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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESPAÇO ELETRÔNICO / Philip K. Dick
ESPAÇO ELETRÔNICO / Philip K. Dick

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Por sobre a cabeça de Rachmael ben Applebaum flutuava um balão a jato e do seu circuito articulado uma voz masculina, artificial, bela mas inexpressiva, des­prendeu-se, tão ampliada que não só Rachmael como todos os que se encontravam nas faixas transportado­ras a ouviram. Era esta a finalidade da amplificação: isolar a pessoa e simultaneamente expô-la. O ridículo público, as vaias da multidão sempre presente eram utilizados como força agressora e... grátis para o cre­dor, refletiu Rachmael.
Sr. Applebaum! - A voz cordial, melodiosa, mas artificial, ecoou, expandiu-se, vibrou e mil cabe­ças humanas voltaram-se em expectativa, ergueram o olhar com divertido interesse, viram o balão a jato e também seu alvo: Rachmael ben Applebaum tentando sair do parque de estacionamento onde deixara seu veí­culo e entrar na sede da Lies Incorporated, distante ape­nas duzentos metros - mas o bastante para torná-lo visível e alvo do balão credor.
Já ouvi - murmurou Rachmael, dentes cerrados, sem se deter. Dirigia-se à porta iluminada a fluoron da agência policial particular sem olhar para cima, fingin­do, como se fosse possível, ignorar uma visão que nos últimos três anos passara a conhecer muito bem.
Sr. Applebaum - gritou o balão - a partir de hoje, quarta-feira, 8 de novembro de 2014, passa a de­ver, como herdeiro dos bens e dívidas de seu falecido pai, a soma de quatro milhões de poscreds a Trails of Hoffman Limited, um dos principais esteios de seu pai. . .
Está bem! - gritou Rachmael violento, detendo-se para olhar para cima, dominado por inútil ira, pelo desejo de perfurar, esvaziar e fazer cair o balão. Mas, que podia fazer? Pelos estatutos da UN, um credor tinha o direito de arrendar aquela peste. Era um re­curso legal.
E a multidão sorridente o sabia, vendo na situação motivo para um rápido divertimento. Não os culpava, porém. Há anos vinham sendo treinados para isso. To­dos os meios de informação e educação, controlados pelos "desinteressados" bureaux de assuntos públicos da UN, insistiam naquela faceta do caráter complexo do homem moderno: sua capacidade para divertir-se com o sofrimento de um desconhecido.
- Não posso pagar. E vocês sabem muito bem - replicou Rachmael.

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Lá no alto, o balão a jato ouviu. Era dotado de audiorreceptores extremamente apurados. Mas não acre­ditou, nem se importou com o fato de ser ou não ver­dade. Sua tarefa era perseguir e não apurar fatos. De pé na faixa transportadora que o deslocava automati­camente, Rachmael falou, controlando-se o mais possí­vel:
- No momento não disponho de dinheiro, porque venho pagando continuamente, um a um, todos os cre­dores da Applebaum Interprise.
Caçoísta, a voz mecânica soou:
A três sigs por poscred. Grande pagamento.
Dêem-me tempo - replicou Rachmael.
- Planos, Sr. Applebaum? - A voz transpirava sar­casmo.
Houve uma pausa, depois a resposta:
- Sim.
Mas não deu maiores esclarecimentos. Dependia em parte do que conseguisse na agência de polícia parti­cular, Lies Incorporated. Se conseguisse. Pelo videofone, pelo menos, julgara surpreender um sinal de simpa­tia do proprietário da agência, Matson Glazer-Holliday.
Dentro de cinco minutos, numa entrevista formal com o psico-responsável da Lies Incorporated, Rachmael descobriria até que ponto a agência policial, que afinal precisava sobreviver à competição, teria de en­frentar a UN e os gigantes de menor porte do sistema dos nove planetas, apoiando um homem que não só estava arruinado como endividado, responsável pela desagregação de um império industrial que, ao desa­bar, arrastara seu diretor e proprietário, Maury Aplebaum, à morte obviamente voluntária.
Obviamente. Vocábulo expressivo e impressionante como todos os que se referiam à morte. Enquanto a faixa transportadora, apesar do balão lá no alto, o conduzia para o abrigo do limiar multicolorido, Rach-mael ia ponderando que talvez conseguissem, afinal, ajudá-lo.
Por que nunca lhe parecera lógico que seu pai, e Deus sabe como o conhecia, procurasse a morte pelo laser devido a um colapso econômico, embora os acon­tecimentos subseqüentes provassem que o colapso era decisivo para a Applebaum Interprise.
- É preciso pagar - gritava o balão a jato. - Trails of Hoffman insiste. Sua declaração de falência foi indeferida pelos tribunais da UN. Sr. Rachmael ben Applebaum é legalmente devedor da soma de...
A voz cessou quando Rachmael transpôs o limiar da agência particular interplanetária e a porta de rexeroid perfeitamente vedada deslizou às suas costas.
- Que deseja, senhor? - indagou a recepcionista-robô, não com voz zombeteira, e sim cordial.
Que contraste com aquele circo lá fora!
Srta. Holm - respondeu Rachmael, voz trêmu­la. O balão dos credores o abalara. Tremia e transpi­rava.
Sin-café? - indagou a recepcionista, compreen­siva. - Ou chá fnikjuice marciano, enquanto espera?
Rachmael, tirando um genuíno Tampa, Florida Gar­cia y Vega, murmurou:
- Ficarei apenas sentado, obrigado.
Acendendo o cigarro, aguardou a Srta. Freya Holm, fosse o que ou quem fosse. Bonita ou feia.
Uma voz suave, quase tímida, indagou:
- Sr. ben Applebaum? Sou a Srta. Holm. Se qui­ser ter a bondade de entrar no meu gabinete...
Mantendo aberta a porta, ela era a própria perfei­ção. Seu Garcia y Vega apagou, esquecido no cinzei­ro, quando ele se ergueu. Não teria mais de vinte anos, longos cabelos negros soltos nos ombros, dentes bran­cos e brilhantes como as faixas das dispendiosas revistas de informação da UN... Rachmael fitou-a: era peque­nina, trajava um corpete dourado, assim como o short e as sandálias, e trazia uma camélia branca sobre a orelha esquerda. E pensou: Então, esta é a minha pro­teção policial.
Claro. - Passando à frente dela, penetrou no pequeno gabinete, mobiliado provisoriamente. Num re­lance notou artefatos de culturas extintas dos seis pla­netas. - Talvez seus chefes não lhe tenham explicado, Srta. Holm - disse, franco. - É um caso de pres­são. Sou perseguido por uma das mais poderosas sín­dromes econômicas do sistema solar, Trails of Hoff­man...
THL é proprietária da empresa de tele-transporte do Dr. Sepp von Einem, que assumiu o monopólio e tornou obsoletos os navios hipervisão da Applebaum Interprise - disse a Srta. Holm, sentando-se à escri­vaninha e ligando o audiogravador. Diante dela havia uma pasta, que foi consultada. Erguendo a vista, pros­seguiu: - Como vê, Sr. Rachmael ben Applebaum, desejo mantê-lo em ficha separada de seu pai, o fale­cido Maury Applebaum. Posso chamá-lo Rachmael?
- S-sim - respondeu, intrigado com aquela frie­za e segurança... e com a pasta que se encontrava diante dela.
Muito antes que consultasse a Listening Instructio­nal Educational Services - ou, segundo a abreviação pejorativa da UN, Lies Incorporated - a agência po­licial havia compilado, com seus diversos monitores de informação, todos os dados referentes a ele e ao colapso devido ao brusco estado de obsolescência tecno­lógica da ex-poderosa Applebaum Interprise.
Seu falecido pai - prosseguiu Freya Holm - morreu, evidentemente, por seu próprio desejo. Ofi­cialmente, a polícia da UN considerou-o Selbstmort... suicídio. Contudo. . . - fez uma pausa, consultando o fichário. - Humm. . .
Não estou satisfeito e sim resignado - disse Rachmael. Afinal, não podia ressuscitar seu atarraca­do, rubicundo, míope e extremamente nervoso pai, Selbsmort, no alemão oficial da UN, ou não. - Srta. Holm. . . - principiou, mas foi interrompido, com de­licadeza.
- Rachmael, a entidade eletrônica Telpordo Dr. Sepp von Einem, pesquisada, financiada e elaborada nos diferentes laboratórios interplanetários de Trails of Hoffman, só poderia trazer o caos à indústria de trans­portes. Theodoric Ferry, presidente da THL, devia ter conhecimento disto quando financiou os trabalhos do Dr. von Einem, no seu laboratório de Schweinfort, on­de foi elaborado o primeiro Telpor. Contudo, THL possuía, independente do de seu pai, o maior holding da agora extinta Applebaum Interprise. Trails of Hoff­man, portanto, arruinou deliberadamente uma corporação na qual possuía importantes investimentos. .. E isso pareceu-nos estranho. - Erguendo a cabeça, jogou para trás seus cabelos negros. - E agora o perseguem para obter uma restituição, certo?
Rachmael confirmou com a cabeça.
Tranqüila, a Srta. Holm perguntou:
- Quanto tempo um transporte de passageiros da empresa de seu pai levava para chegar a Whale's Mouth, com um carregamento de, digamos, quinhentos colonos e mais seus bens pessoais?
Houve uma pausa agitada antes que ele respondesse:
- Nós. . . nem tentamos. Anos. Mesmo em hiper-visão. - A jovem sentada do outro lado da mesa não o interrompeu. Queria que ele próprio dissesse. - Com o nosso principal transporte, dezoito anos.
E com o instrumento de tele-transporte do Dr. von Einem?...
Quinze minutos - replicou, áspero.
E Whale's Mouth, o nono planeta do sistema Foma-lhaut, era até então o único descoberto por observa­dores tripulados ou não e considerado realmente habi­tável. De fato, uma segunda Terra. Dezoito anos... mesmo o sono profundo não adiantaria para um pe­ríodo tão prolongado. O envelhecimento, embora retar­do graças à diminuição do consciente, processava-se ainda assim. Alfa e Prox não haviam constituído pro­blema. As distâncias eram bastante curtas. Mas Fomalhaut, a vinte e quatro anos-luz...
Não podíamos competir. Era simplesmente im­possível transportar colonos a um ponto tão distante.
Teriam tentado se não fosse a descoberta do Telpor de von Einem?
Meu pai... - começou Rachmael.
Eu estava pensando nisso - interveio ela, me­neando a cabeça. - Ele morreu e era tarde demais. Depois você teve de vender virtualdmente todas as na­ves para saldar compromissos. E quanto a nós, Rach­mael. Você desejava?...
Sou ainda proprietário da nossa mais rápida, mais nova e maior nave, a Omphalos. Não chegou a ser vendida, apesar da pressão da THL, dentro e fora dos tribunais da UN. - Hesitou, mas acabou dizendo: - Quero ir a Whale's Mouth. De nave. Não com o Telpor do Dr. von Einem. Em minha própria nave, no que pretendíamos que fosse... - Calou-se, mas logo pros­seguiu: - Quero levá-la até Fomalhaut, numa viagem de dezoito anos. Sozinho. E quando chegar a Whale's Mouth provarei. . .
- Provará o quê, Rachmael?
Que poderíamos realizá-lo. Se von Einem não houvesse surgido com aquela história... - E fez um gesto de impotência.
Telpor é uma das mais vitais descobertas da his­tória humana - observou Freya. - O tele-transporte de um sistema estelar a outro, distante vinte e quatro anos-luz, em quinze minutos. Quando chegar a Whale's Mouth na Omphalos, por exemplo, eu estarei... - fez um rápido cálculo - com quarenta e três anos.
Ele não replicou.
- Que conseguiria com sua viagem? - perguntou Freya, voz macia.
- Não sei - respondeu, sincero.
Consultando o fichário mais uma vez, Freya decla­rou:
Nos últimos seis meses tem revisado a nave Omphalos num campo de pouso e estaleiro de reparos da Lua, que permanece secreto mesmo para nós. Você a considera pronta para o vôo intersistema. Trails of Hoffman tentou, através dos tribunais, apropriar-se da nave, alegando que é de sua propriedade, mas você conseguiu conservá-la até agora. No momento, po­rém. . .
Meus advogados comunicaram-me que dentro de três dias a THL vai-se apoderar da Omphalos.
E não pode partir dentro de três dias?
Falta o equipamento de sono profundo. Só estará pronto dentro de uma semana. - Rachmael tinha a respiração alterada. - Uma subsidiária da THL fabri­ca peças vitais. E estas foram retidas.
Freya acenou afirmativamente.
-- E veio aqui para nos pedir que apanhemos a Omphalos, com um dos nossos veteranos pilotos, man­tendo a nave escondida durante uma semana, até que esteja pronta para o vôo a Fomalhaut, não é assim?
- Exatamente - respondeu ele, na expectativa. - Não posso desaparecer com ela. Eles me encontra­riam. Mas um dos seus pilotos...
Não a fitou diretamente. A questão tinha demasiada importância para ele.
- Está em condições de pagar nossos honorários de. . .
Não. Não tenho dinheiro algum. Mais tarde, à medida que for liquidando os bens da empresa, é pos­sível que...
Há aqui uma nota em xerox do meu chefe, o Sr. Glazer-Holliday. Ele observa que o senhor não dis­põe de crédito. Suas instruções são.. . - Leu a nota em silêncio. - Contudo, devemos cooperar, apesar de sua situação financeira. - Erguendo a cabeça, conti­nuou: - Enviaremos um piloto experiente, que con­duzirá a Omphalos para onde a THL, e mesmo os agen­tes da UN, atuando pelo Secretário-Geral Herr Horst Bertold, não a encontrarão. Isto o nosso homem pode fazer enquanto tenta conseguir os itens do equipamen­to de sono profundo. - E sorrindo de leve. - Mas duvido que obtenha esses itens, Rachmael. Há um lem­brete aqui neste sentido. Tem razão: Theodoric Ferry é o chefe da diretoria, e o monopólio da firma é legal. - O sorriso tornou-se amargo. - Sancionado pela UN.
Rachmael não respondeu. Era óbvio que não havia esperanças. Por mais que o piloto profissional e ultra-veterano da Lies Incorporated mantivesse a imensa espaçonave Omphalos escondida entre os planetas, os itens seriam "involuntariamente detidos", segundo os manifestos marcados com contra-ordem.
- Creio que seu problema não se reduz a obter os componentes do equipamento de sono profundo - disse Freya. - Isto pode ser conseguido, sempre há meios. Nós, por exemplo... mas isso lhe custará mui­to dinheiro mais tarde; poderíamos obtê-los no merca­do negro. Seu problema, Rachmael...
- Eu sei - respondeu ele. Seu problema não esta­va em como chegar ao sistema Fomalhaut, ao nono pla­neta, a Whale's Mouth, única colônia da Terra em ex­pansão. Seu problema não era de fato a viagem de de­zoito anos.
Seu problema era...
Por que iria, quando o Telpor do Dr. Einem - fá­cil de ser obtido a um preço nominal em qualquer dos representantes da Trails of Hoffman espalhados por to­da a Terra - fazia a viagem em quinze minutos e por preço ao alcance até da mais modesta família terres­tre?
Em voz alta falou:
- Freya, a viagem por Telpor a Whale's Mouth parece ótima. - Quarenta milhões de cidadãos da Ter­ra haviam aproveitado as suas vantagens. E os regis­tros áudio e vídeo que de lá regressavam, via Telpor, contavam de um mundo que não conhecia a superpopu­lação, coberto de relva alta, animais estranhos, mas tranqüilos, cidades novas e encantadoras, construídas por robôs transportados às expensas da UN. - Mas...
- Mas o estranho é que a viagem é só ida - dis­se Freya.
Ele meneou a cabeça afirmativamente.
- Sim, é isso. Ninguém pode voltar.
Isto se explica facilmente. O sistema solar está localizado no eixo do universo. A regressão das ne­bulas extragaláticas demonstram o Teorema Um de von Einem, segundo o qual...
Em quarenta milhões de pessoas deve haver al­gumas que queiram voltar. Mas os relatórios em tevê e fita afirmam que estão felicíssimas. Deve ter visto os infindáveis espetáculos da televisão, a vida na Neocolônia. É. . .
- Perfeito demais, Rachmael?
- Estatisticamente, deve haver descontentes. Por que nunca ouvimos falar neles? E não podemos verifi­car.
Porque se a pessoa viajasse por Telpor até Whale's Mouth teria que ficar. Se encontrasse descontentes, que atitude adotaria? Impossível levá-los de volta. A única coisa a fazer era reunir-se a eles. E Rachmael tinha o pressentimento de que isso pouco adiantaria. Até a UN se desinteressara da Neocolônia, das inúmeras agên­cias assistenciais, do pessoal e dos bureaux abertos pelo atual Secretário-Geral Horst Bertold, da Nova Ale­manha Unificada, a maior entidade política européia. Mesmo eles se detinham às portas do Telpor. Nova Alemanha Unificada - N. A. U. Muito mais poderosa que o decadente Império Francês, que vivia apenas de uns restos de glória passada.
A Nova Alemanha Unificada - conforme demons­trava o Secretário-Geral Hosrt Bertold na UN - era a Onda do Futuro, conforme os próprios alemães gos­tavam de dizer.
- Em outras palavras - disse Freya - está dis­posto a levar uma nave de passageiros vazia até o sis­tema Fomalhaut, gastar dezoito anos no trajeto, único homem não tele-transportado entre os sete bilhões de cidadãos da Terra, com a idéia (ou talvez a esperança?) de que ao chegar a Whale's Mouth, no ano 2032, en­contrará um carregamento de passageiros, cerca de qui­nhentas almas infelizes, que queiram regressar? Assim, poderá recomeçar a operar comercialmente. Von Einem os transporta em quinze minutos, e dezoito anos mais tarde você os traz de volta à Terra, de regresso ao sis­tema solar.
- Sim - disse ele, veemente.
- Mais dezoito anos, para eles também, gastos no vôo de regresso. Para você, trinta e seis ao todo. Esta­ria de volta no ano de... 2050 A.D. Eu teria ses­senta e um anos de idade. Theodoric Ferry e até Horst Bertold estariam mortos. É possível que Trails of Hoff­man Limited nem mais exista. O Dr. Sepp von Einem estaria morto há muitos anos. Vejamos, êle está agora na casa dos oitenta. Não, nem sequer viveria para vê-lo alcançar Whale's Mouth, nem se fala em voltar. Assim, se a intenção é magoá-lo...
Não passa de uma loucura? - interrompeu ele. - Em primeiro lugar, crer que há pessoas infelizes de­tidas em Whale's Mouth, embora nós o ignoremos, em conseqüência do monopólio que a THL exerce sobre todos os meios de informação e toda a energia. Em segundo...
Em segundo, por querer passar dezoito anos de sua vida viajando para salvá-las. - Ela o estudou com atenção profissional. - Idealismo? Ou espírito de vin­gança contra o Dr. von Einem porque o Telpor tornou obsoletas as naves e os transportes comerciais de sua família, no sistema interestelar? Afinal, se conseguir partir na Omphalos, será uma grande notícia, uma no­vidade. Será plenamente coberto pela tevê e as fitas faladas aqui na Terra. Mesmo a UN não conseguirá abafar a história. A primeira, a única, nave tripulada a ir a Fomalhaut, não apenas um desses simples ins­trumentos. Você será uma cápsula do tempo. Estaría­mos todos primeiro esperando que chegasse e depois, em 2050, que regressasse.
Uma cápsula do tempo - êle repetiu. - Como aquela disparada em Whale's Mouth e que jamais che­gou à Terra.
Ela deu de ombros.
- Passou por nós, atraída peio campo gravitacional do Sol. Foi absorvida, passou despercebida.
-- Despercebida por todas as estações de rasteio? Dos seis mil aparelhos detectores independentes que existem no sistema solar, nenhum captou a cápsula do tempo quando se aproximava?
Franzindo as sobrancelhas, Freya perguntou:
Que está insinuando, Rachmael?
A cápsula do tempo de Whale's Mouth, cujo lançamento assistimos há anos na TV, não foi capta­da pelas nossas estações de rasteio porque nunca che­gou. E nunca chegou, Srta. Holm, porque, apesar de todas aquelas cenas de multidão, jamais foi lançada.
- Quer dizer que o que vimos na TV...
- O sinal do vídeo, via Telpor, que exibiu a multi­dão satisfeita, aclamando na imensa cerimônia pública do lançamento, era falso. Vi e revi inúmeras vezes as fitas. O rumor da multidão era uma fraude. - To­mando sua capa, retirou uma fita de sete polegadas de óxido de ferro Ampex e atirou-a sobre a mesa. - Projete-a cuidadosamente. Não havia gente aclamando. Por uma ótima razão. Porque nenhuma cápsula do tempo, contendo artefatos das antigas civilizações Fo-malhaut, foi lançada em Whale's Mouth.
- Mas... - Ela o fitou descrente, olhos dilatados, e pegou hesitante a fita sonora em carretel. - Por quê?
- Não sei. Mas quando a Omphalos chegar ao sis­tema Fomalhaut e a Whale's Mouth e eu visitar a Neo-colônia, descobrirei. - E acrescentou mentalmente: creio que não encontrarei apenas dez ou sessenta des­contentes entre os quarenta milhões... a essa altura serão um bilhão de colonos. Eu descobrirei. . .
Bruscamente, cortou o pensamento. Ignorava o que encontraria.
Mas chegaria a saber. No curto espaço de dezoito anos.
No luxuoso living de sua residência, instalada num satélite que orbitava a Terra, o proprietário da Lies Incorporated, Matson Glazer-Holliday, trajando uma bata de fumar feita à mão, saboreava um caríssimo charuto Antonio y Cleopatra, ouvindo a gravação de ruídos da multidão.
Diante dele o osciloscópio transformava os sinais de áudio em impressões visuais.
Voltando-se para Freya Holm, êle observou:
- Sim, há um ciclo. É possível vê-lo, embora não se possa ouvi-lo. Esta trilha sonora é contínua, eterna­mente repetida. O rapaz tem razão. É uma fraude.
- Rachmael ben Applebaum poderia...
- Não - cortou Matson. - Requisitei uma audio-cópia dos arquivos de informação da UN e as duas combinam. Rachmael não alterou a fita. Está exata­mente como ele afirma.
Ajeitou-se na poltrona, meditando.
É estranho que o aparelho de Einem, o Telpor, só funcione num sentido, irradiando matéria para fora... sem recuperação dessa matéria, pelo menos por tele-transporte. Assim, o que recebemos via Telpor como retransmissão de Whale's Mouth, é um sinal eletrônico, simples energia, o que é bastante conveniente para Trails of Hoffman. E agora isto, comprovadamente uma fraude. Como agência de pesquisa, eu deveria ter descoberto há muito tempo - Rachmael perseguido por todos os seus credores com balões a jato, que o mantêm acordado dia e noite, irritado por uma infini­dade de recursos tecnológicos que o impedem de assu­mir uma rotina normal de trabalho, conseguiu, ainda assim, descobrir esta falsificação e eu... diabo! Fa­lhei neste ponto, concluiu sombrio.
- Sark Scotch com água? - perguntou Freya.
Matson acenou distraído, enquanto Freya, que era sua amante, desaparecia na antecâmara das bebidas para verificar se existiria ainda uma garrafa da safra de 1985, raridade que valia uma fortuna.
Falhara, mas a seu favor podia-se dizer que tivera as suas suspeitas.
Desde o início tivera dúvidas quanto ao chamado "Teorema Um" do Dr. von Einem. Lembrava demais um disfarce aquela transmissão num só sentido, feita pelos técnicos da THL, espalhados por uma multiplici­dade de agências. Escreva de Whale's' Moutha assim que chegar, filho, pensou, amargo. Conte a sua velha mãe como é o mundo colonial, com seu ar fresco, sol, animaizinhos mansos e maravilhosos edifícios construí­dos pelo robôs da THL. . . e os relatórios, as cartas em forma de sinais eletrônicos, haviam chegado. Mas o filho querido não podia fazer sua narrativa direta e pessoalmente. Não podia voltar para contar a história e, como na velha lenda dá toca do leão, todas as pe­gadas das criaturas ingênuas conduziam para dentro, nenhuma para fora. Era a fábula que se repetia, com um acréscimo sinistro - era cada vez mais evidente a fraude nos sinais que se dirigiam para o exterior: as mensagens eletrônicas. Falsificadas por alguém mui­to conhecedor de aparelhagem complexa. Alguém que agia protegido pela figura do próprio Dr. Sepp von Einem, o inventor do Telpor, é mais os eficientes téc­nicos da Neues Einige Déutschland, que dirigiam o maquinário de Ferry.
Algo não lhe agradava naqueles técnicos alemães que manejavam os Telpors. Eram tão secos! Exatamente como deveriam ter sido seus antepassados no século vinte, pensou Matson, quando esses ancestrais, com a mesma calma inalterável, haviam atirado seres huma­nos aos fornos crematórios, para rápidos banhos de chuveiro que desprendiam o Zyklon B, gás cianureto, financiados por industriais de prestígio no Terceiro Reich, como Herr Krupp e Filhos. Exatamente como von Einem é sustentado por Trails of Hoffman, com seus amplos escritórios centrais sediados na Grosser Berlinstadt, a capital da Nova Alemanha Unificada, berço do nosso distinto Seeretário-Geral, aliás.
- Em vez de scotch e água - disse Matson a Freya - traga-me a ficha de Hcrst Bertold.
Na sala contígua, Freya acionou o equipamento de pesquisa automática embutido na parede da residência, instalação eletrônica, quase toda miniaturizada, desti­nada a receber dados e selecioná-los, incluindo um se­tor de arquivamento.
Havia ainda determinados artefatos que não se re­feriam a dados, mas que envolviam projéteis de alta velocidade, fosse o satélite atacado por qualquer das ar­mas dos arsenais da UN. Os projéteis anulariam qual­quer míssil antes de atingir o alvo.
Em seu satélite Brocard, Matson estava em seguran­ça. Como precaução realizava ali mesmo a maior par­te de seus negócios. Na sede da Lies Incorporated, em Nova York, sempre se sentira vulnerável. Na verdade, havia a presença bem próxima da UN e das legiões de "Operários da Paz" de Horst Bertold, homens e mu­lheres armados, fisionomias sombrias, que em nome de Pax Terrae percorriam o mundo, chegando mesmo às patéticas luazinhas, os primeiros satélites-colônias, tris­tes, fracassados, mas ainda existentes, criados antes das descoberta de vou Einem e de George Hoffman, isto é, Fomalhaut IX, chamada agora Whale's Mouth, ou a Colônia.
Era uma pena que George Hoffman não houvesse descoberto outros planetas em diferentes sistemas este­lares habitados por nós, frágeis seres humanos neces­sitados de viver, sentir, raciocinar, bípedes bioquímicos que andam de pé, pensou Matson ironicamente. Cente­nas e centenas de planetas, mas...
Temperaturas que fundiam termofusos. Ausência de ar, de terra, de água.
Impossível dizer que em tais mundos - Vénus era um exemplo típico - a "vida era fácil". Em tais pla­netas, a existência estava confinada a domos homeostáticos, com sua própria atmosfera, água, e temperatura auto-regulada.
Era preciso morar em cápsulas individuais, cerca de trezentas almas somáticas, número pequeno, conside­rando-se que a população da Terra, naquele ano, es­tava por volta dos sete bilhões.
- Tome - disse Freya, sentando-se de pernas en­colhidas no espesso tapete de lã, junto de Matson. - A ficha de H. B.
Abriu-a ao acaso. Os pesquisadores da Lies Incorpo­rated haviam feito um trabalho minucioso: a ficha con­tinha diversas informações que, via meios de informa­ção cuidadosamente controlados da UN, jamais chega­va ao público, ou mesmo aos chamados analistas "crí­ticos" e colunistas. Estes poderiam legalmente criticar à vontade o caráter, hábitos, talentos e maneira de barbear de Herr Bertold... mas todas as informações básicas lhes eram negadas.
Mas isso não acontecia a Lies Incorporated, apelido irônico em vista da natureza absolutamente comprova­da dos fatos que se encontravam no momento diante do seu proprietário.
Era uma leitura árida, mesmo para ele.
Ano do nascimento de Horst Bertold: 1954. Pouco antes do início da Era Espacial. Como Matson Glazer-Holliday, Horst era um remanescente do velho mundo, quando a única coisa que se via no céu eram os "discos voadores", nome dado a uma arma antimíssil da Força Aérea dos Estados Unidos e que, numa rápida confron­tação em 1928, provara ser ineficaz. Horst era filho da classe média de Berlim - Berlim Oriental, chama­va-se então, porque, embora fosse difícil lembrar, naquele tempo a Alemanha era dividida. Seu pai era pro­prietário de um mercado de carnes, o que era bastante adequado, ponderou Matson, já que fora oficial da S.S., ex-membro de um Einsatzgruppe que assassinara mi­lhares de inocentes de ascendência eslava ou judia. Mas isso não prejudicara os negócios de Johann Bertold nas décadas de cinqüenta e sessenta. Em 1972, com a idade de dezoito anos, o jovem Horst começara a destacar-se (inútil dizer, o estatuto das limitações não se aplicara ao pai, que jamais fora perseguido pela lei por seus crimes da década de 40 e que, além disso, escapara aos comandos de Israel, que em 1970 haviam desistido de perseguir os assassinos de multidões). Em 1972, Horst era líder da Juventude Reinholt.
Ernst Reinholt, de Hamburgo, encabeçara um parti­do que tentava reunificar a Alemanha. A idéia era que, como potência militar e econômica, seria neutra entre Oriente e Ocidente. Levara dez anos, mas na confla­gração de 1982 obtivera dos Estados Unidos e da União Soviética o que ambicionava: uma Alemanha unida, livre, com a denominação que mantinha até o presente.
Sob Reinholt, a Nova Alemanha Unificada agira com duplicidade desde o início, mas ninguém se sur­preendeu. Leste e Oeste estavam ocupados em erguer tendas onde os maiores centros populacionais, como
Chicago e Moscou, haviam existido, fazendo votos para que a ala sino-cubana do P. C., aproveitando-se da si­tuação, não avançasse e se entrincheirasse. . .
Segundo o protocolo secreto de Remholdt e sua Nova Alemanha Unificada, não haveria neutralidade para eles. Muito pelo contrário.
A Nova Alemanha dominaria a China.
Este era o repugnante fundamento em que o Reich recuperara a unidade. Seus técnicos haviam desenhado, seguindo instruções, as armas que em 1987 haviam desfechado o golpe mortal na China Comunista. Matson, examinando a ficha, leu rápido esta parte, porque o Reich havia elaborado certas armas diante das quais até o gás paralisante americano lembrava um campo florido. Não desejava encontrar menção do que Krupp havia imaginado como solução para os bilhões de chi­neses que estavam chegando até o Volga, ou seguindo em direção aos Estados Unidos através da Sibéria e invadindo o Alasca. Fosse como fosse, o tratado havia sido assinado e diante dele o próprio Fausto teria em­palidecido. Agora, o mundo não tinha que se haver com a China Comunista, e sim com a Nova Alemanha Unificada.
E isso resultara numa tremenda complicação, porque a Nova Alemanha conseguira legalmente o controle da única estrutura governante do planeta e, portanto, do sistema solar - a UN. Dominava-a agora. E o ex-mem­bro da Juventude de Reinholt, Horst Bertold, tornara-se Secretário-Geral, dedicando-se totalmente, conforme prometera na campanha eleitoral - o posto passara a ser eletivo em 1985 - ao problema da colonização. Descobriria a Solução Final para a terrível condição em que se encontrava a Terra: 1) totalmente povoada, como o Japão em 1960; 2) com os planetas alternados do sistema solar e as pequenas luas, cúpulas, etc., fra­cassando por completo.
Horst havia descoberto, por intermédio do aparelho de tele-transporte do Dr. von Einem, um planeta habitá­vel num sistema estelar demasiado distante do Sol para ser alcançado pela antiga empresa de transporte de Maury Applebaum. Whale's Mouth e os mecanismos Telpor vendidos nos estabelecimentos de Trails of Hoff­man eram a solução.
Ao que tudo indicava, era sopa no mel. Contudo. ..
Está vendo? - disse Matson a Freya. - Aqui está uma cópia do discurso de Horst Bertold antes de ser eleito e antes de von Einem surgir com o Telpor. A promessa foi feita antes que o tele-transporte ao sis­tema Fomalhaut fosse tecnicamente possível. Isto é, antes que a existência do Fomalhaut fosse conhecida, inclusive através dos mais antigos monitores de relê não tripulados.
Verdade?
Assim, nosso Sécretário-Geral possuía um manda­to antes de ter a solução. E para a mentalidade alemã isto significa apenas uma coisa. A solução do gato e do rato do campo.
Ou, conforme suspeitava agora, a solução da fábrica de alimentos para cães.
Imitando ironicamente Swift, um escritor de ficção da década de 50, sugerira que "a Questão Racial nos Estados Unidos fosse resolvida com a construção de fábricas gigantescas, que transformassem os negros em alimentos enlatados para cães". Uma sátira, é claro, lembrando a de Swift em "Uma Simples Proposta", se­gundo a qual o problema da fome entre os irlandeses seria solucionado se eles comessem as criancinhas... E o próprio Swift lamentava, com ironia final, não ter filhos para oferecê-los no mercado de consumo. Mór­bido, porém. . .
Tudo indicava que o caso era sério - não só o problema do excesso de população e da produção ali­mentar insuficiente, como as soluções loucas, esquizoi­des, que estavam sendo consideradas. A rápida Tercei­ra Guerra Mundial - que jamais fora assim, denomi­nada oficialmente, recebendo em vez disso o nome de Ação Pacificadora, como a Guerra da Coréia fora cha­mada de Ação Policial - liquidara alguns milhões de pessoas, mas isso não bastara. Constituíra um resultado parcial e era, em setores influentes, considerada exa­tamente assim: solução parcial. Não uma catástrofe, e sim uma meia resposta.
E Horst Bertold prometera equilibrá-la.
A solução era Whale's Mouth.
- Na minha opinião - murmurou Matson para si mesmo - Whale's Mouth sempre foi meio suspeito. Se eu não tivesse lido Swift, C. Wright Mills e o Rela­tório de Herman Kahn para a Rand Corporation... - E olhou de relance para Freya. - Sempre houve gen­te querendo solucionar o problema desta maneira.
E eu creio, pensou, enquanto ouvia a trilha sonora de ruídos da multidão e que se supunha consistir numa transcrição do lançamento em Whale's Mouth, numa cerimônia ritualista e solene, da cápsula do tempo atra­vés do hiperespaço - ou de qualquer outra hiperve-Iocidade - em direção à Terra, que esse tipo de pes­soa e de solução encontram-se novamente entre nós.
Em outras palavras, temos o Secretário-Geral da UN, Horst Bertold, e Trails of Hoffman Limited com seu multi-império econômico. E mais o querido Dr. Sepf von Einem, com o seu Telpor, estranha máquina de te-letransporte que funciona num só sentido.
- Aquela terra, que todos nós devemos visitar um dia. . . - murmurou Matson, citando Deus sabe que fmago do passado. - Aquela terra para além do túmu­lo, de onde ninguém voltou para contar. E até que o façam...
Compreensiva, Freya acrescentou:
- E até que o façam, você ficará desconfiado. Sus­peitará de toda a Neocolônia. Sinais de áudio e vídeo não bastam para convencê-lo, pois você sabe que po­dem ser facilmente simulados.
E gesticulou em direção ao aparelho que passava a fita naquele instante.
- Um cliente sabe - corrigiu Matson. - Mesmo que em plano não verbal (o que os nossos amigos do Reich chamam pensar com o sangue), julga que le­vando sua última espaçonave inter-estelar... - como é que se chama mesmo? - O Umbigo, tradução de Omphalos, complicada palavra grega - direto a Fo-malhaut, após dezoito anos de cansativo sono profun­do, não exatamente um sono, é mais um estado hipnó­tico, com agitações a baixa temperatura e baixo metabolismo, chegará a Whale's Mouth e descobrirá que nem tudo é cerveja e flores. Que não encontrará felizes co­lonos, crianças sorridentes em escolas automáticas, for­mas nativas de vida tranqüila e exótica. Mas...
Que encontrará exatamente?
Se, como suspeitou, as trilhas de áudio e vídeo trans­mitidas de Whale's Mouth para a Terra, via Telpor, eram falsificações, qual a realidade que jaz por detrás disso?
Não conseguia imaginar, pois o caso envolvia qua­renta milhões de pessoas. A fábrica de alimentos para cães? Estarão mortos aqueles quarenta milhões de ho­mens, mulheres e crianças? Será o planeta um ossário deserto, sem alguém sequer para extrair o ouro dos dentes... já que no momento só se emprega aço inoxi­dável?
Ele ignorava - mas alguém sabia. Talvez toda a Nova Alemanha Unificada, que havia abocanhado a parte do leão no poderio da UN, dominando total­mente os nove planetas do sistema solar. Talvez todos o soubessem a um nível subconsciente, como na déca­da de quarenta haviam tido a intuição da existência das câmaras de gás por detrás daqueles altos muros que não permitiam ver e ouvir... e ainda assim havia aquela fumaça malcheirosa vomitada o dia inteiro pelas chaminés...
Eles sabem - falou Matson em voz alta.
Horst Bertold sabia, assim como Theodoric Ferry, proprietário da THL, e o idoso mas ainda lúcido Dr. von Einem. E também os cento e trinta e cinco milhões de habitantes da Nova Alemanha Unificada, pelo me­nos até certo ponto. Ninguém falava no assunto. Seria impossível colocar um especialista em pesquisa psico­lógica da Lies Incorporated ao lado de um sapateiro de Munique, ministrar-lhe algumas drogas injetáveis de rotina, fazer uma transcrição semipsiônica-padrão, es­tabelecer suas reações parapsicológicas e descobrir assim a verdade exata, literal.
Toda a questão permanecia bastante confusa. Desta vez não se tratava de gaiolas de pássaros canoros ou chuveiros, e sim algo diferente, mas igualmente eficaz. Trails of Hoffman publicara emocionantes brochuras em 3-D, multicoloridas, extremamente artísticas, reve­lando uma vida paradisíaca para além do nexo Telpor; a TV transmitia dia e noite propaganda de enlouquecer, referente às planícies despovoadas de Whale's Mouth, ao clima ameno (com trilha olfativa), às noites quen­tes, iluminadas por duas luas... Terra de romance, liberdade, pesquisa, vida em comum sem o deserto, onde as laranjas cresciam naturalmente e eram grandes como grape-fruits, e onde estas pareciam melões, ou os seios das mulheres que ali habitavam. Mas...
Vou mandar um pesquisador veterano, via nor­mal Telpor, disfarçado de homem de negócios, solteiro, com a idéia de abrir uma oficina de conserto de re­lógios em Whale's Mouth - decidiu Matson. - Le­vará subcutáneamente um transmissor de alta potência.
Já sei - disse Freya, paciente. Era noite e evi­dentemente ela desejava um descanso da sombria rea­lidade dos negócios que ocupavam a ambos. - Trans­mitirá regularmente um sinal em ultra-alta freqüência, numa faixa desusada, que será captada aqui, eventual­mente. Mas isso levará semanas.
Está bem - concordou.
O pesquisador da Lies Incorporated enviaria uma carta via Telpor, com o código habitual. Era muito simples. Se a carta chegasse, ótimo. Se não...
- Você ficará esperando eternamente - disse Freya. - Nenhuma carta em código chegará aqui. Dé­ia pois começará a achar que seu cliente, o Sr. ben Applebaum, de fato encontrou algo vasto e ameaçador na profunda escuridão que é a nossa vida coletiva. Que fará então? Verificará pessoalmente?
- Mandarei você - respondeu Matson. - Para pesquisar a área.
- Não - replicou ela imediatamente.
Então, Whale's Mouth a assusta, apesar de toda aquela brilhante literatura gratuitamente distribuída!
Sei que Rachmael tem razão. Eu o compreendi no momento em que transpôs a porta. Compreendi gra­ças ao seu memorando. Não irei; definitivamente.
E encarou tranqüilamente o amante.
- Então tirarei qualquer um, a esmo, do setor de pesquisa.
Não falara a sério. Por que arriscaria Freya? Mas provara o que desejava: os temores de ambos não eram puramente intelectuais. Naquele estágio de suas pon­derações, nem Freya, nem ele se arriscariam a ir, via Telpor, até Whale's Mouth, como milhares de cidadãos terrestres faziam diariamente, sobraçando seus bens e suas ingênuas esperanças.
Detesto ter que transformar alguém em bode expia­tório, mas...
- Pete Burnside. De Detroit. Eu lhe direi que pre­tendemos abrir uma filial da Lies Incorporated em Whale's Mouth, sob outro nome. Uma loja de ferra­gens. Ou de consertos de TV. Pegue a ficha dele. Ve­jamos que talentos possui.
Sacrificaremos um dos nossos próprios homens, pen­sou Matson. A idéia deixava-o doente. Contudo, isso devia ter sido feito há meses.
Fora preciso a falência de Rachmael ben Applebaum para levá-los a agir. Um homem perseguido pelos mons­truosos balões que divulgam todos os defeitos e segre­dos pessoais. Um homem decidido a realizar uma via­gem de trinta e seis anos, a fim de provar que havia algo azedo na terra de leite e proteínas, do outro lado dos portões abertos pelo Telpor, e que qualquer adul­to terrestre, pela quantia de cinco poscreds, poderia transpor, com a finalidade de...
Só Deus sabia.
Deus e a hierarquia alemã que dominava a UN mais a THL. Não entretinha ilusões a respeito: eles não pre­cisariam analisar a trilha sonora da cápsula do tempo lançada em Whale's Mouth para saber.
Como ele fora preciso. No entanto, sua profissão era investigar. Horrorizado, compreendeu que talvez fosse o único indivíduo na Terra em posição de obter um autêntico relance da verdade.
Ou então quem optasse por dezoito anos de viagem espacial... período de tempo que possibilitaria mui­tos milhões, talvez até bilhões, se as extrapolações fos­sem corretas, empreender via Telpor aquela viagem de ida para a nova colônia, que para ele tinha um ter­rível significado.
Quem tem bom senso, disse Matson a si mesmo, som­brio, nunca empreende viagens de onde não pode vol­tar. Para lugar algum. Mesmo que seja para Boise, Idaho... ou o outro lado da rua. Ao partir, certifique-se de que será capaz de voltar.
3
À uma da manhã, Rachmael Applebaum foi violen­tamente despertado. Isso era habitual, pois os mecanis­mos utilizados pelos credores o perseguiam vinte e qua­tro heras por dia. Contudo, desta vez não se tratava de um robô. Era um homem. Um negro, baixinho e es­perto, que se colocou diante da porta, papéis de iden­tificação à vista.
- Sou da Lies Incorporated - explicou. - Tenho licença para pilotar um veículo interplan Classe-A.
Isso despertou Rachmael de todo.
É você quem vai levar a Omphalos para longe da Lua?
Se conseguir encontrá-la. - E sorriu. - Posso entrar? Gostaria que me acompanhasse à sua oficina de consertos, para que não haja enganos. Sei que seus empregados estão armados. - Entrou no living, na verdade peça única, sendo o que eram as condições habitacionais da Terra. - Senão, Trials of Hoffman poderia transportar equipamento para suas cúpulas de Marte utilizando a nave Omphalos dentro de um mês, não é exato?
Exato - respondeu Rachmael, vestindo-se rapi­damente.
,Meu nome é Al Dosker. E prestei-lhe um pe­queno favor extra, Sr. ben Applebaum. Destruí um apa­relho de credor que estava à sua espera no vestíbulo. - E exibiu uma arma que levava a tiracolo. - Se en­trar em litígio, suponho que isto se chame "destruição de propriedade". De qualquer modo, quando partirmos nenhum instrumento da THL rastreará nosso caminho. - E acrescentou, mais para si mesmo: - Pelo menos foi o que consegui descobrir.
E acariciou uma diversidade de detectores, instru­mentos eletrônicos miniaturizados, que registravam a presença de vídeo ou receptores nas proximidades.
Logo após, os dois estavam a caminho do pouso no terraço, onde Dosker havia deixado seu veículo-táxi, conforme Rachmael verificou. Ao entrar, notou que a nave tinha aparência comum, mas quando levantaram vôo pestanejou com a velocidade, concluindo que não era acionado por uma força qualquer. Alcançaram 3,5 Mach em microssegundos.
- Você me orientará, já que mesmo nós da Lies ignoramos onde se encontra a Omphalos. Ou você sou­be escondê-la muito bem, ou nós estamos decaindo. .. ou ambos.
- Combinado.
Diante do mapa lunar em 3-D tomou a alavanca, colocou o pivô em posição, depois traçou uma rota até o ponto em que seus técnicos trabalhavam ativamente na nave, enquanto aguardavam partes que jamais che­gariam.
- Estamos fora da rota - observou Dosker brus­camente, falando não diretamente a Rachmael e sim ao microfone. - Detec.
Detec, abreviatura para detectados. Rachmael sentiu medo. Detectados por um campo que se movia junto ao pequeno veículo de Dosker, fora de sua trajetória.
O piloto disparou imediatamente os imensos foguetes Wheststone-Milton, procurando ajustar-se ao seu homeo-curso de tremenda força. Mas o campo continuou a persegui-los, mesmo contra o impulso de milhões de quilos dos motores gêmeos, disparando simultanea­mente, agindo como retrojatos contra o campo que fazia sentir sua presença invisível, mas registrada por uma variedade de instrumentos no painel.
Rachmeal, após um momento de silêncio, falou:
- Para onde nos está levando?
- De um curso Três para L - respondeu Dosker, lacônico.
- Então não é para a Lua.
Os dois não chegariam ao esconderijo da Omphalos, isto era claro. Mas para onde iriam?
- Estamos na órbita T - disse Dosker.
Órbita terrestre, apesar do impulso dos dois moto­res W-M. Relutante, Dosker desligou-os. O combustí­vel caíra com certeza a um nível perigosamente baixo. Se o campo os libertasse, entrariam em órbita de qual­quer maneira, sem a possibilidade de criar uma traje­tória que os conduzisse ao pouso na Lua ou na Terra.
- Pegaram-nos - falou o piloto, meio para Rach­meal, meio para o microfone que se projetava do painel.
Recitou uma série de instruções em código, escutou e, praguejando, voltou-se para Rachmeal: - Corta­ram nosso áudio e vídeo, todos os sinais de contato. Não consigo comunicar-me com Matson. Está acabado.
- Que está acabado? - replicou Rachmael. - Quer desistir? Orbitar a Terra para sempre e morrer quando se esgotar o oxigênio?
Era assim que o pessoal da Lies Incorporated com­batia Trails of Hoffman? Ele, sozinho, lutara melhor. Sentia-se enojado, espantado, completamente perplexo, observando sem compreender, enquanto Dosker ins­pecionava a série de detectores presa ao peito. No mo­mento, o piloto parecia interessado apenas em saber se estavam ou não perseguidos por monitores, além do controle da trajetória da nave.
- Não há monitores. Ouça, amigo Applebaum, cor­taram a transmissão em áudio, em microrrelê, até o satélite de Matson, mas é claro.. . - e seus olhos pis­caram, maliciosos - que ainda tenho um recurso de­sesperado. Se um sinal contínuo por mim emitido fôr interrompido, acionará automaticamente o alarme em Lies Incorporated, no escritório central de Nova York e também no satélite de Matson. À esta altura já de­vem saber que algo aconteceu. - E baixou a voz, como se falasse consigo mesmo. - Teremos de aguar­dar para ver se conseguem alcançar-nos antes que seja tarde demais.
A nave, sem força, deslizava silenciosa por sua órbi­ta.
Súbito, algo a sacudiu, Rachmael caiu. Escorregando pelo chão até colidir com a parede, viu Dosker tom­bar e compreendeu que outra nave, ou algo semelhan­te, colidira com eles - e quase de imediato, por que não haviam explodido. Não fora um míssil, pelo me­nos. Porque, nesse caso...
- Eles poderiam liquidar-nos permanentemente - disse o piloto, erguendo-se meio oscilante. Referia-se também a uma arma detonante. E voltou-se para a escotilha de entrada em três estágios, utilizada para impedir a penetração do vácuo.
A escotilha, com seus controles circulares, abriu-se graças a um impulso exterior.
Três homens, dois armados de lasers, com os olhos caídos como os que haviam sido comprados há muito tempo, entraram primeiro. Em seguida, um homem ele­gante, de rosto limpo, que jamais fora comprado, pois era ele próprio um grande comprador no mercado humano. Era negociante e não artigo de venda.
Era Theodoric Ferry, presidente do conselho de Trails of Hoffman Limited. Postados à sua frente, dois dos seus homens agitaram um aparelho que lembrava um aspirador de pó. Este funcionou com um zumbido, investigando tudo, até que seus operadores se conside­raram satisfeitos. Fizeram então um sinal de cabeça a Theodoric, que se dirigiu a Rachmael:
- Posso sentar-me?
Houve uma pausa de surpresa, e Rachmael respon­deu:
- Claro.
- Desculpe, Sr. Ferry - falou Dosker. - A única cadeira está ocupada. - Rle se encontrava diante dos controles, sentado de maneira que seu corpo miúdo parecia ter-se expandido na base, ocupando ambos os assentos. Sua voz soava áspera, vibrante de ódio.
Dando de ombros, o homem branco, de estatura ele­vada, replicou, fitando-o:
- Não importa. Você é o melhor piloto da Lies, não é? Al Dosker. A caminho da Omphalos. Mas não é preciso que Applebaum diga onde se encontra. Nós lhe diremos. - E enfiando a mão no bolso da capa retirou um pequeno volume, que atirou para Dosker. - O local do estaleiro onde Applebaum a escondeu.
Obrigado, Sr. Ferry - falou o negro com voz tão vibrante de sarcasmo que se tornava quase incom­preensível.
Ouça, Dosker, fique aí sentado quietinho, en­quanto eu converso com o Sr. Applebaum. Nunca o en­contrei pessoalmente, mas conheci seu falecido pai.
E estendeu a mão.
- Se apertar a mão dele, Rachmael, você se con­taminará com um vírus que intoxicará todo o seu or­ganismo dentro de uma hora - disse Dosker.
Voltando-se para o negro, furioso, Theodoric repli­cou:
- Eu já disse que ficasse no seu lugar.
Removeu então a luva de plástico, até então invisível, que lhe recobria a mão. Dosker tinha razão, pensou Rachmael, observando Theodoric depositar cuidadosa­mente a luva no incinerador da nave.
A essa altura já poderíamos ter espalhado bac­térias violentas - disse, quase lamentoso.
E sido também contaminados - observou Dos­ker.
Theodoric deu de ombros. Voltando-se para Rach­mael falou cautelosamente:
Não ria. Respeito o que está procurando fazer.
Eu não estava rindo. Apenas surpreendido.
Você quer continuar a trabalhar, mesmo após o colapso econômico, e impedir que seus legítimos cre­dores se apossem dos poucos, na verdade do único bem que a Applebaum Interprise ainda possui. Muito bem, Rachmael. Eu faria o mesmo. E você impressio­nou Matson. Foi por isso que lhe cedeu seu único pilo­to decente.
Sorrindo de leve, Dosker procurou cigarros no bolso. Imediatamente os dois homens que acompanhavam Theodoric seguraram-lhe o braço, torcendo-o com habilidade. O inocente maço caiu ao chão.
Um a um os cigarros foram cortados e inspeciona­dos. O quinto provou ser sólido, pois não cedeu diante da faca afiada. Momentos depois, um complexo ins­trumento analítico demonstrou que o cigarro era um dardo cefalotrópico homeostático.
De quem é a onda Alpha? - perguntou Theo­doric.
Sua - respondeu Dosker, apático, observando sem resistência os dois homens de olhos decaídos, mas bastante eficientes, destruírem a arma, reduzindo-a a pó com os calcanhares.
Então, esperava que eu aparecesse - disse Ferry, intrigado.
- Sr. Ferry, eu o espero sempre.
Voltando-se novamente para Rachmael, Theodoric Ferry continuou:
- Admiro-o e quero acabar com este conflito en­tre você e a THL. Temos uma relação dos seus talen­tos. Aqui está.
E estendeu a Rachmael uma folha. Applebaum vol­tou-se para Dosker, consultando-o.
- Pode pegar - respondeu Dosker.
Rachmael leu-a rapidamente. A relação estava cor­reta. Incluía a totalidade dos bens remanescentes da Applebaum Interprise. Bem destacado, conforme havia dito Ferry, o único de valor autêntico, que era Omphalos - a grande nave - mais a doca de reparos e manutenção na Lua, em febril atividade, enquanto aguardava em vão.. . Devolveu a relação a Ferry, que, ao notar-lhe a expressão, fez um sinal afirmativo de cabeça.
- Então, estamos de acordo - disse Theodoric. - Eis a minha proposta, Applebaum. Fique com a Omphalos. Darei instruções ao departamento jurídico para retirar dos tribunais da UN o processo de desapropria­ção da nave.
Dosker emitiu um grunhido. Rachmael olhou Ferry, espantado.
E que quer em compensação? - perguntou afi­nal.
Isto: que a Omphalos nunca saia do sistema so­lar. Você poderá facilmente iniciar uma rendosa ope­ração de transporte de passageiros e carga entre os no­ve planetas e a Lua, embora...
Embora a Omphalos tenha sido construída para viagens interestelares e não interplanetárias. É como usar...
Isso mesmo - interrompeu Ferry. - Ou aceita, ou perderá a nave.
Rachmael concorda em não dirigir a nave a Fomalhaut - interveio Dosker. - O acordo não men­ciona nenhum sistema estelar em especial, mas não se trata nem de Prox, nem de Alpha, não é mesmo, Ferry?
Houve uma pausa e Theodoric Ferry disse:
É pegar ou largar.
Por que, Ferry? - perguntou Rachmael. - Que há de errado em Whale's Mouth? Este contrato prova que eu tenho razão.
Era óbvio, tanto para ele, como para Dosker. E Fer­ry, ao fazer a proposta, devia saber que ratificaria suas suspeitas. Limitar a Omphalos aos nove planetas do sistema solar? Contudo, a Applebaum Interprise con­tinuaria a existir, conforme havia dito Ferry. Existiria como uma entidade jurídica e econômica. E Ferry ze­laria para que a UN canalizasse uma quantidade acei­tável de negócios na sua direção. Rachmael diria pri­meiro adeus a Lies Incorporated, àquele pequeno e ex­cepcional piloto negro e, por extensão, a Freya Holm, a Matson Glazer-Holliday, desligando-se na verdade da única força que o apoiara.
- Vamos, aceite a idéia - falou Dosker. - Afinal, os componentes para o sono profundo não chegarão mesmo, mas isso não tem importância, porque não fará mais vôos interestelares.
Sua voz soava cansada.
Seu pai, Maury, teria feito qualquer coisa para conservar a Omphalos - disse Theodoric Ferry. - Sabe que dentro de dois dias nós nos apossaremos dela. E então não terá a menor possibilidade de recuperá-la. Pense no caso.
Já sei a resposta agora mesmo - respondeu Rachmael.
Se ele e Dosker conseguissem partir com a Omphalos naquela noite, perder-se no espaço, onde THL não os encontrasse... Mas o plano era impossível. Termi­nara quando o campo dominara o poderoso, mas inútil impulso dos motores gêmeos da nave pertencente a Lies Incorporated. Trails of Hoffman havia interferido cedo demais. À tempo para eles.
Theodoric Ferry previra todos os seus passos. Não se tratava de uma questão moral, e sim pragmática.
- Mandei redigir os documentos legais - disse Ferry. - Acompanhe-me - e fêz um gesto de cabeça em direção à escotilha. - A lei exige três testemunhas. Da parte de THL existem as três. - Sorriu porque o caso estava encerrado.  Voltando-se,  encaminhou-se tranqüilamente para a escotilha, seguido pelos dois ho­mens, de olhos caídos, ambos desprevenidos. Transpu­seram a abertura circular e...
Foram convulsionados da cabeça aos pés, interna­mente destruídos. Enquanto Rachmael os observava, espantado e aterrorizado, os sistemas muscular e neu­rológico decompuseram-se. Atingidos em cheio, torna­ram-se monstruosidades bambas, trêmulas, incapazes de funcionar. Pior que isso, cada unidade física lutava com todas as outras, de modo que os dois montes caí­dos ao chão transformaram-se em subsíndromes em luta consigo mesmas, músculo contra músculo, vísceras contra aparelho respiratório e circulatório. Os homens, incapazes de respirar, privados da circulação sangüí­nea, olhos dilatados, lutavam interiormente com seu corpo que deixara de ser um organismo humano...
Rachmael desviou a vista.
- Colinesterase, gás destruidor - ouviu a voz de Dosker, logo atrás dele. No mesmo instante, Rachmael percebeu o tubo comprimido contra o seu pescoço, um artefato médico que injetara na sua corrente sangüínea um jato de atropina, o antídoto para o maligno gás da notória Corporação FMC, os criadores da mais des­truidora de todas as armas da última guerra.
- Obrigado - disse Rachmael, vendo a escotilha fechar-se.
O satélite de Trails of Hoffman, com seu campo agora inerte, estava sendo desligado e em seu interior havia pessoas, que não eram empregadas da THL, di­rigindo a operação.
O aparelho sinalizador havia cumprido a sua tarefa. Os especialistas da Lies haviam chegado e desmantela­vam sistematicamente o equipamento THL.
Filosoficamente, Theodoric Ferry permaneceu imó­vel, mãos nos bolsos da capa, calado, sem sequer no­tar os espasmos dos seus dois homens caídos no chão ao seu lado, como se, deteriorando-se pela ação do gás, houvessem provado ser incapazes.
- Foi bom que seus companheiros administrassem a atropina tanto para Ferry como para mim - disse Rachmael com esforço, quando a escotilha mais uma vez abriu-se, desta vez admitindo um grupo de homens da Lies. Em geral, naquele tipo de encontro, ninguém era poupado.
Dosker, estudando Ferry, respondeu:
- Ele não recebeu atropina. - Erguendo a mão, retirou o tubo vazio, munido de agulha injetora, pre­so ao seu pescoço, e um idêntico, do pescoço de Rach­mael. - Quer me explicar, Ferry?
Não houve resposta de Theodoric.
- Impossível. Todo organismo vivo...
Súbito, Dosker agarrou o braço de Ferry e, com um gesto brusco, torceu-o para trás, contra a articulação normal, puxando-o.
O braço de Theodoric Ferry desligou-se no ombro, revelando condutos e compostos miniaturizados, os do ombro ainda em funcionamento, os do braço, privados de força, inertes.
- Um sim - murmurou Dosker. E vendo que Rachmael não compreendera: - Um simulacro de Fer­ry, sem sistema nervoso, naturalmente. Neste caso, Ferry nunca esteve aqui. - E atirando longe o braço. - É claro. Por que um homem de sua importância se arriscaria? Provavelmente está sentado em seu pla­neta na órbita de Marte, vendo a cena com os senso-extensores do sim. - E ao mecanismo de um só bra­ço, áspero: - Estamos verdadeiramente em contato com você através disso, Ferry? Ou é apenas homeo? Só por curiosidade.
Os lábios do simulacro descerraram-se para dizer:
Eu o estou ouvindo, Dosker. Como um gesto de humanitarismo, quer ministrar atropina aos meus dois homens?
Isso já foi feito - respondeu Dosker, aproximan­do-se de Rachmael. - Bem, nossa humilde nave pa­recia ter sido agraciada com a presença do chefe da diretoria da THL. Fui ludibriado - acrescentou, com um sorriso trêmulo.
Mas a proposta feita por intermédio do simulacro de Ferry fora genuína, concluiu Rachmael consigo mesmo.
Vamos agora para a Lua - falou Dosker. - Como seu conselheiro... - Segurou vigorosamente o pulso de Rachmael e sacudiu-o. - Desperte. Esses dois bandidos se sentirão bem, depois que a atropina agir. Não morrerão e nós os depositaremos no veículo THL, sem o campo, naturalmente. Você e eu iremos à Lua, até Omphalos, como se nada houvesse aconte­cido. Ou, se não quiser, eu usarei o mapa que o sim me entregou. Levarei a Omphalos para uma região do espaço onde nem a THL a encontrará, ainda que vo­cê não esteja interessado.
Mas houve uma alteração - retrucou Rachmael, obstinado. - Fizeram uma proposta.
A proposta prova que a THL está disposta a sa­crificar muita coisa, a fim de impedi-lo de fazer sua viagem de dezoito anos até Fomalhaut e verificar o que se passa em Whale's Mouth. - E fitando Rachmael: - Vejo que você está menos interessado em levar a Omphalos ao espaço desconhecido, onde os detectores de Ferry não poderão encontrá-la.
Eu poderia salvar a nave, pensou Rachmael. Mas Dosker tinha razão. Era preciso continuar. Ferry le­vantara o bloqueio e isso provava a necessidade do vôo de dezoito anos.
E os componentes para o sono profundo? - per­guntou.
Leve-me até a nave - respondeu Dosker, pa­ciente. - Entendeu, Rachmael ben Applebaum? Va­mos?
A voz controlada e muito profissional surtiu efeito. Rachmael acenou afirmativamente.
Quero a sua indicação, e não a que me foi dada pelo simulacro. Resolvi não tocar naquilo. Estou à es­pera da sua decisão, Rachmael.
Sim - respondeu Applebaum, aproximando-se rigidamente do mapa lunar em 3-D, com seu braço móvel. Sentando-se, principiou a traçar a rota para o ultra-experiente piloto negro da Lies Incorporated.
4
Na Toca da Raposa, minúsculo restaurante francês do centro de San Diego, o maitre-d'hotel olhou para o nome Rachmael ben Applebaum projetado no papel com cabeçalho extravagante, ondulante, pseudovivo e disse:
- Sim, Sr. Applebaum. - E consultou o relógio. - São oito horas. - Uma fila de gente bem vestida aguardava. Era sempre assim na Terra superpovoada. Qualquer restaurante, até os péssimos, ficavam lotados todas as noites, das cinco em diante, e aquele difícil­mente seria chamado medíocre. - Genet. - O maître chamou uma garçonete que usava as meias rendadas e o traje da moda. Deixava um dos seios, o direito, des­coberto, à exceção do mamilo adornado por uma ele­gante jóia suíça. O ornamento, que tinha a forma de um grande apagador de ouro, tocava música semiclássica e era iluminado por uma série de luzes móveis e atraentes, que focalizavam o solo à frente da garçone­te, iluminando-lhe o caminho de maneira que pudesse esgueirar-se por entre as pequeninas mesas do restau­rante.
- Que deseja, Gaspar? - perguntou a jovem, jo­gando para trás, com um movimento de cabeça, seus cabelos louros.
- Conduza o Sr. Applebaum até a mesa vinte e dois - disse o maître, ignorando com glacial indife­rença os protestos dos que se encontravam na fila.
Não tenho intenção de... - começou Rachmael, porém o maître o interrompeu.
Tudo pronto. Ela o aguarda na mesa vinte dois. - Na opinião do maître, isso decidia tudo, inclusive a plena realização de um complicado relacionamento eró­tico que, infelizmente, ainda nem se esboçara.
Rachmael acompanhou Genet, com seu útil orna­mento suíço, percorrendo a escuridão vibrante de ruí­dos de pessoas comendo, próximas umas das outras, apressadas, ansiosas por terminar para que os outros que aguardavam pudessem ser servidos na Toca da Raposa antes que o restaurante fechasse suas portas às duas da manhã. Estamos realmente comprimidos uns contra os outros, pensou Rachmael. Súbito, Genet parou e voltou-se. O ornamento irradiava agora uma luz suave, agradável, uma aura rubra e quente, que revelava Freya Holm sentada à mesa vinte e dois.
Instalando-se diante dela, Rachmael observou:
Você não se iluminou.
Eu poderia. E simultaneamente tocar O Danúbio Azul.
Sorriu. Na escuridão, pois a garçonete já se afastara, seus olhos faiscaram. Ã sua frente havia um Buena Vista chablis, safra de 2002, uma das preciosidades do restaurante e extremamente caro. Rachmael pergun­tou a si mesmo quem pagaria por aquele velho vinho da Califórnia. Deus sabe que gostaria de fazê-lo, mas... e num reflexo tocou a carteira. Freya o notou.
- Não se preocupe. Matson Glazer-Holliday é pro­prietário deste restaurante. Sua conta não ultrapassará seis poscreds. O que pagaria por um sanduíche de man­teiga de amendoim e geléia de uvas. - Riu e seus olhos dançantes refletiram a luz das lanternas japonesas sus­pensas do teto e que mal iluminavam o ambiente. - Este lugar o intimida? - perguntou.
- Não. Vivo geralmente sob tensão.
Há seis dias a nave Omphalos desaparecera e êle desconhecia seu paradeiro. Talvez nem Matson soubes­se. Podia ser necessário, por questões de segurança, que somente Al Dosker, diante do painel de controle multi-estágio, soubesse onde se encontrava. Mas para Rachmael era psicologicamente arrasador saber que a Om­phalos partira para a escuridão sem limites. Ferry ti­nha razão: a nave fora a razão da existência da Applebaum Interprise. Sem ela, nada restava.
Mas assim pelo menos regressaria, ou mais precisa­mente: ele poderia ser conduzido a ela por um veículo de alta velocidade da Lies e iniciar sua viagem de de­zoito anos. E, no caso contrário...
Não pense na proposta de Ferry - disse Freya, com voz macia. E acenou com a cabeça à garçonete, que colocou um copo de vinho gelado diante de Rach-mael. Obediente, automático, êle serviu-se de um pouco do Buena Vista 2002 branco, provou-o, mas conteve-se, limitando-se a elogiar o vinho com um gesto de cabeça, como se estivesse habituado àquele bouquet e sabor tão divinamente penetrantes, e que tornava absurdo tudo o mais que bebera até então.
Não estou pensando nela - disse a Freya. Não, ele pensou; por causa do que você trouxe, ou deve ter trazido.
Havia uma grande bolsa de couro negro, estilo cor­reio, sobre a mesa, ao alcance dos seus dedos.
- Os componentes estão aqui, numa caixa redon­da de ouro simulado, com a inscrição "Eternidade da Potência Sexual, Fragrância 54a, um perfume continen­tal bastante comum. Qualquer pessoa que examinasse a minha bolsa não se surpreenderia ao encontrá-lo. Há doze componentes, todos miniaturizados naturalmente, debaixo do forro da tampa. No papel de seda, no re­verso da etiqueta, há um diagrama. Daqui a pouco eu me levantarei e irei ao toalete. Após alguns segundos, você deve ficar bem quieto, Rachmael, porque há se­tenta por cento de possibilidades de que agentes THL nos estejam rasteando; ou diretamente, como clientes do restaurante, ou por instrumentos. Precisa ficar sen­tado. Depois, como eu demoro à voltar, você fica im­paciente, ou tenta chamar a atenção de Genet para pe­dir o jantar, ou pelo menos, isto é vital, para conse­guir o cardápio.
Ele fez que sim, ouvindo atentamente.
Ela se aproximará e lhe dará o cardápio. É gros­so e grande, pois contém a lista dos vinhos. Você o colocará na mesa de modo a cobrir a minha bolsa.
E sem querer eu a deixarei cair ao chão, o con­teúdo se espalhará e ao apanhá-lo...
Você está doido?! - murmurou ela, em voz con­tida. - Cubra a bolsa. Há uma tira de titânio no in­terior da folha direita do cardápio. A caixa do perfu-1 me contém circuitos de um trópico-titânio, que dentre de dois segundos registrará a presença da faixa e deslizará para fora da minha bolsa, que eu deixarei aber­ta, e penetrará na parte inferior do cardápio. A faixa se encontra onde a sua mão direita, com toda a naturalidade, descansará, enquanto você segura um cardá­pio propositalmente rígido e desajeitado. Quando toca; a faixa de titânio, o conteúdo emitirá uma carga fraca, cerca de dez volts. Você sentirá esta galvanização e, em seguida, com as pontas de quatro dedos, pegará o estojo, separando-o da faixa de titânio à qual ade­riu, e o deixará cair no colo. Em seguida, com a ou­tra mão, colocará o estojo no bolso. - Freya levantou-se. - Voltarei dentro de seis minutos. Adeus e boa sorte.
Ele ficou olhando, enquanto ela se afastava. Súbito compreendeu que precisava levantar-se também. Pre­cisava agir. A tarefa de transferir os componentes do sono profundo conseguidos no mercado negro era di­fícil e delicada, porque Theodoric Ferry, desde que Lies Incorporatcd havia dominado o veículo, sua tri­pulação e o simulacro de Ferry, mantinha total vigi­lância sobre tudo o que ele fazia. Os mais apurados re­cursos tecnológicos e de pessoal da Trails of Hoffman haviam sido convocados, motivados agora por decisão pessoal de Theodoric.
O que fora conflito remoto e impessoal tornara-se o que sempre fora para seu pai: uma questão urgente, profundamente humana. Uma luta que, no mínimo, provocara sua morte e a desintegração da organização.
Refletindo nisto, Rachmael começou a ficar verda­deiramente agitado e levantou-se, buscando a jovem de seio iluminado e musical.
- Cardápio, senhor?
Genet estava diante dele, entregando-lhe um cardápio volumoso, maravilhosamente impresso e gravado em relevo. Agradeceu, aceitando-o embaraçado, e voltou à mesa ao som dos agradáveis acordes de Johann Strauss.
O cardápio, do tamanho de um antigo álbum de dis­cos, ocultou facilmente a bolsa de Freya. Abriu-o e leu a lista de vinhos, os preços especialmente. Céus! Um simples gole de bom vinho custava uma fortuna ali. E por um quinto de um branco genérico de três anos de idade...
Todos os estabelecimentos do tipo da Toca da Rapo­sa exploravam a população da Terra; gente que espera­va durante três horas para comer e beber pagaria qual­quer preço. A essa altura, psicologicamente não havia escolha.
Um leve choque elétrico fêz estremecer sua mão di­reita; o estojo circular dos componentes miniaturizados já havia estabelecido contato físico com êle. Apalpou-o com os dedos e separou-o de sua pressão, de seu tro­pismo. Ao deixá-lo cair no colo, sentiu-lhe o peso.
Seguindo as instruções, apanhou-o com a mão es­querda e transferiu-o para o bolso da capa...
- Desculpe... - Um robô, carregando uma ban­deja cheia de pratos, colidiu com ele, fazendo-o estre­mecer na cadeira. Com tanta gente ao redor, uns levantando-se, outros sentando-se, os robôs servindo as mesas, as garçonetes com seus seios iluminados e so­noros, Rachmael sentiu-se confuso e estendeu a mão à procura do estojo.
Havia desaparecido.
Caíra ao chão? Cético, olhou para baixo, viu seus sapatos, as pernas da mesa, uma caixa de fósforos va­zia. Nenhum estojo dourado.
Arrasado, ficou olhando à volta.. . o olhar vazio. Afinal serviu-se de uma segunda bebida e ergueu o copo como se fizesse um brinde  - um brinde ao su­cesso, admitido e aceito, das invisíveis extensões da THL que o rodeavam e que, no instante crucial, inter­vieram, privando-o do que necessitava essencialmente para deixar o sistema solar na grande Omphalos.
Não importava agora estabelecer contato com Dosker a bordo. Faltando-lhe os componentes seria uma loucura partir.
Freya voltou, sentou-se diante dele e perguntou, sor­rindo:
- Tudo certo?
Pesadamente, ele respondeu:
- Eles intervieram. Liquidado.
No momento, pelo menos, pensou. Mas a história ainda não está terminada.
Bebeu, coração pulsando forte, o vinho delicado, dis­pendioso, delicioso e totalmente supérfluo. O vinho da completa derrota... pelo menos temporária.
No vídeo, Omar Jones, Presidente da Neocolônia, a mais alta autoridade residente no grande estabelecimen­to modular de Whale's Mouth, disse jovialmente:
- Bem, pessoal, a vocês que vivem aglomerados nessas caixas reduzidas, nós os saudamos e desejamos boa sorte. - A fisionomia simpática e familiar exibiu um sorriso cordial. - Nós gostaríamos de saber quan­do se resolverão a reunir-se a nós, que vivemos na Neo­colônia. - E colocou a mão por trás da orelha, como se fosse uma transmissão nos dois sentidos, pensou Rachmael. Mas era uma ilusão. Tratava-se de um vídeo-tape transmitido por sinais, via Telpor de von Einem, de Schweinfort, Nova Alemanha Unificada, graças aos bons ofícios da rede de satélites da UN, e retransmi­tido para todos os aparelhos de TV da Terra.
Em voz alta, Rachmael falou:
- Sinto muito, Presidente Omar Jones, da Neo-colônia, Whale's Mouth.
E pensando: eu o visitarei por meus próprios meios. Não através do Telpor de von Einem, operando por cinco poscreds numa das estações de Trails of Hoff­man... Vou demorar um pouco. Na verdade, creio que já estará morto quando eu chegar, Presidente Jo­nes.
Embora, após a derrota da Toca da Raposa...
A oposição conseguira isolá-lo da sua fonte de apoio, a Lies Incorporated. Ele ficara sentado diante da bo­nita Freya de cabelos negros, bebendo vinhos raros, rindo e conversando. Mas quando se tratara de passar os componentes vitais pelo espaço de quinze centíme­tros...
O videofone do minúsculo quarto de seu apartamen­to soou, indicando que alguém queria entrar em contato com ele.
Apagando o rosto jovial do Presidente Omar Jones da Neocolônia, Whale's Mouth, dirigiu-se ao aparelho e ergueu o receptor. Na tela cinzenta e pequenina sur­giu o rosto de Matson Glazer-Holliday, que disse:
- Sr. ben Applebaum.
Que podemos fazer? - perguntou Rachmael, sentindo o peso de sua perda. - É até provável que estejam espionando este aparelho.
Claro. Registramos um interceptor na videolinha - respondeu Matson, que não parecia perturbado. - Sei que estão não só ouvindo esta chamada como gra­vando em áudio e vídeo. Contudo, meu recado é breve e você gostará dele. Ligue paia o circuito-mestre da sua biblioteca pública local.
E daí?
Faça uma pesquisa - recomendou Matson Glazer-Holliday cautelosamente. - Sobre a descoberta de Whale's Mouth. Os primeiros monitores não tripulados, gravadores e transmissores que viajaram há anos do sistema solar para o Fomaihaut. Na verdade, chegue até o século vinte.
Mas por quê?
Nós nos comunicaremos mais tarde - disse Mat­son bruscamente. - Adeus. - E observando Rach­mael. - Não desanime com o pequeno incidente do restaurante. É pura rotina, asseguro-lhe.
Fez uma saudação irônica e em seguida a pequenina imagem desbotada - a Empresa Videofone das De­mocracias Ocidentais proporcionava o mínimo de ser­viço, mas como canal de utilidade pública licenciado pela UN pouco se importava - e o rosto de Matson desapareceu.
Rachmael, confuso, desligou o receptor.
Os registros dos monitores originais não tripulados, que haviam sido enviados ao sistema Fomalhaut há anos, eram de domínio público. Que conteriam de va­lor? Contudo, discou para a filial da Biblioteca Pública de Nova York, com seus carretéis de xerox.
- Mande para o meu apartamento todo o material disponível sobre as pesquisas iniciais do sistema Fo­malhaut - pediu.
Com aquilo, material já obsoleto, George Hoffman descobrira o planeta habitável de Whale's Mouth.
Daí a momentos, um robô bateu à porta, trazendo di­versos carretéis. Rachmael sentou-se ao seu visor, inse­riu o primeiro carretel, notando que ostentava o título: Visão Geral dos Relatórios Sobre o Inter sistema Não Tripulado Fomalhaut, Versão Abreviada, de autoria de um certo G. S. Purdy.
Levou duas horas percorrendo o carretel. Mostrava o Sol cada vez mais próximo, depois os planetas, um a um, decepcionantes, até que o nono surgiu à vista. De repente...
Nada de rochedos áridos, montanhas ásperas. Nada de vazio sem ar, sem germes, higiênico graças ao me­tano gasoso ou cristalizado em grandes unidades astro­nômicas, vindo do Sol. Súbito, surgiu um friso osci­lante, ondulante, verde-azulado, que levara o Dr. von Einem a sair do seu equipamento Telpor, para estabe­lecer um elo direto entre esse mundo e a Terra. Aque­la paisagem que lembrava pêssego maduro interessara comercialmente Trails of Hoffman e determinara a ruí­na da Applebaum Interprise.
O último vídeo tinha quinze anos. Desde então, con­tato direto via Telpor tornara todo aquele maquinário obsoleto. Daí em diante, os monitores originais não tripulados, orbitando a redor de Fomalhaut. . .
Que fim levaram? Haviam sido abandonados, se­gundo o autor Purdy. Suas baterias tinham sido desli­gadas por controle remoto. Era provável que ainda ro­deassem o Sol, na órbita de Whale's Mouth.
Continuavam no mesmo lugar.
As baterias, desligadas todos esses anos, haviam con­servado, e não gasto, energia. E eram de tipo hélio líquido III, avançado.
Era isso que Matson queria que ele soubesse?
Voltando ao carretel de referências, passou-o repe­tidamente, até obter todos os dados. O mais apurado videomonitor pertencia à Empresa Videofone das De­mocracias Ocidentais. Eles saberiam se continuava em órbita, em Fomalhaut. Chamava-se, aliás, Príncipe Al­bert B-y.
Voltou-se para o videofone, mas deteve-se. Estava interceptado. Tomou outra decisão. Saindo do imenso edifício onde habitava, tomou uma esteira transporta­dora até encontrar um telefone público.
Dali fez uma ligação para a Empresa Videofone das Democracias Ocidentais, com sede em Detroit, funcio­nando vinte e quatro horas por dia.
- Ligue para o arquivo - ordenou ao robô que atendeu a ligação.
Daí a instantes, uma voz humana, pertencente a um homenzinho enrugado, mas aparentemente ativo, tra­jando um casaco cinzento, como um guarda-livros, sur­giu no vídeo.
- Sim?
- Quero informações a respeito do satélite Príncipe Albert, orbitando Fomalhaut há dezessete anos. Gosta­ria de saber se ainda está em funcionamento, de que modo pode ser ativado.
O sinal desapareceu. Na outra extremidade, o funcio­nário da Videofone havia desligado, Rachmael espe­rou. Nem a mesa voltou ao vídeo, nem o robô local.
Maldição, murmurou Rachmael, saindo da cabina, muito abalado.
Prosseguiu sobre a esteira até finalmente chegar à segunda cabina pública.
Ao entrar, desta vez ligou para o satélite de Matson Glazer-Holliday. Daí a instantes o proprietário da Lies fitava-o novamente do vídeo.
Cautelosamente, Rachmael falou:
Lamento incomodá-lo, mas estive vendo alguns carretéis de informação sobre os monitores não tripu­lados do sistema Fomalhaut.
Descobriu alguma coisa?
Perguntei à Empresa Videofone se seu Príncipe Albert B-y.. . 
E eles responderam?
Cortaram imediatamente a comunicação.
Continua em órbita - disse Matson.
E emitindo sinais?
Não nos últimos quinze anos. Em hipervisão seus sinais levam uma semana para atravessar o espaço de vinte e quatro anos-luz até o sistema solar. Um pouco menos do que seria preciso para a Omphalos alcançar o sistema Fomalhaut.
Existe algum meio para reativar o satélite?
A Empresa Videofone poderia entrar em contato direto com ele, através do Telpor - disse Maison. - Se quisesse.
- E quer?
Houve uma pausa, e Maison perguntou:
Eles desligaram mesmo, ainda há pouco? Ponderando, Rachmael indagou:
Outros poderiam acionar o satélite?
- Não. Só a Videofone conhece a seqüência que o acionaria.
- Era isso que queria que eu descobrisse? Sorrindo, Matson Glazer-Holliday respondeu:
- Adeus, Sr. ben Applebaum. E boa sorte na sua pesquisa.
Desligou e mais uma vez Rachmael viu-se diante de uma tela vazia.
Em sua residência, Matson voltou-se do aparelho para Freya Holm, sentada no sofá, pernas encolhidas, usando uma blusa azul transparente e calças de ope­rário, que constituíam a última moda.
- Ele descobriu - disse Matson. - Descobriu lo­go a história do satélite P.A.B-y. - Pôs-se a andar de um lado para outro, cenho franzido. - Muito bem. Nosso agente, sob o nome de Bergen Phillips, será enviado a Whale's Mouth dentro de seis horas, via THL de Paris. Tão logo chegue a Whale's Mouth, transmi­tirá, via Telpor, um documento cifrado descrevendo as condições locais. Mas é provável que o pessoal da THL já tenha desconfiado de Bergen Phillips e, usando de técnicas bem nossas conhecidas, tomado conhecimento de tudo o que o veterano da Lies Incorporated sabia. Em seguida, mandarão uma mensagem cifrada falsa, assegurando-lhe que tudo corria bem. E ele jamais sa­beria, ao recebê-la, se partira verdadeiramente de Ber­gen Phillips, ou da THL. Contudo...
Freya compreendeu logo.
Mande que esse agente, tão logo chegue, envie a seqüência de ativamento para o satélite P.A.B-y. Ele recomeçará a transmitir dados diretamente ao sis­tema solar.
Se ainda funcionar após quinze anos - disse Matson. - E se a Videofone não interromper as ins­truções no momento em que começarem a ser trans­mitidas.
Contudo, poderia colocar uma escuta nas linhas da Empresa Videofone e captar mesmo os poucos dados iniciais. O que obtivesse antes que a comunicação fos­se interrompida poderia ser uma visão gráfica panorâ­mica de Whale's Mouth. Então, não teria importância se fossem interrompidos.
Como seriam com certeza, uma vez que a Videofone era controlada pela THL.
Basta um bom sinal em vídeo e saberemos - falou Matson.
Saberemos o quê? - perguntou Freya, estenden­do a mão para o copo que repousava na mesinha co­berta de vidro genuíno, preciosidade de antiquário.
- Eu lhe direi quando vir a cena, querida.
E dirigindo-se ao painel, transmitiu o pedido, já an­teriormente feito, para que enviassem ao satélite o agen­te que viajaria para Whale's Mouth. Aquelas instru­ções precisavam ser dadas oralmente e não através dos canais. Transmiti-las seria divulgá-las por toda parte.
Na verdade, talvez já houvesse dito demais a Rachmael. Mas às vezes era preciso correr riscos. E presu­mia que a segunda chamada de Rachmael fora feita de uma cabina pública. O rapaz, embora amador, era pelo menos cauteloso. No momento ser cauteloso não era paranóia, e sim sensatez.
Na tela da TV em 3-D colorida com trilha olfativa, a fisionomia jovial do Presidente CXnar Jones, da Neo-colônia, dizia:
- Vocês, que vivem nessa velha e super-povoada Terra, nos surpreendem. - Ao fundo, paisagens ver­des, lembrando um parque. - Ouvimos dizer que pre­tendem enviar uma nave até anui, por hipervisão, que chegará... vejamos. - E fingiu calcular.
Diante do aparelho (que ainda não fora inteiramente pago) Jack McElhatten, um homem trabalhador, tran­qüilo e alegre, disse à mulher:
Pôxa, veja toda aquela terra descampada. - Re­cordava-lhe a infância alegre no Oregon, a oeste de Cheyenne. E o desejo de recuperar aquela vida domi­nou-o. - Precisamos emigrar. Devemos isso aos nos­sos filhos. Eles poderão criar-se como nós. . .
Psiu - fez Ruth.
Na tela, o Presidente Omar Jones dizia:
- Dentro de cerca de dezoito anos, pessoal, a na­ve chegará aqui e pousará. Ouçam o que decidimos fazer. Escolhemos o dia 24 de novembro de 2032 para uma comemoração especial. Será o dia de chegada da nave. - E riu. - Eu terei, vejamos, noventa e qua­tro anos e, lamento dizer, provavelmente não estarei aqui para participar das comemorações. Mas talvez a posteridade, incluindo alguns de vocês, jovens...
Ouviu isso? - disse McElhatten, incrédulo, para a mulher. - Algum doido vai viajar à antiga. Dezoito anos no espaço, quando bastaria. . .
Cale a boca! - disse Ruth, furiosa, tentando ouvir.
Poderão estar aqui para cumprimentar esse Sr. Applebaum - declarou solenemente Omar Jones. - Bandeiras, alto-falantes... teremos então uma popu­lação de cerca de um bilhão, mas haverá ainda muita terra livre. Podemos abrigar dois bilhões, vocês sabem, e haverá ainda lugar para todos. Venham reunir-se a nós. Viajem para cá e festejaremos juntos esse grande dia.
Acenou com a mão e Jack McElhatten teve a im­pressão de que aquele homem que se encontrava em Whale's Mouth acenava diretamente para ele. No seu íntimo, o desejo das planícies cresceu.
A fronteira, pensou. Os vizinhos do minúsculo apar­tamento com quem partilhavam o banheiro.. . pelo menos até o mês anterior, quando o casal havia em­barcado para Whale's Mouth. As vídeo-cartas de Jero­me Patterson.. . meu Deus, que elogios faziam sobre as condições de existência na colônia!
Os flashes de informação - anúncios, para ser exa­to - não diziam toda a beleza natural do planeta. A beleza e as oportunidades.
- Precisamos de homens - prosseguia o Presiden­te Omar. - Homens bons e vigorosos, capazes de qualquer tipo de trabalho. Você é um deles? Hábil, alerta, entusiasmado, maior de dezoito anos? Desejoso de começar vida nova usando a cabeça e as mãos e os talentos que Deus lhe deu? Pense no assunto. Que é que você está fazendo com suas mãos e seus talentos neste momento?
Responsável pelo controle de qualidade numa linha de automáticos, McElhatten pensou, amargo: até um pássaro podia fazer o mesmo. De fato, um pombo con­trolava o seu trabalho.
- Imagine só: ter um emprego para o qual um pom­bo tem melhor golpe de vista para as falhas - disse à mulher.
Era exatamente esta a sua situação: recusar partes que não estavam perfeitamente alinhadas e, quando ele deixava de notar alguma, o pássaro anotava as defei­tuosas que lhe haviam escapado, comprimia com o bico o botão de rejeição e a peça era atirada fora da cor­reia transportadora. E, à medida que os homens pediam demissão ou emigravam, eram substituídos, um a um, na Krino Associates, por pombos.
McElhatten só continuava no emprego porque o sin­dicato a que pertencia era bastante forte para impor, alegando que seu tempo de serviço obrigava a Krino a mantê-lo. Mas quando pedisse demissão. . .
Os pombos me substituirão. Está bem, esqueça. Vamos para Whale's Mouth e então não estarei com­petindo com pássaros. - Competindo e perdendo, pen­sou. Apresentando aos chefes rendimento inferior. - E a Krino ainda ficará satisfeita.
Gostaria que você conseguisse antecipadamente um emprego específico na Neocolônia - disse Ruth. - Eles falam de "todas as espécies de empregos", mas ninguém pode fazer de tudo. Esse seu trabalho - hesi­tou - preparou-o para quê?
Afinal, ele trabalhava há dez anos na Krino Asso­ciates.
- Quero ser agricultor. Ruth arregalou os olhos.
- Eles nos darão vinte acres. Compraremos carnei­ros, aqueles de cara preta. Suffolk. Uns seis, mais umas cinco ovelhas. Levantaremos cercas, construiremos uma casa com partes pré-fabricadas...
Estava convicto de que seria capaz. Outros o haviam realizado, conforme se sabia, não graças a propaganda impessoal, mas por cartas em video-sinais e retranscritas pela Empresa Videofone e pregadas no painel de notícias do edifício de apartamentos.
Mas se não gostarmos de lá - murmurou Ruth, apreensiva - não poderemos voltar. Isso parece tão estranho. Essas máquinas de teletransporte que só fun­cionam num sentido...
São as nébulas extra-galáticas - explicou ele, paciente. - O recuo da matéria. O universo está se expandindo, crescendo. O Telpor relaciona suas mo­léculas com as configurações energéticas desse fluxo para fora...
- Eu não compreendo - falou Ruth. - Mas uma coisa eu sei.
E, abrindo a bolsa, tirou um folheto.
McElhatten franziu o cenho enquanto o estudava.
- Loucos. Literatura de ódio, Ruth. Não a aceite. E começou a amassar o folheto.
O nome deles não tem nada de odioso: "Amigos do Povo Unido". São um pequeno grupo de gente de­dicada, preocupada, contrária a...
Sei o que combalem - replicou McElhatten, que trabalhara com diversos deles na Krino. - Dizem que os terrestres devem continuar dentro do sistema solar, reunidos. Ouça: a história do homem é toda uma am­pla imigração. E esta, no sentido de Whale's Mouth, é a mais vasta já realizada: vinte e quatro anos-luz! Devíamos orgulhar-nos disso.
Mas é claro que haveria sempre loucos e idiotas que­rendo opor-se ao fluxo natural da história.
Sim, era um momento histórico e ele queria partici­par. Primeiro fora a Nova Inglaterra, depois a Aus­trália, em seguida o Alasca. E então a tentativa - e fracasso - na Lua, seguida de Marte e Vénus. Final­mente, o êxito. Se esperasse muito mais, breve estaria demasiado velho, os imigrantes seriam muito numerosos e as terras livres desapareceriam. O governo da Neo­colônia poderia cancelar a oferta de terrenos a qual­quer momento porque, afinal, diariamente chegava uma multidão. Os escritórios do Telpor estavam sempre abarrotados.
Quer que eu vá primeiro? - perguntou a Ruth. - Depois de garantir a terra e estar pronto para cons­truir, mandarei uma carta e você poderá ir com as crianças.
Detesto separar-me de você - afirmou ela, ner­vosa.
- Decida.
Acho que devemos ir juntos. Se formos. Mas es­sas cartas... São simples impulsos em linhas energéti­cas.
Como o telefone, o videofone, o telégrafo ou a televisão. Isso não mudou há cem anos.
- Se fossem cartas de verdade. ..
- Esse seu medo é supersticioso - disse ele, caçoando.
- Talvez - confessou Ruth.
Contudo, era um temor real. Temor profundo de uma viagem que não teria regresso, exceto quando as na­ves alcançassem o sistema Fomalhaut, dentro de dezoi­to anos.
Abrindo o noticiário vespertino, examinou o artigo, escrito em tom satírico, sobre aquela nave, a Omphalos, capaz de transportar quinhentas pessoas, mas desta vez levando uma única, o proprietário. Segundo o arti­go, ele fugia de seus credores. Era este o motivo da via­gem.
Mas pelo menos pode voltar de Whale's Mouth, pen­sou Ruth. E invejou-o, sem saber por que. Rachmael bem Applebaum, dizia o noticiário. Se pudéssemos via­jar agora com você, se pedíssemos...
- Se não quiser ir, Ruth, irei sozinho - disse o marido, lentamente. - Não estou disposto a ficar sen­tado, dia após dia, naquela estação de controle de qualidade, com um pombo a vigiar-me.
Ela suspirou e dirigiu-se à cozinha comunitária, que partilhavam com os vizinhos da direita, os Shorts, para verificar se restava alguma coisa da ração mensal de grãos de café sintético.
Não havia. Desanimada, preparou uma xícara de chá sintético. Entretanto, os Shorts - que eram barulhen­tos - entraram e saíram da cozinha. Na sala, o mari­do continuava diante do televisor, qual criança fascina­da, ouvindo e acompanhando com toda a atenção o relatório diário de Whale's Mouth. Admirando o novo mundo.
- Creio que ele tem razão, pensou Ruth.
Mas algo profundo c instintivo rebelava-sc no seu íntimo.
Intrigada, perguntava a si mesma por que. Tornou a pensar em Rachmael ben Applebaum que, segundo o noticiário, tentava a viagem de dezoito anos sem o equi­pamento de sono profundo. Tentara mas não consegui­ra obtê-lo, dizia alegremente o noticiário. O camarada era tão marginal, tão escuso, que não possuía crédito de qualquer espécie. Pobre homem, pensou. Conscien­te e sozinho durante dezoito anos. A companhia que fabrica as unidades de sono profundo não poderia doar o equipamento de que ele precisa?
O aparelho de TV, na sala, declarava: "Lembrem-se, todos vocês que vivem na Terra, da Velha Hubbard que morava num sapato. Vocês, que têm tantos filhos, que pretendem fazer?"
Emigrar, decidiu Ruth, sem entusiasmo.
E... breve.
5
Junto ao pequenino veículo de Rachmael ben Applebaum, o imenso vulto de seu único bem de valor eco­nômico, a ele ligado por meio de túneis, delineou-se na escuridão e imediatamente os mecanismos automáti­cos foram acionados. Uma escotilha abriu-se, compor­tas interiores fecharam-se enquanto o ar substituía o vácuo, e no painel uma luz verde acendeu-se. Sinal positivo.
Já podia passar em segurança do seu pequeno veí­culo alugado para a Omphalos, orbitando Marte a .003 unidades astronômicas.
Mal transpôs a série de comportas, sem utilizar-se de traje pressurizado, ou bomba de oxigênio, Al Dosker surgiu diante dele, empunhando uma pistola laser:
Julguei que fosse um simulacro enviado por THL. Mas as máquinas EEG e EKG dizem que não. - Es­tendeu a mão, que Rachmael apertou. - Então vai fazer a viagem de qualquer maneira, sem os compo­nentes de sono profundo! Acha que estará são, após dezoito anos? Eu não estaria. - Seu rosto negro, de traços bem marcados, expressou compaixão. - Não consegue convencer alguém meio doido a ir com você? Só mais uma pessoa faria muita diferença, sobretudo se fosse mulher...
Haveria brigas - disse Rachmael. - Brigas que terminariam em morte. Vou levar uma imensa bi­blioteca educativa em fitas. Quando chegar a Fomalhaut estarei falando grego, latim, russo, italiano... Serei capaz de ler textos dos alquimistas da Idade Mé­dia e os clássicos chineses nos originais do século VI.
Sorriu, mas era um sorriso vazio, gelado. Não iludia Dosker, que sabia muito bem o que era tentar uma viagem interestelar sem equipamento adequado, por­que fizera a viagem de três anos até Próxima. E no re­gresso, por experiência, insistira no sono profundo.
- O que me irrita é que THL chegou ao mercado negro - falou Rachmael. - E consegue até deter o fornecimento legal de peças miniaturizadas.
Perdera a oportunidade no restaurante. Os compo­nentes, no valor de cinco mil poscreds, tinham estado ao seu alcance. E não havia apelação.
- Você sabe que um dos elementos mais experien­tes da Lies Incorporated vai viajar através de uma es­tação Telpor comum, como qualquer outro imigrante? - informou Dosker. - Assim é possível que entre­mos em contato com a Oinpkclos na próxima semana. Você poderá regressar. Nós lhe pouparemos os dezoito anos de ida e, caso tenha esquecido, os dezoito da volta.
- Não estou certo de que queira voltar, se conse­guir chegar até lá - respondeu Rachmael.
Não se iludia. Após a viagem a Fomalhaut talvez não estivesse fisicamente capaz de regressar, fossem quais fossem as condições em Whale's Mouth. O cor­po tem suas limitações. E a mente também.
Contudo, dispunham agora de mais elementos em que se basear. Não só o fracasso da velha cápsula do tempo em alcançar o sistema solar - convenientemen­te esquecido pelos meios de informação - como a recusa da Empresa Videofone em reativar o satélite Príncipe Albert B-y orbitando em Fomalhaut, apesar da solicitação legal direta, feita por Matson Glazer-Holliday. Só isto, refletia Rachmael, assustaria qualquer cidadão de bom senso. Mas...
O povo não sabia. Os meios de informação não o haviam divulgado.
Matson, porém, havia passado a informação à pe­quena organização militante antiimigração, os Amigos do Povo Unido. Tratava-se, na maioria, de gente idosa, antiquada e medrosa, cuja desconfiança da emigra­ção via Telpor baseava-se em razões neuróticas. Mas eles imprimiam panfletos. E a recusa da Empresa Vi­deofone fora devidamente registrada num dos seus bo­letins que corriam a Terra.
Mas quantas pessoas o teriam visto? Rachmael igno­rava. Sua intuição dizia que bem poucas. E a imigração continuava.
Conforme dissera Matson, as pegadas que condu­ziam à toca do leão eram cada vez mais numerosas. E nenhuma indicava o caminho de volta.
- Pois bem, devolvo-lhe formalmente, oficialmente, a nave Omphalos. Ao que parece é capaz de transpor todos os sistemas, de modo que você nada tem a te­mer. - Seus olhos negros faiscaram. - Quero suge­rir-lhe uma coisa, ben Applebaum: no decorrer dos próximos dezoito anos você poderá divertir-se como eu na última semana. - E aproximando-se da mesa apa­nhou um livro encapado de couro, e disse em voz bai­xa: - Escreva um diário.
- Diário de quê?
- De um cérebro em decomposição - respondeu Dosker. - Será de interesse para os psiquiatras.
Desta vez não parecia estar brincando.
- Então, nem você me considera...
- Sem equipamento de sono profundo para baixar seu metabolismo, viajar é um terrível engano. Talvez o diário não seja o relato de um ser humano em deterio­ração. Isto talvez já venha acontecendo.
Em silêncio, Rachmael viu o negro ágil e baixinho transpor a escotilha, sair da Omphalos e penetrar no pequeno veículo alugado.
A escotilha fechou-se. Uma luz vermelha piscou lá no alto e êle encontrou-se sozinho naquele gigantesco transporte. Sozinho como estaria nos próximos dezoito anos. Talvez Dosker tenha razão, pensou.
Mas continuava decidido a fazer a viagem.
Às três da manhã, Maison Glazer-Kolliday foi des­pertado por um dos seus criados automáticos.
Senhor, um recado do Sr. Bergen Phillips, da Neocolônia. Acaba de chegar. Conforme pediu...
Sim - disse Matson sentando-se e descobrindo Freya, que continuou adormecida. Vestindo o roupão e calçando os chinelos, ordenou: - Dê-me.
A mensagem, impressa nos caracteres comuns da Em­presa Videofone, dizia:
Comprei minha primeira laranjeira. Será uma grande colheita. Venha reunir-se a Molly e a mim.
Freya despertou e sentou-se na cama. A alça da ca­misola transparente escorregou no ombro nu.
Que foi? - murmurou.
A primeira mensagem cifrada de B.P. - res­pondeu Matson, ponderando e batendo distraído com o papel no joelho.
Completamente desperta, Freya estendeu a mão para um maço de cigarros Bering e perguntou:
Que é que ele diz, Mat?
A mensagem é versão seis.
- Então, tudo é exatamente conforme se descreve. Acendendo o cigarro, observava-o atentamente.
Sim. Mas... psicólogos da THL, à espera do outro lado, poderiam tê-lo agarrado, feito uma lava­gem cerebral e depois enviado isto. Assim, a mensagem nada significa. Somente a transmissão de um dos códi­gos em número ímpar, indicando em diversos graus que a situação em Whale's Mouth não é a que se diz, teria qualquer valor. Porque neste caso os psicólogos da THL não teriam motivo para falsificá-la.
Assim, você continua sem saber coisa alguma.
Mas talvez ele consiga ativar o Príncipe Albert B-y.
Dentro de uma semana. No era muito tempo, e a Omphalos poderia ser facilmente alcançada. E, uma vez que o piloto não estivesse imerso em sono profun­do, ele seria informado.
Contudo, se após uma semana...
- Se nenhum dado partir do satélite - falou Matson, pensativo - continuo sem provas. Porque então Bergen transmitirá a mensagem n, significando que o satélite está inoperável. Mas eles mesmos farão tudo isso, se o agarrarem. Assim, continuo na mesma!
Pôs-se a andar de um lado para outro e, tomando o cigarro que Freya fumava na cama em desordem, aspi­rou violentamente, até queimar os dedos.
- Não viverei dezoito anos - afirmou.
Não viveria o bastante para conhecer a verdade a respeito de Whale's Mouth, pensou. O período de tem­po era demasiado longo.
- Você terá setenta e nove anos - disse Freya, prática. - Estará vivo, portanto. Mas um boneco, com todos os órgãos naturais substituídos.
Mas não terei a paciência de esperar, pensou Matson. Um bebê atinge a idade adulta nesse período de tempo!
Freya apanhou o cigarro e fez uma careta par causa da temperatura.
Bem, você poderia mandar...
Eu irei - disse Matson.
Fitando-o de olhos arregalados, ela murmurou:
- Oh, meu Deus!
- Não irei sozinho. Levarei uma "família". Em cada saída da Trails of Hoffman existe um grupo de comando da Leis Incorporated.
Eram dois mil, vários deles veteranos de guerra. Passariam ao mesmo tempo que ele e se reuniriam em Whale's Mouth. Em sua bagagem pessoal transporta­riam bastante equipamento de gravação, de rastreamen­to e detetores para reorganizar a agência policial parti­cular.
- Você ficará chefiando aqui na Terra - disse a Freya. - Até que eu volte.
Dentro de trinta e seis anos a partir de agora, pensou amargo. Terei noventa e sete anos... não. Consegui­remos aparelhos de sono profundo em Whale's Mouth, porque, segundo me lembro, eles os levaram. Eis uma das razões porque há tão poucos aqui. A princípio pensaram que se a colonização não desse certo, que voltariam ao sistema solar em espaçonaves munidas de equipamento de sono profundo, transportes gigan­tescos fabricados em Whale's Mouth graças a peças pré-fabricadas e transportadas pelo Telpor de von Einem.
- Um golpe - murmurou Freya. - Na verdade, um golpe de Estado.
Ele a fitou, espantado:
- O quê? Meu Deus, não! Nunca pensei...
- Se você levar dois mil elementos da organização a Lies Incorporated deixará de existir aqui. Não pas­sará de uma sombra. Mas do outro lado será poderosa E a UN não dispõe de exércitos em Whale's Mouth você deve saber disso, pelo menos inconscientemente Quem se oporia a você? Vejamos. O Presidente da Neo-colônia, Omar Jones, pretende reeleger-se dentro de dois anos. Você poderia esperar...
Por uma chamada de Whale's Mouth? - per­guntou Matson, asperamente. - Omar Jones transpor­taria tropas da UN por todos os postos de Telpor do mundo inteiro. E suas armas táticas, tudo, inclusive os mísseis cefalotrópicos. - E ele os odiava, E temia.
Se chegasse uma mensagem de Whale's Mouth. Mas, conseguindo-se atravessar, é sempre possível dar um jeito. Pode ter certeza de que nenhum recado de emergência foi enviado. Não é o que estivemos dis­cutindo? Não foi por isso que você apoiou a idéia de Rachmael, sabendo que se pode conseguir comunicação do outro lado?
Fumando, ela esperou, observando-o com feminina intensidade.
Daí a instantes Matson disse:
- Sim. Poderíamos fazer isso. Eles talvez tenham psicólogos THL armados e prontos para surpreender os indivíduos. Mas não dois mil policiais treinados. Nós os controlaríamos dentro de meia hora, provavelmente. A menos que, sem que saibamos, Horst Bertold tenha mandado exércitos para lá.
Mas por que enviaria? - ponderou. A única coisa que têm a enfrentar até agora são civis confusos, ex­patriados, em busca de trabalho, lar, de fincar raízes num mundo de onde não podiam sair.
E lembre de mais uma coisa - continuou Freya, mais uma vez levantando a calça da camisola e cobrindo o ombro levemente sardento. - A parte receptora do aparelho de tele-transporte precisou ser instalada es­pacialmente. Todos os que lá se encontram tiveram de ser enviados antecipadamente por meio de naves in­terestelares em hipervisão. E isso leva anos. Assim, vo­cê pode aniquilar a UN e Bertold simplesmente destruindo as estações receptoras do Telpor... se eles suspeitarem.
E se eu conseguir agir bastante rápido.
Mas isso você pode - disse Freya, tranqüila­mente. Levando seus melhores homens e equipamento. A menos que...
Interrompeu-se e umedeceu os lábios, como se de­batesse um problema puramente acadêmico.
Irritado, ele repetiu:
A menos que. ..
Identifiquem seus homens à medida que vão par­tindo. E você também. Talvez estejam à espera. Já imagino tudo - e riu alegremente. - Você paga seus poscreds, sorri para o simpático operador da THL que aciona os Telpors, fica quieto enquanto o submetem ao campo do equipamento. . . continua inocentemente de pé, desaparece, e reaparece a vinte e qua tio anos-luz de distância, em Whale's Mouth... E é assassinado com um raio laser antes mesmo de ser reconstituído plenamente. Levaria quinze minutos. Durante quinze minutos, Mat, você ficaria impotente, meio materiali­zado aqui e lá. E o mesmo aconteceria com todos os seus homens. E o equipamento.
Ele fitou-a, furioso.
Isso se chama hubris.
Que significa isso?
- Uma palavra grega que significa "orgulho". Ten­tativa de colocar-se acima do plano que lhe foi destina­do pelos deuses. Talvez os deuses não queiram que vo­cê se apodere de Whale's Mouth, Matty querido. Tal­vez não queiram que passe além de onde se encontra.
- Ora, já que preciso ir pessoalmente...
- Então, por que não assumir o controle? Depor o insípido e jovial Omar Jones? Afinal... - Freya apagou o cigarro e acrescentou: - Estava mesmo con­denado a ficar por lá. Por que viver uma existência normal, com o resto da plebe? Aqui, você é podero­so... mas Hoist Bertold e a UN, com Trails of Hoff­man dando-lhes apoio econômico, são mais fortes. - Dando de ombros, como se estivesse cansada das aspi­rações ou da vaidade humana, suspirou. - Lá a situa­ção seria completamente diferente.
Ninguém poderia enfrentá-lo se conseguisse trans­portar, de uma só vez, todos os seus homens e arma­mentos, utilizando-se das próprias estações oficiais de von Einem. Sorriu à idéia. Era divertido pensar que a própria THL providenciaria para que êle e seus homens chegassem à Neocolônia.
- E em 2032, quando Rachmael ben Applebaum chegar, provavelmente sujo, barbado, esquizofrênico, em sua bela nave, a Omphalos, descobrirá que a co­lônia é de fato um inferno, exato como previra, mas só que à frente estará você. O aposto que isso o surpreen­derá bastante.
Confuso, Matson resmungou:
- Não quero mais pensar no assunto. Vou dormir.
E despindo o roupão e tirando as chinelas deixou-se cair pesadamente na cama, muito cônscio de sua ida­de. Sentia-se velho. Não estaria demasiado decrépito para uma aventura dessas? Não para cair na cama ao lado de Freya, mas velho demais para o que ela pro­punha, para o que captara por telepatia de seu sub­consciente. Sim, era tudo verdade. Desde a primeira chamada de Rachmael, nos planos dos seus processos cognoscivos, havia ponderado o assunto.
Era por esta razão que ajudava - ou antes, tenta­va ajudar - Rachmael ben Applebaum, homem lento, perseguido por balões de credores.
Segundo a informação divulgada, há um exército de civis, por assim dizer, em Whale's Mouth, constituído de trezentos cidadãos voluntários e utilizando como uma espécie de guarda nacional em caso de tumultos. Trezentos! E nenhum profissional experiente. Tratava-se de uma região pastoril, explicavam os anúncios. O paraíso sem a serpente. Havia, portanto, superabun­dância de tudo para todos. Para que o exército? Quem invejaria quem? E por que razão apossar-se pela força dos bens alheios?
Os que nada têm estão aqui deste lado, pensou Matson Glazer-Holliday. Eu e os que trabalham para mim. No decorrer dos anos fomos gradualmente dominados pelos verdadeiros titãs, a UN e a THL.
O paraíso fica há vinte e quatro anos-luz, no siste­ma Fomalhaut, no nono planeta.
Sr. ben Applebaum, pensou consigo mesmo, deitando-se e, por reflexo, atraindo Freya para si, você terá uma surpresa quando chegar a Whale's Mouth.
Era uma pena que ele próprio - isso a intuição lhe dizia - não estaria vivo na data.
Quanto ao motivo, sua intuição semipsiônica nada revelava.
Junto dele, Freya gemeu, meio adormecida, bem ani­nhada contra êle, tranqüila.
Matson, porém, continuou acordado, olhos arregala­dos na escuridão. Mergulhado numa idéia nova e com­plicada, que jamais lhe ocorrera antes.
6
O satélite monitor, gravador e transmissor Príncipe Albert B-y lançou seu primeiro sinal de vídeo, repeti­ção dos primeiros registros telescópicos que havia trans­mitido da superfície que sobrevoava há mais de uma década. Partes da rede de peças miniaturizadas, há muito inertes, falharam. Contudo, sistemas de apoio as substituíram e alguns falharam também. Mas o sinal, dirigido ao sistema solar, há vinte a quatro anos-luz de distância, foi transmitido.
E na superfície de Fomalhaut IX um olho piscou. Dali, um míssil partiu, e num espaço de tempo tão rá­pido que somente os mais apurados instrumentos de medição seriam capazes de determinar, alcançou seu alvo, o satélite em forma de cenoura, que existira si­lencioso, inoperante e portanto inócuo... até então.
A ogiva do míssil detonou e o Príncipe Albert B-y deixou de existir, silenciosamente, porque não havia atmosfera para repercutir o acontecimento e a dimen­são do estrondo.
Ao mesmo tempo, na superfície lá embaixo, um po­deroso transmissor aceitou uma fita passada a imensa velocidade. O sinal, amplificado por uma seqüência de frias ondulações, alcançou o nível de transmissão e foi liberada. Estranho, sua freqüência coincidia com a do sinal recém-transmitido pelo satélite destruído.
O que emanava dos dois transmissores separados se confundiriam numa cacofonia sem sentido. Satisfeitos, os técnicos que operavam o transmissor de terra vol­taram-se para canais e tarefas mais rotineiras.
O sinal deliberadamente confuso cortou o espaço em direção ao sistema solar, e piscou, em sua louca con­fusão, para um planeta que, ao recebê-lo, nada capta­ria exceto os ruídos de uma briga de cães.
E o satélite, reduzido ao seu plano molecular pela ogiva do míssil, deixou de emitir sinais. Estava liqui­dado.
O acontecimento, a primeira transmissão até a con­fusão provocada pelo transmissor de terra, mais pode­roso, levara cinco minutos, inclusive o vôo e demolição do míssil e de seu complexo, inestimável, insubstituí­vel alvo, o satélite.
Um alvo que, haviam decretado vários círculos, em sessão formal, poderia ser sacrificado, se a ocasião se apresentasse.
E a ocasião se apresentara.
O satélite fora devidamente destruído.
No local do lançamento do míssil, um soldado de capacete tranqüilamente substituiu por outro o pro­jétil, ligou os terminais de anódio e catódio, certificou-se de que o painel de acionamento estava trancado, com a mesma chave que ali o introduzira oficialmente - e regressou às suas tarefas habituais.
Tempo gasto: seis minutos, ao todo.
E o planeta Fomalhaut continuou a girar.
Perdida em pensamentos, enquanto viajava confor­tavelmente na poltrona de couro do seu veículo espa­cial de luxo, Freya Holm assustou-se com a repentina voz mecânica que soou no circuito do veículo.
- Senhor ou senhora, peço desculpas, mas a dete­rioração de minhas metabaterias obriga-me a pousar sem demora para uma rápida mudança. Por favor, dê-me sua permissão oral, senão deslizaremos até a destrui­ção.
Olhando para baixo, Freya avistou as elevadas cons­truções da nova Nova York, o anel que rodeava a an­tiga metrópole. Chegarei atrasada ao trabalho, pensou. Mas o veículo tinha razão. Se as metabaterias, única fonte de energia, estavam falhando, era preciso descer diretamente para uma estação de conserto. Um longo deslize sem energia significava a morte por colisão com um dos imensos edifícios comerciais que se avistavam lá embaixo.
- Está bem - concordou, resignada. E exatamen­te naquele dia.
- Obrigado, senhor ou senhora.
Com a energia falhando, o veículo desceu em espiral até que finalmente, recuperando o controle, fêz um pouso sacudido, mas não perigoso, num dos inúmeros postos de conserto de Nova York.
Momentos depois, funcionários uniformizados do pos­to rodearam o veículo à procura - conforme um deles explicou, delicadamente - do que esvaziara a meta-bateria, que em geral durava vinte anos.
Abrindo a porta do veículo, o empregado perguntou;
- Posso verificar sob o painel de passageiros, por favor? A fiação passa por ali. Os circuitos são muito usados e o isolamento pode estar gasto.
Era negro, e pareceu a Freya simpático e vivo. Sem hesitar, ela afastou-se para a outra extremidade da cabina.
O negro entrou, fechando a porta.
- Lua e touro - disse. Era a senha mais que pro­visória dos membros da organização policial Lies Incorporated, naquela data.
Pegada de surpresa, Freya murmurou:
- Jack Horner. Quem é você? Nunca o vi antes. Não lhe parecia um investigador.
- Piloto espacial. Sou Al Dosker. Eu a conheço. Você é Freya Holm.
Deixara de sorrir. Estava quieto, sério e, ao sentar ao seu lado, passou de leve os dedos pela fiação do painel de passageiros, dizendo:
- Não tenho tempo para conversa social, Freya. Disponho de cinco minutos no máximo. Sei onde está o defeito porque fui eu quem enviou este veículo para apanhá-la, compreende?
Compreendo - respondeu, mordendo um dente falso, que se abriu. Seu revestimento tinha o amargo de uma pílula de plástico. Continha ácido prússico em dose suficiente para matá-la se aquele homem se re­velasse um inimigo. E deu corda no relógio que trazia ao pulso, munido de um dardo com ponta embebida em cianido, e acionado a baixa velocidade e que ela podia controlar pelos ponteiros do relógio. Poderia li­quidar aquele homem ou, se outros aparecessem, ela própria, caso falhasse o veneno oral. E ficou rígida, à espera.
Você é a amante de Matson - disse o negro. - Tem acesso a ele a qualquer momento, eu sei, e por isso resolvi dirigir-me a você. Hoje, às seis horas, hora local de Nova Nova York, Matson Glazer-Holliday chegará a uma agência da Trails of Hoffman, levando duas pesadas malas, e pedirá permissão para emigrar. Pagará seis poscreds, ou sete, se a bagagem tiver ex­cesso de peso, e em seguida será teletransportado para Whale's Mouth. Ao mesmo tempo, em todas as agên­cias de Telpor de toda a Terra, um número de ele­mentos que se aproximam dos dois mil, escolhidos entre os mais decididos veteranos, farão o mesmo.
Ela não respondeu, olhando, obstinada, para a fren­te. No interior de sua bolsa um gravador registrava tu­do, mas Deus sabia para quê.
O negro continuou:
Do outro lado, distribuindo seus veteranos e o equipamento que reunirão, com as peças transportadas nas malas sob a etiqueta de "bens pessoais", tentarão um golpe. Deterão a imigração, tornarão os Telpors imediatamente inoperantes, derrubarão o presidente Omar Jones...
Já que devo saber tudo isso, por que você está me contando?
Porque vou procurar Horst Bertold duas horas antes das seis. Creio que em geral isto significa quatro horas. - Seu tom de voz era áspero, frio. - Sou em­pregado da Lies Incorporated, mas não ingressei na organização para participar de um golpe de força como este. Na Terra, Matson G. H. encontra-se onde deve estar: o terceiro da fila. Em Whale's Mouth. ..
-- Que é que você deseja exatamente que eu faça até as quatro? Temos sete horas de intervalo.
- Informar a Matson que quando ele e seus dois mil homens chegarem às estações de THL não serão teletransportados, e sim presos e provavelmente assas­sinados sem dor. À maneira alemã.
É isso o que você deseja? Matson morto e com ele seus homens? Bertold, Ferry e von Einem dirigindo a entidade político-econômica Terra-Whale's Mouth, sem ninguém para...
Não quero que ele faça a tentativa.
Ouça - disse Freya, ríspida - o golpe que Matson pretende executar em Whale's Mouth baseia-se na crença de que um exército de trezentos voluntários ignorantes se encontra do outro lado. Não creio que você precise preocupar-se. O problema é que Matson de fato acredita nas mentiras que ouve na TV. Ele é incrivelmente ingênuo e primitivo. Você crê que do ou­tro lado haja uma Terra Prometida, com um pequeno corpo de voluntários à espera de que surja alguém com um verdadeiro exército, equipado pela moderna tecnologia, com o de que dispõe Mat, para colher tudo o que encontrar? Se fosse assim, acredita mesmo que Bertold e Ferry já não se teriam antecipado?
Desconcertado, Dosker fitou-a, hesitante.
- Julgo que Mat está cometendo um erro - con­tinuou Freya. - Não porque seja imoral o que pla­neja, mas porque ele descobrirá que, uma vez do ou­tro lado, com seus dois mil homens, estará enfrentan­do.. . - interrompeu-se. - Não sei. Mas não terá êxi­to seu golpe de estado. Seja quem for que se encontre à frente da Neocolônia dominará Mat, isso é o que me aterroriza. Claro que eu gostaria de impedi-lo. Terei prazer em dizer-lhe que um dos seus mais destacados elementos conhece todos os detalhes do golpe e às quatro horas pretende revelá-los às autoridades. Farei todo o possível, Dosker, para que abandone a idéia e encare o fato de que está se encaminhando tolamente para uma armadilha. Minhas razões e as suas talvez não sejam idênticas.
Que julga que se encontra do outro lado, Freya?
A morte.
Para todos? - perguntou, fitando-a com os olhos arregalados. - Quarenta milhões? Por quê?
Os tempos de Gilbert, Sullivan e Jerome Kern já passaram. Estamos num planeta de sete bilhões de habitantes. Whale's Mouth talvez resolvesse o proble­ma, porém devagar, e há um método mais eficaz. To­dos os que se encontram nos postos principais da UN, colocados por Horst Bertold, o sabem.
Não - disse o negro, cuja fisionomia adquirira em feio tom acinzentado. - Isso terminou em 1945.
- Tem certeza? Você imigraria?
Ele não respondeu logo. Em seguida, com surpresa para ela, disse:
- Sim.
- Quê! Mas por quê?
- Eu imigraria. Hoje, às seis, hora da Nova Nova York. Com uma pistola laser na mão esquerda e um pontapé na virilha para eles. Quero liquidá-los, se é mesmo isso o que estão fazendo. E não posso esperar.
- Não poderá agir. Tão logo emerja...
- Com as mãos nuas. Acabarei com um deles, pelo menos. Qualquer serve.
- Comece aqui. Comece com Horst Bertold.
Ele a fitou, atento.
Temos as armas e a tecnologia - disse Freya, que se calou quando uma porta se abriu para admitir outro cordial empregado.
Descobriu o defeito, Al? - perguntou.
Sim - respondeu Dosker, mexendo no painel, rosto escondido. - Deve estar em ordem agora. Torne a carregar a metabateria, coloque-a no lugar e o veí­culo poderá partir.
O outro empregado, satisfeito, retirou-se. Freya e Al Dosker mais uma vez ficaram a sós, por um breve espaço de tempo, a porta do veículo aberta.
- Você... talvez esteja enganada - falou Dosker.
Tem de ser assim. Não pode haver um exército de trezentos voluntários civis, porque Bertold e Ferry, ou pelo menos um deles já se teria transportado para lá. Uma coisa sabemos ao certo: como eles são. Sim­plesmente não pode existir um vácuo de poder em Whale's Mouth.
Tudo pronto, senhorita - anunciou um empre­gado.
Ajustado, o circuito do veículo anunciou: "Sinto-me um milhão de vezes melhor. Estou preparado para se­guir ao destino original, senhor ou senhora, tão logo o indivíduo supérfluo desembarque."
Trêmulo, Dosker falou:
Não sei o que fazer.
Não procure Ferry ou Bertold. Comece por aí.
Ele acenou afirmativamente. Era evidente que Freya o impressionara. Esta parte estava decidida.
-' Mat precisará de toda a ajuda possível, das seis em diante. Desde o instante em que seu primeiro ele­mento chegue a Whale's Mouth. Por que você não vai, Dosker? Embora seja um piloto e não um agente, tal­vez possa ajudá-lo.
O veículo ligou o motor irritadamente.
- Por favor, senhor ou senhora, quer pedir.. .
Você vai pelo Telepor com eles? - perguntou Dosker.
Devo viajar às cinco - respondeu Freya. - Vou alugar um apartamento para nós. Se conseguir encon­trar-nos, lembre-se de que eu sou a Sra. Silvia Trent. E Mat, Stuart Trent. Combinado?
Combinado - murmurou Dosker, recuando e fe­chando a porta do veículo.
Este começou a subir imediatamente.
E ela suspirou, aliviada. Cuspindo a cápsula de áci­do prússico, atirou-a à lixeira do veículo e travou o "relógio".
O que havia dito a Dosker era verdade. Ela o sabia. E sabia também que nada podia fazer para dissuadir Matson. Do outro lado, profissionais estariam à espe­ra e, mesmo que não previssem o golpe, mesmo que não houvesse nenhum aviso e não percebessem nenhu­ma conexão entre os dois mil homens espalhados por todo o mundo, pedindo ao mesmo tempo para serem transportados, ainda assim ela sabia que dominariam Mat. Ele não tinha estatura para vencê-los.
Mas ele julgava que sim, porque entrevira uma pos­sibilidade de chegar ao poder. Era um dardo que pene­trara fundo no seu peito e da ferida sangrava a ânsia de poder. Suponhamos que seja verdade. Que haja ape­nas trezentos voluntários a dominar. Era uma simples suposição, mas a esperança e a possibilidade o cegavam.
Mat acreditava ainda que as crianças nascem nos repolhos, pensou, enquanto o veículo a transportava à sede da Lies Incorporated.
Continue a acreditar, Mat.
À recepcionista simpática e extremamente curvilínea Matson Glazer-Holliday disse:
- Meu nome é Stuart Trent. Minha mulher viajou hoje, mais cedo, de modo que estou ansioso por pas­sar sob o fio. Sei que já é quase hora de fechar.
Ela o fitou atentamente, vendo um homem calvo, testa saliente acima dos olhos negros e ansiosos.
- Tem certeza, Sr. Trent, de que deseja...
- Minha mulher já viajou - insistiu, áspero. - Partiu às cinco. Trouxe duas malas. Já devem estar sendo transportadas.
Naquele instante, dois robôs surgiram no escritório da Trails of Hoffman, trazendo duas malas de couro genuíno, que pareciam abarrotadas.
A atraente recepcionista disse:
- Tenha a bondade de preencher estes formulá­rios, Sr. Trent. Verificarei se os técnicos do Telpor estão dispostos a receber mais um, porque, conforme disse, estamos quase fechando.
De fato, o portão de entrada estava trancado.
Matson preencheu os formulários, sentindo apenas um frio, um vazio e um medo irracional. Deus, era me­do de verdade! No último instante, depois que Freya já havia sido transportada para Whale's Mouth, sentia seu sistema nervoso autonômico secretar hormônio de puro pânico, e teve ímpetos de recuar.
Contudo, conseguiu preencher os formulários; por­que, acima do sistema nervoso autonômico, havia a percepção do lóbulo frontal: no momento em que Freya atravessasse, tudo estaria decidido.
De fato, esta era a razão de tê-la enviado na frente. Conhecia sua própria irresolução. Forçando-a a ir, obri­gava-se a concretizar o plano. E tudo correria bem, pensou. Na vida precisamos encontrar um meio de nos ultrapassarmos. Somos nossos próprios e piores inimi­gos.
- Suas injeções, Sr. Trent. - Diante dele, uma enfermeira com agulhas. - Por favor, quer tirar sua roupa?
E indicou um cubículo desinfetado, onde ele entrou e começou a despir-se.
Daí a instantes recebeu as injeções e sentiu os bra­ços doloridos, perguntando a si mesmo se eles já te­riam agido. Seria alguma dose fatal, ministrada sob o disfarce de injeções profiláticas?
Dois técnicos alemães, totalmente calvos - como ele próprio - surgiram simultaneamente, usando os óculos imensos dos operadores do Telpor. O campo, se contemplado durante muito tempo, causava destrui­ção permanente da retina.
- Mein Herr - disse o primeiro técnico, aspera­mente - remova todo peso de sua pessoa. Sie sollen ganz unbedeckt sein. Nenhum material de qualquer es­pécie deve impdir o Starkheit do campo. Todos os objetos, inclusive sua bagagem, seguirão dentro de pou­cos minutos.
Maison acabou de despir-se e, aterrorizado, acompa­nhou-os por uma sala ladrilhada que se abria para uma imensa câmara quase totalmente vazia. Não havia com­plicadas retortas e caldeirões borbulhantes à la Dr. Frankenstein, e sim duas colunas perpendiculares, co­mo as paredes de concreto de um bom campo de tênis, encimadas por ponteiras em formas de taça. Entre as colunas êle se colocaria, qual um boi a caminho do matadouro, e os impulsos do campo se transmitiriam de um pólo a outro, envolvendo-o. E ele morreria, se soubessem quem era, ou partiria da Terra pelo restante de sua vida, ou no mínimo trinta e seis anos, o que vinha a dar no mesmo.
Meu Deus, espero que Freya tenha sido transportada sem complicações. De qualquer modo, a curta mensa­gem dizendo que tudo estava em ordem chegara às suas mãos.
Sr. Trent - disse um dos técnicos, ajustando os óculos - bitte; olhe para baixo, de modo que seus olhos não percebam as emanações do campo. Caso contrário, poderá sofrer alterações na retina.
Certo - respondeu, com um aceno de cabeça. Baixando a vista, quase num gesto de decoro, levou a mão ao peito como se quisesse esconder-se, protegendo-se contra o que de repente se tornou um bom­bardeio entontecedor, vindo simultaneamente de ambos os lados. As correntes de força, absolutamente idênti­cas, congelaram-no. Quem o observasse o julgaria ca­paz de mover-se; mas ele se encontrava totalmente imo­bilizado pelo impulso que passava do anódio ao catódio, onde ele próprio era... o elo iônico? Seu corpo esta­va preso ao campo, e ele sentiu-se penetrado como que por um dissolvente.
Súbito, o impulso da esquerda cessou. Mat oscilou e ergueu o olhar involuntariamente.
Os dois técnicos calvos do Reich haviam desapareci­do. Encontrava-se numa câmara menor, diante de um homem idoso, sentado por detrás de uma escrivaninha, separando cuidadosamente as fichas numeradas de um aglomerado de bagagem - malas e embrulhos.
Suas roupas - disse o funcionário - encontram-se numa cesta de metal à sua direita, marcada com o número 121628. Se está se sentindo meio tonto, há uma cama ali. Pode deitar-se.
Sinto-me bem - respondeu Matson Glazer-Holliday, caminhando, um tanto incerto, para buscar as roupas. Vestindo-se, olhou à volta, indeciso.
Aqui estão suas duas malas - falou o funcio­nário, sem erguer os olhos. - Números 39485 e 39486. Por favor, providencie para que sejam removidas do local. - E consultou o relógio. - Não, ninguém virá agora de Nova Nova York. Não precisa apressar-se.
Obrigado. - Mat pegou uma das pesadas ma­las e encaminhou-se para uma grande porta, indagan­do: - É por aqui a saída?
Por aí sairá na Avenida do Chorão Sorridente - informou o funcionário.
Quero ir a um hotel.
Qualquer veículo da superfície o transportará.
E o funcionário voltou ao seu trabalho, desinteressando-se. Não tinha mais informações a prestar.
Abrindo a porta, Matson saiu para a calçada.
E viu tendas cinzentas.
Freya surgiu ao seu lado. Fazia frio. Ela tremia e le também estremeceu, atraindo-a para si, olhando fixamente as barracas. Eram fileiras e mais fileiras, rodeadas por cercas de arame com quatro metros de altura, encimadas por quatro carreiras de arame far­pado. E cartazes, com anúncios proibitivos. Não era nem preciso lê-los.
- Mat, ouviu falar numa cidade chamada Esparta?
- perguntou Freya.
Esparta - repetiu, erguendo as duas malas.
Deixe. - Ela forçou-o a largar as malas. Algu­mas pessoas andrajosas passaram por eles em silêncio, evitando cuidadosamente reparar na sua presença. - Eu estava errada. E a mensagem que você recebeu era falsa, naturalmente. Mat, julguei...
- Você julgou que seriam fornos crematórios.
Tranquila, jogando para trás a cabeleira negra e erguendo o queixo para encará-lo, Freya respondeu:
São campos de concentração. Modelo soviético, não Terceiro Reich. Trabalhos forçados.
Que fazem? Desbastam o planeta? Mas nos pri­meiros relatórios os satélites diziam que. ..
Parecem estar formando o núcleo de um exérci­to. Começam organizando grupos de trabalhos pesados, para habituar à disciplina. Os rapazes ingressam ime­diatamente no treinamento básico. Os outros... nós provavelmente ficaremos lá.
Voltando-se para onde ela apontava, Mat viu uma rampa conduzindo a uma estrutura subterrânea, com seu mecanismo de descida e, graças a recordações da infância, compreendeu o que significava aquela confi­guração pré-bélica.
Uma autofábrica em diversos níveis, trabalhando continuamente, de modo que não seria toda homeo. Para as operações ininterruptas, as máquinas não ser­viam, não resistiam. Somente turnos alternados de cria­turas humanas mantinham as esteiras em funcionamen­to, isso êle aprendera em 82.
- Seus policiais veteranos são demasiado velhos para treinamento imediato - disse Freya. - A maio­ria, pelo menos. Assim, terão de ir para as barracas como nós. Tenho aqui um número para você e outro para mim.
- Ficaremos separados?
- Tenho também os formulários que devem ser obrigatoriamente preenchidos. Temos de enumerar to­dos os nossos talentos, para que nos possam utilizar.
- Sou velho demais para isso - murmurou ele.
- Então, morrerá. A menos que descubra algum ta­lento.
- Eu tenho um.
Na mala que se encontrava na calçada junto dele havia um transmissor que, embora pequeno, poderia enviar sinais que alcançariam a Terra dentro de seis meses.
Inclinando-se, tirou do bolso uma chave e abriu a mala. Bastava colocar dois centímetros de fita no ori­fício do transmissor, o resto era automático. Ligou a força. Todos os itens eletrônicos imitavam artigos de vestuário, principalmente sapatos. Tinha-se a impres­são de que ele viera a Whale's Mouth para caminhar até o fim da vida, e muito bem calçado.
Por quê? - perguntou a Freya, enquanto pro­gramava os dois centímetros de tape. - Um exército para quê?
Não sei, Mat. É para Theodoric Ferry. Creio que Ferry pretende dominar o exército da Terra, coman­dado por Horst Bertold. No curto espaço de tempo em que estou aqui, falei com algumas pessoas, mas estão apavoradas. Um homem achava que haviam descober­to uma raça não-humanóide e que nos estamos pre­parando para combatê-la nos planetas onde vive. Tal­vez dentro de algum tempo...
Matson ergueu a vista:
- Cifrei a mensagem, que dirá: "Estado militar. Avise Bertold. Será dirigida a Al Dosker e muitas vezes repetida, porque a esta distância o fator ruído...
Um raio laser cortou a parte posterior da sua cabeça.
Freya fechou os olhos.
Um segundo raio do rifle laser dotado de lente teles­cópica destruiu uma mala e depois a outra. Em segui­da, um jovem soldado muito bem trajado apresentou-se tranqüilamente, ainda empunhando a arma. Olhou-a de alto a baixo, lúbricamente, mas sem grande paixão, e depois fitou o homem morto.
- Captamos sua conversa num audiogravador.
Apontou e Freya viu então no telhado do edifício-estação do Telpor uma espécie de rede.
- Aquele homem falou algo sobre "nosso piloto" - disse, dando um pontapé no corpo de Matson Glazer-Holliday. - Vocês devem pertencer à organização Amigos do Povo Unido, não é?
Ela não respondeu. Estava incapaz de falar.
- Venha, boneca - convidou o soldado. - Venha para o seu psicointerrogatório. Nós o adiamos porque teve a bondade (ou foi bastante tola) de informar-nos que seu marido viria a seguir. Mas nunca pensamos... 
Ele tombou, atingido pelo dardo de cianido cefalo-trópico, a baixa velocidade, que Freya disparou, utili­zando seu "relógio". Embora lento, a vítima não havia conseguido fugir. Agitou as mãos infantilmente, sem muito alarme, sem compreender de todo, quando a pon­ta penetrou numa veia do pulso. A morte chegou rápida e silenciosa como para Matson. O soldado oscilou para lá e para cá antes de cair na calçada, e Freya então fugiu.
Chegando à esquina voltou-se para a direita e, en­quanto percorria correndo um beco estreito cheio de lixo, procurou no bolso da capa o audiotransmissor que emitia um sinal de alerta em todas as direções, abran­gendo o planeta inteiro. Todos os elementos da Lies Incorporated que se encontrassem em Whale's Mouth o captariam, se a situação já não estivesse bem clara, e se fosse preciso acrescentar algo ao que já deveriam saber cinco minutos depois de pisarem o solo, após a viagem pelo Telpor. Bem, de qualquer maneira era conveniente fazê-lo. Assim alertava-os oficialmente, por meios técnicos. E era tudo o que podia fazer.
Não possuía transmissor intersistema a longa distân­cia, como o de Matson. Estava impossibilitada, portan­to, de enviar um sinal em micro-onda, que seria cap­tado por Al Dosker no sistema solar, dentro de seis meses. De fato, nenhum dos dois mil policiais da Lies Incorparated o possuía. Mas dispunham de armas. Horrorizada, Freya compreendeu que automaticamen­te se encontrava à frente dos sobreviventes da organiza­ção. Há meses, Matson tomara todas as providências legais para que, por ocasião de sua morte, ela assumis­se o comando. E isso era do conhecimento geral. A notícia circulara em forma de memorando por toda a organização.
Que diria aos agentes em Whale's Mouth? Que Mat­son estava morto, naturalmente, mas que adiantaria isso? Que podemos fazer? - perguntou a si mesma.
Dezoito anos, pensou. Teremos de esperar pela Omphalos, pela chegada de Rachmael ben Applebaum? Até lá já não terá importância. Não para esta geração.
Dois homens corriam na sua direção e um gritou "Lua e Touro", fisionomia alterada pelo medo.
Jack Horaer - respondeu, apática. - Não sei o que fazer. Matson está morto e seu grande transmis­sor destruído. Estavam à espera dele. Eu os conduzi direto a êle. Lamento. - Freya, não conseguindo en­carar os dois agentes da organização, olhava rigida­mente por cima de seus ombros. - Mesmo que utili­zemos as armas, eles nos poderão dominar a todos.
Mas podemos destruir muita coisa antes - disse um dos policiais, um homem de meia-idade, barrigudo, mas rijo veterano da guerra de 82.
Seu companheiro, que segurava uma valise, respon­deu:
Sim, podemos tentar, Srta. Hohn, enviar aquele sinal. A senhorita o tem?
Não - respondeu, mentindo, e eles o sabiam. - Não adianta. O melhor é passarmos por verdadeiros imigrantes. Deixar que nos coloquem nas barracas.
O veterano gorducho, olhar duro, falou:
- Srta. Holm, quando revistarem a bagagem compreenderão. - E voltando-se para o companheiro: - Vamos.
Enquanto ela os observava, os dois agentes da Lies Incorporated armaram uma pequena e complicada ar­ma de tipo desconhecido para Freya. Evidentemente saíra das mais avançadas oficinas de armamento bélico.
O mais jovem disse:
- Envie o sinal chamando para a luta. E continue a transmiti-lo, porque nossa gente o captará tão logo chegue. Lutaremos agora e não mais tarde. Não quan­do nos separarem.
Ela tocou o botão que emitia o sinal. Em seguida, falou calmamente:
Tentarei transmitir uma mensagem para a Ter­ra, via Telpor. Talvez na confusão.. . - Porque have­ria muita confusão quando os homens da Lies surgis­sem e captassem o sinal de alarme. - É possível que ela passe.
Não passará - disse o veterano, olhando de re­lance para o companheiro. - Mas se nos concentrar­mos numa estação transmissora, é possível que consi­gamos dominá-la tempo suficiente para passar uma fita de vídeo, através do Telpor. Ainda que morram os dois mil agentes... - E voltando-se para Freya: - Pode reunir os homens aqui?
- Não disponho de mais padrões de micro-ondas
- respondeu ela, desta vez falando a verdade. - So­mente estes dois.
- Certo, Srta. Holm - ponderou o veterano. - Transmissões em vídeo pelo Telpor são feitas daqui.
- E apontou uma construção de diversos andares, iso­ladas, sem janelas, com a entrada guardada. Ao sol cinzento do meio-dia, Freya captou o brilho de metais.
- Tem o código para transmitir para a Terra?
Sim. Um em cinqüenta. Mat e eu o decoramos. Eu poderia transmiti-lo em áudio em dez segundos.
Quero uma fita em vídeo - falou o veterano, meio inclinado, com um gesto para o cenário que os rodeava. - Algo que possa ser inserido no cabo coaxial e transmitido pela televisão, para que todos fiquem sa­bendo. Todos. Os que ficaram na Terra, os inocentes que estão além dos portões por onde só se viaja num sentido.
E para sempre, pensou Freya. Por que dezoitos anos são, na verdade, o infinito.
Qual é o código? - perguntou o agente mais jovem.
"Esqueci de trazer meus lenços de cambraia ir­landesa. Por favor, envie pelo Telpor." - E explicou:
- Mat e eu estudamos todas as possibilidades lógicas. Esta é a que mais se aproxima. Esparta.
- Sim - murmurou o veterano. - O estado guer­reiro. O agressor. Bem, geograficamente está bastante próximo de Atenas, embora não o bastante. - E voltando-se para o companheiro. - Conseguiremos entrar e transmitir o sinal de áudio?
E apanhou a arma que tinham acabado de reunir.
- Claro - respondeu o mais moço, com um movi­mento de cabeça.
O mais velho ligou-a.
Freya percebeu então do que se tratava e correu, gri­tando. Correu sem parar, lutando por afastar-se daque­la forma aperfeiçoada de gás para os nervos. E deixou de pensar coerentemente. Correu, apenas.
As duas sentinelas armadas correram também.
Com o metabolismo isolado pelos hormônios antído­tos pré-injetados, os dois agentes da Lies Incorporated aproximaram-se da construção sem janelas e pelo cami­nho iam sacando pistolas laser com lentes telescópicas de longo alcance.
Foi a última coisa que Freya viu. Naquele ponto, o pânico a dominou de todo e ela mergulhou nas tre­vas. Trevas povoadas de gente de todos os tipos, que ela avistava de relance e sentia correr ao seu lado. Não estava só. Havia uma esperança no futuro.
Mat, ela pensou. Você não terá seu estado policial aqui em Whale's Mouth, conforme eu preveni. Eu lhe avisei. Mas talvez eles também não tenham, se a men­sagem cifrada conseguir passar.
E se, na Terra, existir alguém bastante inteligente para agir.
8
Em sua nave que viajava pelas cercanias de Plutão, Al Dosker recebeu a mensagem transmitida por Freya Holm, de Whale's Mouth para a sede da Lies Incorpo­rated em Nova Nova York.
ESQUECI DE TRAZER MEUS LENÇOS DE CAMBRAIA IRLANDESA. POR FAVOR, ENVIE PELO TELPOR. FREYA.
Dirigiu-se tranqüilamente à popa da nave, por que a tal distância do Sol tudo parecia entrópico, mais len­to, como se o relógio sideral girasse mais devagar.
Abrindo o livro de códigos, percorreu com o dedo as páginas, detendo-se no E, onde encontrou a cha­ve. Em seguida, inseriu a mensagem no computador que continha os carretéis relativos ao conteúdo da caixa.
Uma fita de papel com palavras impressas começou a surgir. Dosker leu:
Ditadura milhar. Vida em barracas à maneira espar­tana. Preparação para a guerra contra inimigo desco­nhecido.
Dosker ficou imóvel um instante. Depois tomou a mensagem cifrada original, transmitida pela Empresa Videofone, e inseriu-a de novo no computador. A men­sagem foi repetida com nitidez - impossível negar o que dizia. E não podia haver dúvidas, porque Matson Glazer-Holliday havia programado pessoalmente o computador.
Das cinqüenta possibilidades, entre o paraíso e o in­ferno, justamente aquela, pensou Dosker.
De certo modo, já era o caminho do inferno. Tão ruim como ele previra.
- Bem, agora sabemos.
Sabemos... e não podemos prová-lo.
A fita de papel, a mensagem cifrada, por incrível que parecesse, era totalmente inútil, sem valor.
A quem a levaremos? - perguntou a si mesmo.
Sua organização, a Lies Incorporated, estava trun­cada graças à decisão de Mat de enviar seus melho­res homens para Whale's Mouth. Só restava o pessoal do escritório de Nova Nova York, e ele, Dosker.
E, naturalmente, Rachmael ben Applebaum, viajan­do pelo espaço na Omphalos, ocupado em estudar gre­go-
Da sede de Nova Nova York, uma segunda mensa­gem cifrada chegou. Colocou-a, desta vez rapidamente, no computador. Leu-a dominado por tremenda vergo­nha. A vergonha de não ter conseguido impedir Mat-son de fazer o que planejava. E sentiu todo o peso moral da situação sobre seus ombros.
NÃO PODEMOS RESISTIR. VIVISSECÇÃO EM CURSO.
Poderei ajudá-los? - perguntou a si mesmo, domi­nado agora pela raiva impotente. Maldito Matson, por que fez isso? Ambicioso demais. E levou dois mil ho­mens e Freya Holm para serem liquidados onde nós não podemos interferir. Porque "nós" já nada significa.
Contudo, podia fazer um gesto final. Seu esforço pessoal, independente daquele destinado a salvar a mul­tidão de terrestres que nos próximos dias ou semanas passariam pelos portões do Teipor, dirigindo-se a Whale's Mouth. Um esforço para salvar alguém que merecia ser desviado de um encargo que ele próprio se impusera. Uma missão que aquelas duas mensagens cifradas, via Teipor e Empresa Videofone, tornaram obsoleta.
Correndo o risco de ser surpreendido por um moni­tor da UN, Al Dosker transmitiu um sinal de rádio para o Omphalos.
Quando alcançou a nave, agora em hipervelocidade e para além do sistema solar, Dosker perguntou ríspi­do:
Quais as possibilidades de regresso, Píndaro?
Até agora, tudo não passa de fábulas - disse a voz de Rachmael, distante, misturada com estática, com as interferências do intersistema, enquanto a torre cap­tora a bordo da nave de Dosker girava, tentando rece­ber o longínquo impulso. - Mas você não deveria en­trar em contato comigo - disse Rachmael. - A me­nos que...
- A menos que houvesse uma emergência. Na Lies Incorporated temos um método de cifragem a toda pro­va. Porque a informação não se encontra no que foi transmitido. Ouça com atenção, Rachmael.
Ampliadas pelo transmissor da nave, suas palavras, segundo esperava, chegavam à nave Omphalos. Uma parte do equipamento registrava o que ele dizia e trans­mitia diversas vezes - uma multiplicação do sinal para combater, em base estatística, o elevado ruído de fun­do. Utilizando o princípio da repetição, esperava trans­mitir sua mensagem a Rachmael.
Você conhece a piada do prisioneiro que se põe de pé e grita: '"Três", e todo mundo ri?
Sim - respondeu Rachmael, alerta. - Porque "três" refere-se a uma anedota que todos os prisioneiros conhecem, por estarem ali confinados há tanto tempo.
Por esse método funcionou hoje uma transmissão de Whale's Mouth - respondeu Dosker. - Temos um computador binário para revelar a cifra. A princípio, atirávamos uma moeda para cada letra do alfabeto. Cara era zero, portão fechado. Coroa significava um, ou portão aberto. Ou zero, ou um, esta é a maneira de o computador operar. Em seguida, inventamos cinqüen­ta mensagens-unidades descrevendo as condições pos­síveis do outro lado. As mensagens eram escritas de modo que cada uma consistia numa única seqüência de unidades e zeros. - Sua voz soava áspera, rouca. - Acabo de receber uma mensagem que, quando re­duzida aos elementos do sistema binário, consiste no seguinte: 11101001100111010110000010011010100-11100001001 111 10100000111. Nada existe nesta se­qüência binária que possa ser decifrada, simplesmente porque age como um dos cinqüenta sinais conhecidos únicamente do nosso computador, aqui na minha nave, e que aciona uma determinada fita. Mas sua extensão dá aos criptógrafos uma falsa impressão de mensagem intrínseca.
E sua fita, que foi programada... - falou Dosker.
A senha é Esparta. - E silenciou.
Um estado guerreiro? - perguntou Rachmael.
Sim.
Contra quem?
Não disseram. Chegou uma segunda mensagem, mas acrescentava relativamente pouco. Veio nítida e comunicando que não podem resistir. Estão sendo di­zimados pelos militares.
Tem certeza de que a informação é autêntica?
Somente Freya Holm, Matson e eu possuímos as caixas para a interpretação das cifras nas quais as men­sagens podem ser inseridas como seqüência binária. Foram enviadas por Freya, evidentemente. A primeira, pelo menos, está assinada por ela. - E concluiu: - Nem sequer tentaram assinar a segunda.
Neste caso, voltarei. Não há mais sentido na viagem.
- Cabe a você decidir. - Aguardou, perguntando a si mesmo qual seria a decisão de Rachmael ben Applebaum. Na verdade, não faz diferença, porque a verdadeira tragédia está se passando há vinte e quatro anos-luz de distância e não é a destruição dos dois mil elementos da Lies Incorporated, mas dos quarenta mi­lhões que viajaram antes. E os oitenta milhões ou mais que os seguirão, já que, embora tenhamos conhecimento do que se passa, não dispomos de meios para co­municá-lo às massas pelos canais de informação...
Estava pensando que quando chegassem as naves da UN, três pelo menos, deslizando quais negros peixes, silenciosas, ao alcance de um disparo, a última nave da Lies seria reduzida a pedacinhos.
Atoleimado, passivo, flutuava no seu traje dotado de ar, calor, água, transmissor, depósito de excreções, tubos de alimento... e flutuaria aparentemente por tempo infinito, pensando em coisas vagas e até agra­dáveis, num planeta com florestas verdes, mulheres, os ruídos das reuniões sociais, mas sabendo que só vive­ria um curto espaço de tempo, perguntando a si mesmo se as naves da UN teriam liquidado a Omphalos também. Era óbvio que seus vigilantes monitores haviam captado sua onda, mas se fizeram o mesmo com a de Rachmel, que operava em outra faixa, era impos­sível saber. Espero que não, pensou. Espero que seja apenas eu.
Continuava esperando quando as naves da UN o ro­dearam e enviaram um aparelho parecido com um ro­bô, que o pescou, tendo o maior cuidado de não ras­gar seu traje. Espantado, pensou: Por que não fazem simplesmente um orifício no tecido, para que saia o ar e o calor, e me deixam flutuando aqui até morrer?
Não compreendia. Uma escotilha da nave da UN abriu-se, e ele foi arrastado para dentro, qual uma presa. A escotilha fechou-se e ele sentiu a gravidade atuando na nave ultramoderna e requintada. Deixou-se ficar deitado, imóvel, por uns instantes e depois levan­tou-se devagar.
Diante dele, um oficial armado da UN disse:
- Tire seu traje de emergência, compreendeu?
Falava com forte sotaque e Dosker percebeu, pela braçadeira que usava, que ele pertencia à Liga Nórdica.
Peça por peça, Dosker livrou-se do traje de emer­gência e falou:
- Parece que vocês, godos, é que estão mandando. Na UN, pelo menos. Como seria em Whale's Mouth?
O oficial, continuando a apontar a pistola laser, re­trucou:
- Sente-se. Estamos regressando à Terra. Nach Terra, compreende?
Logo atrás, um segundo oficial, este desarmado, en­contrava-se diante da mesa de controle. A nave viaja­va em alta velocidade na direção do terceiro planeta, e Dosker calculou que só teriam uma hora de percurso pela frente.
O Secretário-Geral quer falar com o senhor. En­tretanto, acalme-se e aguarde. Gostaria de ver uma revista? Temos UN Assistência aos Povos Atrasados. Ou prefere um filme de entretenimento?
Nada - respondeu Dosker, olhando em frente, obstinado.
Localizamos a Omphalos pela sua onda transmis­sora, conforme fizemos com sua nave.
Ótimo - murmurou Dosker, irônico.
Contudo, devido à distância, levaremos vários dias para alcançá-la.
Mas alcançarão, naturalmente.
Certamente - respondeu o oficial, com forte so­taque sueco. Ele não tinha dúvidas. Nem Dosker.
Era uma simples questão de tempo. Uns poucos dias, como dissera o oficial.
Dosker continuou imóvel, em expectativa, enquanto a nave da UN voava para a Terra, em direção de Nova Nova York e Horst Bertold.
Na sede da UN em Nova Nova York foi submetido a um completo exame físico. Médicos e enfermeiras li­gavam um aparelho após outro, sem localizar qual­quer dispositivo subcutâneo.
- Você sobreviveu de maneira espantosa - infor­mou finalmente o médico, permitindo que se vestisse.
- E agora? - perguntou Dosker.
O Secretário-Geral está pronto para vê-lo - disse o médico, rápido, anotando sua ficha, com um gesto de cabeça em direção à saída.
Vestindo-se, Dosker encaminhou-se lentamente para a porta e abriu-a.
Apresse-se, por favor - pediu Horst Bertold.
Por quê? - perguntou Dosker, fechando a porta.
Sentado diante de uma escrivaninha antiga, de car­valho, o Secretário-Geral da UN ergueu a vista. Era um homem pesadão, de cabelos ruivos, nariz longo e lábios descorados e finos. A cabeça era pequena, mas os ombros, os braços e o tórax salientavam-se, como se na mocidade tivesse sido um atleta. As pernas e os pés revelavam o tono de inúmeras excursões na infân­cia e de quilômetros de passeios de bicicleta. Era um homem do ar livre, preso a uma escrivaninha, ansioso por uma amplidão que não mais existia. Um homem extremamente saudável, do ponto de vista físico, pensou
Dosker. Estranho que, apesar de tudo, êle sentisse uma boa impressão.
- Captamos sua comunicação com a Omphalos - disse Bertold, num inglês perfeito. De fato, muito per­feito. Lembrava uma fita gravada e provavelmente fora assim que aprendera o idioma. Nesse ponto, a impres­são não era tão agradável. - Foi assim, portanto, que localizamos ambas as naves. Sabemos também que é agora o mais alto executivo da Lies Incorporated, uma vez que o Sr. Glazer-Holliday e a Srta. Holm via­jaram via Telpor, sob pseudônimos, naturalmente, para Whale's Mouth.
Dosker deu de ombros, sem responder. Não daria nenhuma informação grátis. Aguardaria.
-- Contudo... - Hcrst Bertold bateu com a pena num documento que se encontrava diante dele. - Isto é uma transcrição do diálogo entre sua nave e a da­quele fanático Rachmael ben Applebaum. Foi você quem iniciou a transmissão pelo rádio. Você quem transportou a Omphalos. - Bertold ergueu a vista e seus olhos azuis faiscaram, penetrantes. - Colocamos os nossos criptógrafos na seqüência em código que transmitiu, a mesma que recebera anteriormente da Em­presa Videofone. Intrinsecamente nada significa. Mas nos destroços de sua nave localizamos o seu compu­tador, a caixa intata com suas cinqüenta fitas. Comparamos a transmissão e gravamos a seqüência binária. Foi assim que você informou a ben Applebaum.
Ficou surpreendido?
Claro que não - replicou Bertold. - Por que enganaria seu próprio cliente? E ao risco, um risco que não deveria ser corrido, conforme se verificou mais tarde, de revelar a localização de sua nave? - A voz de Bertold transformou-se num murmúrio pensativo: - Ainda não estamos satisfeitos. Verificamos os nos­sos monitores e. ..
Estão sendo liquidados, do outro lado - disse Dosker. - Os dois mil agentes, Mat e Freya. - Fala­va com voz monótona, revelando a verdade porque sa­bia que a descobririam a qualquer momento. Consegui­riam todas as informações, todas as lembranças, moti­vos, planos, projetos. Afinal, sua organização, muito menor que a UN, pudera fazê-lo durante vários anos, usando de numeroso pessoal, de psiquiatras e suas téc­nicas.
Trails of Hoffman Limited e Theodoric Ferry controlam totalmente a Neocolônia. A UN não dispõe de pessoal em Whale's Mouth. Só sabemos o que re­cebemos, por cortesia, em áudio e vídeo, os sinais-informações via Telpor, durante esses anos de coloni­zação. Nossos primeiros satélites-monitores estão ina­tivos desde o início da jurisdição THL.
Houve uma pausa e Dosker perguntou, incrédulo:
- Então, tudo isso é novidade para vocês?
Acreditamos em quinze anos de video-tapes e de áudio. Não vimos razão para verificar pessoalmen­te. A THL ofereceu-se para financiar a colonização. Eles pagam as contas e nós lhes concedemos a licen­ça porque são proprietários da patente e equipamento Telpor. As patentes do Dr. von Einem estão na posse exclusiva da THL. Êle dispunha dos meios legais para tomar esta decisão. E isto - Bertold pegou o documento que ficava no alto da pilha e mostrou-o a Dosker; era a transcrição da sua conversa pelo rádio com ben Applebaum. - Isto é o resultado.
Diga-me o que significam - pediu Dosker. Por­que ele ignorava o que significavam. Vira as mensa­gens originais chegando, compreendera o sentido lite­ral das palavras. Apenas isso.
O Secretário-Geral da UN explicou:
- Com os quarenta milhões de colonos, Ferry cons­truiu um exército equipado com as mais modernas e aperfeiçoadas armas. Não existe "raça não-humanóide", nenhuma cultura estranha a combater. Se houves­se, nossos monitores não tripulados as teriam captado. Já alcançamos todos os sistemas estelares da nossa galáxia. - E fixando Dosker: - Somos nós, a UN, o inimigo. Contra nós é que Theodoric Ferry pretende lutar, depois que numerosos colonos tenham viajado. Então, o aspecto "mão única" do teletransporte revela­rá subitamente que o chamado Teorema Um era falso.
- Voltarão por suas próprias çstações de Telpor?
E nos dominarão - continuou Bertold. - Mas não agora. Ainda não estão suficientemente preparados. - Como para si mesmo, acrescentou: - Pelo menos é o que cremos. Estudamos a amostragem dos grupos que emigraram por último. Ele não pode dispor de mais de um milhão de homens armados no momento. Quanto ao armamento, podem ter transportado algum, ultra-apurado. Afinal von Einem está trabalhando para eles.
Onde está von Einem? Em Whale's Mouth?
Nós o localizamos imediatamente. - Os dedos de Bertold amassaram o documento. - E já consegui­mos a prova de que estávamos com a razão. Von Einem tem viajado durante todos esses anos da Terra para Whale's Mouth e de lá para cá. Acionou os instrumen­tos Telpor nos dois sentidos. Então, está provado, Dosker. Provado!
9
Quando Rachmael ben Applebaum percebeu as si­lhuetas sombrias das naves da UN aproximando-se para escoltar a Omphalos, compreendeu que, mesmo que tudo o mais fosse mentira, aquilo era verdade: a UN o descobrira e com certeza também a Dosker. Assim, ligou o transmissor de micro-ondas e entrou em conta­to com o comandante local das naves perseguidoras.-
- Acreditarei quando ouvir a voz de Al Dosker - anunciou. E para si mesmo acrescentou: - E quando verificar pessoalmente se não há sinais de uma lava­gem cerebral. Mas por que diriam tudo aquilo se não fosse verdade? Eles o haviam localizado. Êle e a Omphalos eram agora presas das naves intersistema da vasta estrutura da UN, que se estendia de planeta a planeta. Por que inventar um ardil quando não havia necessidade, nenhuma força capaz de representar uma resistência?
Deus do céu, se isto é verdade, então só podemos confiar em Horst Bertold. Deixamo-nos cegar pelos preconceitos. Von Einem é alemão e Horst Bertold também é, mas isso não prova que estejam trabalhan­do juntos, sejam colaboradores secretos, como dois Ubangis ou dois judeus. Adolf Hitler não era sequer alemão... assim nossa própria maneira de raciocinar nos traiu. Mas talvez agora possamos acreditar nisso. Verificar. A Nova Alemanha Unificada pro­duziu o Dr. von Einem e Trails of Hoffman, mas pro­duziu também Horst Bertold.
Veremos, disse Rachmael consigo mesmo.
- Aguardarei até chegar a Nova Nova York, à se­de da UN. Quero falar a Horst Bertold e ver compro­vada esta notícia pelo sinal macrorrádio.
Acabara de saber que às seis horas, horário de Nova Nova York, naquela manhã, as tropas da UN haviam invadido todas as estações da Trails of Hoffman, apossando-se dos instrumentos do Telpor, arbitrariamente e sem aviso de qualquer espécie, detendo toda a imi­gração para Whale's Mouth.
Doze horas depois, Rachmael foi conduzido por uma secretária exausta e preocupada ao gabinete do Secretário-Geral da UN.
- O fanático - ironizou Bertold, observando-o. - O idealista que entusiasmou Matson Glazer-Holliday, levando-o a tentar um golpe de estado em Whale's Mouth. - E voltando-se para seu auxiliar: - Traga o aparelho Telpor.
Segundos depois, o mecanismo bipolar foi ruidosa­mente introduzido no gabinete do líder da UN, acom­panhado de um técnico totalmente arrasado. Sem óculos, parecia assustado e pequeno.
Voltando-se para ele, Horst indagou:
Isto opera nos dois sentidos? Ou somente em um? Zwei oder ein? Antworie.
Só para a frente, Mein Heir Sekretar General - respondeu o técnico, trêmulo. - Como o Teorema Um demonstra, a recessão da matéria em direção a...
- Traga os nossos psiquiatras - disse Horst Ber­told ao auxiliar. - Podem começar pelas máquinas EEG.
Ao ouvir isso, o técnico do Telpor, totalmente inti­midado, falou: - Dasz brauchen Sie nicht.
- Ele diz que vai cooperar - traduziu Bertold para Rachmael. - Não precisaremos dos psiquiatras. Inter­rogue-o. - E fez um violento gesto de cabeça em di­reção àquele homem de bata branca, que ajudara na emigração de milhões de seres humanos inocentes. - Pergunte se o Telpor funciona nos dois sentidos?
Quase inaudivelmente, o técnico respondeu:
Beide. Nos dois sentidos.
Nunca houve Teorema Um - gritou Bertold.
Sie haben Recht - concordou o homem, com um aceno afirmativo de cabeça.
Tragam Dosker - ordenou Bertold, à exausta secretária.
Ao entrar, Dosker disse imediatamente a Rachmael:
- Freya ainda está viva - e fez um gesto em dire­ção ao Telpor. - Entramos em contato por intermédio disto. Mas... - hesitou.
- Matson Glazer-Holliday está morto - falou Bertold. - Foi assassinado. Mas quase metade do pessoal da Lies Incorporated continua vivo e espalha­do pelas diversas instalações da Neocolônia. Começa­mos a dispô-los em bases estratégicas, equipados com o tipo de arma de que poderão se utilizar imediatamen­te. Dentro em breve tentaremos organizar comandos. Creio que poderemos fazer muita coisa com eles.
- O que, por exemplo? - perguntou Rachmael, que se sentia impotente. Tudo estava acontecendo sem ele, enquanto viajava inutilmente através do espaço si­deral.
Foi o que o Secretário-Geral da UN leu em sua fi­sionomia.
Você chamou a atenção de Matson - observou. - Isso o levou ao golpe fracassado, à mensagem de Freya Holm para Dosker e daí para a Omphalos, e que nos informou da realidade oculta sob o disfarce de Theodoric Ferry. Um disfarce cujo estigma moral vimos carregando nesses últimos quinze anos. Tudo se baseia no axioma fundamental de que o teletransporte só podia ser feito num sentido... Contudo, Trails of Hoffman cometeu um erro tão grande quanto o seu disfarce, ao permitir que os dois mil veteranos da Lies viajassem. - E voltando-se para Dosker: - Mas isso não bastaria. Com o nosso apoio tático, porém. ..
Não bastaria nem para a saída - replicou Dos­ker - uma vez que dominaram Matson imediatamen­te. Ele nem teve chance de agir. É provável que nem sequer tenha percebido. Não viveu o suficiente para isso. De qualquer modo, talvez consiga salvar Freya. Quer tentar?
- Sim - respondeu Rachmael imediatamente. E voltando-se para Horst Bertold: - Podem fornecer-me equipamento? Telas defensivas, senão armas ofen­sivas? E irei sozinho.
Era possível que na confusão não o notassem. Whale's Mouth transformara-se num campo de bata­lha, onde havia muitos figurantes. Um homem isolado era apenas um algarismo, um inseto. Entraria desperce­bido e só assim poderia descobri-la, como uma enti­dade demasiado insignificante para ser considerada no vasto conjunto em conflagração. No contexto da luta pelo poder, que já destruíra a Lies Incorporated, um contendor fora liquidado de início e agora restavam apenas os dois monólitos, de um lado a THL e do ou­tro sua antiga e sábia antagonista, a UN, com as raí­zes da vitória bem fincadas no século anterior. A UN tinha um avanço de cinqüenta anos, refletiu.
Mas Trails of Hoffman Limited possuía o gênio in­ventivo do quase senil, mas ainda genial Dr. Sepp von Einem. E o inventor do Telpor talvez não houvesse esgotado sua veia criativa.
Perguntou a si mesmo se Horst Bertold teria pensa­do nisso.
Não importava, porque se von Einem produzisse algo do mesmo valor - ou da mesma relevância - a descoberta surgiria agora.
Nas ruas da Neocolônia, fossem quais fossem os in­ventos do Dr. Sepp von Einem e da THL nos últimos anos, já estariam em pleno uso. Porque, para todos os participantes, chegara o Dia da Ira. Como animais selvagens estavam sendo testados na arena. E Deus aju­de o contendor que fracasse, pensou Rachmael. Por­que naquela luta só haveria um sobrevivente. O ven­cido não seria agraciado nem com uma existência frustrada. Não naquela arena.
Quanto a ele próprio, só tinha uma tarefa, na sua opinião: trazer Freya Holm em segurança para a Terra.
A viagem de dezoito anos, a odisséia a bordo da Omphalos, estudando grego para poder ler no origi­nal as Bactiae, aquela fantasia imatura desfizera-se sob o impacto da situação real, a luta em curso não daqui a dezoito anos, mas naquele instante, nas seis mil es­tações de Whale's Mouth, via Telpor.
Sein Herz voll Hasz geladen - disse Horst Bertold para Rachmael. - Fala iídiche? Ou compreende?
Falo um pouco de iídiche, mas isso é alemão. "Coração pesado de ódio". De onde vem isso?
Da Guerra Civil Espanhola - respondeu Ber-tol. - De uma canção da Brigada Internacional, constituída na maioria de alemães que haviam deixado o Terceiro Reich para lutar na Espanha contra Franco, na década dos trinta. Eram comunistas, suponho. Mas estavam combatendo o fascismo e muito cedo; e eram alemães. Assim, houve sempre "bons" alemães. Aque­le homem, Hans Beimler, odiava o nazismo e o fas­cismo em todos os seus estágios e manifestações. - Houve uma pausa: - Combatemos também os nazis­tas, nós, os "bons alemães"; verges'uns nie. Não nos esqueça nunca - pediu Bertold tranqüilamente. - Porque não entramos na luta apenas nas décadas de 50 e 60, mas desde o início. Os primeiros seres huma­nos a lutar até a morte, a matar e ser assassinados pelos nazistas, foram os...
- Alemães.
- E a Terra não deveria esquecer isso - disse Ber­told a Rachmael. - Como espero que não esqueçam quem, neste momento, está combatendo o Dr. von Einem e os elementos que a éle se aliaram, como Theo-doric Ferry, seu chefe, que, aliás, é americano. - E sorriu para Rachmael. - Mas existem também "bons" americanos, apesar da bomba A lançada sobre os ja­poneses, sem poupar mulheres, velhos e crianças.
Rachmael ficou em silêncio. Não havia resposta para aquilo.
- Nós o poremos em contato com um especialista bélico - falou Bertold, então - para que ele deter­mine que material você deve levar. E depois, boa sor-te. Espero que traga a Srta. Holm de volta. - Com um leve sorriso, logo voltou-se para outros assuntos.
Um oficial da UN tocou o braço de Rachmael.
- Estou encarregado do seu problema - explicou.
- De agora em diante fica por minha conta. Diga-me, Sr. ben Applebaum, quais as armas modernas que está acostumado a manejar. E se recentemente esteve ex­posto a lutas neurológicas e bactericidas.
Não tive absolutamente nenhum treinamento mi­litar - respondeu Rachmael. - Nem modulação anti-neuro ou bactericida.
Podemos ajudá-lo - disse o oficial. - Há equi­pamento que não exige experiência prévia. Contudo...
- fez um sinal na folha presa ao seu bloco. - Isto faz alguma diferença. Oitenta por cento do material de que dispomos seria inútil para o senhor. - Sorriu, encorajador. - Mas que isto não nos desanime, Sr. ben Applebaum.
Não desanimarei - falou Rachmael, decidido. - Afinal, viajarei para Whale's Mouth pelo Telpor.
Sim, dentro de uma hora.
O homem antiteletransporte será teletransportado - murmurou. Em lugar de viajar dezoito anos a bordo da Omphalos. Ironia.
 É moralmente capaz de empregar um gás para os nervos, ou preferiria...
Qualquer coisa que traga Freya de volta. Qual­quer coisa, exceto as armas de fósforo e os produtos de petróleo em geléia. Não os usarei, assim como não quero saber dos destruidores da medula óssea. Deixe isso de lado. Mas projéteis de chumbo, atirados à an­tiga, isso eu aceito, assim como as armas laser.
E perguntou a si mesmo que variedade de arma havia liquidado Matson Glazer-Holliday, o mais pro­fissional dos elementos do seu setor.
Temos algo novo - explicou o oficial da UN, consultando uma lista. - E, segundo o Departamento de Defesa, muito promissor. É um aparelho que esta­belece um campo que coagula o...
Pode equipar-me. E transportar até onde ela se encontra.
- Imediatamente - prometeu o oficial da UN, conduzindo-o rápido por uma esteira em alta velocida­de a uma sala lateral: o Depósito de Armamentos Avançados da UN.
Numa estação da Trails of Hoffman Limited, Jack, Ruth McElhatten e seus dois filhos saíram de um táxi aéreo. Um mecanismo automático carregou a bagagem - sete malas gastas, abarrotadas, pedidas de emprés­timo quase todas - e eles penetraram no pequeno e moderno edifício que seria sua última pousada na Terra.
Aproximando-se do balcão, Jack McElhatten pro­curou um empregado para atendê-los. Poxa, pensou; exato quando a gente decide fazer a Grande Mudança, eles resolvem sair para um cafezinho.
Um soldado uniformizado da UN, com uma braça­deira que o identificava como membro da divisão UAR de elite, aproximou-se:
- Que desejam?
Diabo, viemos aqui para emigrar. Trouxe o di­nheiro. - E procurou a carteira. - Onde estão os formulários para preenchermos? Sei que precisamos tomar injeções e. ..
Senhor, tem visto seus veículos de informação nas últimas quarenta e oito horas? - perguntou o sol­dado com delicadeza.
Estivemos fazendo as malas - interveio Ruth McElhatten. - Por quê? Que houve? Aconteceu algu­ma coisa?
Então, através de uma porta entreaberta, Jack McElhatten avistou o Telpor. E seu coração sofreu uma reviravolta de medo e antecipação. Ver as colunas gê­meas, as superfícies polares do Telpor, era o mesmo que avistar a fronteira. Mentalmente reviu as paisa­gens cobertas de relva, quilômetros e quilômetros de vegetação...
Leia este aviso, senhor - disse o soldado, apon­tando para um quadrado branco, com palavras negras tão deselegantes que antes mesmo de as ler Jack McElhatten sentiu apagar-se o brilho, a maravilha da­quela visão interior.
Oh, meu Deus - murmurou Ruth, ao seu lado, lendo o aviso. - "A UN fechou todas as agência da Telpor. A emigração foi suspensa." - E fitando o marido abismada: - Jack, diz que é ilegal emigrar!
Mais tarde, senhora, a emigração continuará - disse o soldado. - Quando a situação se esclarecer.
E afastou-se para atender a outro casal com quatro filhos que entrava nos escritórios da Trails of Hoffman.
Pela porta ainda entreaberta, McElhatten viu, in­crédulo, quatro operários muito ocupados em cortar a fogo o equipamento Telpor.
Com um esforço, leu o aviso.
O soldado bateu-lhe no ombro, com delicadeza, e indicou um aparelho televisor próximo, diante do qual já se encontravam o outro casal e os quatro filhos.
- Aquilo é a Neocolônia - apontou o soldado. - Estão vendo? - Seu inglês não era dos melhores, mas ele tentava explicar. Queria que os McElhatten compreendessem o porquê.
Aproximando-se do vídeo, McElhatten viu constru­ções cinzentas, parecendo barracas, com pequeninas janelas. E altas cercas. Olhou sem entender. Mas, sub­conscientemente compreendia muito bem. Não era se­quer preciso ouvir a fita gravada, o locutor da UN.
- Meu Deus, é um campo de concentração - mur­murou Ruth.
Houve um sopro de fumaça e os andares superiores de uma construção de cimento desapareceram. Figuras minúsculas espalharam-se para todos os lados, e armas de fogo rápido soaram no back-ground, sublinhando a voz do locutor de sotaque britânico. Um comentário tranqüilo, equilibrado, explicava o que não precisava ser explicado.
Pelo menos depois da cena.
- Era assim que viveríamos do outro lado? - per­guntou Ruth ao marido.
Houve um silêncio. Depois, McElhatten voltou-se para a mulher e os filhos, dizendo:
- Vamos para casa.
E fez sinal a um robô para que apanhasse sua ba­gagem mais uma vez.
- Mas a UN não nos poderia ajudar? - protestou Ruth. - Eles têm tantos serviços de assistência.
- A UN está nos protegendo agora - respondeu o marido, indicando os operários que desmontavam a unidade Telpor.
Mas tão tarde...
Não foi tarde demais.
E fez sinal ao robô para depositar as malas na cal­çada. Evitando a multidão que passava, o tráfego de pedestres, procurou um táxi aéreo que os levasse, a ele e a sua família, novamente ao detestável e exíguo apartamento.
Um homem que distribuía panfletos aproximou-se, entregando-lhe um. McElhatten aceitou-o, pensativo. Era dos Amigos do Povo Unido e dizia em letras gar­rafais:
UN DESCOBRE TIRANIA NA COLÔNIA Em voz alta falou:
- Têm razão. Os loucos, os lunáticos, como aque­le camarada que queria fazer uma viagem de dezoito anos por nave interestelar. - E dobrando cuidadosa­mente a folha, guardou-a no bolso para ler mais tarde. - Espero que meu chefe me aceite de volta.
Estão lutando - disse Ruth. - Via-se na te­levisão. Mostraram os soldados da UN e outros com uniformes estranhos, que nunca vi em toda a minha vida.
Acha que poderia esperar-me no táxi com as crianças, enquanto eu descubro um bar para tomar al­go bem forte?
- Claro que sim - concordou Ruth.
Um táxi descia, atraído. Parou junto à calçada e aos quatro, com seu acúmulo de bagagem.
- Quero bourbon e água. Duplo - disse Jack McElhatten. E depois iria apresentar-se ao centro de recrutamento da UN.
Ainda não sabia para que, mas eles diriam.
Sua ajuda era necessária, ele o sentia no sangue. Era preciso ganhar a guerra e depois, daí a alguns anos, não dezoito, como dizia aquele doido a quem haviam aludido os jornais, poderiam emigrar. Mas an­tes era necessário lutar. Conquistar de fato Whale's Mouth. Pela primeira vez.
E antes disso ainda... dois drinks.
Tão logo viu a bagagem instalada, entrou com a fa­mília no táxi aéreo, dando o nome do bar aonde se diri­gia, freqüentemente, após o trabalho. O táxi introduziu se no denso e infindável tráfego supraterrestre, onde lei era "primeiro eu".
E Jack McElhatten voltou a sonhar com planícies verdejantes, tocadas pelo vento, por onde vagueavam pequeninos animais que não mostravam medo porque ninguém pretendia fazer-lhes mal. Mas a consciência da realidade permaneceu paralela ao sonho e viu am­bos ao mesmo tempo, enquanto punha o braço ao re­dor dos ombros da mulher e a apertava contra seu peito, em silêncio.
O táxi, manobrando habilmente por entre os inúme­ros veículos, dirigiu-se ao bar da parte leste da cidade Conhecia o caminho. Conhecia também o seu dever.

 

 

                                                                  Philip K. Dick

 

 

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