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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EXPIAÇÃO / Ian Mcewan
EXPIAÇÃO / Ian Mcewan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

No dia mais quente do Verão de 1935, Briony Tallis, de 13 anos, vê a irmã Cecilia despir-se e mergulhar na fonte que existe no jardim de sua casa.
É também observada por Robbie Turner, um amigo de infância que, à semelhança de Cecilia, voltou há pouco tempo de Cambridge. Nesse dia, a vida das três personagens mudará para sempre. Ao ultrapassarem uma fronteira que, à partida, nem sequer concebiam, Robbie e Cecilia tornam-se vítimas da imaginação da irmã nova. Briony terá presenciado mistérios e perpetrado um crime que procurará expiar ao longo de toda a sua vida.
Expiação é, porventura, a melhor obra de Ian McEwan. Descrevendo a infância, o amor e a guerra, a Inglaterra e o sistema de classes de uma forma brilhante e cativante, contém no seu âmago uma reflexão profunda - e muito comovente - sobre a vergonha, o perdão, a expiação e a dificuldade da absolvição.

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“Cara Miss Morland, medite sobre a terrível natureza das suspeitas que tem vindo a acalentar. Em que tem baseado os seus juízos? Lembre-se do país e da época em que vivemos. Lembre-se que somos ingleses, que somos cristãos. Utilize o seu discernimento, o seu sentido do provável, a sua observação do que está a acontecer à sua volta. Será que a nossa educação nos prepara para tais atrocidades? Será que as nossas leis as sancionam? Seria possível que fossem perpetradas, sem que se soubesse, num país como este, onde as relações sociais e literárias assentam numa base tal que qualquer pessoa se encontra rodeada por uma corte de espiões voluntários, e onde as estradas e os jornais tudo desbravam? Minha cara Miss Morland, que ideias são essas que tem estado a admitir?”
Tinham chegado ao fim da galeria; com lágrimas de vergonha nos olhos, ela correu a refugiar-se no seu quarto.
Jane Austen, Northanger Abbey

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PARTE I
1
A peça — para a qual Briony desenhara os cartazes, os programas e os bilhetes, construíra a bilheteira com um biombo voltado de lado e debruara uma caixa com papel crepe vermelho para recolher donativos — fora escrita por ela num assomo de criatividade que tinha durado dois dias e a levara a perder um pequeno-almoço e um almoço. Depois de concluídos todos os preparativos, já não tinha mais nada a fazer a não ser rever o manuscrito e esperar pela chegada dos primos que vinham do Norte. Só teriam tempo para um dia de ensaios antes de o seu irmão chegar. A peça, com passos sinistros e outros desesperadamente tristes, era uma história de amor, cuja mensagem, transmitida num prólogo em verso, era que o amor que não estivesse assente numa base de bom senso estaria condenado. A paixão louca da heroína, Arabella, por um perverso conde estrangeiro é punida pelo infortúnio e ela contraía cólera durante uma ida impetuosa até uma vila à beira-mar com o namorado. Abandonada por ele, e por quase toda a gente, presa à cama numas águas furtadas, descobre em si mesma um inesperado sentido de humor.
A sorte dá-lhe uma segunda oportunidade, sob a forma de um médico pobre que, na verdade, é um príncipe disfarçado que escolheu trabalhar entre os mais necessitados. Arabella é curada por ele e desta vez faz uma escolha sensata, sendo recompensada pela reconciliação com a família e pelo casamento com o príncipe-médico “num dia de Primavera com muito sol e algum vento”.
Mrs Tallis leu as sete páginas de As Provações de Arabella no seu quarto, sentada junto ao toucador, com um braço da autora pousado sobre os seus ombros durante todo o tempo que durou a leitura. Briony perscrutava no rosto da mãe qualquer sinal de uma emoção diferente, e Emily Tallis recompensava-a com expressões de alarme, frémitos de alegria e, no fim, um sorriso de agradecimento e alguns acenos de cabeça circunspectos, em sinal de aprovação. Envolveu a filha com os braços, sentou-a no colo — ah, aquele corpo pequeno, quente e suave que ela recordava desde que nascera e que ainda não a abandonara, pelo menos não muito — e disse que a peça era “estupenda”, murmurando ao ouvido da menina que dava obviamente o seu acordo a que a palavra fosse citada no cartaz que ia estar exposto num cavalete no átrio, junto da bilheteira.
Na altura, Briony dificilmente poderia sabê-lo, mas aquele era o momento mais alto da concretização do seu projecto. Não houve nenhum outro, nem de perto, igualmente satisfatório; tudo o resto foram sonhos e frustrações. Houve ocasiões em que, na luz crepuscular do Verão, depois de apagar o candeeiro, anichada na deliciosa melancolia da sua cama de dossel, o seu coração palpitou com certas fantasias luminosas e ardentes — elas próprias pequenas peças de teatro — em que o protagonista era sempre Leon. Numa delas, a sua cara grande, de boa pessoa, contorcia-se de dor perante a solidão e o desespero de Arabella. Numa outra, estava de copo na mão num pub da moda, vangloriando-se para um grupo de amigos: sim, a minha irmã mais nova, a escritora Briony Tallis, certamente já ouviram falar dela.
Numa terceira, exprimia a sua alegria dando um soco no ar no momento em que o pano caía, embora não houvesse sequer a possibilidade de vir a haver um. A peça não era para os primos, era para o seu irmão, para celebrar o regresso dele, suscitar a sua admiração e afastá-lo da sucessão descuidada de namoradas, guiando-o no sentido de encontrar a mulher certa, a que conseguiria persuadi-lo a voltar para o campo, a que requisitaria docemente os serviços de Briony como dama de honor.
Ela era uma daquelas crianças possuídas pelo desejo de ter um mundo exemplar. Enquanto o quarto da sua irmã mais velha era um antro de livros espalhados, roupas em desalinho, cinzeiros cheios, com a cama por fazer, o de Briony era um santuário do demónio do controlo: na quinta de brincar montada num parapeito fundo havia os animais do costume, mas estavam todos voltados para o mesmo lado — para o seu dono — como se estivessem prestes a entoar uma canção. Até as galinhas estavam impecavelmente colocadas dentro da cerca. Aliás, o quarto de Briony era o único do andar de cima que estava arrumado. As bonecas, de costas muito direitas, nas múltiplas divisões da sua casinha de brincar, pareciam ter recebido ordens estritas de não tocarem nas paredes; as muitas figuras minúsculas de cowboys, mergulhadores, ratos humanóides, dispostas sobre o seu toucador, faziam lembrar, pela forma como estavam alinhadas e pela distância que as separava, um exército de cidadãos à espera de ordens.
O gosto pelas miniaturas era um dos aspectos de um espírito em ordem; um outro era a paixão pelos segredos: num armário envernizado, que muito estimava, havia uma gaveta secreta que se abria carregando no veio de um entalhe inteligentemente torneado. Era aí que guardava um diário fechado com uma mola e um caderno escrito num código que ela inventara. Num cofre de brincar, que se abria com uma combinação secreta de seis números, guardava cartas e postais.
Por baixo da cama tinha um velho mealheiro de lata, escondido sob uma tábua do soalho, onde se acumulavam tesouros que começara a reunir quatro anos atrás, no seu nono aniversário: uma estranha bolota dupla, ouro falso, um talismã para fazer chover que tinha comprado numa feira, uma caveira de um esquilo tão leve como uma folha.
Mas nem as gavetas secretas, nem os diários fechados, nem os sistemas criptográficos conseguiam esconder de Briony uma verdade muito simples: ela não tinha segredos. O seu desejo de um mundo harmonioso e organizado negava-lhe qualquer possibilidade de errar. A desordem e a destruição eram demasiado caóticas para o seu gosto. Além disso, não era cruel por natureza. O seu estatuto efectivo de filha única e o relativo isolamento da casa dos Tallis mantinham-na afastada de intrigas com as amigas, pelo menos durante as longas férias de Verão. Não havia nada na sua vida que fosse suficientemente interessante ou vergonhoso para merecer ser escondido; ninguém sabia que tinha a caveira de um esquilo escondida debaixo da cama, mas também ninguém queria saber. Nada disso era particularmente preocupante; ou melhor, apenas o era em retrospectiva, depois de ser encontrada uma solução.
Aos sete anos escrevera a sua primeira história — uma tolice, que imitava uma meia dúzia de contos populares, e à qual reconheceu posteriormente faltar o conhecimento vital do mundo que granjeia o respeito do leitor. Mas aquela primeira tentativa desajeitada serviu para lhe mostrar que a imaginação era, em si própria, uma fonte de segredos. Depois de começar uma história, não podia dizer nada a ninguém. Fingir com as palavras era um acto demasiado experimental, vulnerável e embaraçoso para que pudesse revelá-lo a alguém. Pestanejava ao escrever os disse ela e os e depois, e sentia-se pateta por parecer que sabia quais eram as emoções de um ser imaginário. Era inevitável que revelasse um pouco de si própria ao descrever as fraquezas de uma personagem; o leitor teria obrigatoriamente de se interrogar sobre se ela não estaria a descrever-se a si própria. Que outra fonte de poder teria ela? Só depois de a história estar concluída, de todos os destinos estarem traçados e todas as questões arrumadas, de modo a que aquela história se parecesse com todas as outras, é que ela poderia sentir-se imune e pronta a furar as margens, a prender os capítulos com bocados de cordel, a pintar ou desenhar a capa e a mostrar a obra concluída à mãe ou ao pai, quando este se encontrava em casa.
Os seus esforços eram encorajados. Foram até bem recebidos pelos Tallis, que começaram a perceber que a criança mais nova da família possuía uma mente peculiar e um grande domínio da palavra. As longas tardes que passava a procurar palavras em dicionários davam origem a construções absurdas, mas inquietantes: as moedas que um vilão escondia no bolso eram “esotéricas”, um rufia apanhado a roubar um carro chorava num “acto vergonhoso de autodesculpabilização”, a heroína fazia uma viagem “precipitada” pela noite, montada no seu puro-sangue, a testa franzida do rei era o “hieróglifo” do seu descontentamento. Briony era encorajada a ler as suas histórias na biblioteca, em voz alta, e tanto os pais como a irmã mais velha ficavam surpreendidos ao ouvir aquela menina sossegada a actuar de forma tão ousada, fazendo gestos amplos com o braço livre, arqueando as sobrancelhas ao fazer as diferentes vozes e levantando de vez em quando os olhos da página por alguns segundos para observar os rostos dos seus ouvintes, um a um, suscitando assumidamente a atenção da família para a sua narrativa encantatória.
Mesmo sem a atenção e os elogios deles, e o prazer óbvio que demonstravam, teria sido impossível impedir Briony de escrever. Mas ela estava a descobrir, como acontecera a muitos escritores antes dela, que o reconhecimento nem sempre era útil. O entusiasmo de Cecília, por exemplo, parecia um pouco exagerado, consubstanciando talvez uma certa condescendência e também uma certa indiscrição; a sua irmã mais velha queria que todas as histórias, depois de improvisadamente encadernadas, fossem catalogadas e colocadas nas prateleiras da biblioteca entre Rabindranath Tagore e Quinto Tertuliano. Se era uma brincadeira, Briony ignorou-a pura e simplesmente. Os dados estavam lançados, e Briony tinha descoberto outros níveis de satisfação; escrever histórias não envolvia apenas um certo secretismo — proporcionava-lhe também os prazeres da miniaturização. Era possível construir em cinco páginas um mundo mais gratificante do que a quinta de brincar. Para a infância de um príncipe mimado bastava meia página, o luar que banhava uma aldeia adormecida resumia-se a uma frase rítmica e enfática, a paixão podia ser retratada com uma única palavra — um olhar. As páginas de uma história há pouco terminada pareciam vibrar nas suas mãos com toda a vida que continham. A sua paixão pela ordem também era recompensada, pois era simples organizar um mundo caótico. Uma crise na vida de uma heroína podia coincidir com uma saraivada de granizo, um vento tempestuoso ou uma trovoada, ao passo que os casamentos eram geralmente bafejados por um sol radioso e uma brisa suave. A paixão pela ordem também configurava os princípios da justiça, sendo a morte e o casamento os principais motores da vida em família, a primeira reservada apenas para as personagens de moral dúbia e o segundo uma recompensa guardada até à última página. A peça que escrevera para dar as boas-vindas a Leon fora a sua primeira incursão no drama, e a transição parecera-lhe fácil. Era um alívio não ter de escrever os disse ela nem descrever o tempo, o dealbar da Primavera ou o rosto da sua heroína — tinha descoberto que a beleza ocupava um espaço muito limitado. A fealdade, por seu turno, permitia uma infinidade de variações. Um universo reduzido ao que nele era dito era, de facto, um acto de arrumação, quase a ponto de ser inútil; para o compensar, qualquer fala só era produzida no limite de um sentimento, o que tornava o ponto de exclamação indispensável. As Provações de Arabella podia ser um melodrama, mas a sua autora ainda não conhecia o termo. A peça pretendia suscitar não o riso, mas o terror, o alívio e uma aprendizagem, por esta ordem. Além disso, a intensidade inocente com que Briony abraçara o projecto — com cartazes, bilhetes e uma bilheteira — tornava-a particularmente vulnerável a qualquer insucesso. Ter-lhe-ia sido fácil receber Leon com mais uma das suas histórias, mas a notícia de que os seus primos do Norte viriam passar algum tempo em sua casa tinha-a levado a dar o salto para aquela nova forma literária.
Briony devia ter-se preocupado mais com o facto de Lola, de quinze anos, e de Jackson e Pierrot, os dois gémeos de nove anos, serem refugiados de uma amarga guerra civil doméstica. Tinha ouvido a mãe criticar o comportamento impulsivo de Hermione, a sua irmã mais nova, lamentar a situação das três crianças e denunciar o carácter brando e evasivo do seu cunhado, Cecil, que fugira para a segurança do Ali Souls College, em Oxford. Briony tinha ouvido a mãe e a irmã analisarem os últimos desvios e ofensas, as mais recentes acusações e contra-acusações, e tinha percebido que a visita dos primos não tinha um prazo pré-definido e podia mesmo prolongar-se até ao tempo de aulas. Tinha ouvido dizer que a casa podia facilmente receber mais três crianças e que os Quincey podiam lá ficar o tempo que quisessem, desde que os pais, se alguma vez os visitassem ao mesmo tempo, deixassem as suas guerras longe da casa dos Tallis. Tinham sido preparados dois quartos contíguos ao de Briony, com uma limpeza geral, cortinas novas e móveis trazidos de outros quartos. Em condições normais, ela teria participado nesses preparativos, só que eles tinham coincidido com os seus dois dias de escrita imparável e com o início da construção do palco improvisado. Sabia vagamente que o divórcio era um problema, mas não o considerava um assunto digno e por isso não gastou tempo a pensar nisso. Era um acontecimento mundano que não podia ser revertido, pelo que não oferecia qualquer oportunidade ao contador de histórias: pertencia ao reino da desordem. O matrimónio, ou melhor, os casamentos é que contavam, pela forma límpida como recompensavam a virtude, pela emoção da cerimónia e do banquete e pela promessa vertiginosa de uma união para toda a vida. Um casamento bom era uma representação não confessada de um bem nesse momento ainda impensável — a felicidade sexual. Era nas naves laterais das igrejas da província ou nas catedrais grandiosas das cidades, perante todo um conjunto de familiares e amigos que apadrinhavam o acto, que os heróis e as heroínas de Briony atingiam o seu clímax inocente, sem precisarem de ir mais além.
Se o divórcio surgira como antítese infame de tudo isto, podia facilmente ter sido relegado para o outro prato da balança, ao lado da traição, da doença, dos roubos, das agressões e da mendicidade. No entanto, revelava uma face chocante, complexa e polémica. Como o rearmamento, a questão da Abissínia e a jardinagem, não era apenas um assunto, e quando, ao fim de uma longa espera numa manhã de domingo, ouviu finalmente o som das rodas na gravilha por baixo da janela do seu quarto e pegou nas páginas e desceu escada abaixo, atravessou o átrio e saiu para a luz ofuscante do meio-dia, não foi a insensibilidade, mas uma forte concentração na sua ambição artística que a levou a gritar para os jovens visitantes, ainda aturdidos e perdidos no emaranhado das bagagens: “Já tenho os vossos papéis. Está tudo escrito. A primeira representação é amanhã. Os ensaios começam daqui a cinco minutos!”
A mãe e a irmã intervieram imediatamente, propondo um horário mais suave. Os visitantes —três crianças de cabelo ruivo e sardas— foram conduzidos aos respectivos quartos, depois de beberem um sumo na cozinha. As malas foram levadas por Danny, o filho de Hardman. Depois deram uma volta pela casa, tomaram banho na piscina e almoçaram no jardim voltado a sul, à sombra das videiras. Emily e Cecília Tallis não pararam de tagarelar durante todo esse tempo, o que certamente as impediu de porem os convidados tão à vontade como gostariam. Briony tinha a certeza de que, se tivesse feito uma viagem de trezentos quilómetros até uma casa desconhecida, se teria sentido oprimida por tantas perguntas insistentes, tantos apartes engraçados e por lhe afirmarem tantas vezes que estava à vontade para escolher. Geralmente as pessoas não davam conta de que o que as crianças mais queriam era que as deixassem em paz. No entanto, os Quincey esforçaram-se bastante por fingirem que estavam a divertir-se e se sentiam à vontade, o que era um bom presságio para As Provações de Arabella: era visível que aquele trio tinha jeito para ser o que não era, apesar de não terem a mínima parecença com as personagens que iam representar. Antes de almoço, Briony refugiou-se na sala onde iam ensaiar — o quarto de brincar —, percorrendo incessantemente as tábuas pintadas do soalho, enquanto ponderava as opções do elenco.
Era pouco provável que Arabella, cujo cabelo era tão escuro como o de Briony, fosse filha de pais sardentos, fugisse com um conde estrangeiro sardento, alugasse um quarto numas águas-furtadas a um senhorio sardento, se apaixonasse por um príncipe estrangeiro sardento ou fosse casada por um padre sardento perante uma assembleia de pessoas sardentas. Mas teria de ser assim. As cores dos seus primos eram demasiado intensas — quase fluorescentes — para poderem ser dissimuladas. O melhor que se poderia dizer era que o facto de Arabella não ter sardas era o sinal — Briony poderia ter dito mesmo o hieróglifo — da sua distinção. A sua pureza de espírito jamais poderia ser posta em dúvida, apesar de ela viver num mundo conspurcado. Havia um outro problema com os gémeos, que eram impossíveis de distinguir por quem não os conhecesse. Seria correcto que o príncipe mau fosse tão parecido com o príncipe bonito e que, ainda por cima, fossem os dois parecidos com o pai de Arabella e com o padre? E se fosse Lola a fazer de príncipe? Jackson e Pierrot pareciam dois rapazinhos típicos, impacientes, que provavelmente fariam o que lhes mandassem. Mas seria viável pôr a irmã deles a fazer de homem? Tinha olhos verdes, uma cara magra, as maçãs do rosto quase côncavas e havia uma certa fragilidade no seu ar reservado que sugeria um espírito determinado e um temperamento facilmente perturbável. Só o facto de sugerir que fosse Lola a fazer esse papel poderia provocar uma crise. Além disso, conseguiria Briony estar no altar de mão dada com ela enquanto Johnson citava o Book of Common Prayer?
Só às cinco da tarde desse dia conseguiu reunir todo o elenco no quarto de brincar. Tinha posto três bancos em fila para eles e tinha conseguido aninhar o rabo numa antiga cadeira alta de bebé — um toque algo boémio que a elevava à posição de vantagem habitual nos árbitros de ténis. Os gémeos tinham saído com relutância da piscina, onde haviam permanecido ininterruptamente durante três horas. Estavam descalços e com camisolas de alças a cobrir-lhes o tronco, que pingava água para o chão. Também lhes escorria água do cabelo emaranhado para o pescoço. Estavam os dois a tremer de frio e a esfregar os joelhos para se aquecerem. A imersão prolongada tinha-lhes deixado a pele engelhada e esbranquiçada, o que fazia que, à luz relativamente ténue do quarto de brincar, as suas sardas parecessem quase pretas. Pelo contrário, a irmã, sentada entre eles, com a perna esquerda apoiada sobre o joelho direito, estava perfeitamente composta: tinha-se perfumado abundantemente e vestido uma saia de algodão verde para disfarçar a sua falta de cor.
As sandálias deixavam à mostra uma pulseira no tornozelo e o verniz vermelho nas unhas dos pés. Ao reparar naquele pormenor, Briony sentiu um aperto no peito. Percebeu imediatamente que não podia pedir a Lola que fizesse de príncipe.
Estavam todos prontos, e a autora estava prestes a começar o pequeno discurso que resumiria o argumento e evocaria o que havia de exaltante na ideia de representar perante uma plateia de adultos no dia seguinte, na biblioteca. Mas foi Pierrot o primeiro a falar.
- Odeio peças de teatro e essas coisas todas.
- Eu também. E odeio mascarar-me - acrescentou Jackson.
Ao almoço fora esclarecido que era possível distinguir os gémeos porque faltava a Jackson um pequeno triângulo no lobo da orelha esquerda por causa de um cão que ele tinha maltratado aos três anos de idade.
Lola olhou para outro lado.
- Como podes odiar peças de teatro? - perguntou Briony, apelando ao bom senso do rapaz.
- É uma coisa só para dar nas vistas. - E encolheu os ombros ao pronunciar aquela verdade evidente.
Briony sabia que ele tinha razão. Era precisamente esse o motivo por que ela gostava de peças de teatro ou, pelo menos, das suas; toda a gente iria adorá-la. Ao olhar para os rapazes, sob cujos bancos a água fazia poça antes de entrar pelas frinchas da madeira, sentiu que eles jamais compreenderiam a sua ambição. A condescendência adoçou-lhe o tom da voz.
- Achas que Shakespeare queria dar nas vistas?
Pierrot olhou para Jackson por cima do colo da irmã.
Aquele nome bélico era-lhe vagamente familiar, mas, com um ar de certeza escolástica e adulta e com o encorajamento que os gémeos encontravam sempre um no outro, disse:
- Toda a gente sabe que sim.
- Sem sombra de dúvida.
Quando falou, Lola voltou-se primeiro para Pierrot e, a meio da frase, virou-se para Jackson. Na família de Briony, Mrs Tallis nunca tinha nada para comunicar que tivesse de ser dito simultaneamente às suas duas filhas. Agora Briony podia ver como é que isso se fazia.
- Vão entrar na peça, ou então levam na cabeça e depois faço queixa aos Pais.
- Se nos bateres, nós é que fazemos queixa aos Pais.
- Entram na peça ou faço queixa aos Pais.
Aparentemente, o facto de a ameaça ter sido tão obviamente negociada num tom decrescente não lhe retirou a força. Pierrot ficou a morder o lábio inferior.
- Porque temos de fazer isso? - A pergunta encerrava tudo o que havia a pôr em causa, e Lola tentou domar o feitio rebelde do irmão.
- Lembram-se do que os Pais disseram? Somos convidados nesta casa e temos de ser... O que é que temos de ser? Vá, digam lá. O que é que temos de ser?
- Obedientes - responderam os gémeos em uníssono, um pouco hesitantes perante aquela palavra tão pouco habitual.
Lola voltou-se para Briony e sorriu.
- Fala-nos então da tua peça.
Os Pais. Qualquer força institucionalizada que pudesse haver naquele plural estava prestes a desaparecer, ou talvez até já tivesse desaparecido, mas seria impossível reconhecê-lo ainda, e exigia-se coragem até dos mais novos. Briony sentiu-se repentinamente envergonhada por aquilo que tinha iniciado de uma forma tão egoísta, pois nem sequer lhe passara pela cabeça a hipótese de os primos não quererem representar os seus papéis em As Provações de Arabella. A verdade é que eles tinham as suas próprias provações, a sua própria catástrofe e, naquela situação de convidados, sentiam-se obrigados a aceitar. Mas, pior ainda, mesmo Lola dera a entender que também para ela
era um peso ter de representar. Os vulneráveis Quincey estavam a ser coagidos. No entanto, ocorreu a Briony um outro pensamento, que teve dificuldade em equacionar: Lola não estaria a utilizar os gémeos para fazer passar uma mensagem própria, um sentimento hostil ou destrutivo? Briony sentia a desvantagem de ser dois anos mais nova do que a outra rapariga, de não ter a subtileza de espírito acrescida por esse tempo. A peça parecia-lhe agora uma coisa infeliz e embaraçosa.
Sempre a evitar o olhar de Lola, continuou a explicar o enredo, mesmo quando começou a sentir-se dominada pela sua estupidez. Já não tinha coragem para inventar para os primos o argumento da emoção da noite da estreia.
Assim que acabou de falar, Pierrot disse:
- Quero ser o conde. Quero fazer de mau.
Jackson disse simplesmente:
- Eu sou o príncipe. Sou sempre um príncipe.
Podia tê-los puxado para si e ter beijado aquelas caras pequeninas, mas limitou-se a dizer:
- Então está bem.
Lola descruzou as pernas, endireitou o vestido e levantou-se, como se estivesse para se ir embora. Foi com um suspiro de tristeza e resignação que disse:
- Como foste tu que escreveste a peça, deves querer ser a Arabella.
- Não - disse Briony. - Nem pensar.
Disse não, mas queria dizer sim. Claro que ia fazer o papel de Arabella. O que ela pretendia contradizer era o “como” de Lola. Não ia fazer de Arabella por ter escrito a peça, mas porque não lhe passava sequer pela cabeça qualquer outra possibilidade, porque era nesse papel que queria que Leon a visse, porque era Arabella.
Mas tinha dito que não, o que levara Lola a dizer numa voz doce:
- Nesse caso, importas-te que eu faça de Arabella? Acho que seria muito boa nesse papel. Aliás, de nós as duas...
Deixou a frase em suspenso e Briony abriu muito os olhos para ela, incapaz de dissimular a sua expressão de horror, e sem conseguir falar. O papel estava a fugir-lhe das mãos, sentia-o bem, mas não conseguia lembrar-se de nada que pudesse dizer para o recuperar. Perante o silêncio de Briony, Lola insistiu nas suas vantagens.
- Estive muito doente o ano passado, por isso também posso representar bem essa parte.
Também? Briony não podia competir com a outra rapariga. Os seus pensamentos estavam a ficar toldados pela infelicidade do inevitável.
- E entraste na peça da escola - disse orgulhosamente um dos gémeos.
Como poderia ela dizer-lhes que Arabella não tinha sardas? A sua pele era pálida, os seus cabelos negros e os seus pensamentos os de Briony. Mas como poderia ela recusar isso a uma prima que estava tão longe de casa e cuja família estava a desintegrar-se? Lola devia estar a ler-lhe a mente porque, naquele momento, jogou a sua última cartada, o ás irrecusável.
- Por favor, diz que sim. Seria a primeira coisa boa que me aconteceria em muitos meses.
Sim. Sem conseguir suster a palavra com a língua, Briony pôde apenas fazer um sinal de assentimento com a cabeça e sentiu nesse momento o frémito doloroso de uma aquiescência que a aniquilava a percorrer-lhe a pele, a saltar de dentro dela e a escurecer o quarto. Queria sair dali, queria ir deitar-se com a cara afundada na cama, saborear o gosto amargo e vil daquele momento e retirar todas as consequências antes que a destruição começasse. Precisava de contemplar de olhos fechados toda a riqueza do que perdera, daquilo de que prescindira, e antever o novo regime. Não tinha de pensar só em Leon, mas também no vestido antigo de cetim creme e cor de pêssego que a mãe estava a arranjar para ser o fato de casamento de Arabella.
Agora seria para Lola. Como poderia a sua mãe rejeitar a filha que tanto a amara ao longo de todos aqueles anos? Quando viu como o vestido ficava perfeito à prima e o sorriso sincero da mãe, Briony percebeu que a única opção razoável que lhe restava era fugir, viver debaixo de sebes, alimentar-se de frutos silvestres e não falar com ninguém até ser encontrada por um lenhador de barbas numa manhã de Inverno, acocorada junto à base de um carvalho gigantesco, bela, morta e descalça, ou talvez com as sapatilhas de ballet com os elásticos cor-de-rosa...
A piedade que sentia de si mesma requeria toda a sua atenção; precisaria de estar sozinha para reviver todos os pormenores lancinantes, mas no momento em que dera o seu assentimento - como a oscilação de um crânio podia mudar toda uma vida! - Lola pegara no manuscrito de Briony e os gémeos tinham saído dos seus bancos e seguido a irmã para o espaço no meio do quarto de brincar que Briony libertara no dia anterior. Teria coragem para se ir embora naquele momento? Lola andava de um lado para o outro de mão na testa enquanto folheava as primeiras páginas da peça, repetindo em voz baixa as primeiras linhas do prólogo. Anunciou que não se perdia nada em começar pelo princípio e, pondo os irmãos a fazer de pais de Arabella, começou a descrever-lhes o princípio da cena, como se soubesse tudo o que havia a saber sobre o assunto. O domínio de Lola ia-se acentuando de uma forma impiedosa e tornando irrelevante qualquer gesto de autocomiseração. Ou seria aquela aniquilação total ainda mais deliciosa? É que nem sequer fora dado a Briony o papel de mãe de Arabella. Era seguramente o momento certo para sair dali e afundar a cara na escuridão da sua cama. Mas foi a rispidez de Lola, a sua indiferença em relação a tudo o que não lhe dissesse respeito e a certeza de Briony de que os seus sentimentos passariam despercebidos, e de forma alguma provocariam qualquer sensação de culpa, que lhe deram forças para resistir.
Até então não tivera oportunidade na sua vida, agradável e protegida, de se confrontar com ninguém. Agora via o que isso era: era como mergulhar numa piscina no princípio de Junho; era algo que uma pessoa tinha de se obrigar a si própria a fazer. Contorceu-se para sair da cadeira alta e dirigiu-se para o local onde estava a prima, sentindo o coração a palpitar de uma forma muito inconveniente e uma enorme dificuldade em respirar.
Tirou a peça da mão de Lola e disse numa voz constrangida e mais aguda do que era habitual:
- Se tu és a Arabella, então eu sou a directora e, muito obrigada, mas eu leio o prólogo.
Lola pôs a mão sardenta sobre a boca e gritou:
- Descuuulpa. Só queria começar com isto.
Briony não sabia ao certo como responder e, por isso, voltou-se para Pierrot e disse:
- Não és muito parecido com a mãe da Arabella.
A revogação da decisão de Lola relativamente ao elenco e as risadas que tal facto provocou nos rapazes alteraram a correlação de forças. Lola encolheu exageradamente os ombros ossudos e foi para junto da janela. Talvez ela própria estivesse a lutar contra a tentação de sair do quarto. Apesar de os gémeos terem começado a bater-se e de Lola estar a sentir uma dor de cabeça iminente, o ensaio acabou por começar. Briony leu o prólogo num ambiente de silêncio tenso.
Esta é a história de Arabella,
Que fugiu com um desconhecido.
Foi um desgosto para os pais verem a sua filha tão bela
Deixar a sua casa em Eastbourne
Sem sequer a sua autorização ter pedido...
Com a mulher a seu lado, o pai de Arabella estava de pé, junto aos portões enferrujados da sua propriedade, a pedir à filha que pensasse melhor na decisão que tomara.
Depois o seu desespero levava-o a ordenar-lhe que não partisse. A heroína fitava-o, triste mas teimosa, com o conde a seu lado, enquanto os cavalos de ambos, presos a uma árvore, relinchavam e batiam com os cascos no chão, impacientes por partirem. A grande ternura do pai devia fazer a sua voz tremer ao dizer:
Minha querida filha, és tão jovem e bela, Mas tão inexperiente. Pensas que tens o mundo a teus pés, Mas ele pode erguer-se e pisar-te.
Briony colocou os actores nas respectivas posições. Deu o braço a Jackson e mandou Lola e Pierrot ficarem a alguns metros de distância, de mão dada. Quando os rapazes olharam um para o outro tiveram um ataque de riso e as raparigas mandaram-nos calar. Já tinha havido problemas suficientes, mas Briony só começou a aperceber-se do fosso que separava uma ideia da sua concretização quando Jackson começou a ler o seu papel com uma voz aflita e monótona, como se cada palavra fosse um nome de uma lista de defuntos, não conseguiu pronunciar “inexperiente”, apesar de lhe terem repetido a palavra muitas vezes, e deixou por dizer as duas últimas palavras da sua deixa: “Mas ele pode erguer-se e pisar-te.” Lola debitou o seu papel de forma correcta mas indiferente, sorrindo de vez em quando por qualquer pensamento impróprio, determinada a mostrar que o seu espírito quase adulto estava noutro lugar.
E assim os primos do Norte continuaram, durante mais de meia hora, a destruir de forma sistemática a obra de Briony. Por isso, foi quase um acto de misericórdia a irmã mais velha ter vindo chamar os gémeos para irem tomar banho.
2
Devido, por um lado, à sua juventude e ao tempo glorioso que se fazia sentir e, por outro, à sua necessidade crescente de um cigarro, Cecília Tallis, de flores na mão, percorreu o caminho que ladeava o rio e passou pelo lago, onde costumavam mergulhar, com o muro de tijolo coberto de musgo, antes de se embrenhar no bosque de carvalhos. A inactividade acumulada ao longo das semanas de Verão, desde que fizera os exames finais, era mais uma razão para a fazer correr; desde que voltara para casa, a sua vida parecia ter parado, e um dia bonito como aquele deixava-a impaciente, quase desesperada.
A sombra fresca e alta das árvores era um alívio; as reentrâncias esculpidas nos troncos eram encantadoras. Depois de passar o portão de ferro e os rododendros que ficavam por baixo da vedação do jardim, atravessou a tapada - que tinha sido vendida a um agricultor da região para pôr as vacas a pastar -, chegou à fonte, ao muro que a suportava e à reprodução à escala média do Tritão de Bernini, da Piazza Barberini, em Roma.
A figura musculada, tão confortavelmente instalada na sua concha, soprava por um búzio um jacto de água de apenas cinco centímetros de altura; a pressão era diminuta, e a água voltava a cair-lhe sobre a cabeça, sobre os caracóis de pedra e sobre o entalhe da sua coluna poderosa, deixando um sulco verde brilhante. Naquele estranho clima do Norte, e apesar de muito longe de casa, estava belo naquela manhã de sol - não só ele, mas também os quatro golfinhos que sustentavam a concha torneada sobre a qual estava sentado. Olhou para as escamas improváveis que revestiam os golfinhos e as coxas do Tritão e depois para casa. O caminho mais rápido para a sala de estar era pelo relvado e pelas portas do terraço. Mas o seu amigo de infância e colega de universidade Robbie Turner estava de joelhos, a tirar as ervas a uma sebe, e não lhe apetecia falar com ele. Pelo menos naquele momento. Desde que tinham regressado, ele tinha-se entregado de corpo e alma à jardinagem. Dizia-se agora que iria para Medicina, o que, depois de um curso de Literatura, parecia bastante pretensioso. E também uma presunção, uma vez que teria de ser o pai dela a pagar.
Refrescou as flores, mergulhando-as na pia da fonte, que era grande, profunda e fria, e evitou Robbie dirigindo-se apressadamente para a parte da frente da casa. Era uma desculpa, pensou ela, para ficar lá fora mais alguns minutos. Nem o sol da manhã nem qualquer outra luz poderia esconder a fealdade da casa dos Tallis - com apenas quarenta anos, de tijolos brilhantes, só de um andar, com uns painéis de chumbo de um gótico brasonado, um dia seria infalivelmente condenada num artigo de Pevsner ou de qualquer outro membro da sua equipa, como uma tragédia de oportunidades perdidas, ou por um escritor mais jovem da escola moderna como “não tendo qualquer espécie de encanto”. Existira no local uma casa de estilo Adam, que fora destruída por um incêndio em finais da década de 1880. Restaram apenas o lago e a ilha artificiais com as suas duas pontes de pedra e um templo, com o estuque a esboroar-se, à beira da água. O avô de Cecília, que crescera ao balcão de uma loja de quinquilharia e fizera a fortuna da família com uma série de patentes de cadeados, ferrolhos, linguetas e ganchos, tinha imposto à casa nova o seu gosto por coisas sólidas, seguras e funcionais. Mesmo assim, de costas para a entrada da casa, olhando para o caminho e ignorando as vacas que começavam já a agrupar-se à sombra das árvores espaçadas, tinha-se uma visão bastante bonita, que dava não só uma sensação de calma intemporal e imutável como a certeza de que não podia parar.
Entrou em casa, atravessou rapidamente o vestíbulo revestido de mosaicos pretos e brancos - quão familiar e irritante era o eco dos seus passos! - e parou para tomar fôlego à porta da sala de estar. As gotas frescas que caíam do ramo desordenado de salgueirinhas e íris sobre os seus pés animaram-na um pouco. A jarra que ela queria estava sobre uma mesa de cerejeira colocada junto às portas que davam para o terraço, que se encontravam ligeiramente entreabertas. O facto de estarem viradas a sudeste permitira que o sol da manhã lançasse paralelogramos de luz sobre a carpete azul-de-esmalte. A sua respiração ficou mais calma e o seu desejo de um cigarro tornou-se mais premente, mas mesmo assim hesitou junto à porta, retida momentaneamente pela perfeição da cena - os três cadeirões desbotados agrupados em torno do fogão de sala gótico quase novo sobre o qual se encontrava um arranjo de flores, o cravo desafinado que ninguém tocava e as estantes de música de pau-rosa que ninguém utilizava, os pesados cortinados de veludo apanhados por um cordão cor-de-laranja e azul com borlas, que enquadravam uma imagem parcial de um céu sem nuvens, e o terraço onde predominavam o amarelo e o verde e onde crescia matricária por entre as fendas do pavimento. A seguir, uma escadaria que dava para o relvado, junto ao qual Robbie continuava a trabalhar, e que se prolongava por quase cinquenta metros até à fonte do Tritão.
Tudo aquilo - o rio, as flores, ter corrido, algo que ultimamente quase nunca fazia, as nervuras dos troncos dos carvalhos, o salão de tecto alto, a geometria da luz, as palpitações que se desvaneciam dos seus ouvidos à medida que a calma se instalava neles -, tudo aquilo lhe agradava profundamente como algo de familiar que se ia transformando deliciosamente em algo de desconhecido. Mas também sentia que a monotonia da sua casa como que reprovava aquele prazer. Regressara de Cambridge com uma vaga ideia de que a família tinha direito a gozar da sua companhia durante algum tempo. Mas o pai continuava na cidade, e a mãe, quando não estava a cuidar das suas enxaquecas, parecia distante, quase antipática. Cecília tinha levado algumas vezes um tabuleiro de chá ao quarto da mãe - de uma esqualidez tão espectacular como o seu - na esperança de que surgisse alguma conversa mais íntima. No entanto, Emily Tallis parecia interessada em partilhar apenas algumas pequenas preocupações com a casa, ou então recostava-se nos almofadões com uma expressão impenetrável e esvaziava a chávena de chá em silêncio. Briony andava sempre perdida nas suas fantasias de escritora - aquilo que outrora parecera um capricho passageiro tornara-se agora uma obsessão que a dominava por completo. Cecília tinha-os visto na escada naquela manhã, a irmã mais nova a levar os primos, coitados, que ainda só tinham chegado no dia anterior, para o quarto de brincar para ensaiarem a peça que Briony queria apresentar nessa noite, quando Leon e o amigo chegassem. Tinham tão pouco tempo, e ainda por cima um dos gémeos fora retido por Betty na copa para levar um ralhete por qualquer asneira que tinha feito. Cecília não estava muito inclinada a ajudar - estava muito calor e, fizesse ela o que fizesse, o projecto acabaria em calamidade, com Briony a acalentar demasiadas expectativas sem que ninguém, sobretudo os primos, conseguisse estar à altura da sua imaginação frenética.
Cecilia sabia que não podia continuar a perder os seus dias no meio da desarrumação do seu quarto abafado, deitada na cama e submersa numa nuvem de fumo, de queixo apoiado na mão, a arrepiar-se com a leitura de Clarissa, de Richardson. Iniciara, sem grande entusiasmo, a pesquisa da sua árvore genealógica, mas, do lado paterno, pelo menos até o seu bisavô ter aberto a humilde loja de ferragens, os seus antepassados estavam irremediavelmente afundados num lodaçal de trabalhos agrícolas, com alterações suspeitas e confusas de apelidos entre os homens e casamentos não registados nos livros das sacristias. Não podia continuar ali, sabia que tinha de fazer planos, mas não fazia nada. Havia várias possibilidades, todas igualmente adiáveis. Tinha algum dinheiro na sua conta, o suficiente para fazer uma vida modesta durante um ou dois anos. Leon tinha-a convidado várias vezes para passar algum tempo com ele em Londres. Os amigos da universidade ofereciam-se para a ajudar a arranjar emprego - certamente qualquer lugar monótono, mas que lhe permitiria ser independente. Tinha alguns tios e tias interessantes no lado materno, que estavam sempre ansiosos por vê-la, incluindo a irreverente Hermione, a mãe de Lola e dos rapazes, que naquele momento estava em Paris com um amante que trabalhava na rádio.
Nada havia que retivesse Cecilia em casa; ninguém se importaria muito se ela partisse. Também não era o torpor que a prendia - sentia muitas vezes uma agitação próxima da irritabilidade. Simplesmente, gostava de sentir que a impediam de partir, que era precisa ali. De vez em quando convencia-se de que ficava por causa de Briony ou para ajudar a mãe, ou ainda porque aquele seria de facto o último período longo que passaria em casa. A verdade é que a ideia de fazer a mala e apanhar um comboio não a entusiasmava. Partir só por partir. Ir-se deixando ficar, na monotonia e no conforto da sua casa, era uma espécie de autopunição com laivos de um prazer real, ou, pelo menos, esperado; se partisse, podia acontecer qualquer coisa de mau, ou, pior ainda, qualquer coisa de bom que ela não poderia dar-se ao luxo de perder. E havia Robbie, que a exasperava com o seu ar distante e os seus planos grandiosos, sobre os quais apenas falava com o pai de Cecilia. Ela e Robbie conheciam-se desde os sete anos, e incomodava-a o mal-estar que sentiam quando falavam um com o outro. Apesar de ela achar que isso se devia, em grande parte, a ele —ter-lhe-ia o curso subido à cabeça?-, sabia que tinha de tirar tudo a limpo antes de pensar em partir.
Pelas janelas abertas entrava o cheiro ténue do estrume de vaca, sempre presente excepto nos dias mais frios, mas que só era notado por quem estivesse ausente durante algum tempo. Robbie tinha pousado a pá e estava a enrolar um cigarro, um resquício da sua passagem pelo Partido Comunista - mais um capricho abandonado, tal como as suas ambições de antropólogo e a viagem à boleia de Calais até Istambul. No entanto, os cigarros dela estavam apenas dois lanços de escada acima, num de muitos bolsos possíveis.
Entrou na sala e atirou as flores para a jarra. Pertencera ao seu tio Clem, de cujo funeral, no fim da guerra, se lembrava bastante bem: a carreta a chegar à igreja, o caixão coberto com a bandeira do regimento, as espadas erguidas, o toque de cornetim junto à campa e, a recordação mais marcante para uma criança de cinco anos, o seu pai a chorar. Clem era o seu único irmão. A história de como tinha arranjado aquela jarra fora contada numa das últimas cartas que o jovem tenente escrevera para casa. Era oficial de ligação no sector francês e tinha iniciado a evacuação urgente de uma pequena vila a oeste de Verdun antes de ser bombardeada. Ao todo, tinham sido salvas umas cinquenta pessoas, entre mulheres, crianças e idosos. Mais tarde, o presidente da Câmara e algumas outras autoridades tinham levado Clem de regresso à cidade, para um museu meio destruído.
A jarra fora retirada de uma vitrina estilhaçada e tinha-lhe sido oferecida em sinal de gratidão. Não pudera recusar, por incómodo que fosse combater numa guerra com uma peça de porcelana de Meissen debaixo do braço. Passado um mês, a jarra fora depositada em segurança numa quinta e o tenente Tallis enfrentara uma cheia para a ir buscar, voltando a atravessar o mesmo rio à meia-noite para se juntar à sua unidade. Nos últimos dias da guerra fora enviado em algumas missões de patrulha e pedira a um amigo que guardasse a jarra, que acabou por chegar ao quartel do regimento e ser entregue à família Tallis alguns meses depois do enterro do tio Clem.
Não valia a pena tentar arranjar flores silvestres. Tinham-se disposto com a sua simetria própria, e de certeza que uma distribuição demasiado regular das íris e das salgueirinhas estragaria o efeito. Passou alguns minutos a fazer pequenos retoques para conseguir um ar naturalmente caótico. Enquanto isso, lembrou-se de ir ter com Robbie. Era uma maneira de não ter de subir a escada. Mas sentia-se desconfortável e afogueada e gostaria de verificar o seu aspecto no grande espelho dourado que estava por cima do fogão de sala. Mas se Robbie se voltasse - estava de pé, de costas para a casa, a fumar - veria para dentro da sala. Cecília acabou o arranjo e ficou parada a ver. Paul Marshall, o amigo do irmão, poderia acreditar que as flores tinham sido atiradas para a jarra com o mesmo espírito descuidado com que tinham sido apanhadas. Sabia que não fazia sentido arranjar flores antes de pôr água na jarra, mas já estava. Não resistiu a tocar-lhes mais uma vez. As pessoas não podiam fazer tudo de forma lógica e correcta, sobretudo quando estavam sozinhas. A mãe queria que ela pusesse flores no quarto de hóspedes, e Cecília fá-lo-ia com todo o prazer. Teria de ir à cozinha buscar água. Mas Betty preparava-se para fazer o jantar e estava com um mau humor terrível. Não seria só um dos gémeos —Jackson ou Pierrot - a atrapalhá-la, mas também as pessoas que tinham vindo da aldeia para a ajudar. Já chegava de vez em quando à sala de estar um grito surdo de mau humor, ou o som estridente de uma caçarola a bater no fogão com uma força desmesurada. Se Cecília fosse à cozinha naquela altura, teria de servir de intermediária entre as vagas instruções dadas pela sua mãe e o estado de espírito impiedoso de Betty. Sem dúvida faria mais sentido ir lá fora e encher a jarra na fonte. Um amigo do pai de Cecília que tinha trabalhado no Victoria and Albert Museum fora há alguns anos lá a casa examinar a jarra e declarara tratar-se de uma peça verdadeira. Era mesmo porcelana de Meissen, e fora pintada pelo grande artista Hóroldt em 1726. Teria seguramente pertencido em tempos ao Rei Augusto. Apesar de ser reconhecido por todos que a jarra valia mais do que as outras peças existentes em casa dos Tallis - na sua maior parte objectos sem valor coleccionados pelo avô de Cecília, Jack Tallis queria que ela fosse utilizada em honra da memória do irmão. Não ficaria presa por detrás de uma redoma de vidro. Segundo ele, se a jarra tinha sobrevivido à guerra, também poderia sobreviver aos Tallis. A mulher não discordava dele. A verdade é que, apesar de ser muito valiosa e da recordação que lhe estava associada, Emily Tallis não gostava muito dela. As suas minúsculas figuras chinesas, agrupadas com um ar formal à volta de uma mesa num jardim, por entre plantas ornamentais e pássaros inverosímeis, eram espalhafatosas e deprimentes. Em geral, não gostava muito de coisas chinesas. Cecília também não tinha um apreço especial pela jarra, embora às vezes pensasse em quanto é que a Sotheby's poderia ser avaliada. Aquele objecto era respeitado não pelo domínio de Hõroldt dos esmaltes policromáticos, nem pelos entrançados e pelas folhas azuis e douradas, mas pelo tio Clem, pelas vidas que ele salvara, por ter atravessado aquele rio à meia-noite e por ter morrido exactamente uma semana antes do Armistício. As flores, principalmente as flores silvestres, pareciam uma homenagem adequada.
Cecília agarrou na porcelana fria com as duas mãos e, apoiando-se num pé, utilizou o outro para abrir as portas para o terraço. Ao sair para a claridade, sentiu-se envolver pelo cheiro intenso da pedra quente. Duas andorinhas esvoaçavam sobre a fonte e o canto estridente de um canário atravessava o ar, vindo da pesada melancolia do gigantesco cedro-do-líbano. Uma ligeira brisa fez as flores estremecerem e tocarem-lhe na cara quando atravessava o terraço e descia cuidadosamente os três degraus gastos que iam dar ao caminho de gravilha. Ao ouvi-la aproximar-se, Robbie voltou-se repentinamente.
- Estava perdido nos meus pensamentos - explicou.
- Importas-te de me enrolar um desses teus cigarros bolcheviques?
Ele deitou fora o cigarro que estivera a fumar, tirou a caixa do casaco pousado no chão e acompanhou Cecilia até à fonte. Ficaram em silêncio durante algum tempo.
- Está um lindo dia - disse ela finalmente, com um suspiro.
Ele olhou para ela com uma expressão ao mesmo tempo divertida e desconfiada. Havia qualquer coisa entre eles, e até ela tinha de reconhecer que uma observação inofensiva sobre o tempo era um tanto ou quanto perversa.
- Que tal o Clarissa? - perguntou ele, a seguir com os olhos os movimentos dos dedos a enrolarem o tabaco.
- Muito maçador.
- Não podemos dizer isso.
- Gostava que aquilo andasse para a frente.
- E anda. Mais para a frente é melhor.
Abrandaram o passo e depois pararam para ele acabar o cigarro.
- Preferia acabar por ler qualquer coisa de Fielding.
Sentiu que acabava de dizer uma parvoíce. Robbie estava a olhar para lá do jardim e das vacas, para o bosque que ladeava o rio no vale, o bosque que ela atravessa a correr nessa manhã. Poderia pensar que ela estava a falar com ele em código, a sugerir o seu gosto por tudo o que era impetuoso e sensual. Claro que era um erro: ficou confusa, sem saber como fazer que ele se sentisse bem. Gostava dos olhos dele, pensou, da sua mistura granular de cor-de-laranja e verde, ainda mais visível sob a luz do Sol. Também lhe agradava o facto de ele ser tão alto. Era uma combinação interessante num homem, inteligência e corpulência. Entretanto, pegou no cigarro e ele acendeu-lho.
- Percebo o que queres dizer - disse ele, enquanto percorriam os últimos metros que os separavam da fonte. - Há mais vida em Fielding, mas também tem uma certa crueza psicológica em comparação com Richardson.
Ela pousou a jarra nos degraus irregulares que se erguiam até à bacia da fonte. A última coisa que lhe apetecia era um debate de estudantes sobre literatura do século XVIII. Não achava que Fielding fosse nada cru, nem que Richardson fosse um bom psicólogo, mas não ia deixar-se arrastar para um processo de defesas, definições e ataques. Estava farta disso, e Robbie era muito tenaz a argumentar.
Em vez disso disse-lhe:
- O Leon vem hoje, sabias?
- Ouvi dizer. É sensacional.
- Traz um amigo, o tal Paul Marshall.
- O milionário do chocolate. Não! E vais dar-lhe flores!
Ela sorriu. Estaria Robbie a fingir que tinha ciúmes para esconder os ciúmes que realmente tinha? Não conseguia percebê-lo. Tinham perdido o contacto em Cambridge. Fora demasiado difícil conduzir as coisas de outra maneira. Mudou de assunto.
- O velho diz que queres ser médico.
- Estou a pensar nisso.
- Deves adorar a vida de estudante.
Ele tornou a desviar os olhos, mas desta vez por apenas um segundo ou menos e, quando voltou a olhar para ela, pareceu-lhe vislumbrar uma certa irritação. Tê-la-ia achado condescendente? Voltou a observar os olhos dele, os salpicos verdes e alaranjados, como um berlinde. Ao falar, Robbie mostrou-se, no entanto, perfeitamente agradável.
- Sei que nunca gostaste dessas coisas, Cee. Mas há outra maneira de ser médico?
- É isso mesmo. São mais seis anos. Para quê?
Ele não ficou ofendido. Era ela que estava a tirar conclusões precipitadas, que ficava nervosa na presença dele. Ficou aborrecida consigo própria.
Robbie levou a pergunta dela a sério.
- Ninguém vai dar-me emprego como arquitecto paisagista. Não quero ser professor nem funcionário público. E a medicina interessa-me... - O seu discurso foi interrompido por um pensamento qualquer. - Vou reembolsar o teu pai. Foi esse o acordo que fizemos.
- Não era disso que eu estava a falar.
Ficou surpreendida por ele pensar que ela estava a levantar a questão do dinheiro. Era uma atitude muito pouco generosa da parte dele. O seu pai sempre pagara os estudos a Robbie. Alguém se opusera a isso? Pensava que era imaginação sua, mas afinal era verdade - ultimamente havia um certo tom de desafio em Robbie. Sempre que podia, apanhava-a desprevenida. Há dois dias tinha tocado à campainha da frente - o que era estranho, uma vez que sempre tivera liberdade para entrar lá em casa quando queria. Quando a chamaram viu-o lá fora a perguntar em voz alta e num tom impessoal se lhe emprestava um livro. Polly estava de gatas a lavar o chão da entrada. Robbie fizera questão de tirar as botas, que não estavam nada sujas, e depois, pensando melhor, resolvera tirar também as meias e atravessara o chão molhado em bicos de pés.
Tudo o que ele fazia tinha por objectivo distanciar-se dela. Estava a representar o filho da mulher-a-dias que vai à casa dos patrões fazer um recado. Foram os dois até à biblioteca e, quando ele encontrou o livro que queria, ela perguntou-lhe se não queria tomar um café. Fingiu ao recusar de forma titubeante. Era uma das pessoas mais seguras que ela conhecia. Sabia que ele estava a gozar com ela. Sentindo-se rejeitada, saíra da sala, subira a escada e atirara-se para a cama com o seu livro, que lera sem absorver uma única palavra, enquanto a irritação e a confusão se avolumavam no seu espírito. Estava a ser gozada, ou a ser castigada - não sabia qual das duas hipóteses era pior. Castigada por pertencer a um círculo diferente em Cambridge, por não ser filha de uma mulher-a-dias; gozada pelo curso menor que tirara - aliás, as licenciaturas das mulheres nem sequer eram reconhecidas. Pegou na jarra com alguma dificuldade, pois ainda tinha o cigarro na mão, e pousou-a na borda da pia. Teria sido mais sensato tirar primeiro as flores, mas estava demasiado irritada. Tinha as mãos quentes e secas, e isso obrigava-a a segurar a jarra ainda com mais força. Robbie estava em silêncio, mas a expressão dele - com um sorriso forçado que nem sequer lhe separava os lábios - dava a entender que estava arrependido do que tinha dito. Não era isso que a reconfortava. Ultimamente, acontecia sempre aquilo quando falavam um com o outro; ou um ou outro diziam sempre qualquer coisa que não queriam dizer e que tentavam remediar depois. Não havia à-vontade nem estabilidade nas suas conversas; não estavam descontraídos. Havia, pelo contrário, ferroadas, armadilhas, reviravoltas estranhas, que a levavam a sentir tanta antipatia por si própria como por ele, embora não duvidasse de que o principal culpado era ele. Ela não tinha mudado, mas não havia dúvida de que ele tinha. Estava a distanciar-se da família que sempre estivera pronta a acolhê-lo e que lhe dera tudo. Só por essa razão - a certeza de que ele recusaria e de que isso a perturbaria - não o convidara para o jantar dessa noite. Se ele queria distância, tê-la-ia.
Um dos golfinhos cuja cauda sustentava a concha na qual o Tritão estava aninhado, o que estava mais próximo de Cecília, tinha a boca aberta tapada com musgo e algas. Os seus olhos esféricos, do tamanho de maçãs, estavam tingidos de um verde brilhante. Toda a superfície da estátua virada a norte estava coberta por uma patina verde-azulada, o que fazia que, de certos ângulos e com pouca luz, o Tritão musculoso parecesse cem léguas debaixo de água. A intenção de Bernini devia ter sido criar uma certa musicalidade com a água a pingar das beiras irregulares da concha para a bacia. Mas a pressão era diminuta, o que fazia que a água escorresse em silêncio pela parte de baixo da concha, onde se formava um lodo cujas pontas pingavam como estalactites numa gruta calcária. A bacia tinha mais de um metro de profundidade e a água estava límpida. O fundo era revestido por uma pedra esbranquiçada, sobre a qual ondulavam, se dividiam e sobrepunham rectângulos de luz refractada.
A ideia de Cecília era debruçar-se sobre o parapeito e segurar as flores dentro da jarra enquanto a inclinava de lado para a encher, mas foi nesse momento que Robbie, para se desculpar, tentou ajudá-la.
- Deixa-me segurar isso - disse, estendendo uma mão. - Eu encho-a e tu seguras as flores.
- Eu consigo, obrigada. - Estava prestes a mergulhar a jarra na pia.
- Já a agarrei - disse ele. E tinha de facto agarrado a jarra com firmeza, com o indicador e o polegar. - Vais molhar o cigarro. Pega nas flores.
Era uma ordem à qual ele pretendia conferir a urgência de uma autoridade masculina. O efeito que ela causou sobre Cecília foi levá-la a agarrar a jarra ainda com mais força. Não tinha tempo, e muito menos vontade, de explicar que mergulhar a jarra e as flores na água contribuiria para o ar natural que ela queria dar ao arranjo. Apertou ainda mais os dedos e desviou-se dele. Mas ele não desistia assim tão facilmente. Produzindo um som semelhante ao de um ramo seco a quebrar-se, uma parte da borda da jarra ficou-lhe na mão, partindo-se em dois triângulos que caíram na água e deslizaram até ao fundo com um movimento síncrono e ziguezagueante, onde ficaram, a alguns centímetros de distância um do outro, contorcendo-se sob a luz refractada.
Cecília e Robbie imobilizaram-se na sua luta. Os seus olhos encontraram-se e o que ela detectou, naquela mistura biliosa de verde e cor-de-laranja, não foi choque, nem culpa, mas uma espécie de desafio ou até mesmo de triunfo. Teve a presença de espírito de voltar a pousar a jarra, agora partida, no degrau, antes de começar a confrontá-lo com o significado daquele acidente. Sabia que ia ser irresistível, até mesmo delicioso, pois quanto mais grave o tornasse pior seria para Robbie. O seu tio que morrera, o saudoso irmão do seu pai, a travessia do rio traiçoeiro, o seu valor sentimental, o heroísmo e a bondade, todos os anos acumulados na história daquela jarra até ao génio de Hóroldt e, para além dele, até aos arcanos que tinham inventado a porcelana.
- Idiota! Já viste o que fizeste?
Ele olhou para a água, depois voltou a olhar para ela e limitou-se a abanar a cabeça, enquanto punha uma mão à frente da boca. O gesto dele significava que assumia total responsabilidade, mas naquele momento ela odiou-o por aquela reacção tão desajustada. Ele olhou para a bacia e suspirou. Por momentos, pensou que ela ia dar um passo para trás e pisar a jarra, o que o levou a levantar a mão e a apontar, mas sem dizer nada. Em vez disso, começou a desabotoar a camisa. Ela percebeu imediatamente o que ele se preparava para fazer. Era intolerável. Tinha ido a sua casa e tinha tirado as meias e os sapatos - muito bem: ela mostrar-lhe-ia como era. Tirou as sandálias, desabotoou a blusa e despiu-a, desapertou a saia e tirou-a pelos pés e meteu-se na bacia. Ele ficou imóvel, de mãos nas ancas, a vê-la meter-se na água em roupa interior. Negar a ajuda dele, negar-lhe qualquer possibilidade de remediar o que tinha feito, seria a sua forma de o castigar. A temperatura inesperadamente baixa da água, que quase a deixou sem respiração, seria o castigo dele. Susteve o fôlego e mergulhou, deixando o cabelo aberto em leque à superfície. Afogar-se seria o castigo dele.
Quando emergiu alguns segundos depois, com um caco em cada mão, ele teve o discernimento de não se oferecer para a ajudar a sair da água. Aquela ninfa branca e frágil, da qual a água corria em cascata, mais que do corpulento Tritão, colocou cuidadosamente os pedaços junto da jarra. Vestiu-se rapidamente, enfiando com dificuldade os braços molhados nas mangas de seda e prendendo a blusa desapertada com a saia. Pegou nas sandálias e enfiou-as debaixo do braço, pôs os cacos no bolso da saia e pegou na jarra. Fez tudo aquilo com movimentos selvagens e sem olhar para ele. Ele não existia, fora banido, e isso também era uma forma de o castigar. Ficou imóvel e em silêncio, a vê-la afastar-se descalça e com o cabelo escuro a ondular pesadamente sobre os ombros, encharcando-lhe a blusa. Depois voltou-se e olhou para a água, para o caso de lá ter ficado algum bocado da jarra. Era difícil ver porque a superfície da água ainda não tinha recuperado a tranquilidade, sendo, aliás, a sua turbulência acrescida pelo espírito remanescente da fúria dela. Robbie pousou a mão sobre a água, como para a aquietar. Entretanto, Cecília desaparecera dentro de casa.
3
Segundo o cartaz que estava no átrio de entrada, a data da estreia de As Provações de Arabella era no dia seguinte ao do primeiro ensaio. No entanto, não era fácil para a autora e encenadora arranjar tempo para se concentrar no trabalho. Como acontecera na tarde anterior, o problema estava em reunir o elenco. O pai de Arabella, Jackson, tinha feito chichi na cama de noite, o que é habitual nos miúdos pequenos quando estão longe de casa e, segundo as regras que na altura imperavam na família, teve de ser ele a levar os lençóis e o pijama para a lavandaria e a lavá-los, à mão, sob a supervisão de Betty, que recebera instruções para ser distante e firme. O objectivo não era levá-lo a considerar aquilo um castigo, mas antes instruir o seu subconsciente no sentido de que futuros descuidos acarretariam incómodos e trabalhos pesados; mas ele não podia deixar de se sentir objecto de recriminação, encostado ao enorme tanque de pedra que lhe dava pelo peito, com a espuma a subir-lhe pelos braços despidos e a encharcar-lhe as mangas arregaçadas, com o peso dos lençóis molhados a lembrar-lhe um cão morto e um sentimento geral de calamidade a toldar-lhe a vontade. Briony ia ter com ele de vez em quando para ver quanto tempo faltava. Estava proibida de ajudar, e claro que Jackson nunca tinha lavado uma peça de roupa em toda a sua vida. Fora obrigado a ensaboar duas vezes a roupa, a enxaguá-la vezes sem conta e a passá-la pela calandra. Depois tinha passado um quarto de hora na cozinha a tremer, com um pão com manteiga e um copo de água à sua frente. No total, tinham sido roubadas duas horas ao ensaio.
Quando Hardman surgiu do calor da manhã para o seu habitual copo de cerveja, Betty disse-lhe que já bastava ter de fazer um assado especial para o jantar e que tinha achado o tratamento demasiado duro; preferia ter-lhe dado umas palmadas no rabo e ter sido ela a lavar os lençóis. Teria dado imenso jeito a Briony, pois a manhã estava a fugir. Quando Emily Tallis desceu à lavandaria para verificar com os seus próprios olhos que o trabalho fora feito, era inevitável que se instalasse em todos eles uma sensação de alívio e no espírito de Mrs Tallis uma certa culpa não admitida. Por isso, quando Jackson perguntou em voz baixa se seria possível ir um bocadinho à piscina com o irmão, o seu desejo foi imediatamente satisfeito e as objecções de Briony generosamente afastadas, como se fosse ela quem estava a dar ordens desagradáveis àquele menino indefeso. Assim, foram nadar. A seguir seriam horas de almoçar.
Os ensaios tinham continuado sem a presença de Jackson, mas era muito mau não aperfeiçoar a primeira cena, a partida de Arabella, que era tão importante. Por outro lado, Pierrot estava demasiado nervoso com o que estaria a acontecer ao irmão, lá nos confins da casa, para conseguir estar à altura de um infame conde estrangeiro. O que quer que acontecesse a Jackson poderia acontecer também a Pierrot um dia. Foi obrigado a ir uma série de vezes à casa de banho, ao fundo do corredor.
Quando Briony voltou de uma das suas visitas à lavandaria, ele perguntou-lhe:
- Ele já apanhou?
- Ainda não.
Tal como o irmão, também Pierrot tinha um jeito especial para retirar todo o sentido às suas falas. Salmodiou uma série de palavras: “Achas-que-podes-escapar-às-minhas-garras”. Correcto e afirmativo.
- Uma pergunta - interrompeu Briony. - Não percebes? Tens de subir a voz no fim.
- Como?
- Como acabaste de fazer. Começas em baixo e acabas a subir. É uma pergunta.
Ele engoliu em seco, respirou fundo e fez outra tentativa, produzindo desta vez a mesma salmodia, mas numa escala cromática ascendente.
- No fim. Sobes a voz no fim!
Seguiu-se mais uma vez a velha salmodia monótona, mas com uma quebra de registo, uma espécie de canto tirolês, na última sílaba.
Lola viera nessa manhã ao quarto de brincar com a pose de adulta que, lá no fundo, considerava ser. Trazia umas calças de flanela de xadrez, largas nas ancas e afuniladas no tornozelo, e uma blusa de caxemira, de mangas curtas. Outros sinais de maturidade incluíam uma écharpe de veludo com pérolas minúsculas, as tranças ruivas presas na nuca com um gancho de esmeraldas, três pulseiras de prata no pulso sardento e o perfume de água de rosas que espalhava onde quer que fosse. Havia nela uma certa condescendência, que, por ser reprimida, se tornava ainda mais evidente. Reagia pacificamente às sugestões de Briony, dizia as suas deixas, que parecia ter aprendido da noite para o dia, de uma forma suficientemente expressiva, o que era uma forma de encorajar o irmão mais novo sem se imiscuir na autoridade da directora. Era como se Cecília, ou até a mãe delas, tivesse concordado em passar algum tempo com os mais pequenos, aceitando um papel na peça, e estivesse determinada a não deixar transparecer o menor indício de aborrecimento. O que faltava era uma demonstração de entusiasmo espontâneo, infantil. Quando, na noite anterior, Briony mostrara aos primos a bilheteira e a caixa do dinheiro, os gémeos tinham brigado pelos papéis que lhes dessem mais protagonismo, mas Lola cruzara os braços e debitara alguns elogios bem educados, próprios de um adulto, esboçando um sorriso demasiado opaco para que pudesse vislumbrar-se nele qualquer ironia.
- Que maravilha! Foste muito inteligente em pensar em tudo isto, Briony. Foste tu que fizeste tudo sozinha?
Briony suspeitava que por detrás dos modos perfeitos da sua prima mais velha havia uma intenção destrutiva qualquer. Talvez Lola estivesse a contar que os gémeos arruinassem involuntariamente a peça, bastando-lhe ficar a observar.
Aquelas suspeitas não provadas, o castigo de Jackson na lavandaria, a actuação desastrosa de Pierrot e o calor colossal que se fazia sentir naquela manhã estavam a deixar Briony oprimida. Também se sentiu incomodada ao ver Danny Hardmann a observá-los da porta. Teve de lhe pedir que se fosse embora. Não conseguiu penetrar o distanciamento de Lola nem ensinar a Pierrot as inflexões da linguagem quotidiana. Assim, foi um alívio dar consigo sozinha no quarto de brincar. Lola dissera que precisava de ir arranjar o cabelo e o irmão dela tinha desaparecido corredor fora, talvez para ir à casa de banho ou a um sítio ainda mais distante.
Briony sentou-se no chão, encostada a um dos armários onde estavam guardados os brinquedos, e refrescou a cara abanando as folhas da peça. A casa estava envolta num silêncio total - não se ouviam vozes nem passos no andar de baixo; não havia qualquer murmúrio nas canalizações; uma mosca armadilhada numa das janelas de guilhotina abertas tinha desistido de lutar e lá fora o pássaro do cristalino tinha-se evaporado. Puxou os joelhos para cima, deixando que as dobras do seu vestido branco de musselina e os refegos familiares da pele à volta dos joelhos dominassem o seu ângulo de visão. Devia ter mudado de vestido. Pensou que devia cuidar mais do seu aspecto, como Lola. Era uma criancice não o fazer. Mas era um esforço tão grande. O silêncio vibrava nos seus ouvidos e a sua visão estava ligeiramente distorcida - as mãos pousadas no colo pareciam-lhe invulgarmente grandes e, ao mesmo tempo, distantes, como se estivesse a vê-las de muito longe. Levantou uma mão, dobrou os dedos e pensou como já outras vezes pensara, de que maneira aquela coisa, aquela máquina de agarrar, aquela aranha carnuda que se encontrava na extremidade do seu braço lhe pertencia, como podia estar inteiramente às suas ordens. Ou teria vida própria? Dobrou um dedo e esticou-o. O mistério estava no instante antes de ele se mexer, no momento em que a sua intenção produzia efeito. Era como uma onda a rebentar. Se conseguisse, ao menos, encontrar-se a si mesma na crista dessa onda, talvez encontrasse o seu próprio segredo, aquela parte de si que estava de facto a controlar a situação. Aproximou mais o indicador do rosto e olhou para ele, instigando-o a mexer-se. Mas ele continuava imóvel porque ela estava a fingir, não estava a falar a sério, e porque querer que ele se mexesse, ou estar prestes a mexê-lo, não era a mesma coisa que mexê-lo de facto. E quando por fim o dobrou pareceu-lhe que essa acção fora iniciada no próprio dedo, e não algures no seu cérebro. Como é que ele sabia quando devia mexer-se, como é que ela sabia quando devia mexê-lo? Não se punha a questão de ser apanhada em falso. Era uma coisa ou outra. Não havia nenhuma costura, nenhuma cicatriz, e, no entanto, ela sabia que por detrás daquele tecido suave e contínuo estava o verdadeiro eu - seria a sua alma? - que tomara a decisão de parar de fingir e dera a ordem final.
Aqueles pensamentos eram tão familiares e tão reconfortantes como a configuração exacta dos seus joelhos, o seu aspecto coincidente mas concorrente, simétrico e reversível. Havia sempre um segundo pensamento após um primeiro; um mistério dava origem a outro: todas as outras pessoas estariam tão vivas como ela? Por exemplo, a irmã seria realmente importante para ela, seria tão preciosa para si própria como Briony era? A irmã teria também um eu real escondido por detrás de uma onda a rebentar? Perderia tempo a pensar nisso, com um dedo encostado à cara? E todos os outros, incluindo o pai, Betty, Hardman? Se a resposta fosse sim, então o mundo, o mundo social, era insuportavelmente complicado, com dois mil milhões de vozes e os pensamentos de toda a gente a entrechocarem-se, e toda a gente a querer viver a vida de forma igualmente intensa, e toda a gente a pensar que era um ser único, quando ninguém o era. Uma pessoa podia afogar-se no meio de tamanha irrelevância. Se a resposta fosse não, Briony estaria rodeada por máquinas, suficientemente inteligentes e agradáveis por fora, mas sem sentir o interior brilhante e privado que ela tinha. Era algo de sinistro e solitário, e também improvável. Porque, embora fosse uma ofensa ao seu sentido de ordem, ela sabia que era altamente provável que toda a gente tivesse pensamentos iguais aos seus. Sabia-o, mas só de uma forma um tanto ou quanto árida; não o sentia verdadeiramente.
Os ensaios também ofendiam o seu sentido de ordem. O mundo controlado que ela tinha desenhado com traços claros e perfeitos fora desfigurado pelas garatujas de outras mentes, por outras necessidades; até o próprio tempo, tão facilmente seccionado no papel em actos e cenas, estava agora a escoar-se de forma incontrolável. Talvez só conseguisse recuperar Jackson depois de almoço. Leon e o amigo chegariam ao fim da tarde, ou talvez mais cedo, e a peça estava marcada para as sete. E ainda não tinha havido um ensaio como devia ser, os gémeos não sabiam representar, nem sequer falar, Lola tinha roubado o papel que por direito lhe pertencia a ela, não havia nada a fazer, estava muito calor, um calor absurdo. Contorceu-se, abatida, e levantou-se. O pó do rodapé tinha-lhe sujado as mãos e a parte de trás do vestido. Perdida nos seus pensamentos, limpou as palmas das mãos na fronte e dirigiu-se para a janela. A forma mais simples de impressionar Leon teria sido escrever-lhe um conto, depositar-lho nas mãos e ficar a observá-lo enquanto ele o lia. A letra do título, a capa ilustrada, as páginas encadernadas - encontrava nessa palavra a atracção da forma ordenada, limitada e controlável que abandonara ao decidir escrever uma peça de teatro. Uma história era uma coisa directa e simples, que não permitia que nada interferisse entre ela própria e o leitor - não havia intermediários com as suas ambições privadas ou a sua incompetência, nem pressões de tempo, nem recursos limitados. Numa história bastava desejar, escrever e poder-se-ia alcançar o mundo. Numa peça era preciso fingir com o que estava à mão: não havia cavalos, nem ruas, nem beira-mar. Não havia pano. Parecia tão óbvio agora que era tarde de mais: uma história era uma forma de telepatia. Escrevendo uns quantos símbolos a tinta numa folha de papel conseguia enviar pensamentos e sentimentos da sua mente para a do leitor. Era um processo mágico, tão vulgar que ninguém parava para pensar sobre ele. Ler uma frase e entendê-la eram a mesma coisa, tal como dobrar um dedo - não havia nada entre eles. Não havia um intervalo durante o qual os símbolos fossem decifrados. Via-se a palavra “castelo” e ali estava ele, visto ao longe, com os bosques estendendo-se à sua frente no pino do Verão, o ar azulado e doce com o fumo que vinha da forja do ferrador e uma estrada pedregosa que ondulava e desaparecia por entre a sombra verdejante... Tinha chegado a uma das janelas abertas do quarto de brincar e devia ter visto o que estava à sua frente alguns segundos antes de o ter registado. Era uma cena onde podia perfeitamente encaixar-se, pelo menos ao longe, um castelo medieval. Alguns quilómetros para lá da propriedade dos Tallis erguiam-se as colinas do Surrey, com a sua população imóvel de carvalhos espessos e aguçados cujas copas verdejantes se encontravam envoltas por uma onda leitosa de calor. Depois, mais próximo, estava o jardim da propriedade, hoje em dia com um aspecto algo seco e selvagem, a arder como uma savana, com algumas árvores isoladas a lançarem uma sombra intensa e atarracada e as ervas altas a serem invadidas pelo amarelo leonino do pino do Verão. Mais perto ainda, nos limites da balaustrada, estavam os canteiros de rosas e, mais para cá, a fonte do Tritão. Junto à parede que sustentava a bacia estava a sua irmã e à frente dela estava Robbie Turner. Havia algo muito formal na sua postura, com os pés ligeiramente afastados e a cabeça inclinada para trás. Um pedido de casamento. Não teria surpreendido Briony. Ela própria escrevera um conto em que um humilde lenhador salvava uma princesa de se afogar e acabava por casar com ela. O que estava ali a acontecer encaixava-se perfeitamente. Robbie Turner, filho único de uma humilde mulher-a-dias e de pai desconhecido, a quem o pai de Briony pagara os estudos, que tinha tirado o curso de arquitecto paisagista e agora queria tirar Medicina, tivera a ousadia de pedir a mão de Cecília. Fazia todo o sentido. Aquela forma de ultrapassar os limites era a matéria de que eram feitos os romances do dia-a-dia.
Contudo, havia agora algo menos compreensível: Robbie estava a levantar a mão, com um gesto autoritário, como se estivesse a dar uma ordem à qual Cecília não se atrevia a desobedecer. Por insistência dele, estava a tirar a roupa, e com que rapidez! Já tinha tirado a blusa, tinha deixado a saia cair para o chão e estava agora a tirá-la pelos pés, enquanto ele a observava com uma expressão impaciente, de mãos nas ancas. Que estranho poder teria ele sobre ela?
Chantagem? Ameaças? Briony levou as duas mãos à cara e deu um passo para trás, afastando-se um pouco da janela. Fecharia os olhos e salvaguardar-se-ia de assistir à vergonha da irmã. Mas era impossível, porque estavam para acontecer mais surpresas. Cecília, impiedosamente imóvel apenas com a roupa interior, estava a subir para o lago, depois ficou com a água pela cintura, depois tapou o nariz - e depois desapareceu. Só restavam Robbie, as roupas no chão e, mais ao longe, o jardim silencioso e os longínquos montes azulados.
A sequência era incoerente - a cena do afogamento, seguida por um salvamento, devia ter precedido o pedido de casamento. Foi esse o último pensamento de Briony antes de admitir que não percebera e que tinha de ficar simplesmente a ver. Invisível, dois andares acima, com o benefício de um sol que a envolvia sem ambiguidades, tinha um acesso privilegiado ao comportamento dos adultos, a ritos e convenções sobre os quais, por enquanto, ainda não sabia nada. Era óbvio que eram coisas daquelas que aconteciam. No preciso momento em que viu a cabeça da irmã aparecer à superfície - graças a Deus!- Briony teve a primeira leve indicação de que a partir dali, no seu mundo, os castelos e as princesas teriam de dar lugar às peculiaridades do aqui e agora, do que se passava entre as pessoas, as pessoas vulgares que ela conhecia, do poder que elas tinham umas sobre as outras e de como era fácil entender tudo mal, completamente mal. Cecilia tinha saído do lago e estava a apertar a saia e, com alguma dificuldade, a enfiar a blusa sobre a pele molhada. Voltou-se abruptamente e retirou da sombra da parede da fonte uma jarra de flores em que Briony já tinha reparado. Dirigiu-se para casa. Não trocou quaisquer palavras com Robbie, nem sequer olhou na sua direcção. Ele estava a olhar fixamente para a água e depois também ele se afastou, certamente satisfeito, e deu a volta à casa. De repente a cena ficou vazia; a poça de água que estava no chão no sítio onde Cecília saíra do lago era a única prova de que alguma coisa acontecera.
Briony encostou-se à parede e deixou que os seus olhos percorressem o quarto de brincar sem se fixarem em nada. Sentia-se tentada a ser mágica e dramática e a considerar o que vira um quadro criado exclusivamente para si, um ensinamento moral especial que estava a ser-lhe transmitido envolto em mistério. Mas sabia muito bem que, se não se tivesse levantado no momento em que levantara, a cena teria acontecido na mesma, pois não tinha nada a ver com ela. Só o acaso a levara à janela. Não era um conto de fadas; era o mundo real, o mundo dos adultos, onde os sapos não falavam com as princesas e as únicas mensagens eram as que as pessoas transmitiam. Também se sentia tentada a correr para o quarto de Cecília e a exigir uma explicação. Briony resistiu porque queria explorar sozinha a ténue excitação do possível, o frémito fugidio causado pela perspectiva que estava prestes a definir, pelo menos emocionalmente. Os anos refinariam essa definição. Acabaria por admitir que talvez tivesse atribuído uma maior capacidade de decisão do que era admissível ao seu eu de treze anos. Na altura, podia não ter havido uma forma precisa para as palavras; aliás, podia até ter sentido apenas uma certa impaciência por voltar a escrever.
Enquanto esperava que os primos regressassem ao quarto de brincar, sentiu que podia escrever uma cena como a que se desenrolara junto da fonte, incluindo um observador escondido, como ela própria. Imaginou-se a correr para o seu quarto, para um bloco de linhas em branco e para a sua caneta de tinta permanente de baquelite. Conseguia ver as frases simples, os símbolos telepáticos a acumularem-se, a jorrarem pelo aparo. Conseguia escrever três vezes a cena, de três pontos de vista diferentes; a sua excitação vinha da perspectiva de liberdade, de ser poupada à penosa luta entre o bem e o mal, entre heróis e vilãos. Nenhuma das três versões era má, nem particularmente boa.
Não teria de julgar. Não teria de haver um ensinamento moral. Apenas teria de mostrar mentes individuais, tão vivas como a sua própria mente, a debaterem-se com ideia de que havia outras mentes igualmente vivas. Não eram apenas a maldade e as intrigas que faziam as pessoas infelizes; era a confusão e os mal-entendidos. Era, acima de tudo, a incapacidade de entender a simples verdade de que as outras pessoas eram tão reais como nós próprios. E só numa história era possível penetrar em tantas mentes diferentes e mostrar como todas elas tinham o mesmo valor. Era esse o único ensinamento moral que tinha de haver numa história.
Passadas seis décadas, descreveria como aos treze anos fizera o seu próprio percurso através de toda a história da literatura, começando pelas narrativas derivadas dos contos populares de tradição europeia, passando pelo teatro de intenções morais simples, até chegar a um realismo psicológico imparcial que descobrira sozinha numa manhã especial, durante uma onda de calor, em 1935. Estaria plenamente consciente das suas interpretações mitológicas e daria ao seu relato um tom sarcástico ou heróico-sarcástico. A sua ficção seria conhecida pela sua amoralidade e, como todos os autores pressionados por uma dúvida recorrente, sentir-se-ia obrigada a produzir uma linha narrativa, um enredo do seu desenvolvimento que contivesse o momento em que se tornava reconhecidamente ela própria. Sabia que não era correcto referir-se aos seus dramas no plural, que o seu sarcasmo a distanciava da criança séria e pensativa e que não era tanto aquela manhã longínqua que recordava, mas os relatos subsequentes que dela fizera. Era possível que a contemplação de um dedo dobrado, a ideia insuportável de outras mentes e a superioridade dos contos sobre as peças de teatro fossem pensamentos que já tivera de outras vezes. Também sabia que o significado do que quer que tivesse realmente acontecido viria da publicação da sua obra e nunca teria sido recordado sem ela.
Não podia, no entanto, trair-se completamente; não restavam dúvidas de que houvera uma revelação qualquer. Quando voltou à janela e olhou para baixo, a poça de água tinha-se evaporado. Nada restava agora da cena muda que decorrera junto da fonte, a não ser o que sobrevivera na memória, em três memórias distintas e sobrepostas. A verdade tornara-se tão espectral como a invenção. Agora, ao registar os acontecimentos como os vira, podia começar a enfrentar o desafio, recusando-se a condenar a quase-nudez chocante da irmã, em pleno dia, mesmo ao pé de casa. Depois a cena poderia ser refeita, pelos olhos de Cecília e depois pelos de Robbie. Mas não era a altura de começar. O sentido do dever de Briony, bem como o seu instinto de ordem, eram muito fortes; tinha de concluir o que começara, havia um ensaio em curso, Leon vinha a caminho, toda a casa estava à espera da apresentação do espectáculo nessa noite. Tinha de ir uma vez mais à lavandaria ver se as provações de Jackson já tinham acabado. A escrita podia esperar até ela estar liberta.
4
Só ao fim da tarde é que Cecília deu a jarra por arranjada. Tinha estado a secar sobre uma mesa na biblioteca, perto de uma janela voltada a sul, e agora só se viam três linhas finas a ondularem sobre o vidrado, como três rios convergentes num atlas. Ninguém saberia. Quando atravessou a biblioteca, segurando a jarra com as duas mãos, ouviu o que lhe pareceu o som de uns pés descalços sobre os mosaicos do átrio, junto à porta da biblioteca. Depois de ter passado muitas horas sem pensar deliberadamente em Robbie Turner, pareceu-lhe ultrajante a ideia de ele ter podido voltar lá a casa e mais uma vez sem peúgas. Cecília saiu da sala, decidida a enfrentar a insolência ou a troça dele, mas em vez disso deu de caras com a irmã, visivelmente angustiada. Tinha as pálpebras inchadas e vermelhas e estava a beliscar o lábio inferior com o indicador e o polegar, o que em Briony era um sinal antigo de que estava cheia de vontade de chorar.
- O que foi, querida?
Na verdade, tinha os olhos secos e baixou-os ligeiramente para fitar a jarra. Depois prosseguiu o seu caminho até ao local onde se encontrava o cavalete com o cartaz com o título em letras alegres e multicolores e uma montagem estilo Chagall de alguns dos passos mais importantes da peça pintados a aguarela à volta das letras: os pais a dizerem adeus, lavados em lágrimas, a viagem ao luar até à costa, a heroína no seu leito de moribunda, um casamento. Imobilizou-se junto a ele e depois, com um golpe violento, em diagonal, arrancou metade do cartaz e deitou-o para o chão. Cecília pousou a jarra e correu a apanhar o bocado de papel antes de a irmã começar a pisá-lo. Não era a primeira vez que salvava Briony de um gesto de autodestruição.
- Então, maninha? Foram os primos?
Queria reconfortar a irmã, pois Cecília sempre adorara mimar o bebé da família. Quando Briony era pequenina e dada a pesadelos - que gritos horríveis dava durante a noite! - Cecília costumava ir ao quarto dela e acordá-la. Vá lá, sussurrava-lhe. É só um sonho. Acorda. E depois levava-a para a sua cama. Naquele momento apetecia-lhe pôr o braço sobre os ombros de Briony, mas ela já não estava a beliscar o lábio e já tinha ido para a porta da frente. Tinha uma mão pousada sobre o batente de latão em forma de cabeça de leão, a que Mrs Turner dera brilho nessa tarde.
- Os primos são parvos. Mas não é só isso. É... - Afastou-se, sem saber ao certo se devia ou não partilhar com ela a sua recente revelação.
Cecília alisou o triângulo de papel rasgado e pensou em como a sua irmã estava mudada. Preferia que Briony tivesse chorado e a tivesse deixado reconfortá-la na chaise longue de seda da sala de estar. As suas carícias e murmúrios tranquilizadores teriam sido um escape para Cecília depois de um dia tão frustrante e cheio de sentimentos contraditórios que antes queria nem pensar neles. Falar dos problemas de Briony, com palavras doces e carícias meigas, ter-lhe-ia devolvido uma sensação de domínio.
Havia contudo, uma certa autonomia na infelicidade da irmã mais nova. Tinha-lhe voltado as costas e estava a abrir a porta de par em par.
- Mas então o que foi? - Cecília sentia o tom de necessidade na sua voz.
Para além da irmã, muito para além do lago, a estrada curvava atravessando o jardim, estreitava e convergia sobre um ponto mais elevado onde uma forma minúscula, quase tornada indistinta pela cintilação do calor, se avolumava e depois tremeluzia e parecia retroceder. Devia ser Hardman, que dizia que já era velho de mais para aprender a guiar um carro, que trazia as visitas na charrette.
Briony mudou de ideias e voltou-se para a irmã.
- É tudo um engano... - Inspirou rapidamente e olhou para longe, um gesto que Cecília pressentiu antecipar uma palavra retirada do dicionário e utilizada pela primeira vez. - É o genre errado! - Pronunciou-o com o sotaque francês, num monossílabo, mas sem envolver o “r” com a língua.
- Jean? - contrapôs Cecília. - De que estás a falar?
Mas Briony já se afastava, saltitando com as solas brancas dos pés sobre a gravilha escaldante.
Cecília foi à cozinha pôr água na jarra e levou-a para o quarto para ir buscar as flores ao lavatório. Quando as pôs na jarra, elas recusaram-se mais uma vez a dispor-se da forma artisticamente desordenada que ela pretendia. Rodopiaram na água num arranjo voluntarioso, com os pés mais altos distribuídos de forma regular à volta do rebordo. Levantou as flores, tornou a deixá-las cair e elas voltaram a dispor-se segundo um padrão ordenado. Não fazia mal. Era difícil imaginar o tal Mr Marshall a queixar-se de que as flores que se encontravam no seu quarto estavam demasiado simétricas. Cecília levou o arranjo para o segundo andar, atravessou o corredor fazendo ranger as tábuas do soalho, dirigiu-se para a divisão que costumavam designar por quarto da tia Vénus e pousou a jarra sobre uma cómoda ao lado de uma cama de dossel, concluindo assim a pequena tarefa de que a mãe a incumbira nessa manhã - oito horas antes.
Contudo, Cecília não se foi logo embora, pois o quarto estava agradavelmente desprovido de bens pessoais - aliás, era o único quarto arrumado lá de casa, para além do de Briony. Também estava fresco, agora que o sol já se tinha deslocado para a parte lateral da casa. Todas as gavetas estavam vazias, todas as superfícies nuas, sem sequer uma dedada. Sob a colcha de chita, estariam uns lençóis certamente imaculados. Sentiu o impulso de fazer deslizar a mão por baixo da coberta para os sentir, mas em vez disso avançou mais para o interior do quarto de Mr Marshall. Aos pés da cama de dossel estava um sofá Chippendale, cujo assento fora tão cuidadosamente alisado que sentar-se nele pareceria um sacrilégio. O ar estava aveludado com o cheiro da cera e, sob a luz melíflua, as superfícies polidas da mobília pareciam agitar-se e respirar. A sua progressão no quarto fez que o seu ângulo de visão se alterasse. Teve a sensação de que os bonecos que decoravam a tampa de uma antiga arca tinham começado a dar alguns passos de dança. Mrs Turner devia ter passado pelo quarto nessa manhã. Encolheu os ombros como que a afastar a associação de ideias com Robbie. Estar ali era uma espécie de transgressão, estando o futuro ocupante do quarto apenas a algumas centenas de metros da casa.
Do local onde se encontrava, junto à janela, conseguiu ver que Briony passara a ponte que dava para a ilha e estava a descer a encosta verdejante, começando a desaparecer por entre as árvores à beira do lago que rodeavam o templo da ilha. Mais ao longe, Cecília conseguia distinguir duas figuras de chapéu, sentadas no banco por detrás de Hardman. Via agora uma terceira figura, em que não tinha reparado antes, a descer a rampa em direcção à charrette. Devia ser Robbie Turner a voltar para casa. Parou e, quando as visitas se aproximaram, o seu vulto pareceu fundir-se com os dos outros. Conseguia imaginar a cena - as palmadas viris nas costas, as piadas grosseiras. Incomodava-a o facto de o irmão não saber o erro que Robbie cometera e afastou-se da janela com uma exclamação de irritação, dirigindo-se para o quarto para ir buscar um cigarro.
Ainda tinha um maço de tabaco, e só ao fim de alguns minutos de busca desenfreada por entre a confusão que lá reinava é que conseguiu encontrá-lo no bolso de um robe de seda azul caído no chão da casa de banho. Acendeu o cigarro enquanto descia a escada, sabendo que jamais ousaria fazê-lo se o pai estivesse em casa. Ele tinha ideias muito precisas sobre onde e quando uma mulher devia ser vista a fumar: nunca na rua, nem em qualquer local público, nunca ao entrar numa casa, nunca de pé, e só quando lhe oferecessem um cigarro, nunca um dos seus - ideias tão lógicas para ele como a justiça natural. Os três anos que passara com os sofisticados companheiros de Girton não lhe tinham dado coragem suficiente para o enfrentar. As piadas alegres que trocava com os amigos abandonavam-na na presença dele. Já notara que a sua própria voz chegava a tornar-se débil quando tentava contradizê-lo, ainda que de forma dócil. Aliás, estar contra o pai em relação a qualquer coisa, mesmo que fosse um pormenor insignificante da vida doméstica, causava-lhe um grande desconforto, e não havia nada que a grande literatura pudesse ter alterado na sua sensibilidade, nem nenhuma lição prática de crítica, capaz de a livrar de lhe obedecer. Fumar nas escadas enquanto o pai estava instalado no seu ministério em Whitehall era a atitude de revolta máxima que a sua educação lhe permitia, e mesmo assim com algum esforço.
Quando chegou ao patamar que dominava todo o átrio de entrada, Leon estava a fazer sinal a Paul Marshall de que entrasse pela ampla porta da frente. Danny Hardman estava atrás deles com as bagagens. Via-se ainda, lá fora, o velho Hardman a contemplar em silêncio a nota de cinco libras que tinha na mão. A luz indirecta da tarde, reflectida pela gravilha e filtrada pela bandeira da porta mergulhava o átrio na tonalidade alaranjada de uma fotografia a sépia. Os homens tinham tirado os chapéus e estavam à espera dela, a sorrir. Cecília interrogou-se, como por vezes lhe acontecia quando conhecia um homem, se seria aquele com quem iria casar-se e se seria aquele o momento que devia recordar para o resto da vida - com gratidão, ou com um desgosto profundo reservado.
- Mana! - gritou Leon. Quando se abraçaram ela sentiu no peito, através do tecido do casaco dele, o volume de uma grossa caneta de tinta permanente, e sentiu o cheiro a cachimbo nas suas roupas, o que lhe causou uma nostalgia momentânea das visitas para o chá da tarde aos quartos nos colégios masculinos, ocasiões bastante elegantes e anódinas, mas também alegres, sobretudo no Inverno.
Paul Marshall deu-lhe um aperto de mão e fez uma pequena vénia. Havia uma expressão comicamente pesada e melancólica no seu rosto. As primeiras palavras que lhe dirigiu foram terrivelmente convencionais:
- Já ouvi falar muito de si.
- E eu de si. - A única coisa de que se lembrava era de uma conversa ao telefone com o irmão, alguns meses antes, sobre se já alguma vez tinham comido ou se jamais comeriam um chocolate Amo.
- A Emily está deitada.
Era quase desnecessário dizê-lo. Já em crianças percebiam, do fundo do jardim, quando a mãe estava com enxaquecas, pelo facto de os reposteiros estarem fechados.
- E o velhote está na cidade?
- Talvez venha mais logo.
Cecília sabia que Paul Marshall estava a olhar para ela, mas antes de olhar para ele tinha de preparar qualquer coisa para dizer.
- Os miúdos estavam a montar uma peça de teatro, mas parece que foi tudo por água abaixo.
- Deve ter sido a tua irmã que eu vi ao pé do lago - disse Marshall. - Estava a dar uma boa tareia às urtigas.
Leon afastou-se para deixar passar o filho de Hardman com as malas, ao mesmo tempo que perguntou:
- Onde é que o Paul vai ficar?
- No segundo andar - respondeu Cecília, inclinando a cabeça para dirigir estas palavras ao jovem Hardman.
Ao chegar ao fundo das escadas parara e voltara-se, com uma mala em cada mão, para olhar para o sítio onde eles estavam agrupados, ao centro dos mosaicos em xadrez. Tinha no rosto uma expressão de incompreensão tranquila. Cecília notara que ultimamente ele andava muito próximo dos miúdos. Talvez estivesse interessado em Lola. Tinha dezasseis anos e já não era nenhum miúdo. Perdera as bochechas rechonchudas que tinha em criança, e a inclinação infantil dos lábios prolongara-se e assumira uma inocência cruel. A constelação de acne espalhada pela sua testa tinha um ar diferente; estava dissimulada pela luz sépia. Cecília apercebeu-se de que passara o dia todo a sentir-se estranha e a ver as coisas de uma forma estranha, como se tudo já fizesse parte de um passado longínquo, que se tornava mais vívido graças a umas quantas ironias póstumas que não conseguia perceber.
- O quarto grande a seguir ao quarto de brincar - disse ela, num tom paciente.
- O quarto da tia Vénus - disse Leon.
A tia Vénus fora durante quase meio século uma presença vital, vinda algures do Norte do Canadá. Não era tia de ninguém em especial, ou melhor, era tia de um segundo primo de Mr Tallis, já falecido, mas ninguém questionava o seu direito, depois de se ter reformado, ao quarto do segundo andar, onde permanecera presa à cama durante a maior parte da infância deles, até acabar por morrer, sem o mais pequeno queixume, quando Cecília tinha dez anos. Briony nascera uma semana depois.
Cecília acompanhou os recém-chegados até à sala de estar, passando depois para o terraço, pelas roseiras, em direcção à piscina, que ficava por detrás dos estábulos e estava rodeada por uma alta vedação de bambu, com um intervalo em forma de túnel a servir de entrada. Curvaram as cabeças para passarem sob as canas, indo dar a um terraço de pedra de um branco ofuscante, de onde o calor irradiava como numa explosão. A sombra, afastada da beira da água, estava uma mesa pintada de branco, com um jarro de punch gelado sobre uma toalha de xadrez. Leon abriu as cadeiras de lona e eles sentaram-se quase em círculo, de copo na mão, voltados para a piscina. Marshall, sentado entre Leon e Cecília, controlou a conversa com um monólogo de dez minutos. Disse-lhes que era maravilhoso estar longe da cidade, num sítio tão tranquilo, a respirar o ar do campo; durante nove meses passara todos os minutos do dia preso à mesma visão, entre a sede, a sala da administração e a fábrica. Tinha comprado uma casa enorme em Clapham Common e quase não tinha tempo para lá ir. O lançamento do Rainbow Amo fora um sucesso, mas só depois de algumas catástrofes a nível de distribuição, que agora já tinham sido ultrapassadas; a campanha publicitária tinha ofendido alguns bispos mais idosos, pelo que fora necessário criar outra; depois vieram os problemas do sucesso propriamente dito, volumes de vendas incríveis, novas quotas de produção, discussões sobre o pagamento das horas extraordinárias e a necessidade de encontrar um local para uma segunda fábrica, em relação à qual os quatro sindicatos envolvidos tinham sido intratáveis, obrigando-o a aliciá-los e a mimá-los como meninos pequenos. E agora, chegado o momento de usufruir de tudo aquilo, surgia o desafio ainda maior do Army Amo, a tablete caqui com o slogan: Pass the Amo! A ideia assentava no pressuposto de que as despesas com as Forças Armadas deviam continuar a aumentar, caso Hitler não metesse a viola no saco. Havia até a possibilidade de a tablete passar a fazer parte da ração de combate; nesse caso, se houvesse uma mobilização geral, seriam precisas mais cinco fábricas. Alguns elementos da administração estavam convencidos de que devia haver, e de que haveria, um acordo com a Alemanha, e o Army Amo seria um fiasco; um deles acusava mesmo Marshall de estar a fomentar a guerra; mas, por exausto que estivesse, e por mais que o difamassem, não deixaria que o afastassem do seu objectivo, da sua visão. Terminou repetindo que era maravilhoso estar ali, num sítio onde era possível recuperar o fôlego.
Enquanto o observava durante os primeiros minutos do seu discurso, Cecília sentiu um agradável aperto no estômago ao imaginar como seria deliciosamente destrutivo, quase erótico, casar com um homem quase belo, tão rico e tão estúpido. Enchê-la-ia de filhos gordos, todos rapazes barulhentos e burros, com uma paixão por armas, futebol e aviões. Observou o seu perfil, quando ele se voltou para Leon. Havia um músculo que se contorcia sobre o seu maxilar quando falava. Tinha alguns pêlos pretos salientes das sobrancelhas e também das orelhas lhe saía um tufo de pêlos pretos, ridiculamente encarquilhados como pêlos púbicos. Precisava de ter uma conversa com o barbeiro.
O mais pequeno desvio no seu olhar poria o rosto de Leon no seu ângulo de visão, mas ele seguia educadamente a expressão do amigo e parecia decidido a não cruzar o seu olhar com o dela. Quando eram pequenos costumavam atormentar-se um ao outro com “o olhar” durante os almoços de domingo que os pais ofereciam aos membros mais velhos da família. Havia ocasiões indescritíveis, dignas do antigo serviço de prata; os veneráveis tios-avôs e avós do lado da mãe eram vitorianos; eram uma gente desconcertante e severa, uma tribo perdida que chegava lá a casa, de capas negras, depois de ter passeado a sua rabugice por duas décadas de um século estranho e frívolo. Aterrorizavam Cecília, então com dez anos, e o seu irmão de doze anos, que ficavam sempre à beira de um ataque de riso. O que levava com o olhar não podia fazer nada; o que deitava o olhar ficava imune. Geralmente, o poder estava do lado de Leon, que ostentava uma expressão solene, mas de troça, com os cantos da boca para baixo e a revirar os olhos. Podia pedir a Cecília no tom mais inocente que lhe passasse o sal e, embora ela evitasse olhar para ele ao passar-lho, embora voltasse a cabeça e respirasse fundo, podia ser suficiente saber que ele estava a fazer aquela cara para passar noventa minutos numa tortura de riso abafado. Leon, entretanto, ficava à vontade; bastava-lhe olhar para ela de vez em quando, se achasse que ela estava a começar a recuperar. Só raramente Cecília conseguira fazê-lo parar com uma expressão altiva de aborrecimento. Por vezes, os miúdos ficavam sentados no meio dos adultos, o que tornava os olhares perigosos - fazer caretas à mesa podia ser motivo de um ralhete e do castigo de ir para a cama mais cedo. O melhor truque era tentarem olhar para o outro, por exemplo, na passagem de lamber os lábios para um sorriso rasgado. Uma vez tinham olhado um para o outro ao mesmo tempo, o que levara Leon a deitar sopa pelo nariz para o pulso de uma tia-avó. Tinham ficado ambos de castigo no quarto o resto do dia.
Cecília estava cheia de vontade de chamar o irmão à parte e dizer-lhe que Mr Marshall tinha pêlos púbicos a nascerem nas orelhas. Ele estava a relatar a discussão que tivera na sala do conselho de administração com o indivíduo que o acusara de fomentar a guerra. Ela ergueu o braço, como se fosse alisar o cabelo. Automaticamente, a atenção de Leon foi desviada para esse movimento e, nesse preciso momento, ela fez-lhe “o olhar” que ele não via há mais de dez anos. Leon cerrou os lábios e desviou a cara, concentrando-se em qualquer coisa de interessante que descobriu ao pé de um sapato. Quando Marshall se voltou para Cecilia, Leon tapou o rosto com as mãos em concha, mas não conseguiu disfarçar da irmã o tremor que lhe fazia estremecer os ombros. Felizmente para ele, Marshall estava a chegar ao fim.
-... onde se pode recuperar o fôlego.
Leon pôs-se imediatamente de pé. Foi até à beira da piscina e olhou para uma toalha vermelha encharcada que tinha ficado ao pé da prancha de saltos. Depois voltou para junto deles, de mãos nos bolsos, já quase recuperado.
- Adivinha quem encontrámos quando vínhamos para cá.
- O Robbie.
- Disse-lhe que viesse jantar connosco.
- Leon! Não acredito!
Ele estava com vontade de a aborrecer. Talvez para se vingar, disse ao amigo:
- O filho da mulher-a-dias consegue uma bolsa para o liceu, depois uma bolsa para Cambridge, vai para lá ao mesmo tempo que a Cee, e ela passa três anos quase sem falar com ele! Não o deixava aproximar-se das suas amiguinhas de Roedean.
- Devias ter-me perguntado primeiro.
Cecília estava verdadeiramente aborrecida. Quando se apercebeu disso, Marshall disse, num tom apaziguador:
- Conhecia alguns colegas de liceu em Oxford. Havia alguns extraordinariamente inteligentes. Mas, por vezes, também eram pessoas cheias de ressentimentos. Eu achava isso ridículo.
- Tens um cigarro? - perguntou ela.
Ele ofereceu-lhe um que tirou de uma cigarreira de prata, ofereceu outro a Leon e tirou um para si. Estavam todos de pé e, quando Cecília se aproximou do isqueiro de Marshall, Leon disse:
- Ele é inteligentíssimo. Por isso, não percebo o que anda a fazer de roda dos canteiros de flores.
Cecília foi sentar-se na prancha de saltos e tentou dar a impressão de que estava descontraída, mas havia alguma tensão na sua voz.
- Está a pensar em ir para Medicina. Quem me dera que não o tivesses convidado, Leon.
- O velhote já disse que sim?
Ela encolheu os ombros.
- Acho que devias ir a casa dele dizer-lhe que não viesse.
Leon tinha ido até ao lado mais baixo da piscina e estava a olhar para Cecília por sobre o lençol azul de água ligeiramente ondulante.
- Como é que eu posso fazer isso?
- Não me interessa como é que fazes. Arranja uma desculpa.
- Aconteceu alguma coisa entre vocês.
- Não, não aconteceu.
- Ele anda a importunar-te?
- Por amor de Deus!
Levantou-se irritada e afastou-se em direcção à casa da piscina, uma estrutura aberta suportada por três colunas estriadas. Encostou-se à coluna central, a fumar e a olhar para o irmão. Há apenas dois minutos estavam de conluio; agora estavam zangados - reviviam realmente a infância. Paul Marshall estava a meio caminho entre eles, voltando a cabeça ora para um ora para outro quando falavam, como num jogo de ténis. Tinha uma expressão neutra, vagamente curiosa, e parecia imperturbável perante aquela refrega de irmãos. Pelo menos isso jogava a favor dele, pensou Cecília.
- Achas que ele não sabe comer de faca e garfo? - disse o irmão.
- Pára com isso, Leon. Não tinhas nada que o convidar.
- Que parvoíce!
O silêncio que se seguiu foi parcialmente mitigado pelo ruído da bomba de filtragem. Não havia nada que ela pudesse fazer nem que pudesse obrigar Leon a fazer e de repente apercebeu-se da inutilidade daquela discussão. Recostou-se indolentemente à pedra quente, acabou calmamente o cigarro e admirou a cena que se desenrolava à sua frente - a placa escorçada de água com cloro, a câmara de um pneu de tractor presa a uma cadeira, os dois homens de fato de linho creme com uma diferença infinitesimal de tonalidades e o fumo azulado a elevar-se acima do verde do bambu. Parecia talhado, imóvel. Sentiu mais uma vez que aquilo já acontecera há muito tempo, e todos os desfechos, a todos os níveis - dos mais insignificantes até aos mais colossais - estavam já a postos. Acontecesse o que acontecesse no futuro, por mais estranho ou chocante que fosse, teria uma natureza familiar, não surpreendente, e convidá-la-ia a dizer, mas apenas para si própria: “Claro. É assim. Já devia saber.”
- Sabes o que eu acho? - perguntou ela, em voz baixa.
- O quê?
- Devíamos ir lá para dentro e tu arranjavas-nos uma bebida.
Paul Marshall bateu as mãos e o som fez ricochete por entre as colunas e na parede do fundo da casa da piscina.
- Ora aí está uma coisa que eu sei fazer bastante bem - disse ele. - Com gelo moído, rum e chocolate preto derretido.
A sugestão motivou uma troca de olhares entre Cecília e o irmão, que deram a discussão por terminada. Leon pôs-se imediatamente a caminho. Cecília e Paul Marshall seguiram-no e, ao chegarem à passagem na sebe, ela disse-lhe:
- Preferia uma coisa menos doce. Ou até mesmo amarga.
Ele sorriu e, como tinha sido o primeiro a chegar à passagem, parou para lhe dar precedência, como se estivessem à porta de uma sala. Quando passou, sentiu-o tocar-lhe ligeiramente no braço.
Também podia ter sido uma folha.
5
Nem Lola nem os gémeos sabiam exactamente o que levara Briony a abandonar os ensaios. Aliás, na altura, nem sequer sabiam que isso tinha acontecido. Estavam a fazer a cena em que Arabella, no seu leito de moribunda, recebe pela primeira vez, nas águas furtadas, o príncipe disfarçado de médico bondoso, e estava a correr bem, ou seja, não pior do que o habitual, com os gémeos a debitarem as suas falas de uma forma não mais imbecil do que das outras vezes. Quanto a Lola, não queria sujar o seu vestido de caxemira deitando-se no chão e por isso deixou-se cair para uma cadeira, sem que a directora pudesse obstar a isso. A mais velha ficou tão imbuída do espírito de obediência distante que se sentia acima de qualquer reprimenda. Em dado momento, Briony estava pacientemente a dar instruções a Jackson, depois parou, franziu o sobrolho, como se estivesse a corrigir-se a si própria, e no momento seguinte já tinha desaparecido. Não houve nenhum momento especial que marcasse a diferença, nenhum sinal de impaciência ou agitação. Deu meia volta e saiu, como se fosse à casa de banho. Os outros ficaram à espera, sem saberem que todo o projecto acabara. Os gémeos achavam que estavam a esforçar-se bastante, e Jackson em particular, por pensar que tinha caído em desgraça na casa dos Tallis e que podia reabilitar-se agradando a Briony.
Enquanto esperavam, os rapazes puseram-se a jogar futebol com um bloco de madeira, enquanto a irmã foi até à janela, cantarolando por entre os dentes. Ao fim de um período interminável foi ao corredor, dirigindo-se a uma porta aberta que dava para um quarto que não era utilizado. Do local onde se encontrava via a estrada e o lago, do outro lado do qual estava uma coluna de uma fosforescência ofuscante, com o calor intenso da tarde reflectido pela sua cor branca. Conseguia distinguir Briony encostada a essa coluna, para lá do templo da ilha, à beira da água. Talvez estivesse até dentro de água - com aquela luz era difícil dizer. Não dava a impressão de estar para voltar em breve. Ao sair do quarto, Lola reparou numa mala de viagem com um aspecto masculino, com pesadas correias de cabedal e etiquetas desbotadas de barcos a vapor. Fez-lhe lembrar vagamente o pai. Parou junto dela e sentiu o ténue cheiro a fuligem de uma carruagem de comboio. Pousou o polegar numa das fechaduras e abriu-a. O metal polido estava frio e conservou pequenas manchas de condensação do contacto da pele. O fecho saltou com um ruído intenso e apanhou-a de surpresa. Lola trancou-o e saiu apressadamente do quarto.
Seguiu-se mais algum tempo de inactividade para os primos. Lola mandou os gémeos verem se a piscina estava livre - sentiam-se lá pouco à vontade na presença de adultos. Os gémeos voltaram para comunicar à irmã que estava lá Cecília com dois adultos, mas Lola já não estava no quarto de brincar. Estava no quarto dela, a arranjar o cabelo em frente de um pequeno espelho de mão apoiado no parapeito da janela. Os rapazes estavam deitados na cama dela, a fazer cócegas um ao outro, a lutar e a gritar que nem uns loucos. Ela não estava para se dar ao trabalho de os mandar para o quarto deles. Sem peça de teatro e com a piscina ocupada, aquele tempo parado oprimia-os. Quando Pierrot disse que estava com fome sentiram saudades de casa - faltava imenso tempo para o jantar e não parecia bem irem lá abaixo pedir comida. Além disso, os rapazes não se atreviam a ir à cozinha porque tinham muito medo de Betty, que tinham visto nas escadas a levar umas coberturas de borracha para o quarto deles.
Algum tempo depois voltaram os três ao quarto de brincar, que, para além dos quartos, era a única divisão onde achavam que tinham direito de estar. O bloco de madeira azul estava no mesmo sítio onde o tinham deixado e tudo estava como dantes.
- Não gosto de cá estar - disse Jackson a certa altura. A simplicidade do desabafo afectou o irmão, que se afastou para junto de uma parede e descobriu qualquer coisa de interessante no rodapé para mexer com a ponta do sapato.
Lola pôs-lhe um braço sobre os ombros e disse-lhe:
- Deixa estar. Qualquer dia já vamos para casa. - O seu braço era muito mais magro e leve do que o da mãe e Pierrot começou a soluçar, mas em silêncio, preocupado por estar numa casa de estranhos, onde a boa educação era tudo o que importava.
Jackson também estava de lágrimas nos olhos, mas ainda conseguia falar.
- Vai demorar muito tempo. Só estás a dizer isso por dizer. Não podemos ir para casa... - Fez uma pausa para ganhar coragem e acrescentou: - É um divórcio!
Pierrot e Lola ficaram petrificados. Aquela palavra nunca fora dita em frente dos miúdos nem proferida por qualquer deles. As suas consoantes suaves sugeriam uma obscenidade impensável; o som sibilante parecia sussurrar a vergonha da família. O próprio Jackson pareceu destroçado ao pronunciá-la, mas, por muito que quisesse, era impossível retirá-la e, aliás, na opinião dele, dizer a palavra era um crime tão grande como o próprio acto, fosse ele o que fosse. Nenhum deles sabia exactamente o que significava, nem mesmo Lola. Ela dirigiu-se para ele, com os seus olhos verdes semicerrados como os de um gato.
- Como te atreves a dizer isso?
- É verdade - murmurou ele, voltando a cara. Sabia que estava metido em maus lençóis, que merecia estar em maus lençóis, e estava prestes a fugir quando ela o agarrou por uma orelha e aproximou a cara da dele.
- Se me bateres, digo aos Pais - disse ele rapidamente. Mas fora ele próprio a tornar inútil a invocação dessa figura, desse totem arruinado de uma idade de ouro perdida.
- Nunca mais voltas a dizer essa palavra. Estás a ouvir?
Profundamente envergonhado, disse que sim com a cabeça, e ela deixou-o ir embora.
O medo que os gémeos tinham sentido deixara-os sem lágrimas, e Pierrot, ansioso como habitualmente por reparar um acontecimento desagradável, disse alegremente:
- E agora, o que fazemos?
- Estou sempre a perguntar isso a mim próprio.
O homem alto, de fato branco, que estava à porta, podia lá estar há vários minutos e ter ouvido Jackson dizer a palavra. Foi esta ideia, mais do que o choque da sua presença, que os impediu a todos, incluindo Lola, de reagir. Saberia o que estava a acontecer com a família deles? Só lhes restava observarem-no para tentarem descobrir. Ele aproximou-se, de mão estendida.
- Paul Marshall.
Pierrot, o que estava mais próximo, apertou-lhe a mão em silêncio, tal como o irmão. Quando chegou a vez da rapariga, ela disse:
- Lola Quincey. Este é o Jackson e este é o Pierrot.
- Que nomes maravilhosos vocês têm! Mas como hei-de fazer para vos distinguir?
- Normalmente acham que sou mais simpático - disse Pierrot. Era uma piada de família, um dito inventado pelo pai que geralmente fazia rir os desconhecidos quando faziam essa pergunta. Mas aquele homem nem sequer esboçou um sorriso.
- Devem ser os primos do Norte - disse ele. Esperaram sob alguma tensão para ouvirem que mais sabia ele e viram-no atravessar o quarto de um lado ao outro e apanhar o bloco de madeira, que atirou ao ar e agarrou com ligeireza, produzindo um estalido.
- Eu estou no quarto ao fundo do corredor.
- Eu sei - disse Lola. - No quarto da tia Vénus.
- Exactamente esse. O antigo quarto dela.
Paul Marshall sentou-se no cadeirão que fora utilizado por Arabella. Tinha uma cara curiosa, onde sobressaíam as sobrancelhas e um queixo grande, como o de Dan, o Desesperado. Era um rosto cruel, mas os seus modos eram agradáveis, o que resultava numa combinação atraente, pensou Lola. Endireitou os vincos das calças, enquanto olhava de Quincey para Quincey. As atenções de Lola voltaram-se para a pele preta e branca dos seus sapatos e, reparando que ela os admirava, Paul começou a abanar o pé a um ritmo qualquer que lhe corria na cabeça.
- Lamento muito saber que já não vai haver peça.
Os gémeos aproximaram-se mais, decididos algo inconscientemente a cerrar fileiras no pressuposto de que, se ele sabia mais do que eles sobre os ensaios, devia saber ainda outras coisas. Foi Jackson que expôs as suas preocupações.
- Conhece os nossos pais?
- Mr e Mrs Quincey?
- Sim!
- Li notícias sobre eles nos jornais.
Os rapazes olharam fixamente para ele enquanto absorviam aquela resposta, mas ficaram sem palavras, pois sabiam que os jornais só tratavam de coisas graves: tremores de terra, choques de comboio, o que os governos e os países faziam todos os dias e se se devia ou não gastar dinheiro em armas caso Hitler atacasse a Inglaterra. Sentiam temor, mas não propriamente surpresa, pelo facto de a sua desgraça estar a par daqueles acontecimentos. Era, aliás, uma verdade que confirmava as suas suspeitas.
Para se afirmar, Lola pousou as mãos nas ancas. Tinha o coração a bater dolorosamente depressa e não conseguia confiar no que diria, embora sentisse que tinha de dizer qualquer coisa. Achou que havia ali uma brincadeira qualquer, mas não estava certa de que fosse algo de impróprio ou de ofensivo. Faltou-lhe a voz quando começou a falar e foi obrigada a pigarrear e a recomeçar.
- O que leu sobre eles?
Ele ergueu as sobrancelhas, que eram espessas e quase unidas, e soprou por entre os lábios, dando a entender que se tratava de coisas sem importância.
- Não sei. Não foi nada. Patetices.
- Então agradeço-lhe que não fale delas à frente dos miúdos.
Era uma construção que ela devia ter ouvido em tempos e que proferira com uma fé cega, como um aprendiz que repete com demasiada ênfase as palavras encantatórias de um mago.
Pareceu resultar. Marshall piscou o olho, dando a entender que reconhecia o seu erro e inclinou-se para os gémeos.
- Ouçam bem. Toda a gente sabe que os vossos pais são duas pessoas maravilhosas, que gostam muito de vocês e que se preocupam muito convosco.
Jackson e Pierrot acenaram solenemente com a cabeça. Cumprida esta tarefa, Marshall voltou as suas atenções para Lola. Depois de ter tomado dois fortes cocktails de gim na sala, na companhia de Leon e da irmã, Marshall fora para o quarto desfazer as malas e vestir-se para o jantar. Sem se descalçar, estendera-se sobre a enorme cama de dossel e, embalado pelo silêncio do campo, pelas bebidas e pelo calor da tarde, caíra num sono ligeiro, durante o qual as suas quatro irmãs lhe apareceram à volta da cama, a tagarelar, a tocar-lhe e a puxar-lhe a roupa. Acordou, com o peito e a garganta a arder, com uma sensação desconfortável e, por momentos, sem saber onde se encontrava. Foi enquanto estava sentado na beira da cama, a beber água, que ouviu as vozes que deviam ter dado origem àquele sonho. Depois de atravessar o corredor, entrou no quarto de brincar e viu três crianças. Mas agora via que a menina era já uma mulherzinha, firme e autoritária, uma espécie de pequena princesa pré-rafaelita, com as suas pulseiras, as suas tranças, as unhas pintadas e o lenço de veludo.
- Tens muito gosto para te vestir - disse-lhe ele. - Essas calças ficam-te mesmo bem, acho eu.
Ela sentiu-se mais satisfeita do que embaraçada e tocou ao de leve no tecido junto às ancas.
- Comprámo-las no Liberty's, quando a minha mãe me levou a Londres para assistir a um espectáculo.
- O que foste ver?
- O Hamlet. - Era verdade que tinham ido assistir a uma representação no London Pavilion, numa matinée, durante a qual Lola entornara sumo de morango por cima da saia, e o Liberty's ficava mesmo do outro lado da rua.
- É uma das minhas peças favoritas - disse Paul. Foi uma sorte para ela ele nunca ter lido nem visto a peça, uma vez que os seus estudos eram na área da Química. Mesmo assim, conseguiu dizer com um ar sonhador:- Ser ou não ser...
- Eis a questão - rematou ela. - E eu gosto dos seus sapatos.
Ele dobrou o pé para admirar a perfeição do trabalho.
- Pois. São Ducker's the Turl. Fazem um molde de madeira do nosso pé e guardam-no para sempre numa prateleira. Têm milhares de moldes numa cave, a maior parte de pessoas que já morreram.
- Isso é simplesmente horrível!
- Tenho fome - disse Pierrot mais uma vez.
- Está bem - disse Paul Marshall, dando uma palmadinha no bolso. - Tenho uma coisa para vos mostrar, se adivinharem o que eu sou.
- És cantor - disse Lola. - Pelo menos, tens uma bonita voz.
- És muito amável, mas não é verdade. Sabes uma coisa? Fazes-me lembrar a minha irmã preferida...
- Fazes chocolates numa fábrica - interrompeu Jackson. Antes que glorificassem demasiado o irmão, Pierrot acrescentou:
- Ouvimos a vossa conversa ao pé da piscina.
- Então não adivinharam.
Tirou do bolso uma tablete rectangular embrulhada em papel antigordura, com uns dez centímetros por dois. Pousou-a no colo, desembrulhou-a cuidadosamente e em seguida levantou-a para que eles pudessem observá-la. As crianças aproximaram-se educadamente. Tinha uma pequena concha castanho-clara, na qual ele fez estalar a unha.
- Com cobertura de açúcar, estão a ver? Lá dentro é chocolate de leite. É bom para comer em qualquer altura, apesar de se derreter.
Levantou mais a mão e segurou a tablete com mais força, e eles repararam que os dedos lhe tremiam muito.
- Vai haver uma tablete destas na ração de combate de cada um dos soldados deste país. Igual para todos.
Os gémeos olharam um para o outro. Sabiam que os adultos não tinham nada a ver com coisas doces.
- Os soldados não comem chocolate - disse Pierrot.
- Gostam é de cigarros - acrescentou o irmão.
- E também por que hão-de ser eles a receber guloseimas e não as crianças?
- Porque vão lutar pela pátria.
- O nosso pai diz que não vai haver guerra.
- Pois bem, está enganado.
Marshall parecia um pouco irritado, e Lola disse para o tranquilizar:
- Talvez haja guerra.
- Vai chamar-se Army Amo - disse ele, sorrindo-lhe.
- Amo, amas, amat - contrapôs ela.
- Exactamente.
- Não percebo por que razão tudo o que se compra tem de acabar em o - disse Jackson.
- Não tem graça nenhuma - disse Pierrot. - É como Polo e Aero.
- E Oxo e Brillo.
- Acho que o que eles estão a tentar dizer-me - disse Paul Marshall a Lola, estendendo-lhe a tablete - é que não querem chocolate.
Ela aceitou-a com um ar solene e olhou para os gémeos como se dissesse “bem feito”. Eles perceberam a mensagem. Agora já não podiam pedir chocolate. Viram a língua dela ficar verde ao envolver a cobertura de açúcar. Paul Marshall voltou a sentar-se no cadeirão, observando-a atentamente por cima do apoio para o queixo que formava com as mãos.
Cruzou e descruzou as pernas. Depois respirou fundo.
- Trinca-o - disse ele em voz baixa. - Tens de o trincar.
Ouviu-se um estalido no momento em que os seus incisivos imaculados o trincaram e foi nessa altura que apareceu a concha branca e o chocolate negro por baixo dela. Ouviram então uma voz de mulher a chamá-los do andar de baixo. Depois voltou a chamá-los, num tom mais insistente, da outra ponta do corredor. Desta vez os gémeos reconheceram a voz e sentiram-se subitamente desnorteados.
Lola estava a rir-se, com a boca cheia de Amo.
- É a Betty à vossa procura. Está na hora do banho! Corram! Vá, corram.
6
Pouco depois do almoço, depois de se certificar de que os filhos da irmã e Briony tinham comido razoavelmente e de que cumpririam a promessa de não irem para a piscina nas duas horas seguintes, Emily Tallis retirara-se da brancura ofuscante do calor da tarde para um quarto fresco e mergulhado na penumbra. Ainda não sentia dores, mas estava a recolher-se perante essa ameaça. Via pontos brilhantes, pequenos alfinetes, como se o tecido gasto do mundo visível cobrisse uma luz muito mais intensa. Sentia um peso no lado direito da cabeça, o peso inerte do corpo de um animal enroscado e a dormir; mas quando tocava na cabeça e fazia pressão aquela presença desaparecia das coordenadas do espaço actual. Estava agora no canto superior direito do seu espírito, e na sua imaginação era possível pôr-se em bicos de pés e levar a mão até ele. Contudo, era importante não o provocar; se aquele ser indolente se deslocasse da periferia para o centro, as dores cortantes obliterariam qualquer pensamento, inviabilizando completamente a sua presença no jantar com Leon e a família. Aquele animal não lhe queria mal; era indiferente à sua infelicidade. Deslocava-se como uma pantera enjaulada: porque estava acordado, para quebrar a monotonia, apenas pelo prazer de se mexer ou sem nenhuma razão e sem dar por isso. Estava deitada na cama de barriga para cima, sem almofada, com um copo de água ao alcance da mão e, a seu lado, um livro que sabia que não conseguiria ler. A escuridão do quarto apenas era cortada por uma faixa de luz longa, mas indistinta, que se reflectia no tecto, por cima da sanefa. Estava rígida e apreensiva, no fio da navalha, sabendo que o medo não a deixaria dormir e que a sua única esperança era manter-se imóvel.
Pensou no imenso calor que se erguia acima da casa e do jardim, que se estendia pelos seis condados em torno de Londres como fumo, sufocando quintas e vilas; pensou também nos carris escaldantes que traziam Leon e o amigo e na carruagem de tecto preto, onde o calor seria sufocante e onde eles estariam sentados junto à janela. Tinha mandado fazer um assado para o jantar, que estaria demasiado quente para se poder comer. Ouvia a casa estalar ao dilatar com o calor. Ou seriam as vigas e as colunas a secarem e a contraírem-se contra o cimento? Tudo estava a encolher. As perspectivas de Leon, por exemplo, diminuíam de ano para ano por ele recusar a ajuda do pai, a possibilidade de um cargo decente na administração pública, e preferir um lugar humilde num banco privado e viver a sonhar com os fins-de-semana e a sua equipa de remo. Podia estar ainda mais zangada com o filho, se ele não fosse tão doce, tão feliz e não estivesse rodeado por tantos amigos de sucesso. Demasiado belo, demasiado popular, sem o mais pequeno indício de infelicidade ou ambição. Talvez um dia levasse lá a casa um amigo que se casasse com Cecília, se três anos em Girton não anulassem completamente as suas hipóteses, dada a sua tendência para a solidão e para fumar no quarto e a sua nostalgia por um tempo que já passara e por aquelas amigas gordas, de óculos, vindas da Nova Zelândia, com quem partilhara o quarto - ou teria sido o criado? O calão que Cecília ficara da sua passagem por Cambridge, as confissões, as cuecas a secarem no radiador, as escovas partilhadas - tudo isso deixava Emily Tallis um pouco zangada, mas sem ponta de inveja. Estudara em casa até aos dezasseis anos e depois fora mandada para a Suíça por dois anos que, por razões económicas, tinham sido reduzidos a um, e sabia que toda aquela encenação das mulheres na universidade era, na verdade, uma criancice, na melhor das hipóteses uma brincadeira inocente, como a equipa de remo feminina, uma pequena pose ao lado dos irmãos vestidos com a solenidade do progresso social. Nem sequer reconheciam devidamente os cursos das raparigas. Quando Cecília voltara para casa em Julho com os resultados dos exames finais - a coragem dela de dizer que ficara desapontada! - não tinha emprego, não tinha aprendido uma profissão e ainda por cima tinha de arranjar um marido e enfrentar a tarefa de ser mãe. Que teriam as sabichonas das suas professoras - com diminutivos ridículos e reputações “temíveis” - a dizer-lhe sobre isso? Essas mulheres, que se julgavam muito importantes, só conseguiam a imortalidade com as excentricidades mais brandas e mais tímidas - passear um gato com uma trela de cão, andar numa bicicleta de homem, ser vistas a comer uma sanduíche na rua. Passada uma geração, essas senhoras tolas e ignorantes, já mortas, continuariam a ser veneradas no quadro de honra e os seus nomes a ser proferidos em voz baixa.
Sentindo que o animal de pêlo preto estava a começar a agitar-se, Emily deixou que os seus pensamentos se afastassem da filha mais velha e a sua tendência para se preocupar se concentrasse na mais nova. Querida Briony, que menina tão doce, a fazer tudo o que podia para entreter os teimosos dos primos com a peça que tinha escrito com todo o amor. Amá-la era uma forma de se acalmar. Mas como poderia protegê-la do insucesso, protegê-la daquela Lola, a encarnação da irmã mais nova de Emily, que na idade dela fora igualmente precoce e maliciosa e recentemente arranjara um esquema para acabar com o seu casamento a que dera o nome de “esgotamento nervoso”. Não podia permitir que Hermione ocupasse os seus pensamentos. Em vez disso, mergulhada na escuridão do quarto e a respirar fundo, Emily tentou avaliar como iam as coisas lá em casa pelos barulhos que chegavam ao quarto. No estado em que se encontrava, era esse o único contributo que podia dar. Pousou a palma da mão na testa e ouviu outro estalido da casa a contrair-se ainda mais. Muito ao longe ouviu-se um som metálico, talvez a tampa de uma caçarola a cair; o inútil assado do jantar estava na fase inicial da sua preparação. Do andar de cima, chegavam até ela o ruído surdo de passos e vozes de crianças, pelo menos duas ou três, a falarem ao mesmo tempo, ora mais alto, ora mais baixo, talvez em desacordo, ou talvez com a excitação de estarem todas de acordo. O quarto de brincar ficava no andar de cima, separado do seu apenas por uma divisão. As Provações de Arabella. Se não estivesse tão doente, iria lá acima supervisionar ou ajudar, pois sabia que era uma tarefa demasiado difícil para eles. A doença impedira-a de dar aos filhos o que, como mãe, devia dar-lhes. Apercebendo-se disso, tinham-na tratado sempre pelo primeiro nome. Cecília devia dar uma ajuda, mas estava demasiado preocupada consigo própria, era demasiado intelectual para se incomodar com crianças... Emily conseguiu resistir àquela linha de pensamento e, aparentemente, deixou-se deslizar, se não propriamente para o sono, pelo menos para a anulação. Passaram muitos minutos até se ouvirem passos nas escadas e, pelo seu som abafado, eram de uma pessoa descalça - só podia ser Briony. Nunca se calçava quando estava calor. Alguns minutos depois, vindo outra vez do quarto de brincar, o barulho de uma discussão enérgica e de uma coisa dura a rolar pelo soalho. O ensaio fora por água abaixo, Briony tinha-se ido embora amuada, os gémeos estavam a fazer disparates e Lola, se fosse tão parecida com a mãe como Emily achava que era, devia estar tranquila e triunfante.
As preocupações com os filhos, o marido, a irmã, os criados, tinham-lhe aguçado os sentidos, as enxaquecas, o amor maternal e, ao longo dos anos, as muitas horas que passara na cama tinham destilado nela um sexto sentido, uma consciência tentacular que saía da penumbra e se movia por toda a casa, invisível, mas omnisciente. Só a verdade chegava até ela, pois aquilo que sabia sabia-o com exactidão. O murmúrio indistinto de algumas vozes, ouvido através de um soalho tapado com uma carpete, era mais claro do que um texto dactilografado; uma conversa que penetrava através de uma parede ou, melhor ainda, de duas paredes, vinha desprovida de tudo excepto das suas inflexões e nuances essenciais. Aquilo que para outros era um som abafado, era para ela algo que alertava os sentidos, tão aguçados como as antenas de uma velha telefonia sem fios, com uma amplificação insuportável. Estava deitada na penumbra, mas sabia tudo. Quanto menos conseguia fazer, mais consciente estava. Embora às vezes lhe apetecesse levantar-se e intervir, sobretudo quando achava que Briony precisava dela, o medo das dores fazia-a permanecer imóvel. Se não se controlasse, um conjunto de facas aguçadas penetraria o seu nervo óptico, agravaria a pressão e ela seria obrigada a ficar absolutamente recolhida e sozinha. Até o próprio acto de gemer lhe aumentava o sofrimento.
Assim, foi ficando deitada enquanto a tarde se escoava. A porta da frente abrira-se e fechara-se. Devia ter sido Briony a sair, amuada. Devia estar ao pé da piscina, do lago, ou talvez tivesse ido até ao rio. Emily ouviu passos cuidadosos na escada - Cecília levava finalmente as flores para o quarto de hóspedes, uma tarefa simples que lhe pedira várias vezes que desempenhasse. Mais tarde, Betty chamara Danny, e o som da charrette fizera-se ouvir na gravilha.
Cecília descera as escadas para ir receber as visitas e, passado muito pouco tempo, o cheiro ténue de um cigarro espalhara-se pela penumbra. Tinha-lhe pedido milhares de vezes que não fumasse nas escadas, mas certamente quisera impressionar o amigo de Leon e isso, só por isso, não era mau. Ouviu vozes a ecoarem no átrio, Danny subir com as bagagens e tornar a descer, e o silêncio - Cecília devia ter levado Leon e Mr Marshall para junto da piscina para beberem o punch que Emily preparara nessa manhã. Ouviu o galope de um animal de quatro patas escadas abaixo - os gémeos, desejosos de irem para a piscina e prestes a sofrerem uma desilusão por ela estar ocupada.
Voltou a dormitar e foi acordada por uma voz monótona de homem no quarto de brincar e pelas respostas das crianças. De certeza que não era Leon, que, agora que reencontrara a irmã, seria inseparável dela. Devia ser Mr Marshall, cujo quarto era do outro lado do quarto de brincar e que, segundo ela, estaria a falar com os gémeos e não com Lola. Emily tentou adivinhar se eles estariam a ser impertinentes, pois cada um dos gémeos parecia comportar-se como se as suas obrigações sociais estivessem reduzidas a metade. Agora era Betty que subia as escadas e os chamava, talvez com um tom demasiado agressivo, dada a tortura infligida a Jackson nessa manhã. A hora do banho, a hora do chá, a hora de ir para a cama - os pontos charneira do dia: aqueles sacramentos da infância da água, dos alimentos e do sono tinham praticamente desaparecido do ciclo diário. O nascimento tardio e inesperado de Briony fizera-os reviver naquela casa quando Emily já tinha quarenta e muitos anos, e como tinham sido calmantes e marcantes... O sabão de lanolina, o lençol de banho branco, a tagarelice da menina a ecoar na acústica da casa de banho, mergulhada em vapor; embrulhá-la no lençol, agarrá-la pelos braços e pô-la no colo para um momento de abandono infantil a que Briony se entregara até há bem pouco tempo. Mas agora bebé e água do banho tinham desaparecido por detrás de uma porta trancada, embora não tantas vezes como necessário, pois ela parecia estar sempre a precisar de um banho e de mudar de roupa. Tinha desaparecido num mundo interior intacto, onde a escrita era apenas a face visível, a camada protectora que nem uma mãe, ou principalmente ela, poderia atravessar. A filha estava sempre distante e perdida nos seus pensamentos, a debater-se com um problema que impunha a si própria e sobre o qual não falava, como se o mundo, tão desgastante e óbvio, pudesse ser reinventado por uma criança. Era inútil perguntar a Briony em que pensava. Havia alturas em que se recebia uma resposta inteligente e complexa, que por sua vez dava origem a perguntas tolas e difíceis a que Emily respondia o melhor que podia. Embora as hipóteses complexas em que se perdiam fossem difíceis de recordar, sabia que nunca falara tão bem com ninguém como com a sua filha de onze anos. Nenhuma mesa, nenhuma sombra à beira de um campo de ténis a ouvira alguma vez fazer associações tão fáceis e imaginativas. Agora os demónios da consciência de si própria e do talento tinham emudecido a filha e, embora Briony não fosse menos terna - ao pequeno-almoço fora para junto dela e dera-lhe a mão - Emily lamentava o desaparecimento de uma era de eloquência. Nunca mais falaria assim com ninguém, e era isso que significava querer outro filho. Estava quase a fazer quarenta e sete anos.
O barulho abafado dos canos - não o tinha ouvido começar - acabou com uma trepidação que fez vibrar o ar. Os filhos de Hermione deviam estar na casa de banho, os seus corpos ossudos de cada um dos lados da banheira, e os mesmos toalhões brancos estariam sobre a cadeira de verga de um azul já desbotado. Sobre o chão estaria o mesmo tapete gigantesco de cortiça, com um canto roído por um cão há muito morto. Mas em vez de tagarelice havia um silêncio pesado e em vez de uma mãe havia Betty, cujo coração terno nenhuma criança conseguiria alguma vez descobrir. Como podia Hermione ter um esgotamento nervoso - o termo geralmente preferido pelo amigo que trabalhava na rádio -, como podia ela querer o silêncio, o medo e a tristeza para os seus filhos? Emily achava que devia ser ela própria a supervisionar o banho. Mas sabia que, mesmo que as facas não estivessem espetadas no seu nervo óptico, só trataria dos sobrinhos por obrigação. Não eram seus filhos. Era tão simples quanto isso. E eram rapazes e, por isso, basicamente sem capacidade para comunicar, sem qualquer tendência para a intimidade e, pior ainda, tinham diluído as suas identidades, pois Emily nunca conseguira encontrar o triângulo de carne que faltava. Só era possível conhecê-los por alto.
Apoiou-se num cotovelo e levou o copo de água aos lábios. A presença do animal que a atormentava estava a começar a diluir-se. Agora já podia encostar duas almofadas à cabeceira da cama e sentar-se. Era uma manobra lenta e desajeitada, porque tinha receio de qualquer movimento mais brusco, e o barulho das molas do colchão prolongara-se, escondendo parcialmente uma voz de homem. Imobilizou-se, voltada de lado, com a mão agarrada à ponta da almofada, e concentrou as suas atenções nos recantos mais longínquos da casa. Não ouviu nada, mas depois, como uma lâmpada acesa e apagada no escuro, houve uma pequena gargalhada abruptamente abafada. Era Lola com Marshall, no quarto de brincar. Continuou a ajeitar-se e por fim recostou-se e bebeu a água morna em pequenos golos. Aquele empresário jovem e rico podia não ser um mau partido, se estava assim disposto a passar o tempo a entreter crianças. Daí a pouco seria capaz de se arriscar a acender o candeeiro da mesa de cabeceira e, passados uns vinte minutos, talvez conseguisse juntar-se ao resto da família e investigar os diversos rumos da sua ansiedade. O mais urgente de tudo era ir à cozinha ver se ainda não era tarde de mais para transformar o assado em carnes frias e salada. Só depois iria cumprimentar o filho, avaliar o amigo dele e dar-lhe as boas-vindas. Feito isto, iria certificar-se de que estava tudo bem com os gémeos e talvez dar-lhes uma pequena recompensa. Depois seriam horas de ligar para Jack, que se esquecera de lhe dizer que não vinha jantar. Falaria com a telefonista de voz tensa e com o jovem formal que secretariava o marido, a quem garantiria que não tinha de se sentir culpado. Iria procurar Cecília e certificar-se de que arranjara as flores, faria um esforço para assumir algumas responsabilidades de anfitriã nessa noite, vestira uma roupa bonita e não andaria a fumar pela casa toda. Depois chegaria o mais importante de tudo - ir procurar Briony, porque o fracasso da peça era um golpe terrível e a pobre criança devia estar a precisar de todo o apoio da mãe. Encontrá-la obrigá-la-ia a expor-se à luz intensa do Sol, e mesmo os raios enfraquecidos do fim da tarde poderiam provocar um ataque. Teria de procurar os óculos de sol. Afinal seria essa a prioridade, e não ir à cozinha, pois eles deviam estar ali no quarto, numa gaveta, ao pé de um livro, num bolso, e seria um incómodo ter de voltar lá acima para os ir buscar. Também teria de calçar uns sapatos rasos, para o caso de Briony ter ido até ao rio...
Emily manteve-se recostada nas almofadas por vários minutos, agora que o animal se recolhera, e fez pacientemente os seus planos, reviu-os e redefiniu a ordem por que os poria em prática. Acalmaria o seu lar, que, visto da penumbra doentia daquele quarto, parecia um continente agitado e pouco populoso, em cuja imensidão vários elementos contraditórios impunham exigências e contra exigências à sua atenção permanente. Não tinha ilusões: os planos antigos, se alguém se lembrasse deles, os planos que o tempo apagara, tendiam a dominar os acontecimentos de um modo febril e exageradamente optimista. Podia estender as suas antenas a todas as divisões da casa, mas não podia lançá-las para o futuro. Também sabia que, em última análise, era pela sua própria paz de espírito que lutava; era melhor não separar o interesse próprio da bondade. Endireitou-se lentamente, rodou as pernas para fora da cama e enfiou os pés nos chinelos. Em vez de se arriscar a abrir imediatamente as cortinas, acendeu o candeeiro e começou a procurar os óculos escuros. Já tinha decidido por onde iniciaria a busca.
7
O templo da ilha, construído ao estilo de Nicholas Revett por volta de 1790, tinha por objectivo tornar-se um local de interesse, um traço que desse nas vistas e reforçasse o ideal pastoral, estando por isso desprovido de quaisquer intenções religiosas. Ficava perto da água, num braço de terra proeminente, e produzia um reflexo interessante sobre o lago. Da maior parte dos ângulos, as fileiras de colunas e o frontão triangular que as encimava eram deixados numa penumbra encantadora pelos olmos e carvalhos que tinham nascido em redor do templo. Visto mais de perto, tinha um aspecto mais triste: a humidade alastrara a partir de uma goteira estragada e fizera cair alguns pedaços de estuque. Em finais do século XIX tinham sido feitos alguns arranjos apressados, com cimento por pintar, que acabara por ficar castanho e dera ao edifício um ar manchado e doente. Havia por todo o lado tábuas à mostra, também elas a apodrecerem, que pareciam as costelas de um animal esfomeado. As portas duplas que davam para uma câmara circular com um telhado em abóbada tinham sido tiradas há muito tempo e as lajes do chão estavam cobertas de folhas, de terra e dos excrementos de vários pássaros e outros animais que por lá circulavam. Todas as vidraças tinham desaparecido das belas janelas georgianas, que Leon e os amigos tinham partido em finais dos anos 20. Os nichos, outrora preenchidos por estátuas, eram agora ocupados apenas pelos restos imundos de teias de aranha. A única peça de mobiliário que lá havia era um banco, que fora levado do campo de críquete da aldeia - mais uma vez pelo jovem Leon e pelos seus terríveis amigos da escola. Tinham-lhe tirado as pernas, que haviam servido para partir as janelas e jaziam agora ao ar livre, a esboroar-se lentamente sobre a terra, por entre as urtigas e os pedaços incorruptíveis de vidro.
Tal como a casa da piscina que se encontrava por detrás dos estábulos imitava alguns traços do templo, também o templo procurava conter algumas referências à casa original, em estilo Adam, embora nenhum membro da família Tallis soubesse que referências eram essas. Talvez o estilo das colunas, ou do frontão, ou as proporções das janelas. Em momentos diferentes, mas sobretudo no Natal, quando os membros da família estavam mais expansivos, prometiam sempre investigar o assunto, mas ninguém se preocupava em guardar algum tempo para isso quando começava a lufa-lufa do novo ano. Mais do que a sua delapidação, era esta ligação, esta memória perdida da relação mais significativa do templo, que lhe dava aquele ar triste. O templo era como o filho órfão de uma grande senhora da sociedade, sem ninguém que cuidasse dele, sem ninguém a quem admirar, que tivesse envelhecido antes do tempo, abandonado à sua sorte. Havia uma mancha de fuligem da altura de um homem numa parede exterior, no local onde uma vez dois vagabundos tinham tido o descaramento de fazer uma fogueira para assar uma carpa que não lhes pertencia. Durante muito tempo, uma bota ressequida ficara abandonada sobre as ervas, que os coelhos teimavam em manter desbastada. Mas naquele dia, ao olhar para lá, Briony viu que a bota desaparecera, como tudo no mundo acabaria por desaparecer. A ideia de que o templo, com a sua própria faixa negra, lamentava a perda da mansão devorada pelo fogo, que ansiava por uma presença grandiosa e invisível, conferia ao local um ambiente vagamente religioso. A tragédia poupara o templo à sua condição de imitação.
É difícil passar muito tempo a fustigar urtigas sem que uma história comece a nascer. Por isso, ao fim de pouco tempo, Briony já estava absorta e sinistramente contente, embora transmitisse aos outros a sensação de que estava de muito mau humor. Encontrara um ramo de aveleira e arrancara-lhe as folhas. Tinha um trabalho a fazer e tinha de o começar. Uma urtiga alta, muito aperaltada, com a cabeça ligeiramente inclinada e as folhas do meio voltadas para fora, como mãos a defenderem a sua inocência - era Lola e, embora implorasse misericórdia, o arco sibilante de uma chibata de um metro cortou-a pelos joelhos e atirou pelos ares o seu dorso inútil. Aquela actividade dava-lhe demasiado prazer para que pudesse desistir e por isso os golpes seguintes caíram sobre outras urtigas que também eram a personificação de Lola; esta, inclinada para sussurrar qualquer coisa ao ouvido da vizinha do lado, foi cortada no momento em que lhe bailava nos lábios uma mentira escandalosa. Lá estava ela outra vez, a sobressair no meio das outras, com a cabeça inclinada, a engendrar intrigas venenosas; mais adiante, reinava entre um grupo de jovens admiradores, espalhando boatos sobre Briony. Era pena, mas os admiradores tinham de morrer com ela. Depois, tornou a erguer-se, sem vergonha dos seus muitos pecados - orgulho, gula, avareza, incapacidade de cooperar com os outros -, pagando por cada um deles com a vida. O seu acto final de despeito era cair aos pés de Briony e picar-lhe os dedos. Depois de Lola já ter morrido o suficiente, três pares de urtigas mais novas foram sacrificados pela incompetência dos gémeos - a vingança era inútil e não concedia favores especiais às crianças. Depois a própria peça se tornou uma urtiga, ou melhor, várias; a superficialidade, o tempo perdido, a confusão das outras mentes, a inutilidade de fingir - era uma erva daninha no jardim das artes e tinha de morrer.
Agora que já deixara de ser dramaturga, e sentindo-se mais aliviada por isso, começou a procurar vidros partidos, contornando o templo na zona onde a erva mordiscada se misturava com a vegetação baixa que despontava por entre as árvores. Fustigar as urtigas tornara-se uma forma de autopurificação e agora era para a infância que se voltava, uma vez que já não tinha necessidade dela. Cada haste esguia representava uma das coisas em que se envolvera até ao momento. Mas já chegava. Com os pés bem firmes sobre as ervas, desfez-se da sua infância, ano após ano, com treze golpes. Acabou com a dependência doentia da primeira infância, da menina da escola ansiosa por dar nas vistas e ser elogiada, do orgulho tolo das primeiras histórias da rapariga de onze anos e da importância que dava às opiniões da mãe. Tudo isso voou por cima do seu ombro esquerdo e foi cair aos seus pés. A ponta do ramo fazia um barulho semelhante ao de uma pedra a cortar o ar. Basta!, obrigou-o ela a dizer. Chega! Toma!
Ao fim de pouco tempo passou a ser a própria acção a absorvê-la, e a notícia de jornal que ela revia ao ritmo dos seus golpes. Ninguém no mundo podia fazê-lo melhor do que Briony Tallis, que representaria o seu país nos Jogos Olímpicos de Berlim no ano seguinte e ganharia certamente a medalha de ouro. As pessoas iriam observá-la atentamente e maravilhar-se com a sua técnica, a sua preferência por andar descalça para aumentar o equilíbrio - tão importante neste desporto tão exigente, onde cada dedo do pé tinha o seu papel específico -, a forma como erguia o pulso e rodava a mão só ao desferir o golpe, como distribuía o peso e utilizava a rotação das ancas para ganhar força, o seu hábito particular de estender os dedos da mão livre - ninguém lhe chegava aos calcanhares. Era uma autodidacta, a filha mais nova de um funcionário da administração pública. Vejam a concentração do seu rosto a avaliar o ângulo, sem nunca desperdiçar um golpe, atacando cada urtiga com uma precisão sobre-humana. Só era possível atingir aquele nível com a dedicação de uma vida. E como estivera a ponto de destruir essa vida com uma carreira de dramaturga!
Apercebeu-se de repente da presença da charrette atrás de si, a passar sobre a primeira ponte. Era finalmente Leon. Sentiu o olhar dele fixar-se sobre ela. Era aquela a miúda que ele vira pela última vez há apenas três meses na estação de Waterloo e que agora era membro de uma elite internacional? Com uma intenção perversa, não se voltaria para olhar para ele. Tinha de mostrar ao irmão que agora era independente das opiniões dos outros, mesmo das dele. Era uma grande mestra, inteiramente dedicada à complexidade da sua arte. Além disso, obrigá-lo-ia a parar a charrette e a descer a encosta a correr, e ela teria de suportar a interrupção de bom humor.
O som das rodas e das patas dos cavalos a desaparecer para lá da segunda ponte mostrava, na opinião dela, que o irmão sabia o que era distância e respeito profissional. Contudo, sentia ao mesmo tempo uma certa tristeza crescer dentro de si, enquanto continua a desferir os seus golpes e a contornar o templo até ser impossível vê-la da estrada. O seu avanço ficava marcado não só por um rasto de urtigas cortadas sobre as ervas, mas também pelas bolhas brancas das picadas nos pés e nos tornozelos. A ponta do ramo de aveleiras assobiava ao descrever um arco, as folhas e caules voavam à roda dele, mas os aplausos da multidão eram difíceis de ouvir. As cores esmoreciam na sua fantasia, a sua satisfação com o movimento e o equilíbrio desapareciam, o braço começava a doer-lhe. Estava a tornar-se uma rapariga solitária que fustigava urtigas com um pau e por isso acabou por parar, deitar fora o ramo e olhar à sua volta.
O preço a pagar por todos os momentos em que se esquecia de tudo e sonhava acordada era a hora do regresso, o reencontro com a realidade passada, que agora parecia um pouco pior. Os seus devaneios, outrora ricos em pormenores plausíveis, tinham-se tornado uma tolice passageira perante a dureza do real. Era difícil acordar. Acorda, costumava a irmã sussurrar-lhe ao ouvido quando ela tinha pesadelos. Briony perdera o dom divino da criação, mas era só no momento do regresso que essa perda se tornava evidente; um dos aspectos da sedução de sonhar acordada era a ilusão de que nada podia fazer perante a sua lógica: obrigada pela concorrência internacional a competir com os melhores e a aceitar os desafios decorrentes da sua posição privilegiada na sua área - fustigar urtigas -, obrigada a ultrapassar os seus limites para acalmar a multidão ululante e a ser a melhor e, mais importante ainda, a única. Mas claro que tinha sido tudo feito por ela e em torno de si, e agora estava de regresso ao mundo, não um mundo criado por ela, mas o mundo que a criara, e sentia-se esmagada pelo céu daquele fim de tarde. Estava farta de estar na rua, mas ainda não estava preparada para entrar em casa. Seria isso tudo o que havia na vida, estar dentro de casa ou na rua? Não haveria mais nenhum sítio para onde as pessoas pudessem ir? Voltou-se de costas para o templo da ilha e percorreu lentamente o relvado perfeito que os coelhos tinham desbravado, dirigindo-se para a ponte. À sua frente, iluminada pelo sol descendente, estava uma nuvem de insectos, cada um deles a voar ao acaso, como se estivesse preso a um fio elástico invisível - uma misteriosa dança de acasalamento ou apenas a exuberância dos insectos a desafiá-la a encontrar um significado. Imbuída de um espírito de resistência revoltosa, subiu a encosta íngreme que ia dar à ponte e, no momento em que chegou ao tabuleiro, decidiu que ficaria ali até que lhe acontecesse qualquer coisa de significativo. Era esse o desafio que lançaria à sua existência - não iria mexer-se, nem para ir jantar, nem quando a mãe a chamasse. Ficaria simplesmente à espera na ponte, com uma atitude calma e obstinada, até que os acontecimentos, os acontecimentos propriamente ditos e não as suas fantasias, estivessem à altura do desafio que lançara a si própria e afastassem a sua insignificância.
8
Ao fim da tarde, as nuvens altas a oeste formavam uma fina camada amarela que, à medida que o tempo ia passando, se tornava cada vez mais espessa, até que se transformou num clarão alaranjado suspenso sobre as gigantescas copas das árvores do parque. As folhas foram ficando castanhas, os ramos que se vislumbravam por entre a folhagem de um preto brilhante e as ervas secas absorveram as cores do céu. Um fauvista com a inclinação para as cores improváveis poderia ter imaginado uma paisagem assim, especialmente no momento em que o céu e o chão adquiriram um brilho avermelhado e os enormes troncos dos carvalhos antigos se tornaram tão negros que começaram a parecer azuis. Embora o Sol enfraquecesse à medida que se ia pondo, a temperatura parecia aumentar, porque a leve brisa que aligeirara o ar durante todo o dia tinha desaparecido, criando uma atmosfera imóvel e pesada. A cena, ou pelo menos parte dela, seria visível para Robbie Turner através de uma clarabóia fechada se ele se desse ao trabalho de se levantar da banheira, de dobrar os joelhos e de torcer o pescoço. Durante todo o dia, o seu pequeno quarto, a casa de banho e o cubículo entre eles a que ele chamava “escritório” tinham estado irrespiráveis sob a aba virada a sul do telhado da sua casa de madeira. Depois de voltar do trabalho passou mais de uma hora mergulhado num banho tépido, enquanto o seu sangue e, pelos vistos, os seus pensamentos aqueciam a água. Sobre a sua cabeça, o rectângulo emoldurado de céu percorria lentamente o seu segmento limitado do espectro, de amarelo a cor-de-laranja, enquanto Robbie esquadrinhava sentimentos que não lhe eram familiares e revisitava certas recordações. Nada se esbatia. De vez em quando, alguns centímetros abaixo da superfície da água, os músculos do seu estômago contraíam-se involuntariamente quando recordava outro pormenor. Uma gota de água na parte de cima do braço dela. Uma flor bordada, um simples malmequer preso entre as copas do soutien. Os seus seios pequenos e afastados. Nas costas, um sinal meio tapado por uma alça. Quando saiu de dentro de água, a visão fugidia do triângulo escuro que as suas cuecas supostamente esconderiam. Molhado. Robbie viu-o e obrigou-se a tornar a vê-lo. A forma como os ossos da pélvis esticavam o tecido acima da sua pele, a curva acentuada da sua cintura, a sua brancura estonteante. Quando agarrou na saia, um pé descuidadamente erguido revelou uma pequena mancha de terra em cada um dos pontos de apoio dos seus dedos docemente decrescentes. Um outro sinal do tamanho de uma moeda na coxa e uma pequena mancha vermelha na barriga da perna - um pequeno morango, uma cicatriz. Não eram defeitos; eram adornos.
Conhecia-a desde criança e nunca olhara para ela. Em Cambridge fora uma vez ao quarto dela e de uma amiga dela de óculos, da Nova Zelândia, quando lá estava um amigo dele, de Downing. Tinham passado uma hora a trocar piadas nervosas e a distribuir cigarros. De vez em quando cruzavam-se na rua e sorriam. Ela parecia sempre ter uma sensação estranha. Ao afastar-se, talvez sussurrasse às amigas: “É o filho da nossa mulher-a-dias.” Ele gostava que as pessoas soubessem que não se importava: “Aquela é a filha da patroa da minha mãe”, dissera uma vez a um amigo. Tinha a sua política para se proteger, e as suas teorias de classes com base científica, e as suas próprias certezas um pouco forçadas. Sou aquilo que sou. Ela era como uma irmã, quase invisível. O seu rosto longo e estreito, a boca pequena - se alguma vez tivesse pensado nela, talvez pudesse dizer que tinha um pouco cara de cavalo. Agora percebia que era uma beleza estranha, que havia no seu rosto algo de esculpido e imóvel, sobretudo em torno da superfície inclinada das maçãs do rosto, com umas narinas algo selvagens e uma boca que parecia um botão de rosa intenso e brilhante. Tinha olhos escuros e contemplativos. Tinha um aspecto de estátua, mas os seus movimentos eram rápidos e impacientes - a jarra continuaria inteira se ela não a tivesse arrancado tão repentinamente das mãos dele. Era óbvio que estava impaciente, aborrecida e confinada à casa dos Tallis. Sem dúvida partiria em breve.
Teria de falar rapidamente com ela. Saiu finalmente da banheira, a tremer, com a certeza de que se aproximava dele uma grande mudança. Foi nu até ao quarto, atravessando o escritório. A cama desfeita, a confusão de roupas deixadas ao acaso, uma toalha no chão, o calor equatorial do quarto - tudo isso era de uma sensualidade que o incapacitava. Deitou-se na cama, enterrou a cara na almofada e gemeu. A sua doçura e delicadeza, amiga dele desde a infância, e agora prestes a tornar-se inatingível. Despir-se assim - sim, aquela tentativa cativante de parecer excêntrica, a sua tendência para a ousadia, tinha um traço de exagero próprio daquela casa. Estaria agora num paroxismo de arrependimento, sem saber o que lhe fizera. E tudo aquilo estaria bem, tudo aquilo poderia ser resolvido, se ela não estivesse tão zangada com ele por causa de uma jarra partida que se desintegrara nas suas mãos. Mas ele também adorava a raiva dela. Voltou-se de lado, de olhos fixos, mas sem ver nada, e deixou-se ir atrás de uma fantasia cinematográfica: ela agarrada às bandas do casaco dele, aos murros, até se render com um pequeno soluço à protecção dos seus braços e a deixar-se beijar; não lhe perdoara, apenas desistira. Reviu a cena várias vezes antes de voltar à realidade: ela estava zangada com ele e ficaria ainda mais zangada quando soubesse que ele fora convidado para jantar. Lá fora, sob a luz intensa, não pensara suficientemente depressa para recusar o convite de Leon. Respondera que sim, alto e bom som, e agora teria de enfrentar a irritação dela. Tornou a gemer, sem se importar que o ouvissem, ao lembrar-se de como ela se despira à sua frente - com tanta indiferença como se ele fosse um bebé. Claro. Agora percebia. A ideia fora humilhá-lo. Aí estava o facto indesmentível. Humilhação. Era isso que ela queria. Afinal não era tão doce como isso, e ele não podia dar-se ao luxo de ser condescendente em relação a ela, pois ela tinha muita força, podia tirar-lhe o chão e empurrá-lo para baixo.
Mas - voltou a pôr-se de costas - talvez não devesse acreditar na afronta dela. Não teria sido demasiado teatral? A sua intenção devia ter sido melhor, mesmo com tamanha raiva. Mesmo com tanta raiva, quisera mostrar-lhe quão bela era e prendê-lo a ela. Como poderia ele confiar numa ideia tão conveniente, nascida da esperança e do desejo? Tinha de ser. Cruzou as pernas, prendeu as mãos por detrás da cabeça, sentindo a pele arrefecer ao secar. Que diria Freud? Que ela estava a esconder o desejo inconsciente de se exibir perante ele por detrás de um ataque de raiva? Que esperança patética! Era uma emasculação, uma sentença, e aquilo que ele sentia, aquela tortura, era o castigo dele por ter partido aquela jarra ridícula. Não devia voltar a vê-la. Mas tinha de a ver naquela noite. Não tinha outra opção - iria mesmo. Ela desprezá-lo-ia por aparecer lá. Devia ter recusado o convite de Leon, mas nesse momento o seu coração batera mais depressa e o “sim” precipitou-se da boca para fora. Estariam na mesma sala, e o corpo que vira, os sinais, a palidez, a marca em forma de morango, estariam escondidos sob as roupas dela. Só ele saberia da sua existência e, claro, também Emily. Mas só ele estaria a pensar em tudo isso. E Cecília não falaria com ele, nem sequer para ele olharia. Mesmo isso seria melhor do que estar para ali a gemer. Não, não seria. Seria pior, mas, mesmo assim, era isso que ele queria. Tinha de ser. Queria o pior.
Levantou-se finalmente, vestiu qualquer coisa e foi para o escritório. Sentou-se em frente da máquina de escrever a pensar na carta que lhe escreveria. Tal como o quarto e a casa de banho, também o escritório estava abafado sob o telhado da casa de madeira. Pouco mais era do que um corredor entre as duas divisões, com menos de dois metros de comprimento por um metro e meio de largura. Também tinha uma clarabóia encastrada em pinho mal cuidado. A um canto estava o seu material de montanhismo - as botas, o pau ferrado, a mochila. A maior parte do espaço era ocupado por uma mesa de cozinha com inúmeros golpes no tampo. Inclinou a cadeira para trás e deu uma vista de olhos pela mesa, como se estivesse a passar a sua vida em revista. De um dos lados, no esconso, estava uma pilha de dossiers e de cadernos dos últimos meses de preparação para os exames finais. Já não precisava daqueles apontamentos, mas aqueles papéis representavam demasiado trabalho, demasiado sucesso, para que conseguisse prescindir deles imediatamente. No meio deles estavam alguns dos seus mapas de montanhismo, de North Wales, do Hampshire, do Surrey e da viagem a Istambul, entretanto abandonada. Havia ainda uma bússola com um espelho reflector que utilizara em tempos para fazer uma caminhada sem mapas até Lulworth Cove.
Por detrás da bússola estavam os Poemas de Auden e Schropshire Land, de Houseman. Na outra ponta da mesa, estavam várias histórias e livros teóricos e práticos sobre arquitectura paisagista. Por baixo de uma pasta com recortes da revista Criterion estavam dez poemas dactilografados, assinados pelo próprio Eliot. Mais perto do local onde Robbie se sentava estavam os livros correspondentes ao seu novo interesse. A Anatomia de Gray estava aberta junto de um bloco com desenhos seus. Empreendera a tarefa de desenhar e memorizar os ossos da mão. Tentou distrair-se revendo-os e repetindo em surdina os seus nomes: capitato, hamato, triquetral, lunato... O seu melhor desenho até agora, a tinta e lápis de cor, de uma secção do tracto esofágico e das vias aéreas, estava preso a uma viga do tecto. Numa caneca de cerveja de estanho, sem asa, estavam todos os seus lápis e canetas. A máquina de escrever era uma Olympia mais ou menos recente, que lhe fora oferecida por Jack Tallis no dia em que fizera vinte e um anos, durante uma festa na biblioteca. Leon e o pai tinham discursado, e de certeza que Cecília tinha lá estado. Mas Robbie não se lembrava de uma única palavra que tivessem trocado. Seria por isso que ela estava zangada, por ele a ter ignorado anos a fio? Mais uma esperança patética.
Nas extremidades da secretária, várias fotografias: o elenco da Twelftb Nigbt no jardim da universidade, incluindo-o a ele como Malvolio, de jarreteira. Que jeitoso! Havia outra fotografia de grupo, dele e de trinta miúdos franceses a quem dera aulas numa escola perto de Lille. Numa moldura de metal, estilo belle époque, manchada de verdete, estava uma fotografia dos seus pais, Grace e Ernest, três dias depois de terem casado. Por detrás deles, quase a desaparecer, estava a parte da frente de um carro - certamente não o deles - e, mais ao longe, uma casa a aparecer por detrás de um muro de tijolo. Grace sempre dissera que fora uma boa lua-de-mel, duas semanas a apanhar lúpulo com a família do marido e a dormir numa caravana de ciganos num pátio de uma quinta. O pai estava com uma camisa sem colarinho. O lenço ao pescoço e o cinto de corda a prender as calças de flanela deviam ter sido uns toques aciganados, feitos por brincadeira. Tinha uma cabeça e um rosto redondos, mas o efeito não era propriamente jovial, pois o seu sorriso para a objectiva não era suficientemente sincero para lhe entreabrir os lábios e, em vez de estar de mãos dadas com a sua jovem noiva, estava de braços cruzados. Pelo contrário, ela estava encostada a ele de lado, com a cabeça aninhada no ombro dele e a segurar-lhe o cotovelo com ambas as mãos, de uma forma algo desajeitada. Grace, sempre alegre e bem-disposta, sorria pelos dois. Mas um gesto solícito das mãos e uma mente doce não seriam suficientes. Tinha-se a impressão de que o espírito de Ernest estava algures, já a vaguear pela noite, sete Verões mais à frente, na altura em que deixaria o seu lugar de jardineiro dos Tallis e abandonaria a casa de madeira, sem bagagem, sem sequer um bilhete de despedida em cima da mesa da cozinha, deixando a mulher e o filho de seis anos a pensarem nele para o resto da vida.
Noutro local, semeados entre apontamentos, livros de jardinagem e de anatomia, estavam várias cartas e cartões: contas por pagar, cartas dos tutores e dos amigos a felicitá-lo pelo curso, que ele continuava a ter prazer em reler, e outras a perguntarem-lhe qual seria o passo seguinte. A mais recente, escrita a tinta castanha em papel oficial de Whitehall, era uma mensagem de Jack Tallis a confirmar que estava disposto a ajudá-lo a pagar as propinas de Medicina. Tinha também um calhamaço de impressos de candidatura para preencher, ao todo umas vinte páginas, e alguns manuais de faculdades de Edimburgo e de Londres, com um aspecto severo, cuja prosa metódica e exacta parecia uma antevisão de um novo rigor académico. Actualmente sugeriam-lhe, não aventura e um novo recomeço, mas um exílio. Conseguia antever a rua de varandas lúgubres longe dali, um quarto minúsculo forrado de papel às flores, com um roupeiro sombrio e uma colcha áspera, os novos amigos, na sua maioria mais novos do que ele, as tinas com formol, a ressonância da biblioteca - elementos, todos eles, desprovidos da presença dela.
Entre os diversos livros sobre jardins escolheu o que dizia respeito a Versalhes, que trouxera da biblioteca dos Tallis. Fora nesse dia que notara pela primeira vez o seu embaraço na presença dela. Ao ajoelhar-se para tirar os sapatos antes de entrar reparara no estado em que estavam as suas peúgas - rotas nos dedos e nos calcanhares e com um cheiro terrível - e, por impulso, descalçara-as. Como se sentira idiota, com o ruído surdo dos seus passos a seguir os dela e a entrar descalço na biblioteca. A única coisa que queria era poder sair dali depressa. Escapulira-se pela cozinha e pedira a Dany Hartman que fosse ao lado da frente da casa buscar-lhe as peúgas e os sapatos.
Era provável que ela não tivesse lido aquele tratado sobre a hidráulica de Versalhes, escrito no século XVIII por um dinamarquês que enaltecia em latim a genialidade de Le Nôtre. Com a ajuda de um dicionário, lera cinco páginas numa manhã e depois desistira e tinha-se ocupado antes das ilustrações. Não seria certamente o género dela, nem, aliás, o de ninguém, mas ela tinha-lho passado da escada da biblioteca e, algures sobre a capa de pele, estariam as marcas dos seus dedos. Desejando não o fazer, aproximou o livro das narinas e inspirou. Pó, papel velho, o cheiro do sabonete nas suas mãos, mas nada dela. Como teria ele chegado àquela fase avançada de fazer do objecto do amor um fetiche? Freud teria certamente algo a dizer sobre isso em Três Ensaios sobre a Sexualidade. E também Keats, Shakespeare e Petrarca e todos os outros; e estava também no Romance da Rosa. Tinha passado três anos a estudar obstinadamente os sintomas que lhe tinham parecido meras convenções literárias, e agora, naquele momento de solidão, como um cortesão com uma gola de tufos engomados e plumas, arrastado para o fundo da floresta para contemplar um objecto abandonado que lhe recordava a sua amada, venerava os vestígios dela - não um lenço, mas as marcas dos dedos! - enquanto se mortificava com o desprezo da sua dama.
Apesar de tudo isso, quando pôs uma folha de papel na máquina não se esqueceu do químico. Escreveu a data e a saudação inicial e mergulhou de imediato num pedido convencional de desculpas pelo seu “comportamento grosseiro e imprudente”. Depois fez uma pausa. Estaria disposto a mostrar algum tipo de sentimentos? Em caso afirmativo, até onde iria?
“Não sei se isto serve de desculpa, mas tenho reparado ultimamente que fico meio tonto quando estou na tua presença. Nunca tinha entrado descalço em casa de ninguém! Deve ser do calor!”
Como parecia frágil aquela ligeireza com que pretendia proteger-se. Parecia um homem com tuberculose em estado avançado a fingir que tinha uma constipação.
Deu dois espaços e voltou a escrever: “Não é para me desculpar, mas ultimamente fico de cabeça perdida quando estou ao pé de ti. Que estaria eu a pensar quando entrei descalço em tua casa? E já alguma vez tinha partido a borda de uma jarra antiga?” Pousou as mãos nas teclas, debatendo-se com a urgência de escrever o nome dela. “Acho que não posso atribuir as culpas ao calor, Cecília!” Agora o tom de brincadeira dava lugar ao melodrama e às lamentações. As perguntas retóricas tinham um ar enjoativo; o ponto de exclamação era o primeiro recurso dos que precisam de gritar para dizerem o que pensam; só desculpava aquela pontuação nas cartas da mãe, onde cinco pontos de exclamação seguidos indicavam tratar-se de uma piada realmente boa. Mudou outra vez de linha e escreveu um “x”. “Acho que não posso atribuir as culpas ao calor, Cecília.” Agora o humor desaparecera e instalara-se uma certa auto-piedade. O ponto de exclamação teria de voltar a aparecer. Obviamente, não servia só para acentuar o volume.
Passou mais um quarto de hora às voltas com o esboço da carta e depois pôs uma folha nova na máquina e começou a escrever outra versão. Agora as ideias cruciais eram: “Não te levo a mal pensares que estou louco - entrar em tua casa descalço, partir uma jarra antiga. A verdade, Cecília, é que fico com a cabeça no ar e meio tolo quando estou ao pé de ti e não creio que a culpa seja do calor! Perdoas-me? Robbie.” Depois, passados alguns momentos de devaneio em que se recostou na cadeira a pensar na página em que o livro de anatomia ultimamente tinha tendência para se abrir, inclinou-se para a frente e escreveu de rompante, sem nada que o detivesse: “Beijo a tua vagina em sonhos, a tua vagina doce e húmida. Na minha cabeça, passo o dia a fazer amor contigo.”
Pronto, estava tudo perdido. Acabava de estragar aquela folha. Tirou-a da máquina, pousou-a sobre a mesa e escreveu a carta à mão, confiante de que esse toque pessoal era mais adequado à situação. Ao olhar para o relógio lembrou-se de que antes de se ir embora tinha de engraxar os sapatos. Levantou-se da secretária, com o cuidado de não dar com a cabeça na viga.
Não se sentia constrangido em sociedade - o que era impróprio, na opinião de muitos. Uma vez, num jantar em Cambridge, no meio de um silêncio súbito à volta da mesa, alguém que não gostava de Robbie perguntou-lhe alto e bom som de quem era filho. Robbie olhou-o bem nos olhos e respondeu com todo o prazer que o pai se fora embora há muito tempo e a mãe era mulher-a-dias e arranjava um dinheiro extra como vidente. O seu tom transmitia uma tolerância bem-humorada em relação à ignorância do seu interlocutor. Robbie adiantou mais alguns pormenores sobre a sua condição social e depois acabou por perguntar delicadamente quem eram os pais do outro indivíduo. Havia quem dissesse que era a inocência, ou a ignorância do mundo, que o protegia de se sentir ferido, que Robbie era uma espécie de louco sagrado que conseguia passar sobre o carvão em brasa de certos salões sem se queimar. A verdade, como Cecília sabia, era mais simples. Passara a infância a circular à vontade entre a casa de madeira e a casa principal. Jack Tallis era o seu protector e Leon e Cecília os seus melhores amigos, pelo menos até ao liceu. Na universidade, onde Robbie descobrira que era mais inteligente do que muitas das pessoas que conhecia, a sua libertação foi total. Nem sequer era preciso mostrar a sua arrogância.
Grace Turner tinha todo o gosto em tratar da roupa dele - de que outra forma, para além de preparar algumas refeições quentes, poderia ela demonstrar o seu amor de mãe por um filho que já tinha vinte e três anos? -, mas Robbie preferia engraxar ele próprio os sapatos. De camisola interior branca e com as calças do fato, desceu o pequeno lanço de escadas de peúgas, com um par de sapatos pretos na mão. Junto à sala de estar havia um espaço pequeno que acabava na porta de vidro fumado da frente da casa, através da qual penetrava uma luminosidade alaranjada difusa que parecia esculpir no papel branco e verde que forrava a parede o desenho de uma colmeia. Parou, com uma mão no puxador, surpreendido por aquela transformação, e depois entrou. Na sala sentia-se um ar húmido e quente, ligeiramente salgado. Devia ter acabado uma sessão. A mãe estava deitada no sofá com os pés levantados e os chinelos a baloiçar nos pés.
- Esteve aqui a Molly - disse ela, e endireitou-se para ser mais sociável. - Ainda bem que vai correr tudo bem com ela.
Robbie foi à cozinha buscar a caixa da graxa, sentou-se no cadeirão que estava mais perto da mãe e abriu uma página do Daily Sketch, já de há três dias, sobre a carpete.
- Ainda bem - disse ele. - Vi que estavas com ela e por isso fui tomar banho.
Sabia que tinha de ir-se embora, que tinha de engraxar os sapatos, mas em vez disso recostou-se na cadeira, espreguiçou-se e abriu a boca.
- Estou a apodrecer! Que ando a fazer da minha vida? A pergunta continha mais humor do que angústia.
Cruzou os braços e olhou para o tecto enquanto esfregava a parte de dentro de um pé com o dedo grande do outro. A mãe estava a olhar para o espaço por cima da cabeça dele.
- Bem, aconteceu qualquer coisa. O que tens? E não digas que não é nada.
Grace Turner tornara-se mulher-a-dias dos Tallis uma semana depois de Ernest se ter ido embora. Jack Tallis não era homem para expulsar uma jovem mãe com o filho. Arranjou na aldeia outro jardineiro, que não precisava de casa. Na altura foi decidido que Grace ficaria com a casa de madeira por um ou dois anos, até se mudar ou tornar a casar. O seu bom coração e o seu jeito para puxar o lustro - a dedicação dela à superfície das coisas era uma das piadas da família - tornaram-na popular, mas o que a salvara verdadeiramente fora a adoração que despertara em Cecília, na altura com seis anos, e em Leon, com oito. Isso fora também a salvação de Robbie. Nas férias da escola, Grace tinha autorização para trazer o filho. Robbie crescera no quarto de brincar e nas outras partes da casa onde as crianças podiam andar, e também no jardim. O seu companheiro de trepar às árvores era Leon; Cecilia era a irmã mais nova, que lhe dava a mão com confiança e que o fazia sentir-se imensamente sábio. Passados alguns anos, quando Robbie ganhou a primeira bolsa de estudo para o liceu, Jack Tallis deu o primeiro passo no sentido de continuar a protegê-lo pagando-lhe a farda e os livros. Fora no ano em que Briony nascera. Ao difícil parto seguira-se a longa doença de Emily. A ajuda de Grace garantira a sua posição: no Natal desse ano - 1922 -, Leon, de chapéu alto e botas de montar, atravessara a neve até à casa de madeira com um envelope do pai. Era uma carta de um advogado a informá-la de que o usufruto da casa era dela, independentemente do cargo que desempenhasse em casa dos Tallis. Mas ela ficara. Voltara aos trabalhos domésticos quando as crianças cresceram, de novo responsável por puxar o lustro da forma que só ela conhecia.
A sua teoria em relação a Ernest era que ele se oferecera como voluntário sob outro nome e não voltara. Qualquer outra hipótese mostraria da sua parte um desinteresse desumano pelo filho. Muitas vezes, no trajecto da casa de madeira para a casa dos patrões, reflectia sobre as coisas boas que lhe tinham acontecido na vida. Tivera sempre um certo medo de Ernest. Talvez não tivessem sido tão felizes todos juntos como ela fora com o seu querido filho naquela casa pequenina, mas que era sua. Se Mr Tallis fosse outro tipo de pessoa... Algumas das mulheres que lhe vinham pedir que visse o seu futuro a troco de um xelim tinham sido deixadas pelos maridos e mais ainda tinham-nos perdido na frente. Era uma vida muito difícil para as mulheres, e a sua também podia ter sido assim.
- Nada - respondeu ele à pergunta dela. - Não tenho nada. - Pegou numa escova e numa lata de graxa preta e acrescentou: - Quer dizer que Molly vai ter um futuro risonho.
- Vai voltar a casar daqui a cinco anos. E vai ser muito feliz. Um indivíduo do Norte com estudos.
- Ela não merece menos.
Permaneceram sentados, num silêncio confortável, enquanto ela o via puxar o lustro aos sapatos com um pano amarelo. Junto às maçãs do seu belo rosto, os músculos contorciam-se com o movimento e na parte de cima dos braços aumentavam de volume e contraíam-se em posições complexas sob a pele. Ernest devia ter qualquer coisa de bom para lhe ter dado um filho assim.
- Quer dizer que vais sair.
- O Leon chegou quando eu vinha para casa. Vinha com aquele amigo, sabes, o magnata do chocolate. Convenceram-me a ir jantar com eles.
- E eu passei a tarde toda a dar brilho às pratas e a limpar o quarto dele.
Robbie pegou nos sapatos e levantou-se.
- Quando vir o reflexo da minha cara na colher, só te verei a ti.
- Põe-te a andar. As camisas estão penduradas na cozinha.
Arrumou a caixa da graxa e foi guardá-la. Escolheu uma camisa de linho creme entre as três que estavam a secar. Voltou à sala e preparava-se para sair, mas ela queria retê-lo um pouco mais.
- E os filhos dos Quincey. Um dos miúdos até fez chichi na cama. Pobrezinhos.
Deixou-se ficar algum tempo à porta e encolheu os ombros. Tinha-os visto na piscina, aos gritos e às gargalhadas, ao fim da manhã. Teriam atirado o carrinho de mão para o lado mais fundo da piscina se ele não se tivesse posto à frente. Danny Hardman também lá estava, a lançar olhares de soslaio para a irmã deles, em vez de estar a trabalhar.
- Hão-de sobreviver - disse ele.
Impaciente por sair, subiu os degraus a três e três. De regresso ao quarto, acabou de se vestir à pressa, assobiando num tom desafinado, enquanto se inclinava ligeiramente para o espelho que estava dentro do roupeiro para pôr brilhantina no cabelo e pentear-se. Não tinha o menor ouvido para a música e era-lhe completamente impossível dizer se uma nota era mais aguda ou mais grave do que outra. Mas agora tinha um compromisso para a noite e sentia-se excitado e estranhamente livre. As coisas não podiam ser piores do que eram. Metodicamente, e com prazer pela sua própria eficiência, como se se preparasse para uma viagem acidentada ou uma campanha militar, desempenhou as pequenas tarefas habituais - procurou as chaves, pôs uma nota de dez xelins dentro da carteira, lavou os dentes, verificou o hálito soprando para uma mão em concha, tirou a carta da secretária e pô-la num envelope, reabasteceu a cigarreira e verificou se tinha o isqueiro. Retemperou-se mais uma vez em frente ao espelho. Viu as gengivas, voltou-se de lado e espreitou por cima do ombro para ver a sua imagem de perfil. Por fim deu uma palmadinha nos bolsos, desceu as escadas, outra vez a três e três, disse adeus à mãe e saiu para o pequeno caminho de tijolo entre os canteiros, que ia dar a um portão na vedação.
Nos anos seguintes voltaria muitas vezes a pensar naquele momento em que percorreu o caminho que atalhava pela floresta de carvalhos e ia dar à estrada principal, curvando depois em direcção ao lago e à casa. Não estava atrasado, mas tinha dificuldade em andar mais devagar. Aqueles minutos eram enriquecidos por uma enorme mistura de prazeres, uns mais imediatos e outros menos próximos: a luz desbotada e avermelhada do crepúsculo, o ar quente e imóvel saturado com os aromas da erva seca e da terra quente, os seus membros soltos por um dia de trabalho no jardim, a pele suave por causa do banho, o toque da camisa e do seu único fato. A expectativa e o temor por ir vê-la eram também uma espécie de prazer sensual, e a rodeá-lo, como num abraço, estava um sentimento geral de exaltação - podia doer, era terrivelmente inconveniente, nenhum bem poderia vir daí, mas descobrira por si próprio o que era estar apaixonado, e isso entusiasmava-o muito. Havia outros factores a contribuírem para a sua felicidade; continuava a tirar satisfação da sua nota de final de curso - segundo lhe fora dito, a melhor do seu ano. E agora a confirmação de que Jack Tallis continuaria a apoiá-lo. Uma nova aventura pela frente, não um exílio - teve uma súbita certeza disso. Era bom ir estudar Medicina. Não sabia explicar o seu optimismo - estava feliz e por isso só podia ter êxito.
Havia uma palavra que continha tudo o que ele sentia e explicava a razão por que tantas vezes voltaria àquele momento. Liberdade. Tanto na sua vida como nos seus membros. Há muito tempo, ainda antes de ter ouvido falar em liceus, fora inscrito num exame que o levara a um. Cambridge, por muito que tivesse gostado de lá andar, fora uma escolha do ambicioso reitor do liceu. Até o curso fora de facto escolhido por um professor carismático. Agora, finalmente, exercendo a sua vontade, a sua vida de adulto iria começar. Havia uma história que ele imaginava e da qual seria o herói; o início dessa história bastara para causar algum choque entre os amigos. A arquitectura paisagista não passara de uma aventura boémia, e também de uma ambição duvidosa - fora assim que a analisara com a ajuda de Freud- para substituir ou superar a falta do pai. Ser director de uma escola - daí a quinze anos, director do departamento de Inglês, Dr. R. Turner - também não fazia parte da história, nem dar aulas numa universidade. Apesar das suas notas brilhantes, estudar literatura inglesa, visto em retrospectiva, parecia um jogo de salão absorvente, e ler livros e ter opiniões sobre eles o complemento desejável de uma existência civilizada. Mas não era a essência, aquilo de que o Dr. Leavis falava nas suas aulas. Não era obrigatoriamente um sacerdócio, nem a busca obstinada de uma mente curiosa, nem a primeira e última defesa contra um horda de bárbaros, mas apenas o estudo da pintura, da música, da história ou das ciências. Em várias intervenções no seu último ano, Robbie ouvira um psicanalista, um membro de um sindicato comunista e um físico falarem das suas áreas de forma tão apaixonada e convincente como Leavis falara da sua. Provavelmente acontecia o mesmo com a medicina, mas para Robbie a questão era mais simples e mais pessoal: a sua natureza prática e as suas aspirações científicas frustradas encontrariam um escape, teria competências muito mais elaboradas do que as que adquirira com a crítica prática e, acima de tudo, decidira por ele. Instalar-se-ia numa cidade desconhecida - e começaria.
Tinha saído de entre as árvores e chegado ao sítio onde o caminho desembocava na estrada. A luz difusa aumentava a extensão do jardim e a suave luz amarela das janelas do lado do lago fazia a casa parecer quase bela e grandiosa. Ela estava ali, talvez no quarto a arranjar-se para o jantar - fora de visão, na parte de trás do edifício, no segundo andar. Do lado que dava para a fonte. Afastou aquelas imagens para não se sentir perturbado quando chegasse lá a casa. As solas duras dos sapatos arrastavam-se pelo empedrado da estrada, fazendo um barulho semelhante ao de um relógio gigantesco, o que o fez pensar no tempo, o seu grande tesouro escondido, o luxo de uma fortuna por gastar. Nunca se sentira tão conscientemente jovem, nem sentira tanto apetite, tanta impaciência, por que a história começasse. Em Cambridge havia homens mentalmente ágeis como professores e que também sabiam jogar ténis, continuavam a remar, e tinham mais vinte anos do que ele. Ainda tinha, pelo menos, vinte anos para contar aquela história, mais ou menos com aquele nível de bem-estar físico - era quase tanto tempo como o que já vivera. Vinte anos levá-lo-iam à data futurista de 1955. Que saberia ele de importante nessa altura que actualmente ainda fosse obscuro? Teria ainda mais trinta anos para lá desse tempo para viver uma vida mais calma?
Imaginava-se em 1962, com cinquenta anos, já velho, mas não suficientemente velho para ser inútil; imaginava o médico idoso e entendido que seria nessa altura, com uma enorme colecção de histórias secretas, de tragédias e êxitos. Também teria uma grande colecção de milhares de livros e, claro, um escritório, enorme e lúgubre, ricamente ornamentado com os troféus de uma vida de viagens e ideias - plantas raras de florestas tropicais, setas envenenadas, inventos eléctricos sem sucesso, estatuetas de greda, crânios envelhecidos, peças de arte aborígene. Nas prateleiras, livros de medicina e meditações, mas também os livros que agora enchiam o cubículo no telhado da casa de madeira - a poesia do século XVIII que quase o convencera a ser arquitecto paisagista, a sua terceira edição da Jane Austen, e seu Eliot e Lawrence e Wilfred Owen, o conjunto completo das obras de Conrad, a valiosa edição de 1783 de The Village, de Crabbe, o seu Housman, a cópia autografada de The Dance of Death, de Auden. Seria exactamente essa a questão: seria um médico melhor por ter lido literatura. De que forma profunda a sua sensibilidade modificada poderia interpretar o sofrimento humano, a loucura autodestrutiva ou a pura má sorte que põem os homens doentes! O nascimento, a morte e, entre eles, a fragilidade. Ascensão e queda - era essa a missão do médico e também a da literatura. Estava a pensar no romance do século XIX. Uma grande tolerância, uma visão ampla, um coração manifestamente quente e uma cabeça fria; estaria desperto para os monstruosos padrões do destino e para a vã e ridícula negação do inevitável; tomaria o pulso frágil dos doentes, ouviria a sua respiração, sentiria a mão febril começar a arrefecer e reflectiria, como só a literatura e a religião podem ensinar, sobre a insignificância e a nobreza da humanidade...
Os seus passos tornaram-se mais rápidos naquele fim de tarde calmo, acompanhando o ritmo dos seus pensamentos radiantes. À sua frente, a menos de cem metros de distância, estava a ponte e sobre ela julgou ver, delineada contra a escuridão da estrada, uma forma branca que ao princípio lhe pareceu fazer parte da pedra branca do parapeito. O facto de a fixar dissolveu os seus contornos, mas, a alguns passos de distância, parecia ter assumido uma forma vagamente humana. Àquela distância não conseguia dizer se estava voltada de frente ou de costas para ele. Estava imóvel, e ele achou que estava a ser observado. Tentou divertir-se durante um ou dois segundos com a ideia de que podia ser um fantasma, mas não acreditava no sobrenatural, nem sequer no ser extraordinariamente pouco exigente que presidia à igreja normanda da aldeia.
Via agora que era uma criança; devia, por isso, ser Briony, com o vestido branco com que já a vira mais cedo. Via-a agora com toda a clareza e levantou a mão e chamou-a, dizendo: “Sou eu, o Robbie”, mas ela continuou imóvel. Ao aproximar-se lembrou-se de que talvez fosse preferível fazer chegar a carta a casa antes dele. Se não o fizesse, poderia ser obrigado a dá-la a Cecília à frente de outras pessoas, talvez observado pela mãe dela, que se tornara bastante fria com ele desde que ele voltara de Cambridge. Ou talvez nem conseguisse dar-lhe a carta por ela o manter à distância. Se Briony lha desse, Cecília teria tempo para a ler e para reflectir em privado. Esses minutos extra talvez a apaziguassem.
- Estava a pensar pedir-te um favor - disse Robbie a Briony quando ela se aproximou dele.
Ela acenou com a cabeça e ficou à espera.
- Importas-te de dar isto à Cecília? - perguntou ele enquanto lhe punha na mão o envelope, que ela aceitou sem uma palavra.
- Eu já lá vou ter... - ia ele a acrescentar, mas Briony já tinha dado meia volta e atravessava a ponte a correr.
Robbie encostou-se ao parapeito e puxou de um cigarro enquanto a via aparecer e desaparecer nas zonas de sombra e de luz. Era uma idade estranha numa rapariga, pensou ele com satisfação. Teria doze anos ou treze? Perdeu-a de vista por um ou dois segundos e depois viu-a atravessar a ilha, iluminada contra a massa mais escura das árvores. Depois voltou a deixar de a ver, e só quando ela reapareceu, ao fundo da segunda ponte, a dirigir-se para a estrada para tomar um atalho pelo relvado, ele se endireitou repentinamente, tomado pelo horror e por uma certeza absoluta. Um grito involuntário, sem palavras, irrompeu dele, ao mesmo tempo que deu alguns passos apressados pela estrada, hesitou, começou a correr e depois voltou a parar, sabendo que aquela perseguição era inútil. Já não a via quando pôs as mãos em concha à volta da boca e gritou o nome de Briony. Também isso era inútil. Deixou-se ficar parado, esforçando-se por vê-la - como se isso ajudasse - e tentando desesperadamente convencer-se de que estava enganado. Mas não estava. Tinha posto a carta manuscrita sobre a Anatomia de Gray, secção de Esplancnologia, página 1546, a vagina. A que tinha dobrado e metido no envelope era a folha dactilografada, a que tinha deixado junto da máquina de escrever. Não eram precisas as teorias espertalhonas de Freud - a explicação era simples e mecânica. A carta inócua estava em cima da figura 1236, uma imagem impudente com a sua coroa devassa de pêlos púbicos, e a versão obscena estava em cima da mesa. Voltou a gritar o nome de Briony, embora soubesse que naquele momento ela já devia estar à entrada da casa. Certamente daí a poucos segundos um losango distante de luz ocre contendo a sua silhueta alargar-se-ia antes de se imobilizar e depois voltaria a estreitar até ficar reduzido a nada, quando ela entrasse em casa e a porta se fechasse atrás de si.
9
Por duas vezes no espaço de meia hora, Cecília saiu do quarto para se ir ver ao espelho que havia ao cimo das escadas e, insatisfeita, voltou ao guarda-fatos para reconsiderar. A sua primeira escolha fora um vestido preto de crepe da China que, segundo o espelho do toucador, lhe dava uma certa dureza de formas graças a um bom corte. O seu ar invulnerável era reforçado pelo tom escuro dos seus olhos. Em vez de atenuar o efeito com um colar de pérolas, foi buscar, num momento de inspiração, um fio de âmbar. O desenho dos lábios ficara perfeito com a primeira aplicação de batom. Com a cabeça inclinada em vários ângulos diferentes para ver perspectivas suas em tríptico, certificou-se de que não tinha um rosto demasiado comprido, pelo menos naquela noite não tinha essa sensação. Tinha de ir à cozinha em representação da mãe e sabia que Leon estava à sua espera na sala de estar. Mesmo assim, ainda arranjou tempo antes de sair para voltar ao toucador e pôr perfume nos cotovelos, um gesto divertido que se coadunava com o seu estado de espírito, e só depois saiu, fechando a porta do quarto atrás de si.
Mas a imagem que lhe foi devolvida pelo espelho das escadas ao aproximar-se dele revelava uma mulher a caminho de um funeral, uma mulher austera, triste, cuja carapaça negra parecia ter algumas afinidades com um insecto preso numa caixa de fósforos. Um escaravelho! Seria assim no futuro, aos oitenta e cinco anos, uma viúva escanzelada. Não perdeu tempo - rodopiou sobre os tacões, também pretos, e voltou ao quarto.
Estava céptica, pois conhecia as partidas que a mente lhe podia pregar. Ao mesmo tempo, o seu espírito estava - em todos os sentidos da palavra - no sítio onde passaria o serão, e Cecília tinha de se sentir bem consigo própria. Tirou o vestido preto, que deixou caído no chão, e, de sapatos de salto alto e roupa interior, passou em revista as possibilidades que o seu guarda-fatos lhe oferecia, preocupada com o passar do tempo. Detestava a ideia de transmitir uma sensação de austeridade. Queria sentir-se descontraída e ao mesmo tempo reservada. Acima de tudo, queria dar a sensação de não ter pensado na questão nem por um minuto, e isso requeria algum tempo. Lá em baixo, na cozinha, a impaciência estaria a aumentar, e ao mesmo tempo os minutos que planeara passar sozinha com o irmão estavam a escoar-se. Daí a pouco, a mãe ia querer discutir a distribuição dos lugares à mesa, Paul Marshall ia descer do quarto e seria preciso fazer-lhe companhia e Robbie estaria à porta. Como podia ela pensar com clareza?
Percorreu com a mão os poucos metros da sua história pessoal, a sua breve crónica do gosto. Lá estavam os seus vestidos de adolescente, ridículos, sem energia, coisas assexuadas. Embora um tivesse nódoas de vinho e outro um buraco feito pelo seu primeiro cigarro, não tinha coragem para os deitar fora. Havia outro com o primeiro indício tímido de chumaços nos ombros e outros já mais assertivos, irmãs mais velhas musculosas que renegavam os anos arrapazados, descobriam as curvas e a cintura e desciam as bainhas com um desprezo arrogante pelas expectativas dos homens.
O seu fato mais recente e também o melhor, que fora comprado para a festa de fim de curso antes de saber do seu miserável terceiro lugar, era um vestido de noite verde-escuro, cingido ao corpo, sem costas e com um corte evasé e apertado no pescoço. Era demasiado elegante para um jantar em casa. Continuou a percorrer os fatos com a mão e acabou por tirar um vestido de seda moiré com a parte de cima pregueada e a bainha ondulada - uma escolha segura, uma vez que o cor-de-rosa era suficientemente discreto, se não mesmo antiquado, para ser usado à noite. O espelho triplo era da mesma opinião. Mudou de sapatos, trocou o âmbar pelas pérolas, retocou a maquilhagem, pôs um pouco de perfume na base da garganta, a maior parte da qual estava agora a descoberto, e voltou ao corredor em menos de quinze minutos.
Durante o dia tinha visto o velho Hardman andar pela casa com um cesto de verga a substituir lâmpadas. Talvez houvesse agora uma lâmpada mais forte ao cimo das escadas, porque nunca tinha tido aqueles momentos difíceis com o espelho. Bastou-lhe chegar a pouco mais de dez metros do espelho para ver que ele não a deixaria passar; o cor-de-rosa era de facto de uma palidez inocente, a cintura era muito subida, o vestido rodopiava como se ela fosse uma menina de oito anos numa festa de anos. Só lhe faltavam uns rabinhos de coelho. Ao aproximar-se mais, uma imperfeição qualquer na superfície do velho espelho diminuiu a sua imagem, fazendo-a confrontar-se com a criança de há quinze anos. Parou e fez a experiência de erguer as mãos até aos lados da cabeça e prender o cabelo em dois totós. Aquele mesmo espelho devia tê-la visto descer as escadas naquela figura vezes sem conta, a caminho de mais uma festa de aniversário. Não ajudaria em nada o seu estado de espírito descer assim, fazendo lembrar, ou achando que fazia lembrar, a Shirley Temple.
Mais por resignação do que por irritação ou pânico, voltou ao quarto. Não havia qualquer confusão no seu espírito: aquelas impressões demasiado vívidas e inseguras, a sua falta de confiança, a incómoda clareza visual e as misteriosas diferenças que tinham perpassado o familiar não eram mais do que continuações, variações da forma como se vira e se sentira ao longo de todo o dia. Sentira, mas em que preferira não pensar. Além disso, sabia o que tinha de fazer e sempre soubera. Só tinha um fato de que gostava verdadeiramente, e era esse que devia usar. Deixou o vestido cor-de-rosa cair em cima do preto e, passando com desdém por cima da roupa, tirou o vestido de noite verde, sem costas. Quando o vestiu, agradou-lhe a carícia firme da seda do corpete e sentiu-se elegantemente impregnável, maliciosa e segura; foi uma sereia que lhe apareceu no espelho. Deixou ficar o colar de pérolas, voltou a calçar os sapatos de salto alto pretos, retocou mais uma vez o cabelo e a maquilhagem, pôs mais um pouco de perfume e, no momento em que abriu a porta, deu um grito de terror. A poucos centímetros dela estava um rosto e um punho erguido. A sua percepção imediata e vertiginosa foi a de uma perspectiva de Picasso onde se misturavam lágrimas, olhos vermelhos e inchados, lábios húmidos e esfolados e um nariz ranhoso, numa humidade rosada que só podia mostrar sofrimento. Cecília recompôs-se, pousou as mãos nos ombros ossudos e fez girar lentamente todo o corpo para poder ver a orelha esquerda. Era Jackson, prestes a bater à porta do quarto dela. Na outra mão estava uma meia cinzenta. Ao chegar-se para trás, Cecília reparou que ele estava com uns calções cinzentos engomados e uma camisa branca, mas descalço.
- O que aconteceu, miúdo?
Para já, ele não conseguia falar. Em vez disso, levantou a meia e fez um gesto para o fundo do corredor. Cecília espreitou pela porta e viu Pierrot um pouco afastado, também descalço, também com uma meia na mão e a olhar para eles.
- Quer dizer que cada um de vocês tem uma meia.
O miúdo disse que sim com a cabeça, engoliu em seco e depois conseguiu finalmente falar:
- Miss Betty diz que vamos apanhar se não formos já para baixo lanchar, mas só temos um par de meias.
- E andaram à pancada por causa disso.
Jackson confirmou enfaticamente com a cabeça. Atravessou o corredor para acompanhar os miúdos ao quarto e durante esse trajecto primeiro um e depois o outro deram-lhe a mão, e ela ficou admirada por se sentir tão gratificada. Não conseguia deixar de pensar no vestido.
- Não pediram à vossa irmã que vos ajudasse?
- Ela não fala connosco.
- Porquê?
- Porque nos odeia.
O quarto deles era uma confusão deplorável de roupa, toalhas molhadas, cascas de laranja, bocados rasgados de um livro de banda desenhada, cadeiras de pernas para o ar parcialmente tapadas por cobertores e os colchões voltados ao contrário. Entre as camas estava uma grande mancha de humidade, no centro da qual se encontrava uma barra de sabão e rolos de papel higiénico molhado. Um dos cortinados estava solto da sanefa e, embora as janelas estivessem abertas, o ar estava húmido e frio. Todas as gavetas da cómoda estavam abertas e vazias. Tinha-se a sensação de que haviam quebrado o aborrecimento que sentiam com disputas e esquemas - saltando entre as camas, construindo uma tenda, tentando jogar a qualquer coisa e desistindo em seguida. Ninguém na casa dos Tallis estava a tomar conta dos gémeos e, para esconder o seu sentimento de culpa, teve a ideia brilhante de dizer:
- Com o quarto neste estado é impossível encontrar seja o que for.
Começou a repor a ordem, arranjando as camas, tirando os sapatos de salto alto para subir a uma cadeira para arranjar o cortinado e dando aos gémeos tarefas pequenas e realizáveis.
Eles obedeceram-lhe, mas em silêncio e curvados, como se a intenção dela fosse ser obedecida e não recompensada, como se lhes tivesse ralhado em vez de ter sido gentil para eles. Os gémeos tinham vergonha do seu quarto. Empoleirada na cadeira, com o vestido verde-escuro cingido, a observar aquelas cabeças ruivas a deslocarem-se enquanto cumpriam as suas tarefas, o único pensamento que lhe ocorreu foi a que ponto era desesperada e aterradora a situação deles, sem amor, obrigados a construir uma existência a partir do nada e numa casa estranha. Com dificuldade, porque não podia dobrar muito os joelhos, Cecília desceu da cadeira e sentou-se na beira da cama, dando algumas pancadinhas de um e do outro lado da colcha. Mas os miúdos ficaram de pé, a olhar para ela com uma expressão expectante. Disse-lhes, no tom cantarolado de uma professora de jardim infantil:
- Não é preciso chorarem por não saberem de umas meias, pois não?
- Nós gostávamos era de ir para casa - retorquiu Pierrot.
Sentindo-se castigada, Cecília readquiriu o tom de uma conversa de adultos.
- Por agora é impossível. A vossa mãe está em Paris com... a passar férias, e o vosso pai está ocupado na universidade, por isso vão ter de ficar cá uns tempos. É pena terem-vos deixado ficar sozinhos. Mas divertiram-se bastante na piscina, não foi?
- Queríamos entrar na peça, mas a Briony foi-se embora e ainda não voltou - disse Jackson.
- Tens a certeza?
Mais uma preocupação. Briony devia ter voltado há imenso tempo, e isso levou-a a pensar nas pessoas que estavam lá em baixo à sua espera: a mãe, a cozinheira, Leon, o amigo de Leon, Robbie. Nem o calor da tarde que inundava o quarto através das janelas abertas podia isentá-la das suas responsabilidades. Era um fim de tarde daqueles com que se sonha um ano inteiro, com a sua intensa fragrância, a sua panóplia de prazeres, e ela deixara-se distrair por coisas menores. Mas tinha de aproveitar. Era um erro não aproveitar. Estar no terraço a beber gim tónico na companhia de Leon seria o paraíso. Não tinha a culpa de a tia Hermione ter fugido com um bajulador qualquer que fazia sermões inflamados na rádio todas as semanas. Chegava de tristezas. Cecília levantou-se e bateu as palmas.
- É pena a peça ter ido por água abaixo, mas não há nada a fazer. Vamos procurar umas meias e pôr-nos a andar daqui.
A investigação revelou que as meias que tinham trazido na viagem estavam para lavar e que, com a emoção absorvente da paixão, a tia Hermione se esquecera de mandar mais meias. Cecília foi ao quarto de Briony e vasculhou numa gaveta à procura das meias que tivessem o desenho menos ameninado e encontrou umas brancas, pelo tornozelo, com morangos verdes e encarnados. Achou que os rapazes iam brigar para ver qual ficava com as meias cinzentas, mas aconteceu exactamente o contrário e, para evitar mais zangas, teve de ir ao quarto de Briony à procura de outro par. Desta vez parou para ir à janela admirar o crepúsculo e tentar adivinhar onde estaria a irmã. Talvez afogada no lago, raptada por ciganos, atropelada por um automóvel, pensou ela ritualmente, no pressuposto de que as coisas nunca eram como as pessoas imaginavam, o que era um meio eficiente de excluir o pior.
De regresso aos rapazes, penteou Jackson com um pente que molhou na água de uma jarra de flores, segurando-lhe firmemente o queixo com o polegar e o indicador enquanto lhe separava o cabelo por uma risca o mais direita possível. Pierrot esperou pacientemente que chegasse a sua vez e depois, sem uma palavra, desceram a escada para irem ter com Betty.
Cecília seguiu-os com um passo mais lento, cruzando um breve olhar com o espelho crítico e dando-se por inteiramente satisfeita com o que viu. Ou melhor, não estava tão preocupada, pois o seu estado de espírito alterara-se depois de ter estado com os gémeos, e os seus pensamentos tinham-se expandido e passado a incluir uma ideia vaga que começou a ganhar forma sem nenhum conteúdo em especial e sem dar origem a nenhum plano específico: tinha de se ir embora dali. Era uma ideia que a deixava calma e a fazia sentir prazer e nenhum desespero. Chegou ao patamar do primeiro andar e parou. Lá em baixo, a mãe, com um sentimento de culpa devido à sua ausência do seio da família, devia estar a espalhar ansiedade e confusão à sua volta. Para piorar as coisas, haveria ainda a notícia, caso isso se confirmasse, de que Briony desaparecera. Gastariam tempo e preocupar-se-iam até a encontrarem. Receberiam um telefonema do ministério a dizer que Mr Tallis teria de trabalhar até mais tarde e ficaria na cidade. Leon, que tinha o condão de evitar responsabilidades, não assumiria o papel do pai. Este passaria teoricamente para Mrs Tallis, mas, em última análise, o sucesso da noite estaria nas mãos de Cecilia. Estava tudo bem claro e não valia a pena lutar contra isso - não se abandonaria a uma noite voluptuosa de Verão, não teria uma longa conversa com Leon, não andaria descalça sobre a relva sob o céu estrelado da meia-noite. Sentiu por baixo da mão a madeira envernizada do corrimão com as suas manchas pretas, vagamente neogótico, impassivelmente sólido e postiço. Sobre a sua cabeça estava um grande candelabro de ferro fundido, preso por três correntes, que nunca fora aceso desde que ela nascera. Em vez disso, o patamar era iluminado por dois apliques com semicírculos de papiro falso como abat-jours. Dirigiu-se em silêncio, envolta pelo luminosidade amarela que eles produziam, para o quarto da mãe. A porta entreaberta e o feixe de luz que atravessava a carpete do corredor confirmavam que Emily Tallis já não estava deitada. Cecília regressou às escadas e voltou a hesitar, com alguma relutância em descer. Mas não tinha alternativa.
Não havia nada de novo nos preparativos, e Cecília não se sentiu angustiada. Há dois anos, o pai desaparecera para preparar uns documentos misteriosos para o Ministério do Interior. A mãe vivera sempre num reino de sombras de inválida, Briony precisara sempre que a irmã mais velha fosse uma mãe para ela, e Leon sempre fora livre, e ela sempre o adorara por isso. Nunca pensara que fosse tão fácil voltar aos velhos papéis. Cambridge mudara-a por completo, e ela pensava que era imune. No entanto, nenhum membro da família se apercebera da transformação que se operara nela, e ela não era capaz de resistir ao poder das expectativas deles. Não acusava ninguém, mas passara o Verão todo lá em casa motivada por uma vaga ideia de que estava a restabelecer laços importantes com a família. Afinal esses laços nunca tinham sido quebrados - via-o agora claramente - e, de qualquer forma, os pais estavam ausentes, cada um à sua maneira, Briony estava perdida nas suas fantasias e Leon estava na cidade. Chegara a hora de ela partir. Precisava de uma aventura. Havia um convite de uns tios para ir com eles a Nova Iorque. A tia Hermione estava em Paris. Podia ir para Londres e arranjar um emprego - era o que o pai esperava que ela fizesse. Sentia-se excitada, não inquieta, e não permitiria que aquele serão a frustrasse. Haveria outras noites como aquela e, para as desfrutar, teria de estar noutro sítio.
Animada por aquela nova certeza - escolher o vestido certo ajudara-a, definitivamente -, atravessou o átrio, empurrou a porta de repes e percorreu o xadrez dos mosaicos do corredor que ia dar à cozinha. Mergulhou numa nuvem onde várias cabeças pareciam suspensas a alturas diferentes, como estudos num livro de esboços de um artista, e reparou que todos os olhos estavam voltados para qualquer coisa que estava em cima da mesa da cozinha e que as costas largas de Betty impediam Cecília de ver. O clarão vermelho à altura dos tornozelos vinha das brasas do fogão a lenha, cuja porta foi fechada nesse preciso momento com um pontapé, que produziu um som metálico alto e irritante. Um vapor intenso erguia-se de uma panela de água a ferver, de que ninguém estava a tomar conta. A ajudante da cozinheira, Doll, uma rapariga magra da aldeia, com o cabelo preso num carrapito austero, junto ao lava-loiça a fazer um estampido mal-humorado com as tampas das panelas, estava também ligeiramente voltada de lado para ver o que Betty tinha posto em cima da mesa. Um dos rostos era o de Emily Tallis, outro o de Danny Hardman e um terceiro o do pai dele. Sobrepostos aos outros, talvez por estarem em cima de bancos, estavam Jackson e Pierrot, com uma expressão solene. Cecília sentiu-se observada pelo Hardman mais novo. Devolveu-lhe um olhar feroz e ficou aliviada quando ele se voltou. Fora um dia de trabalho longo e difícil na cozinha, com aquele calor, e os resíduos estavam por todo o lado: as lajes do chão estavam escorregadias por causa do molho da carne assada, que o tinha salpicado, e das cascas pisadas; os panos da loiça, encharcados, verdadeiros tributos às longas horas de trabalhos heróicos, pendiam do fogão como estandartes de regimentos na igreja. Junto às pernas de Cecília estava um cesto a deitar por fora com restos de legumes, que Betty levaria para casa para dar ao peru que estava a engordar para o Natal. A cozinheira olhou por cima do ombro para mostrar que tinha dado pela chegada de Cecília e voltou-se a tempo de esconder a fúria que lhe perpassava nos olhos, que as bochechas gordas tinham reduzido a dois rasgões gelatinosos.
- Tira isso do lume! - gritou ela. Sem dúvida que o alvo da sua irritação era Mrs Tallis.
Doll saltou do lava-loiça para o fogão, escorregou e quase caiu, e agarrou em duas pegas para tirar a panela do lume. A visibilidade melhorou e permitiu ver Polly, a criada de quarto que toda a gente dizia que era meio apatetada e que costumava ficar até mais tarde quando havia algum jantar especial. Os seus olhos grandes e crédulos também estavam fixados na mesa da cozinha. Cecília deu a volta por trás de Betty para ver o que todos os outros estavam a ver - um tabuleiro descomunal, enegrecido, que acabava de ser tirado do forno, com uma quantidade enorme de batatas assadas, que continuavam a crepitar ligeiramente. Eram talvez umas cem, ao todo, em fileiras irregulares de um tom dourado, que Betty soltava e voltava com uma espátula de metal. As partes de baixo tinham uma cor amarelada mais pegajosa e, aqui e ali, uma crosta reluzente de um castanho nacarado e a ocasional renda de filigrana que despontava por baixo de uma pele rasgada. Estavam, ou estariam, perfeitas.
- A senhora quer que eu faça uma salada de batata com isto? - perguntou Betty, enquanto voltava a última fileira.
- Exactamente. Cortas os bocados queimados, tiras a gordura, põe-las na tigela toscana e tempera-las com azeite e depois... - Emily fez um gesto vago na direcção da fruteira que estava ao pé da porta da despensa, onde podia estar ou não um limão.
- Quer uma salada de couves-de-bruxelas? - perguntou Betty, de olhos no tecto.
- Francamente, Betty.
- Uma salada de couve-flor gratinada? Uma salada de rabanetes?
- Estás a fazer muito barulho por nada.
- Uma salada de pudim de pão e manteiga?
Um dos gémeos torceu o nariz.
No momento em que Cecília adivinhou o que ia acontecer a seguir, isso começou a acontecer. Betty voltou-se para ela, agarrou-lhe o braço e lançou o seu apelo:
- Miss Cecília, mandaram-me fazer um assado, e nós estivemos aqui todo o dia com temperaturas capazes de fazer ferver o sangue.
A cena era nova, os espectadores um elemento não habitual, mas o dilema era bastante familiar: como conseguir a paz sem humilhar a mãe. Mas Cecília decidira mais uma vez que queria ir para junto do irmão no terraço; por isso, era importante aliar-se à facção vencedora e pressionar para que se chegasse a uma conclusão rápida. Puxou a mãe para o lado, e Betty, que já conhecia bem aquela fórmula, pôs toda a gente a mexer. Emily e Cecília Tallis ficaram junto à porta aberta que dava para a horta.
- Querida, há uma vaga de calor, e ninguém vai convencer-me a prescindir de uma salada.
- Eu sei que está muito calor, Emily, mas o Leon está a morrer por um assado da Betty. Passa a vida a falar deles. Até o ouvi gabá-los a Mr Marshall.
- Oh, meu Deus - disse Emily.
- Estou do teu lado. Não me apetece nada um assado. O melhor é deixar que cada um escolha o que quer. Manda a Polly arranjar alface. Há beterrabas na despensa. A Betty pode cozer batatas e deixá-las arrefecer.
- Tens razão, querida. Não queria por nada deste mundo desapontar o Leon.
Ficou tudo resolvido, e o assado foi salvo. Com uma simpatia táctica, Betty mandou Doll descascar batatas, e Polly saiu com uma faca na mão.
Quando saíram da cozinha, Emily pôs os óculos escuros e disse:
- Ainda bem que isto se resolveu, porque o que está mesmo a preocupar-me é a Briony. Sei que ela está aborrecida. Anda lá por fora e eu vou buscá-la.
- Boa ideia. Também estava preocupada com ela - disse Cecília. Não estava nada inclinada a tentar dissuadir a mãe de se afastar do terraço.
A sala que nessa manhã trespassara Cecília com os seus paralelogramos de luz estava agora na penumbra, iluminada apenas por um candeeiro junto da lareira. As portas para o terraço enquadravam uma luz esverdeada contra a qual se via, ao longe, a silhueta familiar da cabeça e dos ombros de Leon. Quando atravessou a sala ouviu o tinido dos cubos de gelo no copo dele e, ao chegar ao exterior, sentiu o aroma do poejo, da camomila e da matricária debaixo dos pés, e com maior intensidade do que de manhã. Ninguém se lembrava do nome, nem mesmo do aspecto do jardineiro que por lá passara há alguns anos e decidira semear ervas nas fendas entre as lajes do chão. Também ninguém percebia o que ele tinha em mente. Talvez fosse por isso que tinha sido despedido.
- Mana! Estou aqui fora há quarenta minutos e estou quase assado.
- Desculpa. Onde está a minha bebida?
Numa mesa de madeira baixa encostada à parede da casa estava um candeeiro de parafina e à sua volta um bar rudimentar. Tinha finalmente na mão o copo de gim tónico. Acendeu um cigarro no do irmão e encostaram os copos.
- Gosto do vestido.
- Consegues vê-lo?
- Dá a volta. Fantástico! Tinha-me esquecido desse sinal.
- Como vai o banco?
- Monótono e perfeitamente agradável. Vivemos a pensar nos fins de tarde e nos fins-de-semana. Quando é que apareces por lá?
Deixaram o terraço e encaminharam-se para o caminho de gravilha entre as roseiras. À sua frente erguia-se agora o lago do Tritão, uma forma escura, cuja silhueta complexa se esbatia contra um céu cada vez mais esverdeado à medida que a luz ia diminuindo. Chegava até eles o som do gotejar da água, e Cecília teve a sensação de que também conseguia sentir o seu aroma, intenso e argênteo. Podia ser por causa da bebida que tinha na mão.
- Estou a sentir-me a enlouquecer aqui - disse Cecília depois de uma pausa.
- Estás outra vez a ser a mãe de toda a gente. Sabes, está a começar a haver mulheres em toda a espécie de profissões. Até a fazerem os exames para a administração pública.
O velhote ia ficar contente.
- Com a minha nota de curso nunca conseguiria.
- Quando começares a trabalhar vais ver que isso não conta nada.
Chegaram à fonte e voltaram-se para a casa. Ficaram em silêncio por algum tempo, encostados ao parapeito, no local da catástrofe. Tinha sido ridículo, uma imprudência, e sobretudo uma vergonha. Só o tempo, um véu decoroso de horas, impedia que o irmão a visse como ela tinha estado. Mas não tivera a mesma protecção em relação ao Robbie. Ele vira-a, poderia vê-la sempre, mesmo quando o tempo reduzisse aquela recordação a uma história de café. Ainda estava irritada com o irmão por causa do convite, mas precisava dele, precisava de partilhar da sua liberdade. Com solicitude, pediu-lhe que lhe contasse as notícias.
Na vida de Leon, ou melhor, na forma como Leon narrava a sua vida, não havia ninguém mal-intencionado, intriguista, mentiroso ou traidor. Todas as pessoas eram glorificadas, pelo menos em certa medida, como se a sua própria existência fosse motivo de admiração. Lembrava-se dos melhores ditos de todos os amigos. O efeito das anedotas de Leon era reconciliar o seu interlocutor com a humanidade e as suas imperfeições. Toda a gente era, pelo menos, “boa pessoa” ou “um tipo às direitas”, e as motivações nunca eram consideradas fora de sintonia com as aparências. Caso notasse um mistério ou uma contradição num amigo, Leon via mais longe e encontrava uma explicação benigna do caso. Não se incomodava com a literatura, a política, a ciência ou a religião - pura e simplesmente não tinham lugar no seu mundo, tal como não tinha nenhum assunto que provocasse discordâncias graves entre as pessoas. Tinha tirado o curso de Direito e não se importara de esquecer a experiência por completo. Era difícil imaginá-lo sozinho, aborrecido ou desanimado; a sua rectidão não tinha limites, tal como a sua falta de ambição, e Leon partia do princípio de que toda a gente era como ele.
Apesar de tudo isso, a sua brandura era perfeitamente tolerável, até calmante.
Começou por falar do clube de remo. Tinha mudado de posição na equipa, mas não se importou, pois até preferia que fossem outros a marcar o ritmo. Também no banco se tinha falado de uma promoção, mas, quando isso não deu em nada, ficara um pouco aliviado. Depois, as raparigas: Mary, a actriz, que fora extraordinária em Private Lives, tinha-se mudado de repente, e sem qualquer explicação, para Glasgow, sem que ninguém soubesse porquê. Francine, que falava um francês maravilhoso, e escandalizara o mundo por usar um monóculo, fora com ele a um espectáculo de Gilbert e Sullivan uma semana atrás, e no intervalo tinham visto o rei, que parecia ter olhado na direcção deles. Barbara, a jovem doce, de confiança e bem relacionada com quem Jack e Emily achavam que ele devia casar, convidara-o para passar uma semana no castelo dos pais, nas Highlands. Leon achava que seria indelicado não ir.
Sempre que ele parecia ficar sem nada para dizer, Cecília fazia-lhe outra pergunta. Inexplicavelmente, a renda da sua casa em Albany baixara. Um velho amigo seu engravidara uma rapariga que era sopinha-de-massa, tinha casado com ela e era imensamente feliz. Um outro ia comprar uma moto. O pai de um amigo tinha comprado uma fábrica de aspiradores e achava que era uma verdadeira árvore das patacas. A avó de outro amigo qualquer tinha sido uma valentona, pois tinha andado quase um quilómetro com uma perna partida. Aquela conversa, tão doce como o ar da noite, flutuava através de Cecília e à sua volta, construindo um mundo de boas intenções e desfechos felizes. Ombro contra ombro, meio de pé, meio sentados, admiravam a casa da sua infância, cujas referências medievais, bastante confusas do ponto de vista arquitectónico, pareciam agora estranhamente alegres; as enxaquecas da mãe eram um interlúdio cómico numa ópera ligeira, a tristeza dos gémeos uma extravagância sentimental, o incidente na cozinha não passava de uma concentração alegre de espíritos animados.
Quando chegou a vez de Cecília dar conta da sua vida ao longo dos últimos meses, foi impossível não ser influenciada pelo tom de Leon, embora a sua versão tenha surgido infalivelmente imbuída de um tom de escárnio. Ridicularizou as suas incursões na genealogia; a árvore da família era estéril e sem interesse. O avô Harry Tallis era filho de um agricultor que, por qualquer razão, mudara o nome para Cartwright, não havendo registos do seu nascimento nem do seu casamento. Quanto a Clarissa - tantos dias aninhada na cama com os braços arrepiados, exactamente o oposto de Paradise Lost- a heroína ia-se tornando mais repugnante à medida que a sua fixação na morte se ia revelando. Leon acenou com a cabeça e franziu os lábios; não ia fingir que sabia do que ela estava a falar, nem ia interrompê-la. Cecília deu um tom burlesco às semanas entediantes que passara sozinha, à sua ligação com a família, às tentativas de reparação que tinha feito por ter estado longe e ao distanciamento que detectara nos pais e na irmã. Encorajada por algumas quase gargalhadas do irmão, tentou alguns quadros cómicos: a sua necessidade diária de mais cigarros, o momento em que Briony rasgara o cartaz, os gémeos à porta do quarto dela, cada um com uma meia, e o desejo da mãe de uma espécie de milagre da última ceia - transformar batatas assadas em salada de batatas. Leon não percebeu a referência bíblica. Havia um tom de desespero em tudo o que ela dizia, um certo vazio, qualquer coisa não dita ou excluída que a fazia falar mais depressa e exagerar com menos convicção. A agradável nulidade da vida de Leon era um artefacto polido, a sua ligeireza ilusória, as suas limitações conseguidas por um trabalho árduo e invisível e alguns acidentes de carácter, tudo coisas com as quais ela não podia esperar rivalizar. Deu-lhe o braço e apertou-o.
Era outra particularidade de Leon: de trato suave e doce, mas, através do casaco, o seu braço tinha a consistência de uma madeira tropical. Ela sentia-se suave a todos os níveis, e transparente. Leon estava a olhar para ela com desvelo.
- O que foi, Cecília?
- Nada. Não foi nada.
- Devias mesmo ir passar uma temporada comigo. Havia uma figura a deslocar-se no terraço e luzes a saírem da sala de estar. Briony chamou os irmãos.
- Estamos aqui - respondeu Leon.
- É melhor irmos para dentro - disse Cecília e, ainda de braço dado, encaminharam-se para casa. Ao passarem pelas rosas pensou se haveria realmente alguma coisa que quisesse dizer ao irmão. Não havia dúvida de que não podia confessar-lhe o que tinha feito naquela manhã.
- Gostava muito de ir à cidade. - Ao dizer estas palavras, imaginou-se retida em casa, incapaz de fazer as malas ou de apanhar o comboio. Talvez não quisesse ir, mas repetiu a frase num tom ligeiramente mais enfático. - Gostava muito de ir.
Briony estava impaciente no terraço, à espera de poder cumprimentar o irmão. Alguém lhe dirigiu algumas palavras de dentro da sala de estar e ela respondeu por cima do ombro. Quando Cecília e Leon se aproximaram, tornaram a ouvir a mesma voz - era a mãe a tentar mostrar-se inflexível.
- Só te digo mais uma vez. Vais imediatamente lá para cima tomar banho e vestir-te.
Com um olhar arrastado na direcção deles, Briony dirigiu-se para as portas da varanda. Tinha qualquer coisa na mão.
- Arranjávamos um lugar para tu ficares num instante - disse Leon.
Quando entraram na sala, iluminada por vários candeeiros, Briony ainda lá estava, descalça e com o mesmo vestido branco sujo, e a mãe estava junto à porta do outro lado, com um sorriso indulgente. Leon estendeu os braços e disse, na brincadeira, na voz cockney que reservava para ela:
- Olhem só a minha irmãzinha!
Ao passar por Cecília, Briony pôs-lhe na mão um bocado de papel dobrado ao meio e depois, com um grito, proferiu o nome do irmão e saltou-lhe para os braços.
Consciente de que a mãe estava a observá-la, Cecília adoptou uma expressão de curiosidade divertida ao abrir o papel. Conseguiu, de modo louvável, manter a mesma expressão ao ler o pequeno grupo de letras dactilografadas, absorvendo tudo num relance - um significado cuja força e colorido vinha da repetição de uma única palavra. A seu lado, Briony falava a Leon da peça que escrevera para ele e lamentava-se por não ter conseguido levá-la à cena. As Provações de Arabella, repetia ela constantemente. As Provações de Arabella. Nunca a vira tão animada, com uma excitação tão estranha. Continuava com os braços à volta do pescoço dele e, em bicos dos pés, esfregava as suas bochechas nas dele.
A princípio, houve uma frase que ficou a pairar no pensamento de Cecília: Claro, claro. Como era possível ela não ter visto antes? Estava tudo explicado. Aquele dia, as semanas que o tinham antecedido, toda a sua infância. Uma vida inteira. Agora estava tudo bem claro para ela. Que outro motivo a poderia levar a demorar tanto tempo a escolher um vestido ou a discutir por causa de uma jarra, ou a achar tudo tão diferente, ou a não ser capaz de se ir embora? O que a teria feito tão cega, tão obtusa? Já tinham passado muitos segundos e já não era plausível continuar a olhar fixamente para a folha de papel. Ao dobrá-la teve consciência de uma realidade óbvia: nunca poderia ter-lhe sido enviada sem ser num envelope fechado. Voltou-se para a irmã.
Leon estava a dizer-lhe:
- E que tal se a lermos os dois? Eu tenho jeito para fazer vozes e tu ainda tens mais...
Cecília deslocou-se ligeiramente para ficar no ângulo de visão de Briony.
- Leste isto, Briony?
Mas Briony, ocupada a responder num tom estridente à sugestão do irmão, enroscou-se mais nos braços dele e desviou a cara da irmã, afundando-a no casaco de Leon.
Do outro lado da sala, Emily disse suavemente:
- Vá, agora com calma.
Cecilia voltou a mudar de posição, para se colocar do outro lado do irmão.
- Onde está o envelope?
Briony tornou a desviar a cara e riu com grandes gargalhadas de qualquer coisa que Leon estava a dizer-lhe.
Depois, Cecília apercebeu-se de outra figura junto deles, no limite do seu campo de visão, a deslocar-se atrás dela. Quando se voltou deu de caras com Paul Marshall. Trazia numa mão um tabuleiro de prata com cinco copos de cocktail, cada um deles cheio até metade de uma substância castanha e viscosa. Levantou um copo e ofereceu-lho.
- Insisto que proves.
10
A complexidade dos seus sentimentos era, para Briony, a confirmação de que estava a entrar numa zona de emoções de adultos e a ignorar tudo aquilo que podia beneficiar a sua escrita. Algum conto de fadas tinha alguma vez encerrado tantas contradições? Uma curiosidade feroz e irreflectida levou-a a tirar a carta do envelope - leu-a no átrio, depois de Polly lhe ter aberto a porta - e, embora o choque da mensagem a ilibasse completamente, não a impediu de se sentir culpada. Era errado abrir as cartas das outras pessoas, mas era essencial que ela soubesse tudo. Ficara encantada por voltar a ver o irmão, mas isso não a impedira de exagerar as suas manifestações de afecto para evitar a pergunta acusadora da irmã. Depois disso limitara-se a fingir obedecer cegamente à ordem da mãe, subindo para o quarto; para além de querer fugir de Cecília, também precisava de estar sozinha para pensar sobre Robbie e para imaginar o primeiro parágrafo de uma história baseada na vida real. Acabar-se-iam as princesas! A cena junto à fonte, aparentemente uma ameaça e, no fim, depois de se separarem, a ausência luminosa a brilhar sobre a mancha de água no chão - tudo aquilo teria de ser repensado. A carta tinha introduzido algo de primário, brutal, talvez até criminoso, um elemento de trevas e, na sua excitação com as muitas possibilidades, nem sequer duvidou de que a irmã estivesse a ser ameaçada e precisasse da sua ajuda.
A palavra: tentava impedir que ela ecoasse nos seus pensamentos e, no entanto, dançava obscenamente no meio deles, um demónio tipográfico a fazer malabarismos com anagramas vagos e insinuantes - um velho e uma noz, a seguir o latim, um rei inglês a tentar fazer voltar a maré. Palavras em rima assumiam a forma que tinham em livros para crianças - um porquinho minúsculo deitado no feno, cães a correrem atrás de uma raposa, chatas no Cam junto ao prado de Grantchester. Nunca tinha ouvido dizer a palavra, nunca a tinha visto escrita, nem mesmo entre aspas. Nunca ninguém se referira à existência da palavra na presença dela, nem ninguém - nem sequer a mãe dela - mencionara alguma vez a existência daquela parte de si a que a palavra se referia. Não tinha dúvidas de que era isso. O contexto ajudava, mas, mais do que isso, a palavra condizia com o seu significado, era quase onomatopeica. As formas macias, côncavas, parcialmente fechadas, das suas primeiras três letras eram tão claras como um conjunto de desenhos anatómicos. Três figuras amontoadas ao fundo da cruz. Desgostava-a profundamente que a palavra tivesse sido escrita por um homem que estivesse a reconhecer uma imagem que tinha na mente, a revelar um desassossego solitário.
Leu imprudentemente o papel no centro do átrio de entrada, apercebendo-se imediatamente do perigo que aquelas palavras grosseiras continham. Havia algo de irredutivelmente humano, ou viril, que ameaçava a ordem da casa, e Briony sabia que, a menos que ajudasse a irmã, todos iriam sofrer. Também não tinha dúvidas de que tinha de a ajudar com delicadeza e tacto. Se assim não fosse, Briony sabia por experiência própria que Cecília se voltaria contra ela.
Eram estes os pensamentos que dominavam o seu espírito enquanto lavava as mãos e a cara e escolhia um vestido lavado. Não conseguiu encontrar as meias que queria calçar, mas não perdeu tempo à procura delas. Calçou outras, enfiou os sapatos nos pés e sentou-se à secretária. Lá em baixo estavam entretidos com os cocktails, pelo que teria pelo menos vinte minutos para si. Podia escovar o cabelo quando estivesse para sair. Junto à janela do seu quarto estava uma cigarra a cantar. À sua frente tinha um maço de folhas de papel do escritório do pai, sobre o qual o candeeiro derramava um feixe de luz amarelada, e na mão tinha a caneta de tinta permanente. O grupo ordenado de animais da quinta de brincar alinhados no parapeito da janela e as bonecas de grandes laçarotes que ocupavam os diversos quartos da casinha das bonecas aguardavam a gema da sua primeira frase. Nesse momento, a necessidade de escrever era mais forte do que qualquer ideia do que pudesse escrever. O que queria realmente era entregar-se ao acto de ver desabrochar uma ideia irresistível, ver o traço negro saltar da ponta do aparo de prata e serpentear em palavras. Como poderia, no entanto, fazer justiça às mudanças que finalmente a tinham transformado numa verdadeira escritora, ao formigueiro caótico de impressões que a assaltavam, à repulsa e ao fascínio que sentia? Tinha de impor a ordem. Começaria, como já decidira, por um relato simples do que vira junto à fonte. Mas esse episódio, que decorrera sob a luz intensa do Sol, não era tão interessante como o crepúsculo, os minutos que passara na ponte entregue aos seus devaneios, e depois Robbie a aparecer por entre a penumbra, a chamá-la e a segurar com a mão o pequeno quadrado branco que continha a carta que continha a palavra. E o que continha a palavra? Escreveu: “Era uma vez uma senhora que tinha engolido uma mosca.”
Não seria seguramente demasiado infantil dizer que tinha de haver uma história, e aquela era a história de um homem de quem toda a gente gostava, mas em relação ao qual a heroína sempre tivera as suas dúvidas. Finalmente poderia revelar que ele era a própria encarnação do mal. Mas não deveria ela - ou seja, Briony, a escritora - ser agora experiente ao ponto de ser superior a essas ideias infantis do bem e do mal? Devia haver um local majestoso, divino, do qual todas as pessoas pudessem ser julgadas da mesma forma, não lançadas umas contra as outras, como num jogo de hóquei perpétuo, mas todas juntas, com todas as suas gloriosas imperfeições. Se esse lugar existisse, ela não o merecia. Não conseguia perdoar a Robbie a sua mente repugnante.
Presa entre o desejo de escrever um registo simples das suas experiências desse dia e a ambição de fazer com elas algo superior, polido, contido e obscuro, ficou sentada durante longos minutos, a olhar de testa franzida a folha de papel com a citação infantil, e não escreveu mais nada. Achava que conseguia descrever bastante bem as acções e tinha jeito para diálogos. Sabia descrever bosques no Inverno e o aspecto sinistro de um castelo. Mas como relatar sentimentos? Era fácil escrever Ela sentia-se triste, ou descrever o que uma pessoa triste poderia fazer, mas como expor a própria tristeza de forma que a sua imediatez debilitante pudesse ser transmitida? Mais difícil ainda era a ameaça, ou a confusão de sentir coisas contraditórias. De caneta na mão, olhou fixamente para o outro lado do quarto, para as suas bonecas de expressão inflexível, as companheiras esquecidas de uma infância que considerava encerrada. Crescer produzia uma sensação arrepiante. Nunca mais se sentaria ao colo de Emily ou de Cecília, a não ser por brincadeira. Há dois anos, no Verão, os pais, os irmãos e uma quinta pessoa, de quem não se lembrava, tinham-na levado para cima da relva e tinham-na atirado ao ar doze vezes num cobertor. Poderia agora confiar na liberdade hilariante do voo ascendente, na força dos pulsos dos adultos, quando a quinta pessoa poderia tão facilmente ter sido Robbie?
Ao ouvir o pigarreio suave de uma garganta feminina levantou os olhos, admirada. Era Lola. Estava a espreitar apologeticamente para dentro do quarto e, assim que os seus olhos se cruzaram, bateu ao de leve na porta com os nós dos dedos.
- Posso entrar?
Entrou sem esperar pela resposta de Briony, com os movimentos algo limitados pelo vestido travado de cetim azul que usava. Tinha o cabelo solto e estava descalça. Quando se aproximou de Briony, esta pousou a caneta e tapou a frase com um livro. Lola sentou-se na beira da cama e expirou com intensidade. Era como se tivessem o hábito de ter uma conversa de irmãs ao fim do dia.
- Tive um fim de tarde para esquecer.
Quando Briony ergueu finalmente uma sobrancelha, instada pelo olhar fixo da prima, Lola continuou:
- Os gémeos têm estado a torturar-me.
Briony pensou que fosse apenas uma forma de se expressar até Lola se voltar e lhe mostrar um arranhão enorme na parte de cima de um braço.
- Que horror!
Depois mostrou-lhe os pulsos. À volta de cada um deles encontravam-se grandes manchas negras.
- Parecem queimaduras!
- Pois parecem.
- Vou buscar qualquer coisa para te desinfectar o braço.
- Já desinfectei.
Era verdade: o toque senhoril do perfume de Lola não conseguia disfarçar o cheiro algo infantil a Germolene. O mínimo que Briony podia fazer era levantar-se e ir para junto da prima.
- Coitadinha!
A compaixão de Briony fez as lágrimas assomarem aos olhos de Lola e a voz fugir-lhe.
- Toda a gente acha que eles são uns anjinhos por serem iguais, mas são uns brutos!
Reprimiu um soluço, engoliu-o com um tremor que lhe percorreu todo o maxilar, e depois respirou fundo várias vezes, com as narinas muito arqueadas. Briony pegou-lhe na mão e pareceu-lhe entrever como se podia começar a gostar de Lola. Depois foi buscar um lenço à cómoda, abriu-o e deu-lho. Lola ia usá-lo, mas, no momento em que reparou nos seus motivos alegres de cowgirls empunhando laços, emitiu um ligeiro guincho num tom ascendente, o tipo de barulho que os miúdos costumam fazer quando querem imitar um fantasma. No andar de baixo ouviu-se a campainha a tocar e, passados alguns instantes, o som de uns saltos altos a atravessarem o átrio. Devia ser Robbie, e Cecília estava a ir abrir a porta. Receando que ouvissem Lola chorar, Briony tornou a levantar-se e foi encostar mais a porta do quarto. A tristeza da prima produzia nela uma espécie de inquietação ou agitação próxima da alegria. Voltou para a cama e pôs o braço à volta de Lola, que nesse momento levou as mãos à cara e começou a chorar. Briony não conseguia compreender como uma rapariga tão dura e dominadora podia ficar num estado tão lastimoso por causa de dois miúdos de nove anos, e isso dava-lhe a noção do seu próprio poder. Era isso que estava por detrás daquele sentimento quase de alegria. Talvez não fosse tão frágil como sempre se julgara; afinal as pessoas tinham de se avaliar através das outras - não havia outra maneira. De vez em quando, de uma forma não intencional, havia alguém que nos ensinava qualquer coisa acerca de nós próprios. Sem conseguir encontrar as palavras que devia dizer, limitou-se a acariciar o ombro da prima, ao mesmo tempo que pensava que não era possível que Jackson e Pierrot fossem os únicos responsáveis por toda aquela tristeza; lembrou-se de que havia outros motivos de sofrimento na vida de Lola. A casa de família no Norte - Briony imaginou as ruas de fábricas enegrecidas e homens abatidos a dirigirem-se para o trabalho com o almoço nas lancheiras. A casa dos Quincey fechada, talvez para sempre.
Lola estava a começar a recuperar.
- Que aconteceu? - perguntou Briony.
A mais velha assoou-se e ficou a pensar por alguns momentos.
- Estava a preparar-me para ir tomar banho. Eles entraram de rompante e começaram a bater-me. Atiraram-me ao chão... - Nesse momento parou para conter outro soluço.
- Mas porque fizeram isso?
Lola respirou fundo e recompôs-se. Olhou em redor do quarto, sem se fixar em nada.
- Querem ir para casa, e eu disse-lhes que não podiam. Acham que sou eu que estou a obrigá-los a ficar cá.
Os gémeos a descarregarem as suas frustrações na irmã sem razão - tudo aquilo fazia sentido para Briony. Mas naquele momento o que perturbava o seu espírito organizado era a ideia de que em breve as chamariam para baixo e a prima teria de estar recomposta.
- Eles não percebem - disse Briony com um ar circunspecto, enquanto se dirigia ao lavatório e o enchia de água quente. - São apenas crianças que sofreram uma grande perda.
Completamente dominada pela tristeza, Lola baixou a cabeça, acenando afirmativamente de uma forma que levou Briony a sentir um súbito assomo de ternura por ela. Levou-a até junto do lavatório e pôs-lhe uma esponja nas mãos. E depois, impelida por uma panóplia de motivos - a necessidade prática de mudar de assunto, o desejo de partilhar um segredo e de mostrar a uma rapariga mais velha que também ela tinha experiência do mundo, mas, acima de tudo, a simpatia por Lola e o querer aproximá-la mais de si - contou-lhe do encontro com Robbie na ponte, da carta, que tinha aberto e do que estava escrito nela. Em vez de dizer a palavra em voz alta, o que era impensável, soletrou-a da frente para trás. A reacção de Lola foi gratificante. Levantou a cara do lavatório, com a água a pingar, e abriu a boca de espanto. Briony passou-lhe uma toalha. Passaram alguns segundos, enquanto Lola fingia estar à procura das palavras. Estava a exagerar um bocado, mas não fazia mal. Briony gostou de ouvir o seu murmúrio rouco.
- Passa o dia inteiro a pensar nisso?
Briony respondeu que sim com a cabeça e desviou a cara, como se estivesse a debater-se com uma tragédia. Podia aprender a ser um pouco mais expressiva com a prima, cuja vez de ter o gesto reconfortante de pôr a mão no ombro de Briony chegara agora.
- Que horror! O homem é louco.
Louco. Era uma palavra refinada, com o peso de um diagnóstico médico. Conhecia-o há tantos anos, e era isso que ele era. Quando ela era pequena ele costumava andar com ela às cavalitas. Estivera muitas vezes sozinha com ele na piscina, onde num Verão a ensinara a boiar e a nadar de bruços. Agora que alguém dizia a verdade sobre o estado dele, Briony sentia uma certa consolação, embora o mistério do episódio da fonte se adensasse. Já decidira não contar essa história, por suspeitar que a explicação seria simples e achar que seria melhor não expor a sua ignorância.
- O que é que a tua irmã vai fazer?
- Não sei. - Também não disse que estava com receio de se encontrar com Cecília.
- Sabes, na tarde em que chegámos achei que ele era um monstro quando o ouvi a gritar com os gémeos ao pé da piscina.
Briony tentou lembrar-se de outros momentos em que os sintomas da loucura pudessem ter sido observados.
- Fingiu sempre ser tão simpático. Enganou-nos estes anos todos.
A mudança de assunto tinha resultado, a zona em volta dos olhos de Lola já estava de novo sardenta e pálida, e ela muito mais recomposta.
- Acho que a polícia devia saber - disse ela, agarrando na mão de Briony.
O polícia da aldeia era um homem bondoso com um bigode empertigado, cuja mulher tinha galinhas e andava de bicicleta a vender os ovos. Era impensável falar-lhe da carta e da palavra que lá vinha, mesmo soletrando-a da frente para trás. Tentou tirar a mão, mas Lola agarrou-lha com mais força, como se estivesse a ler a mente de Briony.
- Temos de lhes mostrar a carta.
- Ela pode não concordar.
- Aposto que concorda. Um louco pode atacar qualquer pessoa.
Lola mostrou-se subitamente pensativa. Parecia prestes a dizer qualquer coisa de novo à prima. Mas em vez disso levantou-se num repente, pegou na escova de Briony e pôs-se à frente do espelho a escovar vigorosamente o cabelo. Mal tinha começado, Mrs Tallis chamou-as para jantar. Lola assumiu imediatamente um ar petulante. Briony achou que aquelas mudanças rápidas de humor se deviam ao aborrecimento que tivera.
- Não vale a pena. Estou longe de estar pronta - disse ela, mais uma vez com as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos. - Ainda nem sequer comecei a tratar da cara.
- Vou descer já - disse Briony para a acalmar. - Digo-lhes que tu ainda demoras um bocadinho. - Mas Lola já ia a sair do quarto, sem sequer a ouvir.
Depois de se pentear, Briony ficou em frente do espelho a estudar o rosto, pensando no que poderia fazer-lhe quando chegasse a altura de “tratar” dele, o que saberia que aconteceria em breve. Mais uma exigência feita ao seu tempo. Pelo menos não tinha sardas para esconder ou disfarçar, e isso poupar-lhe-ia algum trabalho. Há muito tempo, aos dez anos, chegara à conclusão de que o batom lhe dava um ar apalhaçado. Tinha de rever essa ideia. Por enquanto, ainda não; tinha muito mais em que pensar. Parou junto à secretária e tapou distraidamente a caneta. Escrever uma história era um acto inútil, mesquinho, quando havia em redor de si tantas forças poderosas e caóticas e quando ao longo de todo o dia tantos acontecimentos sucessivos tinham absorvido ou transformado o que acontecera antes. Era uma vez uma senhora que tinha engolido uma mosca. Teria cometido um erro terrível ao confiar na prima? Cecília não ficaria nada satisfeita se a histérica da Lola começasse a gabar-se de que sabia da carta de Robbie. Como era possível ir para baixo e estar à mesa com um louco? Se a polícia o prendesse, Briony podia ter de ir a tribunal e dizer a palavra em voz alta.
Saiu do quarto, com alguma relutância, e atravessou o corredor sombrio, parando para ouvir ao cimo das escadas. As vozes continuavam a vir da sala de estar - ouviu a voz da mãe e de Mr Marshall e depois os gémeos a falarem um com o outro. Nem Cecília, nem o louco. Briony sentiu o coração bater mais depressa ao descer a escada, o que fez contrariada. A sua vida deixara de ser simples. Há apenas três dias estava a escrever As Provações de Arabella e à espera dos primos. Quisera que tudo fosse diferente, mas era assim; e não só era mau, como ainda estava prestes a piorar. Tornou a parar no primeiro patamar para consolidar o seu plano; manter-se-ia longe da prima, nem sequer olharia para ela - não podia correr o risco de ser arrastada para uma conspiração, nem queria propiciar uma exclamação desastrosa. E de Cecília, embora tivesse de a proteger, nem sequer se atreveria a aproximar-se. Obviamente que evitaria Robbie, por segurança. A sua mãe, sempre a ralhar, também não a ajudaria. Seria impossível pensar com clareza na presença dela.
Os gémeos seriam o seu refúgio. Ficaria por perto, a tomar conta deles. Aqueles jantares de Verão começavam sempre tão tarde - já passava das dez - e os miúdos deviam estar cansados. Também seria simpática para Mr Marshall e falaria com ele de doces - quem é que os inventava, como eram feitos. Era um plano cobarde, mas não conseguia pensar noutro. Com o jantar prestes a ser servido, não era a altura certa de chamar o agente Vockins.
Continuou a descer a escada. Devia ter aconselhado Lola a mudar de vestido para esconder o arranhão no braço. Se lhe falassem nisso, ela podia começar a chorar outra vez. Mas se calhar teria sido impossível convencê-la a despir um vestido que dificultava tanto o andar. Chegar à idade adulta tinha a ver com a aceitação desses impedimentos. Ela própria começava a enfrentá-los. Não era ela que tinha um arranhão, mas sentia-se responsável por ele e por tudo o que estava para acontecer. Quando o pai estava em casa, tudo se centrava num ponto fixo. Não organizava nada, não andava pela casa a preocupar-se com os outros, raramente dizia a quem quer que fosse o que devia fazer - a verdade é que passava a maior parte do tempo na biblioteca. Mas a sua presença impunha ordem e permitia liberdade. Os problemas eram aligeirados. Quando ele estava em casa, já não fazia mal a mãe ir para o quarto; bastava que ele estivesse no andar de baixo, com um livro no colo. Quando ocupava o seu lugar à mesa, calmo, afável, profundamente assertivo, nenhuma crise na cozinha passava de um quadro humorístico; sem ele, era um drama que oprimia o coração. Sabia a maior parte das coisas que valia a pena saber e, quando não sabia, tinha uma ideia concreta da fonte a que recorrer e levava-a para a biblioteca para ela o ajudar a descobrir. Se não fosse, como dizia, um escravo do ministério e do Serviço de Protecção Civil, se estivesse em casa a mandar Hardman ir à cave buscar o vinho, a conduzir as conversas, a decidir, sem dar a sensação disso, quando era chegada a altura de “intervir”, Briony não estaria naquele momento a atravessar o átrio com um peso tão grande sobre os ombros.
Foram estes pensamentos que a fizeram abrandar ao passar pela porta da biblioteca, que, ao contrário do que era habitual, estava fechada. Parou para ouvir. Da cozinha vinha o som do metal a bater na loiça, da sala de estar a voz suave da mãe e, mais perto, um dos gémeos dizia num tom alto e bastante claro: “Têm um 'u'“, e o irmão respondia: “Não me interessa. Mete-a no envelope.” E depois, por trás da porta da biblioteca, uma pancada surda e um murmúrio, que tanto podia ser de um homem como de uma mulher. Tanto quanto se lembrava - mais tarde Briony pensaria mais sobre o assunto -, não tinha quaisquer expectativas especiais no momento em que pousou a mão no puxador da porta e o rodou. Mas vira a carta de Robbie, assumira o papel de protectora da irmã e recebera algumas orientações da prima: o que viu deve ter sido determinado, em parte, pelo que já sabia ou achava que sabia.
A princípio, quando abriu a porta e entrou, não viu nada. A única luz que havia na sala era a de um candeeiro de secretária verde, só com uma lâmpada, que pouco mais iluminava do que a capa de pele sobre a qual se encontrava. Mas quando deu mais alguns passos viu-os, umas sombras escuras no canto mais distante. Embora estivessem imóveis, percebeu imediatamente que interrompera uma agressão, uma cena de murros. A cena correspondia de forma tão intensa aos seus piores receios que quase sentiu que a sua imaginação excessivamente ansiosa projectara as figuras sobre as lombadas dos livros. Esta ilusão, ou a esperança de que fosse uma ilusão, foi dissipada no momento em que os seus olhos se ajustaram à escuridão. Ninguém se mexeu. Briony viu, por sobre o ombro de Robbie, os olhos aterrorizados da irmã. Ele voltara-se para ver quem entrara, mas sem soltar Cecília. Encostara o corpo ao dela, tinha-lhe puxado o vestido acima do joelho e imobilizara-o junto ao sítio onde as prateleiras formavam ângulos rectos. Tinha a mão esquerda por detrás do pescoço dela, a segurar-lhe o cabelo, e com a mão direita prendia-lhe o braço, que estava levantado em protesto ou autodefesa.
Robie parecia tão grande e descontrolado, e Cecília, com os ombros desnudados e os braços magros, tão frágil, que Briony não fazia a menor ideia do que conseguiria fazer ao dirigir-se para eles. Queria gritar, mas não conseguia recuperar o fôlego e sentia a língua presa e pesada. Robbie colocou-se numa posição em que escondeu completamente a irmã. Depois viu Cecília a tentar libertar-se e ele a soltá-la. Briony parou e disse o nome da irmã, mas quando ela passou por Briony não deu qualquer sinal de gratidão ou alívio. O seu rosto não tinha qualquer expressão, estava quase normal, e o seu olhar fixo na porta pela qual sairia. Assim, Briony ficou sozinha com ele. Também ele não olhou para ela. Olhou para o canto, enquanto endireitava o casaco e arranjava a gravata. Receosa, afastou-se dele, mas Robbie não fez qualquer menção de a atacar, nem sequer levantou os olhos. Por isso, Briony deu meia volta e saiu da biblioteca a correr para ir à procura de Cecília. Mas o átrio estava vazio e era impossível saber ao certo para que lado ela teria ido.
11
Apesar da hortelã-pimenta fresca picada acrescentada a uma mistura de chocolate derretido, gema de ovo, leite de coco, rum, gim, banana esmagada e açúcar para bolos, o cocktail não era particularmente refrescante. Por outro lado, o calor da noite diminuía o apetite. Quase todos os adultos que entraram na sala de jantar abafada se sentiam incomodados com a perspectiva do assado de carne ou até de comer carne assada com salada. Bastava-lhes um copo de água fresca. Mas a água estava reservada para as crianças. Os outros teriam de recuperar com vinho à temperatura ambiente. Havia três garrafas já abertas em cima da mesa - na ausência de Jack Tallis, Betty escolhia ao acaso, mas geralmente acertava. Nenhuma das três janelas altas se abria porque os respectivos caixilhos há muito que tinham empenado. Assim, à medida que entravam, os convivas iam sentindo o cheiro quente do pó da carpete persa. Havia, no entanto, uma notícia boa: a carrinha do peixeiro que devia trazer o primeiro prato, de marisco, tinha-se avariado.
O efeito sufocante era agravado pelos painéis escuros de madeira que forravam o tecto e as paredes junto ao chão e pela presença de um único quadro na sala, uma tela enorme pendurada por cima de um fogão de sala que nunca fora aceso, pois, devido a um erro no projecto, ficara sem saída nem chaminé. O retrato, pintado ao estilo de Gainsborough, mostrava uma família aristocrática - os pais, duas filhas adolescentes e um bebé, todos de lábios muito finos e pálidos como vampiros - sobre um fundo de uma paisagem vagamente toscana. Ninguém sabia quem eram aquelas pessoas, mas era provável que Harry Tallis tivesse achado que davam uma imagem de solidez à sua casa.
Emily estava de pé, à cabeceira da mesa, a distribuir os convivas pelos lugares à medida que iam entrando. Pôs Leon à sua direita e Paul Marshall à sua esquerda; à direita de Leon, Briony e os gémeos; à esquerda de Marshall, Cecília, Robbie e depois Lola. Robbie estava de pé, agarrado à cadeira, admirado por aparentemente ninguém ouvir as batidas violentas do seu coração. Tinha escapado ao cocktail e não tinha apetite. Voltou a cara ligeiramente de lado para não olhar para Cecília e, quando todos os outros se sentaram, reparou com algum alívio que o seu lugar era entre as crianças.
Instado por um ligeiro movimento de cabeça da mãe, Leon murmurou uma breve oração de graças - pelos alimentos que vamos receber -, cujo ámen foi o arrastar das cadeiras. O silêncio que se seguiu, enquanto se sentavam e abriam os guardanapos, teria sido facilmente cortado por Jack Tallis, que introduziria um tema vagamente interessante, enquanto Betty dava a volta à mesa com a travessa. Na ausência dele, os convivas entretiveram-se a vê-la inclinar-se ligeiramente junto de cada um deles, enquanto mergulhava a colher e o garfo na travessa de prata. A que mais poderiam prestar atenção se, além dessa, a única actividade naquela sala era o seu próprio silêncio? Emily Tallis sempre fora incapaz de manter conversas banais e não se importava muito com isso. Leon, completamente tranquilo, recostava-se na cadeira, de garrafa na mão, a estudar o rótulo. Cecília estava absorvida pelos acontecimentos de dez minutos atrás e não conseguiria articular uma única frase. Robbie era íntimo da casa e poderia ter começado uma conversa qualquer, não fosse o turbilhão que reinava dentro dele. Já lhe chegava fingir que ignorava o braço desnudado de Cecília a seu lado - sentia o seu calor - e o olhar hostil de Briony, que estava na sua diagonal. Mesmo que fosse considerado apropriado as crianças lançarem um assunto, também elas teriam sido incapazes de o fazer: Briony só conseguia pensar no que acabara de ver, Lola estava dominada pelo choque da agressão física e por uma série de emoções contraditórias e os gémeos estavam a arquitectar um plano.
Foi Paul Marshall que quebrou um silêncio asfixiante que durou mais de três minutos. Chegou-se para trás na cadeira para falar com Robbie por detrás de Cecilia.
- Sempre vamos jogar ténis amanhã?
Robbie reparou que no rosto de Marshall havia um arranhão com uns cinco centímetros, desde o canto de um olho, descendo ao lado do nariz, que chamava a atenção para o facto de os seus traços fisionómicos mais característicos estarem concentrados na parte de cima da cara, por baixo dos olhos. Só uma pequeníssima distância o separava de um rosto absolutamente perfeito. Mas assim o seu rosto era absurdo - o seu queixo vazio contrapunha-se a uma testa demasiado proeminente e preocupada. Por delicadeza, também Robbie se chegara para trás na cadeira, para ouvir o que ele estava a dizer-lhe, mas, mesmo nessa posição, ainda hesitou. Não era correcto, logo no princípio da refeição, Marshall desviar as atenções da anfitriã e começar uma conversa em privado.
- Acho que sim - respondeu Robbie, com uma voz tensa e depois, para compensar a atitude do seu interlocutor, disse para todos: - Alguma vez esteve tanto calor em Inglaterra?
Afastando-se do calor irradiado pelo corpo de Cecilia e evitando o olhar de Briony, deu consigo a dirigir a última parte da pergunta a um Pierrot assustado, sentado à sua esquerda em diagonal. O miúdo susteve a respiração perante uma ameaça semelhante à de um teste de História na sala de aula. Ou de Geografia? Ou de Ciências?
Briony inclinou-se sobre Jackson para tocar no ombro de Pierrot, sem tirar os olhos de Robbie.
- Por favor, deixa-o em paz - disse ela com um sussurro violento, acrescentando depois, num tom meigo, para o miúdo: - Não tens de responder.
- Briony, foi uma observação absolutamente inocente sobre o tempo - disse Emily da outra ponta da mesa. - Pede imediatamente desculpa, ou vais já para o teu quarto.
Sempre que Mrs Tallis exercia a autoridade na ausência do marido, os filhos sentiam-se obrigados a protegê-la de parecer ineficaz. Briony, que nunca deixaria a irmã indefesa, baixou a cabeça e disse para a toalha:
- Peço desculpa. Não devia ter dito o que disse.
Os legumes, em terrinas com tampa ou em travessas de porcelana já desbotadas, iam sendo passados de um lado para o outro da mesa e, por uma desatenção colectiva ou por um desejo bem-educado de esconder a falta de apetite, quase todos acabaram por se servir de batatas assadas e salada de batatas, couves-de-bruxelas, beterraba e folhas de alface e molho.
- O velhote não vai ficar contente - disse Leon, levantando-se. - É um Barsac de 1921, mas está aberto. - Encheu o copo da mãe, depois o da irmã e o de Marshall e, quando chegou ao pé de Robbie, disse: - É um copo retemperador para o nosso futuro médico. Conta-me lá esses novos planos.
Mas não esperou pela resposta. De volta ao seu lugar, disse:
- Adoro a Inglaterra sob uma onda de calor. É um país diferente. Todas as regras mudam.
Emily Tallis pegou no garfo e na faca e toda a gente fez o mesmo.
- Que disparate! - exclamou Paul Marshall. - Aponta-me uma só regra que mude.
- Está bem. No clube, o único sítio onde se pode tirar o casaco é na sala do bilhar. Mas, se antes das três da tarde estiverem mais de 30 graus, pode-se tirar o casaco no bar do andar de cima no dia seguinte.
- No dia seguinte! Isto é mesmo um país diferente.
- Tu percebes o que eu quero dizer. As pessoas ficam mais à vontade. Dois dias de sol e tornamo-nos italianos. Na semana passada, em Charlotte Street, vi pessoas a comerem em mesas no passeio.
- Os meus pais sempre foram da opinião de que o calor fomenta a dissolução dos costumes entre os jovens - disse Emily. - Menos roupa, mais lugares para encontros. Fora de portas, fora de controlo. A vossa avó não ficava nada descansada no Verão. Inventava mil razões para me obrigar a mim e às minhas irmãs a ficarmos em casa.
- Bem - disse Leon. - E tu, Cecília, o que achas? Portaste-te hoje pior do que é habitual?
Todos os olhares se concentraram nela, e o irmão insistiu de forma impiedosa.
- Meu Deus, estás a ficar corada. A resposta deve ser “sim”.
Pressentindo que devia acorrer em seu auxílio, Robbie balbuciou:
- A verdade é que...
Mas Cecília respondeu num tom convicto:
- Estou com um calor de morrer, só isso. E a resposta é “sim”. Portei-me muito mal. Convenci a Emily, contra a vontade dela, de que devíamos comer carne assada em tua honra, apesar do calor. Agora tu estás a comer salada e nós estamos todos a sofrer por tua causa. Por isso, passa-lhe os legumes, Briony, e talvez ele se cale.
- Grande Cecília! Estás em boa forma - disse Leon.
- Pôs-te em sentido - comentou Marshall.
- É melhor meter-me com outra pessoa - disse Leon, sorrindo para Briony, que estava a seu lado. - Fizeste alguma maldade hoje por causa deste terrível calor? Quebraste alguma regra? Diz-nos que sim, por favor. - Pegou-lhe na mão, fingindo estar a implorar, mas ela retirou-a.
Ainda era uma criança, pensou Robbie. Com a sua idade, ainda era possível que confessasse que tinha lido a carta, o que por sua vez poderia levá-la a descrever o que tinha interrompido. Observou-a atentamente enquanto ela ganhava algum tempo, pegando no guardanapo e limpando os lábios, mas não se sentiu particularmente ameaçado. Se tivesse de acontecer, que assim fosse. Por terrível que fosse, o jantar não duraria toda a noite e ele arranjaria maneira de voltar a estar com Cecília nessa noite para poderem, em conjunto, enfrentar o extraordinário facto que havia de novo nas suas vidas - nas suas vidas agora mudadas - e recomeçar onde tinham parado. Esse pensamento fê-lo sentir um nó no estômago. Até esse momento tudo era irrelevante e ele não tinha medo de nada. Bebeu um grande golo do vinho adocicado e morno e ficou à espera.
- É uma maçada, mas não fiz mesmo nada de errado hoje - disse Briony.
Subestimara-a. A ênfase só podia ser destinada a ele e à irmã dela.
A seu lado, Jackson disse:
- Fizeste, sim. Não deixaste haver teatro. Nós queríamos entrar na peça. - Olhou em volta, com os olhos verdes a brilharem com o desgosto. - E disseste que querias que nós entrássemos.
- Pois disseste - corroborou o irmão com um movimento de cabeça. Ninguém poderia ter a noção exacta da sua desilusão.
- Estão a ver? - disse Leon. - Foi uma decisão que a Briony tomou de cabeça quente. Se o tempo estivesse mais fresco, a esta hora estaríamos todos na biblioteca a assistir à peça.
Aquelas frivolidades inofensivas, de longe preferíveis ao silêncio, permitiram a Robbie refugiar-se por detrás de uma máscara de atenção divertida. Cecília tinha a mão esquerda aberta em concha sobre a face, talvez para o excluir da sua visão periférica. Fingindo ouvir Leon, que contava mais uma vez que vira o rei num teatro do West End, Robbie podia admirar o braço e o ombro desnudados de Cecília e, enquanto isso, pareceu-lhe que ela sentia a respiração dele no braço dela, e essa ideia excitou-o. Na parte de cima do ombro, tinha uma pequena reentrância, esculpida no osso, ou suspensa entre dois ossos, debruada por uma ligeira penugem. Daí a pouco tempo, a sua língua estaria a descrever a forma oval daquela reentrância e a comprimi-la. A sua excitação, que quase lhe causava dores, era reforçada pela pressão das contradições: era-lhe quase tão familiar como uma irmã, mas desconhecida como amante; sempre a conhecera, mas não sabia nada sobre ela; era simples e bela; era hábil - protegera-se facilmente do irmão e vinte minutos antes tinha estado a chorar; a sua estúpida carta repelira-a, mas, ao mesmo tempo, desvendara-a. Lamentava o seu erro e exultava por tê-lo cometido. Daí a pouco tempo voltariam a estar juntos e sozinhos, com mais contradições - riso e sensualidade, desejo e medo pela sua imprudência, temor e impaciência por começar. Num quarto não utilizado algures no segundo andar, ou longe da casa, sob as árvores junto ao rio? Onde? Mrs Tallis não era tola. Lá fora. Deixar-se-iam envolver pela penumbra acetinada e começariam de novo. Não se tratava de uma fantasia, mas da realidade. Era o seu futuro próximo, simultaneamente desejável e inevitável. Mas era isso que pensava o maldoso Malvolio, cujo papel representava na escola, “não há nada que possa interpor-se entre mim e a concretização das minhas esperanças”.
Meia hora antes sentira-se completamente desesperado. Depois de Briony ter entrado em casa com a sua carta continuara a andar, atormentado com a ideia de voltar para trás. Mesmo quando já se encontrava à porta ainda não estava decidido, o que o levara a permanecer alguns minutos sob o candeeiro do alpendre, onde continuava fielmente a mesma borboleta solitária, tentando escolher a menos má de duas opções igualmente desastrosas. Ou entrava e enfrentava a raiva e a repulsa dela, dava uma explicação que não seria aceite e, muito provavelmente, seria deixado a falar sozinho - uma humilhação insuportável -, ou voltava para casa sem uma palavra, transmitindo a impressão de que a carta correspondia às suas intenções e passaria toda a noite e os dias seguintes torturado, sem saber nada da reacção dela - o que era ainda mais insuportável. Para além de revelar falta de coragem. Reconsiderara a questão e chegara às mesmas conclusões. Não havia fuga possível: teria de falar com ela. Pousara a mão no botão da campainha. Mesmo assim, continuava a ser tentador ir-se embora. Podia escrever-lhe um pedido de desculpas na segurança do seu escritório. Cobarde! Sentira o frio da porcelana sob o indicador. Antes que a disputa recomeçasse, carregara no botão. Afastara-se da porta, sentindo-se como se tivesse acabado de tomar um comprimido para se suicidar - só lhe restava esperar. Ouvira passos dentro de casa; o staccato de uns passos de mulher a atravessarem o átrio.
Quando ela abriu a porta ele viu o papel dobrado na sua mão. Ficaram a olhar fixamente um para o outro durante vários segundos, sem que nenhum falasse. Apesar de tanta hesitação, não preparara nada para dizer. No seu espírito havia uma única ideia: ela ainda era mais bela na realidade do que nas suas fantasias. O vestido de seda que trazia parecia venerar todas as curvas e reentrâncias do seu corpo ágil. A sua boca pequena e sensual estava cerrada com força, em sinal de reprovação ou talvez até de repulsa.
A intensidade das luzes da casa por trás dela incidiam-lhe nos olhos, impossibilitando-o de ler com exactidão a sua expressão.
- Foi um erro, Cecilia - disse ele, por fim.
- Um erro?
Chegavam até ele vozes vindas da sala, cuja porta estava aberta. Ouviu a voz de Leon e depois a de Marshall. Pode ter sido por medo de serem interrompidos que ela deu um passo para trás e lhe abriu a porta de par em par. Ele seguiu-a através do átrio, entrou na biblioteca, que estava às escuras, e ficou parado junto à porta enquanto ela procurava o interruptor do candeeiro da secretária. Quando a luz se acendeu ele fechou a porta atrás dele. Achou que daí a poucos minutos estaria a atravessar o relvado em direcção à sua casa.
- Não era a versão que eu queria mandar.
- Pois.
- Enganei-me na cópia que pus no envelope.
- Pois.
Aquelas respostas secas não lhe permitiam concluir nada; além disso, continuava sem conseguir ver bem a expressão dela. Ela passou para lá da mesa, aproximando-se das prateleiras. Ele avançou mais, não propriamente a segui-la, mas sem querer que ela saísse do alcance dele. Cecília podia tê-lo despachado logo à porta, mas agora tinha uma hipótese de lhe dar uma explicação antes de se ir embora.
- A Briony leu-a - disse ela.
- Meu Deus! Desculpa.
Estivera prestes a encenar perante ela um momento privado de exuberância, uma transgressão momentânea das convenções, uma recordação que lhe ficara da leitura da edição da Orioli de O Amante de Lady Chatterley, que tinha comprado clandestinamente no Soho. Mas aquele novo elemento - a criança inocente - retirava qualquer possibilidade de se desculpar pelo seu lapso.
Seria uma frivolidade continuar. Não podia fazer nada a não ser repetir-se mas, desta vez, num sussurro.
- Desculpa...
Cecília chegava mais para trás, para o canto, onde a escuridão era maior. Apesar de achar que ela tentava afastar-se dele, deu mais dois passos para ela.
- Foi uma estupidez. Aquilo não era para tu leres. Não era para ninguém ler.
Mesmo assim, ela retraiu-se. Tinha um ombro apoiado nas prateleiras e dava a impressão de deslizar através delas, como se estivesse prestes a desaparecer entre os livros. Ouviu um som ténue, húmido, como quando uma pessoa está prestes a falar e a língua se solta do céu da boca. Mas Cecília não disse nada. Foi nessa altura que lhe ocorreu que ela podia não estar a refugiar-se dele, mas a atraí-lo mais para si e para a escuridão. A partir do momento em que tocara à campainha, não tinha nada a perder. Por isso, avançou lentamente para ela, ao mesmo tempo que ela recuava, até ficar no canto, onde se imobilizou a vê-lo aproximar-se. Também ele parou, a pouco mais de um metro de distância. Estava agora suficientemente perto, e havia luz suficiente, para ver que ela tinha lágrimas nos olhos e tentava falar. Nesse momento não era possível, pelo que Cecília abanou a cabeça para lhe indicar que devia esperar. Voltou-se de lado e pôs as mãos em concha sobre o nariz e a boca, e os dedos a fazer pressão nos cantos dos olhos.
Conseguiu controlar-se, e acabou por dizer:
- Há semanas que isto existe... - A sua garganta contraiu-se, obrigando-a a parar. Ocorreu-lhe instantaneamente o que ela podia querer dizer, mas afastou a ideia. Cecília respirou fundo e continuou, num tom mais pensativo. - Talvez há meses. Não sei. Mas hoje... andei todo o dia estranha. A ver as coisas de uma forma estranha, como se fosse pela primeira vez. Tudo me pareceu diferente, demasiado intenso, demasiado real. Até as minhas próprias mãos pareciam diferentes. Noutras alturas, parece que vejo as coisas como se tivessem acontecido há muito tempo. E passei o dia todo furiosa contigo, e comigo própria. Achei que não me custaria nada não te tornar a ver ou não tornar a falar contigo. Achei que ia ficar contente por tu ires para a faculdade. Estava tão zangada contigo. Acho que foi uma maneira de não pensar nisto. Por acaso, muito conveniente...
Deu uma pequena gargalhada tensa.
- Isto? - disse Robbie.
Até àquele momento Cecília tinha estado de olhos no chão, mas quando voltou a falar olhou para ele. No entanto, tudo o que ele viu foi o reflexo das suas córneas.
- Soubeste antes de mim. Aconteceu qualquer coisa, não foi? E tu soubeste antes de mim. É como estar perto de uma coisa tão grande que nem a vemos. Mesmo agora, não tenho a certeza de conseguir. Mas sei que existe.
Olhou para baixo, e ele ficou à espera.
- Sei que existe porque me fez agir de uma forma ridícula. E a ti, claro... Mas esta manhã, nunca tinha feito nada assim. Depois fiquei tão zangada! Mesmo no momento em que estava a acontecer, disse para mim própria que estava a dar-te uma arma para usares contra mim. Depois, hoje à noite, quando comecei a perceber... Como pude ser tão ignorante em relação a mim própria? E tão estúpida? - Estremeceu, dominada por uma ideia desagradável. - Sabes do que estou a falar? Diz-me que sim. - Estava com medo que não estivessem a partilhar nada, que todos os seus pressupostos estivessem errados e que com as suas palavras se tivesse isolado ainda mais e ele pensasse que ela era louca.
- Sim, sei. - disse Robbie, aproximando-se mais. - Mas porque estás a chorar? Há mais algum problema?
Pensou que ela estaria prestes a revelar a existência de um obstáculo intransponível - alguém, obviamente -, mas ela não percebeu. Ficou sem saber o que responder e olhou para ele, bastante confusa. Porque estava a chorar? Como poderia dizer-lhe se estava completamente dominada pela emoção, por muitas emoções? Robbie, por sua vez, pensou que a pergunta era injusta, desajustada, e tentou descobrir uma maneira de a reformular. Olharam um para o outro, desorientados, sem conseguirem falar, sentindo que algo cuidadosamente estabelecido entre eles poderia fugir-lhes. O facto de serem amigos que tinham partilhado a infância constituía agora uma barreira. Estavam embaraçados com o que tinham sido. Nos últimos anos a sua amizade tornara-se vaga e até um pouco forçada, mas continuava a ser um velho hábito, e quebrá-lo agora para se tornarem desconhecidos em termos íntimos obrigava a um discernimento total relativamente aos seus objectivos, que os abandonara temporariamente. De momento parecia não haver saída possível através das palavras.
Ele pôs-lhe as mãos nos ombros e sentiu a frescura da sua pele desnudada. Quando os seus rostos se aproximaram, Robbie não sabia ao certo se devia pensar que ela ia fugir ou, como nos filmes, dar-lhe uma bofetada na cara com a mão bem aberta. A boca dela sabia a batom e a sal. Afastaram-se por um segundo e depois ele rodeou-a com os braços e voltaram a beijar-se, já com mais confiança. Encostaram temerariamente as suas línguas, e foi nesse momento que ela emitiu o som descendente, ciciado, que, como mais tarde Robbie compreendeu, marcou a transformação. Até esse momento continuara a haver qualquer coisa de ridículo em ter um rosto familiar tão perto do seu. Sentiam-se observados pelas crianças que haviam sido. Mas o contacto das línguas, daquele músculo vivo e escorregadio, daquela carne húmida, e o som estranho que esse contacto provocou nela mudaram tudo. Foi como se aquele som tivesse penetrado nele, como se o tivesse rasgado, deixando o seu corpo aberto, e ele tivesse podido então sair de dentro de si e beijá-la livremente. O que anteriormente fora consciente era agora impessoal, quase abstracto.
O suspiro dela fora impetuoso e deixara-o insaciável. Empurrou-a mais para o canto, entre os livros. Enquanto se beijavam, ela começou a puxar-lhe a roupa, a tentar desabotoar-lhe a camisa e tirar-lhe o cinto, mas sem o conseguir. Inclinaram as cabeças e encostaram ainda mais o rosto um ao outro, ao mesmo tempo que o beijo se tornava devorador. Cecília deu-lhe uma dentada na maçã do rosto, não totalmente por brincadeira. Ele afastou-se, depois voltou a aproximar-se dela, e ela mordeu-o no lábio inferior. Depois ele beijou-a no pescoço, encostando-lhe a cabeça às prateleiras, e ela agarrou-o pelos cabelos e afundou-lhe a cara nos seios. Ele tacteou um pouco, por inexperiência, até encontrar o mamilo dela, pequeno e duro, que rodeou com os lábios. Ela ficou rígida, muito direita, mas depois estremeceu de alto a baixo. Por momentos, Robbie pensou que ela se tivesse descontrolado. Cecília tinha os braços à volta da cabeça dele e, quando os cerrou mais, ele foi obrigado e levantar a cara para poder respirar. Depois abraçou-a, puxando-lhe a cabeça contra o seu peito. Ela tornou a mordê-lo e puxou-lhe a camisa. Quando ouviram um botão a cair no chão tiveram de suprimir um sorriso rasgado e desviar a cara. A comédia tê-los-ia destruído. Cecília prendeu o mamilo dele entre os dentes, provocando uma sensação insuportável. Robbie levantou-lhe a cara e, prendendo-a contra si, beijou-lhe os olhos e entreabriu-lhe os lábios com a língua. Cecília abandonou-se, fazendo outra vez o mesmo som, como um suspiro de desilusão.
Eram finalmente desconhecidos; tinham esquecido os seus passados. Também eram desconhecidos para si próprios. Esqueciam-se de quem eram e de onde estavam. A porta da biblioteca era espessa, pelo que nenhum dos sons habituais que pudesse tê-los alertado ou impedido de continuarem poderia chegar até eles. Estavam para lá do presente, fora do tempo, sem recordações nem futuro. Não havia nada a não ser uma sensação ofuscante, excitante e gratificante, e o som do tecido a roçar no tecido, e da pele a roçar no tecido, enquanto os seus membros deslizavam uns contra os outros, num combate inquieto e sensual. Robbie era pouco experiente e só por relatos de terceiros sabia que não precisavam de se deitar. Quanto a ela, para além de todos os filmes que vira, e de todos os romances e poemas líricos que lera, não tinha qualquer experiência. Apesar destas limitações, não os surpreendeu a clareza com que conheciam as suas necessidades. Estavam outra vez a beijar-se. Cecília tinha os braços por detrás da cabeça dele e estava a lamber-lhe a orelha e a mordiscar-lhe o lobo. Estas dentadas excitavam-no e ao mesmo tempo enraiveciam-no, acicatavam-no. Sentiu as nádegas dela por baixo do vestido e apertou-as com força, tentando voltar-se de lado para lhe dar uma palmada retaliatória, mas sem conseguir espaço suficiente. Com os olhos fixos nos dele, baixou-se para tirar os sapatos. Voltou a mexer-se desajeitadamente, para abrir botões e posicionar braços e pernas. Não tinha qualquer experiência. Sem falar, ele guiou o pé dela para a prateleira de baixo. Eram desajeitados, mas também naquele momento demasiado soltos para se sentirem envergonhados. Quando Robbie lhe levantou de novo o vestido justo de seda, sentiu que a incerteza que pairava no olhar dela reflectia a sua própria incerteza. Mas havia um único fim, inevitável, e não podiam fazer nada a não ser avançar para ele.
Apoiada no canto das prateleiras pelo peso dele, Cecília voltou a pôr as mãos atrás do pescoço de Robbie, descansou os cotovelos no ombro dele e continuou a beijar-lhe o rosto. O momento propriamente dito foi fácil. Sustiveram a respiração antes de a membrana se rasgar e, quando isso aconteceu, ela voltou-se rapidamente, mas sem deixar escapar nenhum som - parecia um motivo de orgulho. Aproximaram-se mais e depois, durante alguns segundos, tudo parou. Em vez de um momento de loucura extática, houve quietude. Ficaram imobilizados, não pelo facto espantoso de alguém ter chegado, mas por uma estranha sensação de regresso - estavam cara a cara, na penumbra, a olhar fixamente o pouco que conseguiam ver do rosto um do outro, e agora era a sensação de impessoalidade que desaparecia. Claro que não havia nada de impessoal numa cara. O filho de Grace e Ernest Turner, a filha de Emily e Jack Tallis, amigos de infância, colegas da universidade, num estado de alegria expansiva e tranquila, foram confrontados com a profunda mudança que tinham sofrido. A proximidade de um rosto familiar não era ridícula; era inconcebível. Robbie olhou para a mulher, para a rapariga que sempre conhecera, pensando que a mudança estava nele próprio e era tão fundamental, tão fundamentalmente biológica como o nascimento. Desde o dia em que nascera que nada de tão singular ou importante lhe acontecera. Ela olhou-o da mesma forma intensa, dominada pela sensação da sua própria transformação e pela beleza de um rosto que um hábito de toda uma vida a ensinara a ignorar. Sussurrou o nome dele com a determinação de uma criança que tenta identificar sons distintos. Quando ele respondeu com o nome dela pareceu-lhe dizer uma palavra inteiramente nova - as sílabas eram as mesmas, mas o significado era diferente. Por fim ele proferiu as duas palavras que nem um gesto de arte menor nem de falta de fé poderão jamais depreciar. Ela repetiu-as, com a mesma ênfase no pronome, como se tivesse sido ela a dizê-las em primeiro lugar. Ele não era crente, mas era impossível não pensar na presença de uma testemunha invisível naquela sala, perante a qual aquelas palavras estavam a ser ditas em voz alta, como assinaturas num contrato invisível.
Ficaram imóveis durante talvez meio minuto. Mais tempo do que seria necessário para o domínio de uma arte tântrica formidável. Começaram a fazer amor encostados às prateleiras da biblioteca que rangiam com o movimento deles. É bastante comum nesses momentos a fantasia de que se está a chegar a um lugar distante e elevado. Robbie imaginou-se a passear pelo cume arredondado e suave de uma montanha, suspenso entre os dois picos mais altos. Caminhava sem pressas, com um espírito observador, e com tempo suficiente para se aproximar de uma escarpa rochosa e olhar para a ladeira quase vertical que daí a pouco tempo teria de descer. Sentia-se tentado a atirar-se para o vazio, mas era um homem do mundo, pelo que podia ir-se embora e esperar. Não era fácil, porque estava a ser puxado para trás e tinha de resistir. Desde que não pensasse no precipício, não se aproximaria dele e não seria tentado. Obrigou-se a pensar nas coisas mais desinteressantes que conhecia - graxa para sapatos, um formulário, uma toalha molhada no chão do seu quarto. Havia também a tampa de um caixote do lixo voltada ao contrário, com alguns centímetros de água da chuva lá dentro, e a marca incompleta de uma chávena de chá na capa do seu livro de poemas de Housman. O inventário precioso foi interrompido pelo som da voz dela. Estava a interpelá-lo, a convidá-lo, a murmurar ao ouvido dele. Exactamente isso. Saltariam juntos. Estava com ela, a espreitar para um abismo, conseguindo ver a ladeira a desaparecer por entre as nuvens. Atirar-se-iam de costas, de mãos dadas. Ela repetiu a mesma frase, segredando-lhe ao ouvido, mas desta vez ele conseguiu ouvi-la claramente:
- Entrou alguém.
Robbie abriu os olhos. Estava numa biblioteca, numa casa, mergulhado num silêncio total. Estava vestido com o seu melhor fato. Voltou à realidade com relativa facilidade. Tentou olhar por cima do ombro e apenas viu a secretária pouco iluminada, que continuava lá, como antes, como uma recordação de um sonho. Do sítio onde estavam não conseguiam ver a porta. Mas não se ouviu nenhum som, nada. Tinha de estar enganada; Robbie queria desesperadamente que ela estivesse enganada, e estava de certeza. Voltou-se para ela e estava para lhe dizer isso quando ela lhe apertou mais o braço, fazendo-o olhar para trás mais uma vez. Briony deslocou-se lentamente para o campo de visão deles, parou junto à secretária e viu-os. Ficou estupidamente imóvel, a olhar fixamente para eles, com os braços caídos ao lado do corpo, como um pistoleiro num western. Nesse momento de contracção, Robbie descobriu que nunca odiara ninguém até então. Era um sentimento tão puro como o amor, mas desapaixonado e glacialmente racional. Não havia nada de pessoal na sua atitude, pois teria odiado qualquer pessoa que tivesse entrado. Havia bebidas na sala de estar e no terraço, e era aí que Briony devia estar - com a mãe, o irmão que adorava e os primos. Não havia motivo nenhum para ela estar na biblioteca, a não ser encontrá-lo e negar-lhe o que era dele. Via agora claramente como tudo acontecera: Briony tinha aberto o envelope para ler a carta dele e, à sua maneira obscura, sentira-se traída. Tinha vindo à procura da irmã - sem dúvida com a intenção ridícula de a proteger ou de lhe ralhar, e tinha ouvido barulho na biblioteca. Impelida pela sua profunda ignorância, pela sua imaginação tola ou pela sua rectidão de criança, viera interrompê-los. E nem sequer fora obrigada a fazê-lo - eles tinham-se afastado de livre vontade, tinham-se voltado e estavam ambos a endireitar discretamente as roupas. Tinha acabado.
Os pratos de conduto há muito que tinham sido levantados e Betty voltava com o pudim de pão e manteiga. Seria imaginação sua, pensava Robbie, ou uma intenção malévola dela que fazia que as doses que servia aos adultos parecessem do dobro do tamanho das das crianças? Leon estava a servir-se da terceira garrafa de Barsac. Tinha tirado o casaco, permitindo com esse gesto aos outros dois homens que fizessem o mesmo. Ouviam-se pancadas leves nos vidros das janelas, provocadas pelos insectos nocturnos que se atiravam contra as vidraças. Mrs Tallis limpou o rosto com um guardanapo e olhou ternamente para os gémeos. Pierrot estava a dizer um segredo a Jackson.
- Nada de segredinhos à mesa, meninos. Se não se importam, gostávamos todos de ouvir.
Jackson engoliu em seco. O irmão baixou os olhos.
- Podemos levantar-nos, tia Emily? Queríamos ir à casa de banho.
- Claro. Mas não são precisos tantos pormenores.
Os gémeos saíram das respectivas cadeiras. Quando chegaram à porta, Briony deu um grito e apontou para eles.
- As minhas meias! Eles têm as minhas meias dos morangos!
Os miúdos pararam, voltaram-se e dirigiram o seu olhar envergonhado dos tornozelos para a tia. Briony estava meio levantada. Robbie achou que ela estava finalmente a libertar emoções muito fortes.
- Foram ao meu quarto e tiraram-nas da minha gaveta!
Cecília falou pela primeira vez durante o jantar. Também ela estava a soltar sentimentos profundos.
- Cala-te, por amor de Deus! És uma prima dona muito cansativa. Eles não tinham meias lavadas e eu fui buscar umas tuas.
Briony olhou para ela com uma expressão de incredulidade. Estava a ser atacada, traída, por uma pessoa que só queria proteger. Jackson e Pierrot continuavam a olhar para a tia, que, com uma inclinação ridícula da cabeça e um ligeiro gesto lhes fez sinal de que podiam sair. Fecharam a porta atrás deles com um cuidado exagerado, talvez até satírico, e, no momento em que largaram o puxador, Emily pegou na colher e todos lhe seguiram o exemplo.
- Podias ser um pouco menos enfática com a tua irmã.
Quando Cecília se voltou para a mãe, Robbie sentiu um odor fugidio a transpiração, que lhe fez lembrar relva acabada de cortar. Faltaria pouco para irem lá para fora. Fechou momentaneamente os olhos. À sua frente estava uma taça com creme de ovos. Teria força para a levantar?
- Desculpe, Emily. Mas ela tem andado impossível todo o dia.
- Essa é boa, vinda de ti - retorquiu Briony, com uma calma de adulta.
- Que queres dizer?
Robbie sabia que não era essa a pergunta a fazer. Naquela fase da sua vida, Briony vivia num espaço de transição algo indefinido entre os mundos da infância e dos adultos, saltitando imprevisivelmente de um para outro. Naquelas circunstâncias era menos perigosa como criança indignada.
A verdade é que a própria Briony não sabia ao certo o que queria dizer, mas Robbie não podia sabê-lo quando interveio rapidamente para mudar de assunto. Virou-se para Lola, que estava à sua esquerda, mas disse de forma a incluir todos os que estavam à mesa:
- Os teus irmãos são uns miúdos encantadores.
Briony soltou uma gargalhada raivosa e nem deu tempo à prima para falar.
- Isso só mostra como és ignorante.
- Se continuares assim, querida, vou ter de te pedir que saias da mesa - disse Emily, pousando a colher.
- Mas vê o que eles lhe fizeram. Arranharam-na na cara e nos braços.
Todos os olhos se voltaram para Lola. A sua pele pareceu mais escura sob as sardas, fazendo sobressair os arranhões.
- Não parece muito grave - disse Robbie.
Briony lançou-lhe um olhar feroz.
- Unhas de criança. Devias pôr uma pomada.
- Já pus - disse Lola, mostrando-se corajosa. - Até já estou muito melhor.
Paul Marshall pigarreou.
- Eu vi com os meus próprios olhos. Tive de os separar um do outro e dela. Tenho de confessar que fiquei admirado. Uns miúdos tão pequenos... Atiraram-se a ela como se...
Emily levantara-se da cadeira e aproximara-se de Lola. Agarrou-lhe as mãos e levantou-lhe os braços.
- Olha para isto! Não são só arranhões. Estás cheia de nódoas negras até aos cotovelos. Como é que eles fizeram isto?
- Não sei, tia Emily.
Marshall chegou-se mais uma vez para trás. Por detrás da cabeça de Cecília e Robbie, disse à jovem cujos olhos entretanto se encheram de lágrimas:
- Não tens de ter vergonha. Foste muito corajosa, mas também muito maltratada.
Lola esforçava-se por não chorar. Emily puxou-a para si e acariciou-lhe a cabeça.
- Tens razão - disse Marshall a Robbie. - São uns miúdos encantadores. Mas acho que têm andado a passar um mau bocado.
Robbie queria saber por que razão Marshall não tinha dito nada, se Lola tinha sido assim tão maltratada, mas à volta da mesa reinava agora um grande alvoroço.
- Quer que telefone ao médico? - perguntou Leon à mãe.
Cecília estava a levantar-se da mesa. Robbie tocou-lhe no braço e ela voltou-se. Os seus olhos cruzaram-se pela primeira vez desde a cena da biblioteca. Não havia tempo para estabelecer qualquer contacto para além daquele olhar, pelo que foi ter rapidamente com a mãe, que entretanto dava ordem para que trouxessem uma compressa fria. Emily murmurou algumas palavras de consolação junto à cabeça da sobrinha. Marshall continuou no seu lugar e voltou a encher o copo. Briony também se levantou e, ao fazê-lo, deu outro dos seus gritos penetrantes de criança. Tirou um envelope do assento de Jackson e pô-lo no ar para o mostrar a toda a gente.
- Uma carta!
Ia abri-la. Robbie não conseguiu deixar de perguntar:
- Para quem é?
- Tem escrito: “Para todos.”
Lola libertou-se da tia e limpou a cara com o guardanapo. Emily sentiu um novo e surpreendente impulso de autoridade.
- Não vais abri-la. Faz o que te mando e trá-la cá.
Briony apercebeu-se do tom invulgar da voz da sua mãe e deu obedientemente a volta à mesa com o envelope na mão. Emily afastou-se um pouco mais de Lola ao tirar o bocado de papel pautado. Quando o leu, Robbie e Cecília também puderam lê-lo.
Vamos fujir porque a Lola e a Bettu são orríveis para nós e queremos ir para casa. Desculpem termos robado fruta. E tamém não houve peça.
Tinham assinado os seus nomes com uma letra zigue-zagueante e cheia de floreados.
Fez-se silêncio depois de Emily ler a carta em voz alta. Lola levantou-se e deu alguns passos em direcção à janela, mas depois mudou de ideias e foi até à ponta da mesa. Olhou de um lado para o outro, distraidamente, e a repetir: “Oh, meu Deus, oh, meu Deus...”
Marshall foi ter com ela e pôs-lhe a mão no braço.
- Vai correr tudo bem. Vamos separar-nos para os procurar e vamos encontrá-los num instante.
- Claro - disse Leon. - Foram-se embora há poucos minutos.
Mas Lola não estava a ouvir e parecia ter-se decidido. Ao avançar para a porta, exclamou:
- A mãe vai-me matar.
Quando Leon tentou segurá-la pelo ombro, ela afastou-o e depois saiu porta fora. Ouviram-na atravessar o átrio.
- Nós vamos os dois, Cecília - disse Leon, voltando-se para a irmã.
- Não há luar. Está muito escuro lá fora - observou Marshall.
O grupo estava a dirigir-se para a porta, quando Emily disse:
- Alguém devia ficar cá em casa à espera e se calhar o melhor era ficar eu.
- Há archotes atrás da porta da cave - disse Cecília.
- Acho que é melhor telefonares ao polícia - aconselhou Leon.
Robbie foi o último a sair da sala de jantar e, na sua opinião, o último a adaptar-se à nova situação. A sua primeira reacção, que não desapareceu quando sentiu a relativa frescura do átrio, foi sentir que tinha sido enganado. Não acreditava que os gémeos estivessem em perigo. Assustar-se-iam com as vacas e voltariam para casa. A imensidão da noite, as árvores escuras, as sombras acolhedoras, a relva fresca e recém-cortada - tudo isso estava reservado exclusivamente para ele e para Cecília. Estava à espera deles. Amanhã, ou em qualquer outra altura que não naquele momento, não serviria. Mas de repente a casa tinha despejado o seu conteúdo para uma noite assoberbada por uma crise doméstica meio ridícula. Andaria ao relento horas a fio, a gritar e a agitar os archotes, acabariam por encontrar os gémeos, sujos e cansados, Lola acalmar-se-ia e, depois de uma bebida para festejar, a noite chegaria ao fim. Daí a poucos dias, ou talvez horas, ter-se-ia tornado uma recordação divertida, a relembrar em ocasiões de família: a noite em que os gémeos fugiram.
Já estavam todos a sair para irem procurar os gémeos quando ele chegou à porta. Cecília tinha dado o braço ao irmão e, no momento em que iam a sair, olhou para trás e viu-o parado sob a luz. Encolheu os ombros como que a dizer: “Por agora não podemos fazer nada.” Antes que ele pudesse inventar um gesto qualquer que traduzisse a sua aceitação afectuosa, ela voltou-se e partiu com Leon, gritando pelos rapazes. Marshall ia mais à frente, quase na estrada principal, e só era visível pelo archote que levava. Lola não estava à vista. Briony dirigia-se para a parte lateral da casa. Claro que não queria fazer companhia a Robbie, o que até era um alívio, pois ele já tinha decidido: se não podia ir com Cecília, se não podia tê-la para si, faria como Briony e iria sozinho. Aquela decisão - reconhecê-lo-ia muitas vezes - mudou o seu futuro.
12
Por muito elegante que a antiga casa de estilo Adam tivesse sido, por imponente que se erguesse ao fundo do parque, as paredes não podiam ser tão sólidas como a da estrutura aristocrática que a substituiu, nem as suas divisões poderiam alguma vez ter tido o mesmo tipo de silêncio obstinado que de vez em quando invadia a casa dos Tallis. Emily sentiu a sua presença no momento em que fechou a porta da frente e se voltou para atravessar o átrio. Partiu do princípio de que Betty e as suas ajudantes ainda estariam na cozinha a comer a sobremesa, sem saberem que já não havia ninguém na sala de jantar. Não se ouvia qualquer som. As paredes, os lambris, o peso penetrante dos objectos quase novos, os enormes cães de loiça junto da chaminé, a lareira aberta de pedra clara, que resistira através dos séculos desde uma época de castelos isolados em florestas silenciosas. A intenção do seu sogro devia ter sido, na opinião dela, criar um ambiente de solidez e tradição familiar. Um homem que passara a vida a inventar fechos e linguetas de ferro tinha de compreender o valor da privacidade. A casa estava completamente isolada dos barulhos exteriores, e até os sons interiores mais discretos eram abafados e por vezes até eliminados.
Emily suspirou, mas não conseguiu ouvir-se suficientemente bem e tornou a suspirar. Estava junto ao telefone, colocado sobre uma mesa semicircular de ferro forjado, ao lado da porta da biblioteca, com a mão pousada sobre o auscultador. Para falar com o agente Vockins teria de falar primeiro com a mulher dele, uma tagarela que gostava de falar de ovos e assuntos afins - o preço das rações para as galinhas, as raposas, a fragilidade dos novos sacos de papel. O marido recusava-se a mostrar a deferência que seria de esperar de um polícia. Era sincero nas trivialidades que fazia ressoar no seu peito abotoado como uma sabedoria adquirida ao longo dos anos: nunca chuviscava - só chovia; a ociosidade é a mãe de todos os vícios; basta uma ovelha ranhosa para dar cabo do rebanho. Corria na aldeia o boato de que antes de ter entrado para a polícia e ter deixado crescer bigode tinha sido sindicalista. Havia uma fotografia dele, no tempo da greve geral, num comboio com um punhado de panfletos.
Além disso, o que iria pedir ao agente da aldeia? Até que ele lhe dissesse que eram mesmo coisas de rapazes e conseguisse arrancar da cama meia dúzia de homens para irem à procura deles teria passado uma hora e os gémeos já teriam voltado por sua própria iniciativa, aterrorizados pela imensidão do mundo à noite. Na verdade, não era neles que pensava, mas na mãe deles, a sua irmã, ou melhor, na sua encarnação em Lola. Quando Emily se levantou da mesa para consolar a rapariga foi surpreendida por uma sensação de ressentimento. Quanto mais a sentia, mais acariciava Lola para a esconder. O arranhão na cara era inegável, as nódoas negras no braço bastante chocantes, sobretudo por terem sido feitas por crianças. Mas Emily sentia-se incomodada por um velho antagonismo. Era a irmã Hermione que tentava acalmar - Hermione, usurpadora de cenas, amante da arte dramática. Como antigamente, quanto mais Emily se agitava, mais atenta ficava. E quando a pobre Briony descobriu a carta dos rapazes foi o mesmo antagonismo que despertou uma invulgar acuidade em Emily. Que injustiça! Mas a perspectiva de a filha, ou qualquer outra rapariga mais nova do que ela, abrir o envelope e aumentar a tensão fazendo-o com alguma lentidão, dar a notícia e colocar-se no centro do drama, evocava nela memórias antigas e pensamentos nada generosos.
Hermione pavoneara-se e dera piruetas ao longo da infância de ambas, tentando dar nas vistas sempre que possível, sem pensar - era essa a opinião da sua irmã mais velha, carrancuda e silenciosa - na figura ridícula e desesperada que fazia. Havia sempre adultos dispostos a acalentar aquela vaidade inexorável. E quando Emily, na altura com onze anos, chocara uma sala cheia de visitas ao ir de encontro a uma janela e fazer um golpe tão profundo na mão que o sangue que esguichou desenhara um bouquet escarlate no vestido branco de musselina de uma menina que estava ao pé dela, foi Hermione, então com nove anos, que conseguiu ser o centro das atenções, desatando aos gritos. Enquanto Emily estava deitada no chão, na obscuridade, com um tio médico a fazer-lhe um garrote, havia umas doze pessoas à volta da irmã, a tentar acalmá-la. E agora estava em Paris, perdida de amores por um indivíduo que trabalhava na rádio, enquanto Emily cuidava dos filhos dela. Plus ça change, teria dito o guarda Vockins.
E Lola seria tão imparável como a mãe. Assim que leram a carta, Lola sobrepôs-se à fuga dos irmãos com a sua própria saída teatral. A mãe vai-me matar. Mas era precisamente o espírito da mãe que ela mantinha vivo. Quando os gémeos voltassem, de certeza absoluta que Lola continuaria desaparecida. Impelida por um princípio férreo de amor-próprio, ficaria mais tempo na escuridão da noite, envolta numa infelicidade artificial, para que, quando aparecesse, o alívio geral fosse mais intenso e todas as atenções convergissem sobre ela. Nessa tarde, Emily não precisara de se levantar da cama para desconfiar que Lola estava a sabotar a peça de Briony, suspeita mais tarde confirmada pelo cartaz rasgado no cavalete. Tal como previra, Briony andara algures lá por fora, amuada e sem que ninguém conseguisse encontrá-la. Como Lola era parecida com Hermione, a ponto de se sentir inocente enquanto os outros se destruíam por instigação dela.
Emily permaneceu no átrio, sem se decidir, sem querer estar em nenhuma divisão em especial, tentando ouvir as vozes dos que andavam lá fora e, para ser honesta consigo própria, aliviada por não conseguir ouvir nada. O desaparecimento dos rapazes era um drama comezinho; era a vida de Hermione a impor-se à dela. Não havia motivo para se preocuparem com os gémeos. Era muito pouco provável que se aproximassem do rio. De certeza que acabariam por se cansar e voltar para casa. Estava rodeada por espessas paredes de silêncio, que assobiava aos seus ouvidos, aumentando e diminuindo de volume segundo o seu próprio padrão. Tirou a mão do auscultador e massajou a cabeça - graças a Deus, não havia sinais de enxaquecas -, dirigindo-se depois para a sala de estar. Uma outra razão para não ligar para o guarda Vockins era o telefonema que devia estar prestes a receber de Jack, a desculpar-se mais uma vez. A ligação seria feita pela telefonista do ministério; depois ouviria a voz nasalada e lamuriosa da jovem secretária e finalmente a voz do marido a ecoar no seu enorme gabinete com tecto de madeira. Não duvidava que ele ficasse a trabalhar até tarde, mas sabia que não dormia no clube e ele sabia que ela sabia. Mas não havia nada a dizer. Ou melhor, havia até de mais a dizer. Eram parecidos um com o outro no receio dos conflitos, e a regularidade dos seus telefonemas nocturnos, por muito que ela duvidasse deles, era reconfortante para ambos. Mesmo que aquele logro fosse uma hipocrisia convencional, as suas vantagens eram evidentes. Emily tinha alguns motivos de satisfação na sua vida - a casa, o parque e, acima de tudo, os filhos - e tencionava preservá-los não desafiando Jack. Além disso, não sentia tanto a falta da sua presença como da sua voz ao telefone. O facto de ele lhe mentir constantemente, apesar de dificilmente poder considerar-se uma prova de amor, significava que lhe prestava atenção; devia gostar dela para fabricar uma história tão elaborada e mantê-la durante tanto tempo. O facto de a enganar era um tributo à importância do seu casamento.
Enganada em criança, enganada em mulher. Mas não era tão infeliz como seria de esperar. Um dos papéis preparara-a para o outro. Parou à entrada da sala de estar e reparou que os copos de cocktail sujos de chocolate ainda não tinham sido levados e que as portas que davam para o jardim continuavam abertas. Uma brisa ligeiríssima agitou as flores secas que se encontravam à frente da lareira. Duas ou três borboletas enormes esvoaçaram à volta do candeeiro situado junto ao cravo. Alguém voltaria a tocá-lo? O facto de os insectos nocturnos serem atraídos pela luz aos locais onde mais facilmente podiam ser comidos por outros bichos era um dos mistérios que lhe davam um pequeno prazer. De qualquer forma, preferia que não lho explicassem. Uma vez, num jantar, um professor de uma qualquer área das ciências, querendo manter uma conversa banal, apontara alguns insectos que giravam sobre um candelabro. Dissera-lhe que era a impressão visual de uma zona ainda mais escura para lá da luz que os atraía. Apesar de correrem o risco de serem comidos, tinham de obedecer ao instinto que os levava a procurar o sítio mais escuro, do lado mais distante da luz, o que, neste caso, era uma ilusão. Parecia-lhe um sofisma, explicar por explicar. Como poderia alguém ter pretensões a perceber o mundo pelos olhos de um insecto? Nem tudo tinha uma causa, e fingir o contrário era uma interferência no funcionamento do mundo, não só fútil, mas também potencialmente causadora de sofrimento. Algumas coisas eram simplesmente como eram.
Não queria saber por que razão Jack passava tantas noites consecutivas em Londres. Ou melhor, não queria que lho dissessem. E também não queria saber mais sobre o trabalho que o obrigava a ficar até tarde no ministério. Há muitos meses, não muito tempo depois do Natal, fora à biblioteca para o acordar da sesta e vira uma pasta aberta sobre a secretária. Foi por pura curiosidade feminina que espreitou, pois a administração pública interessava-lhe pouco. Numa página viu uma lista de títulos: controlo de trocas, racionamento, evacuação em massa de grandes cidades, recrutamento de mão-de-obra. A página oposta estava escrita à mão. Havia uma série de cálculos matemáticos intercalados com blocos de texto. A letra direita de Jack, a tinta castanha, instruía-a para que assumisse um múltiplo de cinquenta. Por cada tonelada de explosivos lançados, calcular cinquenta feridos. Supor que 100 000 toneladas de bombas seriam lançadas em duas semanas. Resultado: cinco milhões de feridos. Ainda não o acordara, e a sua respiração suave e sibilante misturava-se com o canto de um pássaro para lá do relvado. Um sol aquoso ondulava sobre as lombadas dos livros e por toda a parte se sentia o cheiro do pó quente. Foi à janela e olhou fixamente para o exterior, tentando descobrir o pássaro por entre os ramos despidos dos carvalhos que se erguiam, negros, contra um céu ora cinzento, ora de um azul extremamente pálido. Sabia que as suposições burocráticas daquele tipo tinham de existir. E também havia precauções que os membros da administração pública tinham de tomar para cobrir todas as eventualidades. Mas aqueles números extravagantes eram certamente uma forma de auto-engrandecimento, de uma insensibilidade que raiava a irresponsabilidade. Jack, o protector da casa, o garante da sua tranquilidade, deveria ter vistas largas. Mas aquilo era ridículo. Quando o acordou, ele resmungou qualquer coisa e inclinou-se para a frente com um movimento súbito para fechar a pasta e depois, ainda sentado, ergueu a mão dela até junto da sua boca e beijou-a com secura.
Decidiu não fechar as janelas que davam para o terraço e sentou-se numa ponta do sofá. Sentia que não estava propriamente à espera. Não conhecia ninguém com o seu gosto por estar parada, sem sequer um livro no colo, deslocando-se calmamente pelos seus pensamentos como se explorasse um novo jardim. Aprendera a ser paciente graças aos muitos anos de convivência com a ameaça das enxaquecas. Inquietar-se, concentrar-se, ler, olhar, desejar - tudo eram coisas a evitar em favor de um lento impulso de associação, enquanto os minutos se acumulavam como um banco de neve e o silêncio se adensava à sua volta. Sentada ali, naquele momento, sentia o ar da noite empurrar-lhe a bainha do vestido contra a perna. A sua infância era tão tangível como a seda - um gosto, um som, um cheiro, misturados numa entidade que era certamente mais do que um estado de espírito. Havia uma presença na sala, ela própria aos dez anos de idade, magoada, ignorada, uma menina ainda mais calada do que Briony, que costumava surpreender-se com o enorme vazio do tempo e maravilhar-se por o século XIX estar prestes a chegar ao fim. Era mesmo dela, sentar-se assim na sala, à parte. Aquele fantasma não fora invocado por Lola a imitar Hermione, nem pelo facto de os imprevisíveis gémeos terem desaparecido. Era a lenta retracção, o refúgio na autonomia que dava a entender que a infância de Briony se aproximava do seu termo. Era outra ideia que perseguia Emily. Briony era a sua filha mais nova, e não havia nada entre aquele momento e a cova que pudesse ser tão importante ou dar tanto prazer como cuidar de uma criança. Não era tola. Reconhecia a autocomiseração naquela sensação de alegria sagaz ao contemplar o que parecia a sua própria ruína: Briony iria certamente para o colégio da irmã, Girton, e ela, Emily, ficaria com os membros mais presos e tornar-se-ia mais irrelevante de dia para dia; a idade e o cansaço devolver-lhe-iam Jack, sem que nada fosse dito ou precisasse de ser dito. E ali estava o fantasma da sua infância, disseminado pela sala, para não a deixar esquecer o arco limitado da existência. Com que rapidez a história chegaria ao fim! Nem sólida nem vazia, mas imprudente. Impiedosa.
O seu estado de espírito não foi particularmente afectado por aquelas reflexões triviais. Flutuava sobre elas, olhando para baixo com indiferença, intercalando-as com outras preocupações. Estava a pensar plantar uns arbustos novos no caminho para a piscina. Robbie queria convencê-la a fazer um caramanchão e a decorá-lo com uma trepadeira, cuja flor e aroma apreciava. Mas antes que esse efeito fosse conseguido em todo o seu esplendor já ela e Jack teriam morrido. A história chegaria ao fim. Pensou em Robbie durante o jantar - achara o seu olhar meio louco e vidrado. Andaria a fumar os cigarros de marijuana sobre os quais tinha lido um artigo numa revista, que dizia que punham os rapazes de tendências boémias à beira da loucura? Gostava bastante dele e estava feliz por Grace Turner por ele ser inteligente. Mas a verdade é que ele era uma espécie de passatempo para Jack, uma prova viva de um qualquer princípio igualitário que ele perseguira ao longo dos anos. Quando falava de Robbie, o que não acontecia com frequência, era com um tom de desculpa farisaica. Havia uma espécie de pacto que Emily achava ser uma forma de a criticar. Opusera-se a Jack quando ele se oferecera para pagar os estudos do rapaz, pois achava isso uma ingerência e uma injustiça em relação a Leon e às meninas. Não concluíra que estava errada pelo simples facto de Robbie ter voltado de Cambridge com a melhor nota do curso. Aliás, isso tornara as coisas um pouco mais difíceis para Cecília, por ela ter sido a terceira, embora fosse um absurdo ela fingir-se desapontada. A arrogância de Robbie. “Dali não virá nada de bom” era a frase que ela costumava usar, à qual Jack respondia sempre, com um ar satisfeito, que já viera muito.
Apesar de tudo isso, Briony fora muito inconveniente com Robbie ao jantar. Emily compreendia que ela tivesse ressentimentos. Era de esperar. Mas expressá-los não era uma atitude digna. Pensando outra vez no jantar - Mr Marshall pusera toda a gente à vontade de uma forma muito artificiosa. Seria um candidato aceitável? Era uma pena aquele seu aspecto, com metade da cara a parecer um quarto com mobília a mais. Talvez com o tempo aquele queixo que fazia lembrar um bocado de queijo - ou de chocolate - acabasse por parecer grosseiro. A verdade é que, se ia fornecer barras de chocolate ao exército britânico, se tornaria imensamente rico. Mas Cecília, que aprendera algumas formas modernas de snobismo em Cambridge, considerava que um homem licenciado em Química era incompleto como ser humano. Tinham sido estas as suas próprias palavras. Andara a passear-se três anos em Girton com o tipo de livros que poderia ter lido em casa - Jane Austen, Dickens, Conrad, existiam todos na biblioteca, as obras completas. Como é que esse objectivo de ler romances que as outras pessoas liam por prazer podia levá-la a pensar que era superior a todos os outros? Até um homem formado em Química tinha a sua utilidade. E aquele descobrira uma maneira de fazer chocolate com açúcar, produtos químicos, corante castanho e óleo vegetal. E sem manteiga de cacau. Enquanto tomavam o espantoso cocktail preparado por ele, explicara que fabricar uma tonelada daquilo não custava praticamente nada. Podia baixar os preços em relação à concorrência e aumentar a margem de lucro. Dito de forma mais directa, que consolo, que anos pacíficos poderiam vir daquelas tabletes baratas.
Passaram-se mais de trinta minutos com esses fragmentos - recordações, juízos de valor, resoluções vagas, interrogações - quase sem que Emily desse por isso, praticamente sem que tivesse mudado de posição e sem que se apercebesse dos quartos de hora dados pelo relógio. Reparou que a brisa se tornara mais forte e fechara uma das janelas, voltando depois a acalmar. Mais tarde ouviu Betty e as ajudantes arrumarem a sala de jantar, mas depois também esses sons soçobraram e Emily entregou-se mais uma vez aos muitos caminhos dos seus devaneios, fazendo mil associações, com a perícia adquirida à custa de muitas dores de cabeça, evitando tudo o que pudesse ser repentino ou agressivo. Quando finalmente o telefone tocou, levantou-se de imediato, sem qualquer surpresa, saiu para o átrio, levantou o auscultador e disse com o mesmo tom ascendente de sempre, como se fosse uma pergunta:
- Tallis?
Ouviu-se a telefonista, a secretária de voz nasalada, uma pausa, as interferências de uma chamada interurbana e depois o tom inexpressivo de Jack.
- Minha querida. É mais tarde do que é costume. Peço-te muita desculpa.
Eram onze e meia. Mas ela não se importava, pois ele voltaria no fim-de-semana e um dia voltaria para casa para sempre, sem que uma única palavra amarga tivesse sido dita.
- Não faz mal - respondeu ela.
- É a revisão do orçamento da Defesa. Vai haver uma segunda versão. E depois há mais umas coisas...
- O rearmamento - disse ela para o tranquilizar.
- É isso mesmo.
- Toda a gente está contra isso.
- Aqui no gabinete não - retorquiu ele com uma pequena gargalhada.
- Eu também estou.
- Bem, minha querida. Espero convencer-te um dia.
- E eu a ti.
A conversa tinha um toque afectuoso, e a sua familiaridade era reconfortante. Como de costume, Jack perguntou-lhe como correra o dia. Emily falou-lhe do calor, do malogro da peça de Briony e da chegada de Leon com o amigo, ao qual se referiu dizendo:
- Está do teu lado. Mas quer mais soldados para poder vender ao governo mais barras de chocolate.
- Estou a ver. Rações de combate embrulhadas em papel de estanho.
Emily descreveu o jantar e o olhar estranho de Robbie.
- Achas mesmo que temos de o mandar para a faculdade de Medicina?
- Acho. É um acto de coragem. É típico dele. Sei que vai conseguir.
Depois contou-lhe como o jantar acabara com a carta dos gémeos e que tinham ido todos à procura deles.
- Bandidos. E afinal onde estavam?
- Não sei. Ainda estou à espera.
Seguiu-se um silêncio, entrecortado apenas por ruídos mecânicos distantes. Quando Jack voltou a falar já tinha tomado as suas decisões. O facto de se dirigir a ela pelo seu primeiro nome, algo de muito raro, era sinal de como o seu tom era sério.
- Vou desligar agora, Emily, porque vou chamar a polícia.
- Achas mesmo que é preciso? Quando chegarem cá...
- Se souberes alguma coisa, avisa-me imediatamente.
- Espera...
Ouviu um barulho e voltou-se. Leon estava a entrar pela porta principal. Atrás dele vinha Cecília, muda e transtornada. Depois entrou Briony, com um braço à volta dos ombros da prima. O rosto de Lola estava tão branco e rígido, como se fosse uma máscara de barro, que Emily, sem conseguir identificar nele qualquer expressão, temeu imediatamente o pior. Onde estariam os gémeos?
Leon atravessou o átrio na direcção dela, com a mão estendida para o telefone. Tinha as calças sujas de lama até aos joelhos. Lama - com o tempo tão seco... A sua respiração era ofegante e uma madeixa de cabelo oleoso caía-lhe sobre a cara. Tirou-lhe o auscultador da mão e voltou-se de costas.
- Pai? Sim. Acho que é melhor vir. Não, ainda não. Mas há pior. Não, não posso dizer-lhe agora. Se puder, venha esta noite. Vamos ter de os chamar. É melhor ser o pai.
Emily pôs a mão sobre o coração e deu alguns passos para trás, para o sítio onde Cecília e as raparigas estavam paradas. Leon tinha baixado a voz e segredava qualquer coisa para o auscultador, com a mão à volta da boca. Emily não conseguia ouvir nada, nem queria. Preferia ir para o quarto, mas Leon terminou o telefonema, pousou o auscultador e voltou-se para ela. Os seus olhos estavam semicerrados, com uma expressão dura, e Emily pensou que talvez houvesse neles um traço de raiva. Leon tentava respirar fundo e entreabriu os lábios num sorriso estranho e contrafeito.
- Vamos para a sala para podermos sentar-nos - disse ele.
Ela percebeu exactamente a intenção dele. Não lhe diria imediatamente, não queria que ela desmaiasse sobre os mosaicos e partisse a cabeça. Emily olhou fixamente para ele, mas sem se mexer.
- Venha, Emily.
Sentiu a mão do filho quente e pesada sobre o seu ombro e sentiu-a molhada através da seda do vestido. Indefesa, deixou-se guiar até à sala, com todo o seu terror concentrado no simples facto de ele querer que ela se sentasse antes de lhe dar a notícia.
13
Na meia hora seguinte, Briony cometeria o seu crime. Consciente de que partilhava a imensidão da noite com um louco, manteve-se perto das paredes sombrias da casa, baixando-se à altura do parapeito sempre que passava por uma janela iluminada. Sabia que ele se dirigiria para a estrada principal, porque era para aí que a irmã fora com Leon. Quando achou que já estava a uma distância segura, afastou-se corajosamente da casa, descrevendo um arco que a levou aos estábulos e à piscina. Claro que fazia sentido ver se os gémeos lá estavam, a brincar com as mangueiras ou a boiar de cara para baixo, mortos, finalmente indistinguíveis. Pensou em como descreveria a situação, a forma como eles oscilavam sob a ténue ondulação da água iluminada, os seus cabelos dispersos como ramos e os seus corpos vestidos a colidirem ao de leve e depois a afastarem-se. O ar seco da noite deslizava por entre o tecido do seu vestido e a sua pele. Sentia-se calma e ágil. Não havia nada que não pudesse descrever: as passadas leves de um louco que avançava pela estrada num percurso sinuoso, mas mantendo-se à distância para dissimular a sua aproximação. Mas o irmão estava com Cecília, e isso era menos uma preocupação. Também podia descrever aquele ar delicioso, as ervas que soltavam o doce cheiro do gado, a terra escaldante que guardava o calor do dia e exalava o cheiro mineral do barro e a brisa ténue que trazia do lago um aroma a verde e a prata.
Atravessou a relva a correr e sentiu que podia continuar assim toda a noite, através do ar sedoso, que conseguiria saltar para a frente com a terra seca do chão como mola e que a escuridão intensificava a sensação de velocidade. Tinha sonhos em que corria assim e depois se inclinava para a frente, abria os braços, se rendia à fé - a única parte difícil, mas, ainda assim, fácil num sonho - e voava a baixa altitude sobre sebes, portões e telhados, depois subia mais e pairava alegremente sob as nuvens, sobre os campos, mergulhando depois outra vez. Sentia agora como seria possível conseguir aquilo simplesmente através do desejo; o mundo através do qual corria amava-a e dar-lhe-ia o que ela queria e deixaria que acontecesse. E depois, quando acontecesse, ela descrevê-lo-ia. Escrever não era uma espécie de ascensão, uma forma possível de voar, de fantasiar, de imaginar?
Mas naquela noite havia também um louco, com um coração tenebroso e insatisfeito - já o frustrara uma vez - e precisava de manter os pés no chão para o descrever também a ele. Primeiro tinha de proteger a irmã, e depois de descobrir uma forma segura de o esconjurar através da escrita. Abrandou o passo e pensou como ele a odiaria por o ter interrompido na biblioteca. Embora isso a horrorizasse, tratava-se de uma nova entrada, de outra forma de se materializar, de outra estreia: ser odiada por um adulto. As crianças odiavam com generosidade e caprichosamente. Pouco importava. Mas ser objecto do ódio de um adulto era uma iniciação num mundo novo e solene. Era uma promoção. Ele podia ter voltado para trás e estar à espera dela, com intenções assassinas, junto dos estábulos. Mas ela tentava não ter medo. Aguentara o olhar dele na biblioteca, enquanto a irmã passava por ela sem nenhuma manifestação exterior de agradecimento pela sua libertação. Não se tratava de agradecimento, mas sim de recompensa. Em matéria de amor altruísta não era preciso dizer nada, e ela continuaria a proteger a irmã, mesmo que Cecília não reconhecesse a sua dívida. Além disso, não podia ter medo de Robbie naquele momento; era melhor deixá-lo tornar-se objecto do seu ódio e repulsa. A família Tallis só lhe proporcionara coisas agradáveis: a própria casa em que crescera, inúmeras viagens a França, a farda e os livros do liceu e depois Cambridge - e em troca ele utilizara uma palavra horrível contra a irmã dela e, num fantástico abuso de hospitalidade, tinha também utilizado a sua força contra ela e ainda se sentara insolentemente à mesa e fingira que tudo continuava igual. Que fingido! Como ansiava por desmascará-lo! A vida real, a sua vida que começava agora, enviara-lhe um vilão sob a forma de um velho amigo da família, com membros fortes e desajeitados e um rosto simpático mas grosseiro, que costumava andar com ela às cavalitas, nadar com ela no rio e segurá-la contra a corrente. Era isso - a verdade era estranha e ilusória. Era preciso lutar por ela, contra a corrente dos dias. Era exactamente aquilo que ninguém esperaria, mas a verdade é que os vilões não se faziam anunciar com assobios ou solilóquios, não apareciam envoltos em capas negras com uma expressão aterradora. Do outro lado da casa, no sentido oposto, caminhavam Leon e Cecília. Talvez ela estivesse a contar-lhe a história da agressão. Se assim fosse, ele teria o braço sobre os ombros dela. Os filhos dos Tallis unir-se-iam para correr com aquele brutamontes, para o expulsar das suas vidas. Teriam de obrigar o pai a ver a realidade e a mudar de opinião e reconfortá-lo da raiva e da desilusão que sentiria. O seu protegido era um louco! A palavra de Lola retirara o pó amontoado sobre outras palavras à volta dessa - homem, maluco, machado, ataque, acusação - e confirmado o diagnóstico.
Deu a volta aos estábulos e parou sob o arco da entrada, por baixo da torre do relógio. Chamou pelo nome dos gémeos, mas em resposta ouviu apenas a agitação e as pancadas das patas dos animais e o baque de um corpo pesado a chocar com as baias. Ainda bem que nunca se afeiçoara a nenhum cavalo ou pónei, porque de certeza que nesta fase da sua vida seria obrigada a negligenciá-lo. Não se aproximou dos animais, apesar de eles sentirem a sua presença. Para eles, havia um génio, um deus, na periferia do seu mundo, e estavam a tentar captar a sua atenção. Mas ela voltou-se e prosseguiu em direcção à piscina. Perguntou a si própria se ser responsável por alguém ou por algum animal, por exemplo um cavalo ou um cão, seria muito diferente da tumultuosa viagem interior da escrita. Preocupar-se mas protegendo-se, assumir o espírito de outra pessoa ao penetrar nele, assumir o papel dominante ao determinar o destino de outra pessoa - dificilmente poderia considerar-se tudo isso uma forma de liberdade mental. Talvez pudesse tornar-se uma daquelas mulheres - ora objecto de pena, ora de inveja - que decidem não ter filhos. Seguiu pelo caminho de tijolos que dava a volta aos estábulos. Tal como a terra, também eles irradiavam o calor armazenado ao longo do dia. Sentia esse calor na cara e nas pernas. Tropeçou ao tentar percorrer mais depressa a escuridão do túnel de bambu, e surgiu depois na geometria tranquilizadora das pedras do pavimento.
A iluminação subaquática da piscina, instalada nessa Primavera, ainda era uma novidade. O brilho azulado dava a tudo o que se encontrava à volta da piscina um aspecto incolor, lunar, como numa fotografia. Sobre a mesa de ferro estava um jarro de vidro, dois copos e um pano. Um terceiro copo com bocados de fruta mole estava pousado na ponta da prancha de saltos. Não havia corpos na água, nem risos vindos da escuridão da casa da piscina, nem pedidos de silêncio vindos das sombras da sebe de bambu.
Deu a volta à piscina lentamente, não para procurar, mas atraída pelo brilho e pela quietude da água. Mesmo tendo em conta a ameaça que o louco representava para a irmã, era delicioso poder estar lá fora tão tarde. Não acreditava que os gémeos estivessem em perigo. Mesmo que tivessem visto o mapa da zona, emoldurado na biblioteca, e tivessem inteligência suficiente para o interpretar, e decidissem sair da propriedade e passar a noite toda a caminhar para norte, teriam de ir pelo caminho entre o bosque e seguir a linha do caminho-de-ferro. Naquela altura do ano, quando as copas das árvores quase tapavam o caminho, este ficava mergulhado numa escuridão total. A única saída era pelo portão, em direcção ao rio. Mas também aí não haveria luz, nem maneira de descobrir o caminho ou de evitar os ramos suspensos sobre ele ou de fugir das urtigas que se acumulavam de ambos os lados. Não teriam coragem suficiente para se exporem ao perigo.
Os gémeos estavam em segurança, Cecília estava com Leon e ela podia andar livremente pela noite e pensar sobre o dia extraordinário que acabara. Ao afastar-se da piscina decidiu que a sua infância tinha acabado no momento em que rasgara o cartaz do teatro. Os contos de fadas tinham ficado para trás e, no espaço de algumas horas, presenciara mistérios, vira um mundo inenarrável, interrompera um comportamento brutal e, suscitando o ódio de um adulto em quem toda a gente confiava, tornara-se um dos intervenientes no drama da vida fora do quarto de brincar. Agora só precisava de descobrir as histórias, e não apenas os assuntos, e também uma forma de as contar que fizesse justiça à sua própria sabedoria. Ou deveria antes dizer a sua percepção mais sábia da sua própria ignorância?
O facto de ter ficado tanto tempo a olhar para a água levara-a a pensar no lago. Talvez os miúdos estivessem escondidos no templo da ilha. Era escuro, mas não demasiado distante da casa; era um local simpático, beneficiado pela presença da água e sem muitas sombras. Os outros talvez tivessem seguido para a ponte sem irem lá procurar. Decidiu seguir o caminho que tinha em mente e chegar ao lago dando a volta por detrás da casa.
Dois minutos depois atravessava os canteiros de rosas e o caminho de gravilha em frente da fonte do Tritão, cenário de outro mistério, obviamente prenunciador de acontecimentos brutais que ocorreriam mais tarde. Ao passar por ela, pareceu-lhe ouvir um pequeno grito e ver pelo canto do olho uma luz a acender e a apagar. Parou e esforçou-se por ouvir para além do gotejar da água. O grito e a luz tinham vindo dos bosques junto ao rio, a uns cem metros de distância. Briony caminhou nessa direcção durante meio minuto e depois voltou a parar para ouvir. Mas não havia nada, nada a não ser a massa escura das árvores, que só era visível contra o cinzento-azulado do céu. Depois de esperar algum tempo decidiu voltar para trás. Para chegar ao caminho por onde ia anteriormente teve de seguir na direcção da casa e do terraço, onde um candeeiro de parafina continuava a brilhar por entre copos, garrafas e um balde de gelo. As portas do terraço para a sala de estar continuavam abertas de par em par. Conseguia ver para dentro da sala e vislumbrou, sob a luz de um único candeeiro e parcialmente obscurecido pelo cortinado de veludo, um objecto cilíndrico num ângulo peculiar numa das extremidades do sofá. Só depois de percorrer mais alguns metros percebeu que estava a olhar para uma perna de um ser humano, de que não conseguia ver o resto do corpo. Aproximou-se ainda mais e percebeu as perspectivas; claro que era a perna da sua mãe, que devia estar à espera dos gémeos. Estava quase completamente tapada pela roupa e apoiada no outro joelho, e era daí que vinha o seu aspecto curioso, oblíquo, como em levitação.
Quando se aproximou de casa, Briony deslocou-se para uma janela à sua esquerda, para ficar fora do campo de visão de Emily. Estava demasiado longe da mãe para poder ver-lhe os olhos. Só conseguia distinguir o ângulo da maçã do rosto com a órbita. Briony tinha a certeza de que a mãe estava de olhos fechados. Tinha a cabeça inclinada para trás e as mãos entrelaçadas e pousadas no colo. O seu ombro direito subia e descia ligeiramente com a respiração. Briony não conseguia ver-lhe a boca, mas conhecia a sua curva descendente, que facilmente se confundia com o sinal - o hieróglifo - da reprovação. Mas não era verdade: a sua mãe era infinitamente meiga, doce e boa. Era triste vê-la ali sentada, sozinha, tão tarde, mas era ao mesmo tempo uma visão que dava prazer. Briony justificou um olhar pela janela com um espírito de despedida. A sua mãe tinha quarenta e seis anos, estava a ficar inelutavelmente velha. Qualquer dia morreria. Haveria um funeral na aldeia, no qual a atitude reticente e digna de Briony seria um sinal da imensidão da sua dor. Quando os seus amigos se aproximassem dela para sussurrar as suas condolências, sentir-se-iam apavorados com a dimensão da sua tragédia. Via-se de pé, sozinha, numa grande arena com uma torre central, e a ser observada não só pelas pessoas que conhecia, mas também por todas as que viria a conhecer, por todo o elenco da sua vida, reunido para lhe mostrar o seu amor naquele momento de perda. E no cemitério, no local que designavam por “canto dos avós”, ela, Leon e Cecília unir-se-iam num abraço interminável junto à nova pedra tumular, para a qual olhariam mais uma vez. Era uma cena que tinha de ser presenciada. Era a pena de todas aquelas pessoas que a emocionava.
Podia ter ido ter com a mãe naquele momento, ter-se aninhado junto dela e começado a fazer o resumo do seu dia. Se o tivesse feito, não teria cometido o crime. Tanta coisa não teria acontecido, nada teria acontecido, e a mão tranquilizadora do tempo teria fixado daquela noite apenas uma vaga recordação: a noite em que os gémeos tinham fugido. Teria sido em 1934, 35 ou 36? Mas, sem ser por nenhuma razão em especial, a não ser pela vaga obrigação da busca e pelo prazer de estar lá fora tão tarde, voltou a afastar-se e, ao fazê-lo, o seu ombro tocou numa das portas da varanda e fechou-a. O som foi agreste - pinho seco sobre madeira dura - e ecoou como uma reprimenda. Para ficar teria de se explicar e por isso preferiu fugir para a escuridão, atravessando em bicos de pés as pedras e as ervas aromáticas que cresciam no meio delas. Depois chegou ao relvado entre os canteiros de rosas, onde poderia correr sem ser ouvida. Passou para o lado da frente da casa, onde nessa tarde andara aos saltos sobre a gravilha escaldante.
Abrandou quando começou a descer a estrada em direcção à ponte. Estava de volta ao ponto de partida e certa de que ia ver ou ouvir os outros. Mas não havia lá ninguém. Os vultos negros das árvores espaçadas do parque fizeram-na hesitar. Havia alguém que a odiava, não devia esquecê-lo, e essa pessoa era imprevisível e violenta. Leon, Cecilia e Mr Marshall deviam estar já a grande distância. As árvores mais próximas, ou pelo menos os seus troncos, tinham uma forma humana. Ou podiam esconder alguém. Nem sequer conseguiria ver um homem que estivesse à frente do tronco de uma dessas árvores. Notou pela primeira vez a brisa que entrava pelas copas das árvores, e aquele som familiar inquietou-a. Os seus sentidos foram bombardeados por milhões de sinais de agitação distintos e precisos. Quando o vento subitamente se levantou e depois acalmou, o som afastou-se dela e viajou pelo jardim obscurecido como se fosse um ser vivo. Briony parou para pensar se teria coragem de continuar até à ponte, de a atravessar e de descer a encosta íngreme até ao templo da ilha, sobretudo tendo em conta que não havia muita coisa em jogo - apenas um pressentimento seu de que os miúdos podiam ter ido para lá. Ao contrário dos adultos, não levava nenhum archote. Ninguém esperava nada dela; afinal era uma criança aos olhos de todos. Os gémeos não estavam em perigo.
Ficou parada mais um ou dois minutos, não suficientemente assustada para voltar para trás nem suficientemente confiante para continuar. Podia voltar para junto da mãe e ficar a fazer-lhe companhia na sala. Podia ir por um caminho mais seguro, descer a rampa e depois voltar para trás antes de chegar ao bosque - dando na mesma a sensação de que estava empenhada em procurá-los. Então, precisamente por aquele dia lhe ter provado que já não era uma criança, e que era agora um dos elementos de uma história mais rica e tinha de mostrar que merecia sê-lo, obrigou-se a continuar e a passar a ponte. Amplificado pelo arco em pedra, chegou até ela o som da brisa a varrer a sebe e um súbito bater de asas contra a água, que parou logo a seguir. Eram sons do quotidiano, que a escuridão intensificava. E a escuridão não era nada - não era uma substância, não era uma presença, era apenas a ausência de luz. A ponte levava apenas a uma ilha artificial num lago artificial. Estava ali há quase duzentos anos, e o seu isolamento distinguia-a do resto da propriedade. Pertencia-lhe mais a ela do que a qualquer outra pessoa. Era a única pessoa que lá ia. Para os outros, não passava de um corredor de acesso à casa, de uma ponte entre pontes, de um ornamento que, de tão familiar, era quase invisível. Hardman ia lá com o filho duas vezes por ano aparar a relva à volta do templo. Alguns vagabundos tinham ido até lá. Por vezes, alguns patos migratórios paravam na pequena margem relvada. Tirando isso, era um reino isolado de coelhos, aves aquáticas e ratazanas de água.
Por tudo isto, devia ter sido fácil descer a margem e atravessar a relva até chegar ao templo. No entanto, mais uma vez, hesitou e limitou-se a olhar, sem sequer chamar pelos gémeos. A palidez indistinta do edifício tremeluzia no escuro. Quando olhou para ele, dissolveu-se completamente. Estava a uns trinta metros de distância, mas mais perto, no meio de uma faixa relvada, estava um arbusto de que não se lembrava. Ou melhor, lembrava-se de ele estar mais perto da margem. As árvores, pelo menos o que via delas, também não pareciam iguais. O carvalho estava demasiado nodoso, o olmo demasiado emaranhado, o que os fazia parecer unidos nessa estranheza. Quando esticou a mão para se apoiar no parapeito da ponte, um pato surpreendeu-a com um grito alto e desagradável, quase humano no seu tom aspirado e descendente. Era obviamente a inclinação da margem que a retinha, a ideia da descida e o facto de não valer muito a pena. Mas tinha tomado uma decisão. Desceu de costas, segurando-se a pequenos tufos de relva e, ao chegar ao fim, parou apenas para limpar as mãos ao vestido.
Tomou a direcção do templo. Tinha dado uns sete ou oito passos e estava prestes a chamar pelos gémeos quando o arbusto que estava directamente à sua frente - o que ela pensava que ficava mais perto da margem - começou a abrir-se, ou a dobrar-se, ou a agitar-se e depois a bifurcar-se. Estava a mudar estranhamente de forma, estreitando na base ao mesmo tempo que a partir dele se erguia uma coluna de mais de um metro e meio. Briony teria parado imediatamente se não estivesse ainda tão agarrada à ideia de que se tratava de um arbusto e de que estava a presenciar um truque da escuridão e da perspectiva. Mais um ou dois segundos, mais uns passos, e viu que não era verdade. Então parou. A forma vertical era uma figura humana, uma pessoa, que se afastava dela e começava a desaparecer no fundo mais escuro das árvores. A mancha mais escura que ficara no chão também era de uma pessoa, que mudou de forma ao sentar-se e chamar pelo nome dela.
- Briony?
Apercebeu-se do desamparo na voz de Lola - era o som que ela pensava ter partido de um pato - e, num instante, percebeu tudo. Sentia-se nauseada pela repulsa e pelo medo. Depois a figura maior reapareceu, contornou a clareira pelo lado direito e dirigiu-se para a margem de onde Briony acabara de vir. Sabia que tinha de cuidar de Lola, mas não conseguia deixar de vê-lo subir a encosta, rapidamente e sem esforço, e desaparecer em direcção à estrada. Ouviu os passos dele a caminhar para casa. Não tinha qualquer dúvida. Conseguia descrevê-lo. Não havia nada que não pudesse descrever. Ajoelhou-se ao lado da prima.
- Estás bem, Lola?
Tocou-lhe no ombro e estendeu a mão para ela, mas infrutiferamente. Lola estava sentada voltada para a frente, com os braços cruzados sobre o peito, a abraçar-se e a balançar ligeiramente. A sua voz pareceu-lhe frágil e distorcida, como se fosse retida por qualquer coisa como uma bolha ou uma acumulação de muco na garganta. Precisava de pigarrear.
- Desculpa, eu não... desculpa... - disse ela vagamente.
- Quem era? - sussurrou Briony, mas, antes que a resposta pudesse ser dada, acrescentou com toda a calma que conseguiu reunir. - Eu vi-o. Vi-o mesmo.
- Sim - disse Lola com resignação.
Pela segunda vez nessa noite sentiu um assomo de ternura pela prima. Enfrentavam juntas verdadeiros horrores. Estavam perto uma da outra. Briony estava de joelhos, a tentar pôr os braços à volta de Lola e puxá-la para si, mas o corpo da prima era magro e não cedia, fortemente fechado sobre si próprio como uma concha. Um molusco. Lola estava abraçada a si própria e a balançar.
- Foi ele, não foi? - disse Briony.
Sentiu contra o peito, mais do que viu, o movimento de cabeça da prima, lento e pensativo. Talvez fosse cansaço.
Passados alguns segundos, Lola disse no mesmo tom débil e submisso:
- Sim. Era ele.
Briony sentiu um vontade súbita de dizer o nome dele. Para selar o crime, para o encerrar com a maldição da vítima, traçar o destino dele com a magia de um nome.
- Lola - sussurrou ela, sem poder negar a estranha exaltação que sentia. - Lola. Quem era?
A jovem parou de balançar. A ilha ficou profundamente imóvel. Sem mudar propriamente de posição, Lola pareceu mexer-se, mover os ombros, como se estivesse a encolhê-los ou a voltá-los para se libertar do contacto complacente de Briony. Voltou a cara de lado e olhou para longe, para o vazio onde estaria o lago. Podia ter estado prestes a falar, podia ter estado prestes a fazer uma longa confissão, durante a qual iria descobrindo os seus sentimentos e se arrastaria para fora daquele imobilismo e para dentro de algo mais parecido com terror e alegria. Voltar-se de lado pode bem ter sido não uma forma de distanciamento, mas um acto de intimidade, uma forma de se recompor para começar a falar dos seus sentimentos à única pessoa em quem achava que podia confiar, ali, naquele local tão distante de casa. Talvez já tivesse recuperado o fôlego e começado a entreabrir os lábios. Mas não interessava, porque Briony estava prestes a interrompê-la, e a oportunidade perder-se-ia. Tinham passado tantos segundos —trinta?, quarenta e cinco? -, mas a rapariga mais nova não conseguia conter-se mais. Tudo batia certo. Fora ela a descobrir. Era a sua história, a que estava a ser escrita à sua volta.
- Foi o Robbie, não foi?
O louco. Tinha vontade de dizer a palavra. Lola não disse nada nem se mexeu. Briony voltou a dizer o nome, mas agora sem o tom de interrogação. Era uma afirmação.
- Foi o Robbie.
Embora Lola não se tivesse voltado, nem sequer mexido, era visível que algo se alterava nela. Havia um calor a erguer-se da sua pele, uma convulsão do músculo da sua garganta, audível como se se tratasse de uma série de estalidos nervosos.
- O Robbie - disse de novo Briony. Simplesmente.
Vindo de longe, do lago, chegou até elas o som cheio, redondo, de um peixe a saltar, um som preciso e solitário, pois a brisa desaparecera completamente. Agora já não havia nada de assustador nas copas das árvores ou entre as sebes. Finalmente, Lola voltou-se devagar para olhar para ela e disse:
- Tu viste-o.
- Como é que ele se atreveu! - exclamou Briony com um gemido. - Como é que teve coragem?
Lola pousou a mão sobre o braço despido e apertou-o com força.
- Tu viste-o - disse ela em voz baixa, espaçando muito as palavras.
Briony aproximou-se mais dela e pousou a sua mão sobre a de Lola.
- E nem sequer sabes o que aconteceu na biblioteca antes do jantar, depois de termos estado a conversar. Ele atacou a minha irmã. Se eu não tivesse entrado, não sei o que ele teria feito...
Apesar de estarem muito perto uma da outra, não era possível ler a expressão dos seus rostos. O disco escuro da cara de Lola não mostrava rigorosamente nada, mas Briony sentiu que ela não estava a ouvi-la completamente, o que foi confirmado quando ela a interrompeu para repetir:
- Mas tu viste-o. Viste-o mesmo.
- É evidente que vi. Claro como água. Era ele.
Apesar do calor da noite, Lola começava a tremer de frio e Briony tentou pensar qual a peça de roupa que poderia tirar para pôr sobre os ombros da prima.
- Veio por detrás de mim, estás a ver? - disse Lola. - Atirou-me ao chão... e depois... empurrou-me a cabeça para trás e tapou-me os olhos com a mão. Não consegui, não fui capaz...
- Oh, Lola - Briony estendeu a mão para tocar no rosto da prima e descobrir a sua face. Estava seca, mas não continuaria assim por muito tempo, tinha a certeza. - Ouve. Eu não ia confundi-lo com outra pessoa. Conheço-o desde que nasci. Eu vi-o.
- É que eu não tive a certeza. Achei que podia ser ele, pela voz.
- O que é que ele disse?
- Nada. Quer dizer, foi o som da voz dele, a respirar, os barulhos. Mas não consegui ver. Não sei dizer ao certo.
- Bem, eu sei. E vou dizer.
Foi assim, naquele momento, junto ao lago, que foram estabelecidas as suas posições respectivas, que encontrariam expressão pública nas semanas e meses seguintes, e depois seriam perseguidas em privado, como demónios, durante muitos anos, com a certeza de Briony a impor-se sempre que a prima parecia duvidar. A partir daí nunca mais ninguém exigiu muito de Lola, pois ela conseguia refugiar-se por detrás de uma expressão de confusão ferida e, como doente dilecta, vítima em recuperação, filha abandonada, deixava-se inundar pelas preocupações e pela culpa dos adultos presentes na sua vida. Como foi possível termos deixado que isto acontecesse a uma criança? Lola não podia ajudá-los, nem precisava de o fazer. Briony deu-lhe uma oportunidade, e ela aproveitou-a instintivamente - ou menos ainda, apenas deixou que ela a envolvesse. Pouco mais podia fazer do que ficar em silêncio perante o zelo da sua prima. Lola não precisava de mentir, de olhar de frente para o seu suposto agressor, nem de reunir a coragem necessária para o acusar, porque tudo isso era feito, de forma inocente e sem manhas, por Briony. Lola apenas tinha de manter o silêncio em relação à verdade, bani-la, esquecê-la completamente e convencer-se não de uma história contrária, mas apenas da sua própria incerteza. Não podia dizer, ele tinha a mão por cima dos olhos dela, estava aterrorizada, não sabia ao certo.
Briony estava lá para a ajudar em todas as fases. Para ela, tudo batia certo; o terrível presente preenchia o passado recente. Factos que ela própria presenciara anunciavam a calamidade que acontecera à prima. Se ao menos ela, Briony, tivesse sido menos inocente, menos estúpida. Via agora que o caso era demasiado consistente, demasiado simétrico para poder ser outra coisa que não o que ela tinha dito que era. Acusava-se pela sua suposição infantil de que Robbie limitaria as suas atenções a Cecília. Onde é que ela tinha a cabeça? Afinal ele era louco. Qualquer uma serviria. E era forçoso que escolhesse a mais vulnerável - uma trinca-espinhas, que andava às cegas num sítio desconhecido, com a coragem de dar a volta ao templo da ilha à procura dos irmãos. Tal como Briony estivera prestes a fazer. O facto de ter facilmente podido ser ela a vítima aumentava a sua afronta e determinação. Se a sua pobre prima não conseguia dominar a verdade, Briony fá-lo-ia por ela. Eu sei. E vou dizer.
Logo na semana seguinte, a superfície acetinada da convicção começava a mostrar pequeníssimas fissuras. Sempre que Briony tomava consciência delas, o que não acontecia com frequência, era arrastada, com uma ligeira sensação de aperto no estômago, para a ideia de que aquilo que sabia não se baseava literalmente, ou apenas, no que era visível. Não eram só os seus olhos que lhe diziam a verdade. Estava demasiado escuro para isso. Mesmo o rosto de Lola, a menos de meio metro de distância, era uma oval vazia, e a outra figura não só estava a vários metros de Briony como se tinha voltado de costas para ela ao contornar a clareira. Mas não só a figura não era invisível, como a sua estatura e forma de andar lhe eram familiares. Os seus olhos confirmavam tudo o que ela sabia e todas as suas experiências recentes. A verdade estava na simetria, ou seja, baseava-se no senso comum. Era a verdade que transmitia as instruções aos seus olhos. Por isso, quando dizia vezes sem conta Vi-o, era mesmo isso que queria dizer, e estava a ser perfeitamente honesta e também veemente. O que queria dizer era bastante mais complexo do que aquilo que todos os outros tão avidamente queriam ouvir, e os seus momentos de constrangimento resultavam de por vezes não conseguir exprimir essas nuances. Nem sequer tentava honestamente. Não tinha oportunidade, nem tempo, nem autorização. Ao fim de poucos dias, não, ao fim de poucas horas já o processo se estava a desenrolar rapidamente e fora do seu controlo. As suas palavras fizeram vir terríveis forças da autoridade da cidade mais próxima. Era como se essas forças, esses agentes fardados, estivessem à espera, por detrás das fachadas de belos edifícios, que acontecesse alguma catástrofe. Sabiam o que pensavam, o que queriam e como proceder. Interrogavam-na vezes sem conta e, à medida que se ia repetindo, ia sentindo o peso cada vez maior da consistência sobre os seus ombros. Tinha de dizer de novo o que já dissera. Qualquer desvio, por pequeno que fosse, fazia que uma testa inteligente se franzisse ou alguém se mostrasse frio e lhe retirasse o apoio. Estava ansiosa por agradar e aprendeu rapidamente que quaisquer reservas que levantasse prejudicariam um processo que ela própria pusera em marcha. Parecia uma noiva que começa a sentir-se apreensiva à medida que o dia se vai aproximando, mas não ousava dizer o que ia na mente por tantos preparativos estarem já a ser feitos. A felicidade e gentileza de tantas pessoas boas seriam postas em risco. São momentos passageiros de inquietação privada, que só passam se ela se abandonar à alegria e excitação que reina à sua volta. Não era possível que tantas pessoas honestas estivessem enganadas, e já lhe tinham dito que era normal ter aquele tipo de dúvidas. Briony não queria deitar todo o processo a perder. Achava que não teria coragem, depois da sua certeza inicial e de dois ou três dias de interrogatórios pacientes e amáveis, de retirar o seu testemunho. No entanto, gostaria de rectificar, ou complicar, a utilização da palavra “vi”. Era menos ver e mais saber. Depois deixaria aos seus interrogadores a tarefa de decidirem se continuariam com base naquele tipo de visão. Quando ela hesitava, mostravam-se impassíveis e relembravam-lhe com firmeza os seus depoimentos anteriores. Seria afinal uma tola que tinha feito toda a gente perder tempo - era o que a expressão deles sugeria. E tinham uma visão austera das condições de visibilidade. Determinou-se que havia luz suficiente das estrelas e do banco de nuvens que reflectia as luzes da cidade mais próxima. Ou tinha visto, ou não tinha visto. Não havia uma terceira hipótese entre essas duas; não o diziam textualmente, mas era isso que a sua brusquidão dava a entender. Era nesses momentos, em que sentia a frieza deles, que apelava à sua antiga veemência e voltava a dizer o mesmo. Vi-o. Sei que era ele. Além disso, era reconfortante sentir que confirmava o que eles já sabiam. A ideia de que estava a ser pressionada também não podia servir-lhe de consolação. Nunca o fora. Fora ela que tinha criado a sua própria armadilha, que avançara para o labirinto da sua própria construção, e era demasiado nova, estava demasiado assustada e tinha demasiada vontade de agradar para insistir em voltar para trás. Não fora dotada com essa independência de espírito, nem tão-pouco tinha idade suficiente para a possuir. As suas certezas iniciais tinham reunido em torno de si uma forte congregação que continuava à espera, e ela não podia desapontá-los no altar. As suas dúvidas só poderiam ser neutralizadas se ela fosse mais ao fundo. Se se agarrasse com mais força ao que acreditava que sabia, se limitasse os seus pensamentos, reiterasse os seus depoimentos, conseguiria afastar da sua mente o mal que só indistintamente sentia que estava a fazer. Quando o assunto fosse encerrado e a congregação se dispersasse, um esquecimento impiedoso, um apagamento obstinado protegê-la-ia ao longo da adolescência.
“Eu sei. E vou dizer.”
Ficaram sentadas em silêncio durante algum tempo, e Lola começou a tremer menos. Briony achava que devia levar a prima para casa, mas sentia relutância em quebrar imediatamente aquela proximidade - tinha os braços à volta da prima, que parecia agora render-se ao apoio de Briony. Viam muito para lá do lago um ponto luminoso a mover-se, um archote a ser transportado pela estrada, mas não comentaram o facto. Quando finalmente Lola falou, fê-lo num tom pensativo, como se sopesasse correntes subtis de contra-argumentos.
- Mas não faz sentido. Ele é tão amigo da vossa família. Pode não ter sido ele.
- Não dirias isso se tivesses ido comigo à biblioteca - murmurou Briony.
Lola suspirou e abanou lentamente a cabeça, como se estivesse a tentar reconciliar-se com aquela verdade inaceitável.
Ficaram outra vez em silêncio e poderiam até ter permanecido ali sentadas durante mais tempo se não fosse a humidade - ainda não era propriamente orvalho -, que começava a acumular-se sobre a relva, com as nuvens que iam aumentando e a temperatura que descia.
- Achas que consegues andar? - perguntou Briony à prima, que respondeu com um enérgico movimento de cabeça. Briony ajudou-a a levantar-se e, primeiro de braço dado e depois com o peso de Lola sobre o ombro da mais nova, atravessaram a clareira em direcção à ponte. Chegaram ao fim da encosta, e foi nesse momento que Lola começou finalmente a chorar.
- Não consigo subir - disse ela, ao fim de muitas tentativas. - Estou demasiado fraca.
Briony pensou que seria melhor ir a correr a casa pedir ajuda. No momento em que ia explicar isso a Lola e sentá-la no chão ouviram vozes vindas do caminho lá de cima e depois viram um archote na sua direcção. Era um milagre, pensou Briony, quando ouviu a voz do irmão. Como verdadeiro herói, desceu a encosta com facilidade e, sem sequer perguntar o que acontecera, pegou em Lola como se ela fosse uma criança. Cecília estava a chamá-los, com um tom de voz rouca de preocupação. Ninguém lhe respondeu. Leon já ia a subir a rampa com uma ligeireza que tornava difícil acertar o passo com o dele. Mesmo assim, ainda antes de chegarem à estrada, ainda antes de ele poder pôr Lola no chão, já Briony tinha começado a contar-lhe o que acontecera, exactamente como ela vira.
14
A sua lembrança dos interrogatórios, dos depoimentos assinados, do seu temor à porta da sala de audiências, da qual a sua idade a excluía, não a incomodaria tanto nos anos seguintes como a recordação fragmentada dessa noite de Verão. Como a culpa refinava os métodos da autotortura, passando as contas do pormenor num elo interminável, um rosário que teria de ser desfiado ao longo de toda uma vida.
Quando finalmente regressou a casa teve início um tempo onírico de expressões lúgubres, lágrimas, vozes abafadas e passos urgentes no átrio, com a sua própria excitação perversa a afastar a sua sonolência. Claro que Briony já era suficientemente crescida para saber que aquele momento pertencia inteiramente a Lola, que, no entanto, passado pouco tempo, foi conduzida por mãos femininas compassivas até ao seu quarto para esperar que o médico chegasse para a observar. Briony ficou ao fundo das escadas a ver Lola subir para o quarto, a soluçar alto, acompanhada por Emily e Betty e seguida por Polly, que levava uma bacia e toalhas. O afastamento da prima deixou o palco a Briony - ainda não havia sinais de Robbie - e a forma como a escutavam e lhe davam a palavra, e as atenções que tinham com ela pareciam de acordo com a sua nova maturidade.
Deve ter sido mais ou menos por esta altura que um Humber parou à porta de casa e dele saíram dois inspectores da polícia e dois guardas. Briony era a sua única fonte, e controlou-se de forma a falar calmamente. A preponderância do seu papel fomentava a sua certeza. Isto aconteceu antes dos interrogatórios formais, num tempo ainda não estruturado, com Briony a falar com os agentes no átrio, tendo de um dos lados Leon e do outro a mãe. Mas como é que a sua mãe, se estava à beira da cabeceira de Lola, se tinha materializado ali tão rapidamente? O inspector principal tinha uma expressão pesada, com muitas cicatrizes, como se o seu rosto tivesse sido esculpido em granito. Briony estava com medo dele enquanto contava a sua história àquela máscara atenta e imóvel; mas, ao mesmo tempo, sentia um peso sair de cima de si e uma sensação dócil espalhar-se desde o estômago aos membros. Era como se fosse amor, um amor súbito por aquele homem incondicionalmente atento ao lado do bem, que se dispunha a trabalhar a qualquer hora para lutar por ele e tinha a apoiá-lo toda a sabedoria e todos os poderes humanos que existiam. Sob o seu olhar neutro, Briony sentiu a garganta presa e a voz vacilante. Queria que o inspector a abraçasse, a reconfortasse e lhe perdoasse, mesmo estando ela inocente. Mas ele limitava-se a olhar para ela e a ouvi-la. Foi ele. Eu vi-o. As suas lágrimas eram uma prova adicional da verdade que sentia e dizia e, quando sentiu a mão da mãe a acariciar-lhe a nuca, começou a chorar convulsivamente e teve de ser levada para a sala de estar.
Mas, se estava ali no sofá a ser consolada pela mãe, como era possível lembrar-se da chegada do Dr. McLaren, de colete preto e com uma antiquada camisa de colarinhos altos, e ainda com a mala à Gladstone que fora testemunha de três partos e de todas as doenças da infância na casa dos Tallis? Leon trocou algumas palavras com o médico, chegando-se a ele para quase lhe segredar um resumo masculino dos acontecimentos. Que era feito da habitual despreocupação de Leon? Aquela conversa em voz baixa foi paradigmática das horas que se seguiriam. Todas as pessoas eram informadas daquela maneira ao chegar. A polícia, o médico, os membros da família, os criados formavam núcleos que depois se dissipavam e voltavam a formar pelos cantos das salas, pelo átrio e no terraço. Nada era dito ou formulado em público. Toda a gente conhecia o facto terrível da violação, mas ela continuava a ser um segredo para todos, apenas partilhada em sussurros entre grupos instáveis, que, atribuindo-se uma importância que talvez não tivessem, se desagregavam e se ocupavam de outros assuntos. Eventualmente ainda mais grave era a questão dos gémeos desaparecidos. Mas a opinião generalizada, constantemente reiterada como uma palavra mágica, era que eles estavam bem e a dormir algures no jardim, o que fazia que as atenções se concentrassem sobretudo na situação difícil da jovem que se encontrava no andar de cima.
Paul Marshall regressou da sua participação na busca e a notícia foi-lhe comunicada pelos inspectores. Andou com eles de um lado para o outro do terraço e ofereceu-lhes cigarros de uma cigarreira de ouro. Quando acabaram de conversar, deu uma palmada no ombro do mais velho, como se os mandasse prosseguir o seu trabalho. Depois entrou e foi conversar com Emily Tallis. Leon acompanhou o médico, que desceu passado algum tempo, algo presunçoso, se bem que de uma forma não palpável, pelo seu encontro profissional com o cerne de todas as preocupações. Também ele teve uma longa conversa com os dois homens à civil, com Leon e, por fim, com Leon e Mrs Tallis. Pouco antes de partir, o médico pôs a sua mão familiar sobre a testa de Briony, apalpou-lhe o pulso e mostrou-se satisfeito. Pegou na mala, mas antes de se ir embora ainda teve uma última conversa em surdina junto à porta da entrada.
Onde estava Cecília? Na periferia, sem falar com ninguém, sempre a fumar, levando o cigarro aos lábios com um movimento rápido e ávido e retirando-o com um ar agitado e enojado. Noutras alturas torcia um lenço nas mãos enquanto andava de um lado para o outro do átrio. Em condições normais, teria sido ela a controlar uma situação como aquela, orientando os cuidados prestados a Lola, tranquilizando a mãe, registando os conselhos do médico e conversando com Leon. Briony estava perto dela quando Leon foi falar com Cecília, que se voltou, sem conseguir ajudar nem sequer falar. Quanto à mãe deles, ao contrário do que seria de esperar, esteve à altura da crise, sem enxaquecas e sem necessidade de estar sozinha. Aliás, foi-se mostrando mais forte à medida que a filha mais velha se ia anulando na sua infelicidade. Havia alturas em que Briony, de novo instada a apresentar a sua versão dos acontecimentos ou qualquer pormenor em particular, via a irmã aproximar-se de forma a poder ouvir e ficar a olhar para ela com uma expressão impenetrável e como que em combustão lenta. Briony começou a sentir-se nervosa com a presença dela e a manter-se perto da mãe. Os olhos de Cecília estavam injectados de sangue. Enquanto os outros murmuravam em grupos, ela deslocava-se agitadamente pela sala, ou de uma sala para outra ou ainda, como aconteceu pelo menos duas vezes, saía pela porta da frente. Mudava nervosamente o lenço de uma mão para a outra, enrolava-o entre os dedos, desenrolava-o, apertava-o numa bola, punha-o na outra mão, acendia mais um cigarro. Quando Betty e Polly trouxeram chá, Cecília nem lhe tocou.
Alguém disse que Lola adormecera finalmente, sedada pelo médico, e essa notícia provocou um alívio temporário. Toda a gente estava reunida na sala de estar, o que era invulgar, a tomar chá num silêncio exausto. Ninguém o disse, mas estavam à espera de Robbie. Também Mr Tallis devia chegar de Londres a qualquer momento. Leon e Marshall estavam debruçados sobre um mapa da região que desenhavam para ajudar o inspector. Ele pegou nele, observou-o e passou-o ao ajudante. Os dois guardas tinham ido ajudar a procurar Pierrot e Jackson, e esperavam-se ainda mais polícias para irem à casa de madeira, para o caso de Robbie ter ido para lá. Cecília estava sentada à parte, no banco do cravo. A dado momento levantou-se para ir pedir um isqueiro ao irmão, mas foi o inspector que lhe deu lume. Marshall também estava distanciado dos outros. Briony estava no sofá, ao lado da mãe, e Betty e Polly iam servindo o chá. Briony não se lembrava do que a levara a agir. Sentiu, vinda não sabia de onde, uma ideia muito clara e persuasiva, e não precisou de anunciar as suas intenções nem de pedir autorização à irmã. Um reforço das provas, independente da sua versão. Confirmação. Ou até um outro crime. Espantou toda a sala com o seu súbito rasgo de inspiração e quase deitou ao chão a chávena de chá da mãe ao levantar-se.
Todos a viram sair apressadamente da sala, mas ninguém lhe perguntou nada, tal era o cansaço geral. Briony, por seu lado, subiu a escada a dois e dois, cheia de energia pelo seu sentimento do dever e de fazer bem, prestes a fazer uma surpresa que só lhe podia granjear elogios. Era uma sensação bastante parecida com a das manhãs do dia de Natal, quando uma pessoa vai dar um presente que sabe que vai causar grande prazer - um sentimento alegre de amor-próprio inatacável.
Atravessou rapidamente o corredor do segundo andar em direcção ao quarto de Cecília. A penúria e desordem em que a sua irmã vivia! As duas portas do guarda-fatos estavam abertas de par em par. Havia vários vestidos quase a cair dos cabides. No chão estavam amontoados dois vestidos de seda caros, um preto e outro cor-de-rosa, e à sua volta alguns sapatos, de qualquer maneira. Briony passou por cima daquela confusão para chegar à mesa de cabeceira. Que impulso levaria a irmã a não pôr as tampas nos frascos de perfume e nas caixas de maquilhagem? Por que razão nunca despejava o cinzeiro malcheiroso? E o que a impedia de fazer a cama e de abrir a janela para deixar entrar o ar? A primeira gaveta que tentou abrir só se deslocou alguns centímetros - estava presa, cheia de garrafas e uma embalagem de cartão. Cecília podia ser dez anos mais velha do que ela, mas havia nela um certo abandono e desespero. Apesar do temor que lhe causava o olhar feroz que vira na irmã no andar de baixo, pensou, ao abrir outra gaveta, que estava a agir bem, que devia apoiá-la e pensar com clareza, já que ela não conseguia fazê-lo.
Passados cinco minutos, quando tornou a entrar, triunfante, na sala, ninguém lhe prestou atenção. Tudo continuava na mesma - um grupo de adultos cansados, infelizes, a beberem chá e a fumarem em silêncio. Com a excitação, não pensou a quem deveria dar a carta; imaginara toda a gente a lê-la ao mesmo tempo. Decidiu que seria para Leon. Atravessou a sala em direcção ao irmão, mas, quando chegou à frente dos três homens, mudou de ideias e depositou o papel dobrado nas mãos do polícia com um rosto granítico. Caso esse rosto ostentasse qualquer expressão, ela não se alterou quando ele pegou na carta, nem quando a leu, o que fez muito rapidamente, quase num relance. Olhou-a nos olhos e depois olhou para Cecília, que tinha a cara voltada de lado. Com um movimento discretíssimo do pulso, fez sinal ao outro polícia para que pegasse na carta. Quando este acabou de a ler passou-a a Leon, que a leu, a dobrou e a devolveu ao inspector mais velho. Briony estava impressionada pelo mutismo da reacção - os três homens não tinham proferido uma única palavra. Só nesse momento é que Emily Tallis reparou no motivo do seu interesse. Em resposta à sua pergunta distante, Leon respondeu:
- É apenas uma carta.
- Dá-ma para eu ler.
Pela segunda vez nessa noite, Emily era obrigada a afirmar os seus direitos sobre uma mensagem escrita que circulava pela sua casa. Sentindo que não precisavam de mais nada dela, Briony foi sentar-se no sofá e observou, da perspectiva da mãe, o embaraço cavalheiresco que reinava entre Leon e os polícias.
- Dá-ma para eu ler.
Sinistramente, manteve o mesmo tom. Leon encolheu os ombros e fez um sorriso apologético forçado - que objecção poderia ele levantar? - e o olhar suave de Emily concentrou-se nos dois inspectores. Pertencia a uma geração que tratava os polícias como subalternos, fosse qual fosse a sua patente. Obedecendo a um aceno de cabeça do seu superior, o inspector mais novo atravessou a sala e entregou-lhe a carta. Cecília, que devia estar muito longe dali, perdida nos seus pensamentos, interessou-se finalmente pelo que estava a acontecer. Ao ver a carta no colo da mãe, levantou-se e dirigiu-se para eles.
- Como se atrevem! Como se atrevem a isto? Leon também se levantou e fez-lhe um gesto com as palmas das mãos para que se acalmasse.
Quando tentava tirar a carta à mãe, Cecília encontrou no seu caminho não apenas o irmão, mas também os dois polícias. Marshall também estava de pé, mas sem interferir.
- Isso é meu - gritou ela. - Não têm o direito!
Emily nem sequer interrompeu a leitura. Aliás, leu a carta várias vezes. Quando acabou, enfrentou a fúria da filha mostrando-se mais fria.
- Se tivesses agido bem, minha menina tão bem-educada, terias vindo dar-me isto, e talvez pudéssemos ter feito alguma coisa a tempo de poupar a tua prima ao pesadelo que viveu.
Por momentos, Cecília ficou sozinha no centro da sala, a agitar os dedos da mão direita, a olhar fixamente para cada um deles, sem conseguir acreditar na sua ligação com aquela gente, sem conseguir começar a contar-lhes o que sabia. Embora Briony se sentisse vingada pela reacção dos adultos e experimentasse o despertar de um doce êxtase, também estava satisfeita por estar no sofá ao pé da mãe, parcialmente protegida do olhar de desprezo da irmã pelos homens que se encontravam de pé. Esta fitou-os durante alguns segundos e depois voltou-se e saiu da sala. Quando atravessava o átrio teve um grito de vexame, que foi amplificado pela acústica agreste dos mosaicos desguarnecidos. Na sala houve uma sensação de alívio, quase de descontracção, quando se ouviram os passos de Cecília a subir a escada. Quando Briony se lembrou de tornar a olhar, a carta estava na mão de Marshall, que a passava ao inspector. Este colocou-a ainda dobrada numa pasta que o polícia mais novo abria à frente dele.
As horas foram passando, sem que ela se sentisse cansada. Ninguém se lembrou de a mandar para a cama. Algum tempo - não sabia ao certo quanto - depois de Cecília ter ido para o quarto, Briony foi com a mãe para a biblioteca para ter a primeira entrevista formal com a polícia. Mrs Tallis ficou de pé, Briony sentou-se de um dos lados da secretária e os inspectores do outro. O que tinha o rosto granítico, que era o que fazia as perguntas, era afinal um homem extremamente amável, que fazia as suas perguntas com calma e com uma voz grossa, ao mesmo tempo gentil e triste. Como ela disse poder mostrar-lhes o local exacto onde Robbie atacara Cecília, dirigiram-se todos para esse canto das prateleiras para o observarem mais de perto. Briony abriu caminho entre eles, de costas para os livros, para lhes mostrar a posição em que a irmã estava e viu nessa altura as primeiras manchas azuladas do amanhecer nas vidraças das janelas altas da biblioteca. Depois voltou-se para demonstrar a atitude do agressor e mostrar onde ela própria tinha ficado.
- Mas porque não me disseste? - perguntou Emily. Os polícias olharam para Briony e ficaram à espera.
Era uma boa pergunta, mas nem lhe passaria pela cabeça preocupar a mãe. O resultado disso só podia ser uma dor de cabeça.
- Chamaram-nos para jantar, e depois os gémeos fugiram.
Explicou de que forma a carta lhe chegara às mãos, na ponte, ao anoitecer. O que a levara a abri-la? Era difícil descrever esse momento impulsivo em que não se permitira pensar antes de agir, ou explicar que a escritora em que se transformara nesse mesmo dia precisava de saber, de compreender tudo aquilo que vinha ao seu encontro.
- Não sei - disse ela. - Fui terrivelmente curiosa. Odiei-me pelo que fiz.
Foi mais ou menos nessa altura que um polícia apareceu à porta para dar uma notícia que parecia em uníssono com as outras calamidades do dia. O carro oficial, que o ministro amavelmente disponibilizara, tinha-se avariado nos arredores. Jack Tallis estava a dormir no banco de trás, em cima de um tapete, e teria provavelmente de apanhar o primeiro comboio da manhã. Depois de estes factos serem absorvidos e lamentados, Briony foi amavelmente convidada a voltar à reconstituição dos acontecimentos na ilha. Naquela fase inicial, o inspector teve o cuidado de não afligir a menina com perguntas difíceis, permitindo-lhe assim, com aquele espaço sensatamente criado, construir e formular a sua narrativa com as suas próprias palavras e estabelecer os factos essenciais: havia luz suficiente para se reconhecer um rosto familiar; quando ele se afastou dela e contornou a clareira, os seus movimentos e a sua altura também se revelaram familiares para Briony.
- Então viste-o.
- Sei que era ele.
- Vamos esquecer o que tu sabes. Estavas a dizer que o viste.
- Sim, vi-o.
- Tal como estás a ver-me a mim.
- Sim.
- Viste-o com os teus próprios olhos.
- Sim. Vi-o. Vi-o.
E assim terminou o seu primeiro interrogatório formal. Foi para a sala, sentindo-se finalmente cansada, mas sem querer ir para a cama, enquanto os inspectores interrogavam a sua mãe, e depois Leon e Paul Marshall. Hardman e o seu filho Danny também foram chamados a depor. Briony ouviu Betty dizer que Danny estivera toda a noite em casa com o pai, que podia confirmá-lo. Vários polícias envolvidos na busca dos gémeos apareceram à porta da frente e foram conduzidos à cozinha. No período confuso e sem nada de memorável daquele amanhecer, Briony percebeu que Cecília se recusava a sair do quarto e a descer para ser interrogada. Passados alguns dias não teria outra hipótese e, quando finalmente cedeu a dar a sua própria versão do que tinha acontecido na biblioteca - de certa forma, muito mais chocante do que a versão de Briony, por consensual que o encontro deles tivesse sido -, o seu relato apenas confirmou a opinião geral que se tinha formado: Mr Turner era um homem perigoso. A sugestão várias vezes feita por Cecília de que deviam era falar com Danny Hardman foi ouvida em silêncio. Era compreensível, se bem que lamentável, que aquela jovem estivesse a desculpar o amigo lançando suspeitas sobre um rapaz inocente.
Pouco depois das cinco, quando se ouviu dizer que estavam a preparar o pequeno-almoço, pelo menos para os polícias, pois mais ninguém tinha fome, correu pela casa a notícia de que uma pessoa que podia ser Robbie estava a aproximar-se, vindo do lado do parque. Talvez alguém tivesse estado a observar de uma janela do andar de cima. Briony não soube como foi tomada a decisão de irem todos lá para fora esperar por ele, mas de repente viram-se todos no jardim, a família, Paul Marshall, Betty e as ajudantes, os polícias, como um comité de recepção reunido à porta de casa. Só Lola, sedada, e Cecília, enfurecida, tinham ficado no andar de cima. Podia ter sido Mrs Tallis a não querer aquela presença poluidora dentro de casa. O inspector pode ter receado a violência, com a qual era mais fácil lidar fora de portas, onde havia mais espaço para fazer uma detenção. Toda a magia do amanhecer desaparecera entretanto e no seu lugar surgira uma manhã cinzenta, com uma névoa estival que certamente o calor dissiparia em breve.
A princípio não viram nada, apesar de Briony achar que conseguia distinguir marcas de sapatos na estrada. Depois toda a gente conseguiu ouvir. Seguiu-se um murmúrio colectivo, quando avistaram ao longe uma forma indefinível, acinzentada contra o fundo branco, quase a cem metros de distância. Quando esse vulto começou a tomar forma, o grupo ficou em silêncio. Ninguém conseguia acreditar no que estava a aparecer. Devia ser uma ilusão da névoa e da luz. Naquela época de telefones e automóveis, ninguém podia acreditar que existissem gigantes com quase dois metros e meio de altura no Surrey. Mas lá estava, uma aparição tão desumana como significativa. Era algo de impossível e inegável, e dirigia-se para eles. Betty, que se sabia ser católica, benzeu-se, ao mesmo tempo que o grupo se chegou mais para a porta. Só o inspector mais velho deu alguns passos para a frente e nesse momento tudo ficou claro. A chave foi uma segunda figura minúscula, que balançava atrás da primeira. Era óbvio: era Robbie, com um dos gémeos sentado nos seus ombros e o outro pela mão, a caminhar ligeiramente atrás dele. Quando estava a menos de trinta metros de distância, Robbie parou, aparentemente prestes a falar, mas em vez disso esperou que o inspector e os outros polícias se aproximassem dele. O rapaz que vinha aos seus ombros parecia dormir. O outro encostou a cabeça à cintura de Robbie e puxou-lhe a mão sobre o peito para se proteger ou se aquecer.
O sentimento imediato de Briony foi de alívio por os gémeos estarem a salvo. Mas, ao olhar para Robbie, que esperava calmamente, sentiu uma enorme afronta. Estaria convencido de que podia esconder o seu crime por detrás de uma simpatia aparente, sob uma capa de bom pastor? Era sem dúvida uma tentativa cínica de conseguir o perdão para algo que jamais poderia ser perdoado. Mais uma vez se confirmava a ideia de Briony de que o mal era complicado e enganador. De repente a mãe pousou-lhe as mãos firmemente sobre os ombros e fê-la voltar para casa, entregando-a aos cuidados de Betty. Emily queria a filha bem longe de Robbie Turner. Estava finalmente na hora de ir para a cama. Betty deu-lhe a mão com força e levou-a para dentro, ao mesmo tempo que Emily e Leon avançavam para os gémeos. A última vez que Briony olhou para trás por cima do ombro foi para ver Robbie levantar as duas mãos, como se se rendesse. Tirou o miúdo de cima dos ombros e pousou-o gentilmente no chão.
Passada uma hora, Briony estava deitada na sua cama de dossel, com uma camisa de dormir branca de algodão que Betty lhe arranjara. As cortinas estavam fechadas, mas mesmo assim a luz do dia à volta delas era muito intensa e, apesar de tonta de cansaço, não conseguia dormir. Havia vozes e imagens à volta da cama, presenças agitadas, desafiadoras, que se entrechocavam e resistiam a todas as suas tentativas de as pôr em ordem. Estariam unidas por um único dia, um período de incessante vigília, desde os inocentes ensaios da sua peça até ao aparecimento de um gigante vindo do nevoeiro? Tudo o que se situava entre esses dois momentos era demasiado gritante, demasiado fluido para poder ser compreendido, embora Briony sentisse que triunfara. Empurrou o lençol com as pernas e voltou a almofada ao contrário à procura de uma zona mais fresca para encostar a cara. No seu estado de confusão, não conseguia dizer ao certo qual fora o seu êxito; se tivesse sido ganhar uma nova maturidade, dificilmente a conseguiria sentir naquele momento em que estava tão indefesa, até tão infantil, por falta de sono, a ponto de essa ideia poder facilmente levá-la às lágrimas. Se tinha sido um acto de coragem identificar um indivíduo profundamente mau, então seria errado ele aparecer assim com os gémeos, e sentia-se enganada. Quem acreditaria nela agora que Robbie se apresentava como o afável salvador de duas crianças perdidas? Todo o seu trabalho, toda a sua coragem e clarividência, tudo o que fizera para trazer Lola para casa - tudo fora em vão. Voltar-lhe-iam as costas - a mãe, os polícias, o irmão - e unir-se-iam a Robbie Turner numa cabala de adultos. Queria ter ali a mãe, queria poder pôr-lhe os braços à volta do pescoço e puxar-lhe o rosto adorável para o seu, mas naquele momento a mãe não iria ao pé dela, nem a mãe nem ninguém, ninguém falaria com ela. Afundou a cara na almofada, deixou as lágrimas rolarem e sentiu que estava a perder ainda mais pelo facto de ninguém testemunhar o seu sofrimento. Estava deitada há meia hora na penumbra a acalentar aquela tristeza palpável quando ouviu o som do carro da polícia estacionado por baixo da sua janela começar a trabalhar. Atravessou o caminho de gravilha e depois parou. Ouviram-se vozes e alguns passos. Briony levantou-se e afastou as cortinas. A neblina mantinha-se, mas estava mais clara, como que iluminada por dentro, o que a obrigou a semicerrar os olhos enquanto se habituavam à claridade. O carro tinha as quatro portas abertas e havia três polícias à espera junto dele. As vozes eram de um grupo de pessoas que estava mesmo por baixo dela, junto à porta da frente, mas fora do seu ângulo de visão. Depois ouviram-se outra vez mais passos e apareceram os dois inspectores, um de cada lado de Robbie. E algemado! Viu como os braços dele estavam unidos à sua frente e, do ponto privilegiado onde se encontrava, viu também o aço a brilhar por baixo dos punhos da camisa. Era uma imagem vergonhosa, que a horrorizava. Era a confirmação da sua culpa e o princípio do seu castigo. Assemelhava-se a uma condenação eterna.
Chegaram ao carro e pararam. Robbie deu meia volta, mas Briony não conseguiu ler a sua expressão. Estava muito direito - tinha mais uns centímetros do que o inspector- e tinha a cabeça erguida. Talvez estivesse orgulhoso do que tinha feito. Um dos polícias sentou-se ao volante. O inspector mais novo dirigiu-se para a porta de trás do lado oposto e o seu chefe ia pôr Robbie no banco de trás. Houve uma certa agitação mesmo por baixo da janela de Briony, ouviu-se a voz de Emily Tallis a chamar alguém e de repente viu-se alguém a correr para o carro o mais depressa que permitia um vestido travado. Cecília abrandou ao aproximar-se do carro. Robbie voltou-se e deu um passo para ela e inesperadamente o inspector recuou. Viam-se perfeitamente as algemas, mas Robbie não parecia envergonhado nem dava mostras de se aperceber da presença delas quando olhou para Cecília e ficou a ouvir o que ela lhe dizia. Os polícias, impassíveis, olhavam-nos. Caso Cecília estivesse a fazer a dura acusação que Robbie merecia ouvir, o seu rosto não o demonstrava. Embora não visse a cara de Cecília, Briony achava que ela estava a falar com um tom muito pouco enérgico. As suas acusações seriam ainda mais poderosas por estarem a ser murmuradas. Tinham-se chegado mais um ao outro, e agora era Robbie que dizia qualquer coisa. Depois levantou as mãos e deixou-as cair. Ela tocou-lhe com as suas mãos, passou-lhe os dedos pela lapela do casaco, depois agarrou-a e puxou-a ligeiramente. Parecia um gesto simpático, e Briony ficou sensibilizada pela capacidade de perdoar da irmã, caso fosse isto que estava a acontecer. Perdão. A palavra nunca significara nada, embora Briony a tivesse ouvido mil vezes na escola e na igreja. Durante todo esse tempo, a sua irmã tinha-a entendido. Claro que havia muitas coisas que ela não sabia de Briony. Mas havia tempo, pois aquela tragédia teria obrigatoriamente de as aproximar.
O inspector amável, com a face de granito, devia ter pensado que já fora suficientemente indulgente, pois avançou para retirar a mão de Cecília e se interpor entre eles. Robbie disse-lhe rapidamente qualquer coisa por cima do ombro do polícia e voltou-se para o carro. O inspector levantou amavelmente a mão e empurrou a cabeça de Robbie para baixo para evitar que ele batesse na porta do carro. Os dois inspectores sentaram-se um de cada lado dele. As portas bateram e o polícia que ficou fez continência quando o carro se afastou. Cecília ficou onde estava, a olhar para a estrada, seguindo tranquilamente o carro à medida que ele se afastava, mas os tremores dos seus ombros mostravam que chorava e Briony sentiu que nunca amara tanto a irmã como naquele momento.
Devia ter acabado ali, aquele dia que se seguira sem interrupções a uma noite de Verão, devia ter terminado com o carro da polícia a descer a rampa. Mas haveria ainda um confronto final. O carro não tinha andado mais de vinte metros quando começou a abrandar. Uma figura em que Briony não reparara corria pelo meio da estrada sem mostrar qualquer intenção de se afastar para o lado. Era uma mulher baixa, com um vestido às flores e com um passo cambaleante, agarrada a algo que a princípio parecia um pau, mas era afinal um chapéu de chuva de homem com uma cabeça de pato. O carro parou e a buzina soou no momento em que a mulher se pôs completamente à frente do carro, encostada à grelha do radiador. Era a mãe de Robbie, Grace Turner. Ergueu o chapéu de chuva e começou a gritar. O polícia que ia ao lado do condutor saiu e foi falar com ela e depois agarrou-a pelo cotovelo. O outro polícia, o que tinha feito continência, dirigiu-se para eles. Mrs Turner libertou o braço, tornou a levantar o chapéu de chuva, desta vez com as duas mãos, e deu com ele no capot brilhante do carro, com a cabeça de pato, produzindo um som como um tiro de pistola. Quando os polícias a empurraram ligeiramente e a levaram para a berma da estrada, ela começou a gritar uma única palavra, mas tão alto que Briony conseguia ouvir no seu quarto.
- Mentirosos! Mentirosos! Mentirosos!
Com a porta da frente aberta, o carro passou lentamente por ela e parou para o polícia poder entrar. O colega, sozinho, estava a ter alguma dificuldade em segurá-la. Conseguiu dar outro golpe com o chapéu de chuva, mas desta vez ele resvalou e não chegou a acertar no tejadilho do carro. O polícia conseguiu tirar-lhe o guarda-chuva e atirou-o para o chão por cima do ombro.
- Mentirosos! Mentirosos! - gritou Grace Turner outra vez, dando alguns passos inúteis atrás do carro. Depois parou, de mãos nas ancas, e ficou a vê-lo a passar a primeira ponte, a atravessar a ilha, depois a segunda ponte, e a desaparecer finalmente no fundo branco.
PARTE II
1
Havia muitos horrores, mas foi aquele pormenor inesperado que o abalou e depois o impediu de continuar. Quando chegaram à passagem de nível, depois de uma caminhada de quase cinco quilómetros por uma estrada estreita, viu o caminho que procurava serpentear para a direita, depois descer e elevar-se até uma pequena mata, que cobria uma colina a noroeste. Pararam para poderem consultar o mapa, que não estava onde ele pensava que devia estar. Não estava no bolso nem preso ao cinto. Se calhar tinha caído ou tinha-o deixado no último sítio onde tinham parado. Deixou o sobretudo cair no chão e estava a procurar no casaco quando se apercebeu. O mapa estava na sua mão esquerda - devia lá estar há mais de uma hora. Olhou para os outros dois, mas eles estavam voltados para o outro lado, afastados, a fumar em silêncio. Continuava com o mapa na mão. Arrancara-o dos dedos de um capitão em West Kents, caído numa vala na zona de - em que zona? Aqueles mapas da retaguarda eram raros. Também tirara o revólver ao capitão morto. Não estava a tentar meter-se na pele de um oficial do exército. Perdera simplesmente a sua arma e queria sobreviver.
O caminho em que estava interessado começava ao lado de uma casa bombardeada, relativamente nova, talvez a casa de um ferroviário, reconstruída depois de um último ataque. Havia pegadas de animais na lama que rodeava a água acumulada num sulco de pneus. Talvez de cabras. Espalhados à volta havia bocados de tecido rasgados com as extremidades queimadas, restos de cortinas ou de peças de roupa, um caixilho de uma janela partido, meio tapado por um arbusto e, por todo o lado, um cheiro a fuligem molhada. Era o caminho deles, o atalho por onde teriam de seguir. Dobrou o mapa, baixou-se para apanhar o casaco, pô-lo por cima dos ombros, e foi nesse momento que a viu. Os outros, apercebendo-se do seu movimento, voltaram-se e seguiram o olhar dele. Era uma perna pendurada numa árvore. Uma árvore grande, em folha. A perna estava a uns seis metros de altura, presa na primeira bifurcação do tronco, cortada acima do joelho. Do sítio onde estavam não viam sinais de sangue ou de carne despedaçada. Era uma perna perfeita, pálida, lisa e, pelo tamanho, podia pertencer a uma criança. Pela forma como estava presa no tronco, parecia em exposição, para que ninguém tivesse dúvidas: isto é uma perna.
Os dois cabos mostraram-se enojados e pegaram nas suas coisas. Recusavam-se a deixar-se envolver. Já tinham visto o suficiente nos últimos dias.
Nettle, o motorista do camião, acendeu outro cigarro e perguntou:
- Então para que lado, chefe?
Tratavam-no assim para resolver o difícil problema da hierarquia. Ele pôs-se a caminho apressadamente, quase a correr. Queria sair de onde o vissem para poder vomitar ou defecar, não sabia bem. O seu corpo escolheu a primeira das duas opções atrás de um celeiro, junto a uma pilha de lajes partidas. Tinha tanta sede que não podia dar-se ao luxo de perder líquidos. Bebeu do cantil e deu a volta ao celeiro. Aproveitou aquele momento de solidão para ver a sua ferida. Era do lado direito, por baixo das costelas, mais ou menos do tamanho de meia coroa. Tinha ficado com melhor aspecto depois de ele ter lavado o sangue seco no dia anterior. Embora a pele em volta estivesse vermelha, não estava muito inchada. Mas havia qualquer coisa lá dentro. Sentia-a mexer quando andava. Talvez fosse um estilhaço.
Na altura em que os cabos chegaram ao pé dele, já tinha voltado a meter a camisa nas calças e estava a estudar o mapa. Com eles por perto, o mapa representava a sua única possibilidade de privacidade.
- Qual é a pressa?
- Viu um borracho.
- É o mapa. Está outra vez com as suas malditas dúvidas.
- Não tenho dúvida nenhuma, meus senhores. É este o nosso caminho.
Tirou um cigarro, que o cabo Mace lhe acendeu. Depois, para esconder o tremor das mãos, Robbie Turner continuou a andar e eles continuaram a segui-lo, como faziam já há dois dias. Ou seriam três? Era de uma patente inferior, mas eles faziam tudo o que ele sugeria e, para preservarem a sua dignidade, metiam-se com ele. Quando percorriam estradas ou caminhos e ele se mantinha em silêncio durante demasiado tempo, Mace costumava dizer:
- Está outra vez a pensar no borracho, chefe?
- Está mesmo. Está mesmo - repetia Nettle.
Eram rapazes da cidade, que detestavam o campo e se perdiam nele. Os ponteiros da bússola não significavam nada para eles. Essa parte da recruta tinha-lhes passado ao lado. Tinham decidido que precisavam dele para chegarem à costa. Era difícil para eles. Comportava-se como se fosse oficial, mas não tinha uma única divisa. Na primeira noite, quando estavam abrigados no telheiro para bicicletas de uma escola incendiada, o cabo Nettle tinha dito:
- Por que razão um soldado raso como tu fala como uma pessoa importante?
Robbie não lhes devia explicações. Só queria sobreviver. Tinha uma boa razão para sobreviver e não queria saber se eles o acompanhavam ou não. Tinham empunhado ambos as armas. Isso era finalmente qualquer coisa, e Mace era um homem corpulento, de ombros largos e com umas mãos que podiam facilmente cobrir uma oitava e meia no piano do pub onde dizia que tocava. Turner também não se importava com os insultos. A única coisa que queria era esquecer a perna. O caminho por onde seguiam ia dar a uma vereda entre dois muros de pedra, que descia depois para um vale que não era visível da estrada. Lá em baixo havia um regato castanho, que eles passaram saltando sobre pedras presas num fundo que parecia formado por plantas aquáticas em miniatura.
Quando deixaram o vale, o caminho seguia para oeste, ainda entre os dois muros antigos. A sua frente, o céu começava a clarear um pouco e a brilhar como uma promessa. De resto, estava cinzento para onde quer que olhassem. Quando chegaram ao fundo da colina de nogueiras, o Sol descobriu por detrás das nuvens e iluminou a cena, ofuscando os três soldados. Como seria bom terminar uma caminhada pela província francesa ao pôr do Sol. Era sempre um momento de esperança.
Ao emergirem da mata ouviram bombardeiros e por isso voltaram para trás e ficaram à espera, a fumar sob as árvores. Do sítio onde estavam não viam os aviões, embora tivessem um amplo campo de visão. Dificilmente se poderia chamar colinas aos pequenos montes que se estendiam à sua frente. Eram pequenas ondulações no terreno, ecos distantes de grandes elevações situadas algures. Cada uma delas era mais pálida do que a anterior. Robbie via uma mancha esbatida de cinzento e azul, um labirinto que se estendia até à linha do horizonte, como uma decoração oriental num prato de conduto.
Meia hora depois atravessavam uma encosta mais íngreme que seguia mais para norte, que os conduziu por fim a outro vale, com um outro regato com um curso mais uniforme. Passaram por uma ponte de pedra cheia de estrume de vaca. Por brincadeira, os cabos, que não estavam tão cansados como ele, fingiram-se enojados. Um deles atirou-lhe um bocado de estrume seco às costas. Turner não se voltou. Estava a pensar que os farrapos podiam ser de um pijama de criança. De rapaz. Às vezes os bombardeiros atacavam não muito depois do anoitecer. Tentava afastar a ideia, mas ela não o deixava continuar. Um rapazinho francês, na cama, a dormir. Turner queria aumentar a distância entre ele e a casa bombardeada. Agora já não eram só o exército e a força aérea alemã a persegui-lo. Se houvesse luar, teria gostado de passear nessa altura. Os cabos não. Talvez fosse altura de os afastar.
Para sul da ponte havia uma fileira de choupos, cuja parte de cima se agitava a cintilar sob a luz ténue do fim do dia. Os soldados seguiram na outra direcção e, passado pouco tempo, a vereda deu lugar a um caminho mais largo, que se afastou do regato. Serpentearam por entre arbustos e folhas grossas e brilhantes. Havia também alguns carvalhos definhados, quase despidos. A vegetação baixa tinha um cheiro adocicado e húmido, e Robbie pensou que devia haver algo de especial naquele sítio para o tornar tão diferente de tudo o que tinham visto até então.
À frente deles ouvia-se um zumbido de máquinas, cada vez mais intenso, mais encolerizado, sugerindo a presença de volantes ou turbinas eléctricas a girarem a velocidades impossíveis. Estavam a entrar numa zona de som e força motriz.
- Abelhas! - gritou ele.
Teve de se voltar e tornar a dizê-lo para eles o ouvirem. O ar já estava mais escuro. Conhecia bem o género. Se uma delas se prendesse no cabelo dele e o picasse, enviaria uma mensagem química ao morrer, e todas as que a recebessem iriam picá-lo no mesmo sítio e morrer também. Mobilização geral! Depois de tantos perigos, aquilo era uma espécie de insulto. Taparam a cabeça com os casacos e passaram pelo enxame a correr. Ainda rodeados de abelhas, chegaram a uma vala cheia de lama malcheirosa que atravessaram por uma tábua vacilante. Chegaram à parte detrás de um celeiro, onde finalmente encontraram alguma tranquilidade. A sua frente estendia-se uma quinta. Assim que entraram nela, os cães começaram a ladrar e uma mulher começou a correr para eles, a agitar as mãos, como se eles fossem galinhas que ela pudesse enxotar. Os cabos dependiam do francês de Turner, que avançou alguns passos e depois esperou que ela chegasse até junto dele. Tinha ouvido algumas histórias de civis que vendiam garrafas de água por dez francos, mas nunca o tinha presenciado. Os franceses com quem se cruzara até então eram pessoas generosas, ou então entregues à sua infelicidade. Aquela mulher era frágil e enérgica. Tinha uma cara enrugada, um olhar feroz e uma voz agreste.
- É impossível, M'sieu. Não podem ficar aqui.
- Ficamos no celeiro. Precisamos de água, vinho, pão, queijo, qualquer coisa que possa dar-nos.
- É impossível!
- Temos andado a lutar pela França - disse-lhe ele calmamente.
- Não podem ficar aqui.
- Partimos ao amanhecer. Os alemães ainda estão...
- Não é por causa dos alemães. É por causa dos meus filhos. São umas bestas. E não tarda nada aparecem aí.
Turner passou pela mulher e dirigiu-se à bomba de água que estava a um canto do jardim, perto da cozinha. Nettle e Mace foram atrás dele. Enquanto Robbie bebia, uma menina de uns dez anos com um irmão ainda bebé pela mão ficou a vê-los da porta. Quando acabou e encheu o cantil sorriu-lhes e eles fugiram. Os cabos estavam ambos junto da bomba, a beberem ao mesmo tempo. De repente a mulher aproximou-se dele e agarrou-o pelo cotovelo.
Antes de lhe dar tempo de começar outra vez a falar, disse-lhe:
- Por favor, traga-nos o que eu lhe pedi, se não vamos nós servir-nos.
- Os meus filhos são umas bestas. Vão matar-me.
Teria preferido dizer Então que matem, mas em vez disso afastou-se e gritou-lhe por cima do ombro:
- Eu falo com eles.
- Vão matá-lo, M'sieur. Vão fazê-lo em bocados.
O cabo Mace era cozinheiro na mesma unidade da RASC do cabo Nettle. Antes de se ter alistado era responsável de armazém do HeaPs em Tottenham Court Road. Disse que sabia umas coisas no tocante a conforto e começou a arranjar os seus aposentos no celeiro. Turner não se teria importado de dormir na palha. Mace encontrou uma pilha de sacas e, com a ajuda de Mace, encheu-as para fazer três colchões. Fez almofadas com molhos de feno, que levantou do chão só com uma mão. Com uma porta assente em duas pilhas de tijolos fez uma mesa. Tirou meia vela do bolso.
- Até talvez seja confortável - disse ele várias vezes, sob uma respiração ofegante.
Era a primeira vez que ele não fazia uma insinuação sexual. Os três homens deitaram-se de costas, a fumar e à espera. Agora que já tinham matado a sede, os seus pensamentos concentravam-se na comida a que estavam prestes a deitar a mão. Ouviam os estômagos uns dos outros revolutearem no escuro, o que os fazia rir à gargalhada. Turner contou-lhes a conversa que tinha tido com a mulher e o que ela tinha dito sobre os filhos.
- Devem ser da quinta coluna - disse Nettle. Só parecia pequeno quando estava ao lado do companheiro, mas tinha os traços angulosos de um homem baixo e uma cara simpática, de rato, reforçada pela forma como sobrepunha os dentes de cima sobre o lábio inferior.
- Ou então são nazis franceses. Simpatizantes dos alemães. Como o Mosley - disse Mace.
Ficaram em silêncio por algum tempo e depois Mace acrescentou:
- Ou então na província são todos tarados por se casarem com primos.
- Seja lá como for - disse Turner -, acho que é melhor verem se as armas estão em condições e terem-nas por perto.
Fizeram o que ele sugeriu. Mace acendeu a vela e executaram a rotina prevista. Turner verificou a sua pistola e pousou-a perto de si. Quando acabaram, os cabos encostaram as suas Lee-Enfields a uma caixa de madeira e tornaram a deitar-se. Nesse momento chegou a menina com um cesto. Pousou-o junto à porta e fugiu a correr. Nettle foi buscá-lo e espalharam o seu conteúdo sobre a mesa: um pão escuro, um pequeno pedaço de queijo, uma cebola e uma garrafa de vinho. O pão custava a cortar e sabia a mofo. O queijo era bom, mas desapareceu em poucos segundos. Fizeram circular a garrafa, que passado pouco tempo também ficou vazia. Assim, tiveram de se contentar com mastigar o pão bolorento e comer a cebola.
- Nem sequer ao meu cão tinhoso eu dava isto - disse Nettle.
- Vou buscar qualquer coisa melhor - sugeriu Turner.
- Nós também vamos.
Mas deixaram-se ficar deitados, em silêncio. Nenhum deles se sentia ainda disposto a enfrentar a velhota.
Depois ouviram passos, voltaram-se e viram dois homens à entrada. Tinham qualquer coisa na mão, talvez um pau ou uma espingarda. A penumbra impedia que o distinguissem claramente. Também não conseguiam ver as caras dos dois irmãos franceses.
- Bonsoir, Messieurs - disse uma voz suave.
- Bonsoir.
Turner levantou-se do colchão de palha e pegou no revólver. Os cabos pegaram nas espingardas.
- Com calma - disse ele em surdina. - Ingleses? Belgas?
- Ingleses.
- Temos uma coisa para vocês.
- O quê?
- O que é que ele está a dizer? - perguntou um dos cabos.
- Diz que tem uma coisa para nós.
- Que merda!
Os homens avançaram alguns passos e levantaram o que tinham nas mãos. Eram armas de fogo, de certeza. Turner soltou o fecho de segurança. Ouviu Mace e Nettle a fazerem o mesmo.
- Calma - murmurou ele.
- Pousem as armas, Messieurs.
- Pousem as vossas.
- Esperem.
O homem que falou meteu a mão no bolso. Tirou uma pilha e apontou-a não para os soldados, mas para o irmão, para algo que ele tinha na mão. Era um pão. Depois mostrou-lhes duas baguetes que ele próprio segurava.
- E também temos azeitonas, queijo, pâté, tomate e presunto. E vinho, claro. Viva a Inglaterra.
- Hum... Viva a França.
Sentaram-se à mesa de Mace com os franceses, Henri e Jean-Marie Bonnet, que se mostraram educadamente admirados não só com ela, mas também com os colchões. Eram indivíduos baixos e fortes, na casa dos cinquenta. Henri usava óculos, o que Nettle achou estranho num agricultor. Turner não traduziu a observação dele. Para além do vinho, também tinham trazido copos, que os cinco ergueram em vivas aos exércitos francês e inglês em brindes pela aniquilação da Alemanha. Os dois irmãos ficaram a ver os soldados comer. Mace disse, por intermédio de Turner, que nunca tinha comido, nem sequer tinha ouvido falar, de pasta de fígado de ganso e que daí em diante não comeria outra coisa. Os franceses sorriram, mas pareciam algo constrangidos e nada dispostos a beber de mais. Disseram que tinham ido a uma aldeola perto de Arras na carrinha de caixa aberta, à procura de uma prima e dos filhos. Tinha havido um violento combate perto da cidade, mas não faziam ideia de quem estava a atacá-la, de quem estava a defendê-la, nem de quem estava em vantagem. Tinham ido pelas estradas secundárias para evitar o caos dos refugiados. Tinham visto casas a arder e uns doze ou mais soldados ingleses mortos na estrada. Tinham sido obrigados a parar e a afastá-los para não os atropelarem, mas dois dos corpos estavam cortados quase ao meio. Devia ter sido um ataque com metralhadoras, talvez um ataque aéreo, ou talvez uma emboscada. Quando voltavam para a carrinha, Henri sentira-se maldisposto e Jean-Marie, que ia ao volante, tinha ficado em pânico e caído numa vala. Foram a pé até uma aldeia, pediram uns cavalos emprestados a um camponês e puxaram a Renault. Demoraram duas horas. De volta à estrada viram tanques e blindados queimados, não só alemães, mas também ingleses e franceses. Mas não viram soldados. O combate já passara para outro lado.
Chegaram à aldeola já ao fim da tarde. Tinha sido completamente destruída e estava deserta. A casa da prima deles estava completamente destruída, com buracos de balas pelas paredes, mas ainda tinha telhado. Foram a todas as divisões e ficaram aliviados por não encontrarem lá ninguém. A prima devia ter pegado nos filhos e partido com os milhares de pessoas que inundavam as estradas. Por receio de conduzirem de noite, pararam a carrinha num bosque e dormiram na cabina. Durante toda a noite ouviram a artilharia a fustigar Arras. Parecia impossível que quaisquer casas ou pessoas viessem a sobreviver. Regressaram por outra estrada, por um caminho muito mais longo, para evitarem passar pelos soldados mortos. Henri explicou que ele e o irmão estavam muito cansados. Quando fechavam os olhos viam logo os corpos mutilados.
Jean-Marie tornou a encher os copos. O relato, acompanhado pela tradução de Turner, demorara quase uma hora. A comida tinha desaparecido toda. Pensou contar-lhes o seu único e hediondo pormenor. Mas não queria aumentar ainda mais o horror, nem queria fazer reviver aquela imagem que por enquanto se mantinha à distância graças ao vinho e à companhia. Contou-lhes antes como se separara da sua unidade no início da retirada, durante um ataque de Stukas. Não falou do seu ferimento porque não queria que os cabos soubessem. Explicou-lhes também que tencionavam ir a pé pelos campos até Dunquerque, para evitarem os ataques aéreos às estradas principais.
- Então, é verdade o que se diz. Estão a ir-se embora - disse Jean-Marie.
- Havemos de voltar - disse ele, embora não acreditasse.
O vinho estava a produzir efeito no cabo Nettle. Começou a fazer um elogio rasgado daquilo que designava por “os borrachos” - eram tantas, tão disponíveis, tão deliciosas. Era uma fantasia. Os irmãos olharam para Turner.
- Está a dizer que as mulheres francesas são as mais belas do mundo.
Eles acenaram solenemente com a cabeça e ergueram os copos.
Ficaram em silêncio durante algum tempo. O serão estava quase a acabar. Escutaram os sons nocturnos a que já se tinham habituado - os estrondos da artilharia, tiros dispersos ao longe, uma explosão a grande distância - talvez sapadores a bombardearem uma ponte depois de retirarem.
- Pergunta-lhes pela mãe - sugeriu o cabo Mace. - Vamos tirar isso a limpo.
- Éramos três irmãos - explicou Henri. - O mais velho, Paul, morreu perto de Verdun, em 1915. Foi atingido directamente por uma granada. Não ficou nada para enterrar a não ser o capacete. Nós os dois tivemos sorte. Escapámos sem um arranhão. Desde então odeia soldados. Mas está com oitenta e três anos e está a perder a razão. É uma obsessão para ela. Franceses, ingleses, belgas, alemães. Não faz qualquer distinção. São todos iguais para ela. Temos medo de que, quando os alemães chegarem, ela avance para eles com uma forquilha e eles a matem.
Os dois irmãos levantaram-se, exaustos. Os soldados fizeram o mesmo.
- Gostaríamos de vos receber à nossa mesa - disse Jean-Marie. - Mas para isso teríamos de a trancar no quarto.
- Mas tivemos aqui um banquete magnífico - disse Turner.
Nettle sussurrou qualquer coisa ao ouvido de Mace, que disse que sim com a cabeça. Nettle tirou do saco dois maços de tabaco. Claro que era a coisa certa a fazer naquele momento. Os franceses recusaram educadamente, mas Nettle deu a volta à mesa e pôs-lhe os maços nos braços. Quis que Turner traduzisse.
- Deviam ter visto, quando recebemos ordem de destruir as lojas. Vinte mil cigarros. Servimo-nos à vontade.
Havia um exército inteiro a fugir em direcção à costa, com os cigarros a servirem de arma contra a fome.
Os franceses agradeceram cortesmente, felicitaram Turner pelo seu francês e depois debruçaram-se sobre a mesa para meterem as garrafas vazias e os copos no saco. Não valia a pena fingirem que voltariam a encontrar-se.
- Partiremos assim que amanhecer - disse Turner. - Por isso, vamos despedir-nos.
Apertaram a mão uns dos outros.
- Tanto que lutámos há vinte e cinco anos - disse Henri Bonnet. - Tantos mortos. E agora os Alemães estão de volta à França. Daqui a dois dias estão cá e vão levar-nos tudo o que temos. Quem havia de acreditar?
Turner sentiu pela primeira vez toda a ignomínia da retirada. Estava envergonhado.
- Nós voltaremos para correr com eles. Prometo - disse ele, ainda com menos convicção do que anteriormente.
Os irmãos disseram que sim com a cabeça e, com um sorriso final de despedida, abandonaram o círculo de luz ténue da vela e atravessaram a escuridão em direcção à porta do celeiro, com os copos a tilintarem contra as garrafas enquanto caminhavam.
Ficou muito tempo deitado de costas a fumar, a olhar para a negrura do telhado cavernoso. Os cabos ressonavam em contraponto. Estava exausto, mas não tinha sono. A ferida latejava desconfortavelmente, com batimentos precisos e fortes. O que quer que estivesse ali dentro era aguçado e estava junto à superfície, e ele sentia vontade de lá tocar com a ponta do dedo. O cansaço tornava-o vulnerável aos pensamentos que menos queria. Imaginava o menino francês a dormir e pensava na indiferença com que os homens conseguiam bombardear uma paisagem. Ou despejar as suas bombas sobre uma casa, onde toda a gente dormia, ao lado de uma linha de comboio, sem saberem nem quererem saber quem é que lá estava. Era um processo industrial. Tinha visto as unidades da Artilharia Real britânica em acção, grupos coesos que trabalhavam sem fim, orgulhosos da velocidade com que conseguiam fazer uma trincheira, e orgulhosos da sua disciplina, da sua preparação e do seu trabalho de equipa. Nunca precisavam de ver o resultado final - um rapaz desaparecido. Desaparecido. Ao formular mentalmente a palavra cedeu ao sono, mas apenas por segundos. Voltou a ver-se deitado na cama, de costas, a olhar para a escuridão da sua cela. Sentia que estava lá de novo. Sentia o cheiro do chão de cimento, da urina no balde e da tinta brilhante das paredes e ouvia os homens das outras celas a ressonarem. Três anos e meio de noites assim, sem dormir, pensando num outro rapaz desaparecido, numa outra vida desaparecida que em tempos fora a sua, à espera do amanhecer, do toque para acordar e de mais um dia perdido. Não sabia como conseguia sobreviver à estupidez diária. A estupidez e à claustrofobia. A mão a apertar-lhe o pescoço. Estar ali, abrigado num celeiro, com um exército em tropel, onde a presença da perna de uma criança numa árvore era algo que as pessoas conseguiam ignorar, numa situação em que todo um país, toda uma civilização estava prestes a desmoronar-se, era melhor do que estar numa cela, numa cama estreita, sob a luz fraca de uma lâmpada, sem esperar nada. Também ali havia vales com árvores, regatos, choupos iluminados pelo sol, que ninguém podia tirar-lhe a menos que o matassem. E também havia a esperança. Eu espero por ti. Volta. Havia uma hipótese, só uma hipótese, de voltar. Tinha a última carta dela no bolso com a sua nova morada. Era por isso que tinha de sobreviver e usar toda a sua astúcia para se manter afastado das estradas principais, onde os bombardeiros os esperavam, voando em círculo como aves de rapina.
Mais tarde afastou o sobretudo com que se tapara, calçou as botas e procurou a tactear o caminho até à porta do celeiro para ir urinar lá fora. Estava tonto de cansaço, mas ainda não estava preparado para dormir. Ignorou as rosnadelas dos cães e foi até um pequeno relvado alto para ver os clarões que brilhavam a sul. Era a tempestade do exército alemão a aproximar-se. Tocou no bolso de cima, onde o poema que ela lhe mandara estava dobrado dentro da carta. No pesadelo das trevas, Todos os cães da Europa ladram. As outras cartas dela estavam guardadas no bolso de dentro do sobretudo. Subiu para a roda de um reboque abandonado e conseguiu ver outras zonas do céu. Os clarões dos tiros viam-se por todo o lado menos para norte. O exército derrotado percorria um corredor que ficaria obrigatoriamente cada vez mais estreito e em breve seria interrompido. Os retardatários não teriam possibilidade de fugir. Na melhor das hipóteses, voltariam à prisão. Ao campo de prisioneiros. Desta vez não aguentaria. Quando a França caísse, não haveria fim à vista para aquela guerra. Nem cartas dela, nem regresso. Não conseguiria trocar uma libertação antecipada pelo alistamento. Outra vez a mão a apertar-lhe o pescoço. A perspectiva seriam mil, ou milhares de noites encarcerado, sem dormir, a dar voltas sobre o passado, à espera que a sua vida recomeçasse, se é que isso alguma vez aconteceria. Talvez fizesse sentido ir-se embora já, antes que fosse tarde de mais, e continuar a andar toda a noite e todo o dia, até chegar ao Canal. Escapulir-se, deixar os cabos entregues ao seu destino. Começou a descer a encosta, mas pensou melhor. Não via um palmo à frente do nariz. Não conseguiria avançar no escuro e podia facilmente partir uma perna. E talvez os cabos não fossem completamente inúteis - Mace com os seus colchões de palha, Nettle com a oferta aos irmãos.
Guiado pelo som que eles faziam a ressonar, voltou atabalhoadamente para a cama. Mas o sono continuava sem vir, ou chegava apenas em pequenos mergulhos, dos quais emergia estonteado por pensamentos que não conseguia escolher nem direccionar. Os velhos temas perseguiam-no. Lá estava ele outra vez - o seu único encontro com ela. Seis dias depois de sair da prisão e um dia antes de se apresentar para cumprir serviço perto de Aldershot. No dia em que conseguiram encontrar-se na casa de chá Joe Lyons, na Strand, em 1939, já não se viam há três anos e meio. Ele chegou mais cedo e escolheu uma mesa a um canto de onde se via a porta. A liberdade ainda era uma novidade. As pessoas a andarem e a falarem, as cores dos casacos e das saias, as conversas dos lojistas do West End, a simpatia da rapariga que o atendeu, a espaçosa ausência de ameaça - recostou-se na cadeira e desfrutou do abraço do quotidiano. Possuía uma beleza que só ele podia apreciar.
Enquanto esteve preso, a única mulher por quem podia ser visitado era a mãe. Caso estivesse “inflamado”, diziam eles. Cecília escrevia todas as semanas. Apaixonado por ela, desejoso de manter a sanidade por ela, estava naturalmente apaixonado pelas palavras dela. Quando lhe escrevia fingia ser como era antigamente, mentia para se mostrar são. Por medo do psiquiatra, que funcionava como censor, nunca podiam ser sensuais, nem sequer emotivos. Estava numa prisão considerada moderna, esclarecida, apesar do seu ar vitoriano. Tinham diagnosticado, com precisão clínica, que ele era um indivíduo com uma hipersexualidade mórbida, que precisava tanto de ajuda como de correcção. Não devia ser estimulado. Algumas cartas - tanto dele como dela - eram confiscadas por uma tímida expressão de afecto. Por isso escreviam sobre literatura, usando as personagens como código. Em Cambridge tinham-se cruzado na rua. Tantos livros, tantos casais felizes ou trágicos sobre os quais nunca se tinham encontrado para discutir! Tristão e Isolda, o Conde Orsino e Olívia (e também Malvolio), Troilus e Criseyde, Mr Knightley e Emma, Vénus e Adónis. Turner e Tallis. Uma vez, em desespero, referiu-se a Prometeu, acorrentado a uma pedra, com o fígado a ser devorado diariamente por um abutre. Por vezes ela era a paciente Griselde. A referência a “um canto tranquilo na biblioteca” era um código para êxtase sexual. Também descreviam a sua rotina diária com um pormenor ao mesmo tempo monótono e amoroso. Ele relatava todos os aspectos da vida da prisão, mas nunca dizia a que ponto era estúpida. Era óbvio. Nunca lhe dizia que tinha medo de morrer. Era demasiado claro. Ela nunca escrevia que o amava, embora o tivesse dito, se soubesse que essas palavras chegariam até ele. Mas ele sabia.
Disse-lhe que tinha cortado com a família. Não voltaria a falar com os pais nem com os irmãos. Ele seguiu de perto todos os passos dela para ter o diploma de enfermeira. Quando ela escreveu: “Hoje fui à biblioteca buscar o livro de anatomia de que te falei. Arranjei um canto sossegado e fingi que estava a ler”, ele soube que Cecília bebia das mesmas memórias que o consumiam todas as noites, por baixo dos finos cobertores da prisão.
Quando ela entrou no café, com a capa de enfermeira, apanhando-o de surpresa, ele levantou-se demasiado depressa e entornou o chá. Estava consciente do tamanho exagerado do fato, para o qual a mãe tivera de juntar dinheiro. O casaco dava a impressão de nem sequer lhe tocar nos ombros. Sentaram-se, olharam um para o outro, sorriram e olharam para outro lado. Robbie e Cecília tinham passado anos a fio a fazer amor - por carta. A sua correspondência codificada tinha-os aproximado, mas essa intimidade parecia-lhes artificial naquele momento de conversa banal, naquele catecismo impotente de perguntas e respostas bem-educadas. À medida que a distância entre eles foi aumentando, ambos compreenderam até que ponto tinham ultrapassado aquilo que eram nas suas cartas. Aquele momento fora imaginado e desejado durante demasiado tempo, e eles não estavam à altura dele. Robbie tinha andado afastado do mundo e faltava-lhe confiança para recuar e procurar o pensamento mais vasto. Amo-te, e tu salvaste-me a vida. Perguntou-lhe como era a casa dela. Ela explicou-lhe.
- E dás-te bem com a senhoria?
Não se lembrou de nada melhor e receou o silêncio que podia abater-se sobre eles e o desconforto que seria um prelúdio ao momento em que ela lhe diria que fora agradável terem-se encontrado outra vez, mas que tinha de voltar ao trabalho. Tudo o que tinham resumia-se a alguns minutos numa biblioteca há vários anos. Seria demasiado frágil? Cecília podia facilmente voltar a ser uma espécie de irmã. Estaria desapontada? Ele tinha perdido peso. Tinha diminuído em todos os aspectos. A prisão fizera-o desprezar-se a si próprio, enquanto ela continuava tão adorável como ele a recordava, especialmente assim, vestida de enfermeira. Mas também estava terrivelmente nervosa, incapaz de evitar as banalidades. Isso levava-a a falar com ligeireza do feitio da senhoria. Passado algum tempo olhou de facto para o pequeno relógio que tinha pendurado por cima do bolso do lado esquerdo e disse-lhe que o seu intervalo para almoço estava a acabar. Tinham estado meia hora juntos.
Ele acompanhou-a à paragem do autocarro em White-hall. Nos preciosos minutos finais escreveu a morada para lha dar, uma sequência gélida de acrónimos e números. Explicou-lhe que não teria nenhum dia de licença até acabar a recruta. Teria então direito a duas semanas. Cecília estava a olhar para ele, a abanar a cabeça com algum desespero, até que finalmente ele lhe pegou na mão e a apertou. Aquele gesto tinha de encerrar em si tudo o que não fora dito, e ela respondeu-lhe com a pressão da sua própria mão. O autocarro chegou e ela não lhe soltou a mão. Estavam voltados um para o outro. Robbie beijou-a, primeiro ao de leve, mas depois aproximaram-se mais e, quando a língua dela tocou na sua, uma parte incorpórea dele sentiu-se imensamente grata, pois sabia que agora tinha mais uma recordação, da qual se alimentaria durante muitos meses. Era o que estava a fazer naquele momento, num celeiro em França, ao amanhecer. Apertaram mais o seu abraço e continuaram a beijar-se enquanto as pessoas da fila passavam por ele. Ela estava a chorar encostada ao rosto dele, e o seu sofrimento fê-la apertar mais os lábios contra os dele. Chegou outro autocarro. Ela afastou-se, apertou-lhe o pulso, e continuou sem dizer uma palavra e sem se voltar para trás. Robbie viu-a à procura de lugar e, quando o autocarro começou a andar, percebeu que devia ter ido com ela até ao hospital. Tinha desperdiçado alguns minutos da sua companhia. Tinha de aprender outra vez a pensar e agir por si próprio. Começou a correr por Whitehall, na esperança de a apanhar na paragem seguinte. Mas o autocarro ia muito à frente dele e passado pouco tempo desapareceu em Parliament Square.
Durante a recruta continuaram a corresponder-se. Libertados da censura e da necessidade de serem inventivos, prosseguiram com cautela. Receavam ir muito além de um toque de mãos e de um beijo numa paragem de autocarro, conscientes das dificuldades e impacientes por serem obrigados a viver em páginas manuscritas. Escreviam “amo-te”, “querido”, “adorado”, e sabiam que o seu futuro era juntos, mas evitavam intimidades mais ousadas. O seu objectivo era manterem-se em contacto até às tais duas semanas. Cecília descobriu, por intermédio de uma colega de Girton, uma casa que lhes podia ser emprestada no Wiltshire e, embora não pensassem em mais nada nos seus momentos livres, tentavam não deixar esse sonho transparecer nas suas cartas. Em vez disso, falavam da rotina do seu dia-a-dia. Ela estava colocada na maternidade e assistia todos os dias a pequenos milagres, bem como a momentos de drama e alegria. Também havia tragédias, em relação às quais os seus problemas se reduziam a nada: bebés que nasciam mortos, mães que morriam, jovens que choravam pelos corredores, mães adolescentes, perdidas, abandonadas pelas famílias, crianças com deformidades que suscitavam uma mistura estranha de vergonha e amor. Quando narrava um desfecho feliz, o momento em que a batalha terminava, e a mãe, exausta, tomava pela primeira vez o filho nos braços e olhava extasiada para aquele rosto, Cecília evocava o seu próprio futuro, o que partilharia com ele, o que dava à escrita o seu poder único, embora na verdade os pensamentos dele se detivessem menos sobre o nascimento e mais sobre a concepção.
Robbie, por seu turno, descrevia a parada, o campo de tiro, os exercícios, o quartel. Não tinha acesso ao treino dos oficiais, mas também não se importava, porque mais cedo ou mais tarde acabaria por encontrar alguém que conhecesse o seu passado na messe dos oficiais. Entre os soldados rasos conservava o anonimato, e o facto de ter estado preso até lhe dava um certo estatuto. Descobriu que já estava bem adaptado ao regime da tropa, aos terrores da inspecção ao material e a dobrar os cobertores em quadrados perfeitos, com a etiqueta para cima. Ao contrário dos companheiros, não achava a comida má de todo. Os dias, embora cansativos, eram bastante variados. As caminhadas davam-lhe um prazer que ele não ousava expressar aos outros recrutas. Estava a ganhar força e peso. As suas habilitações literárias e a sua idade jogavam contra ele, mas o seu passado compensava isso e ninguém se atrevia a causar-lhe problemas. Era considerado um passarão velho, que sabia muito sobre “elas” e que dava jeito ter por perto quando era preciso preencher algum impresso. À semelhança de Cecília, também ele limitava as suas cartas ao dia-a-dia, interrompido por um ou outro facto jocoso ou alarmante: o recruta que se apresentava na parada sem uma bota, a ovelha que aparecia a correr no quartel e ninguém conseguia apanhar, o sargento instrutor que quase era apanhado por uma bala no campo de tiro.
Mas também havia um facto exterior, uma sombra, à qual não podia deixar de se referir. Depois do que acontecera em Munique no ano anterior, tinha a certeza, como toda a gente, que haveria guerra. O treino deles estava a ser dinamizado e acelerado e as instalações a ser aumentadas para poderem receber mais recrutas. A sua ansiedade não se devia aos combates em que podia ter de participar, mas à ameaça ao seu sonho de Wiltshire. Ela mostrava os mesmos receios com descrições de medidas de contingência no hospital - mais camas, cursos especiais, exercícios de emergência. Mas tudo isso tinha para ambos qualquer coisa de fantástico, de remoto, mas, ainda assim, de provável. De certeza que não ia acontecer outra vez. Era o que muita gente dizia. E por isso continuavam agarrados à esperança.
Havia outro assunto que o preocupava. Cecília não falara com os pais nem com os irmãos desde Novembro de 1935, quando Robbie fora condenado. Não lhes escrevia, nem queria que eles soubessem a sua morada. As cartas chegavam-lhe por intermédio da mãe dele, que vendera a casa e se mudara para outra aldeia. Era através de Grace que Cecília transmitia à família que estava bem e não queria que a contactassem. Leon fora ao hospital uma vez, mas ela não falara com o irmão. Ele tinha ficado toda a tarde à porta. Quando ela o viu, voltou para dentro e só saiu quando ele se foi embora. Na manhã seguinte foi esperá-la para a porta da casa das enfermeiras. Ela passou por ele sem sequer o olhar. Leon agarrou-a pelo cotovelo, mas ela soltou o braço e continuou a andar, fingindo-se imune aos seus apelos.
Robbie sabia melhor do que ninguém o quanto ela gostava do irmão, como era chegada à família, e o significado que a casa e o parque tinham para ela. Ele podia nunca mais lá voltar, mas custava-lhe pensar que ela estava a destruir uma parte de si própria por causa dele. Um mês depois de ter começado a recruta disse-lhe o que lhe ia na mente. Não era a primeira vez que abordavam o assunto, mas queria esclarecê-lo.
Em resposta, ela escreveu: “Voltaram-se contra ti, todos, até o meu pai. Ao destruírem a tua vida também destruíram a minha. Preferiram acreditar no testemunho de uma miúda parva e histérica. Aliás, até a encorajaram, porque não lhe deram hipótese de voltar atrás. Sei que ela só tinha treze anos, mas nunca mais quero falar com ela. Quanto aos outros, jamais poderei perdoar-lhes o que fizeram. Agora que me afastei deles começo a perceber o snobismo que estava por trás de tanta estupidez. A minha mãe nunca te perdoou por teres tido a melhor nota do teu curso. O meu pai preferiu refugiar-se no trabalho. Leon mostrou ser um idiota sorridente e sem carácter, que foi atrás dos outros. Quando Hardman decidiu dar cobertura a Danny, ninguém da família quis que a polícia lhe fizesse as perguntas óbvias. Tinham-te a ti para perseguir. Não queriam que o caso se complicasse. Sei que pareço amarga, mas garanto-te, meu querido, que não quero sê-lo. Estou sinceramente feliz com a minha nova vida e os meus novos amigos. Agora sinto que posso respirar. E principalmente tenho-te a ti como razão para viver. A verdade é que tinha de haver uma escolha - ou tu ou eles. Como seria possível conciliar as duas coisas? Não duvidei nem por um momento. Amo-te. Acredito inteiramente em ti. És o meu amor, a razão da minha vida. Cecília.”
Robbie sabia aquelas últimas linhas de cor e repetiu-as na penumbra do celeiro. A razão da minha vida, não para viver. Era essa a pedra de toque. E ela era a razão da vida dele, a razão pela qual tinha de sobreviver. Estava voltado de lado, a olhar para o sítio onde pensava ser a entrada do celeiro, à espera dos primeiros sinais de luz. Estava demasiado agitado para dormir. Só queria caminhar até à costa.
Não foram para a casa no Wiltshire. Três semanas antes de ele acabar a recruta a guerra foi declarada. A resposta das forças armadas foi automática, como os reflexos de um molusco. Todas as licenças foram canceladas. Algum tempo depois foram mesmo consideradas adiadas. Foi marcada uma data, que depois foi alterada e depois cancelada. Em vinte e quatro horas foram emitidos passes de comboio. Tinham quatro dias para se apresentar no novo regimento. Corria o boato de que iam ser mobilizados. Cecília tentara alterar a data das férias e em parte conseguira. Depois tentou nova mudança, mas já não conseguiu. Quando chegou o postal dele a comunicar-lhe a sua visita, ela ia a caminho de Liverpool para fazer um curso sobre traumatismos graves no hospital Alder Hay. No dia em que chegou a Londres, Robbie partiu para norte para ir ter com ela, mas os comboios andavam incrivelmente devagar. A prioridade era para o transporte militar para sul. Na estação de New Street, em Birmingham, perdeu uma ligação, e o comboio seguinte foi cancelado. Teria de esperar até à manhã seguinte. Andou meia hora de um lado para o outro da gare, num turbilhão de indecisão. Por fim decidiu voltar para trás. Apresentar-se tarde no quartel era uma falta grave.
Quando ela voltou de Liverpool estava ele a desembarcar em Cherbourg, tendo pela frente o Inverno mais triste da sua vida. Claro que estavam ambos muito angustiados, mas ela sentia o dever de se mostrar positiva e de o tranquilizar. “Não me vou embora”, escreveu ela na sua primeira carta depois de voltar de Liverpool. “Eu espero por ti. Volta.” Estava a citar-se a si própria. Sabia que ele se recordaria. Daí em diante passara a terminar assim todas as cartas que mandara para França, para Robbie, até à última, que chegara imediatamente antes da ordem de retirada em Dunquerque.
Tinha sido um Inverno longo e duro para a Força Expedicionária Britânica no Norte da França. Não acontecera nada de especial. Abriam trincheiras, asseguravam vias de abastecimento e eram enviados em exercícios nocturnos, que constituíam uma farsa para os soldados de infantaria, pois nunca lhes explicavam qual era o objectivo, para além de haver falta de armas. Fora de serviço, qualquer soldado passava a ser general. Até os soldados rasos tinham decidido que a guerra não voltaria a travar-se nas trincheiras. Mas as armas antitanque que eram esperadas nunca chegaram. Aliás, tinham muito pouco armamento pesado. Fora um tempo monótono, de jogos de futebol com as outras companhias e longas marchas por estradas secundárias, com as mochilas carregadas e sem nada para fazerem horas a fio a não ser caminhar e sonhar ao ritmo do som das botas no asfalto. Robbie costumava pensar nela e planear a sua carta seguinte, retocando as frases e tentando encontrar alguns momentos divertidos no meio de tão grande monotonia.
Talvez tenham sido os primeiros tons de verde das planícies francesas ou as manchas de campainhas que vislumbrava no meio dos bosques que o fizeram sentir a necessidade de reconciliação e de começar de novo. Decidiu que tinha de voltar a tentar convencê-la a estabelecer contacto com os pais. Não precisava de lhes perdoar, nem de voltar às questões antigas. Bastava escrever-lhes uma carta simples e pequena, a dizer-lhes onde e como estava. Quem poderia adivinhar as mudanças que teriam lugar nos anos seguintes? Sabia que, se ela não fizesse as pazes com os pais antes de um deles morrer, ficaria com remorsos para sempre. Nunca perdoaria a si próprio não a encorajar.
Por isso escreveu-lhe em Abril, mas a resposta dela só chegou em meados de Maio, quando já estavam a retirar das suas próprias linhas, não muito antes de receberem a ordem de recuar até ao Canal. Não tinha havido contacto com o fogo inimigo. A carta estava no bolso de cima do seu casaco. Fora a última a chegar até ele antes de o sistema de entrega de correspondência falhar de vez.
“...] Não ia contar-te isto agora. Ainda não sei o que pensar e queria esperar até estarmos juntos. Mas agora que recebi a tua carta não faz sentido não te dizer. A primeira surpresa é que Briony não está em Cambridge. Chegou o Outono e ela não apareceu. Fiquei admirada porque tinha ouvido o Dr. Hall dizer que estavam a contar com ela. A outra surpresa é que ela está a tirar o curso de enfermeira no meu antigo hospital. Imaginas a Briony com uma arrastadeira? Devem ter dito todos o mesmo a meu respeito. Mas ela é tão fantasista - como, aliás, nós bem sabemos. Tenho pena do doente a quem ela der uma injecção. A carta dela é confusa e confunde. Quer encontrar-se comigo. Está a começar a ter a noção do que fez e do que isso implicou. Claro que o facto de não ter ido para Cambridge tem a ver com isso. Diz que quer ser útil de uma forma prática. Mas tenho a impressão de que está a voltar-se para a enfermagem como uma espécie de penitência. Quer vir ter comigo para conversarmos. Posso ter-me enganado, e é por isso que preferia esperar e pôr-vos frente a frente, mas acho que ela quer retractar-se. Penso que deve querer alterar o seu depoimento e fazê-lo em termos oficiais ou legais. Pode nem sequer ser possível, uma vez que o teu recurso não foi aceite. Precisamos de conhecer melhor a lei. Talvez eu devesse ir a um advogado. Não quero criar esperanças em vão. Posso não ter interpretado bem o que ela queria dizer, ou ela pode não estar preparada para ir até ao fim. Lembra-te de como é sonhadora.
Não vou fazer nada enquanto não me escreveres. Não ia contar-te nada disto, mas quando insististe mais uma vez que eu entrasse em contacto com os meus pais (admiro o teu espírito generoso), tive de te dizer, pois a situação podia alterar-se. Se a lei não permitir que Briony se apresente perante um juiz e lhe confesse que teve segundas intenções, pode, pelo menos, dizer aos nossos pais. Depois eles podem decidir o que querem fazer. Se eles se resolverem a mandar-te um pedido de desculpas como deve ser, talvez tenhamos o princípio de um recomeço.
Passo a vida a pensar nela. Decidir-se pela enfermagem, cortar com as suas raízes, é um passo maior para ela do que foi para mim. Eu pelo menos passei três anos em Cambridge e tive uma razão óbvia para rejeitar a minha família. Ela também deve ter as suas razões. Não posso negar que estou com alguma curiosidade em descobrir. Mas estou à tua espera, meu querido; à espera que me digas o que pensas. E, a propósito, Briony também me disse que um texto dela foi recusado pelo Cyril Connolly, do Horizon. Pelo menos há alguém capaz de pôr fim às suas malditas fantasias.
Lembras-te daqueles gémeos prematuros de que te falei? O mais pequenino morreu. Foi na noite em que eu estava de serviço. A mãe reagiu mesmo muito mal. Tínhamos ouvido dizer que o pai era servente de pedreiro, e acho que estávamos todos à espera de um tipo baixo e bochechudo, com uma beata presa no lábio inferior. Tinha estado em East Anglia com uns empreiteiros contratados pelo exército para construírem defesas costeiras, e foi por isso que demorou tanto tempo a chegar ao hospital. Afinal era um tipo muito bonito, com dezanove anos, mais de um metro e oitenta de altura e cabelo loiro caído sobre a testa. Tinha o pé chato, como Byron, e por isso é que tinha ficado livre da tropa. A Jenny disse que ele parecia um deus grego. Foi tão doce, tão meigo e tão paciente com a mulher... Ficámos todos comovidos. A parte mais triste foi que, no momento em que ele estava mesmo a conseguir acalmá-la, a hora da visita acabou, e a Irmã obrigou-o a ir-se embora ao mesmo tempo que todas as outras pessoas. Ficou o pior para nós. Pobre mulher. Mas eram quatro horas, e regras são regras.
Vou rapidamente meter a carta à central de Balham, na esperança de que chegue ao outro lado do Canal antes do fim-de-semana. Mas não quero acabar com tristezas. Estou muito excitada com estas notícias da minha irmã e com o que isso pode significar para nós. Gostei da tua história sobre as latrinas dos sargentos. Li essa parte às minhas colegas, e elas riram como loucas. Estou muito contente por o oficial de ligação ter descoberto que falavas francês e te ter dado um trabalho compatível com isso. Por que razão demoraram tanto tempo a descobrir? Não querias que soubessem? Tens razão em relação ao pão francês - passados dez minutos estamos outra vez cheios de fome. É só ar, e massa nada. Balham não é tão mau como eu tinha dito, mas para a próxima conto-te mais. Junto um poema de Auden sobre a morte de Yeats que recortei de um London Mercury do ano passado. No fim-de-semana vou ver a Grace e vou procurar o teu Housman nas caixas. Tenho de me despachar. Estás sempre no meu pensamento. Amo-te. Eu espero por ti. Volta. Cecília.
Foi acordado por uma bota a tocar-lhe nas costas.
- Vá, chefe. Toca a levantar.
Sentou-se e olhou para o relógio. A entrada do celeiro era um rectângulo preto azulado. Tinha dormido menos de quarenta e cinco minutos. Mace tirou a palha das sacas e desmontou a mesa. Sentaram-se em silêncio nos fardos de feno a fumar o primeiro cigarro do dia. Quando saíram viram uma panela de barro com uma tampa de madeira. Lá dentro, embrulhados num pano de musselina, estava um pão e um naco de queijo. Turner dividiu logo os mantimentos com uma faca romba.
- É para o caso de sermos separados - murmurou ele.
Já havia uma luz acesa na casa e os cães estavam como loucos quando eles se foram embora. Saltaram por cima de um portão e começaram a atravessar um campo para norte. Passada uma hora pararam numa colina com algumas árvores para beber um trago dos cantis e fumarem. Turner estudou o mapa. Já se viam no céu os primeiros bombardeiros, uma formação de uns cinquenta Heinkels, também a voarem na direcção da costa. O Sol estava a nascer e havia uma pequena nuvem. Era um dia perfeito para a Luftwaffe. Caminharam em silêncio por mais uma hora. Não havia caminho, por isso ele orientou-se com a bússola, através de pastagens de vacas e ovelhas, nabais e searas de milho ainda novo. Evitarem as estradas principais não era tão seguro como ele pensava. Numa das pastagens de ovelhas havia doze crateras de granadas e bocados de carne, ossos e pele manchada, que tinham sido projectados a uma distância de quase cem metros. Mas eles estavam perdidos nos seus pensamentos, e nenhum deles falou. Turner estava às voltas com o mapa. Achava que estavam a uns quarenta quilómetros de Dunquerque. Quanto mais avançassem, mais difícil seria continuarem a evitar as estradas. Tudo convergia. Teriam de atravessar rios e canais. Quando chegassem perto das pontes, seria uma perda de tempo voltarem a desviar-se para o campo.
Depois das dez pararam para descansar outra vez. Tinham saltado por cima de uma vedação para alcançarem um caminho, mas Robbie não conseguia encontrá-lo no mapa. De qualquer forma, ficava para a direita, e era plano e quase sem árvores. Tinham andado mais meia hora quando ouviram fogo de antiaéreas alguns quilómetros à frente, numa zona onde se via um pináculo de uma igreja. Parou para consultar mais uma vez o mapa.
- No mapa não há borrachos - disse o cabo Nettle.
- Cala-te. Ele está com dúvidas.
Turner encostou-se a um poste da vedação. Sentia uma dor de lado sempre que assentava o pé direito no chão. A tal coisa aguçada que sentia dentro de si parecia estar a espetar-se na camisa. Era impossível resistir a tocar lá com um dedo. Só sentiu a carne mole e rasgada. Depois da noite que tinham passado, não fazia sentido ter de ouvir as parvoíces dos cabos. O cansaço e a dor estavam a pô-lo irritado, mas ele não disse nada e tentou concentrar-se. Encontrou a aldeia no mapa, mas não o caminho, embora fosse lá dar de certeza. Era tal e qual como ele tinha pensado. Iriam dar à estrada e teriam de seguir por ela até à linha da defesa no canal de Bergues-Furnes. Não havia outro caminho. A tagarelice dos cabos continuava. Dobrou o mapa e continuou a andar.
- Qual é o plano, chefe?
Robbie não respondeu.
- Olha. Agora ofendeste a menina.
Ouviram fogo de artilharia para lá das antiaéreas, algures para oeste. Ao aproximarem-se da aldeia ouviram o barulho de camiões a andarem devagar. Depois viram-nos, em comboio para norte, quase a passo. Era tentador apanhar boleia, mas sabia por experiência própria que do ar se tornariam um alvo muito mais fácil. A pé podia-se ver e ouvir o que se aproximava.
O caminho foi dar à estrada, que fez uma curva para a direita à saída da aldeia. Descansaram os pés durante uns dez minutos, sentados à beira de uma cuba de pedra. Eram camiões de três e dez toneladas, semi-reboques e ambulâncias, todos a chiarem ao dar a curva apertada a menos de dois quilómetros por hora e a afastarem-se da aldeia por uma estrada comprida e estreita, contornada do lado esquerdo por uma fileira de plátanos. A estrada seguia directamente para norte, para uma nuvem negra de óleo queimado suspensa na linha do horizonte, que assinalava Dunquerque. Já não era precisa bússola. Havia várias viaturas militares inutilizadas ao longo do caminho. Nada deveria ser deixado em condições de poder ser utilizado pelo inimigo. Os feridos conscientes olhavam sem expressão pela parte de trás dos camiões. Também havia carros blindados, carros de transporte de militares, porta-metralhadoras e motos. À mistura viam-se carros civis carregados de objectos de uso doméstico e malas, autocarros, tractores e carroças empurradas por homens e mulheres ou puxadas por cavalos. O ar estava cinzento com o fumo do gasóleo. Por entre aquele fumo empestado caminhavam exaustos centenas de soldados, naquele momento mais depressa do que os veículos, na sua maioria com os seus sobretudos grosseiros, que com o calor crescente da manhã estavam a tornar-se um fardo.
Ao lado dos soldados encontravam-se famílias com malas de viagem, trouxas, bebés ou a segurar crianças pela mão. O único som humano que Turner ouvia, a rasgar o zumbido dos motores, era o choro das crianças. Havia idosos a caminhar sozinhos. Um deles, com uma sobrepeliz, laço e pantufas, arrastava os pés com a ajuda de duas bengalas, tão devagar que até os camiões conseguiam ultrapassá-lo. Respirava com muito esforço. Fosse para onde fosse, não conseguiria lá chegar. Do outro lado da rua, à esquina, havia uma sapataria aberta. Lá dentro estava uma mulher com uma menina a seu lado a falar com um empregado que segurava um sapato diferente em cada mão. Nenhum prestava atenção ao que estava a acontecer atrás deles. Em direcção contrária, e tentando contornar a mesma esquina, havia uma coluna de blindados, ainda sem sinais de terem participado em combate, a dirigir-se para sul, para o lado de onde os alemães estavam a avançar. Do confronto com uma divisão Panzer apenas esperavam conseguir mais uma ou duas horas para os soldados em retirada.
Turner levantou-se, bebeu do cantil e juntou-se ao cortejo, colocando-se atrás de dois homens da Infantaria Ligeira das Highlands. Os cabos seguiram-no. Já não se sentia responsável por eles, agora que se tinham juntado ao grosso da retirada. O facto de não ter dormido aumentava a sua hostilidade. Os comentários deles irritavam-no e pareciam-lhe uma traição à camaradagem da noite anterior. Aliás, sentia-se hostil para toda a gente que via à sua volta. Os seus pensamentos tinham-se reduzido à questão da sua sobrevivência. Na tentativa de afastar os cabos, acelerou o passo, passou à frente dos escoceses e abriu caminho por entre um grupo de freiras com umas doze crianças com bibes azuis à sua guarda. Pareciam o que sobrava de um colégio interno, como aquele em que dera aulas perto de Lille, no Verão, antes de ter ido para Cambridge. Agora parecia-lhe que essa vida pertencera a um outro homem. Uma civilização morta. Primeiro fora a sua própria vida a ser arruinada, depois a de todas as outras pessoas. Continuou a andar com grandes passadas, zangado, sabendo que não conseguiria manter aquele ritmo por muito tempo. Tinha andado numa coluna como aquela no primeiro dia e sabia o que procurava. A sua direita havia uma vala, mas era baixa e estava à vista. A fila de árvores ficava do outro lado da estrada. Atravessou-a, passando à frente de uma carrinha Renault. Quando o fez, o condutor buzinou-lhe violentamente. O som agudo desencadeou em Turner um súbito ataque de fúria. Não aguentava mais! Deu um salto para junto da porta do condutor e abriu-a violentamente. Lá dentro estava um indivíduo baixo, bem vestido, com um fato cinzento e um chapéu de feltro, uma colecção de malas de pele no banco do lado e a família apinhada no assento traseiro. Turner agarrou o homem pela gravata e estava prestes a assestar uma valente bofetada naquela cara estúpida quando uma outra mão, muito forte, lhe prendeu o pulso.
- Isso não é o inimigo, chefe.
Sem lhe soltar a mão, o cabo Mace puxou-o para trás. Nettle, mesmo atrás do outro, fechou a porta do Renault com um pontapé tão feroz que o espelho retrovisor caiu. As crianças com os bibes azuis deram vivas e bateram palmas.
Passaram os três para o outro lado da estrada e continuaram a andar sob as árvores. O sol já ia bem alto e estava quente, mas a sombra ainda não chegava à estrada. Alguns dos veículos caídos nas valetas tinham sido atingidos em ataques aéreos. À volta dos camiões abandonados por que passavam viam-se utensílios espalhados pelos soldados à procura de qualquer coisa para comer ou beber. Turner e os cabos tiveram de saltar por cima de rolos de fita de máquina de escrever a sair das caixas, livros de contabilidade, secretárias de folhas e cadeiras giratórias, utensílios de cozinha e peças de motores, selas, estribos e arreios, máquinas de costura, taças de futebol, cadeiras de empilhar, um projector de filmes e um gerador a petróleo, ambos destruídos por um pé-de-cabra caído perto deles. Passaram por uma ambulância, meio enfiada na valeta, à qual tinham tirado um pneu. Na porta via-se uma placa de latão com a inscrição: “Esta ambulância foi oferecida pelos ingleses residentes no Brasil.”
Turner descobriu que era possível adormecer a andar. De repente deixou de ouvir o barulho dos camiões, depois os músculos do seu pescoço começaram a descontrair-se e a cabeça tombou ligeiramente. Acordou com uma pequena inclinação do seu passo. Nettle e Mace eram a favor de apanharem boleia. Mas ele já lhes tinha dito no dia anterior o que vira na primeira coluna - vinte homens na parte de trás de um camião de três toneladas mortos com uma só bomba. Fora nessa altura que ele se tinha escondido numa vala, com a cabeça tapada, e tinha sido atingido pelo estilhaço.
- Vão vocês - disse ele. - Eu continuo aqui.
Abandonaram a ideia. Não iriam sem ele - era o seu amuleto.
Aproximaram-se de mais um grupo de homens da HLI. Um deles ia a tocar gaita-de-foles e a incitar os cabos a começarem os seus sons nasalados de acompanhamento. Turner fez menção de atravessar a estrada.
- Se começares outra briga, não contes comigo.
Um grupo de escoceses já se tinha voltado. Estavam a murmurar uns para os outros.
- Nôte sem Lua nã é nôte - gritou Nettle em cockney.
Podia ter acontecido qualquer coisa de estranho, se não tivessem ouvido um tiro de pistola ao longe. Atiraram-se para o chão, silenciando as gaitas-de-foles. A cavalaria francesa tinha-se reunido num campo aberto e desmontado, formando uma longa fila. Um oficial deslocava-se ao longo dessa fila, dando um tiro na cabeça dos cavalos, um a um. Os homens mantinham-se ao lado das suas montadas, com os bivaques cerimoniosamente encostados ao peito. Os cavalos esperavam pacientemente que chegasse a sua vez. A encenação da derrota deprimia ainda mais todas aquelas pessoas. Os cabos não queriam meter-se com os escoceses, que não tinham vontade de continuar a importunar-se com eles. Passados alguns minutos viram cinco corpos numa valeta, três homens e duas crianças, com as malas espalhadas à sua volta. Uma das mulheres estava de pantufas, como o homem de sobrepeliz. Turner voltou a cara para o lado, decidido a não se deixar impressionar. Para sobreviver teria de se concentrar no céu, mas estava tão cansado que se esquecia constantemente. E agora já estava muito calor. Alguns homens estavam a deixar os sobretudos caídos pelo chão. Um dia glorioso. Noutros tempos um dia assim teria sido considerado um dia glorioso. A estrada era comprida e ligeiramente a subir, o suficiente para dar cabo das pernas e lhe aumentar as dores na ferida. Estava a ficar com uma bolha no calcanhar do pé esquerdo, o que o obrigava a chegar o pé para a frente da bota. Sem parar, tirou o pão e o queijo do saco, mas tinha a boca demasiado seca para conseguir mastigar. Acendeu outro cigarro para disfarçar a fome e tentou reduzir a sua missão ao mais básico: vamos andar por terra até chegarmos ao mar. O que haveria de mais simples, depois de afastado o elemento humano? Era o único homem do mundo, e o seu objectivo era claro. Caminhava por terra até chegar ao mar. Sabia que a realidade à sua volta tinha um grande peso social; havia outros homens a persegui-lo, mas tinha o consolo de um objectivo e finalmente um ritmo a marcar os seus passos. Andar/por/terra/até/chegar/ao mar.
Ao fim de vinte minutos a estrada começou a ficar plana. Espreitou por cima do ombro e viu a coluna descer o monte, por uma extensão de quase dois quilómetros. Atravessaram uma linha de caminho-de-ferro. Pelo mapa faltavam quase vinte e cinco quilómetros até ao Canal. Chegaram a uma parte do percurso em que o equipamento destruído ao longo da estrada era mais ou menos contínuo. Para lá da valeta estavam amontoados meia dúzia de canhões, como se tivessem sido arrastados para lá por um buldózer. Mais à frente, no sítio onde a estrada começava a descer, havia um cruzamento com uma estrada secundária. No local reinava alguma agitação. Ouviam-se soldados a rir e vozes alteradas do lado da estrada. Ao aproximar-se viu um major dos Buffs, um indivíduo corado, da velha escola, na casa dos quarenta, a gritar e a apontar para um bosque que ficava a pouco mais de um quilómetro, entre duas leiras. Estava a tirar alguns homens da coluna, ou pelo menos a tentar. A maior parte ignorava-o e continuava a andar, alguns riam-se dele, mas outros, intimidados pelo seu posto, tinham parado, embora ele não tivesse qualquer autoridade pessoal. Tinham-se juntado à volta dele, de espingarda em punho, com uma expressão de incerteza.
- Tu. Sim, tu. Tu serves.
A mão do major estava no ombro de Turner, que parou e fez continência antes de saber o que estava a fazer. Atrás dele estavam os cabos.
O major tinha um bigode pequenino, por cima de uns lábios estreitos e semicerrados que pareciam cortar-lhe abruptamente as palavras.
- Temos o Jerry preso naquele bosque. Deve ser um grupo avançado. Mas está bem protegido com algumas metralhadoras. Vamos surpreendê-los e tirá-lo de lá.
Turner sentiu as pernas a gelarem e a enfraquecerem de horror. Mostrou ao major as mãos vazias.
- Com quê, meu major?
- Com astúcia e algum trabalho de equipa.
Como seria possível resistir àquele louco? Turner estava demasiado cansado para pensar, mas sabia que não iria.
- Tenho o que resta de dois pelotões a meio caminho para leste...
“O que resta” era a expressão que resumia tudo e que levou Mace, com a sua sabedoria de caserna, a interromper.
- Peço licença para falar, meu major.
- Não concedida.
- Obrigado, meu major. É uma ordem do quartel-general para avançar a toda a pressa, sem demoras, desvios ou divagações, para Dunquerque para proceder à sua evacuação imediata por ter sido “invadida de forma drástica e onerosa por todos os lados”.
O major voltou-se e espetou o dedo no peito de Mace.
- Ouve bem o que te digo. É a nossa última hipótese de mostrarmos...
O cabo Nettle disse com um ar sonhador:
- Foi Lorde Gort que escreveu a ordem e a mandou pessoalmente, meu major.
Turner achava extraordinário que estivessem a dirigir-se assim a um superior. E também arriscado. O major ainda não tinha percebido que estavam a gozar com ele. Parecia estar convencido de que fora Turner a falar, pois o pequeno discurso que se seguiu foi dirigido a ele.
- A retirada é uma carnificina. Por amor de Deus, homem. É a tua última oportunidade de mostrarmos o que conseguimos fazer quando estamos decididos e determinados. Mas há mais...
Continuou a falar por mais algum tempo, mas Turner teve a sensação de que um silêncio abafado descera sobre aquele episódio. Desta vez não estava a dormir. Olhou por cima do ombro do major para a frente da coluna. Ao longe, a uns dez metros acima da estrada, a tremeluzir sob efeito do calor cada vez mais intenso, estava o que parecia uma placa de madeira, suspensa na horizontal, com um montículo ao meio. Não estava a ouvir as palavras do major, nem sequer os seus pensamentos. Aquela aparição pairava no céu sem aumentar de tamanho e, embora começasse a compreender o que significava, era-lhe impossível reagir ou sequer mover os membros, como se fosse um sonho. A sua única acção fora abrir a boca, mas não conseguiu produzir nenhum som, mas, mesmo que conseguisse, não saberia o que dizer.
Então, precisamente nesse momento, quando o som voltou, conseguiu gritar: “Fujam!” Começou a correr para o abrigo mais próximo. Fora um conselho muito vago e muito pouco militar, mas sentiu os cabos atrás dele. Também lhe parecia um sonho o facto de não conseguir mexer as pernas suficientemente depressa. Não era dor que sentia abaixo das costelas, mas qualquer coisa a roçar no osso. Deixou cair o sobretudo. Uns cinquenta metros à frente estava um camião de três toneladas voltado de lado. O chassis negro e oleoso e a protuberância do diferencial eram a sua única hipótese de se abrigar. Não tinha muito tempo para lá chegar. Um caça estava a bombardear toda a coluna. As explosões avançavam estrada acima a uma velocidade de trezentos e cinquenta quilómetros por hora, bem como o estrépito das balas de canhão a atingirem metal e vidro. Nenhum dos ocupantes dos veículos que pareciam de papel tinha começado a reagir. Os motoristas limitavam-se a registar o espectáculo através dos pára-brisas. Estavam onde ele estivera segundos antes. Os homens que iam na parte de trás dos camiões não sabiam de nada. Um sargento foi para o meio da estrada, de espingarda erguida. Uma mulher gritou no preciso momento em que o fogo se concentrou por cima deles e Turner se abrigou debaixo do camião derrubado. A estrutura de aço tremeu ao ser atingida pelas balas com a velocidade louca de um tambor a rufar. Depois o fogo dos canhões varreu tudo, precipitando-se ao longo da coluna, acompanhado pelo rugido do caça e os movimentos vacilantes da sua sombra. Refugiou-se mais para o fundo do chassis, junto à roda dianteira. Nunca o cheiro do óleo lhe parecera tão agradável. A espera de outro avião, acocorou-se em posição fetal, com os braços a prenderem a cabeça, os olhos fechados com força e a pensar unicamente em sobreviver.
Mas não aconteceu nada. Só os sons dos insectos envolvidos nas suas actividades do fim da Primavera, e cantos de pássaros suspensos durante uma pausa considerável. E depois, como se aproveitassem a boleia dos pássaros, os feridos começaram a gemer e a gritar e as crianças, aterrorizadas, começaram a gritar. Como de costume, alguém praguejava contra a RAF. Turner levantou-se e estava a escovar-se quando Nettle e Mace apareceram. Dirigiram-se então em conjunto até ao major, que estava sentado no chão. Tinha ficado completamente branco e estava agarrado à mão direita.
- Uma bala atravessou-a de um lado ao outro - disse-lhes ele ao chegarem. - Foi uma sorte.
Ajudaram-no a pôr-se de pé e ofereceram-se para o levar para uma ambulância onde um capitão do Corpo Médico e duas ordenanças estavam já a tratar dos feridos, mas ele abanou a cabeça e ficou onde estava. Em estado de choque era mais loquaz e a sua voz era mais suave.
- Um ME 109. Deve ter sido a metralhadora dele. O canhão ter-me-ia arrancado a mão. Vinte milímetros. Deve ter-se afastado do grupo. Viu-nos quando ia a caminho de casa e não resistiu. Não posso levar-lhe a mal. O problema é que daqui a pouco tempo virão mais.
A meia dúzia de homens que ele reunira antes tinha saído da valeta e pegado de novo nas armas. O facto de os ver fez o major cair em si.
- Muito bem, rapazes. Vamos a formar.
Pareciam incapazes de lhe resistir e por isso formaram.
- E vocês os três também - disse ele, a tremer ligeiramente, dirigindo-se a Turner.
- Bem, meu velho, para dizer a verdade, acho melhor não.
- Ah, estou a ver. - Olhou de soslaio para o ombro de Turner, fingindo ver as insígnias de um posto superior. Com uma expressão bem-disposta, fez continência com a mão esquerda.
- Nesse caso, se não se importam, nós vamos andando. Desejem-nos boa sorte.
Viram-no marchar com o seu relutante destacamento em direcção ao bosque onde as metralhadoras os esperavam.
Durante meia hora a coluna não se mexeu. Turner pôs-se à disposição do capitão do Corpo Médico e ajudou os maqueiros a transportarem os feridos. Depois arranjou lugar para eles nos camiões. Não havia sinal dos cabos. Foi buscar mantimentos à parte de trás de uma ambulância. Ao ver o capitão em acção, a coser a cabeça de um soldado, sentiu-se perturbado pela sua velha ambição. O sangue obscurecia os pormenores que recordava dos manuais. Naquele pedaço do caminho havia cinco feridos e, surpreendentemente, ninguém morrera, apesar de o sargento que tinha a espingarda ter sido atingido na cara e ser pouco provável que sobrevivesse. Três veículos haviam sido atingidos na parte da frente e tinham sido afastados da estrada. Retiraram-lhes o gasóleo e dispararam contra os pneus para acabarem de os inutilizar.
Depois de terem concluído os trabalhos na zona, continuava a não se ver qualquer movimento na parte da frente da coluna. Turner apanhou o sobretudo e pôs-se a caminho. Tinha demasiada sede para esperar. Uma velhota belga ferida num joelho tinha bebido o resto da sua água. Sentia a língua muito espessa na boca e só conseguia pensar em arranjar qualquer coisa para beber. Nisso e em prestar atenção ao céu. Passou por outras zonas onde estavam a fazer o mesmo que eles tinham feito, ou seja, a inutilizar os veículos e a levar os feridos para os camiões. Tinha andado durante uns dez minutos quando descobriu a cabeça de Mace sobre a relva ao lado de um monte de terra. Estava a uns vinte e cinco metros de distância, à sombra de um grupo de choupos. Encaminhou-se para lá, apesar de suspeitar que seria melhor para o seu estado de espírito continuar a andar. Descobriu Mace e Nettle enfiados numa cova até aos ombros. Estavam a cavar uma sepultura. Sobre o monte de terra estava um rapaz de uns quinze anos de barriga para baixo. Nas costas da camisa tinha uma mancha vermelha que se estendia do pescoço até à cintura.
Mace apoiou-se na pá e fez uma imitação bastante razoável:
- “Acho melhor não.” Muito bem, chefe. Vou lembrar-me dessa para a próxima.
- Foi uma boa ideia. Onde foste buscar isso?
- Ele engoliu um dicionário - disse o cabo Nettle orgulhosamente.
- Costumava fazer palavras cruzadas.
- É “invadida de forma drástica e onerosa por todos os lados?”
- Foi numa festa na messe dos sargentos no Natal do ano passado.
Ainda dentro da cova, Mace e Nettle cantaram sem a mínima afinação para alegrar Turner:
Era terrível rever as imagens dessa invasão drástica e onerosa.
Atrás deles, a coluna recomeçava a marcha.
- É melhor enterrá-lo - disse o cabo Mace.
Os três homens pegaram no corpo do rapaz e puseram-no de costas. Tinha um conjunto de canetas de tinta permanente no bolso. Os cabos não estiveram com cerimónias. Começaram a atirar pazadas de terra e, passado pouco tempo, já não se via o rapaz.
- Era bonito - disse Nettle.
Os cabos tinham entrelaçado dois paus de uma tenda para fazerem uma cruz. Nettle enfiou-a na terra com a pá. Mal acabaram, voltaram à estrada.
- Estava com os avós - disse Mace. - Não quiseram que ele ficasse na valeta. Pensei que eles viriam vê-lo, mas estavam em péssimo estado. É melhor irmos dizer-lhes onde é que ele está.
Mas não conseguiram encontrar os avós do rapaz. Continuaram a andar, e Turner pegou no mapa e disse:
- Continuem a olhar para o céu.
O major tinha razão. Depois da passagem casual do Messerschmitt, eles voltariam. Aliás, até já deviam ter voltado. O canal Bergues-Furnes estava assinalado a azul no mapa. A impaciência de Turner por lá chegar tornara-se inseparável da sua sede. Enfiaria a cara naquela mancha azul e beberia até não poder mais. A ideia fê-lo recordar os febrões da infância, a sua lógica intensa e assustadora, a busca de uma zona fresca da almofada e a mão da mãe sobre a sua testa. Querida Grace. Quando pôs a mão na testa sentiu a pele enrugada e seca. Sentia que a inflamação à volta da ferida estava a aumentar e que a pele estava a ficar mais esticada, mais dura e com um líquido qualquer, que não era sangue, a sair para a camisa. Queria examinar-se num local sossegado e a sós, mas ali seria difícil. A coluna deslocava-se ao seu antigo passo inexorável. A estrada seguia directamente para a costa - agora não haveria mais atalhos. Quando se aproximavam, a nuvem negra, provocada de certeza por uma refinaria a arder em Dunquerque, começava a dominar por completo o céu a norte. Não havia nada a fazer a não ser caminhar nessa direcção. Por isso refugiou-se mais uma vez no silêncio de uma caminhada cabisbaixa.
A estrada já não tinha a protecção dos plátanos. Vulnerável aos ataques e sem sombra, estendia-se agora pelo terreno ondulado em longas formas em S. Turner desperdiçara reservas preciosas em conversas e encontros desnecessários. O cansaço dera-lhe um entusiasmo superficial. Reduziu o seu avanço ao ritmo das suas botas - teria de atravessar a terra até chegar ao mar. Teria de se aliviar de tudo o que o impedisse de alcançar esse objectivo, nem que fosse por uma fracção de tempo, concentrando-se em tudo o que o impelia a continuar. Num dos pratos da balança estava a sua sede, a bolha no pé, o cansaço, o calor, a dor nas pernas e nos pés, a distância, o canal; no outro prato Eu espero por ti e a recordação do momento em que ela o dissera, que para ele se tornara um local sagrado. Também o medo de ser capturado. As suas recordações mais sensuais - os seus poucos minutos na biblioteca, o beijo em Whitehall - tinham perdido a cor à força de serem utilizadas em excesso. Sabia de cor certos passos das cartas dela, revira a sua pequena guerra por causa da jarra junto da fonte, lembrava-se do calor do braço dela no jantar em que os gémeos tinham desaparecido. Eram essas recordações que o encorajavam, mas não muito facilmente. Lembrava-se demasiadas vezes do sítio onde estava da última vez que as evocara. Estavam na extremidade mais distante de um grande cisma temporal, tão significativo como a. C e d. C. Antes da prisão, antes da guerra, antes da visão de um cadáver se ter tornado uma banalidade. Mas todas essas heresias tinham morrido no momento em que lera a última carta dela. Tocou no bolso de cima.
Era uma espécie de genuflexão. Continuava lá. Era um dado novo nos pratos da balança. A possibilidade de ser considerado inocente tinha toda a simplicidade do amor. Só o facto de pensar nisso lhe recordava inúmeras coisas que tinham minguado e desaparecido. O seu gosto pela vida, todas as suas ambições e prazeres. Tinha pela frente uma perspectiva de renascimento, de um regresso triunfante. Podia tornar-se outra vez o homem que atravessara um parque no Surrey ao fim da tarde, com o seu melhor fato, agitado com a promessa da vida, entrara em casa de Cecília e fizera amor com ela - não: aproveitando a palavra dos cabos, tinham-se comido enquanto os outros tomavam os seus cocktails no terraço. A história poderia recomeçar, a que planeara naquele passeio nocturno. Ele e Cecília deixariam de estar isolados. O seu amor teria um espaço e uma sociedade para se desenvolver. Não andaria de chapéu na mão a coleccionar pedidos de desculpas dos amigos que o tinham abandonado. Nem iria recostar-se orgulhosa e tenazmente na sua cadeira, a abandoná-los a eles. Sabia exactamente o que faria. Limitar-se-ia a recomeçar onde tinha parado. Se conseguisse que o seu registo criminal ficasse limpo, tornaria a candidatar-se a Medicina quando a guerra acabasse, ou, quem sabe, talvez fizesse uma comissão no Corpo Médico. Se Cecília fizesse as pazes com a família, manter-se-ia a uma certa distância, mas sem se mostrar amargo. Nunca poderia ser íntimo de Emily ou de Jack. Ela encorajara a sua condenação com uma estranha ferocidade, enquanto Jack regressara ao seu ministério e lá desaparecera, no momento em que fora preciso. Nada disso interessava. Visto dali parecia simples. Estavam a passar por mais corpos na estrada, nas valetas e nos passeios, dezenas de soldados e civis. O cheiro era nauseabundo e infiltrava-se-lhes na roupa. A coluna tinha entrado numa aldeia bombardeada, ou talvez nos arredores de uma pequena cidade - estava tudo em escombros, pelo que era difícil dizer. Que importância tinha? Quem conseguiria descrever aquela confusão e lembrar-se dos nomes e das aldeias e das datas para os livros de história? E ter uma visão razoável dos acontecimentos e começar a atribuir culpas? Nunca ninguém saberia o que era estar ali. Sem os pormenores, não poderia haver uma visão de conjunto. As lojas, as máquinas e os veículos abandonados constituíam uma avenida de destroços que transbordava para lá do seu caminho. Por causa disso, e por causa dos corpos, tinham de andar pelo meio da estrada, o que também não interessava, pois a coluna já não se movimentava. Os soldados desciam dos veículos de transporte e continuavam a pé, tropeçando em telhas e tijolos. Os feridos ficavam à espera nos camiões. Havia uma maior acumulação de corpos num espaço reduzido, e por isso mais irritação. Turner manteve-se cabisbaixo, a seguir o homem que caminhava à sua frente, protegendo-se com os seus pensamentos.
Seria considerado inocente. Visto dali, onde nem sequer se dava ao trabalho de levantar os pés para passar por cima do braço de uma mulher morta, achava que não precisaria de desculpas nem de homenagens. Ser considerado inocente seria um estado puro. Sonhou com isso como um amante, com uma ânsia discreta. Sonhava com isso da mesma forma que outros soldados sonhavam com os seus lares, as suas hortas ou os seus antigos empregos. Se ali a inocência parecia algo de elementar, não se percebia por que razão não seria assim de regresso a Inglaterra. Que o seu nome fosse limpo e que todos os outros se sentissem bem com os seus pensamentos. Ele dera-lhes tempo; eles que fizessem o trabalho. A sua tarefa era simples: descobrir Cecília, amá-la, casar com ela e viver sem vergonha. Mas havia ainda um aspecto de tudo aquilo cujo desfecho ele não conseguia entrever, uma forma indistinta cujos destroços a vinte quilómetros de Dunquerque não conseguia reduzir a um simples contorno. Briony. Era esse o limite daquilo a que Cecília chamava o seu espírito generoso. E a sua racionalidade. Se Cecília voltasse a reunir-se à sua família, se as duas irmãs voltassem a aproximar-se, não haveria maneira de a evitar. Mas seria ele capaz de a aceitar? Poderia estar na mesma sala onde ela estivesse? Naquele momento ela oferecia-lhe uma possibilidade de absolvição. Mas essa absolvição não era para ele. Ele não fizera nada de mal. Destinava-se a ela própria, ao seu próprio crime, que a sua consciência já não conseguia aguentar. Deveria sentir-se grato? E era verdade que em 1935 ela era uma criança. Dissera-o a si próprio, e ele e Cecília tinham-no dito um ao outro vezes sem conta. Sim, era uma criança. Mas nem todas as crianças mandam um homem para a prisão com uma mentira. Nem todas as crianças são maldosas com premeditação, coerentes ao longo do tempo, sem nunca hesitarem nem duvidarem. Era uma criança, mas isso não o impedira de sonhar acordado na sua cela com a humilhação dela, com inúmeras formas de se vingar. Uma vez, em França, na semana mais agreste do Inverno, com o espírito toldado e enfurecido pelo conhaque, chegara a imaginá-la na ponta da sua baioneta. Briony e Danny Hardman. Não era razoável nem justo odiar Briony, mas isso ajudava-o.
Como compreender a mente daquela criança? Só havia uma teoria plausível. Era um dia de Junho de 1932, tão belo como inesperado, depois de vários dias de chuva e vento. Era uma daquelas raras manhãs que se declaram, através de uma ostensiva extravagância de calor e luz e folhas novas, como o verdadeiro começo, o grande portal do Verão. Ele ia a andar com Briony, tinha passado pela fonte do Tritão, pela vedação e pelos rododendros, atravessado o portão e iam a descer pelo estreito caminho do bosque. Briony estava excitada e faladora. Devia ter uns dez anos e tinha começado a escrever as suas histórias. Como todos os outros, também ele recebera uma história de amor, encadernada e ilustrada, com adversidades ultrapassadas, um reencontro e um casamento. Estavam sozinhos junto ao rio para a lição de natação que ele lhe prometera. Briony devia estar a contar-lhe uma história que tinha acabado de escrever ou um livro que acabara de ler. Devia ir de mão dada com ele. Era uma menina calma, enérgica, um tanto ou quanto empertigada, e aquela loquacidade era pouco habitual. Estava a gostar de a ouvir. Também para ele era uma época excitante. Tinha dezanove anos, os exames estavam quase a acabar e estavam a correr-lhe bem. Em breve deixaria de ser um menino da escola. A entrevista para entrar em Cambridge correra bem e ele partiria em breve para França, onde daria aulas de Inglês num colégio de freiras. O dia tinha uma espécie de grandiosidade. Os choupos e os carvalhos colossais, quase imóveis, deixavam passar a luz como jóias entre a folhagem, formando lagos sobre as folhas mortas do ano anterior. Aquela magnificência, sentiu ele com a importância que a sua juventude lhe transmitia, reflectia a fase gloriosa por que a sua vida estava a passar.
Briony continuava a tagarelar e Robbie ia ouvindo, satisfeito. O caminho afastou-se do bosque, emergindo na margem ampla e relvada do rio. Subiram rio acima durante menos de um quilómetro e voltaram a entrar no bosque. Era ali, numa curva do rio, por baixo das árvores, que estava a represa, construída no tempo do avô de Briony. As pedras abrandavam a corrente, criando um sítio óptimo para nadar e mergulhar. Não era o ideal para principiantes. Saltava-se da represa ou da margem para um lago com quase três metros de profundidade. Ele mergulhou e ficou à espera dela. Tinham começado as lições de natação no ano anterior, no fim do Verão, numa altura em que o rio estava mais baixo e a corrente era mais fraca. Mas naquele momento até no lago havia um ligeiro remoinho. Briony parou por um momento e depois saltou da margem para os braços dele, com um grito. Experimentou dar algumas braçadas até que a corrente a levou contra a represa e depois ele arrastou-a para o lago, para ela poder recomeçar. Quando resolveu tentar nadar de bruços, depois de um Inverno de negligência, teve de a ajudar, o que não era fácil, tendo em conta que ele próprio tinha de se esforçar por se manter à tona. Se ele retirasse a mão debaixo dela, ela só conseguiria dar duas ou três braçadas antes de se afundar. Divertia-a o facto de ao nadar contra a corrente não sair do mesmo sítio. Mas não parava quieta. Deixava-se sempre arrastar para a represa, onde se segurava a uma argola de ferro enferrujada, à espera dele, com o rosto lívido sobre o fundo das paredes cobertas de musgo e do cimento esverdeado. Briony nadou para cima e chamou-o. Queria repetir a experiência, mas a água estava fria e ao fim de um quarto de hora ele já estava farto. Puxou-a para a margem e, ignorando os seus protestos, ajudou-a a sair.
Tirou a roupa do cesto e afastou-se um pouco para o bosque para se vestir. Quando voltou ela estava parada exactamente no sítio onde a tinha deixado, na margem, a olhar para a água, com a toalha à volta dos ombros.
- Se eu caísse ao rio, salvavas-me? - perguntou ela.
- Claro - respondeu ele, debruçado sobre o cesto, no preciso momento em que a ouviu, mas não viu, cair.
Tinha deixado a toalha na margem. Para além dos círculos concêntricos que agitavam a água, não havia sinais dela. Depois apareceu à superfície, encheu o peito de ar e tornou a mergulhar. Desesperado, Robbie pensou correr para a represa e apanhá-la aí, mas a água era verde e opaca. Só a encontraria abaixo da superfície às apalpadelas. Não tinha outra hipótese: atirou-se para a água de sapatos, casaco e tudo. Encontrou quase de imediato o braço dela, enfiou-lhe a mão por debaixo do ombro e içou-a. Para sua surpresa, ela continuava a reter a respiração. Depois desatou a rir à gargalhada e agarrou-se ao pescoço dele. Robbie empurrou-a para a margem e, com grande dificuldade por ter a roupa encharcada, saiu de dentro de água.
- Obrigada - repetiu ela por diversas vezes. - Obrigada, obrigada.
- Foi uma grande parvoíce o que fizeste.
- Queria que me salvasses.
- Não percebes que podias ter morrido afogada?
- Mas tu salvaste-me.
A sua zanga foi acentuada pela aflição e pelo alívio.
- Estúpida! Podíamos ter morrido os dois - exclamou ele quase a gritar.
Briony ficou em silêncio. Robbie sentou-se na relva, a despejar a água dos sapatos.
- Enfiaste-te debaixo de água e eu não conseguia ver-te. O peso da roupa puxava-me para baixo. Podíamos ter morrido os dois afogados. Achas piada? Achas?
Não havia mais nada a dizer. Ela vestiu-se e partiram, Briony à frente, e ele atrás dela, a patinhar. Queria chegar à claridade do parque. Daí teria de fazer uma longa caminhada até à casa de madeira para mudar de roupa. Ainda não lhe tinha passado a raiva. Achou que ela já tinha idade suficiente para pedir desculpa. Mas Briony caminhava em silêncio, cabisbaixa, talvez a soluçar - ele não conseguia ver. Depois de deixarem o bosque e passarem o portão, Briony parou e voltou-se. Falou num tom decidido, quase desafiador. Em vez de chorar, olhava-o bem nos olhos.
- Sabes porque queria que me salvasses?
- Não.
- Não é óbvio?
- Não, não é.
- Porque te amo.
Disse-o corajosamente, de queixo levantado, a pestanejar rapidamente, aturdida pela importante verdade que acabara de dizer.
Robbie conseguiu controlar o impulso de dar uma gargalhada. Era objecto da paixão de uma criança.
- Que queres dizer com isso?
- Quero dizer o mesmo que toda a gente que o diz. Amo-te.
Desta vez as palavras foram proferidas num patético tom ascendente. Robbie percebeu que tinha de resistir à tentação de troçar dela. Mas era difícil.
- Como me amas, atiras-te ao rio.
- Queria saber se me salvavas.
- Agora já sabes. Arrisquei a minha vida por ti. Mas isso não significa que te ame.
Ela ergueu ligeiramente a cabeça.
- Quero agradecer-te por me teres salvo a vida. Ficar-te-ei eternamente grata.
Eram certamente citações de um dos seus livros, ou talvez as tivesse lido ou escrito ultimamente.
- Está bem - disse ele. - Mas não tornes a fazer isso. Nem por mim nem por ninguém. Prometes?
Ela respondeu que sim com a cabeça e depois, quando se separaram, disse:
- Amo-te. Agora já sabes.
Briony afastou-se em direcção a casa. A tremer, apesar de estar ao sol, ficou a vê-la até a perder de vista e depois foi para casa. Nunca mais esteve sozinho com ela até partir para França e quando voltou já ela tinha ido para o colégio interno. Passado pouco tempo, ele foi para Cambridge e passou o Natal com alguns amigos. Só a viu em Abril do ano seguinte, e nessa altura já o assunto estava esquecido.
Estaria?
Tinha passado muito tempo sozinho, demasiado tempo, e tinha pensado muito. Não se lembrava de mais nenhuma conversa estranha com ela, de nenhum comportamento invulgar, de nenhum olhar sugestivo, de nenhum amuo que pudesse sugerir que a sua paixão de menina de escola tinha durado para além daquele dia em Junho. Robbie voltara ao Surrey quase sempre que tinha férias e Briony tivera inúmeras oportunidades de o procurar na casa de madeira ou de lhe mandar um recado. Na altura ele andava ocupado com a sua nova vida, entregue às novidades da sua vida de estudante e também apostado em criar uma certa distância entre si e a família Tallis. Mas devia ter havido sinais que lhe tinham passado despercebidos. Briony devia ter alimentado aquela paixão por ele ao longo de três anos, mantendo-a escondida, encorajando-a com fantasias ou embelezando-a com as suas histórias. Era o tipo de rapariga que vivia absorta nos seus pensamentos. O drama junto ao rio podia ter sido matéria suficiente para ela durante todo aquele tempo.
Aquela teoria, ou convicção, apoiava-se na recordação de um único encontro - o da ponte, ao crepúsculo. Durante vários anos repetira mentalmente aquele passeio pelo parque. De certeza que ela sabia que ele tinha sido convidado para jantar. Andava descalça, com uma saia branca, toda suja, o que já de si era bastante estranho. Devia ter estado à espera dele, talvez a preparar o seu pequeno discurso, talvez a ensaiá-lo em voz alta, sentada no parapeito de pedra. Quando finalmente ele chegou, Briony não conseguia falar. Devia ser uma prova de qualquer coisa. Logo nessa altura ele achou estranho que ela não lhe tivesse dito nada. Deu-lhe a carta e ela foi-se embora a correr. Passados alguns minutos abriu-a. Ficou chocada, e não apenas por causa de uma palavra. Achava que ele tinha traído o seu amor preferindo a irmã. Depois, na biblioteca, confirmara o pior, e aí todas as suas fantasias tinham desabado. Primeiro a desilusão e o desespero; depois uma amargura cada vez maior. Por fim, uma oportunidade extraordinária de se vingar, enquanto andavam à procura dos gémeos na escuridão. Apontou-o a ele - e ninguém duvidou, a não ser a irmã dela e a mãe dele. Conseguia perceber o impulso, o assomo de maldade, a vontade infantil de destruir. O que o espantava era a dimensão do rancor dela, a insistência dela numa história que o levaria à prisão de Wandsworth. Agora talvez pudesse ser declarado inocente, e isso alegrava-o. Reconheceu a coragem que ela teria de ter para voltar ao tribunal e negar o depoimento que prestara sob juramento. Mas achava que não podia apagar o seu ressentimento em relação a ela. Sim, na altura ela era uma criança, mas ele não conseguia perdoar-lhe. Jamais lhe perdoaria. Era esse o dano inultrapassável.
Lá à frente havia mais confusão, mais gritos. Por incrível que parecesse, havia uma coluna de blindados a abrir caminho por entre a aglomeração de veículos, soldados e refugiados. A multidão afastava-se com relutância para os espaços entre os veículos abandonados ou encostando-se a paredes e portas destruídas. Era uma coluna francesa, pouco mais do que um destacamento - três carros blindados, dois semi-reboques e dois veículos de transporte de militares. Não havia qualquer indicação de que estivessem todos envolvidos na mesma causa. Por entre as tropas britânicas reinava a ideia de que os franceses os tinham abandonado. Não estavam dispostos a lutar pelo seu próprio país. Irritados por estarem a ser afastados, os soldados ingleses praguejavam e vituperavam os aliados com gritos de “Maginot!” Os poilus deviam ter ouvido boatos de uma evacuação. E ali estavam eles, a ser enviados para cobrir a retaguarda. “Cobardes! Vão para os barcos! São uns merdas!”
Depois desapareceram e a multidão tornou a reunir-se sob uma nuvem de fumo de gasóleo. Continuaram a andar.
Estavam a chegar às últimas casas da aldeia. Num campo mais à frente, Turner viu um homem com um collie atrás de um arado puxado por um cavalo. Tal como a senhora da sapataria, também o camponês parecia não se aperceber da presença da coluna. Eram vidas vividas em paralelo - a guerra era um passatempo para os entusiastas, mas nem por isso menos séria. Como a perseguição mortal dos cães numa caçada, enquanto, para lá da vedação, uma mulher no banco de trás de um carro em andamento ia absorvida no seu tricot e no jardim despido de uma casa nova um homem ensinava o filho a dar pontapés na bola. Sim, a terra continuaria a ser lavrada, haveria uma sementeira, uma colheita, alguém para moer a farinha, outros para a comerem, e nem toda a gente morreria.
Era nisto que Turner ia a pensar quando Nettle lhe agarrou o braço e apontou para cima. A agitação da coluna francesa tinha abafado o som, mas viam-se bastante bem. Eram pelo menos quinze, a dez mil pés de altitude, pequenos pontos no céu, às voltas por cima da estrada. Turner e os cabos pararam para ver, e todas as outras pessoas que estavam ao pé deles os viram igualmente.
Uma voz exausta murmurou-lhe ao ouvido:
- Porra! Onde é que está a RAF?
- Andam a ajudar os Franceses.
Como que para refutar o que acabava de ser dito, uma bomba iniciou o seu mergulho quase vertical, por cima das cabeças deles. Durante alguns segundos o som não chegou até eles. O silêncio pesava-lhes nos ouvidos. Nem os gritos ferozes que se ouviam pela estrada aliviavam essa pressão. “Abriguem-se!” “Dispersar!” “Dispersar!” “Mais depressa!”
Era difícil mover-se. Conseguia andar com um passo constante e conseguia parar, mas era um esforço - um esforço de memória - seguir ordens de comando que não lhe eram familiares, sair da estrada e fugir. Tinham parado junto da última casa da aldeia. Por trás da casa havia um celeiro e de ambos os lados estendia-se o pedaço de terra que o camponês andara a lavrar. Agora estava debaixo de uma árvore com o cão, como se estivesse a abrigar-se de uma chuvada. O cavalo, ainda com os arreios, pastava na faixa de terra não lavrada. Soldados e civis fugiam da estrada em todas as direcções. Uma mulher passou por ele com uma criança a chorar, depois mudou de ideias e voltou para trás. Depois parou, a olhar para um e para o outro lado da estrada, sem conseguir decidir-se. Para onde? Para o pátio da quinta ou para o campo? A imobilidade dela fê-lo reagir à sua própria imobilidade. No momento em que ele a empurrou pelo ombro para o portão começou o uivo. Os pesadelos tinham-se tornado uma ciência. Alguém, um simples ser humano, tivera tempo para sonhar com aquele uivo satânico. E com que sucesso! Era o som do próprio pânico, a subir e a acentuar-se no sentido da extinção que todos eles sabiam, um a um, ter de enfrentar. Era um som que tinham de considerar uma ameaça pessoal. Turner conduziu a mulher até ao portão. Queria que ela corresse com ele para o meio do campo. Tinha-a empurrado, tinha decidido por ela e sentia que agora não podia abandoná-la. Mas o miúdo tinha pelo menos uns seis anos e era pesado, o que os impedia de avançar.
Ele tirou-lhe a criança dos braços.
- Venha! - gritou ele.
Os Stukas levavam cada um uma bomba de 500 quilos. Para quem estava no solo, a ideia era afastar-se dos edifícios, dos veículos e das outras pessoas. O piloto não ia desperdiçar a sua preciosa carga numa única pessoa no meio de um campo. Quando voltasse, a questão seria diferente. Turner vira-os perseguir pessoas isoladas, só por gozo. Com a mão livre, puxava a mulher pelo braço. O miúdo urinava nas calças e gritava aos ouvidos de Turner. A mãe parecia incapaz de correr. Tinha a mão estendida e gritava. Queria o filho. A criança contorcia-se para ela, por cima do ombro de Turner. Então ouviu o guincho penetrante da bomba a cair. Diziam que aqueles que deixavam de ouvir o barulho antes da explosão estavam condenados. Quando se atirou para o chão puxou a mulher e cobriu-lhe a cabeça. Estava mais ou menos deitado sobre a criança quando o chão tremeu sob o terrível impacto. A onda de choque levantou-os do chão. Cobriram a cara para se protegerem da terra que saltava. Ouviram o Stuka subir ao mesmo tempo que ouviram o som sibilante de mais um ataque iminente. A bomba tinha caído na estrada, a pouco mais de setenta metros deles. Turner agarrava o miúdo com o braço e ajudava a mulher a levantar-se.
- Temos de correr outra vez. Estamos demasiado perto da estrada.
A mulher respondeu, mas ele não percebeu o que ela disse. Voltaram a fugir pelo campo aos tropeções. Tornou a sentir a dor de lado como um clarão de cor. Levava o miúdo nos braços e a mulher parecia estar outra vez a deixar-se ficar para trás e a tentar tirar-lhe o filho. Entretanto tinham-se juntado centenas de pessoas naquele terreno, todas em fuga na direcção do bosque. Quando ouviram o silvo da bomba, deitaram-se todos para o chão. Mas a mulher não tinha instinto para o perigo, e por isso foi obrigado a puxá-la outra vez. Desta vez tinham as caras afundadas em terra acabada de remexer. Quando o som se intensificou, a mulher gritou algo que parecia uma prece. Percebeu então que ela não falava francês. A explosão ocorrera do outro lado da estrada, a mais de 120 metros de distância. O primeiro Stuka estava agora a dar a volta por cima da aldeia e a baixar para o ataque. O miúdo tinha ficado em silêncio por causa do choque. A mãe não queria pôr-se de pé. Turner apontou para o Stuka que vinha a sobrevoar os telhados. Vinham mesmo na direcção dele, e não havia tempo para discussões. Mas ela não se mexia, e ele atirou-se para um rego. Os estampidos do fogo da metralhadora faziam ricochete na terra lavrada e o barulho do motor passou por eles num relance. Um soldado ferido estava a gritar. Turner pôs-se de pé, mas a mulher recusava-se a dar-lhe a mão. Sentou-se no chão e abraçou fortemente o menino. Falava-lhe em flamengo, a acalmá-lo, a dizer-lhe, de certeza, que ia correr tudo bem.
Era a mamã que dizia. Turner não percebia uma palavra daquela língua. Mas isso não interessava. Ela não lhe prestava a mínima atenção. O miúdo estava a olhar para ele por cima do ombro da mãe, com uma expressão vazia.
Turner deu um passo para trás e depois começou a correr. O ataque aproximava-se, enquanto ele fugiu aos tropeções por entre os regos. A terra agarrava-se-lhe às botas. Só nos pesadelos é que os pés eram tão pesados. Uma das bombas caiu na estrada, ao longe, no centro da aldeia, no local onde se encontravam os camiões. Mas esse estampido ocultou outro, de uma bomba que caiu no terreno onde ele ia, antes que ele pudesse deitar-se para o chão. A explosão atirou-o vários metros para a frente, de cara no chão. Quando recuperou a consciência tinha a boca, o nariz e os ouvidos cheios de terra. Tentou limpar a boca, mas não tinha saliva. Utilizou um dedo, mas ainda foi pior. Primeiro era a terra que estava a causar-lhe vómitos e depois o dedo sujo. Fungou para tirar a terra do nariz. O ranho, que parecia lama, cobriu-lhe a boca. Mas os bosques estavam perto, e lá haveria riachos, quedas de água e lagos. Imaginou um paraíso. Quando tornou a ouvir o uivo de um Stuka a mergulhar, tentou localizar o som. O perigo teria passado? Os seus pensamentos eram desordenados. Não conseguia cuspir nem engolir, quase não conseguia respirar e não conseguia pensar. Depois, ao ver o camponês ainda debaixo da árvore com o cão, pacientemente à espera, lembrou-se de tudo e voltou-se para olhar para trás. No sítio onde a mulher estivera com o filho havia agora uma cratera. Ao vê-la lembrou-se que sempre soubera. Fora por isso que tivera de os deixar. O seu objectivo era sobreviver, embora tivesse esquecido porquê. Continuou a andar em direcção ao bosque.
Deu mais alguns passos até chegar às árvores e sentou-se na erva recente, encostado a um vidoeiro. Uma única ideia o dominava: água. Havia mais de duzentas pessoas abrigadas nos bosques, incluindo alguns feridos que se tinham arrastado até lá. Um homem, um civil, não muito longe, chorava e gritava de dores. Turner levantou-se e foi mais para diante. Toda aquela paisagem verdejante só o fazia pensar em água. O ataque continuava na estrada e sobre a aldeia. Afastou algumas folhas caídas e utilizou o capacete para abrir uma cova. A terra estava húmida, mas não apareceu água no buraco que ele abriu, mesmo quando já tinha quase meio metro de profundidade. Resolveu, por isso, sentar-se a pensar em água e tentou limpar a boca à manga. Quando um Stuka voava a pique, era impossível uma pessoa não ficar tensa e não se encolher, apesar de Turner achar sempre que já não tinha forças. Por fim, os aviões sobrevoaram os bosques para os bombardearem, mas inutilmente. As folhas e os ramos soltaram-se das copas das árvores. Depois os aviões desapareceram e, no profundo silêncio que envolveu os campos, as árvores e a aldeia, nem sequer um pássaro a cantar se ouvia. Passado algum tempo vieram do lado da estrada alguns assobios a indicar que o perigo já tinha passado. Mas ninguém se mexeu. Lembrava-se de uma cena idêntica da última vez. Estavam demasiado confusos; estavam em choque devido à repetição dos momentos de terror. Cada voo a pique obrigava mais uma vez todos os homens a enfrentarem a sua execução. Quando isso não acontecia, o julgamento tinha de ser vivido de novo, e o medo não diminuía. Para os vivos, o fim de um ataque de Stukas era a paralisia do choque, de choques repetidos. Era provável que aparecessem alguns sargentos e alguns oficiais mais novos a gritar e a dar pontapés aos homens para que se levantassem. Mas também eles estavam esgotados e naquele momento eram inúteis como tropas.
Ficou, assim, sentado como todos os outros, aturdido, como lhe acontecera da primeira vez, às portas de uma aldeia de cujo nome não conseguia lembrar-se. Aquelas aldeias francesas com nomes belgas. Quando fora separado da sua unidade e, pior ainda para um soldado de infantaria, quando ficara sem a arma. Há quantos dias teria sido? Era impossível saber. Examinou o revólver, que tinha ficado entupido com a terra. Tirou as munições e atirou a arma para o meio dos arbustos. Passado algum tempo, ouviu um som atrás de si e sentiu uma mão no ombro.
- Toma. Uma prenda dos Green Howards.
Era o cabo Mace a passar-lhe uma garrafa de água de um homem que tinha morrido. Como estava quase cheia, utilizou a primeira golada para limpar a boca, mas era um desperdício. Bebeu o resto, mesmo com a terra.
- És um anjo, Mace.
O cabo estendeu-lhe uma mão para o ajudar a levantar-se.
- Temos de nos despachar. Corre o boato de que os sacanas dos belgas caíram. Podemos ser impedidos de seguir para leste. Ainda temos muitos quilómetros pela frente.
Quando atravessavam de novo o campo, Nettle juntou-se a eles. Tinha uma garrafa de vinho e uma tablete de Amo, que dividiram entre si.
- Que bela prenda - disse Turner, depois de ter bebido bastante.
- Era de um francês morto.
O camponês e o cão estavam de novo atrás do arado. Os três soldados aproximaram-se da cratera, onda havia um cheiro intenso a cordite. O buraco era um cone invertido, perfeitamente simétrico, cujos lados eram suaves, como se tivessem sido cuidadosamente peneirados e alisados. Não havia sinais humanos, nem sequer um resto de roupa ou vestígios de sapatos. A mãe e o filho tinham sido pulverizados. Parou para reter este facto, mas os cabos estavam cheios de pressa e apressaram-no. Rapidamente se juntaram aos retardatários que enchiam a estrada. Agora seria mais fácil. Não haveria trânsito até os sapadores levarem os buldózeres para a aldeia. Ao longe, a nuvem de óleo queimado pairava sobre a paisagem como um pai zangado. A zona era sobrevoada a grande altitude por bombardeiros, num vaivém constante em relação a um qualquer objectivo. Turner lembrou-se de repente que talvez estivesse a caminhar para uma carnificina. Mas toda a gente ia para esse lado, e ele não conseguia pensar numa alternativa. A estrada levava-os bastante para a direita da nuvem, para leste de Dunquerque, em direcção à fronteira belga.
- Bray Dunes - disse ele, lembrando-se do nome que vira no mapa.
- Soa bem - observou Nettle.
Passaram por alguns homens que quase não podiam andar por causa das bolhas nos pés. Alguns estavam descalços. Havia um soldado ferido no peito, com uma enorme mancha de sangue, reclinado sobre um antigo carrinho de bebé, empurrado pelos seus companheiros. Um sargento conduzia uma carroça, na parte de trás da qual estava deitado um oficial, morto ou desmaiado, com os pés e os pulsos presos por cordas. Alguns soldados iam de bicicleta, mas a maior parte seguia a pé, em grupos de dois ou três. Um estafeta da Infantaria Ligeira das Highlands apareceu numa Harley-Davidson. As suas pernas ensanguentadas balançavam inutilmente, e era o passageiro que seguia no assento traseiro, com os braços cobertos por ligaduras, que comandava os pedais. Ao longo do caminho viam-se inúmeros sobretudos, abandonados pelos soldados que tinham demasiado calor para continuar a carregá-los. Turner já convencera os cabos a não deixarem os seus.
Tinham andado meia hora quando ouviram atrás deles um baque rítmico, como o tiquetaque de um relógio gigantesco. Voltaram-se para ver o que era. A primeira vista parecia uma enorme porta na horizontal a sobrevoar a estrada na direcção deles. Afinal era um pelotão de Welsh Guards em formatura, com as espingardas a tiracolo, dirigidos por um segundo-tenente. Seguiam em marcha forçada, com o olhar fixo, olhando em frente, e levantando bem alto os braços. Os que iam em retirada afastaram-se para os deixar passar. Eram tempos cínicos, mas ninguém se atrevia a assobiar. Aquela demonstração de disciplina e coesão envergonhava-os. Foi um alívio quando saíram de vista e os outros puderam retomar a sua caminhada introspectiva.
A imagem era familiar, o inventário igual, mas havia mais de tudo: mais veículos, crateras de bombas, detritos. Havia mais corpos. Continuou sempre a andar por terra - até que sentiu o cheiro do mar, transportado sobre a planície e os campos pantanosos por uma brisa refrescante. O fluxo de pessoas, todas na mesma direcção e com o mesmo objectivo, o tráfego aéreo, constante e arrogante, a nuvem extravagante que lhes anunciava o seu destino, sugeriam à sua mente cansada mas hiperactiva um acontecimento de uma infância há muito esquecida, um arraial ou um espectáculo desportivo, para o qual toda a gente convergia. Tinha uma recordação que não conseguia localizar, de ser levado por um monte aos ombros do pai para uma grande atracção, para a fonte de uma enorme agitação. Gostaria de ter esses ombros ali, naquele momento. O pai desaparecera, deixando-lhe poucas memórias. Um cachecol, com nós e um certo cheiro, o contorno vago de uma presença que pairava irritantemente sobre ele. Teria evitado participar na Primeira Guerra Mundial, ou teria morrido algures, por ali, sob um outro nome? Talvez tivesse sobrevivido. Grace tinha a certeza de que ele era demasiado cobarde e inconstante para se alistar, mas nunca tivera razões de queixa próprias. Quase todos os homens que ali estavam tinham um pai que se lembrava do Norte da França ou que lá estava enterrado. Turner queria ter um pai assim. Há muito tempo, antes da guerra, antes de Wandsworth, costumava sonhar com a sua própria vida, recriar a sua própria história, só com a ajuda distante de Jack Tallis. Percebia agora como essa ilusão era pretensiosa. Sem raízes e, por isso, fútil. Queria um pai e, por essa mesma razão, queria ser pai. Era bastante vulgar ver tanta morte e querer um filho. Era comum, e por isso humano, o que o levava a desejá-lo ainda mais. Quando os feridos gritavam, sonhava-se ter uma pequena casa algures, uma vida normal, uma família, um elo. A sua volta havia homens a caminhar em silêncio, com os seus pensamentos, a reformularem as suas vidas, a tomarem decisões. Se me safar disto... Seria impossível contar as crianças sonhadas, concebidas mentalmente a caminho de Dunquerque, e que mais tarde nasceriam de facto. Ele encontraria Cecília. A sua morada estava na carta que tinha no bolso, perto do poema. Nos desertos do coração / Que a fonte que há-de curar comece a jorrar. Havia de encontrar também o pai. O Exército de Salvação tinha fama de ser bom a encontrar pessoas desaparecidas. Que nome perfeito! Procuraria o pai ou a história do seu pai já morto - em qualquer dos casos, tornar-se-ia filho do pai.
Continuaram a andar toda a tarde até que finalmente viram a ponte sobre o canal Bergues-Furnes, a menos de dois quilómetros de distância, no sítio onde o fumo cinzento e amarelo se erguia dos campos circundantes. Durante essa parte final do percurso, não havia uma única casa ou celeiro de pé. Para além do fumo, chegava até eles um miasma de carne podre - mais cavalos mortos, às centenas, empilhados. Não longe deles, havia um monte de uniformes e de cobertores em cinzas. Um arvorado corpulento partia máquinas de escrever com um martelo de forja. À beira da estrada estavam paradas duas ambulâncias, com as portas de trás abertas. Lá de dentro vinham gritos e gemidos dos feridos. Um deles repetia incessantemente, expressando mais raiva do que dor: “Água, quero água!” Como todos os outros, Turner continuou a andar.
A multidão estava de novo a agrupar-se. Em frente da ponte do canal havia um cruzamento e, do lado de Dunquerque, pela estrada ao longo do canal, vinha um comboio de camiões, que a polícia militar tentava conduzir para um campo atrás da pilha de cavalos mortos. Mas as tropas que enchiam a estrada obrigaram os camiões a parar. Os condutores desataram a tocar a buzina e a gritar insultos. A multidão comprimia-se. Os homens, cansados de esperar, atiravam-se das traseiras dos camiões. Ouviu-se um grito de “Abriguem-se!” E antes que qualquer pessoa tivesse tempo de olhar à sua volta, a montanha de uniformes foi detonada. Começaram a chover pequenos farrapos de sarja verde escura. Mais perto, um destacamento de artilharia destruía as miras e culatras das armas à martelada. Turner reparou que um dos homens chorava enquanto destruía o seu obus. A entrada do mesmo campo, um capelão e o seu ajudante regavam com petróleo caixas cheias de livros de oração e de bíblias. Os homens atravessavam esse mesmo campo em direcção a um depósito da NAAFI, à procura de cigarros e bebidas. Ouviu-se um grito, e muitos mais se dirigiram para lá. Um grupo sentou-se junto a um portão de uma quinta a experimentar uns sapatos novos. Um soldado, com a boca cheia, passou por Turner com uma caixa de gomas cor-de-rosa e brancas. Cem metros à frente, ardia um monte de galochas, de máscaras de gás e de capas e o fumo acre envolvia os homens mais próximos da ponte. Os camiões puseram-se finalmente a caminho e viraram para o campo mais vasto, imediatamente a sul do canal. A polícia militar organizava o estacionamento, a alinhar as filas, como os organizadores de festas na província. Os camiões juntavam-se a semi-reboques, motos, autometralhadoras e cozinhas móveis. Os métodos de aniquilação eram simples, como sempre - uma bala no radiador e o motor a trabalhar até gripar. A ponte estava sob controlo dos Coldstream Guards. Duas autometralhadoras rodeadas de sacos de areia cobriam a aproximação. Os homens estavam barbeados, de olhos fixos, com um desdém taciturno em relação à multidão desorganizada e suja que se aproximava. Do outro lado do canal, pedras pintadas de branco, colocadas a intervalos regulares, marcavam o caminho para uma cabana utilizada pelos soldados de plantão. Na outra margem, os guardas, espalhados tanto para leste como para oeste, estavam bem protegidos. As casas da margem tinham sido ocupadas, algumas telhas retiradas e as janelas protegidas por sacos de areia. Um sargento, com um ar violento, mantinha a ordem na ponte. Mandava para trás um sargento numa moto. Não eram permitidos veículos nem equipamento. Um homem com um papagaio numa gaiola também foi impedido de continuar. O sargento também mandava alguns homens para a defesa do perímetro, e fazia-o com muito mais autoridade do que o pobre major. Um destacamento cada vez mais numeroso e insatisfeito aguardava ordens na casa dos soldados de plantão. Turner viu o que estava a acontecer ao mesmo tempo que os cabos, quando ainda estavam bastante afastados.
- Vão apanhar-te, rapaz - disse Mace a Turner. - Merda da infantaria. Se queres voltar para o teu borracho, põe-te no meio de nós e coxeia.
Sentindo-se pouco digno, mas determinado, pôs os braços sobre os ombros dos cabos, e seguiram caminho.
- É do lado esquerdo, chefe - disse Nettle. - Queres que te enfie a baioneta no pé?
- Obrigado, mas não te incomodes.
Turner deixou cair a cabeça quando iam a atravessar a ponte e por isso não viu o olhar feroz do sargento de serviço, apesar de ter sentido a sua ira. Ouviu rosnar a ordem “Ei, tu!” Um infeliz que ia atrás dele saiu da fila para ficar a ajudar a suster a carnificina que certamente chegaria daí a dois ou três dias, enquanto os últimos elementos dos BEF se amontoavam nos barcos. Enquanto ia de cabeça baixa viu uma longa barcaça negra deslizar por baixo da ponte na direcção de Furnes, na Bélgica. O barqueiro seguia ao leme a fumar cachimbo e a olhar impassivelmente para a frente. Atrás dele, a umas quinze milhas, Dunquerque ardia. À frente, na proa, dois rapazes estavam debruçados sobre uma bicicleta voltada ao contrário, talvez a arranjar um furo. Havia uma corda com roupa a secar, entre ela algumas peças de roupa interior de mulher. Sentia-se um cheiro a comida, a cebolas e a alho. Turner e os cabos atravessaram a ponte e passaram pelas pedras caiadas e pelo que restava de um campo de treino. Na cabana dos soldados de plantão ouviu-se um telefone a tocar.
- Continua a coxear até estarmos fora de vista - murmurou Mace.
Mas a zona era plana ao longo de vários quilómetros e era impossível dizer para que lado o sargento estaria a olhar. Também não queriam voltar-se para ver. Ao fim de meia hora sentaram-se numa máquina de semear ferrugenta e deixaram-se estar a ver o exército derrotado a passar. A ideia era misturarem-se com um grupo inteiramente novo, para que a súbita recuperação de Turner não chamasse a atenção de nenhum oficial. Muitos dos homens que passavam mostravam-se irritados por não conseguirem encontrar a praia logo a seguir ao canal. Pareciam considerar tratar-se de um erro de planeamento. Turner sabia pelo mapa que ainda teriam de andar quase dez quilómetros, que seriam os mais duros e desoladores desse dia. A extensão ampla e incaracterística retirava qualquer sentido de progressão. Apesar de o Sol daquele fim da tarde estar a descer por entre as orlas ondulantes da nuvem de óleo, estava mais calor do que nunca. Viram aviões sobrevoar o porto a grande altitude e lançar bombas. Mas o pior era os ataques de Stukas mesmo por cima da praia para onde se dirigiam. Ultrapassaram os feridos que já não conseguiam andar mais. Ficavam sentados como pedintes à beira da estrada, a pedir ajuda ou água. Outros deitavam-se na valeta, inconscientes ou desesperados. Haveria certamente ambulâncias que vinham do perímetro de defesa e faziam transportes regulares até à praia. Se havia tempo para caiar pedras, também devia haver tempo para organizar isso. Não havia água. Tinham acabado o vinho e a sua sede era agora insuportável. Não tinham medicamentos. Que haveriam de fazer? Transportar uma dúzia de homens às costas, quando mal podiam com eles próprios?
Num súbito assomo de petulância, o cabo Nettle sentou-se na estrada, tirou as botas e atirou-as para um campo. Disse que as odiava, que as odiava mais do que a todos os alemães juntos. E que tinha bolhas tão grandes e que lhe doíam tanto que estava melhor sem elas.
- Falta muito para ires até Inglaterra de peúgas - disse Turner.
Sentiu-se estranhamente animado quando decidiu ir à procura das botas do companheiro. Foi fácil encontrar a primeira, mas a segunda demorou mais. Por fim viu-a, em cima das ervas ao pé de uma forma negra e peluda que, quando ele se aproximou, lhe pareceu estar a mexer-se ou a pulsar. De repente, um enxame de varejeiras subiu no ar, com um zumbido zangado, deixando à mostra um cadáver em decomposição. Turner susteve a respiração, pegou na bota e quando se afastava as moscas voltaram a pousar, e o silêncio voltou a reinar.
Depois de alguma insistência, Nettle lá se convenceu a pegar nas botas, a prendê-las uma à outra e a pô-las à volta do pescoço. Mas, segundo afirmou, só para fazer o favor a Turner.
Era nos momentos livres que ficava preocupado. Não era por causa da ferida, embora lhe doesse sempre que andava, nem por causa dos bombardeiros que sobrevoavam a praia a alguns quilómetros para norte. Era o seu espírito. Algo lhe fugia periodicamente. Desaparecia um princípio diário de continuidade, o elemento banal que lhe dizia onde se encontrava na sua própria história, abandonando-o a um sonho acordado, onde havia pensamentos, mas não o sentido de quem estava a tê-los. Nem responsabilidade, nem memória das horas anteriores, nem a mínima ideia do que estava a fazer, de para onde iam, do seu plano. Nem curiosidade em relação a nada disso. Nessas alturas era assaltado por uma série de certezas ilógicas.
Era este o seu estado de espírito quando chegaram à extremidade leste da zona balnear, após três horas de marcha. Desceram uma rua repleta de vidros estilhaçados e de telhas partidas, onde as crianças brincavam e viam os soldados a passar. Nettle voltara a calçar as botas, mas tinha-as deixado desapertadas, com os atacadores caídos. Um tenente dos Dorsets surgiu de repente, como um saltitão, da cave de um edifício municipal, que tinha sido requisitado para quartel. Dirigiu-se para eles com um ar importante e com uma pasta debaixo do braço. Quando parou à frente deles fez continência. Escandalizado, ordenou ao cabo que apertasse imediatamente as botas, se não queria ser castigado.
Enquanto o cabo se ajoelhava para lhe obedecer, o tenente - um homem de ombros caídos, magro, com um ar de funcionário amanuense e uma amostra de bigode ruivo - disse:
- Estás uma verdadeira desgraça, homem.
Na liberdade lúcida do seu estado onírico, Turner queria dar um tiro no peito do oficial. Seria melhor para todos. Não valia a pena discutir primeiro. Procurou a arma, mas tinha desaparecido - não se lembrava onde - e o tenente, entretanto, já se tinha ido embora.
Após alguns minutos a andarem ruidosamente sobre os vidros partidos houve um silêncio súbito quando a estrada desembocou num areal. Quando emergiram de um intervalo nas dunas ouviram o mar e sentiram um sabor a sal antes de o verem. Era o sabor das férias. Deixaram o caminho e subiram a duna para se colocarem num ponto alto, onde permaneceram em silêncio durante longos minutos. A brisa fresca e húmida do Canal devolveu-lhe a clarividência. Talvez fosse apenas a febre a subir e a descer.
Sentiu que não tinha expectativas - até ver a praia. Partira do princípio de que o espírito que levava um exército que enfrentava a ameaça da aniquilação a caiar pedras prevaleceria. Tentou impor a ordem ao movimento desordenado que via à sua frente e quase conseguiu: estabelecendo fileiras, colocando oficiais graduados atrás de secretárias improvisadas, carimbos e livros de registos, formando filas separadas por cordas até aos barcos; obrigando sargentos e filas entediadas a organizar-se em torno de cantinas móveis; em geral, estabelecendo um objectivo para todas as iniciativas privadas. Não sabia, mas aquela era a praia para onde caminhava há vários dias. No entanto, a praia propriamente dita, a praia para a qual Turner e os cabos olhavam fixamente naquele momento, era apenas mais uma variação de tudo o que acontecera anteriormente: havia um tumulto e ali era o seu término. Era inteiramente óbvio, agora que estava ali bem à sua frente: era aquilo que acontecia quando uma retirada caótica não podia ir mais além. Bastava um momento para se adaptarem. Viu milhares de homens, dez mil, vinte mil, talvez mais, espalhados pela imensidão da praia. Ao longe, eram como grãos de areia preta. Mas não havia embarcações, a não ser um barco baleeiro voltado ao contrário, a revolutear na rebentação. A maré estava baixa, pelo que a linha de água estava a mais de um quilómetro de distância. Não havia mais barcos junto ao molhe. Turner pestanejou e tornou a olhar para lá. O molhe era constituído por umas seis ou oito longas filas de homens, com água pelos joelhos, pela cintura, pelos ombros, estendendo-se por quase quinhentos metros. Esperaram, mas não havia nada à vista, a não ser umas manchas no horizonte - eram barcos a arder depois de um ataque aéreo. Não havia nada que conseguisse chegar à praia a tempo. Mas as tropas continuavam ali, a olhar para o horizonte, com os seus capacetes de ferro e a levantarem as espingardas acima das ondas. Àquela distância, pareciam tão plácidos como um rebanho.
E aqueles homens eram uma pequena parte do total. A maioria estava na praia, a andar sem rumo de um lado para outro. Tinham-se formado pequenos grupos à volta dos feridos resultantes do último ataque de Stukas. Tão perdidos como os homens, também uma meia dúzia de cavalos de artilharia galopavam à beira da água. Uns quantos soldados tentavam voltar o baleeiro. Alguns tinham-se despido para nadarem. A leste um outro grupo jogava futebol e do mesmo lado vinha o som ténue de um hino cantado em uníssono, que depois desapareceu. Na margem, os camiões eram alinhados e presos firmemente uns aos outros, para formar um molhe improvisado. Aproximavam-se mais camiões. Mais perto, do outro lado da praia, alguns indivíduos escavavam a areia com os capacetes para fazerem abrigos subterrâneos. Nas dunas, mais perto do local onde Turner e os cabos se encontravam, alguns homens já tinham feito abrigos, dos quais espreitavam com um ar de proprietários presunçosos. Pareciam saguins, pensou ele. Mas a maioria das tropas deambulava pela areia sem objectivo, como cidadãos numa vila italiana à hora do passeggio. Não viam qualquer razão imediata para se juntarem à enorme fila, mas não queriam afastar-se da praia, para o caso de aparecer de repente um barco.
A esquerda ficava a estância de Bray, uma frontaria alegre de cafés e pequenas lojas que, em condições normais, naquela altura do ano estariam a alugar cadeiras de praia e bicicletas. Num parque circular, com um relvado bem cuidado, havia um coreto e um carrocel pintado de vermelho, branco e azul. Era naquele cenário que se tinha refugiado uma outra companhia, mais despreocupada. Os soldados tinham aberto os cafés e estavam sentados nas mesas no exterior a embebedar-se, a falar muito alto e a rir a gargalhada. Alguns andavam de bicicleta, às curvas, por um passeio todo vomitado. Uma colónia de bêbedos estava espalhada pela relva junto do coreto, a dormir para curar a bebedeira. Um banhista solitário, de cuecas, estava deitado de barriga para baixo numa toalha, com manchas irregulares causadas pelo sol nos ombros e nas pernas - cor-de-rosa e brancas como um gelado de morango e baunilha.
Não era difícil escolher entre os vários círculos de sofrimento - o mar, a praia, a frente das casas. Os cabos já se tinham posto a caminho outra vez. Fora a sede a determinar essa decisão. Descobriram um caminho no lado interior das dunas e depois atravessaram uma vereda estreita, repleta de garrafas partidas. Quando passavam ao largo das mesas barulhentas, Turner viu um grupo de homens da Marinha a aproximar-se e parou para ver. Eram cinco, dois oficiais e três subalternos, formando um conjunto reluzente de branco, azul e dourado. Não faziam concessões aos camuflados. De costas muito direitas e com um ar grave, revólveres à cintura, deslocavam-se com uma autoridade tranquila por entre a massa de uniformes de campanha e rostos desolados, olhando de um lado para outro como se estivessem a contar. Um dos oficiais ia tomando notas num bloco. Afastaram-se em direcção à praia. Com um sentimento infantil de abandono, Turner ficou a segui-los com o olhar até deixar de os ver.
Entrou atrás de Mace e de Nettle no primeiro bar, barulhento, fétido e cheio de fumo. Havia duas malas abertas em cima do balcão cheias de maços de tabaco - mas não havia nada para beber. As prateleiras ao longo do espelho manchado por detrás do balcão estavam vazias. Quando Nettle se baixou por trás do balcão para ver o que encontrava, começaram a fazer troça dele. Toda a gente que ali tinha entrado tinha feito o mesmo. Há muito que a bebida desaparecera, à conta dos homens que estavam embriagados lá fora. Turner furou por entre a multidão até chegar a uma pequena cozinha nas traseiras. Estava destruída e as torneiras secas. Lá fora havia um urinol e pilhas de grades de garrafas vazias. Um cão tentava meter a língua numa lata de sardinhas vazia, fazendo-a deslizar por uma pequena faixa de cimento. Turner voltou-se e regressou ao salão principal inundado de vozes. Não havia electricidade; apenas a luz natural manchada de castanho, como pela cerveja ausente. Não havia nada para beber, mas o bar continuava cheio. Os homens entravam, ficavam desapontados, mas mesmo assim ficavam, atraídos pelos cigarros à borla e os vestígios de que ainda há pouco tempo ali houvera bebidas. Os distribuidores, vazios, baloiçavam nas paredes, depois de lhes terem sido arrancadas as garrafas. O cheiro adocicado das bebidas alcoólicas elevava-se do chão de cimento pegajoso. O barulho e a pressão dos corpos e do ar saturado de tabaco criava uma certa nostalgia por um pub num sábado à noite. Tanto podia ser em Mile End Road como em Sauchiehall Street, ou em qualquer outra rua entre essas duas.
Deixou-se ficar no meio do barulho, sem saber ao certo o que fazer. Seria um esforço tão grande abrir caminho por entre a multidão. Tinham chegado barcos no dia anterior e, segundo percebeu pelas conversas, talvez chegassem mais no dia seguinte. Pôs-se de bicos de pés junto à porta da cozinha e encolheu os ombros na direcção dos cabos, como a dizer que tinha sido em vão. Nettle inclinou a cabeça na direcção da porta, e começaram a convergir para ela. Teria sido bom tomarem um copo, mas o que lhes interessava naquele momento era água. O avanço por entre as pessoas apinhadas foi lento e depois, quando se juntaram os três, o acesso à porta foi-lhes bloqueado por uma espessa parede de homens de costas à volta de alguém.
Devia ser baixo, pouco mais de um metro e meio, e Turner não conseguia ver nada dele a não ser uma parte da nuca.
- Responde ao que te perguntaram, meu sacana! - disse alguém.
- Vá, despacha-te.
- Ó penteadinho, onde é que estavas?
- Onde é que estavas quando mataram o meu companheiro?
Uma bala de cuspo atingiu a parte de trás da cabeça do homem, acertando-lhe por detrás do ouvido. Turner procurou um sítio de onde se visse melhor. Primeiro vislumbrou o verde-acinzentado de um casaco e depois a apreensão no rosto do homem, que se mantinha em silêncio. Era um indivíduo baixo e magro, com uns óculos com umas lentes grossas e sujas, que ampliavam o seu olhar assustado. Parecia um amanuense, ou um telefonista, talvez de um quartel há muito desalojado. Mas era da RAF, e os soldados britânicos consideravam-no culpado. Voltou-se lentamente, fixando os seus interrogadores. Não tinha nenhuma resposta a dar às suas perguntas, nem estava a fazer qualquer tentativa no sentido de negar a sua responsabilidade pela ausência de Spitfires e Hurricanes sobre a praia. Com a mão direita segurava o bivaque com tanta força que até os nós dos dedos lhe tremiam. Um soldado de artilharia que se encontrava perto da porta deu-lhe um empurrão nas costas, o que o fez vacilar e chocar contra o peito de outro soldado, que o devolveu à procedência com um soco na cabeça. Houve um zunzum de aprovação. Toda a gente tinha sofrido, e alguém tinha de pagar.
- Então, onde está a RAF?
Uma mão adiantou-se e esbofeteou a cara do homem, deitando-lhe os óculos ao chão. O som da pancada foi tão preciso como o de um chicote. Era o sinal de uma nova fase, um novo nível de compromisso. Os seus olhos despidos transformaram-se em pequenos pontos aflitos quando se baixou para apalpar o chão à volta dos seus pés. Foi um erro. Um pontapé de uma bota com biqueira de aço apanhou-o de lado, levantando-o quase cinco centímetros. Ouviram-se gargalhadas em toda a volta. Estava a espalhar-se pelo bar a sensação de que algo saboroso estava prestes a acontecer, o que atraía mais soldados para o seu interior. A multidão foi-se apinhando à volta do círculo, e o pouco sentido de responsabilidade individual que ainda existia desapareceu por completo. Começava a reinar uma impunidade arrogante. Ouviram-se vivas quando alguém apagou o cigarro na cabeça do homem. Riram-se do grito ridículo que ele soltou. Odiavam-no, e ele merecia tudo o que lhe estava a acontecer. Era responsável pela liberdade da Luftwaffe no céu, por todos os ataques de Stukas, por todos os amigos mortos. A sua figura débil continha todas as causas da derrota de um exército. Turner percebeu que não podia fazer nada para ajudar o pobre homem sem correr o risco de também ser linchado. Mas era impossível não fazer nada. Juntar-se aos outros seria melhor do que nada. Chegou-se para a frente, com um sentimento de excitação que não lhe agradava.
- Onde está a RAF? - perguntou alguém com um sotaque galês.
Era estranho o homem não gritar por socorro, não implorar, não protestar a sua inocência. O seu silêncio parecia conluiado com o seu destino. Seria tão estúpido que ainda não se tinha lembrado que poderia estar prestes a morrer? Numa atitude sensata, guardou os óculos no bolso. Sem eles, o seu rosto ficava vazio. Como uma toupeira exposta a uma luz intensa, observava os seus carrascos, de lábios entreabertos, mais por incredulidade do que numa tentativa de articular uma palavra. Por não conseguir ver um aproximar-se, levou um murro em cheio na cara. Depois uma bofetada. A cabeça oscilou para trás e nesse momento uma bota acertou-lhe no queixo, suscitando alguns vivas e até alguns aplausos dispersos, como se tivesse havido uma boa defesa no campo de futebol da aldeia. Era uma loucura tentar socorrer o homem; era desprezível não o fazer. Ao mesmo tempo, Turner percebia a excitação que reinava entre os carrascos e a forma insidiosa como poderia ser atraído por ela. Poderia até fazer algo de ultrajante com a sua faca de mato e conquistar a admiração de uma centena de homens. Para afastar esse pensamento, obrigou-se a contar os dois ou três soldados que havia no circulo e que reconheceu serem maiores e mais fortes do que ele. Mas o verdadeiro perigo vinha da multidão e da sua convicção de que estavam a fazer justiça. Não lhe poderiam negar os seus prazeres.
Chegou-se a uma situação em que quem cometesse a agressão seguinte teria de conquistar a aprovação geral, sendo engenhoso ou criativo. Ninguém queria tocar uma nota em falso. Durante alguns segundos, aquelas condições impuseram uma certa contenção. Turner sabia pelos seus tempos na prisão que a qualquer momento um único golpe poderia transformar-se numa cascata. A partir daí não haveria retrocesso e para o homem da RAF só haveria um fim. Por baixo do seu olho direito tinha-se formado um inchaço rosado. Juntara os punhos por baixo do queixo - sem deixar o bivaque - e tinha os ombros curvados. Podia ser uma atitude defensiva, mas era também um gesto de fraqueza e submissão, que só podia suscitar mais violência. Se tivesse dito qualquer coisa, fosse o que fosse, os soldados que o rodeavam podiam ter-se lembrado de que era um homem que ali estava, e não um coelho para ser esfolado. O galês que tinha falado era um indivíduo atarracado que pertencia aos sapadores. Levantou no ar um cinto de lona, perguntando:
- O que acham, rapazes?
A sua frase precisa e insinuante sugeria horrores que Turner não conseguiu entrever de imediato. Era a sua última oportunidade de agir. Olhou em volta à procura dos cabos e nessa altura ouviu um rugido perto de si, que lhe fez lembrar o estertor de um touro espetado por uma farpa. A multidão afastou-se meia trôpega e Mace irrompeu do meio deles. Com um grito que fazia lembrar o Tarzan de Johnny Weissmuller rodeou o homem com um braço, levantou-o quase meio metro do chão e abanou-o de um lado para o outro. Ouviram-se gritos, assobios, pés a baterem e guinchos à cowboy.
- Eu sei o que quero fazer com ele - gritou Mace. - Quero afogá-lo no raio do mar!
Turner e os dois trocaram um olhar de entendimento. Adivinharam qual era a ideia de Mace e começaram a dirigir-se para a porta, sabendo que teriam de ser rápidos. Nem toda a gente era a favor do afogamento. Mesmo no meio da loucura daquele momento, houve quem se lembrasse que com a maré baixa a água estava a mais de um quilómetro de distância. O galês sentia-se particularmente ludibriado. Continuava com o cinto no ar e a gritar. Ouviam-se assobios, vivas e apupos. Continuando a segurar a sua presa, Mace precipitou-se para a porta. Turner e Nettle iam à frente dele, a abrir caminho por entre a multidão. Quando chegaram à porta - felizmente só de um batente - deixaram Mace passar e depois bloquearam o caminho, encostando os ombros um ao outro, mas fingindo que não era essa a sua intenção, pois continuaram a gritar, de punhos erguidos, como todos os outros. Sentiram uma pressão humana colossal e uma excitação irritante contra as suas costas, a que só conseguiriam resistir por alguns segundos. Foi o suficiente para Mace correr, não em direcção ao mar, mas para a esquerda, por uma rua estreita que curvava por detrás das lojas e dos bares, afastando-se das fachadas.
A multidão exultante explodiu do bar como champanhe, afastando Turner e Nettle para os lados. Alguém julgou ter visto Mace na areia e durante meio minuto a multidão seguiu nessa direcção. Quando se deram conta do engano e voltaram para trás já não havia sinais de Mace nem do outro homem. Turner e Nettle também tinham desaparecido.
A vastidão da praia, os milhares de homens à espera, e a ausência de navios no mar despertou os soldados para a situação difícil em que se encontravam. Foi como se tivessem acordado de um sonho. Para leste, no lado de onde a noite se aproximava, a linha do perímetro estava sob fogo intenso da artilharia. O inimigo aproximava-se e a Inglaterra ainda estava muito longe. A penumbra que se aproximava não deixava muito tempo para procurar um sítio para dormir. Do Canal vinha um vento frio, e os sobretudos tinham ficado pela estrada. A multidão começou a separar-se. O homem da RAF foi esquecido.
Turner teve a sensação de que ele e Nettle tinham ido à procura de Mace e depois se tinham esquecido dele. Devem ter vagueado pelas ruas durante algum tempo, desejosos de o felicitarem pela forma como salvara o homem. Turner não sabia como é que ele e Nettle tinham chegado àquela rua estreita. Não se lembrava do tempo que tinha passado, nem de ter tido dores nos pés, mas ali estava ele a falar da forma mais educada possível com uma mulher de idade, que estava à porta de uma casa com um terraço. Quando falou em água, ela olhou para ele com uma expressão de desconfiança, como se soubesse que ele queria mais qualquer coisa para além da água. Era bastante bonita; tinha uma tez escura, um olhar orgulhoso, um nariz comprido e estreito e um lenço às flores a prender o cabelo grisalho. Percebeu imediatamente que se tratava de uma cigana, que não se deixou enganar pelo seu francês. Olhou-o bem nos olhos e descobriu as suas faltas - viu que tinha estado preso. Depois olhou para Nettle com aversão e por fim apontou para o fundo da rua, onde estava uma porca a chafurdar na valeta.
- Tragam-na cá - disse ela - e verei o que posso arranjar.
- Que se lixe - exclamou Nettle assim que Turner acabou de traduzir. - Estamos só a pedir um maldito copo de água. Vamos mas é entrar e vamos nós buscá-lo.
Mas Turner, sentindo uma irrealidade familiar apoderar-se dele, não conseguiu descartar a possibilidade de a mulher estar possuída de certos poderes. Sob a luz ténue que ainda existia naquele momento, via o espaço sobre a cabeça dela a pulsar ao ritmo do seu próprio coração.
Era muito sabido. Tão perto de casa, não se deixaria cair em armadilhas. Era melhor ser prudente.
- Vamos buscar a porca - disse ele a Nettle. - Só demora um minuto.
Há muito que Nettle estava habituado a seguir as sugestões de Turner, pois eram, em geral, sensatas, mas enquanto subiam a rua o cabo ia murmurando:
- Há qualquer coisa que não bate certo em ti, chefe.
As bolhas nos pés obrigaram-nos a abrandar. A porca era jovem, rápida e apreciava a liberdade. E Nettle tinha medo dela. Depois de a terem encurralado à porta de uma loja, ela correu para ele e Nettle afastou-se com um salto e um grito que não foi propriamente um gracejo. Turner foi ter de novo com a mulher para lhe pedir um bocado de corda, mas ninguém veio à porta e ele não tinha a certeza se era aquela a casa ou não. Tinha a certeza de que, se não apanhassem a porca, nunca mais voltariam a casa. Sentia que estava outra vez com febre, mas isso não lhe tirava o discernimento. Apanhar a porca era um sucesso. Em criança, Turner tentara convencer-se de que era um disparate impedir que a mãe morresse jovem evitando pisar as fendas no pavimento do pátio da escola. Mas a verdade é que nunca as pisara e a mãe não tinha morrido.
Começaram a subir a rua, mas continuaram a não conseguir apanhar a porca.
- Que porra! - disse Nettle. - Não acredito no que estamos a fazer!
Mas não tinham outra opção. Turner cortou um bocado de cabo num poste de telégrafo caído e fez um laço. Estavam a perseguir a porca ao longo de uma estrada que ficava na extremidade da estância, onde as casas tinham pequenos jardins rodeados de sebes. Abriram todos os portões de ambos os lados da rua. Depois meteram por uma rua lateral para apanharem a porca pelo outro lado e para a enxotarem para o lado de onde tinha vindo. Como tinham previsto, ela entrou para um jardim, que começou de imediato a destruir.
Tiveram de reunir as poucas forças que lhes restavam para levarem a porca, que não parava de guinchar, para casa. Felizmente, Nettle sabia qual era a casa a que ela pertencia. Depois de a porca estar presa na pequena pocilga no jardim das traseiras, a mulher apareceu com duas garrafas de água. Sentiram-se nas nuvens, sob o olhar atento da mulher, num pequeno pátio junto da porta da cozinha. Já sentiam as barrigas quase a rebentar, mas as suas bocas continuavam a clamar por mais água e eles continuavam a beber. Depois a mulher trouxe-lhes sabão, toalhas e duas bacias de esmalte para se lavarem. A cara escaldante de Turner pôs imediatamente a água castanha. Do lábio superior saltaram-lhe crostas de sangue seco. No fim sentiu uma leveza extremamente agradável no ar à sua volta, que lhe roçava na pele como seda e lhe entrava pelas narinas. Despejaram a água suja sobre a base de um amontoado de bocas-de-lobo, que Nettle disse ter-lhe feito saudades do jardim da casa dos seus pais. A cigana encheu-lhes os cantis e trouxe a cada um deles uma garrafa de vinho tinto com a rolha meio tirada e um salpicão, que eles enfiaram nas mochilas. Quando estavam para partir, ela lembrou-se de mais qualquer coisa e tornou a entrar em casa. Voltou com dois pequenos sacos de papel, cada um com meia dúzia de amêndoas com açúcar. Despediram-se com um aperto de mão solene.
- Nunca esqueceremos a sua amabilidade - disse Turner.
Ela acenou com a cabeça e Turner teve a impressão de ouvir dizer:
- E eu, sempre que olhar para a minha porca, hei-de lembrar-me de vocês.
A seriedade da sua expressão não se alterou, pelo que era impossível dizer se a sua observação continha alguma piada ou alguma mensagem escondida. Acharia que eles não eram dignos da sua amabilidade? Turner afastou-se acanhadamente. Enquanto desciam a rua traduziu o que ela tinha dito para Nettle. O cabo não teve dúvidas.
- Vive sozinha e adora a porca. Faz sentido. Está-nos muito grata. - Depois acrescentou, com um ar desconfiado: - Sentes-te bem, chefe?
- Muito bem, obrigado.
Aflitos com as bolhas, lá foram a coxear em direcção à praia com o objectivo de encontrarem Mace e de partilharem com ele a comida e a bebida. Mas, como tinham apanhado a porca, Nettle achou que era de toda a justiça que abrissem já uma garrafa. Tinha voltado a acreditar nas decisões de Turner. Passaram a garrafa de um para o outro. Mesmo com a escuridão, continuava a ser possível ver a nuvem escura por cima de Dunquerque. Do outro lado viam-se clarões de metralhadora. Não havia descanso no perímetro de defesa.
- Pobres diabos - disse Nettle.
Turner sabia que ele estava a falar dos homens que estavam fora da cabana improvisada do plantão.
- Não aguentam muito mais.
- Vamos ser dizimados.
- É bom que amanhã estejamos num barco.
Já não tinham sede e agora era o jantar que lhes dançava no espírito. Turner sonhava com uma sala sossegada e uma mesa quadrada com uma toalha verde de algodão e com um daqueles candeeiros de loiça franceses suspenso do tecto por uma roldana. E o pão, o vinho, o queijo e o salpicão dispostos sobre a mesa.
- Não sei se a praia será o melhor sítio para jantar - disse ele.
- Podemos ser roubados num abrir e fechar de olhos - concordou Nettle.
- Acho que sei onde está o sítio de que precisamos.
Voltaram à estrada que ficava por trás do bar. Quando olharam para a alameda que tinham descido, viram algumas figuras deslocarem-se na penumbra, tendo por pano de fundo o último brilho do mar e, mais ao longe e para um dos lados, uma massa mais escura, que tanto podia ser de soldados na praia como das ervas que cobriam as dunas, ou até das próprias dunas. Seria muito difícil encontrar Mace de dia, e praticamente impossível naquela altura. Por isso continuaram a andar, à procura de um sítio qualquer. Naquela parte da estância havia agora centenas de soldados, muitos deles em grupos barulhentos, vagueando pelas ruas, a cantarem e a gritarem. Nettle voltou a pôr a garrafa na mochila. Sentiam-se mais vulneráveis sem Mace.
Passaram por um hotel que tinha sido atingido. Turner perguntou a si próprio se estaria a pensar num quarto de hotel. Nettle lembrou-se de tirar de lá uma cama. Entraram por um buraco na parede e abriram caminho por entre a escuridão, os escombros e as madeiras caídas até que encontraram uma escada. Mas havia muitos homens com a mesma ideia. Aliás, havia uma fila a formar-se ao fundo das escadas e alguns soldados carregavam pesados colchões de crina. No patamar superior - Turner e Nettle viam botas e pernas a andar obstinadamente de um lado para o outro - havia uma briga, como se podia deduzir dos gemidos e do som dos nós dos dedos a baterem nos corpos. Ouviu-se um grito repentino e a seguir uns quantos homens caíram de costas pela escada, por cima dos que se encontravam lá em baixo. Seguiram-se gargalhadas e pragas, ao mesmo tempo que as pessoas tentavam pôr-se de pé. Um homem não conseguiu levantar-se - estava caído nas escadas, numa posição estranha, com as pernas mais altas do que a cabeça e a gritar com uma voz rouca, quase inaudível, como se estivesse a ter um sonho que o enchesse de pânico. Alguém lhe iluminou o rosto com um isqueiro, e viram-lhe os dentes de fora e umas manchas brancas aos cantos da boca. Outra pessoa disse que ele tinha partido o pescoço, mas não havia nada a fazer, pelo que os homens recomeçaram a andar, passando por cima dele com cobertores e almofadas, enquanto outros subiam.
Saíram do hotel e caminharam mais para o interior, de novo na direcção da mulher que tinha a porca. A luz devia ter sido cortada em Dunquerque, mas à volta de algumas janelas com cortinas pesadas via-se o brilho ocre das velas e dos candeeiros a petróleo. Do outro lado da estrada, os soldados batiam às portas, mas ninguém abria. Foi nesse momento que Turner resolveu descrever a Nettle o sítio que tinha em mente para jantarem. Ornamentou um pouco a sua descrição, com janelas de sacada a darem para uma varanda de ferro forjado, na qual se entrelaçava uma trepadeira, um gramofone sobre uma mesa redonda coberta com um pano verde e um tapete persa sobre uma chaise longue. Quanto mais descrevia, mais certo ficava de que aquele quarto não estava longe. As suas palavras estavam a materializá-lo.
Nettle, com os dentes da frente assentes no lábio inferior, com uma expressão de ratinho aturdido, deixou-o acabar e depois disse:
- Eu sabia. Sabia mesmo!
Estavam à porta de uma casa bombardeada, cuja cave estava meio aberta, expondo uma espécie de adega gigantesca. Nettle agarrou-o pelo casaco e puxou-o por uma ladeira cheia de tijolos partidos. Guiou-o cuidadosamente pela cave através da escuridão. Turner sabia que não era aquele o local, mas não conseguia resistir à invulgar determinação de Nettle. Mais à frente apareceu um ponto de luz, depois outro, e outro ainda. Eram cigarros de homens já abrigados naquele local.
- Pirem-se. Isto já está cheio - disse uma voz.
Nettle acendeu um fósforo e levantou-o. A toda a volta das paredes estavam homens sentados, a maior parte a dormir. Alguns estavam ao centro, no chão, mas ainda havia espaço e, quando o fósforo se acabou, carregou nos ombros de Turner para o obrigar a sentar-se. Ao afastar os tijolos partidos, Turner sentiu a camisa ensopada. Podia ser sangue, ou outro fluido qualquer, mas naquele momento não sentia dores. Nettle ajeitou o sobretudo nos ombros de Turner. Agora que o peso lhe tinha saído de cima dos pés sentia um êxtase de alívio espalhar-se pelos joelhos e percebeu que não daria mais um passo nessa noite, por muito desapontado que Nettle ficasse. O movimento ondulante de um dia inteiro de caminhada transfe-riu-se para o chão. Turner sentiu-o inclinar-se e tremer, ali sentado na escuridão total. O problema agora era comerem sem serem atacados. Sobreviver era ser egoísta. Mas não fez nada, e a sua mente tornou a ficar vazia. Passado algum tempo, Nettle acordou-o com uma cotovelada e passou-lhe a garrafa de vinho para as mãos. Pôs a boca à volta do gargalo, inclinou a garrafa e bebeu. Alguém o ouviu a engolir.
- O que tens aí?
- Leite de ovelha - respondeu Nettle. - Ainda está quente. Prova.
Ouviu-se alguém a escarrar violentamente, e Turner sentiu uma coisa tépida e gelatinosa aterrar-lhe na mão.
- São uns nojentos.
Uma outra voz, mais ameaçadora, disse:
- Pouco barulho. Estou a tentar dormir.
Movendo-se em silêncio, Nettle procurou o salpicão na mochila, cortou-o em três bocados e passou um a Turner com um naco de pão. Estendeu-se ao comprido no chão de cimento, puxou o sobretudo para cima da cabeça para abafar o cheiro da carne e o seu próprio barulho a mastigar e, com pedaços de tijolos e cascalho a espetarem-se-lhe no rosto, começou a comer a melhor refeição da sua vida. Tinha um cheiro a sabão perfumado na cara. Trincou o pão, que sabia a lona da tropa, e partiu e chupou o salpicão. Quando a comida lhe chegou ao estômago, sentiu uma explosão de calor inundar-lhe o peito e a garganta.
Tinha andado por aqueles caminhos durante toda a sua vida. Quando fechou os olhos viu o asfalto a mover-se e as botas a aparecerem e a saírem de vista. Mesmo enquanto mastigava sentia-se por vezes a mergulhar no sono por vários segundos. Tinha entrado noutro tempo e agora, confortavelmente acomodada na sua língua, estava uma amêndoa, cujo sabor doce pertencia a outro mundo. Ouviu alguns homens a queixarem-se do frio que estava na cave e sentiu-se satisfeito por ter o casaco à sua volta. Sentiu um orgulho de irmão por ter impedido os cabos de se desfazerem dos deles.
Entrou mais um grupo de soldados à procura de abrigo e a acender um fósforo, tal como ele e Nettle tinham feito. Sentiu uma certa aversão por eles e ficou irritado com o seu sotaque da Cornualha. Como todos os outros que se encontravam naquela cave, queria que eles se fossem embora. No entanto, descobriram um sítio mesmo aos pés dele. Sentiu um cheiro a brandy e ainda ficou mais irritado. Fizeram muito barulho a arranjar sítio para dormir e, quando se ouviu uma voz vinda do outro lado da parede a gritar: “Malditos labregos”, um dos recém-chegados diri-giu-se para lá a cambalear e, por momentos, pareceu que dali ia nascer uma briga. Mas a escuridão e os protestos cansados dos residentes restabeleceram a paz.
Ao fim de pouco tempo já só se ouviam os sons dos soldados a dormirem - a respirarem fundo e a ressonarem. Turner continuava a sentir o chão por baixo dele a tremer e depois a oscilar ao ritmo de uma marcha constante. Mais uma vez deu consigo demasiado afectado por imagens muito vívidas, demasiado febril e cansado para conseguir dormir. Sentiu o maço de cartas dela através do tecido do casaco. Eu espero por ti. Volta. Não eram palavras sem sentido, mas naquele momento não o impressionavam. Era claro - uma pessoa à espera de outra era como uma soma aritmética -, mas igualmente desprovido de emoção. Esperar. Simplesmente uma pessoa sem fazer nada ao longo do tempo, enquanto outra se aproximava. Esperar era uma palavra pesada. Sentia a sua pressão, tão grande como a do sobretudo. Todos os que estavam na cave estavam à espera, tal como todos os que estavam na praia. Ela também estava à espera, era verdade, mas... e depois? Tentava imaginar a voz dela a dizer as palavras, mas era a sua própria voz que ouvia, por baixo da linha do coração. Nem sequer conseguia visualizar a cara dela. Obrigou os seus pensamentos a enfrentarem aquela situação nova, e que supostamente devia fazê-lo feliz. A complexidade perdera-se, a urgência morrera. Briony jamais alteraria o seu depoimento, apenas reformularia o passado de forma que o culpado se tornasse inocente. Mas o que era a culpa naqueles dias? Nada. Toda a gente tinha a culpa e ninguém tinha. Ninguém seria redimido pela alteração de um testemunho, pois não havia gente suficiente, nem papel, nem canetas, nem paciência, nem paz, para anotar as declarações de todas as testemunhas e reunir os factos. As testemunhas também eram culpadas. Passava-se os dias a testemunhar os crimes dos outros. Não mataste ninguém hoje? Mas quantos deixaste morrer? Ali na cave ninguém falaria de nada. Vamos dormir para esquecer. A amêndoa sabia ao nome dela, e isso era tão estranho e improvável que Turner duvidou que se lembrasse dele correctamente. E também do de Cecília. Teria sempre percebido a que ponto eram estranhos aqueles nomes? Até esta dúvida era difícil de manter por muito tempo. Tinha tantos assuntos por arrumar ali em França que lhe parecia sensato adiar a partida para Inglaterra, apesar de ter as malas prontas - malas estranhas e pesadas. Ninguém as veria se as deixasse ali e voltasse para trás. Era uma bagagem invisível. Tinha de voltar para trás e ir buscar o miúdo à árvore. Já o tinha feito antes. Tinha ido ao sítio onde ninguém fora e encontrara os miúdos por baixo de uma árvore, e tinha levado Pierrot aos ombros e Jackson pela mão até casa. Que peso! Estava apaixonado, por Cecília, pelos gémeos, pelo sucesso, pelo amanhecer e pela sua neblina curiosa e brilhante. E que recepção! Agora já estava habituado àquelas coisas, eram um lugar comum, mas naquele tempo, antes das expressões duras e do mutismo generalizado, quando era uma novidade e tudo era novo, sentira-o muito intensamente. Quando ela correu para ele e lhe falou junto da porta aberta do carro da polícia. Oh, quando eu te amava. Nessa altura eras puro e corajoso. Por isso voltaria por onde viera, percorreria o contrário de tudo o que tinham ultrapassado, os pântanos secos e ameaçadores, o sargento de expressão feroz que estava na ponte, a aldeia bombardeada, a estrada que atravessava muitos e muitos quilómetros de sinuosos terrenos de cultivo, à procura do caminho à esquerda da aldeia, em frente da sapataria. Três quilómetros à frente saltaria a vedação de arame farpado, passaria por bosques e campos até chegar à quinta dos dois irmãos, onde pernoitaria, e no dia seguinte, sob a luz dourada da manhã, acompanhando as oscilações do ponteiro de uma bússola, atravessaria a correr aquela paisagem gloriosa de pequenos vales, regatos e enxames de abelhas e subiria o caminho que levava à triste cabana junto da linha do comboio. E à árvore. Apanharia da lama os bocados de roupa queimada e rasgada, o resto do pijama dele e depois trá-lo-ia para baixo, pobre menino tão pálido, e far-lhe-ia um enterro decente. Seria uma criança linda. Que os culpados enterrem os inocentes e que ninguém mude os seus depoimentos. E onde estaria Mace para ajudar a abrir a cova? O corajoso cabo Mace. Mais um assunto por resolver e mais uma razão para não partir. Tinha de encontrar Mace. Mas primeiro tinha de fazer todos aqueles quilómetros e voltar para norte, para a leira onde o camponês e o cão continuavam atrás do arado, e perguntar à mulher que falava flamengo e ao filho se o consideravam responsável pelas suas mortes. As vezes assumem-se demasiadas coisas, num impulso que mistura um sentimento de importância e de culpa. Talvez ela dissesse que não - “não” em flamengo. O senhor tentou ajudar-nos. Não podia carregar connosco por aquele campo. Carregou com os gémeos, mas connosco não. Não, não é culpado. Não.
Ouviu-se um sussurro, e sentiu-o sobre o seu rosto escaldante.
- Estás a fazer muito barulho, chefe.
Por detrás do cabo Nettle havia uma enorme faixa de céu azul e, recortado nele, o contorno escuro do tecto destruído da cave.
- Barulho? O que é que eu estava a fazer?
- A gritar “não” e a acordar toda a gente. Alguns dos tipos estavam a ficar irritados.
Tentou levantar a cabeça, mas percebeu que não conseguia. O cabo acendeu um fósforo.
- Meu Deus! Estás com um aspecto terrível. Vá lá. Bebe.
Levantou-lhe a cabeça e encostou-lhe o cantil aos lábios. A água sabia a metal. Quando acabou de beber, uma onda quase oceânica de exaustão começou a empurrá-lo para baixo. Para não alarmar Nettle, tentou mostrar-se mais razoável do que na realidade se sentia.
- Olha, decidi ficar. Preciso de tratar de uns assuntos.
Nettle estava a limpar-lhe a testa com a mão toda suja.
Não percebia por que razão Nettle acharia preciso pôr a cara, a sua horrível cara de rato, tão perto da dele.
- Consegues ouvir-me, chefe? - perguntou o cabo. - Estás a ouvir? Há uma hora fui lá fora mijar. Imaginas o que vi?! A marinha, estrada abaixo, a recrutar oficiais. Estão a organizar-se na praia. Os barcos voltaram. Vamos para casa, companheiro. Há um tenente dos Buffs que vai levar-nos para baixo às sete. Por isso dorme e acaba lá com a gritaria.
Só queria dormir, dormir mil horas. Era mais fácil. A água era nojenta, mas tinha ajudado, tal como as notícias e o sussurro tranquilizador de Nettle. Formariam lá fora na estrada, e marchariam até à praia. Formariam em rectângulo. Reinaria a ordem. Em Cambridge ninguém lhe ensinara as vantagens de uma boa formatura. Veneravam os espíritos livres e desordeiros. Os poetas. Mas que sabiam os poetas de sobrevivência? Da sobrevivência de um corpo de homens. Sem quebrar as fileiras, sem arrastar as botas, sem querer ser o primeiro a servir-se, sem vir o diabo e escolher. Não se ouviria o som das botas a atravessarem a areia até chegarem à água. Por entre a espuma das ondas haveria mãos dispostas a segurar o barco para os companheiros entrarem. Mas o mar estava tranquilo, e ele próprio estava calmo. Claro que percebia como era bom ela estar à espera dele. A aritmética que fosse para o diabo! Eu espero por ti era elementar. Era a razão por que sobrevivera. Era a forma vulgar de dizer que recusaria todos os outros homens. Só tu. Volta. Lembrava-se de sentir a gravilha por baixo das solas finas dos sapatos, sentia-a naquele momento; sentia o contacto glacial das algemas nos pulsos. Ele e o inspector a pararem ao pé do carro e a voltarem-se ao ouvirem passos. Como poderia ele esquecer aquele vestido verde, como ele se ajustava à curva das suas ancas, como a impedia de correr, como mostrava a beleza dos seus ombros. Mais brancos do que o nevoeiro. Não era de admirar que a polícia os tivesse deixado falar um com o outro. Ele nem sequer pensara nisso. Tinham-se comportado como se estivessem sozinhos. Ela não cedera às lágrimas ao dizer-lhe que acreditava nele, que confiava nele, que o amava. Ele dissera-lhe apenas que não se esqueceria disso, o que era uma forma de lhe dizer como se sentia grato, sobretudo então e sobretudo agora. Depois ela pusera um dedo sobre as algemas e dissera-lhe que não tinha vergonha, que não havia motivo para ter vergonha. Pegou-lhe por um canto da lapela, abanou-a ligeiramente e foi nesse momento que disse: “Eu espero por ti. Volta.” Disse-o com toda a sinceridade.
O tempo haveria de mostrar a que ponto falava a sério. Depois disso tinham-no empurrado para dentro do carro, e então ela começara a falar apressadamente, antes de deixar cair as lágrimas, que já não conseguia reter por mais tempo, e dissera que o que acontecera entre eles lhes pertencia, era só deles. Estava obviamente a falar da biblioteca. Era deles. Ninguém poderia tirar-lhes isso. “E um segredo nosso”, gritara ela, à frente de todos, imediatamente antes de a porta bater.
- Não direi uma palavra - disse ele, apesar de a cabeça de Nettle há muito ter desaparecido da sua frente. - Acorda-me antes das sete. Prometo-te que não ouvirás nem mais uma palavra.
PARTE III
1
O mal-estar não se confinava ao hospital. Parecia aumentar com a turbulência das águas castanhas do rio, aumentadas pelas chuvas de Abril, e à noite atravessava a cidade às escuras como um crepúsculo mental sentido em todo o país, uma espessura silenciosa e maligna, indissociável da frescura da Primavera e bem escondida por entre a sua crescente beneficência. Qualquer coisa estava a chegar ao fim. Grupos de funcionários mais graduados falavam de um segredo qualquer nos cruzamentos dos corredores, convencidos da sua importância. Os médicos mais jovens eram um pouco mais altos e tinham um passo mais agressivo. O médico de serviço distraía-se na ronda e, certa manhã, chegou-se à janela para olhar para o rio durante muito tempo, enquanto atrás dele as enfermeiras se mantinham junto das camas dos doentes, à espera. Os maqueiros mais idosos pareciam deprimidos ao transportar os doentes de e para as enfermarias e também pareciam também ter esquecido os ditos aprendidos nas comédias radiofónicas. Briony gostaria de voltar a ouvir aquela frase deles que tanto desprezava: “Anima-te, miúda, pode ser que não aconteça.”
Mas estava prestes a acontecer. O hospital estava há vários dias a esvaziar-se lenta e invisivelmente. A princípio parecia um mero acaso, uma epidemia de saúde, que os estagiários menos inteligentes tinham tendência para atribuir ao progresso das suas técnicas. Só lentamente se conseguia detectar uma intenção em tudo aquilo. As camas vazias espalhavam-se pela enfermaria, e por outras enfermarias, como mortes durante a noite. Briony imaginava os passos dos que se retiravam pelos corredores luzidios com um som abafado e apologético, que outrora fora vivo e eficiente. Os operários que vinham instalar mangueiras novas nos patamares, à saída dos elevadores, e baldes com areia para incêndios, trabalhavam o dia inteiro, sem parar e sem falar com ninguém até se irem embora - nem mesmo com os maqueiros. Na enfermaria, só oito das vinte camas estavam ocupadas e, embora o trabalho fosse ainda mais pesado do que antes, uma certa inquietação, um medo quase supersticioso, impedia as alunas de enfermagem de se queixarem quando estavam sozinhas a tomar chá. Estavam, em geral, mais calmas, mais receptivas. Já não estendiam as mãos para comparar o tamanho das frieiras.
Além disso, havia uma ansiedade constante das estagiárias em relação a possíveis erros. Tinham todas muito medo da Irmã Marjorie Drummond e do exíguo sorriso ameaçador que precedia os seus ataques de fúria. Briony sabia que cometera recentemente uma série de erros. Há quatro dias, apesar das instruções cuidadosas que recebera, um doente seu tinha despejado o frasco do ácido carbólico para gargarejos - segundo um porteiro, que presenciara a cena, de um só trago, como se fosse uma imperial - e tinha vomitado nos lençóis. Briony também sabia que a Irmã Drummond a tinha visto levar só três resguardos de cada vez, quando tinham instruções para transportarem pilhas de seis, como um criado do La Coupoule. Podiam ter existido outros erros que, com o seu estado de cansaço, tivesse acabado por esquecer ou que até lhe tivessem passado despercebidos. Era dada a erros de comportamento - quando se distraía, tinha tendência para assentar o seu peso só num pé, o que enraivecia tremendamente a sua superiora. Os lapsos e erros podiam ir-se acumulando imprudentemente ao longo de vários dias: uma vassoura mal arrumada, um cobertor dobrado com a etiqueta para cima, um colarinho mal engomado ou ligeiramente torcido, as rodas das camas mal alinhadas ou a apontarem para dentro, sair da enfermaria de mãos vazias sem aproveitar para trazer qualquer coisa - tudo notado em silêncio, até ao momento em que a capacidade se esgotava e, caso não se tivesse sabido interpretar os sinais, a fúria podia abater-se como um choque. E logo quando uma pessoa pensava que andava a fazer tudo bem.
Mas ultimamente a Irmã não dirigia o seu sorriso desconsolado às estagiárias, nem falava com elas no tom contido que tanto as aterrorizava. Quase nem se preocupava em fazer os seus reparos. Andava preocupada. Tinha longas conversas com a sua substituta junto à sala de cirurgia dos homens e às vezes chegava a desaparecer durante dois dias.
Num outro contexto, noutra profissão, poderia ter parecido maternal, com as suas formas redondas, ou até sensual, pois os seus lábios não pintados tinham uma cor natural acentuada e um contorno bonito. Além disso, as maçãs do seu rosto eram arredondadas e rosadas como as de uma boneca, o que lhe dava um ar saudável e sugeria um carácter afável. Esta impressão depressa desapareceu, quando uma estagiária do mesmo ano de Briony, uma rapariga corpulenta, doce e algo lenta, com um olhar inofensivo, foi confrontada com a força dilacerante da fúria da freira. A enfermeira Langland fora destacada para a sala de cirurgia dos homens e tinham-lhe pedido que preparasse um soldado ainda jovem para uma operação ao apêndice. Sozinha com ele durante um ou dois minutos, começou a falar com ele e a tranquilizá-lo em relação à intervenção. Ele devia ter-lhe feito a pergunta óbvia, o que a levara a quebrar a regra instituída. Estava claramente formulada no manual, embora ninguém se tivesse apercebido até então da sua verdadeira importância. Fora severamente criticada e imediatamente mandada para a enfermaria. As outras enfermeiras foram chamadas para serem alertadas para aquele comportamento incorrecto. Se a pobre Susan Langland tivesse morto dez doentes, por descuido ou crueldade, não teria sido pior para ela. Quando a Irmã Drummond concluiu o seu discurso, em que lhe disse que era uma desonra para a tradição da enfermagem lançada por Nightingale e que ela aspirava seguir, e que devia dar-se por muito satisfeita por ir passar um mês a separar roupa suja, não só Langland, mas metade das enfermeiras presentes estavam a chorar. Briony não, mas nessa noite, quando estava deitada e ainda a tremer um pouco, reviu o manual para ver se havia outros pontos das regras que não andasse a cumprir. Insistiu em particular na regra que dizia que, em circunstância alguma, podia uma enfermeira dizer a um doente o seu nome de baptismo. As enfermarias estavam a esvaziar-se, mas o trabalho aumentava. Todas as manhãs as camas eram puxadas para o meio, para que as estagiárias pudessem polir o chão com uma máquina que uma rapariga sozinha dificilmente conseguia deslocar de um lado para outro. O chão tinha de ser varrido três vezes por dia. Os armários vazios eram esfregados, os colchões desinfectados, e areavam-se os cabides, puxadores e fechaduras de latão. As madeiras - as portas e os rodapés - eram lavadas com uma solução carbólica, bem como as camas, as estruturas de ferro e as molas. As alunas esfregavam e secavam as arrastadeiras e os bacios até parecerem pratos de serviços de jantar. Os camiões do exército paravam junto das entradas de mercadorias e deles eram descarregadas mais camas - camas velhas e fétidas - que tinham de ser esfregadas várias vezes antes de serem levadas para as enfermarias, aninhadas entre as que já lá estavam e depois desinfectadas. Nos intervalos destas tarefas, as alunas eram obrigadas, umas doze vezes por dia, a esfregar as mãos cheias de cortes e frieiras com água gelada. A guerra aos germes não tinha fim. As estagiárias eram iniciadas no culto da higiene. Aprendiam que não havia nada tão feio como um bocado de cotão por baixo de uma cama, encerrando um batalhão ou até talvez uma divisão inteira, de bactérias. O desempenho diário das tarefas de ferver, esfregar, puxar o lustro e limpar tornou-se a bandeira diária das alunas e o seu maior motivo de orgulho profissional, ao qual qualquer conforto pessoal devia ser sacrificado.
Os maqueiros traziam dos depósitos grandes quantidades de peças de equipamento novas, que era preciso desembalar, inventariar e arrumar - fardas, ebonites, agulhas hipodérmicas, três novos autoclaves e muitas embalagens com a indicação “Sacos de Bunyan”, cuja utilidade ainda não fora explicada a ninguém. Foi instalado mais um armário para medicamentos, onde, depois de ter sido esfregado três vezes, estes foram devidamente arrumados. Foi fechado, e a chave foi guardada pela Irmã Drummond, mas uma manhã Briony viu lá dentro muitos frascos com um rótulo a dizer “Morfina”. Quando lhe mandavam fazer algum recado passava por outras enfermarias que estavam a ser alvo dos mesmos preparativos. Havia uma que já estava completamente vazia e esperava, silenciosa e reluzente. Mas ninguém perguntava nada. No ano anterior, antes de a guerra ter sido declarada, as enfermarias do andar superior tinham sido fechadas como protecção contra os bombardeamentos. O bloco operatório tinha passado para a cave. As janelas do rés-do-chão haviam sido tapadas com sacos de areia e as clarabóias cimentadas.
Um general do exército foi visitar o hospital acompanhado por seis assessores. Não houve nenhuma cerimónia, nem sequer se fez sentir nenhum silêncio em especial quando eles chegaram. Dizia-se que, quando havia visitas assim tão importantes, até o nariz dos doentes tinha de estar alinhado com a dobra central do lençol de cima.
Mas não havia tempo para preparativos. O general e a sua comitiva tinham percorrido as enfermarias, murmurando e acenando com a cabeça, e depois tinham-se ido embora. O mal-estar aumentava, mas havia poucas oportunidades para especular, o que aliás era oficialmente proibido. Quando não estavam de turno, as enfermeiras-estagiárias tinham aulas, conferências, ou assistiam a demonstrações práticas ou então estudavam sozinhas. As suas refeições e as suas horas de deitar e levantar eram vigiadas como se fossem alunas recém-chegadas a Roedean. Quando Fiona que dormia na cama ao lado da de Briony, empurrou o prato e anunciou que era “clinicamente incapaz” de comer legumes cozidos com um cubo Oxo, a freira foi para junto dela e ficou a vê-la comer tudo até ao último bocado. Fiona era, por definição, amiga de Briony; no dormitório, na primeira noite do estágio preliminar, pedira a Briony que lhe cortasse as unhas da mão direita, porque não conseguia manejar a tesoura com a mão esquerda, e era sempre a mãe que lhas cortava. Era ruiva e tinha sardas, o que deixou Briony imediatamente apreensiva. Mas, ao contrário de Lola, Fiona era uma rapariga exuberante e alegre, com covinhas nas costas das mãos e um peito enorme, o que levava as outras a dizerem que o destino dela era vir a ser freira um dia. A família dela vivia em Chelsea. Uma vez, quando estava deitada, dissera a Briony, em surdina, que o pai estava na iminência de ser nomeado para o Ministério da Defesa por Churchill. Contudo, quando os nomes dos membros do governo foram anunciados, nenhum dos apelidos coincidia com o dela, mas ninguém disse nada, e Briony achou melhor também não perguntar nada. Nos primeiros meses de estágio, Fiona e Briony tiveram poucas possibilidades de descobrir se gostavam realmente uma da outra. Convinha-lhes partir do princípio que sim. Eram das poucas que não tinham qualquer experiência. Muitas das outras já tinham feito cursos de primeiros socorros e algumas tinham sido voluntárias e já
estavam habituadas a ver sangue e cadáveres, ou pelo menos diziam que estavam.
Mas não era fácil cultivar amizades. As estagiárias faziam os turnos nas enfermarias, estudavam três horas por dia e dormiam. O seu único luxo era o chá, entre as quatro e as cinco, quando tiravam das prateleiras os seus minúsculos bules castanhos, com o seu nome gravado, e se sentavam na pequena sala de apoio da enfermaria. As conversas eram superficiais. Estava presente uma freira, que as vigiava e assegurava o decoro. Além disso, mal se sentavam eram vencidas pelo cansaço, tão pesado como três cobertores dobrados. Uma vez uma adormeceu com a chávena e o pires na mão e queimou uma perna - uma boa oportunidade, segundo a Irmã Drummond que veio ver qual era a origem da gritaria, para praticar o tratamento das queimaduras.
Ela própria era uma barreira à amizade. Nos primeiros meses, Briony pensava muitas vezes que a única pessoa com quem se relacionava era com a Irmã Drummond. Estava sempre presente - num momento ao fundo do corredor, a dirigir-se para ela com um objectivo temível, outras vezes ao lado dela, a segredar-lhe ao ouvido que não prestara atenção suficiente ao treino preliminar sobre o método correcto de dar banho aos doentes do sexo masculino: só depois da segunda muda da água do banho é que se devia passar a flanela ensaboada e a toalha ao doente, para que ele pudesse acabar “o serviço” sozinho. O estado de espírito de Briony dependia em grande medida da opinião que nesse momento a irmã responsável pela enfermaria tinha dela. Sentia um nó no estômago sempre que a Irmã Drummond olhava fixamente para ela. Era impossível saber se agira bem ou não. Não havia elogios. O melhor que se podia esperar era a indiferença.
Nos momentos que tinha para si própria, habitualmente no escuro, alguns minutos antes de adormecer, Briony era assombrada por uma vida paralela, na qual se encontrava em Girton a ler Milton. Podia ter estado na faculdade da irmã em vez de estar no hospital da irmã. Briony achava que decidira participar na guerra, mas a verdade é que limitara a sua vida a uma mulher cinquenta anos mais velha, com mais poder sobre ela do que qualquer mãe sobre o seu bebé de colo.
Esta limitação, que era acima de tudo uma forma de se despojar da sua identidade, começara algumas semanas antes de ter ouvido falar da Irmã Drummond. No primeiro dia do seu estágio preliminar de dois meses, o facto de ser humilhada à frente de todas as colegas fora uma grande lição. Era assim que seria. Fora ter com a freira para lhe dizer muito educadamente que havia um erro na chapa da sua identificação. Era B. Tallis e não, como dizia na pequena placa rectangular, E. Tallis.
A resposta tinha sido calma.
- E e vai continuar a ser como aí está escrito. O seu nome de baptismo não me interessa. Agora pode sentar-se, enfermeira Tallis.
As outras raparigas ter-se-iam rido se se atrevessem a tanto, pois tinham todas a mesma inicial, mas tinham percebido - e com razão - que isso não era permitido. Estavam a ter lições de higiene e a aprender a dar banho a modelos em tamanho real - Mrs Mackintosh, Lady Chase e o bebé George, cujo físico maleável permitia dobrá-lo completamente. O objectivo era ensiná-las a obedecer sem pensar, a transportar arrastadeiras empilhadas e a ter sempre presente uma regra fundamental: nunca atravessar uma enfermaria sem trazer qualquer coisa na mão. O desconforto físico ajudara a limitar os horizontes mentais de Briony. Os colarinhos altos engomados punham-lhe o pescoço em ferida. Lavar as mãos dezenas de vezes por dia com água gelada e com um bocado de soda provocou-lhe as primeiras frieiras. Os sapatos que tivera de comprar com o seu dinheiro apertavam-lhe os dedos. O uniforme, como todos os uniformes, fazia desaparecer a identidade, e os cuidados diários - franzir as pregas, prender a touca, endireitar as costuras, engraxar os sapatos, sobretudo os sa]tos - desencadeavam um processo que levava a que as outras preocupações fossem esquecidas a pouco e pouco. No momento em que as raparigas eram consideradas aptas a iniciar o estágio e a trabalhar nas enfermarias sob a supervisão da Irmã Drummond, cumprindo a rotina diária “desde a arrastadeira até ao café”, as suas vidas anteriores já se tinham tornado uma nebulosa. Em certa medida, as suas mentes tinham-se esvaziado, as suas defesas tinham diminuído, por forma a serem facilmente persuadidas da autoridade absoluta da freira. Preenchia os seus espíritos vazios sem qualquer resistência por parte delas.
Se bem que isso nunca tenha sido dito, este processo desenrolava-se segundo um modelo militar. Miss Nighting-ale, que jamais poderia ser referida como Florence, estivera tempo suficiente na Crimeia para aprender o valor da disciplina, de um comando forte e de tropas bem treinadas. Por isso, quando estava deitada, de noite, a ouvir Fiona começar a ressonar - dormia de costas -, Briony percebia que essa vida paralela, que lhe era tão fácil imaginar pelas visitas que fizera a Cambridge em criança para ver Leon e Cecília, começaria dentro de pouco tempo a afastar-se da sua vida real. Era aquela a sua vida de estudante, aqueles quatro anos num regime que a tolhia, mas que ela não tinha vontade de abandonar, nem liberdade para o fazer. Estava a abandonar-se a uma vida de críticas, regras, obediência, trabalhos de casa e medo constante de ser criticada. Estava incluída num grupo de estagiárias - de tantos em tantos meses chegava um outro grupo - e não tinha mais identidade do que aquela que constava da sua chapa. Ali não havia tutores, nem ninguém que se preocupasse se aquele era ou não o curso certo para o seu desenvolvimento intelectual. Despejava e lavava arrastadeiras, varria e encerava o chão, fazia leite com cacau e café, carregava coisas de um lado para outro - e era poupada a introspecções. No futuro - aprendera-o com as conversas das alunas do segundo ano - começaria a ter prazer na sua competência. Recentemente já sentira alguns laivos desse prazer, por terem confiado nela para medir o pulso e a temperatura a alguns doentes, sob supervisão, e registar os dados numa ficha. Relativamente aos tratamentos médicos, já tinha posto genciana num doente com tinha, uma emulsão de acriflavina num golpe e uma loção de chumbo numa ferida. Mas era sobretudo uma criada, uma sopeira e, nas horas livres, alguém que coleccionava factos simples. Agradava-lhe ter pouco tempo para pensar noutras coisas. Mas quando estava no patamar do seu andar, de camisa de dormir, e olhava por cima do rio para a cidade às escuras - a última coisa que fazia todos os dias -, lembrava-se do mal-estar que reinava nas ruas e nas enfermarias e que era como a própria escuridão. Não havia nada na rotina da sua vida, nem mesmo a Irmã Drummond, que pudesse protegê-la disso.
Na meia hora que precedia o momento em que as luzes eram apagadas, depois do cacau quente, as raparigas entravam e saíam do quarto umas das outras e sentavam-se na cama a escrever cartas à família e aos namorados. Algumas ainda choravam com saudades de casa e nessas alturas eram muito reconfortadas, com abraços e palavras tranquilizadoras. Briony achava teatral e ridículo ver mulheres adultas a chorarem pelas mães ou, como dissera uma das alunas entre soluços, pelo cheiro do cachimbo do pai. As que consolavam as outras pareciam gostar demasiado de o fazer. Naquele ambiente enfastiante, Briony escrevia por vezes pequenas cartas para casa, com poucas informações para além de que não estava doente, nem infeliz, nem precisava da sua mesada, nem estava prestes a mudar de ideias como a mãe previra. As outras raparigas desviam orgulhosamente todos os pormenores da sua rotina diária para deixarem os seus queridos pais de boca aberta. Briony só confiava esses assuntos ao seu diário, e mesmo assim sem grandes pormenores. Não queria que a mãe soubesse dos trabalhos menores que ela executava. O seu objectivo de se tornar enfermeira era, em parte, uma forma de se tornar independente. Era importante para ela que os pais, sobretudo a mãe, soubessem o menos possível da sua vida.
Para além de um conjunto de perguntas sempre repetidas e que ficavam sempre por responder, as cartas de Emily falavam sobretudo dos deslocados. Três mães com sete filhos, todos de Londres, da zona de Hackney, tinham sido confiados aos Tallis. Uma das mães tinha-se desgraçado no pub da aldeia e tinha sido posta de lado. Outra era católica praticante e andava todos os domingos seis quilómetros com os seus três filhos para ir à missa na igreja local. Mas Betty, que também era católica, era insensível a estas diferenças. Odiava as três mães e os filhos todos. Na manhã do primeiro dia tinham-lhe dito que não gostavam da comida dela. Betty dizia que tinha visto a que ia à missa a cuspir para o chão do vestíbulo. O filho mais velho, um rapaz de treze anos, que não parecia ter mais do que oito, tinha-se metido na fonte, trepado à estátua e partido um dos chifres do Tritão e um braço, pelo cotovelo. Jack tinha dito que era fácil de consertar. Mas o bocado partido, que fora levado para dentro de casa e deixado na copa, tinha desaparecido. Instigada pelo velho Hardman, Betty acusara o rapaz de o deitar ao lago. O rapaz disse que não sabia de nada. Ainda se pensou em esvaziar o lago, mas receou-se pela vida do casal de cisnes. A mãe defendeu tenazmente o filho, argumentando que era perigoso ter uma fonte numa casa onde havia crianças e participando que ia escrever ao deputado. Sir Arthur Ridley era o padrinho de Briony.
Mesmo assim, Emily achava que era uma sorte terem recebido deslocados, porque a certa altura receara que a casa fosse requisitada pelo exército. Afinal tinham-se instalado em casa de Hugh van Vliet, porque tinha uma mesa de snooker. As outras notícias eram que a sua irmã Hermione continuava em Paris, mas estava a pensar mudar-se para Nice, e que as vacas tinham sido postas a pastar muito mais para norte, para o parque poder ser semeado com milho. Uma vedação de ferro com mais de dois quilómetros de comprimento, que datava de 1750, tinha sido levada para ser derretida para fazer Spitfires. Até os operários que a desmontaram disseram que aquele metal não servia. Junto ao rio tinham construído uma plataforma para canhões com cimento e tijolos, mesmo na curva, por entre as juncas, e tinham destruído os ninhos de lavandiscas e de cantadeiras. Estavam a fazer outra plataforma à entrada da aldeia, mas ainda na estrada principal. Estavam a guardar todas as peças frágeis nas caves, incluindo o cravo. A desajeitada da Betty tinha deixado cair a jarra do tio Ciem nos degraus, quando a levava para baixo, e ela ficara estilhaçada. Dissera que ela se tinha feito em bocados na sua mão, mas custava a crer. Danny Hardman alistara-se na Marinha, mas todos os outros rapazes da aldeia tinham ido para os East Surreys. Jack andava a trabalhar demasiado. Tinha ido a uma conferência especial e voltara cansado e magro, mas não podia dizer-lhe onde tinha ido. Ficou furioso por causa da jarra e gritou com Betty, o que nem parecia coisa dele. Para cúmulo, tinha perdido um livro de senhas de racionamento e tinham ficado sem açúcar durante duas semanas. A mãe que fora expulsa do Red Lion tinha voltado sem a máscara de gás, e era impossível arranjar outra. O chefe da ARP, que era o irmão do guarda Vockins, tinha ido lá a casa pela terceira vez fazer a inspecção em caso de blackout. Estava a tornar-se um ditador. Ninguém gostava dele.
Ao ler aquelas cartas ao fim de um dia cansativo, Briony sentia uma espécie de nostalgia, uma vaga saudade de uma vida há muito perdida. Não podia lamentar-se. Fora ela que se afastara de casa. Na semana de férias depois do treino preliminar, antes de começar o estágio propriamente dito, fora para casa dos tios em Primrose Hill e conseguira resistir aos apelos telefónicos da mãe. Porque não havia de ir visitá-los, nem que fosse só um dia? Estavam todos desejosos de a ver e de a ouvir contar as histórias da sua nova vida. E porque escrevia tão raramente? Era difícil dar uma resposta directa. Por enquanto tinha de se manter afastada.
Guardava na gaveta da mesa de cabeceira um caderno com uma capa de cartão aos quadrados. Preso à lombada estava um cordel com um lápis na ponta. Não se podia escrever com caneta e tinta na cama. Começou o seu diário no fim do primeiro dia do treino preliminar e conseguia escrever pelo menos dez minutos na maior parte das noites, antes de as luzes se apagarem. Os seus registos eram manifestos artísticos, queixas banais, traços de carácter e relatos simples do que fora o seu dia, que se transformavam cada vez mais em fantasias. Raramente lia o que escrevera, mas gostava de folhear as páginas preenchidas. Era ali, por detrás da placa e do uniforme, que estava o seu verdadeiro eu, secretamente escondido, a acumular-se lentamente. Nunca perdera o prazer da infância de ver páginas e páginas escritas com a sua letra. Quase não importava o que escrevia. Como a gaveta não se fechava a chave, tinha o cuidado de disfarçar as descrições da Irmã Drummond. Também mudava os nomes dos doentes. Depois de mudar os nomes, tornava-se mais fácil alterar as circunstâncias e inventar. Gostava de escrever os pensamentos desconexos que lhes atribuía na sua imaginação. Não tinha qualquer obrigação de respeitar a verdade; não prometera a ninguém fazer uma crónica. Era o único local onde podia ser livre. Construía pequenas histórias - não muito convincentes, algumas vezes exageradas - sobre as pessoas que havia no hospital. Às vezes via-se como uma espécie de Chaucer médico, cujas enfermarias estavam pejadas de indivíduos interessantes, foliões, bêbedos, velhos e mulheres belas com um segredo sinistro. Mais tarde viria a arrepender-se de não ter sido mais factual, de não se ter abastecido com uma boa quantidade de matéria-prima. Teria sido útil saber o que acontecera, como era, quem lá estava, o que se dizia. Na altura, o diário servira para preservar a sua dignidade: podia parecer uma enfermeira-estagiária, comportar-se como tal, viver de acordo com os padrões, mas era, na verdade, uma escritora importante incógnita. Num momento em que estava afastada de tudo o que conhecia - família, casa, amigos -, escrever era o único elo de continuidade. Era o que sempre fizera. Eram raros os momentos do dia em que o seu espírito podia vaguear livremente. Por vezes mandavam-na fazer um recado ao dispensário e tinha de esperar que o farmacêutico voltasse. Atravessava então o corredor até chegar a uma janela de onde se via o rio. Sem dar por isso, assentava o peso do seu corpo sobre o pé direito, olhava fixamente para os edifícios do Parlamento sem os ver e pensava não no seu diário, mas na longa história que escrevera e enviara para uma revista. Durante a estada em Primrose Hill, pedira ao tio que lhe emprestasse a máquina de escrever, ocupara a casa de jantar e escrevera a versão final, matraqueando as teclas apenas com os indicadores. Passara a semana inteira a escrever, mais de oito horas por dia, até já não aguentar as dores no pescoço e nas costas e a sua visão ser completamente dominada por tortuosas espirais de sinais tipográficos. Mas não se lembrava de ter tido um prazer maior do que ver aquela pilha de páginas - cento e três! - perfeitamente alinhadas e sentir na ponta dos dedos em ferida o peso da sua criação. Tudo obra dela. Ninguém poderia ter escrito aquilo. Ficou com um duplicado, embrulhou a história (que palavra tão desajustada) em papel castanho, apanhou o autocarro para Bloomsbury, foi a pé até à morada da revista nova, Horizon, em Lansdowne Terrace, e entregou o pacote a uma jovem simpática que veio à porta.
O que mais a entusiasmava na sua obra era o seu modelo, a sua geometria pura e a incapacidade de a definir de uma forma irredutível, o que, na sua opinião, reflectia uma sensibilidade moderna. A época das respostas exactas acabara. Também a época das personagens e dos enredos. Apesar das descrições do seu diário, já não acreditava em personagens. Eram artifícios estranhos que pertenciam ao século xix. O próprio conceito de personagem assentava em erros que a psicologia moderna tinha revelado. Também os enredos pareciam uma maquinaria enferrujada, cujas rodas já não giravam. Um escritor moderno já não podia construir enredos e personagens, da mesma forma que um compositor moderno não podia compor uma sinfonia de Mozart. Era o pensamento, a percepção, as sensações que lhe interessavam, a mente consciente que atravessava o tempo como um rio, e a forma de representar o seu movimento contínuo, bem como todos os afluentes que a engrossariam e os obstáculos que podiam afastá-la do seu curso. Se ao menos conseguisse reproduzir a luz nítida de uma manhã de Verão, as sensações de uma criança à janela, o arco descrito por uma andorinha a voar e a mergulhar sobre uma poça de água. A novidade do futuro seria diferente de tudo o que havia no passado. Lera três vezes As Ondas, de Virgínia Woolf, e achava que estava a dar-se uma grande transformação na própria natureza humana, e que só a ficção, um novo tipo de ficção, poderia captar a essência dessa mudança. Penetrar numa mente e mostrar como ela funcionava, e conseguir fazê-lo segundo um modelo simétrico - seria um triunfo artístico. Era isto que pensava a enfermeira Tallis enquanto esperava pelo farmacêutico, ao pé do dispensário, e olhava para o Tamisa, esquecendo o perigo de a Irmã Drummond a encontrar com o peso do corpo assente sobre um só pé.
Tinham passado três meses e Briony ainda não tivera notícias da Horizon.
Havia um segundo texto, que também não dera origem a qualquer resposta. Fora à secretaria da administração pedir a morada de Cecília e escrevera-lhe no princípio de Maio. Começava a acreditar que o silêncio era a resposta dela.
Nos últimos dias de Maio as entregas de medicamentos aumentaram. Houve mais casos não urgentes a serem enviados para casa. Muitas enfermarias teriam ficado completamente vazias, se não tivessem sido admitidos quarenta marinheiros - havia um tipo estranho de icterícia na Royal Navy. Briony já não tinha tempo para reparar em nada disso. Tinham começado novos cursos sobre enfermagem hospitalar e anatomia preliminar. As alunas do primeiro ano corriam dos turnos para as aulas, das aulas para as refeições e destas para o estudo. Depois de lerem a terceira página, era difícil manterem-se acordadas. Os sinos do Big Ben marcavam todas as mudanças do dia, e havia alturas em que a nota solene do quarto de hora desencadeava gemidos de pânico, quando as raparigas se apercebiam de que àquela hora já deviam estar noutro sítio.
A maior parte dos doentes, fosse qual fosse o seu estado, não podia sequer ir à casa de banho. Estar de cama era considerado um tratamento médico. Por isso, os dias começavam com as arrastadeiras. A Irmã Drummond não gostava que as levassem pelas enfermarias “como raquetas de ténis”. Deviam ser transportadas “para glória de Deus”, e tinham de estar despejadas, lavadas, secas e arrumadas às sete e meia, hora a que deviam começar a ser preparadas as bebidas da manhã. Passavam o dia às voltas com arrastadeiras, os banhos, a limpeza do chão. Queixam-se de dores nas costas por fazerem as camas e de terem os pés a arder por estarem de pé o dia inteiro. Um outro dever das enfermeiras era pôr o blackout nas enormes janelas da enfermaria. Ao fim do dia, mais arrastadeiras, despejar as escarradeiras, preparar o cacau. Quase nem havia tempo, entre o fim do turno e o início das aulas, de ir ao dormitório buscar os papéis e os livros. Só num dia, Briony fora criticada duas vezes pela responsável da enfermaria por ter atravessado o corredor a correr. Só uma hemorragia ou um incêndio justificavam que uma enfermeira corresse.
Mas o campo principal das jovens estagiárias era a sala das lavagens. Dizia-se que iam instalar máquinas automáticas de lavagem de arrastadeiras e bacios, mas era apenas um boato distante de uma terra prometida. Por agora tinham de continuar a fazer o mesmo que outras antes delas tinham feito. No dia em que tinham ralhado com ela duas vezes por ter corrido, Briony foi mandada para a sala das lavagens para um turno suplementar. Podia ter sido um erro da escala de serviço, mas duvidava. Fechou a porta atrás de si e atou o pesado avental de borracha à volta da cintura. Havia um truque de que se servia para despejar as arrastadeiras - aliás, apenas assim conseguia fazê-lo: fechava os olhos, sustinha a respiração e desviava a cabeça. Seguia-se a limpeza com uma solução carbólica. Se se esquecesse de limpar as pegas das arrastadeiras e de as secar, estaria metida em sarilhos com a Irmã.
A tarefa seguinte fora limpar a enfermaria quase vazia ao fim do dia - arrumar os armários, despejar os cinzeiros, apanhar os jornais. Olhou automaticamente para uma página dobrada do Sunday Grapbic. Acompanhava as notícias lendo relatos dispersos. Nunca tinha tempo para se sentar a ler um jornal como devia ser. Sabia da queda da linha Maginot, do bombardeamento de Roterdão, da rendição do exército holandês e, na noite anterior, algumas raparigas tinham estado a falar do colapso iminente da Bélgica. A guerra estava a correr mal, mas as coisas tinham de melhorar. Naquele momento, a sua atenção concentrava-se numa frase anódina - não pelo que dizia mas pelo que tentava esconder. No Norte da França, o exército britânico estava a “fazer uma retirada estratégica para posições anteriormente preparadas”. Até ela, que não percebia nada de estratégia militar nem de convenções jornalísticas, percebia que aquilo era um eufemismo para a retirada. Talvez fosse a última pessoa do hospital a perceber o que estava a acontecer. Entendera as enfermarias vazias, o afluxo de medicamentos, apenas como uma parte dos preparativos para a guerra. Andara demasiado envolvida com as suas pequenas preocupações. Via agora como se interligavam as notícias dispersas, e percebeu o que toda a gente já devia saber e o que a administração do hospital preparava. Os Alemães tinham chegado ao Canal, e o exército britânico estava em apuros. Correra tudo muito mal em França, embora ninguém conhecesse a verdadeira dimensão do desastre. Fora aquele mau presságio, aquela ameaça silenciosa, que sentira à sua volta.
Foi mais ou menos nessa altura, no dia em que os últimos doentes deixaram a enfermaria, que recebeu uma carta do pai. Depois de uma saudação apressada e de perguntar se estava bem de saúde, transmitiu as informações que ouvira a um colega e que tinham sido confirmadas pela família: Paul Marshall e Lola Quincey iam casar daquele sábado a oito dias na Igreja da Santíssima Trindade, em Clapham Common. Não adiantou o motivo pelo qual achava que ela gostaria de saber, nem fez qualquer comentário sobre o assunto. Limitou-se a fazer um rabisco ao fundo da página, depois de um breve “Com o amor de sempre”.
Passou a manhã a pensar naquela notícia enquanto ia fazendo o seu trabalho. Não via Lola desde aquele Verão, pelo que a figura que imaginava no altar era a de uma rapariga magricela de quinze anos. Ajudou uma doente que se ia embora, uma velhota de Lambeth, a fazer a mala e tentou concentrar-se nas queixas dela. Partira um dedo do pé e tinham-lhe prometido que ficaria internada doze dias mas só ficou sete. Ajudou-a a sentar-se numa cadeira de rodas e o maqueiro levou-a. Enquanto estava de serviço na sala das lavagens, fez as contas. Lola tinha vinte anos, Marshall devia ter vinte e nove. Não ficara surpreendida; o que a chocara fora a confirmação. Briony estava mais do que implicada naquela união. Fora ela que a tornara possível.
Ao longo do dia, enquanto andava de um lado para o outro da enfermaria e pelos corredores, Briony sentia-se novamente perseguida pelo seu habitual sentimento de culpa. Limpou os armários vazios, limpou as ferragens das camas com ácido carbólico, varreu o chão, puxou o lustro, foi ao dispensário e à assistente social fazer alguns recados, sempre depressa, mas sem correr. Teve de ir com outra estagiária ajudar a tratar um furúnculo e substituiu Fiona, que teve de ir ao dentista. Naquele primeiro dia bom de Maio suara sob o uniforme engomado. Só queria trabalhar e depois tomar banho e dormir para voltar a trabalhar. Mas sabia que era inútil. Por menores que fossem os trabalhos que realizasse, por mais que se esforçasse, por melhor que os fizesse, por mais conhecimentos de que tivesse prescindido na faculdade ou por algum momento único que tivesse perdido no relvado da universidade, jamais poderia desfazer o mal que tinha feito. Não tinha perdão.
Pela primeira vez em vários anos achou que ia gostar de falar com o pai. Sempre aceitara o seu afastamento como um dado adquirido, e não esperava nada dele. Pensou que ao mandar-lhe uma carta com aquela informação específica talvez estivesse a tentar dizer-lhe que sabia a verdade. Depois do chá arranjou algum tempo e foi à cabina junto à entrada do hospital situada do lado da Ponte de Westminster para tentar telefonar-lhe para o gabinete. A telefonista passou-a para uma mulher com uma voz nasalada, que se mostrou muito solícita, mas a chamada caiu e teve de fazer tudo de novo. Voltou a acontecer o mesmo e, à terceira tentativa, a ligação perdeu-se, assim que uma voz disse: “Vou tentar passar a chamada.” Entretanto, já ficara sem moedas e já estava na altura de voltar para a enfermaria. Parou junto da cabina para admirar as nuvens enormes que se amontoavam no céu de um azul-pálido. O rio, com as marés vivas a precipitarem-se para o mar, reflectia a cor do céu com laivos verdes e cinzentos. O Big Ben parecia inclinar-se interminavelmente contra o céu inquieto. Apesar dos escapes dos carros, havia um cheiro a vegetação fresca - talvez tivessem andado a cortar a relva nos jardins do hospital ou talvez fosse das árvores recém-nascidas à beira rio. Embora a luz fosse muito intensa, pairava no ar uma frescura deliciosa. Há muitos dias que não via nem sentia nada tão agradável, talvez há semanas. Passava demasiado tempo dentro de casa, a respirar desinfectantes. Ao regressar, passaram por ela dois jovens oficiais do exército, médicos no hospital militar de Millbank, que lhe dirigiram um sorriso simpático. Briony olhou automaticamente para baixo, mas depressa se arrependeu de não ter olhado para eles, pelo menos de relance. Afastaram-se dela, atravessando a ponte, esquecidos de tudo o que estava para além da sua conversa. Um deles esticou-se, como se fingisse que tirava qualquer coisa de uma prateleira alta, e o colega deu uma gargalhada. Pararam a meio da ponte para verem uma lancha torpedeira passar por baixo. Briony achou que os médicos do RAMC pareciam muito animados e livres e lamentou não ter respondido ao sorriso deles. Havia certas partes do seu corpo que esquecera completamente. Estava atrasada e tinha todas as razões para correr, apesar de os sapatos lhe fazerem doer os dedos. Mas ali, naquele passeio sujo e não desinfectado, a lei da Irmã Drummond não se aplicava. Não havia hemorragias nem incêndios, mas era um prazer físico inesperado, um pequeno trago de liberdade, poder correr o mais depressa que podia, com o seu avental engomado, para a entrada do hospital.
Uma espera langorosa instalara-se no hospital. Só restavam os marinheiros com icterícia. Reinava um grande fascínio e muitas conversas divertidas entre as enfermeiras por causa deles. Os valorosos guerreiros sentavam-se na cama a coser as meias e insistiam em lavar eles próprios, à mão, a sua roupa interior, que punham a secar em cordas da roupa improvisadas por cima dos radiadores. Os que continuavam acamados preferiam suportar dores violentas a pedir o bacio. Os que estavam em melhor estado insistiam em manter a enfermaria como se fosse um navio e em varrer eles próprios o chão. As raparigas não estavam habituadas a ver aquelas capacidades domésticas em homens, e Fiona até disse que só se casaria com um homem que tivesse prestado serviço na Marinha.
Sem qualquer razão aparente, deram às estagiárias meio dia livre, embora tivessem de ficar fardadas. Depois de almoço, Briony saiu com Fiona; atravessaram o rio, passaram pelo Parlamento e foram até St. James's Park. Passearam à volta do lago, tomaram um chá e alugaram cadeiras de lona para ouvirem um grupo de idosos do Exército de Salvação a tocar músicas de Elgar adaptadas a um grupo de metais. Naqueles dias de Maio, antes de o que se passara em França ter sido completamente intuído e antes do bombardeamento de Setembro, Londres mostrava os sinais exteriores da guerra, mas não a sua mentalidade. Homens fardados, cartazes de alerta contra os traidores, dois grandes abrigos contra ataques aéreos escavados nos relvados do parque e, por toda a parte, uma burocracia mal-humorada. Enquanto estavam comodamente instaladas nas suas cadeiras de lona, um homem de boné e com uma faixa no braço pediu para ver a máscara de gás de Fiona - parcialmente escondida pela capa. Tirando isso continuava a ser um tempo inocente. A ansiedade que dominava o país relativamente à situação em França dis-sipara-se sob o sol daquela tarde. Os mortos ainda não tinham chegado e presumia-se que os ausentes estavam vivos. Era uma cena quase onírica na sua normalidade. As mães empurravam carrinhos de bebés pelos passeios, com as capotas puxadas por causa do sol, e os bebés louros admiravam pela primeira vez o mundo exterior. Algumas crianças, que pareciam ter escapado à evacuação, corriam pela relva a gritar e a rir, a banda debatia-se com músicas que estavam para além das suas capacidades e as cadeiras de lona continuavam a custar dois pence. Era difícil acreditar que a umas centenas de quilómetros dali tivesse havido uma catástrofe militar.
Os pensamentos de Briony continuavam fixos nos temas habituais. Talvez Londres fosse inundada de gases venenosos ou invadida por pára-quedistas alemães ajudados por traidores no terreno antes de o casamento de Lola se realizar. Briony ouvira um maqueiro, que sabia tudo, dizer, aparentemente com alguma satisfação, que já não havia nada que parasse o exército alemão. Tinham tácticas novas e nós não, tinham-se modernizado e nós não. Os generais deviam ter lido o livro de Liddell Hart ou ir à sala dos maqueiros num dos intervalos para o chá e ouvir as conversas deles.
Ao lado de Briony, Fiona falava do seu adorado irmãozinho e de uma observação inteligente que fizera ao jantar, enquanto Briony fingia ouvir e pensava em Robbie. Se tivesse estado a combater em França, talvez tivesse sido capturado. Ou pior ainda. Como sobreviveria Cecília a uma notícia dessas? Quando a música, animada por dissonâncias esparsas, se elevou a um clímax roufenho, Briony segurou-se às partes laterais da cadeira e fechou os lhos. Se acontecesse alguma coisa a Robbie, se Cecília e Robbie nunca pudessem juntar-se... O seu tormento secreto e o deflagrar da guerra sempre lhe tinham parecido dois mundos separados, mas percebia agora que a guerra podia agravar o seu crime. A única solução imaginável seria o passado nunca ter acontecido. Se ele não voltasse... Quem lhe dera poder ter o passado de outra pessoa, ser outra pessoa, como Fiona, uma jovem tão cordial, com uma vida sem mácula à sua frente, e a sua família, tão afectuosa e numerosa, cujos cães e gatos tinham nomes latinos e cuja casa era um ponto de encontro famoso no meio artístico de Chelsea. A única coisa que Fiona teria de fazer era viver a sua vida, seguir o caminho que se abria à sua frente e descobrir o que iria acontecer. Briony tinha a sensação de que a sua vida seria vivida num quarto, e sem porta.
- Estás bem, Briony?
- O quê? Claro. Está tudo bem, obrigada.
- Não acredito. Queres que te vá buscar água?
Enquanto os aplausos cresciam - ninguém parecia preocupar-se muito com a fraca qualidade da banda -, ficou a ver Fiona atravessar o relvado, passar pelos músicos e pelo homem de casaco castanho que alugava as cadeiras e entrar no pequeno café que ficava no meio das árvores. O Exército de Salvação atacava o “Bye 'Bye Blackbird”, que parecia dominar muito melhor. As pessoas sentadas nas cadeiras concentravam-se na música e algumas até marcavam o compasso com palmas. As cantorias em grupo tinham um carácter ligeiramente coercivo - aqueles olhares trocados entre desconhecidos quando as suas vozes se elevavam -, a que Briony estava firmemente determinada a resistir. Mesmo assim, a música animou-a e, quando fiona voltou com um copo de água, e a banda iniciou um niedley de músicas favoritas de outros tempos com “It's a Long Way to Tipperary”, começaram a falar de trabalho, Fiona arrastou Briony para uma conversa oca sobre os profissionais de quem gostavam, os que as irritavam, a Irmã Drummond, cuja voz Fiona até conseguia suportar e a enfermeira-chefe, tão pomposa e distante como um militar. Recordaram as excentricidades de diversos doentes e trocaram queixas - Fiona não suportava que não a deixassem ter coisas no parapeito da janela, Briony detestava que apagassem as luzes às onze horas. Estavam sinceramente divertidas e começaram a rir cada vez mais, até que umas quantas cabeças se voltaram para elas com dedos teatralmente colocados sobre os lábios. Mas eram gestos apenas meio sérios e a maior parte das pessoas que se voltara sorrira com condescendência, porque havia algo naquelas duas jovens enfermeiras - enfermeiras em tempo de guerra -, com as suas túnicas vermelhas e brancas, as suas capas azul-escuras e as suas toucas imaculadas, que as tornava tão irrepreensíveis como freiras. Sentindo a sua imunidade, as duas raparigas riram-se ainda mais alto, com ataques de riso e momentos de muita ironia. Fiona era muito boa a fazer imitações e, apesar de toda a sua alegria, havia um toque cruel no seu humor que agradava particularmente a Briony. Fiona tinha a sua própria versão de cockney de Lambeth e por vezes, com um exagero algo cruel, conseguia cativar a ignorância de alguns doentes que lhe imploravam, por entre gemidos. “É o meu coração, enfermeira. Sempre esteve do lado errado. O da minha mãe era igual. É verdade que os bebés saem pela boca do corpo, enfermeira? É que eu não sei como é que o meu vai caber, sendo eu tão fechada. Tinha seis miúdos e um dia deixo um no autocarro, no 88 de Brixton. Deve ter ficado no assento. Nunca mais o vi, enfermeira. Fiquei mesmo triste. Chorei que me fartei.”
Quando regressaram a Parliament Square, Briony sentia-se mais animada, e ainda lhe doíam os joelhos de se ter rido tanto. Estava admirada com a rapidez com que o seu estado de espírito mudava. As suas preocupações não tinham desaparecido, mas tinham-se dissipado; o seu poder emocional tinha-se esgotado temporariamente. Atravessa- a ponte de Westminster de braço dado. A maré tinha descido e, sob aquela luz tão forte, havia um brilho carmesim no lamaçal das margens, com milhares de dejectos dos vermes a formarem pequenas manchas escuras. Quando voltaram para a direita, para Lambeth Palace Doad viram uma fila de camiões do exército junto da entrada principal. Bem-humoradas, as raparigas resmungaram perante a perspectiva de mais fornecimentos para desencaixotar e arrumar.
Depois viram as ambulâncias por entre os camiões e, quando se aproximaram mais, viram as macas, dezenas de macas, pousadas ao acaso pelo chão, e uma imensidão de fardas verdes sujas e ligaduras manchadas de sangue. Também havia grupos de soldados de pé, desorientados e imóveis, também eles envoltos em ligaduras. Um oficial subalterno retirava espingardas da parte de trás de um camião. Por entre a multidão viam-se inúmeros maqueiros, enfermeiros e médicos. Cinco ou seis marquesas tinham sido trazidas para o exterior - obviamente um número insuficiente. Briony e Fiona pararam, ficaram a ver e depois, no mesmo instante, desataram a correr.
Em menos de um minuto já estavam ao pé dos homens. O ar fresco da Primavera não afastava o cheiro do óleo de motor e das feridas putrefactas. Os soldados tinham as caras e as mãos pretas e, com a barba por fazer, os cabelos eriçados e as etiquetas que lhes tinham pendurado nos centros de acolhimento, pareciam todos iguais, uma raça selvagem vinda de um mundo terrível. Os que estavam de pé pareciam dormir. Mais enfermeiras e mais médicos apareceram a porta. Um dos administradores do hospital estava a encarregar-se do processo e tinha instalado um sistema de triagem improvisado. Alguns dos casos mais urgentes estavam a ser levados nas marquesas. Pela primeira vez desde que começara o estágio, Briony deu com um médico, que nunca tinha visto, a dirigir-se a ela. Enfermeira, pegue nessa maca.
Foi o próprio médico que pegou no outro lado. Nunca tinha pegado numa maca, e o seu peso surpreendeu-a. Tinham passado a entrada e percorrido uns dez metros ao longo do corredor, e Briony sentiu que o seu pulso esquerdo não ia aguentar. Estava do lado dos pés. O soldado tinha divisas de sargento. Ia descalço, e dos seus dedos azulados saía um cheiro insuportável. À volta da cabeça tinha uma ligadura completamente manchada de vermelho e preto. Pela altura da coxa, a farda estava lacrada à volta de uma ferida. Teve a impressão de ver a protuberância branca do osso. As suas dores aumentavam a cada passo que davam. Tinha os olhos fechados com força, mas ia abrindo e fechando a boca, numa agonia silenciosa. Se a sua mão esquerda fraquejasse, de certeza que a maca se voltaria. Estava quase a soltar os dedos quando chegaram ao elevador, entraram e pousaram a maca. Enquanto subiam, o médico media o pulso ao doente ao mesmno tempo que respiravam com força pelo nariz. Ignorara a presença de Briony. Quando chegaram ao segundo andar, Briony só pensava nos trinta metros de corredor até à enfermaria, e se iria aguentar ou não. Tinha o dever de dizer ao médico que não conseguia. Mas ele estava de costas para ela quando abriu as portas do elevador e lhe disse que pegasse no outro lado da maca. Quem lhe dera ter mais força no braço esquerdo e quem lhe dera que o médico fosse mais depressa! Não ia aguentar a vergonha de falhar. O homem da cara preta ia abrindo e fechando a boca, como se estivesse a mastigar. Tinha a língua coberta de manchas brancas. A maçã de Adão, também preta, ia subindo e descendo, e Briony concentrou-se nisso. Voltaram para a enfermaria, e teve a sorte de haver uma cama mesmo ao pé da porta. Já tinha os dedos a escorregar. Uma freira e uma enfermeira estavam à espera. Quando alinharam a maca com a cama, Briony ficou sem força nos dedos, perdeu o controlo sobre eles, mas conseguiu levantar o joelho a tempo de segurar o peso. O punho de madeira latejava-lhe na perna. A maca oscilou, e foi a freira que se encostou a ela para a segurar. O sargento ferido soltou por entre os lábios um som de incredulidade, como se nunca tivesse imaginado que poderia haver dores tão fortes.
- Por amor de Deus, rapariga - resmungou o médico por entre dentes.
Passaram o doente para a cama. Briony ficou à espera para ver se ainda era precisa. No entanto, estavam os três muito ocupados e ignoraram-na. A enfermeira estava a tirar a ligadura da cabeça e a freira a cortar as calças do soldado. O médico afastou-se para junto da luz para ler as notas escritas na etiqueta que tinha arrancado da camisa do homem. Briony pigarreou ligeiramente e a freira olhou à sua volta e ficou irritada por ver que ela ainda ali estava.
- Não perca tempo, enfermeira Tallis. Vá lá para baixo ajudar.
Afastou-se, humilhada e com uma sensação de vazio a espalhar-se-lhe pelo estômago. No momento em que a guerra tocara a sua vida, no primeiro momento de tensão, tinha falhado. Se a mandassem levar outra maca, não chegaria a meio do corredor. Mas, se isso acontecesse, não se atreveria a recusar. Se deixasse cair a maca do seu lado, ir-se-ia embora pura e simplesmente. Ia ao quarto, enfiava tudo na mala e ia para a Escócia trabalhar no campo. Seria melhor para todos. Percorreu o corredor do rés-do-chão quase a correr e cruzou-se com Fiona, que vinha a segurar o lado da frente de uma maca. Era mais forte do que Briony. O rosto do homem que ia na maca estava completamente tapado por ligaduras, com um buraco oval escuro no sítio da boca. As raparigas trocaram um olhar, que encerrava qualquer coisa como choque ou vergonha por terem estado no parque a rir à gargalhada enquanto aquilo estava a acontecer.
Briony foi à rua e viu com algum alívio as últimas macas serem levadas sobre marquesas empurradas por maqueiros. De um dos lados estavam umas dez enfermeiras com malas de viagem. Reconheceu-as da sua enfermaria. Não tinha tempo de lhes perguntar para onde tinham sido mandadas. Algo ainda pior acontecia noutro sítio. A prioridade agora eram os feridos que conseguiam andar. Eram mais de duzentos. Uma freira mandou-a levar quinze para a enfermaria de Beatrice. Seguiram-na numa fila única ao longo do corredor, como meninos de escola. Alguns tinham o braço ao peito, outros tinham feridas na cabeça ou no peito. Três iam de muletas. Ninguém dizia nada. Havia um engarrafamento à porta dos elevadores, tantas eram as macas à espera de serem levadas para as salas de cirurgia na cave. Outras estavam à espera de ir para as enfermarias. Encontrou um espaço num recanto da parede para os homens com as muletas se sentarem, mandou-os ficar ali à espera e levou os outros pela escada. Avançavam lentamente e tinham de parar em todos os patamares.
- Já não falta muito - dizia ela, mas eles não pareciam sequer dar pela sua presença.
Quando chegaram à enfermaria, as regras obrigavam a que se apresentasse à freira, que não estava no seu gabinete. Briony voltou-se para a fila de homens que entretanto se tinham juntado em grupo atrás dela, mas sem olharem para ela. Olhavam para mais longe, para a imensidão vitoriana da enfermaria, as colunas majestosas, os vasos com palmas, as camas impecavelmente feitas e os lençóis imaculados já puxados para trás.
- Esperem aqui - disse ela. - A Irmã vai arranjar cama para todos.
Dírigiu-se rapidamente ao outro lado da enfermaria, onde a freira e duas enfermeiras cuidavam de um doente. Ouviu passos arrastados atrás dela. Eram os soldados que estavam a atravessar a enfermaria.
Bateu as palmas, horrorizada, ao mesmo tempo que gritava:
- Voltem para trás, por favor. Voltem para trás e esperem.
Mas já estavam a dividir-se pela enfermaria. Cada um deles tinha visto a cama que seria a sua. Sem lhes atribuírem as camas, sem tirarem as botas, sem tomarem banho nem serem desinfestados, sem os pijamas do hospital, já estavam a subir para as camas. Os seus cabelos nojentos e as suas caras enegrecidas já estavam pousados nas almofadas. A freira atravessava a enfermaria com um passo decidido e com os saltos dos sapatos a ecoarem por aquele espaço venerável. Briony dirigiu-se a uma cama e puxou a manga de um soldado, que se tinha deitado de costas, para voltar a pôr-lhe o braço na tira de pano. Quando esticou as pernas, pôs uma nódoa de óleo no cobertor. Tudo por culpa dela.
- Tem de se levantar - disse Briony no momento em que a freira chegou ao pé dela. - Há um procedimento a seguir.
- Os homens estão a precisar de dormir. Os procedimentos ficam para depois. - Era uma voz com sotaque irlandês. A freira pôs uma mão no ombro de Briony e voltou-a ligeiramente, de modo a conseguir ler o nome escrito na chapa. - Pode voltar para o seu local de trabalho, enfermeira Tallis. Devem precisar de si lá.
Com um empurrão quase imperceptível, tinham-na mandado meter-se na sua vida. A enfermaria não precisava de discípulas como ela. Os homens já estavam a dormir, e ela tinha feito mais uma vez figura de idiota. Claro que eles tinham de dormir. Só tentara fazer o que achava que esperavam dela. Afinal aquelas regras não eram suas. Tinham-lhe sido repetidas até à exaustão ao longo dos últimos meses - os mil e um pormenores de uma nova admissão. Como podia ela saber que afinal não significavam nada? Foi atormentada por aqueles pensamentos indignados quase até chegar à sua enfermaria, quando se lembrou dos homens das muletas que tinha deixado no andar de baixo, à espera de vaga no elevador. Desceu as escadas a correr. O recanto estava vazio, e não havia sinal dos homens nos corredores. Não queria revelar a sua ineficácia perguntando por eles às enfermeiras ou aos maqueiros. Alguém devia tê-los levado para cima. Nos dias que se seguiram, não tornou a vê-los.
A sua enfermaria fora destinada aos cuidados intensivos após as cirurgias mais graves, mas a princípio essa definição não significava nada. Podia ser um posto de acolhimento na linha da frente. Tinham chamado algumas freiras e enfermeiras mais qualificadas para ajudar, e havia cinco ou seis médicos a trabalhar nos casos mais urgentes. Também lá estavam dois padres, um sentado a falar com um homem voltado de lado e o outro a rezar junto a um vulto tapado por um cobertor. Todas as enfermeiras tinham máscaras, e tanto elas como os médicos tinham arregaçado as mangas. As freiras deslocavam-se rapidamente por entre as camas, dando injecções - provavelmente de morfina - ou espetando as agulhas que ligariam os doentes aos frascos cheios de sangue e aos vasos amarelos com plasma, que pendiam como frutos exóticos dos suportes móveis. As estagiárias percorriam a enfermaria com pilhas de sacos de água quente. O eco suave das vozes, vozes de médicos, preenchia o espaço e era regularmente entrecortado por gemidos e gritos de dor. Todas as camas estavam ocupadas, e os casos novos que iam chegando ficavam nas marquesas, entre as camas, para aproveitar o material das transfusões. Dois militares de serviço estavam a preparar-se para levar os mortos. Junto de muitas camas, estavam enfermeiras a mudar ligaduras. Era sempre preciso decidir se deviam ser meigas ou lentas, firmes ou rápidas, e parar ou não num momento de dor. Naquela enfermaria defendia-se a segunda alternativa, o que explicava alguns dos gritos. Reinava em todo o lado uma panóplia de cheiros - o odor viscoso e amargo do sangue fresco, o cheiro a roupa suja, suor, óleos, desinfectantes, álcool e, acima de todos eles, o cheiro fétido da gangrena. Dois dos doentes enviados para o bloco operatório acabaram por sofrer amputações.
As enfermeiras mais antigas tinham sido enviadas para sectores que recebiam os casos mais graves e, como os doentes não paravam de chegar, as subalternas davam ordens à vontade e as estagiárias do grupo de Briony recebiam novas responsabilidades. Uma enfermeira mandou Briony tirar a ligadura e limpar a ferida de uma perna de um cabo, deitado numa maca junto à porta. Não devia voltar a ligá-lo antes de ele ser observado por um dos médicos. O cabo estava de barriga para baixo e fez uma careta quando ela se ajoelhou para lhe falar ao ouvido.
- Não se importe se eu gritar - murmurou ele. - Limpe isso, enfermeira. Não quero ficar sem ela.
A perna das calças tinha sido cortada. A ligadura exterior parecia relativamente recente. Briony começou a retirá-la e, quando não conseguia passar a mão por debaixo da perna dele, cortava a ligadura com uma tesoura.
- Foi no cais de Dover que me fizeram isto.
Restava a gaze, preta por causa do sangue seco, em toda a extensão da ferida, que ia do joelho ao tornozelo. A própria perna também estava sem pêlos e preta. Briony receou o pior e respirou pela boca.
- Como é que arranjou isto? - tentou dar um tom vivo à sua voz.
- Fui atingido por uma granada que me atirou para cima de uma vedação de arame farpado.
- Que azar. Bem, esta ligadura tem de sair.
Levantou cuidadosamente uma ponta e o cabo semicerrou os olhos.
- Conte comigo um, dois, três e tire isso num ápice - disse ele.
O cabo cerrou os punhos. Briony pegou na ponta que tinha libertado, agarrou-a com força entre o polegar e o indicador e puxou a gaze de uma só vez. Esse gesto trouxe-lhe à mente uma recordação da infância: o famoso truque da toalha que tinha sido feito durante uma festa de anos. A toalha tinha saído de uma só vez, com um som arrastado, deixando a loiça intacta.
- Vou vomitar - disse o cabo.
Briony estendeu-lhe uma ebonite. Ele esforçou-se por vomitar, mas não saiu nada. Nas pregas da pele na parte de trás do seu pescoço havia gotas de suor. A ferida tinha quase meio metro de comprimento, talvez mais, e curvava por altura do joelho. Os pontos eram toscos e irregulares. Aqui e ali via-se um bocado de pele rasgada, mostrando as camadas de gordura e pequenas protuberâncias que pareciam miniaturas de cachos de uvas pretas.
- Aguente - disse ela. - Vou limpar à volta, mas não vou lá tocar. - Não ia lá tocar ainda. A perna estava negra e mole, como uma banana demasiado madura. Embebeu algodão em álcool. Com receio de que a pele saísse, passou com muito cuidado à volta da barriga da perna, uns dois centímetros acima da ferida. Depois voltou a limpar com um pouco mais de pressão. A pele estava firme e por isso carregou um bocadinho mais no algodão, até ele estremecer. Tirou a mão e viu a tira de pele branca que tinha posto à mostra. O algodão estava preto. Não era gangrena. Não conseguiu reprimir um suspiro de alívio. Sentia um nó na garganta.
- O que foi, enfermeira? Pode dizer-me - disse ele, tentando erguer-se e olhar por cima do ombro. Sentia-se o medo na sua voz.
Ela engoliu em seco e disse num tom neutro:
- Acho que vai curar bem.
Pegou noutro bocado de algodão. Era óleo, ou gordura, misturados com areia da praia, e não saía muito facilmente. Foi limpando a zona à volta, tentando abrir caminho em direcção à ferida.
Estava há alguns minutos naquela operação quando sentiu uma mão no ombro e uma voz de mulher a dizer-lhe ao ouvido:
- Bom trabalho, enfermeira Tallis. Mas tem de ser mais rápida.
Estava de joelhos, debruçada sobre a maca, encostada a uma cama, e não era fácil voltar-se. Quando conseguiu, só viu uma forma familiar a afastar-se. O cabo já tinha adormecido quando Briony começou a limpar à volta dos pontos. De vez em quando estremecia, agitava-se, mas não chegava a acordar. O cansaço era a sua anestesia. Quando finalmente Briony se levantou e pegou na ebonite e em todos os algodões sujos chegou um médico que a mandou embora.
Lavou bem as mãos e confiaram-lhe outra tarefa. Tudo era diferente, agora que conseguira um pequeno feito. Mandaram-na levar água aos soldados que tinham desmaiado de cansaço. Era importante que não ficassem desidratados. Vá lá, soldado Cárter. Beba isto e depois já pode dormir. Agora sente-se... Pegava num pequeno bule de esmalte e deixava-os chupar a água do bico, enquanto segurava as suas cabeças sujas contra o avental, como se fossem bebés grandes. Fez uma ronda com as arrastadeiras. Nunca lhe custara menos do que naquele dia. Disseram-lhe que fosse tratar de um soldado com feridas no estômago e que também tinha ficado sem um bocado do nariz. Conseguia ver pelas cartilagens em sangue para dentro da boca dele e até ao fundo da sua língua lacerada. Tinha de lhe limpar o rosto. Mais uma vez, era óleo e areia que lhe tinham saltado para a cara. Pareceu-lhe que estava acordado, mas mantinha os olhos fechados. A morfina tinha-o acalmado. Balançava lentamente de um lado para o outro, como se acompanhasse o ritmo de uma música que tinha na cabeça. Quando os seus traços começaram a aparecer por debaixo da máscara preta, lembrou-se daqueles livros de páginas brancas e muito brilhantes que lhe davam na infância e que ela decalcava com um lápis sem bico para fazer aparecer uma imagem. Pensou que um daqueles homens podia ser Robbie e imaginou-se a tratar-lhe das feridas sem saber quem ele era e a limpar-lhe suavemente a cara com algodão até os seus traços familiares começarem a emergir. Nessa altura ele voltar-se-ia para ela para lhe agradecer, descobriria quem ela era, pegar-lhe-ia na mão e, apertando-a em silêncio, perdoar-lhe-ia. Depois adormeceria calmamente.
As suas responsabilidades iam aumentando. Mandaram-na a outra enfermaria com uma pinça e uma ebonite para tirar os estilhaços da perna de um aviador. Ele observou-a com um ar preocupado, enquanto ela preparava o material.
- Preferia que me operassem para me tirarem os estilhaços.
Briony tinha as mãos a tremer. Mas ficou admirada com a rapidez com que adoptou o tom de voz assertivo das enfermeiras experientes. Puxou a cortina à volta da cama.
- Não seja tolo. Tiro-lhe isso num instante. Como é que isso aconteceu?
Enquanto lhe explicava que a sua missão era construir pistas nos campos do Norte da França, olhava repetidamente para a pinça que ela tinha retirado da autoclave e que estava a pingar na ebonite debruada a azul.
- Estávamos a trabalhar, aparecem os alemães e despejam a carga. Nós recuamos, recomeçamos noutro lado, eles voltam a aparecer, e nós voltamos a recuar. Até que caímos ao mar.
Ela sorriu e puxou a roupa para trás.
- Vamos lá ver isso.
O óleo e a sujidade já lhe tinham sido limpos das pernas. Abaixo da coxa estava à vista uma zona onde os estilhaços estavam metidos na carne. Ele inclinou-se para a frente, observando-a com ansiedade.
- Tem de se deitar para eu poder ver o que há para aqui - disse ela.
- Não estão a ligar-me nenhuma.
- Deite-se.
Havia vários bocados espalhados por uma zona com uns trinta centímetros. A volta de cada golpe na pele havia um inchaço e uma ligeira inflamação.
- Não me importo com isso, enfermeira. Não me custava nada deixá-los onde estão. - Riu-se sem convicção. - Sempre era uma coisa que podia mostrar aos meus netos.
- Estão a infectar - disse ela. - E podem ficar enterrados.
- Enterrados?
- Sim, na carne. E passarem para a corrente sanguínea e irem para o coração. Ou para o cérebro.
Aparentemente, estava a acreditar nela. Deitou-se a olhar para o tecto distante e suspirou.
- Raios partam isto. Desculpe, enfermeira. Acho que hoje não estou nos meus dias.
- Vamos contá-los juntos, está bem?
Contaram, de facto, e muito alto. Eram oito. Ela ia-lhe carregando ao de leve no peito.
- Têm de sair. - Deite-se para trás. Vou ser o mais rápida que puder. Se achar que ajuda, agarre-se à cabeceira da cama.
Tinha a perna tensa e a tremer quando a viu pegar na pinça.
- Não sustenha a respiração. Tente descontrair-se.
- Descontrair-me! - repetiu ele, num tom sarcástico.
Briony carregou na mão direita com a esquerda. Teria sido mais fácil para ela sentar-se na beira da cama, mas isso, além de pouco profissional, era estritamente proibido. Quando pousou a mão esquerda numa zona não afectada da perna dele, ele estremeceu. Escolheu o pedaço mais pequeno que se via na zona afectada. A parte saliente era triangular e oblíqua. Briony agarrou-a, parou por um segundo e depois puxou-a, com firmeza, mas sem brusquidão.
- Foda-se!
A palavra que ele deixou escapar fez ricochete pela enfermaria, parecendo repetir-se várias vezes. Por detrás da cortina reinava o silêncio, ou pelo menos os sons foram atenuados. Briony continuava com o pedaço de metal ensanguentado na pinça. Devia ter uns dois centímetros de comprimento e era pontiagudo. Ouviu-se alguém aproximar-se com passos firmes. Briony deixou cair o estilhaço para a ebonite no preciso momento em que a Irmã Drum-mond afastou a cortina. Foi com uma expressão absolutamente calma que olhou para os pés da cama para tomar nota do nome do soldado e, eventualmente, do diagnóstico. Depois aproximou-se dele e olhou-o bem de frente.
- Como se atreve? - disse ela em voz baixa. Depois repetiu: - Como se atreve a falar assim à frente de uma das minhas enfermeiras?
- Desculpe, Irmã. Saiu-me.
A Irmã Drummond olhou com desdém para a ebonite.
- Comparados com os casos que temos visto nas últimas horas, aviador Young, os seus ferimentos são superficiais. Por isso, dê-se por muito feliz. E veja se se mostra à altura do seu uniforme. Continue, enfermeira Tallis.
Briony interrompeu o silêncio que se seguiu à partida dela dizendo com vivacidade:
- Vamos continuar? Só faltam sete. Quando acabarmos trago-lhe um copo de brandy.
Ele suou, tremeu dos pés à cabeça, cerrou os punhos à volta do ferro da cabeceira da cama até ficar com os nós dos dedos brancos, mas não proferiu nem mais um som enquanto ela tirava os estilhaços.
- Se quiser, pode gritar.
Mas ele não queria outra visita da Irmã Drummond, e Briony compreendia-o perfeitamente. Estava a guardar o maior para o fim. Não saiu de uma só vez. Ele deu um salto na cama e assobiou por entre os dentes cerrados. A segunda tentativa, o estilhaço saiu uns cinco centímetros da pele. Conseguiu tirá-lo todo à terceira e mostrou-lho, um estilete ensanguentado de aço irregular, com uns dez centímetros de comprimento.
Ele olhou para o estilete, admirado.
- Ponha-o debaixo da torneira. Quero levá-lo para casa. - Depois afundou a cara na almofada e começou a soluçar. Podia ter sido a palavra casa e também a dor.
Briony afastou-se para ir buscar o brandy e parou na casa das lavagens para vomitar. Passou muito tempo a lavar e a ligar feridas mais superficiais. Depois chegou a ordem que tanto receava.
- Quero que vá tratar da cara do soldado Latimer.
Já tinha tentado, com uma colher de chá, meter alguma comida no que restava da boca dele, para o poupar à humilhação de se babar. Ele tinha-lhe afastado a mão. Ao engolir, tinha dores violentíssimas. Um tiro tinha-lhe levado metade da cara. O que mais lhe custava, para além de lhe tirar os pensos, era a expressão de acusação dos seus grandes olhos castanhos. O que me está a fazer? A sua forma de comunicar era um ténue “aah” vindo do fundo da garganta, um pequeno gemido de desilusão.
- Daqui a pouco já está bom - repetira ela vezes sem conta, sem se lembrar de mais nada que pudesse dizer.
Ao aproximar-se de novo da cama dele com o material, disse num tom animado:
- Olá, soldado Latimer. Cá estou eu outra vez.
Ele olhou para ela sem a reconhecer.
- Vai correr tudo bem - disse ela, enquanto soltava a ligadura presa à parte de cima da cabeça dele. - Vamos tirá-lo de cá daqui a uma ou duas semanas, vai ver. E olhe que há muitos a quem não podemos dizer isso.
Era uma consolação. Havia sempre alguém pior. Meia hora antes tinha feito uma amputação múltipla a um capitão dos East Surreys - o regimento em que os rapazes da aldeia se tinham alistado. E também havia os mortos.
Com uma pinça cirúrgica começou a retirar-lhe cuidadosamente a gaze ensopada, congelada, da cavidade do rosto. Quando tirou o último bocado notou uma semelhança longínqua com o modelo que usavam nas aulas de anatomia. Só se viam restos, vermelho, carne viva. Pela face ausente viam-se os molares superiores e inferiores e a língua a brilhar e horrorosamente comprida. Mais acima - Briony quase nem se atrevia a olhar - estavam expostos os músculos à volta do globo ocular. Eram algo muito íntimo, que jamais devia ser visto. O soldado Latimer transformara-se num monstro e era natural que o soubesse. Teria sido amado por alguma mulher antes da guerra? Conseguiria ela continuar a amá-lo?
- Vamos pô-lo bom num instante - mentiu ela outra vez.
Começou a encher-lhe de novo a cara com gaze limpa, embebida em desinfectante. A certa altura, ele tornou a emitir aquele seu peculiar som triste.
- Quer que vá buscar o bacio?
Ele disse que não com a cabeça e tornou a fazer o mesmo som.
- Está a sentir-se mal?
- Não.
- Agua?
Um sinal de assentimento. Só lhe restava um canto dos lábios. Meteu-lhe a ponta da pequena colher de chá na boca e inclinou-a. Cada vez que engolia, estremecia, o que por sua vez aumentava as dores no sítio onde os músculos tinham desaparecido da cara. Queria mais. Preferia as dores à sede. E continuou assim por mais alguns minutos. Não aguentava mais: tinha de beber água.
Gostaria de ter podido ficar ao pé dele, mas havia sempre outras coisas para fazer, havia sempre uma freira a pedir ajuda ou um soldado a chamar da cama. Saiu momentaneamente da enfermaria quando um homem a acordar de uma anestesia vomitou em cima dela, o que a obrigou a ir mudar de avental. Ficou admirada por ver por uma janela do corredor que já era de noite. Tinham passado cinco horas desde o seu regresso do parque. Estava perto da arrecadação da roupa quando a Irmã Drummond apareceu junto dela. Era difícil dizer o que tinha mudado - continuava algo distante, e as suas ordens eram inflexíveis. Talvez houvesse, por detrás da autodisciplina, um toque de aproximação na adversidade.
- Enfermeira, vá pôr os sacos de Bunyan nos braços e nas pernas do cabo Maclntyre. Esfregue-lhe o resto do corpo com ácido tânico. Se tiver alguma dificuldade, vá ter comigo imediatamente.
Voltou-se para dar instruções a outra enfermeira. Briony tinha visto trazerem o cabo. Fazia parte de um grupo de homens que tinham sido atingidos por óleo a arder num ferry que se tinha afundado ao largo de Dunquerque. Tinha sido retirado da água por um contratorpedeiro. O óleo viscoso tinha-se agarrado à pele e cauterizado os tecidos. Aquilo que fora depositado naquela cama era o que restava de um ser humano queimado. Briony achava que ele não ia sobreviver. Era difícil encontrar-lhe uma veia para lhe injectar morfina. Algumas horas antes tinha ajudado duas enfermeiras a levantá-lo para lhe porem uma arrastadeira e ele tinha começado a gritar mal elas lhe tinham tocado.
Os sacos de Bunyan eram grandes contentores de celofane. Os membros afectados ficavam como que a flutuar lá dentro, rodeados por uma solução salina, que tinha de estar exactamente a uma determinada temperatura. Nem sequer uma variação de um grau era tolerada. Quando Briony chegou junto dele já uma estagiária estava a preparar uma nova solução com uma estufa Primus em cima de um carrinho. Os sacos tinham de ser mudados frequentemente. O cabo Maclntyre estava deitado de costas, mas com a roupa suspensa, pois não conseguia suportar o contacto do lençol com a pele. Gemia pateticamente a pedir água. Os queimados estavam sempre muito desidratados. Tinha os lábios demasiado estragados, demasiado inchados e a língua demasiado ferida para poder beber líquidos pela boca. O soro tinha saltado. A agulha não se fixava na veia, de tal forma ela fora afectada. Uma enfermeira que Briony nunca tinha visto prendeu um saco novo ao suporte. Briony preparou o ácido tânico e pegou no algodão. Resolveu começar pelas pernas, para não atrapalhar a enfermeira que estava a tentar encontrar uma veia no braço enegrecido do cabo.
- Quem a mandou para cá? - perguntou a enfermeira.
- A Irmã Drummond.
A enfermeira falou com uma voz tensa e sem levantar os olhos do que estava a fazer.
- Ele está em grande sofrimento. Não quero que seja tratado enquanto não estiver hidratado. Vá fazer outra coisa qualquer.
Briony fez o que lhe mandaram. Não sabia quanto tempo depois aconteceu - talvez tenha sido às primeiras horas da manhã, quando lhe pediram que fosse buscar toalhas lavadas. Viu a enfermeira à porta da sala de apoio a chorar discretamente. O cabo Maclntyre tinha morrido. A sua cama já fora ocupada por outro soldado.
As estagiárias e as alunas do segundo ano trabalharam doze horas seguidas. As enfermeiras continuaram a trabalhar, e nenhuma delas sabia há quanto tempo estava na enfermaria. Briony percebeu mais tarde que toda a formação que recebera tinha sido útil, sobretudo no campo da obediência, mas que tudo o que sabia sobre enfermagem fora aprendido nessa noite. Nunca tinha visto homens a chorar. Ao princípio ficou chocada, mas passado algum tempo já estava habituada. Por outro lado, o estoicismo de alguns soldados deixava-a admirada, e até assustada. Alguns dos que regressavam das amputações pareciam compelidos a dizer piadas terríveis. Como é que eu vou dar um pontapé na patroa? Tudo o que de secreto havia no corpo era desvendado - ossos que furavam a carne, visões sacrílegas de um intestino ou de um nervo óptico. Daquela perspectiva nova e íntima, aprendeu uma coisa simples e óbvia, que sempre soubera e que toda a gente sabia: que uma pessoa era, entre tudo o resto, algo de material, uma coisa fácil de destruir e difícil de consertar. Esteve mais perto do que nunca do campo de batalha, pois todos os casos em que ajudara tinham alguns dos seus elementos essenciais - sangue, óleo, areia, lama, água do mar, balas, estilhaços, massa de motor, ou o cheiro da cordite ou das fardas ensopadas e suadas, cujos bolsos continham restos de comida estragada e migalhas de chocolates Amo. Muitas vezes, quando voltava ao lavatório com as torneiras altas e o bloco de soda para lavar as mãos, era areia da praia que tirava de entre os dedos. As estagiárias e as enfermeiras só olhavam umas para as outras como profissionais, e não como amigas. Nem sequer dera conta de que uma das raparigas que a tinham ajudado a pôr o cabo Maclntyre na arrastadeira era Fiona. Às vezes, quando um soldado que estava a tratar tinha muitas dores, sentia-se dominada por uma ternura impessoal que a distanciava do sofrimento dele, por forma a poder desempenhar o seu trabalho com eficiência e sem se deixar horrorizar. Foi nessa altura que viu o que a enfermagem podia ser, e sentiu-se impelida a honrar aquela chapa. Imaginou como lhe seria fácil abandonar a sua ambição da escrita e dedicar-se de corpo e alma, como recompensa por aqueles momentos de amor enlevado e generalizado.
Por volta das três e meia da manhã disseram-lhe que fosse ter com a Irmã Drummond. Estava sozinha, a fazer uma cama. Algum tempo antes, Briony tinha-a visto na sala das lavagens. Parecia estar em todo o lado, a fazer todo o tipo de trabalhos. Briony começou automaticamente a ajudá-la.
- Tenho a impressão de que fala francês - disse a freira.
- É só o francês da escola, Irmã.
Apontando com a cabeça para o fundo da enfermaria, a Irmã disse-lhe:
- Está a ver aquele soldado sentado lá ao fundo? Foi operado de urgência, mas não é preciso usar máscara. Arranje uma cadeira e sente-se ao pé dele. Dê-lhe a mão e fale com ele.
Briony não conseguiu deixar de se sentir ofendida.
- Mas eu não estou cansada, Irmã. A sério. Não estou mesmo.
- Faça o que lhe mandei.
- Sim, Irmã.
O soldado parecia ter uns quinze anos, mas Briony viu pela ficha dele que tinha a mesma idade que ela: dezoito anos. Estava sentado, encostado a várias almofadas, a ver a agitação que reinava à sua volta, com uma espécie de admiração infantil. Era difícil vê-lo como soldado. Tinha um rosto fino e delicado, sobrancelhas escuras, olhos ver-de-escuros e uma boca suave, mas com lábios grossos. Estava muito branco, mas com um brilho estranho, e os olhos tinham uma cintilação doentia. Tinha a cabeça toda ligada. Quando se aproximou dele com a cadeira e se sentou, ele sorriu, como se estivesse à espera dela, e quando lhe pegou na mão não se mostrou surpreendido.
- Te voilà enfin. - As vogais francesas tinham uma estranha musicalidade, mas Briony conseguiu perceber o que ele disse. Tinha a mão fria e gordurosa.
- A Irmã mandou-me vir falar um bocadinho consigo - disse ela. - Desconhecendo a palavra correcta, tinha traduzido literalmente a palavra “irmã”.
- A sua irmã é muito gentil. - Depois inclinou a cabeça e acrescentou: - Mas sempre foi. Está tudo bem com ela? Por onde é que anda?
Havia tanta simpatia e encanto nos seus olhos, uma ânsia tão pueril de a conquistar, que ela sentiu que só podia continuar no mesmo tom.
- Também é enfermeira.
- Claro. Já me tinha dito. Continua a ser feliz? Casou-se com aquele homem de quem gostava tanto? Sabe, não me lembro do nome dele. Espero que me perdoe. Desde que fui ferido, a minha memória anda muito fraca. Mas já me disseram que vou recuperá-la rapidamente. Como é que ele se chamava?
- Robbie. Mas...
- Já se casaram? São felizes?
- Espero que se casem em breve.
- Fico muito feliz por ela.
- Ainda não me disse como se chama.
- Luc. Luc Cornet. E você?
Ela hesitou, mas depois disse:
- Tallis.
- Tallis. É muito bonito. - Da forma como ele o pronunciara, era realmente bonito.
Desviou os olhos dela e fitou a enfermaria, virando lentamente a cabeça, muito admirado. Depois fechou os olhos e começou a divagar, falando devagar e com uma respiração pesada. O vocabulário dela não lhe permitia segui-lo facilmente. Percebeu que dizia:
- Conte-os devagar, na sua mão, nos seus dedos... o lenço da minha mãe... escolhe-se a cor e tem de se viver com ela.
Ficou em silêncio por alguns minutos. Apertou mais a mão dela. Quando voltou a falar, continuava com os olhos fechados.
- Queres saber uma coisa estranha? É a primeira vez que estou em Paris.
- Está em Londres, Luc. Daqui a pouco tempo vai estar em casa.
- Disseram que as pessoas eram frias e antipáticas, mas é exactamente o contrário. São muito amáveis. E tu também foste muito simpática em vir ter comigo outra vez.
Por momentos, pensou que ele tinha adormecido. O facto de se sentar pela primeira vez durante muitas horas fez que o sono também começasse a pesar-lhe nos olhos.
Depois ele voltou a olhar à sua volta com o mesmo movimento ligeiro da cabeça e a seguir olhou para ela.
- Já sei. És a rapariga com o sotaque inglês.
- O que fazia antes da guerra? - perguntou ela. - Onde vivia? Lembra-se?
- Lembras-te daquela Páscoa, quando foste a Mil-lau? - Balançou-lhe a mão de um lado para o outro, com dificuldade, enquanto falava, como para lhe avivar a memória, e os seus olhos verde-escuros percorreram o rosto dela na tentativa de antecipar a resposta.
- Nunca estive em Millau... - disse ela, achando melhor não o enganar.
- Lembras-te da primeira vez que foste à nossa loja?
Briony aproximou mais a cadeira da cama. O seu rosto pálido e gorduroso brilhava e agitava-se à frente dos olhos dela.
- Luc, quero que me ouça.
- Acho que foi a minha mãe que te atendeu. Ou talvez uma das minhas irmãs. Eu estava nas traseiras, a trabalhar com o meu pai nos fornos. Ouvi o teu sotaque e fui à loja para te ver...
- Quero dizer-lhe onde está. Não está em Paris...
- Depois voltaste, no dia seguinte, e dessa vez eu estava lá e tu disseste...
- Daqui a pouco vai conseguir dormir. Eu venho vê-lo amanhã. Prometo.
Luc levou a mão à cabeça e franziu a testa. Depois disse, numa voz mais baixa:
- Quero pedir-te um favor, Tallis.
- Está bem.
- Estas ligaduras estão tão apertadas. Alargas-mas um bocadinho?
Ela pôs-se de pé para lhe ver a cabeça. Era fácil desatar as ligaduras. Quando apanhou as pontas, ele disse:
- Lembras-te da minha irmã mais nova, a Anne? É a rapariga mais bonita de Millau. Passou a prova com uma pequena peça de Debussy, tão ligeira e alegre. Pelo menos foi o que a Anne disse. Estou sempre com ela na cabeça. Talvez a conheças.
Trauteou algumas notas dispersas, enquanto Briony ia desenrolando a gaze.
- Ninguém sabe de onde lhe veio aquele dom. No resto da família, somos todos um desastre. Quando ela toca, tem as costas tão direitas! Nunca sorri até acabar. Já está a ficar melhor. Acho que foi a Anne que te atendeu da primeira vez que foste à loja.
Não queria tirar a gaze, mas perdeu a ponta e, nesse momento, a enorme compressa que estava por baixo dela escorregou, arrastando consigo uma outra gaze completamente ensopada em sangue. Luc tinha ficado sem um bocado de crânio. Tinham-lhe rapado o cabelo muito para além da zona desaparecida. Por baixo da linha irregular de osso havia uma massa esponjosa vermelha, com vários centímetros de extensão, que ia desde o alto da cabeça quase até ao ouvido. Briony conseguiu apanhar a compressa antes de ela cair ao chão e segurou-a, enquanto esperava que lhe passasse uma tontura. Ocorreu-lhe então que acabava de cometer um acto insensato e nada profissional. Luc continuou sentado, em silêncio, à espera dela. Briony deu uma vista de olhos à enfermaria. Ninguém estava a ver. Tornou a pôr a compressa, prendeu a gaze e tornou a atar as ligaduras. Quando se sentou outra vez procurou a mão dele e tentou acalmar-se através do contacto com a sua pele fria e húmida.
Luc estava outra vez a divagar.
- Não fumo. Prometi dar a minha ração ao Jeannot... Está tudo aí em cima da mesa... por baixo das flores... o coelho não ouve, estúpido... - Depois as palavras começaram a surgir em catadupa e ela deixou de o perceber. Mais tarde percebeu uma referência a um professor que era demasiado severo, ou talvez a um oficial do exército. Por fim ficou em silêncio. Briony limpou-lhe a cara encharcada em suor com uma toalha húmida e ficou à espera.
Quando abriu os olhos retomou a conversa, como se não tivesse havido nenhuma pausa.
- O que achas das nossas baguettes?
- Deliciosas.
- Eram elas que te levavam lá todos os dias.
- Pois eram.
Parou para pensar. Depois disse cuidadosamente, como se estivesse a tocar num assunto sensível:
- E os nossos croissants}
- Os melhores de Millau.
Ele sorriu. Quando tornou a falar, ouviu-se um som áspero no fundo da sua garganta, que ambos ignoraram.
- É uma receita especial do meu pai. Tudo depende da qualidade da manteiga.
Estava a olhar para ela em êxtase. Levantou a mão livre e pousou-a sobre a dela.
- Sabes que a minha mãe gosta muito de ti?
- Gosta?
- Está sempre a falar em ti. Acha que devíamos casar no Verão.
Aguentou o olhar dele. Percebia agora por que a tinham mandado para ali. Ele estava com dificuldade em engolir e tinha algumas gotas de suor a acumular-se na testa, ao longo da borda da ligadura e no lábio superior. Ela limpou-lhas e, no momento em que lhe ia buscar água, ele disse:
- Amas-me?
- Amo - respondeu ela, após uma pequena hesitação.
Não havia outra resposta possível. Além disso, naquele momento amava-o. Era um rapaz encantador, que estava muito longe da família e prestes a morrer.
Deu-lhe água. Enquanto lhe limpava de novo a cara, ele perguntou-lhe:
- Já alguma vez estiveste em Causse de Larzac?
- Não, nunca lá estive.
Mas ele não se ofereceu para a levar lá. Afastou a cabeça da almofada e voltou a murmurar umas quantas frases ininteligíveis e dispersas. No entanto, continuava a agarrar a mão dela com força, como se estivesse consciente da sua presença.
Quando tornou a ficar lúcido voltou a cabeça na direcção dela.
- Não te vás embora ainda.
- Claro que não. Vou ficar aqui contigo.
- Tallis...
Ainda a sorrir, semicerrou os olhos. De repente estremeceu e endireitou-se muito, como se lhe tivessem dado um choque eléctrico nos membros. Olhou fixamente para ela, surpreendido, com os lábios ligeiramente afastados. Depois dobrou-se para a frente, como se quisesse chegar a ela. Briony deu um salto da cadeira para impedir que ele caísse. Continuava agarrado à mão dela e tinha o outro braço à volta do seu pescoço. Encostou a testa ao ombro e a face ao rosto dela. Briony tinha medo que a compressa lhe caísse da cabeça. Achou que não ia aguentar o peso dele, nem suportaria ver outra vez aquela ferida. O som áspero que saíra da garganta dele ecoava nos seus ouvidos. Hesitante, inclinou-o para a cama e encostou-o às almofadas.
Os olhos dele estavam muito abertos, como que admirados, e a sua pele baça reluzia sob a luz eléctrica. Briony aproximou-se dele e encostou-lhe os lábios ao ouvido. Havia alguém atrás dela e uma mão no seu ombro.
- Tallis, não. Podes tratar-me por Briony - murmurou ela e nesse momento a mão que estava no ombro desceu até à sua mão e soltou-a da do rapaz.
- Levante-se, enfermeira Tallis.
A Irmã Drummond agarrou-lhe pelo cotovelo e aju-dou-a a levantar-se. A Irmã tinha a cara a brilhar e a pele rosada das maçãs do rosto descrevia uma linha absolutamente direita até chegar à parte branca.
Do outro lado da cama, uma enfermeira tapou a cara de Luc Cornet com o lençol.
A Irmã endireitou o colarinho de Briony e disse, franzindo os lábios:
- Linda menina. Agora vá lavar o sangue da cara. Não queremos que os outros doentes se aflijam.
Fez o que a freira disse. Foi à casa de banho e lavou a cara com água fria. Passados alguns minutos voltou à enfermaria para continuar a trabalhar.
Às quatro e meia da manhã mandaram as estagiárias para a cama e disseram-lhes que se apresentassem ao serviço às onze horas. Briony afastou-se na companhia de Fiona. Nenhuma delas disse nada e quando deram o braço foi como se retomassem, após uma vida inteira de experiências, o seu passeio pela Ponte de Westminster. Não seriam capazes de descrever o tempo que tinham passado nas enfermarias, nem como ele as tinha mudado. Bastava irem assim a andar pelo corredores vazios, atrás das outras raparigas.
Depois de lhe dizer boa-noite e de entrar no seu quarto minúsculo, Briony encontrou uma carta no chão. Não conhecia a letra do envelope. O porteiro devia tê-la dado a uma das raparigas, que a tinha enfiado por baixo da porta. Em vez de a abrir logo, despiu-se primeiro e preparou-se para dormir. Sentou-se na cama, de camisa de dormir, com a carta no colo, e lembrou-se do rapaz. Pelo canto da janela viu que o céu já estava branco. Continuava a ouvir a voz dele, a forma como ele dizia Tallis, transfor-mando-o num nome de mulher. Imaginou o futuro que não haveria - a padaria numa rua estreita e sombria percorrida por gatos magricelas, música de piano a vir de uma janela mais acima, as suas cunhadas às risadinhas por causa do sotaque dela e Luc Cornet a amá-la ansiosamente. Gostaria de ter chorado por ele, e pela família dele em Millau, que devia estar à espera de notícias. Mas não sentia nada. Estava vazia. Ficou sentada quase meia hora, desorientada, e por fim exausta, mas sem conseguir dormir, prendeu o cabelo com a fita que usava sempre, meteu-se na cama e abriu a carta.
Cara Miss Tallis,
Os nossos agradecimentos por nos ter enviado Duas Pessoas junto de Uma Fonte. Pedimos-lhe que aceite as nossas desculpas pelo atraso da nossa resposta. Como deve saber, é pouco habitual publicarmos um romance de um autor conhecido, ou até mesmo de um autor conceituado. No entanto, procurámos com interesse algum excerto que pudéssemos aceitar. Infelizmente, não vamos poder publicar nada. Devolvo-lhe por isso o seu manuscrito em correio separado. Dito isto, deparámos connosco (inicialmente numa atitude insensata, pois há muito que fazer neste escritório) a ler toda a obra com vivo interesse. Embora não possamos publicar nenhum excerto, queríamos que soubesse que tanto eu como outras pessoas da nossa revista gostaríamos de ter acesso àquilo que vier a escrever no futuro. Não temos uma atitude complacente em relação à idade das pessoas que escrevem para a nossa revista, e estamos até muito interessados em publicar autores novos e promissores. Gostaríamos muito que nos mostrasse o que anda a escrever, sobretudo um ou dois contos. Achámos a obra Duas Pessoas junto de Uma Fonte digna de ser lida com toda a atenção. Não estou a dizer isto de ânimo leve. Recusamos muito material, até de autores muito conhecidos. Há algumas imagens boas - gostei das “ervas altas a serem invadidas pelo amarelo leonino do pino do Verão” -, e notei que, ao mesmo tempo que capta uma linha de pensamento, a representa com algumas diferenças subtis por forma a fazer várias tentativas de caracterização. Há qualquer coisa de único e impossível de explicar. No entanto, pareceu-nos que foi talvez beber em demasia às técnicas de Mrs Woolf. O presente cristalino é obviamente um tema com interesse, sobretudo para a poesia; permite que um escritor mostre os seus dotes, aprofunde os mistérios da percepção, apresente uma versão estilizada do processo de pensamento e possibilita a exploração das divagações e imprevisibilidades do eu. Quem poderá duvidar do valor desta experiência? No entanto, esse tipo de escrita pode tornar-se preciosista nos momentos em que não há sentido de desenvolvimento da narrativa. Dito de outro modo, teria prendido ainda mais a nossa atenção se houvesse uma linha narrativa subjacente.
Por exemplo, a criança que está à janela, e cuja descrição começamos por ler - apreendeu de forma muito agradável a sua falta de conhecimento da situação. O mesmo acontece com a determinação que se apodera dela no sentido de se iniciar nos mistérios dos adultos. Conhecemos aquela jovem no alvorecer da sua consciência do eu. Ficámos intrigados pela sua decisão de abandonar os contos de fadas e as narrativas populares e peças de teatro que costumava escrever (teria sido tão agradável deixar-nos ao menos vislumbrar uma delas) mas é provável que ela se tenha libertado da sua técnica ficcional incipiente ao mesmo tempo que da corrente dos contos populares. Apesar do ritmo encantador e das interessantes observações que se seguem, não acontece nada de especial após um início tão promissor. Um rapaz e uma rapariga junto de uma fonte, obviamente ligados por sentimentos não resolvidos, discutem por causa de uma jarra Ming e partem-na (alguns de nós acharam que uma jarra Ming era demasiado valiosa para levar para a rua; não seria melhor Sèvres ou Nymphenburg?). A mulher enfia-se na fonte completamente vestida para apanhar a jarra. Não seria melhor que a menina que estava a assistir à cena não tivesse percebido que a jarra estava partida? O facto de a jovem se ter atirado à água seria ainda mais misterioso para ela. Podia ter acontecido tanta coisa - mas constatámos que dedica páginas e páginas à qualidade da luz e da sombra e a uma série de impressões aleatórias. Depois apresenta-nos os factos segundo o ponto de vista do rapaz e depois da rapariga - apesar de não acrescentar nada de novo. É mais uma questão de como se vêem e sentem as coisas, e algumas recordações irrelevantes. O homem e a mulher partem, deixando uma poça de água no chão, que rapidamente se evapora - e eis-nos chegados ao fim. Esta qualidade estática não faz justiça ao seu talento evidente.
Se aquela rapariga foi tão completamente enganada ou interpretou tão mal a estranha cena a que assistiu, como e possível que esse facto tenha afectado a vida dos dois adultos? Ter-se-á interposto entre eles de alguma forma desastrosa? Tê-los-á aproximado, intencional ou casualmente. Tê-los-á denunciado inocentemente a alguém, talvez aos pais da jovem? Certamente não aprovariam uma relação da sua filha mais velha com o filho da mulher-a-dias. Seria possível que o jovem casal viesse a utilizá-la como mensageira?
Por outras palavras, em vez de perder tanto tempo com a percepção de cada uma das três figuras envolvidas, não seria possível dar-no-las a conhecer com uma maior economia de palavras - mantendo ainda assim algumas das suas imagens tão vivas e bem construídas sobre a luz, a pedra e a água - e prosseguir de imediato, no sentido de criar alguma tensão, alguma luz, e dar alguma cor à própria narrativa? Os seus leitores mais sofisticados podem até ter conhecimentos das mais recentes teorias bergsonianas da consciência, mas tenho a certeza de que continuam a ter aquele desejo infantil de que lhes contem uma história, de que os deixem em suspenso, de saberem o que acontece. A propósito, o Bernini a que se refere fica na Piazza Barberini, e não na Piazza Navona.
Dito de uma forma simples, precisa da espinha dorsal de uma história. Talvez lhe interesse saber que uma das suas leitoras mais ávidas foi Mrs Elizabeth Bowen. Pegou no seu manuscrito num momento de lazer, em que resolveu passar pelo escritório a caminho de um almoço, perguntou se podia levá-lo para casa para ler e acabou de o ler nessa mesma tarde. A princípio achou a prosa “demasiado cheia, demasiado fastidiosa”, mas com alguns “laivos redentores de Dusty Answer” (jamais me teria ocorrido tal comparação). Depois ficou presa “por um instante” e por fim redigiu algumas notas que estão incluídas no que temos vindo a dizer. Pode dar-se por satisfeita com as páginas que escreveu tal como estão, mas também é possível que as nossas reservas lhe despertem uma raiva desdenhosa ou um desespero tão grande que nunca mais queira olhar para o que escreveu. Esperamos sinceramente que não. Gostaríamos que aceitasse as nossas observações - feitas com sincero entusiasmo - como base para um próximo esboço.
A carta que acompanha o seu texto é admiravelmente discreta, mas deu a entender que actualmente não tem quase nenhum tempo livre. Caso essa situação se altere e passe por esta zona, teríamos todo o prazer em tomar uma bebida consigo e em falar mais a fundo deste assunto. Esperamos que não se deixe desencorajar. Talvez convenha que saiba que as nossas cartas de rejeição não têm habitualmente mais de três frases.
Pede-nos desculpa, de passagem, por não escrever sobre a guerra. Vamos enviar-lhe uma cópia do último número da nossa revista, cujo editorial consideramos relevante. Como poderá ver, na nossa opinião, os artistas não são obrigados a mudar as suas atitudes por causa da guerra. Aliás, fazem bem em ignorá-la e têm todo o direito a isso e a dedicarem-se a outros assuntos. Como os artistas são politicamente impotentes, devem utilizar o seu tempo para se desenvolverem a níveis emocionais mais profundos. A sua missão, o seu envolvimento com a guerra, é cultivar o seu talento e seguir na direcção que ele exigir. A guerra, tal como afirmamos, é inimiga da actividade criativa.
A sua morada sugere que ou é médica ou sofre de uma doença prolongada. Caso se verifique a segunda hipótese, desejamos-lhe todos rápidas melhoras.
Por fim, houve alguém da revista que pediu que lhe perguntasse se não tem uma irmã mais velha que andou em Girton há uns seis ou sete anos.
Com os melhores cumprimentos,
C. C.
Nos dias seguintes, o regresso ao sistema normal de turnos afastou a sensação de intemporalidade daquelas primeiras vinte e quatro horas. Briony ficou contente por estar de dia, das sete às oito, com meia hora para almoço. Quando o despertador tocou, a um quarto para as seis, emergiu de um poço de exaustão e, naqueles longos segundos na terra de ninguém, entre o sono e a vigília, apercebeu-se de uma certa excitação, de uma sensação de prazer, uma mudança importante. Acordar em criança no dia de Natal era assim uma emoção ensonada até se lembrar de onde ela vinha. Com os olhos ainda semicerrados para se proteger da intensa claridade de uma manhã de Verão que inundava o quarto, procurou o botão do despertador e meteu-o debaixo da almofada. Foi nessa altura que se lembrou. Era exactamente o oposto do Natal. Era o oposto de tudo. Os Alemães estavam prestes a começar a invasão. Toda a gente o dizia, desde os porteiros que estavam a constituir a sua própria unidade de Voluntários de Defesa Local até ao próprio Churchill, que não queria imaginar o seu país subjugado e com fome, mantendo apenas a Royal Navy incólume. Briony sabia que ia ser terrível, haveria combates corpo a corpo nas ruas e enforcamentos, um regresso à escravatura e à destruição de tudo o que era correcto. Mas, quando se sentou na beira da sua cama desfeita, ainda quente, a calçar as meias, não conseguiu reprimir nem negar a sua terrível alegria. Como toda a gente dizia, o país agora estava sozinho, e era melhor assim.
Mas tudo parecia diferente - o desenho da flor-de-lis no saco da roupa suja, a moldura plástica do espelho, a imagem do seu rosto no espelho ao escovar o cabelo - tudo parecia mais vivo, com contornos mais bem delineados. Ao abrir a porta, o puxador pareceu-lhe inoportunamente frio e duro. Quando saiu para o corredor e ouviu passos pesados vindos da escada pensou em botas alemãs e sentiu um nó no estômago. Antes do pequeno-almoço teve um ou dois minutos para si, que aproveitou para passear à beira-rio. Mesmo àquela hora, sob um céu límpido, havia uma centelha feroz na frescura da sua água quando corria junto ao hospital. Seria possível que o Tamisa passasse a ser dos Alemães?
A claridade de tudo aquilo que via, tocava ou ouvia não resultava de certeza da sensação de recomeço ou de abundância transmitida pelo início do Verão; provinha antes da consciência intensa da aproximação de uma conclusão, de que os acontecimentos convergiam para um ponto. Sentiu que aqueles dias eram os últimos e que iluminariam a memória de uma forma muito particular. Aquela vivacidade, o fascínio dos dias de sol, era o último arremesso da história antes de começar uma nova época. Os deveres matinais, a sala das lavagens, a distribuição do chá, a mudança de pensos e o contacto permanente com tantos danos irreparáveis não obscureciam aquela percepção. Ela condicionava tudo o que fazia, era um pano de fundo constante. Além disso, transmitia uma sensação de urgência aos seus planos. Sentia que não tinha muito tempo. Se se atrasasse, os Alemães podiam chegar e poderia não ter outra hipótese.
Todos os dias chegavam novos casos, mas já não como um dilúvio. O sistema estava a responder, e havia sempre cama para todos. Os casos cirúrgicos eram preparados para serem levados para o bloco operatório na cave. Depois a maior parte dos doentes ia para outros hospitais para convalescer. A percentagem de mortos era elevada, mas já não constituía um drama para as estagiárias; era apenas uma rotina: correr as cortinas à volta da cama para esconder o murmúrio do padre, tapar o corpo com o lençol, chamar os maqueiros, desmanchar a cama e fazê-la de lavado. Era espantosa a rapidez com que os mortos se fundiam uns nos outros - o rosto do sargento Mooney passava a ser o do soldado Lowell, e ambos partilhavam os seus ferimentos fatais com outros homens, cujos nomes já não conseguiam recordar.
Agora que a França caíra, esperava-se o bombardeamento iminente de Londres. Ninguém deveria ficar na cidade se não fosse necessário. Reforçou-se a protecção com sacos de areia nas janelas do rés-do-chão e chamaram-se os empreiteiros para verificarem a solidez das chaminés e das clarabóias cimentadas. Fizeram-se vários exercícios de evacuação das enfermarias, com muitas ordens firmes e muitos apitos a tocarem. Também houve simulações de incêndios, com a reunião de toda a gente num determinado ponto e a rápida colocação de máscaras de gás nos doentes incapazes de o fazerem. As enfermeiras tinham instruções para pôr primeiro as suas próprias máscaras. Já não se sentiam aterrorizadas pela Irmã Drummond. Depois de se terem sujado de sangue, ela deixara de falar com elas como se fossem meninas de escola. Dava as ordens com um tom frio, de uma neutralidade profissional, e de vez em quando eram elogiadas. Naquele novo ambiente foi relativamente fácil para Briony trocar o dia de folga com Fiona, que desistiu generosamente de um sábado por uma segunda-feira.
Devido a certas confusões administrativas, alguns soldados ficavam a convalescer no hospital. Vencida a exaustão com muitas horas de sono e depois de se terem habituado outra vez a comer a horas regulares e de terem recuperado algum peso, predominava entre eles um estado de espírito amargo, irritável, mesmo naqueles que não tinham ficado com deficiências físicas permanentes, mais comuns entre os soldados de infantaria. Ficavam deitados na cama, a fumar, a olhar em silêncio para o tecto e a reviver as suas memórias mais recentes. Ou então juntavam-se a conversar em pequenos grupos revoltosos. Tinham repugnância por si próprios. Alguns contaram a Briony que nunca tinham disparado um tiro. Mas, na sua maioria, sentiam-se zangados com os seus superiores e com os oficiais que os tinham abandonado na retirada, e também com os Franceses por se terem deixado cair sem combater. Liam com sarcasmo os títulos dos jornais que festejavam a miraculosa evacuação e o heroísmo das pequenas embarcações.
- Uma porra duma carnificina - diziam eles em voz baixa, mas Briony ouvia na mesma. - Maldita RAF!
Alguns eram até antipáticos e nada cooperantes com os tratamentos, como se não conseguissem distinguir os generais das enfermeiras. Para eles, era tudo a mesma autoridade inconsciente do perigo. Só as visitas da Irmã Drummond é que os punham na ordem.
No sábado, Briony saiu do hospital às oito da manhã, sem tomar o pequeno-almoço, e caminhou para norte, com o rio à sua direita. Junto aos portões do Palácio Lambeth viu passar três autocarros, todos eles com a placa do destino tapada. O objectivo era confundir o invasor. Não interessava, porque ela decidira ir a pé. Também não lhe valeu de nada ter decorado os nomes de algumas ruas. Todos os letreiros tinham sido tirados ou tapados. Tinha uma vaga ideia de que devia seguir ao longo do rio por uns três quilómetros e depois voltar à esquerda, ou seja, para sul. A maior parte das plantas e mapas da cidade havia sido confiscada. Tinha conseguido arranjar um mapa das carreiras de autocarro, já de 1926 e a esboroar-se. Estava rasgado precisamente no sítio do caminho que ela queria seguir. Se o abrisse, corria o risco de ele se desfazer. Estava nervosa com a impressão que poderia causar. Os jornais traziam histórias de alemãs que se disfarçavam de enfermeiras ou de freiras e se infiltravam entre a população. Eram identificadas pelos mapas que de vez em quando consultavam, pelo seu inglês demasiado perfeito e por desconhecerem as canções infantis mais comuns. Desde que essa ideia lhe ocorrera, nunca mais tinha deixado de pensar que parecia muito suspeita. Achara que a farda a protegeria quando atravessasse zonas desconhecidas e afinal parecia uma espia.
Enquanto caminhava contra a corrente do tráfego matinal relembrou as canções infantis que conhecia. Eram poucas as que conseguia cantar do princípio ao fim. A sua frente, um leiteiro desceu da carroça para apertar as correias do cavalo. Estava a falar com ele em voz baixa quando Briony se aproximou. Quando parou junto dele e pigarreou educadamente lembrou-se por instantes do velho Hardman com a sua carroça. Alguém que tivesse uns setenta anos por essa altura teria sido da idade dela em 1888. E continuava a haver cavalos nas ruas, e os velhotes não queriam sequer pensar em prescindir deles.
Quando lhe perguntou o caminho, o leiteiro foi simpático e deu-lhe uma explicação longa e complexa. Era um indivíduo corpulento, com uma barba branca, amarelada pelo tabaco. Tinha um problema nos adenóides que fazia que as palavras se misturassem umas com as outras, provocando uma espécie de murmúrio nasalado. Fez-lhe sinal de que devia seguir por uma rua à esquerda, que passava sob uma ponte do comboio. Briony achou que devia ser cedo de mais para se afastar do rio, mas sentiu que ele estava a observá-la e achou que seria indelicado não seguir as indicações dele. Talvez a tal rua à esquerda fosse um atalho.
Estava admirada por se sentir tão desajeitada e tão insegura depois de tudo o que tinha visto e aprendido. Sentia-se desorientada, nervosa por estar sozinha e separada do seu grupo. Há meses que vivia uma vida fechada, em que todas as horas eram marcadas num horário. Sabia qual era o lugar humilde que lhe pertencia na enfermaria. A medida que se ia tornando mais expedita no trabalho ia aprendendo igualmente a aceitar melhor as ordens, a seguir as instruções que recebia e a deixar de pensar por si mesma. Há muito tempo que não fazia nada por iniciativa própria. Desde a semana que passara em Primrose Hill a escrever o romance. Como tudo isso lhe parecia agora uma excitação inconsequente!
Quando ia precisamente por baixo da ponte passou um comboio. Sentiu o estrondo, enorme e rítmico, nos ossos. Aço a deslizar e a bater em aço, grandes placas de aço aparafusadas a passar por cima dela, no escuro, uma porta inexplicável rodeada de tijolos, enormes canos de ferro fundido presos por braçadeiras enferrujadas e a transportar sabe-se lá o quê - uma invenção tão brutal só podia pertencer a uma raça de super-homens. Ela limpava o chão e punha ligaduras. Teria força para aquela viagem?
Quando emergiu da ponte atravessou um recanto de luz da manhã empoeirada no momento em que o comboio fazia um estalido seco, ao abrandar. Do que ela precisava, pensou Briony, era de uma espinha dorsal. Passou por um pequeno court de ténis municipal, onde dois homens de calças de flanela batiam uma bola de um lado para o outro, numa atitude preguiçosa e confiante, a preparar-se para um jogo. Perto deles estavam duas raparigas de calções de caqui, sentadas num banco a ler uma carta. Lembrou-se da sua carta, do bilhete de rejeição adocicado. Tinha andado com ela no bolso durante o turno, e a segunda página tinha ficado com uma mancha de ácido carbólico. Ter-se-á interposto entre eles de alguma forma desastrosa? Sim, interpôs. Tendo-o feito, poderia ter dissimulado esse facto forjando uma narrativa ligeira, pouco inteligente, e enviando-a para uma revista para satisfazer a sua vaidade? As páginas intermináveis sobre luz, pedra e água, uma narrativa dividida por três perspectivas diferentes, o imobilismo que parecia pairar sobre uma acção que não se desenvolvia - nada disso podia esconder a sua cobardia. Estaria mesmo convencida de que podia esconder-se por detrás de alguns princípios emprestados da escrita moderna e afogar a sua culpa numa corrente - três correntes!- de consciência? As evasivas do seu pequeno romance eram exactamente as da sua vida. Tudo aquilo com que não queria confrontar-se estava também ausente da sua obra - mas fazia-lhe falta. Que havia de fazer agora? Não era a espinha dorsal de uma história que lhe faltava. Era a sua própria espinha dorsal.
Saiu do parque e passou por uma fábrica, cuja maquinaria matraqueava, fazendo vibrar o passeio. Era impossível dizer o que haveria por detrás daquelas janelas sujas, ou porque havia fumo amarelo e preto a sair por uma única e estreita chaminé de alumínio. Do outro lado da rua, a uma esquina, um pub de portas abertas de par em par parecia o palco de um teatro. Lá dentro, onde um rapaz com uma expressão atraente e pensativa despejava cinzeiros para um balde, o ar da noite anterior ainda pairava com um tom azulado e nostálgico. Dois homens com aventais de cabedal descarregavam barris de cerveja de uma carroça e levaram-nos por uma rampa. Nunca tinha visto tantos cavalos pelas ruas. As forças armadas deviam ter requisitado todos os camiões. Alguém estava a abrir as portas da cave pelo lado de dentro. Bateram no passeio, levantando uma nuvem de pó, e um homem com uma tonsura, cujas pernas ainda se encontravam abaixo do nível da rua, parou e voltou-se para a ver passar. Parecia-lhe uma gigantesca peça de xadrez. Os homens da carroça também estavam a olhar para ela, e um deles assobiou-lhe.
- Como vai isso, boneca?
Não se importou, mas nunca sabia como responder. Bem, obrigada? Sorriu para todos eles, contente por poder ostentar a sua capa. Toda a gente devia estar a pensar na invasão, mas não havia nada a fazer a não ser continuar a viver. Mesmo que os Alemães viessem, as pessoas continuariam a jogar ténis, a conversar e a beber cerveja. Talvez deixassem de assobiar. A rua curvou e ficou mais estreita, pelo que o tráfego incessante que a percorria se tornou mais ruidoso. Sentiu os escapes quentes chegarem-lhe à cara. Passou por uma varanda vitoriana de tijolos vermelhos mesmo à altura do passeio. Uma mulher com um avental com um padrão de cornucópias varria o passeio fronteiro à sua casa com um vigor meio louco. Pela porta aberta sentiam-se os cheiros dos fritos do pequeno-almoço. Afastou-se para deixar Briony passar, pois o passeio era estreito, mas desviou a cara com uma expressão antipática quando Briony lhe deu os bons-dias. Depois cruzou-se com uma mulher acompanhada por quatro rapazes de orelhas espetadas, com malas e mochilas, que se entretinham a dar pontapés num sapato velho, gritando e acotovelando-se. Ignoraram o grito exausto da mãe e Briony foi obrigada a afastar-se para os deixar passar:
- Parem com isso! Deixem passar a enfermeira!
Quando se cruzou com ela, a mulher dirigiu-lhe um sorriso de esguelha em jeito de desculpa. Faltavam-lhe dois dentes da frente. Tinha um perfume muito forte e, entre os dedos, um cigarro apagado.
- Estão muito excitados por irem para a província. Nunca lá estiveram, acredita?
- Boa sorte - disse Briony. - Espero que arranje uma família boa.
A mulher, que também tinha as orelhas grandes, embora estivessem parcialmente disfarçadas pelo cabelo, cortado à tigela, deu uma gargalhada alegre:
- Não sabem o que os espera com esta trupe!
Chegou a uma confluência de ruelas e concluiu, por um bocado do mapa já separado do resto, que estava em Stockwell. Voltada para sul havia uma plataforma para canhões e, ao lado dela, um punhado de Home Guards, só com uma espingarda para todos e com um ar enfastiado. Um mais velho, com um chapéu, um sobretudo e uma faixa no braço, e com umas bochechas caídas como um buldogue, distanciou-se dos outros e pediu-lhe que lhe mostrasse a sua identificação. Com um ar importante, fez-lhe sinal de que continuasse. Achou por bem perguntar-lhe o caminho. Concluiu que o sítio para onde queria ir ficava a quase três quilómetros de distância, indo por Clapham Road. Naquela zona havia menos pessoas e menos trânsito, e a rua era mais larga do que a que acabara de subir. O único som que se ouvia era o de um eléctrico a afastar-se. Quando chegou junto de uma fila de elegantes apartamentos eduardinos, bastante afastados da rua, permitiu-se parar por meio minuto, sentar-se num parapeito baixo, à sombra de um plátano, e descalçar-se para ver uma bolha que tinha no calcanhar. Um comboio de camiões de três toneladas passou por ela em direcção a sul, para fora da cidade. Olhou automaticamente para as traseiras dos camiões, com alguma expectativa de ver lá mais feridos. Mas levavam apenas caixas de madeira.
Passados quarenta minutos chegou à estação do metro de Clapham Court. Deparou-se-lhe uma igreja baixa, de pedra irregular, mas estava fechada. Pegou na carta do pai e tornou a lê-la. Uma mulher que estava numa sapataria indicou-lhe o Common. Mesmo depois de ter atravessado a rua e já estar no relvado continuava a não ver a igreja. Estava meio escondida por entre as árvores e não era como ela esperara. Tinha imaginado a cena de um crime, uma catedral gótica, cujas abóbadas flamejantes estariam inundadas pela luz escarlate e azul proveniente de um vitral com uma sinistra cena de sofrimento. O que apareceu por entre as árvores frescas foi uma espécie de celeiro de tijolo de dimensões elegantes, como um templo grego, com um telhado preto, janelas de vidro liso e um pequeno pórtico de colunas brancas sob uma torre de proporções harmoniosas. Estacionado junto ao pórtico estava um Rolls-Royce preto, muito lustroso. A porta do condutor estava aberta, mas não havia nenhum motorista à vista. Quando passou pelo carro sentiu o calor do radiador, tão íntimo como o calor de um corpo, e ouviu os estalidos do metal a contrair-se. Subiu os degraus e empurrou a porta pesada.
Sentiu o cheiro da madeira encerada e o aroma aquoso da pedra, comuns a todas as igrejas. Mal se voltou para fechar a porta com cuidado reparou que a igreja estava quase vazia. As palavras do vigário estavam em contraponto com o seu eco. Parou junto à porta, parcialmente encoberta pela pia baptismal, à espera que os seus olhos e ouvidos se ajustassem ao interior. Passou pelo banco de trás, até ao fundo, de onde ainda conseguia ver o altar. Tinha ido a vários casamentos na família, embora fosse nova de mais para ter assistido à grandiosa cerimónia da união do tio Cecil e da tia Hermione, realizada na Catedral de Liverpool, cujas formas e chapéu elaborado distinguia agora na primeira fila. A seu lado estavam Pierrot e Jackson, com mais uns doze a quinze centímetros de altura, entalados entre os vultos dos seus pais separados. Do outro lado da nave estavam três membros da família Marshall. E era tudo. Uma cerimónia privada. Sem jornalistas das colunas sociais. Briony não deveria estar ali. Estava suficientemente familiarizada com a sequência das palavras para saber que não perdera o momento mais importante.
“Em segundo lugar, ordenou-se, como remédio contra o pecado, e para evitar a fornicação, que as pessoas sem o dom da contenção se casassem e continuassem a ser membros não profanos do corpo de Cristo.”
De frente para o altar, enquadrados pela forma elevada do vigário, com as suas vestes brancas, estava o casal. Ela estava de branco, com o vestido tradicional, e, pelo que Briony conseguia ver do fundo da igreja, com um pesado véu. Tinha o cabelo preso numa única trança algo infantil, que caía sob um emaranhado de tule e organdi pelas costas abaixo. Marshall estava muito direito, com as linhas dos ombros almofadados do seu fato firmemente vincadas contra a sobrepeliz do vigário.
“Em terceiro lugar, ordenou-se, para bem e conforto do casal, que um possuísse...”
Sentiu as recordações, os pormenores cortantes, como um exantema, uma mancha na pele: Lola a aparecer no seu quarto lavada em lágrimas, com os pulsos feridos e com nódoas negras, os arranhões no ombro de Lola e na cara de Marshall; o silêncio de Lola na escuridão, junto ao lago, permitindo que a sua prima mais nova, tão honesta, tão ridícula, oh!, tão presunçosa, que não sabia distinguir a vida real das histórias que tinha na cabeça, deixasse o agressor partir em segurança. Pobre Lola, tão fútil e vulnerável, com o lenço bordado com pérolas e o perfume a água-de-rosas, desejosa de se libertar das últimas restrições da infância, que fugira à humilhação apaixonando-se, ou convencendo-se de que se apaixonara, e que nem podia acreditar na sua sorte quando vira Briony a dizer tudo e a fazer todas as acusações. E a sorte que representava para Lola - pouco mais do que uma criança - casar com o seu violador.
“Por isso, se alguém tiver um motivo justo que impeça a sua união legal, que o diga agora ou o cale para sempre.”
Estaria mesmo a acontecer? Estaria mesmo a levantar-se, com as pernas a tremer, o estômago fraco a contrair-se e o coração a disparar, e a percorrer o banco em direcção à nave central, para apresentar as suas razões, os seus motivos justos, num tom de desafio, mas inquebrantável, envergando a sua capa e a touca como uma noiva de Cristo, e a avançar em direcção ao altar, ao vigário, de boca aberta, que nunca na sua longa carreira fora interrompido, à congregação de pescoços torcidos e ao casal voltado de lado e lívido? Não planeara nada daquilo, mas a pergunta do Book of Common Prayer, da qual já quase se tinha esquecido, parecera-lhe uma provocação. E afinal qual era o impedimento? Era a sua grande oportunidade de proclamar em público toda a angústia que sentia e de se redimir de todo o mal que fizera. Perante o altar daquela igreja extremamente racional.
Mas há muito que as feridas e os arranhões tinham passado, e todos os depoimentos que fizera na altura tinham sido em sentido contrário. A noiva não só não parecia uma vítima, como tinha o consentimento dos pais. Tinha de certeza mais do que isso; era um magnata do chocolate, o criador dos Amo. A tia Hermione devia estar a esfregar as mãos de contente. Que interessava que Paul Marshall, Lola Quincey e ela, Briony Tallis, tivessem conspirado com o silêncio e a mentira e tivessem mandado um inocente para a prisão? As palavras que o haviam condenado tinham sido as dela, lidas em voz alta perante o tribunal. A sentença já fora cumprida. A dívida estava paga. O veredicto mantinha-se.
Deixou-se estar no seu lugar, com o coração a bater depressa e as palmas das mãos a suar, e inclinou humildemente a cabeça.
“Peço-vos agora aos dois, que terão de responder no dia do juízo final, quando todos os segredos de todos os corações serão revelados, que, caso saibam de algum impedimento à vossa união pelo matrimónio, o confessem agora.”
Segundo todas as estimativas, faltava muito tempo para o juízo final e até lá a verdade que só Marshall e a sua noiva sabiam em primeira mão ficaria devidamente emparedada no mausoléu do seu casamento. Ficaria em segurança, no escuro, muito para lá do dia em que todos os envolvidos já tivessem morrido. Cada uma das palavras proferidas na cerimónia representava mais um tijolo.
- Quem oferece esta mulher em casamento a este homem?
O tio Cecil levantou-se, muito empertigado e elegante, certamente desejoso de se despachar depressa daquela obrigação para poder voltar para o santuário de Ali Souls em Oxford. Esforçando-se por detectar qualquer dúvida nas suas vozes, Briony escutou atentamente Marshall e depois Lola repetirem as palavras proferidas pelo vigário. A voz de Marshall era forte, mas inexpressiva; a de Lola doce e firme. Que eco tão flagrante e sensual reverberou pelo altar quando ela disse: “Amar-te-ei com todo o meu corpo.”
- Oremos.
As seis cabeças dos bancos da frente inclinaram-se e o vigário tirou os óculos de aros de tartaruga, levantou o queixo e, de olhos fechados, dirigiu-se aos poderes celestiais com um cântico triste e monótono.
“Ó Deus eterno, criador de toda a humanidade, que dais a graça espiritual, senhor da vida eterna, abençoai estes vossos servos, este homem e esta mulher...”
O último tijolo foi colocado quando o vigário, depois de voltar a pôr os óculos, fez a proclamação final - declaro-vos marido e mulher- e invocou a Santíssima Trindade, que dava o nome à sua igreja. Seguiram-se mais algumas orações, um salmo, o Pai Nosso e uma longa prece em que os tons descendentes da despedida se congregavam em torno de uma conclusão melancólica.
“Que lance sobre vós as bênçãos da sua graça, que vos santifique e abençoe. Vivei no vosso amor santificado até ao fim das vossas vidas.”
Seguiu-se de imediato uma cascata de notas agitadas lançada pelo órgão, ao mesmo tempo que o vigário se voltava para acompanhar o casal pela nave central, seguido pelos seis membros da família. Briony, que tinha estado de joelhos a fingir que rezava, levantou-se e voltou-se de frente para o cortejo que se aproximava dela. O vigário parecia estar com pressa, o que o fazia vir muito distante dos outros. Quando olhou para a esquerda e viu aquela jovem enfermeira fez uma expressão afável e inclinou ligeiramente a cabeça, exprimindo ao mesmo tempo as boas-vindas e alguma curiosidade. Depois continuou a andar para abrir uma das enormes portas. Uma língua de sol entrou subitamente na igreja, cegando até ao sítio onde ela estava e iluminando-lhe o rosto e a touca. Queria que a vissem, mas não com tanta nitidez. Agora ninguém podia deixar de dar pela presença dela. Lola, que entretanto chegara ao pé de Briony, olhou para ela. Tinha o véu para trás. Já não tinha sardas, mas, tirando isso, não tinha mudado muito. Talvez estivesse um pouco mais alta, mais bonita, com uma cara mais suave e mais redonda e as sobrancelhas muito bem arranjadas. Briony limitou-se a olhar fixamente para ela. Só queria que Lola soubesse que ela estava ali e perguntasse a si própria porquê. A luz do Sol dificultava-lhe a visão, mas era provável que tivesse vislumbrado um esgar de desprazer no rosto da noiva, que, logo a seguir, cerrou os lábios e olhou em frente, seguindo o seu caminho. Paul Marshall também a vira, mas não a tinha reconhecido, tal como a tia Hermione e o tio Cecil, que não a viam há anos. Mas os gémeos, que fechavam o desfile com as calças da farda do colégio, ficaram deliciados ao vê-la e fizeram caretas de horror por causa do seu uniforme, fizeram palhaçadas, reviraram os olhos e taparam a boca com a mão.
Depois ficou sozinha na igreja com o organista invisível, que continuava a tocar para seu próprio prazer. Acabara demasiado depressa, e nada se concretizara. Ficou de pé, no mesmo lugar, e começou a sentir-se um bocado pateta e com alguma relutância em sair. A luz do dia e a banalidade das conversas fúteis entre os membros da família retirariam todo o impacto à sua aparição assombrosa. Também não tinha coragem para um confronto. E como poderia explicar aos tios a sua presença, o seu papel de convidada indesejada? Podiam ficar ofendidos ou, pior ainda, podiam não ficar e querer levá-la para um pequeno-almoço insuportável num hotel, com o casal Marshall a destilar ódio, e Hermione sem conseguir esconder o seu desprezo por Cecil. Briony deixou-se ficar mais um ou dois minutos, como se fosse a música a retê-la ali, e depois, irritada com a sua própria cobardia, precipitou-se para o pórtico. O vigário estava pelo menos a uns cem metros de distância, a atravessar apressadamente o relvado e a balançar muito os braços. Os recém-casados estavam no Rolls Royce, com Marshall ao volante, a fazer marcha-atrás para dar a volta. Tinha a certeza de que a tinham visto. Ouviu-se um ruído metálico quando ele meteu a mudança - talvez um bom sinal. O carro afastou-se e ela viu por uma janela lateral o vulto branco de Lola aninhado no braço do condutor. Quanto aos convidados, tinham desaparecido completamente por entre as árvores.
Sabia pelo mapa que Balham ficava ao fundo do Com-mon, na direcção para onde o vigário se dirigia. Não ficava muito longe dali, e só isso já lhe provocava alguma relutância em continuar. Chegaria cedo de mais. Não tinha comido nada, estava cheia de sede, doía-lhe o calcanhar, e a bolha tinha-se colado à parte de trás do sapato. Estava calor, e ela teria de percorrer um longo relvado sem sombras, atravessado por trilhos de asfalto e abrigos públicos. Ao longe via-se um coreto, junto ao qual vários homens de uniforme azul se agitavam impacientemente. Pensou em Fiona, cujo dia de folga usara, e na tarde que tinham cassado juntas em St. James's Park. Parecia uma época muito distante e inocente, mas fora apenas há dez dias. Àquela hora Fiona devia estar a fazer a sua ronda com as arrastadeiras. Briony deixou-se ficar à sombra do pórtico a pensar na prenda que levaria à amiga - uma coisa boa de comer, uma banana, laranjas, um chocolate suíço. Os porteiros sabiam onde se podiam arranjar essas coisas. Tinha-os ouvido dizer que tudo se podia arranjar, desde que se tivesse dinheiro. Viu a fila de trânsito a andar à volta do Common e pensou em comida. Fatias de presunto, ovos escalfados, uma perna de frango assada, um guisado irlandês, um merengue de limão. Uma chávena de chá. Apercebeu-se da música vigorosa e agitada que continuava atrás de si no momento em que acabou e em que deu lugar a uma súbita onda de silêncio, que parecia transmitir uma sensação de liberdade. Decidiu que tinha de ir tomar o pequeno-almoço. Não havia comércio na direcção para onde tinha de ir, mas apenas quarteirões com apartamentos lúgubres de tijolos vermelhos.
Alguns minutos depois o organista saiu, com o chapéu numa mão e um pesado molho de chaves na outra. Apetecia perguntar-lhe se havia ali algum café, mas ele tinha um ar nervoso, conforme com a sua música, e parecia decidido a ignorá-la. Fechou a porta da igreja com força, deu a volta à chave, pôs o chapéu e afastou-se apressadamente.
Talvez tenha sido o primeiro passo no desfazer dos seus planos, mas já estava a voltar para trás, a dar os mesmos passos em sentido contrário, em direcção a Clapham High Street. Ia tomar o pequeno-almoço e pensar melhor. Perto da estação do metro passou por um bebedouro de animais, onde gostaria de poder ter mergulhado a cara. Encontrou um café lúgubre, com as montras sujas e o chão repleto de pontas de cigarro, mas a comida não podia ser pior do que aquela a que ela estava habituada. Pediu um chá e três torradas, que vieram acompanhadas por margarina e por uma compota de morango de um vermelho extremamente pálido. Pôs açúcar no chá, pois tinha descoberto que sofria de hipoglicémia. O sabor doce não escondeu, no entanto, um travo a desinfectante.
Bebeu uma segunda chávena de chá, contente por estar morno e conseguir engoli-lo facilmente, e depois foi a uma casa de banho fétida ao fundo de um pátio em pedra nas traseiras do café. Mas não havia nenhum cheiro capaz de impressionar uma enfermeira. Pôs um bocado de papel higiénico na parte de trás do sapato. Aguentaria mais uns dois ou três quilómetros. Havia um lavatório só com uma torneira preso à parede de tijolo. Também havia um losango esverdeado de sabonete, em que preferiu não tocar. Quando abriu a água ela caiu-lhe directamente para cima das canelas. Secou-as com as mangas e penteou-se, tentando imaginar a sua imagem na parede de tijolo. Contudo, não podia retocar o batom sem um espelho. Refrescou a cara com um lenço molhado e deu umas palmadinhas nas bochechas para ficar mais corada. Uma decisão fora tomada - aparentemente sem a sua intervenção. Estava a preparar-se para uma entrevista e para o papel de querida irmã mais nova.
Saiu do café e, ao percorrer o Common, sentiu aumentar a distância entre ela própria e um outro ser, não menos real, que estava a regressar ao hospital. Talvez a Briony que se dirigia para Balham fosse a personagem imaginada, a assombração. Aquela sensação irreal intensificou-se quando, passada meia hora, chegou a uma outra High Street, mais ou menos igual à que deixara para trás. Para lá do centro, Londres era apenas isso - um aglomerado de pequenos bairros tristes. Decidiu que nunca havia de viver em nenhum deles.
A rua que procurava ficava três cruzamentos depois da estação do metro e era também ela uma réplica. As varandas eduardinas, com cortinas de rede puídas, estendiam-se por quase um quilómetro. O número 43 de Dudley Villas ficava a meio caminho, sem nada que o distinguisse dos outros prédios a não ser um velho Ford 8, sem rodas, assente em pilhas de tijolos, que ocupava todo o jardim da frente. Se não estivesse ninguém em casa, podia ir-se embora, reconfortando-se com a ideia de que tentara. A campainha não funcionava. Deixou a aldraba cair duas vezes e chegou-se para trás. Ouviu uma voz zangada de mulher, depois uma porta a bater e passos pesados. Briony deu mais um passo para trás. Não era tarde de mais para se ir embora rua acima. Ouviu alguém a tactear à volta do trinco e ainda um suspiro irritado. Uma mulher alta, com um rosto duro, abriu a porta. Parecia ter uns trinta anos e tinha dificuldade em respirar, como se tivesse feito um esforço gigantesco. Estava furiosa. Tinha sido interrompida no meio de uma discussão e não conseguiu ajustar a sua expressão - tinha a boca aberta, o lábio superior ligeiramente curvo - ao abrir a porta a Briony.
- O que quer?
- Ando à procura de Miss Cecília Tallis.
Deixou descair os ombros e inclinou a cabeça para trás, como se tivesse acabado de ouvir um insulto. Mirou Briony de alto a baixo.
- Você é parecida com ela.
Desorientada, Briony limitou-se a olhar para ela. A mulher suspirou novamente, quase como se cuspisse, e foi até ao fundo das escadas.
- Tallis! - gritou. - Vem à porta!
Voltou até meio do corredor, à porta da sua sala de estar, e desapareceu, depois de lançar um olhar de desdém a Briony e de empurrar violentamente a porta atrás de si.
A casa estava em silêncio. Da porta, Briony via apenas uma passadeira de plástico às flores e os primeiros sete ou oito degraus, cobertos por uma carpete vermelha. No terceiro degrau faltava a vara de metal. A meio do corredor havia uma mesa semicircular encostada à parede e em cima dela um suporte de madeira para cartas. Estava vazio.
A passadeira de plástico ia dar a uma porta com uma bandeira de vidro fumado, que devia dar para uma cozinha nas traseiras. O papel de parede também era às flores - ramos de três rosas alternados com uma espécie de flocos de neve. Contou quinze rosas e dezasseis flocos de neve desde a soleira até ao princípio das escadas. Números não auspiciosos.
Por fim ouviu uma porta abrir-se lá em cima, talvez a que ouvira fechar-se quando batera. Depois as escadas a rangerem, uns pés com umas meias grossas, uma faixa de pele à mostra e um robe de seda azul, que reconheceu. Viu finalmente a cara de Cecilia inclinada para o lado para ver quem estava à porta e poupar a si própria o trabalho de descer mais naquela figura. Demorou alguns momentos a reconhecer a irmã. Desceu lentamente mais três degraus.
- Meu Deus!
Sentou-se e cruzou os braços.
Briony ficou onde estava, com um pé ainda no jardim e outro no primeiro degrau. Alguém ligou uma telefonia na sala da senhoria e as gargalhadas do público foram subindo de tom, à medida que as válvulas iam aquecendo. Seguiu-se o monólogo sedutor de um comediante, entrecortado por aplausos, e uma música alegre a entrar de rompante. Briony deu um passo em frente e entrou no corredor.
- Preciso de falar contigo - disse, em surdina. Cecilia estava prestes a levantar-se, mas mudou de ideias.
- Por que não me disseste que vinhas?
- Não respondeste à minha carta e por isso decidi vir.
Tapou-se melhor com o robe e apalpou o bolso, talvez à procura de cigarros. A sua tez estava muito mais escura, e também as suas mãos estavam demasiado castanhas. Não encontrou o que queria, mas não fez menção de se levantar. Mais para preencher o tempo do que para mudar de assunto, disse:
- És estagiária.
- Pois sou.
- Em que enfermaria?
- Na da Irmã Drummond.
Era impossível dizer se aquele nome era ou não familiar para Cecilia, ou se lhe desagradava o facto de a irmã mais nova estar a estagiar no mesmo hospital. Havia outra diferença óbvia - Cecilia falara sempre com ela num tom maternal ou condescendente. Maninha! Agora não havia espaço para isso. Havia um tom duro na sua voz que impedia Briony de lhe perguntar por Robbie. Deu mais um passo em frente, consciente de que, atrás de si, a porta continuava aberta.
- E tu, onde estás?
- Ao pé de Morden. É um hospital de urgências.
Um hospital de urgências, um posto avançado, que muito provavelmente recebera o embate, o verdadeiro embate da evacuação. Havia demasiadas coisas que não podiam ser ditas nem perguntadas. As duas irmãs olharam uma para a outra. Apesar de Cecilia ter o ar desgrenhado de quem acabava de se levantar, estava ainda mais bela do que Briony a recordava. O seu rosto longo sempre parecera estranho, vulnerável, cavalar - como toda a gente dizia. Mas agora estava tremendamente sensual, com uma curva acentuada nos lábios grossos e vermelhos. Os olhos estavam escuros e maiores, talvez por causa do cansaço. Ou da tristeza. O nariz, longo e fino, a delicada curvatura das narinas - havia naquele rosto muito calmo algo que fazia lembrar uma escultura ou uma máscara. Era difícil interpretá-lo. A expressão da irmã aumentava o mal-estar de Briony e fazia-a sentir-se desajeitada. Quase não conhecia aquela mulher, que não via há cinco anos. Nada era pacífico. Andava à procura de um assunto neutro, mas não havia nada que não levasse às questões sensíveis - as questões que, em qualquer dos casos, teria de enfrentar -, e foi por já não conseguir aguentar mais o silêncio e a fixidez do olhar que acabou por dizer:
- Sabes alguma coisa do velhote?
- Não, não sei. - O tom descendente dava a entender que nem queria saber, nem se daria ao trabalho de responder caso soubesse. - E tu? - perguntou Cecília.
- Mandou-me uma carta escrita à pressa há umas semanas.
- Ainda bem.
Não havia mais nada a dizer. Depois de outra pausa, Briony fez mais uma tentativa:
- É lá de casa?
- Não. Não estou em contacto com eles. E tu?
- Ela escreve-me de vez em quando.
- E o que manda dizer, Briony?
Tanto a pergunta como a utilização do seu nome eram sarcásticas. Obrigou-se a recuar a algumas recordações e sentiu que estava a ser tratada como uma traidora à causa da irmã.
- Receberam uns evacuados, e a Betty odeia-os. O parque agora tem milho semeado.
Parou. Não fazia sentido estar ali a enumerar mais pormenores.
Mas Cecília disse, num tom seco:
- Continua. E que mais?
- Bem, a maior parte dos rapazes da aldeia alistou-se nos East Surreys, menos o...
- Menos o Danny Hardman. Sim, já sei isso tudo. - Fez um sorriso largo, artificial, à espera que Briony continuasse.
- Construíram uma plataforma para canhões ao pé dos Correios e levaram as grades todas. Hum. A tia Her-mione está a viver em Nice e a Betty partiu a jarra do tio Ciem.
Só isto despertou Cecília da sua impassividade. Descruzou os braços e encostou uma mão à cara.
- Partiu?
- Deixou-a cair num degrau.
- E partiu-se mesmo, em muitos bocadinhos?
- Partiu.
Cecilia ficou a pensar e ao fim de algum tempo exclamou:
- É horrível.
- Pois é - disse Briony. - Coitado do tio Ciem.
A irmã deixara finalmente de troçar. O interrogatório continuou.
- Apanharam os bocados?
- Não sei. A Emily disse que o velhote ralhou à Betty.
Nesse momento a porta abriu-se e a senhoria apareceu à frente de Briony, tão perto dela que conseguiu sentir o seu hálito a hortelã-pimenta. Apontou para a porta da frente.
- Isto não é uma estação dos comboios, minha menina. Ou entra ou sai.
Cecilia levantou-se, sem nenhuma pressa em especial, e atou o cordão de seda do robe.
- É a minha irmã Briony, Mrs Jarvis - disse ela num tom lânguido. - Veja se tem maneiras quando fala com ela.
- Estou na minha casa e falo como quero - retorquiu Mrs Jarvis. Depois, voltando-se para Briony, acrescentou: - Se quiser, fique. Se não quiser, saia e feche a porta.
Briony olhou para a irmã, achando que não era provável que ela a deixasse ir embora. Mrs Jarvis acabara por ser uma aliada involuntária.
Cecilia falou como se estivessem sozinhas.
- Não ligues à senhoria. Vou-me embora no fim da semana. Fecha a porta e sobe.
Sob o olhar atento de Mrs Jarvis, Briony subiu a escada atrás da irmã.
- E quanto a si, Dona Empertigada... - gritou a senhoria.
Mas Cecilia interrompeu-a com brusquidão:
- Pare com isso, Mrs Jarvis. Chega.
Briony reconheceu o tom. Tipicamente Nightingale, para doentes difíceis ou alunas choronas. Levava muitos anos a aperfeiçoar. De certeza que Cecilia já era responsável por uma enfermaria.
No patamar do primeiro andar, quando estava prestes a abrir a porta, lançou um olhar frio a Briony para lhe mostrar que nada mudara nem fora atenuado. Da porta entreaberta da casa de banho saía um vapor perfumado e um som cavo de água a pingar. Cecilia devia estar a preparar-se para tomar banho. Fez sinal a Briony para que entrasse. Algumas das enfermeiras mais limpas da enfermaria moravam em quartos que eram verdadeiras pocilgas, pelo que não se admiraria muito de deparar com uma nova versão do antigo caos de Cecilia. Mas a sensação com que ficou foi a de uma vida simples e solitária. Era uma divisão de tamanho médio, que tinha sido dividida para fazer uma cozinha estreita, provavelmente com um quarto ao lado. As paredes estavam forradas a papel com riscas verticais de uma cor suave, como um pijama de rapaz, o que aumentava a sensação de clausura. No chão havia bocados irregulares da mesma passadeira que estava ao fundo das escadas, e aqui e ali viam-se tábuas escuras. Sob a única janela da sala havia um lava-loiça com uma torneira e um fogão a gás só com um bico. Encostada à parede, deixando pouco espaço para passar, estava uma mesa com uma toalha amarela de xadrez e em cima dela um frasco de compota com flores azuis, talvez campainhas, um cinzeiro cheio de beatas e uma pilha de livros. Por baixo estavam a Anatomia de Gray, as obras completas de Shakespeare e por cima, com lombadas mais finas e os títulos com letras prateadas e douradas já esbatidas, estavam obras de Housman e Crabbe. Ao lado dos livros estavam duas garrafas de cerveja. No canto mais afastado da janela estava a porta para o quarto, na qual estava pregado um mapa do Norte da Europa.
Cecilia tirou um cigarro de um maço que estava ao lado do fogão e depois, lembrando-se de que a irmã já não era uma criança, ofereceu-lhe um. Havia duas cadeiras ao pé da mesa, mas Cecilia, que estava encostada ao lava-loiça, não convidou Briony a sentar-se. Ficaram as duas de pé, a fumar e à espera, achou Briony, de que o ambiente ficasse liberto da presença da senhoria.
- Quando recebi a tua carta, fui a um solicitador - disse Cecilia, num tom calmo. - Não é fácil, a menos que haja novas provas. O facto de tu mudares de opinião não chega. A Lola vai continuar a dizer que não sabe. A nossa única esperança era o velho Hardman, e já morreu.
- O Hardman? - Aqueles elementos contraditórios, o facto de ter morrido, a sua relevância para o caso, deixaram Briony confusa e obrigaram-na a fazer um esforço de memória. Hardman andaria à procura dos gémeos naquela noite? Teria visto alguma coisa? Alguém teria dito alguma coisa no tribunal que ela desconhecesse?
- Não sabias que ele tinha morrido?
- Não, mas...
- É incrível.
O esforço de Cecilia para manter um tom neutro e factual estava a desmoronar-se. Agitada, saiu da zona da cozinha, passou pela mesa e foi para a outra ponta da sala, ao pé da porta do quarto. A sua voz era ofegante, por estar a tentar controlar a raiva.
- É muito estranho a Emily não ter incluído isso nas notícias dos evacuados e do milho. Tinha cancro. Talvez o medo de Deus o tivesse levado a dizer alguma coisa que, nesta fase, fosse muito inconveniente para todos.
- Mas, mana...
- Não me chames isso - gritou ela, repetindo depois num tom mais calmo -, por favor, não me chames isso.
Tinha os dedos no puxador da porta do quarto, como se a entrevista estivesse a chegar ao fim. Estava prestes a desaparecer.
Com uma demonstração inverosímil de calma, resumiu assim os factos a Briony.
- Paguei dois guinéus para descobrir o seguinte: não vai haver recurso só por tu teres decidido contar a verdade passados cinco anos.
- Não percebo o que estás a dizer... - Briony queria voltar a Hardman, mas Cecilia precisava de lhe dizer o que lhe andara a matraquear na cabeça nos últimos tempos.
- Não é difícil. Se mentiste na altura, por que razão havia o tribunal de acreditar em ti agora? Não há nenhum facto novo, e não és uma testemunha fidedigna.
Briony aproximou-se do lava-loiça com o cigarro a meio. Estava a ficar maldisposta. Tirou um pires do escorredor da loiça para o utilizar como cinzeiro. Era horrível ouvir a irmã confirmar o seu crime. Fraca, estúpida, confusa, cobarde, evasiva - odiara-se por tudo o que fora, mas nunca se vira como mentirosa. Era tão estranho, e, no entanto, devia ser tão claro para Cecilia. Era óbvio e irrefutável. Por momentos ocorreu-lhe a possibilidade de se defender. Não tinha querido mentir, não tinha agido por malícia. Quem acreditaria nisso?
Ficou de pé, no sítio onde Cecilia tinha estado, encostada ao lava-loiça, sem conseguir olhar de frente para a irmã, e disse:
- O que eu fiz foi horrível. Não espero que me perdoes.
- Não te preocupes - disse ela, como para a tranquilizar. No curto espaço de um ou dois segundos em que puxou uma fumaça, Briony deixou que as suas esperanças se renovassem injustificadamente. - Não te preocupes - continuou a irmã. - Nunca hei-de perdoar-te.
- Mesmo que não possa ir a tribunal, isso não me impede de dizer a toda a gente o que fiz.
Quando Cecilia deu uma pequena gargalhada cheia de azedume, Briony percebeu o medo que tinha da irmã. Era ainda mais difícil aguentar o seu sarcasmo do que a sua raiva. Aquela divisão pequena, forrada de papel às riscas, como grades, continha uma panóplia de sentimentos que ninguém poderia imaginar. Briony insistiu. Afinal de contas, tinha chegado à parte da conversa que tinha ensaiado.
- Vou ao Surrey falar com a Emily e com o velhote. Vou contar-lhes tudo.
- Já disseste isso na tua carta. O que está a impedir-te? Passaram-se cinco anos. Por que razão ainda não foste lá?
- Queria falar contigo primeiro.
Cecilia saiu de junto da porta do quarto e aproximou-se da mesa. Enfiou a beata no gargalo de uma das garrafas de cerveja. Ouviu-se um pequeno assobio, ao mesmo tempo que uma espiral de fumo ténue subiu do vidro escuro. O gesto da irmã tornou a fazer que Briony se sentisse maldisposta. Pensava que as garrafas estavam cheias. Pensou que podia ter comido qualquer porcaria ao pequeno-almoço.
- Sei por que não foste lá - disse Cecilia. - Porque és da mesma opinião que eu. Eles não querem ouvir falar mais do assunto. É uma questão muito desagradável, mas está devidamente arrumada no passado. O que está feito está feito. Porquê mexer na história outra vez? E sabes muito bem que eles acreditaram na história do Hardman.
Briony afastou-se do lava-loiça e parou junto da mesa, mesmo em frente da irmã. Não era fácil olhar para aquela máscara tão bela.
- Não percebo o que estás a dizer - disse ela muito cautelosamente. - O que é que ele tem a ver com isto? Lamento muito que tenha morrido. Lamento muito, mas não sabia...
Ouviu um som que a assustou. A porta do quarto estava a abrir-se e Robbie apareceu à frente delas. Trazia umas calças e uma camisa da tropa, umas botas muito engraxadas, e os suspensórios caídos na cintura. Tinha a barba por fazer, estava todo desgrenhado, e apenas olhou para Cecilia, que se tinha voltado para ele, mas ficara onde estava. Nos segundos em que eles ficaram a olhar um para o outro em silêncio, Briony, tapada pela irmã, quase desapareceu sob o seu uniforme.
- Ouvi vozes e pensei que fosse alguma coisa do hospital - disse ele a Cecilia, muito baixo, como se estivessem sozinhos.
- Não foi nada.
- É melhor ir andando - disse ele, a olhar para o relógio.
Atravessou o quarto e, antes de sair para o patamar para ir à casa de banho, fez um ligeiro aceno a Briony.
- Com licença.
Ouviram a porta da casa de banho a fechar-se. No silêncio que se seguiu, Cecília disse, como se não houvesse nada entre ela e a irmã:
- Tem um sono tão pesado. Não quis acordá-lo. - Depois acrescentou: - Achei que era melhor não te encontrares com ele.
Briony sentiu os joelhos começarem a tremer. Apoian-do-se na mesa com uma mão, afastou-se da zona da cozinha para Cecília poder encher a chaleira. Estava desejosa de se sentar. Mas só o faria se a convidassem; jamais pediria. Por isso, ficou junto da parede, fingindo não estar encostada, a ver a irmã. O que mais a surpreendia era a velocidade com que o seu alívio por Robbie estar vivo fora suplantado pelo seu receio de se confrontar com ele. Agora que o tinha visto atravessar o quarto, a outra possibilidade, a de que estivesse morto, parecia distante e altamente improvável. Não faria sentido. Ficou a ver a irmã, de costas, enquanto ela se movimentava na pequena cozinha. Tinha vontade de lhe dizer como era maravilhoso que Robbie tivesse voltado são e salvo. Que alívio! Mas teria parecido tão banal. E não tinha nada que dizer isso. Tinha medo da irmã e do seu desdém.
Continuando a sentir-se maldisposta, e agora também com calor, Briony encostou a face à parede. Não estava mais fresca do que a sua cara. Apetecia-lhe beber um copo de água, mas não queria pedir nada à irmã. Cecilia ia fazendo o seu trabalho com desenvoltura: misturou leite com água e farinha e pôs um frasco de compota, três pratos e três chávenas em cima da mesa. Briony reparou, mas não se sentiu mais reconfortada. Apenas se sentiu mais preocupada com o encontro iminente. Seria possível que Cecilia achasse que, naquelas circunstâncias, poderiam sentar-se os três à mesa e ter vontade de comer ovos mexidos? Ou estaria a acalmar-se com toda aquela actividade? Briony estava atenta aos passos no patamar e foi para se distrair que tentou meter conversa. Tinha visto a capa pendurada na porta do quarto.
- És responsável por uma enfermaria?
- Sou.
Disse-o num tom conclusivo, como a arrumar o assunto. O facto de partilharem a mesma profissão não ia ser um elo entre ambas. Nada seria e também não havia nada para dizer enquanto Robbie não voltasse.
Por fim ouviu o estalido da fechadura da porta da casa de banho. Robbie atravessou o patamar a assobiar. Briony afastou-se da porta e refugiou-se no canto menos iluminado. Mas estava no ângulo de visão dele quando ele entrou. Vinha com a mão direita estendida para lhe dar um aperto de mão e com a esquerda para trás, para fechar a porta. Mas assim que os seus olhos se cruzaram deixou tombar as mãos ao lado do corpo e soltou um pequeno suspiro, continuando a olhar para ela com uma expressão dura. Apesar de intimidada, sentiu que não podia desviar os olhos. Sentiu o cheiro suave do seu creme de barbear. O que a chocou foi ele parecer muito mais velho, sobretudo à volta dos olhos.
“Tinha de ser tudo por culpa dela?”, pensou estupidamente. “Não podia ser também por causa da guerra?”
- Com que então, foste tu - disse ele por fim. Fechou a porta com o pé. Cecilia tinha ido para junto dele, e Robbie olhou para ela.
Fez um relato resumido e exacto, mas, mesmo que quisesse, não teria conseguido reprimir o sarcasmo.
- A Briony vai contar a verdade a toda a gente. Só queria falar primeiro comigo.
- Pensavas que eu podia cá estar? - perguntou ele, voltando-se para Briony.
A sua preocupação imediata foi não chorar. Nesse momento, nada podia ser mais humilhante. Alívio, vergonha, pena de si mesma, não sabia qual destes sentimentos era, mas estava a chegar. Era uma onda suave que lhe apertava a garganta, impossibilitando-a de falar, mas acabou por aguentar, cerrou os lábios e tudo desapareceu, deixando-a a salvo. Conseguiu suster as lágrimas, mas a voz saiu-lhe como um sussurro infelicíssimo.
- Não sabia se estavas vivo.
- Se vamos ficar a conversar, é melhor sentarmo-nos - disse Cecília.
- Não sei se posso.
Afastou-se com uma expressão de impaciência até à parede mais próxima, a uma distância de um metro e meio a dois metros, e recostou-se, de braços cruzados, olhando ora para Briony, ora para Cecília. Mas tornou a mudar de sítio quase imediatamente, dirigindo-se para a porta do quarto. Depois voltou-se, mas mudou de ideias e deixou-se ficar, de mãos nos bolsos. Era um homem corpulento, e o quarto parecia ter encolhido. Os seus movimentos eram desesperados, naquele espaço limitado, que parecia tolhê-lo. Tirou as mãos dos bolsos e alisou o cabelo na zona da nuca. Depois descansou as mãos nas ancas, mas depressa as deixou cair. Foi preciso todo aquele tempo e todos aqueles movimentos para Briony perceber que ele estava zangado, muito zangado. Nesse preciso momento, ele disse:
- Que estás aqui a fazer? Não me venhas falar do Surrey. Ninguém te impede de lá ires. Porque estás aqui?
- Precisava de falar com a Cecília - respondeu ela.
- Ah sim? E sobre quê?
- Sobre a coisa horrível que fiz.
Cecília aproximou-se dele.
- Robbie - disse ela, num sussurro. - Querido.
Pôs-lhe a mão no braço, mas ele libertou-o.
- Não sei porque a deixaste cá entrar. - Depois, voltando-se para Briony: - Vou ser muito honesto contigo. Estou hesitante entre partir-te o pescoço aqui dentro ou levar-te lá para fora e atirar-te pelas escadas abaixo.
Se não tivesse sido pelas suas experiências recentes, teria ficado aterrorizada. Às vezes ouvia os soldados na enfermaria enfurecidos pelo desespero. Nesses momentos era insensato argumentar com eles ou tentar acalmá-los. Tinham de deitar aquilo fora, e era melhor ficar a ouvir. Sabia que, mesmo que se dispusesse a sair naquele momento, eles entenderiam isso como uma provocação. Por isso, enfrentou Robbie e ficou à espera do resto, do que lhe era devido. Mas não tinha medo dele, pelo menos fisicamente.
Robbie não levantou a voz, apesar de se debater com um profundo desdém.
- Fazes alguma ideia do que é estar preso?
Briony imaginou umas janelas altas e minúsculas numa parede de tijolo e pensou que talvez fizesse uma pequena ideia da forma como as pessoas imaginam os diferentes tormentos do Inferno. Abanou ligeiramente a cabeça. Para se acalmar, tentava concentrar-se nos pormenores da transformação dele. A sensação de que estava mais alto resultava da sua postura de formatura. Os estudantes de Cambridge nunca estavam assim tão direitos. Mesmo distraído, tinha os ombros bem para trás e o queixo levantado, como um pugilista à moda antiga.
- Não, claro que não. E sentiste prazer por eu estar preso?
- Não.
- Mas não fizeste nada.
Briony tinha pensado muitas vezes naquela conversa, como uma criança que antecipa uma tareia. Agora estava finalmente a acontecer, e era como se ela própria não estivesse ali. Observava a cena de longe, completamente tolhida. Mas sabia que mais tarde as palavras dele a fariam sofrer.
Cecilia tinha-se chegado para trás, mas voltou a pôr a mão no braço de Robbie. Ele tinha perdido peso, mas parecia mais forte, com uma ferocidade muscular seca e dura. Voltou-se para ela.
- Não te esqueças - ia Cecilia a dizer, mas Robbie sobrepôs-se.
- Achas que fui eu que ataquei a tua prima?
- Não.
- Na altura achaste que sim?
- Sim e não - disse ela, procurando encontrar a palavra certa. - Não tinha a certeza.
- E o que te faz ter a certeza agora?
Hesitou, consciente de que a sua resposta seria uma forma de defesa, um argumento, de que podia enfurecê-lo ainda mais.
- Cresci.
Ele olhou fixamente para ela, com os lábios ligeiramente abertos. Mudara realmente naqueles cinco anos. A dureza do seu olhar era nova, e os seus olhos estavam mais pequenos, mais estreitos e com pés de galinha bem vincados aos cantos. Tinha a cara mais magra, com duas covas, como um guerreiro índio. Tinha deixado crescer um pequeno bigode, de estilo militar. Era espantosamente belo, e lembrou-se de que, pelos seus dez ou onze anos, tinha tido uma paixão por ele, uma verdadeira paixão que durara alguns dias. Depois confessara-lha uma manhã no jardim e passara-lhe imediatamente.
Tinha razão em estar preocupada. Ele estava tomado por aquela espécie de raiva que quase se confunde com admiração.
- Cresceste - repetiu ele. Ergueu a voz, o que a fez dar um salto. - Bolas! Tens dezoito anos. Quanto é que ainda precisas de crescer? Há soldados de dezoito anos a morrer no campo de batalha. Com essa idade já são abandonados pela estrada, à beira da morte. Sabias isso?
- Sabia.
O facto de ele não saber o que ela tinha visto era um motivo patético de consolação. Era estranho que, apesar de se sentir tão culpada, precisasse de lhe resistir. Se assim não fosse, seria aniquilada.
Limitou-se a fazer um ligeiro movimento de cabeça. Não se atrevia a falar. Ao falar na morte, ele fora dominado por fortes emoções, que o tinham empurrado para além da raiva, para um extremo de incredulidade e repulsa. A sua respiração era irregular e pesada, e abriu e cerrou o punho direito. E continuava a olhar para ela, para dentro dela, com uma espécie de rigidez, de selvajaria no olhar. Os seus olhos estavam brilhantes e engoliu em seco várias vezes. Tinha os músculos da garganta tensos e inchados. Também ele combatia uma emoção que não queria revelar. Briony aprendera o pouco que sabia, as informações esparsas, quase nulas, que uma estagiária conseguia absorver, na segurança da enfermaria. Sabia o suficiente para reconhecer que ele estava a ser assoberbado por recordações e que não podia fazer nada. Não o deixariam falar. Jamais saberia quais as cenas que estavam a desencadear aquele turbilhão. Avançou na direcção dela, e ela recuou, já sem a certeza de ele ser inofensivo - se não conseguia falar, talvez tivesse de agir. Mais um passo e teria chegado a ela com o seu braço vigoroso. Mas Cecilia meteu-se entre eles. De costas para Briony e de frente para Robbie, pôs-lhe as mãos nos ombros. Ele desviou a cara.
- Olha para mim - murmurou ela. - Olha para mim, Robbie.
Briony não conseguiu perceber a resposta dele. Talvez um desacordo, talvez uma negação. Talvez uma obscenidade. Cecilia agarrou-o com mais força e ele contorceu-se para se afastar dela. Ela tentou obrigá-lo a virar a cara para si. Pareciam dois pugilistas. Robbie tinha a cabeça inclinada para trás, os lábios retraídos e os dentes de fora, numa imitação macabra de um sorriso. Ela agarrou-lhe a cara com as duas mãos e, com esforço, obrigou-o a voltar-se para ela e aproximou o rosto dele do seu. Ele olhava-a finalmente nos olhos, mas Cecilia continuava a agarrar-lhe a cara. Puxou-o mais para si, até que os seus rostos se encontraram num beijo ligeiro mas demorado. Com a ternura que Briony recordava de há muitos anos, quando acordava de noite, Cecilia disse:
- Vá, Robbie. Tem calma.
Ele fez um pequeno sinal de assentimento e inspirou profundamente, libertando depois esse ar devagar, ao mesmo tempo que ela começou a exercer menos pressão sobre o rosto dele, até acabar por retirar as mãos. O silêncio que reinava no quarto fazia-o parecer ainda mais pequeno. Robbie abraçou-a, baixou a cabeça e beijou-a - com um beijo profundo, demorado e privado. Briony afas-tou-se devagar para a outra ponta da sala, para junto da janela. Enquanto bebeu um copo de água da torneira da cozinha, o beijo continuou, unindo mais o casal na sua solidão. Sentiu-se expulsa daquela sala, e isso aliviou-a.
Voltou-se de costas para eles e olhou pela janela para as varandas das casas da rua por onde viera, inundadas de sol. Ficou admirada por descobrir que ainda não lhe apetecia ir-se embora, apesar de se sentir embaraçada com aquele beijo longo e receosa do que poderia ainda estar para vir. Viu passar uma velhota com um casaco grosso, apesar do calor. Ia no passeio do outro lado da rua, com um cão doente e barrigudo preso por uma trela. Cecilia e Robbie falavam em voz baixa, e Briony decidiu que, para respeitar a privacidade deles, não se voltaria da janela enquanto não se dirigissem a ela. Tinha um efeito calmante ver a mulher abrir o portão da frente, fechá-lo com cuidado atrás dela e depois, a meio caminho da porta, bai-xar-se com dificuldade para apanhar uma erva daninha de um canteiro estreito que orlava o caminho que ia do portão até à porta. Quando o fez, o cão avançou e lambeu-lhe o pulso. A senhora e o cão entraram em casa e a rua ficou outra vez vazia. Um melro desceu sobre uma sebe, mas, não encontrando nenhum poiso firme, tornou a voar. A sombra de uma nuvem a aproximar-se diminuiu a luz, mas passou. Podia ser qualquer tarde de sábado. Naquela rua dos arredores havia muito poucos indícios da guerra. Talvez apenas umas cortinas de blackout numa janela do outro lado da rua e o Ford 8 assente em tijolos. Briony ouviu a irmã dizer o seu nome e voltou-se.
- Não temos muito tempo. O Robbie tem de se apresentar às seis da tarde e tem de apanhar o comboio. Por isso, senta-te. Vais fazer umas coisas por nós.
Era outra vez a voz da responsável pela enfermaria. Não era autoritária. Limitava-se a descrever o inevitável. Briony pegou na cadeira mais próxima de si, Robbie foi buscar um banco e Cecilia sentou-se entre eles. Tinham-se esquecido do pequeno-almoço que ela preparava. As chávenas continuavam vazias no meio da mesa. Robbie pôs a pilha de livros no chão. Cecilia afastou o frasco com as flores para o lado, para ficar fora do alcance deles, e trocou um olhar com Robbie.
Ele estava a olhar para as flores quando pigarreou. Depois começou a falar, com uma voz despojada de qualquer emoção. Podia estar a ler uma lista de ordens. Estava a olhar para ela. Os seus olhos pareciam impávidos e ele estava totalmente controlado. No entanto, tinha algumas gotas de suor na testa, por cima das sobrancelhas.
- Já concordaste em fazer o mais importante. Vais ter com os teus pais o mais depressa possível e dizes-lhes tudo o que for preciso para eles ficarem a saber que mentiste. Quando vais estar de folga?
- De domingo a uma semana.
- Então é nesse dia que lá vais. Levas a nossa morada e dizes ao Jack e à Emily que a Cecilia fica à espera que eles entrem em contacto com ela. A outra coisa, vais fazê-la já amanhã. A Cecilia diz que hás-de ter um intervalo de uma hora. Vais a um solicitador e fazes um depoimento que vais assinar na presença de testemunhas. Vais dizer que erraste e que retiras o teu depoimento. Depois mandas uma cópia para cada um de nós. Está entendido?
- Está.
- Depois escreves-me a dar todos os pormenores. Nessa carta vais contar absolutamente tudo o que achares relevante. Tudo o que te levou a dizer que me tinhas visto ao pé do lago e a manter essa história, apesar de não teres a certeza, durante todos os meses até ao julgamento. Se alguém te pressionou, a polícia ou os teus pais, quero saber. Percebeste bem? Tem de ser uma carta longa.
- Está bem.
Olhou para Cecília e fez um sinal de assentimento.
- E se te lembrares seja do que for em relação ao Danny Hardman, onde é que ele estava, o que estava a fazer e quando, se mais alguém o viu, tudo o que possa pôr o álibi dele em cheque, também quero saber isso.
Cecília estava a escrever a morada. Briony dizia que não com a cabeça, mas Robbie ignorou-a e continuou a falar. Tinha-se levantado e estava a olhar para o relógio.
- Temos muito pouco tempo. Vamos levar-te à estação de metro. Eu e a Cecilia queremos passar a última hora antes de eu me ir embora sozinhos. E vais precisar do resto do dia de hoje para escrever o teu depoimento e para avisares os teus pais de que lá vais. E podes começar já a pensar na carta que vais ter de me escrever.
Com aquela descrição seca e resumida das tarefas que Briony tinha de cumprir levantou-se e dirigiu-se para o quarto.
Briony também se levantou e disse:
- É muito provável que o velho Hardman tenha dito a verdade. O Danny esteve com ele toda a noite.
Cecilia estava prestes a passar-lhe a folha que tinha escrito com a morada. Robbie parou junto à porta do quarto.
- Que queres dizer com isso? - perguntou Cecilia. - Que estás a dizer?
- Foi o Paul Marshall.
No silêncio que se seguiu, Briony tentou imaginar os ajustamentos que ambos deveriam estar a fazer. Há anos que viam as coisas de determinada maneira. No entanto, por espantoso que fosse, era apenas um pormenor, que não ia mudar nada de essencial. Não ia mudar nada no seu próprio papel.
- O Marshall? - perguntou Robbie, voltando para junto da mesa.
- Sim.
- Viste-o?
- Vi um homem da altura dele.
- Da minha altura.
- Pois.
Cecilia pôs-se de pé e começou a olhar à sua volta. Ia começar a procurar os cigarros. Robbie encontrou-os e atirou-lhe o maço pelo ar. Cecilia acendeu um cigarro e, ao deitar fora o ar, disse:
- Custa-me acreditar. Bem sei que ele é um palerma...
- Pode ser um pateta ambicioso. Mas não consigo imaginá-lo com a Lola Quincey, nem que seja pelos cinco minutos que demorou...
Depois de tudo o que acontecera, e das terríveis consequências que tivera, Briony sabia que a sua atitude era frívola, mas mesmo assim sentiu um certo prazer em dar a notícia.
- Venho agora mesmo do casamento deles.
Mais uma vez, os ajustamentos, a repetição incrédula. Casamento? Hoje de manhã? Em Clapham? Depois o silêncio pensativo, entrecortado por pequenas exclamações.
- Quero ir ter com ele.
- Não vais nada.
- Quero matá-lo. - E depois: - Tenho de ir.
Havia tantas outras coisas a dizer. Mas pareciam exaustos, ou pela presença dela ou pelo assunto. Ou talvez tivessem apenas vontade de estar sozinhos. Fosse como fosse, tornara-se óbvio que achavam que o encontro chegara ao fim. Tinha-se acabado a curiosidade. Não havia nada que não pudesse esperar até ela escrever a carta.
Robbie foi ao quarto buscar o casaco e o boné. Briony reparou nas divisas de cabo.
- Ele é imune - disse-lhe Cecilia. - Ela vai sempre desculpá-lo.
Perderam alguns minutos enquanto Cecilia procurava o livro das senhas de racionamento. Por fim desistiu e disse a Robbie:
- Tenho a certeza de que está na casa de Wiltshire.
Quando iam a sair, Robbie segurou a porta para deixar passar as duas irmãs e disse:
- Acho que devemos um pedido de desculpas ao marinheiro Hardman.
Mrs Jarvis não saiu da sala quando eles passaram. Ouviram clarinetes a tocar na telefonia dela. Depois de saírem pela porta da frente, Briony teve a sensação de que entrava num novo dia. Havia uma brisa forte, e a rua estava ainda mais iluminada do que antes, com menos sombras. O passeio não tinha espaço suficiente para irem os três lado a lado. Robbie e Cecilia iam atrás dela, de mão dada. Briony sentiu a ferida no calcanhar a bater no sapato, mas estava determinada a não deixar que eles a vissem coxear. A certa altura voltou-se para trás e disse-lhes que não se importava de ir sozinha até ao metro. Mas eles insistiram. Tinham de comprar algumas coisas para Robbie levar na viagem. Continuaram a andar em silêncio. Estava fora de questão manterem uma conversa de circunstância. Sabia que não tinha o direito de perguntar à irmã a sua nova morada, nem a Robbie qual o comboio que ia apanhar, nem de falar da casa em Wiltshire. Seria daí que tinham vindo as flores? Seria certamente um local de idílio. Também não podia perguntar quando é que as duas se tornariam a ver. Ela, a irmã e Robbie só tinham um assunto em comum, que estava encastrado num passado imutável.
Ficaram parados à entrada da estação de Balham, que daí a três meses ficaria famosa por causa do Blitz. A volta deles havia uma corrente de pessoas a fazerem as habituais compras de sábado, que, contra a vontade deles, os obrigava a manterem-se quase encostados. Despediram-se com frieza. Robbie disse-lhe que não se esquecesse de levar dinheiro quando fosse ao solicitador. Cecilia disse-lhe que não se esquecesse de levar a morada quando fosse ao Surrey. E acabou assim. Ficaram a olhar para ela, à espera que se fosse embora. Mas havia uma coisa que ela não tinha dito.
Falou muito lentamente.
- Desculpem. Causei-vos muito sofrimento. - Eles continuaram a olhar para ela, e ela repetiu: - Peço muita desculpa.
Parecia uma frase tão tola, tão desajustada, como se tivesse apenas deitado ao chão uma planta de que todos gostassem muito ou esquecido um aniversário.
- Basta que faças tudo o que te dissemos - disse Robbie calmamente.
Aquele “basta” era quase conciliatório, mas ainda não totalmente.
- Claro - disse ela, e depois voltou-se e foi-se embora, consciente de que eles estavam a vê-la entrar na estação. Pagou o bilhete para Waterloo. Quando chegou à cancela olhou para trás, mas eles já se tinham ido embora.
Mostrou o bilhete e mergulhou naquela luminosidade amarela e suja até chegar às escadas-rolantes que começaram a transportá-la para baixo e a fazê-la mergulhar naquela brisa artificial que vinha da penumbra, da respiração de um milhão de londrinos, e que lhe refrescava o rosto e lhe fazia abanar a capa. Ficou parada a deixar-se levar para baixo, dando graças por estar a deslocar-se sem ferir mais o calcanhar. Surpreendeu-a o facto de se sentir tão serena, embora também um pouco triste. Seria desilusão? Não esperava que lhe tivessem perdoado. O que ela sentia mais era uma espécie de saudades de casa, embora não houvesse razão para isso, embora não houvesse casa. Mas estava triste por ter deixado a irmã. Era da irmã que tinha saudades - ou mais precisamente da irmã com Robbie. Do amor deles. Nem Briony nem a guerra o tinham destruído. Era isso que a tranquilizava, à medida que ia penetrando nas entranhas da cidade. Como Cecília o tinha atraído para ela com os olhos. A ternura na voz dela quando o fez despertar das memórias dele, de Dunquerque e dos caminhos que o tinham levado até lá. Às vezes falava assim com ela, quando Cecília tinha dezasseis anos e ela seis, e as coisas não podiam correr mal. Ou naquela noite em que Cecília foi salvá-la de um pesadelo e a levou para a sua cama. Tinham sido aquelas as suas palavras. Vá lá. Foi só um pesadelo. Vá lá, Briony. Com que facilidade aquele amor familiar espontâneo fora esquecido. Continuou a descer, por entre aquela espessa luz castanha, quase até ao fundo. Não havia mais passageiros à vista e o ar tinha ficado subitamente calmo. Pensou com tranquilidade no que tinha de fazer. A carta para os pais e o depoimento formal não demorariam tempo nenhum. Depois ficaria com o resto do dia livre. Sabia o que tinha de fazer. Não era apenas uma carta, mas uma nova versão, uma expiação, e estava pronta para começar.
B. T. Londres, 1999
LONDRES, 1999
Que tempo tão estranho! Hoje, na manhã do meu septuagésimo sétimo aniversário, resolvi fazer uma última visita à biblioteca do Imperial War Museum, em Lambeth. Este projecto ajustava-se ao meu estado de espírito, tão peculiar. A sala de leitura, na cúpula do edifício, fora noutros tempos a capela do Royal Bethlehem Hospital - o velho Bedlam. Onde outrora os loucos vinham fazer as suas preces, juntam-se agora os estudiosos para pesquisarem a loucura colectiva da guerra. O carro que a família ia mandar só chegaria depois de almoço e por isso resolvi distrair-me revendo os pormenores finais e despedir-me do arquivista e dos alegres ascensoristas que me tinham acompanhado nas minhas viagens de elevador ao longo de todas aquelas semanas de Inverno. Também queria doar aos arquivos as doze longas cartas que Mr Nettle me enviara. Era um presente de aniversário que oferecia a mim mesma, passar uma ou duas horas a fingir que estava ocupada, às voltas com as pequenas tarefas domésticas que chegam no fim e fazem parte de um processo relutante de ir abrindo mão das coisas. Fora também com esse estado de espírito que estivera no meu escritório no dia anterior; agora os manuscritos já estão ordenados e datados, as fontes devidamente identificadas, os livros emprestados prontos a ser devolvidos e tudo no arquivo certo. Sempre gostei de deixar as coisas bem arrumadas.
O tempo estava muito frio e muito húmido, e eu estava com medo de ir de transportes públicos. Apanhei um táxi em Regent's Park e durante a lenta travessia do centro de Londres lembrei-me dos tristes doentes internados em Bedlam, que noutros tempos tinham sido alvo do gáudio geral e pensei, com alguma compaixão por mim própria, que daí a pouco tempo me juntaria a eles. Já conhecia os resultados do meu exame e tinha ido ao médico na manhã do dia anterior. As notícias não eram boas. Foi o que ele disse quando me sentei. As minhas dores de cabeça, a sensação de aperto nas têmporas, têm uma causa específica e sinistra. O médico mostrou-me umas massas granu-losas que se encontravam numa determinada zona da / tomografia. Reparei na ponta do lápis a tremer-lhe na mão e pensei que talvez também ele sofresse de alguma doença nervosa. Para não ficar a rir-se de mim, até era bem feito que tivesse. Disse que eu estava a ter uma série de pequenos acidentes vasculares, quase imperceptíveis. Vai ser um processo lento, mas o meu cérebro, a minha mente, está a fechar-se. As pequenas falhas de memória que nos afectam a todos a partir de certa altura vão começar a tornar-se mais visíveis, mais debilitantes, até que chegará uma altura em que já não darei por elas porque terei perdido a capacidade de compreender seja o que for. Os dias da semana, o que aconteceu hoje de manhã ou apenas há dez minutos, tudo isso estará fora do meu alcance. Não saberei o meu número de telefone, o meu nome nem o que fiz com a minha vida. Daqui a dois, três, quatro anos não reconhecerei os amigos que me restam e de manhã, quando acordar, não perceberei que estou no meu quarto. E a verdade é que, passado pouco tempo, não estarei mesmo, porque vou precisar de cuidados permanentes.
Tenho demência vascular, disse o médico, e tinha de me conformar. Deve ter dito uma dúzia de vezes que a evolução ia ser lenta. Também não é tão grave como o Alzheimer, com as suas alterações de humor e agressividade. Com sorte, pode até ter um prognóstico benigno. Posso não ser infeliz - apenas uma velha estúpida sentada numa cadeira, sem saber nada e sem esperar nada. Pedi-lhe que fosse franco comigo, para eu não poder queixar-me. Mas ele estava a apressar-me. Havia doze pessoas na sala de espera para serem atendidas. Para abreviar, deu-me o casaco e o mapa do caminho que ia seguir: perda de memória recente e antiga, desaparecimento de palavras, as mais simples podiam ser as primeiras a ir-se, depois a própria fala, o equilíbrio e, pouco tempo depois, o controlo motor e por fim o sistema nervoso autónomo. Bon voyage!
Ao princípio não fiquei angustiada. Pelo contrário. Fiquei até excitada e desejosa de contar aos amigos mais chegados. Passei uma hora ao telefone a dar a notícia. Talvez já estivesse a perder capacidades. Parecia tão grave. Passei a tarde toda no meu escritório e quando acabei tinha mais seis pastas de arquivo nas prateleiras. A Stella e o John vieram ter comigo à noite e mandámos vir comida chinesa. Beberam duas garrafas de Morgon. Eu bebi chá verde. Os meus amigos, encantadores, ficaram destroçados com a descrição que lhes fiz do meu futuro. Estão os dois na casa dos sessenta, ou seja, são suficientemente velhos para começar com os disparates de que uma pessoa de setenta e sete anos ainda é nova. Hoje, no táxi, enquanto atravessava Londres a passo de caracol, sob uma chuva gélida, não parei de pensar nisso. Vou ficar louca. Não me deixem enlouquecer. Não conseguia acreditar. Talvez fosse apenas mais uma vítima dos diagnósticos modernos; num outro século teriam dito que era velha e que por isso estava a perder a memória. Que podia querer mais? Afinal estou apenas a morrer, a cair no esquecimento.
O táxi onde seguia cortou caminho pelas ruelas de Bloomsbury e passámos pela casa para onde o meu pai foi viver depois do seu segundo casamento e pela cave onde eu morava e trabalhava aos cinquenta anos. Depois de uma certa idade, uma viagem pela cidade suscita memórias muito incómodas. As moradas dos mortos vão-se acumulando. Passámos pela praça onde Leon cuidou heroicamente da mulher e criou os seus dois filhos, tão intempestivos, com uma devoção que espantou toda a gente. Um dia também eu serei motivo de reflexão para um passageiro de um táxi. É um desvio comum, esse pelo círculo interior de Regent's Park.
Atravessámos o rio pela ponte de Waterloo. Inclinei-me para a frente no meu lugar para não perder a minha vista favorita da cidade e, quando voltei a cabeça para ver St. Paul's, para lá do Big Ben, o que encerrava toda a panóplia da Londres turística, senti-me fisicamente bem e mentalmente intacta, tirando as dores de cabeça e um certo cansaço. Podia estar a definhar, mas sentia-me exactamente a mesma pessoa que sempre fora. Era difícil explicar isso aos mais novos. Podemos parecer uns autênticos répteis, mas não somos uma tribo à parte. No entanto, daqui a um ou dois anos perderei o direito a fazer esta exigência tão habitual. As pessoas gravemente doentes, os dementes, são uma outra raça, uma raça inferior. Não vou deixar que ninguém me convença do contrário.
O motorista do táxi ia a praguejar. Depois de passarmos a ponte, os trabalhos na estrada obrigaram-nos a fazer um desvio em direcção ao velho County Hall. Depois de contornarmos a rotunda e voltarmos para Lambeth vi de relance o Hospital de St. Thomas. Tinha sido atingido no Blitz - felizmente eu não estava lá - e a forma como foi reconstruído é uma vergonha nacional. Trabalhei em três hospitais - Alder Hey, Royal East Sussex e St. Thomas - e misturo-os na minha descrição para concentrar todas as minhas experiências num único local. É uma distorção que me dá jeito e é um crime menor contra a veracidade.
Chovia intensamente quando o motorista fez inversão de marcha para parar junto aos portões principais do museu. Com a atrapalhação de pegar na mala, procurar uma nota de vinte libras e abrir o guarda-chuva, só reparei no carro que estava estacionado à nossa frente quando o táxi se foi embora. Era um Rolls Royce preto. Por momentos pensei que não estava ninguém lá dentro, mas depois vi o motorista, um tipo franzino, que quase desaparecia atrás do volante. Não tenho a certeza se aquilo que vou descrever pode ser considerado uma coincidência espantosa. Costumo pensar nos Marshall sempre que vejo um Rolls Royce estacionado sem motorista. Com os anos, tornou-se um hábito. Às vezes lembro-me deles, mas sem sentir nenhuma emoção em especial. Habituei-me à ideia. Continuam a aparecer nos jornais, por causa da Fundação e do seu inestimável contributo para a investigação médica, ou por causa da colecção que doaram à Tate, ou pelo financiamento generoso de alguns projectos agrícolas na África subsariana. E também pelas festas que dão e pelos seus processos violentos contra alguns jornais nacionais. Não era nada de especial eu pensar em Lorde e Lady Marshall quando passei pelos enormes canhões à entrada do museu, mas foi um choque vê-los descer as escadas na minha direcção.
O grupo de despedida era constituído por alguns funcionários - reconheci o director do museu - e um único fotógrafo. Atrás dos Marshall vinham dois jovens de chapéu de chuva na mão para os cobrirem enquanto desciam as escadas, junto às colunas. Abrandei, em vez de parar - o que podia chamar a atenção sobre mim. Houve vários apertos de mão e um coro de gargalhadas simpáticas por qualquer coisa que Lorde Marshall disse. Apoiou-se numa bengala envernizada, que creio ter-se tornado uma espécie de marca registada. Ele, a mulher e o director posaram para a câmara, e depois os Marshall partiram, acompanhados pelos jovens de fato com os guarda-chuvas. Os funcionários do museu ficaram nas escadas. A minha preocupação era ver para que lado iam os Marshall, para poder evitar um encontro directo. Passaram pela esquerda dos canhões, e eu fiz o mesmo.
Escondida em parte pelos canhões e pelas suas plataformas de cimento e em parte pelo meu chapéu de chuva, consegui que não me vissem e ao mesmo tempo vê-los bem. Passaram por mim em silêncio. A cara dele era-me familiar por causa das fotografias. Apesar das manchas da velhice e dos papos violáceos sob os olhos, tinha finalmente o aspecto de um plutocrata belo, mas cruel, se bem que mais atenuado. A idade contraíra-lhe o rosto e dera-lhe o aspecto a que sempre fugira, apenas por pouco. Era o maxilar que se tinha tornado menos proeminente - a perda óssea favorecera-o. Estava um pouco trémulo, mas ainda caminhava bastante bem para um homem de oitenta e oito anos. Tornamo-nos especialistas nestas coisas. No entanto, a sua mão estava firmemente apoiada no braço dela, e a bengala não era só para vista. Realçava-se muitas vezes o bem que ele tinha feito à humanidade. Talvez tenha passado a vida inteira a remediar o passado. Ou talvez tenha continuado a ver a sua vida, sem pensar.
Quanto a Lola - a minha prima da alta sociedade, a grande fumadora -, lá estava ela, magra e ágil como um cão de corrida, e sempre fiel. Quem poderia sonhar com tal coisa? Como costumava dizer-se, era desse lado que o pão dela estava barrado. Pode ser uma expressão amarga, mas foi a que me ocorreu quando a vi. Levava um casaco de marta e um chapéu de feltro vermelho-vivo. Um gesto mais ousado do que vulgar. Quase com oitenta anos e ainda de saltos altos. Batiam no passeio com o ritmo de uma mulher mais nova. Nem sinal de cigarros. Aliás, tinha um saudável ar campestre e um bronzeado artificial. Era mais alta do que o marido, e o seu vigor não deixava dúvidas. Mas também havia algo de cómico nela - ou estaria eu a tentar agarrar-me a tudo? Estava muito maqui-lhada, com um batom demasiado vivo e base a mais. Sempre fui puritana em relação a essas coisas, e por isso uma testemunha pouco fidedigna. Pareceu-me ter qualquer coisa de vilã teatral - a figura esguia, o casaco preto, os lábios medonhos. Com uma boquilha e um caniche debaixo do braço poderia passar pela Cruella de Vil.
Cruzámo-nos por segundos. Subi a escada e parei sob o frontão, abrigada da chuva, para ver o grupo dirigir-se para o carro. Primeiro ajudaram-no a ele a entrar, e foi então que vi como estava débil. Não conseguia dobrar-se pela cintura, nem conseguia aguentar o peso do corpo só num pé. Tiveram de o sentar. Abriram a outra porta para Lady Lola, que se dobrou com uma agilidade terrível. Fiquei a ver o Rolls Royce até ele se perder no trânsito e depois entrei. Vê-los pôs-me um peso no coração, e tentei não pensar nisso nem sentir esse peso. Já tinha muito com que me entreter. Contudo, a boa saúde de Lola não me saía da cabeça quando entreguei a mala no bengaleiro e dei uns alegres bons-dias aos ascensoristas. Segundo as regras do museu, temos de ser acompanhados até à sala de leitura no elevador, cujo espaço diminuto obriga, pelo menos no que me diz respeito, a alguma conversa de circunstância. Falei do tempo, que estava terrível, das melhorias esperadas para o fim-de-semana, mas sem conseguir deixar de pensar no encontro que tivera no exterior, fundamentalmente pelo que dizia respeito à saúde: talvez sobrevivesse a Paul Marshall, mas de certeza que Lola viveria mais tempo do que eu. As consequências são claras. Há anos que temos o exemplar. Mas, como o meu editor disse uma vez, publicar significa processar. E dificilmente posso enfrentar isso agora. Já havia coisas de mais em que não queria pensar. Fora ali para estar ocupada.
Passei algum tempo a conversar com o arquivista. Entreguei-lhe as cartas que recebera de Mr Nettle sobre Dunquerque - que ele aceitou de bom grado. Pô-las-ia junto a todas as outras que lhe dera. O arquivista tinha-me arranjado um velho coronel dos Buffs, uma espécie de historiador amador, que aceitara ler as páginas relevantes do meu manuscrito e enviara por fax algumas sugestões.
Entregaram-me as notas dele - irascíveis, mas muito úteis. Felizmente, fiquei completamente absorvida por elas.
“Não há nenhum (sublinhado duas vezes) soldado do exército britânico que diga: 'Aos pares.' Só um americano poderia dar tal ordem. O termo correcto é: 'A pares.'“
Adoro estas pequenas coisas, aquela aproximação ponti-lhista da verosimilhança, a correcção dos pormenores, que, no seu conjunto, dá tanta satisfação.
“Jamais alguém se lembraria de dizer 'um canhão de vinte e cinco libras'. A expressão correcta seria 'canhão de vinte e cinco'. A sua terminologia pareceria muito bizarra, mesmo a alguém que não estivesse por dentro da Artilharia Real.” )
Tal como os inspectores da polícia, éramos capazes de nos pôr de joelhos ou até de rastejar para descobrir a verdade.
“O seu homem da RAF usa um bivaque. Não me parece. Para além do Tank Corps, nem sequer o exército os usava em 1940. Acho que era melhor ele usar um barrete.”
Por fim, o coronel, que começou a carta dirigindo-se a mim como “Miss Tallis”, permitiu que viesse ao de cima uma certa impaciência por causa do meu sexo. Por que estávamos a meter-nos naqueles assuntos?
“Madame (sublinhado três vezes) - um Stuka não leva 'uma bomba de mil toneladas'. Tem noção de que nem uma fragata da marinha pesa tanto? Sugiro que investigue melhor o assunto.”
Foi um erro de dactilografia. Queria escrever “libras”. Tomei nota das correcções e escrevi uma carta de agradecimento ao coronel. Paguei as fotocópias de alguns documentos que organizei em pilhas ordenadas para pôr nos meus arquivos. Devolvi os livros que tinha requisitado e deitei fora vários bocados de papel. Tinha retirado da zona todos os vestígios da minha presença. Quando me despedi do arquivista ele disse-me que a Fundação Marshall ia fazer uma importante doação ao museu. Depois de cumprimentar outros bibliotecários e de prometer fazer referência ao apoio do departamento, chamaram um ascensorista para me acompanhar. A menina do bengaleiro chamou amavelmente um táxi, e um dos elementos mais novos da recepção levou-me a mala até ao passeio.
Durante a viagem para norte pensei na carta do coronel, ou melhor, no prazer que me davam aquelas alterações banais. Se estivesse tão interessada nos factos, devia ter escrito um outro tipo de livro. Mas o meu trabalho estava concluído. Não haveria mais manuscritos. Era nisto que ia a pensar quando entrámos no velho túnel sob o Aldwych, mesmo antes de adormecer. Quando o motorista me acordou, estávamos à porta do meu apartamento, em Regent's Park.
Arquivei os papéis que trouxera da biblioteca, fiz uma sanduíche e preparei uma mala com uma muda de roupa. Enquanto andava pelo apartamento, de uma sala familiar para outra, tive consciência de que a minha independência podia estar a chegar ao fim. Sobre a minha secretária estava uma moldura com uma fotografia do meu marido, Thierry, tirada em Marselha, dois anos antes de ele morrer. Um dia acabaria por perguntar quem era aquele homem. Para me acalmar, passei algum tempo a escolher o vestido que ia usar na minha festa de aniversário. Era um processo rejuvenescedor. Estou mais magra do que há um ano. Enquanto passava os dedos pelos cabides esqueci-me do diagnóstico. Decidi-me por um vestido de caxemira cinzento. Depois tudo se seguiu com facilidade: um lenço de cetim branco, preso com um camafeu de Emily, uns sapatos de cerimónia, mas de salto baixo, claro, e um xaile preto. Fechei a mala e fiquei surpreendida por pesar tão pouco quando a levei pelo corredor.
A minha secretária viria no dia seguinte, antes de eu voltar. Deixei-lhe um recado e depois peguei num livro e numa chávena de chá e sentei-me num cadeirão ao pé de uma janela com vista para o parque. Sempre tive jeito para não pensar nas coisas que realmente me incomodam. Mas não conseguia ler. Sentia-me excitada. Uma viagem ao campo, um jantar em minha honra, a renovação dos laços familiares. No entanto, tivera uma daquelas conversas clássicas com um médico. Devia estar deprimida. Seria possível que estivesse a passar pela fase hoje em dia designada por “negação”? Pensar assim não mudava nada. O carro só devia chegar daí a meia hora, e eu sentia-me muito agitada. Levantei-me da cadeira e andei várias vezes de um lado para o outro da sala. Ficava com dores nos joelhos se estivesse sentada tempo de mais. Sentia-me perseguida pela imagem de Lola, pela dureza daquela cara velha pintada, pela ousadia de andar com aqueles saltos perigosamente altos, pela sua vitalidade a entrar para o Rolls Royce. Estaria a competir com ela ao andar de um lado para o outro da carpete? Sempre pensei que a vida social intensa e os cigarros acabariam com ela. Já aos cinquenta pensava isso. No entanto, aos oitenta, continuava a ter uma expressão voraz e sabida. Fora sempre a rapariga mais velha, superior a mim, mais desenvolvida do que eu. Contudo, naquela importante questão final irei à frente dela, enquanto ela viverá até aos cem anos. Não serei capaz de publicar o meu livro enquanto for viva. O Rolls Royce deve ter-me dado volta à cabeça, porque, quando o carro chegou - com um quarto de hora de atraso -, senti-me desiludida. Habitualmente não ligo a essas coisas. Era um táxi coberto de pó, com o assento traseiro com uma capota de nylon com um desenho de zebra. Mas o motorista, que se chamava Michael, era um indiano alegre, que me pegou na mala e fez questão de chegar o banco para a frente, para eu ir mais à vontade. Depois de ter ficado esclarecido que eu não ia tolerar de forma alguma a música que saía dos altifalantes instalados atrás da minha cabeça, fosse qual fosse o volume, e de ele ter recuperado de um ligeiro amuo, até nos demos muito bem e falámos das respectivas famílias. Não conhecia o pai, e a mãe era médica no Middlesex Hospital. Ele tinha tirado o curso de Direito na Universidade de Leicester e ia para a London School of Economics fazer o doutoramento em Direito e Propriedade no terceiro mundo. Quando íamos a sair de Londres pela soturna Westway, apresentou-me a sua versão condensada: não havia direito de propriedade, por isso não havia capital e por isso não havia riqueza.
- Aí está um advogado a falar - disse eu. - A preparar-se para os negócios.
Sorriu educadamente, embora me tivesse achado profundamente estúpida. Hoje em dia é praticamente impossível tirar conclusões sobre as habilitações literárias das pessoas pela forma como falam ou se vestem, ou até pelos seus gostos musicais. É mais seguro tratar qualquer pessoa como um intelectual distinto.
Ao fim de vinte minutos já tínhamos falado o suficiente e quando o carro chegou à auto-estrada e o motor adquiriu um ruído uniforme adormeci outra vez. Quando acordei estávamos numa estrada na província e sentia na testa um aperto doloroso. Tirei três aspirinas da mala de mão e engoli-as com repugnância. Que parte da minha mente ou da minha memória teria eu perdido na sequência de um minúsculo acidente vascular enquanto dormia? Jamais saberia. Foi nessa altura, no assento traseiro daquele carro minúsculo, que senti pela primeira vez algo parecido com desespero. Pânico era uma palavra demasiado forte. Em parte, era claustrofobia, uma clausura desesperada num processo de decadência. Bati no ombro de Michael e pedi-lhe que ligasse a música. Pensou que estava a ser simpática com ele por estarmos quase a chegar e recusou. Mas eu insisti e então voltaram os batimentos ritmados e metálicos e, sobre eles, um canto de barítono em patuá das Caraíbas, com uma letra de canção infantil ou uma lengalenga para saltar à corda num recreio. A música ajudou-me, divertiu-me. Parecia muito infantil, apesar de suspeitar que estavam a ser expressos sentimentos terríveis. Não pedi a tradução.
A música continuava a tocar quando entrámos na rampa do Hotel Tilney. Já tinham passado vinte e cinco anos desde a última vez que ali estivera, por ocasião do funeral de Emily. Primeiro dei pela falta das árvores do parque, dos olmos gigantescos, provavelmente atacados por alguma doença, e dos carvalhos, que tinham sido cortados para fazer um campo de golfe. Abrandámos para deixar passar alguns jogadores de golfe com os respectivos caddies. Não conseguia deixar de os ver como invasores de uma propriedade privada. O bosque que rodeava a casa de madeira de Grace Turner ainda lá estava e, depois de a estrada deixar para trás uma última fileira de faias, surgiu finalmente a casa principal. Não valia a pena estar com nostalgias - era feia. Contudo, vista de longe, tinha um ar forte e desprotegido. A hera que costumava atenuar o efeito da fachada de tijolos fora arrancada, talvez para preservar o desenho da parede. Aproximámo-nos rapidamente da primeira ponte, e pude ver que o lago já lá não estava. A ponte passava por cima de um relvado perfeito, como se vê às vezes nos antigos fossos dos castelos. Não era uma imagem desagradável, para quem não soubesse o que outrora lá existira - a junca, os patos e a carpa gigante que dois vagabundos tinham assado ao pé do templo da ilha. Que também desaparecera. No seu lugar havia agora um banco de madeira e um caixote do lixo. A ilha, que obviamente já não era uma ilha, era um monte coberto por um suave relvado, no qual cresciam aqui e ali rododendros e arbustos. Havia em toda a volta um caminho de gravilha, com mais bancos e candeeiros de jardim esféricos. Não tive tempo para calcular qual o sítio onde estivera sentada a reconfortar a jovem Lady Lola Marshall, pois já estávamos a atravessar a segunda ponte e a voltar lentamente para o parque de estacionamento alcatroado em toda a extensão da casa.
Michael levou-me a mala para a recepção. Que estranho terem-se dado ao trabalho de pôr uma carpete por cima dos azulejos brancos e pretos. A acústica daquele local sempre foi um problema, apesar de eu nunca ter ligado muito a isso. Das colunas escondidas saíam as Estações de Vivaldi aos soluços. Havia uma bonita mesa de pau-rosa com um monitor de computador e uma jarra de flores e, de cada um dos lados, uma armadura. Sobre os painéis de madeira, duas alabardas cruzadas e um brasão. Por cima, o retrato que costumava estar na casa de jantar e que o meu avô importara para dar uma certa linhagem à família. Dei uma gorjeta ao Michael e desejei-lhe sinceramente boa sorte para o direito de propriedade e a pobreza. Estava a tentar desfazer a minha observação tola sobre os advogados. Ele deu-me os parabéns e um aperto de mão - tão leve, tão pouco assertivo - e foi-se embora. Uma jovem de ar soturno sentada à secretária deu-me a minha chave e disse-me que a antiga biblioteca fora reservada para a nossa festa. Os poucos convidados que já tinham chegado tinham ido dar um passeio. Estava combinado encontrarmo-nos às seis da tarde para uma bebida. Um empregado levaria a minha mala para cima. Se quisesse, podia utilizar o elevador.
Não havia ninguém a receber-me, o que era um alívio. Preferia enfrentar sozinha tantas mudanças antes de ser obrigada a tornar-me a convidada de honra. Subi no elevador para o segundo andar, passei por duas portas corta-incêndios e percorri o longo corredor, cujo soalho polido rangia de forma familiar. Era estranho ver os quartos com números nas portas e fechados à chave. Claro que o número do meu quarto - sete - não significava nada de especial, mas acho que já tinha adivinhado onde ia dormir. Pelo menos não fiquei surpreendida quando parei à porta do quarto. Não era o meu antigo quarto, mas o da tia Vénus, que sempre fora considerado o que tinha melhor vista, para o lago, a estrada, os bosques e os montes lá ao fundo.
Devia ter sido Charles, neto de Pierrot e organizador da festa, que o tinha reservado para mim.
Foi uma agradável surpresa entrar naquele quarto. Tinha sido ligado aos quartos adjacentes para fazer uma enorme suite. Sobre uma mesa de vidro baixa estava um ramo enorme de flores da estufa. A cama alta que a tia Vénus ocupara tanto tempo sem uma queixa tinha desaparecido, bem como a arca com a tampa esculpida e o sofá de seda verde. Pertenciam agora ao filho mais velho do segundo casamento de Leon e estavam algures num castelo na Escócia. Mas as mobílias novas eram bonitas, e gostei do meu quarto. A minha mala chegou, pedi um chá e pendurei o vestido. Dei uma vista de olhos à sala de estar, que tinha uma mesa com um candeeiro forte, e fiquei impressionada com o tamanho da casa de banho, com o seu pot-pourri e a pilha de toalhas aquecidas. Era um alívio não olhar para tudo aquilo sem gosto - algo que facilmente se torna um hábito com a idade. Fui à janela admirar o sol a varrer o campo de golfe e a incendiar as árvores despidas dos montes longínquos. Não conseguia aceitar a ausência do lago, mas talvez pudesse ser reposto um dia, e o edifício estava agora indubitavelmente imbuído de mais felicidade como hotel do que no tempo em que ali vivera.
Charles telefonou uma hora depois, quando eu estava a começar a pensar em vestir-me. Propôs-se vir buscar-me à seis e um quarto, quando já estivesse toda a gente junta, para me levar para baixo e eu fazer uma entrada em grande. E foi assim que entrei na enorme sala em L, pelo braço dele, com o meu vestido de caxemira. Fui recebida pelos aplausos e depois pelas taças erguidas por cinquenta membros da família. Quando entrei, tive a impressão de não conhecer ninguém. Nem um único rosto familiar! Talvez fosse um aperitivo da incompreensão que me tinham prometido. Depois, pouco a pouco, fui reconhecendo as pessoas. É preciso sempre dar desconto aos anos e à rapidez com que os bebés de colo se transformam em rapazes irrequietos de dez anos. O meu irmão não tinha nada que enganar. Estava curvado para a frente e para o lado numa cadeira de rodas, com um guardanapo ao pescoço para aparar as gotas de champanhe que alguém tentava levar-lhe aos lábios. Quando me inclinei para lhe dar um beijo, conseguiu esboçar um sorriso com a metade da cara que ainda conseguia controlar. Também não fiz confusão com Pierrot, muito enrugado e com uma careca reluzente onde me apetecia tocar com a mão, mas ainda cheio de fulgor e muito pai de família. Está aceite que nunca se fala na irmã dele.
Fui dando a volta à sala, com Charles a meu lado, a dizer-me os nomes. Como era delicioso estar no centro de uma reunião tão bem-intencionada. Reencontrei-me com os filhos, netos e bisnetos de Jackson, que morrera há quinze anos. Na verdade, os gémeos, só por eles, eram responsáveis por muitas pessoas ali presentes. E Leon também não se portara nada mal, com os seus quatro casamentos, em que cumprira devidamente o seu papel de pai. As idades dos presentes iam dos três meses aos oitenta e nove anos. E que leque de vozes, entre graves e agudas, quando os criados vieram servir mais champanhe e limonada. Os filhos já idosos de alguns primos distantes cumprimentaram-me como amigos que há muito não se viam. Toda a gente queria dizer-me qualquer coisa de agradável sobre os meus livros. Vários adolescentes encantadores disseram-me que estavam a estudar as minhas obras na escola. Prometi ler o manuscrito do filho de alguém que não estava presente. Meteram-me recados e cartões nas mãos. Numa mesa a um canto da sala havia uma pilha de presentes que teria de abrir, segundo me disseram várias crianças, antes e não depois de irem para a cama. Fiz promessas, dei apertos de mão, beijei faces e lábios, admirei e fiz cócegas a bebés e, quando comecei a aperceber-me de que estava com uma enorme vontade de me sentar, vi que estavam a dispor as cadeiras todas voltadas para o mesmo lado. Nessa altura, Charles bateu as mãos e, gritando sobre o barulho, que pouco abrandou, anunciou que antes do jantar ia haver um pequeno espectáculo em minha honra e pediu que nos sentássemos.
Levaram-me para um cadeirão na primeira fila. Ao meu lado estava Pierrot, que conversava com um primo sentado à sua esquerda. Um silêncio quase total abateu-se sobre a sala. Vindos de um dos cantos, chegaram até mim os sussurros agitados das crianças, que achei mais sensato ignorar. Enquanto esperava, enquanto tinha alguns segundos para mim própria, olhei à volta da sala e só nessa altura percebi que não só os livros, mas também as prateleiras tinham sido tiradas da biblioteca. Era por isso que a tinha achado muito maior do que a ideia que tinha dela. A única literatura ali presente eram as revistas ao pé da lareira. Pediram silêncio, alguém arrastou uma cadeira e apareceu à nossa frente um rapaz com uma capa preta sobre os ombros. Era pálido, sardento e ruivo - não havia dúvida de que era um Quincey. Devia ter uns nove ou dez anos. Tinha um corpo frágil, que fazia que a cabeça parecesse grande, o que lhe dava um ar etéreo. Mas olhou para a sala com um ar confiante, à espera que o público sossegasse. Por fim ergueu o seu queixo de diabrete, encheu os pulmões e falou com uma voz clara e límpida. Estava à espera de um truque de magia, mas o que ouvi pareceu-me algo de sobrenatural.
Esta é a história de Arabella,
Que fugiu com um desconhecido.
Foi um desgosto para os pais verem a sua filha tão bela
Deixar a sua casa em Eastbourne
Sem sequer a sua permissão ter pedido.
Adoeceu e caiu na indigência
Até ficar sem o último tostão.
De repente aparecia à minha frente aquela rapariguinha presunçosa, atarefada, pedante, que afinal não estava morta, porque quando as pessoas riram ao ouvir a palavra “indigência”, o meu coração frágil - que vaidade tão ridícula! - deu um pequeno salto. O rapazinho recitou com uma clareza empolgante e um toque desagradável daquilo a que na minha geração teríamos considerado cockney, embora hoje em dia não faça a mínima ideia do que significa aquele “t” glótico. Sabia que tinha sido eu que escrevera aquelas palavras, mas já quase não me lembrava delas, e era difícil concentrar-me, com tantas interrogações, tantas emoções a assoberbarem-me. Onde teriam encontrado a cópia? Aquela confiança inabalável seria um sinal de um tempo diferente? Olhei para o meu vizinho do lado, Pierrot. Tinha o lenço na mão e limpava os olhos, e acho que não era só orgulho de bisavô. Desconfiei que devia ter sido ideia dele. O prólogo elevou-se ao seu clímax sensato:
Para a menina chegou finalmente o dia de desposar o seu maravilhoso príncipe. Mas cuidai,
Porque Arabella aprendeu tarde de mais Que antes de amar é preciso cogitar!
Aplaudimos entusiasticamente. Houve até alguns vulgares assobios. Aquele dicionário, aquele Oxford Concise. Onde estaria ele agora? No Noroeste da Escócia? Queria voltar a tê-lo. O rapaz fez uma vénia e recuou alguns centímetros, juntando-se a quatro outras crianças, que entretanto se tinham aproximado, sem que eu desse por isso, daquilo que poderiam considerar-se as alas.
E assim começaram As Provações de Arabella, com a despedida dos pais tristes e ansiosos. Reconheci imediatamente a heroína, a bisneta de Leon, Chloe. Que menina tão encantadora, tão solene, com uma voz grave e o sangue espanhol da mãe. Lembro-me de ter estado na festa do seu primeiro aniversário - parecia ter sido apenas há alguns meses. Vi-a cair de forma convincente na pobreza e no desespero depois de ser abandonada pelo malvado conde - que era o narrador do prólogo, com a capa preta. Demorou menos de dez minutos. A mim, com o sentido distorcido do tempo de uma criança, sempre me pareceu do tamanho de uma peça de Shakespeare. Tinha esquecido completamente que depois do casamento Arabella e o médico príncipe davam os braços e, falando em uníssono, avançavam para dirigir ao público os últimos versos.
E eis que começa o amor
no fim de tantas provações.
Por isso, adeus, queridos amigos,
Vamos partir em direcção ao pôr do Sol.
Não era das minhas melhores obras, pensei. Mas toda a gente que estava na sala, à excepção de Leon, de Pierrot e de mim própria, se pôs de pé a aplaudir. Que bem ensaiadas estavam aquelas crianças, até mesmo quando voltaram para agradecer. De mãos dadas, muito direitas, seguindo Chloe, deram dois passos para trás, tornaram a avançar e fizeram outra vénia. No meio do entusiasmo, ninguém reparou que o pobre Pierrot estava extremamente comovido, com o rosto afundado nas mãos. Estaria a reviver aquele terrível tempo de solidão depois do divórcio dos pais? Os gémeos tinham querido tanto fazer aquela peça, ali na biblioteca, e ei-la finalmente levada à cena, passados sessenta e quatro anos, depois de o seu irmão ter morrido há muito.
Ajudaram-me a sair da minha confortável cadeira e fiz um pequeno discurso de agradecimento. Competindo com um bebé que não parava de chorar ao fundo da sala, tentei evocar aquele Verão quente de 1935, em que os primos tinham vindo do Norte. Dirigindo-me aos actores, disse-lhes que a nossa produção teria sido muito inferior à deles. Pierrot dizia que sim com a cabeça, com muita convicção. Expliquei-lhes que havia sido inteiramente por minha culpa que os ensaios tinham ido por água abaixo, porque a meio do processo decidira tornar-me romancista. Houve algumas gargalhadas indulgentes, mais aplausos, e depois Charles anunciou que o jantar ia ser servido. E assim se passou aquela noite agradável - uma refeição barulhenta que até acompanhei com um pouco de vinho, os presentes, a hora de os mais novos irem para a cama, enquanto os seus irmãos mais velhos iam ver televisão. Depois discursos à hora do café e muitos risos bem dispostos e por volta das dez horas comecei a pensar no magnífico quarto que me esperava lá em cima, não por estar cansada, mas por estar cansada de companhia e de ser alvo de tantas atenções, se bem que muito amáveis. Passei mais meia hora em despedidas, e depois Charles e a mulher, Annie, acompanharam-me ao quarto.
Agora são cinco da manhã e continuo sentada à escrivaninha, a pensar em como estes dois dias foram estranhos. É verdade que os velhos não precisam de dormir - pelo menos à noite. Ainda tenho tanta coisa em que pensar e, dentro de pouco tempo, talvez daqui a um ano, terei muito menos capacidade para o fazer. Tenho estado a pensar no meu último romance, o que devia ter sido o meu primeiro. A primeira versão datada de Janeiro de 1940 e a mais recente de Março de 1999 e entre essas duas mais de doze outras versões. A segunda de Junho de 1947, a terceira... que interessa isso? O meu trabalho de cinquenta e nove anos está completo. Houve o nosso crime, o de Lola, o de Marshall, o meu - e a partir da segunda versão propus-me descrevê-lo. Considerei que tinha a obrigação de não esconder nada - os nomes, os lugares, as circunstâncias exactas - e escrevi tudo como se fosse um registo histórico. Mas, dado o aspecto legal do problema, houve vários editores que me disseram, ao longo dos anos, que as minhas memórias forenses nunca poderiam ser publicadas enquanto os meus cúmplices estivessem vivos. Só podemos acusar-nos a nós próprios e aos mortos. Os Marshall têm tido uma actividade intensa nos tribunais, desde finais dos anos quarenta, a defender o seu bom nome com uma ferocidade bastante dispendiosa. Poderiam facilmente arruinar uma editora só com os fundos da sua conta corrente. Era caso para pensar que tinham alguma coisa a esconder. Pensar, sim, mas não escrever. As sugestões óbvias foram feitas - falta deslocar, alterar, fingir. Fazer cair o véu da imaginação. Para que servem os romancistas? Para irem só até onde for necessário e porem limites ao que está fora do seu alcance, os tentáculos da lei. Mas ninguém sabe quais são exactamente estas distâncias até haver um julgamento. Para se estar em segurança, seria preciso ser-se brando e obscuro. Sei que só posso publicar depois de eles morrerem. Desde hoje de manhã fui obrigada a aceitar que isso pode acontecer só depois de eu morrer. Não interessa. Não basta que morra um deles. Mesmo com a cara escanzelada de Lorde Marshall na necrologia, a minha prima do Norte nunca admitiria uma acusação de conspiração criminosa.
Houve um crime. Mas também houve amantes. Os amantes, e o final feliz da sua história, estiveram na minha mente toda a noite. Até partirmos ao pôr do Sol. Uma mudança infeliz. Parece-me que afinal não viajei assim tanto desde que escrevi a minha pequena peça. Ou melhor, fiz uma digressão enorme e voltei ao meu ponto de partida. Só nesta última versão é que os meus amantes têm um final feliz, parados ao lado um do outro num passeio no Sul de Londres, enquanto eu me afasto. Todas as versões anteriores eram impiedosas. Mas agora já não sei de que serviria tentar, por exemplo, convencer os meus leitores, directa ou indirectamente, de que Robbie Turner morrera de septicemia em Bray Dunes a 1 de Junho de 1940 ou de que Cecilia fora morta em Setembro desse mesmo ano no bombardeamento que destruiu a estação de metro de Balham. De que nunca os vi nesse ano. De que o meu passeio por Londres acabou na igreja de Clapham Common e de que uma Briony cobarde regressou a coxear ao hospital, sem conseguir enfrentar a irmã, recentemente enlutada. De que as cartas que os amantes escreveram se encontram nos arquivos do War Museum. Como poderia isso ser um final? Que sentido, esperança ou satisfação poderia um leitor tirar de um relato assim? Quem estaria disposto a acreditar que nunca mais se tinham encontrado, que nunca tinham materializado o seu amor? Quem estaria disposto a acreditar nisso, a não ser por um realismo insuportável? Não podia fazer-lhes isso. Estou demasiado velha, demasiado assustada, demasiado apaixonada pela vida que me resta. Tenho pela frente uma maré de esquecimento e depois a escuridão total. Já não tenho a coragem do meu pessimismo. Quando morrer, e os Marshall morrerem, e finalmente o romance for publicado, só existiremos como invenções minhas. Briony será uma fantasia, tal como os amantes que partilhavam um quarto em Balham e irritavam a senhoria. Ninguém se importará com saber quais os acontecimentos e os indivíduos que foram distorcidos para fazer um romance. Sei que há um determinado tipo de leitor que se sentirá sempre impelido a perguntar o que aconteceu realmente. A resposta é simples: os amantes sobreviveram e floresceram. Enquanto houver uma cópia, um manuscrito solitário da minha última versão, a minha irmã, tão livre e afortunada, e o seu príncipe médico sobreviverão para se amarem.
Ao longo destes cinquenta e nove anos, o problema tem sido este: como pode uma escritora expiar os seus crimes se, com o poder absoluto de decidir o final, é em certa medida Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade, nenhum ser superior a quem ela possa apelar, com quem possa reconciliar-se ou que possa perdoar-lhe. Não há nada para além dela. Foi ela que marcou os limites e os termos, com a sua imaginação. Não há expiação para Deus, nem para os escritores, mesmo que sejam ateus. É uma tarefa impossível, e a questão foi precisamente essa. O que conta é a tentativa.
Tenho estado à janela, a sentir ondas de cansaço a varrerem a força que resta no meu corpo. O chão parece oscilar por baixo dos meus pés. Tenho estado a ver a primeira luz do dia revelar o parque e as pontes sobre o lago desaparecido. E a estreita rampa pela qual levaram Robbie para o vazio. Agrada-me pensar que não é um acto de fraqueza, nem uma fuga, mas uma última prova de bondade, uma afirmação contra o esquecimento e o desespero, deixar que os meus amantes vivam e uni-los no fim. Dei-lhes a felicidade, mas não fui prestável ao ponto de permitir que me perdoassem. Pelo menos, por enquanto. Se conseguisse pô-los na minha festa de anos... Robbie e Cecilia, ainda vivos, ainda apaixonados, lado a lado na biblioteca, a sorrirem com As Provações de Arabella. Não é possível.
Mas agora tenho de dormir.

 

 

                                                                  Ian McEwan

 

 

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