vazio que a sua ausência tinha deixado. Por mais de duzentos anos, Lenobia havia sofrido por uma possibilidade perdida – uma vida desperdiçada.

– O nosso futuro foi queimado e arrancado de nós. Destruído pelas chamas do ódio, da obsessão e do mal – Lenobia balançou a cabeça e enxugou os olhos. Ela precisava recuperar o controle sobre as suas emoções. O mal ainda estava queimando e abrindo terreno no campo da Luz e do bem. Ela inspirou o ar profundamente para se centrar e voltou seus pensamentos para um assunto que nunca falhou em acalmá-la, não importando o quão caótico o mundo ao redor dela tivesse se tornado: cavalos e Mujaji, em particular. Sentindo-se mais calma agora, Lenobia se concentrou de novo, atingindo aquela parte superespecial do seu espírito que Nyx tocara ­– e que recebera o dom da sua afinidade com cavalos – no dia em que a Lenobia de dezesseis anos havia sido Marcada. Ela encontrou sua égua facilmente e, no mesmo instante, sentiu-se culpada pela sua agitação refletida em Mujaji.

– Shhh – Lenobia a tranquilizou novamente, repetindo em voz alta a sensação de segurança que ela estava enviando através do seu elo com a égua. – Eu só estou sendo tola e autoindulgente. Isso vai passar, eu prometo, minha querida – Lenobia projetou uma maré de ternura e amor sobre sua égua da cor da noite e, como sempre, Mujaji recuperou a calma.

Lenobia fechou os olhos e soltou um longo suspiro. Ela podia visua­lizar sua égua, negra e bela como a noite, finalmente se tranquilizando, levantando uma pata traseira e caindo num sono sem sonhos.

A Mestra dos Cavalos se concentrou na sua égua, afastando o turbilhão que a chegada do jovem cowboy ao seu estábulo havia causado dentro dela. Amanhã, ela prometeu para si mesma, amanhã eu vou deixar claro para Travis que nós nunca vamos ser mais do que patroa e empregado. A cor dos seus olhos e o jeito com que ele me faz sentir, tudo isso vai começar a acalmar quando eu me distanciar dele... Isso tem que... tem que...

Finalmente, Lenobia adormeceu.

Neferet

Shadowfax atendeu prontamente ao chamado de Neferet, apesar de o felino não ser ligado a ela. Felizmente, as aulas já haviam terminado por esta noite, portanto, quando o grande Maine Coon a encontrou no meio do ginásio, o lugar estava com as luzes parcialmente apagadas e totalmente vazio – não havia nenhum estudante por perto; o próprio Dragon Lankford também estava ausente, mas provavelmente por pouco tempo. Ela tinha visto apenas alguns novatos vermelhos no caminho até ali. Neferet sorriu, satisfeita por pensar em como ela havia colocado os vermelhos do mal na Morada da Noite. Quantas possibilidades adoráveis e caóticas eles apresentaram – especialmente depois de ela ter certeza de que o círculo de Zoey seria quebrado e que a melhor amiga dela, Stevie Rae, ficaria arrasada, sofrendo com a perda do seu amante.

A constatação de que ela iria assegurar dor e sofrimento futuros para Zoey agradou infinitamente Neferet, mas ela era disciplinada demais para se permitir começar a tripudiar antes que o feitiço de sacrifício estivesse terminado e os seus comandos fossem postos em andamento. Apesar de a escola estar surpreendentemente quieta esta noite, quase abandonada, na verdade qualquer um podia aparecer no ginásio. Neferet precisava trabalhar rapidamente e em silêncio. Haveria tempo de sobra para se regozijar com os frutos do seu trabalho mais tarde.

Ela falou suavemente com o gato, atraindo-o para mais perto dela, e quando ele estava próximo o bastante ela se ajoelhou ao seu nível. Neferet pensou que ele desconfiaria dela – os gatos sabem das coisas. Eles eram muito mais difíceis de enganar do que humanos, novatos ou até mesmo vampiros. O próprio gato de Neferet, Skylar, havia se recusado a se mudar para a nova cobertura dela no edifício Mayo, preferindo ficar espreitando nas sombras da Morada da Noite, observando-a deliberadamente com seus grandes olhos verdes.

Mas Shadowfax não era tão precavido.

Neferet acenou. Shadowfax veio até ela, encurtando vagarosamente o último espaço que os separava. O grande gato não foi amigável – ele não se esfregou contra ela, marcando-a afetivamente com o seu cheiro –, mas veio até ela. A sua obediência era tudo o que importava para Neferet. Ela não queria o amor dele; ela queria a sua vida.

A Tsi Sgili, Consorte imortal das Trevas e ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, sentiu apenas uma vaga e remota sombra de remorso quando a sua mão esquerda acariciou o grande Maine Coon cinza tigrado. O seu pelo era macio e grosso sobre o seu corpo ágil e atlético. Como Dragon Lankford, o guerreiro que o gato havia escolhido como seu, Shadowfax era poderoso e estava em pleno vigor. Era uma pena que ele fosse necessário para atender a um propósito maior. Um propósito superior.

O remorso de Neferet não equivalia a hesitação. Ela usou o seu dom concedido pela Deusa – a afinidade com felinos – e canalizou afeto e confiança através da palma da sua mão para o gato já confiante. Enquanto sua mão esquerda o acariciava, encorajando-o a se arquear e começar a ronronar, a sua mão direita sorrateiramente puxou o seu afiado athame 1 , com o qual ela rapidamente, de modo preciso, cortou o pescoço de Shadowfax.

O grande gato não emitiu nenhum som. O seu corpo deu um espasmo, tentando se lançar para longe de Neferet, mas a mão dela agarrou o pelo do animal, segurando-o tão perto que o seu sangue respingou, quente e úmido, sobre o corpete do seu vestido de veludo verde.

Os filamentos de Trevas que estavam sempre em volta de Neferet pulsaram e estremeceram na expectativa.

Neferet os ignorou.

O gato morreu mais rápido do que ela imaginara, e Neferet ficou feliz por isso. Ela não tinha imaginado que ele fosse encará-la, mas o gato guerreiro sustentou o olhar dela mesmo depois de desabar no chão arenoso do ginásio, quando ele já não podia mais combatê-la, mas ainda assim ficou deitado respirando com dificuldade, contorcendo-se em silêncio e encarando-a.

Trabalhando rapidamente, enquanto o gato ainda estava vivo, Neferet começou o feitiço. Usando a lâmina do seu athame ritual, Neferet desenhou um círculo em volta do corpo moribundo de Shadowfax, de modo que o sangue que se empoçava em volta dele escorria para dentro do círculo, e um fosso escarlate em miniatura se formou.

Então ela pressionou uma palma da mão dentro do sangue fresco e quente, levantou-se do lado de fora do círculo, ergueu as duas mãos – uma ensanguentada, a outra segurando a faca com a ponta escarlate – e entoou:

“Com este sacrifício eu comando

as Trevas controladas pela minha mão.

Aurox, obedeça-me!

A morte de Rephaim acontecerá”.

Neferet fez uma pausa, permitindo que os filamentos pegajosos, negros e frios se esfregassem contra ela e se agrupassem em toda a volta do círculo. Ela sentiu a sua ânsia, a sua necessidade, o seu desejo, o seu perigo. Mas, acima de tudo, ela sentiu o seu poder.

Para completar o feitiço, ela mergulhou o athame dentro do sangue e escreveu diretamente na areia com ele, fechando o encantamento:

“Através do pagamento de sangue, dor e batalha,

Eu forço o Receptáculo a ser minha arma!”.

Concentrando-se na imagem de Aurox em sua mente, Neferet entrou no círculo e cravou o punhal no corpo de Shadowfax, espetando-o no chão do ginásio enquanto ela soltava as gavinhas de Trevas para que elas pudessem consumir o seu banquete de sangue e dor.

Quando o gato estava completamente drenado e morto, Neferet disse:

– O sacrifício está concluído. O feitiço foi feito. Façam como eu ordeno. Forcem Aurox a matar Rephaim. Façam Stevie Rae a quebrar o círculo. Façam com que o feitiço de revelação falhe. Agora!

Como um ninho agitado de cobras, os filamentos subordinados às Trevas serpentearam para dentro da noite, afastando-se do ginásio e indo em direção a um campo de lavandas e ao ritual que já estava em andamento.

Neferet olhou-os atentamente, sorrindo de satisfação. Um filamento de Trevas em particular, grosso como o seu braço, chicoteou através da porta que se abria do ginásio para o estábulo. A atenção de Neferet foi atraída naquela direção pelo som abafado de vidro quebrado.

Curiosa, a Tsi Sgili deslizou até lá. Tomando cuidado para não fazer barulho e disfarçando-se nas sombras, Neferet espiou o estábulo. Os seus olhos esmeralda se arregalaram com uma agradável surpresa. O filamento grosso de Trevas havia sido desajeitado. Ele havia derrubado um dos lam piões a gás que ficavam pendurados não muito longe das pilhas de feno de ótima qualidade que Lenobia era sempre tão meticulosa em escolher para as suas criaturas. Neferet assistiu, fascinada, quando o primeiro ramo de feno pegou fogo, crepitou e então, com uma renovada onda amarela e um poderoso som de whoosh, incendiou-se completamente.

Neferet olhou para a longa fileira de baias de madeira fechadas. Ela só conseguia ver os contornos escuros e indistintos de alguns dos cavalos. A maioria estava dormindo. Alguns estavam pastando preguiçosamente, já acomodados para o amanhecer que se aproximava e para o descanso que o dia iria proporcionar a eles até o pôr do sol, quando os estudantes chegariam para as suas aulas intermináveis.

Ela olhou de volta para o feno. Um fardo inteiro foi engolfado em chamas. O cheiro de fumaça foi levado até ela, e era possível ouvir o som crepitante do fogo se alimentando e crescendo, como uma besta descontrolada.

Neferet saiu do estábulo, fechando a pesada porta que dava para o ginásio com firmeza. Parece que provavelmente Stevie Rae não vai ser a única a sofrer depois desta noite. Esse pensamento satisfez Neferet, e ela saiu do ginásio e da matança que ela havia causado ali, sem ver a pequena gata branca que caminhou até o corpo imóvel de Shadowfax, deitou ao lado dele e fechou os olhos.

Lenobia

A Mestra dos Cavalos acordou com um terrível pressentimento. Confusa, Lenobia esfregou as mãos no rosto. Ela havia pegado no sono na cadeira de balanço perto da janela e esse súbito despertar parecia mais um pesadelo do que realidade.

– Isso é tolice – ela resmungou sonolenta. – Preciso encontrar meu centro de novo. – A meditação a havia ajudado a silenciar seus pensamentos no passado. Resolutamente, Lenobia inspirou profundamente o ar para se purificar.

Foi com essa inspiração profunda que Lenobia sentiu o cheiro – fogo. Mais especificamente, um estábulo em chamas. Ela cerrou os dentes. Desapareçam, fantasmas do passado! Sou velha demais para esse tipo de jogo. Então um agourento som crepitante fez Lenobia afastar o último resquício de sono que havia obscurecido a sua mente. Ela se moveu rapidamente até a janela e abriu as pesadas cortinas pretas. A Mestra dos Cavalos olhou para o seu estábulo e arfou de horror.

Não era um sonho.

Não era a sua imaginação.

Em vez disso, era um pesadelo real.

Chamas estavam lambendo as laterais do edifício. Enquanto ela observava, as portas duplas no canto da sua visão foram abertas pelo lado de dentro e, contra o pano de fundo de uma onda de fumaça e labaredas ardentes, estava a silhueta de um cowboy alto guiando uma enorme Percherão cinza e uma égua negra como a noite para fora.

Travis soltou as éguas, tocando-as para os jardins da escola e para longe do estábulo em chamas; então, ele correu de volta para a boca flamejante do edifício.

Tudo dentro de Lenobia ficou vivo quando aquela visão extinguiu o seu medo e a sua dúvida.

– Não, Deusa. De novo, não. Eu não sou mais uma garota assustada. Desta vez, o fim dele vai ser diferente!


2 Lenobia

Lenobia saiu em disparada de seu quarto e desceu correndo a pequena escada que ligava o seu alojamento ao piso térreo e ao estábulo. A fumaça estava se infiltrando feito cobras por debaixo da porta. Ela controlou o seu pânico e encostou a mão na madeira. Não estava quente, então ela empurrou a porta, avaliando a situação rapidamente enquanto entrava no estábulo. O fogo estava ardendo mais furiosamente no fundo do edifício, na área onde o feno e a ração eram estocados. Era também a área mais próxima à baia de Mujaji e à grande baia para animais prenhes onde a Percherão Bonnie e Travis haviam se instalado.

– Travis! – ela gritou, levantando o braço para proteger o rosto do calor das labaredas crescentes, enquanto corria para dentro do estábulo, abrindo as baias e libertando os cavalos mais próximos a ela. Para fora, Persephone, vá! Lenobia empurrou a égua clara, que estava congelada de pavor, recusando-se a sair de sua baia. Quando Persephone passou por ela em disparada em direção à saída, Lenobia chamou de novo: – Travis! Cadê você?

– Estou levando para fora os cavalos que estavam mais perto do fogo! – ele gritou quando uma jovem égua acinzentada correu da direção de onde vinha a voz de Travis e quase passou por cima de Lenobia.

– Calma! Calma, Anjo – Lenobia a tranquilizou, conduzindo a égua aterrorizada até a saída.

– A saída leste está bloqueada pelas chamas e eu... – as palavras de Travis foram cortadas quando a janela da selaria explodiu e estilhaços de vidro quente voaram pelo ar.

– Travis! Saia daqui e ligue para o 911! – Lenobia gritou enquanto abria a baia mais próxima e libertava um capão, detestando o fato de ela não ter pegado o seu telefone e feito ela mesma a chamada antes de sair do quarto.

– Eu acabei de ligar! – respondeu uma voz não familiar. Lenobia olhou através da fumaça e das chamas e viu uma novata correndo na sua direção, guiando uma égua alazã que estava totalmente em pânico.

– Está tudo bem, Diva – Lenobia automaticamente acalmou o cavalo, pegando a correia da garota. Ao seu toque, a égua se aquietou, e Lenobia soltou a correia do cabresto, encorajando-a a galopar para fora pela porta mais próxima atrás dos outros cavalos em fuga. Ela puxou a garota para trás com ela, afastando-se do calor que aumentava, dizendo: – Quantos cavalos estão... – Lenobia perdeu a fala quando viu que o crescente na testa da garota era vermelho.

– Acho que só sobraram alguns – a novata vermelha estava com a mão trêmula quando enxugou o suor com fuligem do seu rosto, gaguejando as palavras. – E-eu peguei Diva porque sempre gostei dela e pensei que ela podia se lembrar de mim. Mas até ela estava assustada. Realmente assustada.

Então Lenobia reconheceu a garota: Nicole. Ela tinha uma aptidão com cavalos e um modo natural de montar antes de morrer, ressuscitar e se juntar ao grupo do mal de Dallas. Mas não havia tempo para questionar a garota. Não havia tempo para nada, exceto levar os cavalos – e Travis – para um local seguro.

– Você fez bem, Nicole. Você pode entrar de novo lá?

– Sim – Nicole concordou trêmula. – Não quero que eles se queimem. Farei qualquer coisa que você mandar.

Lenobia colocou a mão no ombro da garota.

– Eu só preciso que você abra as baias e saia do caminho. Eu vou guiá-los para um local seguro.

– Ok, ok. Eu consigo fazer isso – Nicole concordou. Ela soou aflita e assustada, mas seguiu Lenobia sem hesitação, e as duas correram de volta para o turbilhão de calor dentro do estábulo.

– Travis! – Lenobia tossiu, tentando enxergar através da fumaça cada vez mais espessa. – Você está me ouvindo?

Mais alto que o som crepitante das chamas, ele gritou:

– Sim! Estou aqui atrás. Fechado na baia!

– Abra a baia! – Lenobia se recusou a ceder ao seu próprio pânico. – Abra todas as baias! Eu consigo chamar os cavalos para mim, para um local seguro. Posso fazê-los sair. Siga-os. Posso guiar todos vocês para fora!

– Já abri! – Travis gritou logo depois, do meio da fumaça e do calor.

– Já abri todas aqui também! – Nicole gritou bem mais perto.

– Agora sigam os cavalos e saiam do estábulo! – Lenobia berrou antes de começar a correr para trás, para longe do fogo e em direção à porta dupla da saída que ela deixou bem aberta. Em pé, na frente da porta, ela levantou os braços, com as palmas voltadas para fora, e imaginou que estava extraindo poder diretamente do Mundo do Além e do reino místico de Nyx. Lenobia abriu seu coração, sua alma e seu dom concedido pela Deusa e gritou: – Venham, meus belos filhos e filhas! Sigam minha voz e meu amor e vivam!

Pareceu haver um estouro da manada, com cavalos saindo em disparada do meio das labaredas e da fumaça escura. O terror deles era tão palpável para Lenobia que era quase como um ser vivo. Ela compreendeu isso – o seu medo das chamas, do fogo e da morte – e canalizou força e serenidade para si mesma e para os cavalos que passavam por ela galopando em direção aos jardins da escola.

A novata vermelha saiu cambaleando e tossindo atrás deles.

– Acabou. Todos os cavalos saíram – ela disse, desabando no gramado.

Lenobia deu um aceno rápido de cabeça para Nicole por consideração. Suas emoções estavam concentradas na manada agitada atrás dela, e seus olhos estavam focados na fumaça espessa e nas chamas flamejantes diante dela, das quais Travis não saía.

– Travis! – ela gritou.

Não houve nenhuma resposta.

– O fogo está se espalhando rápido – a novata vermelha falou ainda tossindo. – Ele pode estar morto.

– Não – Lenobia respondeu com firmeza. – Não desta vez – ela se voltou na direção da manada, chamando a sua amada égua negra. – Mujaji!

O cavalo relinchou e veio trotando até ela. Lenobia levantou a mão, fazendo-a parar.

– Fique calma, doçura. Cuide dos meus outros filhos. Empreste a eles a sua força e serenidade, assim como o meu amor – Lenobia disse.

Com relutância, porém obedientemente, a égua começou a andar ao redor do bando de cavalos assustados, agrupando-os. Satisfeita, Lenobia se virou, inspirou duas vezes profundamente e entrou em disparada na boca do estábulo em chamas.

O calor estava terrível. A fumaça era tão densa que era como tentar respirar um líquido efervescente. Por um instante, Lenobia foi transportada de volta para aquela noite horrível em Nova Orleans e para outro celeiro em chamas. Os sulcos grossos das cicatrizes nas suas costas latejaram como uma memória fantasma de dor, e por um momento o pânico reinou, enraizando Lenobia no passado.

Então ela o escutou tossir, e o seu pânico foi despedaçado pela esperança, permitindo que o presente e a força verdadeira da vontade de Lenobia superassem o seu medo.

– Travis! Eu não estou te vendo! – ela gritou e arrancou a parte de baixo de sua camisola, entrou na baia mais próxima e mergulhou o pano na água do cocho.

– Saia... daqui... – ele disse entre uma tosse seca e outra.

– Nem ferrando. Já vi um homem queimar por minha causa. Não gosto nada disso. – Lenobia colocou o tecido ensopado sobre ela como um manto com capuz e avançou mais para dentro da fumaça e do calor, seguindo a tosse de Travis.

Ela o encontrou perto de uma baia aberta. Ele havia caído e estava tentando se levantar, mas só havia conseguido se ajoelhar e estava curvado para frente, quase vomitando e tossindo. Lenobia não hesitou. Ela entrou na baia e molhou o tecido rasgado na água do cocho da baia de novo.

– O quê...? – outra tosse o acometeu enquanto ele franzia os olhos para ela. – Não! Saia...

– Eu não tenho tempo para discutir. Apenas deite-se – ela falou. Como ele não se moveu rápido o bastante, ela deu uma rasteira por baixo dos seus joelhos. Ele caiu de costas com um gemido e ela estendeu o tecido molhado sobre o rosto e o peito dele. – Isso, assim mesmo. Na horizontal – Lenobia ordenou, enquanto foi até o cocho e rapidamente espalhou água pelo seu próprio rosto e cabelo. Então, antes que ele pudesse protestar ou estragar o plano dela se mexendo, ela agarrou as pernas de Travis e começou a puxá-lo.

Ele tinha que ser tão grande e pesado? A mente de Lenobia estava ficando confusa. As chamas estavam rugindo em volta dela, e ela tinha certeza de que podia sentir o cheiro de cabelo queimado. Bem, Martin também era grande... E então a mente dela parou de funcionar. Era como se o seu corpo estivesse se movendo no piloto automático, sem ninguém para dirigi-lo, exceto uma necessidade primordial de continuar arrastando aquele homem para longe do perigo.

– É ela! É Lenobia!

De repente, mãos fortes estavam ali, tentando tirar aquela carga dela. Lenobia lutou. A morte não vai vencer desta vez! Não desta vez!

– Professora Lenobia, está tudo bem. Você conseguiu.

Então a mente dela registrou o frescor do ar e foi capaz de entender o que estava acontecendo. Ela ofegou, inspirando o ar puro e tossindo o calor e a fumaça, enquanto mãos gentis a ajudaram a se sentar na grama e colocaram uma máscara sobre o seu nariz e sua boca, através da qual um ar ainda mais puro inundou os seus pulmões. Ela sugou o oxigênio e a sua mente clareou completamente.

Um enxame de bombeiros humanos lotava os jardins. Poderosas mangueiras estavam voltadas para o estábulo em chamas. Dois paramédicos estavam ao redor dela, observando-a, parecendo perdidos e obviamente surpresos com a rapidez com que ela estava se recuperando.

Ela arrancou a máscara do rosto.

– Não cuidem de mim. Cuidem dele! – ela puxou o tecido quente do corpo de Travis, que ainda estava imóvel demais. – Ele é humano. Ajudem-no!

– Sim, senhora – um dos paramédicos murmurou e então eles começaram a trabalhar em Travis.

– Lenobia, beba isto – alguém disse e uma taça foi colocada em suas mãos.

A Mestra dos Cavalos levantou os olhos e viu duas vampiras curandeiras da enfermaria da Morada da Noite, Margareta e Pemphredo, agachadas ao lado dela. Lenobia bebeu de uma vez todo o vinho, que estava bastante misturado com sangue, sentindo instantaneamente a energia vital que ele carregava formigar pelo seu corpo.

– É melhor você vir com a gente, professora – Margareta afirmou. – Você vai precisar de mais do que isso para se curar completamente.

– Mais tarde – Lenobia respondeu, deixando a taça de lado. Ela ignorou as curandeiras, bem como as sirenes, as vozes e o caos generalizado ao seu redor. Lenobia engatinhou em direção à cabeça de Travis. Os paramédicos estavam ocupados. O cowboy já estava usando uma máscara, e eles estavam dando uma injeção no seu braço. Os olhos dele estavam fechados. Mesmo por baixo da sujeira da fuligem, ela podia ver que o seu rosto estava escaldado e vermelho. Ele estava usando uma camiseta para fora da calça, que obviamente tinha vestido apressadamente por sobre o jeans. Os seus antebraços fortes estavam descobertos e cheios de bolhas. E as suas mãos... as suas mãos estavam queimadas e ensanguentadas.

Ela deve ter feito algum barulho involuntário – sinal da terrível dor de cabeça que estava sentindo –, pois Travis abriu os olhos. Eles eram exatamente como ela se lembrava: castanhos, com um tom de uísque e traços verde-oliva. Os seus olhares se encontraram e se fixaram um no outro.

– Ele vai sobreviver? – ela perguntou ao paramédico mais próximo.

– Eu já vi casos piores, e ele vai ter cicatrizes, mas nós temos que levá-lo ao hospital St. John o mais rápido possível. A inalação de fumaça foi pior do que as suas queimaduras – o humano fez uma pausa e, apesar de Lenobia não tirar os olhos de Travis, pôde escutar o sorriso na voz do paramédico. – Ele é um cara de sorte. Quase você não o encontra a tempo.

– Na verdade, levei duzentos e vinte e quatro anos para encontrá-lo, mas estou feliz que cheguei a tempo.

Travis começou a dizer algo, mas suas palavras foram cortadas por uma tosse seca horrível.

– Com licença, senhora. A maca chegou.

Lenobia se afastou para o lado, enquanto Travis era transferido para a maca com rodinhas, mas em nenhum momento eles deixaram de se olhar. Ela caminhou ao lado dele enquanto os paramédicos empurravam a maca até a ambulância que estava à espera. Antes de o colocarem lá dentro, ele tirou a máscara e, com uma voz áspera, perguntou:

– Bonnie? Ok?

– Ela está bem. Eu posso senti-la. Ela está com Mujaji. Vou cuidar dela. Vou cuidar de todos eles e deixá-los em segurança – ela assegurou a ele.

Ele estendeu a mão para Lenobia, e ela cuidadosamente tocou sua mão queimada e ensanguentada.

– Você vai cuidar de mim também? – ele conseguiu perguntar.

– Sim, cowboy. Você pode apostar sua bela e grande égua que eu vou – e sem se importar nem um pouco com os olhares de humanos, novatos e vampiros que ela podia sentir na direção dela, Lenobia se inclinou e o beijou suavemente na boca. – Procure por alegria e cavalos. Eu vou estar lá. Desta vez, cuidando para que você esteja a salvo.

– Bom saber. Minha mãe sempre dizia que eu precisava de alguém que cuidasse de mim. Espero que ela descanse em paz sabendo que eu consegui essa pessoa – a voz dele soou como se a sua garganta fosse uma lixa.

Lenobia sorriu.

– Você conseguiu, mas eu acho que é você que precisa aprender a descansar.

As pontas dos dedos dele tocaram a mão de Lenobia, e ele disse:

– Acho que agora eu vou conseguir. Eu só estava esperando encontrar o meu caminho de volta para casa.

Lenobia encarou aqueles olhos âmbar esverdeados que lhe eram tão familiares, tão incrivelmente parecidos com os de Martin, e imaginou que através deles ela podia enxergar a verdadeira natureza daquela alma também familiar – a bondade, a força, a honestidade e o amor que, de algum modo, haviam cumprido a sua promessa de voltar para ela. Lá no fundo do coração, Lenobia sabia que, apesar de no resto da aparência o cowboy alto e rijo não ter nenhuma semelhança com o seu amor perdido, ela havia encontrado o seu coração de novo. A emoção travou a sua voz, e tudo o que ela podia fazer era sorrir, concordar com a cabeça e virar a mão para que os dedos dele pousassem na sua palma – quente, forte e muito viva.

– Nós temos que levá-lo ao hospital, senhora – afirmou o paramédico.

Lenobia tirou sua mão de Travis com relutância, enxugou os olhos e disse:

– Você pode levá-lo por pouco tempo, mas eu o quero de volta. Logo – ela dirigiu o seu olhar, que parecia uma nuvem de tempestade, para o humano de jaleco. – Trate-o bem. Esse fogo no celeiro não é nada perto do meu temperamento inflamado.

– S-sim, senhora – o paramédico gaguejou, rapidamente colocando Travis dentro da ambulância.

Lenobia teve certeza de que ouviu a risada de Travis no meio da sua tosse horrorosa, antes de as portas da ambulância se fecharem e de eles partirem com a sirene piscando.

Ela estava parada ali, olhando a ambulância se afastar e preocupada com Travis, quando alguém próximo limpou a garganta de um jeito bem óbvio, atraindo a atenção de Lenobia instantaneamente. Ao se virar, ela enxergou o que a sua visão antes totalmente capturada por Travis havia ignorado. Parecia que a escola havia explodido. Cavalos movendo-se nervosamente o mais perto do muro leste que eles conseguiam chegar. Caminhões de bombeiros estavam estacionados nos jardins ao lado do estábulo, esguichando água de enormes mangueiras na direção do prédio ainda em chamas. Novatos e vampiros tinham se reunido em grupos assustados, parecendo impotentes.

– Calma, Mujaji, calma... Está tudo bem agora, minha doçura. – Lenobia fechou os olhos e se concentrou em usar o dom que a sua Deusa havia concedido a ela há mais de duzentos anos. Ela sentiu a bela égua negra responder imediatamente, relaxando da sua agitação e acabando com o resto do seu medo e nervosismo. Então Lenobia voltou sua conexão para a grande Percherão, que estava preocupada escavando o chão, movendo as orelhas, buscando algum sinal de Travis. – Bonnie, ele está bem. Você não tem com o que se preocupar – Lenobia falou suavemente, ecoando as ondas de emoção que ela estava transmitindo para a égua ansiosa. Bonnie se acalmou quase tão rápido quanto Mujaji, o que agradou bastante Lenobia e permitiu que ela direcionasse sua atenção facilmente para o resto dos cavalos. – Persephone, Anjo, Diva, Little Biscuit, Okie Dodger – ela enviou afeto e segurança individualmente para os cavalos –, sigam a liderança de Mujaji. Fiquem calmos. Sejam fortes. Vocês estão a salvo.

A pessoa próxima a ela limpou a garganta novamente, interrompendo a concentração dela. Irritada, Lenobia abriu os olhos e viu um humano parado na sua frente. Ele vestia um uniforme de bombeiro e a estava observando com as sobrancelhas arqueadas e uma curiosidade explícita.

– Você está falando com aqueles cavalos?

– Na verdade, estou fazendo muito mais do que isso. Dê uma olhada – ela fez um gesto para a manada diante dela.

Ele se virou, e o seu rosto registrou a sua surpresa.

– Eles se acalmaram bastante. Isso é bizarro.

– A palavra “bizarro” tem tantas conotações negativas. Prefiro a palavra “mágico”. – Lenobia fez um aceno de cabeça, despedindo-se do bombeiro, e então começou a andar a passos largos na direção do grupo de novatos que estavam aglomerados em volta de Erik Night e da professora P.

– Senhora, eu sou o capitão Alderman, Steve Alderman – ele disse, quase correndo para acompanhar o passo de Lenobia. – Estamos trabalhando para controlar o fogo, e eu preciso saber quem é o responsável pela escola.

– Capitão Alderman, eu gostaria de dizer que sou eu – Lenobia disse sombriamente. Então ela acrescentou: – Venha comigo. Vou resolver isso – a Mestra dos Cavalos se juntou a Erik, professora P. e seu grupo de novatos, que incluía um guerreiro Filho de Erebus, Kramisha, Shaylin e vários novatos azuis quinto-formandos e sexto-formandos. – Penthesilea, eu sei que Thanatos está com Zoey e o seu círculo, terminando o ritual na fazenda da Sylvia Redbird, mas onde está Neferet? – a voz de Lenobia soou como um chicote.

– E-eu simplesmente não sei! – a professora de Literatura respondeu trêmula, olhando por sobre o seu ombro para o estábulo em chamas. – Eu fui até os aposentos dela quando vi o fogo, mas não havia nenhum sinal dela.

– E ninguém tentou ligar para ela? – Kramisha perguntou.

– Não atende – Erik respondeu.

– Que maravilha – Lenobia resmungou.

– Posso supor então que, na ausência dessas pessoas que acabou de mencionar, você é a responsável aqui? – o capitão Alderman questionou Lenobia.

– É, parece que, como não sobrou ninguém, sou eu – ela disse.

– Bem, então você precisa fazer a contagem dos estudantes o mais rápido possível. Você e os professores precisam conferir imediatamente se todos os alunos estão presentes – ele indicou com o polegar um banco não muito longe de onde eles estavam. – Aquela garota com a lua vermelha na testa é a única garota que encontramos perto do celeiro. Ela não está ferida, apenas um pouco abalada. O oxigênio está limpando os pulmões dela surpreendentemente rápido. Mesmo assim, pode ser uma boa ideia que ela seja examinada no hospital St. John.

Lenobia deu uma olhada para Nicole, que estava sentada respirando profundamente com uma máscara de oxigênio, enquanto um paramédico conferia seus sinais vitais. Margareta e Pemphredo estavam por perto, fuzilando o paramédico com os olhos, como se ele fosse um inseto irritante.

– A nossa enfermaria está mais bem equipada para cuidar de novatos feridos do que um hospital humano – Lenobia afirmou.

– Como achar melhor, senhora. Você é a responsável aqui, e sei que vocês, vampiros, têm uma fisiologia própria. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Sem ofensas. Meu melhor amigo no ensino médio foi Marcado e Transformado. Eu gostava dele na época. E ainda gosto dele.

Lenobia controlou o sorriso.

– Não me senti ofendida, capitão Alderman. Nós estamos apenas falando a verdade. Os vampiros realmente têm necessidades fisiológicas diferentes das dos humanos. Nicole vai ficar bem aqui com a gente.

– Ótimo. Acho que é melhor enviar alguns rapazes para dentro daquele ginásio para procurar outros garotos que podem estar por perto – o capitão falou. – Parece que nós conseguimos evitar que o fogo se espalhasse, mas é melhor fazer uma busca nas partes adjacentes da escola.

– Acho que procurar no ginásio é uma perda de tempo para os seus homens – Lenobia afirmou, seguindo o que o seu instinto estava lhe dizendo. – Concentre-se em fazer com que eles acabem com o fogo no estábulo. O incêndio não começou sozinho. Isso precisa ser investigado, além de nos certificarmos de que nenhum dos nossos ficou preso nas chamas. Eu vou pedir que os nossos guerreiros façam buscas nas áreas adjacentes da escola, começando pelo ginásio.

– Sim, senhora. Parece que realmente nós chegamos aqui a tempo. O ginásio vai ter danos de fumaça e água, mas vai parecer muito pior do que realmente é. Acho que a estrutura permaneceu intata. É um edifício sólido, feito de pedras boas e espessas. Vai ser preciso alguma reforma, mas o seu esqueleto foi feito para durar – o bombeiro tocou no seu chapéu para cumprimentá-la e se afastou, gritando ordens para os homens mais próximos.

Bem, pelo menos algumas notícias boas, Lenobia pensou, tentando desviar os olhos do caos em combustão em que o seu estábulo tinha se transformado. Ela se virou de novo para o seu grupo.

– Onde está Dragon? Ainda no ginásio?

– Nós também não conseguimos encontrar Dragon – Erik respondeu.

– Dragon está desaparecido? – O estábulo tinha sido construído com uma parede compartilhada com o grande ginásio coberto. Até então, ela havia estado muito preocupada para pensar nisso, mas a ausência do líder dos Filhos de Erebus durante uma crise na escola era algo totalmente estranho. – Neferet e Dragon... Não gosto do fato de que nenhum deles está aqui. Isso é um mau presságio para a escola.

– Professora Lenobia, hum, eu vi Neferet.

Os olhos de todos se voltaram para a pequena garota de cabelos grossos e escuros que faziam as feições delicadas do seu rosto parecerem quase de boneca. Lenobia colocou um nome rapidamente naquele rosto: Shaylin, a novata recém-chegada na Morada da Noite de Tulsa e a única novata cuja Marca original era vermelha. No instante em que a conhecera alguns dias atrás, Lenobia pensou que havia algo muito estranho com ela.

– Você viu Neferet? – ela franziu os olhos para a novata. – Onde? Quando?

– Há mais ou menos uma hora – Shaylin respondeu. – Eu estava sentada do lado de fora do dormitório, olhando para as árvores. – Ela encolheu os ombros, nervosa, e acrescentou: – Eu era cega e, agora que eu não sou mais, gosto de olhar para as coisas. Adoro.

– Shaylin, e Neferet? – Erik a estimulou a continuar.

– Ah, sim, eu a vi andando pela calçada em direção ao ginásio. Ela, bem, ela parecia muito escura – Shaylin fez uma pausa, parecendo desconfortável.

– Escura? O que você quer dizer com...

– Shaylin tem um jeito único de ver as pessoas – Erik interrompeu. Lenobia o viu colocar a mão sobre o ombro de Shaylin para tranquilizá-la. – Se ela achou que Neferet parecia escura, então provavelmente foi bom você ter evitado que os bombeiros humanos fossem bisbilhotar no ginásio.

Lenobia queria questionar mais Shaylin, mas Erik encontrou o seu olhar e balançou a cabeça, quase imperceptivelmente. Lenobia sentiu um arrepio de mau pressentimento descendo pela sua espinha. Aquela premonição fez com que ela tomasse a decisão.

– Axis, vá com Penthesilea até o escritório da administração. Se Diana não estiver acordada, acorde-a. Pegue a lista de alunos e a distribua para os guerreiros Filhos de Erebus. Peça para que eles contem todos os estudantes e depois faça com que os estudantes apresentem-se aos seus mentores antes de voltarem aos dormitórios. – Quando a professora e o guerreiro saíram apressados, Lenobia encontrou o olhar franco de Kramisha. – Você pode fazer com que esses novatos – Lenobia fez uma pausa e seu gesto abrangeu todos os alunos com aparência desnorteada que estavam vagando pela área – se apresentem aos seus mentores?

– Sou uma poetisa. Eu consigo criar alguns pentâmetros iâmbicos incríveis. Isso significa que eu posso dar uma de chefe de alguns garotos assustados e sonolentos.

Lenobia sorriu para a garota. Ela já gostava de Kramisha mesmo antes de ela morrer e depois voltar como uma novata vermelha, que tinha tantas habilidades poéticas e proféticas que havia sido nomeada a nova vampira Poeta Laureada.

– Obrigada, Kramisha. Eu sabia que podia contar com você. Mas é bom se apressar. Não preciso dizer isso para você, mas está bem perto de amanhecer.

Kramisha bufou.

– Você está me dizendo isso? Eu vou ficar mais tostada do que aquele celeiro se eu não entrar em um lugar coberto logo.

Quando Kramisha saiu apressada, chamando os novatos espalhados, Lenobia encarou Erik e Shaylin.

– Nós três precisamos dar uma examinada no ginásio.

– É, eu concordo – Erik disse. – Vamos lá.

Mas Shaylin não saiu do lugar, e Lenobia percebeu que ela tirou a mão de Erik do seu ombro. Não de um jeito irritado, mas, sim, distraído. Ela viu a jovem novata vermelha olhar para o céu e suspirar. Lenobia notou que ela parecia se sentir importante, que ela exibia uma sensação de quem queria ou esperava algo.

– O que foi? – Lenobia perguntou para a garota, apesar de a última coisa que ela deveria fazer naquele momento era dar atenção para uma novata vermelha distraída e estranha.

Ainda olhando para cima, Shaylin falou:

– Onde está a chuva quando você precisa dela?

– Ahn? – Erik balançou a cabeça. – Do que você está falando?

– Chuva. Eu queria muito, muito mesmo que chovesse – a garota baixou os olhos do céu e se voltou para ele, encolhendo os ombros e parecendo um pouco sem jeito. – Juro que eu posso sentir um cheiro de chuva no ar. Isso iria ajudar os bombeiros e seria uma garantia dupla de que o fogo não vai se espalhar para o resto da escola.

– Os humanos estão conseguindo lidar com o fogo. Nós temos que examinar o ginásio. Não gosto do fato de Neferet ter sido vista entrando lá – Lenobia afirmou e começou a andar em direção ao ginásio, supondo que os dois iriam segui-la, mas ela hesitou ao perceber que Shaylin ainda continuava lá. Ela se virou para a novata e estava pronta para repreendê-la por insolência ou ignorância, mas Erik disse algo antes:

– Ei, isso é importante – ele falou com uma voz baixa e urgente para Shaylin. – Vamos com Lenobia conferir o ginásio. Os bombeiros já estão com as coisas sob controle. – Como Shaylin não saiu do lugar e continuou a resistir em ir até o ginásio, ele falou mais alto: – O que há com você? Já que Thanatos, Dragon e até Zoey e o seu grupo não estão aqui, a gente tem que tomar cuidado para não deixar ninguém pensar que nós podíamos...

– Erik, eu realmente acho que Lenobia está certa – Shaylin o interrompeu. – Eu só quero saber o que vai acontecer com ela.

Lenobia seguiu o olhar de Shaylin e encontrou Nicole, ainda sentada no banco, entre duas vampiras da enfermaria, com a pele rosa e manchada de fuligem.

– Ela faz parte do grupo de novatos vermelhos de Dallas. Eu não ficaria surpreso se ela tivesse algo a ver com o incêndio – Erik insinuou, claramente irritado. – Lenobia, acho que você deveria fazer com que Nicole vá até a enfermaria e fique trancada lá até nós descobrirmos o que realmente aconteceu aqui.

Antes de Lenobia responder, Shaylin já estava falando. Ela soou firme e muito mais sábia do que deveria ser aos dezesseis anos.

– Não. Façam com que ela vá até a enfermaria para ter certeza de que ela está bem, mas não a prendam lá.

– Shaylin, você não sabe o que está dizendo. Nicole está com Dallas – Erik afirmou.

– Bem, neste momento ela não está com ele. Ela está mudando – Shaylin respondeu.

– Realmente, ela me ajudou a tirar os cavalos do estábulo – Lenobia disse. – Se ela estivesse envolvida com o incêndio, teria sido muito mais fácil se esconder e fugir no meio da fumaça. Eu nunca saberia que ela esteve lá.

– Isso faz sentido. As cores dela estão diferentes... melhores. – E então Shaylin, com a sua firmeza e sabedoria se dissipando, arregalou os olhos para Lenobia: – Ah, desculpe. Eu falei demais. Preciso aprender a manter a minha boca fechada.

– Que atrocidade foi cometida nos jardins da escola esta noite!

A voz ressoou como um trovão sobre Lenobia. Pelos jardins da escola, movendo-se rapidamente em direção a eles, havia uma falange de vampiros e novatos, com Thanatos à frente, Zoey e Stevie Rae cada uma ao seu lado e, por mais bizarro que fosse, Kalona marchando logo atrás de Thanatos, com as asas abertas defensivamente, como se ele de repente tivesse se tornado o Anjo Guardião da Morte.

Foi nessa hora que o céu da noite se abriu e começou a chover.


3 Zoey

Eu já sabia antes mesmo de ver os caminhões dos bombeiros e a fumaça. Eu já sabia que o inferno ia se instalar na Morada da Noite no momento em que Thanatos testemunhou a verdade sobre os crimes de Neferet. Nesta noite, havia sido provado sem sombra de dúvidas que Neferet estava do lado das Trevas. Thanatos não havia perdido tempo para enxotá-la. No caminho de volta da fazenda de lavandas de vovó até a escola, a Grande Sacerdotisa da Morte havia feito uma chamada de emergência para a Itália e informado oficialmente o Conselho Supremo dos Vampiros de que Neferet não era mais uma Sacerdotisa de Nyx – que ela tinha escolhido as Trevas como seu Consorte. Neferet tinha sido vista como realmente era, algo que eu queria muito desde que eu havia percebido a sua verdade nojenta. Só que, agora que eu tinha realizado meu desejo, tive uma sensação terrível de que expulsar Neferet serviria mais para libertá-la do que para forçá-la a pagar pelas consequências das suas mentiras e traições.

Tudo parecia tão confuso e horroroso, como se a noite toda tivesse sido a metade final de um filme de terror medonho e sanguinolento: o ritual, assistir às imagens do assassinato da minha mãe, tudo o que tinha acontecido com Dragon, Rephaim, Kalona e Aurox... Aurox? Heath? Não, eu não posso pensar nisso! Não agora! Agora os estábulos estavam em chamas. Sério. Os cavalos da escola estavam relinchando e se aglomerando nervosamente perto do muro leste. Lenobia parecia chamuscada e coberta de fuligem. Erik, Shaylin e um monte de outros novatos estavam parados lá, chocados e ensopados porque, é claro, havia começado a cair uma chuva torrencial. E Nicole, a garota que era uma novata vermelha super do mal e a namorada vadia e detestável do Dallas, estava caída em um banco com dois paramédicos humanos em volta dela como se fosse o menino Jesus com asas douradas.

Eu queria apertar um botão, desligar aquele filme assustador e pegar no sono, deitada de conchinha com Stark, em segurança. Que inferno, eu queria fechar os olhos e voltar no tempo, quando o pior estresse que eu tinha era ter três namorados, e isso tinha sido muito, muito ruim.

Eu me chacoalhei mentalmente, fiz o melhor que podia para afastar o caos que me rodeava por dentro e por fora e me concentrei em Lenobia.

– Sim, o estábulo pegou fogo – ela estava explicando para a gente. – Nós não sabemos quem ou o que provocou isso. Algum de vocês viu Neferet?

– Nós não a vimos em pessoa, mas vimos a imagem dela em espírito que ficou gravada nas terras da avó de Zoey. – Thanatos levantou o queixo e, com uma voz forte e segura que se sobrepôs à chuva, declarou: – Neferet se aliou ao touro branco. Ela sacrificou a mãe de Zoey para ele. Ela vai ser uma inimiga poderosa, mas é inimiga de todos que seguem a Luz e a Deusa.

Percebi que esse anúncio chocou Lenobia, apesar de eu saber que a Mestra dos Cavalos já estava ciente de que Neferet era nossa inimiga havia meses. Mesmo assim, existia uma grande diferença entre imaginar algo e saber que o pior que você havia imaginado era verdade. Especialmente quando isso era tão horrível que quase fugia à compreensão. Então Lenobia limpou a garganta e perguntou:

– O Conselho Supremo a baniu?

– Eu relatei o que testemunhei esta noite – Thanatos disse, portando-se como a Grande Sacerdotisa da nossa Morada da Noite. – Foi determinado que Neferet se apresente perante o Conselho Supremo, que vai fazer justiça pela traição dela à nossa Deusa e aos nossos caminhos.

– Ela deve ter imaginado o que vocês iriam descobrir se o ritual desse certo – Lenobia afirmou.

– Sim, e é por isso que ela mandou aquela coisa dela atrás de nós... Para matar Rephaim e estragar o nosso círculo, acabando com o ritual de revelação – Stevie Rae falou, entrelaçando sua mão à de Rephaim, que estava parado, alto e forte, ao seu lado.

– Parece que não deu certo – Erik observou.

Ele estava perto de Shaylin. Agora que eu pensei nisso, parece que Erik estava passando muito tempo perto de Shaylin. Hummm...

– Bem, o plano dela teria funcionado – Stevie Rae explicou –, mas Dragon apareceu lá e segurou Aurox por um tempo – ela fez uma pausa e olhou para trás em direção a Kalona. Na verdade, ela deu seu típico sorriso doce e afetuoso para ele, antes de continuar. – Foi Kalona quem realmente salvou Rephaim. Kalona salvou o seu filho.

– Dragon! Então é com vocês que ele está – Erik exclamou, movendo-se para olhar atrás de nós, obviamente esperando ver Dragon.

Senti um aperto no estômago e pisquei com força para não cair em prantos. Como ninguém disse nada, respirei fundo e dei aquela notícia realmente triste e péssima.

– Dragon estava com a gente. Ele lutou para nos proteger. Bem, para proteger a nós e Rephaim. Mas... – perdi a fala, achando difícil dizer as próximas palavras.

– Mas Aurox furou Dragon com seus chifres até a morte, quebrando o feitiço que havia nos aprisionado e libertando-nos para que nós conseguíssemos chegar até Rephaim para protegê-lo – Stark não teve problemas em terminar para mim.

– Mas já era tarde demais – Stevie Rae acrescentou. – Rephaim também teria morrido se Kalona não tivesse aparecido a tempo de salvá-lo.

– Dragon Lankford está morto? – o rosto de Lenobia havia ficado imóvel e pálido.

– Está. Ele morreu como um guerreiro, fiel a si mesmo e ao seu Juramento. Ele se reencontrou com sua companheira no Mundo do Além – Thanatos concluiu. – Todos nós testemunhamos isso.

Lenobia fechou os olhos e abaixou a cabeça. Percebi que os lábios dela estavam se movendo, como que murmurando uma prece em voz baixa. Quando ela levantou a cabeça, seu rosto estava marcado por vincos de raiva e os seus olhos cinza pareciam nuvens de tempestade.

– Incendiar o meu estábulo foi uma distração que permitiu que Neferet escapasse.

– Parece provável – Thanatos concordou. Então a Grande Sacerdotisa fez uma pausa, como se estivesse escutando atentamente algo além do barulho da chuva, dos bombeiros e dos cavalos. Ela franziu os olhos e disse: – A Morte esteve aqui... Recentemente.

Lenobia balançou a cabeça.

– Não, os bombeiros já estão liberando o estábulo. Eu acredito que ninguém morreu lá.

– Não estou sentindo o espírito de um novato ou de um vampiro – Thanatos respondeu.

– Todos os cavalos saíram! – a voz de Nicole se levantou subitamente. Fiquei surpresa com o seu tom. Quero dizer, até aquele momento eu só tinha ouvido Nicole rindo sarcasticamente ou dizendo coisas maldosas. Agora Nicole soou como uma garota normal, preocupada com coisas como cavalos pegando fogo e o mal solto no mundo.

Mas Stevie Rae, assim como eu, conhecia uma Nicole muito diferente.

– Que diabo você está fazendo aqui, Nicole? – Stevie Rae perguntou.

– Ela estava ajudando Lenobia e Travis a tirar os cavalos do estábulo – Shaylin explicou.

– Sei, tenho certeza de que ela estava ajudando... logo depois de colocar fogo lá! – Stevie Rae afirmou.

– Sua vaca, você não pode falar assim comigo! – Nicole respondeu de um jeito sarcástico, sua voz ficando bem mais familiar.

– Se liga, Nicole – eu falei, colocando-me ao lado de Stevie Rae.

– Basta! – Thanatos levantou as mãos e o seu poder emanou, crepitando mais alto que a chuva e fazendo todos darem um salto. – Nicole, você é uma novata vermelha. Já passou da hora de você submeter a sua lealdade à única Grande Sacerdotisa da sua espécie. Você não vai xingá-la. Está entendido?

Nicole cruzou os braços e concordou com a cabeça uma vez. Ela não pareceu arrependida de jeito nenhum para mim, e a atitude dela, coroando todo o resto que tinha acontecido naquela noite, realmente me irritou. Eu a encarei e disse exatamente o que estava na minha cabeça:

– Você tem que entender que ninguém vai aturar mais a sua maldade. De agora em diante, as coisas vão ser diferentes.

– E você vai ter que passar por cima de mim para machucar Zoey – Stark disse.

– Você me usou para tentar matar Stevie Rae uma vez. Isso nunca mais vai acontecer – Rephaim subiu o tom.

– Zoey, Stevie Rae – Thanatos interveio enfaticamente. – Para serem respeitadas como Grandes Sacerdotisas, vocês precisam agir de modo adequado, assim como os seus guerreiros.

– Ela tentou nos matar. A nós duas! – Stevie Rae argumentou.

– Não recentemente! – Nicole gritou para Stevie Rae.

– Como nós podemos combater as grandes Trevas ancestrais que agora foram soltas no mundo se não passamos de crianças birrentas? – Thanatos falou em voz baixa. Ela não soou poderosa, nem sábia, nem forte. Ela soou cansada e sem esperança, e isso foi muito mais assustador do que o barulho crepitante que ela tinha feito antes.

– Thanatos está certa – eu concordei.

– Do que você está falando, Z.? Você sabe como Nicole é de verdade – Stevie Rae apontou para ela. – Assim como você sabia como Neferet era de verdade, mesmo quando ninguém acreditava em você.

– Estou falando que Thanatos está certa sobre a birra. Nós não podemos nem começar a combater Neferet se o nosso time não for forte e unido – olhei para Nicole. – O que significa: entre no nosso time ou vai pro inferno.

– Se ela está amaldiçoando, está falando sério – Aphrodite reforçou.

– Eu estou de acordo com ela – Damien afirmou.

– Assim como eu – Darius acrescentou.

– Eu também – Shaunee falou. Logo depois dela, Erin disse: – É.

– Eu já escolhi o meu lado – Kalona declarou solenemente. – Acho que é hora de os outros também escolherem.

– Eu sou nova por aqui, mas sei qual lado é o certo, e eu escolho o lado deles – Shaylin se aproximou mais de nós.

Erik a seguiu. Ele não disse nada, mas encontrou meu olhar e assentiu com a cabeça. Sorri para ele e me virei para encarar Thanatos, apoiada pela solidariedade do meu grupo.

– Nós não somos crianças birrentas. Nós só estamos cansados de receber ordens de pessoas que dizem que sabem o que é melhor, mas que parecem que continuam fazendo besteiras, até mais do que a gente.

– Ou seja, muitas – Aphrodite comentou ironicamente.

– Você não está ajudando – respondi automaticamente. Para Nicole, eu disse: – Então escolha o seu time.

– Ok. Eu escolho o Time Nicole – ela falou.

– Que na verdade significa Time Egoísta – Stevie Rae rebateu.

– Ou Time Detestável – Erin sugeriu.

– Ou Time Nada Atraente – Aphrodite acrescentou.

– Thanatos está indo embora – Lenobia disse rapidamente, indicando as costas da Grande Sacerdotisa.

– Como eu já previa – a voz de Kalona pareceu secar a chuva com a sua raiva. – Ela volta para o seu civilizado Conselho Supremo e nos deixa aqui para combater o mal.

Thanatos parou, virou-se e fuzilou o imortal alado com o seu olhar sombrio.

– Guerreiro juramentado, fique quieto! As minhas palavras não são menos desconfortáveis do que as suas. Estou indo é atrás da Morte. Infelizmente, isso não me leva para longe desta escola, nem vai me levar num futuro próximo. – Sem dizer mais nada, Thanatos continuou se afastando de nós, indo em direção à entrada fumegante do ginásio.

– Afe, ela é tão dramática – Aphrodite revirou os olhos. – Ela já disse que não é nenhum novato, vampiro ou cavalo. Então, e daí? Se a porra de um mosquito morre, nós temos que nos descabelar?

– Qual é o seu problema? – Nicole balançou a cabeça para Aphrodite. – Deusa! Você é mesmo uma bruxa histérica. Por que você não pensa antes de falar tanta besteira? Thanatos não está falando de insetos e merdas assim. Ela só pode estar falando de algum gato. É o único outro espírito de animal aqui com o qual ela se importa.

Aquilo calou Aphrodite, criando o que pareceu um vácuo gigante de silêncio, enquanto todos nós percebíamos que Nicole devia estar certa.

Eu perdi o fôlego.

– Ah, Deusa, não! Nala!

Franzindo os olhos para Nicole, Aphrodite disse:

– Relaxe, os nossos gatos estão na estação. Até aquele cachorro fedido. Não é nenhum dos nossos.

– A Duquesa não é fedida – Damien respondeu. – Mas, ah, eu estou tão feliz que ela e Cammy estão a salvo.

– Eu morreria se algo acontecesse a Belzebu – Shaunee afirmou.

– Eu também! – Erin complementou, soando mais protetora do que preocupada.

– Eu amo Nal – Stevie Rae encontrou meus olhos e nós duas piscamos para segurar as lágrimas.

– Os nossos familiares estão em segurança – a voz profunda de Darius pareceu me ancorar, pelo menos até Erik falar.

– Só porque o gato que morreu não era de nenhum de vocês, isso não torna a morte dele nem um pouco menos horrível – Erik pareceu bem mais maduro do que o normal. – Quem será que está no Time Egoísta agora?

Eu suspirei e já ia concordar com Erik, quando Nicole fez um som exasperado e saiu andando, seguindo o caminho que Thanatos tinha acabado de fazer.

– Aonde você pensa que vai? – Stevie Rae gritou para ela.

Nicole não parou. Ela também não se virou, mas sua voz chegou até nós.

– O Time Egoísta está indo ajudar Thanatos com o gato morto, seja o gato de quem for, porque o Time Egoísta gosta de animais. Eles são mais legais do que as pessoas. Ponto final.

– Eu não sei do que ela está falando – Aphrodite disse.

Revirei os olhos para ela.

– Isso tudo é teatrinho dela. Não dá pra confiar naquela garota – Stevie Rae olhou com raiva na direção de Nicole.

– Bom, eu posso dizer que Nicole quase morreu inalando fumaça ao me ajudar a libertar os cavalos – Lenobia afirmou.

– A cor dela está mudando – Shaylin sussurrou.

– Shhh – Erik falou para ela, tocando seu ombro.

– Ela tentou me matar! – Stevie Rae soou como se ela fosse explodir.

– Ah, que merda, quem não tentou te matar? Ou a Zoey. Ou a mim. Supere isso. – Aphrodite foi rápida e, antes que Stevie Rae pudesse rebater, ela levantou a mão, com a palma voltada para fora, e continuou: – Guarde isso para você. A menos que você, Stark e os outros novatos vermelhos que ficam torrados na luz do sol estejam planejando passar o dia aqui descobertos, é melhor a gente começar a embarcar no ônibus e voltar para a estação. Ah, e o menino-pássaro também vai virar cem por cento pássaro e zero por cento menino logo mais, o que eu tenho certeza de que é algo bem estranho em público.

– Eu detesto quando ela está certa – Stevie Rae disse para mim.

– Nem me fala – respondi. – Ok, por que vocês não reúnem todo mundo que deve voltar para a estação? Eu vou descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois encontro vocês no ônibus. Logo.

– Você quer dizer que você e eu vamos descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois os encontramos no ônibus. Logo – Stark me corrigiu.

Eu apertei a mão dele.

– Foi exatamente o que eu quis dizer.

– Eu também vou – Kalona afirmou. – Vou seguir Thanatos com vocês, mas não vou voltar para a estação – ele sorriu levemente quando desviou o olhar de mim e se voltou para o seu filho. – Mas logo vou ver vocês novamente.

Stevie Rae soltou a mão de Rephaim para se atirar nos braços de Kalona, apertando-o num abraço gigante, o que pareceu surpreendê-lo tanto quanto a nós, apesar de Rephaim assistir à cena com um sorriso enorme.

– Sim, com certeza a gente vai se ver logo. Obrigada de novo por aparecer para salvar o seu filho.

Kalona deu um tapinha nas costas dela desajeitadamente.

– De nada.

Então ela segurou a mão de Rephaim de novo e começou a caminhar na direção do estacionamento, dizendo:

– Ok, vamos esperar por vocês, mas lembrem-se, é batata que o sol vai nascer rapidinho.

Aphrodite sacudiu a cabeça e começou a andar de braços dados com Darius.

– Afinal, o que significa “é batata”? Será que ela pelo menos concluiu o ensino fundamental?

– Apenas a ajude a levar os garotos para o ônibus – respondi.

Felizmente, junto com a chuva havia começado a soprar um vento, e ambos encobriram a resposta de Aphrodite, enquanto ela, Darius e o resto do meu círculo, além de Shaylin e Erik, se afastavam – teoricamente para fazer o que eu havia pedido. O que me deixou sozinha com Stark, Lenobia e Kalona.

– Pronta? – Stark me perguntou.

– Sim, é claro – eu menti.

– Então lá vamos nós para o ginásio – Lenobia disse.

Enquanto seguia Thanatos e Nicole, eu tentei me preparar para algo terrível, mas a minha cota de coisas terríveis já estava completa por aquela noite, e tudo o que eu conseguia fazer era enxugar a chuva do meu rosto e colocar um pé na frente do outro. Na verdade, eu não estava pronta para nada além de uma boa cama.

Estava quente e seco dentro do ginásio e havia um cheiro de fumaça. A areia sob os nossos pés estava úmida e suja. Dragon detestaria ver este lugar bagunçado assim, era o que eu estava pensando quando Kalona apontou para o centro da arena mal iluminada, onde eu só conseguia discernir os vultos de Thanatos e Nicole.

– Lá... Logo ali – ele falou.

– A gente devia ter acendido as tochas – Lenobia murmurou enquanto nós caminhávamos pela areia encharcada. – Os humanos apagaram quase todos os lampiões junto com o fogo do estábulo.

Eu não quis dizer nada, mas a verdade é que fiquei feliz que estava difícil de enxergar, pois eu sabia que, seja lá o que fosse aquilo em volta do qual Thanatos e Nicole estavam, não ia ser nada bonito de ver. Mas guardei esse pensamento para mim mesma e segurei na mão de Stark, tirando força do seu aperto firme.

– Olhem por onde andam – Thanatos disse quando nos aproximamos de onde ela e Nicole estavam, sem levantar os olhos, ajoelhada no chão do ginásio. – Há evidências de feitiço aqui. Quero tudo preservado e examinado para que eu possa descobrir quem é responsável por esta atrocidade.

Dei uma espiada por sobre o ombro dela, sem entender muito bem o que eu estava vendo. Um círculo tinha sido traçado na areia, que parecia estranha e escura do lado de dentro do círculo. Havia duas bolas de pelo no centro. Ao lado, palavras escritas na areia. Franzi os olhos, tentando decifrá-las.

– Que diabo é isso? – perguntei.

Os vampiros vermelhos enxergam muito melhor no escuro, então, quando Stark colocou seu braço em volta de mim, eu sabia que era algo ruim. Muito ruim. Antes que eu repetisse a minha pergunta, Nicole enfiou a mão no seu bolso e pegou seu telefone.

– Vou tirar uma foto com flash. Vai incomodar os seus olhos, mas pelo menos a foto vai sair.

Ela estava certa. No instante seguinte, eu estava piscando, lacrimejando e vendo pontinhos. Kalona, cuja visão imortal era menos suscetível aos efeitos da luz do que qualquer vampiro, disse solenemente:

– Isso é obra eu sei de quem. Vocês não conseguem sentir a presença dela ainda pairando por aqui?

A minha visão se clareou e eu me aproximei mais, apesar de Stark tentar me puxar para trás. Tarde demais, entendi para o que eu estava olhando.

– Shadowfax! Ele está morto!

– Sacrificado em um ritual macabro – Thanatos afirmou.

– E Guinevere também – Nicole acrescentou.

Achei que eu fosse vomitar.

– O gato de Dragon e a gata de Anastasia? Os dois foram mortos? – perguntei.

Thanatos estendeu o braço e gentilmente passou a mão na lateral do corpo de Shadowfax e depois na gata bem menor que estava encolhida ao lado dele.

– Esta gata pequena não foi sacrificada. Ela não tomou parte no ritual. A tristeza parou o seu coração e a sua respiração. – A Grande Sacerdotisa se levantou e voltou-se para Kalona. – Você disse que sabe de quem isso é obra.

– Eu sei, assim como você sabe. Neferet sacrificou a gata do guerreiro. Isso foi feito como pagamento. As Trevas a obedecem, mas o preço por essa obediência é sangue, morte e dor. Esse preço precisa ser pago sempre, sem parar. As Trevas nunca se dão por satisfeitas – ele apontou para as palavras escritas no chão. – Aquilo prova o que eu digo.

Naquela luz fraca, eu conseguia ver os corpos dos gatos, mas para mim era difícil entender as palavras ao lado deles. Não precisei perguntar o que significavam. Segurando-me bem perto dele, Stark leu em voz alta:

– Através do pagamento de sangue, dor e batalha, eu forço o Receptáculo a ser minha arma!

– Receptáculo é como Neferet se refere a Aurox – Kalona explicou.

– Ah, grande Deusa, isso prova mais do que o fato de isto aqui ser obra de Neferet – o olhar sombrio de Thanatos encontrou o meu. – A morte de sua mãe não foi simplesmente um sacrifício aleatório para as Trevas. Foi o pagamento exigido para a criação do Receptáculo, Aurox, a criatura de Neferet.

Senti minhas pernas fraquejarem e me aproximei ainda mais de Stark. Senti como se o braço dele fosse a única coisa que estivesse me mantendo em pé.

– Eu sabia que aquele maldito menino-touro não era boa coisa – Stark disse. – Nem ferrando que ele é algum tipo de presente de Nyx.

– O Receptáculo é o oposto disso. Ele é uma criatura feita de dor e de morte pelas Trevas e controlada por Neferet – Thanatos afirmou.

Eu não podia contar a eles o que eu tinha visto através da pedra da vidência. Como eu poderia, com os braços de Stark em volta de mim, Dragon recém-morto e a atrocidade cometida contra os gatos? Mas eu estava em carne viva – muito cansada, ferida e confusa para vigiar minhas palavras e não falar o nome de Heath sem querer. Então, em vez disso, como uma retardada, eu soltei:

– Tem que haver algo mais em Aurox além disso! Lembra quando ele foi fazer uma pergunta para você depois da aula? Ele queria saber quem ele era; o que ele era. Você disse que ele podia decidir isso por ele mesmo e que ele não devia deixar que o seu passado controlasse o seu futuro. Por que uma criatura feita totalmente de Trevas, alguém que não é nada além do Receptáculo de Neferet, iria se preocupar em perguntar qualquer coisa sobre si mesmo?

– Você tem razão. Eu lembro que Aurox veio falar comigo – Thanatos assentiu. Seu olhar se voltou para os corpos dos gatos. – Talvez Aurox não seja um receptáculo completamente vazio. Talvez a interação dele conosco e com você em particular, Zoey, tenha tocado algum pedaço de consciência dentro dele.

Senti uma onda de emoção que fez Stark me olhar de modo alarmado e questionador.

– Ele estava dizendo a verdade! – eu expliquei. – Hoje à noite, logo antes de fugir, Aurox disse: “Eu escolhi um futuro diferente. Eu escolhi um futuro novo”. Ele quis dizer que não queria machucar Rephaim nem Dragon, mas que não conseguia evitar, já que Neferet o controlava.

– Isso faz sentido – Thanatos concordou, falando devagar, como se estivesse abrindo caminho verbalmente por um labirinto. – O sacrifício do familiar de Dragon Lankford foi preciso porque Neferet estava perdendo o controle sobre o seu Receptáculo. Todos nós vimos Aurox se transformar de touro em garoto e depois começar a se transformar de novo em touro quando ele fugiu.

– Você também deve ter visto como ele ficou atordoado quando virou Aurox de novo e viu o que ele tinha feito com Dragon – eu disse.

– Isso não muda o fato de que Aurox matou Dragon – Stark afirmou. Eu senti a tensão que emanava dele e odiei perceber que o seu rosto tinha uma expressão severa.

– Mas e se ele só matou Dragon porque Neferet fez esse sacrifício horrível com Shadowfax? – perguntei, tentando fazer Stark enxergar que poderia haver mais de uma resposta certa.

– Zoey, isso não faz com que Dragon esteja menos morto – Stark respondeu, tirando o braço que estava ao meu redor e se afastando um pouco de mim.

– Nem faz com que Aurox seja menos perigoso – Kalona acrescentou.

– Mas talvez faça com que ele seja uma ameaça menor do que nós imaginávamos a princípio – Thanatos falou racionalmente. – Se Neferet precisa conduzir um ritual de sacrifício desta extensão a cada vez que quer controlá-lo, ela vai ter que escolher cuidadosamente e ser bem seletiva sobre quando e como usá-lo.

– Ele disse várias vezes que tinha escolhido um futuro diferente – eu insisti.

– Z., isso não faz de Aurox um cara do bem – Stark afirmou, balançando a cabeça para mim.

– Sabe, as pessoas podem mudar – Nicole de repente deu sua opinião. Todos nós olhamos surpresos para ela. Obviamente, eu não era a única que tinha esquecido que ela estava ali.

Eu odiava concordar com Nicole, então só mordi meu lábio, em silêncio e inquieta.

– Aurox não é uma pessoa, não é um cara nem do bem nem do mal – a voz profunda de Kalona ressoou como uma bomba no ginásio escuro, atordoando meus nervos já combalidos. – Aurox é um Receptáculo. Uma criatura feita para ser a arma de Neferet. Teria ele uma consciência e a capacidade de mudar? – ele deu de ombros. – Nós só podemos imaginar isso. E sinceramente, isso importa? Não faz diferença se uma lança tem consciência. O que importa é quem está manejando a arma. Neferet, claramente, está manejando Aurox.

– Há quanto tempo você sabe disso? – contra-ataquei Kalona. Stark estava me encarando como se eu estivesse sendo irracional, mas eu não me contive. Mesmo que eu não soubesse como contar a eles, eu acreditava que tinha visto de relance a alma de Heath dentro de Aurox através da pedra da vidência. – Se você sabia o que Aurox era, por que nunca disse nada até agora?

– Ninguém me perguntou – Kalona respondeu.

– Isso não justifica – eu falei, descarregando toda a minha raiva, frustração e confusão com o enigma Aurox/Heath em cima de Kalona. – O que mais você escondeu de nós?

– O que mais você quer saber? – ele respondeu sem hesitar. – Apenas pense bem, jovem Sacerdotisa, se você realmente quer ouvir as respostas para as perguntas que fizer.

– Você deveria estar do nosso lado, lembra? – Stark disse, colocando-se entre mim e Kalona.

– Eu me lembro de mais do que você imagina, vampiro vermelho – Kalona falou.

– O que você quer dizer com isso? – Stark rebateu.

– Isso significa que você não foi sempre todo bonzinho! – Nicole gritou.

– Não se atreva a falar dele! – atirei minhas palavras contra ela.

– De novo, vocês brigam uns com os outros! – Thanatos gritou, e a ira na sua voz agitou o ar à nossa volta. – A nossa inimiga cometeu atrocidades na nossa própria casa. Ela não matou apenas uma ou duas vezes, mas várias. Ela se aliou ao maior mal que este mundo já conheceu. E, ainda assim, vocês se atacam entre si. Se nós não somos capazes de nos unir, então ela já nos derrotou.

Thanatos balançou a cabeça com tristeza. Ela deu as costas para nós e se voltou para os dois gatos. A Grande Sacerdotisa se ajoelhou ao lado dos seus corpos e, mais uma vez, passou a mão suavemente sobre cada um deles. Desta vez, o ar acima dos gatos começou a emitir uma luz trêmula, e os contornos brilhantes de Shadowfax e Guinevere se materializaram – só que eles não eram os gatos adultos que jaziam imóveis e frios no chão da arena. Eles eram filhotes. Gatinhos gorduchos e adoráveis.

– Vão ao encontro da Deusa, pequeninos – Thanatos falou com eles afetuosamente. – Nyx e aqueles a quem vocês mais amam esperam por vocês. – O pequeno Shadowfax estendeu uma patinha felpuda para brincar com a manga de Thanatos que estava balançando no ar, até que os dois gatos desapareceram em um sopro de luz.

Eu podia jurar ter ouvido o som distante da risada musical de Anastasia, e imaginei que ela e Dragon deviam estar em êxtase recepcionando os seus gatinhos no Mundo do Além.

O Mundo do Além...

Minha mãe estava lá, junto com Dragon, Anastasia, Jack e, se eu estivesse errada sobre o que vi dentro de Aurox, Heath estava lá também... Eu havia estado lá. Eu sabia que o Mundo do Além existia com tanta certeza quanto sabia que eu existia. Eu também sabia que era um lugar mágico e incrível e, mesmo que aquela não fosse a minha hora de morrer e ficar lá, a beleza daquele lugar ainda permanecia na minha mente e na minha alma, formando uma espécie de bolha de maravilhas e segurança, que era completamente o oposto do que o mundo real em volta de mim tinha se tornado.

– Seria tão mal assim se nós perdêssemos?

Não percebi que eu havia falado em voz alta até Stark sacudir meu ombro.

– Do que você está falando, Z.? Nós não podemos perder porque Neferet não pode ganhar. As Trevas não podem vencer.

Eu podia ver a sua preocupação e sentir o seu medo. Eu sabia que eu o estava assustando, mas não consegui me conter. Eu estava tão incrivelmente cansada de tudo ser uma batalha entre as Trevas e a Luz, entre a morte e o amor. Por que tudo não podia simplesmente terminar? Eu daria qualquer coisa para que tudo isso simplesmente acabasse!

– Qual é a pior coisa que pode acontecer? – eu me escutei dizendo e depois continuei sem pensar, respondendo à minha própria pergunta. – Neferet vai nos matar. Bem, estar morto não parece tão terrível – indiquei com a mão a direção onde os gatos haviam se manifestado recentemente.

– Afe, desistir totalmente? – Nicole murmurou em voz baixa, em desgosto.

– Zoey Redbird, a morte está longe de ser a pior coisa que pode acontecer a qualquer um de nós – Thanatos afirmou. – Sim, as Trevas parecem extremamente poderosas agora, principalmente depois de tudo que nós descobrimos nesta noite, mas também existe amor e Luz aqui. Pense em quanta tristeza as suas palavras iriam trazer para Sylvia Redbird.

Senti uma onda de culpa. Thanatos estava certa. Havia coisas piores do que morrer, e essas coisas piores acontecem com as pessoas que se deixa para trás. Abaixei a cabeça e me aproximei de Stark, pegando sua mão.

– Sinto muito. Vocês estão certos. Eu nunca devia ter dito isso.

Thanatos sorriu gentilmente para mim.

– Volte para a sua estação. Reze. Durma. Encontre conforto e orientação nas palavras que Nyx falou para nós: “Guardem a lembrança da cura que aconteceu aqui nesta noite. Vocês vão precisar dessa força e dessa paz para a luta que está a caminho”. – Ela hesitou, deu um forte suspiro e acrescentou: – Você é tão jovem.

Eu queria gritar: Eu sei! Sou jovem demais para salvar o mundo! Em vez disso, fiquei parada ali em silêncio, sentindo-me tola e inútil, enquanto Thanatos se abaixava e recolhia os corpos de Shadowfax e Guinevere, envolvendo-os em uma de suas volumosas saias, segurando-os com delicadeza e ternura, como se eles fossem bebês adormecidos. Então ela fez um gesto para Kalona, dizendo:

– Venha comigo. Preciso dar a triste notícia da morte do Mestre da Espada para os Filhos de Erebus. Enquanto eu faço isso, comece a construir uma pira para Dragon e estes pequenos. No momento em que eu acender a pira, irei oficialmente proclamar você como o guerreiro da Morte. – Sem se dirigir a mim outra vez, Thanatos saiu do ginásio. Kalona a seguiu sem nem olhar de relance para mim e Stark.

– Enfim, o time de vocês é um saco – Nicole se afastou de nós também, balançando a cabeça.

Eu podia sentir o olhar de Stark em mim. A mão dele, entrelaçada à minha, parecia rígida. Levantei os olhos para ele, certa de que ele ia me chacoalhar, gritar comigo ou pelo menos perguntar que diabo estava havendo comigo. De novo.

Em vez disso, ele abriu os braços e disse:

– Venha cá, Z. – e ele simplesmente me deu amor.


4 Aurox

Aurox correu, sem saber ou se importar para onde o seu corpo o estava levando. Ele só sabia que tinha que fugir do círculo, e de Zoey, antes que ele cometesse outra atrocidade. Os seus pés, completamente transformados em cascos fendidos e demoníacos, rasgavam o solo fértil, transportando-o em uma velocidade sobre-humana através dos campos de lavanda adormecidos pelo inverno. Como o vento que batia no seu corpo, as emoções oscilavam dentro de Aurox.

Confusão – ele não queria machucar ninguém, mas mesmo assim tinha matado Dragon e talvez até Rephaim.

Raiva – ele tinha sido manipulado, controlado contra a sua vontade!

Desespero – jamais acreditariam que ele não tinha a intenção de machucar ninguém. Ele era uma besta, uma criatura das Trevas. O Receptáculo de Neferet. Todos iriam odiá-lo. Zoey iria odiá-lo.

Solidão – mesmo assim, ele não era o Receptáculo de Neferet. Não importava o que havia acontecido naquela noite. Não importava como ela tinha conseguido controlá-lo. Ele não pertencia, não iria pertencer a Neferet. Não depois de ver o que ele tinha visto esta noite... e de sentir o que ele havia sentido.

Aurox havia sentido a Luz. Apesar de ele não ter sido capaz de abraçá-la, ele havia compreendido a força de sua bondade no círculo mágico e reconhecido a sua beleza na invocação dos elementos. Até aqueles filamentos repugnantes controlarem a besta dentro dele, Aurox tinha assistido, fascinado, ao ritual comovente que havia culminado com a Luz limpando o toque das Trevas na terra e nele, apesar de a purificação que sentiu ter durado apenas um momento. Que foi o bastante para que Aurox percebesse o que havia feito. E então a raiva justa e o ódio compreensível que os guerreiros sentiram tomaram conta dele, e Aurox só teve humanidade suficiente para fugir e não matar Zoey.

Aurox encolheu os ombros e gemeu quando a transformação de besta em garoto novamente ondulou pelo seu corpo, deixando-o descalço e com o peito nu, vestido apenas com um jeans rasgado. Uma fraqueza terrível dominou o seu corpo. Trêmulo e respirando com dificuldade, ele diminuiu a velocidade, passando a caminhar de modo vacilante. A sua mente era uma batalha. Ele sentia ódio por si mesmo. Aurox vagou a esmo antes do amanhecer, sem saber ou se importar com onde ele estava, até que ele não pode mais ignorar as necessidades físicas do seu corpo e seguiu o cheiro e o barulho de água. Na beira de um riacho cristalino, Aurox se ajoelhou e bebeu, até que o fogo dentro dele estivesse saciado. E então, dominado pela exaustão e pelas emoções, ele desabou. Um sono sem sonhos finalmente venceu a batalha dentro dele, e Aurox adormeceu.

Aurox despertou com o som dela cantando. Era uma voz tão serena e relaxante que no começo ele nem abriu os olhos. A voz dela era cadenciada, como a batida do coração, mas foi algo além do seu ritmo que tocou Aurox. Foi a emoção que inundava a sua canção. Não que ele a sentisse do mesmo modo que acontecia quando canalizava emoções violentas para alimentar a metamorfose que transformava o seu corpo de garoto em uma besta. A emoção na canção vinha da própria voz dela – alegre, cheia de vida, agradável. Ele não sentiu essas coisas junto com ela, mas elas trouxeram para ele imagens de alegria e permitiram que uma possível felicidade tocasse em sua mente desperta. Aurox não conseguia entender nenhuma das palavras, mas ele não precisava. A voz dela se elevava, e isso transcendia qualquer linguagem.

Mais completamente desperto, ele quis ver a dona da voz. Quis questioná-la sobre alegria. Para tentar entender como ele poderia criar aquele sentimento por si próprio. Aurox abriu os olhos e se sentou. Ele havia desabado não muito longe da casa da fazenda, perto da margem do pequeno córrego. Era uma faixa sinuosa de água límpida que corria calmamente, musicalmente, sobre areia e pedras. O olhar de Aurox seguiu o curso do riacho, à sua esquerda, até onde a mulher estava, usando um vestido sem mangas, com longas franjas de couro decoradas com contas e conchas. Ela dançava graciosamente, acompanhando o ritmo da sua canção com os pés descalços. Apesar de o sol estar apenas se levantando no horizonte e de a manhã estar fria, ela estava corada, animada, cheia de energia. A fumaça do feixe de plantas secas na mão dela flutuava ao seu redor, aparentemente no mesmo ritmo da canção.

Apenas observá-la fez com que Aurox se sentisse melhor. Ele não precisou canalizar a alegria dela – a alegria era palpável ao seu redor. O espírito dele se elevou porque a mulher estava tão tomada pela emoção que ela transbordava. Ela jogou a cabeça para trás, e o seu longo cabelo prateado com fios negros tocou facilmente a sua cintura fina. Ela ergueu os braços nus, como que abraçando o sol nascente, e então começou a se mover em círculo, marcando o compasso com os pés.

Aurox estava tão envolvido pela canção que não reparou que ela estava se virando na sua direção, e que iria vê-lo, até que os olhos deles se encontraram. Então ele a reconheceu. Era a avó de Zoey, que havia ficado no centro do círculo na noite anterior. Ele esperou que ela ofegasse ou gritasse ao vê-lo de repente ali, no extenso gramado na beira do seu riacho. Em vez disso, a sua dança alegre terminou. A sua canção cessou. E ela falou com uma voz clara e calma:

– Eu o reconheço, tsu-ka-nv-s-di-na. Você é o transmorfo que matou Dragon Lankford na noite passada. Você também tentou matar Rephaim, mas não conseguiu. E você ainda arremeteu contra minha amada neta, como se pretendesse machucá-la. Você está aqui para me matar também? – Ela ergueu os braços de novo, inspirou profundamente o ar frio e puro da manhã e concluiu: – Se for assim, então eu vou dizer ao céu que meu nome é Sylvia Redbird e que hoje é um bom dia para morrer. Eu irei até a Grande Mãe para encontrar meus ancestrais com o espírito cheio de alegria.

Então ela sorriu para ele.

Foi o sorriso dela que o quebrou. Ele se sentiu despedaçar e, com uma voz trêmula que ele mal reconheceu como sua, Aurox respondeu:

– Eu não estou aqui para matá-la. Estou aqui porque não tenho nenhum outro lugar para ir.

E então Aurox começou a chorar.

Sylvia Redbird hesitou por apenas um instante. Através das suas lágrimas, Aurox a observou erguendo a cabeça de novo e assentindo, como se ela tivesse recebido a resposta para alguma pergunta. Então ela caminhou graciosamente até ele, com as longas franjas de couro do seu vestido farfalhando musicalmente com os seus movimentos e o toque da brisa fria da manhã.

Ela não hesitou quando chegou perto dele. Sylvia Redbird se sentou, cruzando seus pés descalços, e então colocou os braços em volta de Aurox, aconchegando a cabeça dele no seu ombro.

Aurox nunca soube quanto tempo eles ficaram sentados assim, juntos. Só sabia que, quando ele chorou de modo soluçante, ela o acalentou e o balançou suavemente, para a frente e para trás, cantando uma cantiga bem baixinho, dando tapinhas nas suas costas no mesmo ritmo do coração dela.

Finalmente, ele se afastou, desviando o rosto de vergonha.

– Não, meu filho – ela disse, segurando os ombros dele e forçando-o a encontrar o seu olhar. – Antes de se afastar, conte-me por que você estava chorando.

Aurox enxugou o rosto, limpou a garganta e, com uma voz que soou para ele muito jovem e tola, respondeu:

– É porque eu sinto muito.

Sylvia Redbird sustentou o seu olhar.

– E? – ela o estimulou a continuar.

Ele soltou um longo suspiro e admitiu:

– E porque eu estou muito sozinho.

Sylvia arregalou seus olhos negros.

– Você é mais do que parece ser.

– Sim. Eu sou um monstro das Trevas, uma besta – ele concordou com ela.

Os lábios dela se curvaram em um sorriso.

– Uma besta costuma chorar de tristeza? As Trevas têm a capacidade de sentir solidão? Acho que não.

– Então por que eu me sinto tão tolo por chorar?

– Pense nisto: o seu espírito chorou. Ele precisou desse pranto porque sentiu tristeza e solidão. É você quem deve decidir se isso é tolo ou não. De minha parte, já decidi que não é vergonha nenhuma ser encontrado chorando lágrimas honestas. – Sylvia Redbird se levantou e estendeu uma mão pequena e ilusoriamente frágil para ele. – Venha comigo, meu filho. Minha casa está aberta para você.

– Por que você faria isso? Na noite passada, você me viu matar um guerreiro e ferir outro. Eu também podia ter matado Zoey.

Ela inclinou a cabeça para o lado e o examinou com atenção.

– Podia mesmo? Acho que não. Ou, pelo menos, acho que o garoto que eu estou vendo neste momento não seria capaz de matá-la.

Aurox sentiu que os seus ombros desabaram.

– Mas só você acredita nisso. Ninguém mais vai acreditar.

– Bem, tsu-ka-nv-s-di-na, eu sou a única pessoa aqui com você neste momento. O fato de eu acreditar não basta?

Aurox enxugou o rosto de novo e se levantou, um pouco inseguro. Então ele pegou com muito cuidado a delicada mão dela.

– Sylvia Redbird, o fato de você acreditar é o bastante neste momento.

Ela apertou a mão dele, sorriu e disse:

– Pode me chamar de Vovó.

– Do que você me chamou, Vovó?

Ela sorriu.

– Tsu-ka-nv-s-di-na é a palavra que meu povo usa para dizer touro.

Ele sentiu uma onda de calor e depois de frio.

– A besta na qual eu me transformo é mais terrível do que um touro.

– Então talvez chamar você de tsu-ka-nv-s-di-na tire um pouco do horror daquilo que dorme dentro de você. Há poder em nomear as coisas, meu filho.

– Tsu-ka-nv-s-di-na. Vou me lembrar disso – Aurox afirmou.

Ainda se sentindo trêmulo, ele caminhou com a velha mulher mágica até a pequena casa de fazenda que ficava no meio de campos de lavanda adormecidos. Ela era feita de pedra e tinha uma ampla e convidativa varanda na entrada. Vovó o guiou até um sofá macio de couro e entregou a ele um cobertor feito à mão para colocar nos seus ombros. Então ela disse:

– Quero pedir que você descanse o seu espírito.

Aurox fez o que ela pediu, enquanto Vovó cantarolava uma canção para si mesma, acendia a lareira e fervia água para o chá. Depois ela encontrou e deu para ele um suéter e sapatos macios de couro que estavam em outro quarto. Quando a sala ficou aquecida e a canção dela cessou, Vovó fez um gesto para que ele se juntasse a ela em uma pequena mesa de madeira, oferecendo a ele a comida que estava em um prato de cor púrpura.

Aurox provou o chá adoçado com mel e comeu o que estava no prato.

– O-obrigado, Vovó – ele disse com voz trêmula. – A comida está boa. A bebida está boa. Tudo aqui é tão bom.

– O chá é de camomila e hissopo. Eu uso esse chá para me ajudar a ficar calma e focada. Os cookies são de uma receita minha: chocolate com um toque de lavanda. Sempre acreditei que chocolate e lavanda são bons para a alma – Vovó sorriu e mordeu um cookie. Eles comeram em silêncio.

Aurox nunca tinha se sentido tão satisfeito. Ele sabia que não fazia sentido, mas de algum modo ele teve uma sensação de pertencimento ali com aquela mulher. Foi essa estranha mas maravilhosa sensação de pertencimento que permitiu que ele começasse a falar com o seu coração.

– Neferet ordenou que eu viesse até aqui na noite passada. Eu deveria interromper o ritual.

Vovó assentiu. A expressão dela não era surpresa, mas contemplativa.

– Ela não queria ser descoberta como a assassina da minha filha.

Aurox a observou com atenção.

– A sua filha foi assassinada. Você assistiu ao registro disso na noite passada, mas ainda assim está serena e alegre hoje. Onde você encontra tanta paz?

– Aqui dentro – ela respondeu. – Essa paz também vem da crença de que há mais coisas funcionando aqui do que podemos ver ou provar. Por exemplo, no mínimo eu deveria temê-lo. Alguns diriam que eu deveria odiá-lo.

– Muitos diriam isso.

– Ainda assim, eu não temo nem odeio você.

– Você... você está me confortando. Dando-me abrigo. Por quê, Vovó? – Aurox perguntou.

– Porque eu acredito no poder do amor. Acredito na escolha da Luz em vez das Trevas, da alegria ao invés do ódio, da confiança ao invés do ceticismo – Vovó afirmou.

– Então isso não tem nada a ver comigo. É simplesmente porque você é uma pessoa boa – ele falou.

– Eu acho que ser uma pessoa boa nunca é muito simples, você não acha? – ela disse.

– Eu não sei. Nunca tentei ser uma boa pessoa – ele passou a mão pelo seu cabelo loiro e grosso, como um sinal de frustração.

Os olhos de Vovó se enrugaram quando ela sorriu.

– Nunca mesmo? Na noite passada, uma imortal poderosa ordenou que você interrompesse um ritual e mesmo assim, milagrosamente, o ritual foi completado. Como isso aconteceu, Aurox?

– Ninguém vai acreditar na verdade sobre isso – ele desabafou.

– Eu vou – Vovó o encorajou. – Conte-me, meu filho.

– Eu vim até aqui para seguir as ordens de Neferet: matar Rephaim e distrair Stevie Rae, para que o círculo fosse quebrado e o ritual não funcionasse, mas eu não poderia fazer isso. Eu não poderia quebrar algo que estava tão cheio de Luz, tão bom – ele falou com pressa, querendo botar a verdade para fora antes que Vovó o parasse. – Então as Trevas tomaram posse de mim. Eu não queria me transformar! Eu não queria que aquela criatura feito touro emergisse! Mas eu não consegui controlá-la e, quando ela se fez presente, só lembrava da sua última ordem: matar Rephaim. Foi só a onda de elementos e o toque da Luz que detiveram a besta o suficiente para que eu recuperasse algum controle e fugisse.

– Foi por isso que você matou Dragon. Porque ele tentou proteger Rephaim – ela concluiu.

Aurox concordou, abaixando a cabeça de vergonha.

– Eu não queria matá-lo. Eu não pretendia matá-lo. As Trevas controlaram a besta, e a besta me controlou.

– Mas não agora. A besta não está aqui agora – Vovó disse suavemente.

Aurox encontrou o olhar dela.

– Ela está. A besta sempre está aqui – ele apontou para o meio do seu peito. – Ela está eternamente dentro de mim.

Vovó cobriu a mão dele com a sua.

– Pode ser, mas você também está aqui. Tsu-ka-nv-s-di-na, lembre-se de que você controlou a besta o suficiente para fugir. Talvez isso seja um começo. Aprenda a confiar em si mesmo, e então os outros podem aprender a confiar em você.

Ele balançou a cabeça.

– Não, você é diferente de todos os outros. Ninguém vai acreditar em mim. Eles só vão enxergar a besta. Ninguém vai se importar o bastante para confiar em mim.

– Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.

Aurox piscou os olhos, surpreso. Ele não tinha pensado nisso. As emoções dele estavam em um turbilhão tão grande que ele nem tinha percebido a extensão dos atos de Zoey.

– Ela realmente me protegeu – ele disse devagar.

Vovó acariciou a mão dele.

– Não deixe que a crença dela em você seja desperdiçada. Escolha a Luz, meu filho.

– Mas eu já tentei e falhei!

– Tente de novo, esforce-se mais – ela falou com firmeza.

Aurox abriu a boca para protestar, mas os olhos de Vovó calaram as suas palavras. O olhar dela disse que as suas palavras eram mais do que uma ordem: era uma crença de que ele era capaz.

Ele abaixou a cabeça novamente. Desta vez não de vergonha, mas devido a um lampejo incerto de esperança. Aurox levou um momento para saborear esse novo e maravilhoso sentimento. Então, gentilmente, ele tirou sua mão debaixo das mãos de Vovó e se levantou. Em resposta ao olhar questionador dela, ele disse:

– Tenho que aprender como fazer para provar que você está certa.

– E como você vai fazer isso, meu filho?

– Preciso encontrar a mim mesmo – ele falou sem hesitação.

Ela deu um sorriso afetuoso e iluminado. Inesperadamente, aquele sorriso o lembrou de Zoey, o que fez com que aquele lampejo incerto de esperança se expandisse até aquecer o seu interior.

– Aonde você vai? – ela quis saber.

– Aonde eu possa fazer o bem – ele respondeu.

– Aurox, meu filho, saiba que, desde que você controle a besta e não mate de novo, sempre pode encontrar abrigo aqui comigo.

– Nunca vou me esquecer disso, Vovó.

Quando ela o abraçou perto da porta, Aurox fechou os olhos e inspirou o aroma de lavanda e o toque de amor de uma mãe. Aquele aroma e aquele toque permaneceram com ele enquanto dirigia devagar de volta para Tulsa.

Aquele dia de fevereiro estava claro e, como o homem no rádio havia dito, quente o bastante para os carrapatos começarem a acordar. Aurox estacionou o carro de Neferet em uma das vagas da parte dos fundos da Utica Square, e então ele deixou que o seu instinto guiasse os seus passos enquanto caminhava do movimentado centro de compras até a rua detrás, chamada South Yorktown Avenue. Aurox sentiu o cheiro de fumaça antes de chegar ao grande muro de pedra que circundava a Morada da Noite.

Esse fogo é obra de Neferet. Tem o cheiro desagradável das Trevas que emanam dela, Aurox pensou. Ele não se permitiu imaginar o que aquele fogo podia ter destruído. Ele se concentrou em apenas seguir o seu instinto, que estava dizendo que ele deveria voltar para a Morada da Noite para encontrar a si mesmo e a sua redenção. O coração de Aurox estava batendo forte quando ele passou por ali despercebido e entrou nas sombras do muro, aproximando-se de modo rápido e silencioso da fronteira leste da escola. Então ele chegou perto de um velho carvalho que havia sido partido ao meio tão violentamente que uma parte dele estava apoiada contra o muro da escola.

Foi realmente fácil escalar o muro, agarrar os galhos desfolhados pelo inverno da árvore despedaçada e então aterrissar no chão do outro lado. Aurox se agachou na sombra da árvore. Como ele esperava, a luminosidade do sol havia esvaziado os jardins da escola, mantendo novatos e vampiros dentro dos edifícios de pedra, atrás de janelas com cortinas escuras. Ele deu a volta na base partida da árvore, analisando a Morada da Noite.

Era o estábulo que havia pegado fogo. Ele podia ver isso facilmente. Parecia que o incêndio não tinha se alastrado, apesar de ter deixado uma parede externa do estábulo no chão. Aquela abertura avariada já havia sido coberta com uma grossa lona preta. Aurox se encostou mais na árvore. Escolhendo cuidadosamente o seu caminho por entre os fragmentos espalhados da base quebrada da árvore e da confusão de galhos emaranhados, Aurox se perguntou por que ninguém tinha pensado em tirar aqueles escombros do outrora bem cuidado jardim. Mas ele não teve tempo de pensar muito nisso. Um corvo enorme de repente pousou em um galho inclinado bem na frente dele e começou uma série terrível e bem alta de grasnados e pios estranhamente perturbadores.

– Vá embora! Suma daqui! – Aurox sussurrou, fazendo barulhos para enxotar a grande ave, o que só fez com que a criatura explodisse em mais grasnados. Aurox se lançou na direção do corvo, com a intenção de sufocá-lo, mas seus pés ficaram presos em uma raiz exposta. Ele caiu para a frente, batendo no chão com força. Para o seu espanto, ele continuou caindo quando a terra se abriu embaixo dele, com o peso do seu corpo, e ele foi arremessado de ponta-cabeça para baixo, e foi caindo, caindo...

Até que Aurox sentiu uma dor terrível no lado direito da cabeça, e então o seu mundo ficou escuro.


5 Zoey

Eu havia adormecido aconchegada nos braços de Stark, então foi totalmente confuso acordar com ele me sacudindo, fuzilando-me com os olhos e quase gritando: “Zoey! Acorde! Pare com isso! Estou falando sério!”.

– Stark? Ahn? – eu me sentei, desalojando Nala, que havia se transformado em um donut laranja e gordo em cima do meu quadril. “Miiaaauuu!”, Nala resmungou e caminhou até a ponta da cama. Olhei para a minha gata e para o meu guerreiro: ambos estavam me encarando como se eu tivesse cometido um assassinato em massa. – O que foi? – falei em meio a um grande bocejo. – Eu só estava dormindo.

Stark pegou seu travesseiro e o estufou para ficar mais sentado na cama. Ele cruzou os braços, balançou a cabeça e desviou os olhos de mim.

– Acho que você estava fazendo muito mais do que apenas dormir.

Eu quis estrangulá-lo.

– Sério, o que há com você? – perguntei.

– Você disse o nome dele.

– O nome de quem? – fechei os olhos, tendo um flashback com aquele velho filme assustador chamado Vampiros de Almas 2 e me perguntando se Stark tinha se transformado em uma réplica alienígena dele mesmo.

– Do Heath! – Stark franziu a testa para mim. – Três vezes. Isso me acordou. – Ainda sem olhar para mim, ele disse: – Com o que você estava sonhando?

O que ele falou me deixou totalmente chocada, provocando uma batalha mental em mim. Com que diabo eu estava sonhando? Pensei no que tinha acontecido mais cedo. Lembrei de Stark me beijando antes de eu ir dormir. Lembrei que o beijo foi supergostoso, mas eu estava muito cansada e, em vez de fazer algo além de retribuir o beijo, tinha encostado a cabeça no ombro dele e desmaiado. Depois disso, eu não me lembrava de mais nada, até ele começar a me chacoalhar e a gritar comigo para que eu parasse.

– Não tenho a menor ideia – respondi honestamente.

– Você não precisa mentir para mim.

– Stark, eu não mentiria para você – afastei meu cabelo do rosto e toquei no braço dele. – Eu não me lembro de ter sonhado com nada.

Então ele olhou para mim. Os seus olhos estavam tristes.

– Você estava chamando Heath. Eu estou dormindo bem aqui ao seu lado, mas você estava chamando por ele.

O jeito com que ele falou me deu um aperto no coração. Eu detestava tê-lo magoado. Eu podia ter dito que era ridículo ele ficar bravo comigo por algo que eu tinha falado quando estava dormindo, algo de que eu nem me lembrava. Mas, ridícula ou não, a mágoa de Stark era real. Deslizei a minha mão para dentro da dele.

– Ei – eu disse baixinho. – Sinto muito.

Ele entrelaçou seus dedos aos meus.

– Você queria que ele estivesse aqui em vez de mim?

– Não – afirmei. Eu amava Heath desde que eu era criança, mas eu não trocaria Stark por ele. É claro que o resto da verdade era que, se fosse Stark quem tivesse sido assassinado, eu também não trocaria Heath por ele. Mas definitivamente aquilo era algo que Stark não precisava ouvir, nem agora nem nunca.

Amar dois caras era uma coisa confusa, mesmo quando um dos dois estava morto.

– Então você não estava chamando por Heath porque queria estar com ele em vez de mim?

– Eu quero você. Prometo – eu me inclinei para a frente e ele abriu os braços para mim. Eu me encaixei perfeitamente contra o peito dele e inspirei o seu cheiro familiar.

Ele beijou o topo da minha cabeça e me abraçou.

– Sei que é idiota ter ciúmes de um cara morto.

– É – falei.

– Especialmente porque na verdade eu gostava do cara morto.

– Pois é – concordei.

– Mas nós pertencemos um ao outro, Z.

Eu me inclinei para trás para poder olhar nos olhos dele.

– Sim – eu disse seriamente –, nós pertencemos. Por favor, nunca se esqueça disso. Não importa quanta loucura estiver rolando ao redor de nós... Eu posso lidar com isso, mas preciso saber que o meu guerreiro está do meu lado.

– Sempre, Z. Sempre – ele afirmou. – Eu te amo.

– Eu também te amo, Stark. Sempre – então eu o beijei e mostrei para ele que absolutamente não havia motivo algum para ele ter ciúme de ninguém. E, pelo menos por um tempinho, deixei que o calor do amor dele afugentasse a lembrança do que eu tinha visto quando olhei através da pedra da vidência naquela noite...

Da próxima vez que despertei, foi porque eu estava quente demais. Ainda estava nos braços de Stark, mas ele tinha se mexido um pouco e atirado sua perna por cima de mim, fazendo de mim um casulo com meu cobertor azul e felpudo. Desta vez, ele não estava dando uma de Namorado Louco. Ele estava fofo, dormindo como um garotinho.

Como sempre, Nala tinha feito sua cama no meu quadril, então antes que ela resmungasse eu a levantei um pouco, deslizando junto com ela para o lado mais frio da cama o mais silenciosamente possível. Totalmente adormecido, Stark fez um movimento vago com a sua mão da espada, como que estendendo o braço para me defender. Eu me concentrei em pensamentos felizes – refrigerante marrom, sapatos novos, gatinhos que não espirravam no meu rosto – e ele relaxou.

Tentei relaxar também – para valer. Nal me encarou. Cocei atrás da orelha dela e sussurrei:

– Desculpe por acordá-la. De novo.

Ela esfregou a cara no meu queixo, espirrou em mim e pulou de volta em cima do meu cobertor azul e felpudo. Então ela girou três vezes em círculo e voltou a ser um donut adormecido de pelos.

Suspirei. Eu precisava fazer como Nala, ficar encolhida e voltar a dormir, mas a minha mente estava desperta demais. E junto ao fato de estar desperta vinha o ato de pensar. Depois que fizemos amor, Stark havia murmurado meio sonolento:

– Nós estamos juntos. Todo o resto vai se resolver.

E eu tinha adormecido sentindo-me segura de que ele estava certo.

Mas agora que, infelizmente, eu estava totalmente consciente, não conseguia evitar aquela coisa toda de pensar demais e me preocupar demais. Apesar de eu supor que, se Stark soubesse o que eu imaginei ter visto através da pedra da vidência na noite passada, ele iria retirar aquele comentário de “todo o resto vai se resolver” e voltar ao papel de Senhor Tenho Ciúme de um Cara Morto.

Coloquei minha mão em cima da pequena pedra arredondada que pendia de uma fina corrente de prata em volta do meu pescoço e balançava inocentemente entre os meus seios. Parecia normal – como qualquer outro colar que eu poderia ter usado. Ela não estava irradiando nenhum calor estranho. Eu a tirei de debaixo da minha camiseta e a ergui devagar. Inspirei profundamente para me fortificar e dei uma olhada em Stark através da pedra.

Nada estranho aconteceu. Stark continuou sendo Stark. Virei o colar um pouco e olhei para Nala. Ela continuou sendo uma gata adormecida gorda e alaranjada.

Coloquei a pedra da vidência de novo embaixo da minha camiseta. E se eu tivesse imaginado tudo aquilo? Como Heath poderia estar em Aurox? Até Thanatos disse que Aurox tinha sido criado pelas Trevas através do sacrifício da minha mãe. Ele era um Receptáculo – uma criatura sob o controle de Neferet.

Mas ela precisou matar Shadowfax para controlá-lo totalmente, e Aurox tinha feito aquelas perguntas sobre o que ele realmente era para Thanatos.

Ok, mas alguma dessas coisas fazia diferença? Aurox não era Heath. Heath estava morto. Ele havia partido para um reino mais distante do Mundo do Além para o qual eu não pude ir porque Heath estava morto.

Refletindo a minha inquietação, Stark se remexeu, franzindo a testa em seu sono. A gata Nala rosnou de novo. Eu não queria de jeito nenhum que eles acordassem, então saí da cama em silêncio e andei nas pontas dos pés para fora do quarto, abaixando-me para passar embaixo do cobertor que Stark e eu usávamos como porta.

Refrigerante marrom. Eu precisava seriamente de uma dose de refrigerante marrom. Talvez eu tivesse sorte e encontrasse um pouco de cereal Count Chocula e um resto de leite que não estava azedo. Hum, só de pensar nisso eu me senti um pouco melhor. Eu realmente merecia um pouco do cereal que eu tanto amava no café da manhã.

Fui arrastando os pés pelo túnel mal iluminado, passando por corredores menores e outras portas fechadas com cobertores, atrás das quais meus amigos descansavam enquanto aguardávamos o sol se pôr. Até que entrei na área comum que usávamos como cozinha. O túnel meio que acabava ali, abrindo espaço para algumas mesas, laptops e geladeiras grandes.

– Deve ter sobrado um pouco de refrigerante marrom por aqui – murmurei para mim mesma, enquanto eu vasculhava a primeira geladeira.

– Tem na outra geladeira.

Dei um gritinho idiota e pulei de susto.

– Afe, Shaylin! Não fique espreitando pelos cantos assim. Você quase me fez fazer pipi nas calças.

– Desculpe, Zoey – ela foi até a segunda das três geladeiras e pegou uma lata de refrigerante marrom não diet, totalmente cheio de açúcar e cafeína, e o estendeu para mim com um sorriso de desculpas.

– Você não deveria estar dormindo? – sentei na cadeira mais próxima e dei um gole no meu refrigerante, tentando não parecer tão mal-humorada quanto eu estava.

– É, bem, eu estou cansada sim. Posso sentir que o sol não se pôs ainda, mas estou com muita coisa na cabeça. Entende o que quero dizer?

Bufei ligeiramente.

– Entendo perfeitamente o que você quer dizer.

– A sua cor está meio que desligada – Shaylin fez esse comentário de um jeito indiferente, como se ela tivesse acabado de falar algo tão normal quanto mencionar a cor da minha camiseta.

– Shaylin, na verdade eu não entendo muito bem sobre essa coisa de cor que você costuma falar.

– Eu também não sei muito bem o quanto entendo. Tudo o que sei é o que vejo e, se não penso muito sobre isso, normalmente faz sentido para mim.

– Ok, dê um exemplo de como isso normalmente faz sentido para você.

– Isso é fácil. Vou usar você como meu exemplo. As suas cores não mudam muito. Na maior parte do tempo, você é roxa com pontinhos prateados. Mesmo quando você estava se preparando para ir ao ritual na fazenda de sua avó, e sabia que isso seria algo difícil de assistir, as suas cores permaneceram as mesmas. Eu conferi porque... – ela perdeu a fala.

– Você conferiu porque... – eu a incentivei a continuar.

– Porque eu estava curiosa. Eu conferi as cores de todos antes de vocês saírem, mas, bem, acabei de perceber como isso soa invasivo.

Franzi minha testa para ela.

– Isso não é como se você estivesse lendo nossas mentes nem nada parecido. Ou é?

– Não! – ela me assegurou. – Mas quanto mais passa o tempo em que eu tenho essa coisa da Visão Verdadeira, e quanto mais eu pratico, mais real isso fica para mim. Zoey, eu acho que isso me diz coisas sobre as pessoas, coisas que às vezes elas preferem esconder.

– Como Neferet. Você disse que por dentro ela tem cor de olho de peixe morto, e por fora ela é deslumbrante.

– Sim, exato. Mas também como o que eu estou vendo em você. Mas, como Kramisha diria, eu não devo me meter onde não fui chamada.

– Por que você não me conta o que está vendo em mim, e depois eu digo se acho que você está se metendo onde não foi chamada ou não?

– Bem, desde que você voltou do ritual na fazenda de sua avó, as suas cores estão mais escuras – ela fez uma pausa e me encarou. Então ela balançou a cabeça e se corrigiu: – Não, isso não é totalmente preciso. As suas cores não estão apenas mais escuras, elas estão mais turvas. Como se o roxo e o prata tivessem sido misturados e cobertos de lama.

– Ok – falei devagar, começando a entender o que ela quis dizer com violação. – Entendi que você vê uma diferença em mim, e isso é meio estranho, principalmente porque você falou que minhas cores não costumam mudar. Mas o que isso significa para você?

– Ah, sim, desculpe. Acho que significa que você está confusa com alguma coisa, com algo sério. Isso está incomodando você. Realmente mexendo com a sua cabeça. É mais ou menos por aí?

Concordei com a cabeça.

– É mais ou menos por aí.

– E você se sente estranha por eu saber disso?

Assenti novamente.

– É, um pouco – pensei por um instante nisso e então acrescentei: – Mas aí vai a verdade: eu me sentiria menos estranha se soubesse que posso confiar que você não vai tagarelar para todo mundo que as minhas cores estão turvas e que eu estou realmente confusa com algo. Isso sim seria violação.

– Sim – ela soou triste. – Foi o que pensei também. Quero que você saiba que pode confiar em mim. Nunca fui fofoqueira. Além disso, esse dom que Nyx me deu quando fui Marcada, bem, é totalmente incrível. Zoey, eu posso ver novamente – Shaylin parecia que ia explodir em lágrimas. – Não quero estragar tudo. Vou usar esse dom do modo que Nyx quer que eu use.

Percebi que ela estava bastante perturbada e me senti mal por ela – principalmente por eu ter algo a ver com o fato de ela estar perturbada.

– Ei, Shaylin, está tudo bem. Eu entendo como é ter um dom pelo qual você sente uma grande responsabilidade e como é não querer estragar tudo. Caramba, você está falando com a Rainha de Meter os Pés pelas Mãos. – Fiz uma pausa e então acrescentei: – Isso é parte do motivo pelo qual estou confusa agora. Eu não quero tomar mais uma decisão errada, idiota e imatura. O que eu faço e digo afeta muito mais gente do que apenas eu. Quando tomo decisões ridículas, é como aquelas peças de dominó caindo uma atrás da outra. Novatos, vampiros e humanos, todos podem se ferrar. Isso é péssimo, mas não muda o fato de que eu realmente tenho um dom de Nyx e que sou responsável pelo modo como esse dom é usado.

Shaylin pensou um pouco no que falei, e eu dei um gole no meu refrigerante. Na verdade, eu estava gostando de conversar com ela. Era infinitamente melhor do que ficar quebrando a cabeça com Aurox, Heath, Stark, Neferet e...

– Ok, mas o que fazer nesta situação? – Shaylin interrompeu meus pensamentos. – O que fazer se eu vir as cores de uma pessoa mudarem? É minha responsabilidade contar isso para alguém... alguém como você?

– O que você quer dizer? Tipo, chegar para mim e falar: “Ei, Zoey, as suas cores estão todas turvas. O que está rolando?”?

– Bem, talvez, mas só se nós formos amigas. Mas eu estava pensando mais em algo como o que aconteceu hoje, quando eu vi Nicole. As cores dela eram como as do resto do grupo de Dallas: feito sangue misturado com tons de marrom e preto. Como algo sangrando no meio de uma tempestade de areia. Na noite passada, no estábulo, as cores dela tinham mudado. Ainda havia um vermelho enferrujado ali, mas parecia mais claro, mais brilhante, não no mau sentido. Mais como se estivesse ficando mais limpo. É estranho, mas juro que vi um pouco de azul nela. Mas não como o azul do céu. Mais como o mar. Foi isso que me fez pensar que o lado mau dela pode estar desaparecendo e, depois que pensei isso, senti que estava certa.

– Shaylin, o que você está dizendo é realmente confuso – afirmei.

– Não, para mim não é! Está ficando cada vez menos confuso. Eu simplesmente sei as coisas.

– Eu entendi e acredito que você está dizendo a verdade. O problema é que o seu saber é tão subjetivo. É como se você estivesse transformando a vida em uma prova, e as pessoas fossem as respostas, mas, em vez de as suas pessoas-respostas serem alternativas tipo verdadeiro ou falso, onde é fácil julgar se o que você captou é certo ou errado, elas são respostas dissertativas. E isso significa que o seu resultado pode variar dependendo de muitas coisas diferentes. Nada é preto ou branco – suspirei. Minha própria analogia estava fazendo minha cabeça doer.

– Mas, Zoey, a vida não é preto no branco ou verdadeiro e falso, nem as pessoas – ela deu um gole no seu refrigerante, o qual eu percebi que era claro. Fiquei pensando que eu realmente não entendia o refrigerante claro: não tinha cafeína e nunca parecia doce o bastante. Então ela continuou: – Mas eu entendo o que você está tentando dizer. Você acredita que eu vejo as cores das pessoas. Você só não acredita no julgamento que eu faço delas.

Eu comecei a negar e a dizer algo que iria fazer com que ela se sentisse melhor, mas um aperto dentro de mim me fez mudar de ideia. Shaylin precisava escutar a verdade.

– Sim, basicamente é isso.

– Bem – ela disse, endireitando os ombros e levantando o queixo –, eu acho que o meu julgamento é bom. Acho que ele está ficando cada vez melhor, e quero usar meu dom para ajudar. Eu sei que uma batalha está a caminho. Ouvi falar sobre o que Neferet fez com a sua mãe e sobre como ela escolheu as Trevas em vez da Luz. Você vai precisar de alguém como eu. Consigo ver o interior das pessoas.

Ela estava certa. Eu realmente precisava do dom dela, mas também precisava saber que podia confiar no seu julgamento.

– Ok, então vamos começar. Que tal você manter os olhos bem abertos? Conte-me se você vir a cor de alguém mudando.

– O primeiro caso que eu quero reportar é o de Nicole. Erik me contou sobre ela. Sei que ela foi realmente do mal no passado. Mas a verdade está nas cores dela, e elas dizem que ela está mudando.

– Está certo. Vou me lembrar disso – levantei as sobrancelhas para ela. – E por falar em se lembrar das coisas... Não quero ser maldosa nem nada parecido, mas você precisa ficar de olho em Erik. Ele não é sempre...

– Ele é arrogante e egoísta – ela me interrompeu, encontrando o meu olhar sem se alterar. – Ele se acha muito, por saber como é gostoso e talentoso. A vida tem sido fácil para ele, mesmo depois de você ter terminado com ele.

– Ele contou para você que eu terminei com ele? – não sabia dizer se ela estava sendo maliciosa ou não. Não parecia que ela estava sendo, mas, de novo, eu não a conhecia muito bem. Mas realmente eu tinha a impressão de que, toda vez que eu a via, eu via Erik. Não que me importasse. Sério. Não era ciúme. Era mais que eu me sentia responsável por adverti-la sobre ele.

– Ele não precisou me contar. Tipo, um bilhão de outros garotos fez isso antes dele – ela respondeu.

– Eu não tenho nenhum ressentimento em relação a Erik. Quero dizer, ele pode ficar com quem ele quiser. Se você gosta dele, por mim não tem problema nenhum – percebi que estava tendo um surto de diarreia verbal, mas eu não conseguia parar de falar. – E ele também não quer mais nada comigo. Acabou mesmo. Só que Erik é...

– É um cuzão – a voz de Aphrodite me salvou. Ela passou por nós bocejando e enfiou a cabeça em uma das geladeiras. – E agora você ouviu isso de duas ex-namoradas dele. Sendo que “ex” é a parte mais importante da frase – ela veio até a mesa e colocou na frente da cadeira vazia ao meu lado uma jarra de suco de laranja e uma garrafa, que eu imaginei ser um champanhe supercaro. – É claro que Z. não o chamou de cuzão. Ela estava sendo gentil – enquanto falava, Aphrodite voltou para a geladeira e abriu o freezer. Ouvi um barulho de vidro tinindo. Quando ela voltou para a mesa, estava segurando uma taça de cristal gelada, daquelas compridas e finas em que as pessoas bebem nas festas de Ano Novo na TV. – Já eu não sou tão gentil. Cu-zão. Esse é o nosso Erik – ela estourou a rolha da garrafa, derramou um pouquinho de suco de laranja na taça e então a encheu quase até transbordar com champanhe borbulhante. Ela abriu um sorriso para a taça e falou: – Mimosa ou, como diria minha mãe, o café da manhã dos campeões.

– Eu sei o que Erik é – Shaylin afirmou. Ela não pareceu irritada. Ela também não pareceu agradecida. Ela soou segura de si. – Eu também sei o que você é.

Aphrodite levantou uma sobrancelha loira para ela e deu um bom gole na sua Mimosa.

– Conta aí.

Oh-oh, pensei. Eu supunha que devia fazer algo para impedir o que estava para acontecer, mas era como estar parada em um trilho de trem tentando empurrar um carro para fora do caminho. Era mais provável que eu acabasse sendo atropelada pelo trem do que conseguisse salvar o carro. Então, em vez disso, fiquei olhando com cara de tonta e bebendo meu refrigerante.

– Você é prateada. Isso me lembra a luz da lua, o que me diz que você foi tocada por Nyx. Mas você também é amarela cor de manteiga, como a luz de uma pequena vela.

– E isso diz o que para você? – Aphrodite examinou as suas próprias unhas bem cuidadas, claramente sem se importar com a resposta de Shaylin.

– Isso me diz que, como uma pequena vela, você pode ser apagada facilmente.

Os olhos de Aphrodite se estreitaram e ela espalmou a mão contra a mesa.

– Já chega, garotinha nova. Eu já tenho passado por muita coisa, com toda essa merda de batalha contra as Trevas, para ter que aturar a sua boca mole ou a sua atitude de sabe-tudo – parecia que ela estava se preparando para avançar no pescoço de Shaylin. Eu estava pensando em correr para tentar encontrar Darius quando Stevie Rae surgiu na cozinha.

– E aí, pessoal! Bom dia! – ela disse e deu um grande bocejo. – Cara, estou cansada. Será que tem alguma lata de Mountain Dew na geladeira?

– Ah, que merda, agora não é de manhã. O sol já vai se pôr. E por que diabo está todo mundo acordado? – Aphrodite atirou as mãos para cima.

Stevie Rae franziu a testa para ela.

– É educado dizer “bom-dia” para as pessoas, mesmo que isso não seja tecnicamente correto. E eu gosto de acordar cedo. Não há nada de errado nisso.

– Ele é um pássaro! – Aphrodite falou, servindo-se de mais champanhe.

– Você já está bebendo?

– Sim. Quem é você? Uma versão caipira da minha mãe?

– Não, se eu fosse uma versão de sua mãe, eu não ia ligar para o fato de você beber no café da manhã, já que a sua mãe realmente tem problemas – Stevie Rae colocou a lata de Mountain Dew de volta na geladeira. – E agora que eu pensei nisso, tomar refrigerante no café da manhã provavelmente também não é uma boa ideia. Aposto que tem uma caixa de Lucky Charms por aqui em algum lugar.

– Esse cereal é magicamente delicioso – Shaylin comentou. – Se você encontrar, vou querer um pouco também.

– Count Chocula – como parecia que Aphrodite não ia matar ninguém (no momento), minha voz voltou a funcionar. – Se você vir uma caixa, eu quero.

– Que diabo há de errado com Mimosas? – Aphrodite estava dizendo. – Suco de laranja combina com café da manhã.

– E a parte do champanhe? É álcool – Stevie Rae argumentou.

– É Veuve Clicquot rosé. Isso significa champanhe bom, o que cancela a parte do álcool – Aphrodite afirmou.

– Você acredita mesmo nisso? – Shaylin perguntou.

Olhando para mim e claramente ignorando Shaylin, Aphrodite falou:

– O que é que está falando comigo?

– Estou com dor de cabeça e a gente ainda nem foi para a escola – eu disse para Aphrodite.

– O estábulo quase foi destruído pelo fogo e a nossa Grande Sacerdotisa foi expulsa por ser uma semideusa assassina. Acho que todos nós podemos faltar na aula hoje – Aphrodite sugeriu.

– Nananina – Stevie Rae rebateu. – Nós temos que ir para a escola por causa disso tudo. Thanatos vai precisar de nós. Além disso, vai haver a cerimônia da pira funerária para Dragon. Isso vai ser difícil, mas a gente precisa estar lá nessa hora.

Aquilo calou Aphrodite. Ela continuou a beber, enquanto Stevie Rae serviu um pouco de Lucky Charms (um cereal inferior a Count Chocula, apesar de ter marshmallows) para si mesma e para Shaylin, e todas nós ficamos um pouco melancólicas.

– Vou sentir falta de Dragon – falei. – Mas é muito legal que ele está com Anastasia de novo. E o Mundo do Além é incrível. Mesmo.

– Vocês realmente viram os dois se reencontrando, não viram? – Shaylin quis saber, com olhos arregalados.

– Todos nós vimos – eu respondi, sorrindo.

– Foi lindo – Stevie Rae comentou, fungando e enxugando os olhos.

– É – Aphrodite disse baixinho.

Shaylin limpou a garganta.

– Olha só, Aphrodite, eu não queria ter sido tão maldosa antes. O que eu falei foi errado. Eu não devia usar o meu dom dessa forma. Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua, mas isso não quer dizer que você vai se apagar. É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Aqui vai a verdade: essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Portanto, desculpe.

Aphrodite voltou seus olhos azuis e frios para Shaylin e disse:

– Ponha a loção no cesto.

– Ah, cara – eu falei. – Aphrodite, apenas tome o seu café da manhã. Shaylin, esse é um bom exemplo daquilo que a gente estava conversando antes. Eu não questiono o seu dom. Não duvido dele. Mas eu realmente tenho um pé atrás com o seu bom senso em decifrá-lo.

– Eu decifro o meu dom perfeitamente – Shaylin respondeu, soando incomodada e na defensiva. – Mas Aphrodite me tirou do sério. Então eu cometi um erro. Já pedi desculpas.

– Desculpas não aceitas – Aphrodite falou e deu as costas para Shaylin.

Foi nessa hora que Damien entrou apressado na cozinha, segurando o seu iPad – e parecendo mais descabelado do que normalmente ficava, depois do que ele gostava de chamar de seu “período de rejuvenescimento de beleza”. Ele veio direto até mim, ergueu o iPad e disse:

– Vocês têm que assistir a isso.

No começo, eu estava só ligeiramente curiosa quando vi a âncora do telejornal da noite do canal Fox23, a totalmente deslumbrante Chera Kimiko, falando. Nós adorávamos a Chera. Ela não só era bonita no nível de um vampiro como era também uma pessoa real, ao contrário dos âncoras tipo cabeças falantes de plástico que normalmente aparecem.

Aphrodite espiou por sobre o meu ombro para o iPad de Damien.

– Kimiko é clássica. Nunca vou me esquecer daquela vez em que ela cuspiu o chiclete bem no meio da notícia. Pensei que meu pai ia ficar...

– Chera é ótima, mas isto é péssimo – Damien a cortou. – E grave. Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa.

Ah, que inferno...


6 Zoey

Todos nós nos amontoamos em volta do iPad de Damien. Ele clicou no “Play” e o vídeo da Fox23 começou. A parte de baixo da tela trazia a legenda: CAOS NA MORADA DA NOITE DE TULSA? Então a tela foi preenchida por Neferet e um monte de caras de terno. Ela estava em pé em algum lugar realmente bonito, cheio de mármore e art déco . Senti que eu quase reconhecia aquele lugar. A voz de Chera Kimiko estava falando em off.

– Vampiros e violência? Você ficaria surpreso com quem está afirmando isso. A Fox23 traz uma reportagem exclusiva esta noite com uma ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa.

Um comercial idiota começou e, enquanto Damien tentava adiantá-lo, eu disse:

– Pela imagem parece que ela está em algum lugar no centro da cidade.

– É o lobby do edifício Mayo – Aphrodite falou de forma lacônica. – E aquele na frente dela é o meu pai.

– Aiminhadeusa! – os olhos de Stevie Rae ficaram gigantes e redondos. – Ela está dando uma entrevista coletiva junto com o prefeito?

– E com alguns vereadores. São os outros caras de terno que estão com ela – Aphrodite explicou.

Então o vídeo começou e todos nós ficamos calados e assistindo embasbacados.

– Eu estou aqui para romper meus laços oficial e publicamente com a Morada da Noite de Tulsa e o Conselho Supremo dos Vampiros – de algum modo, Neferet conseguia parecer régia e vítima ao mesmo tempo.

– Ela é tão cheia de merda – Aphrodite comentou.

– Shhh! – todos nós fizemos para ela, pedindo silêncio.

– Grande Sacerdotisa Neferet, por que a senhora cortaria os laços com o seu povo? – perguntou um dos repórteres.

– Nós não podemos ser considerados um só povo? Não somos todos seres inteligentes com a capacidade de amar e entender uns aos outros? – aparentemente, ela estava falando de modo retórico, pois não esperou por uma resposta. – As políticas dos vampiros se tornaram desagradáveis para mim. Muitos de vocês sabem que recentemente eu abri vagas de trabalho na Morada da Noite para a comunidade de Tulsa. Fiz isso por causa da minha convicção de que humanos e vampiros podem fazer mais do que apenas coexistir de modo constrangido. Nós podemos viver e trabalhar juntos, e até amar.

Stevie Rae fez barulho de vômito. Eu fiquei balançando a cabeça de um lado para o outro, sem acreditar no que ouvia.

– Eu recebi tanta resistência que o Conselho Supremo dos Vampiros enviou para Tulsa a sua Grande Sacerdotisa da Morte, Thanatos, para intervir. A atual administração dos vampiros promove violência e segregação. Apenas olhem para os últimos seis meses e o recorde de violência cada vez maior no centro de Tulsa. Vocês realmente acreditam que todos os ataques, principalmente aqueles envolvendo derramamento de sangue, têm relação com gangues humanas?

– Grande Sacerdotisa, a senhora está admitindo que vampiros atacaram humanos em Tulsa?

Neferet levou sua mão até o pescoço dramaticamente.

– Se eu soubesse disso com cem por cento de certeza, teria ido até a polícia imediatamente. Eu só tenho suspeitas e preocupações. Eu também tenho uma consciência, e é por isso que eu saí da Morada da Noite – ela deu um sorriso radiante. – Por favor, vocês não precisam mais me chamar de Grande Sacerdotisa. De agora em diante, eu sou simplesmente Neferet.

Mesmo pelo vídeo, pude perceber que o repórter ficou vermelho e sorriu para ela.

– Há rumores sobre um novo tipo de vampiro, com Marcas vermelhas. A senhora pode confirmar esses rumores? – perguntou outro repórter.

– Infelizmente, eu posso. Há, de fato, um novo tipo de vampiros e novatos. Aqueles Marcados em vermelho são deteriorados de certa forma.

– Deteriorados? A senhora pode nos dar um exemplo?

– Certamente. O primeiro que me vem à cabeça é James Stark, um novato que veio de Chicago depois de acidentalmente causar a morte do seu mentor. Ele se tornou o primeiro guerreiro vampiro vermelho.

Eu ofeguei.

– Aquela vaca está falando do seu namorado! – Aphrodite disse.

– E agora na noite passada Dragon Lankford, Mestre da Espada da escola há muito tempo, foi assassinado. Espetado pelos chifres de um touro até a morte. Lankford estava na companhia de James Stark quando aconteceu o “acidente” – ela enfatizou a palavra, para deixar claro que não acreditava que havia sido um acidente.

– A senhora está querendo dizer que esse vampiro Stark é perigoso?

– Temo que ele possa ser. Na verdade, muitos dos novos vampiros e novatos podem ser perigosos. Afinal de contas, a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa é a Morte.

– A senhora pode nos dar mais detalhes sobre...

Um dos homens de terno deu um passo à frente, cortando Neferet.

– Eu, mais do que todos, estou muito preocupado com esses acontecimentos na comunidade dos vampiros. Como muitos de vocês sabem, minha amada filha, Aphrodite, foi Marcada há quase quatro anos. Eu entendo muito bem que os vampiros não gostem que os humanos se intrometam nos seus assuntos pessoais, políticos e criminais. Há muito tempo eles tomam conta de si mesmos. Mas quero declarar a vocês e à nossa Morada da Noite local que, por resolução da Câmara dos Vereadores de Tulsa, nós vamos criar uma comissão para examinar as relações entre vampiros e humanos. Infelizmente, acabou o tempo que temos para perguntas por hoje – o homem que havia falado no microfone de Neferet era o pai de Aphrodite, prefeito de Tulsa. – Tenho apenas mais um breve anúncio para fazer. Começando imediatamente, Neferet foi admitida como membro da comissão da Câmara dos Vereadores sob o título de Agente de Ligação com os Vampiros. Deixem-me reiterar, Tulsa pretende se associar a vampiros que desejam viver em paz com os humanos. – Quando todos os repórteres começaram a falar ao mesmo tempo, ele levantou a mão e sorriu com certo ar de superioridade (que estranhamente lembrou Aphrodite). – Neferet vai ter uma coluna semanal no caderno Scene do jornal Tulsa World. Por enquanto, esse vai ser o fórum através do qual ela vai responder a todas as suas perguntas. Lembrem-se de que agora estamos apenas no começo de uma parceria. Precisamos caminhar devagar e gentilmente para não perturbar o delicado equilíbrio das relações entre vampiros e humanos.

Eu estava observando o rosto de Neferet em vez de olhar para o prefeito, e vi o jeito com que os olhos dela se estreitaram e a sua expressão se endureceu. Então o prefeito LaFont acenou para a câmera e a imagem voltou para Chera Kimiko no estúdio. Damien tocou no iPad, e a tela se apagou.

– Ah, que merda! Meu pai perdeu o resto de juízo perfeito que ainda restava depois de conviver com a minha mãe – Aphrodite afirmou.

– Ei, acho que ouvi alguém falar o meu nome – Stark entrou na cozinha, passando os dedos pela sua cabeça descabelada e dando pra mim aquele seu meio sorriso sexy e metidinho.

– Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa e de dizer a todos que você é um assassino perigoso – eu me escutei contando a ele.

– Ela fez o quê? – ele pareceu tão chocado quanto eu me sentia.

– É, e ela fez mais do que isso – Aphrodite continuou. – Ela se juntou ao meu pai e agora toda a cidade acredita que ela é toda boazinha e que nós somos todos sugadores de sangue.

– Ahn, o plantão de notícias é por nossa conta, Aphrodite – Stevie Rae a corrigiu. – Você não é mais uma sugadora de sangue.

– Ah, por favor. Como se os meus pais soubessem alguma coisa da minha vida. Não falo com nenhum dos dois há meses. Só sou a filha deles quando isso é conveniente para eles. Como agora.

– Se isso não fosse tão assustador, seria engraçado – Shaylin comentou.

– Neferet está fazendo com que pareça que ela rompeu com o Conselho Supremo e com a escola, e não que ela foi expulsa por matar a minha mãe – eu expliquei para Stark.

– Ela não pode fazer isso – Stark reagiu. – O Conselho Supremo dos Vampiros não vai deixar que ela faça isso.

– Meu pai está amando tudo isso – Aphrodite disse. Reparei que ela tinha deixado o champanhe de lado e que agora estava enchendo a taça apenas com suco de laranja. – Há anos ele quer descobrir como se aproximar dos vampiros. Depois que eles me esqueceram porque não me transformei em um clone da minha mãe, eles na verdade ficaram felizes quando fui Marcada.

Fiquei observando Aphrodite e lembrando do dia que agora parecia tão distante, em que eu havia escutado os pais dela a repreendendo por ela ter perdido a liderança das Filhas das Trevas para mim. Agora Aphrodite parecia a rainha do gelo de sempre, mas na minha lembrança eu ainda conseguia ouvir o som da mão da mãe dela dando uma bofetada no seu rosto e podia ver as lágrimas que ela teve que represar. Não deve ter sido fácil para ela ouvir o seu pai a chamar de “filha amada” quando a verdade era que tudo o que ele sempre quis foi usá-la.

– Por quê? O que os seus pais querem com os vampiros? – Stevie Rae perguntou.

– Ter acesso a mais dinheiro... mais poder... mais beleza. Em outras palavras, ser parte da turma legal. Isso é tudo o que eles sempre quiseram: ser bacanas e poderosos. Eles usam quem quer que seja para conseguir o que querem, incluindo a mim e, obviamente, Neferet – Aphrodite explicou, ecoando estranhamente o que eu estava pensando.

– Neferet não é o caminho para eles conseguirem nada disso – eu afirmei.

– Fala sério, Z., ela é mais louca que galinha agarrada pelo rabo – Stevie Rae falou.

– Bem, seja o que for que isso signifique, sim, mas não é só isso. Mais alguém reparou no olhar de Neferet quando o pai de Aphrodite estava falando? Ela definitivamente não gostou nada de como as coisas terminaram – eu disse.

– Uma comissão, uma coluna no jornal e “caminhar devagar e gentilmente” não parece algo em que a Consorte das Trevas estaria particularmente interessada – Damien concordou.

– E realmente ela não gostou de quando o prefeito interrompeu a pergunta sobre você ser perigoso – eu completei.

– Eu gostaria de ser perigoso para Neferet! – Stark vociferou, ainda parecendo totalmente chocado.

– O meu pai é muito bom em prometer uma coisa e fazer outra – Aphrodite lembrou. – Posso jurar para vocês que ele acha que pode fazer esse jogo com Neferet – ela balançou a cabeça. Não importava o quanto ela soava insensível, a expressão dela era tensa.

– A gente tem que ir para a Morada da Noite. Agora. Se Thanatos ainda não sabe sobre isso, ela precisa saber – afirmei.

Neferet

Os humanos são tão fracos, entediantes e terrivelmente simplórios, Neferet pensou enquanto observava o prefeito Charles LaFont sorrir de modo afetado, procurando apaziguar os ânimos e continuando a evitar qualquer pergunta direta sobre perigo, mortes e vampiros depois da coletiva de imprensa dela. Até esse homem que, dizem os rumores, é o próximo na fila para uma cadeira no Senado e supostamente é tão carismático e dinâmico... Neferet teve que disfarçar a sua risada sarcástica com uma tosse. Esse homem não era nada. Neferet esperava mais do pai de Aphrodite.

Pai! Uma voz ecoou do seu passado, alarmando-a e fazendo que Neferet agarrasse o corrimão de ferro ornamentado e o apertasse bruscamente. Ela teve que tossir de novo para ocultar o som de algo quebrando que veio do ferro forjado quando ela tirou sua mão dali. Foi então que a paciência dela acabou.

– Prefeito LaFont, você pode me acompanhar até a minha cobertura – as palavras deveriam ter soado como uma pergunta, mas a voz de Neferet não formulou a frase desse modo. O prefeito e os quatro vereadores que haviam participado da coletiva de imprensa se viraram na sua direção. Ela decifrou facilmente cada um deles.

Todos a achavam bonita e desejável.

Dois deles a desejavam com tanta intensidade que eles abandonariam suas esposas, suas famílias e suas carreiras para possuí-la.

Charles LaFont não era um deles. O pai de Aphrodite a cobiçava – disso não havia dúvida –, mas o seu principal desejo não era sexual. A maior necessidade de LaFont era alimentar a obsessão de sua mulher por status e aceitação social. De fato, era uma pena que ele não pudesse ser seduzido mais facilmente.

Todos eles a temiam.

Isso fez Neferet sorrir.

Charles LaFont limpou a garganta e ajeitou nervosamente a sua gravata.

– É claro, é claro. Será um prazer acompanhá-la.

Friamente, Neferet fez apenas um gesto de despedida com a cabeça para os outros homens e ignorou os olhares ávidos deles na sua direção enquanto ela e LaFont entravam no elevador para subir até a sua cobertura.

Ela não falou nada. Neferet sabia que ele estava nervoso e muito menos seguro de si do que fingia ser. Em público, a sua fachada era de charme natural, como se ele fosse merecedor de tudo o que a vida tinha a oferecer. Mas Neferet enxergava o humano amedrontado e bobo que se encolhia por baixo daquela superfície.

As portas do elevador se abriram e ela entrou no saguão de mármore do seu apartamento.

– Acompanhe-me em um drink, Charles – Neferet não deu a ele nenhuma oportunidade de recusa. Ela caminhou decididamente até o bar art déco ornamentado e encheu duas taças com um esplêndido vinho tinto.

Como ela sabia que ia acontecer, ele a seguiu.

Ela estendeu a ele uma das taças. Ele hesitou e ela deu uma gargalhada.

– É só um cabernet muito caro. Não está misturado com sangue, de forma alguma.

– Ah, claro – ele pegou a taça e riu nervosamente, parecendo um cachorrinho pequeno e medroso aos olhos dela.

Neferet detestava cachorros quase tanto quanto ela detestava homens.

– Eu tinha mais para revelar hoje do que apenas a informação sobre James Stark – ela disse friamente. – Acho que a nossa comunidade merece entender como os vampiros da Morada da Noite se tornaram perigosos.

– E eu acho que a comunidade não precisa entrar em pânico sem necessidade – LaFont contra-argumentou.

– Sem necessidade? – ela pronunciou as duas palavras incisivamente.

LaFont assentiu e coçou o queixo. Neferet sabia que ele achava que parecia sábio e benevolente. Mas, para ela, ele parecia fraco e ridículo.

Foi então que Neferet reparou nas mãos dele. Elas eram grandes e pálidas, com dedos grossos e, apesar do seu tamanho, pareciam macias e quase femininas.

O estômago de Neferet se embrulhou. Ela quase vomitou no vinho e por pouco não conseguiu manter o seu comportamento frio.

– Neferet? Você está bem? – ele perguntou.

– Sim – ela falou rapidamente. – Só estou confusa. Você está me dizendo que, ao alertar Tulsa sobre os perigos desses novos vampiros, estamos provocando pânico neles sem necessidade?

– É exatamente isso. Depois da coletiva de imprensa, Tulsa vai estar em alerta. A violência contínua não vai ser tolerada; ela vai ser detida.

– Mesmo? E como você pretende deter a violência dos vampiros? – a voz de Neferet era ilusoriamente amável.

– Bem, isso é muito simples. Vou continuar o que nós começamos hoje. Você alertou o público. Com você atuando como Agente de Ligação entre a cidade e o Conselho Supremo na nossa comissão recém-implementada, você será a voz da razão defendendo a coexistência entre humanos e vampiros.

– Então é com palavras que você vai deter a violência deles – ela disse.

– Sim, palavras faladas e escritas – ele concordou, parecendo muito satisfeito consigo mesmo. – Peço desculpas se falei fora de hora quando mencionei a coluna no jornal. Foi uma ideia de última hora do meu grande amigo Jim Watts, editor-chefe do caderno Scene do Tulsa World. Eu teria falado com você sobre isso antes, mas, desde que você apareceu no meu escritório hoje à tarde com o seu alerta, as coisas aconteceram rápido e publicamente.

Porque eu planejei as coisas dessa forma... porque eu coloquei o sistema inepto de vocês em ação. Agora chegou a hora de eu colocá-lo em ação, assim como fiz com os jornalistas e os vereadores.

– Quando eu o procurei, não esperava encontrar reticências nem estava planejando escrever.

– Talvez não, mas eu estou na política de Oklahoma há quase vinte anos e conheço o meu povo. Incitá-los de modo calmo e devagar é o que funciona com eles.

– Como se você estivesse tocando o gado? – Neferet falou sem esconder o desdém na sua voz.

– Bem, eu não usaria essa analogia, mas tenho percebido que criar comissões, fazer pesquisas na comunidade, obter um feedback da amostragem, tudo isso realmente contribui para uma engrenagem mais azeitada das políticas públicas da cidade – LaFont deu uma risadinha e tomou um gole de vinho.

Escondida nas dobras do seu vestido de veludo, Neferet fechou sua mão em punho e a apertou até que suas unhas feito garras perfurassem sua palma. Gotas escarlates quentes se empoçaram embaixo de suas unhas. Sem serem vistas pelo humano ignorante, as gavinhas de Trevas serpentearam subindo pelas pernas de Neferet, procurando... encontrando... bebendo...

Ignorando o calor gelado daquela dor familiar, Neferet encontrou o olhar de LaFont por sobre a taça de vinho dele. Rapidamente, ela abaixou a voz em uma calma cantiga.

“A paz com os vampiros não é o que você deseja.

Eles ardem com brilho e ímpeto demais, você inveja o seu fogo.

Reticências e escrever colunas, maldita seja essa ideia!

Você tem que fazer o que eu...”

O celular de LaFont começou a tocar. Ele piscou e a expressão embaçada que havia encoberto os seus olhos se clareou. Ele abaixou sua taça de vinho, tirou o telefone do bolso, franziu os olhos para ver a tela e então disse:

– É o chefe de polícia. – Ele tocou na tela e passou a mão pelo rosto, enquanto dizia: – Dean, que bom falar com você – LaFont fez um aceno de cabeça e levantou os olhos para Neferet. – Você vai me desculpar, tenho certeza, mas não posso falar sobre isso agora. Em breve nós falaremos sobre os detalhes da comissão e da coluna de perguntas e respostas.

Enquanto falava, o prefeito se retirou rapidamente para o elevador, deixando Neferet sozinha, exceto pelas famintas gavinhas de Trevas.

Neferet permitiu que elas bebessem dela apenas por mais alguns instantes. Então ela as afastou e lambeu as feridas frescas na palma de sua mão para que os cortes se fechassem.

Os filamentos de Trevas pulsaram ao redor dela, pairando no ar como um ninho de cobras flutuante, ansiosas para cumprir as ordens dela.

– Agora vocês me devem um favor – ela disse antes de pegar o telefone da cobertura e digitar o número de Dallas.

Ele pareceu nervoso ao atender:

– Eu vou matar o cuzão que me ligou tão cedo!

– Cale a boca, garoto! Escute e obedeça – Neferet sorriu ao ouvir o silêncio que se seguiu à sua ordem. Ela quase podia sentir o cheiro do medo dele através do telefone. Então ela falou rapidamente, adquirindo mais controle sobre o seu temperamento e mais exatidão enquanto instruía o vampiro vermelho. – Logo a escola vai saber que eu rompi com a Morada da Noite e me tornei membro de uma comissão da Câmara Municipal de Tulsa. Você sabe, é claro, que eu só planejo usar esses humanos para iniciar um conflito. Até eu procurá-lo de novo, você será as minhas mãos, olhos e ouvidos na Morada da Noite. Aja como se você quisesse se dar bem com o resto da escola agora que eu fui embora. Conquiste a confiança dos professores. Faça amizade com os novatos azuis e então faça o que os adolescentes fazem de melhor: apunhale-os pelas costas, espalhe boatos, crie panelinhas.

– Aquela horda de nerds da Zoey não vai confiar em mim.

– Eu disse para você calar a boca, escutar e obedecer! É claro que você não vai conseguir conquistar a confiança de Zoey; ela é próxima demais de Stevie Rae. Mas você pode romper aquele círculo fechado dela, que não é tão forte quanto você pensa. Observe as gêmeas, particularmente Erin. A água é mais facilmente manipulada e mais mutável do que o fogo – ela fez uma pausa, esperando que ele confirmasse que entendeu as suas ordens. Como ele não falou nada, ela disse rispidamente: – Agora você pode falar!

– Eu compreendi, Grande Sacerdotisa. Vou obedecê-la – ele garantiu a ela.

– Excelente. Aurox já voltou para a Morada da Noite?

– Não que eu tenha visto. Pelo menos ele não estava junto de nós, quando fomos agrupados e levados para o dormitório depois do fogo. Foi... foi você que provocou o incêndio? – Dallas fez a pergunta com hesitação.

– Sim, apesar de ter sido mais um acidente imprevisto do que uma manipulação intencional. O fogo causou muita destruição?

– Bem, ele queimou parte do estábulo e causou uma enorme confusão – ele respondeu.

– Algum cavalo ou novato morreu? – ela perguntou ansiosamente.

– Não. Aquele cowboy humano se feriu, mas foi só isso.

– Que pena. Agora vá fazer o que eu mandei. Quando eu voltar a controlar a Morada da Noite e reinar como Tsi Sgili, Deusa de todos os vampiros, você será regiamente recompensado – Neferet apertou o botão de desligar.

Ela estava tomando o seu vinho e pensando em uma morte lenta e dolorosa para Charles LaFont quando um barulho no quarto desviou a sua atenção. Ela havia se esquecido do jovem mensageiro do prédio que flertara descaradamente com ela na hora em que Neferet havia chegado naquela noite, mais cedo. Na ocasião, ele estava parecendo muito disposto a alimentá-la. Ele deveria estar menos disposto agora que tinha percebido que ela estava muito perto de drenar todo o seu sangue perigosamente. Neferet se levantou e caminhou até o quarto, levando sua meia taça de vinho. Ela iria saborear o medo dele no que havia sobrado do seu sangue.

Neferet sorriu.


7 Zoey

Stevie Rae e eu deveríamos encontrar Thanatos na sua sala de aula. Eu tinha ligado para ela quando estávamos no ônibus escolar a caminho da escola. Nós não havíamos conversado muito. Tudo o que ela tinha dito era que já sabia sobre a coletiva de imprensa de Neferet e que a gente devia ir direto para a sua sala.

A Morada da Noite estava com cheiro de fumaça.

Aquele fedor estava impregnado na escola inteira. Quando nós entramos no estacionamento, percebi que aquele cheiro ruim não era apenas de fumaça. Infelizmente, eu já tinha bastante experiência para reconhecer o aroma penetrante do medo.

O dia normal de escola não havia começado, aquilo era bem óbvio. Havia novatos em grupinhos andando e fofocando para lá e para cá. Eles definitivamente não estavam a caminho da primeira aula. Aquilo deveria ser legal. Quero dizer, qual garoto não ama um dia de neve, um vazamento de água ou qualquer coisa assim? Mas de algum modo aquilo não era legal. Passava uma sensação confusa e de falta de segurança.

– Ok, bem, eu sei que não é normal de minha parte dizer isto, mas acho que Thanatos deveria ter obrigado todo mundo a ir para a aula hoje – Aphrodite assustadoramente ecoou meus pensamentos de novo enquanto descíamos do ônibus. – Agora o que está rolando é essa merda e um pânico do tipo “a gente não vai conseguir ficar sem Neferet” – ela fez um gesto englobando tanto os grupinhos de novatos sussurrando quanto os vampiros e novatos que estavam fazendo dois trabalhos horríveis: limpar o entulho do estábulo e colocar tábuas e vigas no enorme monte de madeira que ia se tornar a pira funerária de Dragon Lankford.

– Eu concordo com você, minha bela – Darius disse sombriamente.

Em silêncio, fiz uma prece rápida mas fervorosa: Nyx, ajude-me a dizer e a fazer a coisa certa, ajudando os meus amigos, o meu círculo, a ficarem fortes e confiantes. Então eu encarei o meu grupo e segui os meus instintos.

– Ok, apesar de eu detestar admitir isso em voz alta, ou mesmo em voz baixa, Aphrodite está certa.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo loiro.

– É claro que estou.

– Esta escola precisa de uma boa dose de normalidade e, infelizmente, acho que nós somos o melhor tipo de normalidade que eles vão encontrar agora.

– Isso quer dizer que eles tão ferrados – Kramisha afirmou. Ela estava usando a sua peruca curta e loira e um sapato de couro envernizado preto com um salto de doze centímetros. A saia dela era curta e supercintilante. De algum modo, aquele visual louco tinha dado certo, fazendo-me pensar (por uns 2,5 segundos) em usar salto com mais frequência.

– Eu estou falando sério, Kramisha – eu disse.

– Eu também – ela replicou.

– Olha só, pessoal. Nós podemos ser normais. Um novo tipo de normalidade, mais interessante – Stevie Rae sugeriu, abrindo um sorriso para Rephaim.

Aphrodite bufou. Eu a ignorei, sorri para Stevie Rae e continuei falando.

– Nós vamos nos separar. Parte de vocês vai para o estábulo, outra parte vai até a pira de Dragon. Lembrem-se, sejam normais – eu os orientei com firmeza. – Ajam como vocês fariam normalmente. A gente precisa segurar a onda e ajudar a colocar as coisas de volta nos trilhos, de um jeito aparentemente controlável. Olhem, neste momento parece que nós fomos atacados por todos os lados. O estábulo pegou fogo. Os gatos foram assassinados. Dragon está morto. E agora Neferet não é apenas uma louca do mal. Ela é uma louca do mal que envolveu a comunidade dos humanos em coisas que estão muito longe da sua compreensão ou da sua capacidade de lidar com elas. Nós temos que ficar fortes e visíveis. Precisamos manter a Morada da Noite unida. Como eu falei para Thanatos na noite passada: nós somos muito mais do que crianças bir rentas e já é hora de nos levantarmos, ficarmos juntos e conquistarmos o respeito que merecemos.

– Sábio conselho, Sacerdotisa – Darius disse, fazendo-me ter vontade de abraçá-lo. – Eu vou para a pira de Dragon para espalhar a calma por lá – ele sorriu carinhosamente para Aphrodite. – Venha comigo. A sua influência vai ser boa para os guerreiros que estão desolados com a perda do Mestre da Espada.

– Normalmente, eu diria que vou aonde você for, bonitão – Aphrodite respondeu. – Mas eu preciso conversar um pouco com a Z., então eu vou com ela falar com Thanatos. Que tal eu encontrar com você na pira depois disso?

As palavras dela me surpreenderam e eu pensei no fato de que, exceto por aquele papo com Shaylin mais cedo, eu realmente não tinha falado com ninguém desde o ritual de revelação. O trajeto de volta no ônibus, com o corpo de Dragon, havia sido silencioso e difícil. E então aconteceu o incêndio, os gatos mortos e, felizmente, o sono, apesar de eu ainda não ter dormido o suficiente. Tudo isso significava que ninguém havia me puxado de lado para falar sobre Aurox. Será que Aphrodite estava se preparando para fazer isso? Dei uma olhada nela. Ela estava na ponta dos pés, dando um beijo em Darius. Ela parecia a mesma de sempre: louca pelo seu guerreiro e irritada com todo o resto.

– Eu também vou com Z. – a voz de Stevie Rae interrompeu a minha análise neurótica de Aphrodite. – Depois que terminarmos de falar com Thanatos, eu vou até a pira funerária. Vocês vão precisar construir uma fundação sólida lá, e a terra é o elemento certo para isso – ela deu um beijo rápido em Rephaim. – Você me encontra lá?

– Sim – ele retribuiu o beijo, tocando o queixo dela com carinho. Então ele olhou para mim. – Se ninguém tiver nenhuma objeção, eu gostaria de fazer uma ronda em volta do muro da escola, principalmente o muro leste. Se os filamentos de Trevas de Neferet estão serpenteando por aí, nós precisamos saber disso.

– Isso parece uma boa ideia. Vocês estão de acordo com isso? – perguntei, olhando para Stark e Darius. Os dois guerreiros assentiram. – Ok, ótimo. – Então voltei minha atenção para Stevie Rae. – Também acho que invocar o seu elemento é realmente uma boa ideia, Stevie Rae. Damien, Shaunee e Erin, mantenham os seus elementos por perto. Se eles puderem ajudar a fortalecer ou a apoiar as pessoas, invoquem-nos. Só não sejam totalmente óbvios e... – minha voz sumiu quando percebi o que eu estava dizendo. – Não. Isso é errado. Se vocês precisarem usar os seus elementos, sejam óbvios.

– Entendi o que você quis dizer, Z. – Damien afirmou. – Já está na hora de a Morada da Noite saber que há forças prodigiosas do bem trabalhando ao nosso lado contra todas essas Trevas.

– “Prodigiosas” significa muito grandes – Stevie Rae traduziu.

– Nós sabemos o que quer dizer – Kramisha protestou.

– Eu não sabia – Shaunee falou.

– Nem eu – Erin concordou.

Tive vontade de sorrir para as gêmeas e dizer que era legal vê-las fazendo comentários tipo gêmeas de novo, mas assim que Erin falou ela ficou corada e se afastou de Shaunee, que estava parecendo superdesconfortável. Então eu desisti – temporariamente – e fiz uma nota mental para acender uma vela vermelha e uma azul para as duas e pedir a Nyx para dar uma ajuda extra a elas. Se eu conseguisse tempo pra isso. Que inferno, se Nyx tivesse tempo pra isso.

Eu reprimi um suspiro e continuei falando.

– Ok, ótimo. Então, dividam-se em grupos. Vão fazer coisas normais, como pegar alguns livros de estudo e ir até a biblioteca.

– Isso não é o meu normal – escutei Johnny B. resmungar, fazendo os garotos em volta rirem.

Eu gostei do barulho das risadas deles. Aquilo era normal.

– Então vá jogar basquete ou fazer alguma coisa típica de garotos no ginásio – eu sugeri, sem conseguir não sorrir para eles.

– Eu vou pro refeitório. A cozinha dos túneis parece que foi atacada por um enxame de gafanhotos. Z., nós precisamos dar uma passada no mercado antes de voltar para lá – Kramisha me avisou.

– Sim, bem, isso é normal. Vá em frente. Leve quem não conseguiu comer antes de vir para a escola com você. E, pessoal, espalhem-se. Não fiquem apenas comendo em grupinhos. Conversem com os outros garotos – afirmei.

Os novatos emitiram sons de concordância e se organizaram, dividindo-se em pequenos grupos em volta de Darius, as gêmeas, Damien e Kramisha. Rephaim partiu sozinho. Eu o olhei se afastando por um tempo, pensando se algum dia ele iria realmente se enquadrar no grupo, e o que seria do seu relacionamento com Stevie Rae se ele não conseguisse. Dei uma olhada para a minha amiga. Ela estava olhando com total adoração para Rephaim. Mordi meu lábio e continuei a me preocupar.

– Você está bem, Z.? – a voz de Stark soou baixinha ao meu lado, e ele colocou o braço sobre os meus ombros.

– Sim – respondi, encostando-me nele por um momento. – Só estou me preocupando obsessivamente, como sempre.

Ele me abraçou.

– Tudo bem, desde que você não comece a chorar. Aquele seu choro cheio de catarro não é nada atrativo.

Dei um soquinho nele de brincadeira.

– Eu nunca choro.

– Ah, sim, claro, e você nunca fica cheia de catarro também – ele falou, dando aquele sorriso fofo e metidinho para mim.

– Eu sei! Incrível, não? – eu caçoei.

– Ceeeerto – ele estendeu a palavra e beijou o topo da minha cabeça.

– Ei – eu falei, ainda aninhada seguramente em seus braços. – Você pode ir até o estábulo para dar uma mão para Lenobia? Eu vou conversar com Thanatos e depois vou até o estábulo e encontro com você lá.

Stark hesitou apenas por um instante e senti os seus braços me apertando contra ele. Stark não queria se separar de mim, principalmente com toda essa loucura rolando, mas ele concordou e disse:

– Vou estar lá, esperando por você – então ele beijou minha testa e me soltou, partindo em direção ao estábulo.

Eu estremeci, arrepiada depois do calor do seu toque. Os outros garotos começaram a se afastar em grupos, ficando só Stevie Rae e Aphrodite comigo.

– Eu vou com vocês, mas esperem só um segundo. Primeiro preciso ligar para a minha mãe. Ela tem de saber que Neferet não é só cheia de papo furado, mas também é cheia de perigo – Aphrodite falou.

– Você acha que ela vai te escutar? – eu quis saber.

– É claro que não – ela respondeu sem hesitar. – Mas vou tentar assim mesmo.

– Por que você não liga para o seu pai? Afinal, ele é o prefeito, e não a sua mãe – Stevie Rae sugeriu.

– Na casa dos LaFont quem manda é a mulher. Se há alguma chance de abrir os olhos do Senhor Prefeito em relação a Neferet, isso tem que partir da minha mãe.

– Boa sorte – eu disse.

– Bem, seja como tiver que ser – Aphrodite pegou seu telefone e se afastou de nós.

Surpreendendo-me, Shaylin saiu de um dos grupos que estava indo embora e caminhou até mim.

– Posso ir com vocês? – a sua voz era gentil, mas ela havia falado claramente e seu queixo estava levantado, como se ela estivesse preparada para uma luta.

– Por que você quer ir com a gente? – eu questionei.

– Quero perguntar a Thanatos sobre as minhas cores. Sei que vocês me disseram para manter segredo sobre o meu dom, e eu entendo por quê. Definitivamente, isso é algo que Neferet não precisa saber. Mas ela não é mais Grande Sacerdotisa, e eu tenho perguntas para as quais preciso encontrar respostas. Como Damien falou, já faz muito tempo desde que outra pessoa teve a Visão Verdadeira. Bem, Thanatos é inteligente. E idosa. Imagino que talvez ela possa me dar algumas respostas. Se vocês não se importarem, é isso – ela concluiu rapidamente.

Olhei para Stevie Rae.

– Você é a Grande Sacerdotisa dela. Por você tudo bem?

– Não sei muito bem. O que você acha?

– Acho que, se nós não podemos confiar em Thanatos, estamos totalmente ferrados – respondi honestamente.

– Bem, então acho que está na hora de definir quem está no nosso time, e acredito que Thanatos faz parte das pessoas de bem. Portanto, por mim tudo bem.

– Sim, ok – eu disse.

– Obrigada – Shaylin agradeceu.

– Bem, foi uma perda de tempo – Aphrodite se juntou a nós enquanto colocava o seu telefone de volta dentro de sua bolsa Valentino dourada, cintilante e superfofa. – Pelo menos não foi uma perda de muito tempo.

– Ela não escutou nada do que você falou? – eu perguntei.

– Ah, ela escutou. Então ela disse que tinha duas palavras para mim: Nelly Vanzetti. E aí ela desligou.

– Ahn? – eu mostrei que não tinha entendido.

– Nelly Vanzetti é a psicanalista da minha mãe – Aphrodite explicou.

– E por que a sua mãe iria falar o nome dela para você? – Stevie Rae ainda não havia entendido.

– Porque, caipira, esse é o jeito de a minha mãe me dizer que eu estou parecendo completamente louca. Não que ela se importe se eu estou louca mesmo. Com isso ela estava dizendo que não se importa em me ouvir, mas que ela vai pagar a psicanalista dela para fazer isso – Aphrodite deu de ombros. – A mesma coisa de sempre.

– Isso é muito maldoso – Shaylin comentou.

Aphrodite franziu seus olhos azuis.

– Por que você está aqui?

– Ela tem um dom – Stevie Rae falou.

– O meu nível de “não dou a mínima” está muito baixo em relação a isso – Aphrodite rebateu.

– Tenho algumas perguntas para fazer a Thanatos – Shaylin esclareceu.

– Ela vai com a gente – afirmei.

– Tanto faz – Aphrodite deu um olhar de desdém para ela. – Então vá indo. Na frente de nós. Preciso conversar com estas duas, sem ouvidos coloridos escutando.

– Vá indo, Shaylin – eu disse antes que as duas começassem a discutir. De novo. – Nós vamos encontrá-la no escritório de Thanatos.

Shaylin assentiu, franziu as sobrancelhas para Aphrodite e foi embora.

Aphrodite ergueu as mãos.

– Sim, eu sei, eu devia ter sido mais gentil, blá-blá-blá. Mas ela me enerva. Ela me lembra demais uma mini-Kim Kardashian, o que significa que ela é inútil, irritante e visível demais.

Olhei para Stevie Rae, esperando que ela argumentasse com Aphrodite. Mas tudo o que ela fez foi balançar a cabeça e dizer:

– Estou cansada de ficar chutando um maldito cachorro morto.

– Cachorro morto? Isso é tudo o que você tem para dizer? Sério? – Aphrodite protestou.

– Eu não estou falando mais com você – Stevie Rae disse a ela.

– Ótimo. Agora, vamos passar para coisas importantes. Vocês não vão gostar de nenhuma das coisas que eu tenho para contar, mas precisam me ouvir. A menos que vocês queiram ser como a minha mãe.

– Nós estamos escutando – eu assegurei a ela.

Stevie Rae continuou de boca bem fechada, mas assentiu.

– Em primeiro lugar, caipira, você sabe que ficou toda cheia de olhares de adoração para Kalona desde que ele molhou o seu menino-pássaro e o ressuscitou e...

– Ele derramou lágrimas imortais no seu filho e magicamente o trouxe de volta da morte que estava próxima. Afe Maria, você estava lá! Você viu tudo – Stevie Rae exclamou.

– Você não está mais falando comigo, lembra? Mas você acabou de tocar no ponto em que eu queria. Apenas algumas horas atrás, a gente acreditava que Kalona era tão louco e perigoso quanto Neferet. Agora ele é o guerreiro da Morte. A escola toca vai ficar babando em cima dele, do mesmo modo que ficou quando ele emergiu do chão. Nós vamos demonstrar mais bom senso. Ou pelo menos eu vou demonstrar mais bom senso. Seria bom se vocês duas se juntassem a mim.

– Eu nunca vou confiar nele – eu disse em voz baixa as palavras que vieram do fundo do meu coração.

– Z., ele fez seu Juramento a Thanatos – Stevie Rae argumentou.

Encontrei o olhar dela.

– Ele matou Heath. Ele matou Stark. Ele só trouxe Stark de volta porque Nyx o forçou a pagar a dívida de vida que ele tinha por causa de Heath. Stevie Rae, eu estive no Mundo do Além com ele. Kalona perguntou quando Nyx o perdoaria. Ela respondeu que ele só poderia pedir isso quando fosse digno do perdão dela.

– Talvez ele esteja se esforçando para isso agora – ela disse.

– E talvez ele seja um assassino, estuprador, manipulador e mentiroso – Aphrodite contra-atacou. – Se Zoey e eu estivermos erradas, ótimo. Você pode dizer “eu avisei” e todos nós vamos rir e dar uma puta festa. Mas, se nós estivermos certas, não vamos ser pegas desprevenidas quando um imortal caído causar mais violência.

Stevie Rae suspirou.

– Eu sei... eu sei. Faz sentido. Eu não vou confiar cem por cento nele.

– Ótimo. Mas fique ligada no seu menino-pássaro também. Ele confia cem por cento no pai, o que significa que Kalona pode usá-lo. De novo.

A expressão de Stevie Rae se endureceu, mas ela concordou.

– Sim, vou ficar.

– Em segundo lugar – Aphrodite desviou a sua atenção para mim –, explique a merda estranha que passou pela sua cabeça quando você chamou aquele maldito touro de Heath na noite passada.

– O quê? – Stevie Rae deixou escapar. – Isso não é verdade, certo, Z.?

Ok, mentir seria fácil. Eu podia simplesmente dizer que obviamente Aphrodite tinha perdido a cabeça e estava ouvindo coisas. Afinal, uma montanha de coisas loucas havia acontecido ontem, tudo de uma vez. Isso sem falar em todos os elementos se manifestando tão poderosamente que nada mais era totalmente claro, exceto o assassinato da minha mãe por Neferet e o fato de ela ser a Consorte das Trevas.

E eu quase menti.

Então eu me lembrei do que o fato de mentir para os meus amigos tinha me custado antes – não apenas perder a confiança deles por um tempo, mas também havia me custado o meu respeito por mim mesma. Eu não me senti bem quando menti. Eu me senti fora de sincronia com a Deusa e com o caminho que eu acredito que ela quer que eu trilhe.

Então, inspirei profundamente e soltei a verdade em uma explosão de palavras:

– Eu olhei para Aurox através da pedra da vidência e vi Heath e isso me assustou e eu chamei o nome dele e Aurox se virou e olhou para mim antes de começar a se transformar de novo naquela coisa tipo touro e foi por isso que quando ele arremeteu contra mim eu simplesmente fiquei parada ali e disse a ele que ele não ia me machucar. Fim.

– Você ficou completamente louca. Que merda, acho que joguei fora antes da hora o telefone da psicanalista da minha mãe. Você precisa ser avaliada e medicada.

– Bem, eu vou ser mais gentil que Aphrodite, mas isso não faz o menor sentido, Z. Como Heath poderia estar ao redor de Aurox?

– Eu não sei! E ele não estava ao redor de Aurox. Foi como se Heath brilhasse sobre ele. Ou como se Heath fizesse uma sombra com um brilho da cor da pedra da lua sobre Aurox – tive vontade de gritar de frustração por não conseguir descrever o que eu havia vislumbrado.

– Como um fantasma? – Stevie Rae quis saber.

– Isso pode fazer um pouco mais de sentido – Aphrodite observou, concordando com Stevie Rae com a cabeça, como se as duas estivessem decifrando o que aconteceu. – Nós estávamos no meio de um ritual invocando a Morte. Heath está morto. Talvez a gente tenha atraído o fantasma dele.

– Eu não acredito nisso – falei.

– Mas você não tem certeza, certo? – Stevie Rae questionou.

– Não, eu não tenho certeza de nada, exceto que a pedra da vidência é magia antiga, e a magia antiga é forte e imprevisível. Ela nem deveria estar em lugar nenhum além da Ilha de Skye, então eu não sei o que está acontecendo com o fato de eu estar vendo coisas através dela aqui – atirei as mãos para cima. – Talvez eu tenha imaginado tudo. Talvez não. Isso é estranho, até para mim. Eu achei ter visto Heath, e então Aurox se transformou completamente naquela coisa feito touro e fugiu.

– Tudo aconteceu rápido demais – Stevie Rae comentou.

– Da próxima vez que você vir Aurox, tem que olhar para ele através dessa maldita pedra, com certeza – Aphrodite afirmou. – E não fique sozinha com ele.

– Eu não estou planejando isso! Eu nem sei onde ele está.

– Provavelmente, junto com Neferet de novo – Aphrodite respondeu.

Eu devia ter ficado de boca fechada, mas me ouvi dizendo:

– Ele disse que tinha escolhido um caminho diferente.

– É, logo depois de matar Dragon e de quase matar Rephaim – Aphrodite rebateu.

Suspirei.

– O que Stark acha disso? – Aphrodite perguntou. Como eu não falei nada, ela levantou uma sobrancelha loira. – Ah, entendi. Você não contou para ele, certo?

– Certo.

– Bem, eu não posso te censurar por isso, Z. – Stevie Rae falou gentilmente.

– Ele é o guerreiro dela. O seu Guardião – Aphrodite insistiu. – Por mais arrogante e irritante que ele seja, precisa saber que Zoey tem uma queda por Aurox.

– Eu não tenho!

– Ok, não por Aurox, mas por Heath, e você acha que Heath pode ser Aurox – Aphrodite balançou a cabeça. – Você percebe como isso soa como coisa de louco?

– Minha vida é uma coisa de louco – respondi.

– Stark precisa saber que você pode ser vulnerável a Aurox – Aphrodite disse com firmeza.

– Eu não sou vulnerável a ele!

– Diga a ela, caipira.

Stevie Rae não conseguiu olhar nos meus olhos.

– Stevie Rae?

Ela suspirou e finalmente olhou para mim.

– Se você acredita que existe uma chance, nem que seja mínima, de Heath estar rondando Aurox ou o que quer que seja, isso significa que você não vai pensar claramente em relação a ele. Eu sei. Se eu perdesse Rephaim e depois pensasse que o vi ao redor de outro cara, mesmo que isso parecesse loucura, esse cara seria capaz de me atingir. Aqui – ela apontou para o seu coração. – E isso, na maior parte das vezes, comanda aqui – ela apontou para a cabeça.

– Portanto, conte ao Cara do Arco o que você acha que viu – Aphrodite concluiu.

Eu detestava admitir, mas sabia que elas estavam certas.

– Certo. Vai ser péssimo, mas tudo bem. Vou contar para ele.

– E eu vou contar para Darius – Aphrodite avisou.

– Bem, e eu vou contar para Rephaim – Stevie Rae acrescentou.

– Por quê?! – eu queria explodir.

– Porque os guerreiros ao seu redor precisam saber disso – Aphrodite explicou.

– Está bem – respondi rangendo os dentes. – Mas só para eles. Estou cansada de um monte de gente falando sobre mim e meus problemas com os garotos.

– Bem, Z., você realmente arranja problemas com os garotos – Stevie Rae disse com um tom leve, enganchando o braço dela ao meu.

– Nós também precisamos contar isso para Thanatos – Aphrodite disse quando nós três começamos a caminhar em direção à sua sala de aula. – A afinidade dela é com a Morte. Faz sentido que ela entenda de fantasmas e coisas assim.

– Por que a gente não anuncia isso no Tulsa World e faz Neferet escrever uma maldita coluna de perguntas e respostas sobre o assunto? – eu reagi.

– Isso é quase um palavrão. Cuidado. “Maldita” é uma porta de entrada para o mundo dos palavrões. Quando você menos esperar, “foda” vai sair voando da sua boca – Aphrodite me ironizou.

– Foda voando? Isso soa errado – Stevie Rae falou para ela, balançando a cabeça.

Apertei o passo, praticamente arrastando Stevie Rae comigo e fazendo Aphrodite ter que dar uma corridinha para nos acompanhar. Eu não as escutei quando elas começaram a discutir sobre palavrões. Em vez disso, fiquei preocupada.

Eu me preocupei com a nossa escola.

Eu me preocupei com a questão Aurox/Heath.

Eu me preocupei em contar a Stark sobre a questão Aurox/Heath.

E eu me preocupei com a contração no meu estômago e com a possibilidade de a minha síndrome do intestino irritável surgir de repente no meio de tudo. De novo.


8 Shaunee

– Damien, acho que eu devo ficar bem longe do estábulo. Lenobia já teve uma dose bem grande de fogo recentemente – Shaunee olhou para Damien e Erin. Os três haviam se afastado quando Zoey disse para eles se dispersarem, mas, em vez de fazer isso, eles haviam ficado juntos, tentando imaginar onde cada um deles seria mais útil com os seus elementos.

– Você tem razão – Damien concordou. – Faz mais sentido que você vá até a pira de Dragon. Você vai ser útil por lá em breve.

Os ombros de Shaunee desabaram.

– É, eu sei, mas não estou nada ansiosa por isso.

– Simplesmente conecte-se ao seu elemento e vai ser fácil – Erin sugeriu.

Shaunee piscou surpresa para ela, não apenas por ela ter falado – Erin definitivamente estava evitando conversar com ela desde que as duas tinham virado ex-gêmeas –­, mas com o seu tom sem consideração. Ela estava falando sobre queimar o corpo de Dragon como se isso não fosse nada demais, como acender um fósforo.

– Nada em relação ao funeral de Dragon vai ser fácil, Erin. Com ou sem o meu elemento.

– Eu não quis dizer fácil para valer – Erin pareceu irritada. Shaunee pensou que ultimamente Erin sempre parecia irritada. – Só quis dizer que, quando você realmente se conecta ao seu elemento, as outras coisas não incomodam tanto. Mas talvez você não vá tão a fundo no seu elemento.

– Isso é besteira – Shaunee sentiu o calor de uma raiva crescente. – Minha afinidade com o fogo não é nem um pouco menor do que a sua afinidade com a água.

Erin deu de ombros.

– Tanto faz. Eu só estava tentando ajudá-la. De agora em diante, vou deixar de tentar – ela se virou para Damien, que estava olhando de uma para a outra, como se não soubesse se pulava no meio delas ou corria na direção oposta. – Eu vou para o estábulo. Lenobia vai ficar feliz de ver a água, e eu não tenho problemas em usar o meu elemento – sem dizer mais nada, Erin foi embora.

– Ela sempre foi assim? – Shaunee se ouviu perguntando para Damien algo que havia dias rondava a sua mente.

– Você tem que definir “assim”.

– Sem coração.

– Honestamente?

– Sim. Erin sempre foi tão sem coração?

– Isso é realmente muito difícil de responder, Shaunee – Damien falou gentilmente, como se estivesse pensando que precisava ser cuidadoso para que as suas palavras não a magoassem.

– Só me diga a verdade, mesmo se ela for dura – ela insistiu.

– Bem, então, honestamente, até vocês duas se separarem, era praticamente impossível saber como era cada uma individualmente. Nunca conheci nenhuma das duas sem a outra. Uma terminava as frases da outra. Era como se vocês fossem duas metades de um todo.

– Mas nem agora? – Shaunee o estimulou a continuar, quando ele hesitou.

– Não, agora é diferente. Agora vocês são indivíduos com personalidade própria – ele sorriu para ela. – O melhor jeito de colocar isso é que ficou bem óbvio para a maioria de nós que a sua personalidade é a com coração.

Shaunee ficou olhando Erin se afastar.

– Eu já sabia disso antes, e isso me incomodava. Sabe, o jeito com que ela era tão sarcástica, fofoqueira e maldosa. Mas também era tão divertido e legal estar com ela.

– Normalmente, divertido à custa de outras pessoas – Damien comentou. – Legal porque ela excluía os outros para parecer que ela era melhor do que todo o resto.

Shaunee encontrou o olhar dele.

– Eu sei. Agora eu vejo isso. Mas, antes, tudo o que eu conseguia ver era que nós éramos melhores amigas, e eu precisava de uma melhor amiga.

– E agora? – ele perguntou.

– Agora eu preciso conseguir gostar de mim mesma, e eu não posso fazer isso se eu for só a metade de uma pessoa inteira. Eu também estou cansada de sempre ter que dizer algo sarcástico, engraçadinho ou apenas simplesmente detestável – ela balançou a cabeça, sentindo-se triste e madura. – Isso não significa que eu ache Erin ridícula. Na verdade, quero que ela seja tão legal, divertida e incrível quanto eu acreditava que ela era. Só acho que acabei de descobrir que ela tem que ser, ou não ser, essas coisas por ela mesma. Isso não tem nada a ver comigo.

– Você é mais inteligente do que eu pensei que você fosse – Damien admitiu.

– Eu ainda sou péssima na escola.

Ele sorriu.

– Existem outros tipos de inteligência.

– Bom saber disso.

– Ei, não se subestime. Você poderia ser realmente boa na escola se você se esforçasse um pouco.

– Sei que isso parece uma coisa boa para você, mas por mim estou feliz com a parte dos “outros tipos de inteligência” – Shaunee falou, fazendo Damien rir. Depois acrescentou: – Eu vou até a pira. Talvez, se eu estiver por lá, possa ajudar.

– Ajudar os guerreiros ou a você mesma?

– Talvez ambos. Eu não sei – Shaunee respondeu com um suspiro.

– Vou acreditar que vai ajudar ambos – ele afirmou. – Vou andar por aí, como o ar. Vou tentar soprar para longe o resto de Trevas que ainda está impregnado neste lugar.

– Você também sente isso?

Ele assentiu.

– Posso sentir que a energia por aqui é ruim. Muita coisa negativa aconteceu em um período curto demais – Damien inclinou a cabeça, analisando Shaunee. – Agora que pensei mais nisso, não acho que você deve ficar longe do estábulo. O fogo não é mau. Você não é má. Lenobia sabe disso. Lembra como você fez os cascos dos cavalos se aquecerem para que a gente conseguisse cavalgar no meio daquela tempestade de gelo?

– Lembro – Shaunee respondeu, e aquela lembrança fez com que ela se sentisse mais leve.

– Então vá até a pira, ajude lá, mas vá até o estábulo também. Lembre a todos que o fogo pode fazer muito mais do que destruir. A forma como ele é manejado é o que importa.

– Imagino que você quer dizer algo como “o que importa é como o fogo é usado”?

Damien abriu o sorriso.

– Viu só, eu disse que você poderia ser boa na escola. “Manejar” é uma excelente palavra para o seu vocabulário: controlar ou dominar uma arte, uma disciplina etc.

– Você está fazendo a minha cabeça doer – Shaunee falou e ambos riram.

– Então, vou encontrar com você no estábulo mais tarde?

– Sim, vai.

Damien começou a se afastar, mas voltou e deu um abraço rápido e apertado em Shaunee.

– Estou feliz porque você se tornou uma pessoa própria. E se você precisar de um amigo, eu estou aqui – ele falou, e então saiu apressado em direção ao estábulo.

Shaunee piscou com força para segurar as lágrimas, observando o cabelo castanho e macio de Damien balançando na sua brisa própria.

– Fogo – ela sussurrou –, mande uma pequena faísca para Damien. Ele merece encontrar um cara gostoso que o faça feliz, principalmente porque ele sempre se esforça tanto para fazer os outros felizes.

Sentindo-se melhor do que estava se sentindo havia semanas, Shaunee começou a andar em outra direção. Os seus passos eram mais vagarosos, mais calculados do que os de Damien, mas ela não estava mais com medo de para onde estava indo. Ela também não estava ansiosa para a pira e para o fogo – ela não era Erin. Ela só não podia apagar a tristeza e a dor congelando os seus sentimentos. E sabe de uma coisa? Eu não ia querer ser fria e congelada por dentro, mesmo que isso significasse que eu não fosse me ferir tanto, ela decidiu em silêncio.

Shaunee estava se centrando e extraindo força do calor constante do seu elemento. Obrigada, Nyx. Eu vou tentar manejá-lo bem, era o que ela estava pensando quando a voz do imortal penetrou na sua mente.

– Eu ainda não te agradeci.

Shaunee levantou os olhos e viu Kalona em pé diante da grande estátua de Nyx que ficava na frente do seu templo. Ele estava usando uma calça jeans e um colete de couro muito parecido com o que Dragon costumava usar. Só que esse colete era maior e tinha fendas através das quais as asas negras de Kalona emergiam e então se dobravam sobre suas costas. Esse colete também não ostentava a insígnia da Deusa, mas era difícil pensar nisso com ele a encarando com aqueles olhos âmbar do outro mundo.

Ele é mesmo absolutamente, inumanamente maravilhoso. Shaunee afastou o pensamento da sua mente e em vez disso se concentrou no que ele havia dito.

– Agradecer a mim? Pelo quê?

– Por me emprestar o seu celular. Sem ele, Stevie Rae não teria conseguido me ligar. Se não fosse por você, Rephaim poderia estar morto.

O rosto de Shaunee ficou quente. Ela encolheu os ombros, sem saber por que de repente se sentia tão nervosa.

– Você foi o cara que veio quando ela ligou. Você simplesmente podia não ter atendido e continuaria sendo um pai de merda – Shaunee falou sem pensar e só depois percebeu o que tinha dito. Então ela fechou a boca e disse a si mesma: fique quieta!

Houve um silêncio longo e desconfortável, até que Kalona afirmou:

– O que você disse é verdade. Eu não tenho sido um bom pai para os meus filhos. Eu ainda não estou sendo um bom pai para todos os meus filhos.

Shaunee olhou para ele, imaginando o que ele queria dizer exatamente. A voz dele tinha soado estranha. Ela esperava que ele parecesse triste, sério ou até irritado. Em vez disso, pareceu surpreso e um pouco embaraçado, como se aqueles pensamentos tivessem acabado de ocorrer para ele. Ela queria poder ver a sua expressão, mas o rosto dele estava virado para o outro lado. Ele estava olhando para a estátua de Nyx.

– Bem – ela começou, sem saber muito bem o que dizer. – Você está melhorando o seu relacionamento com Rephaim. Talvez não seja tarde demais para consertar o seu relacionamento com os seus outros filhos também. Eu sei que, se o meu pai aparecesse e quisesse algo comigo, eu iria permitir. Pelo menos, eu daria uma chance a ele – o imortal virou a cabeça e ela o encarou. Shaunee se sentiu trêmula, como se aqueles olhos âmbar pudessem enxergar muito dela. – O que eu quero dizer é que acho que nunca é tarde demais para fazer a coisa certa.

– Você acredita mesmo nisso, honestamente?

– Sim. Ultimamente, acredito cada vez mais – Shaunee preferia que Kalona parasse de olhar para ela. – Então, quantos filhos você tem?

Ele deu de ombros. Suas asas enormes se levantaram um pouco e depois de acomodaram novamente.

– Perdi a conta.

– Parece que saber quantos filhos você tem é um bom jeito de começar aquela coisa toda de “quero ser um bom pai”.

– Saber algo e agir em relação a isso são coisas bem diferentes – ele falou.

– Sim, totalmente. Mas eu disse que é um bom meio de começar – Shaunee desviou o rosto na direção da estátua de Nyx. – Há outro bom ponto de partida.

– A estátua da Deusa?

Ela franziu a testa para ele, sentindo-se um pouco mais confortável sob o seu olhar.

– Não é só ficar perto da estátua dela. Tente pedir...

– O perdão dela não é concedido a todos nós! – a voz dele soou como um trovão.

Shaunee começou a tremer, mas ela desviou os olhos para a estátua de Nyx. Ela quase podia jurar que os seus belos lábios carnudos de mármore se curvaram em um sorriso bondoso para ela. Fosse ou não imaginação dela, aquilo deu a Shaunee o impulso de coragem que ela precisava, e a novata continuou apressadamente:

– Eu não ia dizer perdão. Eu ia dizer ajuda. Tente pedir a ajuda de Nyx.

– Nyx não iria me ouvir – Kalona falou tão baixo que Shaunee quase não o escutou. – Ela não me ouve há éons.

– Durante esses éons, quantas vezes você pediu ajuda a ela?

– Nenhuma – ele respondeu.

– Então como você sabe que ela não o está ouvindo?

Kalona balançou a cabeça.

– Você foi enviada a mim para ser a minha consciência?

Foi a vez de Shaunee balançar a cabeça em negação.

– Eu não fui enviada a você, e a Deusa sabe que eu já tenho problemas suficientes para lidar com a minha própria consciência. Tenho certeza absoluta de que não posso ser a consciência de ninguém mais.

– Eu não teria tanta certeza, novata jovem e ardente... Eu não teria tanta certeza – ele refletiu em voz alta. Então, abruptamente, Kalona se afastou dela, deu alguns passos largos e rápidos e se lançou no céu da noite.

Rephaim

Ele não se importava muito com o fato de que a maioria dos outros garotos ainda o evitava. Damien era legal, mas ele era legal com praticamente todo mundo, então Rephaim não tinha certeza se a gentileza do garoto tinha alguma coisa a ver com ele. Pelo menos Stark e Darius não estavam tentando matá-lo nem afastá-lo de Stevie Rae. Recentemente, Darius até parecia um pouco mais amigável. O guerreiro Filho de Erebus o tinha amparado quando ele tropeçou dentro do ônibus na noite anterior, ainda fraco depois de ser curado magicamente de um ferimento mortal.

Meu Pai me salvou e depois fez juramento comprometendo-se a ser guerreiro da Morte. Ele realmente me ama, e está escolhendo o lado da Luz em vez das Trevas. Pensar nisso fez Rephaim sorrir, apesar de o ex-Raven Mocker não ser tão ingênuo e crédulo quanto Stevie Rae e os outros pensavam. Rephaim queria que o seu pai continuasse no caminho de Nyx – queria isso muito mesmo. Mas ele, mais do que ninguém (exceto a própria Deusa), conhecia o ódio e a violência em que o imortal caído havia chafurdado por séculos.

O fato de Rephaim existir era prova da capacidade do seu pai de causar imensa dor nos outros.

Os ombros de Rephaim desabaram. Ele havia chegado à parte dos jardins da escola onde ficava o carvalho destruído – metade dele apoiada no muro, metade no chão. O centro da árvore velha e grossa parecia que tinha sido atingido por um raio atirado por um deus furioso.

Mas Rephaim sabia que não era isso.

O seu pai era um imortal, mas ele não era um deus. Kalona era um guerreiro, e um guerreiro caído.

Sentindo-se estranhamente perturbado, Rephaim passou os olhos pela ferida profunda que era aquela destruição no meio da árvore. Ele se sentou em um dos galhos caídos bem em frente à copa quebrada da árvore, analisando o tronco grosso que estava encostado no muro leste da escola.

– Isso precisa ser consertado – Rephaim falou em voz alta, preenchendo o silêncio da noite com a humanidade da sua própria voz. – Stevie Rae e eu podemos trabalhar nisso juntos. Talvez a árvore não esteja completamente perdida – ele sorriu. – A minha Vermelha me curou. Por que ela não poderia curar uma árvore?

A árvore não respondeu, mas enquanto Rephaim falava ele teve uma estranha sensação de déjà vu . Como se ele tivesse estado ali antes, não apenas em outro dia normal de escola. Ele sentiu uma sensação de ter estado ali com o vento sob suas asas e o azul brilhante do céu à luz do dia.

Rephaim enrugou a testa e esfregou a mão nela, sentindo o começo de uma dor de cabeça. Será que ele tinha vindo até ali durante o dia, enquanto ele era um corvo, quando a sua humanidade estava escondida tão profundamente dentro dele que aquelas horas passava como um borrão nebuloso e indistinto de sons, cheiros e visão?

A única resposta que veio até Rephaim foi aquela pulsação surda em suas têmporas.

O vento batia ao redor dele, farfalhando através dos galhos caídos, fazendo sussurrar as poucas folhas marrons do inverno que ainda estavam presas ao velho carvalho. Por um momento, pareceu que a árvore estava tentando falar com ele, tentando contar os seus segredos.

Rephaim desviou o olhar de volta para o centro da árvore. Sombras. Casca de árvore partida. Tronco despedaçado. Raiz exposta. E parecia que o chão perto do centro da árvore já havia começado a sofrer uma erosão, quase como se houvesse um buraco se formando abaixo dela.

Rephaim estremeceu. Já houve um buraco abaixo da árvore. Um buraco que havia aprisionado Kalona dentro da terra por séculos. A lembrança desses séculos e da terrível existência meio irreal e repleta de ódio, violência e solidão que ele havia vivido durante esse tempo ainda era parte do fardo pesado que Rephaim carregava.

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

A brisa farfalhou de novo. Aquele som era reconfortante, como se o sussurro ancestral da árvore pudesse ser a voz da Deusa.

– Vou entender isso como um sinal – Rephaim falou em voz alta para a árvore, pressionando a palma da sua mão contra o tronco ao lado dele. – Vou pedir a Stevie Rae para me ajudar a consertar a violência que te despedaçou. Logo. Dou minha palavra. Vou voltar logo.

Quando Rephaim se afastou para continuar a sua ronda pelo perímetro da escola, ele pensou ter ouvido um movimento bem embaixo da árvore e imaginou que fosse o velho carvalho o agradecendo.

Aurox

Aurox estava andando agitado de um lado para o outro, cobrindo com três passos aquele pequeno espaço vazio abaixo do carvalho despedaçado. Então ele se virou e deu três passos curtos de volta para o outro lado. Ele continuou para lá e para cá, para lá e para cá. Pensando... pensando... pensando... e desejando desesperadamente ter um plano.

A sua cabeça doía. Ele não havia quebrado o crânio quando caiu no buraco, mas o machucado na sua cabeça tinha sangrado e inchado. Ele estava com fome e com sede. Ele achava difícil descansar dentro da terra, apesar de o seu corpo estar exausto e de ele precisar dormir para poder se curar.

Por que ele tinha achado uma boa ideia voltar para esta escola e se esconder nos jardins onde viviam o professor que ele havia matado e o garoto que ele tinha tentado matar?

Aurox segurou sua cabeça com as mãos. Não fui eu! Ele queria gritar aquelas palavras. Eu não matei Dragon Lankford. Eu não ataquei Rephaim. Eu fiz uma escolha diferente! Mas a escolha dele não tinha importado. Ele havia se transformado em uma besta. E a besta espalhara um rastro de morte e destruição.

Havia sido tolice da parte dele ir até a escola. Tolice acreditar que ele poderia se encontrar ali ou fazer algum bem. Bem? Se alguém soubesse que ele estava se escondendo na escola, seria atacado, aprisionado e possivelmente morto. Apesar de ele não estar ali para ferir ninguém, isso não importaria. Ele iria absorver o ódio daqueles que o descobrissem e a besta emergiria. Ele não seria capaz de controlá-la. Os guerreiros Filhos de Erebus iriam cercá-lo e colocar um fim na sua existência miserável.

Eu já controlei a besta antes. Eu não ataquei Zoey. Mas será que ele teria a oportunidade de tentar explicar que não queria causar nenhum dano? Ou mesmo de ter um momento para testar o seu autocontrole e provar que ele era mais do que a besta dentro dele? Aurox recomeçou a andar de um lado para o outro. Não, a intenção dele não iria importar para ninguém na Morada da Noite. Tudo o que eles iriam ver era a besta.

Inclusive Zoey? Será que até mesmo ela ficaria contra ele?

“Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.” A voz de Vovó Redbird acalmou os seus pensamentos turbulentos. Zoey o havia protegido. Ela tinha acreditado que ele conseguia controlar a besta o suficiente para não machucá-la. A avó dela oferecera abrigo a ele. Podia ser que Zoey não o quisesse morto.

Mas os outros queriam.

Aurox não os censurava por isso. Ele merecia a morte. Apesar de ele ter recentemente começado a sentir e a desejar ter uma vida diferente, e fazer escolhas diferentes, isso não mudava o passado. Ele havia cometido atos violentos e desprezíveis. Ele tinha feito tudo o que a Sacerdotisa ordenara.

Neferet...

O nome dela, mesmo como uma palavra não pronunciada em sua mente, causou um arrepio pelo seu corpo agitado.

A besta dentro dele queria ir até a Sacerdotisa. A besta dentro dele precisava servi-la.

– Eu sou mais do que uma besta – a terra em volta dele absorveu suas palavras, abafando a humanidade de Aurox. Em desespero, ele agarrou uma raiz retorcida e começou a puxá-la para tentar subir e sair daquele buraco de terra.

– Isso precisa ser consertado – aquelas palavras chegaram até Aurox lá embaixo.

O corpo dele congelou. Ele reconheceu a voz: Rephaim. Vovó havia falado a verdade. O garoto sobrevivera.

O fardo invisível de Aurox ficou um pouco mais leve.

Aquela morte não precisava pesar na sua consciência.

Aurox se agachou, esforçando-se em silêncio para escutar com quem Rephaim estava falando. Ele não sentiu raiva nem violência. Certamente, se Rephaim tivesse a menor ideia de que Aurox estava escondido tão perto, o garoto seria tomado por sentimentos de vingança, não seria?

O tempo parecia passar devagar. O vento ficou mais forte. Aurox podia ouvi-lo chicoteando as folhas secas da árvore partida acima dele. Ele captou palavras que flutuaram com o ar frio: trabalhar... árvore... Vermelha me curou... Tudo na voz de Rephaim, sem nenhuma maldade, como se ele estivesse apenas refletindo em voz alta. E então a brisa levou até ele a prece do garoto:

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

Aurox mal respirava.

Rephaim estava pedindo ajuda da sua Deusa para perdoar a si mesmo? Por quê?

Aurox esfregou a testa latejante e se esforçou para pensar. A Sacerdotisa raramente tinha falado com ele, exceto para ordenar que ele cometesse um ato de violência. Mas ela havia falado quando ele estava por perto, como se Aurox não tivesse a capacidade de ouvi-la ou de formular pensamentos por si mesmo. O que ele sabia sobre Rephaim? Ele era o filho do imortal Kalona. Ele era amaldiçoado a ser um garoto de noite e um corvo de dia.

Amaldiçoado?

Ele havia acabado de escutar Rephaim rezando, e na sua prece ele havia agradecido o perdão de Nyx. Certamente, uma Deusa não iria amaldiçoar e perdoar ao mesmo tempo.

Então, com um princípio de surpresa, Aurox se lembrou do corvo que tinha grasnado para ele e feito tanto barulho que havia provocado a sua queda naquele buraco.

Será que aquele corvo podia ser Rephaim? O corpo de Aurox se tensionou quando ele se preparou para o confronto aparentemente inevitável que estava por vir.

– Dou minha palavra. Vou voltar logo – a voz de Rephaim chegou novamente até Aurox. O garoto estava indo embora, ainda que temporariamente. Aurox relaxou contra a parede de terra. O corpo dele doía e a sua mente zunia.

Era óbvio que ele não podia ficar naquele buraco, mas só isso era óbvio para Aurox.

Será que a Deusa de Rephaim, aquela que o havia perdoado, também o havia guiado até o buraco onde estava Aurox? Se fosse isso, era para mostrar a Aurox redenção ou vingança?

Será que ele devia se entregar, talvez para Zoey, e sofrer as consequências que fossem necessárias?

E se a besta emergisse de novo, e dessa vez ele não conseguisse controlá-la?

Será que ele deveria fugir?

Ou deveria procurar a Sacerdotisa e exigir respostas?

– Eu não sei nada – ele murmurou para si mesmo. – Eu não sei nada.

Com o peso da sua confusão e de toda a sua ânsia, Aurox abaixou a cabeça. Em silêncio e cheio de hesitação, ele imitou Rephaim e fez sua própria prece. Uma prece simples e sincera. E aquela foi a primeira vez na vida em que Aurox rezou.

Nyx, se você é mesmo uma Deusa misericordiosa, por favor, me ajude... Por favor...


C O N T I N U A

O sono de Lenobia estava tão agitado que aquele sonho familiar adquiriu uma sensação de realidade que ultrapassou o reino etéreo das fantasias do subconsciente. E se tornou, desde o começo, dolorosamente real demais.
Começou com uma lembrança. Décadas e então séculos vagaram à deriva, deixando Lenobia jovem e ingênua de novo, no porão de carga do navio que a havia levado da França para a América – de um mundo a outro. Foi durante essa viagem que Lenobia conheceu Martin, o homem que deveria ter sido seu Consorte pela sua vida inteira. Mas, em vez disso, ele morrera jovem demais e havia levado o amor dela para o túmulo junto com ele.
No seu sonho, Lenobia podia sentir a leve ondulação do navio e o cheiro de cavalo, feno, peixe e mar – e Martin. Sempre Martin. Ele estava em pé na sua frente, olhando fixamente para ela com olhos ansiosos cor de azeitona e âmbar. Ela havia acabado de dizer a ele que o amava.
– É impossível – Martin estendeu o braço, pegou a mão dela e a levantou com delicadeza, fazendo a memória se repetir em sonho na sua mente. Ele levantou o próprio braço, alinhando-o lado a lado com o braço dela. – Você vê a diferença, não vê?
A Lenobia do sonho deu uma pequena exclamação de dor sem palavras. O som da voz dele! Aquele sotaque crioulo característico – profundo, sensual, único. A lembrança do som agridoce da sua voz e do seu belo sotaque havia mantido Lenobia longe de Nova Orleans por mais de duzentos anos.
– Não – a jovem Lenobia respondeu à pergunta dele depois de olhar para os braços encostados dos dois, um marrom e um branco. – Tudo o que eu vejo é você.
Ainda profundamente adormecida, Lenobia, a Mestra dos Cavalos da Morada da Noite de Tulsa, se remexeu agitada, como se o seu corpo estivesse tentando forçar a sua mente a despertar. Mas nesta noite a sua mente não obedeceu. Nesta noite os sonhos prevaleceram.
A sequência de memórias se alterou e se transformou em outra cena, ainda no porão de carga do mesmo navio, ainda com Martin, mas alguns dias depois. Ele estava entregando para ela um colar longo de couro amarrado a uma pequena bolsa tingida de um profundo azul safira. Martin colocou-o no pescoço dela, dizendo:
– Este gris-gris a protege, chérie .
Tão rápida quanto uma batida de coração, a memória se ondulou e o tempo foi adiantado para um século à frente. Uma Lenobia mais velha, mais sábia e menos ingênua estava segurando entre suas mãos a bolsa de couro envelhecida, que havia se partido e cujo conteúdo estava caindo para fora – treze coisas, justamente como Martin tinha dito para ela. Mas a maioria dessas coisas havia se tornado irreconhecível durante o século em que ela usara o talismã. Lenobia se lembrou de um cheiro fraco de zimbro, do toque macio do barro granulado antes de ele se transformar em pó e da pequena pena de pomba que se desintegrou entre seus dedos. Mas, acima de tudo, Lenobia se lembrava da onda de alegria fugaz que ela sentira quando, no meio dos restos em decomposição do amor e da proteção de Martin, ela descobriu algo que o tempo não havia sido capaz de destruir. Era um anel de ouro, com uma esmeralda em forma de coração rodeada por minúsculos diamantes.
– O coração de sua mãe... o seu coração... o meu coração – Lenobia sussurrou enquanto deslizava a peça pelo seu dedo anular. – Eu ainda sinto a sua falta, Martin. Eu nunca o esqueci. Eu prometi isso.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/1b_ESCONDIDA.jpg

 


E então as memórias do sonho voltaram no tempo novamente, levando Lenobia para Martin outra vez, só que desta vez eles não estavam se encontrando no porão de carga de um navio no mar e se apaixonando. Essa memória era sombria e terrível. Mesmo sonhando, Lenobia sabia o lugar e a data: Nova Orleans, 21 de março de 1788, pouco tempo depois do pôr do sol.

Os estábulos haviam explodido em um incêndio e Martin a salvara, carregando-a para longe das chamas.

– Oh, não! Martin! Não! – Lenobia havia gritado para ele, e agora ela choramingava, lutando para despertar antes que ela tivesse que reviver o fim terrível da sua lembrança.

Ela não acordou. Em vez disso, ela ouviu o seu único amor repetir as palavras que haviam partido o seu coração dois séculos atrás, sentindo tudo novamente como se fosse uma ferida fresca e em carne viva.

– Tarde demais, chérie. É tarde demais para nós neste mundo. Mas eu vou vê-la de novo. Meu amor por você não acaba aqui. Meu amor por você não vai acabar nunca... Vou encontrá-la de novo, chérie. Isso eu prometo.

Quando Martin capturou o humano do mal que havia tentado escravizá-la, e então voltou com ele para a estrebaria em chamas, salvando a vida de Lenobia, a Mestra dos Cavalos finalmente conseguiu acordar com um choro soluçante e violento. Ela se sentou na cama e, com a mão trêmula, tirou o cabelo ensopado de suor do seu rosto.

O primeiro pensamento de Lenobia ao despertar foi em sua égua. Através da conexão psíquica que elas tinham, ela podia sentir que Mujaji estava agitada, quase em pânico.

– Shhhh, minha bonitona. Volte a dormir. Eu estou bem – Lenobia falou em voz alta, enviando pensamentos tranquilizantes para a égua negra com a qual ela tinha um vínculo especial. Sentindo-se culpada por ter deixado Mujaji perturbada, ela abaixou a cabeça e começou a girar carinhosamente o anel de esmeralda em volta do seu dedo.

– Pare de ser tão tola – Lenobia disse a si mesma com firmeza. – Foi só um sonho. Eu estou em segurança. Não estou lá de novo. O que aconteceu naquela ocasião não pode me machucar mais do que já machucou – Lenobia mentiu para si mesma. Eu posso me ferir de novo. Se Martin voltou, se ele realmente voltou, meu coração pode se ferir novamente. Outro soluço tentou escapar de Lenobia, mas ela pressionou seus lábios e controlou suas emoções à força.

Ele pode não ser Martin, ela disse a si mesma racionalmente. Travis Foster, o novo humano contratado por Neferet para auxiliá-la nos estábulos, era simplesmente uma bela distração – ele e sua grande e bonita égua Percherão.

– Provavelmente, era exatamente isso o que Neferet pretendia quando o contratou – Lenobia resmungou. – Ela só queria me distrair. E a Percherão dele é só uma estranha coincidência – Lenobia fechou os olhos e bloqueou as lembranças que se levantavam do passado. Então ela repetiu em voz alta: – Travis pode não ser Martin reencarnado. Eu sei que a minha reação a ele é surpreendentemente forte, mas já faz muito tempo desde que eu tive um amante.

Você nunca mais teve um amante humano. Você prometeu isso – sua consciência a lembrou.

– Então simplesmente já passou da hora de eu ter um amante vampiro, mesmo se for por pouco tempo. E esse tipo de distração vai ser uma coisa boa para mim – Lenobia tentou ocupar sua imaginação considerando e depois rejeitando uma lista de guerreiros Filhos de Erebus bonitões, mas os olhos de sua mente não estavam vendo seus corpos fortes e musculosos, e sim imaginando olhos castanhos cor de uísque tingidos de um verde-oliva familiar e um sorriso fácil... – Não! – ela não iria pensar nisso. Ela não iria pensar nele.

Mas e se a alma de Martin realmente estiver em Travis? A mente inquieta de Lenobia sussurrou sedutoramente. Ele deu sua palavra de que me encontraria de novo. Talvez ele tenha conseguido.

– E então? – Lenobia se levantou e começou a andar de um lado para outro. – Eu conheço bem demais a fragilidade dos humanos. Eles são tão facilmente mortos, e hoje em dia o mundo é ainda mais perigoso do que era em 1788. O meu amor terminou em sofrimento e chamas uma vez. E uma vez já é o bastante – Lenobia parou e colocou seu rosto entre as mãos quando seu coração percebeu a verdade e bombeou-a através de seu corpo e de sua alma, tornando-se realidade. – Eu sou uma covarde. Se Travis não é Martin, eu não quero me entregar a ele e correr o risco de amar outro humano. E se ele é Martin que voltou para mim, eu não posso suportar o inevitável, pois vou perdê-lo de novo.

Lenobia sentou-se pesadamente na velha cadeira de balanço que ela havia colocado ao lado da janela do seu quarto. Ela gostava de ler ali. Se não conseguisse dormir, sua janela era voltada para o leste, de modo que ela podia assistir ao nascer do sol e olhar para os jardins ao lado do estábulo. Lenobia não conseguia deixar de apreciar a luz da manhã, por mais irônico que isso fosse para uma vampira. No fundo do seu coração, vampira ou não, ela seria eternamente uma garota que amava as manhãs, os cavalos e um humano alto, com a pele cor de cappuccino, que havia morrido muito tempo atrás quando ele ainda era jovem demais.

Seus ombros desabaram. Ela não costumava pensar tanto em Martin havia décadas. A memória reavivada dele era uma espada de dois gumes. Por um lado, ela amava se lembrar do seu sorriso, do seu cheiro, do seu toque. Por outro lado, a sua lembrança também evocava o vazio que a sua ausência tinha deixado. Por mais de duzentos anos, Lenobia havia sofrido por uma possibilidade perdida – uma vida desperdiçada.

– O nosso futuro foi queimado e arrancado de nós. Destruído pelas chamas do ódio, da obsessão e do mal – Lenobia balançou a cabeça e enxugou os olhos. Ela precisava recuperar o controle sobre as suas emoções. O mal ainda estava queimando e abrindo terreno no campo da Luz e do bem. Ela inspirou o ar profundamente para se centrar e voltou seus pensamentos para um assunto que nunca falhou em acalmá-la, não importando o quão caótico o mundo ao redor dela tivesse se tornado: cavalos e Mujaji, em particular. Sentindo-se mais calma agora, Lenobia se concentrou de novo, atingindo aquela parte superespecial do seu espírito que Nyx tocara ­– e que recebera o dom da sua afinidade com cavalos – no dia em que a Lenobia de dezesseis anos havia sido Marcada. Ela encontrou sua égua facilmente e, no mesmo instante, sentiu-se culpada pela sua agitação refletida em Mujaji.

– Shhh – Lenobia a tranquilizou novamente, repetindo em voz alta a sensação de segurança que ela estava enviando através do seu elo com a égua. – Eu só estou sendo tola e autoindulgente. Isso vai passar, eu prometo, minha querida – Lenobia projetou uma maré de ternura e amor sobre sua égua da cor da noite e, como sempre, Mujaji recuperou a calma.

Lenobia fechou os olhos e soltou um longo suspiro. Ela podia visua­lizar sua égua, negra e bela como a noite, finalmente se tranquilizando, levantando uma pata traseira e caindo num sono sem sonhos.

A Mestra dos Cavalos se concentrou na sua égua, afastando o turbilhão que a chegada do jovem cowboy ao seu estábulo havia causado dentro dela. Amanhã, ela prometeu para si mesma, amanhã eu vou deixar claro para Travis que nós nunca vamos ser mais do que patroa e empregado. A cor dos seus olhos e o jeito com que ele me faz sentir, tudo isso vai começar a acalmar quando eu me distanciar dele... Isso tem que... tem que...

Finalmente, Lenobia adormeceu.

Neferet

Shadowfax atendeu prontamente ao chamado de Neferet, apesar de o felino não ser ligado a ela. Felizmente, as aulas já haviam terminado por esta noite, portanto, quando o grande Maine Coon a encontrou no meio do ginásio, o lugar estava com as luzes parcialmente apagadas e totalmente vazio – não havia nenhum estudante por perto; o próprio Dragon Lankford também estava ausente, mas provavelmente por pouco tempo. Ela tinha visto apenas alguns novatos vermelhos no caminho até ali. Neferet sorriu, satisfeita por pensar em como ela havia colocado os vermelhos do mal na Morada da Noite. Quantas possibilidades adoráveis e caóticas eles apresentaram – especialmente depois de ela ter certeza de que o círculo de Zoey seria quebrado e que a melhor amiga dela, Stevie Rae, ficaria arrasada, sofrendo com a perda do seu amante.

A constatação de que ela iria assegurar dor e sofrimento futuros para Zoey agradou infinitamente Neferet, mas ela era disciplinada demais para se permitir começar a tripudiar antes que o feitiço de sacrifício estivesse terminado e os seus comandos fossem postos em andamento. Apesar de a escola estar surpreendentemente quieta esta noite, quase abandonada, na verdade qualquer um podia aparecer no ginásio. Neferet precisava trabalhar rapidamente e em silêncio. Haveria tempo de sobra para se regozijar com os frutos do seu trabalho mais tarde.

Ela falou suavemente com o gato, atraindo-o para mais perto dela, e quando ele estava próximo o bastante ela se ajoelhou ao seu nível. Neferet pensou que ele desconfiaria dela – os gatos sabem das coisas. Eles eram muito mais difíceis de enganar do que humanos, novatos ou até mesmo vampiros. O próprio gato de Neferet, Skylar, havia se recusado a se mudar para a nova cobertura dela no edifício Mayo, preferindo ficar espreitando nas sombras da Morada da Noite, observando-a deliberadamente com seus grandes olhos verdes.

Mas Shadowfax não era tão precavido.

Neferet acenou. Shadowfax veio até ela, encurtando vagarosamente o último espaço que os separava. O grande gato não foi amigável – ele não se esfregou contra ela, marcando-a afetivamente com o seu cheiro –, mas veio até ela. A sua obediência era tudo o que importava para Neferet. Ela não queria o amor dele; ela queria a sua vida.

A Tsi Sgili, Consorte imortal das Trevas e ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, sentiu apenas uma vaga e remota sombra de remorso quando a sua mão esquerda acariciou o grande Maine Coon cinza tigrado. O seu pelo era macio e grosso sobre o seu corpo ágil e atlético. Como Dragon Lankford, o guerreiro que o gato havia escolhido como seu, Shadowfax era poderoso e estava em pleno vigor. Era uma pena que ele fosse necessário para atender a um propósito maior. Um propósito superior.

O remorso de Neferet não equivalia a hesitação. Ela usou o seu dom concedido pela Deusa – a afinidade com felinos – e canalizou afeto e confiança através da palma da sua mão para o gato já confiante. Enquanto sua mão esquerda o acariciava, encorajando-o a se arquear e começar a ronronar, a sua mão direita sorrateiramente puxou o seu afiado athame 1 , com o qual ela rapidamente, de modo preciso, cortou o pescoço de Shadowfax.

O grande gato não emitiu nenhum som. O seu corpo deu um espasmo, tentando se lançar para longe de Neferet, mas a mão dela agarrou o pelo do animal, segurando-o tão perto que o seu sangue respingou, quente e úmido, sobre o corpete do seu vestido de veludo verde.

Os filamentos de Trevas que estavam sempre em volta de Neferet pulsaram e estremeceram na expectativa.

Neferet os ignorou.

O gato morreu mais rápido do que ela imaginara, e Neferet ficou feliz por isso. Ela não tinha imaginado que ele fosse encará-la, mas o gato guerreiro sustentou o olhar dela mesmo depois de desabar no chão arenoso do ginásio, quando ele já não podia mais combatê-la, mas ainda assim ficou deitado respirando com dificuldade, contorcendo-se em silêncio e encarando-a.

Trabalhando rapidamente, enquanto o gato ainda estava vivo, Neferet começou o feitiço. Usando a lâmina do seu athame ritual, Neferet desenhou um círculo em volta do corpo moribundo de Shadowfax, de modo que o sangue que se empoçava em volta dele escorria para dentro do círculo, e um fosso escarlate em miniatura se formou.

Então ela pressionou uma palma da mão dentro do sangue fresco e quente, levantou-se do lado de fora do círculo, ergueu as duas mãos – uma ensanguentada, a outra segurando a faca com a ponta escarlate – e entoou:

“Com este sacrifício eu comando

as Trevas controladas pela minha mão.

Aurox, obedeça-me!

A morte de Rephaim acontecerá”.

Neferet fez uma pausa, permitindo que os filamentos pegajosos, negros e frios se esfregassem contra ela e se agrupassem em toda a volta do círculo. Ela sentiu a sua ânsia, a sua necessidade, o seu desejo, o seu perigo. Mas, acima de tudo, ela sentiu o seu poder.

Para completar o feitiço, ela mergulhou o athame dentro do sangue e escreveu diretamente na areia com ele, fechando o encantamento:

“Através do pagamento de sangue, dor e batalha,

Eu forço o Receptáculo a ser minha arma!”.

Concentrando-se na imagem de Aurox em sua mente, Neferet entrou no círculo e cravou o punhal no corpo de Shadowfax, espetando-o no chão do ginásio enquanto ela soltava as gavinhas de Trevas para que elas pudessem consumir o seu banquete de sangue e dor.

Quando o gato estava completamente drenado e morto, Neferet disse:

– O sacrifício está concluído. O feitiço foi feito. Façam como eu ordeno. Forcem Aurox a matar Rephaim. Façam Stevie Rae a quebrar o círculo. Façam com que o feitiço de revelação falhe. Agora!

Como um ninho agitado de cobras, os filamentos subordinados às Trevas serpentearam para dentro da noite, afastando-se do ginásio e indo em direção a um campo de lavandas e ao ritual que já estava em andamento.

Neferet olhou-os atentamente, sorrindo de satisfação. Um filamento de Trevas em particular, grosso como o seu braço, chicoteou através da porta que se abria do ginásio para o estábulo. A atenção de Neferet foi atraída naquela direção pelo som abafado de vidro quebrado.

Curiosa, a Tsi Sgili deslizou até lá. Tomando cuidado para não fazer barulho e disfarçando-se nas sombras, Neferet espiou o estábulo. Os seus olhos esmeralda se arregalaram com uma agradável surpresa. O filamento grosso de Trevas havia sido desajeitado. Ele havia derrubado um dos lam piões a gás que ficavam pendurados não muito longe das pilhas de feno de ótima qualidade que Lenobia era sempre tão meticulosa em escolher para as suas criaturas. Neferet assistiu, fascinada, quando o primeiro ramo de feno pegou fogo, crepitou e então, com uma renovada onda amarela e um poderoso som de whoosh, incendiou-se completamente.

Neferet olhou para a longa fileira de baias de madeira fechadas. Ela só conseguia ver os contornos escuros e indistintos de alguns dos cavalos. A maioria estava dormindo. Alguns estavam pastando preguiçosamente, já acomodados para o amanhecer que se aproximava e para o descanso que o dia iria proporcionar a eles até o pôr do sol, quando os estudantes chegariam para as suas aulas intermináveis.

Ela olhou de volta para o feno. Um fardo inteiro foi engolfado em chamas. O cheiro de fumaça foi levado até ela, e era possível ouvir o som crepitante do fogo se alimentando e crescendo, como uma besta descontrolada.

Neferet saiu do estábulo, fechando a pesada porta que dava para o ginásio com firmeza. Parece que provavelmente Stevie Rae não vai ser a única a sofrer depois desta noite. Esse pensamento satisfez Neferet, e ela saiu do ginásio e da matança que ela havia causado ali, sem ver a pequena gata branca que caminhou até o corpo imóvel de Shadowfax, deitou ao lado dele e fechou os olhos.

Lenobia

A Mestra dos Cavalos acordou com um terrível pressentimento. Confusa, Lenobia esfregou as mãos no rosto. Ela havia pegado no sono na cadeira de balanço perto da janela e esse súbito despertar parecia mais um pesadelo do que realidade.

– Isso é tolice – ela resmungou sonolenta. – Preciso encontrar meu centro de novo. – A meditação a havia ajudado a silenciar seus pensamentos no passado. Resolutamente, Lenobia inspirou profundamente o ar para se purificar.

Foi com essa inspiração profunda que Lenobia sentiu o cheiro – fogo. Mais especificamente, um estábulo em chamas. Ela cerrou os dentes. Desapareçam, fantasmas do passado! Sou velha demais para esse tipo de jogo. Então um agourento som crepitante fez Lenobia afastar o último resquício de sono que havia obscurecido a sua mente. Ela se moveu rapidamente até a janela e abriu as pesadas cortinas pretas. A Mestra dos Cavalos olhou para o seu estábulo e arfou de horror.

Não era um sonho.

Não era a sua imaginação.

Em vez disso, era um pesadelo real.

Chamas estavam lambendo as laterais do edifício. Enquanto ela observava, as portas duplas no canto da sua visão foram abertas pelo lado de dentro e, contra o pano de fundo de uma onda de fumaça e labaredas ardentes, estava a silhueta de um cowboy alto guiando uma enorme Percherão cinza e uma égua negra como a noite para fora.

Travis soltou as éguas, tocando-as para os jardins da escola e para longe do estábulo em chamas; então, ele correu de volta para a boca flamejante do edifício.

Tudo dentro de Lenobia ficou vivo quando aquela visão extinguiu o seu medo e a sua dúvida.

– Não, Deusa. De novo, não. Eu não sou mais uma garota assustada. Desta vez, o fim dele vai ser diferente!


2 Lenobia

Lenobia saiu em disparada de seu quarto e desceu correndo a pequena escada que ligava o seu alojamento ao piso térreo e ao estábulo. A fumaça estava se infiltrando feito cobras por debaixo da porta. Ela controlou o seu pânico e encostou a mão na madeira. Não estava quente, então ela empurrou a porta, avaliando a situação rapidamente enquanto entrava no estábulo. O fogo estava ardendo mais furiosamente no fundo do edifício, na área onde o feno e a ração eram estocados. Era também a área mais próxima à baia de Mujaji e à grande baia para animais prenhes onde a Percherão Bonnie e Travis haviam se instalado.

– Travis! – ela gritou, levantando o braço para proteger o rosto do calor das labaredas crescentes, enquanto corria para dentro do estábulo, abrindo as baias e libertando os cavalos mais próximos a ela. Para fora, Persephone, vá! Lenobia empurrou a égua clara, que estava congelada de pavor, recusando-se a sair de sua baia. Quando Persephone passou por ela em disparada em direção à saída, Lenobia chamou de novo: – Travis! Cadê você?

– Estou levando para fora os cavalos que estavam mais perto do fogo! – ele gritou quando uma jovem égua acinzentada correu da direção de onde vinha a voz de Travis e quase passou por cima de Lenobia.

– Calma! Calma, Anjo – Lenobia a tranquilizou, conduzindo a égua aterrorizada até a saída.

– A saída leste está bloqueada pelas chamas e eu... – as palavras de Travis foram cortadas quando a janela da selaria explodiu e estilhaços de vidro quente voaram pelo ar.

– Travis! Saia daqui e ligue para o 911! – Lenobia gritou enquanto abria a baia mais próxima e libertava um capão, detestando o fato de ela não ter pegado o seu telefone e feito ela mesma a chamada antes de sair do quarto.

– Eu acabei de ligar! – respondeu uma voz não familiar. Lenobia olhou através da fumaça e das chamas e viu uma novata correndo na sua direção, guiando uma égua alazã que estava totalmente em pânico.

– Está tudo bem, Diva – Lenobia automaticamente acalmou o cavalo, pegando a correia da garota. Ao seu toque, a égua se aquietou, e Lenobia soltou a correia do cabresto, encorajando-a a galopar para fora pela porta mais próxima atrás dos outros cavalos em fuga. Ela puxou a garota para trás com ela, afastando-se do calor que aumentava, dizendo: – Quantos cavalos estão... – Lenobia perdeu a fala quando viu que o crescente na testa da garota era vermelho.

– Acho que só sobraram alguns – a novata vermelha estava com a mão trêmula quando enxugou o suor com fuligem do seu rosto, gaguejando as palavras. – E-eu peguei Diva porque sempre gostei dela e pensei que ela podia se lembrar de mim. Mas até ela estava assustada. Realmente assustada.

Então Lenobia reconheceu a garota: Nicole. Ela tinha uma aptidão com cavalos e um modo natural de montar antes de morrer, ressuscitar e se juntar ao grupo do mal de Dallas. Mas não havia tempo para questionar a garota. Não havia tempo para nada, exceto levar os cavalos – e Travis – para um local seguro.

– Você fez bem, Nicole. Você pode entrar de novo lá?

– Sim – Nicole concordou trêmula. – Não quero que eles se queimem. Farei qualquer coisa que você mandar.

Lenobia colocou a mão no ombro da garota.

– Eu só preciso que você abra as baias e saia do caminho. Eu vou guiá-los para um local seguro.

– Ok, ok. Eu consigo fazer isso – Nicole concordou. Ela soou aflita e assustada, mas seguiu Lenobia sem hesitação, e as duas correram de volta para o turbilhão de calor dentro do estábulo.

– Travis! – Lenobia tossiu, tentando enxergar através da fumaça cada vez mais espessa. – Você está me ouvindo?

Mais alto que o som crepitante das chamas, ele gritou:

– Sim! Estou aqui atrás. Fechado na baia!

– Abra a baia! – Lenobia se recusou a ceder ao seu próprio pânico. – Abra todas as baias! Eu consigo chamar os cavalos para mim, para um local seguro. Posso fazê-los sair. Siga-os. Posso guiar todos vocês para fora!

– Já abri! – Travis gritou logo depois, do meio da fumaça e do calor.

– Já abri todas aqui também! – Nicole gritou bem mais perto.

– Agora sigam os cavalos e saiam do estábulo! – Lenobia berrou antes de começar a correr para trás, para longe do fogo e em direção à porta dupla da saída que ela deixou bem aberta. Em pé, na frente da porta, ela levantou os braços, com as palmas voltadas para fora, e imaginou que estava extraindo poder diretamente do Mundo do Além e do reino místico de Nyx. Lenobia abriu seu coração, sua alma e seu dom concedido pela Deusa e gritou: – Venham, meus belos filhos e filhas! Sigam minha voz e meu amor e vivam!

Pareceu haver um estouro da manada, com cavalos saindo em disparada do meio das labaredas e da fumaça escura. O terror deles era tão palpável para Lenobia que era quase como um ser vivo. Ela compreendeu isso – o seu medo das chamas, do fogo e da morte – e canalizou força e serenidade para si mesma e para os cavalos que passavam por ela galopando em direção aos jardins da escola.

A novata vermelha saiu cambaleando e tossindo atrás deles.

– Acabou. Todos os cavalos saíram – ela disse, desabando no gramado.

Lenobia deu um aceno rápido de cabeça para Nicole por consideração. Suas emoções estavam concentradas na manada agitada atrás dela, e seus olhos estavam focados na fumaça espessa e nas chamas flamejantes diante dela, das quais Travis não saía.

– Travis! – ela gritou.

Não houve nenhuma resposta.

– O fogo está se espalhando rápido – a novata vermelha falou ainda tossindo. – Ele pode estar morto.

– Não – Lenobia respondeu com firmeza. – Não desta vez – ela se voltou na direção da manada, chamando a sua amada égua negra. – Mujaji!

O cavalo relinchou e veio trotando até ela. Lenobia levantou a mão, fazendo-a parar.

– Fique calma, doçura. Cuide dos meus outros filhos. Empreste a eles a sua força e serenidade, assim como o meu amor – Lenobia disse.

Com relutância, porém obedientemente, a égua começou a andar ao redor do bando de cavalos assustados, agrupando-os. Satisfeita, Lenobia se virou, inspirou duas vezes profundamente e entrou em disparada na boca do estábulo em chamas.

O calor estava terrível. A fumaça era tão densa que era como tentar respirar um líquido efervescente. Por um instante, Lenobia foi transportada de volta para aquela noite horrível em Nova Orleans e para outro celeiro em chamas. Os sulcos grossos das cicatrizes nas suas costas latejaram como uma memória fantasma de dor, e por um momento o pânico reinou, enraizando Lenobia no passado.

Então ela o escutou tossir, e o seu pânico foi despedaçado pela esperança, permitindo que o presente e a força verdadeira da vontade de Lenobia superassem o seu medo.

– Travis! Eu não estou te vendo! – ela gritou e arrancou a parte de baixo de sua camisola, entrou na baia mais próxima e mergulhou o pano na água do cocho.

– Saia... daqui... – ele disse entre uma tosse seca e outra.

– Nem ferrando. Já vi um homem queimar por minha causa. Não gosto nada disso. – Lenobia colocou o tecido ensopado sobre ela como um manto com capuz e avançou mais para dentro da fumaça e do calor, seguindo a tosse de Travis.

Ela o encontrou perto de uma baia aberta. Ele havia caído e estava tentando se levantar, mas só havia conseguido se ajoelhar e estava curvado para frente, quase vomitando e tossindo. Lenobia não hesitou. Ela entrou na baia e molhou o tecido rasgado na água do cocho da baia de novo.

– O quê...? – outra tosse o acometeu enquanto ele franzia os olhos para ela. – Não! Saia...

– Eu não tenho tempo para discutir. Apenas deite-se – ela falou. Como ele não se moveu rápido o bastante, ela deu uma rasteira por baixo dos seus joelhos. Ele caiu de costas com um gemido e ela estendeu o tecido molhado sobre o rosto e o peito dele. – Isso, assim mesmo. Na horizontal – Lenobia ordenou, enquanto foi até o cocho e rapidamente espalhou água pelo seu próprio rosto e cabelo. Então, antes que ele pudesse protestar ou estragar o plano dela se mexendo, ela agarrou as pernas de Travis e começou a puxá-lo.

Ele tinha que ser tão grande e pesado? A mente de Lenobia estava ficando confusa. As chamas estavam rugindo em volta dela, e ela tinha certeza de que podia sentir o cheiro de cabelo queimado. Bem, Martin também era grande... E então a mente dela parou de funcionar. Era como se o seu corpo estivesse se movendo no piloto automático, sem ninguém para dirigi-lo, exceto uma necessidade primordial de continuar arrastando aquele homem para longe do perigo.

– É ela! É Lenobia!

De repente, mãos fortes estavam ali, tentando tirar aquela carga dela. Lenobia lutou. A morte não vai vencer desta vez! Não desta vez!

– Professora Lenobia, está tudo bem. Você conseguiu.

Então a mente dela registrou o frescor do ar e foi capaz de entender o que estava acontecendo. Ela ofegou, inspirando o ar puro e tossindo o calor e a fumaça, enquanto mãos gentis a ajudaram a se sentar na grama e colocaram uma máscara sobre o seu nariz e sua boca, através da qual um ar ainda mais puro inundou os seus pulmões. Ela sugou o oxigênio e a sua mente clareou completamente.

Um enxame de bombeiros humanos lotava os jardins. Poderosas mangueiras estavam voltadas para o estábulo em chamas. Dois paramédicos estavam ao redor dela, observando-a, parecendo perdidos e obviamente surpresos com a rapidez com que ela estava se recuperando.

Ela arrancou a máscara do rosto.

– Não cuidem de mim. Cuidem dele! – ela puxou o tecido quente do corpo de Travis, que ainda estava imóvel demais. – Ele é humano. Ajudem-no!

– Sim, senhora – um dos paramédicos murmurou e então eles começaram a trabalhar em Travis.

– Lenobia, beba isto – alguém disse e uma taça foi colocada em suas mãos.

A Mestra dos Cavalos levantou os olhos e viu duas vampiras curandeiras da enfermaria da Morada da Noite, Margareta e Pemphredo, agachadas ao lado dela. Lenobia bebeu de uma vez todo o vinho, que estava bastante misturado com sangue, sentindo instantaneamente a energia vital que ele carregava formigar pelo seu corpo.

– É melhor você vir com a gente, professora – Margareta afirmou. – Você vai precisar de mais do que isso para se curar completamente.

– Mais tarde – Lenobia respondeu, deixando a taça de lado. Ela ignorou as curandeiras, bem como as sirenes, as vozes e o caos generalizado ao seu redor. Lenobia engatinhou em direção à cabeça de Travis. Os paramédicos estavam ocupados. O cowboy já estava usando uma máscara, e eles estavam dando uma injeção no seu braço. Os olhos dele estavam fechados. Mesmo por baixo da sujeira da fuligem, ela podia ver que o seu rosto estava escaldado e vermelho. Ele estava usando uma camiseta para fora da calça, que obviamente tinha vestido apressadamente por sobre o jeans. Os seus antebraços fortes estavam descobertos e cheios de bolhas. E as suas mãos... as suas mãos estavam queimadas e ensanguentadas.

Ela deve ter feito algum barulho involuntário – sinal da terrível dor de cabeça que estava sentindo –, pois Travis abriu os olhos. Eles eram exatamente como ela se lembrava: castanhos, com um tom de uísque e traços verde-oliva. Os seus olhares se encontraram e se fixaram um no outro.

– Ele vai sobreviver? – ela perguntou ao paramédico mais próximo.

– Eu já vi casos piores, e ele vai ter cicatrizes, mas nós temos que levá-lo ao hospital St. John o mais rápido possível. A inalação de fumaça foi pior do que as suas queimaduras – o humano fez uma pausa e, apesar de Lenobia não tirar os olhos de Travis, pôde escutar o sorriso na voz do paramédico. – Ele é um cara de sorte. Quase você não o encontra a tempo.

– Na verdade, levei duzentos e vinte e quatro anos para encontrá-lo, mas estou feliz que cheguei a tempo.

Travis começou a dizer algo, mas suas palavras foram cortadas por uma tosse seca horrível.

– Com licença, senhora. A maca chegou.

Lenobia se afastou para o lado, enquanto Travis era transferido para a maca com rodinhas, mas em nenhum momento eles deixaram de se olhar. Ela caminhou ao lado dele enquanto os paramédicos empurravam a maca até a ambulância que estava à espera. Antes de o colocarem lá dentro, ele tirou a máscara e, com uma voz áspera, perguntou:

– Bonnie? Ok?

– Ela está bem. Eu posso senti-la. Ela está com Mujaji. Vou cuidar dela. Vou cuidar de todos eles e deixá-los em segurança – ela assegurou a ele.

Ele estendeu a mão para Lenobia, e ela cuidadosamente tocou sua mão queimada e ensanguentada.

– Você vai cuidar de mim também? – ele conseguiu perguntar.

– Sim, cowboy. Você pode apostar sua bela e grande égua que eu vou – e sem se importar nem um pouco com os olhares de humanos, novatos e vampiros que ela podia sentir na direção dela, Lenobia se inclinou e o beijou suavemente na boca. – Procure por alegria e cavalos. Eu vou estar lá. Desta vez, cuidando para que você esteja a salvo.

– Bom saber. Minha mãe sempre dizia que eu precisava de alguém que cuidasse de mim. Espero que ela descanse em paz sabendo que eu consegui essa pessoa – a voz dele soou como se a sua garganta fosse uma lixa.

Lenobia sorriu.

– Você conseguiu, mas eu acho que é você que precisa aprender a descansar.

As pontas dos dedos dele tocaram a mão de Lenobia, e ele disse:

– Acho que agora eu vou conseguir. Eu só estava esperando encontrar o meu caminho de volta para casa.

Lenobia encarou aqueles olhos âmbar esverdeados que lhe eram tão familiares, tão incrivelmente parecidos com os de Martin, e imaginou que através deles ela podia enxergar a verdadeira natureza daquela alma também familiar – a bondade, a força, a honestidade e o amor que, de algum modo, haviam cumprido a sua promessa de voltar para ela. Lá no fundo do coração, Lenobia sabia que, apesar de no resto da aparência o cowboy alto e rijo não ter nenhuma semelhança com o seu amor perdido, ela havia encontrado o seu coração de novo. A emoção travou a sua voz, e tudo o que ela podia fazer era sorrir, concordar com a cabeça e virar a mão para que os dedos dele pousassem na sua palma – quente, forte e muito viva.

– Nós temos que levá-lo ao hospital, senhora – afirmou o paramédico.

Lenobia tirou sua mão de Travis com relutância, enxugou os olhos e disse:

– Você pode levá-lo por pouco tempo, mas eu o quero de volta. Logo – ela dirigiu o seu olhar, que parecia uma nuvem de tempestade, para o humano de jaleco. – Trate-o bem. Esse fogo no celeiro não é nada perto do meu temperamento inflamado.

– S-sim, senhora – o paramédico gaguejou, rapidamente colocando Travis dentro da ambulância.

Lenobia teve certeza de que ouviu a risada de Travis no meio da sua tosse horrorosa, antes de as portas da ambulância se fecharem e de eles partirem com a sirene piscando.

Ela estava parada ali, olhando a ambulância se afastar e preocupada com Travis, quando alguém próximo limpou a garganta de um jeito bem óbvio, atraindo a atenção de Lenobia instantaneamente. Ao se virar, ela enxergou o que a sua visão antes totalmente capturada por Travis havia ignorado. Parecia que a escola havia explodido. Cavalos movendo-se nervosamente o mais perto do muro leste que eles conseguiam chegar. Caminhões de bombeiros estavam estacionados nos jardins ao lado do estábulo, esguichando água de enormes mangueiras na direção do prédio ainda em chamas. Novatos e vampiros tinham se reunido em grupos assustados, parecendo impotentes.

– Calma, Mujaji, calma... Está tudo bem agora, minha doçura. – Lenobia fechou os olhos e se concentrou em usar o dom que a sua Deusa havia concedido a ela há mais de duzentos anos. Ela sentiu a bela égua negra responder imediatamente, relaxando da sua agitação e acabando com o resto do seu medo e nervosismo. Então Lenobia voltou sua conexão para a grande Percherão, que estava preocupada escavando o chão, movendo as orelhas, buscando algum sinal de Travis. – Bonnie, ele está bem. Você não tem com o que se preocupar – Lenobia falou suavemente, ecoando as ondas de emoção que ela estava transmitindo para a égua ansiosa. Bonnie se acalmou quase tão rápido quanto Mujaji, o que agradou bastante Lenobia e permitiu que ela direcionasse sua atenção facilmente para o resto dos cavalos. – Persephone, Anjo, Diva, Little Biscuit, Okie Dodger – ela enviou afeto e segurança individualmente para os cavalos –, sigam a liderança de Mujaji. Fiquem calmos. Sejam fortes. Vocês estão a salvo.

A pessoa próxima a ela limpou a garganta novamente, interrompendo a concentração dela. Irritada, Lenobia abriu os olhos e viu um humano parado na sua frente. Ele vestia um uniforme de bombeiro e a estava observando com as sobrancelhas arqueadas e uma curiosidade explícita.

– Você está falando com aqueles cavalos?

– Na verdade, estou fazendo muito mais do que isso. Dê uma olhada – ela fez um gesto para a manada diante dela.

Ele se virou, e o seu rosto registrou a sua surpresa.

– Eles se acalmaram bastante. Isso é bizarro.

– A palavra “bizarro” tem tantas conotações negativas. Prefiro a palavra “mágico”. – Lenobia fez um aceno de cabeça, despedindo-se do bombeiro, e então começou a andar a passos largos na direção do grupo de novatos que estavam aglomerados em volta de Erik Night e da professora P.

– Senhora, eu sou o capitão Alderman, Steve Alderman – ele disse, quase correndo para acompanhar o passo de Lenobia. – Estamos trabalhando para controlar o fogo, e eu preciso saber quem é o responsável pela escola.

– Capitão Alderman, eu gostaria de dizer que sou eu – Lenobia disse sombriamente. Então ela acrescentou: – Venha comigo. Vou resolver isso – a Mestra dos Cavalos se juntou a Erik, professora P. e seu grupo de novatos, que incluía um guerreiro Filho de Erebus, Kramisha, Shaylin e vários novatos azuis quinto-formandos e sexto-formandos. – Penthesilea, eu sei que Thanatos está com Zoey e o seu círculo, terminando o ritual na fazenda da Sylvia Redbird, mas onde está Neferet? – a voz de Lenobia soou como um chicote.

– E-eu simplesmente não sei! – a professora de Literatura respondeu trêmula, olhando por sobre o seu ombro para o estábulo em chamas. – Eu fui até os aposentos dela quando vi o fogo, mas não havia nenhum sinal dela.

– E ninguém tentou ligar para ela? – Kramisha perguntou.

– Não atende – Erik respondeu.

– Que maravilha – Lenobia resmungou.

– Posso supor então que, na ausência dessas pessoas que acabou de mencionar, você é a responsável aqui? – o capitão Alderman questionou Lenobia.

– É, parece que, como não sobrou ninguém, sou eu – ela disse.

– Bem, então você precisa fazer a contagem dos estudantes o mais rápido possível. Você e os professores precisam conferir imediatamente se todos os alunos estão presentes – ele indicou com o polegar um banco não muito longe de onde eles estavam. – Aquela garota com a lua vermelha na testa é a única garota que encontramos perto do celeiro. Ela não está ferida, apenas um pouco abalada. O oxigênio está limpando os pulmões dela surpreendentemente rápido. Mesmo assim, pode ser uma boa ideia que ela seja examinada no hospital St. John.

Lenobia deu uma olhada para Nicole, que estava sentada respirando profundamente com uma máscara de oxigênio, enquanto um paramédico conferia seus sinais vitais. Margareta e Pemphredo estavam por perto, fuzilando o paramédico com os olhos, como se ele fosse um inseto irritante.

– A nossa enfermaria está mais bem equipada para cuidar de novatos feridos do que um hospital humano – Lenobia afirmou.

– Como achar melhor, senhora. Você é a responsável aqui, e sei que vocês, vampiros, têm uma fisiologia própria. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Sem ofensas. Meu melhor amigo no ensino médio foi Marcado e Transformado. Eu gostava dele na época. E ainda gosto dele.

Lenobia controlou o sorriso.

– Não me senti ofendida, capitão Alderman. Nós estamos apenas falando a verdade. Os vampiros realmente têm necessidades fisiológicas diferentes das dos humanos. Nicole vai ficar bem aqui com a gente.

– Ótimo. Acho que é melhor enviar alguns rapazes para dentro daquele ginásio para procurar outros garotos que podem estar por perto – o capitão falou. – Parece que nós conseguimos evitar que o fogo se espalhasse, mas é melhor fazer uma busca nas partes adjacentes da escola.

– Acho que procurar no ginásio é uma perda de tempo para os seus homens – Lenobia afirmou, seguindo o que o seu instinto estava lhe dizendo. – Concentre-se em fazer com que eles acabem com o fogo no estábulo. O incêndio não começou sozinho. Isso precisa ser investigado, além de nos certificarmos de que nenhum dos nossos ficou preso nas chamas. Eu vou pedir que os nossos guerreiros façam buscas nas áreas adjacentes da escola, começando pelo ginásio.

– Sim, senhora. Parece que realmente nós chegamos aqui a tempo. O ginásio vai ter danos de fumaça e água, mas vai parecer muito pior do que realmente é. Acho que a estrutura permaneceu intata. É um edifício sólido, feito de pedras boas e espessas. Vai ser preciso alguma reforma, mas o seu esqueleto foi feito para durar – o bombeiro tocou no seu chapéu para cumprimentá-la e se afastou, gritando ordens para os homens mais próximos.

Bem, pelo menos algumas notícias boas, Lenobia pensou, tentando desviar os olhos do caos em combustão em que o seu estábulo tinha se transformado. Ela se virou de novo para o seu grupo.

– Onde está Dragon? Ainda no ginásio?

– Nós também não conseguimos encontrar Dragon – Erik respondeu.

– Dragon está desaparecido? – O estábulo tinha sido construído com uma parede compartilhada com o grande ginásio coberto. Até então, ela havia estado muito preocupada para pensar nisso, mas a ausência do líder dos Filhos de Erebus durante uma crise na escola era algo totalmente estranho. – Neferet e Dragon... Não gosto do fato de que nenhum deles está aqui. Isso é um mau presságio para a escola.

– Professora Lenobia, hum, eu vi Neferet.

Os olhos de todos se voltaram para a pequena garota de cabelos grossos e escuros que faziam as feições delicadas do seu rosto parecerem quase de boneca. Lenobia colocou um nome rapidamente naquele rosto: Shaylin, a novata recém-chegada na Morada da Noite de Tulsa e a única novata cuja Marca original era vermelha. No instante em que a conhecera alguns dias atrás, Lenobia pensou que havia algo muito estranho com ela.

– Você viu Neferet? – ela franziu os olhos para a novata. – Onde? Quando?

– Há mais ou menos uma hora – Shaylin respondeu. – Eu estava sentada do lado de fora do dormitório, olhando para as árvores. – Ela encolheu os ombros, nervosa, e acrescentou: – Eu era cega e, agora que eu não sou mais, gosto de olhar para as coisas. Adoro.

– Shaylin, e Neferet? – Erik a estimulou a continuar.

– Ah, sim, eu a vi andando pela calçada em direção ao ginásio. Ela, bem, ela parecia muito escura – Shaylin fez uma pausa, parecendo desconfortável.

– Escura? O que você quer dizer com...

– Shaylin tem um jeito único de ver as pessoas – Erik interrompeu. Lenobia o viu colocar a mão sobre o ombro de Shaylin para tranquilizá-la. – Se ela achou que Neferet parecia escura, então provavelmente foi bom você ter evitado que os bombeiros humanos fossem bisbilhotar no ginásio.

Lenobia queria questionar mais Shaylin, mas Erik encontrou o seu olhar e balançou a cabeça, quase imperceptivelmente. Lenobia sentiu um arrepio de mau pressentimento descendo pela sua espinha. Aquela premonição fez com que ela tomasse a decisão.

– Axis, vá com Penthesilea até o escritório da administração. Se Diana não estiver acordada, acorde-a. Pegue a lista de alunos e a distribua para os guerreiros Filhos de Erebus. Peça para que eles contem todos os estudantes e depois faça com que os estudantes apresentem-se aos seus mentores antes de voltarem aos dormitórios. – Quando a professora e o guerreiro saíram apressados, Lenobia encontrou o olhar franco de Kramisha. – Você pode fazer com que esses novatos – Lenobia fez uma pausa e seu gesto abrangeu todos os alunos com aparência desnorteada que estavam vagando pela área – se apresentem aos seus mentores?

– Sou uma poetisa. Eu consigo criar alguns pentâmetros iâmbicos incríveis. Isso significa que eu posso dar uma de chefe de alguns garotos assustados e sonolentos.

Lenobia sorriu para a garota. Ela já gostava de Kramisha mesmo antes de ela morrer e depois voltar como uma novata vermelha, que tinha tantas habilidades poéticas e proféticas que havia sido nomeada a nova vampira Poeta Laureada.

– Obrigada, Kramisha. Eu sabia que podia contar com você. Mas é bom se apressar. Não preciso dizer isso para você, mas está bem perto de amanhecer.

Kramisha bufou.

– Você está me dizendo isso? Eu vou ficar mais tostada do que aquele celeiro se eu não entrar em um lugar coberto logo.

Quando Kramisha saiu apressada, chamando os novatos espalhados, Lenobia encarou Erik e Shaylin.

– Nós três precisamos dar uma examinada no ginásio.

– É, eu concordo – Erik disse. – Vamos lá.

Mas Shaylin não saiu do lugar, e Lenobia percebeu que ela tirou a mão de Erik do seu ombro. Não de um jeito irritado, mas, sim, distraído. Ela viu a jovem novata vermelha olhar para o céu e suspirar. Lenobia notou que ela parecia se sentir importante, que ela exibia uma sensação de quem queria ou esperava algo.

– O que foi? – Lenobia perguntou para a garota, apesar de a última coisa que ela deveria fazer naquele momento era dar atenção para uma novata vermelha distraída e estranha.

Ainda olhando para cima, Shaylin falou:

– Onde está a chuva quando você precisa dela?

– Ahn? – Erik balançou a cabeça. – Do que você está falando?

– Chuva. Eu queria muito, muito mesmo que chovesse – a garota baixou os olhos do céu e se voltou para ele, encolhendo os ombros e parecendo um pouco sem jeito. – Juro que eu posso sentir um cheiro de chuva no ar. Isso iria ajudar os bombeiros e seria uma garantia dupla de que o fogo não vai se espalhar para o resto da escola.

– Os humanos estão conseguindo lidar com o fogo. Nós temos que examinar o ginásio. Não gosto do fato de Neferet ter sido vista entrando lá – Lenobia afirmou e começou a andar em direção ao ginásio, supondo que os dois iriam segui-la, mas ela hesitou ao perceber que Shaylin ainda continuava lá. Ela se virou para a novata e estava pronta para repreendê-la por insolência ou ignorância, mas Erik disse algo antes:

– Ei, isso é importante – ele falou com uma voz baixa e urgente para Shaylin. – Vamos com Lenobia conferir o ginásio. Os bombeiros já estão com as coisas sob controle. – Como Shaylin não saiu do lugar e continuou a resistir em ir até o ginásio, ele falou mais alto: – O que há com você? Já que Thanatos, Dragon e até Zoey e o seu grupo não estão aqui, a gente tem que tomar cuidado para não deixar ninguém pensar que nós podíamos...

– Erik, eu realmente acho que Lenobia está certa – Shaylin o interrompeu. – Eu só quero saber o que vai acontecer com ela.

Lenobia seguiu o olhar de Shaylin e encontrou Nicole, ainda sentada no banco, entre duas vampiras da enfermaria, com a pele rosa e manchada de fuligem.

– Ela faz parte do grupo de novatos vermelhos de Dallas. Eu não ficaria surpreso se ela tivesse algo a ver com o incêndio – Erik insinuou, claramente irritado. – Lenobia, acho que você deveria fazer com que Nicole vá até a enfermaria e fique trancada lá até nós descobrirmos o que realmente aconteceu aqui.

Antes de Lenobia responder, Shaylin já estava falando. Ela soou firme e muito mais sábia do que deveria ser aos dezesseis anos.

– Não. Façam com que ela vá até a enfermaria para ter certeza de que ela está bem, mas não a prendam lá.

– Shaylin, você não sabe o que está dizendo. Nicole está com Dallas – Erik afirmou.

– Bem, neste momento ela não está com ele. Ela está mudando – Shaylin respondeu.

– Realmente, ela me ajudou a tirar os cavalos do estábulo – Lenobia disse. – Se ela estivesse envolvida com o incêndio, teria sido muito mais fácil se esconder e fugir no meio da fumaça. Eu nunca saberia que ela esteve lá.

– Isso faz sentido. As cores dela estão diferentes... melhores. – E então Shaylin, com a sua firmeza e sabedoria se dissipando, arregalou os olhos para Lenobia: – Ah, desculpe. Eu falei demais. Preciso aprender a manter a minha boca fechada.

– Que atrocidade foi cometida nos jardins da escola esta noite!

A voz ressoou como um trovão sobre Lenobia. Pelos jardins da escola, movendo-se rapidamente em direção a eles, havia uma falange de vampiros e novatos, com Thanatos à frente, Zoey e Stevie Rae cada uma ao seu lado e, por mais bizarro que fosse, Kalona marchando logo atrás de Thanatos, com as asas abertas defensivamente, como se ele de repente tivesse se tornado o Anjo Guardião da Morte.

Foi nessa hora que o céu da noite se abriu e começou a chover.


3 Zoey

Eu já sabia antes mesmo de ver os caminhões dos bombeiros e a fumaça. Eu já sabia que o inferno ia se instalar na Morada da Noite no momento em que Thanatos testemunhou a verdade sobre os crimes de Neferet. Nesta noite, havia sido provado sem sombra de dúvidas que Neferet estava do lado das Trevas. Thanatos não havia perdido tempo para enxotá-la. No caminho de volta da fazenda de lavandas de vovó até a escola, a Grande Sacerdotisa da Morte havia feito uma chamada de emergência para a Itália e informado oficialmente o Conselho Supremo dos Vampiros de que Neferet não era mais uma Sacerdotisa de Nyx – que ela tinha escolhido as Trevas como seu Consorte. Neferet tinha sido vista como realmente era, algo que eu queria muito desde que eu havia percebido a sua verdade nojenta. Só que, agora que eu tinha realizado meu desejo, tive uma sensação terrível de que expulsar Neferet serviria mais para libertá-la do que para forçá-la a pagar pelas consequências das suas mentiras e traições.

Tudo parecia tão confuso e horroroso, como se a noite toda tivesse sido a metade final de um filme de terror medonho e sanguinolento: o ritual, assistir às imagens do assassinato da minha mãe, tudo o que tinha acontecido com Dragon, Rephaim, Kalona e Aurox... Aurox? Heath? Não, eu não posso pensar nisso! Não agora! Agora os estábulos estavam em chamas. Sério. Os cavalos da escola estavam relinchando e se aglomerando nervosamente perto do muro leste. Lenobia parecia chamuscada e coberta de fuligem. Erik, Shaylin e um monte de outros novatos estavam parados lá, chocados e ensopados porque, é claro, havia começado a cair uma chuva torrencial. E Nicole, a garota que era uma novata vermelha super do mal e a namorada vadia e detestável do Dallas, estava caída em um banco com dois paramédicos humanos em volta dela como se fosse o menino Jesus com asas douradas.

Eu queria apertar um botão, desligar aquele filme assustador e pegar no sono, deitada de conchinha com Stark, em segurança. Que inferno, eu queria fechar os olhos e voltar no tempo, quando o pior estresse que eu tinha era ter três namorados, e isso tinha sido muito, muito ruim.

Eu me chacoalhei mentalmente, fiz o melhor que podia para afastar o caos que me rodeava por dentro e por fora e me concentrei em Lenobia.

– Sim, o estábulo pegou fogo – ela estava explicando para a gente. – Nós não sabemos quem ou o que provocou isso. Algum de vocês viu Neferet?

– Nós não a vimos em pessoa, mas vimos a imagem dela em espírito que ficou gravada nas terras da avó de Zoey. – Thanatos levantou o queixo e, com uma voz forte e segura que se sobrepôs à chuva, declarou: – Neferet se aliou ao touro branco. Ela sacrificou a mãe de Zoey para ele. Ela vai ser uma inimiga poderosa, mas é inimiga de todos que seguem a Luz e a Deusa.

Percebi que esse anúncio chocou Lenobia, apesar de eu saber que a Mestra dos Cavalos já estava ciente de que Neferet era nossa inimiga havia meses. Mesmo assim, existia uma grande diferença entre imaginar algo e saber que o pior que você havia imaginado era verdade. Especialmente quando isso era tão horrível que quase fugia à compreensão. Então Lenobia limpou a garganta e perguntou:

– O Conselho Supremo a baniu?

– Eu relatei o que testemunhei esta noite – Thanatos disse, portando-se como a Grande Sacerdotisa da nossa Morada da Noite. – Foi determinado que Neferet se apresente perante o Conselho Supremo, que vai fazer justiça pela traição dela à nossa Deusa e aos nossos caminhos.

– Ela deve ter imaginado o que vocês iriam descobrir se o ritual desse certo – Lenobia afirmou.

– Sim, e é por isso que ela mandou aquela coisa dela atrás de nós... Para matar Rephaim e estragar o nosso círculo, acabando com o ritual de revelação – Stevie Rae falou, entrelaçando sua mão à de Rephaim, que estava parado, alto e forte, ao seu lado.

– Parece que não deu certo – Erik observou.

Ele estava perto de Shaylin. Agora que eu pensei nisso, parece que Erik estava passando muito tempo perto de Shaylin. Hummm...

– Bem, o plano dela teria funcionado – Stevie Rae explicou –, mas Dragon apareceu lá e segurou Aurox por um tempo – ela fez uma pausa e olhou para trás em direção a Kalona. Na verdade, ela deu seu típico sorriso doce e afetuoso para ele, antes de continuar. – Foi Kalona quem realmente salvou Rephaim. Kalona salvou o seu filho.

– Dragon! Então é com vocês que ele está – Erik exclamou, movendo-se para olhar atrás de nós, obviamente esperando ver Dragon.

Senti um aperto no estômago e pisquei com força para não cair em prantos. Como ninguém disse nada, respirei fundo e dei aquela notícia realmente triste e péssima.

– Dragon estava com a gente. Ele lutou para nos proteger. Bem, para proteger a nós e Rephaim. Mas... – perdi a fala, achando difícil dizer as próximas palavras.

– Mas Aurox furou Dragon com seus chifres até a morte, quebrando o feitiço que havia nos aprisionado e libertando-nos para que nós conseguíssemos chegar até Rephaim para protegê-lo – Stark não teve problemas em terminar para mim.

– Mas já era tarde demais – Stevie Rae acrescentou. – Rephaim também teria morrido se Kalona não tivesse aparecido a tempo de salvá-lo.

– Dragon Lankford está morto? – o rosto de Lenobia havia ficado imóvel e pálido.

– Está. Ele morreu como um guerreiro, fiel a si mesmo e ao seu Juramento. Ele se reencontrou com sua companheira no Mundo do Além – Thanatos concluiu. – Todos nós testemunhamos isso.

Lenobia fechou os olhos e abaixou a cabeça. Percebi que os lábios dela estavam se movendo, como que murmurando uma prece em voz baixa. Quando ela levantou a cabeça, seu rosto estava marcado por vincos de raiva e os seus olhos cinza pareciam nuvens de tempestade.

– Incendiar o meu estábulo foi uma distração que permitiu que Neferet escapasse.

– Parece provável – Thanatos concordou. Então a Grande Sacerdotisa fez uma pausa, como se estivesse escutando atentamente algo além do barulho da chuva, dos bombeiros e dos cavalos. Ela franziu os olhos e disse: – A Morte esteve aqui... Recentemente.

Lenobia balançou a cabeça.

– Não, os bombeiros já estão liberando o estábulo. Eu acredito que ninguém morreu lá.

– Não estou sentindo o espírito de um novato ou de um vampiro – Thanatos respondeu.

– Todos os cavalos saíram! – a voz de Nicole se levantou subitamente. Fiquei surpresa com o seu tom. Quero dizer, até aquele momento eu só tinha ouvido Nicole rindo sarcasticamente ou dizendo coisas maldosas. Agora Nicole soou como uma garota normal, preocupada com coisas como cavalos pegando fogo e o mal solto no mundo.

Mas Stevie Rae, assim como eu, conhecia uma Nicole muito diferente.

– Que diabo você está fazendo aqui, Nicole? – Stevie Rae perguntou.

– Ela estava ajudando Lenobia e Travis a tirar os cavalos do estábulo – Shaylin explicou.

– Sei, tenho certeza de que ela estava ajudando... logo depois de colocar fogo lá! – Stevie Rae afirmou.

– Sua vaca, você não pode falar assim comigo! – Nicole respondeu de um jeito sarcástico, sua voz ficando bem mais familiar.

– Se liga, Nicole – eu falei, colocando-me ao lado de Stevie Rae.

– Basta! – Thanatos levantou as mãos e o seu poder emanou, crepitando mais alto que a chuva e fazendo todos darem um salto. – Nicole, você é uma novata vermelha. Já passou da hora de você submeter a sua lealdade à única Grande Sacerdotisa da sua espécie. Você não vai xingá-la. Está entendido?

Nicole cruzou os braços e concordou com a cabeça uma vez. Ela não pareceu arrependida de jeito nenhum para mim, e a atitude dela, coroando todo o resto que tinha acontecido naquela noite, realmente me irritou. Eu a encarei e disse exatamente o que estava na minha cabeça:

– Você tem que entender que ninguém vai aturar mais a sua maldade. De agora em diante, as coisas vão ser diferentes.

– E você vai ter que passar por cima de mim para machucar Zoey – Stark disse.

– Você me usou para tentar matar Stevie Rae uma vez. Isso nunca mais vai acontecer – Rephaim subiu o tom.

– Zoey, Stevie Rae – Thanatos interveio enfaticamente. – Para serem respeitadas como Grandes Sacerdotisas, vocês precisam agir de modo adequado, assim como os seus guerreiros.

– Ela tentou nos matar. A nós duas! – Stevie Rae argumentou.

– Não recentemente! – Nicole gritou para Stevie Rae.

– Como nós podemos combater as grandes Trevas ancestrais que agora foram soltas no mundo se não passamos de crianças birrentas? – Thanatos falou em voz baixa. Ela não soou poderosa, nem sábia, nem forte. Ela soou cansada e sem esperança, e isso foi muito mais assustador do que o barulho crepitante que ela tinha feito antes.

– Thanatos está certa – eu concordei.

– Do que você está falando, Z.? Você sabe como Nicole é de verdade – Stevie Rae apontou para ela. – Assim como você sabia como Neferet era de verdade, mesmo quando ninguém acreditava em você.

– Estou falando que Thanatos está certa sobre a birra. Nós não podemos nem começar a combater Neferet se o nosso time não for forte e unido – olhei para Nicole. – O que significa: entre no nosso time ou vai pro inferno.

– Se ela está amaldiçoando, está falando sério – Aphrodite reforçou.

– Eu estou de acordo com ela – Damien afirmou.

– Assim como eu – Darius acrescentou.

– Eu também – Shaunee falou. Logo depois dela, Erin disse: – É.

– Eu já escolhi o meu lado – Kalona declarou solenemente. – Acho que é hora de os outros também escolherem.

– Eu sou nova por aqui, mas sei qual lado é o certo, e eu escolho o lado deles – Shaylin se aproximou mais de nós.

Erik a seguiu. Ele não disse nada, mas encontrou meu olhar e assentiu com a cabeça. Sorri para ele e me virei para encarar Thanatos, apoiada pela solidariedade do meu grupo.

– Nós não somos crianças birrentas. Nós só estamos cansados de receber ordens de pessoas que dizem que sabem o que é melhor, mas que parecem que continuam fazendo besteiras, até mais do que a gente.

– Ou seja, muitas – Aphrodite comentou ironicamente.

– Você não está ajudando – respondi automaticamente. Para Nicole, eu disse: – Então escolha o seu time.

– Ok. Eu escolho o Time Nicole – ela falou.

– Que na verdade significa Time Egoísta – Stevie Rae rebateu.

– Ou Time Detestável – Erin sugeriu.

– Ou Time Nada Atraente – Aphrodite acrescentou.

– Thanatos está indo embora – Lenobia disse rapidamente, indicando as costas da Grande Sacerdotisa.

– Como eu já previa – a voz de Kalona pareceu secar a chuva com a sua raiva. – Ela volta para o seu civilizado Conselho Supremo e nos deixa aqui para combater o mal.

Thanatos parou, virou-se e fuzilou o imortal alado com o seu olhar sombrio.

– Guerreiro juramentado, fique quieto! As minhas palavras não são menos desconfortáveis do que as suas. Estou indo é atrás da Morte. Infelizmente, isso não me leva para longe desta escola, nem vai me levar num futuro próximo. – Sem dizer mais nada, Thanatos continuou se afastando de nós, indo em direção à entrada fumegante do ginásio.

– Afe, ela é tão dramática – Aphrodite revirou os olhos. – Ela já disse que não é nenhum novato, vampiro ou cavalo. Então, e daí? Se a porra de um mosquito morre, nós temos que nos descabelar?

– Qual é o seu problema? – Nicole balançou a cabeça para Aphrodite. – Deusa! Você é mesmo uma bruxa histérica. Por que você não pensa antes de falar tanta besteira? Thanatos não está falando de insetos e merdas assim. Ela só pode estar falando de algum gato. É o único outro espírito de animal aqui com o qual ela se importa.

Aquilo calou Aphrodite, criando o que pareceu um vácuo gigante de silêncio, enquanto todos nós percebíamos que Nicole devia estar certa.

Eu perdi o fôlego.

– Ah, Deusa, não! Nala!

Franzindo os olhos para Nicole, Aphrodite disse:

– Relaxe, os nossos gatos estão na estação. Até aquele cachorro fedido. Não é nenhum dos nossos.

– A Duquesa não é fedida – Damien respondeu. – Mas, ah, eu estou tão feliz que ela e Cammy estão a salvo.

– Eu morreria se algo acontecesse a Belzebu – Shaunee afirmou.

– Eu também! – Erin complementou, soando mais protetora do que preocupada.

– Eu amo Nal – Stevie Rae encontrou meus olhos e nós duas piscamos para segurar as lágrimas.

– Os nossos familiares estão em segurança – a voz profunda de Darius pareceu me ancorar, pelo menos até Erik falar.

– Só porque o gato que morreu não era de nenhum de vocês, isso não torna a morte dele nem um pouco menos horrível – Erik pareceu bem mais maduro do que o normal. – Quem será que está no Time Egoísta agora?

Eu suspirei e já ia concordar com Erik, quando Nicole fez um som exasperado e saiu andando, seguindo o caminho que Thanatos tinha acabado de fazer.

– Aonde você pensa que vai? – Stevie Rae gritou para ela.

Nicole não parou. Ela também não se virou, mas sua voz chegou até nós.

– O Time Egoísta está indo ajudar Thanatos com o gato morto, seja o gato de quem for, porque o Time Egoísta gosta de animais. Eles são mais legais do que as pessoas. Ponto final.

– Eu não sei do que ela está falando – Aphrodite disse.

Revirei os olhos para ela.

– Isso tudo é teatrinho dela. Não dá pra confiar naquela garota – Stevie Rae olhou com raiva na direção de Nicole.

– Bom, eu posso dizer que Nicole quase morreu inalando fumaça ao me ajudar a libertar os cavalos – Lenobia afirmou.

– A cor dela está mudando – Shaylin sussurrou.

– Shhh – Erik falou para ela, tocando seu ombro.

– Ela tentou me matar! – Stevie Rae soou como se ela fosse explodir.

– Ah, que merda, quem não tentou te matar? Ou a Zoey. Ou a mim. Supere isso. – Aphrodite foi rápida e, antes que Stevie Rae pudesse rebater, ela levantou a mão, com a palma voltada para fora, e continuou: – Guarde isso para você. A menos que você, Stark e os outros novatos vermelhos que ficam torrados na luz do sol estejam planejando passar o dia aqui descobertos, é melhor a gente começar a embarcar no ônibus e voltar para a estação. Ah, e o menino-pássaro também vai virar cem por cento pássaro e zero por cento menino logo mais, o que eu tenho certeza de que é algo bem estranho em público.

– Eu detesto quando ela está certa – Stevie Rae disse para mim.

– Nem me fala – respondi. – Ok, por que vocês não reúnem todo mundo que deve voltar para a estação? Eu vou descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois encontro vocês no ônibus. Logo.

– Você quer dizer que você e eu vamos descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois os encontramos no ônibus. Logo – Stark me corrigiu.

Eu apertei a mão dele.

– Foi exatamente o que eu quis dizer.

– Eu também vou – Kalona afirmou. – Vou seguir Thanatos com vocês, mas não vou voltar para a estação – ele sorriu levemente quando desviou o olhar de mim e se voltou para o seu filho. – Mas logo vou ver vocês novamente.

Stevie Rae soltou a mão de Rephaim para se atirar nos braços de Kalona, apertando-o num abraço gigante, o que pareceu surpreendê-lo tanto quanto a nós, apesar de Rephaim assistir à cena com um sorriso enorme.

– Sim, com certeza a gente vai se ver logo. Obrigada de novo por aparecer para salvar o seu filho.

Kalona deu um tapinha nas costas dela desajeitadamente.

– De nada.

Então ela segurou a mão de Rephaim de novo e começou a caminhar na direção do estacionamento, dizendo:

– Ok, vamos esperar por vocês, mas lembrem-se, é batata que o sol vai nascer rapidinho.

Aphrodite sacudiu a cabeça e começou a andar de braços dados com Darius.

– Afinal, o que significa “é batata”? Será que ela pelo menos concluiu o ensino fundamental?

– Apenas a ajude a levar os garotos para o ônibus – respondi.

Felizmente, junto com a chuva havia começado a soprar um vento, e ambos encobriram a resposta de Aphrodite, enquanto ela, Darius e o resto do meu círculo, além de Shaylin e Erik, se afastavam – teoricamente para fazer o que eu havia pedido. O que me deixou sozinha com Stark, Lenobia e Kalona.

– Pronta? – Stark me perguntou.

– Sim, é claro – eu menti.

– Então lá vamos nós para o ginásio – Lenobia disse.

Enquanto seguia Thanatos e Nicole, eu tentei me preparar para algo terrível, mas a minha cota de coisas terríveis já estava completa por aquela noite, e tudo o que eu conseguia fazer era enxugar a chuva do meu rosto e colocar um pé na frente do outro. Na verdade, eu não estava pronta para nada além de uma boa cama.

Estava quente e seco dentro do ginásio e havia um cheiro de fumaça. A areia sob os nossos pés estava úmida e suja. Dragon detestaria ver este lugar bagunçado assim, era o que eu estava pensando quando Kalona apontou para o centro da arena mal iluminada, onde eu só conseguia discernir os vultos de Thanatos e Nicole.

– Lá... Logo ali – ele falou.

– A gente devia ter acendido as tochas – Lenobia murmurou enquanto nós caminhávamos pela areia encharcada. – Os humanos apagaram quase todos os lampiões junto com o fogo do estábulo.

Eu não quis dizer nada, mas a verdade é que fiquei feliz que estava difícil de enxergar, pois eu sabia que, seja lá o que fosse aquilo em volta do qual Thanatos e Nicole estavam, não ia ser nada bonito de ver. Mas guardei esse pensamento para mim mesma e segurei na mão de Stark, tirando força do seu aperto firme.

– Olhem por onde andam – Thanatos disse quando nos aproximamos de onde ela e Nicole estavam, sem levantar os olhos, ajoelhada no chão do ginásio. – Há evidências de feitiço aqui. Quero tudo preservado e examinado para que eu possa descobrir quem é responsável por esta atrocidade.

Dei uma espiada por sobre o ombro dela, sem entender muito bem o que eu estava vendo. Um círculo tinha sido traçado na areia, que parecia estranha e escura do lado de dentro do círculo. Havia duas bolas de pelo no centro. Ao lado, palavras escritas na areia. Franzi os olhos, tentando decifrá-las.

– Que diabo é isso? – perguntei.

Os vampiros vermelhos enxergam muito melhor no escuro, então, quando Stark colocou seu braço em volta de mim, eu sabia que era algo ruim. Muito ruim. Antes que eu repetisse a minha pergunta, Nicole enfiou a mão no seu bolso e pegou seu telefone.

– Vou tirar uma foto com flash. Vai incomodar os seus olhos, mas pelo menos a foto vai sair.

Ela estava certa. No instante seguinte, eu estava piscando, lacrimejando e vendo pontinhos. Kalona, cuja visão imortal era menos suscetível aos efeitos da luz do que qualquer vampiro, disse solenemente:

– Isso é obra eu sei de quem. Vocês não conseguem sentir a presença dela ainda pairando por aqui?

A minha visão se clareou e eu me aproximei mais, apesar de Stark tentar me puxar para trás. Tarde demais, entendi para o que eu estava olhando.

– Shadowfax! Ele está morto!

– Sacrificado em um ritual macabro – Thanatos afirmou.

– E Guinevere também – Nicole acrescentou.

Achei que eu fosse vomitar.

– O gato de Dragon e a gata de Anastasia? Os dois foram mortos? – perguntei.

Thanatos estendeu o braço e gentilmente passou a mão na lateral do corpo de Shadowfax e depois na gata bem menor que estava encolhida ao lado dele.

– Esta gata pequena não foi sacrificada. Ela não tomou parte no ritual. A tristeza parou o seu coração e a sua respiração. – A Grande Sacerdotisa se levantou e voltou-se para Kalona. – Você disse que sabe de quem isso é obra.

– Eu sei, assim como você sabe. Neferet sacrificou a gata do guerreiro. Isso foi feito como pagamento. As Trevas a obedecem, mas o preço por essa obediência é sangue, morte e dor. Esse preço precisa ser pago sempre, sem parar. As Trevas nunca se dão por satisfeitas – ele apontou para as palavras escritas no chão. – Aquilo prova o que eu digo.

Naquela luz fraca, eu conseguia ver os corpos dos gatos, mas para mim era difícil entender as palavras ao lado deles. Não precisei perguntar o que significavam. Segurando-me bem perto dele, Stark leu em voz alta:

– Através do pagamento de sangue, dor e batalha, eu forço o Receptáculo a ser minha arma!

– Receptáculo é como Neferet se refere a Aurox – Kalona explicou.

– Ah, grande Deusa, isso prova mais do que o fato de isto aqui ser obra de Neferet – o olhar sombrio de Thanatos encontrou o meu. – A morte de sua mãe não foi simplesmente um sacrifício aleatório para as Trevas. Foi o pagamento exigido para a criação do Receptáculo, Aurox, a criatura de Neferet.

Senti minhas pernas fraquejarem e me aproximei ainda mais de Stark. Senti como se o braço dele fosse a única coisa que estivesse me mantendo em pé.

– Eu sabia que aquele maldito menino-touro não era boa coisa – Stark disse. – Nem ferrando que ele é algum tipo de presente de Nyx.

– O Receptáculo é o oposto disso. Ele é uma criatura feita de dor e de morte pelas Trevas e controlada por Neferet – Thanatos afirmou.

Eu não podia contar a eles o que eu tinha visto através da pedra da vidência. Como eu poderia, com os braços de Stark em volta de mim, Dragon recém-morto e a atrocidade cometida contra os gatos? Mas eu estava em carne viva – muito cansada, ferida e confusa para vigiar minhas palavras e não falar o nome de Heath sem querer. Então, em vez disso, como uma retardada, eu soltei:

– Tem que haver algo mais em Aurox além disso! Lembra quando ele foi fazer uma pergunta para você depois da aula? Ele queria saber quem ele era; o que ele era. Você disse que ele podia decidir isso por ele mesmo e que ele não devia deixar que o seu passado controlasse o seu futuro. Por que uma criatura feita totalmente de Trevas, alguém que não é nada além do Receptáculo de Neferet, iria se preocupar em perguntar qualquer coisa sobre si mesmo?

– Você tem razão. Eu lembro que Aurox veio falar comigo – Thanatos assentiu. Seu olhar se voltou para os corpos dos gatos. – Talvez Aurox não seja um receptáculo completamente vazio. Talvez a interação dele conosco e com você em particular, Zoey, tenha tocado algum pedaço de consciência dentro dele.

Senti uma onda de emoção que fez Stark me olhar de modo alarmado e questionador.

– Ele estava dizendo a verdade! – eu expliquei. – Hoje à noite, logo antes de fugir, Aurox disse: “Eu escolhi um futuro diferente. Eu escolhi um futuro novo”. Ele quis dizer que não queria machucar Rephaim nem Dragon, mas que não conseguia evitar, já que Neferet o controlava.

– Isso faz sentido – Thanatos concordou, falando devagar, como se estivesse abrindo caminho verbalmente por um labirinto. – O sacrifício do familiar de Dragon Lankford foi preciso porque Neferet estava perdendo o controle sobre o seu Receptáculo. Todos nós vimos Aurox se transformar de touro em garoto e depois começar a se transformar de novo em touro quando ele fugiu.

– Você também deve ter visto como ele ficou atordoado quando virou Aurox de novo e viu o que ele tinha feito com Dragon – eu disse.

– Isso não muda o fato de que Aurox matou Dragon – Stark afirmou. Eu senti a tensão que emanava dele e odiei perceber que o seu rosto tinha uma expressão severa.

– Mas e se ele só matou Dragon porque Neferet fez esse sacrifício horrível com Shadowfax? – perguntei, tentando fazer Stark enxergar que poderia haver mais de uma resposta certa.

– Zoey, isso não faz com que Dragon esteja menos morto – Stark respondeu, tirando o braço que estava ao meu redor e se afastando um pouco de mim.

– Nem faz com que Aurox seja menos perigoso – Kalona acrescentou.

– Mas talvez faça com que ele seja uma ameaça menor do que nós imaginávamos a princípio – Thanatos falou racionalmente. – Se Neferet precisa conduzir um ritual de sacrifício desta extensão a cada vez que quer controlá-lo, ela vai ter que escolher cuidadosamente e ser bem seletiva sobre quando e como usá-lo.

– Ele disse várias vezes que tinha escolhido um futuro diferente – eu insisti.

– Z., isso não faz de Aurox um cara do bem – Stark afirmou, balançando a cabeça para mim.

– Sabe, as pessoas podem mudar – Nicole de repente deu sua opinião. Todos nós olhamos surpresos para ela. Obviamente, eu não era a única que tinha esquecido que ela estava ali.

Eu odiava concordar com Nicole, então só mordi meu lábio, em silêncio e inquieta.

– Aurox não é uma pessoa, não é um cara nem do bem nem do mal – a voz profunda de Kalona ressoou como uma bomba no ginásio escuro, atordoando meus nervos já combalidos. – Aurox é um Receptáculo. Uma criatura feita para ser a arma de Neferet. Teria ele uma consciência e a capacidade de mudar? – ele deu de ombros. – Nós só podemos imaginar isso. E sinceramente, isso importa? Não faz diferença se uma lança tem consciência. O que importa é quem está manejando a arma. Neferet, claramente, está manejando Aurox.

– Há quanto tempo você sabe disso? – contra-ataquei Kalona. Stark estava me encarando como se eu estivesse sendo irracional, mas eu não me contive. Mesmo que eu não soubesse como contar a eles, eu acreditava que tinha visto de relance a alma de Heath dentro de Aurox através da pedra da vidência. – Se você sabia o que Aurox era, por que nunca disse nada até agora?

– Ninguém me perguntou – Kalona respondeu.

– Isso não justifica – eu falei, descarregando toda a minha raiva, frustração e confusão com o enigma Aurox/Heath em cima de Kalona. – O que mais você escondeu de nós?

– O que mais você quer saber? – ele respondeu sem hesitar. – Apenas pense bem, jovem Sacerdotisa, se você realmente quer ouvir as respostas para as perguntas que fizer.

– Você deveria estar do nosso lado, lembra? – Stark disse, colocando-se entre mim e Kalona.

– Eu me lembro de mais do que você imagina, vampiro vermelho – Kalona falou.

– O que você quer dizer com isso? – Stark rebateu.

– Isso significa que você não foi sempre todo bonzinho! – Nicole gritou.

– Não se atreva a falar dele! – atirei minhas palavras contra ela.

– De novo, vocês brigam uns com os outros! – Thanatos gritou, e a ira na sua voz agitou o ar à nossa volta. – A nossa inimiga cometeu atrocidades na nossa própria casa. Ela não matou apenas uma ou duas vezes, mas várias. Ela se aliou ao maior mal que este mundo já conheceu. E, ainda assim, vocês se atacam entre si. Se nós não somos capazes de nos unir, então ela já nos derrotou.

Thanatos balançou a cabeça com tristeza. Ela deu as costas para nós e se voltou para os dois gatos. A Grande Sacerdotisa se ajoelhou ao lado dos seus corpos e, mais uma vez, passou a mão suavemente sobre cada um deles. Desta vez, o ar acima dos gatos começou a emitir uma luz trêmula, e os contornos brilhantes de Shadowfax e Guinevere se materializaram – só que eles não eram os gatos adultos que jaziam imóveis e frios no chão da arena. Eles eram filhotes. Gatinhos gorduchos e adoráveis.

– Vão ao encontro da Deusa, pequeninos – Thanatos falou com eles afetuosamente. – Nyx e aqueles a quem vocês mais amam esperam por vocês. – O pequeno Shadowfax estendeu uma patinha felpuda para brincar com a manga de Thanatos que estava balançando no ar, até que os dois gatos desapareceram em um sopro de luz.

Eu podia jurar ter ouvido o som distante da risada musical de Anastasia, e imaginei que ela e Dragon deviam estar em êxtase recepcionando os seus gatinhos no Mundo do Além.

O Mundo do Além...

Minha mãe estava lá, junto com Dragon, Anastasia, Jack e, se eu estivesse errada sobre o que vi dentro de Aurox, Heath estava lá também... Eu havia estado lá. Eu sabia que o Mundo do Além existia com tanta certeza quanto sabia que eu existia. Eu também sabia que era um lugar mágico e incrível e, mesmo que aquela não fosse a minha hora de morrer e ficar lá, a beleza daquele lugar ainda permanecia na minha mente e na minha alma, formando uma espécie de bolha de maravilhas e segurança, que era completamente o oposto do que o mundo real em volta de mim tinha se tornado.

– Seria tão mal assim se nós perdêssemos?

Não percebi que eu havia falado em voz alta até Stark sacudir meu ombro.

– Do que você está falando, Z.? Nós não podemos perder porque Neferet não pode ganhar. As Trevas não podem vencer.

Eu podia ver a sua preocupação e sentir o seu medo. Eu sabia que eu o estava assustando, mas não consegui me conter. Eu estava tão incrivelmente cansada de tudo ser uma batalha entre as Trevas e a Luz, entre a morte e o amor. Por que tudo não podia simplesmente terminar? Eu daria qualquer coisa para que tudo isso simplesmente acabasse!

– Qual é a pior coisa que pode acontecer? – eu me escutei dizendo e depois continuei sem pensar, respondendo à minha própria pergunta. – Neferet vai nos matar. Bem, estar morto não parece tão terrível – indiquei com a mão a direção onde os gatos haviam se manifestado recentemente.

– Afe, desistir totalmente? – Nicole murmurou em voz baixa, em desgosto.

– Zoey Redbird, a morte está longe de ser a pior coisa que pode acontecer a qualquer um de nós – Thanatos afirmou. – Sim, as Trevas parecem extremamente poderosas agora, principalmente depois de tudo que nós descobrimos nesta noite, mas também existe amor e Luz aqui. Pense em quanta tristeza as suas palavras iriam trazer para Sylvia Redbird.

Senti uma onda de culpa. Thanatos estava certa. Havia coisas piores do que morrer, e essas coisas piores acontecem com as pessoas que se deixa para trás. Abaixei a cabeça e me aproximei de Stark, pegando sua mão.

– Sinto muito. Vocês estão certos. Eu nunca devia ter dito isso.

Thanatos sorriu gentilmente para mim.

– Volte para a sua estação. Reze. Durma. Encontre conforto e orientação nas palavras que Nyx falou para nós: “Guardem a lembrança da cura que aconteceu aqui nesta noite. Vocês vão precisar dessa força e dessa paz para a luta que está a caminho”. – Ela hesitou, deu um forte suspiro e acrescentou: – Você é tão jovem.

Eu queria gritar: Eu sei! Sou jovem demais para salvar o mundo! Em vez disso, fiquei parada ali em silêncio, sentindo-me tola e inútil, enquanto Thanatos se abaixava e recolhia os corpos de Shadowfax e Guinevere, envolvendo-os em uma de suas volumosas saias, segurando-os com delicadeza e ternura, como se eles fossem bebês adormecidos. Então ela fez um gesto para Kalona, dizendo:

– Venha comigo. Preciso dar a triste notícia da morte do Mestre da Espada para os Filhos de Erebus. Enquanto eu faço isso, comece a construir uma pira para Dragon e estes pequenos. No momento em que eu acender a pira, irei oficialmente proclamar você como o guerreiro da Morte. – Sem se dirigir a mim outra vez, Thanatos saiu do ginásio. Kalona a seguiu sem nem olhar de relance para mim e Stark.

– Enfim, o time de vocês é um saco – Nicole se afastou de nós também, balançando a cabeça.

Eu podia sentir o olhar de Stark em mim. A mão dele, entrelaçada à minha, parecia rígida. Levantei os olhos para ele, certa de que ele ia me chacoalhar, gritar comigo ou pelo menos perguntar que diabo estava havendo comigo. De novo.

Em vez disso, ele abriu os braços e disse:

– Venha cá, Z. – e ele simplesmente me deu amor.


4 Aurox

Aurox correu, sem saber ou se importar para onde o seu corpo o estava levando. Ele só sabia que tinha que fugir do círculo, e de Zoey, antes que ele cometesse outra atrocidade. Os seus pés, completamente transformados em cascos fendidos e demoníacos, rasgavam o solo fértil, transportando-o em uma velocidade sobre-humana através dos campos de lavanda adormecidos pelo inverno. Como o vento que batia no seu corpo, as emoções oscilavam dentro de Aurox.

Confusão – ele não queria machucar ninguém, mas mesmo assim tinha matado Dragon e talvez até Rephaim.

Raiva – ele tinha sido manipulado, controlado contra a sua vontade!

Desespero – jamais acreditariam que ele não tinha a intenção de machucar ninguém. Ele era uma besta, uma criatura das Trevas. O Receptáculo de Neferet. Todos iriam odiá-lo. Zoey iria odiá-lo.

Solidão – mesmo assim, ele não era o Receptáculo de Neferet. Não importava o que havia acontecido naquela noite. Não importava como ela tinha conseguido controlá-lo. Ele não pertencia, não iria pertencer a Neferet. Não depois de ver o que ele tinha visto esta noite... e de sentir o que ele havia sentido.

Aurox havia sentido a Luz. Apesar de ele não ter sido capaz de abraçá-la, ele havia compreendido a força de sua bondade no círculo mágico e reconhecido a sua beleza na invocação dos elementos. Até aqueles filamentos repugnantes controlarem a besta dentro dele, Aurox tinha assistido, fascinado, ao ritual comovente que havia culminado com a Luz limpando o toque das Trevas na terra e nele, apesar de a purificação que sentiu ter durado apenas um momento. Que foi o bastante para que Aurox percebesse o que havia feito. E então a raiva justa e o ódio compreensível que os guerreiros sentiram tomaram conta dele, e Aurox só teve humanidade suficiente para fugir e não matar Zoey.

Aurox encolheu os ombros e gemeu quando a transformação de besta em garoto novamente ondulou pelo seu corpo, deixando-o descalço e com o peito nu, vestido apenas com um jeans rasgado. Uma fraqueza terrível dominou o seu corpo. Trêmulo e respirando com dificuldade, ele diminuiu a velocidade, passando a caminhar de modo vacilante. A sua mente era uma batalha. Ele sentia ódio por si mesmo. Aurox vagou a esmo antes do amanhecer, sem saber ou se importar com onde ele estava, até que ele não pode mais ignorar as necessidades físicas do seu corpo e seguiu o cheiro e o barulho de água. Na beira de um riacho cristalino, Aurox se ajoelhou e bebeu, até que o fogo dentro dele estivesse saciado. E então, dominado pela exaustão e pelas emoções, ele desabou. Um sono sem sonhos finalmente venceu a batalha dentro dele, e Aurox adormeceu.

Aurox despertou com o som dela cantando. Era uma voz tão serena e relaxante que no começo ele nem abriu os olhos. A voz dela era cadenciada, como a batida do coração, mas foi algo além do seu ritmo que tocou Aurox. Foi a emoção que inundava a sua canção. Não que ele a sentisse do mesmo modo que acontecia quando canalizava emoções violentas para alimentar a metamorfose que transformava o seu corpo de garoto em uma besta. A emoção na canção vinha da própria voz dela – alegre, cheia de vida, agradável. Ele não sentiu essas coisas junto com ela, mas elas trouxeram para ele imagens de alegria e permitiram que uma possível felicidade tocasse em sua mente desperta. Aurox não conseguia entender nenhuma das palavras, mas ele não precisava. A voz dela se elevava, e isso transcendia qualquer linguagem.

Mais completamente desperto, ele quis ver a dona da voz. Quis questioná-la sobre alegria. Para tentar entender como ele poderia criar aquele sentimento por si próprio. Aurox abriu os olhos e se sentou. Ele havia desabado não muito longe da casa da fazenda, perto da margem do pequeno córrego. Era uma faixa sinuosa de água límpida que corria calmamente, musicalmente, sobre areia e pedras. O olhar de Aurox seguiu o curso do riacho, à sua esquerda, até onde a mulher estava, usando um vestido sem mangas, com longas franjas de couro decoradas com contas e conchas. Ela dançava graciosamente, acompanhando o ritmo da sua canção com os pés descalços. Apesar de o sol estar apenas se levantando no horizonte e de a manhã estar fria, ela estava corada, animada, cheia de energia. A fumaça do feixe de plantas secas na mão dela flutuava ao seu redor, aparentemente no mesmo ritmo da canção.

Apenas observá-la fez com que Aurox se sentisse melhor. Ele não precisou canalizar a alegria dela – a alegria era palpável ao seu redor. O espírito dele se elevou porque a mulher estava tão tomada pela emoção que ela transbordava. Ela jogou a cabeça para trás, e o seu longo cabelo prateado com fios negros tocou facilmente a sua cintura fina. Ela ergueu os braços nus, como que abraçando o sol nascente, e então começou a se mover em círculo, marcando o compasso com os pés.

Aurox estava tão envolvido pela canção que não reparou que ela estava se virando na sua direção, e que iria vê-lo, até que os olhos deles se encontraram. Então ele a reconheceu. Era a avó de Zoey, que havia ficado no centro do círculo na noite anterior. Ele esperou que ela ofegasse ou gritasse ao vê-lo de repente ali, no extenso gramado na beira do seu riacho. Em vez disso, a sua dança alegre terminou. A sua canção cessou. E ela falou com uma voz clara e calma:

– Eu o reconheço, tsu-ka-nv-s-di-na. Você é o transmorfo que matou Dragon Lankford na noite passada. Você também tentou matar Rephaim, mas não conseguiu. E você ainda arremeteu contra minha amada neta, como se pretendesse machucá-la. Você está aqui para me matar também? – Ela ergueu os braços de novo, inspirou profundamente o ar frio e puro da manhã e concluiu: – Se for assim, então eu vou dizer ao céu que meu nome é Sylvia Redbird e que hoje é um bom dia para morrer. Eu irei até a Grande Mãe para encontrar meus ancestrais com o espírito cheio de alegria.

Então ela sorriu para ele.

Foi o sorriso dela que o quebrou. Ele se sentiu despedaçar e, com uma voz trêmula que ele mal reconheceu como sua, Aurox respondeu:

– Eu não estou aqui para matá-la. Estou aqui porque não tenho nenhum outro lugar para ir.

E então Aurox começou a chorar.

Sylvia Redbird hesitou por apenas um instante. Através das suas lágrimas, Aurox a observou erguendo a cabeça de novo e assentindo, como se ela tivesse recebido a resposta para alguma pergunta. Então ela caminhou graciosamente até ele, com as longas franjas de couro do seu vestido farfalhando musicalmente com os seus movimentos e o toque da brisa fria da manhã.

Ela não hesitou quando chegou perto dele. Sylvia Redbird se sentou, cruzando seus pés descalços, e então colocou os braços em volta de Aurox, aconchegando a cabeça dele no seu ombro.

Aurox nunca soube quanto tempo eles ficaram sentados assim, juntos. Só sabia que, quando ele chorou de modo soluçante, ela o acalentou e o balançou suavemente, para a frente e para trás, cantando uma cantiga bem baixinho, dando tapinhas nas suas costas no mesmo ritmo do coração dela.

Finalmente, ele se afastou, desviando o rosto de vergonha.

– Não, meu filho – ela disse, segurando os ombros dele e forçando-o a encontrar o seu olhar. – Antes de se afastar, conte-me por que você estava chorando.

Aurox enxugou o rosto, limpou a garganta e, com uma voz que soou para ele muito jovem e tola, respondeu:

– É porque eu sinto muito.

Sylvia Redbird sustentou o seu olhar.

– E? – ela o estimulou a continuar.

Ele soltou um longo suspiro e admitiu:

– E porque eu estou muito sozinho.

Sylvia arregalou seus olhos negros.

– Você é mais do que parece ser.

– Sim. Eu sou um monstro das Trevas, uma besta – ele concordou com ela.

Os lábios dela se curvaram em um sorriso.

– Uma besta costuma chorar de tristeza? As Trevas têm a capacidade de sentir solidão? Acho que não.

– Então por que eu me sinto tão tolo por chorar?

– Pense nisto: o seu espírito chorou. Ele precisou desse pranto porque sentiu tristeza e solidão. É você quem deve decidir se isso é tolo ou não. De minha parte, já decidi que não é vergonha nenhuma ser encontrado chorando lágrimas honestas. – Sylvia Redbird se levantou e estendeu uma mão pequena e ilusoriamente frágil para ele. – Venha comigo, meu filho. Minha casa está aberta para você.

– Por que você faria isso? Na noite passada, você me viu matar um guerreiro e ferir outro. Eu também podia ter matado Zoey.

Ela inclinou a cabeça para o lado e o examinou com atenção.

– Podia mesmo? Acho que não. Ou, pelo menos, acho que o garoto que eu estou vendo neste momento não seria capaz de matá-la.

Aurox sentiu que os seus ombros desabaram.

– Mas só você acredita nisso. Ninguém mais vai acreditar.

– Bem, tsu-ka-nv-s-di-na, eu sou a única pessoa aqui com você neste momento. O fato de eu acreditar não basta?

Aurox enxugou o rosto de novo e se levantou, um pouco inseguro. Então ele pegou com muito cuidado a delicada mão dela.

– Sylvia Redbird, o fato de você acreditar é o bastante neste momento.

Ela apertou a mão dele, sorriu e disse:

– Pode me chamar de Vovó.

– Do que você me chamou, Vovó?

Ela sorriu.

– Tsu-ka-nv-s-di-na é a palavra que meu povo usa para dizer touro.

Ele sentiu uma onda de calor e depois de frio.

– A besta na qual eu me transformo é mais terrível do que um touro.

– Então talvez chamar você de tsu-ka-nv-s-di-na tire um pouco do horror daquilo que dorme dentro de você. Há poder em nomear as coisas, meu filho.

– Tsu-ka-nv-s-di-na. Vou me lembrar disso – Aurox afirmou.

Ainda se sentindo trêmulo, ele caminhou com a velha mulher mágica até a pequena casa de fazenda que ficava no meio de campos de lavanda adormecidos. Ela era feita de pedra e tinha uma ampla e convidativa varanda na entrada. Vovó o guiou até um sofá macio de couro e entregou a ele um cobertor feito à mão para colocar nos seus ombros. Então ela disse:

– Quero pedir que você descanse o seu espírito.

Aurox fez o que ela pediu, enquanto Vovó cantarolava uma canção para si mesma, acendia a lareira e fervia água para o chá. Depois ela encontrou e deu para ele um suéter e sapatos macios de couro que estavam em outro quarto. Quando a sala ficou aquecida e a canção dela cessou, Vovó fez um gesto para que ele se juntasse a ela em uma pequena mesa de madeira, oferecendo a ele a comida que estava em um prato de cor púrpura.

Aurox provou o chá adoçado com mel e comeu o que estava no prato.

– O-obrigado, Vovó – ele disse com voz trêmula. – A comida está boa. A bebida está boa. Tudo aqui é tão bom.

– O chá é de camomila e hissopo. Eu uso esse chá para me ajudar a ficar calma e focada. Os cookies são de uma receita minha: chocolate com um toque de lavanda. Sempre acreditei que chocolate e lavanda são bons para a alma – Vovó sorriu e mordeu um cookie. Eles comeram em silêncio.

Aurox nunca tinha se sentido tão satisfeito. Ele sabia que não fazia sentido, mas de algum modo ele teve uma sensação de pertencimento ali com aquela mulher. Foi essa estranha mas maravilhosa sensação de pertencimento que permitiu que ele começasse a falar com o seu coração.

– Neferet ordenou que eu viesse até aqui na noite passada. Eu deveria interromper o ritual.

Vovó assentiu. A expressão dela não era surpresa, mas contemplativa.

– Ela não queria ser descoberta como a assassina da minha filha.

Aurox a observou com atenção.

– A sua filha foi assassinada. Você assistiu ao registro disso na noite passada, mas ainda assim está serena e alegre hoje. Onde você encontra tanta paz?

– Aqui dentro – ela respondeu. – Essa paz também vem da crença de que há mais coisas funcionando aqui do que podemos ver ou provar. Por exemplo, no mínimo eu deveria temê-lo. Alguns diriam que eu deveria odiá-lo.

– Muitos diriam isso.

– Ainda assim, eu não temo nem odeio você.

– Você... você está me confortando. Dando-me abrigo. Por quê, Vovó? – Aurox perguntou.

– Porque eu acredito no poder do amor. Acredito na escolha da Luz em vez das Trevas, da alegria ao invés do ódio, da confiança ao invés do ceticismo – Vovó afirmou.

– Então isso não tem nada a ver comigo. É simplesmente porque você é uma pessoa boa – ele falou.

– Eu acho que ser uma pessoa boa nunca é muito simples, você não acha? – ela disse.

– Eu não sei. Nunca tentei ser uma boa pessoa – ele passou a mão pelo seu cabelo loiro e grosso, como um sinal de frustração.

Os olhos de Vovó se enrugaram quando ela sorriu.

– Nunca mesmo? Na noite passada, uma imortal poderosa ordenou que você interrompesse um ritual e mesmo assim, milagrosamente, o ritual foi completado. Como isso aconteceu, Aurox?

– Ninguém vai acreditar na verdade sobre isso – ele desabafou.

– Eu vou – Vovó o encorajou. – Conte-me, meu filho.

– Eu vim até aqui para seguir as ordens de Neferet: matar Rephaim e distrair Stevie Rae, para que o círculo fosse quebrado e o ritual não funcionasse, mas eu não poderia fazer isso. Eu não poderia quebrar algo que estava tão cheio de Luz, tão bom – ele falou com pressa, querendo botar a verdade para fora antes que Vovó o parasse. – Então as Trevas tomaram posse de mim. Eu não queria me transformar! Eu não queria que aquela criatura feito touro emergisse! Mas eu não consegui controlá-la e, quando ela se fez presente, só lembrava da sua última ordem: matar Rephaim. Foi só a onda de elementos e o toque da Luz que detiveram a besta o suficiente para que eu recuperasse algum controle e fugisse.

– Foi por isso que você matou Dragon. Porque ele tentou proteger Rephaim – ela concluiu.

Aurox concordou, abaixando a cabeça de vergonha.

– Eu não queria matá-lo. Eu não pretendia matá-lo. As Trevas controlaram a besta, e a besta me controlou.

– Mas não agora. A besta não está aqui agora – Vovó disse suavemente.

Aurox encontrou o olhar dela.

– Ela está. A besta sempre está aqui – ele apontou para o meio do seu peito. – Ela está eternamente dentro de mim.

Vovó cobriu a mão dele com a sua.

– Pode ser, mas você também está aqui. Tsu-ka-nv-s-di-na, lembre-se de que você controlou a besta o suficiente para fugir. Talvez isso seja um começo. Aprenda a confiar em si mesmo, e então os outros podem aprender a confiar em você.

Ele balançou a cabeça.

– Não, você é diferente de todos os outros. Ninguém vai acreditar em mim. Eles só vão enxergar a besta. Ninguém vai se importar o bastante para confiar em mim.

– Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.

Aurox piscou os olhos, surpreso. Ele não tinha pensado nisso. As emoções dele estavam em um turbilhão tão grande que ele nem tinha percebido a extensão dos atos de Zoey.

– Ela realmente me protegeu – ele disse devagar.

Vovó acariciou a mão dele.

– Não deixe que a crença dela em você seja desperdiçada. Escolha a Luz, meu filho.

– Mas eu já tentei e falhei!

– Tente de novo, esforce-se mais – ela falou com firmeza.

Aurox abriu a boca para protestar, mas os olhos de Vovó calaram as suas palavras. O olhar dela disse que as suas palavras eram mais do que uma ordem: era uma crença de que ele era capaz.

Ele abaixou a cabeça novamente. Desta vez não de vergonha, mas devido a um lampejo incerto de esperança. Aurox levou um momento para saborear esse novo e maravilhoso sentimento. Então, gentilmente, ele tirou sua mão debaixo das mãos de Vovó e se levantou. Em resposta ao olhar questionador dela, ele disse:

– Tenho que aprender como fazer para provar que você está certa.

– E como você vai fazer isso, meu filho?

– Preciso encontrar a mim mesmo – ele falou sem hesitação.

Ela deu um sorriso afetuoso e iluminado. Inesperadamente, aquele sorriso o lembrou de Zoey, o que fez com que aquele lampejo incerto de esperança se expandisse até aquecer o seu interior.

– Aonde você vai? – ela quis saber.

– Aonde eu possa fazer o bem – ele respondeu.

– Aurox, meu filho, saiba que, desde que você controle a besta e não mate de novo, sempre pode encontrar abrigo aqui comigo.

– Nunca vou me esquecer disso, Vovó.

Quando ela o abraçou perto da porta, Aurox fechou os olhos e inspirou o aroma de lavanda e o toque de amor de uma mãe. Aquele aroma e aquele toque permaneceram com ele enquanto dirigia devagar de volta para Tulsa.

Aquele dia de fevereiro estava claro e, como o homem no rádio havia dito, quente o bastante para os carrapatos começarem a acordar. Aurox estacionou o carro de Neferet em uma das vagas da parte dos fundos da Utica Square, e então ele deixou que o seu instinto guiasse os seus passos enquanto caminhava do movimentado centro de compras até a rua detrás, chamada South Yorktown Avenue. Aurox sentiu o cheiro de fumaça antes de chegar ao grande muro de pedra que circundava a Morada da Noite.

Esse fogo é obra de Neferet. Tem o cheiro desagradável das Trevas que emanam dela, Aurox pensou. Ele não se permitiu imaginar o que aquele fogo podia ter destruído. Ele se concentrou em apenas seguir o seu instinto, que estava dizendo que ele deveria voltar para a Morada da Noite para encontrar a si mesmo e a sua redenção. O coração de Aurox estava batendo forte quando ele passou por ali despercebido e entrou nas sombras do muro, aproximando-se de modo rápido e silencioso da fronteira leste da escola. Então ele chegou perto de um velho carvalho que havia sido partido ao meio tão violentamente que uma parte dele estava apoiada contra o muro da escola.

Foi realmente fácil escalar o muro, agarrar os galhos desfolhados pelo inverno da árvore despedaçada e então aterrissar no chão do outro lado. Aurox se agachou na sombra da árvore. Como ele esperava, a luminosidade do sol havia esvaziado os jardins da escola, mantendo novatos e vampiros dentro dos edifícios de pedra, atrás de janelas com cortinas escuras. Ele deu a volta na base partida da árvore, analisando a Morada da Noite.

Era o estábulo que havia pegado fogo. Ele podia ver isso facilmente. Parecia que o incêndio não tinha se alastrado, apesar de ter deixado uma parede externa do estábulo no chão. Aquela abertura avariada já havia sido coberta com uma grossa lona preta. Aurox se encostou mais na árvore. Escolhendo cuidadosamente o seu caminho por entre os fragmentos espalhados da base quebrada da árvore e da confusão de galhos emaranhados, Aurox se perguntou por que ninguém tinha pensado em tirar aqueles escombros do outrora bem cuidado jardim. Mas ele não teve tempo de pensar muito nisso. Um corvo enorme de repente pousou em um galho inclinado bem na frente dele e começou uma série terrível e bem alta de grasnados e pios estranhamente perturbadores.

– Vá embora! Suma daqui! – Aurox sussurrou, fazendo barulhos para enxotar a grande ave, o que só fez com que a criatura explodisse em mais grasnados. Aurox se lançou na direção do corvo, com a intenção de sufocá-lo, mas seus pés ficaram presos em uma raiz exposta. Ele caiu para a frente, batendo no chão com força. Para o seu espanto, ele continuou caindo quando a terra se abriu embaixo dele, com o peso do seu corpo, e ele foi arremessado de ponta-cabeça para baixo, e foi caindo, caindo...

Até que Aurox sentiu uma dor terrível no lado direito da cabeça, e então o seu mundo ficou escuro.


5 Zoey

Eu havia adormecido aconchegada nos braços de Stark, então foi totalmente confuso acordar com ele me sacudindo, fuzilando-me com os olhos e quase gritando: “Zoey! Acorde! Pare com isso! Estou falando sério!”.

– Stark? Ahn? – eu me sentei, desalojando Nala, que havia se transformado em um donut laranja e gordo em cima do meu quadril. “Miiaaauuu!”, Nala resmungou e caminhou até a ponta da cama. Olhei para a minha gata e para o meu guerreiro: ambos estavam me encarando como se eu tivesse cometido um assassinato em massa. – O que foi? – falei em meio a um grande bocejo. – Eu só estava dormindo.

Stark pegou seu travesseiro e o estufou para ficar mais sentado na cama. Ele cruzou os braços, balançou a cabeça e desviou os olhos de mim.

– Acho que você estava fazendo muito mais do que apenas dormir.

Eu quis estrangulá-lo.

– Sério, o que há com você? – perguntei.

– Você disse o nome dele.

– O nome de quem? – fechei os olhos, tendo um flashback com aquele velho filme assustador chamado Vampiros de Almas 2 e me perguntando se Stark tinha se transformado em uma réplica alienígena dele mesmo.

– Do Heath! – Stark franziu a testa para mim. – Três vezes. Isso me acordou. – Ainda sem olhar para mim, ele disse: – Com o que você estava sonhando?

O que ele falou me deixou totalmente chocada, provocando uma batalha mental em mim. Com que diabo eu estava sonhando? Pensei no que tinha acontecido mais cedo. Lembrei de Stark me beijando antes de eu ir dormir. Lembrei que o beijo foi supergostoso, mas eu estava muito cansada e, em vez de fazer algo além de retribuir o beijo, tinha encostado a cabeça no ombro dele e desmaiado. Depois disso, eu não me lembrava de mais nada, até ele começar a me chacoalhar e a gritar comigo para que eu parasse.

– Não tenho a menor ideia – respondi honestamente.

– Você não precisa mentir para mim.

– Stark, eu não mentiria para você – afastei meu cabelo do rosto e toquei no braço dele. – Eu não me lembro de ter sonhado com nada.

Então ele olhou para mim. Os seus olhos estavam tristes.

– Você estava chamando Heath. Eu estou dormindo bem aqui ao seu lado, mas você estava chamando por ele.

O jeito com que ele falou me deu um aperto no coração. Eu detestava tê-lo magoado. Eu podia ter dito que era ridículo ele ficar bravo comigo por algo que eu tinha falado quando estava dormindo, algo de que eu nem me lembrava. Mas, ridícula ou não, a mágoa de Stark era real. Deslizei a minha mão para dentro da dele.

– Ei – eu disse baixinho. – Sinto muito.

Ele entrelaçou seus dedos aos meus.

– Você queria que ele estivesse aqui em vez de mim?

– Não – afirmei. Eu amava Heath desde que eu era criança, mas eu não trocaria Stark por ele. É claro que o resto da verdade era que, se fosse Stark quem tivesse sido assassinado, eu também não trocaria Heath por ele. Mas definitivamente aquilo era algo que Stark não precisava ouvir, nem agora nem nunca.

Amar dois caras era uma coisa confusa, mesmo quando um dos dois estava morto.

– Então você não estava chamando por Heath porque queria estar com ele em vez de mim?

– Eu quero você. Prometo – eu me inclinei para a frente e ele abriu os braços para mim. Eu me encaixei perfeitamente contra o peito dele e inspirei o seu cheiro familiar.

Ele beijou o topo da minha cabeça e me abraçou.

– Sei que é idiota ter ciúmes de um cara morto.

– É – falei.

– Especialmente porque na verdade eu gostava do cara morto.

– Pois é – concordei.

– Mas nós pertencemos um ao outro, Z.

Eu me inclinei para trás para poder olhar nos olhos dele.

– Sim – eu disse seriamente –, nós pertencemos. Por favor, nunca se esqueça disso. Não importa quanta loucura estiver rolando ao redor de nós... Eu posso lidar com isso, mas preciso saber que o meu guerreiro está do meu lado.

– Sempre, Z. Sempre – ele afirmou. – Eu te amo.

– Eu também te amo, Stark. Sempre – então eu o beijei e mostrei para ele que absolutamente não havia motivo algum para ele ter ciúme de ninguém. E, pelo menos por um tempinho, deixei que o calor do amor dele afugentasse a lembrança do que eu tinha visto quando olhei através da pedra da vidência naquela noite...

Da próxima vez que despertei, foi porque eu estava quente demais. Ainda estava nos braços de Stark, mas ele tinha se mexido um pouco e atirado sua perna por cima de mim, fazendo de mim um casulo com meu cobertor azul e felpudo. Desta vez, ele não estava dando uma de Namorado Louco. Ele estava fofo, dormindo como um garotinho.

Como sempre, Nala tinha feito sua cama no meu quadril, então antes que ela resmungasse eu a levantei um pouco, deslizando junto com ela para o lado mais frio da cama o mais silenciosamente possível. Totalmente adormecido, Stark fez um movimento vago com a sua mão da espada, como que estendendo o braço para me defender. Eu me concentrei em pensamentos felizes – refrigerante marrom, sapatos novos, gatinhos que não espirravam no meu rosto – e ele relaxou.

Tentei relaxar também – para valer. Nal me encarou. Cocei atrás da orelha dela e sussurrei:

– Desculpe por acordá-la. De novo.

Ela esfregou a cara no meu queixo, espirrou em mim e pulou de volta em cima do meu cobertor azul e felpudo. Então ela girou três vezes em círculo e voltou a ser um donut adormecido de pelos.

Suspirei. Eu precisava fazer como Nala, ficar encolhida e voltar a dormir, mas a minha mente estava desperta demais. E junto ao fato de estar desperta vinha o ato de pensar. Depois que fizemos amor, Stark havia murmurado meio sonolento:

– Nós estamos juntos. Todo o resto vai se resolver.

E eu tinha adormecido sentindo-me segura de que ele estava certo.

Mas agora que, infelizmente, eu estava totalmente consciente, não conseguia evitar aquela coisa toda de pensar demais e me preocupar demais. Apesar de eu supor que, se Stark soubesse o que eu imaginei ter visto através da pedra da vidência na noite passada, ele iria retirar aquele comentário de “todo o resto vai se resolver” e voltar ao papel de Senhor Tenho Ciúme de um Cara Morto.

Coloquei minha mão em cima da pequena pedra arredondada que pendia de uma fina corrente de prata em volta do meu pescoço e balançava inocentemente entre os meus seios. Parecia normal – como qualquer outro colar que eu poderia ter usado. Ela não estava irradiando nenhum calor estranho. Eu a tirei de debaixo da minha camiseta e a ergui devagar. Inspirei profundamente para me fortificar e dei uma olhada em Stark através da pedra.

Nada estranho aconteceu. Stark continuou sendo Stark. Virei o colar um pouco e olhei para Nala. Ela continuou sendo uma gata adormecida gorda e alaranjada.

Coloquei a pedra da vidência de novo embaixo da minha camiseta. E se eu tivesse imaginado tudo aquilo? Como Heath poderia estar em Aurox? Até Thanatos disse que Aurox tinha sido criado pelas Trevas através do sacrifício da minha mãe. Ele era um Receptáculo – uma criatura sob o controle de Neferet.

Mas ela precisou matar Shadowfax para controlá-lo totalmente, e Aurox tinha feito aquelas perguntas sobre o que ele realmente era para Thanatos.

Ok, mas alguma dessas coisas fazia diferença? Aurox não era Heath. Heath estava morto. Ele havia partido para um reino mais distante do Mundo do Além para o qual eu não pude ir porque Heath estava morto.

Refletindo a minha inquietação, Stark se remexeu, franzindo a testa em seu sono. A gata Nala rosnou de novo. Eu não queria de jeito nenhum que eles acordassem, então saí da cama em silêncio e andei nas pontas dos pés para fora do quarto, abaixando-me para passar embaixo do cobertor que Stark e eu usávamos como porta.

Refrigerante marrom. Eu precisava seriamente de uma dose de refrigerante marrom. Talvez eu tivesse sorte e encontrasse um pouco de cereal Count Chocula e um resto de leite que não estava azedo. Hum, só de pensar nisso eu me senti um pouco melhor. Eu realmente merecia um pouco do cereal que eu tanto amava no café da manhã.

Fui arrastando os pés pelo túnel mal iluminado, passando por corredores menores e outras portas fechadas com cobertores, atrás das quais meus amigos descansavam enquanto aguardávamos o sol se pôr. Até que entrei na área comum que usávamos como cozinha. O túnel meio que acabava ali, abrindo espaço para algumas mesas, laptops e geladeiras grandes.

– Deve ter sobrado um pouco de refrigerante marrom por aqui – murmurei para mim mesma, enquanto eu vasculhava a primeira geladeira.

– Tem na outra geladeira.

Dei um gritinho idiota e pulei de susto.

– Afe, Shaylin! Não fique espreitando pelos cantos assim. Você quase me fez fazer pipi nas calças.

– Desculpe, Zoey – ela foi até a segunda das três geladeiras e pegou uma lata de refrigerante marrom não diet, totalmente cheio de açúcar e cafeína, e o estendeu para mim com um sorriso de desculpas.

– Você não deveria estar dormindo? – sentei na cadeira mais próxima e dei um gole no meu refrigerante, tentando não parecer tão mal-humorada quanto eu estava.

– É, bem, eu estou cansada sim. Posso sentir que o sol não se pôs ainda, mas estou com muita coisa na cabeça. Entende o que quero dizer?

Bufei ligeiramente.

– Entendo perfeitamente o que você quer dizer.

– A sua cor está meio que desligada – Shaylin fez esse comentário de um jeito indiferente, como se ela tivesse acabado de falar algo tão normal quanto mencionar a cor da minha camiseta.

– Shaylin, na verdade eu não entendo muito bem sobre essa coisa de cor que você costuma falar.

– Eu também não sei muito bem o quanto entendo. Tudo o que sei é o que vejo e, se não penso muito sobre isso, normalmente faz sentido para mim.

– Ok, dê um exemplo de como isso normalmente faz sentido para você.

– Isso é fácil. Vou usar você como meu exemplo. As suas cores não mudam muito. Na maior parte do tempo, você é roxa com pontinhos prateados. Mesmo quando você estava se preparando para ir ao ritual na fazenda de sua avó, e sabia que isso seria algo difícil de assistir, as suas cores permaneceram as mesmas. Eu conferi porque... – ela perdeu a fala.

– Você conferiu porque... – eu a incentivei a continuar.

– Porque eu estava curiosa. Eu conferi as cores de todos antes de vocês saírem, mas, bem, acabei de perceber como isso soa invasivo.

Franzi minha testa para ela.

– Isso não é como se você estivesse lendo nossas mentes nem nada parecido. Ou é?

– Não! – ela me assegurou. – Mas quanto mais passa o tempo em que eu tenho essa coisa da Visão Verdadeira, e quanto mais eu pratico, mais real isso fica para mim. Zoey, eu acho que isso me diz coisas sobre as pessoas, coisas que às vezes elas preferem esconder.

– Como Neferet. Você disse que por dentro ela tem cor de olho de peixe morto, e por fora ela é deslumbrante.

– Sim, exato. Mas também como o que eu estou vendo em você. Mas, como Kramisha diria, eu não devo me meter onde não fui chamada.

– Por que você não me conta o que está vendo em mim, e depois eu digo se acho que você está se metendo onde não foi chamada ou não?

– Bem, desde que você voltou do ritual na fazenda de sua avó, as suas cores estão mais escuras – ela fez uma pausa e me encarou. Então ela balançou a cabeça e se corrigiu: – Não, isso não é totalmente preciso. As suas cores não estão apenas mais escuras, elas estão mais turvas. Como se o roxo e o prata tivessem sido misturados e cobertos de lama.

– Ok – falei devagar, começando a entender o que ela quis dizer com violação. – Entendi que você vê uma diferença em mim, e isso é meio estranho, principalmente porque você falou que minhas cores não costumam mudar. Mas o que isso significa para você?

– Ah, sim, desculpe. Acho que significa que você está confusa com alguma coisa, com algo sério. Isso está incomodando você. Realmente mexendo com a sua cabeça. É mais ou menos por aí?

Concordei com a cabeça.

– É mais ou menos por aí.

– E você se sente estranha por eu saber disso?

Assenti novamente.

– É, um pouco – pensei por um instante nisso e então acrescentei: – Mas aí vai a verdade: eu me sentiria menos estranha se soubesse que posso confiar que você não vai tagarelar para todo mundo que as minhas cores estão turvas e que eu estou realmente confusa com algo. Isso sim seria violação.

– Sim – ela soou triste. – Foi o que pensei também. Quero que você saiba que pode confiar em mim. Nunca fui fofoqueira. Além disso, esse dom que Nyx me deu quando fui Marcada, bem, é totalmente incrível. Zoey, eu posso ver novamente – Shaylin parecia que ia explodir em lágrimas. – Não quero estragar tudo. Vou usar esse dom do modo que Nyx quer que eu use.

Percebi que ela estava bastante perturbada e me senti mal por ela – principalmente por eu ter algo a ver com o fato de ela estar perturbada.

– Ei, Shaylin, está tudo bem. Eu entendo como é ter um dom pelo qual você sente uma grande responsabilidade e como é não querer estragar tudo. Caramba, você está falando com a Rainha de Meter os Pés pelas Mãos. – Fiz uma pausa e então acrescentei: – Isso é parte do motivo pelo qual estou confusa agora. Eu não quero tomar mais uma decisão errada, idiota e imatura. O que eu faço e digo afeta muito mais gente do que apenas eu. Quando tomo decisões ridículas, é como aquelas peças de dominó caindo uma atrás da outra. Novatos, vampiros e humanos, todos podem se ferrar. Isso é péssimo, mas não muda o fato de que eu realmente tenho um dom de Nyx e que sou responsável pelo modo como esse dom é usado.

Shaylin pensou um pouco no que falei, e eu dei um gole no meu refrigerante. Na verdade, eu estava gostando de conversar com ela. Era infinitamente melhor do que ficar quebrando a cabeça com Aurox, Heath, Stark, Neferet e...

– Ok, mas o que fazer nesta situação? – Shaylin interrompeu meus pensamentos. – O que fazer se eu vir as cores de uma pessoa mudarem? É minha responsabilidade contar isso para alguém... alguém como você?

– O que você quer dizer? Tipo, chegar para mim e falar: “Ei, Zoey, as suas cores estão todas turvas. O que está rolando?”?

– Bem, talvez, mas só se nós formos amigas. Mas eu estava pensando mais em algo como o que aconteceu hoje, quando eu vi Nicole. As cores dela eram como as do resto do grupo de Dallas: feito sangue misturado com tons de marrom e preto. Como algo sangrando no meio de uma tempestade de areia. Na noite passada, no estábulo, as cores dela tinham mudado. Ainda havia um vermelho enferrujado ali, mas parecia mais claro, mais brilhante, não no mau sentido. Mais como se estivesse ficando mais limpo. É estranho, mas juro que vi um pouco de azul nela. Mas não como o azul do céu. Mais como o mar. Foi isso que me fez pensar que o lado mau dela pode estar desaparecendo e, depois que pensei isso, senti que estava certa.

– Shaylin, o que você está dizendo é realmente confuso – afirmei.

– Não, para mim não é! Está ficando cada vez menos confuso. Eu simplesmente sei as coisas.

– Eu entendi e acredito que você está dizendo a verdade. O problema é que o seu saber é tão subjetivo. É como se você estivesse transformando a vida em uma prova, e as pessoas fossem as respostas, mas, em vez de as suas pessoas-respostas serem alternativas tipo verdadeiro ou falso, onde é fácil julgar se o que você captou é certo ou errado, elas são respostas dissertativas. E isso significa que o seu resultado pode variar dependendo de muitas coisas diferentes. Nada é preto ou branco – suspirei. Minha própria analogia estava fazendo minha cabeça doer.

– Mas, Zoey, a vida não é preto no branco ou verdadeiro e falso, nem as pessoas – ela deu um gole no seu refrigerante, o qual eu percebi que era claro. Fiquei pensando que eu realmente não entendia o refrigerante claro: não tinha cafeína e nunca parecia doce o bastante. Então ela continuou: – Mas eu entendo o que você está tentando dizer. Você acredita que eu vejo as cores das pessoas. Você só não acredita no julgamento que eu faço delas.

Eu comecei a negar e a dizer algo que iria fazer com que ela se sentisse melhor, mas um aperto dentro de mim me fez mudar de ideia. Shaylin precisava escutar a verdade.

– Sim, basicamente é isso.

– Bem – ela disse, endireitando os ombros e levantando o queixo –, eu acho que o meu julgamento é bom. Acho que ele está ficando cada vez melhor, e quero usar meu dom para ajudar. Eu sei que uma batalha está a caminho. Ouvi falar sobre o que Neferet fez com a sua mãe e sobre como ela escolheu as Trevas em vez da Luz. Você vai precisar de alguém como eu. Consigo ver o interior das pessoas.

Ela estava certa. Eu realmente precisava do dom dela, mas também precisava saber que podia confiar no seu julgamento.

– Ok, então vamos começar. Que tal você manter os olhos bem abertos? Conte-me se você vir a cor de alguém mudando.

– O primeiro caso que eu quero reportar é o de Nicole. Erik me contou sobre ela. Sei que ela foi realmente do mal no passado. Mas a verdade está nas cores dela, e elas dizem que ela está mudando.

– Está certo. Vou me lembrar disso – levantei as sobrancelhas para ela. – E por falar em se lembrar das coisas... Não quero ser maldosa nem nada parecido, mas você precisa ficar de olho em Erik. Ele não é sempre...

– Ele é arrogante e egoísta – ela me interrompeu, encontrando o meu olhar sem se alterar. – Ele se acha muito, por saber como é gostoso e talentoso. A vida tem sido fácil para ele, mesmo depois de você ter terminado com ele.

– Ele contou para você que eu terminei com ele? – não sabia dizer se ela estava sendo maliciosa ou não. Não parecia que ela estava sendo, mas, de novo, eu não a conhecia muito bem. Mas realmente eu tinha a impressão de que, toda vez que eu a via, eu via Erik. Não que me importasse. Sério. Não era ciúme. Era mais que eu me sentia responsável por adverti-la sobre ele.

– Ele não precisou me contar. Tipo, um bilhão de outros garotos fez isso antes dele – ela respondeu.

– Eu não tenho nenhum ressentimento em relação a Erik. Quero dizer, ele pode ficar com quem ele quiser. Se você gosta dele, por mim não tem problema nenhum – percebi que estava tendo um surto de diarreia verbal, mas eu não conseguia parar de falar. – E ele também não quer mais nada comigo. Acabou mesmo. Só que Erik é...

– É um cuzão – a voz de Aphrodite me salvou. Ela passou por nós bocejando e enfiou a cabeça em uma das geladeiras. – E agora você ouviu isso de duas ex-namoradas dele. Sendo que “ex” é a parte mais importante da frase – ela veio até a mesa e colocou na frente da cadeira vazia ao meu lado uma jarra de suco de laranja e uma garrafa, que eu imaginei ser um champanhe supercaro. – É claro que Z. não o chamou de cuzão. Ela estava sendo gentil – enquanto falava, Aphrodite voltou para a geladeira e abriu o freezer. Ouvi um barulho de vidro tinindo. Quando ela voltou para a mesa, estava segurando uma taça de cristal gelada, daquelas compridas e finas em que as pessoas bebem nas festas de Ano Novo na TV. – Já eu não sou tão gentil. Cu-zão. Esse é o nosso Erik – ela estourou a rolha da garrafa, derramou um pouquinho de suco de laranja na taça e então a encheu quase até transbordar com champanhe borbulhante. Ela abriu um sorriso para a taça e falou: – Mimosa ou, como diria minha mãe, o café da manhã dos campeões.

– Eu sei o que Erik é – Shaylin afirmou. Ela não pareceu irritada. Ela também não pareceu agradecida. Ela soou segura de si. – Eu também sei o que você é.

Aphrodite levantou uma sobrancelha loira para ela e deu um bom gole na sua Mimosa.

– Conta aí.

Oh-oh, pensei. Eu supunha que devia fazer algo para impedir o que estava para acontecer, mas era como estar parada em um trilho de trem tentando empurrar um carro para fora do caminho. Era mais provável que eu acabasse sendo atropelada pelo trem do que conseguisse salvar o carro. Então, em vez disso, fiquei olhando com cara de tonta e bebendo meu refrigerante.

– Você é prateada. Isso me lembra a luz da lua, o que me diz que você foi tocada por Nyx. Mas você também é amarela cor de manteiga, como a luz de uma pequena vela.

– E isso diz o que para você? – Aphrodite examinou as suas próprias unhas bem cuidadas, claramente sem se importar com a resposta de Shaylin.

– Isso me diz que, como uma pequena vela, você pode ser apagada facilmente.

Os olhos de Aphrodite se estreitaram e ela espalmou a mão contra a mesa.

– Já chega, garotinha nova. Eu já tenho passado por muita coisa, com toda essa merda de batalha contra as Trevas, para ter que aturar a sua boca mole ou a sua atitude de sabe-tudo – parecia que ela estava se preparando para avançar no pescoço de Shaylin. Eu estava pensando em correr para tentar encontrar Darius quando Stevie Rae surgiu na cozinha.

– E aí, pessoal! Bom dia! – ela disse e deu um grande bocejo. – Cara, estou cansada. Será que tem alguma lata de Mountain Dew na geladeira?

– Ah, que merda, agora não é de manhã. O sol já vai se pôr. E por que diabo está todo mundo acordado? – Aphrodite atirou as mãos para cima.

Stevie Rae franziu a testa para ela.

– É educado dizer “bom-dia” para as pessoas, mesmo que isso não seja tecnicamente correto. E eu gosto de acordar cedo. Não há nada de errado nisso.

– Ele é um pássaro! – Aphrodite falou, servindo-se de mais champanhe.

– Você já está bebendo?

– Sim. Quem é você? Uma versão caipira da minha mãe?

– Não, se eu fosse uma versão de sua mãe, eu não ia ligar para o fato de você beber no café da manhã, já que a sua mãe realmente tem problemas – Stevie Rae colocou a lata de Mountain Dew de volta na geladeira. – E agora que eu pensei nisso, tomar refrigerante no café da manhã provavelmente também não é uma boa ideia. Aposto que tem uma caixa de Lucky Charms por aqui em algum lugar.

– Esse cereal é magicamente delicioso – Shaylin comentou. – Se você encontrar, vou querer um pouco também.

– Count Chocula – como parecia que Aphrodite não ia matar ninguém (no momento), minha voz voltou a funcionar. – Se você vir uma caixa, eu quero.

– Que diabo há de errado com Mimosas? – Aphrodite estava dizendo. – Suco de laranja combina com café da manhã.

– E a parte do champanhe? É álcool – Stevie Rae argumentou.

– É Veuve Clicquot rosé. Isso significa champanhe bom, o que cancela a parte do álcool – Aphrodite afirmou.

– Você acredita mesmo nisso? – Shaylin perguntou.

Olhando para mim e claramente ignorando Shaylin, Aphrodite falou:

– O que é que está falando comigo?

– Estou com dor de cabeça e a gente ainda nem foi para a escola – eu disse para Aphrodite.

– O estábulo quase foi destruído pelo fogo e a nossa Grande Sacerdotisa foi expulsa por ser uma semideusa assassina. Acho que todos nós podemos faltar na aula hoje – Aphrodite sugeriu.

– Nananina – Stevie Rae rebateu. – Nós temos que ir para a escola por causa disso tudo. Thanatos vai precisar de nós. Além disso, vai haver a cerimônia da pira funerária para Dragon. Isso vai ser difícil, mas a gente precisa estar lá nessa hora.

Aquilo calou Aphrodite. Ela continuou a beber, enquanto Stevie Rae serviu um pouco de Lucky Charms (um cereal inferior a Count Chocula, apesar de ter marshmallows) para si mesma e para Shaylin, e todas nós ficamos um pouco melancólicas.

– Vou sentir falta de Dragon – falei. – Mas é muito legal que ele está com Anastasia de novo. E o Mundo do Além é incrível. Mesmo.

– Vocês realmente viram os dois se reencontrando, não viram? – Shaylin quis saber, com olhos arregalados.

– Todos nós vimos – eu respondi, sorrindo.

– Foi lindo – Stevie Rae comentou, fungando e enxugando os olhos.

– É – Aphrodite disse baixinho.

Shaylin limpou a garganta.

– Olha só, Aphrodite, eu não queria ter sido tão maldosa antes. O que eu falei foi errado. Eu não devia usar o meu dom dessa forma. Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua, mas isso não quer dizer que você vai se apagar. É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Aqui vai a verdade: essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Portanto, desculpe.

Aphrodite voltou seus olhos azuis e frios para Shaylin e disse:

– Ponha a loção no cesto.

– Ah, cara – eu falei. – Aphrodite, apenas tome o seu café da manhã. Shaylin, esse é um bom exemplo daquilo que a gente estava conversando antes. Eu não questiono o seu dom. Não duvido dele. Mas eu realmente tenho um pé atrás com o seu bom senso em decifrá-lo.

– Eu decifro o meu dom perfeitamente – Shaylin respondeu, soando incomodada e na defensiva. – Mas Aphrodite me tirou do sério. Então eu cometi um erro. Já pedi desculpas.

– Desculpas não aceitas – Aphrodite falou e deu as costas para Shaylin.

Foi nessa hora que Damien entrou apressado na cozinha, segurando o seu iPad – e parecendo mais descabelado do que normalmente ficava, depois do que ele gostava de chamar de seu “período de rejuvenescimento de beleza”. Ele veio direto até mim, ergueu o iPad e disse:

– Vocês têm que assistir a isso.

No começo, eu estava só ligeiramente curiosa quando vi a âncora do telejornal da noite do canal Fox23, a totalmente deslumbrante Chera Kimiko, falando. Nós adorávamos a Chera. Ela não só era bonita no nível de um vampiro como era também uma pessoa real, ao contrário dos âncoras tipo cabeças falantes de plástico que normalmente aparecem.

Aphrodite espiou por sobre o meu ombro para o iPad de Damien.

– Kimiko é clássica. Nunca vou me esquecer daquela vez em que ela cuspiu o chiclete bem no meio da notícia. Pensei que meu pai ia ficar...

– Chera é ótima, mas isto é péssimo – Damien a cortou. – E grave. Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa.

Ah, que inferno...


6 Zoey

Todos nós nos amontoamos em volta do iPad de Damien. Ele clicou no “Play” e o vídeo da Fox23 começou. A parte de baixo da tela trazia a legenda: CAOS NA MORADA DA NOITE DE TULSA? Então a tela foi preenchida por Neferet e um monte de caras de terno. Ela estava em pé em algum lugar realmente bonito, cheio de mármore e art déco . Senti que eu quase reconhecia aquele lugar. A voz de Chera Kimiko estava falando em off.

– Vampiros e violência? Você ficaria surpreso com quem está afirmando isso. A Fox23 traz uma reportagem exclusiva esta noite com uma ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa.

Um comercial idiota começou e, enquanto Damien tentava adiantá-lo, eu disse:

– Pela imagem parece que ela está em algum lugar no centro da cidade.

– É o lobby do edifício Mayo – Aphrodite falou de forma lacônica. – E aquele na frente dela é o meu pai.

– Aiminhadeusa! – os olhos de Stevie Rae ficaram gigantes e redondos. – Ela está dando uma entrevista coletiva junto com o prefeito?

– E com alguns vereadores. São os outros caras de terno que estão com ela – Aphrodite explicou.

Então o vídeo começou e todos nós ficamos calados e assistindo embasbacados.

– Eu estou aqui para romper meus laços oficial e publicamente com a Morada da Noite de Tulsa e o Conselho Supremo dos Vampiros – de algum modo, Neferet conseguia parecer régia e vítima ao mesmo tempo.

– Ela é tão cheia de merda – Aphrodite comentou.

– Shhh! – todos nós fizemos para ela, pedindo silêncio.

– Grande Sacerdotisa Neferet, por que a senhora cortaria os laços com o seu povo? – perguntou um dos repórteres.

– Nós não podemos ser considerados um só povo? Não somos todos seres inteligentes com a capacidade de amar e entender uns aos outros? – aparentemente, ela estava falando de modo retórico, pois não esperou por uma resposta. – As políticas dos vampiros se tornaram desagradáveis para mim. Muitos de vocês sabem que recentemente eu abri vagas de trabalho na Morada da Noite para a comunidade de Tulsa. Fiz isso por causa da minha convicção de que humanos e vampiros podem fazer mais do que apenas coexistir de modo constrangido. Nós podemos viver e trabalhar juntos, e até amar.

Stevie Rae fez barulho de vômito. Eu fiquei balançando a cabeça de um lado para o outro, sem acreditar no que ouvia.

– Eu recebi tanta resistência que o Conselho Supremo dos Vampiros enviou para Tulsa a sua Grande Sacerdotisa da Morte, Thanatos, para intervir. A atual administração dos vampiros promove violência e segregação. Apenas olhem para os últimos seis meses e o recorde de violência cada vez maior no centro de Tulsa. Vocês realmente acreditam que todos os ataques, principalmente aqueles envolvendo derramamento de sangue, têm relação com gangues humanas?

– Grande Sacerdotisa, a senhora está admitindo que vampiros atacaram humanos em Tulsa?

Neferet levou sua mão até o pescoço dramaticamente.

– Se eu soubesse disso com cem por cento de certeza, teria ido até a polícia imediatamente. Eu só tenho suspeitas e preocupações. Eu também tenho uma consciência, e é por isso que eu saí da Morada da Noite – ela deu um sorriso radiante. – Por favor, vocês não precisam mais me chamar de Grande Sacerdotisa. De agora em diante, eu sou simplesmente Neferet.

Mesmo pelo vídeo, pude perceber que o repórter ficou vermelho e sorriu para ela.

– Há rumores sobre um novo tipo de vampiro, com Marcas vermelhas. A senhora pode confirmar esses rumores? – perguntou outro repórter.

– Infelizmente, eu posso. Há, de fato, um novo tipo de vampiros e novatos. Aqueles Marcados em vermelho são deteriorados de certa forma.

– Deteriorados? A senhora pode nos dar um exemplo?

– Certamente. O primeiro que me vem à cabeça é James Stark, um novato que veio de Chicago depois de acidentalmente causar a morte do seu mentor. Ele se tornou o primeiro guerreiro vampiro vermelho.

Eu ofeguei.

– Aquela vaca está falando do seu namorado! – Aphrodite disse.

– E agora na noite passada Dragon Lankford, Mestre da Espada da escola há muito tempo, foi assassinado. Espetado pelos chifres de um touro até a morte. Lankford estava na companhia de James Stark quando aconteceu o “acidente” – ela enfatizou a palavra, para deixar claro que não acreditava que havia sido um acidente.

– A senhora está querendo dizer que esse vampiro Stark é perigoso?

– Temo que ele possa ser. Na verdade, muitos dos novos vampiros e novatos podem ser perigosos. Afinal de contas, a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa é a Morte.

– A senhora pode nos dar mais detalhes sobre...

Um dos homens de terno deu um passo à frente, cortando Neferet.

– Eu, mais do que todos, estou muito preocupado com esses acontecimentos na comunidade dos vampiros. Como muitos de vocês sabem, minha amada filha, Aphrodite, foi Marcada há quase quatro anos. Eu entendo muito bem que os vampiros não gostem que os humanos se intrometam nos seus assuntos pessoais, políticos e criminais. Há muito tempo eles tomam conta de si mesmos. Mas quero declarar a vocês e à nossa Morada da Noite local que, por resolução da Câmara dos Vereadores de Tulsa, nós vamos criar uma comissão para examinar as relações entre vampiros e humanos. Infelizmente, acabou o tempo que temos para perguntas por hoje – o homem que havia falado no microfone de Neferet era o pai de Aphrodite, prefeito de Tulsa. – Tenho apenas mais um breve anúncio para fazer. Começando imediatamente, Neferet foi admitida como membro da comissão da Câmara dos Vereadores sob o título de Agente de Ligação com os Vampiros. Deixem-me reiterar, Tulsa pretende se associar a vampiros que desejam viver em paz com os humanos. – Quando todos os repórteres começaram a falar ao mesmo tempo, ele levantou a mão e sorriu com certo ar de superioridade (que estranhamente lembrou Aphrodite). – Neferet vai ter uma coluna semanal no caderno Scene do jornal Tulsa World. Por enquanto, esse vai ser o fórum através do qual ela vai responder a todas as suas perguntas. Lembrem-se de que agora estamos apenas no começo de uma parceria. Precisamos caminhar devagar e gentilmente para não perturbar o delicado equilíbrio das relações entre vampiros e humanos.

Eu estava observando o rosto de Neferet em vez de olhar para o prefeito, e vi o jeito com que os olhos dela se estreitaram e a sua expressão se endureceu. Então o prefeito LaFont acenou para a câmera e a imagem voltou para Chera Kimiko no estúdio. Damien tocou no iPad, e a tela se apagou.

– Ah, que merda! Meu pai perdeu o resto de juízo perfeito que ainda restava depois de conviver com a minha mãe – Aphrodite afirmou.

– Ei, acho que ouvi alguém falar o meu nome – Stark entrou na cozinha, passando os dedos pela sua cabeça descabelada e dando pra mim aquele seu meio sorriso sexy e metidinho.

– Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa e de dizer a todos que você é um assassino perigoso – eu me escutei contando a ele.

– Ela fez o quê? – ele pareceu tão chocado quanto eu me sentia.

– É, e ela fez mais do que isso – Aphrodite continuou. – Ela se juntou ao meu pai e agora toda a cidade acredita que ela é toda boazinha e que nós somos todos sugadores de sangue.

– Ahn, o plantão de notícias é por nossa conta, Aphrodite – Stevie Rae a corrigiu. – Você não é mais uma sugadora de sangue.

– Ah, por favor. Como se os meus pais soubessem alguma coisa da minha vida. Não falo com nenhum dos dois há meses. Só sou a filha deles quando isso é conveniente para eles. Como agora.

– Se isso não fosse tão assustador, seria engraçado – Shaylin comentou.

– Neferet está fazendo com que pareça que ela rompeu com o Conselho Supremo e com a escola, e não que ela foi expulsa por matar a minha mãe – eu expliquei para Stark.

– Ela não pode fazer isso – Stark reagiu. – O Conselho Supremo dos Vampiros não vai deixar que ela faça isso.

– Meu pai está amando tudo isso – Aphrodite disse. Reparei que ela tinha deixado o champanhe de lado e que agora estava enchendo a taça apenas com suco de laranja. – Há anos ele quer descobrir como se aproximar dos vampiros. Depois que eles me esqueceram porque não me transformei em um clone da minha mãe, eles na verdade ficaram felizes quando fui Marcada.

Fiquei observando Aphrodite e lembrando do dia que agora parecia tão distante, em que eu havia escutado os pais dela a repreendendo por ela ter perdido a liderança das Filhas das Trevas para mim. Agora Aphrodite parecia a rainha do gelo de sempre, mas na minha lembrança eu ainda conseguia ouvir o som da mão da mãe dela dando uma bofetada no seu rosto e podia ver as lágrimas que ela teve que represar. Não deve ter sido fácil para ela ouvir o seu pai a chamar de “filha amada” quando a verdade era que tudo o que ele sempre quis foi usá-la.

– Por quê? O que os seus pais querem com os vampiros? – Stevie Rae perguntou.

– Ter acesso a mais dinheiro... mais poder... mais beleza. Em outras palavras, ser parte da turma legal. Isso é tudo o que eles sempre quiseram: ser bacanas e poderosos. Eles usam quem quer que seja para conseguir o que querem, incluindo a mim e, obviamente, Neferet – Aphrodite explicou, ecoando estranhamente o que eu estava pensando.

– Neferet não é o caminho para eles conseguirem nada disso – eu afirmei.

– Fala sério, Z., ela é mais louca que galinha agarrada pelo rabo – Stevie Rae falou.

– Bem, seja o que for que isso signifique, sim, mas não é só isso. Mais alguém reparou no olhar de Neferet quando o pai de Aphrodite estava falando? Ela definitivamente não gostou nada de como as coisas terminaram – eu disse.

– Uma comissão, uma coluna no jornal e “caminhar devagar e gentilmente” não parece algo em que a Consorte das Trevas estaria particularmente interessada – Damien concordou.

– E realmente ela não gostou de quando o prefeito interrompeu a pergunta sobre você ser perigoso – eu completei.

– Eu gostaria de ser perigoso para Neferet! – Stark vociferou, ainda parecendo totalmente chocado.

– O meu pai é muito bom em prometer uma coisa e fazer outra – Aphrodite lembrou. – Posso jurar para vocês que ele acha que pode fazer esse jogo com Neferet – ela balançou a cabeça. Não importava o quanto ela soava insensível, a expressão dela era tensa.

– A gente tem que ir para a Morada da Noite. Agora. Se Thanatos ainda não sabe sobre isso, ela precisa saber – afirmei.

Neferet

Os humanos são tão fracos, entediantes e terrivelmente simplórios, Neferet pensou enquanto observava o prefeito Charles LaFont sorrir de modo afetado, procurando apaziguar os ânimos e continuando a evitar qualquer pergunta direta sobre perigo, mortes e vampiros depois da coletiva de imprensa dela. Até esse homem que, dizem os rumores, é o próximo na fila para uma cadeira no Senado e supostamente é tão carismático e dinâmico... Neferet teve que disfarçar a sua risada sarcástica com uma tosse. Esse homem não era nada. Neferet esperava mais do pai de Aphrodite.

Pai! Uma voz ecoou do seu passado, alarmando-a e fazendo que Neferet agarrasse o corrimão de ferro ornamentado e o apertasse bruscamente. Ela teve que tossir de novo para ocultar o som de algo quebrando que veio do ferro forjado quando ela tirou sua mão dali. Foi então que a paciência dela acabou.

– Prefeito LaFont, você pode me acompanhar até a minha cobertura – as palavras deveriam ter soado como uma pergunta, mas a voz de Neferet não formulou a frase desse modo. O prefeito e os quatro vereadores que haviam participado da coletiva de imprensa se viraram na sua direção. Ela decifrou facilmente cada um deles.

Todos a achavam bonita e desejável.

Dois deles a desejavam com tanta intensidade que eles abandonariam suas esposas, suas famílias e suas carreiras para possuí-la.

Charles LaFont não era um deles. O pai de Aphrodite a cobiçava – disso não havia dúvida –, mas o seu principal desejo não era sexual. A maior necessidade de LaFont era alimentar a obsessão de sua mulher por status e aceitação social. De fato, era uma pena que ele não pudesse ser seduzido mais facilmente.

Todos eles a temiam.

Isso fez Neferet sorrir.

Charles LaFont limpou a garganta e ajeitou nervosamente a sua gravata.

– É claro, é claro. Será um prazer acompanhá-la.

Friamente, Neferet fez apenas um gesto de despedida com a cabeça para os outros homens e ignorou os olhares ávidos deles na sua direção enquanto ela e LaFont entravam no elevador para subir até a sua cobertura.

Ela não falou nada. Neferet sabia que ele estava nervoso e muito menos seguro de si do que fingia ser. Em público, a sua fachada era de charme natural, como se ele fosse merecedor de tudo o que a vida tinha a oferecer. Mas Neferet enxergava o humano amedrontado e bobo que se encolhia por baixo daquela superfície.

As portas do elevador se abriram e ela entrou no saguão de mármore do seu apartamento.

– Acompanhe-me em um drink, Charles – Neferet não deu a ele nenhuma oportunidade de recusa. Ela caminhou decididamente até o bar art déco ornamentado e encheu duas taças com um esplêndido vinho tinto.

Como ela sabia que ia acontecer, ele a seguiu.

Ela estendeu a ele uma das taças. Ele hesitou e ela deu uma gargalhada.

– É só um cabernet muito caro. Não está misturado com sangue, de forma alguma.

– Ah, claro – ele pegou a taça e riu nervosamente, parecendo um cachorrinho pequeno e medroso aos olhos dela.

Neferet detestava cachorros quase tanto quanto ela detestava homens.

– Eu tinha mais para revelar hoje do que apenas a informação sobre James Stark – ela disse friamente. – Acho que a nossa comunidade merece entender como os vampiros da Morada da Noite se tornaram perigosos.

– E eu acho que a comunidade não precisa entrar em pânico sem necessidade – LaFont contra-argumentou.

– Sem necessidade? – ela pronunciou as duas palavras incisivamente.

LaFont assentiu e coçou o queixo. Neferet sabia que ele achava que parecia sábio e benevolente. Mas, para ela, ele parecia fraco e ridículo.

Foi então que Neferet reparou nas mãos dele. Elas eram grandes e pálidas, com dedos grossos e, apesar do seu tamanho, pareciam macias e quase femininas.

O estômago de Neferet se embrulhou. Ela quase vomitou no vinho e por pouco não conseguiu manter o seu comportamento frio.

– Neferet? Você está bem? – ele perguntou.

– Sim – ela falou rapidamente. – Só estou confusa. Você está me dizendo que, ao alertar Tulsa sobre os perigos desses novos vampiros, estamos provocando pânico neles sem necessidade?

– É exatamente isso. Depois da coletiva de imprensa, Tulsa vai estar em alerta. A violência contínua não vai ser tolerada; ela vai ser detida.

– Mesmo? E como você pretende deter a violência dos vampiros? – a voz de Neferet era ilusoriamente amável.

– Bem, isso é muito simples. Vou continuar o que nós começamos hoje. Você alertou o público. Com você atuando como Agente de Ligação entre a cidade e o Conselho Supremo na nossa comissão recém-implementada, você será a voz da razão defendendo a coexistência entre humanos e vampiros.

– Então é com palavras que você vai deter a violência deles – ela disse.

– Sim, palavras faladas e escritas – ele concordou, parecendo muito satisfeito consigo mesmo. – Peço desculpas se falei fora de hora quando mencionei a coluna no jornal. Foi uma ideia de última hora do meu grande amigo Jim Watts, editor-chefe do caderno Scene do Tulsa World. Eu teria falado com você sobre isso antes, mas, desde que você apareceu no meu escritório hoje à tarde com o seu alerta, as coisas aconteceram rápido e publicamente.

Porque eu planejei as coisas dessa forma... porque eu coloquei o sistema inepto de vocês em ação. Agora chegou a hora de eu colocá-lo em ação, assim como fiz com os jornalistas e os vereadores.

– Quando eu o procurei, não esperava encontrar reticências nem estava planejando escrever.

– Talvez não, mas eu estou na política de Oklahoma há quase vinte anos e conheço o meu povo. Incitá-los de modo calmo e devagar é o que funciona com eles.

– Como se você estivesse tocando o gado? – Neferet falou sem esconder o desdém na sua voz.

– Bem, eu não usaria essa analogia, mas tenho percebido que criar comissões, fazer pesquisas na comunidade, obter um feedback da amostragem, tudo isso realmente contribui para uma engrenagem mais azeitada das políticas públicas da cidade – LaFont deu uma risadinha e tomou um gole de vinho.

Escondida nas dobras do seu vestido de veludo, Neferet fechou sua mão em punho e a apertou até que suas unhas feito garras perfurassem sua palma. Gotas escarlates quentes se empoçaram embaixo de suas unhas. Sem serem vistas pelo humano ignorante, as gavinhas de Trevas serpentearam subindo pelas pernas de Neferet, procurando... encontrando... bebendo...

Ignorando o calor gelado daquela dor familiar, Neferet encontrou o olhar de LaFont por sobre a taça de vinho dele. Rapidamente, ela abaixou a voz em uma calma cantiga.

“A paz com os vampiros não é o que você deseja.

Eles ardem com brilho e ímpeto demais, você inveja o seu fogo.

Reticências e escrever colunas, maldita seja essa ideia!

Você tem que fazer o que eu...”

O celular de LaFont começou a tocar. Ele piscou e a expressão embaçada que havia encoberto os seus olhos se clareou. Ele abaixou sua taça de vinho, tirou o telefone do bolso, franziu os olhos para ver a tela e então disse:

– É o chefe de polícia. – Ele tocou na tela e passou a mão pelo rosto, enquanto dizia: – Dean, que bom falar com você – LaFont fez um aceno de cabeça e levantou os olhos para Neferet. – Você vai me desculpar, tenho certeza, mas não posso falar sobre isso agora. Em breve nós falaremos sobre os detalhes da comissão e da coluna de perguntas e respostas.

Enquanto falava, o prefeito se retirou rapidamente para o elevador, deixando Neferet sozinha, exceto pelas famintas gavinhas de Trevas.

Neferet permitiu que elas bebessem dela apenas por mais alguns instantes. Então ela as afastou e lambeu as feridas frescas na palma de sua mão para que os cortes se fechassem.

Os filamentos de Trevas pulsaram ao redor dela, pairando no ar como um ninho de cobras flutuante, ansiosas para cumprir as ordens dela.

– Agora vocês me devem um favor – ela disse antes de pegar o telefone da cobertura e digitar o número de Dallas.

Ele pareceu nervoso ao atender:

– Eu vou matar o cuzão que me ligou tão cedo!

– Cale a boca, garoto! Escute e obedeça – Neferet sorriu ao ouvir o silêncio que se seguiu à sua ordem. Ela quase podia sentir o cheiro do medo dele através do telefone. Então ela falou rapidamente, adquirindo mais controle sobre o seu temperamento e mais exatidão enquanto instruía o vampiro vermelho. – Logo a escola vai saber que eu rompi com a Morada da Noite e me tornei membro de uma comissão da Câmara Municipal de Tulsa. Você sabe, é claro, que eu só planejo usar esses humanos para iniciar um conflito. Até eu procurá-lo de novo, você será as minhas mãos, olhos e ouvidos na Morada da Noite. Aja como se você quisesse se dar bem com o resto da escola agora que eu fui embora. Conquiste a confiança dos professores. Faça amizade com os novatos azuis e então faça o que os adolescentes fazem de melhor: apunhale-os pelas costas, espalhe boatos, crie panelinhas.

– Aquela horda de nerds da Zoey não vai confiar em mim.

– Eu disse para você calar a boca, escutar e obedecer! É claro que você não vai conseguir conquistar a confiança de Zoey; ela é próxima demais de Stevie Rae. Mas você pode romper aquele círculo fechado dela, que não é tão forte quanto você pensa. Observe as gêmeas, particularmente Erin. A água é mais facilmente manipulada e mais mutável do que o fogo – ela fez uma pausa, esperando que ele confirmasse que entendeu as suas ordens. Como ele não falou nada, ela disse rispidamente: – Agora você pode falar!

– Eu compreendi, Grande Sacerdotisa. Vou obedecê-la – ele garantiu a ela.

– Excelente. Aurox já voltou para a Morada da Noite?

– Não que eu tenha visto. Pelo menos ele não estava junto de nós, quando fomos agrupados e levados para o dormitório depois do fogo. Foi... foi você que provocou o incêndio? – Dallas fez a pergunta com hesitação.

– Sim, apesar de ter sido mais um acidente imprevisto do que uma manipulação intencional. O fogo causou muita destruição?

– Bem, ele queimou parte do estábulo e causou uma enorme confusão – ele respondeu.

– Algum cavalo ou novato morreu? – ela perguntou ansiosamente.

– Não. Aquele cowboy humano se feriu, mas foi só isso.

– Que pena. Agora vá fazer o que eu mandei. Quando eu voltar a controlar a Morada da Noite e reinar como Tsi Sgili, Deusa de todos os vampiros, você será regiamente recompensado – Neferet apertou o botão de desligar.

Ela estava tomando o seu vinho e pensando em uma morte lenta e dolorosa para Charles LaFont quando um barulho no quarto desviou a sua atenção. Ela havia se esquecido do jovem mensageiro do prédio que flertara descaradamente com ela na hora em que Neferet havia chegado naquela noite, mais cedo. Na ocasião, ele estava parecendo muito disposto a alimentá-la. Ele deveria estar menos disposto agora que tinha percebido que ela estava muito perto de drenar todo o seu sangue perigosamente. Neferet se levantou e caminhou até o quarto, levando sua meia taça de vinho. Ela iria saborear o medo dele no que havia sobrado do seu sangue.

Neferet sorriu.


7 Zoey

Stevie Rae e eu deveríamos encontrar Thanatos na sua sala de aula. Eu tinha ligado para ela quando estávamos no ônibus escolar a caminho da escola. Nós não havíamos conversado muito. Tudo o que ela tinha dito era que já sabia sobre a coletiva de imprensa de Neferet e que a gente devia ir direto para a sua sala.

A Morada da Noite estava com cheiro de fumaça.

Aquele fedor estava impregnado na escola inteira. Quando nós entramos no estacionamento, percebi que aquele cheiro ruim não era apenas de fumaça. Infelizmente, eu já tinha bastante experiência para reconhecer o aroma penetrante do medo.

O dia normal de escola não havia começado, aquilo era bem óbvio. Havia novatos em grupinhos andando e fofocando para lá e para cá. Eles definitivamente não estavam a caminho da primeira aula. Aquilo deveria ser legal. Quero dizer, qual garoto não ama um dia de neve, um vazamento de água ou qualquer coisa assim? Mas de algum modo aquilo não era legal. Passava uma sensação confusa e de falta de segurança.

– Ok, bem, eu sei que não é normal de minha parte dizer isto, mas acho que Thanatos deveria ter obrigado todo mundo a ir para a aula hoje – Aphrodite assustadoramente ecoou meus pensamentos de novo enquanto descíamos do ônibus. – Agora o que está rolando é essa merda e um pânico do tipo “a gente não vai conseguir ficar sem Neferet” – ela fez um gesto englobando tanto os grupinhos de novatos sussurrando quanto os vampiros e novatos que estavam fazendo dois trabalhos horríveis: limpar o entulho do estábulo e colocar tábuas e vigas no enorme monte de madeira que ia se tornar a pira funerária de Dragon Lankford.

– Eu concordo com você, minha bela – Darius disse sombriamente.

Em silêncio, fiz uma prece rápida mas fervorosa: Nyx, ajude-me a dizer e a fazer a coisa certa, ajudando os meus amigos, o meu círculo, a ficarem fortes e confiantes. Então eu encarei o meu grupo e segui os meus instintos.

– Ok, apesar de eu detestar admitir isso em voz alta, ou mesmo em voz baixa, Aphrodite está certa.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo loiro.

– É claro que estou.

– Esta escola precisa de uma boa dose de normalidade e, infelizmente, acho que nós somos o melhor tipo de normalidade que eles vão encontrar agora.

– Isso quer dizer que eles tão ferrados – Kramisha afirmou. Ela estava usando a sua peruca curta e loira e um sapato de couro envernizado preto com um salto de doze centímetros. A saia dela era curta e supercintilante. De algum modo, aquele visual louco tinha dado certo, fazendo-me pensar (por uns 2,5 segundos) em usar salto com mais frequência.

– Eu estou falando sério, Kramisha – eu disse.

– Eu também – ela replicou.

– Olha só, pessoal. Nós podemos ser normais. Um novo tipo de normalidade, mais interessante – Stevie Rae sugeriu, abrindo um sorriso para Rephaim.

Aphrodite bufou. Eu a ignorei, sorri para Stevie Rae e continuei falando.

– Nós vamos nos separar. Parte de vocês vai para o estábulo, outra parte vai até a pira de Dragon. Lembrem-se, sejam normais – eu os orientei com firmeza. – Ajam como vocês fariam normalmente. A gente precisa segurar a onda e ajudar a colocar as coisas de volta nos trilhos, de um jeito aparentemente controlável. Olhem, neste momento parece que nós fomos atacados por todos os lados. O estábulo pegou fogo. Os gatos foram assassinados. Dragon está morto. E agora Neferet não é apenas uma louca do mal. Ela é uma louca do mal que envolveu a comunidade dos humanos em coisas que estão muito longe da sua compreensão ou da sua capacidade de lidar com elas. Nós temos que ficar fortes e visíveis. Precisamos manter a Morada da Noite unida. Como eu falei para Thanatos na noite passada: nós somos muito mais do que crianças bir rentas e já é hora de nos levantarmos, ficarmos juntos e conquistarmos o respeito que merecemos.

– Sábio conselho, Sacerdotisa – Darius disse, fazendo-me ter vontade de abraçá-lo. – Eu vou para a pira de Dragon para espalhar a calma por lá – ele sorriu carinhosamente para Aphrodite. – Venha comigo. A sua influência vai ser boa para os guerreiros que estão desolados com a perda do Mestre da Espada.

– Normalmente, eu diria que vou aonde você for, bonitão – Aphrodite respondeu. – Mas eu preciso conversar um pouco com a Z., então eu vou com ela falar com Thanatos. Que tal eu encontrar com você na pira depois disso?

As palavras dela me surpreenderam e eu pensei no fato de que, exceto por aquele papo com Shaylin mais cedo, eu realmente não tinha falado com ninguém desde o ritual de revelação. O trajeto de volta no ônibus, com o corpo de Dragon, havia sido silencioso e difícil. E então aconteceu o incêndio, os gatos mortos e, felizmente, o sono, apesar de eu ainda não ter dormido o suficiente. Tudo isso significava que ninguém havia me puxado de lado para falar sobre Aurox. Será que Aphrodite estava se preparando para fazer isso? Dei uma olhada nela. Ela estava na ponta dos pés, dando um beijo em Darius. Ela parecia a mesma de sempre: louca pelo seu guerreiro e irritada com todo o resto.

– Eu também vou com Z. – a voz de Stevie Rae interrompeu a minha análise neurótica de Aphrodite. – Depois que terminarmos de falar com Thanatos, eu vou até a pira funerária. Vocês vão precisar construir uma fundação sólida lá, e a terra é o elemento certo para isso – ela deu um beijo rápido em Rephaim. – Você me encontra lá?

– Sim – ele retribuiu o beijo, tocando o queixo dela com carinho. Então ele olhou para mim. – Se ninguém tiver nenhuma objeção, eu gostaria de fazer uma ronda em volta do muro da escola, principalmente o muro leste. Se os filamentos de Trevas de Neferet estão serpenteando por aí, nós precisamos saber disso.

– Isso parece uma boa ideia. Vocês estão de acordo com isso? – perguntei, olhando para Stark e Darius. Os dois guerreiros assentiram. – Ok, ótimo. – Então voltei minha atenção para Stevie Rae. – Também acho que invocar o seu elemento é realmente uma boa ideia, Stevie Rae. Damien, Shaunee e Erin, mantenham os seus elementos por perto. Se eles puderem ajudar a fortalecer ou a apoiar as pessoas, invoquem-nos. Só não sejam totalmente óbvios e... – minha voz sumiu quando percebi o que eu estava dizendo. – Não. Isso é errado. Se vocês precisarem usar os seus elementos, sejam óbvios.

– Entendi o que você quis dizer, Z. – Damien afirmou. – Já está na hora de a Morada da Noite saber que há forças prodigiosas do bem trabalhando ao nosso lado contra todas essas Trevas.

– “Prodigiosas” significa muito grandes – Stevie Rae traduziu.

– Nós sabemos o que quer dizer – Kramisha protestou.

– Eu não sabia – Shaunee falou.

– Nem eu – Erin concordou.

Tive vontade de sorrir para as gêmeas e dizer que era legal vê-las fazendo comentários tipo gêmeas de novo, mas assim que Erin falou ela ficou corada e se afastou de Shaunee, que estava parecendo superdesconfortável. Então eu desisti – temporariamente – e fiz uma nota mental para acender uma vela vermelha e uma azul para as duas e pedir a Nyx para dar uma ajuda extra a elas. Se eu conseguisse tempo pra isso. Que inferno, se Nyx tivesse tempo pra isso.

Eu reprimi um suspiro e continuei falando.

– Ok, ótimo. Então, dividam-se em grupos. Vão fazer coisas normais, como pegar alguns livros de estudo e ir até a biblioteca.

– Isso não é o meu normal – escutei Johnny B. resmungar, fazendo os garotos em volta rirem.

Eu gostei do barulho das risadas deles. Aquilo era normal.

– Então vá jogar basquete ou fazer alguma coisa típica de garotos no ginásio – eu sugeri, sem conseguir não sorrir para eles.

– Eu vou pro refeitório. A cozinha dos túneis parece que foi atacada por um enxame de gafanhotos. Z., nós precisamos dar uma passada no mercado antes de voltar para lá – Kramisha me avisou.

– Sim, bem, isso é normal. Vá em frente. Leve quem não conseguiu comer antes de vir para a escola com você. E, pessoal, espalhem-se. Não fiquem apenas comendo em grupinhos. Conversem com os outros garotos – afirmei.

Os novatos emitiram sons de concordância e se organizaram, dividindo-se em pequenos grupos em volta de Darius, as gêmeas, Damien e Kramisha. Rephaim partiu sozinho. Eu o olhei se afastando por um tempo, pensando se algum dia ele iria realmente se enquadrar no grupo, e o que seria do seu relacionamento com Stevie Rae se ele não conseguisse. Dei uma olhada para a minha amiga. Ela estava olhando com total adoração para Rephaim. Mordi meu lábio e continuei a me preocupar.

– Você está bem, Z.? – a voz de Stark soou baixinha ao meu lado, e ele colocou o braço sobre os meus ombros.

– Sim – respondi, encostando-me nele por um momento. – Só estou me preocupando obsessivamente, como sempre.

Ele me abraçou.

– Tudo bem, desde que você não comece a chorar. Aquele seu choro cheio de catarro não é nada atrativo.

Dei um soquinho nele de brincadeira.

– Eu nunca choro.

– Ah, sim, claro, e você nunca fica cheia de catarro também – ele falou, dando aquele sorriso fofo e metidinho para mim.

– Eu sei! Incrível, não? – eu caçoei.

– Ceeeerto – ele estendeu a palavra e beijou o topo da minha cabeça.

– Ei – eu falei, ainda aninhada seguramente em seus braços. – Você pode ir até o estábulo para dar uma mão para Lenobia? Eu vou conversar com Thanatos e depois vou até o estábulo e encontro com você lá.

Stark hesitou apenas por um instante e senti os seus braços me apertando contra ele. Stark não queria se separar de mim, principalmente com toda essa loucura rolando, mas ele concordou e disse:

– Vou estar lá, esperando por você – então ele beijou minha testa e me soltou, partindo em direção ao estábulo.

Eu estremeci, arrepiada depois do calor do seu toque. Os outros garotos começaram a se afastar em grupos, ficando só Stevie Rae e Aphrodite comigo.

– Eu vou com vocês, mas esperem só um segundo. Primeiro preciso ligar para a minha mãe. Ela tem de saber que Neferet não é só cheia de papo furado, mas também é cheia de perigo – Aphrodite falou.

– Você acha que ela vai te escutar? – eu quis saber.

– É claro que não – ela respondeu sem hesitar. – Mas vou tentar assim mesmo.

– Por que você não liga para o seu pai? Afinal, ele é o prefeito, e não a sua mãe – Stevie Rae sugeriu.

– Na casa dos LaFont quem manda é a mulher. Se há alguma chance de abrir os olhos do Senhor Prefeito em relação a Neferet, isso tem que partir da minha mãe.

– Boa sorte – eu disse.

– Bem, seja como tiver que ser – Aphrodite pegou seu telefone e se afastou de nós.

Surpreendendo-me, Shaylin saiu de um dos grupos que estava indo embora e caminhou até mim.

– Posso ir com vocês? – a sua voz era gentil, mas ela havia falado claramente e seu queixo estava levantado, como se ela estivesse preparada para uma luta.

– Por que você quer ir com a gente? – eu questionei.

– Quero perguntar a Thanatos sobre as minhas cores. Sei que vocês me disseram para manter segredo sobre o meu dom, e eu entendo por quê. Definitivamente, isso é algo que Neferet não precisa saber. Mas ela não é mais Grande Sacerdotisa, e eu tenho perguntas para as quais preciso encontrar respostas. Como Damien falou, já faz muito tempo desde que outra pessoa teve a Visão Verdadeira. Bem, Thanatos é inteligente. E idosa. Imagino que talvez ela possa me dar algumas respostas. Se vocês não se importarem, é isso – ela concluiu rapidamente.

Olhei para Stevie Rae.

– Você é a Grande Sacerdotisa dela. Por você tudo bem?

– Não sei muito bem. O que você acha?

– Acho que, se nós não podemos confiar em Thanatos, estamos totalmente ferrados – respondi honestamente.

– Bem, então acho que está na hora de definir quem está no nosso time, e acredito que Thanatos faz parte das pessoas de bem. Portanto, por mim tudo bem.

– Sim, ok – eu disse.

– Obrigada – Shaylin agradeceu.

– Bem, foi uma perda de tempo – Aphrodite se juntou a nós enquanto colocava o seu telefone de volta dentro de sua bolsa Valentino dourada, cintilante e superfofa. – Pelo menos não foi uma perda de muito tempo.

– Ela não escutou nada do que você falou? – eu perguntei.

– Ah, ela escutou. Então ela disse que tinha duas palavras para mim: Nelly Vanzetti. E aí ela desligou.

– Ahn? – eu mostrei que não tinha entendido.

– Nelly Vanzetti é a psicanalista da minha mãe – Aphrodite explicou.

– E por que a sua mãe iria falar o nome dela para você? – Stevie Rae ainda não havia entendido.

– Porque, caipira, esse é o jeito de a minha mãe me dizer que eu estou parecendo completamente louca. Não que ela se importe se eu estou louca mesmo. Com isso ela estava dizendo que não se importa em me ouvir, mas que ela vai pagar a psicanalista dela para fazer isso – Aphrodite deu de ombros. – A mesma coisa de sempre.

– Isso é muito maldoso – Shaylin comentou.

Aphrodite franziu seus olhos azuis.

– Por que você está aqui?

– Ela tem um dom – Stevie Rae falou.

– O meu nível de “não dou a mínima” está muito baixo em relação a isso – Aphrodite rebateu.

– Tenho algumas perguntas para fazer a Thanatos – Shaylin esclareceu.

– Ela vai com a gente – afirmei.

– Tanto faz – Aphrodite deu um olhar de desdém para ela. – Então vá indo. Na frente de nós. Preciso conversar com estas duas, sem ouvidos coloridos escutando.

– Vá indo, Shaylin – eu disse antes que as duas começassem a discutir. De novo. – Nós vamos encontrá-la no escritório de Thanatos.

Shaylin assentiu, franziu as sobrancelhas para Aphrodite e foi embora.

Aphrodite ergueu as mãos.

– Sim, eu sei, eu devia ter sido mais gentil, blá-blá-blá. Mas ela me enerva. Ela me lembra demais uma mini-Kim Kardashian, o que significa que ela é inútil, irritante e visível demais.

Olhei para Stevie Rae, esperando que ela argumentasse com Aphrodite. Mas tudo o que ela fez foi balançar a cabeça e dizer:

– Estou cansada de ficar chutando um maldito cachorro morto.

– Cachorro morto? Isso é tudo o que você tem para dizer? Sério? – Aphrodite protestou.

– Eu não estou falando mais com você – Stevie Rae disse a ela.

– Ótimo. Agora, vamos passar para coisas importantes. Vocês não vão gostar de nenhuma das coisas que eu tenho para contar, mas precisam me ouvir. A menos que vocês queiram ser como a minha mãe.

– Nós estamos escutando – eu assegurei a ela.

Stevie Rae continuou de boca bem fechada, mas assentiu.

– Em primeiro lugar, caipira, você sabe que ficou toda cheia de olhares de adoração para Kalona desde que ele molhou o seu menino-pássaro e o ressuscitou e...

– Ele derramou lágrimas imortais no seu filho e magicamente o trouxe de volta da morte que estava próxima. Afe Maria, você estava lá! Você viu tudo – Stevie Rae exclamou.

– Você não está mais falando comigo, lembra? Mas você acabou de tocar no ponto em que eu queria. Apenas algumas horas atrás, a gente acreditava que Kalona era tão louco e perigoso quanto Neferet. Agora ele é o guerreiro da Morte. A escola toca vai ficar babando em cima dele, do mesmo modo que ficou quando ele emergiu do chão. Nós vamos demonstrar mais bom senso. Ou pelo menos eu vou demonstrar mais bom senso. Seria bom se vocês duas se juntassem a mim.

– Eu nunca vou confiar nele – eu disse em voz baixa as palavras que vieram do fundo do meu coração.

– Z., ele fez seu Juramento a Thanatos – Stevie Rae argumentou.

Encontrei o olhar dela.

– Ele matou Heath. Ele matou Stark. Ele só trouxe Stark de volta porque Nyx o forçou a pagar a dívida de vida que ele tinha por causa de Heath. Stevie Rae, eu estive no Mundo do Além com ele. Kalona perguntou quando Nyx o perdoaria. Ela respondeu que ele só poderia pedir isso quando fosse digno do perdão dela.

– Talvez ele esteja se esforçando para isso agora – ela disse.

– E talvez ele seja um assassino, estuprador, manipulador e mentiroso – Aphrodite contra-atacou. – Se Zoey e eu estivermos erradas, ótimo. Você pode dizer “eu avisei” e todos nós vamos rir e dar uma puta festa. Mas, se nós estivermos certas, não vamos ser pegas desprevenidas quando um imortal caído causar mais violência.

Stevie Rae suspirou.

– Eu sei... eu sei. Faz sentido. Eu não vou confiar cem por cento nele.

– Ótimo. Mas fique ligada no seu menino-pássaro também. Ele confia cem por cento no pai, o que significa que Kalona pode usá-lo. De novo.

A expressão de Stevie Rae se endureceu, mas ela concordou.

– Sim, vou ficar.

– Em segundo lugar – Aphrodite desviou a sua atenção para mim –, explique a merda estranha que passou pela sua cabeça quando você chamou aquele maldito touro de Heath na noite passada.

– O quê? – Stevie Rae deixou escapar. – Isso não é verdade, certo, Z.?

Ok, mentir seria fácil. Eu podia simplesmente dizer que obviamente Aphrodite tinha perdido a cabeça e estava ouvindo coisas. Afinal, uma montanha de coisas loucas havia acontecido ontem, tudo de uma vez. Isso sem falar em todos os elementos se manifestando tão poderosamente que nada mais era totalmente claro, exceto o assassinato da minha mãe por Neferet e o fato de ela ser a Consorte das Trevas.

E eu quase menti.

Então eu me lembrei do que o fato de mentir para os meus amigos tinha me custado antes – não apenas perder a confiança deles por um tempo, mas também havia me custado o meu respeito por mim mesma. Eu não me senti bem quando menti. Eu me senti fora de sincronia com a Deusa e com o caminho que eu acredito que ela quer que eu trilhe.

Então, inspirei profundamente e soltei a verdade em uma explosão de palavras:

– Eu olhei para Aurox através da pedra da vidência e vi Heath e isso me assustou e eu chamei o nome dele e Aurox se virou e olhou para mim antes de começar a se transformar de novo naquela coisa tipo touro e foi por isso que quando ele arremeteu contra mim eu simplesmente fiquei parada ali e disse a ele que ele não ia me machucar. Fim.

– Você ficou completamente louca. Que merda, acho que joguei fora antes da hora o telefone da psicanalista da minha mãe. Você precisa ser avaliada e medicada.

– Bem, eu vou ser mais gentil que Aphrodite, mas isso não faz o menor sentido, Z. Como Heath poderia estar ao redor de Aurox?

– Eu não sei! E ele não estava ao redor de Aurox. Foi como se Heath brilhasse sobre ele. Ou como se Heath fizesse uma sombra com um brilho da cor da pedra da lua sobre Aurox – tive vontade de gritar de frustração por não conseguir descrever o que eu havia vislumbrado.

– Como um fantasma? – Stevie Rae quis saber.

– Isso pode fazer um pouco mais de sentido – Aphrodite observou, concordando com Stevie Rae com a cabeça, como se as duas estivessem decifrando o que aconteceu. – Nós estávamos no meio de um ritual invocando a Morte. Heath está morto. Talvez a gente tenha atraído o fantasma dele.

– Eu não acredito nisso – falei.

– Mas você não tem certeza, certo? – Stevie Rae questionou.

– Não, eu não tenho certeza de nada, exceto que a pedra da vidência é magia antiga, e a magia antiga é forte e imprevisível. Ela nem deveria estar em lugar nenhum além da Ilha de Skye, então eu não sei o que está acontecendo com o fato de eu estar vendo coisas através dela aqui – atirei as mãos para cima. – Talvez eu tenha imaginado tudo. Talvez não. Isso é estranho, até para mim. Eu achei ter visto Heath, e então Aurox se transformou completamente naquela coisa feito touro e fugiu.

– Tudo aconteceu rápido demais – Stevie Rae comentou.

– Da próxima vez que você vir Aurox, tem que olhar para ele através dessa maldita pedra, com certeza – Aphrodite afirmou. – E não fique sozinha com ele.

– Eu não estou planejando isso! Eu nem sei onde ele está.

– Provavelmente, junto com Neferet de novo – Aphrodite respondeu.

Eu devia ter ficado de boca fechada, mas me ouvi dizendo:

– Ele disse que tinha escolhido um caminho diferente.

– É, logo depois de matar Dragon e de quase matar Rephaim – Aphrodite rebateu.

Suspirei.

– O que Stark acha disso? – Aphrodite perguntou. Como eu não falei nada, ela levantou uma sobrancelha loira. – Ah, entendi. Você não contou para ele, certo?

– Certo.

– Bem, eu não posso te censurar por isso, Z. – Stevie Rae falou gentilmente.

– Ele é o guerreiro dela. O seu Guardião – Aphrodite insistiu. – Por mais arrogante e irritante que ele seja, precisa saber que Zoey tem uma queda por Aurox.

– Eu não tenho!

– Ok, não por Aurox, mas por Heath, e você acha que Heath pode ser Aurox – Aphrodite balançou a cabeça. – Você percebe como isso soa como coisa de louco?

– Minha vida é uma coisa de louco – respondi.

– Stark precisa saber que você pode ser vulnerável a Aurox – Aphrodite disse com firmeza.

– Eu não sou vulnerável a ele!

– Diga a ela, caipira.

Stevie Rae não conseguiu olhar nos meus olhos.

– Stevie Rae?

Ela suspirou e finalmente olhou para mim.

– Se você acredita que existe uma chance, nem que seja mínima, de Heath estar rondando Aurox ou o que quer que seja, isso significa que você não vai pensar claramente em relação a ele. Eu sei. Se eu perdesse Rephaim e depois pensasse que o vi ao redor de outro cara, mesmo que isso parecesse loucura, esse cara seria capaz de me atingir. Aqui – ela apontou para o seu coração. – E isso, na maior parte das vezes, comanda aqui – ela apontou para a cabeça.

– Portanto, conte ao Cara do Arco o que você acha que viu – Aphrodite concluiu.

Eu detestava admitir, mas sabia que elas estavam certas.

– Certo. Vai ser péssimo, mas tudo bem. Vou contar para ele.

– E eu vou contar para Darius – Aphrodite avisou.

– Bem, e eu vou contar para Rephaim – Stevie Rae acrescentou.

– Por quê?! – eu queria explodir.

– Porque os guerreiros ao seu redor precisam saber disso – Aphrodite explicou.

– Está bem – respondi rangendo os dentes. – Mas só para eles. Estou cansada de um monte de gente falando sobre mim e meus problemas com os garotos.

– Bem, Z., você realmente arranja problemas com os garotos – Stevie Rae disse com um tom leve, enganchando o braço dela ao meu.

– Nós também precisamos contar isso para Thanatos – Aphrodite disse quando nós três começamos a caminhar em direção à sua sala de aula. – A afinidade dela é com a Morte. Faz sentido que ela entenda de fantasmas e coisas assim.

– Por que a gente não anuncia isso no Tulsa World e faz Neferet escrever uma maldita coluna de perguntas e respostas sobre o assunto? – eu reagi.

– Isso é quase um palavrão. Cuidado. “Maldita” é uma porta de entrada para o mundo dos palavrões. Quando você menos esperar, “foda” vai sair voando da sua boca – Aphrodite me ironizou.

– Foda voando? Isso soa errado – Stevie Rae falou para ela, balançando a cabeça.

Apertei o passo, praticamente arrastando Stevie Rae comigo e fazendo Aphrodite ter que dar uma corridinha para nos acompanhar. Eu não as escutei quando elas começaram a discutir sobre palavrões. Em vez disso, fiquei preocupada.

Eu me preocupei com a nossa escola.

Eu me preocupei com a questão Aurox/Heath.

Eu me preocupei em contar a Stark sobre a questão Aurox/Heath.

E eu me preocupei com a contração no meu estômago e com a possibilidade de a minha síndrome do intestino irritável surgir de repente no meio de tudo. De novo.


8 Shaunee

– Damien, acho que eu devo ficar bem longe do estábulo. Lenobia já teve uma dose bem grande de fogo recentemente – Shaunee olhou para Damien e Erin. Os três haviam se afastado quando Zoey disse para eles se dispersarem, mas, em vez de fazer isso, eles haviam ficado juntos, tentando imaginar onde cada um deles seria mais útil com os seus elementos.

– Você tem razão – Damien concordou. – Faz mais sentido que você vá até a pira de Dragon. Você vai ser útil por lá em breve.

Os ombros de Shaunee desabaram.

– É, eu sei, mas não estou nada ansiosa por isso.

– Simplesmente conecte-se ao seu elemento e vai ser fácil – Erin sugeriu.

Shaunee piscou surpresa para ela, não apenas por ela ter falado – Erin definitivamente estava evitando conversar com ela desde que as duas tinham virado ex-gêmeas –­, mas com o seu tom sem consideração. Ela estava falando sobre queimar o corpo de Dragon como se isso não fosse nada demais, como acender um fósforo.

– Nada em relação ao funeral de Dragon vai ser fácil, Erin. Com ou sem o meu elemento.

– Eu não quis dizer fácil para valer – Erin pareceu irritada. Shaunee pensou que ultimamente Erin sempre parecia irritada. – Só quis dizer que, quando você realmente se conecta ao seu elemento, as outras coisas não incomodam tanto. Mas talvez você não vá tão a fundo no seu elemento.

– Isso é besteira – Shaunee sentiu o calor de uma raiva crescente. – Minha afinidade com o fogo não é nem um pouco menor do que a sua afinidade com a água.

Erin deu de ombros.

– Tanto faz. Eu só estava tentando ajudá-la. De agora em diante, vou deixar de tentar – ela se virou para Damien, que estava olhando de uma para a outra, como se não soubesse se pulava no meio delas ou corria na direção oposta. – Eu vou para o estábulo. Lenobia vai ficar feliz de ver a água, e eu não tenho problemas em usar o meu elemento – sem dizer mais nada, Erin foi embora.

– Ela sempre foi assim? – Shaunee se ouviu perguntando para Damien algo que havia dias rondava a sua mente.

– Você tem que definir “assim”.

– Sem coração.

– Honestamente?

– Sim. Erin sempre foi tão sem coração?

– Isso é realmente muito difícil de responder, Shaunee – Damien falou gentilmente, como se estivesse pensando que precisava ser cuidadoso para que as suas palavras não a magoassem.

– Só me diga a verdade, mesmo se ela for dura – ela insistiu.

– Bem, então, honestamente, até vocês duas se separarem, era praticamente impossível saber como era cada uma individualmente. Nunca conheci nenhuma das duas sem a outra. Uma terminava as frases da outra. Era como se vocês fossem duas metades de um todo.

– Mas nem agora? – Shaunee o estimulou a continuar, quando ele hesitou.

– Não, agora é diferente. Agora vocês são indivíduos com personalidade própria – ele sorriu para ela. – O melhor jeito de colocar isso é que ficou bem óbvio para a maioria de nós que a sua personalidade é a com coração.

Shaunee ficou olhando Erin se afastar.

– Eu já sabia disso antes, e isso me incomodava. Sabe, o jeito com que ela era tão sarcástica, fofoqueira e maldosa. Mas também era tão divertido e legal estar com ela.

– Normalmente, divertido à custa de outras pessoas – Damien comentou. – Legal porque ela excluía os outros para parecer que ela era melhor do que todo o resto.

Shaunee encontrou o olhar dele.

– Eu sei. Agora eu vejo isso. Mas, antes, tudo o que eu conseguia ver era que nós éramos melhores amigas, e eu precisava de uma melhor amiga.

– E agora? – ele perguntou.

– Agora eu preciso conseguir gostar de mim mesma, e eu não posso fazer isso se eu for só a metade de uma pessoa inteira. Eu também estou cansada de sempre ter que dizer algo sarcástico, engraçadinho ou apenas simplesmente detestável – ela balançou a cabeça, sentindo-se triste e madura. – Isso não significa que eu ache Erin ridícula. Na verdade, quero que ela seja tão legal, divertida e incrível quanto eu acreditava que ela era. Só acho que acabei de descobrir que ela tem que ser, ou não ser, essas coisas por ela mesma. Isso não tem nada a ver comigo.

– Você é mais inteligente do que eu pensei que você fosse – Damien admitiu.

– Eu ainda sou péssima na escola.

Ele sorriu.

– Existem outros tipos de inteligência.

– Bom saber disso.

– Ei, não se subestime. Você poderia ser realmente boa na escola se você se esforçasse um pouco.

– Sei que isso parece uma coisa boa para você, mas por mim estou feliz com a parte dos “outros tipos de inteligência” – Shaunee falou, fazendo Damien rir. Depois acrescentou: – Eu vou até a pira. Talvez, se eu estiver por lá, possa ajudar.

– Ajudar os guerreiros ou a você mesma?

– Talvez ambos. Eu não sei – Shaunee respondeu com um suspiro.

– Vou acreditar que vai ajudar ambos – ele afirmou. – Vou andar por aí, como o ar. Vou tentar soprar para longe o resto de Trevas que ainda está impregnado neste lugar.

– Você também sente isso?

Ele assentiu.

– Posso sentir que a energia por aqui é ruim. Muita coisa negativa aconteceu em um período curto demais – Damien inclinou a cabeça, analisando Shaunee. – Agora que pensei mais nisso, não acho que você deve ficar longe do estábulo. O fogo não é mau. Você não é má. Lenobia sabe disso. Lembra como você fez os cascos dos cavalos se aquecerem para que a gente conseguisse cavalgar no meio daquela tempestade de gelo?

– Lembro – Shaunee respondeu, e aquela lembrança fez com que ela se sentisse mais leve.

– Então vá até a pira, ajude lá, mas vá até o estábulo também. Lembre a todos que o fogo pode fazer muito mais do que destruir. A forma como ele é manejado é o que importa.

– Imagino que você quer dizer algo como “o que importa é como o fogo é usado”?

Damien abriu o sorriso.

– Viu só, eu disse que você poderia ser boa na escola. “Manejar” é uma excelente palavra para o seu vocabulário: controlar ou dominar uma arte, uma disciplina etc.

– Você está fazendo a minha cabeça doer – Shaunee falou e ambos riram.

– Então, vou encontrar com você no estábulo mais tarde?

– Sim, vai.

Damien começou a se afastar, mas voltou e deu um abraço rápido e apertado em Shaunee.

– Estou feliz porque você se tornou uma pessoa própria. E se você precisar de um amigo, eu estou aqui – ele falou, e então saiu apressado em direção ao estábulo.

Shaunee piscou com força para segurar as lágrimas, observando o cabelo castanho e macio de Damien balançando na sua brisa própria.

– Fogo – ela sussurrou –, mande uma pequena faísca para Damien. Ele merece encontrar um cara gostoso que o faça feliz, principalmente porque ele sempre se esforça tanto para fazer os outros felizes.

Sentindo-se melhor do que estava se sentindo havia semanas, Shaunee começou a andar em outra direção. Os seus passos eram mais vagarosos, mais calculados do que os de Damien, mas ela não estava mais com medo de para onde estava indo. Ela também não estava ansiosa para a pira e para o fogo – ela não era Erin. Ela só não podia apagar a tristeza e a dor congelando os seus sentimentos. E sabe de uma coisa? Eu não ia querer ser fria e congelada por dentro, mesmo que isso significasse que eu não fosse me ferir tanto, ela decidiu em silêncio.

Shaunee estava se centrando e extraindo força do calor constante do seu elemento. Obrigada, Nyx. Eu vou tentar manejá-lo bem, era o que ela estava pensando quando a voz do imortal penetrou na sua mente.

– Eu ainda não te agradeci.

Shaunee levantou os olhos e viu Kalona em pé diante da grande estátua de Nyx que ficava na frente do seu templo. Ele estava usando uma calça jeans e um colete de couro muito parecido com o que Dragon costumava usar. Só que esse colete era maior e tinha fendas através das quais as asas negras de Kalona emergiam e então se dobravam sobre suas costas. Esse colete também não ostentava a insígnia da Deusa, mas era difícil pensar nisso com ele a encarando com aqueles olhos âmbar do outro mundo.

Ele é mesmo absolutamente, inumanamente maravilhoso. Shaunee afastou o pensamento da sua mente e em vez disso se concentrou no que ele havia dito.

– Agradecer a mim? Pelo quê?

– Por me emprestar o seu celular. Sem ele, Stevie Rae não teria conseguido me ligar. Se não fosse por você, Rephaim poderia estar morto.

O rosto de Shaunee ficou quente. Ela encolheu os ombros, sem saber por que de repente se sentia tão nervosa.

– Você foi o cara que veio quando ela ligou. Você simplesmente podia não ter atendido e continuaria sendo um pai de merda – Shaunee falou sem pensar e só depois percebeu o que tinha dito. Então ela fechou a boca e disse a si mesma: fique quieta!

Houve um silêncio longo e desconfortável, até que Kalona afirmou:

– O que você disse é verdade. Eu não tenho sido um bom pai para os meus filhos. Eu ainda não estou sendo um bom pai para todos os meus filhos.

Shaunee olhou para ele, imaginando o que ele queria dizer exatamente. A voz dele tinha soado estranha. Ela esperava que ele parecesse triste, sério ou até irritado. Em vez disso, pareceu surpreso e um pouco embaraçado, como se aqueles pensamentos tivessem acabado de ocorrer para ele. Ela queria poder ver a sua expressão, mas o rosto dele estava virado para o outro lado. Ele estava olhando para a estátua de Nyx.

– Bem – ela começou, sem saber muito bem o que dizer. – Você está melhorando o seu relacionamento com Rephaim. Talvez não seja tarde demais para consertar o seu relacionamento com os seus outros filhos também. Eu sei que, se o meu pai aparecesse e quisesse algo comigo, eu iria permitir. Pelo menos, eu daria uma chance a ele – o imortal virou a cabeça e ela o encarou. Shaunee se sentiu trêmula, como se aqueles olhos âmbar pudessem enxergar muito dela. – O que eu quero dizer é que acho que nunca é tarde demais para fazer a coisa certa.

– Você acredita mesmo nisso, honestamente?

– Sim. Ultimamente, acredito cada vez mais – Shaunee preferia que Kalona parasse de olhar para ela. – Então, quantos filhos você tem?

Ele deu de ombros. Suas asas enormes se levantaram um pouco e depois de acomodaram novamente.

– Perdi a conta.

– Parece que saber quantos filhos você tem é um bom jeito de começar aquela coisa toda de “quero ser um bom pai”.

– Saber algo e agir em relação a isso são coisas bem diferentes – ele falou.

– Sim, totalmente. Mas eu disse que é um bom meio de começar – Shaunee desviou o rosto na direção da estátua de Nyx. – Há outro bom ponto de partida.

– A estátua da Deusa?

Ela franziu a testa para ele, sentindo-se um pouco mais confortável sob o seu olhar.

– Não é só ficar perto da estátua dela. Tente pedir...

– O perdão dela não é concedido a todos nós! – a voz dele soou como um trovão.

Shaunee começou a tremer, mas ela desviou os olhos para a estátua de Nyx. Ela quase podia jurar que os seus belos lábios carnudos de mármore se curvaram em um sorriso bondoso para ela. Fosse ou não imaginação dela, aquilo deu a Shaunee o impulso de coragem que ela precisava, e a novata continuou apressadamente:

– Eu não ia dizer perdão. Eu ia dizer ajuda. Tente pedir a ajuda de Nyx.

– Nyx não iria me ouvir – Kalona falou tão baixo que Shaunee quase não o escutou. – Ela não me ouve há éons.

– Durante esses éons, quantas vezes você pediu ajuda a ela?

– Nenhuma – ele respondeu.

– Então como você sabe que ela não o está ouvindo?

Kalona balançou a cabeça.

– Você foi enviada a mim para ser a minha consciência?

Foi a vez de Shaunee balançar a cabeça em negação.

– Eu não fui enviada a você, e a Deusa sabe que eu já tenho problemas suficientes para lidar com a minha própria consciência. Tenho certeza absoluta de que não posso ser a consciência de ninguém mais.

– Eu não teria tanta certeza, novata jovem e ardente... Eu não teria tanta certeza – ele refletiu em voz alta. Então, abruptamente, Kalona se afastou dela, deu alguns passos largos e rápidos e se lançou no céu da noite.

Rephaim

Ele não se importava muito com o fato de que a maioria dos outros garotos ainda o evitava. Damien era legal, mas ele era legal com praticamente todo mundo, então Rephaim não tinha certeza se a gentileza do garoto tinha alguma coisa a ver com ele. Pelo menos Stark e Darius não estavam tentando matá-lo nem afastá-lo de Stevie Rae. Recentemente, Darius até parecia um pouco mais amigável. O guerreiro Filho de Erebus o tinha amparado quando ele tropeçou dentro do ônibus na noite anterior, ainda fraco depois de ser curado magicamente de um ferimento mortal.

Meu Pai me salvou e depois fez juramento comprometendo-se a ser guerreiro da Morte. Ele realmente me ama, e está escolhendo o lado da Luz em vez das Trevas. Pensar nisso fez Rephaim sorrir, apesar de o ex-Raven Mocker não ser tão ingênuo e crédulo quanto Stevie Rae e os outros pensavam. Rephaim queria que o seu pai continuasse no caminho de Nyx – queria isso muito mesmo. Mas ele, mais do que ninguém (exceto a própria Deusa), conhecia o ódio e a violência em que o imortal caído havia chafurdado por séculos.

O fato de Rephaim existir era prova da capacidade do seu pai de causar imensa dor nos outros.

Os ombros de Rephaim desabaram. Ele havia chegado à parte dos jardins da escola onde ficava o carvalho destruído – metade dele apoiada no muro, metade no chão. O centro da árvore velha e grossa parecia que tinha sido atingido por um raio atirado por um deus furioso.

Mas Rephaim sabia que não era isso.

O seu pai era um imortal, mas ele não era um deus. Kalona era um guerreiro, e um guerreiro caído.

Sentindo-se estranhamente perturbado, Rephaim passou os olhos pela ferida profunda que era aquela destruição no meio da árvore. Ele se sentou em um dos galhos caídos bem em frente à copa quebrada da árvore, analisando o tronco grosso que estava encostado no muro leste da escola.

– Isso precisa ser consertado – Rephaim falou em voz alta, preenchendo o silêncio da noite com a humanidade da sua própria voz. – Stevie Rae e eu podemos trabalhar nisso juntos. Talvez a árvore não esteja completamente perdida – ele sorriu. – A minha Vermelha me curou. Por que ela não poderia curar uma árvore?

A árvore não respondeu, mas enquanto Rephaim falava ele teve uma estranha sensação de déjà vu . Como se ele tivesse estado ali antes, não apenas em outro dia normal de escola. Ele sentiu uma sensação de ter estado ali com o vento sob suas asas e o azul brilhante do céu à luz do dia.

Rephaim enrugou a testa e esfregou a mão nela, sentindo o começo de uma dor de cabeça. Será que ele tinha vindo até ali durante o dia, enquanto ele era um corvo, quando a sua humanidade estava escondida tão profundamente dentro dele que aquelas horas passava como um borrão nebuloso e indistinto de sons, cheiros e visão?

A única resposta que veio até Rephaim foi aquela pulsação surda em suas têmporas.

O vento batia ao redor dele, farfalhando através dos galhos caídos, fazendo sussurrar as poucas folhas marrons do inverno que ainda estavam presas ao velho carvalho. Por um momento, pareceu que a árvore estava tentando falar com ele, tentando contar os seus segredos.

Rephaim desviou o olhar de volta para o centro da árvore. Sombras. Casca de árvore partida. Tronco despedaçado. Raiz exposta. E parecia que o chão perto do centro da árvore já havia começado a sofrer uma erosão, quase como se houvesse um buraco se formando abaixo dela.

Rephaim estremeceu. Já houve um buraco abaixo da árvore. Um buraco que havia aprisionado Kalona dentro da terra por séculos. A lembrança desses séculos e da terrível existência meio irreal e repleta de ódio, violência e solidão que ele havia vivido durante esse tempo ainda era parte do fardo pesado que Rephaim carregava.

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

A brisa farfalhou de novo. Aquele som era reconfortante, como se o sussurro ancestral da árvore pudesse ser a voz da Deusa.

– Vou entender isso como um sinal – Rephaim falou em voz alta para a árvore, pressionando a palma da sua mão contra o tronco ao lado dele. – Vou pedir a Stevie Rae para me ajudar a consertar a violência que te despedaçou. Logo. Dou minha palavra. Vou voltar logo.

Quando Rephaim se afastou para continuar a sua ronda pelo perímetro da escola, ele pensou ter ouvido um movimento bem embaixo da árvore e imaginou que fosse o velho carvalho o agradecendo.

Aurox

Aurox estava andando agitado de um lado para o outro, cobrindo com três passos aquele pequeno espaço vazio abaixo do carvalho despedaçado. Então ele se virou e deu três passos curtos de volta para o outro lado. Ele continuou para lá e para cá, para lá e para cá. Pensando... pensando... pensando... e desejando desesperadamente ter um plano.

A sua cabeça doía. Ele não havia quebrado o crânio quando caiu no buraco, mas o machucado na sua cabeça tinha sangrado e inchado. Ele estava com fome e com sede. Ele achava difícil descansar dentro da terra, apesar de o seu corpo estar exausto e de ele precisar dormir para poder se curar.

Por que ele tinha achado uma boa ideia voltar para esta escola e se esconder nos jardins onde viviam o professor que ele havia matado e o garoto que ele tinha tentado matar?

Aurox segurou sua cabeça com as mãos. Não fui eu! Ele queria gritar aquelas palavras. Eu não matei Dragon Lankford. Eu não ataquei Rephaim. Eu fiz uma escolha diferente! Mas a escolha dele não tinha importado. Ele havia se transformado em uma besta. E a besta espalhara um rastro de morte e destruição.

Havia sido tolice da parte dele ir até a escola. Tolice acreditar que ele poderia se encontrar ali ou fazer algum bem. Bem? Se alguém soubesse que ele estava se escondendo na escola, seria atacado, aprisionado e possivelmente morto. Apesar de ele não estar ali para ferir ninguém, isso não importaria. Ele iria absorver o ódio daqueles que o descobrissem e a besta emergiria. Ele não seria capaz de controlá-la. Os guerreiros Filhos de Erebus iriam cercá-lo e colocar um fim na sua existência miserável.

Eu já controlei a besta antes. Eu não ataquei Zoey. Mas será que ele teria a oportunidade de tentar explicar que não queria causar nenhum dano? Ou mesmo de ter um momento para testar o seu autocontrole e provar que ele era mais do que a besta dentro dele? Aurox recomeçou a andar de um lado para o outro. Não, a intenção dele não iria importar para ninguém na Morada da Noite. Tudo o que eles iriam ver era a besta.

Inclusive Zoey? Será que até mesmo ela ficaria contra ele?

“Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.” A voz de Vovó Redbird acalmou os seus pensamentos turbulentos. Zoey o havia protegido. Ela tinha acreditado que ele conseguia controlar a besta o suficiente para não machucá-la. A avó dela oferecera abrigo a ele. Podia ser que Zoey não o quisesse morto.

Mas os outros queriam.

Aurox não os censurava por isso. Ele merecia a morte. Apesar de ele ter recentemente começado a sentir e a desejar ter uma vida diferente, e fazer escolhas diferentes, isso não mudava o passado. Ele havia cometido atos violentos e desprezíveis. Ele tinha feito tudo o que a Sacerdotisa ordenara.

Neferet...

O nome dela, mesmo como uma palavra não pronunciada em sua mente, causou um arrepio pelo seu corpo agitado.

A besta dentro dele queria ir até a Sacerdotisa. A besta dentro dele precisava servi-la.

– Eu sou mais do que uma besta – a terra em volta dele absorveu suas palavras, abafando a humanidade de Aurox. Em desespero, ele agarrou uma raiz retorcida e começou a puxá-la para tentar subir e sair daquele buraco de terra.

– Isso precisa ser consertado – aquelas palavras chegaram até Aurox lá embaixo.

O corpo dele congelou. Ele reconheceu a voz: Rephaim. Vovó havia falado a verdade. O garoto sobrevivera.

O fardo invisível de Aurox ficou um pouco mais leve.

Aquela morte não precisava pesar na sua consciência.

Aurox se agachou, esforçando-se em silêncio para escutar com quem Rephaim estava falando. Ele não sentiu raiva nem violência. Certamente, se Rephaim tivesse a menor ideia de que Aurox estava escondido tão perto, o garoto seria tomado por sentimentos de vingança, não seria?

O tempo parecia passar devagar. O vento ficou mais forte. Aurox podia ouvi-lo chicoteando as folhas secas da árvore partida acima dele. Ele captou palavras que flutuaram com o ar frio: trabalhar... árvore... Vermelha me curou... Tudo na voz de Rephaim, sem nenhuma maldade, como se ele estivesse apenas refletindo em voz alta. E então a brisa levou até ele a prece do garoto:

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

Aurox mal respirava.

Rephaim estava pedindo ajuda da sua Deusa para perdoar a si mesmo? Por quê?

Aurox esfregou a testa latejante e se esforçou para pensar. A Sacerdotisa raramente tinha falado com ele, exceto para ordenar que ele cometesse um ato de violência. Mas ela havia falado quando ele estava por perto, como se Aurox não tivesse a capacidade de ouvi-la ou de formular pensamentos por si mesmo. O que ele sabia sobre Rephaim? Ele era o filho do imortal Kalona. Ele era amaldiçoado a ser um garoto de noite e um corvo de dia.

Amaldiçoado?

Ele havia acabado de escutar Rephaim rezando, e na sua prece ele havia agradecido o perdão de Nyx. Certamente, uma Deusa não iria amaldiçoar e perdoar ao mesmo tempo.

Então, com um princípio de surpresa, Aurox se lembrou do corvo que tinha grasnado para ele e feito tanto barulho que havia provocado a sua queda naquele buraco.

Será que aquele corvo podia ser Rephaim? O corpo de Aurox se tensionou quando ele se preparou para o confronto aparentemente inevitável que estava por vir.

– Dou minha palavra. Vou voltar logo – a voz de Rephaim chegou novamente até Aurox. O garoto estava indo embora, ainda que temporariamente. Aurox relaxou contra a parede de terra. O corpo dele doía e a sua mente zunia.

Era óbvio que ele não podia ficar naquele buraco, mas só isso era óbvio para Aurox.

Será que a Deusa de Rephaim, aquela que o havia perdoado, também o havia guiado até o buraco onde estava Aurox? Se fosse isso, era para mostrar a Aurox redenção ou vingança?

Será que ele devia se entregar, talvez para Zoey, e sofrer as consequências que fossem necessárias?

E se a besta emergisse de novo, e dessa vez ele não conseguisse controlá-la?

Será que ele deveria fugir?

Ou deveria procurar a Sacerdotisa e exigir respostas?

– Eu não sei nada – ele murmurou para si mesmo. – Eu não sei nada.

Com o peso da sua confusão e de toda a sua ânsia, Aurox abaixou a cabeça. Em silêncio e cheio de hesitação, ele imitou Rephaim e fez sua própria prece. Uma prece simples e sincera. E aquela foi a primeira vez na vida em que Aurox rezou.

Nyx, se você é mesmo uma Deusa misericordiosa, por favor, me ajude... Por favor...


C O N T I N U A

O sono de Lenobia estava tão agitado que aquele sonho familiar adquiriu uma sensação de realidade que ultrapassou o reino etéreo das fantasias do subconsciente. E se tornou, desde o começo, dolorosamente real demais.
Começou com uma lembrança. Décadas e então séculos vagaram à deriva, deixando Lenobia jovem e ingênua de novo, no porão de carga do navio que a havia levado da França para a América – de um mundo a outro. Foi durante essa viagem que Lenobia conheceu Martin, o homem que deveria ter sido seu Consorte pela sua vida inteira. Mas, em vez disso, ele morrera jovem demais e havia levado o amor dela para o túmulo junto com ele.
No seu sonho, Lenobia podia sentir a leve ondulação do navio e o cheiro de cavalo, feno, peixe e mar – e Martin. Sempre Martin. Ele estava em pé na sua frente, olhando fixamente para ela com olhos ansiosos cor de azeitona e âmbar. Ela havia acabado de dizer a ele que o amava.
– É impossível – Martin estendeu o braço, pegou a mão dela e a levantou com delicadeza, fazendo a memória se repetir em sonho na sua mente. Ele levantou o próprio braço, alinhando-o lado a lado com o braço dela. – Você vê a diferença, não vê?
A Lenobia do sonho deu uma pequena exclamação de dor sem palavras. O som da voz dele! Aquele sotaque crioulo característico – profundo, sensual, único. A lembrança do som agridoce da sua voz e do seu belo sotaque havia mantido Lenobia longe de Nova Orleans por mais de duzentos anos.
– Não – a jovem Lenobia respondeu à pergunta dele depois de olhar para os braços encostados dos dois, um marrom e um branco. – Tudo o que eu vejo é você.
Ainda profundamente adormecida, Lenobia, a Mestra dos Cavalos da Morada da Noite de Tulsa, se remexeu agitada, como se o seu corpo estivesse tentando forçar a sua mente a despertar. Mas nesta noite a sua mente não obedeceu. Nesta noite os sonhos prevaleceram.
A sequência de memórias se alterou e se transformou em outra cena, ainda no porão de carga do mesmo navio, ainda com Martin, mas alguns dias depois. Ele estava entregando para ela um colar longo de couro amarrado a uma pequena bolsa tingida de um profundo azul safira. Martin colocou-o no pescoço dela, dizendo:
– Este gris-gris a protege, chérie .
Tão rápida quanto uma batida de coração, a memória se ondulou e o tempo foi adiantado para um século à frente. Uma Lenobia mais velha, mais sábia e menos ingênua estava segurando entre suas mãos a bolsa de couro envelhecida, que havia se partido e cujo conteúdo estava caindo para fora – treze coisas, justamente como Martin tinha dito para ela. Mas a maioria dessas coisas havia se tornado irreconhecível durante o século em que ela usara o talismã. Lenobia se lembrou de um cheiro fraco de zimbro, do toque macio do barro granulado antes de ele se transformar em pó e da pequena pena de pomba que se desintegrou entre seus dedos. Mas, acima de tudo, Lenobia se lembrava da onda de alegria fugaz que ela sentira quando, no meio dos restos em decomposição do amor e da proteção de Martin, ela descobriu algo que o tempo não havia sido capaz de destruir. Era um anel de ouro, com uma esmeralda em forma de coração rodeada por minúsculos diamantes.
– O coração de sua mãe... o seu coração... o meu coração – Lenobia sussurrou enquanto deslizava a peça pelo seu dedo anular. – Eu ainda sinto a sua falta, Martin. Eu nunca o esqueci. Eu prometi isso.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/1b_ESCONDIDA.jpg

 


E então as memórias do sonho voltaram no tempo novamente, levando Lenobia para Martin outra vez, só que desta vez eles não estavam se encontrando no porão de carga de um navio no mar e se apaixonando. Essa memória era sombria e terrível. Mesmo sonhando, Lenobia sabia o lugar e a data: Nova Orleans, 21 de março de 1788, pouco tempo depois do pôr do sol.

Os estábulos haviam explodido em um incêndio e Martin a salvara, carregando-a para longe das chamas.

– Oh, não! Martin! Não! – Lenobia havia gritado para ele, e agora ela choramingava, lutando para despertar antes que ela tivesse que reviver o fim terrível da sua lembrança.

Ela não acordou. Em vez disso, ela ouviu o seu único amor repetir as palavras que haviam partido o seu coração dois séculos atrás, sentindo tudo novamente como se fosse uma ferida fresca e em carne viva.

– Tarde demais, chérie. É tarde demais para nós neste mundo. Mas eu vou vê-la de novo. Meu amor por você não acaba aqui. Meu amor por você não vai acabar nunca... Vou encontrá-la de novo, chérie. Isso eu prometo.

Quando Martin capturou o humano do mal que havia tentado escravizá-la, e então voltou com ele para a estrebaria em chamas, salvando a vida de Lenobia, a Mestra dos Cavalos finalmente conseguiu acordar com um choro soluçante e violento. Ela se sentou na cama e, com a mão trêmula, tirou o cabelo ensopado de suor do seu rosto.

O primeiro pensamento de Lenobia ao despertar foi em sua égua. Através da conexão psíquica que elas tinham, ela podia sentir que Mujaji estava agitada, quase em pânico.

– Shhhh, minha bonitona. Volte a dormir. Eu estou bem – Lenobia falou em voz alta, enviando pensamentos tranquilizantes para a égua negra com a qual ela tinha um vínculo especial. Sentindo-se culpada por ter deixado Mujaji perturbada, ela abaixou a cabeça e começou a girar carinhosamente o anel de esmeralda em volta do seu dedo.

– Pare de ser tão tola – Lenobia disse a si mesma com firmeza. – Foi só um sonho. Eu estou em segurança. Não estou lá de novo. O que aconteceu naquela ocasião não pode me machucar mais do que já machucou – Lenobia mentiu para si mesma. Eu posso me ferir de novo. Se Martin voltou, se ele realmente voltou, meu coração pode se ferir novamente. Outro soluço tentou escapar de Lenobia, mas ela pressionou seus lábios e controlou suas emoções à força.

Ele pode não ser Martin, ela disse a si mesma racionalmente. Travis Foster, o novo humano contratado por Neferet para auxiliá-la nos estábulos, era simplesmente uma bela distração – ele e sua grande e bonita égua Percherão.

– Provavelmente, era exatamente isso o que Neferet pretendia quando o contratou – Lenobia resmungou. – Ela só queria me distrair. E a Percherão dele é só uma estranha coincidência – Lenobia fechou os olhos e bloqueou as lembranças que se levantavam do passado. Então ela repetiu em voz alta: – Travis pode não ser Martin reencarnado. Eu sei que a minha reação a ele é surpreendentemente forte, mas já faz muito tempo desde que eu tive um amante.

Você nunca mais teve um amante humano. Você prometeu isso – sua consciência a lembrou.

– Então simplesmente já passou da hora de eu ter um amante vampiro, mesmo se for por pouco tempo. E esse tipo de distração vai ser uma coisa boa para mim – Lenobia tentou ocupar sua imaginação considerando e depois rejeitando uma lista de guerreiros Filhos de Erebus bonitões, mas os olhos de sua mente não estavam vendo seus corpos fortes e musculosos, e sim imaginando olhos castanhos cor de uísque tingidos de um verde-oliva familiar e um sorriso fácil... – Não! – ela não iria pensar nisso. Ela não iria pensar nele.

Mas e se a alma de Martin realmente estiver em Travis? A mente inquieta de Lenobia sussurrou sedutoramente. Ele deu sua palavra de que me encontraria de novo. Talvez ele tenha conseguido.

– E então? – Lenobia se levantou e começou a andar de um lado para outro. – Eu conheço bem demais a fragilidade dos humanos. Eles são tão facilmente mortos, e hoje em dia o mundo é ainda mais perigoso do que era em 1788. O meu amor terminou em sofrimento e chamas uma vez. E uma vez já é o bastante – Lenobia parou e colocou seu rosto entre as mãos quando seu coração percebeu a verdade e bombeou-a através de seu corpo e de sua alma, tornando-se realidade. – Eu sou uma covarde. Se Travis não é Martin, eu não quero me entregar a ele e correr o risco de amar outro humano. E se ele é Martin que voltou para mim, eu não posso suportar o inevitável, pois vou perdê-lo de novo.

Lenobia sentou-se pesadamente na velha cadeira de balanço que ela havia colocado ao lado da janela do seu quarto. Ela gostava de ler ali. Se não conseguisse dormir, sua janela era voltada para o leste, de modo que ela podia assistir ao nascer do sol e olhar para os jardins ao lado do estábulo. Lenobia não conseguia deixar de apreciar a luz da manhã, por mais irônico que isso fosse para uma vampira. No fundo do seu coração, vampira ou não, ela seria eternamente uma garota que amava as manhãs, os cavalos e um humano alto, com a pele cor de cappuccino, que havia morrido muito tempo atrás quando ele ainda era jovem demais.

Seus ombros desabaram. Ela não costumava pensar tanto em Martin havia décadas. A memória reavivada dele era uma espada de dois gumes. Por um lado, ela amava se lembrar do seu sorriso, do seu cheiro, do seu toque. Por outro lado, a sua lembrança também evocava o vazio que a sua ausência tinha deixado. Por mais de duzentos anos, Lenobia havia sofrido por uma possibilidade perdida – uma vida desperdiçada.

– O nosso futuro foi queimado e arrancado de nós. Destruído pelas chamas do ódio, da obsessão e do mal – Lenobia balançou a cabeça e enxugou os olhos. Ela precisava recuperar o controle sobre as suas emoções. O mal ainda estava queimando e abrindo terreno no campo da Luz e do bem. Ela inspirou o ar profundamente para se centrar e voltou seus pensamentos para um assunto que nunca falhou em acalmá-la, não importando o quão caótico o mundo ao redor dela tivesse se tornado: cavalos e Mujaji, em particular. Sentindo-se mais calma agora, Lenobia se concentrou de novo, atingindo aquela parte superespecial do seu espírito que Nyx tocara ­– e que recebera o dom da sua afinidade com cavalos – no dia em que a Lenobia de dezesseis anos havia sido Marcada. Ela encontrou sua égua facilmente e, no mesmo instante, sentiu-se culpada pela sua agitação refletida em Mujaji.

– Shhh – Lenobia a tranquilizou novamente, repetindo em voz alta a sensação de segurança que ela estava enviando através do seu elo com a égua. – Eu só estou sendo tola e autoindulgente. Isso vai passar, eu prometo, minha querida – Lenobia projetou uma maré de ternura e amor sobre sua égua da cor da noite e, como sempre, Mujaji recuperou a calma.

Lenobia fechou os olhos e soltou um longo suspiro. Ela podia visua­lizar sua égua, negra e bela como a noite, finalmente se tranquilizando, levantando uma pata traseira e caindo num sono sem sonhos.

A Mestra dos Cavalos se concentrou na sua égua, afastando o turbilhão que a chegada do jovem cowboy ao seu estábulo havia causado dentro dela. Amanhã, ela prometeu para si mesma, amanhã eu vou deixar claro para Travis que nós nunca vamos ser mais do que patroa e empregado. A cor dos seus olhos e o jeito com que ele me faz sentir, tudo isso vai começar a acalmar quando eu me distanciar dele... Isso tem que... tem que...

Finalmente, Lenobia adormeceu.

Neferet

Shadowfax atendeu prontamente ao chamado de Neferet, apesar de o felino não ser ligado a ela. Felizmente, as aulas já haviam terminado por esta noite, portanto, quando o grande Maine Coon a encontrou no meio do ginásio, o lugar estava com as luzes parcialmente apagadas e totalmente vazio – não havia nenhum estudante por perto; o próprio Dragon Lankford também estava ausente, mas provavelmente por pouco tempo. Ela tinha visto apenas alguns novatos vermelhos no caminho até ali. Neferet sorriu, satisfeita por pensar em como ela havia colocado os vermelhos do mal na Morada da Noite. Quantas possibilidades adoráveis e caóticas eles apresentaram – especialmente depois de ela ter certeza de que o círculo de Zoey seria quebrado e que a melhor amiga dela, Stevie Rae, ficaria arrasada, sofrendo com a perda do seu amante.

A constatação de que ela iria assegurar dor e sofrimento futuros para Zoey agradou infinitamente Neferet, mas ela era disciplinada demais para se permitir começar a tripudiar antes que o feitiço de sacrifício estivesse terminado e os seus comandos fossem postos em andamento. Apesar de a escola estar surpreendentemente quieta esta noite, quase abandonada, na verdade qualquer um podia aparecer no ginásio. Neferet precisava trabalhar rapidamente e em silêncio. Haveria tempo de sobra para se regozijar com os frutos do seu trabalho mais tarde.

Ela falou suavemente com o gato, atraindo-o para mais perto dela, e quando ele estava próximo o bastante ela se ajoelhou ao seu nível. Neferet pensou que ele desconfiaria dela – os gatos sabem das coisas. Eles eram muito mais difíceis de enganar do que humanos, novatos ou até mesmo vampiros. O próprio gato de Neferet, Skylar, havia se recusado a se mudar para a nova cobertura dela no edifício Mayo, preferindo ficar espreitando nas sombras da Morada da Noite, observando-a deliberadamente com seus grandes olhos verdes.

Mas Shadowfax não era tão precavido.

Neferet acenou. Shadowfax veio até ela, encurtando vagarosamente o último espaço que os separava. O grande gato não foi amigável – ele não se esfregou contra ela, marcando-a afetivamente com o seu cheiro –, mas veio até ela. A sua obediência era tudo o que importava para Neferet. Ela não queria o amor dele; ela queria a sua vida.

A Tsi Sgili, Consorte imortal das Trevas e ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, sentiu apenas uma vaga e remota sombra de remorso quando a sua mão esquerda acariciou o grande Maine Coon cinza tigrado. O seu pelo era macio e grosso sobre o seu corpo ágil e atlético. Como Dragon Lankford, o guerreiro que o gato havia escolhido como seu, Shadowfax era poderoso e estava em pleno vigor. Era uma pena que ele fosse necessário para atender a um propósito maior. Um propósito superior.

O remorso de Neferet não equivalia a hesitação. Ela usou o seu dom concedido pela Deusa – a afinidade com felinos – e canalizou afeto e confiança através da palma da sua mão para o gato já confiante. Enquanto sua mão esquerda o acariciava, encorajando-o a se arquear e começar a ronronar, a sua mão direita sorrateiramente puxou o seu afiado athame 1 , com o qual ela rapidamente, de modo preciso, cortou o pescoço de Shadowfax.

O grande gato não emitiu nenhum som. O seu corpo deu um espasmo, tentando se lançar para longe de Neferet, mas a mão dela agarrou o pelo do animal, segurando-o tão perto que o seu sangue respingou, quente e úmido, sobre o corpete do seu vestido de veludo verde.

Os filamentos de Trevas que estavam sempre em volta de Neferet pulsaram e estremeceram na expectativa.

Neferet os ignorou.

O gato morreu mais rápido do que ela imaginara, e Neferet ficou feliz por isso. Ela não tinha imaginado que ele fosse encará-la, mas o gato guerreiro sustentou o olhar dela mesmo depois de desabar no chão arenoso do ginásio, quando ele já não podia mais combatê-la, mas ainda assim ficou deitado respirando com dificuldade, contorcendo-se em silêncio e encarando-a.

Trabalhando rapidamente, enquanto o gato ainda estava vivo, Neferet começou o feitiço. Usando a lâmina do seu athame ritual, Neferet desenhou um círculo em volta do corpo moribundo de Shadowfax, de modo que o sangue que se empoçava em volta dele escorria para dentro do círculo, e um fosso escarlate em miniatura se formou.

Então ela pressionou uma palma da mão dentro do sangue fresco e quente, levantou-se do lado de fora do círculo, ergueu as duas mãos – uma ensanguentada, a outra segurando a faca com a ponta escarlate – e entoou:

“Com este sacrifício eu comando

as Trevas controladas pela minha mão.

Aurox, obedeça-me!

A morte de Rephaim acontecerá”.

Neferet fez uma pausa, permitindo que os filamentos pegajosos, negros e frios se esfregassem contra ela e se agrupassem em toda a volta do círculo. Ela sentiu a sua ânsia, a sua necessidade, o seu desejo, o seu perigo. Mas, acima de tudo, ela sentiu o seu poder.

Para completar o feitiço, ela mergulhou o athame dentro do sangue e escreveu diretamente na areia com ele, fechando o encantamento:

“Através do pagamento de sangue, dor e batalha,

Eu forço o Receptáculo a ser minha arma!”.

Concentrando-se na imagem de Aurox em sua mente, Neferet entrou no círculo e cravou o punhal no corpo de Shadowfax, espetando-o no chão do ginásio enquanto ela soltava as gavinhas de Trevas para que elas pudessem consumir o seu banquete de sangue e dor.

Quando o gato estava completamente drenado e morto, Neferet disse:

– O sacrifício está concluído. O feitiço foi feito. Façam como eu ordeno. Forcem Aurox a matar Rephaim. Façam Stevie Rae a quebrar o círculo. Façam com que o feitiço de revelação falhe. Agora!

Como um ninho agitado de cobras, os filamentos subordinados às Trevas serpentearam para dentro da noite, afastando-se do ginásio e indo em direção a um campo de lavandas e ao ritual que já estava em andamento.

Neferet olhou-os atentamente, sorrindo de satisfação. Um filamento de Trevas em particular, grosso como o seu braço, chicoteou através da porta que se abria do ginásio para o estábulo. A atenção de Neferet foi atraída naquela direção pelo som abafado de vidro quebrado.

Curiosa, a Tsi Sgili deslizou até lá. Tomando cuidado para não fazer barulho e disfarçando-se nas sombras, Neferet espiou o estábulo. Os seus olhos esmeralda se arregalaram com uma agradável surpresa. O filamento grosso de Trevas havia sido desajeitado. Ele havia derrubado um dos lam piões a gás que ficavam pendurados não muito longe das pilhas de feno de ótima qualidade que Lenobia era sempre tão meticulosa em escolher para as suas criaturas. Neferet assistiu, fascinada, quando o primeiro ramo de feno pegou fogo, crepitou e então, com uma renovada onda amarela e um poderoso som de whoosh, incendiou-se completamente.

Neferet olhou para a longa fileira de baias de madeira fechadas. Ela só conseguia ver os contornos escuros e indistintos de alguns dos cavalos. A maioria estava dormindo. Alguns estavam pastando preguiçosamente, já acomodados para o amanhecer que se aproximava e para o descanso que o dia iria proporcionar a eles até o pôr do sol, quando os estudantes chegariam para as suas aulas intermináveis.

Ela olhou de volta para o feno. Um fardo inteiro foi engolfado em chamas. O cheiro de fumaça foi levado até ela, e era possível ouvir o som crepitante do fogo se alimentando e crescendo, como uma besta descontrolada.

Neferet saiu do estábulo, fechando a pesada porta que dava para o ginásio com firmeza. Parece que provavelmente Stevie Rae não vai ser a única a sofrer depois desta noite. Esse pensamento satisfez Neferet, e ela saiu do ginásio e da matança que ela havia causado ali, sem ver a pequena gata branca que caminhou até o corpo imóvel de Shadowfax, deitou ao lado dele e fechou os olhos.

Lenobia

A Mestra dos Cavalos acordou com um terrível pressentimento. Confusa, Lenobia esfregou as mãos no rosto. Ela havia pegado no sono na cadeira de balanço perto da janela e esse súbito despertar parecia mais um pesadelo do que realidade.

– Isso é tolice – ela resmungou sonolenta. – Preciso encontrar meu centro de novo. – A meditação a havia ajudado a silenciar seus pensamentos no passado. Resolutamente, Lenobia inspirou profundamente o ar para se purificar.

Foi com essa inspiração profunda que Lenobia sentiu o cheiro – fogo. Mais especificamente, um estábulo em chamas. Ela cerrou os dentes. Desapareçam, fantasmas do passado! Sou velha demais para esse tipo de jogo. Então um agourento som crepitante fez Lenobia afastar o último resquício de sono que havia obscurecido a sua mente. Ela se moveu rapidamente até a janela e abriu as pesadas cortinas pretas. A Mestra dos Cavalos olhou para o seu estábulo e arfou de horror.

Não era um sonho.

Não era a sua imaginação.

Em vez disso, era um pesadelo real.

Chamas estavam lambendo as laterais do edifício. Enquanto ela observava, as portas duplas no canto da sua visão foram abertas pelo lado de dentro e, contra o pano de fundo de uma onda de fumaça e labaredas ardentes, estava a silhueta de um cowboy alto guiando uma enorme Percherão cinza e uma égua negra como a noite para fora.

Travis soltou as éguas, tocando-as para os jardins da escola e para longe do estábulo em chamas; então, ele correu de volta para a boca flamejante do edifício.

Tudo dentro de Lenobia ficou vivo quando aquela visão extinguiu o seu medo e a sua dúvida.

– Não, Deusa. De novo, não. Eu não sou mais uma garota assustada. Desta vez, o fim dele vai ser diferente!


2 Lenobia

Lenobia saiu em disparada de seu quarto e desceu correndo a pequena escada que ligava o seu alojamento ao piso térreo e ao estábulo. A fumaça estava se infiltrando feito cobras por debaixo da porta. Ela controlou o seu pânico e encostou a mão na madeira. Não estava quente, então ela empurrou a porta, avaliando a situação rapidamente enquanto entrava no estábulo. O fogo estava ardendo mais furiosamente no fundo do edifício, na área onde o feno e a ração eram estocados. Era também a área mais próxima à baia de Mujaji e à grande baia para animais prenhes onde a Percherão Bonnie e Travis haviam se instalado.

– Travis! – ela gritou, levantando o braço para proteger o rosto do calor das labaredas crescentes, enquanto corria para dentro do estábulo, abrindo as baias e libertando os cavalos mais próximos a ela. Para fora, Persephone, vá! Lenobia empurrou a égua clara, que estava congelada de pavor, recusando-se a sair de sua baia. Quando Persephone passou por ela em disparada em direção à saída, Lenobia chamou de novo: – Travis! Cadê você?

– Estou levando para fora os cavalos que estavam mais perto do fogo! – ele gritou quando uma jovem égua acinzentada correu da direção de onde vinha a voz de Travis e quase passou por cima de Lenobia.

– Calma! Calma, Anjo – Lenobia a tranquilizou, conduzindo a égua aterrorizada até a saída.

– A saída leste está bloqueada pelas chamas e eu... – as palavras de Travis foram cortadas quando a janela da selaria explodiu e estilhaços de vidro quente voaram pelo ar.

– Travis! Saia daqui e ligue para o 911! – Lenobia gritou enquanto abria a baia mais próxima e libertava um capão, detestando o fato de ela não ter pegado o seu telefone e feito ela mesma a chamada antes de sair do quarto.

– Eu acabei de ligar! – respondeu uma voz não familiar. Lenobia olhou através da fumaça e das chamas e viu uma novata correndo na sua direção, guiando uma égua alazã que estava totalmente em pânico.

– Está tudo bem, Diva – Lenobia automaticamente acalmou o cavalo, pegando a correia da garota. Ao seu toque, a égua se aquietou, e Lenobia soltou a correia do cabresto, encorajando-a a galopar para fora pela porta mais próxima atrás dos outros cavalos em fuga. Ela puxou a garota para trás com ela, afastando-se do calor que aumentava, dizendo: – Quantos cavalos estão... – Lenobia perdeu a fala quando viu que o crescente na testa da garota era vermelho.

– Acho que só sobraram alguns – a novata vermelha estava com a mão trêmula quando enxugou o suor com fuligem do seu rosto, gaguejando as palavras. – E-eu peguei Diva porque sempre gostei dela e pensei que ela podia se lembrar de mim. Mas até ela estava assustada. Realmente assustada.

Então Lenobia reconheceu a garota: Nicole. Ela tinha uma aptidão com cavalos e um modo natural de montar antes de morrer, ressuscitar e se juntar ao grupo do mal de Dallas. Mas não havia tempo para questionar a garota. Não havia tempo para nada, exceto levar os cavalos – e Travis – para um local seguro.

– Você fez bem, Nicole. Você pode entrar de novo lá?

– Sim – Nicole concordou trêmula. – Não quero que eles se queimem. Farei qualquer coisa que você mandar.

Lenobia colocou a mão no ombro da garota.

– Eu só preciso que você abra as baias e saia do caminho. Eu vou guiá-los para um local seguro.

– Ok, ok. Eu consigo fazer isso – Nicole concordou. Ela soou aflita e assustada, mas seguiu Lenobia sem hesitação, e as duas correram de volta para o turbilhão de calor dentro do estábulo.

– Travis! – Lenobia tossiu, tentando enxergar através da fumaça cada vez mais espessa. – Você está me ouvindo?

Mais alto que o som crepitante das chamas, ele gritou:

– Sim! Estou aqui atrás. Fechado na baia!

– Abra a baia! – Lenobia se recusou a ceder ao seu próprio pânico. – Abra todas as baias! Eu consigo chamar os cavalos para mim, para um local seguro. Posso fazê-los sair. Siga-os. Posso guiar todos vocês para fora!

– Já abri! – Travis gritou logo depois, do meio da fumaça e do calor.

– Já abri todas aqui também! – Nicole gritou bem mais perto.

– Agora sigam os cavalos e saiam do estábulo! – Lenobia berrou antes de começar a correr para trás, para longe do fogo e em direção à porta dupla da saída que ela deixou bem aberta. Em pé, na frente da porta, ela levantou os braços, com as palmas voltadas para fora, e imaginou que estava extraindo poder diretamente do Mundo do Além e do reino místico de Nyx. Lenobia abriu seu coração, sua alma e seu dom concedido pela Deusa e gritou: – Venham, meus belos filhos e filhas! Sigam minha voz e meu amor e vivam!

Pareceu haver um estouro da manada, com cavalos saindo em disparada do meio das labaredas e da fumaça escura. O terror deles era tão palpável para Lenobia que era quase como um ser vivo. Ela compreendeu isso – o seu medo das chamas, do fogo e da morte – e canalizou força e serenidade para si mesma e para os cavalos que passavam por ela galopando em direção aos jardins da escola.

A novata vermelha saiu cambaleando e tossindo atrás deles.

– Acabou. Todos os cavalos saíram – ela disse, desabando no gramado.

Lenobia deu um aceno rápido de cabeça para Nicole por consideração. Suas emoções estavam concentradas na manada agitada atrás dela, e seus olhos estavam focados na fumaça espessa e nas chamas flamejantes diante dela, das quais Travis não saía.

– Travis! – ela gritou.

Não houve nenhuma resposta.

– O fogo está se espalhando rápido – a novata vermelha falou ainda tossindo. – Ele pode estar morto.

– Não – Lenobia respondeu com firmeza. – Não desta vez – ela se voltou na direção da manada, chamando a sua amada égua negra. – Mujaji!

O cavalo relinchou e veio trotando até ela. Lenobia levantou a mão, fazendo-a parar.

– Fique calma, doçura. Cuide dos meus outros filhos. Empreste a eles a sua força e serenidade, assim como o meu amor – Lenobia disse.

Com relutância, porém obedientemente, a égua começou a andar ao redor do bando de cavalos assustados, agrupando-os. Satisfeita, Lenobia se virou, inspirou duas vezes profundamente e entrou em disparada na boca do estábulo em chamas.

O calor estava terrível. A fumaça era tão densa que era como tentar respirar um líquido efervescente. Por um instante, Lenobia foi transportada de volta para aquela noite horrível em Nova Orleans e para outro celeiro em chamas. Os sulcos grossos das cicatrizes nas suas costas latejaram como uma memória fantasma de dor, e por um momento o pânico reinou, enraizando Lenobia no passado.

Então ela o escutou tossir, e o seu pânico foi despedaçado pela esperança, permitindo que o presente e a força verdadeira da vontade de Lenobia superassem o seu medo.

– Travis! Eu não estou te vendo! – ela gritou e arrancou a parte de baixo de sua camisola, entrou na baia mais próxima e mergulhou o pano na água do cocho.

– Saia... daqui... – ele disse entre uma tosse seca e outra.

– Nem ferrando. Já vi um homem queimar por minha causa. Não gosto nada disso. – Lenobia colocou o tecido ensopado sobre ela como um manto com capuz e avançou mais para dentro da fumaça e do calor, seguindo a tosse de Travis.

Ela o encontrou perto de uma baia aberta. Ele havia caído e estava tentando se levantar, mas só havia conseguido se ajoelhar e estava curvado para frente, quase vomitando e tossindo. Lenobia não hesitou. Ela entrou na baia e molhou o tecido rasgado na água do cocho da baia de novo.

– O quê...? – outra tosse o acometeu enquanto ele franzia os olhos para ela. – Não! Saia...

– Eu não tenho tempo para discutir. Apenas deite-se – ela falou. Como ele não se moveu rápido o bastante, ela deu uma rasteira por baixo dos seus joelhos. Ele caiu de costas com um gemido e ela estendeu o tecido molhado sobre o rosto e o peito dele. – Isso, assim mesmo. Na horizontal – Lenobia ordenou, enquanto foi até o cocho e rapidamente espalhou água pelo seu próprio rosto e cabelo. Então, antes que ele pudesse protestar ou estragar o plano dela se mexendo, ela agarrou as pernas de Travis e começou a puxá-lo.

Ele tinha que ser tão grande e pesado? A mente de Lenobia estava ficando confusa. As chamas estavam rugindo em volta dela, e ela tinha certeza de que podia sentir o cheiro de cabelo queimado. Bem, Martin também era grande... E então a mente dela parou de funcionar. Era como se o seu corpo estivesse se movendo no piloto automático, sem ninguém para dirigi-lo, exceto uma necessidade primordial de continuar arrastando aquele homem para longe do perigo.

– É ela! É Lenobia!

De repente, mãos fortes estavam ali, tentando tirar aquela carga dela. Lenobia lutou. A morte não vai vencer desta vez! Não desta vez!

– Professora Lenobia, está tudo bem. Você conseguiu.

Então a mente dela registrou o frescor do ar e foi capaz de entender o que estava acontecendo. Ela ofegou, inspirando o ar puro e tossindo o calor e a fumaça, enquanto mãos gentis a ajudaram a se sentar na grama e colocaram uma máscara sobre o seu nariz e sua boca, através da qual um ar ainda mais puro inundou os seus pulmões. Ela sugou o oxigênio e a sua mente clareou completamente.

Um enxame de bombeiros humanos lotava os jardins. Poderosas mangueiras estavam voltadas para o estábulo em chamas. Dois paramédicos estavam ao redor dela, observando-a, parecendo perdidos e obviamente surpresos com a rapidez com que ela estava se recuperando.

Ela arrancou a máscara do rosto.

– Não cuidem de mim. Cuidem dele! – ela puxou o tecido quente do corpo de Travis, que ainda estava imóvel demais. – Ele é humano. Ajudem-no!

– Sim, senhora – um dos paramédicos murmurou e então eles começaram a trabalhar em Travis.

– Lenobia, beba isto – alguém disse e uma taça foi colocada em suas mãos.

A Mestra dos Cavalos levantou os olhos e viu duas vampiras curandeiras da enfermaria da Morada da Noite, Margareta e Pemphredo, agachadas ao lado dela. Lenobia bebeu de uma vez todo o vinho, que estava bastante misturado com sangue, sentindo instantaneamente a energia vital que ele carregava formigar pelo seu corpo.

– É melhor você vir com a gente, professora – Margareta afirmou. – Você vai precisar de mais do que isso para se curar completamente.

– Mais tarde – Lenobia respondeu, deixando a taça de lado. Ela ignorou as curandeiras, bem como as sirenes, as vozes e o caos generalizado ao seu redor. Lenobia engatinhou em direção à cabeça de Travis. Os paramédicos estavam ocupados. O cowboy já estava usando uma máscara, e eles estavam dando uma injeção no seu braço. Os olhos dele estavam fechados. Mesmo por baixo da sujeira da fuligem, ela podia ver que o seu rosto estava escaldado e vermelho. Ele estava usando uma camiseta para fora da calça, que obviamente tinha vestido apressadamente por sobre o jeans. Os seus antebraços fortes estavam descobertos e cheios de bolhas. E as suas mãos... as suas mãos estavam queimadas e ensanguentadas.

Ela deve ter feito algum barulho involuntário – sinal da terrível dor de cabeça que estava sentindo –, pois Travis abriu os olhos. Eles eram exatamente como ela se lembrava: castanhos, com um tom de uísque e traços verde-oliva. Os seus olhares se encontraram e se fixaram um no outro.

– Ele vai sobreviver? – ela perguntou ao paramédico mais próximo.

– Eu já vi casos piores, e ele vai ter cicatrizes, mas nós temos que levá-lo ao hospital St. John o mais rápido possível. A inalação de fumaça foi pior do que as suas queimaduras – o humano fez uma pausa e, apesar de Lenobia não tirar os olhos de Travis, pôde escutar o sorriso na voz do paramédico. – Ele é um cara de sorte. Quase você não o encontra a tempo.

– Na verdade, levei duzentos e vinte e quatro anos para encontrá-lo, mas estou feliz que cheguei a tempo.

Travis começou a dizer algo, mas suas palavras foram cortadas por uma tosse seca horrível.

– Com licença, senhora. A maca chegou.

Lenobia se afastou para o lado, enquanto Travis era transferido para a maca com rodinhas, mas em nenhum momento eles deixaram de se olhar. Ela caminhou ao lado dele enquanto os paramédicos empurravam a maca até a ambulância que estava à espera. Antes de o colocarem lá dentro, ele tirou a máscara e, com uma voz áspera, perguntou:

– Bonnie? Ok?

– Ela está bem. Eu posso senti-la. Ela está com Mujaji. Vou cuidar dela. Vou cuidar de todos eles e deixá-los em segurança – ela assegurou a ele.

Ele estendeu a mão para Lenobia, e ela cuidadosamente tocou sua mão queimada e ensanguentada.

– Você vai cuidar de mim também? – ele conseguiu perguntar.

– Sim, cowboy. Você pode apostar sua bela e grande égua que eu vou – e sem se importar nem um pouco com os olhares de humanos, novatos e vampiros que ela podia sentir na direção dela, Lenobia se inclinou e o beijou suavemente na boca. – Procure por alegria e cavalos. Eu vou estar lá. Desta vez, cuidando para que você esteja a salvo.

– Bom saber. Minha mãe sempre dizia que eu precisava de alguém que cuidasse de mim. Espero que ela descanse em paz sabendo que eu consegui essa pessoa – a voz dele soou como se a sua garganta fosse uma lixa.

Lenobia sorriu.

– Você conseguiu, mas eu acho que é você que precisa aprender a descansar.

As pontas dos dedos dele tocaram a mão de Lenobia, e ele disse:

– Acho que agora eu vou conseguir. Eu só estava esperando encontrar o meu caminho de volta para casa.

Lenobia encarou aqueles olhos âmbar esverdeados que lhe eram tão familiares, tão incrivelmente parecidos com os de Martin, e imaginou que através deles ela podia enxergar a verdadeira natureza daquela alma também familiar – a bondade, a força, a honestidade e o amor que, de algum modo, haviam cumprido a sua promessa de voltar para ela. Lá no fundo do coração, Lenobia sabia que, apesar de no resto da aparência o cowboy alto e rijo não ter nenhuma semelhança com o seu amor perdido, ela havia encontrado o seu coração de novo. A emoção travou a sua voz, e tudo o que ela podia fazer era sorrir, concordar com a cabeça e virar a mão para que os dedos dele pousassem na sua palma – quente, forte e muito viva.

– Nós temos que levá-lo ao hospital, senhora – afirmou o paramédico.

Lenobia tirou sua mão de Travis com relutância, enxugou os olhos e disse:

– Você pode levá-lo por pouco tempo, mas eu o quero de volta. Logo – ela dirigiu o seu olhar, que parecia uma nuvem de tempestade, para o humano de jaleco. – Trate-o bem. Esse fogo no celeiro não é nada perto do meu temperamento inflamado.

– S-sim, senhora – o paramédico gaguejou, rapidamente colocando Travis dentro da ambulância.

Lenobia teve certeza de que ouviu a risada de Travis no meio da sua tosse horrorosa, antes de as portas da ambulância se fecharem e de eles partirem com a sirene piscando.

Ela estava parada ali, olhando a ambulância se afastar e preocupada com Travis, quando alguém próximo limpou a garganta de um jeito bem óbvio, atraindo a atenção de Lenobia instantaneamente. Ao se virar, ela enxergou o que a sua visão antes totalmente capturada por Travis havia ignorado. Parecia que a escola havia explodido. Cavalos movendo-se nervosamente o mais perto do muro leste que eles conseguiam chegar. Caminhões de bombeiros estavam estacionados nos jardins ao lado do estábulo, esguichando água de enormes mangueiras na direção do prédio ainda em chamas. Novatos e vampiros tinham se reunido em grupos assustados, parecendo impotentes.

– Calma, Mujaji, calma... Está tudo bem agora, minha doçura. – Lenobia fechou os olhos e se concentrou em usar o dom que a sua Deusa havia concedido a ela há mais de duzentos anos. Ela sentiu a bela égua negra responder imediatamente, relaxando da sua agitação e acabando com o resto do seu medo e nervosismo. Então Lenobia voltou sua conexão para a grande Percherão, que estava preocupada escavando o chão, movendo as orelhas, buscando algum sinal de Travis. – Bonnie, ele está bem. Você não tem com o que se preocupar – Lenobia falou suavemente, ecoando as ondas de emoção que ela estava transmitindo para a égua ansiosa. Bonnie se acalmou quase tão rápido quanto Mujaji, o que agradou bastante Lenobia e permitiu que ela direcionasse sua atenção facilmente para o resto dos cavalos. – Persephone, Anjo, Diva, Little Biscuit, Okie Dodger – ela enviou afeto e segurança individualmente para os cavalos –, sigam a liderança de Mujaji. Fiquem calmos. Sejam fortes. Vocês estão a salvo.

A pessoa próxima a ela limpou a garganta novamente, interrompendo a concentração dela. Irritada, Lenobia abriu os olhos e viu um humano parado na sua frente. Ele vestia um uniforme de bombeiro e a estava observando com as sobrancelhas arqueadas e uma curiosidade explícita.

– Você está falando com aqueles cavalos?

– Na verdade, estou fazendo muito mais do que isso. Dê uma olhada – ela fez um gesto para a manada diante dela.

Ele se virou, e o seu rosto registrou a sua surpresa.

– Eles se acalmaram bastante. Isso é bizarro.

– A palavra “bizarro” tem tantas conotações negativas. Prefiro a palavra “mágico”. – Lenobia fez um aceno de cabeça, despedindo-se do bombeiro, e então começou a andar a passos largos na direção do grupo de novatos que estavam aglomerados em volta de Erik Night e da professora P.

– Senhora, eu sou o capitão Alderman, Steve Alderman – ele disse, quase correndo para acompanhar o passo de Lenobia. – Estamos trabalhando para controlar o fogo, e eu preciso saber quem é o responsável pela escola.

– Capitão Alderman, eu gostaria de dizer que sou eu – Lenobia disse sombriamente. Então ela acrescentou: – Venha comigo. Vou resolver isso – a Mestra dos Cavalos se juntou a Erik, professora P. e seu grupo de novatos, que incluía um guerreiro Filho de Erebus, Kramisha, Shaylin e vários novatos azuis quinto-formandos e sexto-formandos. – Penthesilea, eu sei que Thanatos está com Zoey e o seu círculo, terminando o ritual na fazenda da Sylvia Redbird, mas onde está Neferet? – a voz de Lenobia soou como um chicote.

– E-eu simplesmente não sei! – a professora de Literatura respondeu trêmula, olhando por sobre o seu ombro para o estábulo em chamas. – Eu fui até os aposentos dela quando vi o fogo, mas não havia nenhum sinal dela.

– E ninguém tentou ligar para ela? – Kramisha perguntou.

– Não atende – Erik respondeu.

– Que maravilha – Lenobia resmungou.

– Posso supor então que, na ausência dessas pessoas que acabou de mencionar, você é a responsável aqui? – o capitão Alderman questionou Lenobia.

– É, parece que, como não sobrou ninguém, sou eu – ela disse.

– Bem, então você precisa fazer a contagem dos estudantes o mais rápido possível. Você e os professores precisam conferir imediatamente se todos os alunos estão presentes – ele indicou com o polegar um banco não muito longe de onde eles estavam. – Aquela garota com a lua vermelha na testa é a única garota que encontramos perto do celeiro. Ela não está ferida, apenas um pouco abalada. O oxigênio está limpando os pulmões dela surpreendentemente rápido. Mesmo assim, pode ser uma boa ideia que ela seja examinada no hospital St. John.

Lenobia deu uma olhada para Nicole, que estava sentada respirando profundamente com uma máscara de oxigênio, enquanto um paramédico conferia seus sinais vitais. Margareta e Pemphredo estavam por perto, fuzilando o paramédico com os olhos, como se ele fosse um inseto irritante.

– A nossa enfermaria está mais bem equipada para cuidar de novatos feridos do que um hospital humano – Lenobia afirmou.

– Como achar melhor, senhora. Você é a responsável aqui, e sei que vocês, vampiros, têm uma fisiologia própria. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Sem ofensas. Meu melhor amigo no ensino médio foi Marcado e Transformado. Eu gostava dele na época. E ainda gosto dele.

Lenobia controlou o sorriso.

– Não me senti ofendida, capitão Alderman. Nós estamos apenas falando a verdade. Os vampiros realmente têm necessidades fisiológicas diferentes das dos humanos. Nicole vai ficar bem aqui com a gente.

– Ótimo. Acho que é melhor enviar alguns rapazes para dentro daquele ginásio para procurar outros garotos que podem estar por perto – o capitão falou. – Parece que nós conseguimos evitar que o fogo se espalhasse, mas é melhor fazer uma busca nas partes adjacentes da escola.

– Acho que procurar no ginásio é uma perda de tempo para os seus homens – Lenobia afirmou, seguindo o que o seu instinto estava lhe dizendo. – Concentre-se em fazer com que eles acabem com o fogo no estábulo. O incêndio não começou sozinho. Isso precisa ser investigado, além de nos certificarmos de que nenhum dos nossos ficou preso nas chamas. Eu vou pedir que os nossos guerreiros façam buscas nas áreas adjacentes da escola, começando pelo ginásio.

– Sim, senhora. Parece que realmente nós chegamos aqui a tempo. O ginásio vai ter danos de fumaça e água, mas vai parecer muito pior do que realmente é. Acho que a estrutura permaneceu intata. É um edifício sólido, feito de pedras boas e espessas. Vai ser preciso alguma reforma, mas o seu esqueleto foi feito para durar – o bombeiro tocou no seu chapéu para cumprimentá-la e se afastou, gritando ordens para os homens mais próximos.

Bem, pelo menos algumas notícias boas, Lenobia pensou, tentando desviar os olhos do caos em combustão em que o seu estábulo tinha se transformado. Ela se virou de novo para o seu grupo.

– Onde está Dragon? Ainda no ginásio?

– Nós também não conseguimos encontrar Dragon – Erik respondeu.

– Dragon está desaparecido? – O estábulo tinha sido construído com uma parede compartilhada com o grande ginásio coberto. Até então, ela havia estado muito preocupada para pensar nisso, mas a ausência do líder dos Filhos de Erebus durante uma crise na escola era algo totalmente estranho. – Neferet e Dragon... Não gosto do fato de que nenhum deles está aqui. Isso é um mau presságio para a escola.

– Professora Lenobia, hum, eu vi Neferet.

Os olhos de todos se voltaram para a pequena garota de cabelos grossos e escuros que faziam as feições delicadas do seu rosto parecerem quase de boneca. Lenobia colocou um nome rapidamente naquele rosto: Shaylin, a novata recém-chegada na Morada da Noite de Tulsa e a única novata cuja Marca original era vermelha. No instante em que a conhecera alguns dias atrás, Lenobia pensou que havia algo muito estranho com ela.

– Você viu Neferet? – ela franziu os olhos para a novata. – Onde? Quando?

– Há mais ou menos uma hora – Shaylin respondeu. – Eu estava sentada do lado de fora do dormitório, olhando para as árvores. – Ela encolheu os ombros, nervosa, e acrescentou: – Eu era cega e, agora que eu não sou mais, gosto de olhar para as coisas. Adoro.

– Shaylin, e Neferet? – Erik a estimulou a continuar.

– Ah, sim, eu a vi andando pela calçada em direção ao ginásio. Ela, bem, ela parecia muito escura – Shaylin fez uma pausa, parecendo desconfortável.

– Escura? O que você quer dizer com...

– Shaylin tem um jeito único de ver as pessoas – Erik interrompeu. Lenobia o viu colocar a mão sobre o ombro de Shaylin para tranquilizá-la. – Se ela achou que Neferet parecia escura, então provavelmente foi bom você ter evitado que os bombeiros humanos fossem bisbilhotar no ginásio.

Lenobia queria questionar mais Shaylin, mas Erik encontrou o seu olhar e balançou a cabeça, quase imperceptivelmente. Lenobia sentiu um arrepio de mau pressentimento descendo pela sua espinha. Aquela premonição fez com que ela tomasse a decisão.

– Axis, vá com Penthesilea até o escritório da administração. Se Diana não estiver acordada, acorde-a. Pegue a lista de alunos e a distribua para os guerreiros Filhos de Erebus. Peça para que eles contem todos os estudantes e depois faça com que os estudantes apresentem-se aos seus mentores antes de voltarem aos dormitórios. – Quando a professora e o guerreiro saíram apressados, Lenobia encontrou o olhar franco de Kramisha. – Você pode fazer com que esses novatos – Lenobia fez uma pausa e seu gesto abrangeu todos os alunos com aparência desnorteada que estavam vagando pela área – se apresentem aos seus mentores?

– Sou uma poetisa. Eu consigo criar alguns pentâmetros iâmbicos incríveis. Isso significa que eu posso dar uma de chefe de alguns garotos assustados e sonolentos.

Lenobia sorriu para a garota. Ela já gostava de Kramisha mesmo antes de ela morrer e depois voltar como uma novata vermelha, que tinha tantas habilidades poéticas e proféticas que havia sido nomeada a nova vampira Poeta Laureada.

– Obrigada, Kramisha. Eu sabia que podia contar com você. Mas é bom se apressar. Não preciso dizer isso para você, mas está bem perto de amanhecer.

Kramisha bufou.

– Você está me dizendo isso? Eu vou ficar mais tostada do que aquele celeiro se eu não entrar em um lugar coberto logo.

Quando Kramisha saiu apressada, chamando os novatos espalhados, Lenobia encarou Erik e Shaylin.

– Nós três precisamos dar uma examinada no ginásio.

– É, eu concordo – Erik disse. – Vamos lá.

Mas Shaylin não saiu do lugar, e Lenobia percebeu que ela tirou a mão de Erik do seu ombro. Não de um jeito irritado, mas, sim, distraído. Ela viu a jovem novata vermelha olhar para o céu e suspirar. Lenobia notou que ela parecia se sentir importante, que ela exibia uma sensação de quem queria ou esperava algo.

– O que foi? – Lenobia perguntou para a garota, apesar de a última coisa que ela deveria fazer naquele momento era dar atenção para uma novata vermelha distraída e estranha.

Ainda olhando para cima, Shaylin falou:

– Onde está a chuva quando você precisa dela?

– Ahn? – Erik balançou a cabeça. – Do que você está falando?

– Chuva. Eu queria muito, muito mesmo que chovesse – a garota baixou os olhos do céu e se voltou para ele, encolhendo os ombros e parecendo um pouco sem jeito. – Juro que eu posso sentir um cheiro de chuva no ar. Isso iria ajudar os bombeiros e seria uma garantia dupla de que o fogo não vai se espalhar para o resto da escola.

– Os humanos estão conseguindo lidar com o fogo. Nós temos que examinar o ginásio. Não gosto do fato de Neferet ter sido vista entrando lá – Lenobia afirmou e começou a andar em direção ao ginásio, supondo que os dois iriam segui-la, mas ela hesitou ao perceber que Shaylin ainda continuava lá. Ela se virou para a novata e estava pronta para repreendê-la por insolência ou ignorância, mas Erik disse algo antes:

– Ei, isso é importante – ele falou com uma voz baixa e urgente para Shaylin. – Vamos com Lenobia conferir o ginásio. Os bombeiros já estão com as coisas sob controle. – Como Shaylin não saiu do lugar e continuou a resistir em ir até o ginásio, ele falou mais alto: – O que há com você? Já que Thanatos, Dragon e até Zoey e o seu grupo não estão aqui, a gente tem que tomar cuidado para não deixar ninguém pensar que nós podíamos...

– Erik, eu realmente acho que Lenobia está certa – Shaylin o interrompeu. – Eu só quero saber o que vai acontecer com ela.

Lenobia seguiu o olhar de Shaylin e encontrou Nicole, ainda sentada no banco, entre duas vampiras da enfermaria, com a pele rosa e manchada de fuligem.

– Ela faz parte do grupo de novatos vermelhos de Dallas. Eu não ficaria surpreso se ela tivesse algo a ver com o incêndio – Erik insinuou, claramente irritado. – Lenobia, acho que você deveria fazer com que Nicole vá até a enfermaria e fique trancada lá até nós descobrirmos o que realmente aconteceu aqui.

Antes de Lenobia responder, Shaylin já estava falando. Ela soou firme e muito mais sábia do que deveria ser aos dezesseis anos.

– Não. Façam com que ela vá até a enfermaria para ter certeza de que ela está bem, mas não a prendam lá.

– Shaylin, você não sabe o que está dizendo. Nicole está com Dallas – Erik afirmou.

– Bem, neste momento ela não está com ele. Ela está mudando – Shaylin respondeu.

– Realmente, ela me ajudou a tirar os cavalos do estábulo – Lenobia disse. – Se ela estivesse envolvida com o incêndio, teria sido muito mais fácil se esconder e fugir no meio da fumaça. Eu nunca saberia que ela esteve lá.

– Isso faz sentido. As cores dela estão diferentes... melhores. – E então Shaylin, com a sua firmeza e sabedoria se dissipando, arregalou os olhos para Lenobia: – Ah, desculpe. Eu falei demais. Preciso aprender a manter a minha boca fechada.

– Que atrocidade foi cometida nos jardins da escola esta noite!

A voz ressoou como um trovão sobre Lenobia. Pelos jardins da escola, movendo-se rapidamente em direção a eles, havia uma falange de vampiros e novatos, com Thanatos à frente, Zoey e Stevie Rae cada uma ao seu lado e, por mais bizarro que fosse, Kalona marchando logo atrás de Thanatos, com as asas abertas defensivamente, como se ele de repente tivesse se tornado o Anjo Guardião da Morte.

Foi nessa hora que o céu da noite se abriu e começou a chover.


3 Zoey

Eu já sabia antes mesmo de ver os caminhões dos bombeiros e a fumaça. Eu já sabia que o inferno ia se instalar na Morada da Noite no momento em que Thanatos testemunhou a verdade sobre os crimes de Neferet. Nesta noite, havia sido provado sem sombra de dúvidas que Neferet estava do lado das Trevas. Thanatos não havia perdido tempo para enxotá-la. No caminho de volta da fazenda de lavandas de vovó até a escola, a Grande Sacerdotisa da Morte havia feito uma chamada de emergência para a Itália e informado oficialmente o Conselho Supremo dos Vampiros de que Neferet não era mais uma Sacerdotisa de Nyx – que ela tinha escolhido as Trevas como seu Consorte. Neferet tinha sido vista como realmente era, algo que eu queria muito desde que eu havia percebido a sua verdade nojenta. Só que, agora que eu tinha realizado meu desejo, tive uma sensação terrível de que expulsar Neferet serviria mais para libertá-la do que para forçá-la a pagar pelas consequências das suas mentiras e traições.

Tudo parecia tão confuso e horroroso, como se a noite toda tivesse sido a metade final de um filme de terror medonho e sanguinolento: o ritual, assistir às imagens do assassinato da minha mãe, tudo o que tinha acontecido com Dragon, Rephaim, Kalona e Aurox... Aurox? Heath? Não, eu não posso pensar nisso! Não agora! Agora os estábulos estavam em chamas. Sério. Os cavalos da escola estavam relinchando e se aglomerando nervosamente perto do muro leste. Lenobia parecia chamuscada e coberta de fuligem. Erik, Shaylin e um monte de outros novatos estavam parados lá, chocados e ensopados porque, é claro, havia começado a cair uma chuva torrencial. E Nicole, a garota que era uma novata vermelha super do mal e a namorada vadia e detestável do Dallas, estava caída em um banco com dois paramédicos humanos em volta dela como se fosse o menino Jesus com asas douradas.

Eu queria apertar um botão, desligar aquele filme assustador e pegar no sono, deitada de conchinha com Stark, em segurança. Que inferno, eu queria fechar os olhos e voltar no tempo, quando o pior estresse que eu tinha era ter três namorados, e isso tinha sido muito, muito ruim.

Eu me chacoalhei mentalmente, fiz o melhor que podia para afastar o caos que me rodeava por dentro e por fora e me concentrei em Lenobia.

– Sim, o estábulo pegou fogo – ela estava explicando para a gente. – Nós não sabemos quem ou o que provocou isso. Algum de vocês viu Neferet?

– Nós não a vimos em pessoa, mas vimos a imagem dela em espírito que ficou gravada nas terras da avó de Zoey. – Thanatos levantou o queixo e, com uma voz forte e segura que se sobrepôs à chuva, declarou: – Neferet se aliou ao touro branco. Ela sacrificou a mãe de Zoey para ele. Ela vai ser uma inimiga poderosa, mas é inimiga de todos que seguem a Luz e a Deusa.

Percebi que esse anúncio chocou Lenobia, apesar de eu saber que a Mestra dos Cavalos já estava ciente de que Neferet era nossa inimiga havia meses. Mesmo assim, existia uma grande diferença entre imaginar algo e saber que o pior que você havia imaginado era verdade. Especialmente quando isso era tão horrível que quase fugia à compreensão. Então Lenobia limpou a garganta e perguntou:

– O Conselho Supremo a baniu?

– Eu relatei o que testemunhei esta noite – Thanatos disse, portando-se como a Grande Sacerdotisa da nossa Morada da Noite. – Foi determinado que Neferet se apresente perante o Conselho Supremo, que vai fazer justiça pela traição dela à nossa Deusa e aos nossos caminhos.

– Ela deve ter imaginado o que vocês iriam descobrir se o ritual desse certo – Lenobia afirmou.

– Sim, e é por isso que ela mandou aquela coisa dela atrás de nós... Para matar Rephaim e estragar o nosso círculo, acabando com o ritual de revelação – Stevie Rae falou, entrelaçando sua mão à de Rephaim, que estava parado, alto e forte, ao seu lado.

– Parece que não deu certo – Erik observou.

Ele estava perto de Shaylin. Agora que eu pensei nisso, parece que Erik estava passando muito tempo perto de Shaylin. Hummm...

– Bem, o plano dela teria funcionado – Stevie Rae explicou –, mas Dragon apareceu lá e segurou Aurox por um tempo – ela fez uma pausa e olhou para trás em direção a Kalona. Na verdade, ela deu seu típico sorriso doce e afetuoso para ele, antes de continuar. – Foi Kalona quem realmente salvou Rephaim. Kalona salvou o seu filho.

– Dragon! Então é com vocês que ele está – Erik exclamou, movendo-se para olhar atrás de nós, obviamente esperando ver Dragon.

Senti um aperto no estômago e pisquei com força para não cair em prantos. Como ninguém disse nada, respirei fundo e dei aquela notícia realmente triste e péssima.

– Dragon estava com a gente. Ele lutou para nos proteger. Bem, para proteger a nós e Rephaim. Mas... – perdi a fala, achando difícil dizer as próximas palavras.

– Mas Aurox furou Dragon com seus chifres até a morte, quebrando o feitiço que havia nos aprisionado e libertando-nos para que nós conseguíssemos chegar até Rephaim para protegê-lo – Stark não teve problemas em terminar para mim.

– Mas já era tarde demais – Stevie Rae acrescentou. – Rephaim também teria morrido se Kalona não tivesse aparecido a tempo de salvá-lo.

– Dragon Lankford está morto? – o rosto de Lenobia havia ficado imóvel e pálido.

– Está. Ele morreu como um guerreiro, fiel a si mesmo e ao seu Juramento. Ele se reencontrou com sua companheira no Mundo do Além – Thanatos concluiu. – Todos nós testemunhamos isso.

Lenobia fechou os olhos e abaixou a cabeça. Percebi que os lábios dela estavam se movendo, como que murmurando uma prece em voz baixa. Quando ela levantou a cabeça, seu rosto estava marcado por vincos de raiva e os seus olhos cinza pareciam nuvens de tempestade.

– Incendiar o meu estábulo foi uma distração que permitiu que Neferet escapasse.

– Parece provável – Thanatos concordou. Então a Grande Sacerdotisa fez uma pausa, como se estivesse escutando atentamente algo além do barulho da chuva, dos bombeiros e dos cavalos. Ela franziu os olhos e disse: – A Morte esteve aqui... Recentemente.

Lenobia balançou a cabeça.

– Não, os bombeiros já estão liberando o estábulo. Eu acredito que ninguém morreu lá.

– Não estou sentindo o espírito de um novato ou de um vampiro – Thanatos respondeu.

– Todos os cavalos saíram! – a voz de Nicole se levantou subitamente. Fiquei surpresa com o seu tom. Quero dizer, até aquele momento eu só tinha ouvido Nicole rindo sarcasticamente ou dizendo coisas maldosas. Agora Nicole soou como uma garota normal, preocupada com coisas como cavalos pegando fogo e o mal solto no mundo.

Mas Stevie Rae, assim como eu, conhecia uma Nicole muito diferente.

– Que diabo você está fazendo aqui, Nicole? – Stevie Rae perguntou.

– Ela estava ajudando Lenobia e Travis a tirar os cavalos do estábulo – Shaylin explicou.

– Sei, tenho certeza de que ela estava ajudando... logo depois de colocar fogo lá! – Stevie Rae afirmou.

– Sua vaca, você não pode falar assim comigo! – Nicole respondeu de um jeito sarcástico, sua voz ficando bem mais familiar.

– Se liga, Nicole – eu falei, colocando-me ao lado de Stevie Rae.

– Basta! – Thanatos levantou as mãos e o seu poder emanou, crepitando mais alto que a chuva e fazendo todos darem um salto. – Nicole, você é uma novata vermelha. Já passou da hora de você submeter a sua lealdade à única Grande Sacerdotisa da sua espécie. Você não vai xingá-la. Está entendido?

Nicole cruzou os braços e concordou com a cabeça uma vez. Ela não pareceu arrependida de jeito nenhum para mim, e a atitude dela, coroando todo o resto que tinha acontecido naquela noite, realmente me irritou. Eu a encarei e disse exatamente o que estava na minha cabeça:

– Você tem que entender que ninguém vai aturar mais a sua maldade. De agora em diante, as coisas vão ser diferentes.

– E você vai ter que passar por cima de mim para machucar Zoey – Stark disse.

– Você me usou para tentar matar Stevie Rae uma vez. Isso nunca mais vai acontecer – Rephaim subiu o tom.

– Zoey, Stevie Rae – Thanatos interveio enfaticamente. – Para serem respeitadas como Grandes Sacerdotisas, vocês precisam agir de modo adequado, assim como os seus guerreiros.

– Ela tentou nos matar. A nós duas! – Stevie Rae argumentou.

– Não recentemente! – Nicole gritou para Stevie Rae.

– Como nós podemos combater as grandes Trevas ancestrais que agora foram soltas no mundo se não passamos de crianças birrentas? – Thanatos falou em voz baixa. Ela não soou poderosa, nem sábia, nem forte. Ela soou cansada e sem esperança, e isso foi muito mais assustador do que o barulho crepitante que ela tinha feito antes.

– Thanatos está certa – eu concordei.

– Do que você está falando, Z.? Você sabe como Nicole é de verdade – Stevie Rae apontou para ela. – Assim como você sabia como Neferet era de verdade, mesmo quando ninguém acreditava em você.

– Estou falando que Thanatos está certa sobre a birra. Nós não podemos nem começar a combater Neferet se o nosso time não for forte e unido – olhei para Nicole. – O que significa: entre no nosso time ou vai pro inferno.

– Se ela está amaldiçoando, está falando sério – Aphrodite reforçou.

– Eu estou de acordo com ela – Damien afirmou.

– Assim como eu – Darius acrescentou.

– Eu também – Shaunee falou. Logo depois dela, Erin disse: – É.

– Eu já escolhi o meu lado – Kalona declarou solenemente. – Acho que é hora de os outros também escolherem.

– Eu sou nova por aqui, mas sei qual lado é o certo, e eu escolho o lado deles – Shaylin se aproximou mais de nós.

Erik a seguiu. Ele não disse nada, mas encontrou meu olhar e assentiu com a cabeça. Sorri para ele e me virei para encarar Thanatos, apoiada pela solidariedade do meu grupo.

– Nós não somos crianças birrentas. Nós só estamos cansados de receber ordens de pessoas que dizem que sabem o que é melhor, mas que parecem que continuam fazendo besteiras, até mais do que a gente.

– Ou seja, muitas – Aphrodite comentou ironicamente.

– Você não está ajudando – respondi automaticamente. Para Nicole, eu disse: – Então escolha o seu time.

– Ok. Eu escolho o Time Nicole – ela falou.

– Que na verdade significa Time Egoísta – Stevie Rae rebateu.

– Ou Time Detestável – Erin sugeriu.

– Ou Time Nada Atraente – Aphrodite acrescentou.

– Thanatos está indo embora – Lenobia disse rapidamente, indicando as costas da Grande Sacerdotisa.

– Como eu já previa – a voz de Kalona pareceu secar a chuva com a sua raiva. – Ela volta para o seu civilizado Conselho Supremo e nos deixa aqui para combater o mal.

Thanatos parou, virou-se e fuzilou o imortal alado com o seu olhar sombrio.

– Guerreiro juramentado, fique quieto! As minhas palavras não são menos desconfortáveis do que as suas. Estou indo é atrás da Morte. Infelizmente, isso não me leva para longe desta escola, nem vai me levar num futuro próximo. – Sem dizer mais nada, Thanatos continuou se afastando de nós, indo em direção à entrada fumegante do ginásio.

– Afe, ela é tão dramática – Aphrodite revirou os olhos. – Ela já disse que não é nenhum novato, vampiro ou cavalo. Então, e daí? Se a porra de um mosquito morre, nós temos que nos descabelar?

– Qual é o seu problema? – Nicole balançou a cabeça para Aphrodite. – Deusa! Você é mesmo uma bruxa histérica. Por que você não pensa antes de falar tanta besteira? Thanatos não está falando de insetos e merdas assim. Ela só pode estar falando de algum gato. É o único outro espírito de animal aqui com o qual ela se importa.

Aquilo calou Aphrodite, criando o que pareceu um vácuo gigante de silêncio, enquanto todos nós percebíamos que Nicole devia estar certa.

Eu perdi o fôlego.

– Ah, Deusa, não! Nala!

Franzindo os olhos para Nicole, Aphrodite disse:

– Relaxe, os nossos gatos estão na estação. Até aquele cachorro fedido. Não é nenhum dos nossos.

– A Duquesa não é fedida – Damien respondeu. – Mas, ah, eu estou tão feliz que ela e Cammy estão a salvo.

– Eu morreria se algo acontecesse a Belzebu – Shaunee afirmou.

– Eu também! – Erin complementou, soando mais protetora do que preocupada.

– Eu amo Nal – Stevie Rae encontrou meus olhos e nós duas piscamos para segurar as lágrimas.

– Os nossos familiares estão em segurança – a voz profunda de Darius pareceu me ancorar, pelo menos até Erik falar.

– Só porque o gato que morreu não era de nenhum de vocês, isso não torna a morte dele nem um pouco menos horrível – Erik pareceu bem mais maduro do que o normal. – Quem será que está no Time Egoísta agora?

Eu suspirei e já ia concordar com Erik, quando Nicole fez um som exasperado e saiu andando, seguindo o caminho que Thanatos tinha acabado de fazer.

– Aonde você pensa que vai? – Stevie Rae gritou para ela.

Nicole não parou. Ela também não se virou, mas sua voz chegou até nós.

– O Time Egoísta está indo ajudar Thanatos com o gato morto, seja o gato de quem for, porque o Time Egoísta gosta de animais. Eles são mais legais do que as pessoas. Ponto final.

– Eu não sei do que ela está falando – Aphrodite disse.

Revirei os olhos para ela.

– Isso tudo é teatrinho dela. Não dá pra confiar naquela garota – Stevie Rae olhou com raiva na direção de Nicole.

– Bom, eu posso dizer que Nicole quase morreu inalando fumaça ao me ajudar a libertar os cavalos – Lenobia afirmou.

– A cor dela está mudando – Shaylin sussurrou.

– Shhh – Erik falou para ela, tocando seu ombro.

– Ela tentou me matar! – Stevie Rae soou como se ela fosse explodir.

– Ah, que merda, quem não tentou te matar? Ou a Zoey. Ou a mim. Supere isso. – Aphrodite foi rápida e, antes que Stevie Rae pudesse rebater, ela levantou a mão, com a palma voltada para fora, e continuou: – Guarde isso para você. A menos que você, Stark e os outros novatos vermelhos que ficam torrados na luz do sol estejam planejando passar o dia aqui descobertos, é melhor a gente começar a embarcar no ônibus e voltar para a estação. Ah, e o menino-pássaro também vai virar cem por cento pássaro e zero por cento menino logo mais, o que eu tenho certeza de que é algo bem estranho em público.

– Eu detesto quando ela está certa – Stevie Rae disse para mim.

– Nem me fala – respondi. – Ok, por que vocês não reúnem todo mundo que deve voltar para a estação? Eu vou descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois encontro vocês no ônibus. Logo.

– Você quer dizer que você e eu vamos descobrir o que está rolando com Thanatos, a Morte e seja lá o que for, e depois os encontramos no ônibus. Logo – Stark me corrigiu.

Eu apertei a mão dele.

– Foi exatamente o que eu quis dizer.

– Eu também vou – Kalona afirmou. – Vou seguir Thanatos com vocês, mas não vou voltar para a estação – ele sorriu levemente quando desviou o olhar de mim e se voltou para o seu filho. – Mas logo vou ver vocês novamente.

Stevie Rae soltou a mão de Rephaim para se atirar nos braços de Kalona, apertando-o num abraço gigante, o que pareceu surpreendê-lo tanto quanto a nós, apesar de Rephaim assistir à cena com um sorriso enorme.

– Sim, com certeza a gente vai se ver logo. Obrigada de novo por aparecer para salvar o seu filho.

Kalona deu um tapinha nas costas dela desajeitadamente.

– De nada.

Então ela segurou a mão de Rephaim de novo e começou a caminhar na direção do estacionamento, dizendo:

– Ok, vamos esperar por vocês, mas lembrem-se, é batata que o sol vai nascer rapidinho.

Aphrodite sacudiu a cabeça e começou a andar de braços dados com Darius.

– Afinal, o que significa “é batata”? Será que ela pelo menos concluiu o ensino fundamental?

– Apenas a ajude a levar os garotos para o ônibus – respondi.

Felizmente, junto com a chuva havia começado a soprar um vento, e ambos encobriram a resposta de Aphrodite, enquanto ela, Darius e o resto do meu círculo, além de Shaylin e Erik, se afastavam – teoricamente para fazer o que eu havia pedido. O que me deixou sozinha com Stark, Lenobia e Kalona.

– Pronta? – Stark me perguntou.

– Sim, é claro – eu menti.

– Então lá vamos nós para o ginásio – Lenobia disse.

Enquanto seguia Thanatos e Nicole, eu tentei me preparar para algo terrível, mas a minha cota de coisas terríveis já estava completa por aquela noite, e tudo o que eu conseguia fazer era enxugar a chuva do meu rosto e colocar um pé na frente do outro. Na verdade, eu não estava pronta para nada além de uma boa cama.

Estava quente e seco dentro do ginásio e havia um cheiro de fumaça. A areia sob os nossos pés estava úmida e suja. Dragon detestaria ver este lugar bagunçado assim, era o que eu estava pensando quando Kalona apontou para o centro da arena mal iluminada, onde eu só conseguia discernir os vultos de Thanatos e Nicole.

– Lá... Logo ali – ele falou.

– A gente devia ter acendido as tochas – Lenobia murmurou enquanto nós caminhávamos pela areia encharcada. – Os humanos apagaram quase todos os lampiões junto com o fogo do estábulo.

Eu não quis dizer nada, mas a verdade é que fiquei feliz que estava difícil de enxergar, pois eu sabia que, seja lá o que fosse aquilo em volta do qual Thanatos e Nicole estavam, não ia ser nada bonito de ver. Mas guardei esse pensamento para mim mesma e segurei na mão de Stark, tirando força do seu aperto firme.

– Olhem por onde andam – Thanatos disse quando nos aproximamos de onde ela e Nicole estavam, sem levantar os olhos, ajoelhada no chão do ginásio. – Há evidências de feitiço aqui. Quero tudo preservado e examinado para que eu possa descobrir quem é responsável por esta atrocidade.

Dei uma espiada por sobre o ombro dela, sem entender muito bem o que eu estava vendo. Um círculo tinha sido traçado na areia, que parecia estranha e escura do lado de dentro do círculo. Havia duas bolas de pelo no centro. Ao lado, palavras escritas na areia. Franzi os olhos, tentando decifrá-las.

– Que diabo é isso? – perguntei.

Os vampiros vermelhos enxergam muito melhor no escuro, então, quando Stark colocou seu braço em volta de mim, eu sabia que era algo ruim. Muito ruim. Antes que eu repetisse a minha pergunta, Nicole enfiou a mão no seu bolso e pegou seu telefone.

– Vou tirar uma foto com flash. Vai incomodar os seus olhos, mas pelo menos a foto vai sair.

Ela estava certa. No instante seguinte, eu estava piscando, lacrimejando e vendo pontinhos. Kalona, cuja visão imortal era menos suscetível aos efeitos da luz do que qualquer vampiro, disse solenemente:

– Isso é obra eu sei de quem. Vocês não conseguem sentir a presença dela ainda pairando por aqui?

A minha visão se clareou e eu me aproximei mais, apesar de Stark tentar me puxar para trás. Tarde demais, entendi para o que eu estava olhando.

– Shadowfax! Ele está morto!

– Sacrificado em um ritual macabro – Thanatos afirmou.

– E Guinevere também – Nicole acrescentou.

Achei que eu fosse vomitar.

– O gato de Dragon e a gata de Anastasia? Os dois foram mortos? – perguntei.

Thanatos estendeu o braço e gentilmente passou a mão na lateral do corpo de Shadowfax e depois na gata bem menor que estava encolhida ao lado dele.

– Esta gata pequena não foi sacrificada. Ela não tomou parte no ritual. A tristeza parou o seu coração e a sua respiração. – A Grande Sacerdotisa se levantou e voltou-se para Kalona. – Você disse que sabe de quem isso é obra.

– Eu sei, assim como você sabe. Neferet sacrificou a gata do guerreiro. Isso foi feito como pagamento. As Trevas a obedecem, mas o preço por essa obediência é sangue, morte e dor. Esse preço precisa ser pago sempre, sem parar. As Trevas nunca se dão por satisfeitas – ele apontou para as palavras escritas no chão. – Aquilo prova o que eu digo.

Naquela luz fraca, eu conseguia ver os corpos dos gatos, mas para mim era difícil entender as palavras ao lado deles. Não precisei perguntar o que significavam. Segurando-me bem perto dele, Stark leu em voz alta:

– Através do pagamento de sangue, dor e batalha, eu forço o Receptáculo a ser minha arma!

– Receptáculo é como Neferet se refere a Aurox – Kalona explicou.

– Ah, grande Deusa, isso prova mais do que o fato de isto aqui ser obra de Neferet – o olhar sombrio de Thanatos encontrou o meu. – A morte de sua mãe não foi simplesmente um sacrifício aleatório para as Trevas. Foi o pagamento exigido para a criação do Receptáculo, Aurox, a criatura de Neferet.

Senti minhas pernas fraquejarem e me aproximei ainda mais de Stark. Senti como se o braço dele fosse a única coisa que estivesse me mantendo em pé.

– Eu sabia que aquele maldito menino-touro não era boa coisa – Stark disse. – Nem ferrando que ele é algum tipo de presente de Nyx.

– O Receptáculo é o oposto disso. Ele é uma criatura feita de dor e de morte pelas Trevas e controlada por Neferet – Thanatos afirmou.

Eu não podia contar a eles o que eu tinha visto através da pedra da vidência. Como eu poderia, com os braços de Stark em volta de mim, Dragon recém-morto e a atrocidade cometida contra os gatos? Mas eu estava em carne viva – muito cansada, ferida e confusa para vigiar minhas palavras e não falar o nome de Heath sem querer. Então, em vez disso, como uma retardada, eu soltei:

– Tem que haver algo mais em Aurox além disso! Lembra quando ele foi fazer uma pergunta para você depois da aula? Ele queria saber quem ele era; o que ele era. Você disse que ele podia decidir isso por ele mesmo e que ele não devia deixar que o seu passado controlasse o seu futuro. Por que uma criatura feita totalmente de Trevas, alguém que não é nada além do Receptáculo de Neferet, iria se preocupar em perguntar qualquer coisa sobre si mesmo?

– Você tem razão. Eu lembro que Aurox veio falar comigo – Thanatos assentiu. Seu olhar se voltou para os corpos dos gatos. – Talvez Aurox não seja um receptáculo completamente vazio. Talvez a interação dele conosco e com você em particular, Zoey, tenha tocado algum pedaço de consciência dentro dele.

Senti uma onda de emoção que fez Stark me olhar de modo alarmado e questionador.

– Ele estava dizendo a verdade! – eu expliquei. – Hoje à noite, logo antes de fugir, Aurox disse: “Eu escolhi um futuro diferente. Eu escolhi um futuro novo”. Ele quis dizer que não queria machucar Rephaim nem Dragon, mas que não conseguia evitar, já que Neferet o controlava.

– Isso faz sentido – Thanatos concordou, falando devagar, como se estivesse abrindo caminho verbalmente por um labirinto. – O sacrifício do familiar de Dragon Lankford foi preciso porque Neferet estava perdendo o controle sobre o seu Receptáculo. Todos nós vimos Aurox se transformar de touro em garoto e depois começar a se transformar de novo em touro quando ele fugiu.

– Você também deve ter visto como ele ficou atordoado quando virou Aurox de novo e viu o que ele tinha feito com Dragon – eu disse.

– Isso não muda o fato de que Aurox matou Dragon – Stark afirmou. Eu senti a tensão que emanava dele e odiei perceber que o seu rosto tinha uma expressão severa.

– Mas e se ele só matou Dragon porque Neferet fez esse sacrifício horrível com Shadowfax? – perguntei, tentando fazer Stark enxergar que poderia haver mais de uma resposta certa.

– Zoey, isso não faz com que Dragon esteja menos morto – Stark respondeu, tirando o braço que estava ao meu redor e se afastando um pouco de mim.

– Nem faz com que Aurox seja menos perigoso – Kalona acrescentou.

– Mas talvez faça com que ele seja uma ameaça menor do que nós imaginávamos a princípio – Thanatos falou racionalmente. – Se Neferet precisa conduzir um ritual de sacrifício desta extensão a cada vez que quer controlá-lo, ela vai ter que escolher cuidadosamente e ser bem seletiva sobre quando e como usá-lo.

– Ele disse várias vezes que tinha escolhido um futuro diferente – eu insisti.

– Z., isso não faz de Aurox um cara do bem – Stark afirmou, balançando a cabeça para mim.

– Sabe, as pessoas podem mudar – Nicole de repente deu sua opinião. Todos nós olhamos surpresos para ela. Obviamente, eu não era a única que tinha esquecido que ela estava ali.

Eu odiava concordar com Nicole, então só mordi meu lábio, em silêncio e inquieta.

– Aurox não é uma pessoa, não é um cara nem do bem nem do mal – a voz profunda de Kalona ressoou como uma bomba no ginásio escuro, atordoando meus nervos já combalidos. – Aurox é um Receptáculo. Uma criatura feita para ser a arma de Neferet. Teria ele uma consciência e a capacidade de mudar? – ele deu de ombros. – Nós só podemos imaginar isso. E sinceramente, isso importa? Não faz diferença se uma lança tem consciência. O que importa é quem está manejando a arma. Neferet, claramente, está manejando Aurox.

– Há quanto tempo você sabe disso? – contra-ataquei Kalona. Stark estava me encarando como se eu estivesse sendo irracional, mas eu não me contive. Mesmo que eu não soubesse como contar a eles, eu acreditava que tinha visto de relance a alma de Heath dentro de Aurox através da pedra da vidência. – Se você sabia o que Aurox era, por que nunca disse nada até agora?

– Ninguém me perguntou – Kalona respondeu.

– Isso não justifica – eu falei, descarregando toda a minha raiva, frustração e confusão com o enigma Aurox/Heath em cima de Kalona. – O que mais você escondeu de nós?

– O que mais você quer saber? – ele respondeu sem hesitar. – Apenas pense bem, jovem Sacerdotisa, se você realmente quer ouvir as respostas para as perguntas que fizer.

– Você deveria estar do nosso lado, lembra? – Stark disse, colocando-se entre mim e Kalona.

– Eu me lembro de mais do que você imagina, vampiro vermelho – Kalona falou.

– O que você quer dizer com isso? – Stark rebateu.

– Isso significa que você não foi sempre todo bonzinho! – Nicole gritou.

– Não se atreva a falar dele! – atirei minhas palavras contra ela.

– De novo, vocês brigam uns com os outros! – Thanatos gritou, e a ira na sua voz agitou o ar à nossa volta. – A nossa inimiga cometeu atrocidades na nossa própria casa. Ela não matou apenas uma ou duas vezes, mas várias. Ela se aliou ao maior mal que este mundo já conheceu. E, ainda assim, vocês se atacam entre si. Se nós não somos capazes de nos unir, então ela já nos derrotou.

Thanatos balançou a cabeça com tristeza. Ela deu as costas para nós e se voltou para os dois gatos. A Grande Sacerdotisa se ajoelhou ao lado dos seus corpos e, mais uma vez, passou a mão suavemente sobre cada um deles. Desta vez, o ar acima dos gatos começou a emitir uma luz trêmula, e os contornos brilhantes de Shadowfax e Guinevere se materializaram – só que eles não eram os gatos adultos que jaziam imóveis e frios no chão da arena. Eles eram filhotes. Gatinhos gorduchos e adoráveis.

– Vão ao encontro da Deusa, pequeninos – Thanatos falou com eles afetuosamente. – Nyx e aqueles a quem vocês mais amam esperam por vocês. – O pequeno Shadowfax estendeu uma patinha felpuda para brincar com a manga de Thanatos que estava balançando no ar, até que os dois gatos desapareceram em um sopro de luz.

Eu podia jurar ter ouvido o som distante da risada musical de Anastasia, e imaginei que ela e Dragon deviam estar em êxtase recepcionando os seus gatinhos no Mundo do Além.

O Mundo do Além...

Minha mãe estava lá, junto com Dragon, Anastasia, Jack e, se eu estivesse errada sobre o que vi dentro de Aurox, Heath estava lá também... Eu havia estado lá. Eu sabia que o Mundo do Além existia com tanta certeza quanto sabia que eu existia. Eu também sabia que era um lugar mágico e incrível e, mesmo que aquela não fosse a minha hora de morrer e ficar lá, a beleza daquele lugar ainda permanecia na minha mente e na minha alma, formando uma espécie de bolha de maravilhas e segurança, que era completamente o oposto do que o mundo real em volta de mim tinha se tornado.

– Seria tão mal assim se nós perdêssemos?

Não percebi que eu havia falado em voz alta até Stark sacudir meu ombro.

– Do que você está falando, Z.? Nós não podemos perder porque Neferet não pode ganhar. As Trevas não podem vencer.

Eu podia ver a sua preocupação e sentir o seu medo. Eu sabia que eu o estava assustando, mas não consegui me conter. Eu estava tão incrivelmente cansada de tudo ser uma batalha entre as Trevas e a Luz, entre a morte e o amor. Por que tudo não podia simplesmente terminar? Eu daria qualquer coisa para que tudo isso simplesmente acabasse!

– Qual é a pior coisa que pode acontecer? – eu me escutei dizendo e depois continuei sem pensar, respondendo à minha própria pergunta. – Neferet vai nos matar. Bem, estar morto não parece tão terrível – indiquei com a mão a direção onde os gatos haviam se manifestado recentemente.

– Afe, desistir totalmente? – Nicole murmurou em voz baixa, em desgosto.

– Zoey Redbird, a morte está longe de ser a pior coisa que pode acontecer a qualquer um de nós – Thanatos afirmou. – Sim, as Trevas parecem extremamente poderosas agora, principalmente depois de tudo que nós descobrimos nesta noite, mas também existe amor e Luz aqui. Pense em quanta tristeza as suas palavras iriam trazer para Sylvia Redbird.

Senti uma onda de culpa. Thanatos estava certa. Havia coisas piores do que morrer, e essas coisas piores acontecem com as pessoas que se deixa para trás. Abaixei a cabeça e me aproximei de Stark, pegando sua mão.

– Sinto muito. Vocês estão certos. Eu nunca devia ter dito isso.

Thanatos sorriu gentilmente para mim.

– Volte para a sua estação. Reze. Durma. Encontre conforto e orientação nas palavras que Nyx falou para nós: “Guardem a lembrança da cura que aconteceu aqui nesta noite. Vocês vão precisar dessa força e dessa paz para a luta que está a caminho”. – Ela hesitou, deu um forte suspiro e acrescentou: – Você é tão jovem.

Eu queria gritar: Eu sei! Sou jovem demais para salvar o mundo! Em vez disso, fiquei parada ali em silêncio, sentindo-me tola e inútil, enquanto Thanatos se abaixava e recolhia os corpos de Shadowfax e Guinevere, envolvendo-os em uma de suas volumosas saias, segurando-os com delicadeza e ternura, como se eles fossem bebês adormecidos. Então ela fez um gesto para Kalona, dizendo:

– Venha comigo. Preciso dar a triste notícia da morte do Mestre da Espada para os Filhos de Erebus. Enquanto eu faço isso, comece a construir uma pira para Dragon e estes pequenos. No momento em que eu acender a pira, irei oficialmente proclamar você como o guerreiro da Morte. – Sem se dirigir a mim outra vez, Thanatos saiu do ginásio. Kalona a seguiu sem nem olhar de relance para mim e Stark.

– Enfim, o time de vocês é um saco – Nicole se afastou de nós também, balançando a cabeça.

Eu podia sentir o olhar de Stark em mim. A mão dele, entrelaçada à minha, parecia rígida. Levantei os olhos para ele, certa de que ele ia me chacoalhar, gritar comigo ou pelo menos perguntar que diabo estava havendo comigo. De novo.

Em vez disso, ele abriu os braços e disse:

– Venha cá, Z. – e ele simplesmente me deu amor.


4 Aurox

Aurox correu, sem saber ou se importar para onde o seu corpo o estava levando. Ele só sabia que tinha que fugir do círculo, e de Zoey, antes que ele cometesse outra atrocidade. Os seus pés, completamente transformados em cascos fendidos e demoníacos, rasgavam o solo fértil, transportando-o em uma velocidade sobre-humana através dos campos de lavanda adormecidos pelo inverno. Como o vento que batia no seu corpo, as emoções oscilavam dentro de Aurox.

Confusão – ele não queria machucar ninguém, mas mesmo assim tinha matado Dragon e talvez até Rephaim.

Raiva – ele tinha sido manipulado, controlado contra a sua vontade!

Desespero – jamais acreditariam que ele não tinha a intenção de machucar ninguém. Ele era uma besta, uma criatura das Trevas. O Receptáculo de Neferet. Todos iriam odiá-lo. Zoey iria odiá-lo.

Solidão – mesmo assim, ele não era o Receptáculo de Neferet. Não importava o que havia acontecido naquela noite. Não importava como ela tinha conseguido controlá-lo. Ele não pertencia, não iria pertencer a Neferet. Não depois de ver o que ele tinha visto esta noite... e de sentir o que ele havia sentido.

Aurox havia sentido a Luz. Apesar de ele não ter sido capaz de abraçá-la, ele havia compreendido a força de sua bondade no círculo mágico e reconhecido a sua beleza na invocação dos elementos. Até aqueles filamentos repugnantes controlarem a besta dentro dele, Aurox tinha assistido, fascinado, ao ritual comovente que havia culminado com a Luz limpando o toque das Trevas na terra e nele, apesar de a purificação que sentiu ter durado apenas um momento. Que foi o bastante para que Aurox percebesse o que havia feito. E então a raiva justa e o ódio compreensível que os guerreiros sentiram tomaram conta dele, e Aurox só teve humanidade suficiente para fugir e não matar Zoey.

Aurox encolheu os ombros e gemeu quando a transformação de besta em garoto novamente ondulou pelo seu corpo, deixando-o descalço e com o peito nu, vestido apenas com um jeans rasgado. Uma fraqueza terrível dominou o seu corpo. Trêmulo e respirando com dificuldade, ele diminuiu a velocidade, passando a caminhar de modo vacilante. A sua mente era uma batalha. Ele sentia ódio por si mesmo. Aurox vagou a esmo antes do amanhecer, sem saber ou se importar com onde ele estava, até que ele não pode mais ignorar as necessidades físicas do seu corpo e seguiu o cheiro e o barulho de água. Na beira de um riacho cristalino, Aurox se ajoelhou e bebeu, até que o fogo dentro dele estivesse saciado. E então, dominado pela exaustão e pelas emoções, ele desabou. Um sono sem sonhos finalmente venceu a batalha dentro dele, e Aurox adormeceu.

Aurox despertou com o som dela cantando. Era uma voz tão serena e relaxante que no começo ele nem abriu os olhos. A voz dela era cadenciada, como a batida do coração, mas foi algo além do seu ritmo que tocou Aurox. Foi a emoção que inundava a sua canção. Não que ele a sentisse do mesmo modo que acontecia quando canalizava emoções violentas para alimentar a metamorfose que transformava o seu corpo de garoto em uma besta. A emoção na canção vinha da própria voz dela – alegre, cheia de vida, agradável. Ele não sentiu essas coisas junto com ela, mas elas trouxeram para ele imagens de alegria e permitiram que uma possível felicidade tocasse em sua mente desperta. Aurox não conseguia entender nenhuma das palavras, mas ele não precisava. A voz dela se elevava, e isso transcendia qualquer linguagem.

Mais completamente desperto, ele quis ver a dona da voz. Quis questioná-la sobre alegria. Para tentar entender como ele poderia criar aquele sentimento por si próprio. Aurox abriu os olhos e se sentou. Ele havia desabado não muito longe da casa da fazenda, perto da margem do pequeno córrego. Era uma faixa sinuosa de água límpida que corria calmamente, musicalmente, sobre areia e pedras. O olhar de Aurox seguiu o curso do riacho, à sua esquerda, até onde a mulher estava, usando um vestido sem mangas, com longas franjas de couro decoradas com contas e conchas. Ela dançava graciosamente, acompanhando o ritmo da sua canção com os pés descalços. Apesar de o sol estar apenas se levantando no horizonte e de a manhã estar fria, ela estava corada, animada, cheia de energia. A fumaça do feixe de plantas secas na mão dela flutuava ao seu redor, aparentemente no mesmo ritmo da canção.

Apenas observá-la fez com que Aurox se sentisse melhor. Ele não precisou canalizar a alegria dela – a alegria era palpável ao seu redor. O espírito dele se elevou porque a mulher estava tão tomada pela emoção que ela transbordava. Ela jogou a cabeça para trás, e o seu longo cabelo prateado com fios negros tocou facilmente a sua cintura fina. Ela ergueu os braços nus, como que abraçando o sol nascente, e então começou a se mover em círculo, marcando o compasso com os pés.

Aurox estava tão envolvido pela canção que não reparou que ela estava se virando na sua direção, e que iria vê-lo, até que os olhos deles se encontraram. Então ele a reconheceu. Era a avó de Zoey, que havia ficado no centro do círculo na noite anterior. Ele esperou que ela ofegasse ou gritasse ao vê-lo de repente ali, no extenso gramado na beira do seu riacho. Em vez disso, a sua dança alegre terminou. A sua canção cessou. E ela falou com uma voz clara e calma:

– Eu o reconheço, tsu-ka-nv-s-di-na. Você é o transmorfo que matou Dragon Lankford na noite passada. Você também tentou matar Rephaim, mas não conseguiu. E você ainda arremeteu contra minha amada neta, como se pretendesse machucá-la. Você está aqui para me matar também? – Ela ergueu os braços de novo, inspirou profundamente o ar frio e puro da manhã e concluiu: – Se for assim, então eu vou dizer ao céu que meu nome é Sylvia Redbird e que hoje é um bom dia para morrer. Eu irei até a Grande Mãe para encontrar meus ancestrais com o espírito cheio de alegria.

Então ela sorriu para ele.

Foi o sorriso dela que o quebrou. Ele se sentiu despedaçar e, com uma voz trêmula que ele mal reconheceu como sua, Aurox respondeu:

– Eu não estou aqui para matá-la. Estou aqui porque não tenho nenhum outro lugar para ir.

E então Aurox começou a chorar.

Sylvia Redbird hesitou por apenas um instante. Através das suas lágrimas, Aurox a observou erguendo a cabeça de novo e assentindo, como se ela tivesse recebido a resposta para alguma pergunta. Então ela caminhou graciosamente até ele, com as longas franjas de couro do seu vestido farfalhando musicalmente com os seus movimentos e o toque da brisa fria da manhã.

Ela não hesitou quando chegou perto dele. Sylvia Redbird se sentou, cruzando seus pés descalços, e então colocou os braços em volta de Aurox, aconchegando a cabeça dele no seu ombro.

Aurox nunca soube quanto tempo eles ficaram sentados assim, juntos. Só sabia que, quando ele chorou de modo soluçante, ela o acalentou e o balançou suavemente, para a frente e para trás, cantando uma cantiga bem baixinho, dando tapinhas nas suas costas no mesmo ritmo do coração dela.

Finalmente, ele se afastou, desviando o rosto de vergonha.

– Não, meu filho – ela disse, segurando os ombros dele e forçando-o a encontrar o seu olhar. – Antes de se afastar, conte-me por que você estava chorando.

Aurox enxugou o rosto, limpou a garganta e, com uma voz que soou para ele muito jovem e tola, respondeu:

– É porque eu sinto muito.

Sylvia Redbird sustentou o seu olhar.

– E? – ela o estimulou a continuar.

Ele soltou um longo suspiro e admitiu:

– E porque eu estou muito sozinho.

Sylvia arregalou seus olhos negros.

– Você é mais do que parece ser.

– Sim. Eu sou um monstro das Trevas, uma besta – ele concordou com ela.

Os lábios dela se curvaram em um sorriso.

– Uma besta costuma chorar de tristeza? As Trevas têm a capacidade de sentir solidão? Acho que não.

– Então por que eu me sinto tão tolo por chorar?

– Pense nisto: o seu espírito chorou. Ele precisou desse pranto porque sentiu tristeza e solidão. É você quem deve decidir se isso é tolo ou não. De minha parte, já decidi que não é vergonha nenhuma ser encontrado chorando lágrimas honestas. – Sylvia Redbird se levantou e estendeu uma mão pequena e ilusoriamente frágil para ele. – Venha comigo, meu filho. Minha casa está aberta para você.

– Por que você faria isso? Na noite passada, você me viu matar um guerreiro e ferir outro. Eu também podia ter matado Zoey.

Ela inclinou a cabeça para o lado e o examinou com atenção.

– Podia mesmo? Acho que não. Ou, pelo menos, acho que o garoto que eu estou vendo neste momento não seria capaz de matá-la.

Aurox sentiu que os seus ombros desabaram.

– Mas só você acredita nisso. Ninguém mais vai acreditar.

– Bem, tsu-ka-nv-s-di-na, eu sou a única pessoa aqui com você neste momento. O fato de eu acreditar não basta?

Aurox enxugou o rosto de novo e se levantou, um pouco inseguro. Então ele pegou com muito cuidado a delicada mão dela.

– Sylvia Redbird, o fato de você acreditar é o bastante neste momento.

Ela apertou a mão dele, sorriu e disse:

– Pode me chamar de Vovó.

– Do que você me chamou, Vovó?

Ela sorriu.

– Tsu-ka-nv-s-di-na é a palavra que meu povo usa para dizer touro.

Ele sentiu uma onda de calor e depois de frio.

– A besta na qual eu me transformo é mais terrível do que um touro.

– Então talvez chamar você de tsu-ka-nv-s-di-na tire um pouco do horror daquilo que dorme dentro de você. Há poder em nomear as coisas, meu filho.

– Tsu-ka-nv-s-di-na. Vou me lembrar disso – Aurox afirmou.

Ainda se sentindo trêmulo, ele caminhou com a velha mulher mágica até a pequena casa de fazenda que ficava no meio de campos de lavanda adormecidos. Ela era feita de pedra e tinha uma ampla e convidativa varanda na entrada. Vovó o guiou até um sofá macio de couro e entregou a ele um cobertor feito à mão para colocar nos seus ombros. Então ela disse:

– Quero pedir que você descanse o seu espírito.

Aurox fez o que ela pediu, enquanto Vovó cantarolava uma canção para si mesma, acendia a lareira e fervia água para o chá. Depois ela encontrou e deu para ele um suéter e sapatos macios de couro que estavam em outro quarto. Quando a sala ficou aquecida e a canção dela cessou, Vovó fez um gesto para que ele se juntasse a ela em uma pequena mesa de madeira, oferecendo a ele a comida que estava em um prato de cor púrpura.

Aurox provou o chá adoçado com mel e comeu o que estava no prato.

– O-obrigado, Vovó – ele disse com voz trêmula. – A comida está boa. A bebida está boa. Tudo aqui é tão bom.

– O chá é de camomila e hissopo. Eu uso esse chá para me ajudar a ficar calma e focada. Os cookies são de uma receita minha: chocolate com um toque de lavanda. Sempre acreditei que chocolate e lavanda são bons para a alma – Vovó sorriu e mordeu um cookie. Eles comeram em silêncio.

Aurox nunca tinha se sentido tão satisfeito. Ele sabia que não fazia sentido, mas de algum modo ele teve uma sensação de pertencimento ali com aquela mulher. Foi essa estranha mas maravilhosa sensação de pertencimento que permitiu que ele começasse a falar com o seu coração.

– Neferet ordenou que eu viesse até aqui na noite passada. Eu deveria interromper o ritual.

Vovó assentiu. A expressão dela não era surpresa, mas contemplativa.

– Ela não queria ser descoberta como a assassina da minha filha.

Aurox a observou com atenção.

– A sua filha foi assassinada. Você assistiu ao registro disso na noite passada, mas ainda assim está serena e alegre hoje. Onde você encontra tanta paz?

– Aqui dentro – ela respondeu. – Essa paz também vem da crença de que há mais coisas funcionando aqui do que podemos ver ou provar. Por exemplo, no mínimo eu deveria temê-lo. Alguns diriam que eu deveria odiá-lo.

– Muitos diriam isso.

– Ainda assim, eu não temo nem odeio você.

– Você... você está me confortando. Dando-me abrigo. Por quê, Vovó? – Aurox perguntou.

– Porque eu acredito no poder do amor. Acredito na escolha da Luz em vez das Trevas, da alegria ao invés do ódio, da confiança ao invés do ceticismo – Vovó afirmou.

– Então isso não tem nada a ver comigo. É simplesmente porque você é uma pessoa boa – ele falou.

– Eu acho que ser uma pessoa boa nunca é muito simples, você não acha? – ela disse.

– Eu não sei. Nunca tentei ser uma boa pessoa – ele passou a mão pelo seu cabelo loiro e grosso, como um sinal de frustração.

Os olhos de Vovó se enrugaram quando ela sorriu.

– Nunca mesmo? Na noite passada, uma imortal poderosa ordenou que você interrompesse um ritual e mesmo assim, milagrosamente, o ritual foi completado. Como isso aconteceu, Aurox?

– Ninguém vai acreditar na verdade sobre isso – ele desabafou.

– Eu vou – Vovó o encorajou. – Conte-me, meu filho.

– Eu vim até aqui para seguir as ordens de Neferet: matar Rephaim e distrair Stevie Rae, para que o círculo fosse quebrado e o ritual não funcionasse, mas eu não poderia fazer isso. Eu não poderia quebrar algo que estava tão cheio de Luz, tão bom – ele falou com pressa, querendo botar a verdade para fora antes que Vovó o parasse. – Então as Trevas tomaram posse de mim. Eu não queria me transformar! Eu não queria que aquela criatura feito touro emergisse! Mas eu não consegui controlá-la e, quando ela se fez presente, só lembrava da sua última ordem: matar Rephaim. Foi só a onda de elementos e o toque da Luz que detiveram a besta o suficiente para que eu recuperasse algum controle e fugisse.

– Foi por isso que você matou Dragon. Porque ele tentou proteger Rephaim – ela concluiu.

Aurox concordou, abaixando a cabeça de vergonha.

– Eu não queria matá-lo. Eu não pretendia matá-lo. As Trevas controlaram a besta, e a besta me controlou.

– Mas não agora. A besta não está aqui agora – Vovó disse suavemente.

Aurox encontrou o olhar dela.

– Ela está. A besta sempre está aqui – ele apontou para o meio do seu peito. – Ela está eternamente dentro de mim.

Vovó cobriu a mão dele com a sua.

– Pode ser, mas você também está aqui. Tsu-ka-nv-s-di-na, lembre-se de que você controlou a besta o suficiente para fugir. Talvez isso seja um começo. Aprenda a confiar em si mesmo, e então os outros podem aprender a confiar em você.

Ele balançou a cabeça.

– Não, você é diferente de todos os outros. Ninguém vai acreditar em mim. Eles só vão enxergar a besta. Ninguém vai se importar o bastante para confiar em mim.

– Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.

Aurox piscou os olhos, surpreso. Ele não tinha pensado nisso. As emoções dele estavam em um turbilhão tão grande que ele nem tinha percebido a extensão dos atos de Zoey.

– Ela realmente me protegeu – ele disse devagar.

Vovó acariciou a mão dele.

– Não deixe que a crença dela em você seja desperdiçada. Escolha a Luz, meu filho.

– Mas eu já tentei e falhei!

– Tente de novo, esforce-se mais – ela falou com firmeza.

Aurox abriu a boca para protestar, mas os olhos de Vovó calaram as suas palavras. O olhar dela disse que as suas palavras eram mais do que uma ordem: era uma crença de que ele era capaz.

Ele abaixou a cabeça novamente. Desta vez não de vergonha, mas devido a um lampejo incerto de esperança. Aurox levou um momento para saborear esse novo e maravilhoso sentimento. Então, gentilmente, ele tirou sua mão debaixo das mãos de Vovó e se levantou. Em resposta ao olhar questionador dela, ele disse:

– Tenho que aprender como fazer para provar que você está certa.

– E como você vai fazer isso, meu filho?

– Preciso encontrar a mim mesmo – ele falou sem hesitação.

Ela deu um sorriso afetuoso e iluminado. Inesperadamente, aquele sorriso o lembrou de Zoey, o que fez com que aquele lampejo incerto de esperança se expandisse até aquecer o seu interior.

– Aonde você vai? – ela quis saber.

– Aonde eu possa fazer o bem – ele respondeu.

– Aurox, meu filho, saiba que, desde que você controle a besta e não mate de novo, sempre pode encontrar abrigo aqui comigo.

– Nunca vou me esquecer disso, Vovó.

Quando ela o abraçou perto da porta, Aurox fechou os olhos e inspirou o aroma de lavanda e o toque de amor de uma mãe. Aquele aroma e aquele toque permaneceram com ele enquanto dirigia devagar de volta para Tulsa.

Aquele dia de fevereiro estava claro e, como o homem no rádio havia dito, quente o bastante para os carrapatos começarem a acordar. Aurox estacionou o carro de Neferet em uma das vagas da parte dos fundos da Utica Square, e então ele deixou que o seu instinto guiasse os seus passos enquanto caminhava do movimentado centro de compras até a rua detrás, chamada South Yorktown Avenue. Aurox sentiu o cheiro de fumaça antes de chegar ao grande muro de pedra que circundava a Morada da Noite.

Esse fogo é obra de Neferet. Tem o cheiro desagradável das Trevas que emanam dela, Aurox pensou. Ele não se permitiu imaginar o que aquele fogo podia ter destruído. Ele se concentrou em apenas seguir o seu instinto, que estava dizendo que ele deveria voltar para a Morada da Noite para encontrar a si mesmo e a sua redenção. O coração de Aurox estava batendo forte quando ele passou por ali despercebido e entrou nas sombras do muro, aproximando-se de modo rápido e silencioso da fronteira leste da escola. Então ele chegou perto de um velho carvalho que havia sido partido ao meio tão violentamente que uma parte dele estava apoiada contra o muro da escola.

Foi realmente fácil escalar o muro, agarrar os galhos desfolhados pelo inverno da árvore despedaçada e então aterrissar no chão do outro lado. Aurox se agachou na sombra da árvore. Como ele esperava, a luminosidade do sol havia esvaziado os jardins da escola, mantendo novatos e vampiros dentro dos edifícios de pedra, atrás de janelas com cortinas escuras. Ele deu a volta na base partida da árvore, analisando a Morada da Noite.

Era o estábulo que havia pegado fogo. Ele podia ver isso facilmente. Parecia que o incêndio não tinha se alastrado, apesar de ter deixado uma parede externa do estábulo no chão. Aquela abertura avariada já havia sido coberta com uma grossa lona preta. Aurox se encostou mais na árvore. Escolhendo cuidadosamente o seu caminho por entre os fragmentos espalhados da base quebrada da árvore e da confusão de galhos emaranhados, Aurox se perguntou por que ninguém tinha pensado em tirar aqueles escombros do outrora bem cuidado jardim. Mas ele não teve tempo de pensar muito nisso. Um corvo enorme de repente pousou em um galho inclinado bem na frente dele e começou uma série terrível e bem alta de grasnados e pios estranhamente perturbadores.

– Vá embora! Suma daqui! – Aurox sussurrou, fazendo barulhos para enxotar a grande ave, o que só fez com que a criatura explodisse em mais grasnados. Aurox se lançou na direção do corvo, com a intenção de sufocá-lo, mas seus pés ficaram presos em uma raiz exposta. Ele caiu para a frente, batendo no chão com força. Para o seu espanto, ele continuou caindo quando a terra se abriu embaixo dele, com o peso do seu corpo, e ele foi arremessado de ponta-cabeça para baixo, e foi caindo, caindo...

Até que Aurox sentiu uma dor terrível no lado direito da cabeça, e então o seu mundo ficou escuro.


5 Zoey

Eu havia adormecido aconchegada nos braços de Stark, então foi totalmente confuso acordar com ele me sacudindo, fuzilando-me com os olhos e quase gritando: “Zoey! Acorde! Pare com isso! Estou falando sério!”.

– Stark? Ahn? – eu me sentei, desalojando Nala, que havia se transformado em um donut laranja e gordo em cima do meu quadril. “Miiaaauuu!”, Nala resmungou e caminhou até a ponta da cama. Olhei para a minha gata e para o meu guerreiro: ambos estavam me encarando como se eu tivesse cometido um assassinato em massa. – O que foi? – falei em meio a um grande bocejo. – Eu só estava dormindo.

Stark pegou seu travesseiro e o estufou para ficar mais sentado na cama. Ele cruzou os braços, balançou a cabeça e desviou os olhos de mim.

– Acho que você estava fazendo muito mais do que apenas dormir.

Eu quis estrangulá-lo.

– Sério, o que há com você? – perguntei.

– Você disse o nome dele.

– O nome de quem? – fechei os olhos, tendo um flashback com aquele velho filme assustador chamado Vampiros de Almas 2 e me perguntando se Stark tinha se transformado em uma réplica alienígena dele mesmo.

– Do Heath! – Stark franziu a testa para mim. – Três vezes. Isso me acordou. – Ainda sem olhar para mim, ele disse: – Com o que você estava sonhando?

O que ele falou me deixou totalmente chocada, provocando uma batalha mental em mim. Com que diabo eu estava sonhando? Pensei no que tinha acontecido mais cedo. Lembrei de Stark me beijando antes de eu ir dormir. Lembrei que o beijo foi supergostoso, mas eu estava muito cansada e, em vez de fazer algo além de retribuir o beijo, tinha encostado a cabeça no ombro dele e desmaiado. Depois disso, eu não me lembrava de mais nada, até ele começar a me chacoalhar e a gritar comigo para que eu parasse.

– Não tenho a menor ideia – respondi honestamente.

– Você não precisa mentir para mim.

– Stark, eu não mentiria para você – afastei meu cabelo do rosto e toquei no braço dele. – Eu não me lembro de ter sonhado com nada.

Então ele olhou para mim. Os seus olhos estavam tristes.

– Você estava chamando Heath. Eu estou dormindo bem aqui ao seu lado, mas você estava chamando por ele.

O jeito com que ele falou me deu um aperto no coração. Eu detestava tê-lo magoado. Eu podia ter dito que era ridículo ele ficar bravo comigo por algo que eu tinha falado quando estava dormindo, algo de que eu nem me lembrava. Mas, ridícula ou não, a mágoa de Stark era real. Deslizei a minha mão para dentro da dele.

– Ei – eu disse baixinho. – Sinto muito.

Ele entrelaçou seus dedos aos meus.

– Você queria que ele estivesse aqui em vez de mim?

– Não – afirmei. Eu amava Heath desde que eu era criança, mas eu não trocaria Stark por ele. É claro que o resto da verdade era que, se fosse Stark quem tivesse sido assassinado, eu também não trocaria Heath por ele. Mas definitivamente aquilo era algo que Stark não precisava ouvir, nem agora nem nunca.

Amar dois caras era uma coisa confusa, mesmo quando um dos dois estava morto.

– Então você não estava chamando por Heath porque queria estar com ele em vez de mim?

– Eu quero você. Prometo – eu me inclinei para a frente e ele abriu os braços para mim. Eu me encaixei perfeitamente contra o peito dele e inspirei o seu cheiro familiar.

Ele beijou o topo da minha cabeça e me abraçou.

– Sei que é idiota ter ciúmes de um cara morto.

– É – falei.

– Especialmente porque na verdade eu gostava do cara morto.

– Pois é – concordei.

– Mas nós pertencemos um ao outro, Z.

Eu me inclinei para trás para poder olhar nos olhos dele.

– Sim – eu disse seriamente –, nós pertencemos. Por favor, nunca se esqueça disso. Não importa quanta loucura estiver rolando ao redor de nós... Eu posso lidar com isso, mas preciso saber que o meu guerreiro está do meu lado.

– Sempre, Z. Sempre – ele afirmou. – Eu te amo.

– Eu também te amo, Stark. Sempre – então eu o beijei e mostrei para ele que absolutamente não havia motivo algum para ele ter ciúme de ninguém. E, pelo menos por um tempinho, deixei que o calor do amor dele afugentasse a lembrança do que eu tinha visto quando olhei através da pedra da vidência naquela noite...

Da próxima vez que despertei, foi porque eu estava quente demais. Ainda estava nos braços de Stark, mas ele tinha se mexido um pouco e atirado sua perna por cima de mim, fazendo de mim um casulo com meu cobertor azul e felpudo. Desta vez, ele não estava dando uma de Namorado Louco. Ele estava fofo, dormindo como um garotinho.

Como sempre, Nala tinha feito sua cama no meu quadril, então antes que ela resmungasse eu a levantei um pouco, deslizando junto com ela para o lado mais frio da cama o mais silenciosamente possível. Totalmente adormecido, Stark fez um movimento vago com a sua mão da espada, como que estendendo o braço para me defender. Eu me concentrei em pensamentos felizes – refrigerante marrom, sapatos novos, gatinhos que não espirravam no meu rosto – e ele relaxou.

Tentei relaxar também – para valer. Nal me encarou. Cocei atrás da orelha dela e sussurrei:

– Desculpe por acordá-la. De novo.

Ela esfregou a cara no meu queixo, espirrou em mim e pulou de volta em cima do meu cobertor azul e felpudo. Então ela girou três vezes em círculo e voltou a ser um donut adormecido de pelos.

Suspirei. Eu precisava fazer como Nala, ficar encolhida e voltar a dormir, mas a minha mente estava desperta demais. E junto ao fato de estar desperta vinha o ato de pensar. Depois que fizemos amor, Stark havia murmurado meio sonolento:

– Nós estamos juntos. Todo o resto vai se resolver.

E eu tinha adormecido sentindo-me segura de que ele estava certo.

Mas agora que, infelizmente, eu estava totalmente consciente, não conseguia evitar aquela coisa toda de pensar demais e me preocupar demais. Apesar de eu supor que, se Stark soubesse o que eu imaginei ter visto através da pedra da vidência na noite passada, ele iria retirar aquele comentário de “todo o resto vai se resolver” e voltar ao papel de Senhor Tenho Ciúme de um Cara Morto.

Coloquei minha mão em cima da pequena pedra arredondada que pendia de uma fina corrente de prata em volta do meu pescoço e balançava inocentemente entre os meus seios. Parecia normal – como qualquer outro colar que eu poderia ter usado. Ela não estava irradiando nenhum calor estranho. Eu a tirei de debaixo da minha camiseta e a ergui devagar. Inspirei profundamente para me fortificar e dei uma olhada em Stark através da pedra.

Nada estranho aconteceu. Stark continuou sendo Stark. Virei o colar um pouco e olhei para Nala. Ela continuou sendo uma gata adormecida gorda e alaranjada.

Coloquei a pedra da vidência de novo embaixo da minha camiseta. E se eu tivesse imaginado tudo aquilo? Como Heath poderia estar em Aurox? Até Thanatos disse que Aurox tinha sido criado pelas Trevas através do sacrifício da minha mãe. Ele era um Receptáculo – uma criatura sob o controle de Neferet.

Mas ela precisou matar Shadowfax para controlá-lo totalmente, e Aurox tinha feito aquelas perguntas sobre o que ele realmente era para Thanatos.

Ok, mas alguma dessas coisas fazia diferença? Aurox não era Heath. Heath estava morto. Ele havia partido para um reino mais distante do Mundo do Além para o qual eu não pude ir porque Heath estava morto.

Refletindo a minha inquietação, Stark se remexeu, franzindo a testa em seu sono. A gata Nala rosnou de novo. Eu não queria de jeito nenhum que eles acordassem, então saí da cama em silêncio e andei nas pontas dos pés para fora do quarto, abaixando-me para passar embaixo do cobertor que Stark e eu usávamos como porta.

Refrigerante marrom. Eu precisava seriamente de uma dose de refrigerante marrom. Talvez eu tivesse sorte e encontrasse um pouco de cereal Count Chocula e um resto de leite que não estava azedo. Hum, só de pensar nisso eu me senti um pouco melhor. Eu realmente merecia um pouco do cereal que eu tanto amava no café da manhã.

Fui arrastando os pés pelo túnel mal iluminado, passando por corredores menores e outras portas fechadas com cobertores, atrás das quais meus amigos descansavam enquanto aguardávamos o sol se pôr. Até que entrei na área comum que usávamos como cozinha. O túnel meio que acabava ali, abrindo espaço para algumas mesas, laptops e geladeiras grandes.

– Deve ter sobrado um pouco de refrigerante marrom por aqui – murmurei para mim mesma, enquanto eu vasculhava a primeira geladeira.

– Tem na outra geladeira.

Dei um gritinho idiota e pulei de susto.

– Afe, Shaylin! Não fique espreitando pelos cantos assim. Você quase me fez fazer pipi nas calças.

– Desculpe, Zoey – ela foi até a segunda das três geladeiras e pegou uma lata de refrigerante marrom não diet, totalmente cheio de açúcar e cafeína, e o estendeu para mim com um sorriso de desculpas.

– Você não deveria estar dormindo? – sentei na cadeira mais próxima e dei um gole no meu refrigerante, tentando não parecer tão mal-humorada quanto eu estava.

– É, bem, eu estou cansada sim. Posso sentir que o sol não se pôs ainda, mas estou com muita coisa na cabeça. Entende o que quero dizer?

Bufei ligeiramente.

– Entendo perfeitamente o que você quer dizer.

– A sua cor está meio que desligada – Shaylin fez esse comentário de um jeito indiferente, como se ela tivesse acabado de falar algo tão normal quanto mencionar a cor da minha camiseta.

– Shaylin, na verdade eu não entendo muito bem sobre essa coisa de cor que você costuma falar.

– Eu também não sei muito bem o quanto entendo. Tudo o que sei é o que vejo e, se não penso muito sobre isso, normalmente faz sentido para mim.

– Ok, dê um exemplo de como isso normalmente faz sentido para você.

– Isso é fácil. Vou usar você como meu exemplo. As suas cores não mudam muito. Na maior parte do tempo, você é roxa com pontinhos prateados. Mesmo quando você estava se preparando para ir ao ritual na fazenda de sua avó, e sabia que isso seria algo difícil de assistir, as suas cores permaneceram as mesmas. Eu conferi porque... – ela perdeu a fala.

– Você conferiu porque... – eu a incentivei a continuar.

– Porque eu estava curiosa. Eu conferi as cores de todos antes de vocês saírem, mas, bem, acabei de perceber como isso soa invasivo.

Franzi minha testa para ela.

– Isso não é como se você estivesse lendo nossas mentes nem nada parecido. Ou é?

– Não! – ela me assegurou. – Mas quanto mais passa o tempo em que eu tenho essa coisa da Visão Verdadeira, e quanto mais eu pratico, mais real isso fica para mim. Zoey, eu acho que isso me diz coisas sobre as pessoas, coisas que às vezes elas preferem esconder.

– Como Neferet. Você disse que por dentro ela tem cor de olho de peixe morto, e por fora ela é deslumbrante.

– Sim, exato. Mas também como o que eu estou vendo em você. Mas, como Kramisha diria, eu não devo me meter onde não fui chamada.

– Por que você não me conta o que está vendo em mim, e depois eu digo se acho que você está se metendo onde não foi chamada ou não?

– Bem, desde que você voltou do ritual na fazenda de sua avó, as suas cores estão mais escuras – ela fez uma pausa e me encarou. Então ela balançou a cabeça e se corrigiu: – Não, isso não é totalmente preciso. As suas cores não estão apenas mais escuras, elas estão mais turvas. Como se o roxo e o prata tivessem sido misturados e cobertos de lama.

– Ok – falei devagar, começando a entender o que ela quis dizer com violação. – Entendi que você vê uma diferença em mim, e isso é meio estranho, principalmente porque você falou que minhas cores não costumam mudar. Mas o que isso significa para você?

– Ah, sim, desculpe. Acho que significa que você está confusa com alguma coisa, com algo sério. Isso está incomodando você. Realmente mexendo com a sua cabeça. É mais ou menos por aí?

Concordei com a cabeça.

– É mais ou menos por aí.

– E você se sente estranha por eu saber disso?

Assenti novamente.

– É, um pouco – pensei por um instante nisso e então acrescentei: – Mas aí vai a verdade: eu me sentiria menos estranha se soubesse que posso confiar que você não vai tagarelar para todo mundo que as minhas cores estão turvas e que eu estou realmente confusa com algo. Isso sim seria violação.

– Sim – ela soou triste. – Foi o que pensei também. Quero que você saiba que pode confiar em mim. Nunca fui fofoqueira. Além disso, esse dom que Nyx me deu quando fui Marcada, bem, é totalmente incrível. Zoey, eu posso ver novamente – Shaylin parecia que ia explodir em lágrimas. – Não quero estragar tudo. Vou usar esse dom do modo que Nyx quer que eu use.

Percebi que ela estava bastante perturbada e me senti mal por ela – principalmente por eu ter algo a ver com o fato de ela estar perturbada.

– Ei, Shaylin, está tudo bem. Eu entendo como é ter um dom pelo qual você sente uma grande responsabilidade e como é não querer estragar tudo. Caramba, você está falando com a Rainha de Meter os Pés pelas Mãos. – Fiz uma pausa e então acrescentei: – Isso é parte do motivo pelo qual estou confusa agora. Eu não quero tomar mais uma decisão errada, idiota e imatura. O que eu faço e digo afeta muito mais gente do que apenas eu. Quando tomo decisões ridículas, é como aquelas peças de dominó caindo uma atrás da outra. Novatos, vampiros e humanos, todos podem se ferrar. Isso é péssimo, mas não muda o fato de que eu realmente tenho um dom de Nyx e que sou responsável pelo modo como esse dom é usado.

Shaylin pensou um pouco no que falei, e eu dei um gole no meu refrigerante. Na verdade, eu estava gostando de conversar com ela. Era infinitamente melhor do que ficar quebrando a cabeça com Aurox, Heath, Stark, Neferet e...

– Ok, mas o que fazer nesta situação? – Shaylin interrompeu meus pensamentos. – O que fazer se eu vir as cores de uma pessoa mudarem? É minha responsabilidade contar isso para alguém... alguém como você?

– O que você quer dizer? Tipo, chegar para mim e falar: “Ei, Zoey, as suas cores estão todas turvas. O que está rolando?”?

– Bem, talvez, mas só se nós formos amigas. Mas eu estava pensando mais em algo como o que aconteceu hoje, quando eu vi Nicole. As cores dela eram como as do resto do grupo de Dallas: feito sangue misturado com tons de marrom e preto. Como algo sangrando no meio de uma tempestade de areia. Na noite passada, no estábulo, as cores dela tinham mudado. Ainda havia um vermelho enferrujado ali, mas parecia mais claro, mais brilhante, não no mau sentido. Mais como se estivesse ficando mais limpo. É estranho, mas juro que vi um pouco de azul nela. Mas não como o azul do céu. Mais como o mar. Foi isso que me fez pensar que o lado mau dela pode estar desaparecendo e, depois que pensei isso, senti que estava certa.

– Shaylin, o que você está dizendo é realmente confuso – afirmei.

– Não, para mim não é! Está ficando cada vez menos confuso. Eu simplesmente sei as coisas.

– Eu entendi e acredito que você está dizendo a verdade. O problema é que o seu saber é tão subjetivo. É como se você estivesse transformando a vida em uma prova, e as pessoas fossem as respostas, mas, em vez de as suas pessoas-respostas serem alternativas tipo verdadeiro ou falso, onde é fácil julgar se o que você captou é certo ou errado, elas são respostas dissertativas. E isso significa que o seu resultado pode variar dependendo de muitas coisas diferentes. Nada é preto ou branco – suspirei. Minha própria analogia estava fazendo minha cabeça doer.

– Mas, Zoey, a vida não é preto no branco ou verdadeiro e falso, nem as pessoas – ela deu um gole no seu refrigerante, o qual eu percebi que era claro. Fiquei pensando que eu realmente não entendia o refrigerante claro: não tinha cafeína e nunca parecia doce o bastante. Então ela continuou: – Mas eu entendo o que você está tentando dizer. Você acredita que eu vejo as cores das pessoas. Você só não acredita no julgamento que eu faço delas.

Eu comecei a negar e a dizer algo que iria fazer com que ela se sentisse melhor, mas um aperto dentro de mim me fez mudar de ideia. Shaylin precisava escutar a verdade.

– Sim, basicamente é isso.

– Bem – ela disse, endireitando os ombros e levantando o queixo –, eu acho que o meu julgamento é bom. Acho que ele está ficando cada vez melhor, e quero usar meu dom para ajudar. Eu sei que uma batalha está a caminho. Ouvi falar sobre o que Neferet fez com a sua mãe e sobre como ela escolheu as Trevas em vez da Luz. Você vai precisar de alguém como eu. Consigo ver o interior das pessoas.

Ela estava certa. Eu realmente precisava do dom dela, mas também precisava saber que podia confiar no seu julgamento.

– Ok, então vamos começar. Que tal você manter os olhos bem abertos? Conte-me se você vir a cor de alguém mudando.

– O primeiro caso que eu quero reportar é o de Nicole. Erik me contou sobre ela. Sei que ela foi realmente do mal no passado. Mas a verdade está nas cores dela, e elas dizem que ela está mudando.

– Está certo. Vou me lembrar disso – levantei as sobrancelhas para ela. – E por falar em se lembrar das coisas... Não quero ser maldosa nem nada parecido, mas você precisa ficar de olho em Erik. Ele não é sempre...

– Ele é arrogante e egoísta – ela me interrompeu, encontrando o meu olhar sem se alterar. – Ele se acha muito, por saber como é gostoso e talentoso. A vida tem sido fácil para ele, mesmo depois de você ter terminado com ele.

– Ele contou para você que eu terminei com ele? – não sabia dizer se ela estava sendo maliciosa ou não. Não parecia que ela estava sendo, mas, de novo, eu não a conhecia muito bem. Mas realmente eu tinha a impressão de que, toda vez que eu a via, eu via Erik. Não que me importasse. Sério. Não era ciúme. Era mais que eu me sentia responsável por adverti-la sobre ele.

– Ele não precisou me contar. Tipo, um bilhão de outros garotos fez isso antes dele – ela respondeu.

– Eu não tenho nenhum ressentimento em relação a Erik. Quero dizer, ele pode ficar com quem ele quiser. Se você gosta dele, por mim não tem problema nenhum – percebi que estava tendo um surto de diarreia verbal, mas eu não conseguia parar de falar. – E ele também não quer mais nada comigo. Acabou mesmo. Só que Erik é...

– É um cuzão – a voz de Aphrodite me salvou. Ela passou por nós bocejando e enfiou a cabeça em uma das geladeiras. – E agora você ouviu isso de duas ex-namoradas dele. Sendo que “ex” é a parte mais importante da frase – ela veio até a mesa e colocou na frente da cadeira vazia ao meu lado uma jarra de suco de laranja e uma garrafa, que eu imaginei ser um champanhe supercaro. – É claro que Z. não o chamou de cuzão. Ela estava sendo gentil – enquanto falava, Aphrodite voltou para a geladeira e abriu o freezer. Ouvi um barulho de vidro tinindo. Quando ela voltou para a mesa, estava segurando uma taça de cristal gelada, daquelas compridas e finas em que as pessoas bebem nas festas de Ano Novo na TV. – Já eu não sou tão gentil. Cu-zão. Esse é o nosso Erik – ela estourou a rolha da garrafa, derramou um pouquinho de suco de laranja na taça e então a encheu quase até transbordar com champanhe borbulhante. Ela abriu um sorriso para a taça e falou: – Mimosa ou, como diria minha mãe, o café da manhã dos campeões.

– Eu sei o que Erik é – Shaylin afirmou. Ela não pareceu irritada. Ela também não pareceu agradecida. Ela soou segura de si. – Eu também sei o que você é.

Aphrodite levantou uma sobrancelha loira para ela e deu um bom gole na sua Mimosa.

– Conta aí.

Oh-oh, pensei. Eu supunha que devia fazer algo para impedir o que estava para acontecer, mas era como estar parada em um trilho de trem tentando empurrar um carro para fora do caminho. Era mais provável que eu acabasse sendo atropelada pelo trem do que conseguisse salvar o carro. Então, em vez disso, fiquei olhando com cara de tonta e bebendo meu refrigerante.

– Você é prateada. Isso me lembra a luz da lua, o que me diz que você foi tocada por Nyx. Mas você também é amarela cor de manteiga, como a luz de uma pequena vela.

– E isso diz o que para você? – Aphrodite examinou as suas próprias unhas bem cuidadas, claramente sem se importar com a resposta de Shaylin.

– Isso me diz que, como uma pequena vela, você pode ser apagada facilmente.

Os olhos de Aphrodite se estreitaram e ela espalmou a mão contra a mesa.

– Já chega, garotinha nova. Eu já tenho passado por muita coisa, com toda essa merda de batalha contra as Trevas, para ter que aturar a sua boca mole ou a sua atitude de sabe-tudo – parecia que ela estava se preparando para avançar no pescoço de Shaylin. Eu estava pensando em correr para tentar encontrar Darius quando Stevie Rae surgiu na cozinha.

– E aí, pessoal! Bom dia! – ela disse e deu um grande bocejo. – Cara, estou cansada. Será que tem alguma lata de Mountain Dew na geladeira?

– Ah, que merda, agora não é de manhã. O sol já vai se pôr. E por que diabo está todo mundo acordado? – Aphrodite atirou as mãos para cima.

Stevie Rae franziu a testa para ela.

– É educado dizer “bom-dia” para as pessoas, mesmo que isso não seja tecnicamente correto. E eu gosto de acordar cedo. Não há nada de errado nisso.

– Ele é um pássaro! – Aphrodite falou, servindo-se de mais champanhe.

– Você já está bebendo?

– Sim. Quem é você? Uma versão caipira da minha mãe?

– Não, se eu fosse uma versão de sua mãe, eu não ia ligar para o fato de você beber no café da manhã, já que a sua mãe realmente tem problemas – Stevie Rae colocou a lata de Mountain Dew de volta na geladeira. – E agora que eu pensei nisso, tomar refrigerante no café da manhã provavelmente também não é uma boa ideia. Aposto que tem uma caixa de Lucky Charms por aqui em algum lugar.

– Esse cereal é magicamente delicioso – Shaylin comentou. – Se você encontrar, vou querer um pouco também.

– Count Chocula – como parecia que Aphrodite não ia matar ninguém (no momento), minha voz voltou a funcionar. – Se você vir uma caixa, eu quero.

– Que diabo há de errado com Mimosas? – Aphrodite estava dizendo. – Suco de laranja combina com café da manhã.

– E a parte do champanhe? É álcool – Stevie Rae argumentou.

– É Veuve Clicquot rosé. Isso significa champanhe bom, o que cancela a parte do álcool – Aphrodite afirmou.

– Você acredita mesmo nisso? – Shaylin perguntou.

Olhando para mim e claramente ignorando Shaylin, Aphrodite falou:

– O que é que está falando comigo?

– Estou com dor de cabeça e a gente ainda nem foi para a escola – eu disse para Aphrodite.

– O estábulo quase foi destruído pelo fogo e a nossa Grande Sacerdotisa foi expulsa por ser uma semideusa assassina. Acho que todos nós podemos faltar na aula hoje – Aphrodite sugeriu.

– Nananina – Stevie Rae rebateu. – Nós temos que ir para a escola por causa disso tudo. Thanatos vai precisar de nós. Além disso, vai haver a cerimônia da pira funerária para Dragon. Isso vai ser difícil, mas a gente precisa estar lá nessa hora.

Aquilo calou Aphrodite. Ela continuou a beber, enquanto Stevie Rae serviu um pouco de Lucky Charms (um cereal inferior a Count Chocula, apesar de ter marshmallows) para si mesma e para Shaylin, e todas nós ficamos um pouco melancólicas.

– Vou sentir falta de Dragon – falei. – Mas é muito legal que ele está com Anastasia de novo. E o Mundo do Além é incrível. Mesmo.

– Vocês realmente viram os dois se reencontrando, não viram? – Shaylin quis saber, com olhos arregalados.

– Todos nós vimos – eu respondi, sorrindo.

– Foi lindo – Stevie Rae comentou, fungando e enxugando os olhos.

– É – Aphrodite disse baixinho.

Shaylin limpou a garganta.

– Olha só, Aphrodite, eu não queria ter sido tão maldosa antes. O que eu falei foi errado. Eu não devia usar o meu dom dessa forma. Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua, mas isso não quer dizer que você vai se apagar. É parte do seu jeito único... do seu lado afetivo. Aqui vai a verdade: essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Portanto, desculpe.

Aphrodite voltou seus olhos azuis e frios para Shaylin e disse:

– Ponha a loção no cesto.

– Ah, cara – eu falei. – Aphrodite, apenas tome o seu café da manhã. Shaylin, esse é um bom exemplo daquilo que a gente estava conversando antes. Eu não questiono o seu dom. Não duvido dele. Mas eu realmente tenho um pé atrás com o seu bom senso em decifrá-lo.

– Eu decifro o meu dom perfeitamente – Shaylin respondeu, soando incomodada e na defensiva. – Mas Aphrodite me tirou do sério. Então eu cometi um erro. Já pedi desculpas.

– Desculpas não aceitas – Aphrodite falou e deu as costas para Shaylin.

Foi nessa hora que Damien entrou apressado na cozinha, segurando o seu iPad – e parecendo mais descabelado do que normalmente ficava, depois do que ele gostava de chamar de seu “período de rejuvenescimento de beleza”. Ele veio direto até mim, ergueu o iPad e disse:

– Vocês têm que assistir a isso.

No começo, eu estava só ligeiramente curiosa quando vi a âncora do telejornal da noite do canal Fox23, a totalmente deslumbrante Chera Kimiko, falando. Nós adorávamos a Chera. Ela não só era bonita no nível de um vampiro como era também uma pessoa real, ao contrário dos âncoras tipo cabeças falantes de plástico que normalmente aparecem.

Aphrodite espiou por sobre o meu ombro para o iPad de Damien.

– Kimiko é clássica. Nunca vou me esquecer daquela vez em que ela cuspiu o chiclete bem no meio da notícia. Pensei que meu pai ia ficar...

– Chera é ótima, mas isto é péssimo – Damien a cortou. – E grave. Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa.

Ah, que inferno...


6 Zoey

Todos nós nos amontoamos em volta do iPad de Damien. Ele clicou no “Play” e o vídeo da Fox23 começou. A parte de baixo da tela trazia a legenda: CAOS NA MORADA DA NOITE DE TULSA? Então a tela foi preenchida por Neferet e um monte de caras de terno. Ela estava em pé em algum lugar realmente bonito, cheio de mármore e art déco . Senti que eu quase reconhecia aquele lugar. A voz de Chera Kimiko estava falando em off.

– Vampiros e violência? Você ficaria surpreso com quem está afirmando isso. A Fox23 traz uma reportagem exclusiva esta noite com uma ex-Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa.

Um comercial idiota começou e, enquanto Damien tentava adiantá-lo, eu disse:

– Pela imagem parece que ela está em algum lugar no centro da cidade.

– É o lobby do edifício Mayo – Aphrodite falou de forma lacônica. – E aquele na frente dela é o meu pai.

– Aiminhadeusa! – os olhos de Stevie Rae ficaram gigantes e redondos. – Ela está dando uma entrevista coletiva junto com o prefeito?

– E com alguns vereadores. São os outros caras de terno que estão com ela – Aphrodite explicou.

Então o vídeo começou e todos nós ficamos calados e assistindo embasbacados.

– Eu estou aqui para romper meus laços oficial e publicamente com a Morada da Noite de Tulsa e o Conselho Supremo dos Vampiros – de algum modo, Neferet conseguia parecer régia e vítima ao mesmo tempo.

– Ela é tão cheia de merda – Aphrodite comentou.

– Shhh! – todos nós fizemos para ela, pedindo silêncio.

– Grande Sacerdotisa Neferet, por que a senhora cortaria os laços com o seu povo? – perguntou um dos repórteres.

– Nós não podemos ser considerados um só povo? Não somos todos seres inteligentes com a capacidade de amar e entender uns aos outros? – aparentemente, ela estava falando de modo retórico, pois não esperou por uma resposta. – As políticas dos vampiros se tornaram desagradáveis para mim. Muitos de vocês sabem que recentemente eu abri vagas de trabalho na Morada da Noite para a comunidade de Tulsa. Fiz isso por causa da minha convicção de que humanos e vampiros podem fazer mais do que apenas coexistir de modo constrangido. Nós podemos viver e trabalhar juntos, e até amar.

Stevie Rae fez barulho de vômito. Eu fiquei balançando a cabeça de um lado para o outro, sem acreditar no que ouvia.

– Eu recebi tanta resistência que o Conselho Supremo dos Vampiros enviou para Tulsa a sua Grande Sacerdotisa da Morte, Thanatos, para intervir. A atual administração dos vampiros promove violência e segregação. Apenas olhem para os últimos seis meses e o recorde de violência cada vez maior no centro de Tulsa. Vocês realmente acreditam que todos os ataques, principalmente aqueles envolvendo derramamento de sangue, têm relação com gangues humanas?

– Grande Sacerdotisa, a senhora está admitindo que vampiros atacaram humanos em Tulsa?

Neferet levou sua mão até o pescoço dramaticamente.

– Se eu soubesse disso com cem por cento de certeza, teria ido até a polícia imediatamente. Eu só tenho suspeitas e preocupações. Eu também tenho uma consciência, e é por isso que eu saí da Morada da Noite – ela deu um sorriso radiante. – Por favor, vocês não precisam mais me chamar de Grande Sacerdotisa. De agora em diante, eu sou simplesmente Neferet.

Mesmo pelo vídeo, pude perceber que o repórter ficou vermelho e sorriu para ela.

– Há rumores sobre um novo tipo de vampiro, com Marcas vermelhas. A senhora pode confirmar esses rumores? – perguntou outro repórter.

– Infelizmente, eu posso. Há, de fato, um novo tipo de vampiros e novatos. Aqueles Marcados em vermelho são deteriorados de certa forma.

– Deteriorados? A senhora pode nos dar um exemplo?

– Certamente. O primeiro que me vem à cabeça é James Stark, um novato que veio de Chicago depois de acidentalmente causar a morte do seu mentor. Ele se tornou o primeiro guerreiro vampiro vermelho.

Eu ofeguei.

– Aquela vaca está falando do seu namorado! – Aphrodite disse.

– E agora na noite passada Dragon Lankford, Mestre da Espada da escola há muito tempo, foi assassinado. Espetado pelos chifres de um touro até a morte. Lankford estava na companhia de James Stark quando aconteceu o “acidente” – ela enfatizou a palavra, para deixar claro que não acreditava que havia sido um acidente.

– A senhora está querendo dizer que esse vampiro Stark é perigoso?

– Temo que ele possa ser. Na verdade, muitos dos novos vampiros e novatos podem ser perigosos. Afinal de contas, a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa é a Morte.

– A senhora pode nos dar mais detalhes sobre...

Um dos homens de terno deu um passo à frente, cortando Neferet.

– Eu, mais do que todos, estou muito preocupado com esses acontecimentos na comunidade dos vampiros. Como muitos de vocês sabem, minha amada filha, Aphrodite, foi Marcada há quase quatro anos. Eu entendo muito bem que os vampiros não gostem que os humanos se intrometam nos seus assuntos pessoais, políticos e criminais. Há muito tempo eles tomam conta de si mesmos. Mas quero declarar a vocês e à nossa Morada da Noite local que, por resolução da Câmara dos Vereadores de Tulsa, nós vamos criar uma comissão para examinar as relações entre vampiros e humanos. Infelizmente, acabou o tempo que temos para perguntas por hoje – o homem que havia falado no microfone de Neferet era o pai de Aphrodite, prefeito de Tulsa. – Tenho apenas mais um breve anúncio para fazer. Começando imediatamente, Neferet foi admitida como membro da comissão da Câmara dos Vereadores sob o título de Agente de Ligação com os Vampiros. Deixem-me reiterar, Tulsa pretende se associar a vampiros que desejam viver em paz com os humanos. – Quando todos os repórteres começaram a falar ao mesmo tempo, ele levantou a mão e sorriu com certo ar de superioridade (que estranhamente lembrou Aphrodite). – Neferet vai ter uma coluna semanal no caderno Scene do jornal Tulsa World. Por enquanto, esse vai ser o fórum através do qual ela vai responder a todas as suas perguntas. Lembrem-se de que agora estamos apenas no começo de uma parceria. Precisamos caminhar devagar e gentilmente para não perturbar o delicado equilíbrio das relações entre vampiros e humanos.

Eu estava observando o rosto de Neferet em vez de olhar para o prefeito, e vi o jeito com que os olhos dela se estreitaram e a sua expressão se endureceu. Então o prefeito LaFont acenou para a câmera e a imagem voltou para Chera Kimiko no estúdio. Damien tocou no iPad, e a tela se apagou.

– Ah, que merda! Meu pai perdeu o resto de juízo perfeito que ainda restava depois de conviver com a minha mãe – Aphrodite afirmou.

– Ei, acho que ouvi alguém falar o meu nome – Stark entrou na cozinha, passando os dedos pela sua cabeça descabelada e dando pra mim aquele seu meio sorriso sexy e metidinho.

– Neferet acabou de dar uma coletiva de imprensa e de dizer a todos que você é um assassino perigoso – eu me escutei contando a ele.

– Ela fez o quê? – ele pareceu tão chocado quanto eu me sentia.

– É, e ela fez mais do que isso – Aphrodite continuou. – Ela se juntou ao meu pai e agora toda a cidade acredita que ela é toda boazinha e que nós somos todos sugadores de sangue.

– Ahn, o plantão de notícias é por nossa conta, Aphrodite – Stevie Rae a corrigiu. – Você não é mais uma sugadora de sangue.

– Ah, por favor. Como se os meus pais soubessem alguma coisa da minha vida. Não falo com nenhum dos dois há meses. Só sou a filha deles quando isso é conveniente para eles. Como agora.

– Se isso não fosse tão assustador, seria engraçado – Shaylin comentou.

– Neferet está fazendo com que pareça que ela rompeu com o Conselho Supremo e com a escola, e não que ela foi expulsa por matar a minha mãe – eu expliquei para Stark.

– Ela não pode fazer isso – Stark reagiu. – O Conselho Supremo dos Vampiros não vai deixar que ela faça isso.

– Meu pai está amando tudo isso – Aphrodite disse. Reparei que ela tinha deixado o champanhe de lado e que agora estava enchendo a taça apenas com suco de laranja. – Há anos ele quer descobrir como se aproximar dos vampiros. Depois que eles me esqueceram porque não me transformei em um clone da minha mãe, eles na verdade ficaram felizes quando fui Marcada.

Fiquei observando Aphrodite e lembrando do dia que agora parecia tão distante, em que eu havia escutado os pais dela a repreendendo por ela ter perdido a liderança das Filhas das Trevas para mim. Agora Aphrodite parecia a rainha do gelo de sempre, mas na minha lembrança eu ainda conseguia ouvir o som da mão da mãe dela dando uma bofetada no seu rosto e podia ver as lágrimas que ela teve que represar. Não deve ter sido fácil para ela ouvir o seu pai a chamar de “filha amada” quando a verdade era que tudo o que ele sempre quis foi usá-la.

– Por quê? O que os seus pais querem com os vampiros? – Stevie Rae perguntou.

– Ter acesso a mais dinheiro... mais poder... mais beleza. Em outras palavras, ser parte da turma legal. Isso é tudo o que eles sempre quiseram: ser bacanas e poderosos. Eles usam quem quer que seja para conseguir o que querem, incluindo a mim e, obviamente, Neferet – Aphrodite explicou, ecoando estranhamente o que eu estava pensando.

– Neferet não é o caminho para eles conseguirem nada disso – eu afirmei.

– Fala sério, Z., ela é mais louca que galinha agarrada pelo rabo – Stevie Rae falou.

– Bem, seja o que for que isso signifique, sim, mas não é só isso. Mais alguém reparou no olhar de Neferet quando o pai de Aphrodite estava falando? Ela definitivamente não gostou nada de como as coisas terminaram – eu disse.

– Uma comissão, uma coluna no jornal e “caminhar devagar e gentilmente” não parece algo em que a Consorte das Trevas estaria particularmente interessada – Damien concordou.

– E realmente ela não gostou de quando o prefeito interrompeu a pergunta sobre você ser perigoso – eu completei.

– Eu gostaria de ser perigoso para Neferet! – Stark vociferou, ainda parecendo totalmente chocado.

– O meu pai é muito bom em prometer uma coisa e fazer outra – Aphrodite lembrou. – Posso jurar para vocês que ele acha que pode fazer esse jogo com Neferet – ela balançou a cabeça. Não importava o quanto ela soava insensível, a expressão dela era tensa.

– A gente tem que ir para a Morada da Noite. Agora. Se Thanatos ainda não sabe sobre isso, ela precisa saber – afirmei.

Neferet

Os humanos são tão fracos, entediantes e terrivelmente simplórios, Neferet pensou enquanto observava o prefeito Charles LaFont sorrir de modo afetado, procurando apaziguar os ânimos e continuando a evitar qualquer pergunta direta sobre perigo, mortes e vampiros depois da coletiva de imprensa dela. Até esse homem que, dizem os rumores, é o próximo na fila para uma cadeira no Senado e supostamente é tão carismático e dinâmico... Neferet teve que disfarçar a sua risada sarcástica com uma tosse. Esse homem não era nada. Neferet esperava mais do pai de Aphrodite.

Pai! Uma voz ecoou do seu passado, alarmando-a e fazendo que Neferet agarrasse o corrimão de ferro ornamentado e o apertasse bruscamente. Ela teve que tossir de novo para ocultar o som de algo quebrando que veio do ferro forjado quando ela tirou sua mão dali. Foi então que a paciência dela acabou.

– Prefeito LaFont, você pode me acompanhar até a minha cobertura – as palavras deveriam ter soado como uma pergunta, mas a voz de Neferet não formulou a frase desse modo. O prefeito e os quatro vereadores que haviam participado da coletiva de imprensa se viraram na sua direção. Ela decifrou facilmente cada um deles.

Todos a achavam bonita e desejável.

Dois deles a desejavam com tanta intensidade que eles abandonariam suas esposas, suas famílias e suas carreiras para possuí-la.

Charles LaFont não era um deles. O pai de Aphrodite a cobiçava – disso não havia dúvida –, mas o seu principal desejo não era sexual. A maior necessidade de LaFont era alimentar a obsessão de sua mulher por status e aceitação social. De fato, era uma pena que ele não pudesse ser seduzido mais facilmente.

Todos eles a temiam.

Isso fez Neferet sorrir.

Charles LaFont limpou a garganta e ajeitou nervosamente a sua gravata.

– É claro, é claro. Será um prazer acompanhá-la.

Friamente, Neferet fez apenas um gesto de despedida com a cabeça para os outros homens e ignorou os olhares ávidos deles na sua direção enquanto ela e LaFont entravam no elevador para subir até a sua cobertura.

Ela não falou nada. Neferet sabia que ele estava nervoso e muito menos seguro de si do que fingia ser. Em público, a sua fachada era de charme natural, como se ele fosse merecedor de tudo o que a vida tinha a oferecer. Mas Neferet enxergava o humano amedrontado e bobo que se encolhia por baixo daquela superfície.

As portas do elevador se abriram e ela entrou no saguão de mármore do seu apartamento.

– Acompanhe-me em um drink, Charles – Neferet não deu a ele nenhuma oportunidade de recusa. Ela caminhou decididamente até o bar art déco ornamentado e encheu duas taças com um esplêndido vinho tinto.

Como ela sabia que ia acontecer, ele a seguiu.

Ela estendeu a ele uma das taças. Ele hesitou e ela deu uma gargalhada.

– É só um cabernet muito caro. Não está misturado com sangue, de forma alguma.

– Ah, claro – ele pegou a taça e riu nervosamente, parecendo um cachorrinho pequeno e medroso aos olhos dela.

Neferet detestava cachorros quase tanto quanto ela detestava homens.

– Eu tinha mais para revelar hoje do que apenas a informação sobre James Stark – ela disse friamente. – Acho que a nossa comunidade merece entender como os vampiros da Morada da Noite se tornaram perigosos.

– E eu acho que a comunidade não precisa entrar em pânico sem necessidade – LaFont contra-argumentou.

– Sem necessidade? – ela pronunciou as duas palavras incisivamente.

LaFont assentiu e coçou o queixo. Neferet sabia que ele achava que parecia sábio e benevolente. Mas, para ela, ele parecia fraco e ridículo.

Foi então que Neferet reparou nas mãos dele. Elas eram grandes e pálidas, com dedos grossos e, apesar do seu tamanho, pareciam macias e quase femininas.

O estômago de Neferet se embrulhou. Ela quase vomitou no vinho e por pouco não conseguiu manter o seu comportamento frio.

– Neferet? Você está bem? – ele perguntou.

– Sim – ela falou rapidamente. – Só estou confusa. Você está me dizendo que, ao alertar Tulsa sobre os perigos desses novos vampiros, estamos provocando pânico neles sem necessidade?

– É exatamente isso. Depois da coletiva de imprensa, Tulsa vai estar em alerta. A violência contínua não vai ser tolerada; ela vai ser detida.

– Mesmo? E como você pretende deter a violência dos vampiros? – a voz de Neferet era ilusoriamente amável.

– Bem, isso é muito simples. Vou continuar o que nós começamos hoje. Você alertou o público. Com você atuando como Agente de Ligação entre a cidade e o Conselho Supremo na nossa comissão recém-implementada, você será a voz da razão defendendo a coexistência entre humanos e vampiros.

– Então é com palavras que você vai deter a violência deles – ela disse.

– Sim, palavras faladas e escritas – ele concordou, parecendo muito satisfeito consigo mesmo. – Peço desculpas se falei fora de hora quando mencionei a coluna no jornal. Foi uma ideia de última hora do meu grande amigo Jim Watts, editor-chefe do caderno Scene do Tulsa World. Eu teria falado com você sobre isso antes, mas, desde que você apareceu no meu escritório hoje à tarde com o seu alerta, as coisas aconteceram rápido e publicamente.

Porque eu planejei as coisas dessa forma... porque eu coloquei o sistema inepto de vocês em ação. Agora chegou a hora de eu colocá-lo em ação, assim como fiz com os jornalistas e os vereadores.

– Quando eu o procurei, não esperava encontrar reticências nem estava planejando escrever.

– Talvez não, mas eu estou na política de Oklahoma há quase vinte anos e conheço o meu povo. Incitá-los de modo calmo e devagar é o que funciona com eles.

– Como se você estivesse tocando o gado? – Neferet falou sem esconder o desdém na sua voz.

– Bem, eu não usaria essa analogia, mas tenho percebido que criar comissões, fazer pesquisas na comunidade, obter um feedback da amostragem, tudo isso realmente contribui para uma engrenagem mais azeitada das políticas públicas da cidade – LaFont deu uma risadinha e tomou um gole de vinho.

Escondida nas dobras do seu vestido de veludo, Neferet fechou sua mão em punho e a apertou até que suas unhas feito garras perfurassem sua palma. Gotas escarlates quentes se empoçaram embaixo de suas unhas. Sem serem vistas pelo humano ignorante, as gavinhas de Trevas serpentearam subindo pelas pernas de Neferet, procurando... encontrando... bebendo...

Ignorando o calor gelado daquela dor familiar, Neferet encontrou o olhar de LaFont por sobre a taça de vinho dele. Rapidamente, ela abaixou a voz em uma calma cantiga.

“A paz com os vampiros não é o que você deseja.

Eles ardem com brilho e ímpeto demais, você inveja o seu fogo.

Reticências e escrever colunas, maldita seja essa ideia!

Você tem que fazer o que eu...”

O celular de LaFont começou a tocar. Ele piscou e a expressão embaçada que havia encoberto os seus olhos se clareou. Ele abaixou sua taça de vinho, tirou o telefone do bolso, franziu os olhos para ver a tela e então disse:

– É o chefe de polícia. – Ele tocou na tela e passou a mão pelo rosto, enquanto dizia: – Dean, que bom falar com você – LaFont fez um aceno de cabeça e levantou os olhos para Neferet. – Você vai me desculpar, tenho certeza, mas não posso falar sobre isso agora. Em breve nós falaremos sobre os detalhes da comissão e da coluna de perguntas e respostas.

Enquanto falava, o prefeito se retirou rapidamente para o elevador, deixando Neferet sozinha, exceto pelas famintas gavinhas de Trevas.

Neferet permitiu que elas bebessem dela apenas por mais alguns instantes. Então ela as afastou e lambeu as feridas frescas na palma de sua mão para que os cortes se fechassem.

Os filamentos de Trevas pulsaram ao redor dela, pairando no ar como um ninho de cobras flutuante, ansiosas para cumprir as ordens dela.

– Agora vocês me devem um favor – ela disse antes de pegar o telefone da cobertura e digitar o número de Dallas.

Ele pareceu nervoso ao atender:

– Eu vou matar o cuzão que me ligou tão cedo!

– Cale a boca, garoto! Escute e obedeça – Neferet sorriu ao ouvir o silêncio que se seguiu à sua ordem. Ela quase podia sentir o cheiro do medo dele através do telefone. Então ela falou rapidamente, adquirindo mais controle sobre o seu temperamento e mais exatidão enquanto instruía o vampiro vermelho. – Logo a escola vai saber que eu rompi com a Morada da Noite e me tornei membro de uma comissão da Câmara Municipal de Tulsa. Você sabe, é claro, que eu só planejo usar esses humanos para iniciar um conflito. Até eu procurá-lo de novo, você será as minhas mãos, olhos e ouvidos na Morada da Noite. Aja como se você quisesse se dar bem com o resto da escola agora que eu fui embora. Conquiste a confiança dos professores. Faça amizade com os novatos azuis e então faça o que os adolescentes fazem de melhor: apunhale-os pelas costas, espalhe boatos, crie panelinhas.

– Aquela horda de nerds da Zoey não vai confiar em mim.

– Eu disse para você calar a boca, escutar e obedecer! É claro que você não vai conseguir conquistar a confiança de Zoey; ela é próxima demais de Stevie Rae. Mas você pode romper aquele círculo fechado dela, que não é tão forte quanto você pensa. Observe as gêmeas, particularmente Erin. A água é mais facilmente manipulada e mais mutável do que o fogo – ela fez uma pausa, esperando que ele confirmasse que entendeu as suas ordens. Como ele não falou nada, ela disse rispidamente: – Agora você pode falar!

– Eu compreendi, Grande Sacerdotisa. Vou obedecê-la – ele garantiu a ela.

– Excelente. Aurox já voltou para a Morada da Noite?

– Não que eu tenha visto. Pelo menos ele não estava junto de nós, quando fomos agrupados e levados para o dormitório depois do fogo. Foi... foi você que provocou o incêndio? – Dallas fez a pergunta com hesitação.

– Sim, apesar de ter sido mais um acidente imprevisto do que uma manipulação intencional. O fogo causou muita destruição?

– Bem, ele queimou parte do estábulo e causou uma enorme confusão – ele respondeu.

– Algum cavalo ou novato morreu? – ela perguntou ansiosamente.

– Não. Aquele cowboy humano se feriu, mas foi só isso.

– Que pena. Agora vá fazer o que eu mandei. Quando eu voltar a controlar a Morada da Noite e reinar como Tsi Sgili, Deusa de todos os vampiros, você será regiamente recompensado – Neferet apertou o botão de desligar.

Ela estava tomando o seu vinho e pensando em uma morte lenta e dolorosa para Charles LaFont quando um barulho no quarto desviou a sua atenção. Ela havia se esquecido do jovem mensageiro do prédio que flertara descaradamente com ela na hora em que Neferet havia chegado naquela noite, mais cedo. Na ocasião, ele estava parecendo muito disposto a alimentá-la. Ele deveria estar menos disposto agora que tinha percebido que ela estava muito perto de drenar todo o seu sangue perigosamente. Neferet se levantou e caminhou até o quarto, levando sua meia taça de vinho. Ela iria saborear o medo dele no que havia sobrado do seu sangue.

Neferet sorriu.


7 Zoey

Stevie Rae e eu deveríamos encontrar Thanatos na sua sala de aula. Eu tinha ligado para ela quando estávamos no ônibus escolar a caminho da escola. Nós não havíamos conversado muito. Tudo o que ela tinha dito era que já sabia sobre a coletiva de imprensa de Neferet e que a gente devia ir direto para a sua sala.

A Morada da Noite estava com cheiro de fumaça.

Aquele fedor estava impregnado na escola inteira. Quando nós entramos no estacionamento, percebi que aquele cheiro ruim não era apenas de fumaça. Infelizmente, eu já tinha bastante experiência para reconhecer o aroma penetrante do medo.

O dia normal de escola não havia começado, aquilo era bem óbvio. Havia novatos em grupinhos andando e fofocando para lá e para cá. Eles definitivamente não estavam a caminho da primeira aula. Aquilo deveria ser legal. Quero dizer, qual garoto não ama um dia de neve, um vazamento de água ou qualquer coisa assim? Mas de algum modo aquilo não era legal. Passava uma sensação confusa e de falta de segurança.

– Ok, bem, eu sei que não é normal de minha parte dizer isto, mas acho que Thanatos deveria ter obrigado todo mundo a ir para a aula hoje – Aphrodite assustadoramente ecoou meus pensamentos de novo enquanto descíamos do ônibus. – Agora o que está rolando é essa merda e um pânico do tipo “a gente não vai conseguir ficar sem Neferet” – ela fez um gesto englobando tanto os grupinhos de novatos sussurrando quanto os vampiros e novatos que estavam fazendo dois trabalhos horríveis: limpar o entulho do estábulo e colocar tábuas e vigas no enorme monte de madeira que ia se tornar a pira funerária de Dragon Lankford.

– Eu concordo com você, minha bela – Darius disse sombriamente.

Em silêncio, fiz uma prece rápida mas fervorosa: Nyx, ajude-me a dizer e a fazer a coisa certa, ajudando os meus amigos, o meu círculo, a ficarem fortes e confiantes. Então eu encarei o meu grupo e segui os meus instintos.

– Ok, apesar de eu detestar admitir isso em voz alta, ou mesmo em voz baixa, Aphrodite está certa.

Aphrodite atirou para trás o seu longo cabelo loiro.

– É claro que estou.

– Esta escola precisa de uma boa dose de normalidade e, infelizmente, acho que nós somos o melhor tipo de normalidade que eles vão encontrar agora.

– Isso quer dizer que eles tão ferrados – Kramisha afirmou. Ela estava usando a sua peruca curta e loira e um sapato de couro envernizado preto com um salto de doze centímetros. A saia dela era curta e supercintilante. De algum modo, aquele visual louco tinha dado certo, fazendo-me pensar (por uns 2,5 segundos) em usar salto com mais frequência.

– Eu estou falando sério, Kramisha – eu disse.

– Eu também – ela replicou.

– Olha só, pessoal. Nós podemos ser normais. Um novo tipo de normalidade, mais interessante – Stevie Rae sugeriu, abrindo um sorriso para Rephaim.

Aphrodite bufou. Eu a ignorei, sorri para Stevie Rae e continuei falando.

– Nós vamos nos separar. Parte de vocês vai para o estábulo, outra parte vai até a pira de Dragon. Lembrem-se, sejam normais – eu os orientei com firmeza. – Ajam como vocês fariam normalmente. A gente precisa segurar a onda e ajudar a colocar as coisas de volta nos trilhos, de um jeito aparentemente controlável. Olhem, neste momento parece que nós fomos atacados por todos os lados. O estábulo pegou fogo. Os gatos foram assassinados. Dragon está morto. E agora Neferet não é apenas uma louca do mal. Ela é uma louca do mal que envolveu a comunidade dos humanos em coisas que estão muito longe da sua compreensão ou da sua capacidade de lidar com elas. Nós temos que ficar fortes e visíveis. Precisamos manter a Morada da Noite unida. Como eu falei para Thanatos na noite passada: nós somos muito mais do que crianças bir rentas e já é hora de nos levantarmos, ficarmos juntos e conquistarmos o respeito que merecemos.

– Sábio conselho, Sacerdotisa – Darius disse, fazendo-me ter vontade de abraçá-lo. – Eu vou para a pira de Dragon para espalhar a calma por lá – ele sorriu carinhosamente para Aphrodite. – Venha comigo. A sua influência vai ser boa para os guerreiros que estão desolados com a perda do Mestre da Espada.

– Normalmente, eu diria que vou aonde você for, bonitão – Aphrodite respondeu. – Mas eu preciso conversar um pouco com a Z., então eu vou com ela falar com Thanatos. Que tal eu encontrar com você na pira depois disso?

As palavras dela me surpreenderam e eu pensei no fato de que, exceto por aquele papo com Shaylin mais cedo, eu realmente não tinha falado com ninguém desde o ritual de revelação. O trajeto de volta no ônibus, com o corpo de Dragon, havia sido silencioso e difícil. E então aconteceu o incêndio, os gatos mortos e, felizmente, o sono, apesar de eu ainda não ter dormido o suficiente. Tudo isso significava que ninguém havia me puxado de lado para falar sobre Aurox. Será que Aphrodite estava se preparando para fazer isso? Dei uma olhada nela. Ela estava na ponta dos pés, dando um beijo em Darius. Ela parecia a mesma de sempre: louca pelo seu guerreiro e irritada com todo o resto.

– Eu também vou com Z. – a voz de Stevie Rae interrompeu a minha análise neurótica de Aphrodite. – Depois que terminarmos de falar com Thanatos, eu vou até a pira funerária. Vocês vão precisar construir uma fundação sólida lá, e a terra é o elemento certo para isso – ela deu um beijo rápido em Rephaim. – Você me encontra lá?

– Sim – ele retribuiu o beijo, tocando o queixo dela com carinho. Então ele olhou para mim. – Se ninguém tiver nenhuma objeção, eu gostaria de fazer uma ronda em volta do muro da escola, principalmente o muro leste. Se os filamentos de Trevas de Neferet estão serpenteando por aí, nós precisamos saber disso.

– Isso parece uma boa ideia. Vocês estão de acordo com isso? – perguntei, olhando para Stark e Darius. Os dois guerreiros assentiram. – Ok, ótimo. – Então voltei minha atenção para Stevie Rae. – Também acho que invocar o seu elemento é realmente uma boa ideia, Stevie Rae. Damien, Shaunee e Erin, mantenham os seus elementos por perto. Se eles puderem ajudar a fortalecer ou a apoiar as pessoas, invoquem-nos. Só não sejam totalmente óbvios e... – minha voz sumiu quando percebi o que eu estava dizendo. – Não. Isso é errado. Se vocês precisarem usar os seus elementos, sejam óbvios.

– Entendi o que você quis dizer, Z. – Damien afirmou. – Já está na hora de a Morada da Noite saber que há forças prodigiosas do bem trabalhando ao nosso lado contra todas essas Trevas.

– “Prodigiosas” significa muito grandes – Stevie Rae traduziu.

– Nós sabemos o que quer dizer – Kramisha protestou.

– Eu não sabia – Shaunee falou.

– Nem eu – Erin concordou.

Tive vontade de sorrir para as gêmeas e dizer que era legal vê-las fazendo comentários tipo gêmeas de novo, mas assim que Erin falou ela ficou corada e se afastou de Shaunee, que estava parecendo superdesconfortável. Então eu desisti – temporariamente – e fiz uma nota mental para acender uma vela vermelha e uma azul para as duas e pedir a Nyx para dar uma ajuda extra a elas. Se eu conseguisse tempo pra isso. Que inferno, se Nyx tivesse tempo pra isso.

Eu reprimi um suspiro e continuei falando.

– Ok, ótimo. Então, dividam-se em grupos. Vão fazer coisas normais, como pegar alguns livros de estudo e ir até a biblioteca.

– Isso não é o meu normal – escutei Johnny B. resmungar, fazendo os garotos em volta rirem.

Eu gostei do barulho das risadas deles. Aquilo era normal.

– Então vá jogar basquete ou fazer alguma coisa típica de garotos no ginásio – eu sugeri, sem conseguir não sorrir para eles.

– Eu vou pro refeitório. A cozinha dos túneis parece que foi atacada por um enxame de gafanhotos. Z., nós precisamos dar uma passada no mercado antes de voltar para lá – Kramisha me avisou.

– Sim, bem, isso é normal. Vá em frente. Leve quem não conseguiu comer antes de vir para a escola com você. E, pessoal, espalhem-se. Não fiquem apenas comendo em grupinhos. Conversem com os outros garotos – afirmei.

Os novatos emitiram sons de concordância e se organizaram, dividindo-se em pequenos grupos em volta de Darius, as gêmeas, Damien e Kramisha. Rephaim partiu sozinho. Eu o olhei se afastando por um tempo, pensando se algum dia ele iria realmente se enquadrar no grupo, e o que seria do seu relacionamento com Stevie Rae se ele não conseguisse. Dei uma olhada para a minha amiga. Ela estava olhando com total adoração para Rephaim. Mordi meu lábio e continuei a me preocupar.

– Você está bem, Z.? – a voz de Stark soou baixinha ao meu lado, e ele colocou o braço sobre os meus ombros.

– Sim – respondi, encostando-me nele por um momento. – Só estou me preocupando obsessivamente, como sempre.

Ele me abraçou.

– Tudo bem, desde que você não comece a chorar. Aquele seu choro cheio de catarro não é nada atrativo.

Dei um soquinho nele de brincadeira.

– Eu nunca choro.

– Ah, sim, claro, e você nunca fica cheia de catarro também – ele falou, dando aquele sorriso fofo e metidinho para mim.

– Eu sei! Incrível, não? – eu caçoei.

– Ceeeerto – ele estendeu a palavra e beijou o topo da minha cabeça.

– Ei – eu falei, ainda aninhada seguramente em seus braços. – Você pode ir até o estábulo para dar uma mão para Lenobia? Eu vou conversar com Thanatos e depois vou até o estábulo e encontro com você lá.

Stark hesitou apenas por um instante e senti os seus braços me apertando contra ele. Stark não queria se separar de mim, principalmente com toda essa loucura rolando, mas ele concordou e disse:

– Vou estar lá, esperando por você – então ele beijou minha testa e me soltou, partindo em direção ao estábulo.

Eu estremeci, arrepiada depois do calor do seu toque. Os outros garotos começaram a se afastar em grupos, ficando só Stevie Rae e Aphrodite comigo.

– Eu vou com vocês, mas esperem só um segundo. Primeiro preciso ligar para a minha mãe. Ela tem de saber que Neferet não é só cheia de papo furado, mas também é cheia de perigo – Aphrodite falou.

– Você acha que ela vai te escutar? – eu quis saber.

– É claro que não – ela respondeu sem hesitar. – Mas vou tentar assim mesmo.

– Por que você não liga para o seu pai? Afinal, ele é o prefeito, e não a sua mãe – Stevie Rae sugeriu.

– Na casa dos LaFont quem manda é a mulher. Se há alguma chance de abrir os olhos do Senhor Prefeito em relação a Neferet, isso tem que partir da minha mãe.

– Boa sorte – eu disse.

– Bem, seja como tiver que ser – Aphrodite pegou seu telefone e se afastou de nós.

Surpreendendo-me, Shaylin saiu de um dos grupos que estava indo embora e caminhou até mim.

– Posso ir com vocês? – a sua voz era gentil, mas ela havia falado claramente e seu queixo estava levantado, como se ela estivesse preparada para uma luta.

– Por que você quer ir com a gente? – eu questionei.

– Quero perguntar a Thanatos sobre as minhas cores. Sei que vocês me disseram para manter segredo sobre o meu dom, e eu entendo por quê. Definitivamente, isso é algo que Neferet não precisa saber. Mas ela não é mais Grande Sacerdotisa, e eu tenho perguntas para as quais preciso encontrar respostas. Como Damien falou, já faz muito tempo desde que outra pessoa teve a Visão Verdadeira. Bem, Thanatos é inteligente. E idosa. Imagino que talvez ela possa me dar algumas respostas. Se vocês não se importarem, é isso – ela concluiu rapidamente.

Olhei para Stevie Rae.

– Você é a Grande Sacerdotisa dela. Por você tudo bem?

– Não sei muito bem. O que você acha?

– Acho que, se nós não podemos confiar em Thanatos, estamos totalmente ferrados – respondi honestamente.

– Bem, então acho que está na hora de definir quem está no nosso time, e acredito que Thanatos faz parte das pessoas de bem. Portanto, por mim tudo bem.

– Sim, ok – eu disse.

– Obrigada – Shaylin agradeceu.

– Bem, foi uma perda de tempo – Aphrodite se juntou a nós enquanto colocava o seu telefone de volta dentro de sua bolsa Valentino dourada, cintilante e superfofa. – Pelo menos não foi uma perda de muito tempo.

– Ela não escutou nada do que você falou? – eu perguntei.

– Ah, ela escutou. Então ela disse que tinha duas palavras para mim: Nelly Vanzetti. E aí ela desligou.

– Ahn? – eu mostrei que não tinha entendido.

– Nelly Vanzetti é a psicanalista da minha mãe – Aphrodite explicou.

– E por que a sua mãe iria falar o nome dela para você? – Stevie Rae ainda não havia entendido.

– Porque, caipira, esse é o jeito de a minha mãe me dizer que eu estou parecendo completamente louca. Não que ela se importe se eu estou louca mesmo. Com isso ela estava dizendo que não se importa em me ouvir, mas que ela vai pagar a psicanalista dela para fazer isso – Aphrodite deu de ombros. – A mesma coisa de sempre.

– Isso é muito maldoso – Shaylin comentou.

Aphrodite franziu seus olhos azuis.

– Por que você está aqui?

– Ela tem um dom – Stevie Rae falou.

– O meu nível de “não dou a mínima” está muito baixo em relação a isso – Aphrodite rebateu.

– Tenho algumas perguntas para fazer a Thanatos – Shaylin esclareceu.

– Ela vai com a gente – afirmei.

– Tanto faz – Aphrodite deu um olhar de desdém para ela. – Então vá indo. Na frente de nós. Preciso conversar com estas duas, sem ouvidos coloridos escutando.

– Vá indo, Shaylin – eu disse antes que as duas começassem a discutir. De novo. – Nós vamos encontrá-la no escritório de Thanatos.

Shaylin assentiu, franziu as sobrancelhas para Aphrodite e foi embora.

Aphrodite ergueu as mãos.

– Sim, eu sei, eu devia ter sido mais gentil, blá-blá-blá. Mas ela me enerva. Ela me lembra demais uma mini-Kim Kardashian, o que significa que ela é inútil, irritante e visível demais.

Olhei para Stevie Rae, esperando que ela argumentasse com Aphrodite. Mas tudo o que ela fez foi balançar a cabeça e dizer:

– Estou cansada de ficar chutando um maldito cachorro morto.

– Cachorro morto? Isso é tudo o que você tem para dizer? Sério? – Aphrodite protestou.

– Eu não estou falando mais com você – Stevie Rae disse a ela.

– Ótimo. Agora, vamos passar para coisas importantes. Vocês não vão gostar de nenhuma das coisas que eu tenho para contar, mas precisam me ouvir. A menos que vocês queiram ser como a minha mãe.

– Nós estamos escutando – eu assegurei a ela.

Stevie Rae continuou de boca bem fechada, mas assentiu.

– Em primeiro lugar, caipira, você sabe que ficou toda cheia de olhares de adoração para Kalona desde que ele molhou o seu menino-pássaro e o ressuscitou e...

– Ele derramou lágrimas imortais no seu filho e magicamente o trouxe de volta da morte que estava próxima. Afe Maria, você estava lá! Você viu tudo – Stevie Rae exclamou.

– Você não está mais falando comigo, lembra? Mas você acabou de tocar no ponto em que eu queria. Apenas algumas horas atrás, a gente acreditava que Kalona era tão louco e perigoso quanto Neferet. Agora ele é o guerreiro da Morte. A escola toca vai ficar babando em cima dele, do mesmo modo que ficou quando ele emergiu do chão. Nós vamos demonstrar mais bom senso. Ou pelo menos eu vou demonstrar mais bom senso. Seria bom se vocês duas se juntassem a mim.

– Eu nunca vou confiar nele – eu disse em voz baixa as palavras que vieram do fundo do meu coração.

– Z., ele fez seu Juramento a Thanatos – Stevie Rae argumentou.

Encontrei o olhar dela.

– Ele matou Heath. Ele matou Stark. Ele só trouxe Stark de volta porque Nyx o forçou a pagar a dívida de vida que ele tinha por causa de Heath. Stevie Rae, eu estive no Mundo do Além com ele. Kalona perguntou quando Nyx o perdoaria. Ela respondeu que ele só poderia pedir isso quando fosse digno do perdão dela.

– Talvez ele esteja se esforçando para isso agora – ela disse.

– E talvez ele seja um assassino, estuprador, manipulador e mentiroso – Aphrodite contra-atacou. – Se Zoey e eu estivermos erradas, ótimo. Você pode dizer “eu avisei” e todos nós vamos rir e dar uma puta festa. Mas, se nós estivermos certas, não vamos ser pegas desprevenidas quando um imortal caído causar mais violência.

Stevie Rae suspirou.

– Eu sei... eu sei. Faz sentido. Eu não vou confiar cem por cento nele.

– Ótimo. Mas fique ligada no seu menino-pássaro também. Ele confia cem por cento no pai, o que significa que Kalona pode usá-lo. De novo.

A expressão de Stevie Rae se endureceu, mas ela concordou.

– Sim, vou ficar.

– Em segundo lugar – Aphrodite desviou a sua atenção para mim –, explique a merda estranha que passou pela sua cabeça quando você chamou aquele maldito touro de Heath na noite passada.

– O quê? – Stevie Rae deixou escapar. – Isso não é verdade, certo, Z.?

Ok, mentir seria fácil. Eu podia simplesmente dizer que obviamente Aphrodite tinha perdido a cabeça e estava ouvindo coisas. Afinal, uma montanha de coisas loucas havia acontecido ontem, tudo de uma vez. Isso sem falar em todos os elementos se manifestando tão poderosamente que nada mais era totalmente claro, exceto o assassinato da minha mãe por Neferet e o fato de ela ser a Consorte das Trevas.

E eu quase menti.

Então eu me lembrei do que o fato de mentir para os meus amigos tinha me custado antes – não apenas perder a confiança deles por um tempo, mas também havia me custado o meu respeito por mim mesma. Eu não me senti bem quando menti. Eu me senti fora de sincronia com a Deusa e com o caminho que eu acredito que ela quer que eu trilhe.

Então, inspirei profundamente e soltei a verdade em uma explosão de palavras:

– Eu olhei para Aurox através da pedra da vidência e vi Heath e isso me assustou e eu chamei o nome dele e Aurox se virou e olhou para mim antes de começar a se transformar de novo naquela coisa tipo touro e foi por isso que quando ele arremeteu contra mim eu simplesmente fiquei parada ali e disse a ele que ele não ia me machucar. Fim.

– Você ficou completamente louca. Que merda, acho que joguei fora antes da hora o telefone da psicanalista da minha mãe. Você precisa ser avaliada e medicada.

– Bem, eu vou ser mais gentil que Aphrodite, mas isso não faz o menor sentido, Z. Como Heath poderia estar ao redor de Aurox?

– Eu não sei! E ele não estava ao redor de Aurox. Foi como se Heath brilhasse sobre ele. Ou como se Heath fizesse uma sombra com um brilho da cor da pedra da lua sobre Aurox – tive vontade de gritar de frustração por não conseguir descrever o que eu havia vislumbrado.

– Como um fantasma? – Stevie Rae quis saber.

– Isso pode fazer um pouco mais de sentido – Aphrodite observou, concordando com Stevie Rae com a cabeça, como se as duas estivessem decifrando o que aconteceu. – Nós estávamos no meio de um ritual invocando a Morte. Heath está morto. Talvez a gente tenha atraído o fantasma dele.

– Eu não acredito nisso – falei.

– Mas você não tem certeza, certo? – Stevie Rae questionou.

– Não, eu não tenho certeza de nada, exceto que a pedra da vidência é magia antiga, e a magia antiga é forte e imprevisível. Ela nem deveria estar em lugar nenhum além da Ilha de Skye, então eu não sei o que está acontecendo com o fato de eu estar vendo coisas através dela aqui – atirei as mãos para cima. – Talvez eu tenha imaginado tudo. Talvez não. Isso é estranho, até para mim. Eu achei ter visto Heath, e então Aurox se transformou completamente naquela coisa feito touro e fugiu.

– Tudo aconteceu rápido demais – Stevie Rae comentou.

– Da próxima vez que você vir Aurox, tem que olhar para ele através dessa maldita pedra, com certeza – Aphrodite afirmou. – E não fique sozinha com ele.

– Eu não estou planejando isso! Eu nem sei onde ele está.

– Provavelmente, junto com Neferet de novo – Aphrodite respondeu.

Eu devia ter ficado de boca fechada, mas me ouvi dizendo:

– Ele disse que tinha escolhido um caminho diferente.

– É, logo depois de matar Dragon e de quase matar Rephaim – Aphrodite rebateu.

Suspirei.

– O que Stark acha disso? – Aphrodite perguntou. Como eu não falei nada, ela levantou uma sobrancelha loira. – Ah, entendi. Você não contou para ele, certo?

– Certo.

– Bem, eu não posso te censurar por isso, Z. – Stevie Rae falou gentilmente.

– Ele é o guerreiro dela. O seu Guardião – Aphrodite insistiu. – Por mais arrogante e irritante que ele seja, precisa saber que Zoey tem uma queda por Aurox.

– Eu não tenho!

– Ok, não por Aurox, mas por Heath, e você acha que Heath pode ser Aurox – Aphrodite balançou a cabeça. – Você percebe como isso soa como coisa de louco?

– Minha vida é uma coisa de louco – respondi.

– Stark precisa saber que você pode ser vulnerável a Aurox – Aphrodite disse com firmeza.

– Eu não sou vulnerável a ele!

– Diga a ela, caipira.

Stevie Rae não conseguiu olhar nos meus olhos.

– Stevie Rae?

Ela suspirou e finalmente olhou para mim.

– Se você acredita que existe uma chance, nem que seja mínima, de Heath estar rondando Aurox ou o que quer que seja, isso significa que você não vai pensar claramente em relação a ele. Eu sei. Se eu perdesse Rephaim e depois pensasse que o vi ao redor de outro cara, mesmo que isso parecesse loucura, esse cara seria capaz de me atingir. Aqui – ela apontou para o seu coração. – E isso, na maior parte das vezes, comanda aqui – ela apontou para a cabeça.

– Portanto, conte ao Cara do Arco o que você acha que viu – Aphrodite concluiu.

Eu detestava admitir, mas sabia que elas estavam certas.

– Certo. Vai ser péssimo, mas tudo bem. Vou contar para ele.

– E eu vou contar para Darius – Aphrodite avisou.

– Bem, e eu vou contar para Rephaim – Stevie Rae acrescentou.

– Por quê?! – eu queria explodir.

– Porque os guerreiros ao seu redor precisam saber disso – Aphrodite explicou.

– Está bem – respondi rangendo os dentes. – Mas só para eles. Estou cansada de um monte de gente falando sobre mim e meus problemas com os garotos.

– Bem, Z., você realmente arranja problemas com os garotos – Stevie Rae disse com um tom leve, enganchando o braço dela ao meu.

– Nós também precisamos contar isso para Thanatos – Aphrodite disse quando nós três começamos a caminhar em direção à sua sala de aula. – A afinidade dela é com a Morte. Faz sentido que ela entenda de fantasmas e coisas assim.

– Por que a gente não anuncia isso no Tulsa World e faz Neferet escrever uma maldita coluna de perguntas e respostas sobre o assunto? – eu reagi.

– Isso é quase um palavrão. Cuidado. “Maldita” é uma porta de entrada para o mundo dos palavrões. Quando você menos esperar, “foda” vai sair voando da sua boca – Aphrodite me ironizou.

– Foda voando? Isso soa errado – Stevie Rae falou para ela, balançando a cabeça.

Apertei o passo, praticamente arrastando Stevie Rae comigo e fazendo Aphrodite ter que dar uma corridinha para nos acompanhar. Eu não as escutei quando elas começaram a discutir sobre palavrões. Em vez disso, fiquei preocupada.

Eu me preocupei com a nossa escola.

Eu me preocupei com a questão Aurox/Heath.

Eu me preocupei em contar a Stark sobre a questão Aurox/Heath.

E eu me preocupei com a contração no meu estômago e com a possibilidade de a minha síndrome do intestino irritável surgir de repente no meio de tudo. De novo.


8 Shaunee

– Damien, acho que eu devo ficar bem longe do estábulo. Lenobia já teve uma dose bem grande de fogo recentemente – Shaunee olhou para Damien e Erin. Os três haviam se afastado quando Zoey disse para eles se dispersarem, mas, em vez de fazer isso, eles haviam ficado juntos, tentando imaginar onde cada um deles seria mais útil com os seus elementos.

– Você tem razão – Damien concordou. – Faz mais sentido que você vá até a pira de Dragon. Você vai ser útil por lá em breve.

Os ombros de Shaunee desabaram.

– É, eu sei, mas não estou nada ansiosa por isso.

– Simplesmente conecte-se ao seu elemento e vai ser fácil – Erin sugeriu.

Shaunee piscou surpresa para ela, não apenas por ela ter falado – Erin definitivamente estava evitando conversar com ela desde que as duas tinham virado ex-gêmeas –­, mas com o seu tom sem consideração. Ela estava falando sobre queimar o corpo de Dragon como se isso não fosse nada demais, como acender um fósforo.

– Nada em relação ao funeral de Dragon vai ser fácil, Erin. Com ou sem o meu elemento.

– Eu não quis dizer fácil para valer – Erin pareceu irritada. Shaunee pensou que ultimamente Erin sempre parecia irritada. – Só quis dizer que, quando você realmente se conecta ao seu elemento, as outras coisas não incomodam tanto. Mas talvez você não vá tão a fundo no seu elemento.

– Isso é besteira – Shaunee sentiu o calor de uma raiva crescente. – Minha afinidade com o fogo não é nem um pouco menor do que a sua afinidade com a água.

Erin deu de ombros.

– Tanto faz. Eu só estava tentando ajudá-la. De agora em diante, vou deixar de tentar – ela se virou para Damien, que estava olhando de uma para a outra, como se não soubesse se pulava no meio delas ou corria na direção oposta. – Eu vou para o estábulo. Lenobia vai ficar feliz de ver a água, e eu não tenho problemas em usar o meu elemento – sem dizer mais nada, Erin foi embora.

– Ela sempre foi assim? – Shaunee se ouviu perguntando para Damien algo que havia dias rondava a sua mente.

– Você tem que definir “assim”.

– Sem coração.

– Honestamente?

– Sim. Erin sempre foi tão sem coração?

– Isso é realmente muito difícil de responder, Shaunee – Damien falou gentilmente, como se estivesse pensando que precisava ser cuidadoso para que as suas palavras não a magoassem.

– Só me diga a verdade, mesmo se ela for dura – ela insistiu.

– Bem, então, honestamente, até vocês duas se separarem, era praticamente impossível saber como era cada uma individualmente. Nunca conheci nenhuma das duas sem a outra. Uma terminava as frases da outra. Era como se vocês fossem duas metades de um todo.

– Mas nem agora? – Shaunee o estimulou a continuar, quando ele hesitou.

– Não, agora é diferente. Agora vocês são indivíduos com personalidade própria – ele sorriu para ela. – O melhor jeito de colocar isso é que ficou bem óbvio para a maioria de nós que a sua personalidade é a com coração.

Shaunee ficou olhando Erin se afastar.

– Eu já sabia disso antes, e isso me incomodava. Sabe, o jeito com que ela era tão sarcástica, fofoqueira e maldosa. Mas também era tão divertido e legal estar com ela.

– Normalmente, divertido à custa de outras pessoas – Damien comentou. – Legal porque ela excluía os outros para parecer que ela era melhor do que todo o resto.

Shaunee encontrou o olhar dele.

– Eu sei. Agora eu vejo isso. Mas, antes, tudo o que eu conseguia ver era que nós éramos melhores amigas, e eu precisava de uma melhor amiga.

– E agora? – ele perguntou.

– Agora eu preciso conseguir gostar de mim mesma, e eu não posso fazer isso se eu for só a metade de uma pessoa inteira. Eu também estou cansada de sempre ter que dizer algo sarcástico, engraçadinho ou apenas simplesmente detestável – ela balançou a cabeça, sentindo-se triste e madura. – Isso não significa que eu ache Erin ridícula. Na verdade, quero que ela seja tão legal, divertida e incrível quanto eu acreditava que ela era. Só acho que acabei de descobrir que ela tem que ser, ou não ser, essas coisas por ela mesma. Isso não tem nada a ver comigo.

– Você é mais inteligente do que eu pensei que você fosse – Damien admitiu.

– Eu ainda sou péssima na escola.

Ele sorriu.

– Existem outros tipos de inteligência.

– Bom saber disso.

– Ei, não se subestime. Você poderia ser realmente boa na escola se você se esforçasse um pouco.

– Sei que isso parece uma coisa boa para você, mas por mim estou feliz com a parte dos “outros tipos de inteligência” – Shaunee falou, fazendo Damien rir. Depois acrescentou: – Eu vou até a pira. Talvez, se eu estiver por lá, possa ajudar.

– Ajudar os guerreiros ou a você mesma?

– Talvez ambos. Eu não sei – Shaunee respondeu com um suspiro.

– Vou acreditar que vai ajudar ambos – ele afirmou. – Vou andar por aí, como o ar. Vou tentar soprar para longe o resto de Trevas que ainda está impregnado neste lugar.

– Você também sente isso?

Ele assentiu.

– Posso sentir que a energia por aqui é ruim. Muita coisa negativa aconteceu em um período curto demais – Damien inclinou a cabeça, analisando Shaunee. – Agora que pensei mais nisso, não acho que você deve ficar longe do estábulo. O fogo não é mau. Você não é má. Lenobia sabe disso. Lembra como você fez os cascos dos cavalos se aquecerem para que a gente conseguisse cavalgar no meio daquela tempestade de gelo?

– Lembro – Shaunee respondeu, e aquela lembrança fez com que ela se sentisse mais leve.

– Então vá até a pira, ajude lá, mas vá até o estábulo também. Lembre a todos que o fogo pode fazer muito mais do que destruir. A forma como ele é manejado é o que importa.

– Imagino que você quer dizer algo como “o que importa é como o fogo é usado”?

Damien abriu o sorriso.

– Viu só, eu disse que você poderia ser boa na escola. “Manejar” é uma excelente palavra para o seu vocabulário: controlar ou dominar uma arte, uma disciplina etc.

– Você está fazendo a minha cabeça doer – Shaunee falou e ambos riram.

– Então, vou encontrar com você no estábulo mais tarde?

– Sim, vai.

Damien começou a se afastar, mas voltou e deu um abraço rápido e apertado em Shaunee.

– Estou feliz porque você se tornou uma pessoa própria. E se você precisar de um amigo, eu estou aqui – ele falou, e então saiu apressado em direção ao estábulo.

Shaunee piscou com força para segurar as lágrimas, observando o cabelo castanho e macio de Damien balançando na sua brisa própria.

– Fogo – ela sussurrou –, mande uma pequena faísca para Damien. Ele merece encontrar um cara gostoso que o faça feliz, principalmente porque ele sempre se esforça tanto para fazer os outros felizes.

Sentindo-se melhor do que estava se sentindo havia semanas, Shaunee começou a andar em outra direção. Os seus passos eram mais vagarosos, mais calculados do que os de Damien, mas ela não estava mais com medo de para onde estava indo. Ela também não estava ansiosa para a pira e para o fogo – ela não era Erin. Ela só não podia apagar a tristeza e a dor congelando os seus sentimentos. E sabe de uma coisa? Eu não ia querer ser fria e congelada por dentro, mesmo que isso significasse que eu não fosse me ferir tanto, ela decidiu em silêncio.

Shaunee estava se centrando e extraindo força do calor constante do seu elemento. Obrigada, Nyx. Eu vou tentar manejá-lo bem, era o que ela estava pensando quando a voz do imortal penetrou na sua mente.

– Eu ainda não te agradeci.

Shaunee levantou os olhos e viu Kalona em pé diante da grande estátua de Nyx que ficava na frente do seu templo. Ele estava usando uma calça jeans e um colete de couro muito parecido com o que Dragon costumava usar. Só que esse colete era maior e tinha fendas através das quais as asas negras de Kalona emergiam e então se dobravam sobre suas costas. Esse colete também não ostentava a insígnia da Deusa, mas era difícil pensar nisso com ele a encarando com aqueles olhos âmbar do outro mundo.

Ele é mesmo absolutamente, inumanamente maravilhoso. Shaunee afastou o pensamento da sua mente e em vez disso se concentrou no que ele havia dito.

– Agradecer a mim? Pelo quê?

– Por me emprestar o seu celular. Sem ele, Stevie Rae não teria conseguido me ligar. Se não fosse por você, Rephaim poderia estar morto.

O rosto de Shaunee ficou quente. Ela encolheu os ombros, sem saber por que de repente se sentia tão nervosa.

– Você foi o cara que veio quando ela ligou. Você simplesmente podia não ter atendido e continuaria sendo um pai de merda – Shaunee falou sem pensar e só depois percebeu o que tinha dito. Então ela fechou a boca e disse a si mesma: fique quieta!

Houve um silêncio longo e desconfortável, até que Kalona afirmou:

– O que você disse é verdade. Eu não tenho sido um bom pai para os meus filhos. Eu ainda não estou sendo um bom pai para todos os meus filhos.

Shaunee olhou para ele, imaginando o que ele queria dizer exatamente. A voz dele tinha soado estranha. Ela esperava que ele parecesse triste, sério ou até irritado. Em vez disso, pareceu surpreso e um pouco embaraçado, como se aqueles pensamentos tivessem acabado de ocorrer para ele. Ela queria poder ver a sua expressão, mas o rosto dele estava virado para o outro lado. Ele estava olhando para a estátua de Nyx.

– Bem – ela começou, sem saber muito bem o que dizer. – Você está melhorando o seu relacionamento com Rephaim. Talvez não seja tarde demais para consertar o seu relacionamento com os seus outros filhos também. Eu sei que, se o meu pai aparecesse e quisesse algo comigo, eu iria permitir. Pelo menos, eu daria uma chance a ele – o imortal virou a cabeça e ela o encarou. Shaunee se sentiu trêmula, como se aqueles olhos âmbar pudessem enxergar muito dela. – O que eu quero dizer é que acho que nunca é tarde demais para fazer a coisa certa.

– Você acredita mesmo nisso, honestamente?

– Sim. Ultimamente, acredito cada vez mais – Shaunee preferia que Kalona parasse de olhar para ela. – Então, quantos filhos você tem?

Ele deu de ombros. Suas asas enormes se levantaram um pouco e depois de acomodaram novamente.

– Perdi a conta.

– Parece que saber quantos filhos você tem é um bom jeito de começar aquela coisa toda de “quero ser um bom pai”.

– Saber algo e agir em relação a isso são coisas bem diferentes – ele falou.

– Sim, totalmente. Mas eu disse que é um bom meio de começar – Shaunee desviou o rosto na direção da estátua de Nyx. – Há outro bom ponto de partida.

– A estátua da Deusa?

Ela franziu a testa para ele, sentindo-se um pouco mais confortável sob o seu olhar.

– Não é só ficar perto da estátua dela. Tente pedir...

– O perdão dela não é concedido a todos nós! – a voz dele soou como um trovão.

Shaunee começou a tremer, mas ela desviou os olhos para a estátua de Nyx. Ela quase podia jurar que os seus belos lábios carnudos de mármore se curvaram em um sorriso bondoso para ela. Fosse ou não imaginação dela, aquilo deu a Shaunee o impulso de coragem que ela precisava, e a novata continuou apressadamente:

– Eu não ia dizer perdão. Eu ia dizer ajuda. Tente pedir a ajuda de Nyx.

– Nyx não iria me ouvir – Kalona falou tão baixo que Shaunee quase não o escutou. – Ela não me ouve há éons.

– Durante esses éons, quantas vezes você pediu ajuda a ela?

– Nenhuma – ele respondeu.

– Então como você sabe que ela não o está ouvindo?

Kalona balançou a cabeça.

– Você foi enviada a mim para ser a minha consciência?

Foi a vez de Shaunee balançar a cabeça em negação.

– Eu não fui enviada a você, e a Deusa sabe que eu já tenho problemas suficientes para lidar com a minha própria consciência. Tenho certeza absoluta de que não posso ser a consciência de ninguém mais.

– Eu não teria tanta certeza, novata jovem e ardente... Eu não teria tanta certeza – ele refletiu em voz alta. Então, abruptamente, Kalona se afastou dela, deu alguns passos largos e rápidos e se lançou no céu da noite.

Rephaim

Ele não se importava muito com o fato de que a maioria dos outros garotos ainda o evitava. Damien era legal, mas ele era legal com praticamente todo mundo, então Rephaim não tinha certeza se a gentileza do garoto tinha alguma coisa a ver com ele. Pelo menos Stark e Darius não estavam tentando matá-lo nem afastá-lo de Stevie Rae. Recentemente, Darius até parecia um pouco mais amigável. O guerreiro Filho de Erebus o tinha amparado quando ele tropeçou dentro do ônibus na noite anterior, ainda fraco depois de ser curado magicamente de um ferimento mortal.

Meu Pai me salvou e depois fez juramento comprometendo-se a ser guerreiro da Morte. Ele realmente me ama, e está escolhendo o lado da Luz em vez das Trevas. Pensar nisso fez Rephaim sorrir, apesar de o ex-Raven Mocker não ser tão ingênuo e crédulo quanto Stevie Rae e os outros pensavam. Rephaim queria que o seu pai continuasse no caminho de Nyx – queria isso muito mesmo. Mas ele, mais do que ninguém (exceto a própria Deusa), conhecia o ódio e a violência em que o imortal caído havia chafurdado por séculos.

O fato de Rephaim existir era prova da capacidade do seu pai de causar imensa dor nos outros.

Os ombros de Rephaim desabaram. Ele havia chegado à parte dos jardins da escola onde ficava o carvalho destruído – metade dele apoiada no muro, metade no chão. O centro da árvore velha e grossa parecia que tinha sido atingido por um raio atirado por um deus furioso.

Mas Rephaim sabia que não era isso.

O seu pai era um imortal, mas ele não era um deus. Kalona era um guerreiro, e um guerreiro caído.

Sentindo-se estranhamente perturbado, Rephaim passou os olhos pela ferida profunda que era aquela destruição no meio da árvore. Ele se sentou em um dos galhos caídos bem em frente à copa quebrada da árvore, analisando o tronco grosso que estava encostado no muro leste da escola.

– Isso precisa ser consertado – Rephaim falou em voz alta, preenchendo o silêncio da noite com a humanidade da sua própria voz. – Stevie Rae e eu podemos trabalhar nisso juntos. Talvez a árvore não esteja completamente perdida – ele sorriu. – A minha Vermelha me curou. Por que ela não poderia curar uma árvore?

A árvore não respondeu, mas enquanto Rephaim falava ele teve uma estranha sensação de déjà vu . Como se ele tivesse estado ali antes, não apenas em outro dia normal de escola. Ele sentiu uma sensação de ter estado ali com o vento sob suas asas e o azul brilhante do céu à luz do dia.

Rephaim enrugou a testa e esfregou a mão nela, sentindo o começo de uma dor de cabeça. Será que ele tinha vindo até ali durante o dia, enquanto ele era um corvo, quando a sua humanidade estava escondida tão profundamente dentro dele que aquelas horas passava como um borrão nebuloso e indistinto de sons, cheiros e visão?

A única resposta que veio até Rephaim foi aquela pulsação surda em suas têmporas.

O vento batia ao redor dele, farfalhando através dos galhos caídos, fazendo sussurrar as poucas folhas marrons do inverno que ainda estavam presas ao velho carvalho. Por um momento, pareceu que a árvore estava tentando falar com ele, tentando contar os seus segredos.

Rephaim desviou o olhar de volta para o centro da árvore. Sombras. Casca de árvore partida. Tronco despedaçado. Raiz exposta. E parecia que o chão perto do centro da árvore já havia começado a sofrer uma erosão, quase como se houvesse um buraco se formando abaixo dela.

Rephaim estremeceu. Já houve um buraco abaixo da árvore. Um buraco que havia aprisionado Kalona dentro da terra por séculos. A lembrança desses séculos e da terrível existência meio irreal e repleta de ódio, violência e solidão que ele havia vivido durante esse tempo ainda era parte do fardo pesado que Rephaim carregava.

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

A brisa farfalhou de novo. Aquele som era reconfortante, como se o sussurro ancestral da árvore pudesse ser a voz da Deusa.

– Vou entender isso como um sinal – Rephaim falou em voz alta para a árvore, pressionando a palma da sua mão contra o tronco ao lado dele. – Vou pedir a Stevie Rae para me ajudar a consertar a violência que te despedaçou. Logo. Dou minha palavra. Vou voltar logo.

Quando Rephaim se afastou para continuar a sua ronda pelo perímetro da escola, ele pensou ter ouvido um movimento bem embaixo da árvore e imaginou que fosse o velho carvalho o agradecendo.

Aurox

Aurox estava andando agitado de um lado para o outro, cobrindo com três passos aquele pequeno espaço vazio abaixo do carvalho despedaçado. Então ele se virou e deu três passos curtos de volta para o outro lado. Ele continuou para lá e para cá, para lá e para cá. Pensando... pensando... pensando... e desejando desesperadamente ter um plano.

A sua cabeça doía. Ele não havia quebrado o crânio quando caiu no buraco, mas o machucado na sua cabeça tinha sangrado e inchado. Ele estava com fome e com sede. Ele achava difícil descansar dentro da terra, apesar de o seu corpo estar exausto e de ele precisar dormir para poder se curar.

Por que ele tinha achado uma boa ideia voltar para esta escola e se esconder nos jardins onde viviam o professor que ele havia matado e o garoto que ele tinha tentado matar?

Aurox segurou sua cabeça com as mãos. Não fui eu! Ele queria gritar aquelas palavras. Eu não matei Dragon Lankford. Eu não ataquei Rephaim. Eu fiz uma escolha diferente! Mas a escolha dele não tinha importado. Ele havia se transformado em uma besta. E a besta espalhara um rastro de morte e destruição.

Havia sido tolice da parte dele ir até a escola. Tolice acreditar que ele poderia se encontrar ali ou fazer algum bem. Bem? Se alguém soubesse que ele estava se escondendo na escola, seria atacado, aprisionado e possivelmente morto. Apesar de ele não estar ali para ferir ninguém, isso não importaria. Ele iria absorver o ódio daqueles que o descobrissem e a besta emergiria. Ele não seria capaz de controlá-la. Os guerreiros Filhos de Erebus iriam cercá-lo e colocar um fim na sua existência miserável.

Eu já controlei a besta antes. Eu não ataquei Zoey. Mas será que ele teria a oportunidade de tentar explicar que não queria causar nenhum dano? Ou mesmo de ter um momento para testar o seu autocontrole e provar que ele era mais do que a besta dentro dele? Aurox recomeçou a andar de um lado para o outro. Não, a intenção dele não iria importar para ninguém na Morada da Noite. Tudo o que eles iriam ver era a besta.

Inclusive Zoey? Será que até mesmo ela ficaria contra ele?

“Zoey o protegeu dos guerreiros. Foi por causa da proteção dela que você conseguiu fugir.” A voz de Vovó Redbird acalmou os seus pensamentos turbulentos. Zoey o havia protegido. Ela tinha acreditado que ele conseguia controlar a besta o suficiente para não machucá-la. A avó dela oferecera abrigo a ele. Podia ser que Zoey não o quisesse morto.

Mas os outros queriam.

Aurox não os censurava por isso. Ele merecia a morte. Apesar de ele ter recentemente começado a sentir e a desejar ter uma vida diferente, e fazer escolhas diferentes, isso não mudava o passado. Ele havia cometido atos violentos e desprezíveis. Ele tinha feito tudo o que a Sacerdotisa ordenara.

Neferet...

O nome dela, mesmo como uma palavra não pronunciada em sua mente, causou um arrepio pelo seu corpo agitado.

A besta dentro dele queria ir até a Sacerdotisa. A besta dentro dele precisava servi-la.

– Eu sou mais do que uma besta – a terra em volta dele absorveu suas palavras, abafando a humanidade de Aurox. Em desespero, ele agarrou uma raiz retorcida e começou a puxá-la para tentar subir e sair daquele buraco de terra.

– Isso precisa ser consertado – aquelas palavras chegaram até Aurox lá embaixo.

O corpo dele congelou. Ele reconheceu a voz: Rephaim. Vovó havia falado a verdade. O garoto sobrevivera.

O fardo invisível de Aurox ficou um pouco mais leve.

Aquela morte não precisava pesar na sua consciência.

Aurox se agachou, esforçando-se em silêncio para escutar com quem Rephaim estava falando. Ele não sentiu raiva nem violência. Certamente, se Rephaim tivesse a menor ideia de que Aurox estava escondido tão perto, o garoto seria tomado por sentimentos de vingança, não seria?

O tempo parecia passar devagar. O vento ficou mais forte. Aurox podia ouvi-lo chicoteando as folhas secas da árvore partida acima dele. Ele captou palavras que flutuaram com o ar frio: trabalhar... árvore... Vermelha me curou... Tudo na voz de Rephaim, sem nenhuma maldade, como se ele estivesse apenas refletindo em voz alta. E então a brisa levou até ele a prece do garoto:

– Deusa, eu sei que você me perdoou pelo meu passado e sempre vou ser grato por isso. Mas será que você poderia me ensinar a me perdoar de verdade?

Aurox mal respirava.

Rephaim estava pedindo ajuda da sua Deusa para perdoar a si mesmo? Por quê?

Aurox esfregou a testa latejante e se esforçou para pensar. A Sacerdotisa raramente tinha falado com ele, exceto para ordenar que ele cometesse um ato de violência. Mas ela havia falado quando ele estava por perto, como se Aurox não tivesse a capacidade de ouvi-la ou de formular pensamentos por si mesmo. O que ele sabia sobre Rephaim? Ele era o filho do imortal Kalona. Ele era amaldiçoado a ser um garoto de noite e um corvo de dia.

Amaldiçoado?

Ele havia acabado de escutar Rephaim rezando, e na sua prece ele havia agradecido o perdão de Nyx. Certamente, uma Deusa não iria amaldiçoar e perdoar ao mesmo tempo.

Então, com um princípio de surpresa, Aurox se lembrou do corvo que tinha grasnado para ele e feito tanto barulho que havia provocado a sua queda naquele buraco.

Será que aquele corvo podia ser Rephaim? O corpo de Aurox se tensionou quando ele se preparou para o confronto aparentemente inevitável que estava por vir.

– Dou minha palavra. Vou voltar logo – a voz de Rephaim chegou novamente até Aurox. O garoto estava indo embora, ainda que temporariamente. Aurox relaxou contra a parede de terra. O corpo dele doía e a sua mente zunia.

Era óbvio que ele não podia ficar naquele buraco, mas só isso era óbvio para Aurox.

Será que a Deusa de Rephaim, aquela que o havia perdoado, também o havia guiado até o buraco onde estava Aurox? Se fosse isso, era para mostrar a Aurox redenção ou vingança?

Será que ele devia se entregar, talvez para Zoey, e sofrer as consequências que fossem necessárias?

E se a besta emergisse de novo, e dessa vez ele não conseguisse controlá-la?

Será que ele deveria fugir?

Ou deveria procurar a Sacerdotisa e exigir respostas?

– Eu não sei nada – ele murmurou para si mesmo. – Eu não sei nada.

Com o peso da sua confusão e de toda a sua ânsia, Aurox abaixou a cabeça. Em silêncio e cheio de hesitação, ele imitou Rephaim e fez sua própria prece. Uma prece simples e sincera. E aquela foi a primeira vez na vida em que Aurox rezou.

Nyx, se você é mesmo uma Deusa misericordiosa, por favor, me ajude... Por favor...

 

 

 


C O N T I N U A