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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FATOR SHEE AKHAN / Marcia Ribeiro Malucelli
FATOR SHEE AKHAN / Marcia Ribeiro Malucelli

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Nabta Playa; antiga baixa Núbia, atual Egito.
22º 32’ 0” N e 30º 42’ 0” E.
01/11; 11 anos atrás.
Parecia faltar muito para que a parede leste da pirâmide de onze metros de altura caísse. A Poliu, Polícia Intercontinental Unida, a mais secreta corporação de inteligência, estava ansiosa pela sua derrubada quando mais pó se levantou sobre todo o sítio arqueológico. O magro e esguio Dr. Afrânio Strauss, arqueólogo francês, e sua esposa, a arqueóloga egípcia Samira Foad Strauss, dividiam o trabalho com a arqueóloga e assirióloga inglesa, Clarice Mettierer. Estavam os três, há cinco meses em Nabta Playa deslocando toneladas de areia e fincando as estacas da cobertura que protegia o sítio.
Nabta Playa era uma área conhecida como deserto ocidental do Egito, onde culturas anteriores ao período pré-dinástico surgiram há cerca de 10.000 anos na chamada Baixa Núbia, e entrou para a história como um observatório astronômico comparado a Stonehenge. Lá, foi erguido um centro cerimonial com alinhamentos megalíticos, blocos de pedras, ao ponto de elevação de Sirius, a estrela mais brilhante do céu noturno.
Os três arqueólogos, Ph.D em escritas hierática e cuneiforme, foram contratados pela Poliu para acompanhar uma escavação secreta; coordenadas dadas através de espiões psíquicos usados para seguir no astral, uma entidade de homens sem nome contendo justamente aquilo, segredos milenares que jamais diriam sobre aquele lugar, não sem seres levados à morte.
E a Poliu estava ali escavando um segredo, em segredo.
Sob o árduo Sol de 48º C, com crianças brincando ao redor, enfim Dr. Afrânio Strauss conseguiu adentrar um braço no espaço aberto, porém apertado, e um ar fétido invadiu suas narinas.
— Consegue ver algo Afrânio yá habibi? — perguntou Samira arrumando o turbante colorido, com franjas adornadas de pequenos cristais negros.
Afrânio acionou a lanterna com mãos quase esqueléticas e tentou enxergar algo.
— Imagens e mais imagens daqueles egípcios de crânios alongados, Samira ma chère — foi o que respondeu.
— O que mais vê? Vamos... Deve haver algo de novo aí.
— Acalme-se... Sabíamos que estávamos lidando com uma nova dinastia, uma que ninguém ouviu falar ainda.
— Sem enrolação Afrânio yá habibi. Toda a cultura Meroé, todo o reino Akush é desconhecido.
— Mas por enquanto só essas imagens, Samira ma chère — Afrânio assoprou a areia do robô e o colocou no espaço aberto.
O robô entrou e caminhou um tanto para então lançar raios laser dentro da pirâmide. Afrânio então ligou o notebook, esperando as imagens enviadas pelo robô, mas as imagens estavam comprometidas.
— Será o software?
— Se for, não vou saber mexer nisso, Samira ma chère.
Samira ficou desalenta.
— Mas essas tais imagens de crânios já era esperado encontrarmos, Afrânio yá habibi. Os espiões psíquicos de Mona já haviam recebido informações daqueles homens sem...
— Incrível como os egípcios deformavam as cabeças das crianças, não? — a voz da inglesa Clarice Mettierer interrompeu Samira; ela voltou a prender os cabelos loiros num coque, usando o lápis que até pouco tempo atrás, havia desenhado um pouco das imagens dos egípcios de crânios alongados, encontrados na parte externa da pirâmide.
— Os egípcios assim como tribos da América Central, usavam artefatos de madeira na cabeça das crianças para deformar o crânio, e assim ficarem parecidas com os Anunnakis.
— “Anunnakis”, Samira? — Clarice, a amiga de longa data a olhou. — Mas os Anunnakis não são os deuses alienígenas que os sumérios diziam ter criado a raça adâmica, ou como a bíblia diz a raça de Adão?
— Como assirióloga deve saber mais que eu, não? — sorriu marota.
Clarice parecia não ter gostado de ouvir aquilo. Se não fosse a amizade pelas irmãs Foad, ela não teria largado sua sala empoeirada no Museu Britânico, onde era responsável pela Pedra de Roseta.
Tudo, menos se embrenhar naquele trecho de terra quente e aparentemente sem muitos achados arqueológicos.
— Samira ma chère? — Afrânio entregou mais uma sacola de areia à esposa Samira e o show cronometrado de sacolas contendo areia e alguns pedaços da parede recomeçou o vai-e-vem.
Afrânio secou o suor no lenço que prontamente ela lhe ofereceu e ambos sorriram um para outro como um casal de jovens namorados.
— Para que alienígenas precisariam criar o homem? — Clarice quis continuar a conversa. — E não me venha com essa de ser uma assirióloga Samira — os três riram.
— Segundo consta nas tabulas sumérias, que meu Afrânio yá habibi estuda, assim como Zecharia Sitchin traduziu — os dois se olharam apaixonados outra vez como no primeiro dia que se conheceram. —, há 250 mil anos, os Anunnakis, ‘aqueles que vieram do céu à Terra’, criaram os homens para trabalharem para eles, já que os operários alienígenas nas minas terráqueas de ouro começaram a se rebelar contra as condições de trabalho, e os Anunnakis precisaram criar um ser que pudesse trabalhar duro para eles.
— Yes! Sure! Mas minhas pesquisas nunca mostraram tais alienígenas minha amiga Samira. Nem sei por que a Poliu insiste em me levar ao redor do mundo toda vez que essas coisas surgem.
Afrânio e Samira só se olharam dessa vez, porque conheciam Clarice.
— Constam nas tabulas que os Anunnakis decidiram criar, um ser que pudesse substituir os humanos primitivos, os homens da caverna, estes sim, fruto da evolução que Darwin afirma — foi a vez do empoeirado Afrânio falar.
— Isso explicaria o elo perdido — emendou a apaixonada Samira.
— Explicaria... — e Afrânio prosseguiu com as sacolas. — Mas se lembre de que o experimento de engenharia genética teve de ser refeito.
— Sim yá habibi. Enki, o cientista genético Anunnaki, criou híbridos usando material do Homo erectus, de animais e dos próprios Anunnakis e o resultado foi o Homo sapiens, que ainda não se reproduzia.
— “Não se reproduzia”? Queriam fêmeas híbridas férteis, doutor?
— Sim doutora!
— Mas então por que deuses que conquistaram o espaço profundo precisariam de ensaio e erro para criar geneticamente humanos? Isso é contradizer o Deus cristão, não?
Samira olhou Afrânio que olhou Samira percebendo a descrença.
— Não sei, mas os Anunnakis usavam seus servos para escavar ouro.
— Yes! Sure! O ouro! Lá vamos nós de novo Dr. Afrânio, porque se sabiam construir pirâmides, por que alienígenas precisavam de escravos?
— Quanta descrença doutora.
— Descrença não. Mas deveriam ter um mecanismo melhor do que criar servos para retirar manualmente o ouro da Terra.
— Sitchin também não descobriu Dra. Clarice — Afrânio limpou o suor excessivo. — Mas nos contam que quando os sapiens tornaram-se muito numerosos, os Anunnakis propuseram exterminar a população colonizada, toda a humanidade, provocando uma inundação colossal.
— Falamos do dilúvio bíblico?
— Talvez o mesmo que inundou Atlântida e obrigou-os a fugir para o Egito e Núbia, e por aqui se firmarem — foi a vez de Samira falar. — Há tantos dilúvios em tantas mitologias pelo mundo, que fica difícil não acreditar que um deles aconteceu.
— Estamos cheirando esse pó seco há mais tempo que imaginamos não Samira? — a Dra. Clarice caiu em risada fazendo sua pele tremendamente branca se avermelhar, fazendo os trabalhadores a acharem engraçada, parecendo uma fruta.
— Não ria Clarice amiga.
— Não rir? Agora falamos de egípcios e núbios atlantes?
— Clarice amiga, Pitágoras de Samos veio beber dessa fonte de sabedoria, cuja continuidade era feita por meio de entidades e escolas; escolas iniciáticas de mistérios como a Escola do Papiro, que acreditava que alienígenas chegaram ao Planeta Terra e ensinaram os Atlantes, que depois fugiram para o Egito e Núbia.
— Yes! Sure! Escolas alienígenas!
— Posso entender a descrença da Dra. Clarice, Samira ma chère. Sabe o que é pensar que há 10.500 a.C., uma civilização já floresceria entre o Egito e a Núbia?
— Mas Afrânio yá habibi...
— E que sabiam matemática, astronomia, medicina, arquitetura e engenharia?
— Isso! Yes! E esquecemos tudo?
— Não sei se esquecemos, Clarice amiga ou os sacerdotes iniciados nessas ciências esotéricas apagaram de nossas mentes, guardando para si, os segredos das pirâmides, da mumificação, da vida após a morte, e dons que os hindus chamam de siddhi, e que dizem, possuímos.
— Que tipo de dons Samira?
— Paranormais! — a voz de Samira calou ambos. Mesmo porque cada um pensou algo diferente. — Então, os paranormais siddhas, se tornaram homens híbridos e super-homens com dons paranormais, capazes de fazer tudo, até entrar noutros corpos e se tornarem eles — completou a bela morena de cabelos negro-azulado arrumando nervosa, o turbante colorido de franjas, adornados de pequenos cristais negros. —, e que também construíram as pirâmides ao redor do mundo.
Clarice olhou-a assustada.
— Por isso as pirâmides egípcias já estariam de pé antes de 10.500 a.C., Samira ma chère?
— Sim Afrânio yá habibi! Isso confirmaria que os posicionamentos que as pirâmides têm ao longo da Terra, já estariam de acordo com a posição das estrelas.
Mas Clarice parecia continuar descrente. Levantou-se sendo ajudada pela mão forte de um dos quatro trabalhadores locais, para alcançar a mesa com comida e água potável, quando mais pó invadiu o pequeno espaço de trabalho e as duas mulheres tossiram.
— Desculpe-me ma chère... Doutora... O robô atingiu algo e há um pó ocre saindo da pirâmide.
— Tudo bem Afrânio yá habibi — afastou o pó com as mãos.
— Por que não aceitou trazer o novo material de magnetometria da Computer Co., Dr. Afrânio?
— O Sr. Fernando Queise até quis Dra. Clarice, mas o Sr. Oscar Roldman foi contra.
— Por quê?
— Não sei o porquê Dra. Clarice, mas eu não quis criar problemas para Samira ma chère — e ambos sorriram um para o outro, outra vez. — Provável por causa do garoto que começa a desconfiar de algo.
— Fala do pequeno Sean? O loirinho?
Dessa vez Samira deu um olhar que mais parecia um ‘Cale-se!’, e Afrânio calou-se tentando mudar a direção do assunto. Porque falar de Sean Queise era proibido na casa das Foad. Afrânio nunca soube o porquê, nem o porquê de mais um ‘por que’ não ser respondido. Contudo, sabia que o dom mediúnico que as irmãs Foad carregavam, era usado pela Poliu, por Mr. Trevellis da Poliu. E Mr. Trevellis queria algo de Mona e Sean, que Samira não concordava.
Ambas brigaram e a Poliu as afastou.
Afrânio ficou mesmo achando que foi muita sorte, ele ter conseguido levar sua nova esposa Samira para aquele sítio arqueológico. Principalmente, porque a Poliu usava um robô desenvolvido por Fernando Queise e a Computer Co., uma grande empresa de computadores, que começava a se envolver com a corporação de inteligência, para investigar não só uma pirâmide ou uma tumba, mas uma dinastia inteira, sob o comando de uma faraó mulher e a história fantástica desse povo ‘vindo das estrelas’. Afrânio então parou de pensar naquilo, e inseriu ordens no robô e o recolocou dentro do buraco aberto na parede da pirâmide, secando o suor da testa com a manga da camisa empoeirada.
— Água Afrânio yá habibi?
— Sim Samira ma chère.
— Uma chuva seria providencial não? — os três riram. — Yes! Sure! Chuvas torrenciais no deserto — a descontração agora foi contagiante.
— Também por que não, Clarice amiga? Já que as pirâmides foram erguidas em meio a campos verdes e vegetação tropical. E segundo a Escola de mistério Papiro, havia entidades que se originaram justamente no Antigo Egito, que de acordo com a anatomia oculta do ser humano e seus poderes paranormais, usava uma energia taquiônica ou energia do pensamento, que podia tudo, até construir pirâmides.
— Yes! Sure! Fala dessa entidade de homens sem nome a que viemos investigar?
— Shhhiu! — fizeram os dois. — Não podemos falar sobre isso Clarice. Lembra? Assinamos um acordo — e um silêncio mais pelo cansaço que por outra coisa caiu sobre eles.
As sacolas ainda iam e vinham, e o trabalho árduo não parecia querer acabar, quando o robô disparou e se jogou para fora do buraco parecendo ter fugido de algo. Os três arqueólogos e os trabalhadores ali se assustaram, e o robô então se encheu de detritos parando de funcionar.
— Oh! Não! — olhou Afrânio desalentado para o robô paralisado. — Acho que teremos de ficar mais uma semana aqui...
— Mais uma semana? — Clarice olhou o robô desligado e o pequeno buraco na parede. — Fale ‘Abracadabra!’ e acabe logo com isso, Dr. Afrânio — ela viu Samira olhar Afrânio. — Abracadabra é um encanto.
Samira encarou a amiga.
— Achei que era uma palavra cabalística, que se escrevia em 11 linhas, com uma letra a menos em cada uma delas.
— Yes! Sure! — Clarice se inclinou com o lápis que retirou do coque. — Eu sei que há todo um clichê nisso, mas diz-se que Abracadabra representou tudo aquilo que foi divino para os assírios; como o uso de um poderoso antídoto contra dores de dente, hemorragia e gota. A palavra era escrita em sequencia, e colocada em torno do pescoço para gerar a magia de se estar criando algo material do nada, como o mágico que tira um coelho da cartola — Clarice desenhou no chão de areia.
A B R A C A D A B R A
A B R A C A D A B R
A B R A C A D A B
A B R A C A D A
A B R A C A D
A B R A C A
A B R A C
A B R A
A B R
A B
A
E toda a parede de pedra da pirâmide moveu-se sem o auxílio de ninguém para dentro do chão, como se um alçapão subterrâneo tivesse sido aberto; a magia criada do nada.
Os três se afastaram no impacto, no que a parede de pedra mostrou um espaço circular, clareado por uma estranha iluminação em meio a um pó ocre.
— Anote a hora, Samira ma chère! — falou Afrânio com emoção.
— Onze horas e onze minutos, Afrânio yá habibi.
Os dois se olharam e o Dr. Afrânio correu a mandá-la colocar para fora os trabalhadores; agito e gritaria se fez.
— O que... — foi Clarice a primeira a perguntar ao ver a movimentação. — O que foi? O que foi?
— Quieta Clarice!
— Yes... Sure... — Clarice aquietou-se.
Afrânio invadiu a antecâmara que se mostrava aos três. Era iluminada e circular e parecia ter quase toda a extensão da pirâmide, que por fora tinha 22 varas egípcias ou 22 x 0,525 metros de altura igual a 11,55 metros; também em suas poligonais.
“Onze?” Afrânio não gostou daquilo.
— O que é aqui Afrânio yá habibi?
— Não sei Samira ma chère. Estou tão confuso quanto — girava o Dr. Afrânio Strauss em torno dele mesmo.
Clarice se ergueu nos pés e alcançou com seus olhos azuis, um líquido verde e gosmento que enchia as lamparinas de bronze, em número de onze; ela contou. E delas saíam a luz que iluminava o local.
— O que tem nas lamparinas, doutor?
— Óleo... Acho...
— Yes! Sure! Quem os pôs ali, doutor?
— Não sei Dra. Clarice. Não sei...
Os três arqueólogos haviam entrado num espaço vazio, onde a areia parecia estar umedecida. Nas paredes, muitas imagens de um Egito antigo; com homens negros com longos crânios alongados e ovalados, e mulheres negras usando máscara mortuária egípcia, em tons de dourado e verde, ajoelhadas, adorando uma leoa de pelagem vermelho-amarelada feito fogo, usando uma máscara de pássaro íbis, e entregando oferendas que mais se pareciam com areia esverdeada, talvez a que pisavam.
— Por que essa gente negra e dourada está oferecendo a areia àquela esquisita figura de leoa?
— Não sei Dra. Clarice. Talvez agradecendo a terra, alguma colheita bem farta.
— Talvez oferecendo a “Terra”, Afrânio yá habibi.
Afrânio teve medo do que pensou.
— Mas afinal o que significa a figura da leoa de pelagem vermelho-amarelada? — apontou a branquinha Clarice para um dos desenhos na parede. — Sekhmet? Lioness goddess egypt? — e Clarice voltou a olhá-la. — Porque Sekhmet era a deusa da guerra e da vingança para os egípcios antigos, relacionada à Deusa nórdica Syn, guardadora dos portões dimensionais.
— Portões dimensionais Dra. Clarice? — perguntou Afrânio. — Fala de portões de teletransporte?
— Sei lá se falo Doutor.
— Também não sei se é bem a deusa Sekhmet... — Samira inclinou a cabeça como quem tenta decifrar o que vê. —, mas se for, parece uma leoa com máscara de Threskiornithinae.
— Threski o que?
— Threskiornithinae é uma subfamília de aves ciconiformes conhecida como Íbis-sagrada, e era uma ave criada nos templos e enterrada mumificada junto aos faraós.
— Sim Samira ma chère. Objeto de veneração religiosa, a íbis era associada ao deus Thoth, deus do tempo e da sabedoria, representado como tendo a cabeça de um íbis. E isso é uma leoa de pelagem vermelho-amarelada, usando máscara de íbis, adorada por várias mulheres negras e douradas, vestindo máscara mortuária egípcia, e que por sua vez, são adoradas por egípcios negros e dourados, com cabeças extremamente ovaladas — Afrânio arrancou o lápis do coque de Clarice, e se pôs a reproduzir no caderno de anotações um croqui do que via, na exata ordem de adorações.
— Nunca vi deus algum assim no Egito — Clarice se fixou na figura. — Fora claro, Sekhmet.
— Nem eu — Afrânio ajustou os óculos no rosto molhado pelo suor.
— De acordo com a tradição popular em alguns países, a íbis é a última ave a desaparecer antes de um furacão e a primeira a surgir depois que a tempestade passa.
— “Furacão”, Samira? É... Parece ser um tufão levantando a areia que essas mulheres oferecem a leoa-íbis.
— “Leoa-íbis”?
— Yes! Sure! Seria o deus Seth com cabeça de íbis?
— Seth era a encarnação do espírito do mal.
— Seth era também o deus da tempestade no Alto Egito, Samira ma chère — emendou Afrânio. — Irmão da deusa Isis que carregava numa das mãos um ankh, a chave da vida e do mistério, e na outra mão uma planta Cyperus papyrus, que do caule se fazia o papiro — voltou a desenhar.
“Mona?” Samira chamou a irmã pelo pensamento, mas nada ouviu em resposta.
— E não podemos esquecer Samira ma chère… — continuava Afrânio a falar. —, que Isis também assimilou atributos de Sopdet, personificação da estrela Sirius.
— Sim o astro que ascendia no horizonte um pouco antes da cheia do Rio Nilo, interpretada como uma fonte de fertilidade, e estrela para quais aqueles monólitos lá fora apontam — emendou Samira.
Mas Clarice quase não os ouvia interessada noutro detalhe que lhe chamou a atenção.
— Samira? — esperou a amiga virar-se para ela. — O ambiente de adorações retratado na parede é o mesmo que esse aqui? — apontou.
Samira girou nervosa em torno dela mesma.
— Veja Afrânio yá habibi! A areia que ofertam é verde.
— A daqui também — Clarice se abaixou e as pegou nas mãos, a areia úmida que pisava. — Ela é mesmo esverdeada — cheirou. —, e fedida...
— Como pode ser uma areia esverdeada? — Samira também pegou a areia nas mãos. — Será que tem haver com aquela planta Shee-akhan?
— Está deduzindo isso ou fazendo leituras das energias gravitantes dela, Samira ma chère?
— Não estou fazendo nada, Afrânio yá habibi. Não consigo sentir absolutamente nada vindo dessa coisa verde.
Afrânio pegou uma das lamparinas da parede e ficou imaginando como aquele combustível as mantinha acesas há tanto tempo, e se aquilo era realmente o tal ‘Fator Shee-akhan’, retirado de uma planta. Aproximou a lamparina do chão e a areia estava realmente umedecida pelo mesmo líquido verde de estranho odor ocre.
— Há quanto tempo calcula que isto esteja aqui Dr. Afrânio?
— Parece que lê pensamentos Dra. Clarice — riu nervoso. — Estava a pensar nisso... — o Dr. Afrânio aproximou seus dedos quase tocando o fogo, tentando lhe decifrar.
Sua textura era pegajosa e Afrânio levou-o próximo as narinas.
— Cuidado yá habibi! Isso pode ter se transformado em algum tipo de gás, pelo tempo que isso está aqui.
— Ou ter algum esporo que penetre nossos pulmões e nos mate imediatamente.
— Que horror Dra. Clarice!
Mas Clarice estava encantada, mais pela figura de leoa de pelagem vermelho-amarelada feito fogo e cabeça de íbis, do que pela saúde de Afrânio Strauss.
— Será mesmo a deusa Sekhmet?
— Deixe isso para lá Clarice — a voz de Samira soou como uma ordem. —, ajude-nos a pegar um pouco dessa areia verde para levar-nos ao laboratório de Corniche el-Nil, no Cairo.
— Achei que não podíamos tirar nada daqui? — Clarice ainda estava encantada pela figura de leoa de pelagem vermelho-amarelada, e cabeça de íbis.
— Não vamos tirar. Vamos estudá-la Clarice... Clarice... Clarice?! — gritou a acordando.
— Yes? Sure! A deusa Sekhmet embora fosse uma leoa sanguinária que comandava os mensageiros da morte, também operava curas e tinha um frágil corpo de moça.
— Do que está falando?
— Eu? Da divindade feroz e temida para qual ofereciam cerveja, a fim de acalmá-la. Nunca vi nada verde sendo oferecido — voltou a olhar a figura totalmente absorta.
— Ouviu-me Clarice?
— Yes? Sure! Mas também dizem os textos, que sua pelagem era cheia de chamas, que sua espinha dorsal tinha a cor do sangue, que seu rosto brilhava como o Sol, e o deserto ficava envolto em poeira, quando sua cauda o varria...
— Por Allah! — exclamou Samira acordando Afrânio e fazendo Clarice parar de falar de vez. — Olhem! — apontou para uma redoma de vidro.
Dr. Afrânio olhou para trás e um esquife de vidro jazia no centro do espaço circular recém aberto.
Os três se olharam.
— De onde surgiu isso?
— Não sei.
— Não estava aqui quando entramos, estava?
— É claro que não; ou teríamos batido nele.
— O que está acontecendo, doutor?
— Não sei Dra. Clarice — engoliu a resposta a seco. — A... Anote a hora... Samira ma chère.
Samira demorou a responder e Afrânio a encarou.
— Onze horas e onze minutos, Afrânio yá habibi.
— A hora parou aqui dentro?
— Não estou gostando nada disso — Clarice começou a se apavorar. — A areia... Os desenhos... E agora esse esquife com esse papiro... — e ameaçou sair.
— Aonde vai? — Samira a agarrou pelo braço.
— Vou chamar Joh Miller.
— Acha... — o casal Strauss se olhou.
— Do que está falando, doutor? — Clarice parecia não entender.
— Miller é da Poliu, Dra. Clarice — lembrou-lhe. — Acha de bom tamanho essa atitude? — Afrânio quis realmente saber.
— Yes! Sure! Não podemos ir contra a corporação, Dr. Afrânio. Ela nos financia. Esqueceu?
— Não esqueci. Por esse motivo mesmo, que não devemos chamá-los. Isso vai além do que se quer imaginávamos.
Os três olharam o esquife de vidro com um colorido papiro dentro desaparecendo a olhos vistos.
— Hei? Hei? — Samira tocava o nada como se o que acabaram de ver fosse uma holografia. — Para onde ele foi? Para onde a esquife foi?
— Não sei... — e os três voltaram a pacientemente observar a imagem do papiro no esquife voltando e se firmando, a vista de todos. Quando a imagem se formou por completo novamente, Samira deu um chute estraçalhando o vidro do esquife. — Samira?! — gritou Dr. Afrânio totalmente assustado com a inesperada atitude da esposa.
Samira segurou o papiro vendo que estava em branco.
— Está vazio... — falou para si própria.
Afrânio e Clarice se olharam.
— Como assim ‘vazio’?
— Havia letras, não havia?
— Como assim ‘havia’?
— Não sei. Havia cores, letras; não viram? — e Samira olhou Afrânio e Clarice que nada entenderam. — Por Allah... — sua boca amoleceu e o papiro quase caiu das mãos trêmulas.
— Samira ma chère! O que está acontecendo?
E os três arregalaram os olhos percebendo que as letras voltavam a ser escritas, da mesma forma com o esquife veio, e foi, e voltou.
— O papiro está sendo escrito para você?
Os três se olharam novamente e duas palavras sobressaíram.
— Hidashar Hidashar — leu Samira Strauss.
— “Hidashar Hidashar”? “Onze Onze”? — leu novamente o franzino Dr. Afrânio trocando olhares com Samira.
Afrânio agora mandou chamar o agente da Poliu, Joh Miller, não tinham alternativas.
Passaram-se três ou quatro minutos até o agente da Poliu, ser contatado numa outra frente de trabalho do sítio arqueológico ali montado. Parecia ter-se passado uma eternidade, mas o homem que adentrou a passagem aberta era baixinho, de pele morena, gordo e quase careca. Usava roupas extravagantes, quase sempre pesadas para o forte e continuo calor do Egito, parte da África mediterrânea.
Afrânio se pôs a falar no que o agente Joh Miller pisou dentro da pirâmide. E ele mal pôde acreditar no que ouviu dos três arqueólogos sobre a ‘Abracadabra!’, sobre a areia esverdeada umedecida pelo óleo também esverdeado de lamparinas ali encontradas acesas, uma leoa vermelho-amarelada-amarelada com cabeça de íbis, e então sobre um esquife de vidro que ia e vinha sob seus olhares; e até como Samira tomou a decisão de quebrar-lhe a proteção e roubar-lhe o papiro.
Mas a história de um papiro que ‘esvaziou-se’ para então escrever ‘Hidashar Hidashar’ pareceu forçada demais.
— Vocês realmente estão querendo sair daqui não? — e se virou para ir embora.
— Hei? — Samira o pegou pelo braço que a olhou com cara de poucos amigos ao ver seu braço preso pela grande mulher. — Do que está falando? — o largou.
— Sei muito bem que esse calor nos afeta Sra. Samira Strauss. Vocês não são os primeiros, nem serão os últimos arqueólogos que inventam coisas para irem embora daqui — e se virou outra vez para sair.
— Conta uma lenda que um papiro maldito, escrito em sangue, esteve nas mãos de Thoth — Samira prosseguiu.
— O papiro de Thoth? — Joh olhou um e outro. — Porque os espiões psíquicos de sua irmã, haviam dito sobre Thoth, sobre o papiro que escrevia para homens sem nome, de uma entidade milenar, muito milenar. — voltou a olhar um, outro e a Dra. Clarice. — Aonde querem chegar?
— Logo depois do dilúvio, no amanhecer do presente ciclo de tempo, uma Era que os egípcios chamaram ZEP TEPI, ‘Os Primeiros Tempos’, apareceu um grupo misterioso de deuses, para iniciar os sobreviventes nos rudimentos da civilização — Samira sabia do que falava. — De Thoth e Osíris no Egito, a Quetzalcoatl e Viracocha nas Américas, as tradições mundiais atribuem às origens da civilização contemporânea a este sofisticado grupo.
— Grupo? Diz entidade?
— Sim! — e o papiro iluminou-se como que por encanto.
Os quatros arregalaram os olhos.
— Segure-o firme Samira — Afrânio sentiu calor pelo medo. — O papiro parece somente escrever a você.
Mais letras começaram a aparecer como previra o marido.
— É cuneiforme? — perguntou Joh Miller estranhando a linguagem usada. — Não! Incrível! É meroítica! — foi à vez de agente Joh Miller afirmar maravilhar-se.
— “Neste tempo, um dos grandes sábios, o criador de todos os deuses, Enki, deitado em sua cama sem deixar seu sono, no profundo engur, flutuando na água, em um lugar que nenhum outro Deus conhecia” — Samira lia. — “Os deuses disseram: Ele é a causa de todos os lamentos! Namma, mãe dos deuses antigos, leve as lágrimas dos deuses para aquele que está dormindo, para aquele que está deitado, para seu filho!” — e Samira parou de ler.
— Por que parou?
— Não há mais nada aqui.
— Veja!!! — gritou Afrânio. — O papiro está escrevendo outra vez.
— “Você está realmente dormindo e não se levanta? Os deuses, suas criaturas, estão reclamando...” — e o papiro parou de escrever e começou a desenhar, algo.
Os quatro engoliram aquilo a seco e o papiro desenhava uma areia esverdeada, com mulheres de máscara mortuária egípcia, ajoelhadas, para então as letras voltarem a correr.
Afrânio olhou para Samira que olhou para Afrânio que viu que havia algo mais ali.
— Leia! Leia! — se enervou Joh Miller.
— “Meu filho levante-se de sua cama! Use sua sabedoria e crie um substituto para que os deuses possam deixar suas ferramentas” — traduziu Samira antes das letras se apagarem de vez.
— Por que parou? Por que parou?
— Por Allah! Não parei!
— O papiro voltou a ficar em branco? — o agente Joh Miller estava tão perplexo quanto os outros três. — Acha que foram eles?
— ‘Eles’ os Annunakis?
— Por que diz isso Samira?
— Todos nós lemos o Enuma Elish, Joh, os códices sumérios que contam a história de nosso Planeta Terra e dos terráqueos.
— A tabula contendo o códice 1-11 do Enuma Elish?
— Sim! ‘Naqueles dias, nos dias em que o céu e a terra foram criados; naquelas noites, nas noites quando o céu e a terra foram criados; naqueles anos, nos anos quando os destinos foram determinados, quando os Annunakis nasceram’.
— O que um códice sumério fazia na baixa Núbia?
— Não sei... — Samira olhou Afrânio e Clarice em choque. —, mas o Enuma Elish diz: “Meu filho, levante-se de sua cama! Use sua sabedoria e crie um substituto para que os deuses possam deixar suas ferramentas!”.
— Você não sabe do que está falando!
— Por que acha que não, Joh Miller? Você está com medo de que seja ele? O garoto dos Queise? Achei que fosse um iniciado na Escola de Mistério Papiro? Que nada temesse! — Samira fez os cabelos duros de areia de Joh Miller se erguer. — Mas você tem medo, não? Dos homens sem nome — e Samira parecia poder ler sua mente.
“Como pôde?”; foi o que Miller pensou.
— E agora? O que vamos fazer? Não podemos deixar de contar sobre o papiro a Mr. Trevellis — a voz de Afrânio se perdeu pelos muitos pensamentos ali se formando, plasmando, tomando formas.
Os quatro então se olharam numa significativa decisão. Uma decisão que permitiria a Poliu saber de segredos milenares. Porque aquilo ia além de portas que se abriam sozinhas, de papiros que escreviam ou qualquer coisa que se desenhasse da mesma maneira.
Havia ali uma pirâmide milenar iluminada por um líquido verde que umedecia uma areia esverdeada. E que contava a história da criação do planeta Terra e de iniciados com poderes paranormais.
Contudo, essa mesma decisão levaria a morte a muitos; a morte pelo Fator Shee-akhan.

 

 

 


 

 

 


1
Computer Co. House’s; São Paulo, capital, Brasil.
23° 36’ 19” S e 46° 41’ 45” W.
11/11; Onze anos depois.
Era uma manhã quente e Sean Queise já se estafava às onze horas em seu escritório na Computer Co. House’s, seu edifício de escritórios na cidade de São Paulo. Com vinte e seis anos, bonito e extremamente inteligente, assumira muito cedo o controle da empresa, após a prematura aposentadoria de seu pai, Fernando Queise.
O mercado da informática, altamente competitivo, demorou a assimilar alguém até então inexperiente no comando, daquela que era considerada a maior empresa de computadores do mundo. Mas a maneira disciplinada como Sean trabalhava, e seu poder de persuasão perante seus funcionários e o mercado financeiro, o fizeram aceito.
Sean Queise não se perturbava muito com a mídia ou com a concorrência, ou ainda qualquer imposição a seu trabalho. Costumava tomar suas próprias decisões e desenvolvia há alguns meses, um programa de rastreamento linear usado em arqueologia, para instalar no seu mais novo robô móvel, e assim participar de uma concorrência internacional atrás de relíquias, após uma equipe de arqueólogos do Instituto tcheco de Egiptologia, descobrir o túmulo de uma rainha egípcia previamente desconhecida, que eles agora acreditam ser a esposa do Faraó Neferefre, que governou há 4.500 anos.
E Sean estava tão empenhado naquilo, que pela primeira vez deixara de fora Gyrimias Leferi, um dos mais conceituados cientistas de computação da Computer Co.. contudo Gyrimias desconfiava daquela atitude, desconfiava principalmente, que seu patrão tivesse algo a esconder, algo que podia envolver a poderosa corporação Poliu, uma secreta corporação de inteligência com agentes espalhados pelo mundo, talvez todos eles.
E não só Gyrimias, mas Kelly Garcia, sócia de Sean, também temia um confronto com a Poliu, mais precisamente com Mr. Trevellis, homem de poderes dentro da corporação, porque Gyrimias talvez tivesse razão, Sean Queise se empenhava demais para o que ainda não fora contratado.
Era ele quem chegava naquele momento da manhã estafante. Uma batida à porta e ela se abriu sozinha, ou quase isso.
— Parcelado o que penso Senhor, é incrível o que faz.
Sean sorriu sem responder àquilo. O franzino, tímido e quase transparente Gyrimias, entrou arrumando os óculos de acetato grande, e o cabelo liso e negro que escorria pelo nervoso.
— Sente-se Gyrimias. Conseguiu terminar o plano?
— Nosso plano de trabalho ainda é um esboço Senhor… — passou a mão e o cabelo liso ficou mais desengrenhado. —, um conjunto de objetivos e processos nos quais alcançaremos se formos...
— Não quero esboços Gyrimias! Tenho pressa! — cortou sua fala. — Ofereça uma melhor compreensão da essência desse projeto, e tudo estará acabado.
— Mas parcelo o porquê dessa pressa Senhor, se preferiu criar algo novo, ao invés de apenas fazer uma nova versão para o programa.
— Há algo errado em querer um novo programa para um novo robô?
— Mas parcelo...
— Não parcele nada Gyrimias! Quero ir ao Egito até sexta-feira, oferecendo o novo programa a essa concorrência da Eschatology Inc., que pode trazer divisas que a Computer Co. vem perdendo. Por isso tenho apenas três dias, para não chegar ao Cairo de mãos vazias.
— Mas não estará de ‘mãos vazias’ não é Senhor?
Sean o encarou e todos os pensamentos tomaram forma.
— Droga Gyrimias! Kelly sabe?
— Não por mim Senhor. Juro! Mas o que ela não sabe aqui dentro é redundante.
— Droga! Droga! Se isso chegar ao conhecimento da minha mãe, ela não vai me deixar ir adiante.
— Parcelo que a Senhora Nelma…
— Não Gyrimias! — cortou-lhe a frase. — Ela me proibiu de participar dessa concorrência, porque eu sei que havia um contrato de meu pai com a Poliu e arqueólogos anos atrás, onze anos atrás para ser exato, e que culminou num acidente que matou a irmã de Mona, e consequentemente a queda da Computer Co. no mercado arqueológico.
— Mas o magnetômetro Flux Gate falhou?
— Não sei nem se eles o usaram, Gyrimias. Só fiquei sabendo que os arqueólogos foram soterrados vivos, sem que o robô da Computer Co. mostrasse alguma falha na estrutura da pirâmide.
— Eu não trabalhava aqui ainda.
— Nem eu. Nem trabalhava para dizer a verdade. E antes me tivessem deixado daquele jeito — Sean olhou um lado e outro. — Droga! Como posso crescer profissionalmente se sou podado por todos os lados? Antes meu pai, agora minha mãe, Oscar e Trevellis. Cada um com seu papelzinho nessa história de amiguinhos — e viu Gyrimias suando frio. — Desculpe-me Gyrimias. Não posso falar nada sobre isso, mesmo porque não iria acreditar. Mas preciso de sua ajuda, preciso de um projeto para apresentar que tais anomalias provocadas pelo antigo programa de rastreamento global, para classe de sistemas não lineares, não vai voltar a acontecer, porque sei que não vai voltar a acontecer.
— E como sabe Senhor?
— Porque meu novo programa vai funcionar nas escavações arqueológicas, inseridos dentro de um robô que a mídia diz ser frágil, mas que eu mesmo... — e parou de falar algo.
— Vai tentar mesmo voltar ao mercado?
— Vou fazer mais que isso. Vou instalar o programa no ‘robô frágil’ e uma cópia dele do programa no satélite de observação Spartacus, e conseguir assim reativar interesse monetário nele também.
— Mas até o Sr. Fernando Queise morrer, ele não aprovava que o Senhor se envolvesse mais em domínios espaciais.
— Ele não aprovava que eu me envolvesse com alienígenas Gyrimias — ambos riram. — Veja... — Sean girou-lhe a tela do notebook. —, a característica principal dos sistemas dinâmicos não lineares, é o comportamento aleatório, não? Mas posso criar um modelo matemático em 3D, de elementos finitos e não lineares do cérebro, através de ressonância magnética.
— E convencer a Eschatology Inc. que pode criar uma holografia do que o robô vê?
— Mais que isso Gyrimias, vou transmiti-lo ao cérebro do arqueólogo, antes dele entrar numa câmara.
— Muito bom Senhor! — Gyrimias se animou.
— Melhor que isso Gyrimias! Posso provar que o acidente que matou os arqueólogos onze anos atrás, não voltará a acontecer, e a Computer Co. voltará a ter credibilidade na área.
— Mas estamos desenvolvendo isso?
— Há algum tempo... — e outra vez não foi além daquilo.
— Mas seria o seu cérebro comandando isso?
— Talvez...
— Mas se deixar alguém saber que tem dons paranormais para comandar máquinas pelo pensamento, parcelo que...
— Mas eu o controlaria inicialmente, sem que ninguém soubesse.
— Para isso teria que participar inicialmente nas escavações?
— De uma forma ou outra — sorriu cínico.
— Mas isso o afastaria da Computer Co. do Brasil, parcelo?
— Não se eu puder controlar isso do satélite de observação. Isso iria longe do que o olho humano poderia ver, e ninguém saberia nem uma coisa nem outra.
— É algo interessante. A Computer Co. não teria concorrentes.
— Exato! E mais exato ainda será colocar Spartacus funcionando numa órbita espiã.
— Como assim espiã Senhor? Não íamos ativar interesse monetário em Spartacus?
— Íamos, não! Vamos! Mas só nosso cliente saberá disso.
— Mas o Senhor Oscar Roldman não permitirá.
— Mas ele não saberá Gyrimias. E não saberá, não porque não pode saber de tudo, mas sim porque nunca quis se desenvolver. Mas também não saberá, porque será como uma simulação, uma holografia do satélite de observação Spartacus na órbita geoestacionária, enquanto na verdade ele estará funcionando numa órbita hélio-síncrona.
— Cuja característica principal do hélio-sincronismo é fazer com que o satélite passe sobre uma mesma latitude, sempre no mesmo horário local, garantindo que as imagens de uma mesma região sejam sempre as mesmas.
— Exato!
— Mas o que quer fotografar Senhor? Não será algo haver com a meteorologia, será?
— Não Gyrimias. Preciso da imagem de uma região composta de duas faixas de imagem posicionadas lado a lado, tomadas em dias diferentes; para comparação. E o programa... — e Sean parou de falar olhando para a porta fechada. — Entre Renata!
— Senhor? — a secretária Renata Antunes também já não se espantava, com a maneira nada convencional dele abrir portas com a força do pensamento. — Esse pacote chegou para o Senhor — e seu olhar sobre Gyrimias foi longo o suficiente, para Sean perceber que ela não queria falar-lhe algo perto dele.
Temeu aquilo.
— Pode ir Gyrimias! E por favor, mantenha o cronograma.
Gyrimias só dobrou a boca para um lado e nada mais disse.
— Sim Senhor! — e saiu não querendo ter saído.
Renata era uma mulher bonita, de família com histórico nas áreas da administração e economia. Assumiu o lugar de Kelly Garcia com maestria e discrição. E era aquilo mesmo, uma mulher discreta que pouco ou nunca expunha suas opiniões, nem sobre as constantes oscilações de humor do patrão nem sobre a maneira, digamos, estranha de ele ser. Por isso mesmo agir daquela maneira o deixou incomodado.
Sean se virou para Renata e o pacote nas mãos dela.
— Tenho até receios de saber por que fez isso.
Ela se virou em choque.
— Oh! Desculpe Sr. Queise. Espero que nada além do que lhe enviei tenha escapado.
“Enviei-lhe?”, agora Sean teve medo dela.
— E o que me enviou exatamente Renata?
— Algo sobre o Sr. Leferi e a Srta. Garcia, Senhor.
— Algo sobre...
— Não digo isso Senhor. Digo que a Srta. Garcia está sondando-nos... — e deixou no ar.
Sean sabia que Kelly desconfiava dele, do trabalho dele, da viagem ao Egito.
— Há algo mais não Renata? Algo que fez ter medo que Gyrimias contasse a Kelly?
Ela mal piscou e prosseguiu:
— Isso chegou agora a pouco. Assinei a entrega do funcionário da recepção e estava marcando 11 horas e 11 minutos.
Sean se absteve de comentar, porque sabia que não ia gostar do que ia comentar, que ‘11h11min’ abriam-se os portais dimensionais que místicos admitiam existir.
— Há algo mais?
— O pacote! — entregou-lhe. — Veio de Portugal. Da parte da Sra. Mona Foad Almeida — ela viu Sean erguer os olhos. — E era para ser entregue as exatas 11 horas e 11 minutos Senhor. Mas nem o funcionário da recepção nem eu sabíamos sobre isso.
— E por que Mona... — e a olhou de olhos arregalados. — Prossiga!
— Não sei dizer como isso aconteceu, mas só percebi quando abri o pacote da FedEx e li a carta da Sra. Foad. E eu abri o pacote às exatas 11 horas e 11 minutos.
Sean realmente não gostou daquilo.
— Numerólogos acreditam que os eventos ligados à hora ‘11 e 11’, aparecem com mais frequência do que pode ser explicado ao acaso ou a coincidência. Até Pitágoras acreditava na força dele, do número 11.
— Achei que não acreditasse em coincidências Senhor?
— Não acredito Renata. Mas há uma crença relacionada com o conceito de sincronicidade adotada por filosofias da ‘Nova Era’. Além do que o armistício, que encerrou a luta na Europa Ocidental da Primeira Guerra Mundial, entrou em vigor às 11 horas, horário de Paris, em 11 de 11 de 1918.
— A décima primeira hora, do décimo primeiro dia, do décimo primeiro mês.
— Exato! — encarou-a. — Pode deixar aí Renata. Obrigado!
Ela o fez e saiu sem mais nada a dizer. Não demorou muito, para a voz entrecortada dele soar no interfone pedindo que ela chamasse Kelly Garcia.
— Sim Senhor! — e Renata desligou.
Dessa vez a porta da cobertura da Computer Co. não foi aberta com nenhuma técnica de psicocinese. Kelly estranhou que ele não abrira a porta para ela, uma espanhola balzaquiana, bela em sua essência, perfeita de curvas, cabelos negros, corpo perfumado. E que amava Sean sem ser correspondida; ou era, mas ela não sabia.
E talvez esse fosse o motivo pelo qual ela se tornava insistente, controlando a vida dele, com ciúme de tudo e todos. Ou ainda talvez fosse a diferença de idade, de status, de ideais. Contudo fosse o que fosse ela entrou arisca, o observando em pé, olhando um pacote em cima da mesa.
— Tem certeza que devo entrar?
— Sem ironias Kelly.
Kelly nem estava sendo irônica, estava sendo precavida. Sabia que Gyrimias havia sido chamado. Não havia tido tempo de saber o porquê, mas desconfiava que Sean desconfiasse dela, do amor dela. Talvez dos sentimentos que cresciam na mesma proporção do desespero de ver os anos passarem para ela, dos catorze anos que os separavam.
E de ver Sean envolvido com mulheres que não eram ela, com a distância colocada por ele.
— O que houve?
— Recebi isso! — exclamou ainda nervoso apontando para o pacote. — Chegou eu não sei quando, mas foi entregue exatamente como Mona mandou que chegasse, as onze horas e onze minutos.
Kelly olhou um lado e outro se sentindo perdida.
— Achei que Mona não falasse mais com você.
— E não fala.
— Mas ela mandou...
— Samira mandou. Onze anos atrás.
Kelly olhou um lado e outro se sentindo mais perdida ainda.
— Como assim Samira? Ela não morreu?
— Onze anos atrás.
— Pare com isso Sean. Está me assustando.
Ele a encarou furioso.
— Estou dizendo que o pacote original foi enviado a mim por Samira, onze anos atrás, para minha casa. Mas por algum motivo ele não foi entregue a mim, ou foi e eu nunca soube.
— Você nunca sobre esse pacote? — apontou.
— Não! Sobre esse não!
— E seu pai devolveu-o?
— Não sei! Mas se Mona o levou embora, me pergunto por que onze anos depois, esse pacote veio parar em minhas mãos?! — exaltou-se.
— Por que está tão nervoso comigo? Por acaso acha que sei algo sobre isso, só porque comecei a trabalhar como geóloga para os Queise há onze...
— Basta Kelly! Estou furioso por Gyrimias ser obrigado a contar tudo a você.
Ela agora sabia onde pisava.
— Claro! Percebi porque não abriu a porta, nem porque fiquei sem o ‘Bom dia!’ — e virou-se para ir embora.
— Não saia! — e agora a porta se trancou.
Kelly respirou profundamente.
— O que há no pacote? — ela não se virou para ele, mas ouviu o farfalhar de papel sendo rasgado violentamente.
— Nada!
— Como assim ‘nada’? — se virou para ele.
— Um papel velho que parece um papiro em branco. Isso é ‘nada’, não?
Ela se aproximou dele, da mão dele e um cheiro ocre a invadiu.
— E por que continua nervoso? — Kelly o conhecia.
— Porque Samira estava na Baixa Núbia quando o enviou.
— Você investigou não?
— A Poliu arquivou tudo sobre o acidente. Os três arqueólogos, a escavação, tudo que foi encontrado nos escombros. Eu nunca consegui encontrar nada, nenhum arquivo, nenhum vestígio do que meu pai classificou como ‘um erro’ cometido pelo robô da Computer Co., e que custou nossa retirada de atividades arqueológicas.
— Porque as autoridades locais classificaram que o robô nada avisou, sobre o perigo de desmoronamento que os matou, e a Computer Co. não tinha competência para fazer programas. Você já me contou isso.
— Exato! Mas Samira encontrou algo… — olhou o papiro. —, algo que a Poliu não sabe.
— Então ela estava viva quando enviou isso? Isso prova que houve algum tipo escavação?
— Exato! Percebe?
— Percebo que a Poliu escondeu algo.
— E Samira escondeu algo da Poliu.
— Sr. Roldman?
— Eu nunca falei com ele sobre isso. Na época Oscar e minha mãe... Não sei bem o que houve, mas meu pai, Oscar e minha mãe brigaram por causa de algo que eu fiz.
— Quantos anos você tinha?
— Catorze anos; onze anos atrás...
E Kelly ficou perdida em pensamentos.
— Mas por que agora? Por que Mona só enviaria isso onze anos depois e não cinco anos depois, oito anos depois?
— Porque onze anos depois a Computer Co. foi chamada outra vez para uma concorrência arqueológica.
— Então não há com que nos preocuparmos. Você e Gyrimias resolverão o problema de rastreamento linear de trajetória para manipuladores robóticos, e garantirão que o erro de rastreamento tenda assintoticamente para zero, para quaisquer condições iniciais, assumindo que o modelo dinâmico do manipulador seja conhecido.
— Wow! — e Sean não esperava todo aquele conhecimento. Kelly o encarou e ele prosseguiu. — Está dizendo que é seguro afirmar como geóloga, que há algo lá Kelly?
— Lá onde Sean? Oh! Minha Nossa! Ainda falamos daquela escavação de Nabta Playa?
— Sim Kelly... — Sean se irritou.
Ela relevou, mais uma vez relevou e sentou-se.
— Pode ser! Tendo como base a orientação do mapa magnético feito no solo pelo Dr. Afrânio, antes de morrer, o robô da Computer Co. realizou 100 perfis de GPR utilizando uma antena monestática de 400 MHz. E os perfis alcançaram uma profundidade de aproximadamente 10 metros. Então após análise dos dados magnéticos e os registros de GPR, as informações foram correlacionadas às feitas pelo Doutor, e os dados foram anexados à investigação — respondeu como geóloga. — Quando e como o robô parou, não sabemos.
— E não sabemos, porque a investigação não deu estorno algum, porque tudo sumiu dos mainframes da Computer Co. de Portugal.
— Só posso dizer que o campo magnético sofre variações com o tempo, e que há ocorrente variação secular num largo período de tempo. Então pode ter havido uma variação diurna, enquanto estavam escavando e que corresponderia a oscilações no campo magnético de até 80 nT em 24 horas, tendo seu ápice as 11 horas do dia.
“Onze horas!” Sean não gostou daquilo.
— Não está entendendo Kelly; não estamos mais falando sobre o rastreamento de Nabta Playa. Estou falando que Mona pressentiu algo.
— Algo a ponto de lhe reenviar um papiro vazio? Para lhe avisar de algo?
— Algo que não faz nenhum sentido, faz?
— Não sei mais o que dizer patrãozinho.
— Continua me chamando assim... — sentou-se rindo.
Kelly sentiu-se aliviada, em lhe ver um pouco menos nervoso. Sentiu-se, porém um pouco perdida naquele bom humor. Porque ela o conhecia para saber que aquilo era fachada, que Sean devia estar nervoso por não saber o que era aquele pacote.
Sentou-se esperando mais. Porque sabia que tinha mais.
— Sean...
— Vou ao Egito sexta-feira! — disparou.
Ela agora realmente se sentiu perdida.
— Achei que a concorrência fosse daqui dois meses?
— Vou antes! Tentar convencer os investidores da Eschatology Inc. que não há necessidade de concorrências, e que a Computer Co. ainda pode fazer programas de software.
— Isso é contra as leis internacionais. Não pode usar a posição dominante da Computer Co. no mercado, Sean. Você pode por tudo a perder se for acusado de monopólio.
— O que não vai acontecer se você deixar Gyrimias trabalhar em paz — e Sean viu Kelly levantar-se tão rápido da cadeira, que um som agudo chegou até a sala de Renata por detrás da porta. Ela só o fuzilou e saiu agora sem impedimentos. — Droga... — se perdeu naquela manhã.
Apartamento de Kelly Garcia; São Paulo, capital.
23° 33’ 41” S e 46° 39’ 23” W.
11/11; 20h00min.
Kelly havia acabado de sair do banho. Ainda tinha os cabelos negros molhados e cheirosos enrolados numa toalha. Era realmente uma mulher bonita.
O interfone soou.
— O Sr. Queise está subindo — avisou o porteiro.
Kelly mal teve tempo de deglutir aquilo, reforçar o nó do robe de seda amarelo e a campainha do apartamento tocou.
— Sean... — e parou de falar no que Oscar Roldman a observava de tolha na cabeça.
— Boa noite Srta. Garcia. Posso entrar?
Ela sentiu faltar-lhe o chão. Já não bastava Nelma Queise agora era Oscar Roldman quem vinha. Ela até não podia ter os dons paranormais de Sean, mas sabia que havia algo errado naquela visita.
Amarrou com mais força o robe de seda amarelo:
— Nunca veio aqui... — soou estranho.
— Eu sei! — exclamou Oscar Roldman olhando o apartamento clean, de poucos móveis, mas com muito mármore, couro e cristal. — Posso entrar?
— Não sei se...
— Por favor, Srta. Garcia. Não acho que manter-me na porta vai adiantar algo — o sotaque nórdico dele estava tenso.
Tão tenso quanto ele estava.
— Por favor! — ela apontou para dentro.
Oscar Roldman era um homem bonito. Havia feito carreira meteorica na Poliu para depois ir contra tudo o que a corporação fazia, como agia. Fez todo o possível para conseguir entrar na Polícia Mundial e lá fez carreira outra vez meteórica. Como Fernando Queise dizia, Oscar não havia saído totalmente da Poliu, porque preparara Mr. Trevellis para ficar lá, já que uma vez os Roldmans não sendo uma família aristocrática, ele não podia alcançar seu posto maior ali dentro. Também não era de família rica, nem como Fernando, um Geek de seu tempo, um nerd perigoso e tão hacker quanto Sean o era.
Mas havia algo diferente no homem de cabelos grisalhos, que exigiu sua entrada no apartamento de Kelly Garcia.
— Por que mentiu ao porteiro?
— Sabia que se me anunciasse, Senhorita não em deixaria entrar.
— Leu meus pensamentos para isso?
Oscar Roldman não se deu ao trabalho de responder.
— Sean vai ao Sudão, não vai Srta. Garcia?
— Sean vai ao Egito.
— Não me esconda nada! — soou forte e ameaçador.
Ela o olhou não gostando daquilo.
— Não estou escondendo. Porque apesar de não estar feliz com o que me obrigam a fazer, Sr. Roldman, tenho lhe comunicado tudo que pede, tudo que Sean faz, com quem, aonde.
— Mas não me comunica tudo!
— Outro alguém comunica? — e Kelly não gostou do passo dele que se aproximou dela. Kelly reforçou o nó do robe de seda amarelo e o temeu. — Porque eu já havia lhe avisado Sr. Roldman, que Sean estava se preparando para aquela concorrência internacional da Eschatology Inc., daqui a dois meses no Cairo...
— Sean vai a Nabta Playa, Srta. Garcia, mais precisamente na divisa do Egito com o Sudão, baixa Núbia, atrás dos rastros gravitantes de Samira Foad, atrás de suas energias extrafísicas existentes em torno de objetos ou pedaços de construções que ela tenha tocado! — soou Oscar nervoso.
Kelly só teve tempo de arregalar os olhos e agradecer que Oscar Roldman não era Sean Queise, e não podia ler pensamentos. Ou podia, e Sean a enganava.
— E sabia disso por que...
— Porque Mona havia avisado Fernando que se ele não entregasse aquele maldito pacote a Sean, onze anos atrás, ele um dia encontraria respostas nos restos de Samira.
— E soube da entrega do pacote por quem?
— Isso não interessa agora. Porque Sean tem dons Srta. Garcia, para achar consciências intrafísicas ou extrafísicas de pessoas mortas, em pacotes.
— Como faz com o fantasma de Sandy.
— Como faz com o maldito fantasma de Sandy Monroe, que Mona fez questão de jogá-la contra a Poliu e Trevellis fez questão em deixa-la se matar na casa dos Queise, e que provável caminha por ela até hoje — sua voz era furiosa, seu olhar era furioso e todo o redor dele se enchia de fúria.
Kelly ficou imaginando se Mona tinha dons o suficiente para saber se Sandy se suicidaria, se Sean iria sofrer, e se ele iria procurar energias que ela nem sabia soletrar, ao longo de todo esse tempo.
— Posso saber por que o Sr. Fernando não entregou tal pacote a Sean há onze anos?
Oscar Roldman se virou para ela de uma maneira que Kelly não teve tempo de decifrar.
— Nelma fará um jantar amanhã a noite. Vá! Vá e convença Sean a ir também.
— Sean não...
— Convença-o Srta. Garcia. Tem beleza suficiente para isso.
Ela só arregalou os olhos.
E também só voltou a respirar quando Oscar Roldman foi embora.
Flat de Sean Queise; São Paulo, capital.
23° 33’ 31” S e 46° 39’ 44” W.
11/11; 20h00min.
Sean estava cansado. Talvez sofrendo de um cansaço mais filosófico, uma fadiga intensa do pensamento banal. Porque toda sua filosofia já não lhe dava mais o descanso do espírito. E porque Platão já dizia que o cansaço físico, mesmo que suportado forçosamente, não prejudicava o corpo, enquanto o conhecimento imposto à força, não podia permanecer na alma por muito tempo. Sean sabia que havia um conhecimento oculto, do oculto que se escondia.
Um paradoxo existencial, uma angustia de não ter respostas, de não se conhecer, não saber ao certo o que fazer, de ter vindo ao mundo sem saber o porquê.
Também havia outro cansaço, um mais próximo do pecado de Kierkegaard, um pecado de amar ou não amar Kelly, sua sócia, sua amiga, seu equilíbrio cada vez mais afetado. Uma angustia de olhar o precipício e experimentar o medo de se jogar, ao mesmo tempo em que experimentava o impulso de se jogar intencionalmente, para o precipício que o chamava.
Uma angustia construída de tal modo que a razão não podia sozinha resolvê-la.
“Jogar-me ou não me jogar?” ficou se questionando quando um vento quente ergueu as cortinas de voil branco.
Sean olhou o pacote de Samira em cima da mesa de vidro e o voil branco volitando na sala, e caminhou em meio ao tecido suave que voava, para fechar a janela da sacada.
“Sean... Sean... El Sean...”, ele ouviu chamarem.
Um chamado ecoado, baixo, feminino, quase melancólico.
— O quê? — olhou em volta, mas a sala estava organizada e vazia, em meio a um calor intenso, que tomou conta do ambiente.
Sean caminhou e olhou no quarto vazio, a porta do banheiro fechada. Voltou-se para a janela que acabara de fechar, e de novo para a porta do banheiro, e uma impressão ele teve; a impressão de grandes olhos a lhe olharem sob seus ombros.
Virou-se e uma mulher o olhava.
— Posso entrar Senhor? — perguntava a camareira após ter batido mais de três vezes na porta e não ter sido ouvida. Sean arregalou os olhos azuis para a porta do flat recém aberta. — Desculpe-me a intromissão, mas o Senhor não havia me ouvido bater na porta — mostrou a chave mestre nas mãos.
— Ãh? Desculpe! Eu ouvi me chamarem...
— Acabei de entrar — ela olhou em volta sem entender, se inclinando e depositando o aspirador de pó no chão.
— O que vai fazer?
— Arrumar seu flat Senhor.
— Ainda não fez hoje?
— Não Senhor!
— Mas passam das 20 horas.
— Desculpe-me! Mas a Senhorita que estava aqui não permitiu.
— Quem?
— A moça de cabelos...
E Sean não ouviu mais nada quando se aproximou da mesa, e viu que o papiro antes em branco, começava a ganhar letras tão coloridas quanto o mundo à sua volta. Porque não podia afirmar se havia ali embutida as palavras de Platão, mas uma vida não questionada não merecia ser vivida. E se questionou afinal sobre seu papel ali, no pacote de Samira aberto, no papiro que escrevia.
— A Senhora... — Sean a encarou com olhos tão vidrados que ela impactou. —, podia voltar amanhã?
— Mas...
— Amanhã! — agora soou forte.
— Claro Senhor — ela sorriu com pouca vontade de enfrentá-lo.
E o coração de Sean ainda estava à boca. Se não pelo cheiro ocre, pelos estranhos desenhos que se seguiam às letras que sabiam serem hieróglifos.
Sean teve medo de tocá-lo e tudo começou a apagar.
— Não!!! — gritou desesperado balançando o papel, tentando fazê-lo parar. — Não! Não! — e tudo se apagou. Sean engoliu aquilo a seco. — Mona? — ele a chamou.
Mona Foad ouviu a voz dele sentada em sua poltrona da sala colorida de Lisboa, sem responder. E Sean sabia que se quisesse uma resposta àquilo ia ter buscar pessoalmente.
Flat de Sean Queise; São Paulo, capital.
23° 33’ 31” S e 46° 39’ 44” W.
11/11; 23h11min.
O corpo belo não estava tranquilo. Sean havia ido dormir tenso, triste com a decisão de Mona amiga ter se calado para com ele. E mesmo sabendo que a angustia lhe tomava a alma, se lançou no éter, nas dimensões que a mente humana não alcançava, saindo do corpo como lhe fora ensinado; um corpo paralisado, incapaz de mover-se.
Sean abriu os olhos, sentiu uma forte pressão na parte posterior da cabeça. Olhou em volta, encontrou-se flutuando horizontalmente sobre a cama, elevando-se até o teto para depois girar 90º e ficar na posição vertical.
Tentou relaxar, ainda com a incômoda tensão na nuca, e conseguiu descer e tocar o chão do flat, sabendo que realmente não estava tocando o chão, que não tocava nada. Virou-se para trás e viu seu corpo deitado na cama com uma espécie de corda presa entre seus olhos, e começou a flutuar, quando um repuxo forte o fez girar no quarto, fazendo-o lembrar de que esta corda o prendia também à parte posterior da cabeça do corpo.
“Meu filho levante-se de sua cama!”, soou ali.
Sean abriu os olhos outra vez e sentiu dor no corpo agora acordado. Olhou um lado e outro escorregando o olhar sem que os olhos realmente se movessem, não entendendo como voltara ao corpo, e o corpo não voltara.
Virou o olhar novamente e olhou o relógio; 11 horas 11 minutos e 11 segundos da noite, paralisados. Seu corpo todo tremeu quase a não controlar. Quis acordar, mas a voz lhe falava novamente.
“Meu filho levante-se de sua cama! Use sua sabedoria e crie um substituto para que os deuses possam deixar suas ferramentas!”, voltou a ecoar.
Sean olhou em volta, seu quarto estava vazio e ele agora acordado.
— Droga! — não sabia quem falava, mas tentou relaxar novamente, se concentrar na saída, desligar-se do mundo material, e o corpo parou de tremer, vibrando apenas num toque suave.
Sean conseguiu abandonar o corpo novamente, atravessando a parede do quarto e chegando à sala do flat. Seus olhos caíram quase que imediatamente no pacote onde o papiro havia sido entregue. Uma luz forte, esverdeada, saía de dentro. Sean se aproximou mais, volitando. Abriu o pacote não entendendo como sua mão fazia aquilo, como tocava um objeto no astral e uma tensão sentiu; só não entendeu o porquê, se toda sua angustia havia ficado no cansaço do corpo.
Sem vacilar mais, abriu todo o pacote e o papiro se transformava outra vez, se moldando em cenas coloridas que pareciam tomar vida, quando todo o conteúdo escapou do papiro, tomou conta da sala numa imagem tridimensional, quase holográfica, contando uma estranha história de um povo vindo do longe; pessoas, um mapa do universo, estrelas distantes.
Sean se apavorou, viu-se tocando as areias de um Egito esverdeado, de vegetação que tomava conta das areias, de água que molhava seus pés sob o Sol escaldante. Olhou em volta e não mais estava no flat. Ali, só um Egito onde homens de crânios alongados carregavam pedras e lhe falavam algo.
Hora seus pés pisavam a areia branca, hora pisavam a água de um rio de marginais verdejantes, e uma grande construção de pedra em meio a sons confusos que chegavam até ele era construída, mas ele continuava a nada entender o que os homens lhe diziam.
“A Esfinge?”, se perguntou quando o calor, o enjoo, e outro repuxo o fez inclinar.
Sua voz não ecoou, sua vista se embaçou e gritos cada vez mais próximos tomaram conta de seus ouvidos. Mulheres, muitas, gritavam. Gritos que vinham de longe, e longe o quanto ele não compreendeu quando o som de um animal em ataque se fez, em meio a pedaços de corpos que se espalhavam à sua volta, sangue que manchava uma areia esverdeada, e algo passou por ele. Um vulto tão assustador que todos à sua volta, que ali trabalhavam na construção da Esfinge, se jogaram ao chão escondendo os rostos, temendo olhar.
Sean girou e girou em torno dele para vê-lo, mas a imagem não se firmava. Lá, só a imagem surreal de Samira Foad, a irmã falecida de Mona ao lado de Mr. Trevellis, que o observava naquela viagem astral, no meio da areia manchada de verde, de pedaços de corpos falando algo.
— Ahhh!!! — outro repuxo, agora tão forte que Sean voltou ao seu corpo físico sentindo seus vasos sanguíneos a ponto de estourar.
“Droga!”, levantou-se confuso sentido as pernas moles, a respiração acelerada. Correu até a porta, e dessa vez precisou abrir a porta para atravessá-la. Chegou à sala cambaleando, se apoiando na mesa de vidro, abrindo o pacote e vendo que um único papiro, uma única folha de cheiro ocre estava lá, vazia, em branco outra vez.
— Como? — foi só o que Sean conseguiu falar.
Aquela viagem havia terminado para ele.
Mansão dos Queise; São Paulo, capital.
23° 34’ 12” S e 46° 40’ 20” W.
11/11; 23h11min.
Mas o nórdico Oscar Roldman, todo poderoso chefe de operações da Polícia Mundial não descansava, tinha a cabeça lançada de um lado para outro a quase deslocá-la, com uma angustia a tomar-lhe, sabendo como Vilhelm Ekelund sabia, que a origem de toda a angústia é ter perdido o contato com a verdade; uma verdade da qual fugia. Mexia e remexia em seus papéis, todos espalhados sobre a mesa que um dia fora de Fernando Queise, ferindo o seu próprio modo de trabalhar.
Oscar parou e olhou o entorno, a lareira acesa há pouco tempo, fotos de Sean Queise e Ana Claudia Queise ainda pequenos, na felicidade captada pela câmera fotográfica. Oscar se aproximou e também viu fotos de Fernando Queise, com uma postura austera, cabelos que embranqueceram rápido e o bigode que tanto adornava a face bonita.
Oscar Roldman abaixou a cabeça, se virou olhando-se no espelho, e um olhar azul de lince escapou dos óculos de lentes grossas. Oscar também fora um homem bonito na sua juventude. Mantinha agora traços da beleza que muitos identificavam em Sean, seu filho; um filho que nunca tivera coragem de assumir ser seu.
Por um lado, por interferência de Nelma Queise que nunca permitiu a ele, saber se Sean era ou não fruto de um amor proibido. Por outro lado, respeito a Fernando Queise que nesse turbilhão do passado, fora seu amigo de infância.
E Oscar suspirou voltando à bagunça da mesa. Algo muito grande o incomodava, mesmo. Algo que ia além da angustia pela verdade da paternidade proibida.
2
Flat de Sean Queise; São Paulo, capital.
23° 33’ 31” S e 46° 39’ 44” W.
12/11; 14h30min.
Um frio fora de hora na capital paulistana cortava a pele, quando Sean se levantou da cadeira em que trabalhara a manhã inteira, e fechou a janela. Viu que o carro de sua sócia Kelly Garcia estava estacionado na frente do flat, quando a campainha tocou. Diferente de Sean para com Kelly, ela não precisava ser anunciada na portaria, já que ia constantemente ao flat dele.
A porta se abriu sozinha e ela sorriu esplendorosa.
— Isso é porque não está mais bravo comigo?
— Fica linda de amarelo — foi o que ele respondeu.
Kelly sorriu entrando e fechando a porta que ele abriu com seus dons.
E ela estava realmente linda no tailleur amarelo Channel que usava. Apesar de estar próxima há fazer quarenta anos, sua juventude interna não deixava a exterior envelhecer e se gabava disso. Longos e ondulados cabelos negros, pele macia e bem cuidada, pernas torneadas sempre envoltas em meia de seda. Sean a achava chique, inteligente, e extremamente sexy. Sexualidade aumentada desde a morte de Sandy Monroe, noiva de Sean, que se suicidara com um tiro na noite do noivado, após terríveis pressões da Poliu, em meio a acusações de que roubara importantes cálculos sobre os painéis de energia do satélite de observação Spartacus, projetado por Sean Queise.
Kelly Garcia então passou a ver uma chance de se aproximar do então, patrão. Nunca quis que ele pensasse que ela se aproveitava do intenso clima que vivia o casal, mas acabou por ser promovida a sócia.
A sociedade da Computer Co. não era bem o que ela desejava dele. Não era mal agradecida pela chance de subir na carreira, e fazer dinheiro, mas Kelly acabou por guardar ainda mais seus sentimentos, aguardando à hora certa que nunca chegava, em meio a lembranças doloridas da morte da noiva, que fechou Sean para o amor, inclusive para o dela.
— Como está calor aqui dentro! — falava alto, entrando na sala do flat de Sean, jogando o pesado casaco de lã e a bolsa em cima do sofá chesterfield de couro preto, e se jogando no mesmo, se esticou toda. — Esses sapatos estão me matando — e os arrancou sem cerimônia.
Sean ficou a observar a sócia estirada no sofá.
— Quando é que vocês mulheres, vão perceber que esses saltos não vão deixar vocês chegarem até nós? — provocou-a, cínico.
Kelly deu um grito:
— Machista! — ela só ouviu Sean rir. — Machista sem vergonha! — e Kelly avançou para cima dele para batê-lo com uma almofada.
— Hei! Calma lá... — Sean recuou e ela caiu no outro sofá chesterfield de couro preto.
— Como pode ser tão machista? — questionou, tentando se recompor com todo charme devido.
— Sendo homem! — Sean observou-lhe as pernas vistosas na saia justa. — O que vocês nunca vão entender — e Sean recuou outra vez, no que Kelly se jogou em cima dele. — Hei! Olhe os modos, mocinha.
Os dois se olharam. E foram olhares complexos. Sean recuou sabendo o que ela pensava.
— Você é lindo, sabia patrãozinho? — Kelly falou mesmo assim, mesmo sabendo que ele se afastou para fugir dela.
Sean deu uma risada sem graça.
— Não sou mais seu patrão — tentou se aprumar.
— Sim, sócio patrãozinho — ela o provocava.
— Mulheres! — exclamou esperando o clima que criou voltar ao normal.
Kelly pegou a sua maleta e começou a trabalhar, sabia que não adiantava insistir com ele.
— Por que não foi a Computer Co. hoje?
— O trânsito...
— Ok! — sorriu derrotada sabendo que ele fugia de algo, talvez de como o Sr. Oscar Roldman sabia coisas.
— Então Oscar soube?
Kelly gelou.
— Soube o que?
— Sobre o pacote.
— Quem lhe contou?
— Você!
Ela arregalou mais ainda os olhos negros.
— Que saco Sean! Quando vou poder ter minha privacidade?
— Não sei do que está falando. Nunca invadi sua privacidade.
— Lendo meus pensamentos?
— Não li nada!
— Saco! — e voltou a trabalhar nem sabendo ao certo no que trabalhava, com medo dele, de vê-lo começando a ficar nervoso. — O condomínio sabe que você utiliza o seu flat para trabalhar?
“Sean... Sean... El Sean...”, uma voz feminina ecoou.
— O que disse?
— Que eu disse?
— Você não...
— Não? — ela viu Sean fazer uma careta olhando em volta. — Sua mãe vai fazer um jantar.
Sean a olhou sem entender.
— Como é que é?
— Me convidou.
— Minha mãe fez o que?
— Ela sempre me pergunta se venho todos os dias ao seu flat.
— Minha mãe? Com ciúme? — Sean temeu o brilho no olhar da sócia. — O que disse a ela, Kelly?
— Que trabalhamos.
— Ótimo... — foi só o que conseguiu falar batendo as teclas do notebook com força, sentindo-se quente.
“Sean... Sean... El Sean...”, uma voz feminina ecoou outra vez.
— O que disse? — ele falou para Kelly do outro lado da sala.
— O que eu disse?
— Wow! Desde ontem alguém me chama.
— Te chama? Que coisa horrível, patrãozinho — Kelly prosseguiu no olhar espantado dele.
— Estou receoso, Kelly — Sean nada contou sobre sua viagem astral e a visão de homens e mulheres egípcias.
— Por ouvir te chamarem?
Sean ergueu o sobrolho.
— Pela concorrência cancelada.
— “Cancelada”?! — gritou. — Quando?
— Hoje de manhã! Veio por mensagem.
— A Computer Co. sabe?
— Não sabe!
Kelly o olhou e depois deu de ombros.
— Ótimo então! O negócio então vai se concretizar mais rápido, e você não vai ter problemas com leis antitrustes.
— Não está entendendo, Kelly? A Eschatology Inc. é uma empresa obscura, sob o comando de tal Mark O’Connor, e que sabia que eu desenvolvia algo. Mas ninguém sabia. Gyrimias desconfiava, você desconfiava.
— Mas sua mãe sabia.
— Sim Kelly, ela sabia que eu tinha tudo pronto.
— E o que sabe sobre esse Mark O’Connor?
— Ninguém sabe de onde ele vem. Alguns dizem do Canadá outros da Nova Zelândia. Mas na verdade, ninguém conhece sua nacionalidade.
— E o que sabe sobre a Eschatology Inc.?
— Pelo que pude investigar, é uma empresa arqueológica que contrata todos seus arqueólogos sob terceirização. Não há vínculos empregatícios com ninguém. Eles são um CEO e alguns poucos ajudantes com ligação direta; só isso. A própria palavra Eschatology quer dizer escatologia em português, uma doutrina relativa aos acontecimentos do fim do mundo.
— Que coisa mais estranha, quer dizer, que nome estranho para se dar a uma empresa que investiga o solo arqueologicamente.
— Eles também disseram na mensagem que a Computer Co. teve seu preço aceito, e que todas as despesas com viagens e estadias dos nossos cientistas correriam por conta deles.
— E?
— E o que? Meu pai nunca aceitaria isso se estivesse no comando.
— Você assumiu a Computer Co. com maestria, Sean. Sempre fez as coisas certas; por que o receio?
— Não compreende? Os jornais não vão poder ficar sabendo até eu voltar do Cairo com o contrato assinado.
Kelly olhou um lado e outra confusa.
— Por que não estou entendendo Sean? O que há de tão errado nisso?
— Não sei! — encarou-a. — Ahhh... Não sei... De repente passei a pensar para quê um programa de rastreamento linear se até hoje nada descobriram.
— Mas descobriram. Porque vira e mexe a mídia avisa sobre uma nova descoberta.
— Sim! Trabalhando num vasto conglomerado de túmulos antigos e templos mortuários, os arqueólogos do Instituto Tcheco de Egiptologia descobriram uma tumba antiga, na margem oeste do Nilo.
— Foram os arqueólogos que descobriram o túmulo de uma rainha egípcia previamente desconhecida, que eles agora acreditam ser a esposa do faraó Neferefre, que governou há 4.500 anos? — e o olhou quieto. — Mas que droga Sean. Está desconfiado que a Poliu esteja envolvida com essa Eschatology Inc.?
— Claro que a Poliu está envolvida, mas não no Cairo.
— Do que está falando?
— Droga! Todo o sítio de Nabta Playa hoje está situado em uma área militar, no oeste do deserto de Abu Simbel, muito fora dos limites para o turista comum. Ele só pode ser visitado com veículos de tração 4x4, e um guia que conhece a área, e com uma licença, Kelly. Eu não sei o quanto isso custaria, nem se eu conseguiria tal licença chegando lá, porque não posso chamar atenção antes de estar lá, entende?
— Voltamos a falar sobre Nabta Playa, não?
— Exato! E preciso ir lá antes de fechar esse maldito contrato.
— Porque acha que a Eschatology Inc. lhe contratou por causa da antiga escavação que a Computer Co. participava, e não para as novas escavações em Tebas.
— Você é uma garota muito esperta.
— Mas então como você entraria em Nabta Playa sem chamar atenção? Você teria que ter no mínimo uma razão científica válida, e não pura curiosidade para a sua visita, ou estaria em apuros com as autoridades egípcias se eles o pegassem ali, nas ruínas de uma escavação ilegal. E isso envolveria a Computer Co.
— Eu sei! Eu teria que propor algo antes da tal licença ser emitida, e fazer um desvio pelo Sudão, sem permissão oficial, o que traria dificuldades futuras à Computer Co. e seu contrato sem concorrência.
— E ir a Abu Simbel como um turista?
Sean a olhou achando graça.
— Como um agente disfarçado quer dizer?
Ambos riram.
— Coisa que você sabe fazer como ninguém, não patrãozinho?
— Sim. Porque minha mãe me preparou com aulas de Krav maga, para ser um agente de meu pai, de meu outro pai.
— Sean! Não diga isso! Sua mãe está com problemas sérios — ela viu Sean só a olhar. — Primeiro o divorcio depois o assassinato de seu pai.
“Droga!” soou por todo ele.
— Minha mãe sabe sobre a viagem a Nabta Playa, não Kelly?
— Não contei nada ao Sr. Roldman.
— Oscar? Ele lhe perguntou?
— Não converso com o Sr. Roldman! — exclamou furiosa.
— Ok! Não precisa ficar brava. Acredito em você... — e sorriu levantando para fazer café.
Mas Kelly ficou com o coração na mão.
Mentia para ele.
— Vai comigo?
— Aonde?
— No jantar.
— Sabe que eu não volto lá, Kelly.
— É sua casa Sean.
— Já discutimos isso milhares de vezes Kelly.
— Por favor! Não quero jantar sozinha.
— Você não vai jantar sozinha Kelly, porque não foi convidada — e ele se virou para uma Kelly em choque. — Desculpe-me por isso, mas sabe tão bem quanto eu que eles me forçam ir até lá, e te forçam a me forçar...
E Kelly o beijou. Sean ficou paralisado a se ver preso aos lábios dela. Não entendeu como não previra sua aproximação, porque nunca previa seus sentimentos. Kelly então se virou e voltou ao sofá chesterfield de couro preto para trabalhar.
“Jogar-me ou não me jogar?” soou dentro dele.
Ele se virou ainda em choque para a cozinha e terminou o café.
— Nabta é uma incógnita.
— Quem?
— Não ‘quem?’ Kelly, o quê. Nabta é um deserto que contém alinhamentos megalíticos e círculos de pedra erguidos aproximadamente há 7.000 anos. Segundo o alinhamento mais longo de Nabta Playa, ela aponta para o nascer helíaco da estrela Sirius, e isso era importante, pois indicava a primeira aparição da estrela no horizonte oriental, o que batia com o solstício de verão e consequentemente com as cheias do Rio Nilo.
— Então eles também conheciam Sirius? E você disse que os Sirianos faziam parte do grupo de alienígenas que auxiliavam a Terra.
Sean não gostou do tom de voz.
— Não sou eu quem diz, são as listas de ufologia.
— Listas ilógicas de um ex-agente da Poliu.
— Sim Kelly. De um ex-agente da Poliu. Mas no antigo Egito, os egípcios e núbios veneravam a estrela Sirius, que era representada pela deusa Sothis, ou Isis Sotis, e pelo deus Hermes Thot. Seu aparecimento no céu coincidia com o momento da cheia do Rio Nilo, no auge do verão; cheia que trazia prosperidade e fertilidade às terras inundadas.
— Nossa! Como conseguiram isso há sete mil anos?
— Boa pergunta. E foram os primeiros há dividir o ano em 365 dias e doze meses de nome: Thoth, Phaophi, Athyr, Choiak, Tybi, Mechir, Phamenoth, Pharmuti, Pachon, Payni, Epiphi e Mesore.
— Incrível...
— Parece que até o sexto milênio a.C., há evidências de uma religião, entidade ou culto que faziam sacrifícios de gado, pois foram encontrados enterrados em pedras e câmaras...
Kelly se virou para ele no final da frase.
— Por que sua voz mudou?
Sean riu. Ela o conhecia como ninguém.
— Você não deixa nada escapar não? — sorriu-lhe maravilhosamente. — Encontrei croquis do Dr. Afrânio, marido de Samira Foad, mostrando egípcios ou núbios de crânios alongados, feito os Anunnakis, e mulheres ajoelhadas, rezando para uma entidade que parecia uma leoa mascarada, na pasta cor de vinho de um agente da Poliu de nome Joh Miller, que foi dado como arquivo apagado.
— E o que é um ‘arquivo apagado’?
— Um arquivo morto Kelly, retirado de serviço e apagado dos anais da Poliu.
— Assassinato?
— Outra boa pergunta — sorriu-lhe sem comentar, porém que a lista de ufologia pertencia a ele, Joh Miller. —, porque se ele foi apagado, é porque os estudos de Afrânio estão certos. E estão certos, porque sonhei com um papiro mostrando os mesmos desenhos feitos por ele nas escavações de Nabta Playa, onze anos atrás.
— Como assim sonhou com um papiro?
— Sonhando! Daquele jeito que sonho...
— Mas aquele papiro que Samira lhe enviou não estava vazio?
— Sim! Ele escreveu algo e me teletransportei para um Egito, onde homens em roupas egípcias antigas e de crânios alongados construíam uma esfinge. E eles erguiam pedras Kelly, pedras enormes.
— Sean... Como geóloga, sei que o granito das pirâmides são uma estrutura de feldspato, mica e quartzo...
— Lendas locais no norte de Cuzco no Peru contam, que a imensa obra foi feita por um ‘pássaro’, que carregava em seu bico uma substância capaz de ‘derreter pedras’; um homem com cabeça de pássaro, como Thoth, com cabeça de uma Íbis.
— Lendas e mitos!
— Nem tão lendas e mitos, Kelly, já que mitologia é o nome que damos à religião dos outros.
— Sean... Não estou...
Mas Sean não a deixou prosseguir:
— No sul de Miami, Flórida, em 1923, Edward Leedskalnin diz ter construído sozinho, durante 28 anos, um jardim feito de pedras de corais gigantescas, algumas pesando 30 toneladas, chamado ‘Castelo de coral’, com uma porta de entrada feita de uma enorme laje de coral.
— Sean não vamos voltar a...
— Deixe-me continuar, está bem? Porque a porta foi concebida com tal perfeição que pode ser aberta com o leve empurrão de um dedo, embora pese nove toneladas — ele a viu fazer uma careta da qual não gostou. — Não estou tendo insights Kelly, Leedskalnin trabalhava a noite, sem que ninguém visse e a única coisa que se tem conhecimento, são fotos que ele tirou dele mesmo, com uma espécie de guincho e uma caixa preta que ninguém soube o que era, e que sumiu após sua morte. Nessa caixa, ele insinuava que havia correntes magnéticas capazes de erguer tais pedras, e que na verdade, gravidade é magnetismo.
— A força magnética movendo pedras?
Sean olhou-a com interesse.
— Por que não?
— Porque não!
— A Terra está rodeada por uma teia invisível de energia, que está concentrada em certos pontos Kelly, e porque há locais onde a energia flui livremente e as pessoas são muito mais fortes do que seriam em qualquer outro lugar, e Leedskalnin disse que havia descoberto os segredos das pirâmides.
— Sean... Blocos de pedra pesam toneladas...
— E como acha que os Incas ergueram sozinhos Machu Picchu se não tiveram ajuda tecnológica superior? — e Sean outra vez não a deixou prosseguir.
— “Ajuda tecnológica superior”? Alienígena, não patrãozinho?
— Já não falei para não me chamar dessa maneira jocosa?
Kelly riu.
— Sua avó Adelaide falava ‘jocosa’, Sean. Você é muito novo para falar assim.
Sean estava tenso demais para ralhar com ela e a maneira jocosa idosa de chamá-lo.
— Não sou tão novo assim para saber que na Stonehenge armênia, foram encontradas figuras em pedra, que mostram humanoides de grandes cabeças, olhos amendoados, muito similares ao que abduzidos contam sobre os cinzentos. E as tais figuras seguravam uma espécie de disco, como o Aton de Akhenaton do qual sonhei.
— Sean... Sonhos... — e Kelly nada mais falou, porque nem sabia ao certo o que falar o que pensar, e o que ele podia realmente fazer com os pensamentos dela.
— Não Kelly... Carl Gustav Jung dizia que o sonho era uma porta estreita, dissimulada no que tinha a alma de mais obscura e de mais íntima, que se abria sobre a noite original e cósmica, que pré-formava a alma muito antes da existência da consciência do ‘eu’, e que a perpetuaria até muito além do que poderia alcançar a consciência individual — mas ele viu Kelly se virar, começar a fechar o notebook, e recolher folhas e canetas. — O que está fazendo?
Ela bufou e o encarou:
— Vou embora!
— O que?
— Não vou continuar aqui ouvindo sandice Sean.
— San... o que?
— Você me prometeu Sean. Havia prometido a seu pai antes dele morrer. Prometeu aos dois pais, Sean, que não faria mais essas viagens astrais quando sonhasse.
— Como é que é? Pensei que...
— Pensou errado! Amo você demais para vê-lo se entregando a essa loucura que afeta sua saúde.
— Minha saúde nunca foi afetada pelas viagens.
— Sua saúde mental — e se levantou sendo puxada de volta.
— Como você se atreve...
— Sua saúde, suas atitudes, patrãozinho. Seus trabalhos além da Computer Co.; hackerismo, paranormalidade, suas ligações com ondas ufológicas. Até o mercado diz...
— “O mercado diz”? — fez uma cara debochada.
— Nada! — e Kelly acabou por colocar o sapato e começar a juntar os papéis em que trabalhava na bolsa.
— Vamos, Kelly! — Sean balançava a cabeça. — Continua sua performance!
E ela o enfrentou como nunca fez.
— O mercado diz que você está desestabilizado emocionalmente, Sean. Que o assassinato do... Que você foi jogado numa obscuridade.
— “Jogado numa obscuridade”? — Sean gargalhou. — Que coisa mais ridícula.
— Atitudes de hackerismo são algo ridículo para você, patrãozinho?
— Não me chame assim! — Sean balançava a cabeça para um lado e para outro desordenadamente.
— Você tem rixas com grandes empresários da informática, você trabalha demais, obriga seus funcionários idem.
— Você não pode estar falando sério.
— Não? E as discussões acaloradas em listas de e-mails? Confusão com jornalistas? Problemas com sites de fofocas? Vigílias ufológicas e... — e Kelly não conseguia terminar de falar. — E congressos e vigílias e um monte de sandices sobre coisas que nunca ninguém vai acreditar.
— Nem você!
E Kelly parou. Respirou profundamente acabando de recolher o que até não estava tão espalhado assim, e virou-se para ele sem saber como prosseguir aquilo.
— Quantos anos têm Sean? Vai fazer vinte e seis e daí? O que fez da sua vida? Nada! Não sai, não viaja, não passeia. Não tem namoradas; não que isso me afete — Sean só a olhou e Kelly prosseguiu. — Mas só procura briga no mercado corporativo se plugando nessas listas insanas.
— Listas...
— Listas que levam embora toda sua sanidade.
— Basta!
— Culpa a Poliu publicamente chamando-a de ‘governo oculto’ quando ninguém entende bulhufas do que isso significa — olhou-o a olhando. — E ainda cria programas espiões, hackeando a corporação com um satélite de última geração, imaginando teorias de conspiração, atrás da Poliu para destruí-la.
— Basta Kelly!
— Não basta não! Porque vive se envolvendo em questões de política internacional, para bancar o agente secreto do Sr. Roldman, atrás de provas alienígenas no nosso passado...
— Basta!!! — Sean perdeu o controle.
Kelly se magoou com aquilo. Porque ela era totalmente a favor dele, até de suas loucuras.
“Droga!”, Sean sentia que se desestabilizava emocionalmente.
Sean viu Kelly pegar a bolsa e a segurou pela alça. O corpo dela voltou para trás com o empuxo.
— Não vá! Eu preciso de você.
Kelly viu o homem que amava, o belo e jovem empresário com lágrimas nos olhos; olhos que ficaram mais azuis em meio a lágrimas.
— Ah! Patrãozinho! — e o beijou novamente.
E Sean sentiu o impacto daquele beijo. Porque havia mais que amizade, mais que carinho; havia um sentimento muito profundo. Sentiu ódio dele mesmo por não querer amá-la. Mas Kelly o derrubou no sofá chesterfield de couro preto. Sean arregalou os olhos azuis. Ela puxou-lhe os cabelos e ele sentiu tesão, dor, confusão. Quis se levantar, mas ela puxou-lhe os cabelos até ele gritar.
— Ahhh!!!
Ela o lambeu; sua boca, seu queixo, seu pescoço. Sean queria, não queria, queria amá-la naquele momento.
“Jogar-me ou não me jogar?”
— Patrãozinho...
E mãos começaram a descer, subir, descer, alcançar sua perna, seu sexo.
— Kelly... — tentou, ela não queria ouvir, ser chamada, parada. Sua mão atrevida o invadiu. — Ahhh... — Sean sentiu seu sexo tocado, consumido pela mão firme. Kelly o largou, abriu sua camisa, abriu sua própria blusa. A saia Chanel subiu, sua meia de seda retirada, a calça dele aberta. — Kelly...
Os seios perfeitos, eretos, macios tocaram-lhe no peito. Sean sentiu-se atordoado, excitado, com a mão atrevida dela voltando ao sexo dele, e a mão atrevida dele indo a locais poucos explorados.
Ele a olhou. Jogar-se era pouco para aquele momento. Todo o precipício era um pagamento baixo a se tentar, a cobrar-lhe a alma. Ele sabia a amava. Mas Sean empurrou-a num último momento de lucidez, fazendo uma Kelly seminua o fitar.
— Vou embora! — ela anunciou se levantando.
— Eu vou...
— Vai? — ela parou de costas para ele.
— Diga a minha mãe que eu vou.
Kelly cerrou os olhos, se olhou de relance percebendo o quanto seu corpo era bonito, o quanto sua beleza mexia com ele. E o quanto o amava para fazer aquilo com ele. Recolheu o que ainda estava por ali, se vestiu e saiu. Chorou até a hora do jantar em que ele ia, sabendo que ele sabia que ela fora até ali o obrigar.
Mansão dos Queise; São Paulo, capital.
23° 34’ 12” S e 46° 40’ 20” W.
12/11; 21h21min.
A Lamborghini estacionou em frente à casa que já fora sua. E já fora porque Sean se recusara a voltar lá. Lembranças da noite do noivado, da felicidade exposta, da bela Sandy e seu vestido de chiffon branco, da pureza corrompida, rompida pelo tiro que levou sua vida. Sean sabia que ele não tivera culpa, que Sandy era a única culpada de tudo aquilo, da fraqueza, da discórdia, do motivo que a levara ao suicídio. Mas ele não se perdoava, não com dons avisando que algo ia acontecer àquela noite. Os mesmos dons que avisavam que o jantar não ia manter a noite tranquila.
Ele tocou a campainha e esperou alguém vir abri-la. Não a abriu, nem com as chaves que ainda tinha. O empregado abriu, cumprimentou-o e se perdeu para os fundos da mansão, e Sean chegou até a sala. Lá, sua mãe Nelma em seu corpo mignon, seu cabelo loiro, belo; lá também Oscar, lá também a bela Kelly, encolhida.
— Está linda de amarelo — foi o que Sean falou ao vê-la em vestido de seda amarelo com poucas e miúdas flores estampadas nele.
— Sean... — foi o que soou da boca tímida da sócia.
— Mãe... — e foi só isso.
— Como vai Sean querido? — foi Oscar quem tentou quebrar o clima. — Demorou.
— O trânsito... — Sean respondeu olhando Kelly.
E ela não gostou de ter sido olhada daquela maneira.
— Ana Claudia deixou-lhe um beijo — foi a vez de Nelma quebrar o clima frio.
— Ela não vai jantar conosco?
— Foi dormir numa amiga.
— Ah! Que bom! Pelo menos minha irmã você deixou ter amigos.
— Sean! — aquilo foi uma repreenda de Oscar Roldman.
Mas Nelma também era inteligente, sempre foi. Aquele jantar tinha um intuito e ela não ia deixar de concluir.
— Mandamos fazer bacalhau. Sei que gosta.
— Obrigado mãe. Não precisava se incomodar.
Os quatros sentaram pesado e o jantar foi servido. Havia algo ali, Sean podia sentir. Nem o vinho branco Chardonnay ajudava, estava a ponto de explodir pela tensão, pelos dias de trabalho intenso, com o cancelamento, e com o quanto sua mãe o vigiava.
— Kelly está linda hoje, não Sean? — a voz de Nelma fez Sean voltar ao jantar.
— Kelly sempre foi linda — mas foi a voz de Oscar quem o acordou.
Sean não gostou daquilo. Daquilo não. Já Kelly não se mexia, provável nem respirar mais, respirava.
— Quantos anos tem Sean? — a voz de sua mãe fez Sean encarar Kelly outra vez ainda cabisbaixa.
— Aonde quer chegar com a ladainha?
— Sean?! — Oscar realmente não gostou daquilo.
— “Sean”? O que há com vocês? Sabem quantos anos eu tenho e o quanto posso saber o que estão tramando.
— Tramando? Por que acha que estamos tramando meu filho? — Nelma manteve a aparente calma, mas a cadeira de Sean fez um som tão agudo no mármore do piso quando se ergueu, furioso, que Kelly foi a próxima a se levantar e se dirigir para a sala.
— Aonde vai Kelly? Kelly? — mas Kelly não parou para responder a Sean. — Kelly? Kelly? — e ela sumiu da sala. — Satisfeita com o que fez? — e Sean encarou sua mãe para então ser encarado por um Oscar Roldman furioso na frente dele o brecando.
— Peça desculpa a sua mãe! — exclamou nervoso.
— Pelo que? Por minha mãe trazer o anel de noivado de Sandy ou por você obrigar Kelly me trazer aqui?
Nelma arregalou os olhos atrás de Oscar, não sabia que Sean havia visto o anel, nem que ele soubesse que ela ainda o tinha; nem que Oscar havia obrigado os dois a irem lá.
— Queremos que você se case — disparou Nelma.
— Wow! — Sean gargalhou nervoso. — Vocês querem? Ah! Claro! Vocês querem... — e saiu atrás de Kelly, percebendo que ela já havia ido embora. — Droga... — se perdeu naquela noite também.
Apartamento de Kelly Garcia; São Paulo, capital.
23° 33’ 41” S e 46° 39’ 23” W.
12/11; 23h50min.
O interfone tocou e Kelly Garcia ainda chorava.
— O Sr. Queise vai subir... — ecoou.
Kelly se olhou no espelho, vestia camisola bordada, de renda delicada, sem muita certeza se queria enfrentar Oscar Roldman outra vez. Havia feito o que ele pedira, mas não estava satisfeita com aquilo. Não era mais uma empregada para receber ordens, muito menos era empregada dele, para vigiar Sean, para segui-lo pelas noitadas como se fosse uma baba e não secretária dele; dele que não teve muito tempo para as noitadas, para os amigos, porque Fernando e Nelma cortaram-lhe, podaram-lhe, impuseram-lhe a Computer Co. e toda a responsabilidade do que os grandes bancos de dados infringiam; e Oscar Roldman admitiu tudo aquilo.
E sim, Kelly também estava furiosa com ela mesma.
— O que o Senhor quer... — e Kelly paralisou a fúria vendo Sean parado ali. — Minha Nossa...
— O porteiro perguntou quantos ‘Sr. Queise’ existiam? — ele viu os olhos dela se arregalarem. — Eu não soube ao certo o que responder.
Ela engoliu a seco e apontou a sala; ele entrou.
— Você nunca veio aqui.
— Não... Nunca... — Sean olhou a sala de couro e mármore branco.
— O que quer? A ‘família Queise’ já não se divertiu o suficiente comigo hoje?
Ele se virou mais furioso do que enciumado, porque nunca imaginou ter ciúme de Oscar Roldman.
— Foi você quem insistiu.
— Não! Foi seu pai quem me obrigou. O outro ‘Sr. Queise’ que o porteiro anunciou.
— Oscar vem muito aqui?
Ela outra vez arregalou os olhos.
— Não vou responder a... — e seu braço foi agarrado, todo seu corpo deslocado do chão até os lábios dele, que a engoliu como nunca fizera.
— Perdão... Nunca me imaginei magoando você...
— Mas faz isso o tempo todo, não patrãozinho?
Sean recuou.
— Não vim aqui brigar...
— E o que você quer Sean? O que ainda você... — e Kelly foi beijada outra vez.
E havia mais que lábios, movimentos e amor. Havia química, energias motrizes os movimentando, movimentando Sean, que ergueu uma perna dela, que ergueu a outra, que a colocou no colo.
Seus olhos se encontraram e a camisola fina, delicada de renda se enrolou não mãos másculas que a tocava, que a abraçava que era abraçado, que andava até o quarto como se conhecesse o caminho, o cheiro do perfume dela que exalava da cama macia em que ele a colocou.
“Jogar-se!” deixou de ser uma pergunta.
Mas também uma pergunta que Kelly não conseguiu responder. Porque ela era mais velha que ele, porque ela era sua sócia, porque a Computer Co. era a única coisa que ele tinha, com que ele se importava, que lutava desde quando seus pais o proibiram de ter amigos, de viver, de sair, de curtir a vida. Ela o empurrou e demorou a que Sean entendesse que ela não o queria, que ela não ia se jogar no precipício com ele, que ela não arriscaria aquela amizade como ele fazia.
— Kelly...
— Saia!
— Não faça isso...
— Saia! — foi o que ele ouviu.
Talvez o que ele nunca imaginaria ouvir. Porque talvez todo seu corpo de homem ainda vibrava pela proximidade do sexo dela, do cheiro dela, do appeal que o corpo bonito e maduro lhe excitava.
Ou talvez tivesse sido o ciúme que nunca experimentou por Oscar Roldman que ativou todas as suas defesas.
— Claro! — ergueu-se fechando a roupa que já tinha aberto. — Você prefere meu pai... — e não foi uma frase completada no que a mão dela ainda vibrava de dor pelo bofetão que desfiara nele.
Todo o rosto e o brio de Sean haviam sido atingidos. Ele não falou mais uma única palavra. Nem mesmo porque Kelly também não se permitiu falar nada. Estava ofendida, magoada, usada de todas as maneiras.
Sean terminou aquela noite sozinho no flat, com uma mala arrumada para viagem, em cima do sofá chesterfield de couro preto.
3
Computer Co. House’s; São Paulo, capital.
23° 36’ 19” S e 46° 41’ 45” W.
13/11; 08h00min.
— Renata? Chama-me Sean! — e antes que a secretária falasse, Kelly emendou. — E diga a ele, que não vou mais aceitar o telefone da mesa dele desligado.
— O telefone da mesa não está desligado Srta. Garcia. O Sr. Queise não veio trabalhar.
Houve um breve silêncio de ambas as partes.
— O passaporte e a passagem?
— Entreguei na mesa dele hoje cedo.
— Pegue-os! Porque se a ida dele chegar realmente aos jornais, Mr. Trevellis vai fazer de tudo para tirá-lo do comando da Computer Co., Renata — Kelly sabia que Renata Antunes não ia responder àquilo. — E sabe o que mais? Vai controlar não só a empresa, mas todos os mainframes.
Renata provocou um som agudo quando sua cadeira deslizou pelo piso. Até não se considerava secretária de Kelly, mas também concordava com aquilo. Obedeceu a ordem dada e levantou-se, abriu a porta como foi mandada, e viu o passaporte, as passagens e o envelope com dinheiro sumindo as vistas dela.
— Ahhh!!! — o gritou chegou aos ouvidos de Kelly.
— Renata? Renata? — Kelly se viu no vácuo.
O salto de Renata ecoou pelo piso até onde o telefone repousava na espera.
— Ele... Ele... — suas mãos e toda ela tremiam ao telefone.
— O que está acontecendo Renata? Por que gritou? — Kelly sobressaltou.
— Ele... Ele...
— Renata?!
— Ele os teletransportou!
Foi a vez de Kelly gritar.
Aeroporto Internacional de Guarulhos; São Paulo, capital.
23° 25’ 55” S e 46° 28’ 10” W.
13/11; 08h05min.
Sean sabia que estava tomando uma decisão contraditória se envolvendo com uma empresa de péssima reputação, se esquivando de uma conversa franca com Kelly que agia de maneira inesperada, e principalmente fugindo de seus pais que queriam que ele casasse, provável para controlá-lo mais ainda.
E controlado por Kelly que o controlava.
Talvez fosse esse o motivo para a atitude drástica que tomou, que fez apport de seus documentos, que o fez evitar ir a Computer Co. e ver os contatos de seu pai avisarem de sua viagem; uma viagem primeiramente a Portugal, à Mona Foad Almeida. Por isso fez check-in para o Egito, mas não embarcou. Estava naquele momento no movimentado aeroporto internacional, entregando sua passagem para Portugal e sendo observado; grandes olhos de pássaros sobre seus ombros.
Sean se virou e só o burburinho de ir e vir de turistas, passageiros, equipe de bordo e uma bela moça ruiva, extravagante o suficiente para paralisar-lhe a busca e se focar nela. Ela sorriu-lhe de volta e Sean recuou. E virou-se não gostando de ter sido pego.
Mas a moça ruiva gostou de ter sido observada pelo homem jovem e bonito, com uma pequena mala de roupas, outra mala tipo valise onde carregava um computador e um casaco na mão, escorregando os olhos azuis para vê-la de novo, e de novo os olhos de ambos se cruzaram.
Sean recuou.
“Droga!”
A sala VIP estava vazia, uns poucos casais e cinco crianças. E a ruiva, vestindo uma sumaria saia de pelo preto e dedos que se enrolavam num colar dourado e chamativo.
Sean recuou pela terceira vez sabendo que a moça ruiva havia realmente conseguido chamar sua atenção e uma voz ecoou ali.
“Sean... Sean... El Sean...”.
Sean agora escorregou um olhar para os poucos casais e as cinco crianças, percebendo que não foram eles. Procurou a moça ruiva, mas ela não estava mais ali. Também não demorou muito e os poucos passageiros foram encaminhados à aeronave.
A comissária começou a falar com um sotaque português que fez Sean lembrar-se de sua vó, seu pai, e o quanto o amava ainda, porque a morte em si não existia.
A voz da comissária indo e vindo e Sean percebendo que as belas pernas jambo, despontando na saia comportada, também lhe chamavam a atenção. Porque estava tudo ali, uma ruiva escandalosamente vestida, e uma comissária de lindos olhos esverdeados e belas pernas jambo. Sean sorriu para ele mesmo sabendo que tomara a decisão certa, e a voz da comissária voltou a alcançá-lo.
— Bom dia! Agradecemos por viajar pela TAP, Air Portugal. Eu sou a comissária Dolores e...
E Sean já sabia o que iam explicar. Desligou-se mesmo porque sua cabeça voltou a doer pela noite mal dormida, pelo corpo dele ainda com o cheiro dela, do amor por ela, por toda uma Kelly que se recusou a pular no precipício.
— Com licença! Um aperitivo? Uma água, talvez?
Sean abriu os olhos e viu a comissária Dolores, a bela morena jambo das pernas mais roliças que já vira na aviação, e olhos esverdeados em que ele enxergava Mr. Trevellis.
— Não quero nada! Obrigado! — Sean sorriu-lhe somente.
A comissária Dolores se foi depois de um demorado sorriso, e Sean sabia que conhecia aquele sorriso, aqueles olhos, talvez até as pernas roliças. Achou graça pelo Déjà vu, pela ideia que já vimos isso e aquilo, que já vivemos vidas que não sabemos, e conhecemos tudo e todos a seis graus de separação, e então percebeu à sua frente, à moça ruiva do saguão do aeroporto se dirigindo ao toalete do avião com uma nécessaire na mão.
Ele pode sentir seu perfume forte, na hora em que ela passou, porque também ela relou sua perna no braço dele fora da poltrona.
“Fez de propósito”, pensou Sean ao vê-la voltar depois de algum tempo.
— Márhaba! Ezaiák? — ela exclamou sorridente para ele. — Olá! Como vai? — traduziu num perfeito dialeto paulistano; pareceu ser brasileira.
— Ahhh... — Sean impactou. — Achei que nunca fosse se aproximar.
Ela achou graça da sinceridade dele vendo que Sean viajava com a poltrona executiva ao seu lado vazia; e ela fixou o olhar nela.
— Posso? — apontou.
— A poltrona está... — e Sean teve que se encolher no que ela enfiou o par de pernas tão roliças quanto de Dolores, e sentou-se com a nécessaire na mão. Sean não acreditou naquilo, mas a moça ruiva deu uma gargalhada esganiçada, chamando a atenção de todos ao lado dele e sorriu-lhe mais chamativa ainda. — Ah! Gostaria de beber algo?
— Vinho! — exclamou encantadora. — Branco, por favor — completou logo após Sean ter chamado Dolores, a comissária de bordo.
— Duas taças, por favor!
A comissária Dolores os serviu após detalhar minuciosamente a mulher ao lado dele. Ela então se foi deixando-os sozinhos na classe executiva.
— Não me disse seu nome, Senhorita?
— Nem o Senhor, o seu — proferiu majestosa.
Sean ficou a observá-la. Era jovem, realmente uma ruiva bonita, que mal cabia na roupa que vestia.
— Meu nome é Sean — sorriu encantador no que ela deu outra gargalhada esganiçada enquanto o analisava. — Ãh! — Sean olhou para os lados meio sem graça. — E o seu nome qual é? — insistiu.
— Meu nome é Tahira; Tahira Bint Mohamed — e o analisou outra vez. — O ‘h’ tem som de ‘r’.
— Ah! Com erre... Incomum como o meu, não?
— Tahira é um nome muçulmano e quer dizer pura, casta, pudica — sorria de ponta a ponta.
“Pudica?”, pensou Sean.
— Percebo... — escapou.
— Você é de São Paulo, não é Sean? — e ela não esperou ele concordar ou não. — Eu moro no Brasil há onze anos, tenho vinte e seis anos, e sou secretária — sorriu. — E você?
— Tenho vinte e seis também, e sou...
— Sabia que o ‘Bint’ quer dizer ‘filha de’; então sou ‘filha de Mohamed’.
— Interessante...
— Para homens usamos ‘Bin’, ‘filho de’ — e ela sorriu após a aula. — Nossa! São Paulo é tão grande que a gente às vezes nunca se encontra — voltava a enrolar os dedos no chamativo colar.
— Interessante... — repetiu. — E a gente acaba se conhecendo numa viagem a Portugal — falou com uma ponta de cinismo. — Onde nasceu Tahira?
— Egito!
Sean só teve tempo de respirar pesado.
— Menn uên báyac?
“De onde é seu pai?”; Tahira traduziu imaginando como Sean Queise falava árabe.
Nada na ficha dele dizia sobre ele falar árabe.
— Meu pai vem do Egito — e Tahira deu outra risada tão esganiçada que o avião parou para ouvi-la. — E o seu pai?
— Portugal! Para onde você também vai, não? — Sean imaginou mesmo que aquela viagem ia ser enfadonha com ela falando, falando.
— O que faz da vida, Sean? — ela viu Sean parar de beliscar um biscoito salgado. — Estuda? — e cruzou as pernas fazendo a lingerie vermelha aparecer na curta saia de pelo preto.
— Essas viagens incomodam tanto, não?
— Como?
— Por que não se livra dela de uma vez?
— ‘Dela’? Não entendi.
— Entendeu sim.
— Não! Não entendi!
— Ah! Então quer talvez a ajuda da comissária Dolores para arrancar a saia de vez? — e fez menção em chamá-la.
Dolores o viu com dificuldades, mas não foi até ele.
— A o quê? — se sentiu insultada.
— A o que o quê? Falei-lhe algo que a ofendeu, Tahira pudica?
— Eu acho melhor voltar para minha poltrona — se ergueu quase sem saia.
— Por que não para logo com isso e vai direto ao ponto?
Tahira se virou para ele e arregalou tanto os olhos verdes, que se perdeu na conversa por um segundo.
— Como é que é?
— Sabe quem eu sou e o que eu estudo ou não, então não me venha com essa conversinha — olhava-a de uma maneira que Tahira sentiu-se atravessada.
E Sean tentava atravessá-la sem conseguir. Odiou-a imaginando a Poliu ali, controlando suas decisões, seguindo-o.
Porque ele não podia ter a Poliu na sua cola, não com a decisão que achava ser a certa a tomar, não com todos aqueles anos do acidente com os arqueólogos o separando da decisão que tomara e ponto. Ergueu-se mais furioso ainda pela aquela mulher escandalosa ter se vendido a Poliu, e pediu para que ela saísse; e tudo num movimento de mão.
— Eu não sei do que está falando Sean, mas se queria se livrar de mim era só pedir — e passou por ele; tentou passar porque derrubou tudo o que tinha dentro da nécessaire no que seu colar enroscou-se à poltrona. Estava nervosa demais por ter falhado, por não ter conseguido iniciar uma linha de conversação com ele, que suas mãos suavam pegando as coisas da nécessaire e elas voltavam ao chão. E Tahira se abaixou e levantou tantas vezes, que se desenhou e redesenharam-se as curvas perfeitas. Quando conseguiu juntar um quilo de maquiagem viu Sean sentado, observando a saia curta que subira agora mostrando nádegas vantajosas, e uma lingerie tão vermelha quanto os cabelos dela, o encarando. — Que falta de educação... — empurrou as pernas dele para passar, mas Sean abriu as pernas e ela caiu no colo dele. — Ahhh! — Tahira deu um grito se pondo em pé novamente. — Hara! Hara! Hara! — e ela nem sabia se Sean sabia ou não traduzir os palavrões. — Sabah el-kheir Sr. Queise!
— “Bom dia Sr. Queise”? — agora ele traduziu rindo. — Que coisa feia mocinha... Achei que não havia dito meu sobrenome para você.
Tahira nem o encarou. Foi embora totalmente desorientada puxando o tamanho de saia que vestia.
“Idiota!” exclamou Sean com seus botões.
Aeroporto da Portela; Lisboa, Portugal.
38º 46’ 46” N e 9º 8’ 10” W.
13/11; 21h00min
Após aquele encontro, digamos interessante com a ruiva Tahira Bint Mohamed, fosse ela uma agente da Poliu ou não, eles não voltaram a se comunicar. Nem quando foi ao banheiro, nem quando subiu para o bar, nem quando o café foi servido, e nem quando procurou com olhares compridos pelos corredores do avião.
Nem aquela voz que lhe chamava, ele escutou mais.
Manoel Almeida, o ‘Senhor Barricas’, que engordava mais com o casamento, gerente de compras da Computer Co. e amigo de muitos anos o esperava no saguão quando saiu da alfândega. Toda sua constituição mais parecia mesmo uma barrica de vinho, talvez por isso seu pai Fernando o chamava assim, ‘Senhor Barricas’.
— Tiveres problemas, Sean? — já foi abrindo os braços no que Sean apontou vindo da alfândega.
— Não, não tinha nada a declarar a não ser meu notebook — Sean o abraçou. — E como vão as coisas por aqui? E Mona amiga, como vai?
— Ganhamos mais um filho. Todos, homens.
— Isso parece algum problema? — riu.
— Não. São apenas mais três carros na garagem.
Sean gargalhou.
— Olha Barricas, não precisava sair do seu itinerário por minha causa. Pedi a minha secretária para lhe explicar.
— Estas tudo bem, Sean. Kelly disseres que tu estais a fazeres umas vistorias aqui e pediu-me só para lhe dares um auxílio.
— Kelly? Não! Renata!
— Não foi a espanhola bonita com quem falei?
Sean já não sabia o que responder. Nem que a beleza espanhola de Kelly atravessasse oceanos.
Outra vez sentiu um ciúme que não compreendia.
— Não sei o que dizer Barricas.
— Então não digas! Mona pedes que tu vás jantar em casa — falou tão rápido que toda sua gordura se inflou.
Sean sentiu o chão faltar-lhe.
— Obrigado, mas vou estar ocupado...
— Por favor, Sean? Por seu pai.
— Barricas... É tarde...
— Pelos velhos tempos, então?
Sean o encarou meio em dúvida. Estava e não estava ali para falar com Mona. Estava, mas preferia que ela o fosse ver num hotel. Não sabia se a casa dela, a intimidade dela seria o ideal. Nem que Manoel Almeida soubesse o verdadeiro motivo por que dele estar ali quando viu uma garota magra e de cabelos castanhos e cacheados, entregando um pacote a um jovem Manoel ‘Barricas’ Almeida.
Sean teve medo que o pacote fosse o papiro de Samira. Voltou a si e nada comentou.
— Está bem... — resolveu enfim. — Vou me hospedar no Hotel Avenida Palace, no centro da cidade, e apareço mais tarde.
— Pois, pois. És um belíssimo cinco estrelas. Já se hospedou nele antes, não?
— Não lembro. Mas amanhã vou procurar uma agência de turismo — ambos se encaminhavam para fora do aeroporto. — Talvez Mona me ajude com algumas informações da sua terra natal.
— Vais para o Egito? — estranhou Manoel ‘Barricas’.
— Estava pensando em passear um pouco.
— Ficas lá para o Natal?
— Não, estarei muito ocupado. Tenho uma remessa muita grande para o Papai Noel de Miami e isso já vem tirando o meu sono.
— Pois, Pois. Vou procurar algumas agências para ti. Agora para saíres daqui sem minha carona... — Sean riu e Manoel prosseguiu. —,o autocarro, ônibus de 2.00 € é o mais rápido.
— Vou de táxi. Quero tomar um banho antes. Obrigado mesmo por ter vindo.
Sean esticou a mão para cumprimentá-lo e percebeu como as mãos dele estavam geladas.
— Sean — Manoel estava visivelmente sem graça. —, desculpe falares isso, mas ainda estais chateado comigo naquele lance da Poliu e Sandy?
Sean sentiu-se realmente mal.
— Barricas...
— Sean... Tu... É que eu não sabia quando nos vimos da outra vez que... que a Poliu estiveras envolvida com o satélite de observação.
— Esqueça! Sandy só encontrou o que procurou — começou a ficar visivelmente nervoso.
— Mas talvez ela não tivesses encontrado... Culpa, entende? Talvez aquelas coisas de viagem, projeção astral, as tais visões remotas em que Mona estava envolvida não houvesses sido cem por cento corretas. Talvez Mona não devesse teres contado a Mr. Trevellis...
— Trevellis sabe ser convincente! — Sean tentava fugir daquele assunto.
Sandy Monroe se tornara uma péssima lembrança.
— Sabes que não é isso — Manoel insistiu.
— Você não tem nada haver com isso, Barricas. Conheceu Mona depois que tudo aconteceu... E eu sei que Mona foi colocada contra a parede quando descobriram que Sandy roubava algo...
— “Algo”? — e parou de andar. — Falas como se Spartacus não houvesse sido algo importante para ti.
Sean parou também.
— Para mim sempre foi.
— Então? E se ela não roubava?
— Do que está falando? Por que isso agora? — perguntou Sean afobado. — Sandy roubou projetos de Spartacus! — tentou voltar a caminhar. — Ponto final!
Mas Manoel estava redundante.
— Tu só acreditastes porque Mona descobrires que Sandy estavas naquela noite na Computer Co.. Na noite do roubo. E se ela estavas lá por outro motivo? E se Mona tivesses visto outra coisa e interpretado errado? Sandy matares a si própria na noite de teu noivado!
— Basta Manoel! — e Sean nunca o chamara pelo nome. Ele se virou para ir embora e viu Tahira na saia de pelo preto o observando de longe. E algo nela ainda o incomodava. — Olha Barricas... Esqueça! Você é um amigo leal a mim e a meu pai! Esqueça o passado!
Manoel suava na noite gelada de Lisboa.
— Pois, pois. Estais bem!
Sean fez um sinal com a mão e chamou um táxi. Depois se virou para ele.
— Hoje à noite... Não toque nesse assunto.
O amigo concordou e Sean se foi com Tahira entrando num táxi logo atrás.
Ambos sumiram no trânsito.
Pontinha, Lisboa; Portugal.
13/11; 23h58min.
A campainha tocou quatro vezes até que alguém aparecesse.
— Tesba Ala Kheir! — Sean deu ‘Boa noite!’ para uma bela e grande morena de nariz adunco que abriu a porta ofegante, enrolada num avental comprido, tentando arrumar o lenço que desenrolou da cabeça.
— Tesbah Ala Kheir! `Ezzayyak? — falou Mona Foad. — Boa noite! Como está? — e mostrou a casa para que ele entrasse.
Sean entrou se sentindo sem graça.
— Esqueceu que eu vinha para jantar? — perguntou Sean sorrindo, tentando um dialogo.
— Achei que nem vinha mais...
Ambos se encararam e Mona foi para a cozinha. Manoel se aproximou com os filhos e Sean colocou no chão alguns pacotes de presentes, que foram quase que devorados por três meninos na idade de quatro, três, e quase um ano que se arrastou até os pacotes.
— Isso cá são modos, moleques? Agradeçam ao menos.
— Deixa disso, Barricas — Sean o cumprimentou. — São muito pequenos para isso.
— Gosteis que tu viesses Sean.
Ele nada respondeu, estava sem graça. Entrou no belo apartamento de cobertura da família Almeida e Manoel sumiu com as crianças para dentro de um quarto, onde Sean viu que uma babá pegou o mais novo.
— Gostei da reforma. Isso aqui ficou muito bonito — olhava em volta quando Manoel voltou sozinho.
Móveis de estilo com muita madeira pintada de dourado se espalhavam pelo amplo salão de visitas. Muitos quadros retratando o dia-a-dia árabe foram distribuídos pelas paredes. Sean prestava atenção neles se dirigindo a sacada, quando teve a impressão de grandes olhos de pássaro lhe pairar sob os ombros. Olhou em volta a procurar algo. Havia realmente se assustado.
— Aconteceres algo? — perguntou Manoel ao chegar à sacada do apartamento espaçoso e confortável na zona nobre da Pontinha, e vê-lo inquieto.
— Ãh! Tem uma vista maravilhosa de Lisboa a noite — disfarçou ao apontar para os céus que se iluminavam pelo reflexo das lâmpadas de rua.
— O molokheiye está pronto! — chamou Mona na porta da sacada, quebrando os seus temores.
— O “o quê”? — brincou Sean.
— Sopa com frango e cubos de tomate! — sorriu Manoel cabisbaixo.
— Não comem bacalhau nessa casa? — Sean o atiçou.
— És louco? Quer que Mona me mate? Ou te mate? Acho bom ir pegando pãezinhos, e colocando labna má riyar antes que ela volte da cozinha.
— “Labna”? Coalhada?
— Labna má riyar, coalhada com pepino — Manoel sorriu outra vez. — E ponha malah, Mona esquece-se de pores sal, sempre.
Os três se sentaram em confortáveis almofadas forradas de veludo vermelho, ao redor de uma mesa baixa, redonda e dourada. Sean realmente estranhava Mona, ela estava muito solicita, simpática.
Havia especiarias árabes, de todos os tipos, mas Sean se serviu de um maravilhoso vinho do porto que Mona oferecia, só porque ele estava ali; ela fez questão de retificar. Manoel fez uma cara de felicidade que Mona cortou.
Sean atiçou rindo dele e Mona foi à cozinha pegar mais sal.
— Mona disse uma vez, na nossa lua de mel que ‘Almeida’ significava em árabe Al+maidã que significa mesa. Romântico, não? — Manoel viu Sean rir outra vez. — Eu? Uma mesa?
— Ah! Sim! Teimoso como uma — Sean gargalhou novamente e os olhos de Mona brilharam para ele da porta como nunca mais ele vira.
— Não aches tanta graça assim, Sean. Eu sofro — Manoel continuava sem vê-los.
— Sofre? — Sean se divertia.
— Já pensares o que é ser casado com uma mulher que ‘lê’ seus pensamentos?
Sean caiu em sonora gargalhada, e Mona o encarou quando voltou à sala.
— Falando do seu sobrenome para Sean? — ela logo perguntou.
— Viu? Eu sofro! — Manoel ‘Barricas’ voltou a falar.
Sean ria com gosto. Ele devia sofrer sim. Kelly disse que não havia privacidade; e talvez não houvesse. Por isso ele chorou quando saiu do apartamento dela, porque sabia que ela o desejava.
— Manoel me disse que vai para o Egito? — ela voltou a se sentar agora comendo labna com sal. — Vai a Saqqara?
— “Saqqara”?
— Há um muro na parte sul onde formava a fachada da chamada Tumba Sur, uma capela falsa, feita em pedra maciça.
— “Uma capela falsa”?
— A finalidade era dissimular um dos acessos ao complexo subterrâneo. Na escavação descobriu-se a escada original que dava acesso ao subterrâneo selado com tampas circulares de granito que pesavam mais de 10 toneladas. Pedras pesadas, não Sean amigo?
“Pedras pesadas?”, Sean não sofria, sabia que ela lia seus pensamentos.
— Enfim... — ela bebeu vinho do porto. — A capela na superfície era só uma falsa fachada para este acesso. A verdadeira vida de Saqqara estava abaixo da terra. Foi Imothep quem determinou a localização onde se construiria Saqqara para as suas misteriosas finalidades.
— E por que Saqqara é tão importante a ponto de você me falar dela?
Mona riu e Manoel não gostou daquela risada; ele a conhecia, Mona escondia algo. Sean se ergueu um pouco da almofada para alcançar o bolso do casaco de lã que usava e a voz dela o alcançou.
— Porque foi para me mostrar o papiro que veio não Sean amigo? — Mona foi direta.
— Como? — e Sean paralisou o movimento, depois olhou assustado para Manoel que o via tirar algo do bolso.
— Manoel disse que você não queria vir ao jantar — ela continuava numa tacada só.
Manoel olhou Sean outra vez.
— Eu não... Sean, eu não... Não disse nada disso...
Sean sorriu. Conhecia Mona como ninguém. Ela realmente ainda lia pensamentos; e já não parecia mais tão simpática assim.
— Não sofra Manoel — Sean desamassava o papiro. — Eu sei que você não falaria e... — e parou de falar no que algo o fez tremer todo ao ler o papiro que tinha na mão.
— O que foi? — Manoel viu que havia errado com Sean.
— Ele está confuso! — foi Mona quem respondeu.
— Vocês não vão acreditar, mas não havia nada escrito aqui. Só quando sonhei que... — e os olhos de Mona voltavam a brilhar para ele.
— O que vê?
— Uma frase nítida... — Sean olhou o papiro na mão. — Não consigo traduzir... — e ligou o celular escaneando a frase.
— O que vai fazer?
E Sean não respondeu esperando o tradutor reconhecer.
— Meroítica!
— Escrita meroítica? — Manoel olhou um e outro. — O que estais escrito Sean?
— “Se você recebesse um aviso em um papiro para voltar ao passado, sabendo que suas atitudes mudariam completamente o destino do mundo, sem que pudesse voltar ao presente, embarcaria ou não?”.
Manoel e Mona silenciaram no silêncio dele.
— O que mais vês no papiro Sean?
— Não sei, Barricas. Está borrado... Mas parecem mulheres com máscara mortuária egípcia, dançando, não sei, parece que oferecendo algo; acho que é a areia do chão.
— Oferecendo areia? Serias um agradecimento de colheita Sean?
— Não sei o que dizer Barricas. Não havia visto isso àquela noite...
— “Aquela noite”? — mas Sean não respondeu a Manoel. — De que noite fala Sean? Sean? Sean?
Mas Sean estava perdido em lembranças.
— No período faraônico, o território a sul de Aswan era conhecido como Kush, e era a sede de um reino com raízes nos africanos negros, de faraós negros — Mona observava Sean ainda absorto. — A cultura Kushítica, chamada também Nubiana, ficava próxima de Kerma, sul da terceira catarata. E que a partir da ocupação assíria, em 661 a. C., abandonaram o Egito e retiraram-se para o que atualmente é o Norte do Sudão. Ali estabeleceram um reino que teria como capital, num primeiro momento, a cidade de Napata, e posteriormente Meroé, mais para sul, e, consequentemente, mais distante da influência egípcia. Então os Núbios romperam com os hieróglifos egípcios e criaram a sua própria escrita meroítica. Até sumirem do mapa e da história; da história da Núbia — ela só esperou Sean erguer o sobrolho.
— “Núbia”? Por que acha que esse papiro veio da Núbia?
— Porque há indícios de inscrições no Templo de Philae que Samira... — e Mona parou para ver Manoel abrindo a segunda garrafa.
— Samira traduziu o que?
— Perdi contato com minha irmã quando ela aceitou ir atrás de Afrânio, Sean amigo. Não a culpava, Afrânio era um bom homem, mas financiado pela Poliu, por Joh Miller, um homem de segredos, envolvidos com... — e Mona parou outra vez agora observando o papiro na mão de Manoel; Sean percebeu que ela não o tocava. — Disse que o papiro se modificou?
— Sim. Como se ele... Não sei... Pudesse apagar e escrever várias vezes no mesmo papiro. Isso é possível?
— Como era o papiro? — Mona parecia que nem o ouviu.
— Vazio!
— E por que acha que Samira iria lhe mandar um papiro vazio, Sean amigo?
— Achei que tinha aberto o pacote.
Mona o encarou.
— Estava endereçado a você, por que abriria?
— Porque Oscar disse a Kelly que você disse a meu pai que entregasse o pacote, ou eu iria descobrir coisas que eu não iria querer descobrir.
— Quantos ‘disse que disse’? — riu nervosa.
— Não é? — devolveu-lhe cínico.
— E me parece que Fernando Queise não entregou.
— Porque você me entregou.
— Não entreguei nada.
— Recebi a dois dias Mona! Veio de Portugal! Em seu nome!
Mona não gostou daquilo, de todas aquelas exclamações.
— Não sei do que está falando Sean amigo — com voz de nenhum um pouco ‘amiga’. — Já disse que não enviei nada, a não ser um pacote entregue por Joh Miller, agente da Poliu, após a morte de Samira e Afrânio, endereçada ao jovem Sean Queise; e tudo isso onze anos atrás.
Sean ergueu-se em estado de alerta. Ou ela mentia ou havia algo escuso na imagem de Samira, em meio a pedaços de mortos egípcios antigos, e uma esfinge sendo construída em meio a um banho de sangue, com Mr. Trevellis observando tudo, inclusive ele.
— Renata recebeu o pacote com uma carta sua, para que fosse entregue às 11 horas e 11 minutos, onze anos depois.
— Por Allah! Hidashar Hidashar? Sean amigo, não sei do que está falando. E se digo que não sei do que está falando, é porque não sei do que está falando! — e tudo saiu do lugar.
Mona estava furiosa, seus dons paranormais estavam furiosos.
— Mona... — Manoel não gostou de ver todas as porcelanas da mesa tremendo, como se um abalo sísmico acontecesse naquele instante, ali, na sala. — Mona? — voltou ele a questioná-la.
Mas Mona Foad questionava Sean Queise.
— Por isso vou voltar a perguntar; onde encontrou isso?
— Você deve saber Mona.
— Devo?
— Basta Mona! — agora foi Sean quem se enervou. — Porque tenho até medo de especular, se você não esperou onze anos para que eu me desenvolvesse depois que me vi... — e parou de falar.
E parou de falar porque não podia falar. Não sobre aquilo.
Mas os olhos de Mona brilharam e Manoel sentiu-se cego em tiroteio tomando mais um cálice de porto.
— Como assim onze anos para entregares? — Manoel caiu em si olhando um e outro. — Você entregares isso a Sean, Mona, onze anos depois?
— Não! — Mona não tirava os olhos de Sean.
— Claro que não! — exclamou Sean furioso. — Samira entregou! — e encarou Mona lhe encarando. — Porque nós dois estávamos lá o recebendo, não Mona amiga?
— “Samira entregou”? — Manoel olhou um e outro outra vez cego em tiroteio. — Samira não era sua irmã?
— Samira é minha irmã! Não se apaga o que fomos já que não morremos Manoel!
Manoel agora teve medo. Ele sabia que Samira havia dons como Mona, mas Mona nunca falava nela. E ele realmente não sabia o que acontecia ali.
— Cá não saberes se morreres, mas houve uma chamada do cemitério de Aswan, para que Mona fosse buscareis seus despojos semana passada.
Sean continuava a olhá-la.
— Aswan? — Sean estranhou.
— Por que o estranhamento? Amigas com atividades psíquicas costumam vibrar naquela região.
— Nada me estranha, Mona amiga. Nem saber que suas amigas estiveram lá por causa do 11/11/11.
E Mona riu nervosa.
— Lendo minha mente Sean amigo?
— Estou?
— Eu não quis ver Samira como um monte de ossos; só isso — Mona fuzilou Manoel que se deleitava com o final da segunda garrafa de vinho do porto. — Porque sabe tanto quanto eu que não morremos, e que não vou encontrá-la numa lápide — e se virou para Sean. — Mas você quer não Sean amigo?
Sean sorriu-lhe apenas.
— Sean quer encontrar Samira?
— Todas suas emanações e rastros gravitantes.
— É! — soou um Sean nada amigo. — ‘Rastros gravitantes de Samira Foad, atrás de suas energias extrafísicas existentes em torno de objetos ou pedaços de construções que ela tenha tocado’.
— Não devia fazer isso com ela, Sean... Invadir a alma de Kelly que lhe ama.
Sean arregalou os olhos azuis e nada falou. Porque ele havia feito aquilo, lido o que Oscar dissera a ela. E estava morrendo de ciúme dele.
Manoel foi em frente sem perceber tudo aquilo.
— Amigas de Mona também sentires emanações... gravitantes nos rastros, ou qualquer coisa psíquicas do tipo, próximas ao Templo de Philae, não é Mona? — e lá se ia outro cálice de porto nas mãos de Manoel.
Mas Mona não queria responder a Manoel, não com todo aquele vinho nele.
— O que vai conseguir com isso Sean amigo?
— Por que acha que quero conseguir algo Mona amiga?
— Porque só vai encontrar dor, energias gravitantes negativas, moldadas com sentimentos e emoções ruins, que acabam ficando ali por elas.
— “Elas”? Suas amigas?
— Elas, as mulheres com cabeça de íbis que adoram a areia verde, atraindo a presença de consciências extrafísicas doentias, assediadoras, que por sua vez contribuem para matar o entorno, a Terra onde viveram.
— “Viveram”? Do que...
— Porque é o que se encontra em campos de concentração, cemitérios, locais de desova Sean. A morte que não morreu que insiste em ficar ali, presa; energias gravitantes que dificultam a libertação definitiva do corpo físico que morreu, que matou as estrelas de onde vieram, de uma entidade entrante aqui na Terra.
Manoel jurava que era realmente o vinho que não o permitia entender aquilo. Riu baixinho terminando sozinho a terceira garrafa recém-aberta.
Já Sean entendeu que Samira sofria, talvez como Sandy sofresse. E talvez tudo que envolvesse a Computer Co. os faziam sofrer porque ele acreditava naquilo, fazia caminhos repetitivos, atraindo os mortos, os alienígenas, todo tipo de energia gravitante atrás de entidades alienígenas entrantes.
Engoliu aquilo sem querer ter engolido, levantou-se e se virou para sair.
Mona também se levantou:
— O jantar está pronto! — e se foi.
E aquilo soou como uma ordem para que ele ficasse. E Sean ficou.
O jantar prometia ser mais ameno. Sean desejou aquilo. Mona saiu da cozinha com outra face; mais corada e muito, muito mais comedida em relação a seu pupilo. Havia uma mesa farta. Uma robusta salada – kharchofa, khass, badinjan e battatta, mais precisamente, alcachofra, alface, berinjela e batata regada a azeite; português, é claro. Mona até não deixava Manoel beber vinho do porto, mas o azeite para ele era sagrado. Tinha também malfúf com bamia e jêben – repolho com quiabo e queijo. Um arnab e aruzz – coelho assado com arroz acompanhava.
— Vais ficares no Cairo, Sean? — Manoel tentou recomeçar uma agradável conversa.
— Sim. Vou amanhã mesmo procurar a agência que me recomendou.
— Vai ter tempo para turismo? — questionou Mona.
Sean percebeu que ela continuava, que ela ia saber mais tarde mais cedo que sua ida ao Egito não era turística. Ele não conseguia fechar sua mente para que ela não a lesse.
— Se eu tiver tempo irei a Carnac.
— Mona — Manoel já havia descarregado três garrafas de vinho do porto com 24% de álcool desde que Sean chegara, e parecia estar aproveitando a chance de iniciar a quarta garrafa. — Mona foi guia turística, saberes?
Sean a olhou, espantado.
— Não! Essa é novidade.
— Foi quando ainda era adolescente — fez um movimento descendente com a mão. — Tinha que pagar minha escola.
— Então, alguma recomendação turística, Mona guia? — Sean foi logo falando em meio à animação crescente do amigo e a quarta garrafa de vinho do porto.
— Várias, mas não direi todas elas.
— Ah! Não vai me ser de grande ajuda! — riram os três.
— Mas posso falar algo sobre Carnac.
— Bom! Vai me ser de grande ajuda! — os três riram outra vez.
— A antiga Tebas, hoje Luxor, era lar do maior complexo religioso que o mundo já conheceu, o Templo de Carnac; que na verdade é uma pequena cidade de templos. O complexo dos templos tinha nove grandes portões, que levavam à câmara de Amon-Rá.
— Amon-Rá, o Deus Sol cujo símbolo é o ‘Olho de Hórus’, o olho que tudo vê.
— Havia também outros templos dentro do complexo dedicados a deuses menores, e havia até um lago artificial chamado Lago Sagrado, dentro das paredes do templo. Um verdadeiro exército de sacerdotes respondia ao Alto Sacerdote de Amon, e realizavam rituais para manter o Universo em equilíbrio.
— Interessante!
— Também vai achar interessante a mulher egípcia, Sean amigo. Vai gostar de vê-la dançar.
— Vou? — Sean achou graça sem entender por que, esticando sua taça para Manoel colocar mais vinho do porto.
— Vai! — mas Mona sorriu enigmática. — As mulheres dançavam os seus ventres na Dança do Zhar, uma dança ritualística popular egípcia, onde a dançarina trabalhava giros, movimentos de cabelo, como se estivesse em transe. Os egípcios comuns eram proibidos de entrar no templo, porque acreditavam que todo Faraó era filho de Amon-Rá.
Sean sabia que aquilo era uma mensagem subliminar.
— Lâmpadas você disse?! — quase gritou Manoel sem perceber, já alterado pelo excesso de vinho tão doce.
— Disse o que? — Sean olhou Mona percebendo que o amigo já estava alcoolizado.
— As lâmpadas alienígenas!
— “Lâmpadas”? — Sean percebeu que de alguma forma suas idas a eventos ufológicos escaparam dos eventos ufológicos. E se chegaram ao conhecimento de funcionários de uma Computer Co. portuguesa, então o que diria de uma Computer Co. brasileira. — Não são exatamente lâmpadas, Barricas. Eu dei uma palestra sobre uma sala subterrânea do Templo de Dendera, porque há vários desenhos em baixo-relevo que parecem representar lâmpadas ou ampolas de vidro, com filamentos internos para iluminação.
— Isso! Lâmpadas! — achou graça. — Você disse lâmpadas alienígenas.
Até Sean achou graça do que dizia.
— Veja Barricas... Os templos do Antigo Egito exigiam técnicas arrojadas de iluminação. Se elas são alienígenas ou não, eu não sei, mas como puderam cavar tumbas profundas usando apenas tochas? E se chegaram a usar tochas, por que há ausência de fuligem nos tetos? Além do mais, locais profundos provocaria queda de oxigênio no local.
Manoel entendeu foi nada.
— Por isso Sean acredita que as pirâmides foram erguidas por eles, pelos cinzas. Uma ofensa ao meu povo egípcio — Mona o provocava.
Talvez o vinho também tivesse feito efeito nele.
— Eu sei que foram os egípcios que ergueram as pirâmides, só acredito que tinha engenharia alienígena envolvida na locomoção das pedras, nos cortes precisos... — balançou a cabeça.
— Os reis de Meroé começaram a construir pirâmides após 270 a. C.
— As pirâmides pontudas?
— As dimensões das pirâmides de Meroé são mais reduzidas do que as das egípcias. Inicialmente com pedras e mais tarde com tijolos cozidos. Por último, há uma câmara funerária, debaixo da pirâmide.
— Vai veres que também foram os alienígenas... — Manoel se animou enchendo a taça de Sean que agradeceu fazendo o líquido descer de uma vez arranhando tudo.
— A ufoarqueologia tem avançado tremendamente. Estudos e estudiosos, hoje consagrados, nos mostram que civilizações de outras estrelas já estiveram aqui, e que trouxeram técnicas avançadas.
— Carl Sagan disse que pensares que só a Terra possas ter vida inteligente é como num campo semeado, só um grão germinar.
— Concordo Barricas! Eventos ufológicos recentes contam sobre descobertas na Mesopotâmia, datadas do Século V a.C., que mostram que já se conhecia o banho de estátuas de prata com ouro, através da eletrólise.
— Ainda sim, eletricidade na antiguidade?
— Segundo narração do historiador grego Heródoto, o famoso Farol de Alexandria, em cujo topo se achava uma luz que brilhava continuamente orientando embarcações, estava sempre acesa mesmo com tempo bom ou ruim, chovendo ou não — e o vinho adormecia Sean. — Até Santo Agostinho relata assim: ‘uma lâmpada que não podia ser apagada nem pelo vento nem pela chuva, que se manteve acesa por mais de 500 anos’.
— Pois! Pois! Lâmpadas iluminando pirâmides.
— Mas não só as pirâmides atestam a civilização meroítica, Sean amigo — voltou Mona a falar. — O arqueólogo alemão Hintze encontrou mais de oitocentos blocos bem conservados com relevos e inscrições no chamado ‘Templo dos Leões’, um edifício construído por Arnekhamani 235 a. C., dedicado ao deus Apedemak, de influência egípcia e ptolemaica.
— “Templo dos Leões”? Interessante! Apedemak é o deus do sul da Núbia, atual Sudão, considerado o patrono da guerra, descrito com a cabeça de um leão e o corpo de humano. Interessante duas vezes, não é? — sorriu um Sean cinicamente embriagado.
— Duas vezes por que Sean?
— Porque os Egípcios tinham a deusa Sekhmet como uma deusa leoa e os Núbios tinham Apedemak, um deus leão.
— Apedemak desempenhou um papel pequeno na religião egípcia Sean amigo… — voltou Mona a falar. —, sendo um produto da cultura meroítica, que manifestava a vida quotidiana. Cultos a Amon coexistiram ao rei leão Apedemak, até Meroé ser invadida por tribos do Sudoeste Africano e o império cair no esquecimento.
— Onde Samira morava? — perguntou Sean de repente.
E um ‘Cale-se!’ foi o que Manoel ouviu. Ele olhou Mona, Sean e Mona outra vez. Mas Sean não conseguiu ouvir aquilo.
— Samira morava na França, com Afrânio — respondeu Mona.
— Achei que ela morasse em Corniche el-Nil, um bairro do Cairo.
Mona não gostou daquilo. Sean não podia saber, não a menos que Samira tivesse deixado algo para ele, além de um pacote com um papiro.
— Além de viagens ao passado, o que mais vai fazer no Egito, Sean amigo?
Sean percebeu as entrelinhas outra vez.
— Ah! Provável Kelly me mata se eu não voltar com ‘presentinhos’ para ela.
— Kelly tua bela secretária? — Manoel iluminou-se.
— Kelly a bela sócia dele, Manoel.
Sean sabia aonde ela ia chegar, mais cedo ou mais tarde.
— Mas não tiras a beleza dela não é Sean? — Manoel sorriu maroto.
— Não... Não tira.
— Não tira nem com os anos — agora foi a vez de Mona.
— Aonde quer chegar Mona? — e Sean partiu para o ataque.
Mas Mona recuou.
— Vou chegar ao que vou lhe dizer... — sorriu apenas. —, escolha um dia só para comprar os souvenires de Kelly, e saia só para isso. Não compre nada de ambulante na descida dos ônibus quando for aos passeios.
— Pergunte “Kâm?”, “Quanto custa?”. E já diga “Da ghâli`awi!”, “É muito caro!” — Manoel se divertia já com o álcool ditando o tom de sua voz.
— Da ghâli`awi! Da ghâli`awi! Ok! Não esquecerei.
Os três riram aliviando algo, algo que Sean sabia, não ia aliviar.
— Barganhe, pague e vá embora. Não fique muito tempo ou levará a lodjinha toda.
— Ok! Não levarei a lodja toda Mona...
— E o vizinho fica sempre de olho e se perceber que você é bom cliente, vai querer empurrar mercadoria a todo custo.
— Ok! Tudo a todo custo Mona... — Sean comia aruzz; adorava arroz egípcio.
— E troque aos poucos seus dólares por libra egípcia no comércio. Você não conseguirá trocá-lo novamente por dólares. Faz parte da política interna; Dólar entrou, não sai.
— Ok! Dólar entra e não sai Mona...
— E vai com alguém suponho — Sean ia falar que estava sozinho, mas não teve chance. — Claro que vai e é até melhor ou volta casado com três ou quatro mulheres o que no Brasil é proibido.
— Vou me lembrar disso também, Mona amiga... — gargalhou Sean, agora se divertindo.
— E vai logo avisando a ela para evitar maquiagens extravagantes Mande-a esquecer de decotes e pernas de fora.
— “Mande-a”? — Sean também já sentia o efeito do álcool e Manoel já abria a quinta garrafa.
— Num país islâmico, mesmo sendo turista, ela vai sofrer ofensas na rua pelas próprias mulheres, além dos homens querem casar com ‘ela’.
Sean se lembrou da curta saia da “Tahira pudica” no avião.
— Mona... Sabe o quanto Sean é cuidadoso quando tratas de mulher — riu Manoel.
Sean ficou divagando sobre aquilo.
— Que é isso tudo? — serviu-se de mais dois pratos.
— Dois pratos que quase não se encontram nos restaurantes tradicionais, mas que todos os egípcios adoram. Este é Foul — apontou. —, um guisado de favas muito bem cozidas com azeite, limão e cominho. É comido principalmente no café da manhã. Tome cuidado, isso leva cerca de 6 horas para ser digerido pelo organismo.
— Exato! — Sean riu achando aquilo mesmo.
— Os vendedores de rua servem Foul — deu-lhe. —, esse pequeno pão, Baladi, que é redondo e oco.
— Muito bom! — experimentou.
— Agora o outro prato — Mona apontou também. —, é uma especialidade, o Kochery, uma mistura de arroz, lentilhas, cebolas frita e espaguete, regados com um pouco de molho de tomate picante.
— Quanto nome difícil, Mona.
— E se não decorar tudo, vai precisar fazer um cursinho de culinária se quiser agarrar uma egípcia pelo estômago.
Sean gargalhou.
— Tenho que agarrá-la pelo estômago? — foi o mais cínico que pôde.
— Sim. Não. Sim. Os egípcios são considerados generosos anfitriões e gostam da fartura. Sua alimentação atualmente caracteriza-se pela utilização de cereais diversos, e frutas em abundância como tâmaras, romãs, damascos, figos e uvas.
— Ãh! Então além de econômica, a mulher egípcia é uma apreciadora de boa comida.
— Econômica, sim. Por que acha que para pegar os alimentos dos pratos usamos o pão sírio? Para economizar talheres — todos gargalharam. Mas de repente Mona olhou para Sean intensamente quando se debruçou sobre seu prato. — `Âwez `êh?
Ele percebeu o silêncio e a frase em árabe.
— Como é que é?
— Yemin ou Shemâl? Direita ou esquerda? Está perdido, não está?
— Saltando para dentro do éter, Mona amiga?
Mona esticou-se no espaldar da cadeira e ficou olhando Sean intensamente. Manoel percebeu algo estranho nos dois outra vez.
— São os grandes olhos de pássaro ou a feminina voz ecoada o que mais te assusta? — Mona perguntou-lhe num estalo.
Sean arregalou os olhos azuis.
— O que está fazendo com minha mente, Mona amiga? Desde que cheguei que você entra e sai dela.
— Do que Sean estais falando? — Manoel perguntou à esposa.
Mona riu, estava entrando na mente de Sean e ele percebeu.
— Você já conhecia Meroé, Sean amigo? Anda viajando sozinho?
— Ando? — Sean agora teve certeza que ela procurava informações dentro dele.
Sabia que se Mona chegasse às coordenadas dadas a Spartacus então ela chegaria a muito mais, a uma órbita espiã ativando Fernando, Oscar e informações escondidas em grandes bancos de dados. Seus bancos de dados, que aprimorava dia após dia, desde a infância perdida, investida em estudos e aprimoramentos, escondendo informações sobre uma entidade que trazia medo e morte, uma entidade de homens sem nome.
— Procurando-os, Sean?
— Na faça isso Mona! — agora Sean não quis aquilo.
— Procurando os outros como nós? Os que foram viajar?
Sean a encarou e Manoel olhou um e outro.
— Pares com isso Mona! — pediu Manoel.
Mas Mona não queria parar.
— Achei que a Poliu havia extinguido suas experiências sobre espiões psíquicos.
— Extinguiu? Como posso saber Mona amiga?
— Você os detém, não? Os breca. Não permite que Mr. Trevellis ache você, lhe decifre — Mona não queria mesmo parar.
— E você, Mona amiga? Por que não me decifra?
— Por que está dizendo isso?
— O que? Não conseguiu ler minha mente? — Sean foi direto e Mona não gostou daquilo.
— Por que acha que não consegui ler?
— Porque se tivesse me lido, se desde que eu cheguei aqui realmente tivesse me lido saberia o que vou fazer no Egito atrás de um fator que leva homens à morte.
Mona pela primeira vez teve medo, medo dele, do que ele fazia.
— Por Allah! Você e Trevellis juntos? Não posso acreditar nisso.
— Não quer, porque pode. Porque sabia que eu estava lá, nos porões da Poliu sob as ordens dele, que ele me queria exatamente ali, me desenvolvendo, para usar-me.
Mona ergueu-se furiosa e tudo se ergueu do chão também. Manoel já não sabia se era outra vez o álcool, o excesso dele, mas só viu que o copo não tinha apoio, quando a mesa escapou-lhe das mãos e o copo com vinho foi ao chão.
— Como você se atreve a vir a minha casa e me julgar Sean?
— Porque vem me julgando desde que entrei aqui Mona.
— Não sou eu que te julgo, é você que compete com ele.
— Ele? — Sean olhou tudo ainda suspenso no ar. — Está dizendo que estou com ciúme do meu pai?
— Do hackerismo dele, de como Fernando administrava a Computer Co., como não fazia negócios escusos, sem concorrência.
Sean a odiou. Ela sabia o tempo todo o que havia na mente dele. Provável também sabia sobre o ciúme de Kelly e um Sr. Queise mais velho no apartamento de couro e mármore branco.
Virou-se e largou o guardanapo que ficou no ar como tudo ali.
— Não vá Sean!!! — gritou Manoel. — Mona?! Você prometeu parar!
— Não Manoel! — mas Sean também estava furioso. — Porque ela nunca parou, não é? Porque nunca esteve desligada da Poliu.
— Yemken shwayya!
— “Talvez um pouco!”? — Sean traduziu.
— Desde quando entende árabe? — inquiriu ela, séria. — No mesmo lugar onde encontra as energias gravitantes de Samira? — mas ela não ouviu respostas. — Foi assim que escreveu o papiro não Sean amigo?
— Por que insiste que escrevi algo? Não sabia que o papiro havia escrito algo. O guardei e não me lembrei dele até o dia seguinte porque Kelly...
— Sim! Kelly! Voltemos a ela. Porque ela o desestabiliza.
— Não fale assim!!! — gritou e foi a vez das luzes rarearem. — Kelly é a única coisa que me dá estabilidade!
— E mesmo assim você a recusa!
— Basta, Mona! Eu nunca a recusei.
— Não? Porque quando sai atrás de Sandy, você emprega sistematicamente os mesmos trajetos que faz durante suas experiências fora do corpo Sean, e volta à sua casa, à noite do noivado, para então o som de um tiro lhe trazer de volta.
— Basta, Mona! Basta!
— Por Allah, Sean, você quer mesmo que eu dê um basta?
— Eu vou... Eu vou... — Sean olhava atônito para tudo volitando ali.
— Então me deixe dizer o que você vai Sean amigo, porque você vai se jogar do precipício.
— Basta!!! — Sean segurou a cabeça que parecia querer explodir.
— Pare com isso Mona! Esta matando Sean!
— Não estou matando ninguém Manoel. Mas acredite Sean, seu ato de coragem deixará um rastro de covardia com aqueles que te amam. Porque foi covarde fazer o que Sandy fez, roubando-lhe de Kelly e se matando, para lhe deixar aqui sofrendo, porque você sofre fazendo todos sofrerem porque você sofre; Oscar por você não o aceitar, Nelma por tê-lo dado dois pais, e Kelly nesse tiroteio de loucos!
— Ahhh!!! — e a cadeira dele fez um som agudo trazendo Manoel e seu alcoolismo à realidade.
E Manoel só percebeu que Sean foi embora quando a porta que não se abriu e não se fechou, foi trancada por Mona ainda em pé, ao lado dele.
4
Cairo International Airport, Egito.
30º 7’ 19” N e 31º 24’ 20” E.
14/11; 15h00min.
Sean Queise acordou e viu que o café já esfriara na poltrona ao lado. Arrumou-se e leu o prospecto turístico sobre como proceder no Cairo e em matéria de saúde, não era exigida nenhuma vacina até ao momento.
— “Beber água engarrafada, tomar precauções contra insolações e tomar comprimidos se tem tendência para enjoar nas viagens de barcos” — Sean lia. — “Língua oficial é o árabe. Como línguas estrangeiras, o inglês e o francês são as mais faladas e de melhor compreensão entre os locais e os turistas. A moeda é a Libra Egípcia e a diferença horária é mais duas horas que em Portugal”. Então devem ser quatro horas a mais que no Brasil — parou de ler, estava nervoso.
As atitudes de Mona para com ele o desestabilizaram por completo. Não imaginava Mona amiga contra ele. Tão pouco entendeu porque sonhara a noite toda com uma mulher loira, pequena, de olhos tão azuis que pareciam cegos. Também acordara com a notícia de que haveria uma auditoria na Eschatology Inc., denunciada por contratos sem concorrências, superfaturados.
“Droga!”, sentia que estavam balançando as negociações com a Computer Co., e que Mona tinha razão, ele tinha inveja de como seu pai Fernando lidava com os negócios, sabendo que ele não teria aceitar aquilo.
— Mas Trevellis... — Sean não completou.
Porque também havia Mr. Trevellis, um homem astuto que queria algo de Sean Queise, algo que ele se propôs a dar em troca dos segredos que rondavam a morte de Samira Foad.
O Cairo International Airport estava lotado quando o avião aterrissou. Após o desembarque, Sean foi para a sala VIP a fim de alugar uma linha telefônica e conectar seu notebook. Sentou-se à mesa do fundo e se conectou com os mainframes da Computer Co. Não havia mensagens de Kelly, nenhuma única emanação dela; não gostou daquela situação.
Ela o amava, ele tinha certeza.
Também procurou mais informações sobre a garota magra e de cabelos castanhos e cacheados, a fim de lhe dar um nome, um nome que seu pai tinha como contratada, para vigiá-lo, para saber seus passos, mas nada encontrou. E seu pai fazia aquilo enquanto vivo, porque talvez já não confiasse na vigia que obrigava Kelly fazer, porque já não confiava em sua mãe Nelma que contratava Kelly para lhe vigiar.
“Pobre Kelly...” soou em seus pensamentos.
— Sr. Sean Queise? — perguntou o segurança ao entrar pela porta.
— Sim? — afirmou olhando para os lados.
— Alam Al Alam o espera na sala ao lado.
— Quem? — Sean estranhou se levantando e se desconectando.
Alam Al Alam era um homem de pele escura, de baixa estatura e consideravelmente careca. Estava ao lado de outro homem de porte mais nórdico; ruivo, com os cabelos extremamente encaracolados e o rosto carregado por sardas.
Sean entrou carregando seu notebook.
— Olá, Sr. Sean Queise. Não se assuste com a recepção. Nossa polícia secreta soube da sua viagem turística ao nosso País. Queria lhe dar as boas vindas em nome de nosso governo e de nossa empresa particular de consultoria arqueológica Madraçal.
— “Madraçal”? Palavra árabe para madrasa, escola.
— Fala árabe? Que providencial em terras egípcias.
— Desculpe-me Senhor... — Sean olhou um e outro e a palavra ‘polícia secreta’ ainda reverberava nele. —, mas não estou entendo sua recepção.
— Somos uma empresa particular que visa a proteção a sítios arqueológicos, sujeitos à destruição por obras e pesquisas mal intencionadas, que causam impacto na área.
— Não acredito que a Computer Co. aja de maneira mal intencionada, Sr. Alam Al Alam, nem o por que da sua polícia secreta me vigiar se estou sendo esperado aqui.
— Esperado para daqui a dois meses se minhas informações procedem.
Sean voltou a olhar os dois homens.
— Sim. Daqui a dois meses, quando a concorrência com a Eschatology Inc. ocorrerá. Mas também posso ser um turista eventual não?
— Então o porquê de duas reservas em dois hotéis diferentes ao mesmo tempo?
Sean percebeu que a coisa com a Eschatology Inc. devia ser muito maior que uma auditoria interna, se o próprio governo egípcio se envolvia, contratando uma empresa de consultoria arqueológica. Não gostou daquilo. Sua mãe jamais o perdoaria se algo atingisse o nome da família Queise ou da empresa outra vez.
— Talvez porque eu seja indeciso Sr. Alam Al Alam. As belezas do Egito me encantam. Nem sei por onde começar minha estadia turística aqui.
Alam Al Alam olhou o ruivo que ainda não se apresentara.
— Me chame de Alam Al Alam, como todos.
— Obrigado Alam Al Alam! Chame-me de Sean Queise.
— Sean Queise...
— Eu preferi vir ao Egito como turista antes da concorrência, espero não ter ferido nenhuma norma diplomática.
— Não exatamente — e Alam Al Alam se virou para o homem ruivo outra vez. — Esse é o Dr. Miro Capazze. Ele é advogado especializado em leis sobre obras de artes e mercado internacional. É nosso contratado para mediar às negociações, entre as empresas mundiais que costumam explorar nosso solo arqueologicamente e nosso governo.
Sean realmente não sabia que havia aquele tipo de tramites. Desconfiou dele, de Miro e de tudo o que o rodeava. Porque também o semblante carregado do ruivo Miro, não ajudava. Ele e Alam Al Alam pareciam exaustos e assustados com a situação da Eschatology Inc. e todas as empresas envolvidas com ela, já que aparentemente estavam ali mediando algo.
— Muito prazer, jovem Queise.
— O prazer é meu Dr. Miro Capazze.
E Alam Al Alam saiu após ter sido chamado fora da sala VIP. Foi a deixa para Miro dar dois passos em direção a ele.
— Eu quis vir falar-lhe pessoalmente — Miro quase cuspiu aquilo. — Tome muito cuidado, jovem Queise. Estão acontecendo coisas muito estranhas aqui — e tremeu.
— ‘Estranhas’ quanto? — questionou Sean não entendendo nada. — Tem haver com a Eschatology Inc...
— Não! Não! — cortou-lhe correndo para a porta e vendo no corredor que estavam realmente sós, voltou a fechar a porta trancando-a.
“Droga!”, Sean não gostou daquilo.
— Me intriga, entende jovem Queise? Falamos de uma grande ocultação de provas. Nos últimos 150 anos, estes arqueólogos e antropólogos ocultaram tantas provas quantas desenterraram, literalmente.
— Não estou...
— A questão é; por que não soubemos disso antes?
— Disso o quê?
— “Quando uma nova ideia evolui, ela necessariamente desafia a ideia anterior. Então a nova ideia é atacada. Isto assume que a antiga teoria foi estabelecida nos mais altos graus de prova, e ao examinarmos isto, raramente esta afirmação é verdadeira”.
— George Carter! Foi o arqueólogo Carter que descobriu Tutancâmon quem falou isso, não foi?
— Você é realmente tudo o que dizem?
— Quem ‘dizem’ e sou o quê ‘tudo’ Dr. Miro?
— Não está entendendo mesmo?
— Não está me ajudando muito... — e Sean parou de falar no que a mão de Miro acendeu, no que ele lhe mostrou a folha de uma planta.
Miro viu Sean arregalar os olhos para a folha da planta acesa nas mãos dele, e sentir um calor subir-lhe pelas pernas, tomar conta de seu corpo, da sala e toda a sala VIP ser transferida para um Egito antigo.
“Sabia que Paris vem da palavra Per-Isium, que significa ‘lugar de culto à deusa Isis’? E que Isis faz parte da Núbia? Da terra esquecida?”, a voz de Miro Capazze soava distante.
Sean olhou outra vez a mão acesa dele, a folha de uma planta e a areia esverdeada e de cheiro ocre onde pisavam. E que lhe colava no suor, que escorria pelo corpo que aquecia sob o calor de 48 graus, em meio a homens de crânios alongados que trabalhavam na Esfinge.
“Onde estamos Dr. Miro?”, perguntou Sean.
“No Egito!”
“Que Egito deveria perguntar?”
“Se você for um deles, jovem Queise, saberá responder”
“Um deles?”
“Um dos homens sem nome, que controlam o Fator Shee-akhan, que levam outros a morte”.
Sean riu sem saber por que ria.
“Não sei do que está falando Dr. Miro nem o que significa toda essa viagem”.
“Você sabia que no subterrâneo da Catedral de Notre Dame, na França, existe um templo egípcio e que existe uma grande pedra trapezoidal em ônix, e este é um grande centro magnético? E sua entrada é permitida somente a arqueólogos iniciados?”
E Sean viu que homens que ali trabalhavam na grande pirâmide, olhavam os dois estranhos, com roupas estranhas, parados na areia esverdeada que aquecia, e que se incendiou.
“Por favor, Dr. Miro! Não estou gostando disso. Leve-nos de volta!”.
“Mas você, melhor que ninguém, sabe que todos vão morrer, não é jovem Queise?”.
“Já disse para nos levar de volta!”
“Está bem! Está bem! Mas escute o que digo, porque quem mata, é quem a gente nunca espera” e Miro Capazze parou de falar no que fechou a palma da mão escondendo a planta, e a porta foi destrancada no que Alam Al Alam entrou na sala não percebendo que ela fora trancada, nem que ambos haviam viajado a um Egito paralelo.
Miro Capazze então deixou seu corpo pesado cair na poltrona, e Sean se viu molhado pelo calor de 48 graus de um Egito que nunca esteve nos livros de história, sabendo que Miro Capazze sabia destrancar portas sem tocá-las.
“Poliu?”, se perguntou.
— Arranjei dois seguranças para levá-lo ao seu hotel, Sean Queise — Alam Al Alam nada percebeu mesmo.
— Não... Não precisava Senhor... — e Sean viu o semblante de Alam Al Alam fechar-se no que ele deu dois passos em direção a Sean.
— Espere que coopere conosco, Sean Queise. Estamos fazendo isso para segurança de todos os envolvidos com a Eschatology Inc., já que ela não é mais bem-vinda à nossa arqueologia.
Sean agora realmente não gostou daquilo. Sabia que ia ter que contar a sua mãe o que estava acontecendo com a Eschatology Inc., e que talvez tivesse que envolver a Polícia Mundial e Oscar Roldman. E sabia que tudo aquilo ia irritar Mr. Trevellis e as Poliu, com quem ele tinha um acordo.
— Vou cooperar! Claro!
— Está muito bem. Qual hotel está Sean Queise? — questionou Alam Al Alam ao se sentar na poltrona vazia, sem perceber o desespero de Miro ainda ali afundado na outra poltrona.
— Ãh? — Sean voltou a si. — Estou no Le Meridien Heliopolis — olhou Miro Capazze e voltou a olhar Alam Al Alam. — E também no Seti Abu Simbel Lake.
— Qual dos dois irá ficar Sean Queise? — insistiu.
— Ãh? Acho que vou primeiro ao Le Meridien Heliopolis... — Sean não tirava os olhos do advogado Miro Capazze. — Mas não se preocupe, aluguei uma limusine e vou fazer um tour antes — mentiu. — Só devo chegar ao hotel no final da tarde.
— Vai mesmo querer ficar aqui no Cairo como turista?
— Sim, por enquanto.
— Então tenha uma boa estadia. Se precisar de algum auxilio, procure sua embaixada neste endereço — Alam Al Alam entregou um cartão, que Sean colocou mecanicamente dentro do bolso do paletó marinho que usava, para então lembrar-se de que esquecera o papiro na casa de Mona.
“Droga!”, pensou outra vez, saindo da sala VIP com mais medo do que entrou lá.
E medo foi à única palavra que encontrou ganhando as ruas do Cairo.
— Ah-la u sah-la! Seja bem vindo! Aonde vamos Senhor?— perguntou o motorista num inglês arrastado no que Sean entrou na limusine alugada no aeroporto.
— 51 El Orouba Street, Heliopolis. Le Meridien Heliopolis Hotel — anunciou Sean Queise.
A limusine deslizou pelas ruas que já começavam a se lotar com o tráfego intenso.
— Vai gostar do Cairo — falava o chofer o olhando pelo espelho retrovisor. — O Cairo oferece uma incrível seção de compras, lazer, cultura e badalações. Na parte leste da cidade podem-se comprar várias coisas nas lodjinhas, como, por exemplo, especiarias, perfumes, tapetes, espelhos e cerâmicas — ele viu o turista avoado. — Não acha?
— Acho? — Sean voltou a si.
— Que vai gostar das compras! — sorriu-lhe.
Sean aliviou o semblante e sorriu-lhe.
— Vou sim...
— Nas ruas comerciais famosas, como a Wekala al-Balaq, o Senhor encontrará muitas fábricas, incluindo a Egyptian Cotton. Na Rua Mohammed Ali existem muitas lodjinhas que vendem instrumentos musicais, e o comércio de camelos também é muito interessante.
— Uma amiga minha falou tanto sobre fazer compras que ando um tanto avesso — apreciava a cidade da janela.
— Ah! — exclamou na dúvida. — Se quer compras para valer tem que ir ao Khan-el-Kalili. É nosso Shopping Center a céu aberto. Vai achar que entrou num filme, daqueles que americano faz.
— Filme de sessão da tarde?
— Quê?
— Nada! — riu Sean. — Obrigado pelas dicas...
Sean olhava para fora do carro realmente deslumbrado com a cidade.
— Está em excursão? — o motorista meteu a mão na buzina à quase deixá-lo surdo.
— Sim!
— Ma ismak?
— Ísmmi Sean Queise!
— Tcharráfna Ktir! Muito prazer! Sou Muhazzab Aal! — esticou as mãos para trás após buzinar em meio a um buzinaço só. — Desculpe, a buzina é a terceira língua mais falada no Egito.
Sean se ergueu e foi cumprimentá-lo.
— Maalaechí! — Sean cumprimentou-o rindo. — Tcharráfna Ktir!
— Báyac ibn àrab? Kochery.
— Por quê?
— Quis dizer se seu pai é filho de árabe?
— Eu entendi o que falou. Não entendi o porquê de ter perguntado.
— Seu sotaque, Senhor. É bom árabe! — ele percebeu Sean se abstendo de comentar. — ‘Queise’? Que nome engraçado.
— Sou brasileiro. Do Brasil. Conhece?
— Ah! Claro! Queise dos computadores. Tenho um Computer Co.. Bichinho caro, aquele.
— Caro, mas funcional — sorriu cínico.
— É, funciona melhor que do meu irmão — Muhazzab o olhou pelo retrovisor. — Brasil? Terra de semba.
— Não! Terra de samba — corrigiu educadamente.
— Legal, você, Queise. Vou te dar umas dicas. Peça a sua guia turística para tomar chá de menta no El Fishawi, vão botar sua foto ‘piramidal’ num porta-retrato — ele gostou de ver Sean rir. — E não vai precisar fazer força nenhuma, Queise, para achar tudo o máximo nas lodjinhas de essência de perfume e nos institutos de papiros.
— Chúcran! Obrigado!
— E vá ver as pirâmides, Queise. Não dá para sair daqui sem vê-las. É como ir a Disney e não ver o rato Mickey — riu.
— Você já foi a Disney?
— Sim, com a família. Mas não via à hora de voltar. Sabe Queise... — Muhazzab virou-se para trás para ver o rosto belo e jovem de Sean. —, tem o pão, sabe? Acho que eu voltaria ao Egito só para poder comer o pão. É um cruzamento entre o pão de Beirute e o naan indiano. Já foi a Índia?
— Sim, uma vez.
— É levinho e levemente borrachento. Ideal para homus, tahine e babaganuche. Aliás, como deve ser a vida de quem não come homus e tahine todos os dias? Não consigo imaginar...
Sean também não imaginava, eximiu-se de respostas.
A tarde caía rapidamente e o Le Meridien Heliopolis encantou-o logo que desceu do carro. Numa grande abobada amarela, a limusine o deixou.
— Tome Muhazzab! — Sean estendeu algo. — Este é meu cartão pessoal, não o perca.
— Chúcran! Chúcran!
— Vou trazer uns cientistas para trabalhar aqui no Cairo em dois meses mais ou menos. Aluguei salas no Cairo Plaza Towers para instalar meus escritórios. Eles vão precisar de motoristas. Procure Gyrimias Leferi. Diga que você é “First” e ele lhe dará um belo salário e você ainda escolhe o carro que quer dirigir.
— “First”? — Muhazzab virou-se para falar com ele.
— Sim! São “First” todos que trabalham diretamente comigo.
— Chúcran! Obrigado, mesmo. Legal, você, Queise. A salâmo a-leikom.
— A leikom es salâm!
— Maktub!
Sean ia saindo e voltou.
— O que disse?
— Estava escrito! Maktub! Sabe né?
Sean agora nada respondeu, ficou a pensar se toda a nossa vida já estava realmente escrita em algum lugar.
Entrou no Jasmin Lobby Lounge; um amplo hall de granito escuro. E os 19º C de temperatura que fazia no Cairo em novembro não assustavam os hóspedes que estavam na piscina, incrustada no meio de um restaurante de vidro. A riqueza de detalhes franceses em terras árabes era contrastante.
Dois seguranças enviados por Alam Al Alam o esperava. Outros três seguranças ficariam no hall de entrada se revezando durante a noite toda.
“Droga!”, pensou não imaginando para que tudo aquilo e se tudo aquilo não ia atrasar sua ida a Abu Simbel e consequentemente a Nabta Playa, e mais consequentemente ainda, às energias gravitantes de Samira, já que o satélite de observação Spartacus havia enviado codificadas, as primeiras imagens que ele programara nele.
Sean estava extasiante com tudo aquilo, por chegar tão perto da história de alienígenas na Terra, tão perto do verdadeiro Egito, e tão perto daqueles homens sem nome que haviam trazido tecnologia para construir pirâmides, lanternas e o ensinamento milenar do controle de mentes que a família Foad protegia. E se tudo aquilo era verdade, então não podia acreditar no Dr. Miro Capazze nem em homens que dominavam algo, em que escolas de mistério chamavam de ‘Fator Shee-akhan’, uma arma para matar.
Fez o check-in e se dirigiu direto para sua suíte que ficava no sétimo andar, seguido pelos dois seguranças. O corredor era todo forrado de carpete marrom em formatos de losango, e eles passaram por duas portas onde o som da televisão estava alto demais. Num terceiro quarto, uma criança chorava incessantemente e outra insistia em brincar no corredor com seu avião de controle remoto. Ele já havia entrado e saído duas vezes desde o momento, que Sean aportara no corredor vindo do elevador, e era a terceira vez que a mãe o puxava para dentro, em vão, porque o garoto acionou o controle remoto e o avião se dirigiu para cima dele. Um dos seguranças saltou atrás de Sean que só pôde sentir o brinquedo e o segurança lhe passar de raspão.
Os dois seguranças irritados ficaram para trás, para devolver o avião à mãe da criança, e o corredor de carpete marrom em formatos de losango fez uma curva, e uma camareira passou por ele exalando um odor forte. Sean se virou para vê-la e algo nela o fez titubear; um som agudo que lhe penetrou nos ouvidos como se uma voz gritasse dentro de sua cabeça.
Sean foi ao chão.
“O Senhor está bem?” a voz da camareira mal chegou até ele.
Sean se levantou ajudado e prosseguiu ainda aturdido pelo cheiro, pelos gritos das crianças, quando procurou o cartão da porta no bolso e virou-se já não vendo a camareira. Olhou para frente e não havia ninguém, virou para trás e não havia ninguém, virou para frente e achou que não tinha visto direito, o corredor pareceu ter ficado estreito e uma figura verde o olhava; um homem ruivo, com uma substância oleosa esverdeada escorrendo por um buraco na testa.
— Dr. Miro Capazze? — perguntou Sean sem obter resposta do homem paralisado.
Miro Capazze tinha o rosto tomado por um líquido esverdeado, tão escuro quanto a negritude do crepúsculo, e que lhe cobria os poros dificultando a sua respiração, o matando.
— Shhh... — e Miro segurou a própria garganta, que também abriu deixando escapar uma luz tal qual a mão dele na sala VIP do aeroporto.
— Não!!! — gritou Sean, o agarrando quando foi a vez de Miro tombar. Sean o arrastou para dentro da suíte, em que percebeu, o advogado havia saído de lá. — Por favor, Dr. Miro... — batia no rosto lotado de uma gosma esverdeada e de forte cheiro ocre. — Não! Não! Levanta! — falava desesperado para o homem caído no chão da sala da suíte.
— Shhh... — Miro tentava desesperado sussurrar algo.
— Não fala... Não fala... — Sean o puxou para o lavabo, pegou a toalha e abriu a torneira encharcando-a com água.
Tentava lavar aquela substância oleosa, gosmenta e turva que saía não de um, mas de três buracos ao longo do corpo do homem ruivo, que se dobrava agonizando quando ele agarrou Sean.
— Shhh.... — ainda tentou mais uma vez arregalando os olhos.
Sean foi ao chão com a valise do notebook ainda no pescoço, impactado com o líquido agora navegando nos olhos dele.
— Me larga! — e Sean escorregou. — Me larga! — e o óleo não o deixava escapar, quando Sean soltou-se alcançando o telefone. — Alô?! — gritava ao telefone preso à parede do corredor — Alô?! Alô?! — mas o fio havia sido cortado.
Sean encarou o telefone desligado para então encarar Miro e seu globo ocular saltando para fora e sua língua se enrolando toda. Sean teve ânsia de vômito e pôs a mão na boca tentando se controlar, quando viu folhas esverdeadas em meio a uma poça daquela substância oleosa, esparramada numa das cadeiras de veludo perto da janela. Deu apenas cinco passos em direção à cadeira, e Sean foi jogado contra a parede pela energia desprendida do corpo do advogado na combustão. O corpo de Miro então se incendiou de dentro para fora, pelos buracos por onde a substância oleosa escorria em meio a gritos agonizantes.
Os dois seguranças enfim chegaram vendo Sean caído no meio da suíte que incendiava, e o puxaram para fora o largando no corredor em estado de choque. Sean só teve tempo de ver os braços de Miro cair soltos do corpo, os cabelos esvaírem, e a língua do advogado virar pó.
Vomitou as paredes do corredor.
5
Le Meridien Heliopolis Hotel, Cairo; Egito.
15/11; 09h00min.
Amanhecera e Sean nem percebera, esquecera até que sua última refeição havia sido no avião e que havia vomitado tudo no corredor. Telefonou para a agência de viagens e cancelou o passeio daquele dia. Precisava chegar o mais rápido possível em Abu Simbel, e fazer ‘outro’ passeio. Mas estava tão cansado, que passara todo o tempo desde que o legista e os policiais chegaram, no quarto ao lado, olhando para um chão acarpetado em tons de marrom com imagens poligonais nele, pensativo demais para o gênero dele.
Um homem alto, musculoso, de pele amorenada, usando uniforme branco e boina preta adentrou no quarto. Ele tinha o pisar pesado. Sean acordou do torpor, e ajeitou a mala e a valise com o notebook, ao seu lado.
— Sabah el Kheir! — o homem alto dera bom dia.
— Sabah el nour! — Sean respondeu.
— ‘Ezzayyak? — perguntou como Sean estava.
— El Humdooleh la! — Sean deu de ombros.
— `Âwez `êh? — perguntou o que queria.
— Ana mish fahem.
— Perguntei o que quer? — repetiu o homem.
— Eu entendi o que falou. Respondi “Ana mish fahem”. ‘Eu não compreendo’ foi para sua pergunta. Porque eu não quero nada... — repetiu Sean ao vê-lo parado.
— Está bem! Vamos começar de novo. Quero saber o que queria com o morto?
— Nada! Que eu me lembre.
— Conhecia o morto?
— Hoje de manhã. No aeroporto.
— Como o conheceu?
— Ele... — Sean lembrou-se que estava ali como turista. — Ele se apresentou.
— E por que o fez?
— Ah... — procurava em volta algo que o ajudasse a responder. — Normas arqueológicas, já que ele era o advogado da empresa que intermedia minha contratação.
O policial não pareceu ficar muito convencido.
— Sou o policial Mustafá Kenamun! — devolveu o passaporte.
— Sou Sean Queise! — pegou o passaporte de volta e se viu na foto.
— Seu nome não me é estranho...
— Sou... — voltou a olhar pelo quarto de carpete marrom em formas poligonais e algo estava errado ali, podia pressentir. — Sou da Computer Co.; proprietário.
O policial Mustafá só o olhou.
— Meus policiais estão tentando compreender o que aconteceu, Sean Queise.
— Maktub! — falou Sean sozinho.
— O que disse?
— Não sei... Acho que nada...
— ‘Acha que nada’? Ou talvez ache que alguém jogou aquilo para matá-lo.
— Jogou o quê?
— Aquilo! — Mustafá apontou a esmo. — Sei lá o que é aquilo.
Sean ergueu o sobrolho.
— Também não sei.
— O legista disse que aquilo, aquela coisa oleosa, é uma substância oriunda da seiva de alguma planta.
— Planta? — Sean ergueu os olhos para ele, lembrando-se da planta que Miro tinha nas mãos, no aeroporto. — Que maneira estranha de se matar, não é?
— Por que acha que foi assassinato, Sean Queise?
— Acha que ele jogou aquela coisa nele próprio?
— Estranho, não? — o policial Mustafá tomou coragem.
— Bizarro, eu diria.
— Não, Sean Queise, digo os buracos...
— “Buracos”?
— Parecem ser os chakras. Sabe algo sobre isso?
— Chakra vem do Sânscrito ‘roda de luz’, são centros de energia sutil localizado no perispírito, não no físico do corpo — Sean olhou Mustafá esperando mais. — Para o budismo tântrico dentro do corpo humano existem canais por onde circula a energia vital ou prana, que nutre órgãos e sistemas — e Sean sabia que estava ali por causa das energias.
— Dizem que os antigos egípcios assim como os hindus conheciam a chakraterapia — Mustafá esperou Sean olhá-lo intensamente sabendo naquele momento que Sean Queise era quem havia sido escolhido, que ele era um iluminado. —, conhecimento captado por paranormais chamados de ‘siddhas’ pelo budismo tântrico, Sean Queise.
— Para... — Sean leu os pensamentos de Mustafá, mas nada encontrou ali. Percebeu, porém que ele acreditava em algo. — O estudo das capacidades paranormais do ser humano, não tem nada de sobrenatural policial Mustafá Kenamun.
— Não! Sobrenatural é a ignorância humana sobre a naturalidade da vida — ele viu Sean gostando de ter ouvido aquilo. — Porque para o budismo tântrico, siddhi refere-se aos poderes sobrenaturais adquiridos por meios psíquicos ou mágicos, ou por uma faculdade paranormal adquirida. Ninguém sabe se nascemos com elas, ou nos tornamos assim através do estudo dos chakras, Sean Queise, mas os poderes dos siddhas incluem clarividência, levitação, bilocação, até podermos nos tornar tão pequeno quanto um átomo, até nos desmaterializarmos — e os olhos de Mustafá brilharam voltando às suas anotações iniciais.
“Tão pequeno quanto um átomo”, Sean sentiu um frio na barriga, achando que ia vomitar o resto que ainda por ventura estivera ali no seu estômago.
— Consegue se lembrar de algo mais sobre ontem, Sean Queise?
— Só que fiquei confuso com o odor forte no corredor, o odor que vinha das roupas da camareira. Depois o corpo do advogado vindo...
“Droga!” Sean sabia que estava encrencado, porque pequeno com um átomo a ponto de desmaterializar-se, era o que fizera com seu passaporte e passagens na Computer Co..
— Havia um buraco na testa, entre as sobrancelhas, de onde vertia aquela substância verde...
— Na testa? Entre as sobrancelhas? É o ajna chakra, o chakra frontal.
— Sim, a sede da mente, o chakra do terceiro olho. Dizem que aquele que se concentra neste centro destrói todos os karmas do passado — Sean ficou imaginando se Miro Capazze não havia completado sua missão, se sua missão era morrer no lugar dele; porque a missão dele era maior. — Acha que ele morreu no meu lugar?
Mustafá olhou um lado e outro, e encarou Sean o encarando.
— É o que eu acho!
— Deus... — e Sean sentiu que havia ido ao Egito com um propósito maior que ele próprio dera.
— E depois?
— Depois ele me esticou as mãos com os olhos arregalados, e então um buraco abriu na sua garganta, e ele parecia engasgado com aquele líquido verde, que o impedia de falar.
— Na garganta! É o vishuddha chakra ou chakra vocal, laríngeo sobre a laringe-faringe — mostrou Mustafá com as mãos.
Sean ficou tentando se lembrar de algo mais e percebeu que não havia visto a aura de Miro, nada que indicasse que sua vida se esvaía.
— Tudo aconteceu muito rápido. Ele pôs a mão no coração e despencou sobre mim. Era muito pesado. Fomos ambos para o chão.
— No coração fica o anahat chakra ou chakra do coração — olhou Sean. — Porque se contemplamos a chama chamada vanlinga, que reside no chakra do coração, o ser atingirá o conhecimento além da medida Sean Queise, muito mais que poder ver o passado, presente e futuro. E ele se tornará um khechari siddha e poderá andar no ar, e se tornará um bhuchari siddha para viajar para qualquer lugar.
Sean decididamente não estava gostando daquilo. Mustafá Kenamun parecia ser mais do que um policial.
— Eu... — e parou para respirar. — Eu o arrastei para dentro e tentei limpar com água. Por fim ele se dobrou de dor sobre a barriga e corri para o telefone, mas ele me agarrou pelos pés e... Não sobrou nada dele... — Sean divagava. — Nunca ouvi falar de plantas oleosas que permitissem CHE.
— CHE? Combustão Humana Espontânea? — Mustafá o observou. — Mas o legista disse que foi sufocamento.
— O legista disse? Por que ele é louco ou algo assim? Não viu que o Dr. Miro Capazze pegou fogo?
— Ele deve ter encostado o óleo em alguma faísca.
— Faísca? Não! Não! Sim! Uma vez que o corpo humano contém pontos fortes de variação de campo elétrico, e também contém gases inflamáveis como metano nos intestinos, então uma faísca de uma descarga elétrica poderia mesmo incendiar estes gases... — e Sean parou de falar.
“Droga! Droga! Droga!” havia algo errado naquilo tudo, nele, na sua ida ao Egito.
— Há relatos de corpos que se incendiaram sem nenhum catalisador, policial Mustafá. E a maioria dos 200 casos conhecidos de combustões humanas espontâneas têm características similares.
Mustafá sentou-se ao lado dele.
— Já trabalhei em policiamentos nas ruas, Sean Queise. Às vezes levava corpos mortos de indigentes para os fornos particulares. Achei que o esqueleto só queimasse até virar pó, acima de 1093 graus Celsius, por doze horas, em média.
— Thomas Bartholin era um médico que descobriu o sistema linfático humano, e em 1663 ele descreveu uma mulher em Paris, que “ardeu em chamas e fumaça” sem que o colchão de palha em que dormia, fosse danificado pelo fogo.
— Por Allah!
— Policial Mustafá?! Policial Mustafá?! — gritava outro policial invadindo o quarto vindo da suíte ao lado. — Olha o que eu achei! — e mostrou-lhe folhas de uma planta manchadas pela substância oleosa.
— Que planta é essa? — perguntou Sean, curioso. Mas Mustafá mandou o guarda sair, enfiando a planta dentro do bolso da suada camisa, manchando-a de substância oleosa. — Está retirando provas do local, policial Mustafá. Isso aqui também é crime, não é?
— Quer deixar que a Poliu as encontre, Sean Queise?
“Poliu?”, ecoou por cada poro de seu corpo.
Sean teve um choque ao ouvir aquilo. E não demorou muito para a Poliu sair da suíte onde o corpo fora retirado, e dar uma ordem que tirou Mustafá Kenamun da investigação, ali mesmo, sentado ao lado dele. Sean ainda teve tempo de cruzar seus olhos azuis com o os olhos negros do agente Wlaster Helge Doover; um homem alto, ruivo, de beleza esfuziante.
Realmente um belo homem em seus plenos quarenta anos, braço direito de Mr. Trevellis da Poliu no Oriente Médio. Mas o que ele fazia ali, Sean ficou sem saber, porque nada se falaram.
Sean, porém teve permissão de descer até o restaurante. Tinha muita fome, muito sono, e muitas duvidas para enfrentar a Poliu naquele instante. Colocou o passaporte no bolso e a valise do notebook outra vez no pescoço, enfiando dentro algumas fotos impressas sem que fosse visto, deixando ali sua mala de roupas para não chamar atenção.
O hall de entrada do Le Meridien Heliopolis Hotel estava lotado de turistas, mas nenhum jornalista foi chamado. Sean achou que o caso havia sido abafado pela Poliu. Aproximou-se do gerente e pediu-lhe um helicóptero. E deve ter sido um pedido um tanto extraordinário pela expressão facial que o gerente moldou, mas a recepção conseguiu o que o hóspede pedira.
Sean foi deixado uma hora depois em Abu Simbel, antes do meio-dia, sem a autorização da Poliu.
Abu Simbel Airport; Abu Simbel, Egito.
22º 22’ 21” N e 31º 36’ 40” E.
15/11; 11h50min.
Sean chegou de helicóptero a Abu Simbel, pequena aldeia a 280 km ao sul de Aswan, e apenas a 40 km ao norte da fronteira com o Sudão. Entrava naquele momento no Abu Simbel Hotel, localizado no sopé do Grande Templo de Ramsés II, e oferecia vistas do Lago Nasser. Levava apenas a valise com o notebook e a roupa do corpo para o belo resort.
Precisava alugar um carro até o final da noite e alcançar Nabta Playa antes que Mustafá, Wlaster ou alguém mais atrapalhasse o que realmente fora fazer no Egito.
Subiu, tomou outro banho e voltou a colocar a mesma roupa que trocara pela manhã, quando fora obrigado a tirar aquela gosma esverdeada. Desceu e se embrenhou entre turistas e guias turísticos na porta do hotel.
— Márhaba, Sr. Queise?! — gritavam de longe. Sean procurou em volta quem o chamava assim. — Aqui!!! — gritou uma mulher usando saia curtíssima, agora de pelos cor-de-rosa, chamativa demais até para os padrões moderninhos dos ocidentais.
— Wow! — Sean teve um sobressalto ao vê-la grudada nele.
— Acalme-se Sean yá habibi! — e a ruiva Tahira riu escandalosamente. — Achando que vou assaltá-lo? Jura? São as neuroses de São Paulo? — completou vendo Sean a olhando de uma maneira que não decifrou.
Mas foi um ‘Idiota!’, o que ele pensou.
— Como vai? — ela ainda insistiu em meio a uma gingada de corpo.
Sean virou-se para frente e chamou um táxi. Não sabia bem aonde ia, mas precisava ir a algum lugar longe dela.
Depois se virou para ela:
— Devia ter cuidado com o que veste ‘Srta. Pudica’ — disse secamente ao observar a saia curta que usava.
Como Tahira nada falou, Sean entrou no táxi. Ela, porém o seguiu, vendo que Sean tomava o rumo do mesmo lugar onde o helicóptero que o havia trazido do Cairo, deixou-o; o aeroporto de Abu Simbel. E o seguia sem o que parece, ele perceber, quando o táxi parou por alguns minutos à sua frente e nada aconteceu.
Tahira tomou-se de coragem e desceu do seu táxi se aproximando do táxi dele. O motorista ainda contava notas altas de dólar quando ela enfiou o rosto pelo vidro, e arregalou os olhos verdes para o banco de trás do táxi.
— Onde... — ela olhou novamente o banco de trás vazio. — Onde está o homem loiro que trouxe?
— Como assim trouxe Senhorita?
— Como assim o que? Trouxe o homem loiro, dono dessa valise não? — apontou para a maleta com o notebook de Sean no banco traseiro.
— Ah! Isso? O Senhor mandou entregar à ‘Senhorita escandalosa’.
— Como é que é? — abriu a porta do táxi e entrou.
O motorista ficou atônito com a mulher de cabelos vermelhos e de pernas de fora ali ao lado dele.
— Eu... — mal conseguiu falar se concentrado nas pernas dela.
— Olhe para mim! — apontou os dedos para seus olhos. — Aonde ele foi?
— Em nenhum lugar Senhorita. Já disse que ele me mandou vir até o aeroporto, e trazer a maleta que a Senhorita e pelo visto é a Senhorita, não? — riu.
— Jura? — sorriu mansa. — Não me enrole!!! — e gritou vendo o motorista com as notas de dólar na mão parar de rir pelo susto. — Porque eu o vi entrar no seu táxi e não sair daqui!
— Ah! Ele entrou sim. Depois falou ‘tome esse dinheiro e a valise que a senhorita escandalosa vem buscar’, sorriu para mim e... — e a olhou com um sorriso que Tahira não decifrou a tempo. —, e sumiu!
E Tahira o odiou.
Rodovia Garri Ring; Sudão.
15° 70’ 10” N e 32° 61’ 1” E.
15/11; 15h00min
Um entardecer avermelhado se pronunciava e Sean caminhava pela areia vermelha da Garri Ring Road, Sudão. Estava atrasado, precisava chegar até o banco do Rio Nilo, e conseguir o carro que o primo do motorista de táxi tinha. Não podia perder tempo, precisava bloquear os espiões psíquicos da Poliu, porque ver o agente Wlaster Helge Doover investigando a morte de Miro Capazze, que aparentemente morreu no lugar dele, o deixou confuso e ressabiado, não sabendo mais até onde Mr. Trevellis ia manter o acordo.
“Sean... Sean... El Sean...”, ecoou por todo o trajeto a pé por uma areia vermelha, escaldante que caminhava após sumir do táxi.
E se o motorista entendeu ou não, como o passageiro ficou pequeno como um átomo a ponto de sumir dali, ficara tarde para descobrir. Porque esperava mesmo que aquela destrambelhada e escandalosa Tahira guardasse seu notebook e as fotos do satélite de observação Spartacus, ou tudo cairia nas mãos do belo e mortífero agente Wlaster Helge Doover da Poliu.
Sean avistou a casa que o motorista havia dito. Mais algumas notas altas de dólar, e um Jeep anos 70 e um cantil com água fresca, foi o que conseguiu. Ele tinha pressa, o cabeça da Eschatology Inc. o esperava no sítio de Nabta Playa. Não podia se atrasar ou homens já pagos para liberar sua entrada, também não mais estariam lá.
E Sean chegou com dificuldades naquele Jeep antigo.
Dirigiu por muitos quilômetros até avistar o que parecia um grande toldo de tecido abandonado. Um aperto no peito e o perfume de rosas de Sandy o avisavam, ele estava se arriscando.
“Porque se contemplamos a chama chamada vanlinga, o ser atingirá o conhecimento além da medida Sean Queise... E ele se tornará um khechari siddha e poderá andar no ar, e se tornará um bhuchari siddha para viajar para qualquer lugar.” soou Mustafá Kenamun nas areias do deserto.
E Sean dirigia pela imensidão imaginando se era um siddha, um ser com poderes espirituais escondidos, ou toda sua paranormalidade havia mesmo sido desenvolvida de uma maneira, que nem a ficção científica podia prever.
Parou o carro e se viu sozinho, onde escavações há onze anos levaram as vidas de Afrânio, Samira e uma arqueóloga inglesa de nome Clarice, que ele ainda teve tempo de ler numa pasta cor de vinho que Mr. Trevellis entregara a ele. Sean ainda não acreditava em Mr. Trevellis entregando aquela pasta cor de vinho, com aquele dossiê sobre as escavações de Nabta Playa, mas ele o fez. E fez porque sabia que onze anos depois daquele acidente, algo lhe seria entregue, porque a pasta cor de vinho também falava dele próprio, do garoto loirinho e problemático, que fazia coisas sumirem, coisas reaparecerem, e coisas pegarem fogo.
Sean nada comentou sobre tal pasta cor de vinho, nada argumentou sobre tal pasta cor de vinho, e Mr. Trevellis parecia não insistir, não naquele momento, porque o que ambos queriam ali em Nabta Playa era encontrar vestígios de uma dinastia alienígena inteira, numa Núbia de 10.000 anos atrás, e que o fez arriscar tudo, inclusive as ordens de Oscar Roldman de não se meter com Mr. Trevellis, inclusive ordens de seu pai em não se envolver com computação espacial.
Porque Sean sabia que seu pai e Oscar tinham medo que ele voltasse a usar o satélite de observação Spartacus, para se envolver outra vez com alienígenas, com a vinda deles a Terra. Ainda mais sabendo que a família Foad, era detentora de segredos milenares que Jâmblico de Cálcis contava sobre os pitagóricos, que beberam naquelas fontes de conhecimentos pouco divulgados, sobre uma escola de siddhas, capazes de andar pelo ar e se desmaterializar nele.
Porém, nada daquilo importava naquele momento, só a emoção de estar ali, em frente a uma pirâmide com o que calculou ter onze metros de altura, e que em nada parecida com uma pirâmide, cuja parede desmoronou matando três pessoas. Uma pirâmide cujas paredes estavam revestidas de desenhos de homens de crânios alongados, carregando jarros e pedras brutas, pesadas; também ali, um buraco aberto que adentrou.
Sean acendeu a lanterna do celular que ainda tinha bateria, e viu que nas paredes internas não havia homens desenhados, só mulheres com máscara mortuária egípcia; as mesmas mulheres do seu sonho lúcido, as mesmas mulheres da viagem astral que escreveu e desenhou um papiro em branco.
E aquilo realmente era igual ao croqui feito por Afrânio.
Havia também algo no ar, um cheiro ocre na escuridão da pirâmide. Sean iluminou o chão e não viu nada, só a mesma terra avermelhada do longo caminho até ali.
“Sean... Sean... El Sean...”, dessa vez ele não se assustou, uma estranha calma havia tomado conta dele, a mesma calma que tomou conta dele na decisão de deixar a valise com Tahira.
Sean tocou a parede, mas nada, nenhuma energia ali. Ele tinha razão, aquela coisa Shee-akhan não permitiria leitura de energia alguma.
“Droga!”; nenhum único suspiro de Samira, da mulher grande que invadira seu sonho, nenhuma forma-pensamento da mulher que enviara um papiro em branco, onze anos atrás, a um garoto loirinho e confuso, que desenvolvia dons paranormais que moviam objetos, que os fazia sumir e reaparecer, e que enlouqueciam empregados e família, que não sabia lidar com ele, com aquilo que Sean não conseguia usar naquele momento, porque outra vez tocou as paredes e nenhuma atividade parapsicológica, nenhuma visão remota, nenhuma voz; só algo gelado que lhe tocou.
Sean se assustou e recuou vendo algo subindo por sua mão. Balançou a mão tentando tirar-lhe aquilo, mas fosse o que fosse aquilo, ele penetrou sua pele e prosseguiu pelas veias do braço, e seguiu até seus olhos que arderam na sua essência, e que o fez ajoelhar-se ouvindo o som de carros sendo estacionados do lado de fora. Sean se tocou e viu que nada daquilo estava mais lá.
Acionou outro aplicativo no celular e se olhou no espelho. E realmente não havia nada lá, nada navegando na sua retina. Porque talvez fosse somente outros daqueles insights, daqueles que o deixara tantas vezes confusos, que permeou toda sua infância e juventude de incongruências, atos e vozes e rostos e cheiros que não existiam ali, não numa existência normal.
Sean voltou a si e ergueu-se ainda olhando mais uma vez a grande parede desenhada, e as mulheres oferecendo algo a uma leoa vermelho-amarelada mascarada; não um homem com máscara de leoa, mas uma leoa de pelagem vermelho-amarelada com máscara de íbis.
Saiu.
Do lado de fora, quatro carros Land Rovers com homens dentro.
— Sean Queise? Que bom que chegou cedo! — falou um grande homem vestindo terno branco, que havia descido de um dos carros estacionados um pouco distante de onde Sean estava. — Sou Mark O’Connor, CEO da Eschatology Inc..
Mark O’Connor era um homem grande, com cabelos brancos, olhos azuis que mais pareciam de um cego, e dentes tão alvos que brilhavam pela intensidade. Ele esticava uma mão de pele também branca e gelada, que Sean pôde perceber ao se aproximar e tocá-la.
— Como vai? — e foi só aquilo, Sean outra vez não sentiu nada.
— Este é Ahmad Al-badi, empresário da Síria! — Mark O'Connor apresentou o primeiro homem a descer dos carros e Sean o cumprimentou. Ele prosseguiu com as apresentações. — Este é Nazih Sab`bi, empresário do Líbano! — Sean também o cumprimentou. — Este é Schiller König, gerente de finanças da Vergeltungswaffen, indústria de armas de artilharia alemã! E estes são Stefano Cipollone e Giovanni Bacci; empresários italianos da área armamentista! — ele agora viu Sean já não entendendo as apresentações empresariais.
Sean olhou um lado e outro e a mesma voz ecoada o alcançou.
“Sean... Sean... El Sean...”.
— Este é Aaron Augustine, empresário francês! — mas Mark O’Connor sorriu-lhe prosseguindo nas apresentações. — Este é Christian Tyrone, empresário na Noruega! Ele veio acompanhando do empresário Sr. Robert Avillan, de Chelmsford, Essex, empresário da Inglaterra!
E Sean viu que Robert Avillan era um homem de baixa estatura, cabelos negros e fartos e um óculo tão démodé quanto o terno branco de Mark O’Connor. Mas dele, Sean se lembrava, Robert era amigo de longa data de Oscar Roldman, e como todos ali, também era um empresário de confecções bélicas, e que também comercializava armas.
“Droga!”, aquilo derrubou sua tranquilidade.
Ou Oscar Roldman mandou Robert Avillan até ali para vigiá-lo, ou algo mais acontecia sem ele conseguir saber.
— Por que essa apresentação afinal Sr. O’Connor? — Sean impactou Mark O’Connor quer lhe sorriu com dentes alvos, e apontou para o entorno girando e girando de braços abertos.
— Eles são seus concorrentes Sean Queise.
— Não produzo armas Sr. O’Connor. Concorrentes aonde?
— Nas escavações, onde mais?
— Tínhamos um contrato sem concorrentes se me lembro da última mensagem.
— Ah! Sim! Aquela concorrência — sorriu. — Mas não estamos falando daquela concorrência estamos Sean Queise?
Sean se odiou por aquilo, era óbvio que Mr. Trevellis o traíra. A exploração de Nabta Playa e sua dinastia alienígena estavam sob o foco de outros interesses. Quais, ele não sabia, porque todos seus dons paranormais se desligaram ali. Nada. Nem o incomodo de outro homem ali, um homem de pele ocre, que o olhava sem descanso, não se importando em ser olhado também.
E Sean se sentiu incomodado com aquela situação, com a imagem incomum dele, usando um turbante branco na cabeça, contrastando com a longa túnica vermelha que usava.
— Desculpe-me! Não sabia que essa área fazia parte de alguma concorrência, Sr. O’Connor — Sean voltou a olhar um e outro, e os quatro carros Land Rovers com homens dentro, e que ainda não haviam descido nem sido apresentados. — As diretrizes da Computer Co. são explorar Tebas, na margem oeste do Nilo.
— Mas aquilo já está sendo explorado Sean Queise. Não lê jornais? — riu.
Todos à sua volta riram, Menos Robert Avillan e o homem de pele ocre e turbante branco, que o decifrava.
— Leio mídias o suficiente Sr. O’Connor, para saber que a Eschatology Inc. está com problemas o suficiente, para se esconder da mídia fazendo concorrências escusas, em um sítio arqueológico proibido.
Mark O’Connor agora não gostou no que os homens ali começaram a conversar entre si. Aquilo parecia ter chegado até Sean de uma forma que nenhuma mídia sabia. E Sean não usou dons para aquilo, fora o consultor Alam Al Alam, o homem dentro de um dos carros que abaixou o vidro para se mostrar ali, que o dissera no aeroporto. No entanto, Mark O’Connor deu dois passou para cima dele, sendo brecado pelo homem de pele ocre, quando chegou bem perto de Sean Queise que não moveu um único fio de cabelo.
— Talvez esteja certo, o Sr. Queise… — falou o homem de pele ocre. —, talvez não tenha tido tempo, ele, para mais mensagens, receber.
Sean o olhou vendo a maneira estranha como ele falava.
— Se apresente!
— El Zarih! — o homem de pele ocre inclinou a cabeça e o corpo. — Ao dispor seu, estou!
“El Zarih?”, aquele também não era um nome estranho a Sean.
Ele havia investigado, El Zarih era líder religioso local, homem respeitado por todos e amigo de Mark O’Connor. Mas Sean ficou ali se perguntando o porquê de uma concorrência secreta, e porque do interesse de Mark O'Connor em tê-lo ali, em Nabta Playa, e se talvez não fosse o robô ligado ao satélite de observação Spartacus e sua órbita sincrônica, o verdadeiro interesse deles todos ali reunidos, já que a Eschatology Inc. sabia de tudo o que Sean Queise fazia, e todos ali eram ‘senhores das armas’, com armas pesadas dentro dos carros Land Rovers.
Sean se odiou por ter se deixado ser usado daquela maneira.
— Bem! — Mark O’Connor girou e girou de braços abertos outra vez. — Já que vimos tudo podemos voltar ao Cairo e iniciar as negociações? Daqui a dois meses estaremos aqui com nossa tecnologia de ponta, explorando mais uma grande descoberta — sorriu enigmático.
“Cairo... Negociações... Dois meses... Tecnologia de ponta...”, Sean realmente não sabia mais o que fazia ali.
Porque em alguma coisa ele falhara, e seu pai jamais teria falhado. Não o grande Fernando Queise, o rico empresário dos computadores, o homem que revolucionara a informática e que foi assassinado. Sean nunca havia se sentido daquele jeito; pequeno, frágil, com ciúme, sabendo que errara, que alterara a órbita de Spartacus sem a autorização de Oscar Roldman e a Polícia Mundial, que alterara o contrato da Computer Co. sem comunicar Kelly Garcia, sua sócia naquela empreitada, em todas elas. Como também errara em aceitar algo vindo de Mr. Trevellis, cujos olhos verdes vigiavam Sean Queise, que ainda se perguntava onde mais errara.
Os carros foram novamente lotados e Sean ficou ali se perguntando o porquê. Porque ele havia seguido todos os passos, gravado em tempo real todos os dados transmitidos pelo satélite, processado o inventário, mantido o catálogo de dados do satélite, mantido o acervo de ‘quick-looks’, enviado ao sistema de processamento de imagens os dados transmitidos pelo satélite de observação, para então permitir acesso via internet ao catálogo de dados, e todos os programas de software.
Mark O’Connor então se virou para trás antes de entrar no carro, e viu Sean parado, confuso.
— Não vem Sean Queise? — e não esperou resposta, entrando no último carro, e partindo.
“Droga!”, Sean estava furioso.
Encaminhou-se para o Jeep anos 70 e partiu. Anoitecia e ele não queria ficar perdido ali, não com seus dons desligados, não com a essência de rosas ainda lá, invadindo suas narinas, o carro e o ar que rareou. Levou a mão à garganta e o pé escapou do acelerador quando se olhou atônito no espelho, e um buraco na garganta se abriu fazendo escapar uma luz em meio a um líquido esverdeado, que subia para seus olhos, que se enegreciam pelo líquido que caminhavam por sua retina.
Sean desesperou-se por não ter tido tempo de ver ou prever tudo aquilo e acelerou, e acelerou porque não queria realmente ficar para trás, não vendo os outros quatro carros Land Rovers à sua frente, sumindo na areia vermelha que levantava na estrada, moldada pelos pneus dos carros, quando todos os cinco carros explodiram no que raios vindos dos céus, os atingiram.
Aquela viagem também chegou ao fim.
6
Chelmsford, Essex; Inglaterra.
51º 44’ 9” N e 0º 28’47” E.
16/05; Seis meses depois.
— “Poliu - Assuntos Internos. Dossiê confidencial. Necessita-se identificação para lê-la” — Oscar Roldman terminou de ler e fechou a pasta cor de vinho em estado de choque. — Meu Deus! Onde Sean estava com a cabeça? — os olhos inchados não escondiam as lágrimas.
— Do que está falando? — perguntou Robert Avillan ao acabar de enviar um e-mail.
A sala era ampla, de muito inox na decoração que cheirava flores, incrustada no simpático bairro; durante a Segunda Guerra Mundial, Chelmsford foi um importante centro de produção de luz, atacado pelo ar, por aeronaves da Luftwaffe.
— Sean e Mona, juntos nessa loucura que Trevellis inventou.
— Mr. Trevellis nunca soube que Sean Queise participava das experiências psíquicas. Leu isso na pasta cor de vinho? — Robert apontou para a pasta cor de vinho nas mãos trêmulas de Oscar Roldman, que encarou Robert em sua rica sala de muitos vidros e metais inox; porque tudo ali cheirava metal, inclusive Robert e suas duas pernas mecânicas. — Quando o agente Wlaster Helge Doover descobriu que Mona Foad ensinava Sean Queise, a Poliu virou de ponta cabeça. Então Sean Queise contou a Mona Foad o que ela realmente fazia lá, e Mona saiu da corporação para desespero de Mr. Trevellis, que perdeu sua melhor espiã psíquica.
Mas Oscar no fundo sabia que Mr. Trevellis sempre soubera o que acontecia; ele queria o filho dele, porque Mr. Trevellis queria acesso aos dons paranormais de Sean.
Dons que eram até muito mais do que um dia podia imaginar. E que Sean usava para se comunicar com o espaço profundo.
— A coisa é mais complicada Robert — foi só o que disse.
— Não acho. Acho que Sean Queise deu o troco à Poliu pelo que fizeram, por provocarem Mona Foad a seguir Sandy Monroe no astral.
— Sandy era uma espiã.
— Então a Poliu vai colher o que plantou esses anos todos, porque nunca mais a corporação de inteligência vai se estabilizar militarmente, não depois daquela explosão em Nabta Playa. Porque o povo comum até não a conhecia, mas nós, nós empresários do ramo sabemos que Mr. Trevellis está no limite de sua gestão na Poliu, e que a Poliu precisa de sangue novo. Talvez o sangue do agente Wlaster Helge Doover.
Mas Oscar não gostou de ouvir Robert falar aquilo.
— Wlaster nunca vai conseguir ascender à Poliu. Lá só Misteres e Mistresses, de família abastada.
— Não sei não. A Poliu está para lá de dividida depois da perda de informações sobre aquele sítio arqueológico.
— O que mais soube sobre Nabta Playa?
— Nada! Fui lá ao escuro, porque recebi informações do mercado que meus concorrentes estavam indo lá. E fui lá, porque você também me pediu para ir lá — e Robert enviou outro e-mail.
Oscar olhou em volta novamente, algo lhe incomodava.
— Mas a Poliu sabia que Sean estava indo a Nabta Playa?
— Não sei dizer. Mas se Sean Queise tinha todos esses dons paranormais como diz a pasta cor de vinho… — apontou. —, então ele sabia de algo.
— Eu preciso ir lá.
— “Lá”? Em Nabta Playa? Está louco? — Robert Avillan apavorou-se. — Eu estava no Sudão, Oscar. Lembra-se disso? Todos nós envolvidos naquela reunião com Mark O’Connor, a Eschatology Inc. e um sítio proibido de entrarmos. E acredite, chegarmos explodidos e mortos no Sahiroon Specialised Hospital revolucionou Cartum, a capital do Sudão; helicópteros, carros SUV e homens com armamento pesado por todos os lados, e mídia, e polícia e todo um circo armado — movimentava os braços abertos dando círculos.
— Inferno... — e Oscar outra vez chorou.
Robert parou o movimento dos braços e se aquietou, tinha muito respeito por Oscar Roldman e sua chefia na Polícia Mundial com quem fazia negócios armamentistas. E ele preferia fazer seus negócios as claras com ele, do que enfrentar os preços módicos dados pela Poliu e suas redes secretas, não muito explicadas.
Já se passara seis meses desde o incidente e Robert ainda se perguntava afinal o que fora fazer ali, porque se deixou convencer por concorrentes a participar daquela concorrência, depois que soube que a alta tecnologia da Computer Co. ia ser bem aproveitada ali.
— Me perdoa por isso amigo. Eu não devia ter ido.
— Eu que não devia ter deixado Sean ir.
— E como podia saber amigo? — balançou a cabeça em puro desalento.
Oscar Roldman sabia, algo o perturbava há muito tempo. Mas nunca aceitara seus dons, porque diferente de Sean ele nunca se desenvolvera, nunca permitira que o sangue dos Roldmans o dominasse; jamais se tornaria um siddha. Não depois de perder Nelma para Fernando, não depois de ela o chamar de esquisito.
E aquilo ele nunca contara a ninguém.
— Preciso voltar lá Robert. Precisa conseguir isso para mim fora dos domínios da Polícia Mundial.
— Sean Queise estava no último carro quando aquele drone nos explodiu Oscar. A Poliu falhou, todos os agentes da corporação de inteligência falharam, e todos nós perdemos algo ali — apontou para as pernas mecânicas que usava. — Eu realmente sinto pela morte de seu... — e parou no que o rosto de Oscar se inflou.
Ambos caíram num limbo silencioso quebrado pela dor de Oscar Roldman.
— Eles não acharam o corpo, Robert — concluiu Oscar. — Eu tenho que tentar — enterrou as mãos na cabeça, balançou-a depois a quase deslocá-la do pescoço.
Já não dormia nem atendia ao telefone. Estava criando coragem há um mês para falar pessoalmente com a família de Sean, para falar com o grande amor do passado, Nelma Queise. Nelma com quem Oscar tivera um caso, Nelma que ele amava ainda hoje, acima de tudo. Nelma que lhe abandonara e retornara aos braços de Fernando, grávida de Sean.
— Você ainda não foi ao Brasil? — Robert parecia conhecer o amigo.
— Não tive coragem. Nelma foi internada com princípio de infarto logo após saber da morte do filho no acidente, que não foi noticiado à mídia. Hoje está recolhida em casa, e nunca mais saiu de lá — Oscar olhou Robert mandando mais um e-mail. — E o que iríamos nos dizer...
— Como o mercado corporativo recebeu a morte do jovem empresário, se não sabiam que ele estava no Egito?
— Nelma abafou tudo.
— E Nelma Queise tinha força para isso?
Oscar não gostou de ter ouvido aquilo.
— Não sei, mas quando Fernando largou mão de vez da empresa, sei que os rumos da Computer Co. foram dados a Sean. A filha Ana Claudia, além de ser muito nova, não demonstrava feeling para o negócio. A Computer Co. só funciona porque Kelly Garcia tem se mostrado tudo aquilo que Nelma... — e parou de falar algo. —, que Fernando e Sean enxergavam nela.
— Bela mulher aquela — se perdeu ali.
Já os pensamentos de Oscar Roldman não se perderam um só minuto, porque ele sabia que fora Nelma Queise quem escolhera Kelly Garcia, fora ela quem exigira as pastas de candidatas a ajudar Sean na construção do satélite de observação, e sabia que ela obrigara Fernando Queise a nunca divulgar aquilo a Sean. Oscar só não entendia o porquê de Sean, um jovem com dons suficientemente poderosos para saber aquilo, não saber daquilo.
“Ou sabia?” se perguntou.
Oscar também andava inconformado de como a Poliu havia tratado o caso do desaparecimento do corpo de Sean Queise, após a ‘força’ de Nelma. Porque o fato do satélite de observação Spartacus estar travado, após imagens desfocadas chegarem a Polícia Mundial e mensagens de erro anular as senhas de acesso, significava que Sean havia pressentido algo, previsto algo, e feito algo com o satélite de observação antes daquela fatídica ‘reunião’.
A Poliu, porém, só cobrava uma resolução para Spartacus ter desaparecido do sistema de comunicação durante a explosão, porque nem a presença do drone que ninguém reclamou sua origem, foi avisada aos bancos de dados. E se havia drones ali nos céus, havia projetos vinculados a áreas tão diversas como robótica, arqueologia digital, observação da Terra e agrometeorologia ali nos arredores de Nabta Playa que a Poliu não admitia; análise de grandes volumes de dados de observação da Terra para informação de mudanças de uso, e cobertura daquela terra usando os bancos de dados da Computer Co., que jurara não mais participar de geoinformática e atividades arqueológicas.
Oscar sabia que Fernando escondera algo, provável de seu filho, que deixou perdido para sempre nas areias da baixa Núbia, informações vitais.
— Você conseguiu algo mais do que esta pasta cor de vinho, Robert?
— Já falei que a concorrência internacional era para descobrir algo em Tebas, depois do achado pelos arqueólogos tchecos. Mas quando chegamos lá, fomos surpreendidos assim com Sean Queise, que a concorrência seria para rastrear as areias proibidas de Nabta Playa, a mesma que quase afundara a Computer Co. onze anos atrás. E agora pensando bem, acho que Sean Queise sabia sobre algo, porque estava lá antes de nós. Porque quando chegamos, ele saiu de debaixo de uma tenda, que calculei pertencer às antigas explorações lá abandonadas.
— Mas no que consistia a maldita concorrência?
— Diversos setores, a maioria armamento — olhou sua sala fria.
— Para que Mark O’Connor precisava de tantas armas? Algum tipo de guerrilha?
— Não sei. Não há nenhum tipo de entrave sócio político em Nabta Playa.
— A parte da Computer Co.?
— A parte da Computer Co., calculo que fosse os novos robôs que estavam desenvolvendo.
— Sean voltou a desenvolver robôs?
— Você não sabia?
— Nelma teria... — e Oscar parou de falar.
Robert prosseguiu mesmo assim.
— Se bem que, hoje acredito que se tratasse de mais, de algum tipo de processamento de imagens, já que Mark O’Connor nos garantiu que as câmeras do satélite de observação Spartacus estariam a nossa mercê, porque pelo que pude apurar, Sean Queise ia usá-lo em Tebas.
— O’Connor desgraçado! Ele ia usar Spartacus sem a Poliu saber.
— Como assim?
— A Poliu temia que a Eschatology Inc. tivesse acesso fotográfico via Internet ao sítio de Nabta Playa. Mas o que Trevellis temia afinal, não sei.
— Uau! Não sabia disso. Então o drone que nos explodiu não podia estar ali sem ordens da Poliu, já que a corporação de inteligência vigiava o espaço aéreo?
— Trevellis não se atreveria.
— Porque os drones estão se tornando uma ferramenta para criminosos e terroristas, Oscar, pela dificuldade de detectar drones armados. O que me leva a pensar por que a Poliu não direcionou qualquer posição das imagens dos cinco carros sendo atingidos, se imagens do tipo ficam disponíveis no catálogo vários dias após a recepção?
— Não sei o que lhe responder Robert, só que deve haver algo fora do lugar. Sean não estava trabalhando com Gyrimias Leferi como o costume.
— E Gyrimias Leferi era importante?
— Gyrimias sempre foi importante para Sean. Acho que algo o brecou dessa vez.
— Acha que Sean Queise estava desconfiado do seu cientista Gyrimias Leferi? Sean Queise desconfia da própria sombra.
— Não sei, mas algo que Gyrimias fazia, o brecou em levá-lo junto com ele. Porque Spartacus usa câmera CCD de varredura eletrônica, conjunto linear de 6.144 detectores, visada inclinada de -32 a +32 graus, revisitada a cada três ou quatro dias numa resolução espacial de 20 m, em duas bandas espectrais, e Gyrimias sabia lidar com isso.
— Era sua atitude padrão? Digo, em relação ao material usado?
— Deve ser ideia da minha cabeça... — Oscar sorriu cínico para Robert Avillan sabendo que ele nada conhecia sobre os dons paranormais dos Roldmans. —, mas Sean mudou a órbita de Spartacus para uma órbita espiã, uma órbita hélio-síncrona com apogeu de 750 km e perigeu de 745 km, e inclinação de 98,5 graus em relação à linha do Equador.
— Como assim mudou? Mr. Trevellis sabia disso?
— Não!
— E como pode ter certeza?
— Posso! — e Oscar olhou para a esquerda com algo lhe chamando a atenção; cores, vozes, formas.
No quadro à sua esquerda, toda uma energia gravitante de mãos ali, de furadeiras e cabos elétricos passando, e homens ali colocando um aparelho de escuta.
“Inferno!” pensou Oscar se erguendo bruscamente da cadeira.
— Vamos tomar café Robert! — soou como uma ordem.
— Café? — olhou-se perdido. — Sempre tomo café aqui nessas tardes lindas.
— Ótimo! Então vamos tomar café, na tarde linda de fora, Robert. E coloque o casaco! Vai chover! — e já se foi deixando para trás Robert.
E Robert ficou sem saber o que aconteceu com a voz dele que mudou, assim como as atitudes e o tempo que realmente se fechou.
Alta Chelmer Shopping Centre, Chelmsford; Essex.
16/05; 17h00min.
— O que houve? — Robert entrou no café antes da chuva arriar.
— Havia escutas no seu escritório. Inferno! Só percebi tardiamente...
— Escutas? — Robert arregalou os olhos para os lados.
— Por isso preciso da sua ajuda para entrar no Sudão pela Eritreia, sem as escalas diplomáticas, ou isso ativará a Polícia Mundial e a Poliu.
— Vou ver o que posso fazer — Robert o olhou. — Quando será a missa de seis meses?
— A família dele diz que fará quarta-feira que vem.
— “A família dele”? Oscar... Ele era seu filho.
“Meu filho...”, Oscar gemeu.
— Éramos todos amigos na cara escola Suíça, que meus pais não podiam pagar. Um tio era quem me financiava.
— Não sabia!
— Poucos sabem. Eu, Fernando, Nelma e Trevellis éramos jovens com sonhos grandes, de poder e dinheiro; dinheiro que eu nunca tive. E Fernando e eu a disputávamos, toda e qualquer atenção dela, de Nelma. E apesar de Nelma nunca ter feito diferença quanto minha posição social, eu me sentia pequeno perante o milionário e belo Fernando, sua família rica, seus dons para máquinas de processamento de dados, sua lábia em ser mais gentil mais atencioso. Eu realmente não conseguia competir com ele.
— Uau!
— E Nelma o escolheu, o grande empresário em que ele se tornara, com uma grande empresa, com grandes bancos de dados para a Poliu que Trevellis e sua família abastada passaram a administrar. Eu vi tudo indo embora, Robert. Fiquei anos estudando e batalhando a chefia da Polícia Mundial, quando o casamento dela com Fernando estremeceu pelo excesso de trabalho dele. Nelma se viu sozinha, carente, abrindo a porta para eu entrar, amá-la e provocar ciúme em Fernando. Porque quando ele acordou, estava prometendo dar a ela todo seu tempo, toda sua vida assim que possível, assim que conseguisse alguém para administrar a Computer Co.. Porque quando eu acordei, havia perdido Nelma para sempre, levando embora um filho meu com ela.
— Sinto por isso.
— Eu também! Mas o mais incrível, é que Sean cresceu se mostrando um jovem gênio, como Fernando, levado a trabalhar em Spartacus, o construindo com maestria, até que Fernando largou toda Computer Co. nas mãos dele; Fernando pelo menos foi honesto com Nelma.
— E por que a Poliu odeia tanto Sean Queise?
— Não! A Poliu odeia os mainframes da Computer Co..
— Mainframes que pertencem a Sean Queise.
— Mainframes que Sean Queise domina.
— A Poliu fala sobre hackers.
— A Poliu fala demais — Oscar se irritou.
Robert olhou um lado e outro pedindo enfim duas xícaras de café quente.
— Cuidado Oscar! Você e a Poliu podem até estar de boa, mas Sean Queise está morto. Não adianta você morrer também.
— Quem vai me matar? — questionou interessado.
— Quem você menos espera! — ele viu Oscar arregalar os olhos e o amigo completou. — É o que todos dizem — concluiu Robert Avillan.
— Acha também que Sean foi morto premeditadamente?
— E você acha que não? — interrompeu Robert Avillan. — A falsa concorrência, os preços superfaturados aceitos, Spartacus em sei lá que órbita espiã, e aquela reunião marcada no meio de um deserto?
O garçom serviu duas xícaras duplas de café.
— Eu não acredito que Sean tenha sido tão displicente a ponto de ir para o Egito naquele momento tão delicado da Eschatology Inc., e continuar lá depois de terem matado o advogado Miro Capazze na suíte dele — Oscar olhou para os lados a fim de averiguar quem entrava e saía.
— Não sei se foi displicência.
— O que quer dizer?
— Acho que Sean Queise sabia de algo.
— Como?
— Não sei como, porque o ‘como’ foge da minha compreensão. Mas sabe que os espiões psíquicos também foram treinados para brecar uns aos outros. Então Sean Queise os breca e os psi o brecam.
— Está dizendo que os agentes psíquicos da Poliu não conseguiram saber o que Sean ia fazer lá? Não acredito! Sean não tem esse poder de bloqueio. E também não acredito no advogado Miro Capazze sofrendo de CHE como supõe a Poliu.
— Não sei nada sobre Combustão Humana Espontânea. A ciência nada conseguiu provar, sobre pessoas com o ‘dom’ de se incendiarem de dentro para fora.
— Que referência é essa da Poliu sobre essa planta? E o que essa planta tem haver com CHE? — insistiu Oscar ao beber o seu café. — Argh! Está frio! — ergueu as mãos. — Por favor, mais dois cafés?
— Não há referências sobre ela em nenhum papiro de botânica egípcio — Robert tomou o café mesmo frio. — Além do mais não encontraram nada perto do corpo de Miro Capazze.
— Então só a Poliu tem respostas.
— E há muito tempo.
— “Há muito tempo” quanto?
— Onze anos atrás eu era estagiário em uma empresa de tanques de guerra, e ouvi uma discussão entre o agente Joh Miller e o agente Wlaster Helge Doover, que agora está na chefia da Poliu no Oriente Médio, sob as ordens de Mr. Trevellis, mas que na época era subordinado de Joh Miller.
— O que ouviu Robert?
— Ouvi Joh... — e parou. — Conheceu Joh Miller? Aquele que morreu após pedras soterrarem a irmã de Mona Foad, o marido e uma arqueóloga inglesa no Egito?
— Samira Foad não foi soterrada.
— Não?
— Seus corpos nunca foram encontrados, quando a polícia local disse que uma parte da parede, rolou sobre trabalhadores locais matando alguns, e destruindo o sítio arqueológico em Nabta Playa.
— Uau! Mas foi noticiado que... — e Robert parou imaginando que a Poliu não iria noticiar nada de verdadeiro mesmo. — Eu não sabia...
— E eu conheço o agente Joh Miller, caro Robert; ele também é esperto o bastante para simular sua morte — falou Oscar ainda vigiando o entra e sai da porta do bistrô. — Como também conheço Trevellis o suficiente para saber que nada escaparia daquele crápula.
— Então Joh Miller não morreu? Mas eu pensei que...
— Prossiga Robert!
— Como eu ia dizendo, o fato era que Joh Miller discutia com Wlaster Helge Doover, sobre alguns incidentes pseudo religiosos no passado, no que fora a baixa Núbia. E o Joh Miller estava tão nervoso, que disse que ia assumir o problema com ‘aquela entidade de homens sem nome’ sozinho, antes que Samira Foad contasse a Mona Foad o que encontraram.
E Robert Avillan se contorceu sobre o estômago.
“Maldita azia!”, foi o que pensou.
— E o que encontraram Robert?
— Não sei. Eles não disseram. Mas as frases ‘alguns incidentes pseudo religiosos no passado’ e ‘aquela entidade de homens sem nome’ me arrepiam até hoje.
— Você sabe do que estão falando, não Robert?
— Sim! Sobre entidades secretas e pseudo religiosos que se dizem deuses vindos do espaço, que alienígenas caminham entre nós, que o homem é um clone, uma imagem criada a partir desses deuses, e coisas mais esquisitas ainda.
— Os alienígenas andam entre nós?
E Robert Avillan se contorceu sobre o estômago outra vez.
— Sim! São chamados de ‘entrantes’.
— Eu sempre soube que a Poliu investigava entrantes... — sorriu Oscar de uma maneira tão incógnita quanto os mistérios da vida. — Trevellis usava espiões psíquicos para se comunicarem com eles. Mona os chefiava num experimento chamado ‘Contato!’. Foi lá que Sean começou a se interessar pelo tema.
— Sean Queise, um paranormal, interessado em alienígenas? Uau!
— Mas Mona garantiu à cúpula da Poliu que Sean nada sabia sobre esses agentes psi, se comunicando com alienígenas. Contudo alertou Trevellis que o agente Joh Miller frequentava uma rede social, uma espécie de lista de e-mails sobre ufologia, e que Sean também participava.
— Nunca ninguém me disse nada a esse respeito, Oscar. Ouço isso de você, e é a primeira vez.
— Alienígenas... — Oscar ficou a divagar, lembrou-se o quanto Sean Queise se ligava em ondas ufológicas, e quantos incidentes tiveram no passado. — Será que Sean estava lá por causa disso? Não pode ser! Ele não teria tido acesso àquela... — arregalou os olhos para Robert Avillan que nada entendia. — Teria tido acesso àquela informação?
— “Àquela informação”?
Mas Oscar mal conseguia pensar.
— Não! Sean só tinha catorze anos. Ele não teria conseguido... Não, ele não teria conseguido ir tão longe...
— Quem foi tão longe, Oscar? Sean Queise?
Oscar olhava atordoado para os lados, totalmente perdido em pensamentos. Entendeu, porém que Sean nunca precisou hackear nada, ele próprio era um hacker psíquico tocando paredes, objetos, tirando de lá informações como ele fizera pouco tempo atrás; energia gravitantes. Oscar enfim entendeu que seu filho se desenvolvia antes mesmo de Mona o iniciá-lo, e que talvez sair do corpo era só a ponta do iceberg; e que Sean pudesse viajar pelo tempo.
— Fantástico! — Oscar sorriu para um Robert cada vez mais confuso.
— O que é...
—Tem certeza de que Joh e Wlaster não o viram? — Oscar cortou a fala dele. — De que não forçaram a conversa para você? Fala-me Robert? Fale afinal o que ouviu?
Robert Avillan prosseguiu após olhar para os lados e não ver ninguém conhecido.
— Eu não sei por que eles acabaram indo falar tudo aquilo, mas... — e Robert Avillan voltou a se encolher sobre o estômago.
— Você está bem?
— Sim... Essa azia que me persegue — olhou para os lados. — Sabe? Eu até fiquei com medo de ser descoberto, mas... — e Avillan parou novamente para se espremer. —, mas Joh Miller estava nervoso porque a Poliu estava quase descobrindo uma pirâmide e uma dinastia inteira.
— Uma dinastia de quem?
— Uma dinastia de mulheres faraó e homens de crânios alongados, sob as ordens de uma entidade iniciática em segredos, que os psi sob o comando de Mona Foad, conseguiram captar através de viagens astrais.
— Cabeças alongadas como os Anunnakis?
— Sei lá quem são esses, mas os psi descobriram que se tratava de uma entidade de homens sem nome, que dominavam uma planta, chamada por esses iniciados em escolas de mistério, de ‘Fator Shee-akhan’.
— “Fator Shee-akhan”?
— Sim. Uma planta que permitia alienígenas entrarem em nossos corpos, e aqui na Terra, viverem.
— Entrarem como?
— Dominando nossos corpos através de nossos chakras.
— Inferno! O que aquela louca da Mona fazia afinal com esses espiões psíquicos?
— Não sei, mas seus psi também conseguiram informações que havia lá em Nabta Playa, uma pirâmide com segredos, uma espécie de biblioteca sobre esse tal ‘Fator Shee-akhan’ e as escavações começaram; várias aliás.
— ‘Várias’ quanto?
— Não sei. Porque vários arqueólogos desistiam de lá quando... — e um novo espasmo fez Robert Avillan cair com a cara na xícara de café.
Oscar arregalou os olhos e pulou da cadeira se sentando ao lado do amigo, que levantou percebendo que todo seu corpo estava gelado, e que na sua pele algo caminhava. Oscar voltou à sua cadeira escorregando um olhar e outro em volta, e nada viu que o avisasse daquilo. Olhou Robert mais uma vez, e toda sua corrente sanguínea esverdeava até que seus olhos se tomaram de um líquido verde enegrecido. Oscar pegou a pasta cor de vinho nas mãos, e correu com toda a idade e emoção para fora da cafeteria, para fora do shopping, que explodiu.
Seu corpo foi projetado por cima de carros que ativaram alarmes, e buzinas, e vidros, e dor no que toda a rua se tomou de chamas.
Oscar levantou-se ainda atordoado, com um zumbindo no ouvido, percebendo, contudo, que estava vivo.
7
Asmara Int´l Airport, Asmara; Eritreia.
15º 29’ 0” N e 38º15’ 0” E.
17/05; 12h00min.
Oscar Roldman desembarcara já fazia duas horas, no aeroporto de Asmara; estava cansado e nervoso.
— Alô?! — quase gritou ao tocar do celular.
— Sr. Roldman?
Oscar ficou uma fera.
— Não disse para não telefonar Lucy querida?
Lucy continuou mesmo assim e interceptações telefônicas estavam sendo feitas.
E era Mr. Trevellis quem ouvia a conversa deles:
— O consulado ligou. O Senhor pode entrar hoje à noite no Sudão sem precisar usar passaporte. O agente Michel Rougart deve estar chegando. Mandou mensagem via e-mail avisando que o laboratório da Polícia Mundial, conseguiu recuperar fragmentos das xícaras de café do Senhor e do Sr. Robert Avillan, e concluíram que havia uma substância verde, oleosa e pegajosa da qual desconhecem a origem.
— Inferno... — soou atrapalhando a voz dela.
— O agente Michel Rougart disse, porém que a Poliu tem em seus arquivos, notas sobre uma substância criada por transmutação alquímica chamada de ‘Fator Shee-akhan’.
Os olhos de Mr. Trevellis brilharam na escuta telefônica e nem os sons de aviões o perturbaram.
— “Transmutação alquímica”? A alquimia é quase uma filosofia entre a ciência e o misticismo, Lucy.
E o som dos aviões cortou a audição de Lucy.
— Senhor?
Oscar, porém continuou.
— Basicamente a conversão de um elemento químico em outro, derivado da astrologia, da astronomia, e da mitologia.
E Lucy voltou a escutá-lo.
— Acha que nosso Sean estava atrás disso?
“Nosso Sean?”, se perguntaram Oscar e Mr. Trevellis.
Porque Lucy conhecia Sean Queise desde pequeno, e porque desde pequeno que Nelma Queise dava jeitos de fazer viagens de turismo à Europa, o suficientemente perto para passar pela Trafalgar Square, visitar Oscar Roldman com um ‘estava passando por aqui’. E era sempre em julho, nas férias escolares de Sean, mas também época do aniversário do pequeno loirinho para então ‘venha conosco comer um bolinho’.
Todos os anos.
— Não sei dizer Lucy querida. A alquimia é uma ciência primitiva diretamente ligada a Hermes Trimegisto, primeiro alquímico do Egito e provável ligado a esse Fator Shee-akhan.
— Acha que Mr. Trevellis está escondendo algo sobre isso? Algo que não escreveu naquela pasta cor de vinho?
Oscar sentiu algo errado ali, nela, na frase. Algo que fez todas suas sinapses nervosas lhe alertar para talvez Mr. Trevellis o ouvindo. Olhou o celular e outra vez rastros gravitantes se ergueram feito holografia, e Oscar viu mãos, ferramentas, agentes da Poliu e um nano grampo sendo colocado em seu celular.
Nunca o medo da verdade se mostrou a ele.
— O que Trevellis não é capaz de fazer não Lucy querida? — foi só o que Oscar falou.
— Não sei Sr. Roldman. Mas nosso Sean teria ido atrás, se soubesse algo sobre o Fator Shee-akhan?
— E acha que eu estar aqui não seja ‘ir atrás’, também?
Lucy assim como Kelly fazia, não insistiu. Sabia que Oscar sofria. E sofria por não ir atrás do amor de Nelma, por não admitir Sean ser seu filho, nem de lutar para manter Sean ao lado dele; sempre com mentiras, sempre fugindo da verdade.
— O agente Michel Rougart também enviou o doc sobre a autópsia, e o legista concluiu que o Sr. Robert Avillan sofria de CHE, Combustão Humana Espontânea.
— No que os alquimistas chamavam CHE de fogo secreto.
Oscar cerrou os olhos se perguntando por que mataram Robert Avillan, ou se foi ele, Oscar Roldman, o alvo. Como talvez tenha sido Sean Queise, o tempo todo, o alvo do ataque aos cinco carros no deserto. Ou ainda se o fato dele, Oscar Roldman, não ter morrido em Essex não estava ligado ao seu dom paranormal que o avisou da escuta, que o avisou do perigo, que o levou pegar a pasta cor de vinho, e sair da cafeteria segundos antes da explosão.
E por que Sean não tivera tais premonições também.
— Lucy, avise o agente Michel Rougart para me procurar no Museu Nacional de Asmara, próximo do Selam Hotel.
— Sim, Sr. Roldman.
Oscar desligou o celular e ficou olhando o redor. Pegou um táxi e foi para o centro da cidade movimentado àquela hora. Entrou no Museu Nacional com exposições sobre artefatos de escavações de Adulis, e lápides com inscrições das Ilhas Dahlak.
— Por favor, Senhor. Terá que deixar a mala na entrada do museu — se aproximou o funcionário do museu falando em inglês. — Fazer fotos também é proibido — e foi embora.
Oscar Roldman sorriu agradecendo e avistou ao longe um jovem bonito, de seus vinte anos, cabelos excessivamente negros e encaracolados, cumprimentando-o com um olhar. Oscar confirmou com outro olhar e o agente Michel Rougart da Polícia Mundial foi embora, deixando no chão da entrada sua maleta de mão, como já instruíra o funcionário do museu a ele, também. Oscar se aproximou e pegou a maleta trazida pelo agente contendo passaportes, dinheiro e uma arma calibre .32, e colocou sua maleta de mão com o celular e a pasta cor de vinho da Poliu, que tirara de Robert Avillan antes da explosão, quando o agente Michel Rougart retornou e recolheu-a, sumindo entre os muitos turistas ali.
Fazia tempo que Oscar não se armava, não se envolvia diretamente numa investigação. Seu trabalho específico sempre fora atrás de uma mesa. No entanto, respeitado e temido por todas as tarefas de força do mundo da política e espionagem internacional, Oscar Roldman era um estrategista que nunca falhara. Ou pensava assim até então, até ter posto a vida de seu filho em perigo.
Ganhou as ruas elegantes, repletas de palmeiras e boutiques, bares e restaurantes lotados, em meio a homens que o seguiam. Ele os viu pelo reflexo de um dos carros ali estacionados, e Oscar se pôs a caminhar em círculos segurando com força a maleta sentindo sua própria batida cardíaca se acelerar. Correu em disparada por ruas de Asmara, uma aldeia escolhida para capital da região, procurando um táxi, e mais homens começaram a segui-lo agora abertamente, com todos seus dons lhe avisando que era a pasta cor de vinho o interesse de homens, que se duplicavam em número.
Oscar viu uma pequena aglomeração de turistas e o ônibus de número 12 e número 9 iam fazer sua última parada na frente de Kidane Mirhret, igreja em Sembel Village. Oscar entrou e se colocou no último banco percebendo a indecisão dos homens que o seguiam, em entrar ou não no ônibus. As batidas cardíacas de Oscar acentuaram quando três deles entraram no ônibus, se colocando na frente, próximo à porta, e o ônibus deu partida. Ele precisava tomar uma decisão, qual ainda não sabia, mas havia decidido não carregar celular já que podia ser rastreado por Mr. Trevellis. Porque ia entrar no Sudão e de lá chegar a Nabta Playa sem a Poliu saber. Contudo a única coisa que fazia naquele momento, era alcançar a pista de terra de uma colina, com vista para um cemitério.
Um dos homens se levantou do primeiro banco olhando para trás. Oscar engoliu a seco e tirou a arma calibre .32 de dentro da maleta deixando-a exposta na mão. O ônibus estava lotado de turistas, de vozes de vários timbres, e muita poeira entrando pelas janelas abertas, quando o homem começou a mudar de cor e toda sua pele, sua pouca pele exposta pela túnica longa e cinza que cobria todo seu corpo, esverdeou-se. Os turistas começaram a perceber a mudança na cor do homem, e uma agitação se fez com o homem tentando passar pelo corredor do ônibus, que agora tinha homens, mulheres e crianças apontando para ele, para a cor da pele dele, e todos tentando se afastar do homem esverdeado que começou a abrir buracos pelo corpo, de onde luzes escapavam.
Pânico e gritaria e o corpo do homem esverdeado pegou fogo.
Oscar se ergueu colocando a maleta de mão no banco sentindo que pouco a pouco se esvaia, se tornava rabiscos, até ficar transparente aos olhos assustados, em pânico, de todos no ônibus que se incendiava, vendo que o estrangeiro sentando no último banco, já não mais estava sentado no último banco.
Lá, só uma pasta cor de vinho vazia e a certeza que Oscar Roldman também era um siddha.
8
Abu Hamed, Sudão.
19º 32’ 36” N e 33º 20’ 16” E.
18/05; 15h00min.
O Sol se escondia e um vento morno batia no rosto do jovem rapaz, sentado no banco de madeira. Como fazia todas as tardes desde que saiu do coma em que se encontrava, ficava olhando o céu no firmamento. Tinha o rosto enfaixado, o olhar azul distante, perdido, uma dor inexplicável no coração. O verão sudanês Ali Abu Faãn se acentuava e o mundo nada mais falava da morte do jovem empresário brasileiro Sean Queise.
Aos seis meses do acontecido, a família consternada, convidava a todos para uma missa.
Já o rapaz de rosto coberto ainda se encontrava ali no jardim do Asilo Faãn, à margem direita do Rio Nilo e a 345 km de Cartum por via ferroviária quando o aroma do rio o alcançou, e ele se perguntou o que fazia ali, onde era ali, quem era ele; ele que era observado por câmeras distantes, por olhos profissionais que se revezavam há seis meses também.
— Tem certeza que não é perigoso para seu Khalida ficar tão exposto? — questionou o Dr. Jablah Faãn olhando para fora da janela do asilo, vendo o jovem de rosto enfaixado ainda na mesma posição, sentado no banco de madeira. — Podemos estar sendo observados sem perceber.
— Que neura, Jablah — afirmou categórica sua irmã, a também Dra. Najma Faãn, enquanto arrumava os medicamentos na prateleira.
Najma era pequena e delicada, tinha lindos olhos esverdeados que sobressaíam na pele suave, branca, escondida na jalabiya, uma longa túnica que mais lembrava um belo vestido bordado. Seus cabelos negros estavam envoltos no hijab, o lenço muçulmano, agora coberto pelo jaleco branco. Ela sorriu-lhe querendo acalmá-lo, mas o avermelhado Jablah, homem de poucas afeições e marcado por espinhas juvenis, não se convenceu.
— Então se lembre de que ele tem uma sessão de medicina alternativa daqui a quinze minutos, e não pode se atrasar. O Dr. Mustafá leva muito tempo atravessando o deserto para vir até aqui e...
Najma cortou-o:
— Sempre criticando minhas responsabilidades.
— Não estou criticando. Sei que é responsável e cuida muito bem do seu Khalida; até com mais esmero do que devia... — Jablah nem teve como terminar no que Najma o encarou brava. — Está bem, Najma. Você sempre sabe o que faz e eu sou louco de entrar na sua — ia dizendo Jablah enquanto saía da enfermaria.
— Jablah... Jablah... — a Dra. Najma sorriu satisfeita.
Gostava de comandar o asilo Faãn que um dia pertenceu a seus pais, e que ambos assumiram após a morte repentina dos dois num estranho acidente de carro, que os matou no incêndio que se prosseguiu. E Najma Faãn vinha dedicando um carinho especial à terceira idade após estudar medicina em Oxford, Inglaterra, o que por vezes, a fazia manter um leve sotaque inglês.
Há seis meses que cuidava do Khalida, como seu irmão Jablah, o chamava, o jovem loiro e bonito a quem salvara. Ninguém no asilo sabia algo sobre ele, a não ser que chegara num estado deplorável ao pequeno Sahiroon Specialised Hospital, em Cartum, após acidente automobilístico. Najma se lembrava daquela loucura, sentada no chão de sua enfermaria arrumando os medicamentos, logo após a saída de seu irmão da sala.
— Esqueceu-se da sessão terapêutica? — perguntou Jablah voltando de repente.
— Que susto!!! — gritou realmente assustada.
— Estava sonhando?
— Sim! Porque Edgar Allan Poe dizia que tudo o que vemos ou parecemos ver, não passa de um sonho dentro de um sonho — Najma viu que Jablah não gostou do que ouviu. — Desculpe-me Jablah. Só estava relembrando quando trouxe aqueles dois homens estranhos para cá.
— Eu gostaria que nunca tivesse feito isso.
— Khalida está com amnésia.
— Mas o árabe lá embaixo apenas está cego. Ainda é quem é. Cuidado, Najma. Você sabe que ele é uma pessoa muito importante para nossa gente — advertiu seu irmão. — Podem interpretar seu ato como inadequado.
— Está bem, Jablah! Está bem! Não vou deixar nada acontecer aos dois, está bem? — e Najma saiu irritada.
Já Jablah respirou pesado por causa daquilo, e Najma chegou ao pátio onde o jovem Khalida ainda estava sentado ao Sol, com o rosto enfaixado. Numa terra de areias douradas, perdida na imensidão do deserto, se mesclando de tempos e tempos a oásis de belos coqueiros barreando o Rio Nilo.
“Belo” foi o que ela pensou quando se aproximou do jovem, sentindo que algo muito forte acontecia dentro dela.
— Olá Khalida... — passou a mão pelo rosto enfaixado e nenhum movimento ele fez. Ela suspirou e sorriu-lhe. — Gostou de ter vindo ao jardim mais cedo hoje? — o estranho não respondeu e Najma tentou outra vez. — Qual é o seu nome? Você lembra-se de algo? — perguntou carinhosa.
Sean se virou e ficou a observá-la, mas nada se moveu nele quando ela aproximou sua boca da faixa de gaze que lhe cobria o rosto barbudo, e beijou seu rosto através do pano. Jablah viu da janela do andar de cima do asilo, e fechou os olhos; andava realmente preocupado com a irmã. Há muito tempo que percebera o interesse dela pelo Khalida.
Tinha medo que o estranho se lembrasse de quem era.
— Kam Omrak? Enta metgwez? Andak atfal? — ‘Quantos anos você tem? Você tem esposa? Você tem filhos?’ foi o que ela perguntou.
Mas os olhos deles ainda se perdiam por ali.
Najma voltou a sorrir-lhe e ficou olhando Sean até que tomou uma decisão daquelas bem inusitadas e abaixou a gaze que cobria sua boca, e lhe beijou suavemente nos lábios carnudos e descobertos antes de voltar para dentro.
Câmeras do outro lado da rua registraram o beijo e o som da voz dele atravessou-a.
— Doutora? — Sean chamou-a num inglês arrastado.
Najma se virou e não pôde acreditar.
— Você... — ela olhava seu ‘Khalida’ lhe olhando, agora em pé.
— Por que me beijou?
Seus olhos brilharam e ela ficou alguns segundos sem ter o que falar.
— Desde quando voltou a falar?
— Não sei...
— Do que lembra?
— Nada... — Sean abaixou a cabeça num sentimento de tristeza.
Najma Faãn quis abraçá-lo, mas algo a brecou.
— Meu nome é Najma, Dra. Najma. Como já deve ter ouvido — sorriu-lhe. — Desculpe-me não ter me apresentado antes, mas achei que... — e não completou.
— Você é daqui? — Sean olhou em volta novamente sem nada entender.
— Pareço ‘branquinha’ demais, não? Minha mãe era inglesa, meu pai sudanês Ali Abu Faãn. Por isso sou clara de olhos verdes e cabelos negros e Jablah — apontou para dentro do asilo. —, meu irmão Dr. Jablah é tão moreno.
E fogos de artifício romperam o silêncio. Ele apavorou-se com o barulho dando um salto do lugar, vendo descer do céu um fogo que explodiu em dor sua cabeça.
— Ahhh!!! — Sean foi ao chão pela dor segurando a cabeça como se ela fosse realmente explodir.
— Hei? O que houve Khalida?
Jablah correu os alcançando rapidamente.
— O que houve Najma?
— Não sei! Não sei! Os fogos...
— “Fogos”? — a face marcada de Jablah se tornou rude. — Leve-o para dentro Najma!
Najma ajudou Sean a levantar-se e ambos entraram.
— Por favor, não me dope... — a voz dele impactou Najma pelo pedido, mas Jablah já entrava atrás deles.
— Não posso... — sussurrou.
Ele só pediu com os olhos azuis brilhando no rosto enfaixado e ela sentiu que precisava ajudá-lo. Levou-o até o quarto dele com Jablah no encalço e o medicou escorregando os comprimidos para dentro da manga da jalabiya.
Sean tomou a água e sorriu-lhe agradecendo.
Najma saiu deixando lá Jablah, que esperou ver os olhos azuis dele se fechar e saiu trancando a porta na saída.
Asilo Faãn; Abu Hamed, Sudão.
16/05; 22h00min.
— Como vim parar aqui? — a voz de Sean a atingiu.
Najma acordou do sono leve que a acometia no sofá da sala e a revista foi ao chão.
— Você me assustou... — sussurrou ao vê-lo sem a faixa que lhe cobria o rosto e a barba enorme por fazer. — E como saiu do quarto? Jablah tranca todas as portas.
Sean a olhou confuso. Porque havia percebido que a porta fora trancada, que a chave fora virada na saída do médico, mas ergueu a mão e a porta se abriu sem tocá-la.
— Como vim parar na sua clínica? Só vejo idosos — foi o que respondeu.
Najma acordou de vez.
— Acho melhor irmos lá para fora. Vamos acabar acordando Jablah, e vou ter que explicar porque seus medicamentos falharam — e saiu olhando de lado para ele que o seguia.
A noite era surreal naquele céu avermelhado. O calor também estava ameno. Ambos sentaram numa banco afastado da vista das janelas do asilo.
— Vai me dizer agora como vim parar aqui?
— Você sofreu um acidente.
— De que tipo?
— Automobilístico — ainda deu mais uma olhada para ver se não havia ninguém ali. Só não sabiam sobre as câmeras que os filmavam e fotografavam, nem do satélite que o rastreava. — Os jornais anunciaram que houve uma corrida ilegal no deserto da baixa Núbia, e que todos os onze homens morreram quando um dos carros capotou, provocando o capotamento dos outros quatro carros.
— Cinco carros?
— Não os vi. Também não havia fotos nos jornais. Só uma pequena nota explicando a confusão armada no Sahiroon Specialised Hospital, Cartum, onde eu fazia plantão; e tudo isso há seis meses.
— Estou aqui há seis meses?
— Sim Khalida.
— E onde estamos?
— Em Abu Hamed, outro estado do Sudão; Cartum é sua capital. E o Sudão fica na África Subsaariana.
Sean sentiu que nada daquilo fazia sentido para ele.
— Khalida é meu nome?
— ‘Khalida’ quer dizer ‘sobrevivente’, ‘imortal’ se você quiser pensar dessa maneira — sorriu-lhe maravilhosamente.
E Sean a achou aquilo mesmo, maravilhosa; uma maravilhosa mulher que se mesclava a outra mulher de pele branca, cabelos pretos e longos, vestindo uma roupa amarela e que lhe sorria agora apaixonadamente. Sean impactou, havia visto outra mulher projetada no rosto da doutora Najma, o fazendo sentir que era casado ou alguma coisa assim.
Preferiu não comentar aquilo, não naquele momento.
— Os jornais disseram que os onze homens morreram? Eu estava incluído?
— Não exatamente. Havia mais sobreviventes ali. Pelo menos três sobreviventes.
— E por que o jornal disse que...
— Não sei, mas eu estava de plantão naquela noite quando alguns dos feridos chegaram... — e Najma criou coragem para lhe contar tudo.
Sahiroon Specialised Hospital, Cartum; Sudão.
15º 37’ 59” N e 32º 31’ 59” E.
Seis meses antes.
— Doutora?! Doutora?! Mesh momkek!!! — gritava a enfermeira chefe do hospital, para a Dra. Najma Faãn que acabara de sair da lanchonete, onde devorara mais um grande sanduíche.
— O que não é possível?
— Corra! Estão chamando todos para ajudar.
— Mas sou uma psiquiatra... — e Najma se viu em frente a um caos, paralisada em meio a tantos feridos, homens armados, gritos e histeria. — Por Allah! O que houve?
— Dizem um acidente automobilístico nas areias da baixa Núbia.
— Onde? — Najma não entendeu de imediato o que era tudo aquilo, mas viu helicópteros descendo no meio da rua. E carros militares com homens armados até o pescoço entrando e saindo de corredores, que se lotavam de sangue e gritos, quando viu duas macas no corredor sul.
Guardas militares o vigiavam e ela se aproximou sendo detida.
— Esses não! — falou categórico um dos guardas.
— Quer dizer que não posso cuidar deles?
— Esses não! Já disse! — e o guarda a empurrou com mais força.
Najma olhou para as macas, e uma em especial lhe chamou a atenção. Ela não sabia por que, mas viu um jovem loiro de face deformada pelo montante de sangue que lhe escorria pela testa aberta, com o braço e parte do ombro direito atingido, mostrando a pele dilacerada, em meio a roupas ocidentais usadas.
Ela deu a volta e chegou ao saguão.
— Sabe quem são? — perguntou Najma para uma enfermeira, apontando para as macas guardadas.
— O com o lençol no rosto é árabe, um líder religioso. O loiro não parece ser daqui, acho que é do ocidente. Não me deixaram mexer neles. Os levaram ali para o canto.
— Encontramos esse cartão no bolso do corpo do ocidental — falou a segunda enfermeira.
— Avenida Corniche El-Nil, 1125; Maspero;- Cairo — a Dra. Najma leu.
— É o endereço da embaixada do Brasil, no Cairo. Tenho uma prima que trabalha lá — afirmou uma terceira enfermeira.
— Será que ele é turista brasileiro? — falou a primeira enfermeira novamente.
Najma nada respondeu a elas e escondeu o cartão da embaixada brasileira no bolso do seu jaleco, quando as duas macas começaram a ser levadas para o andar abaixo, onde ficava o necrotério.
“Não pareciam mortos”, pensou.
Médicos se esbarravam no corredor e ela ouviu gritarem.
— Identificaram um corpo carbonizado!!! — gritavam longe. — O consultor Alam Al Alam do Egito morreu!!!
Najma continuou pelo tumulto ainda seguindo pelo olhar as duas macas, quando um homem usando óculo démodé entrou aos gritos numa maca, e em inglês pedia socorro; tinha um grande rombo nas pernas ensanguentadas, provável causado por uma explosão. O inglês era seguido por agentes da polícia local; Najma os conhecia da televisão.
Ela aproveitou o tumulto e alcançou as macas próximas ao elevador. Lá, um homem de olhos estáticos fazia a guarda. Tinha na mão uma seringa com um líquido verde que acabara de injetar no jovem loiro ocidental. Pingava ainda do braço dele uma substância oleosa verde.
O homem de olhos estáticos então preparou uma nova seringa num estranho movimento mecânico, e Najma percebeu que decididamente o loiro ocidental não estava morto, e que alguma coisa lhe dizia que o homem de olhos estáticos estava tentando matá-lo.
Aquilo ia contra tudo o que estudara, contra seu Juramento de Hipócrates e os deveres do médico para com o professor, e para com a profissão; a integridade de vida, a assistência aos doentes e o desprezo pela sua própria pessoa. E foi sua própria segurança que desprezou quando atacou o homem de olhos estáticos com a bacia de metal o derrubando ao chão.
O tumulto ainda acontecia ali, por todo hospital.
Najma empurrou a maca do loiro e do árabe para dentro do elevador e desceu com todo seu coração batendo destrambelhado na garganta, e com uma só decisão a tomar depois daquilo, ligou para seu padrinho Ali Abu Faãn, homem rico a quem precisava pedir ajuda.
Naquele momento toda filosofia de Sean Queise, a que permeou sua dor, a que lhe trouxe o consolo de Boécio na perda de Sandy, na responsabilidade da Computer Co., no amor proibido da sócia estava ali. Porque naquele momento Sean ainda tinha uma consciência espiritual, uma que sabia que havia se jogado de um precipício com a coragem de levar a dor da morte a seus entes queridos, porque relembrava naquele momento Pablo Picasso, sabendo que a morte não era a maior perda da vida, porque a maior perda da vida era o que morria dentro de nós enquanto vivíamos.
A dor que carregava, levado pela Doutora salvadora, pelo extenso deserto de Cartum até Abu Hamed onde sua memória física apagou-se.
Asilo Faãn; Abu Hamed, Sudão.
18/05; 22h30min.
— E foi assim — ela terminou de contar.
— Esse seu padrinho, Ali Abu Faãn, não estranhou que você viajasse com dois homens feridos? — perguntou um Sean loiro, barbudo e magro.
— Estranhou, mas é um bom amigo — sorriu-lhe singela.
— Nunca soube quem eu era?
— Olhando para você não me parece uma pessoa pública.
— Será que sou um turista brasileiro?
— Os jornais nada disseram sobre brasileiros; acho que havia franceses, libaneses, ingleses — ela viu Sean desanimado. — Tenha paciência...
— Paciência? — cortou-lhe a fala.
— Eu sei que é difícil, mas tem que tentar — explicou-lhe a bela doutora. — A amnésia é um trabalho solitário. Só você conseguirá se lembrar de algo. Por isso Dr. Mustafá vem aqui.
— Quem é Mustafá?
— O médico que lhe visita as quintas-feiras.
— O que ele faz?
— Ele é um especialista em medicina alternativa e estuda as células gliais. E como as gliais participam da regulação de diversas atividades neuronais elas podem influenciar a atividade, e a sobrevivência dos neurônios, e constituem o tecido nervoso e as atividades superiores como aprendizado, memória, percepção e cognição.
— Resumindo, ele quer ativar minha memória?
— Eu confesso que nada sabia sobre ele, mas Jablah diz que ele é muito bom nisso. E evidências crescentes sugerem que as células gliais, podem ser quase tão importantes para o pensamento e o aprendizado quanto os neurônios.
— Entendo... — mas Sean tentava entender mesmo era o porquê do Dr. Mustafá, se ocupar dele todas as quintas-feiras e nada fazer a não ser ficar o encarando; preferiu outra vez nada falar.
— Está duvidando de nosso tratamento?
— Não estou...
— Pois saiba que cientistas examinaram seções do cérebro de Einstein e não encontraram nada de incomum em relação ao número, ou ao tamanho de seus neurônios, mas um surpreendentemente número de células conhecidas como gliais.
— Quem é Einstein? — ele a viu de olhos arregalados. — Olhe! Desculpe-me. Não estou duvidando, mas Mustafá... — e parou no que Mustafá passou a ser um homem vestindo uniforme branco e boina preta com um caderno de anotações na mão. — Ele... — e Sean se viu num quarto.
Lá sentado, estava ele, com Mustafá o olhando. De um lado havia uma mala de roupa, do outro lado uma valise, aos seus pés, um carpete em formas poligonais marrons.
E também Mustafá devolvendo-lhe um documento.
“Sou o policial Mustafá Kenamun!”, falou o médico.
“Sou Sean Queise!”, e Sean foi ao chão após ouvir sua própria voz.
— Khalida... — se perdeu na noite amena.
9
Asilo Faãn; Abu Hamed, Sudão.
19/05; 08h00min.
Najma havia ido dormir sentindo a cabeça explodir pelo tanto que escutou de Jablah sobre a retirada da medicação de Khalida, pelo encontro às escuras com ele à noite no jardim, e mais ainda porque teve que ser acordado depois de um dia estafante para carregá-lo até seu quarto, que foi outra vez trancado. Já Sean levantou-se e foi direto ao banheiro. Como já saíra do coma podia fazer sua própria higienização sem depender de Jablah, que lhe provocava medo.
Ele se olhou no espelho agora sem as ataduras no rosto.
“Sou Sean Queise!”, soou não lhe trazendo lembrança alguma.
Tomou banho, cortou um pouco os cabelos, e fez a barba pela primeira vez desde que lá chegara, e desceu para o café encontrando o salão de refeições anexo a cozinha, ainda com alguns idosos companheiros. Eles sorriram ao vê-lo sem o tecido no rosto. Sean devolveu o sorriso, eles lhe traziam alguma paz.
Najma foi a próxima a lhe trazer paz.
— Vejo que está bem melhor — o viu barbeado e bonito.
— Desculpe-me por ontem… — olhou ela abaixar a cabeça tímida. —, pela bronca que levou — olhou ela erguer a cabeça tímida.
— Como sabe?
— Ouvi!
— Como ouviu? Seu quarto fica distante do meu.
— Não sei o que dizer. Talvez tenha escutado porque pela primeira vez o homem de turbante branco não chorou a noite toda.
— Que homem de turbante branco?
— O que veio comigo.
— Tiramos o turbante dele quando chegou Khalida.
Sean realmente não sabia o que dizer, nem porque dizia aquilo.
— Devo ter... — olhou um lado e outro do salão de refeições lhe olhando. — Acho que o trabalho do Dr. Mustafá tem dado resultados, como diz.
— Wonderful! — sorriu-lhe carinhosamente. — Vamos marcar dois dias por semana, então.
— Wonderful! — repetiu-a. — Chame-o hoje!
— Não podemos.
— Por quê?
— Não podemos, apenas.
Sean não gostou daquilo. O médico tinha um irmão gêmeo policial ou ele começava a enlouquecer.
— Posso tomar Sol agora de manhã? — apontou para a rua.
— Você está sem proteção.
— Fico na sombra — e ameaçou sair quando ela lhe brecou a saída.
— Sem proteção facial Khalida.
— Está dizendo que teme que meu rosto seja reconhecido na rua?
— Por que a agressividade?
— Pareço agressivo? — ele viu Najma se magoar e se virar para ir embora quando ele a agarrou pelo braço, e seu corpo pequeno voltou a encará-lo. Mas não era ela outra vez quem o encarava, porque ele estava segurando e beijando a bela mulher de cabelos negros e roupa amarela. — Desculpe-me... — soou sincero.
Mas Najma se virou de uma maneira para ele que toda sua pequena estatura o alcançou num longo beijo de lábios úmidos. E agora fora ela quem Sean beijava. Jablah olhava-os de cima da escada. Sean o viu, e afastou Najma que compreendeu. Jablah se virou e entrou em sua sala e um toque na mesma sala, se fez logo depois.
— Entre! — soou de lá de dentro. Sean entrou. — Você parece ter melhorado rápido, não?
— Não gostou do beijo? — Sean foi direto ao assunto.
— Ela já é bem adulta para isso... — disfarçou.
— Quem sou eu? — disparou.
Jablah o encarou.
— Não sei. Há seis meses está conosco, há dois meses saiu do coma profundo em que se encontrava e até hoje, pelo que parecia se encontrava em estado catatônico.
— E isso é normal Doutor?
— Acha que não seja?
Sean não gostou do jogo de palavras. Olhou para os lados e a sala era pequena, mas arejada. Havia alguns armários de porta de vidro mostrando livros, pequenas esculturas, e alguns medicamentos que pareciam mais itens de coleção do que algo tomável. Também na parede do fundo um grande quadro mostrando pirâmides, uma grande coleção delas de formatos pontiagudos. Aquilo também nada lhe trouxe lembranças e Sean suspirou profundamente sentindo-se cansado.
— George Bernard Shaw dizia que a vida é uma pedra de amolar; desgasta-nos ou afia-nos, conforme o metal de que somos feitos — saiu de Sean.
— “George Bernard Shaw dizia”?
Sean não prosseguiu com aquilo.
— Najma disse...
— A Dra. Najma o encontrou muito ferido naquele hospital. Cometeu a insanidade de retirá-lo de lá naquelas condições.
— Traduza ‘condições’ Dr. Jablah!
E Jablah não gostou do jovem cínico que o inquiria.
— Você parece ter sido atingido pela frente e levantou o braço para proteger o rosto da explosão. Seu ombro estava muito ferido.
— Os carros explodiram?
— Que pude ler nos jornais...
— Os jornais deram os nomes de todos os envolvidos na tal corrida?
Jablah respirou pesado imaginando se tomava a decisão certa, mas abriu a gaveta após inserir uma das chaves, das muitas que tinha no chaveiro.
— Tome! — entregou um jornal dobrado e aparentemente envelhecido há algum tempo.
Sean leu:
— Mark O’Connor, Ahmad Al-badi, Nazih Sab`bi, Schiller König, Stefano Cipollone, Giovanni Bacci, Aaron Augustine, Christian Tyrone, Robert Avillan e Alam Al Alam — olhou Jablah arrumando algo que nem precisava arrumação. — Quem são esses?
— Empresários ricos que vem às nossas terras achando que podem fazer tudo o que querem.
— Fala das corridas?
Jablah respirou profundamente e Sean escutou cada milímetro do ar, da passagem do ar pelas cavidades nasais, se assustando pelo que escutou.
— Sim! Falo das corridas!
— Essas corridas são proibidas?
— Não exatamente. O Rally dos Faraós acontece em meio às dunas do deserto do Saara, no norte africano.
— Algum nome desses empresários que lhe venha à mente?
— O primeiro, Mark O’Connor, era um homem polêmico. Estava sendo processado pelo governo egípcio pelo envolvimento com sumiços de artefatos arqueológicos, com o uso de propinas para entrar e sair de sítios protegidos, e que havia lançado uma concorrência para explorar lugares em que o governo nem outros arqueológicos tinham conhecimento de haver algo a ser explorado. Ouvi falar que o sítio de Meroé era sua próxima meta, todo o reino de Kush.
“Os egípcios ocuparam Kush até o sul distante, na quarta catarata”, Sean não estava mais na sala de Jablah, sentava-se no chão, em almofadas forradas de veludo vermelho e uma grande mulher morena de nariz adunco e turbante lhe sorria.
— Essa... Essa Meroé... — e Sean não conseguir falar. — É o deserto onde me acidentei?
— Uma parte dela. Kush ou Cidade de Meroé ficava localizada ao longo do Nilo médio, na antiga Núbia, hoje Sudão, onde foram erguidas essas pirâmides — e ele viu Sean olhando novamente para o conjunto de pirâmides pontiagudas pintadas no quadro. — Então os Núbios romperam com os hieróglifos egípcios e criaram a sua própria escrita até sumirem do mapa e da história.
“Então os Núbios romperam com os hieróglifos egípcios e criaram a sua própria escrita. Até sumirem do mapa e da história” voltava a falar a grande mulher morena de nariz adunco e turbante. Sean olhou Jablah sentindo que ia dobrar-se, que ia perder o ar, desmaiar.
— E o que acha que esse... O que esse ‘Mark alguma coisa’ queria nesses lugares?
— Não sei. Mas ele morreu após organizar corridas de carro no deserto.
— Acha que sou um desses outros nomes aqui? — devolveu o jornal.
— Não. Com exceção de Robert alguma coisa, ninguém sobreviveu.
— Mas estou aqui. E há o outro homem que usava turbante branco noutro quarto.
— Como sabe que ele usava turbante branco?
— Najma já me perguntou isso.
— Najma... — e Jablah parou de falar sobre a intimidade usada para com sua irmã. — Vou pedir a você para continuar a se proteger quando for do lado de fora do asilo, já que não sabemos onde mesmo se meteu ou foi metido Khalida. E para sua própria segurança não deixe de tomar a medicação a noite — e fez menção que ia terminar algo e que Sean atrapalhava ali.
— Minha própria segurança? — sorriu olhando entorno novamente. — Se eu me preocupasse tanto assim com minha segurança, não devia ter alugado um Jeep anos 70 para correr, não? — e saiu.
Jablah arregalou tantos os olhos que toda sua face se deformou aumentando mais ainda as marcas de espinhas juvenis.
— Anos 70, Sean Queise? — Jablah falou sozinho na sala.
Já Sean saiu da sala sem escutar, sem que tal informação lhe chegasse a sua mente. Uma coisa, porém sentiu em Jablah, ele mentia. Desceu a escada e caminhou para fora do asilo decidido a sumir dali. Câmeras do outro lado da rua se movimentaram freneticamente, e a toca de observação prestou mais atenção no que ele fazia. Sean chegou ao portão e olhou para trás vendo a Dra. Najma que nada compreendia, parada, com uma bandeja de medicamentos nas mãos.
Mas algo o brecou e ele voltou:
— Asif!
— Te desculpar? Por que Khalida? — Najma perguntou quase sem voz. — Criamos os filhos para o mundo — brincou abaixando a cabeça.
— Sabe que não é por isso que tenho que partir para o Cairo — falou. —, é porque tenho que tomar chá de menta no El Fishawi, porque vão botar minha foto ‘piramidal’ num porta-retrato.
— Como é que é?
Sean achou graça da própria falta de resposta dele.
— Não sei... Desculpe-me...
— Há quanto tempo está recuperado?
Ele sorriu.
— Você é esperta.
— Não. Sou uma psiquiatra Khalida, que sabe que ninguém se recupera assim tão rápido.
— Talvez tenha sido seu beijo — passou a mão no seu rosto, beijando sua face com carinho, mas Najma recuou.
— Podia ter me dito que estava melhorando. Eu lhe ajudaria com outros tipos de medicamentos e...
— Desculpe-me doutora... — Sean encarou-a sentindo-se estranho. — Não fiz por mal.
— Do que se lembra?
— Nada... Nenhuma resposta.
— Quer encontrar respostas com ele?
Sean levantou os olhos do chão sabendo que ela falava do homem de turbante branco, aquele que ele nunca vira.
— Jablah não permitirá — estranhou-a.
— Venha, Khalida! — e o puxou para dentro do asilo novamente.
— Onde estamos indo? — Sean não teve respostas, mas foi levado a uma escada que descia para a ala reservada aos doentes terminais, fazendo Sean perceber que a distância de seu quarto dali era tão grande quanto o quarto de Najma que levou bronca.
Ficou tentando realmente entender aquilo. Porque o escutava, noite após noite chorando, quando Jablah apareceu do nada na frente deles. Sean até pensou em recuar, mas Najma o puxou com mais força e eles continuaram a descer.
— Achei que seu Khalida tinha sessão de fisioterapia? — Jablah não teve respostas. — O fisioterapeuta retorna a Luxor hoje — insistiu, mas Najma e Sean/Khalida nada responderam. — Vai desobedecer-nos, Najma?! — Jablah quase gritou.
O uso da frase no plural assustou Sean. Najma agarrou sua mão com mais força ainda, e encaminharam-se para o porão deixando o Dr. Jablah sozinho no alto da escada.
— Desobedecer a mais quem doutora?
— Ninguém — Najma respondeu evasiva.
— A quem não pode desobedecer, doutora? — insistiu.
— Já disse que ninguém. Jablah anda nervoso. Só isso.
— Por que ficou do meu lado?
— Não sei do que está falando — Najma se esquivou outra vez.
— Foi contra a vontade de seu irmão, doutora. É perceptível.
— Meu irmão anda muito preocupado com toda essa loucura que eu fiz, protegendo vocês dois.
O corredor era pouco iluminado, mas Sean viu que as paredes tinham desenhos coloridos por toda sua extensão; desenhos de mulheres e mais mulheres em meio a um grande espaço, em fila, oferecendo algo a um grande animal borrado. Sean não se lembrava de conhecê-los, ou se os conhecia e tinha esquecido, ou se nem soubera os significados deles, mas algo neles, nos desenhos, nas mulheres em sinal de oferenda, lhe era conhecido. Pela primeira vez experimentou a sensação da lembrança, não como a do médico/policial Mustafá, a mulher vestida de amarelo ou a grande mulher de nariz adunco; aquilo era uma lembrança forte, impressa em sua essência. Forte o suficiente para saber que as mulheres pertenciam a sua família, que ofereciam a areia por onde ele já pisara, e que já vivera onde estavam seus corpos ajoelhados, retratadas por todo o mural desenhado.
E o medo lhe invadiu quando toda a areia verde, todo seu cheiro ocre invadiu suas lembranças olfativas.
— Jablah acha que sou o culpado pelo acidente que matou os corredores no deserto? — sua voz saiu.
Najma o encarou.
— La`! Não insinuei isso. E não quero que repita isso na frente dele — completou irritada.
— Por quê? Morreu alguém querido dele?
— Bass, Khalida! Bass!
“Basta, Mona! Basta!”, Sean ouviu ecoar e a imagem de um homem gordo e baixinho falava com aquela grande mulher de nariz adunco, se desenhando à sua frente.
E as imagens se misturaram de uma maneira que toda a holografia de uma grande sala de jantar tomou conta do corredor do asilo. Sean olhou em volta, havia muita comida na mesa. De alguma forma, ele sentiu que estava lá também, jantando. Retornou ao corredor num estalo caindo no chão duro com todo seu peso.
— Khalida? — Najma o ajudou a levantar. — Você está bem?
— Sim... Desculpe-me... Não sei o que... Não quis deixá-la brava doutora — falou ainda confuso com que lhe acontecera.
— Não estou brava. Só não quero... — e Najma viu Sean dobrar-se sobre o estômago. — O que está fazendo?
— Cólicas...
— Você quer...
— Quero o quê? Não pense que me manda só porque me salvou.
— O que disse?
— Preferiria que eu tivesse continuado calado e comandado por você? — dizia Sean com cinismo.
— Do que está falando Khalida? Por que sua voz está tão rude?
Sean se fechou no casulo outra vez. Não sabia por que ficara arisco com ela de repente. Logo ela que lhe salvara a vida. Mas aquele lugar, aquele porão lúgubre, úmido, e os desenhos na parede a lhe olharem. Porque as mulheres da parede realmente lhe olhavam, esticavam as mãos a atravessar a parede até tocá-lo.
— Ahhh! — e Sean sentiu o toque. Najma estava parada em frente à porta do final do corredor. — Quem são... Quem são essas mulheres? — apontou para a parede.
Najma viu a parede desbotada pelos anos.
— Que mulheres?
— Essas mulheres? — e Sean apontou para as mulheres que pareciam querer sair da parede.
Najma sorriu sem entendê-lo e anunciou:
— Chegamos!
E Sean sentiu medo daquilo. Porque parecia que só ele via aquilo.
“Droga!”, deu os passos que se separavam dela e entrou na fria ala reservada, de muitas portas.
— Você está realmente se sentindo bem? — perguntou carinhosa.
— Não sei... — respondeu, sentindo doer no fundo de sua alma. — Não consigo me lembrar...
— Quer voltar outra hora?
— Não! — disse com firmeza.
Já alguém no fundo do frio corredor se agitava com a aproximação dos dois jovens naquele ambiente, porque melhorava dia após dia, sem que os Doutores também percebessem. Najma abriu uma das portas fazendo uma luz fraca se acender e Sean viu a pele escura do homem cego, com boa parte do rosto deformado; e ele não usava o turbante branco que lhe moldara e afundara a sua testa pelos muitos anos de uso.
Ele, porém o encarou como se pudesse enxergá-lo e Sean sentiu-se mal, com sono, minado mesmo. Olhou para o lado e Najma estava paralisada. Tentou abrir a boca, mas os sons também não saíam.
“Najma?”, ele a chamou pelo pensamento, mas ela também não respondia por ali.
O homem de pele escura e cheiro ocre então soletrou algo, e Sean se viu outra vez passando por coisas confusas, paralisado pelas pernas, sendo inclinado para ouvi-lo, percebendo que na verdade só sua alma se inclinava ali.
Sean arregalou os olhos azuis e voltou ao corpo.
— Siddha... Siddha... — sussurrava o homem de pele escura e cheiro ocre.
Mas Sean e Najma estavam paralisados, numa paralisia energética, sentindo todo seu corpo se seguindo de pequenos choques elétricos, até que todas as suas sensações de tato foram substituídas pelo curto circuito, e seus corpos entraram em ataque epiléptico com todas as manifestações motoras, sensitivas, sensoriais, psíquicas em total desordem.
“Najma?!” tentava Sean gritar.
Najma piscou uma vez.
“Najma?!” tentava Sean mais uma vez.
E Najma viu que o homem de pele escura e cheiro ocre tinha a mão esticada na direção da testa de Sean, que se sacudia todo, com uma luz verde escapando do meio da testa.
— Khalida?! — gritou Najma saindo do transe e tirando Sean do transe também.
Ambos olharam para o homem de pele escura e cheiro ocre e ele sorriu:
— Bem-vindo siddha Sean Queise!
E Sean foi ao chão em estado catatônico antes mesmo de alguém falar mais alguma coisa.
10
Jornal Científico Distopia; São Paulo, capital.
23° 32’ 14” S e 46° 40’ 19” W.
20/05; 18h00min.
Tahira Bint Mohamed era uma mulher de fibra, muito respeitada dentro do jornal em que trabalhava. Para ela, eram dadas sempre as melhores reportagens, e ela podia sentir a inveja dos colegas, por isso. Não se ressentia de nada, amava a profissão que abraçara; era uma jornalista investigativa de primeira linha e uma ufoarqueóloga amadora por amor à mãe. E estava naquela louca jornada de trabalho há seis meses no Jornal Científico Distopia, no bairro de Perdizes, São Paulo, Brasil.
— Vamos Tahira... — reclamava o amigo João Vernestino, também jornalista. —, não pode parar de viver por causa de uma reportagem perdida.
— Não estou parando de viver, João — a ruiva exuberante batia algumas palavras aleatórias no computador. — Você nunca vai entender.
— Você se apaixonou mesmo por ele, não foi? — questionou João Vernestino enciumado.
Tahira parou de repente.
— Há muito tempo — e derramou lágrimas numa horrorosa blusa roxa que manchou com o contato.
— Mas ele está morto há seis meses.
— Por favor, João, não insista. Eu não vou a esta festa.
— Está bem! — João Vernestino deu-lhe as costas e saiu da redação batendo a porta.
Tahira arrumou os cabelos ruivos, secou as lágrimas e ergueu os olhos para ver a cena. O amigo continuava insistindo em conquistá-la.
Podia se lembrar das inúmeras tentativas desde a época da Faculdade de Jornalismo. Acabou achando graça sem, porém há muito tempo não conseguir dar uma das suas famosas gargalhadas esganiçadas. Mas em algo João Vernestino tinha razão, desde a morte de Sean Queise, que Tahira também morrera. Dia após dia, ela se lembrava dele, e o quanto se arriscara para chegar perto, porque até no flat dele ela se escondia; escondida até a empregada a pegar ali dentro.
E todo aquele risco, porque Tahira se apaixonara por ele durante um evento de ufologia, que ainda ‘foca’ de um pequeno jornal semanal, cobria.
Sean estava tão abalado na época pela morte da noiva, que nem percebia ser seguido. Foram sete dias atrás daquele homem; seus hábitos, seu sorriso, seu corpo para compor a reportagem. E tudo aquilo, competindo com uma bela espanhola que não desgrudava dele, que lhe secava as lágrimas, que o amava.
Havia se passado tanto tempo e Tahira se lembrava dele naquele dia no aeroporto, viajando juntos para Portugal.
“Como ele era lindo!”, recordava sozinha, na redação do Jornal Científico Distopia no final da tarde.
E não era um fim de tarde qualquer, acontecia a missa de seis meses de Sean Queise, o jovem empresário que morreu em um acidente de carro quando viajava ao exterior. Tahira sabia que tudo fora abafado e que nem qual ‘exterior’ os jornais conseguiram saber. E não foi pouca, a mídia em cima da família Queise e a sócia de Sean Queise na Computer Co. que se viu com sérios problemas no mercado corporativo com uma geóloga, no lugar de comando.
E por isso Tahira trabalhava até tarde, para resistir à tentação de ver a família dele. Porque durante todo aquele tempo, ela carregava aquela valise que Sean deixara no banco do táxi que sumira. O que significava aquilo ela nunca entendeu. E ela se perguntou milhares de vezes e só uma coisa lhe vinha a mente, que o que falavam de Sean Queise nas listas de ufologia ia além da beleza dele, do hackerismo ou de suas atividades ufológicas; havia um segredo ali, na ligação dele com uma polícia investigada e pouco divulgada, que tinha haver com seu sumiço do carro que ela seguira.
Porém algo não se encaixava ali, o porquê dele ter fugido para morrer.
Tahira saiu do jornal com a noite avançada. Batia uma garoa fria lá fora e ela escondeu o rosto com o casaco verde berrante, que em nada combinava com seus cabelos ruivos ou a blusa e a saia roxa. Atravessava o grande estacionamento do Jornal Científico Distopia quando percebeu tudo deserto. Com certeza as neuroses de São Paulo estavam nela quando tropeçou numa pedra e algo a alertou; havia passos atrás dela.
Tahira virou para trás e só teve tempo de arregalar os olhos e ver uma capa vermelha de veludo rebordado cair sobre sua cabeça. Tahira escorregou no chão e pela direita conseguiu escapar. Correu sem saber o que estava acontecendo, com seus ouvidos só escutando os passos vindos por detrás dela.
Tentou olhar e novamente o céu ficou vermelho pela escuridão que a capa fez ao voar para cima dela, e ver que o estranho usava uma máscara, uma máscara de pássaro.
— Shhh... — gritava a voz que chegava abafada, totalmente diferente do que já ouvira até então.
Tahira foi ao chão sendo pisoteada enquanto alguém gritava, insano ‘Eê eê akhan’ ou quase isso; não entendeu direito.
— Socorro!!! — berrava a ruiva Tahira para o estacionamento vazio quando foi girada 360º graus e a capa de veludo vermelha, amarrada por uma corda. — Socorro!!! — tentava em vão.
— Shhh... Shhh... Shhh... — se espalhava pelo estacionamento vazio.
Tahira tentava apurar o ouvido enquanto era puxada para as escadas, onde sentiu degrau após degrau batendo a cabeça uma vez atrás da outra, desmaiando e acordando vezes seguidas até sentir o piso ficar gelado, úmido.
“Água?”, pensou.
— Água!!! — gritou antes de afundar na piscina do hotel que fazia fundos com o estacionamento do jornal.
Acordou já de madrugada na mesa do hospital para aonde fora levada em observação, no final daquela mesma noite, pela equipe de resgate chamada por um segurança.
11
Flat de Sean Queise; São Paulo, capital.
23° 33’ 31” S e 46° 39’ 44” W.
21/05; 06h30min.
Kelly Garcia se preparava para mais um dia de trabalho estafante na tumultuada São Paulo. Desde a morte de Sean Queise, que ia a Computer Co. House’s trabalhar para então retornar para casa para chorar. E chorava, chorava, chorava. Mas estava naquele momento no flat de Sean porque não encontrava dois contratos.
— Srta. Kelly Garcia? — questionou a portaria. — Tem uma moça que quer vê-la. E insiste para que seja agora — completou.
Kelly fez uma cara de curiosidade.
— Mande-a subir!
— Bom dia! — disse Tahira logo que Kelly abriu a porta.
Kelly viu que a mulher em questão era jovem e usava um berrante e nada elegante vestido amarelo, em nada parecendo com os seus de cores semelhantes. Também usava sandália de argolas pretas, que só mulheres antenadas em moda, entenderiam que a escolha fora démodé. No demais, Kelly percebeu que se tratava de uma mulher jovem, alta, bonita e extremamente ruiva para o gosto dela.
— No que posso ser lhe útil, Senhorita?
— Eu sou Tahira Bint Mohamed. Sou jornalista investigativa do Jornal Científico Distopia, uma mídia virtual.
— “Distopia”? Estamos vivendo num lugar nenhum?
— Não imagina o quanto — Tahira olhou Kelly de cima a baixo quando ela fez menção de expulsá-la, mas ruiva Tahira logo completou. — Eu não estou atrás de uma reportagem barata sobre a morte de Sean.
— “Sean?” Que intimidade, não? — questionou Kelly com cinismo.
— Intimidade suficiente para dizer que eu estava em Abu Simbel quando Sean alugou aquele Jeep anos 70 e explodiu.
Kelly sentiu um ácido tomar conta de seu corpo nas palavras de Tahira. Mandou-a entrar quase sem fôlego, sentindo a pernas amolecerem. Tahira escolheu a ponta do sofá chesterfield de couro preto olhando em volta, percebendo a mala da sócia em cima da cadeira, das roupas femininas que saíam dela.
— Como sabia sobre esse endereço?
— Jura? Costumava vir aqui — e Tahira não mentiu.
Kelly se enervou:
— Sean não recebia mulheres aqui.
— Por que acha que não?
— Porque me recebia aqui Senhorita...
— Viajamos juntos para Portugal e de lá para o Egito — e Tahira deu a tacada final. — Estávamos namorando.
“Patrãozinho?”, pensou Kelly ao sentir sua boca secar.
— E ele deixou comigo essa valise… — e Tahira retirou algo da sacola que trouxera. —, e nunca mais apareceu para buscá-la.
Agora Kelly Garcia sentiu um arrepio ao ver a valise dele. Esticou mãos tão trêmulas e Tahira sentiu um gosto de vitória ali. Sabia do amor da sócia por ele, sabia que Sean fora noivo aos dezessete anos com uma desclassificada de nome Sandy Monroe, e que Kelly era apaixonada por ele desde aquela época; e Tahira sabia que Sean no fundo gostava da sócia. Já Kelly estava tão nervosa que tentou abri-la, mas não conseguiu. Viu-se afetada pelas palavras ‘viajamos juntos’ e ‘estávamos namorando’ juntas na mesma frase, vinda da boca da mulher bonita e démodé.
E Kelly tentou de novo, mas nenhum código conhecido dela dado por Sean, funcionava.
— Muita obrigada, Senhorita... — e mostrou a porta.
Tahira deu uma risada evasiva.
— Jura? Não posso ir.
— Ah! Bem... — e Kelly se encaminhou para a mesa onde insinuou que preencheria um cheque. — Talvez queira uma recompensa por Sean explodir sem antes conseguir tirar algo mais dele?
— Não se atreva! — exclamou Tahira com os dentes cerrados. — Fiz o que fiz, por amor — falou sem mentir, outra vez.
Kelly a encarou por alguns segundos ainda sentindo as pernas tão moles que imaginou dobrá-las em segundos.
— O que quer de nós? — desafiou a bela sócia.
— Uma explicação!
Kelly a encarou outra vez parecendo estudá-la. Sentia sinceridade naquelas palavras, mas não sabia até onde o relacionamento deles realmente havia existido. Porque sabia que Sean só trabalhava, trabalhava e trabalhava. E ela o vigiava.
— Que explicação está querendo exatamente, Srta. Tahira?
— Saber o que tem aí dentro — apontou para a valise. —, e por que ele a deixaria no banco do táxi.
— Disse que Sean havia lhe dado — falou Kelly intrigada.
— Foi mais ou menos assim... E o que importa?! — quase gritou.
— Aparece do nada, se diz namorada dele seis meses depois da sua morte e quer que eu pense o quê?
— O que acha que eu sou? Uma farsante? Uma oportunista? Uma caçadora de fortunas? — insinuava a jornalista, irritada.
— É para escolher uma das alternativas ou há outra escolha entre elas? — Kelly foi vil.
E Tahira deu quatro passos em direção a Kelly que os recuou.
— Vai brincando sua espanhola metida! — falou se preparando para ir embora. — Porque vou contar a polícia que Sean viajou para Portugal para disfarçar uma viagem ao Egito. Vou lembrá-los que tentaram matá-lo no Cairo, mas o advogado Miro Capazze morreu no lugar dele — Tahira deu segundos de estagnação para ver Kelly arregalar os olhos. — E vou dizer que Sean tinha uma reunião secreta em Nabta Playa para escrever um programa de rastreamento linear para Mark O’Connor, sem concorrência internacional, após deixar uma valise comigo — e se virou para sair e voltou. — Aliás, não deixou comigo, deixou para mim no banco de trás de um táxi — e se virou para sair e voltou. — Aliás, só me deixou mesmo a valise, porque sumiu do táxi sem deixar rastros — e se virou para sair e voltou pela terceira vez. — Porque, aliás, eu não sabia que Sean já havia se desenvolvido a ponto de fazer teletransporte dele mesmo — e se virou para sair, saindo dessa vez.
E o som da porta estremeceu em Kelly que foi ao chão chorando, com as pernas totalmente amolecidas sabendo que aquela mulher realmente conhecia Sean Queise.
Telefonou para Mona Foad, mas não a encontrou. Depois decidiu se comunicar com Oscar Roldman. Não assumiria tudo aquilo sozinha.
Nem estava a fim de enfrentar Nelma Queise; não sozinha.
12
Flat de Sean Queise; São Paulo, capital.
23° 33’ 31” S e 46° 39’ 44” W.
22/05; 08h00min.
Foi somente na manhã seguinte, que um homem desceu do carro de placa diplomática em frente ao flat de Sean Queise. Um homem alto, usando óculos de lentes grossas, de seus cinquenta e poucos anos, com traços de que fora belo em sua juventude, e ainda o era, e que tocou a campainha.
Kelly atendeu e permitiu sua entrada.
— Srta. Garcia! — Oscar entrou.
— Bom dia, Sr. Roldman! Eu sei que não devia fazer isso, mas sei que gostava de...
— Prossiga Srta. Garcia!
E Kelly prosseguiu mesmo, com toda vontade e sentimentos há muito guardados por ela, por Sean principalmente. Pelos sentimentos dele para com Oscar Roldman.
— Uma moça esteve ontem aqui e disse chamar-se Tahira Bint Mohamed. Ela contou que era namorada de Sean e trouxe uma valise que ele deixara no banco de um táxi para ela, em Abu Simbel. Disse também que o táxi estava vazio e que Sean se teletransportara ela não sabia como.
— Sean o quê?
— Sabe tão bem como eu, que Sean faz teletransporte, desmaterialização, apport ou que diabos tenha aquele nome — ela viu que sua fúria o fez balançar o pescoço nervosamente.
Provável ele também fazia, era um Roldman.
— Prossiga! — foi só o que ele falou.
Ela se virou e pegou a valise em cima da mesa de vidro.
— A valise está travada com códigos de segurança no fecho. Pelo peso me parece que o notebook está aqui dentro e isso é inconcebível, patrãozinho nunca se afastaria de seu notebook; não com o que estava dentro.
— Dentro de onde?
— Dos bancos de dados da Computer Co. que ele acessa pelo notebook.
— Um notebook que ninguém mais tem acesso, não?
— Isso! — sorriu friamente. — E não imagino como ela teria conseguido sair do Egito, com uma mala contendo um notebook e não precisar registrar a valise na alfândega — Kelly prosseguiu no que Oscar absteve-se de comentários. — Também não sei por que esperou se passar seis meses para entregá-la, mas sabia sobre o advogado Miro Capazze ter morrido no lugar de Sean. Achei que a Poliu tivesse abafado tudo já que a Sra. Nelma me garantiu que nada chegaria à mídia.
— Nelma garantiu? Interessante! Nelma agora garante que a Poliu não permita escapar informações?
— Sabe que essa amizade quádrupla de vocês não me compete conhecimento, mas Sean tinha um acordo com Mr. Trevellis.
— Um o que?! — explodiu.
Kelly teve medo do homem grande e nórdico que deu dois passos na sua direção.
— Eu não sei que acordo era esse. E o Sr. Fernando vinha me pressionando para descobrir antes de morrer.
— Achei que era Nelma quem forçava você a vigiar Sean?
— Sra. Nelma faz pior que isso. Mas isso não está mais me atingindo. O problema estava em que o Sr. Fernando sabia, que Sean havia recebido um pacote onze anos atrás, da Sra. Samira Foad, irmã de Mona. E Sean desconfiava que ele havia devolvido, mesmo Mona tendo alertá-lo que onze anos depois ele voltaria a receber esse mesmo pacote.
— Por que onze anos depois?
— Já nos perguntamos sobre isso, não foi? E Sean também! E nem eu nem Sean chegamos numa resposta satisfatória.
— Seria por causa da concorrência?
— Sean também achava isso, mas não conseguiu ter certeza porque Mona o bloqueia de alguma forma tão ilógica, quanto ela o ter desenvolvido a ponto de Sean conversar com mortos.
Oscar engoliu aquilo a seco. Porque não era só com mortos que Sean falava, era com entidades, espiritual ou não aquilo incluía entidades alienígenas. Olhou para os lados e percebeu a mala de roupas dela, ali aberta em cima da cadeira, percebendo que ela dormia no flat dele. Olhou para o outro lado e Sean o encarava sentado no sofá chesterfield de couro preto.
Toda sua estrutura emocional foi atingida. Porque não eram energias ou rastros gravitantes dele ali, era um Sean ali, vivo.
— O quanto você amava Sean? — quase não saiu de Oscar.
Kelly percebeu que algo acontecera com ele porque os olhos dele se encheram de lágrimas. E Kelly jurava em toda sua vida que jamais ouviria aquilo, mas ela ouviu.
— O suficiente para dar minha vida por ele.
— Ótimo! — e se virou para ir embora.
— Sr. Roldman? — Kelly estava indignada com o final da conversa. — O que faço com a valise?
Oscar mal podia acreditar no que lhe acometia, uma angustia tão grande pela verdade que outra vez sabia que havia verdade onde ele incutia mentiras, que ele tinha dons, que era um Roldman e sabia que Sean estava vivo.
— Guarde-a! — foi o que falou de costas para ela.
— Para que?
— Para quem, era o deveria perguntar Srta. Garcia — e Oscar se foi ganhando o corredor.
— Senhor... Senhor... — ela ainda tentou prolongar aquilo porque havia mais. — Não sei se devia falar, mas Sean mudou Spartacus de órbita.
Oscar parou na porta do elevador.
— Mudou como?
Mas ela o olhou de uma maneira que nem ele sabia o porquê dela o ter olhado assim.
— O Senhor sabia?
— Sobre a órbita-sincrônica ou sobre uma holografia de Spartacus na órbita geoestacionária?
— Ah... Percebo que não sabia.
Agora Oscar não gostou daquilo.
— O que Sean fez?
— Imagens fotográficas de Nabta Playa. Eu as encontrei ontem em seus arquivos quando vim buscar alguns contratos, que ele trouxe para analisar e nunca os levou de volta.
— Que tipo de imagens?
— Imagens fotográficas iguais ao que o papiro desenhou a ele durante uma viagem astral — Kelly viu os olhos dele brilharem. — Imagens fotográficas de uma dinastia inteira Sr. Roldman, com homens e mulheres negras e douradas, construindo uma esfinge com pedras que flutuavam — Kelly agora viu Oscar perder a cor. — Imagens fotográficas de dez mil anos atrás.
E a porta do elevador fechou e o elevador foi-se sozinho. Kelly entrou novamente no flat e Oscar a seguiu em choque.
Ela, porém percebeu que dessa vez havia ganhado a atenção dele; provável seu respeito.
13
Asilo Faãn; Abu Hamed, Sudão.
25/05; 18h00min.
Aqueles dias pareciam não querer passar. A Dra. Najma nem percebia mais em que dia da semana estava.
O mundo havia parado para ela.
— Doutora? — perguntava uma das internas do asilo. — O que houve?
Najma não sabia responder.
— Vamos para dentro que já está anoitecendo — sorriu-lhe a Dra. Najma.
— Eu queria falar, mas o doutor proibiu.
— Do que é que está falando? — perguntou carinhosa, conseguindo a confiança da bondosa idosa que lhe falou ao ouvido.
Seu irmão que as observava não conseguiu ouvir, só pôde ver o susto que a irmã levou. Najma percebera mesmo que há muito tempo seu irmão Jablah agia estranhamente com ela.
“Sean”, falava consigo mesma, enquanto caminhava para dentro do asilo.
Entrou no quarto dele e ninguém deitava na cama. Sean havia acordado, se levantado, fugido. Najma saiu correndo do quarto atrás do irmão. Entrou na sala de Jablah e levou outro susto.
— Sean?! — Najma arregalou os olhos para o jovem de barba rala.
— Sabia que seu irmão conhecia a identidade do outro ‘Khalida’? — perguntou ele secamente com a gaveta que só podia ser aberta por chaves, e ele com papéis nas mãos, provavelmente lidos. — Que ele se chamava El Zarih? E que era chefe religioso da Escola de Papiro ou que droga isso signifique?
Najma perdeu a voz por alguns segundos, se recuperando logo em seguida.
— Não sei do que está falando... — mas Najma nem conseguiu terminar.
— O cara está cego, não mudo pôde ouvir, já que ele me chamou de Siddha Sean alguma coisa.
— Sean...
— Como pôde fazer isso comigo? Estou dormindo há quanto tempo? Seis dias? Por que não me acordou Najma? Por que não diminuiu ao menos a medicação? Por que nunca me disse que me chamava Sean?
Ela pediu com um movimento que ele parasse e ele parou de falar.
— Há algo que preciso lhe dizer antes.
— Várias eu acho! Já que seu irmão escreveu ‘Sean Queise’ em todas as minhas receitas médicas — e esticou um monte de papéis para ela.
A Dra. Najma fez uma negativa com a cabeça para ele, dizia não saber nada daquilo.
— Eu juro! Por todo carinho que sinto por você que não sei quem é ‘Sean Queise’, mas... — e ela viu Sean ameaçando falar algo quando pediu silêncio outra vez com um movimento de mão que o parou. — Mas quero lhe dizer que você precisa saber de algumas coisas antes.
— Do tipo?
— ‘Do tipo’ você ser um siddha, já que ouviu coisas que nenhum outro ouvido humano poderia ouvir.
Sean calou-se porque realmente abriu a porta do quarto, a porta da sala de Jablah e sua gaveta só desejando.
— Prossiga...
— Siddha é um ser especial. Meus pais e Jablah pertenciam a uma escola iniciática em mistérios do antigo Egito, que foi erguida por sacerdotes que reverenciavam siddhas.
— No que esse siddha é especial afinal?
— Por favor! — e olhou para fora da sala onde ele invadira. — Guarde todos esses papéis e volte a trancar a gaveta que já percebi você pode abrir — ela viu que Sean ergueu a mão e os papéis saíram de sua mão e entraram na gaveta que se fechou sozinha, se trancando. — Por Allah! Em toda minha vida jamais imaginei um dia encontrar um de vocês vivo.
— “Vivo”?
— Vamos sair daqui antes. Jablah lhe mata mesmo o tendo como um ser especial.
A noite caía rapidamente, e Sean estranhou que Jablah não estivesse ali, mesmo Najma com medo de que ele aparecesse. Porque ele conhecia toda a rotina do asilo; horas de refeições, medicação, quem dava ou não trabalho, quem tinha ou não hora marcada com médicos, e quem ‘sumia’ no meio da noite. Relevou, contudo comentar aquilo porque percebeu que Najma era um tanto desligada de algumas coisas.
— Então? — foi seco no que ambos chegaram ao mesmo banco de madeira afastado das janelas do asilo.
— Vamos... — ela o viu ainda em pé. — Sente-se Sean...
“Sean... Sean... El Sean...”.
Sean sentiu tonturas e se viu num parque; escorregador, balanças e muitas crianças brotavam do chão tomando todo o espaço do jardim do asilo.
“Sean? Sean, meu filho? Olhe para a mamãe... Você vai cair dessa balança”, chamava uma bela mulher loira numa voz rouca, ecoando de dentro de seus ouvidos, sem ele saber quem ela era.
Era um dia claro e ele pôde sentir o calor na pele.
— Você está bem, Sean Khalida? — tentava a Doutora, uma comunicação, quando o grande parque de diversões se moldou de vez.
“Sean?! Meu filho! Desça da balança. Obedeça a sua mãe!”, falou um homem nórdico, de óculos de lentes grossas e cabelos que começavam a branquear.
“Mas como esse meu menino é teimoso! Puxou a você Oscar”.
“Sabe que não. Sean é teimoso como você, Nelma!”
A comunicação com seus sonhos se perdeu quando a Doutora tocou-lhe os ombros. Ele olhou assustado para ela, não compreendendo o passado, não compreendendo o presente.
— Sente-se! — ordenou a Doutora, vendo que seu estado piorava.
— Você... Você ia me dizer algo sobre...
— Sociedades secretas estão presentes na história do homem há muito tempo, como a escola do papiro, uma escola iniciática nos segredos da vida.
— Secretas quanto?
— Escolas secretas que contam que um alienígena chamado Enki, um geneticista, veio ao Planeta Terra para explorar o ouro na suméria, antiga civilização e o nome dado à região histórica habitada no sul da Mesopotâmia, atual sul do Iraque e Kuwait, e que nos fez para ajudar nessa empreitada.
— Como é que é?
— Esta história é contada com detalhes nas escrituras sumérias, datadas de 6000 anos atrás, que lhe deram o nome de Anunnakis, a esses alienígenas.
Aquilo nada mexeu com ele, continuava se sentindo tão confuso quanto a viagem feita ao parque de diversões com uma mulher e um homem que pareciam ser sua mãe e seu pai.
— Onde eu entro nisso?
— A escola do papiro contava que seres especiais chamados siddhas, com dons chamados siddhi, ditos pela ciência como paranormais foram criados para poderem ler todos esses ensinamentos em papiros vazios, que só se escreviam a eles, e que essas informações foram deixadas pelos alienígenas Anunnakis; medicina, arquitetura, engenharia, astronomia, astrologia e todas as ciências ocultas como levitar seu corpo, mover objetos, e até atravessar paredes.
— Atravessar paredes? — achou graça. — Não me lembro de alguma vez conseguir fazer isso — e tocou o banco de madeira percebendo que sua mão não atravessava aquele material. — Viu?
— Eu acho que sua amnésia de alguma forma desligou seus dons, mas acredito em El Zarih, que disse que você era um siddha.
“Os poderes dos siddhas incluem clarividência, levitação, bilocação podendo nos tornar tão pequeno quanto um átomo até nos desmaterializarmos”, soou Mustafá.
— Mustafá disse...
— O Dr. Mustafá disse?
E Sean parou.
E parou porque não era um médico quem lhe falava.
— Prossiga... — foi só o que disse.
— No hinduísmo o siddha atinge primeiro oito estágios de perfeição dos siddhis; Anima, a redução de um corpo para o mesmo tamanho de um átomo; Mahima, expandindo o corpo para um tamanho infinitamente grande; Garima, tornando-se infinitamente pesado; Laghima, tornando-se quase sem peso; Prapti, tendo acesso irrestrito a todos lugares; Prakamya, percebendo o que outros desejam; I??va, possuindo domínio absoluto, e Vastva, o poder de subjugar a todos.
— Quer dizer o que com isso?
— Comandar alguém pela mente.
— Doutora por que está me dizendo isso? Eu não estou...
— Espere! Deixe-me continuar — e sorriu maravilhosamente a ponto dele ceder.
— Prossiga...
— Um siddha também pode através da yoga e meditação, atingir os cinco estágios siddhis seguintes: Tri-kala-jñatvam, conhecedor do passado, presente e futuro; Advandvam, ter tolerância ao calor e frio; Pará Citta adi abhijñata, conhecedor da mente dos outros; Agni arka ambu Visa adinam prati??ambha?, influenciando o fogo, Sol, água e o veneno; Aparajayah, permanecendo invicto.
— Doutora...
Ela levantou a mão mais uma vez e ele calou-se:
— Como também atingir as dez siddhis secundárias: Anurmi-mattvam, não ser perturbado pela fome, sede, e outros apetites corporais; Dura-Sravana, ouvir coisas de longe — e Najma viu Sean escorregar um olhar para ela. —, Dura-darsanam, ver coisas de longe; Manah-javah, mover o corpo sempre que o pensamento vai, como numa projeção astral — e ela o viu escorregar outro olhar. —, Kama-rupam, assumir qualquer forma desejada; Sva-Chanda m?tyuh, morrer quando se deseja; Devanam Saha Krida anudarsanam, testemunhar e participar dos passatempos dos deuses; Yatha sankalpa sa?siddhi?, o perfeito cumprimento da determinação de um; Ajna apratihata gatih, impedir ordens ou comandos; e por fim Para-Kaya pravesanam, inserir-se nos corpos dos outros.
Daquilo Sean teve medo. Não sabia por que, mas sabia que tinha medo. E tinha medo porque as mulheres desenhadas no corredor do asilo foram sua família, uma família que penetrava nos corpos de outros.
— Doutora... Não sei mesmo o que a levou falar todas essas coisas desconexas, mas...
— São estudos Sean Khalida. Estudos sérios do budismo.
— Achei que fosse muçulmana.
— O que entende sobre a religião do Sudão?
Sean olhou um lado e outro e não soube o que responder.
“Droga!” soou por todo ele.
— Eu vou embora amanhã! — exclamou friamente.
— Entendo.
— Não! Sei que não entende, mas não pode me privar disso. Também não vou mais tomar qualquer medicação que Jablah me dê, porque não quero sumir no meio da noite como os outros.
— Sumir? — olhou atônita para os lados. — Do que está falando?
— Ele também é um médico iniciático, não? — e foi a vez dele ver Najma deformar o rosto.
— Meu irmão Jablah é um médico competente.
— Competente porque ele é um médico que frequenta escolas de papiros que se escrevem sozinho doutora.
— Como pode... Como pode falar isso? Jablah salvou sua vida.
— Não! Você salvou minha vida há seis meses, e há seis meses Jablah tenta me matar.
— Como se atreve? — se levantou nervosa caminhando a passos pesados para dentro do asilo.
Sean não sabia bem porque falou tudo aquilo, mas foi atrás dela entrando no asilo, para então ser atingido por algo que se espalhou por sua corrente sanguínea e todas suas juntas arderam feito fogo. Sean caiu vendo Jablah o observando paralisado, com uma seringa nas mãos e a agulha ainda vertendo um líquido verde. Sean só teve tempo de piscar e atravessou um túnel de luz voltando no que gritos de Najma chegavam até ele.
“Sean?! Sean?!”
Najma então se virou para o irmão e gritou com ele:
“O que você fez Jablah?!”
Sean olhou para cima, viu a Doutora ficar nublada, como nublada ficavam suas vistas. Sentiu se levantar sem se levantar, podia sentir suas pernas caminhando passos que não podia caminhar, e viu que chegava à porta enquanto seu corpo ainda continuava no chão.
Assustou-se voltando ao corpo, tentando esticar as mãos, mas elas não a alcançaram, suas mãos não saíram do lugar, outra vez só uma abastada impressão.
Jablah então se inclinou sobre ele ainda com a face parecendo derretida e Najma o olhava com horrores nos olhos. Ela também não acreditava no que via, no irmão derretendo, tentando matar Sean, e ele sabendo daquilo o tempo todo; há seis meses.
Sean pelo menos agora sabia que ele não estava tendo algum tipo de flash, mesmo porque foi arrancado do chão pela mão forte de Jablah que o arrastou pelo chão do hall, por todo o salão, por toda a escada de degraus soltos, e que o levava aos quartos de cima; e tudo aquilo com Najma gritando, tentando o livrar das mãos de um Jablah derretido.
“Largue-o!!! Largue-o!!! Largue-o!!!”, gritava Najma desesperada quando Jablah a empurrou tão forte que Najma foi lançada contra a parede do corredor e desmaiou caindo no chão desacordada.
Jablah então se virou para Sean e tentou enforcá-lo quando um buraco se abriu na garganta de Sean, não deixando o ar subir nem as mãos dele o tocarem. Sean voltou ao seu corpo e empurrou Jablah, mas ele o prendia numa espécie de teia energética que Sean via como fios de pequeno calibre, mas com cores neon de todos os espectros.
Percebeu ali, naquele instante de segundo que ia morrer o que provável o acidente automobilístico não conseguira, começando a achar mesmo que o tal acidente havia sido forjado para matá-lo, porque era ele, fosse ele quem fosse, o alvo; já que ele, fosse quem fosse, era um siddha.
Um siddha que atingiu alguns estágios de perfeição; Mahima e Sean expandiu seu corpo para um tamanho tão grande que as mãos de Jablah já não mais conseguiam segurá-lo. Espremeu-se tanto entre as paredes que os tijolos começaram a provocar rachaduras. Sean então arregalou os olhos azuis enormes e Garima, tornou-se infinitamente pesado começando a provocar rachaduras também no piso que cedeu, levando o grande Sean Queise e o esmirrado e derretido Jablah Faãn para o andar abaixo.
— Ahhh!!! — gritou Sean atingindo Laghima, tornando-se quase sem peso, e tão magro que suas pernas fraquejaram.
Sean ergueu os olhos e se viu na ala dos doentes terminais, o que imaginava ser a ala dos terminais, já que lá havia mais de trinta macas com homens e mulheres com braços amarrados, conectados a bolsas de um líquido verde que injetavam neles feito soro.
“Droga!”, e Sean alcançou o Prakamya, percebendo o que outros ali desejavam; viajar.
Sean se ergueu do chão atingindo o I??va, possuindo domínio absoluto sobre seu corpo, desejando estabilizar seu espírito quando foi atingido outra vez pela seringa que o derrubou.
— Ahhh!!! — e Sean foi ao chão novamente, entrando novamente no túnel iluminado.
O que era aquele túnel ele não sabia, mas sabia que fora Jablah quem o atingira então ele estava por ali, onde seu corpo ainda estava vulnerável.
Sean então atingiu o Prapti, tendo acesso irrestrito a todos os lugares e se viu num jardim florido, com um lago rodeado de crianças, homens e mulheres e Sandy Monroe ao seu lado. Sean voltou a si percebendo enfim o que o túnel significava, e que conhecia a jovem de nome Sandy, e que ela morrera. Não podia, por isso, se entregar, entrar em coma outra vez.
Atingiu o Vastva, o poder de subjugar todos e ordenou Jablah que parasse, e foi o que paralisou o ato ainda com a seringa pingando algo oleoso e esverdeado.
Najma chegou com dificuldades ao andar debaixo depois do teto e parte do piso ceder e dificultar a passagem.
— Sean?! — gritou ela do outro lado do entulho dos escombros.
— Aqui... — mas ele foi atingido pela terceira vez, não por Jablah, mas por uma entidade em forma de um leão borrado, que lhe encarava caído nos escombros, fazendo Sean sentir todas suas sinapses nervosas entrarem em curto circuito, e o fazerem viajar rápido, agora com o frio a lhe tomar toda a existência.
Sabia que não havia morrido, mas sentia que a morte o rondava, que a morte tinha o corpo de um leão de pelagem vermelho-amarelada e se fantasiava com uma cabeça de pássaro íbis.
“Os deuses disseram: Ele é a causa de todos os lamentos! Namma, mãe dos deuses antigos, leve as lágrimas dos deuses para aquele que está dormindo, para aquele que está deitado, para seu filho!” soou uma voz ali.
Sean abriu os olhos da alma e se viu numa área circular. Ali, dois homens e duas mulheres, lendo algo, um papiro retirado de um esquife de vidro, e que pisavam uma areia verde, dentro de uma pirâmide pontiaguda; porque tudo ali lhe dizia que aquilo era uma pirâmide.
“Você está realmente dormindo e não se levanta? Os deuses, suas criaturas, estão reclamando”, soou a voz de uma mulher morena, de nariz adunco, parecendo falar com ele, ali caído, morrendo.
Sean viu que a conhecia, achava que conhecia, mas não era a mesma morena da sala de almofadas de veludo vermelho onde sentara. Ao lado dela um homem magro e franzino secava o suor. Do lado dele, outra mulher, agora de pele tão branca que parecia ter sido coberta de farinha, e do outro lado um homem baixinho, gordo, com o medo estampado na face, transmitindo algo pelo pensamento que Sean não captava, para então olhar a morena de nariz adunco que olhava Sean.
“Meu filho levante-se de sua cama! Use sua sabedoria e crie um substituto para que os deuses possam deixar suas ferramentas”.
E Sean se levantou.
Todas as forças que ainda nutriam seu corpo se fizeram ali presentes e ele só teve tempo de correr, atravessar os entulhos, alcançar Najma, agarrar a mão dela e atingir o Anima, reduzindo o corpo de ambos para o mesmo tamanho de um átomo até que ambos sumiram dali para o lado de fora do asilo.
— Sean... Sean... — ela mal conseguir falar olhando a rua no que eles se teletransportaram.
Sean então não falava nada, estava atônito, girando no meio da rua em que surgiram, sob fortes olhares e câmeras que o filmaram aparecer do nada, ao lado da médica que eles vigiavam há seis meses. Ele não teve alternativo a não ser correr, fugir dali, se entregar à Dra. Najma Faãn que pareceu ter uma ideia mais normal.
14
Cartum, Sudão.
26/05; 09h00min.
Sean Queise e Najma Faãn haviam sumido do mapa dia anterior após aparecer na frente do asilo, e ambos chegarem à casa de uma amiga e conseguir dinheiro para a viagem de ônibus até Cartum, capital do Sudão; tudo fotografado e esmiuçado tecnologicamente por drones atentos.
Quando ambos chegaram ao apartamento que a Dra. Najma Faãn possuía em Cartum, ela telefonou para uma das enfermeiras conhecidas e pediu que ela fosse até o asilo e cuidasse de Jablah, porque ele havia adoecido. Como ela já fizera aquilo várias vezes durante seus plantões, não estranhou. E foi ainda em Cartum que ouviram sobre o julgamento da Eschatology Inc., que imprimiu as restrições de entrada no Egito.
Sean não se sentiu afetado pelo nome Mark O’Connor, mas sabia que estava envolvido de alguma forma. Porque o Egito estava acirrando o controle de entrada e saída de turistas no país, fechando suas fronteiras temendo uma rebelião nacional, depois que a mídia local anunciou ‘O julgamento arqueológico do século’, da Eschatology Inc. com quem a Computer Co. e outras empresas de armamentos pesados haviam tratado e fechado negócios escusos. Alguns poucos funcionários terceirizados também iam ter que dar explicações sobre peças arqueológicas sumidas, escavações em sítios proibidos e principalmente explicar o porquê de documentos de Mark O’Connor terem sumido.
Os dois dormiram em Cartum, ela no quarto ele na sala.
No dia seguinte Najma levantou empréstimos com outros amigos para poder empreitar o que Sean pedira a ela. Como também conseguiu com o tio rico e influente, um helicóptero que os levaria até o Cairo.
As dunas de areia vermelha vistas da janela eram extensas e Sean as apreciava através do vidro. Najma escorregou um olhar para ele sabendo que sobrevoavam a Rodovia Garri Ring, onde os jornais noticiaram sobre a corrida onde se acidentou, mas Sean nada demonstrou.
Eles desceram no aeroporto de Abu Simbel e de lá seguiram para abastecer em Aswan, Luxor, até chegarem ao Cairo onde Najma teve problemas para conseguir vistos de entradas sem chamar atenção para Sean.
Ele não teve alternativa, a não ser projetar a ambos outra vez no que ele só lhe pediu as coordenadas do Mercado Khan El-Khalili.
Mercado Khan El-Khalili, Cairo; Egito.
30° 02’ 51” N e 31° 15’ 44” E.
26/05; 10h30min.
Najma estava impressionada com os siddhis dele e Sean estava era impressionado com as coordenadas que ele ordenava à mente. Porque dessa vez, Sean foi mais longe que atravessar as paredes do asilo, e ambos aparecerem nas ruelas exuberantes do Khan El-Khalili, no meio do mercado árabe, em meio às vozes, animais domésticos e barracas de alimentos de todo gênero, metais de todas as cores e cheiros de todas as espécies.
— Filme de sessão da tarde.
— Quê?
— Nada!
Sean e Najma compraram galabias, túnicas; ele um turbante ela um hijab. Ele também percebeu Najma apreensiva após o telefonema dado para o asilo Faãn de uma cabine telefônica.
— Como está seu irmão? — falou enfim.
— Esquisito. A enfermeira o encontrou na cama.
— Na cama? Acha que ele conseguiu sair daquele porão? — Sean preferiu não comentar sobre uma entidade usando máscara de íbis.
Mesmo porque não sabia ao certo se era uma entidade ou um homem, ou leão-homem, o borrão que viu lhe atacar.
— Não sei. Havia tantos detritos ali depois que você caiu.
— Já havia ido lá, Najma? Naquele porão?
— Não. Jablah era quem tinha a chave do que ele chamava de ‘depósito’.
— Wow! Não pode imaginar o que ele depositava lá.
— Não consigo acreditar Sean Khalida. Eu sei que você não mentiria para mim, mas não posso acreditar em pessoas lá, sendo envenenadas.
— A enfermeira disse algo mais?
— Não. Acho que ela nem esteve no porão ou depósito, sei lá. Só disse que Jablah está em coma, como você ficava — suspirou.
— Acha que aquele líquido...
E ela levantou a mão pedindo que ele parasse de falar.
— Não posso imaginar o que seja aquele líquido verde, mas não quero falar sobre isso.
Sean não insistiu. Estava confuso até para formular perguntas.
Eles já haviam rodado o Khan El-Khalili por mais de quatro horas e ambos se estafavam. Ele preferiu agir como um ser humano normal se instalando num hotel com ela, que não acreditou quando Sean pediu um hotel cinco estrelas se dizendo estar acostumado. E Najma não podia acreditar no que ele estava acostumado ou como ele achava que estava acostumado se tinha amnésia, mas acabou cedendo.
The Mövenpick Hotel & Casino, Gizé; Egito.
26/05; 15h00min.
O The Mövenpick Hotel & Casino ficava em Gizé, a 40 km das pirâmides. Era um luxuoso cinco estrelas de arquitetura de estilo tradicional que possuía uma fenomenal piscina que tomava conta do centro do hotel dando a ilusão de um Oasis no deserto. E como na maioria dos hotéis no Egito, havia quartos em oferta para egípcios residentes.
Najma fez check-in pedindo um dos quartos; aquilo o alertou. Ele percebeu que além de uma extensa rede de amigos pronta a ajudá-la, ela usava passaporte egípcio recuperado no apartamento de Cartum. Sean ficou imaginando quem realmente eram os irmãos Faãn, sobrinhos de um tio que tinha um helicóptero a disposição deles.
— A cama parece confortável Sean Khalida? — se jogou sobre ela após tirar o hijab colorido da cabeça e longos cabelos negros se soltarem. — E é sim!
E Najma também verificou os armários, os canais de TV, o banheiro, todos os sabonetinhos, o perfume do xampu; parecia uma criança mimada. Sean ainda se achava estranho sendo chamado por um nome do qual não se lembrava de ser o seu.
— Nunca veio aqui?
— Não tive muitas oportunidades de viajar a turismo na minha vida.
— Queria tanto poder lhe fazer feliz.
— Sean... Você me faz feliz. Estar ao seu lado me faz feliz.
— Isso é... — e Sean sentiu uma sensação desagradável. Virou-se e leu alguns menus que se encontravam em cima da mesa de cabeceira. — Está com fome?
— Sim.
— Fome do tipo café da manhã básico, do tipo café da manhã médio e isso inclui uma pequena sessão de massagens no salão da entrada, ou do tipo café da manhã completo com direito a uma jacuzzi quente e vinho gelado?
A Dra. Najma achou que aquilo era bom demais para estar acontecendo.
— Você está incluído em algum dos tipos?
— “Incluído”? — e Sean arregalou os olhos azuis e a barba que crescia numa tonalidade tão loira quanto seus cabelos. — Ahhh... Suponho que não... — mas ela já estava ao lado dele, com os olhos verdes e a pele branca lhe sorrindo. — Doutora eu... — e se virou. — Vou fazer o pedido número três.
— Shukran! — ela agradeceu jurando que não entendeu bem o que aquilo significava.
Porque ele parecia distante, arredio, e porque ela até podia ter entendido errado, mas afinal eles estavam sós, num quarto de um hotel maravilhoso, e ela o amando muito.
— Cozinha, por favor? — falou Sean em árabe ao telefone alertando Najma. — Pode trazer na suíte 38 um vinho gelado. Sim, um Chardonnay, vinho branco. Traga também carpaccio de bacalhau.
— Você fala... — mas não continuou a falar.
— Ah! Compreendo! — prosseguia ele em árabe. — O que tem a oferecer? Então traga carpaccio de salmão. E sais de banho? Que marca possui? Fico com os alemães. Shukran!
— Vinho Chardonnay e sais alemães?
Sean olhou para o lado procurando uma resposta.
— Não gosta?
— Como se lembra disso?
Sean a olhou assustado.
— Me lembro? — não havia pensado em nada quando pedira.
— Sabe o que significa ‘dèjá vècu’, Sean Khalida?
— Uma expressão francesa para “Já vivido”.
— Mabrook! — deu-lhe os parabéns o vendo sorrir. — Na neuropsiquiatria, dèjá vécu é considerada uma ilusão epiléptica que representa uma manifestação epiléptica crítica, que durante a qual o indivíduo interpreta mal a situação ou situações que, entretanto, percebe bem e que passam a ter para ele características anormalmente familiares.
— Não entendi... Acha que minhas lembranças são impressões causadas por uma crise epilética? ‘Déjà vu’?
— Pode ser! Talvez até causadas por coisas que outros viveram, como uma propaganda na TV, e que acaba por lhe vir à mente como uma memória vivida por você.
— Mas não tenho sensações alguma, doutora. As coisas saem simplesmente.
— Eu disse a Jablah que devíamos ter levado você a alguma clínica para fazer uma ressonância magnética. O fato de ter estado tanto tempo em coma pode ter acarretado...
— Por favor, Najma — e foi a vez de Sean cortar o que ela ia dizer. — Não quero pensar nisso. Não agora.
— Mas Sean...
— Não Najma. Podia ter pedido um tinto Pinot noir, um Cabernet Sauvignon ou um Merlot, e apesar de todas serem da mesma casta de Vitis vinifera, pedi um Chardonnay; acredite, vai adorar tomar esse vinho branco gelado — e foi tomar um banho.
Pouco depois a campainha tocou e Sean saiu do banho protegido por uma toalha na cintura.
— Sean... — e Najma impactou no belo dorso que ele possuía. E Sean até já tinha perdido um pouco da sua musculatura malhada, mas era belo, um monte de belo. — Esconda-se! — ela o viu recuar e recebeu o serviço de quarto assinando a conta.
Sean se aproximou e ela alcançou seus lábios tocando-os com carinho. Najma sentiu naquele momento como nunca que havia se apaixonado por ele mesmo contra a vontade de Jablah. Mas Sean devolveu o beijo com vontade de beijar. Os lábios macios, quentes, transmitiam uma paz que até então seu coração não conhecia. Porque podia sentir que era triste, no âmago da questão, ele era triste; triste por um homem de bigode grisalho que tinha orgulho dele, triste por outro homem de olhos azuis como os dele e óculos de lentes grossa que se dizia seu pai, triste pela mulher loira e madura que se dizia sua mãe, e por fim triste pela morena de vestido amarelo que conseguia estar mais triste que ele do outro lado de uma mesa onde ele sabia, também estava, pensando em como a vida de ambos era triste pela morte da moça loira, de nome Sandy, que sorria para ele morta, num lago.
Sean recuou outra vez confuso e Najma não sabia mais do que ele fugia.
— Desculpe-me... — soou verdadeiro para uma Najma que não queria mais pedidos de desculpas, queria ele, seu corpo, que o tocou.
E os olhos de ambos se cruzaram numa frase não dita. Porque eram corpos que ditavam ali, órgãos sensoriais como o órgão da visão que pousou sobre a blusa que ela usava, e que escondiam seios que se projetavam para frente perante a excitação do momento, como o órgão do tato que os tocou, que fizeram Najma abrir e fechar os olhos e fazer todo seu corpo tremer numa espécie de frenesi, como o órgão do paladar que os engoliu, acomodou-os na boca máscula, com órgãos do olfato absorvendo perfumes, suor e essência dos seios que despontavam da blusa aberta por nenhum toque. E ele podia sentir o coração batendo, o fluxo sanguíneo e todo o caminho percorrido, até Najma abrir os olhos e o ver indo embora.
Sean foi até o carrinho e abriu o vinho. Serviu duas taças sem saber do que fugia, mas foi atingido pela perna da bela doutora que tocava a dele ainda envolto em toalha, com todo seu órgão sexual alertado. Sean bebeu toda a taça de Chardonnay e a encheu novamente. Ela tirou a taça da mão dele e tomou. Ele se virou para ela e levantou a saia que Najma usava, alcançando a lingerie que se rompeu. Levantou-a do chão, nua, e encostou o peito viril nos seios cada vez mais rígidos, com Najma se vendo dependurada pela força máscula. Ele pegou a garrafa de Chardonnay e a carregou até o banheiro, até a jacuzzi, até as águas mornas de sais alemães, entrando sem toalha, se deitando sobre ela, sorvendo o vinho branco que ele derramara nela.
O impacto da bebida gelada na boca quente, o fez acordar e ver uma Najma apaixonada, uma Najma que se levantou nua fazendo a água perfumada escorrer do corpo belo que foi até o quarto e trouxe carpaccio de salmão que o serviu na boca. Sean os comia junto aos dedos dela, os mastigando, os chupando para dentro de sua boca, boca que Najma beijou freneticamente até puxar seus cabelos. Sean sentiu dor na ação, sentiu um tesão até então não sentido, e outra vez viu a mulher de cabelos longos, negros, sorriso alvo, que só vestia amarelo, nua, debruçada sobre o corpo dele.
“Patrãozinho!”, ele ouviu a morena exclamar ao tocar-lhe o sexo.
Sean levantou-se num rompante esquecendo que estava na banheira, que o corpo dela também dividia o espaço, e Najma olhou-o em pé sem entender, com Sean entendo que amava a mulher triste que vestia amarelo.
— O que foi? O que foi Sean Khalida?
— Não sei... Vi... Alguém...
— Uma mulher?
— Sim.
— Nua?
— Não! Não! — Sean tentava fixar a imagem outra vez sem conseguir. — Sim... — e só a sensação da bela morena de cabelos longos e negros já lhe ter puxado os cabelos, já lhe ter tocado seu sexo, dele ter sentido tesão naqueles atos. — Acho...
— Sean... — Najma o viu se virar.
— Vou tomar uma ducha — Sean acabou a taça de vinho num gole só.
Também terminou a ducha em meio a um mal estar provocado pela visão. Pegou uma toalha e passou por ela sem trocar uma única palavra. Deitou-se na cama king size e dormiu profundamente sem voltar a falar com Najma que ficou lá sozinha, a imaginar de quem ele se lembraria nua, numa jacuzzi.
The Mövenpick Hotel & Casino, Gizé; Egito.
26/05; 23h53min.
Seus sonhos eram tão confusos quanto apavorantes. Havia muito sangue em sua roupa, e ele não sabia a quem pertencia. Acordou após o estampido de uma arma, na escuridão da suíte. Najma havia fechado as cortinas e ele as abriu tão rápido à procura de luz, que seu coração disparou. Viu que a noite caíra e que Najma havia se deitado ao seu lado. Ela acordou, abriu os olhos, e viu Sean sentado na poltrona à frente da janela ainda enrolado na mesma toalha.
— No que está pensando? — perguntou-lhe carinhosa.
— Na memória... — respondeu a esmo. — Em como os grandes pensadores da antiguidade pensaram nela — a viu não querendo atrapalhar a sua linha de pensamento. — No capítulo X das Confissões, Santo Agostinho de Hipona disse que não conhecia a força da sua memória, sem a qual não poderia nem dizer quem ele era. Mas que tinha certeza de que se lembrava do esquecimento.
— Tem ideia de como consegue se lembrar da filosofia?
— Não, mas ela permeou toda minha vida, porque só ela trouxe conforto ao meu espírito.
— Você sofreu?
— Não sei. Acho que como Santo Agostinho, não posso afirmar que não exista na minha memória aquilo de que não me lembro, mas também não sei como pode o esquecimento estar na minha memória, se não para que não me esqueça dela...
Os olhos dela brilharam.
— Você era triste, Sean Khalida?
Ele a olhou com lágrimas nos olhos, porque elas corriam só pelo fato da palavra tristeza ser mencionada.
— “Quem em nós falaria voluntariamente da tristeza e do temor, se fôssemos obrigados a entristecer-nos e a temer, sempre que falamos de tristeza ou temor? Contudo, não os traríamos à conversa se não encontrássemos na nossa memória, não só os sons destas palavras, conforme as imagens gravadas em nós pelos sentimentos corporais, mas também a noção desses mesmos sentimentos”; falou um Santo Agostinho triste… — Sean a viu se levantar, abrir o armário, e dar-lhe um pijama cinza de Jablah, que havia recuperado no apartamento de Cartum. — Obrigado por me trazer, Najma — soou verdadeiro.
Ela só sorriu e voltou a dormir sabendo que não devia insistir, que não era de bom tom.
E ele a amou por aquilo, pela não insistência.
15
The Mövenpick Hotel & Casino, Gizé; Egito.
27/05; 09h00min.
Fazia pouco tempo que o dia brotara de um Sol alegre. Sean acordou de novos sonhos, agora contraditórios, ilustrativos e reveladores. Olhou o vazio, sem qualquer resposta àquilo. Contudo, uma coisa sabia, era triste; havia amado uma mulher de cabelos loiros que se matou, uma de cabelos negros que era capaz de se matar por ele, e tinha dois pais que morriam pelo amor dele; mas também precisava encontrar alguém, e investigar esse alguém, e seguir esse alguém, e se vingar desse alguém.
Porque a vingança e a tristeza eram o que moviam sua vida.
Najma acordou e o viu outra vez sentado na poltrona, próximo a janela. Ela se levantou e se aproximou do corpo dele ainda sentado, tocando-lhe os lábios, beijando-o com profunda paixão.
Paixão que ele podia sentir no que ela o tocou.
— Doutora... — Sean ia recuar, queria evitar, mas não conseguiu. E não conseguiu porque agora Najma beijava seu lábio, seu pescoço, seu peito, descendo. Cada vez mais rápido, alcançando a cintura invadida. — Não... — mas Najma insistiu. Olhou-o e tocou sua cintura chegando ao nó do pijama cinza, desatando-o. — Doutora... — tentou em vão quando Najma se sentou nele abraçando-o, enroscando-se em seu peito,
Sean ficou confuso, com medo. As mãos dela desciam e subiam sem ao certo se concentrar em algo, em alguma parte do corpo dele. Contudo, seus carinhos eram intensos, ela o desejava com ardor; ele podia sentir ler seus pensamentos.
Ele tentou se levantar, mas Najma o empurrou de volta.
— Sean... — soou erótico.
E ele foi envolvido em seus braços percebendo o erotismo, a paixão que era forte, era verdadeira, era incontrolável.
— Não... — Sean tentou se esquivar mais uma vez. — Eu não sei se sou casado...
— Sente-se casado, meu amor? — questionou a Dra. Najma, cortando o que Sean mais ia dizer.
E ele não soube responder, não tinha lembranças.
— Não sabe como isso dói — dizia realmente abalado. — Não sabe o sofrimento que sinto, a dor constante de se olhar no espelho e não se reconhecer — e escondeu seu rosto nas mãos fechadas.
— Meu amor... — Najma não queria se importar com sua dor naquele instante.
Escorregou seu corpo sobre o dele fazendo Sean vê-la sobre um prisma ainda não visto, de joelhos no chão, o observando na poltrona.
As mãos de Najma então caminharam por suas calças do pijama, invadindo seu sexo, seguidas pela boca que lhe engoliu.
— Ahhh... — Sean se perdeu em duvidas, em todas as formas de êxtase.
E ela subiu até seus lábios, beijando-o intensamente enquanto arrancava sua camisola, a blusa do pijama dele, sua lingerie, as calças do pijama dele. O queria, o teria nem que fosse à impessoal poltrona de hotel.
Mas foi no empurrar dele que ela teve que ceder. Seus olhos se encontraram numa mescla de duvidas, tristezas e poder. Porque ela achava que mandava nele, que ele pertencia a ela.
— Venha... — o puxou da poltrona. —, vamos tomar aquele tal chá de menta, afinal veio ao Cairo para isso — e foi ao armário se trocar.
Sean sabia que havia mais ali.
Cairo, Egito.
27/05; 10h00min.
O chá de menta era realmente muito gostoso, mas Sean não recordara nada com ele. Sua tristeza abateu Najma também, que contratou um guia local para lhe mostrar alguns lugares assinalados por ela no prospecto pego no hotel.
Sean não queria passear, mas não podia dar a Najma o que ela queria; sexo. Então passear amenizava algo.
Mas ele de repente pegou a mão dela e lhe sorriu:
— Posso lhe perguntar algo?
— Sim...
— Se você recebesse um aviso em um papiro para voltar ao passado, sabendo que suas atitudes mudariam completamente o destino do mundo, sem que pudesse voltar ao presente, embarcaria ou não?
— Por que está me perguntando isso?
— Embarcaria ou não?
— Não, Sean Khalida.
— E por que não Najma?
— Porque o passado tem que ficar onde ele está, perdido em lembranças.
E Sean nada mais falou.
Visitaram o Templo Ben Ezer, o belíssimo e inusitado The Aqsunqur Mosque ou Mosteiro Azul, para depois irem para uma rua próxima onde ficava uma das atrações turísticas mais populares no Cairo, a Cidadela com Sean ainda aéreo, ainda perdido em pensamentos confusos com aquela pergunta, com a resposta que deixava a bela mulher de cabelos negros, de corpo escultural em roupas amarelas, e mais velha que ele no passado esquecido, mas que não saía de suas lembranças. Também se alternava ao pensar na jovem loira de coque, na bela morena, na jovem loira e na morena outra vez, sentindo-se confuso, atordoado com quem amara enfim num passado perdido.
Najma o observava de lado de vez em quando. Tinha a sensação de está-lo perdendo, não sabia para quem.
— A Cidadela não começou sua vida como uma grande base militar e sim como um pavilhão para armazenar comida, criada em 810 D.C. por Hatim Ibn Hartama, que era então governador — explicava Abdul, o guia. — Foi apenas em 1176 que o Cairo foi fortificado para se proteger de ataques dos cruzados. Desde então, a Cidadela nunca mais ficou sem uma tropa militar presente — Abdul falava rápido e apontava para todos os lados deixando-os um pouco zonzos com tanta informação. — Aqui é Bab Zuwayla, algumas vezes chamada de al-Mitwalli e depois de El Kutb al-Mitwalli por alguns habitantes locais...
Najma estava encantada com o passeio e Sean apavorado com um rapaz franzino e de pele amorenada que aparecia e sumia atrás de grandes paredes coloridas.
— Estes portões são chamados de Bab, porta, el-Futuh, Bab na-Nasr e Bab Zuwaila. Bab Zuwaila, às vezes chamada de al-Mitwalli por alguns habitantes da região, e define os limites da Cidade de Fatimid que com o passar do tempo aumentou a população e ultrapassou os limites do portão. A parte da cidade que está para fora dos portões é chamada de al-Zawila...
Najma prestava atenção ao guia Abdul enquanto Sean se encafifava cada vez mais com os olhares esbugalhados do rapaz franzino, e de pele amorenada à sua frente que não parecia enxergar direito o que via ou quem via, olhando para os lados como quem buscava uma explicação.
Sean então deu a volta na coluna e deu de cara com o rapaz franzino e de pele amorenada recuando, assustando Najma e o guia Abdul ao se chocar com a fila toda.
— Meu amor? O que houve? — Najma percebeu ele passar por ela e não parar, também percebeu Sean com os olhos pregados no rapaz franzino e de pele amorenada que os observava.
— Sou Muhazzab Aal...
— Saia daqui! — falou Najma ao percebê-lo.
— Não... Sou Muhazzab Aal...
— Já disse para sair daqui! — insistiu a doutora.
O guia Abdul veio intermediar a discussão.
— Asif! Asif! Sou Muhazzab Aal... — apontava nervoso o rapaz franzino tremendo.
— Saía daqui já disse!!! — gritou Najma. — Vou chamar a guarda!!!
— Calma! Sou de paz, Queise!
E Sean impactou.
— Ele me chamou de ‘Queise’? — falou Sean para Najma que estava nervosa. — Me conhece? — Sean criou coragem de perguntar.
O rapaz acenou a cabeça em tom de afirmação.
— Lembra? Sou Muhazzab Aal... Sou First... — apontava incessante para si mesmo quando viu Sean olhar Najma nervosa que olhou Sean. — Sou seu motorista First e você é Sean Queise, meu patrão!
Sean só teve tempo de arregalar os olhos azuis.
16
Trafalgar Square; Londres, Inglaterra.
51° 30’ 27” N e 0° 7’ 40” W.
28/05; 07h00min.
— O quê disse Embaixador?! — Oscar Roldman quase gritou ao telefone.
— É o que eu estou lhe contando, Sr. Oscar Roldman. Alguém aqui no Cairo, Muhazzab Aal, um jovem motorista contratado por Sean Queise para trabalhar para ele, se eu entendi direito, se comunicou ontem com a embaixada — parou para a frase dramática. — O jovem Sean Queise foi encontrado vivo! — exclamou o excelentíssimo Sr. Ângelo Antônio Borges, nomeado Embaixador do Brasil no Egito.
— Sean... — a voz de Oscar Roldman mal saiu.
Ele estava certo, seu filho estava vivo.
— Conversei com Sean agora a pouco — emendou o Embaixador Ângelo Antônio. — Ele demorou a se convencer de quem era.
Oscar desligou o telefone quase que imediatamente. Dava socos no ar, pulava na cadeira, batia os punhos na mesa; era todo, euforia.
— Preciso avisar a todos... Preciso ordenar que o tragam... Preciso organizar a sua volta…— e suspirou. —, e preciso parar para respirar — disse sorrindo o todo poderoso Oscar Roldman, tomando fôlego.
Discou muitos números até que uma voz feminina, decidida, do outro lado atendeu.
— Mona Foad Almeida? Oscar Roldman!
— Eu sabia quem era você. Não precisava se apresentar — Mona foi ríspida e direta.
Oscar percebeu.
— Eu sei que... Ãh... Que há muito não nos falamos, mas...
— Ele está vivo.
Oscar sentiu o impacto da frase.
— Como...
— Como eu sabia? Não sabia. Acabou-me de contar.
— Leu minha mente?
— Sim.
— E por que não leu a mente de Sean? Por que não sabia que ele havia sobrevivido?
— Porque como você, também não pude.
E Oscar não gostou da linha daquela conversa.
— E como pode ter tanta certeza que eu não sabia?
— Porque a mente de Sean amigo devia estar desligada ou obstruída. Até hoje ele não tinha certeza de quem era, não é?
— Sim. Sim.
— Sua mente só abriu após o Embaixador do Brasil convencê-lo de quem ele é. Então senti seus fluídos, que ainda estão muito poluídos.
— E se soubesse? Ia me contar, Mona? Que os fluídos muito poluídos de Sean estavam vivos?
— Não! Não devo isso a você, nem a sua família igual a ele, igual a mim — Mona sabia que Oscar havia se assustado, que havia se assustado dela saber de sua família possuir poderes psíquicos, que Sean seguia a linha genética. — Mas teria falado com Nelma, ou falado com Fernando se ele estivesse vivo. Porque só eles deveriam ter esse tipo de interesse.
Oscar desligou tão bruscamente que sentiu suas mãos doerem. Mona já previra aquela reação. Sorriu enigmática, mas muito feliz. Desligou o telefone também sentindo que um peso enorme fora retirado de seu coração.
“Sean amigo”; pensou.
Dirigiu-se ao seu quarto e de detrás de uma estante lotada de papiros, Mona retirou uma caixa de metal, um metal que a Poliu desenvolvera para não permitir influências psíquicas nele, nem que nada dali escapasse, para não permitir que espiões psíquicos conseguissem ‘enxergar’ o conteúdo da caixa. Foi lá que ela escondera todo esse tempo o papiro que Sean trouxera, que Sean recebera, receando qualquer comunicação dele.
Mas Mona o leu ou pelo menos tentou. Porque os hieróglifos correram pelo papiro como que desordenados. Ela andou em círculos e se concentrou aguardando que os hieróglifos escrevessem algo.
— Por Allah! — Mona Foad sentiu medo do que achara que leu.
17
Aeroporto Internacional de Guarulhos; São Paulo, capital.
23° 25’ 55” S e 46° 28’ 10” W.
29/05; 18h00min.
Sean Queise chegava ao fim da tarde ao aeroporto, um dia depois do telefonema de Oscar Roldman ao The Mövenpick Hotel & Casino fazendo seu check out, e o levando para a Embaixada do Brasil no Egito. Sean sentiu-se desconfortável por não ter podido levar Najma, que pediu a ele que não se preocupasse, que ela tinha mesmo que voltar ao Sudão, ao asilo Faãn por causa de Jablah, e que ela precisava estar ao lado do irmão nesse momento crítico.
Sean a amou mais uma vez pela sua entrega.
Durante sua curta estadia na embaixada Sean havia recebido um telefonema de Oscar Roldman, que se apresentara como chefe da Polícia Mundial responsável pela volta dele ao Brasil, seu país de origem. Sean até sentiu algo na voz que conversava com ele, mas não conseguiu lembrar-se de nada a não ser do homem que branqueava os cabelos no parque de diversões usando óculos de lentes grossas.
Sean foi avisado que sua mãe Nelma Queise estava extremamente emocionada com a volta dele, e os médicos não aprovaram a ideia de que ela fosse ao aeroporto recebê-lo. Oscar Roldman também o avisou que lá, somente sua sócia, Kelly Garcia, iriam. Além do mais, a família já estava preparada para um agravante, o dele nada se lembrar. E Sean chegava ao Brasil com a notícia de seu retorno correndo pelos quatro ventos, com o policiamento sendo reforçado, enquanto o mundo se espantava com a notícia de que o jovem e rico mega empresário dos computadores estava vivo, mas sem memória. Todos esperavam por ele; jornais, televisão, Internet. Toda a mídia especializada, todos os países que mandaram seus jornalistas ao Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, capital.
Quando Sean deixou o saguão de desembarque vestindo uma calça clássica de sarja e uma camisa social fornecida pela embaixada. Também trajava sua atual forma; barba crescida e corpo magro, ainda com a lembrança das palavras emocionadas de Najma Faãn, pedindo para que ele não a esquecesse. Mesmo porque ia ser difícil esquecer tudo o que ele passara, todas aquelas revelações.
— Suas malas, Senhor — falou o encarregado do desembarque, assustando Sean que tivera um sobressalto, voltando à realidade percebendo que estava em São Paulo sem, porém nada lembrar-se dali.
E mais confuso ficou por entender a língua falada, a língua portuguesa falada no Brasil. Atravessou o corredor e quando saiu, levou outro susto quando um flash quase o cegou. Policiais avançaram sobre o fotógrafo que insistiu em fotografá-lo, fora do lugar onde a imprensa toda estava reunida para uma entrevista coletiva.
Sean havia sido contra a ideia, mas o Embaixador do Brasil no Egito, Sr. Ângelo Antônio Borges, que o acompanhara no Cairo, havia sugerido que ele aceitasse falar com a imprensa, a fim de se livrar mais rapidamente dos jornalistas. Porque havia muitas câmeras de televisão na sala reservada no aeroporto.
Quando Sean entrou, Oscar Roldman não se conteve e correu a abraçá-lo. Assustado, Sean recuou para trás saindo da sala, indo para antessala, sendo seguidos por ele e Kelly, que se olharam assustados com a reação dele, com a atual forma física dele.
— Meu filho...
Mas Sean só conseguia se lembrar do homem de bigode grisalho na disputa com o outro homem de óculos, porque entendendo ou não, ele tinha dois pais.
— Desculpe Senhor — foi só o que conseguiu falar.
Oscar Roldman percebeu a frieza.
— Posso compreender sua atual situação, mas não aceito não poder sentir o seu amor de filho.
— Amor de filho? — Sean olhou-o e olhou a bela mulher balzaquiana, de longos cabelos negros, vestindo um tailleur amarelo, ali parada, com lágrimas nos olhos. — Desculpe Senhor… Mas onde está meu pai?
Oscar olhou Kelly que olhou Oscar.
— Eu sou seu pai! — exclamou com força e emoção.
— Achei que ele tinha bigodes.
E aquilo foi a gota d’água para Oscar Roldman, o frio Oscar Roldman. Ele se virou num rompante mesmo quando Kelly tentou impedi-lo segurando-lhe pelo braço, que Sean acompanhou com um olhar.
— Sr. Roldman! Não! — exclamou ela.
— Não está vendo Kelly? — Oscar mostrou Sean de olhos arregalados para a mulher balzaquiana, de longos cabelos negros, vestindo um tailleur amarelo.
E como era linda.
— Não Sr. Roldman — Kelly ainda o segurava quando ele se soltou da mão de Kelly. — O Senhor é quem precisa entender a situação. Só vai complicar mais.
— Complicar mais? Até quando? — perguntou abalado.
— Não tenho a mínima ideia... — respondeu Kelly cabisbaixa.
— E por que Fernando? — ele viu Kelly agora arregalar os olhos para Sean. — Por que ele se lembrou de Fernando, Kelly?
— Não sei do que...
— Sabe sim, Kelly... — e Oscar Roldman chorou, o frio e calculista homem de poderes chorou. — Porque você sabe muito bem do que estou falando — e se aproximou tanto dela que Kelly não teve tempo de se afastar do belo Oscar Roldman que a abraçou chorando, até que Sean experimentou ali o que era ter ciúme. — Desculpe-me Kelly... — Oscar recuou percebendo o mal estar dela.
— Eu quem peço desculpas por atrapalhar o casal, mas quero ir embora — foi um Sean cínico quem falou aquilo.
“O casal?” Oscar e Kelly ouviram aquilo sem gostar de ter ouvido aquilo.
Oscar Roldman se virou e foi embora.
— Viu o que fez? — Kelly estava nervosa com o abraço e brava com a indiferença dele para com o pai.
— Wow! Desculpe-me se fiz o casal brigar, mas...
— “Casal”? De que insanidade está falando patrãozinho?
“Patrãozinho” soou por todo ele. Afinal a lembrança dele, dela, daquela palavra, mostrava ser ela, a nua abraçada a ele.
— Eu...
— Você nada! — Kelly deu dois passos firmes até ele querendo ter se jogado em seus braços, em seus lábios tomados por uma barba loira que o deixava mais lindo, por cada milímetro de pele dele, do cheiro dele, em meio a toda a saudade comprimida no coração, que saltitava por vê-lo vivo. Mas ao contrário, só apontou para a porta. — Volte lá e os encare! Nunca foi homem de fugir dos problemas!
E Sean leu cada pensamento dela, cada fluxo sanguíneo correndo dentro dela, cada milímetro de pele branca e perfumada que ele quis experimentar. Balançou a cabeça se achando louco, e invadiu a sala com flashes e vozes de todos os timbres o atingindo novamente.
Sean se sentou à uma mesa preparada pela Polícia Mundial, com todos os jornalistas escolhidos a dedo; por isso Tahira não fora chamada. No seu lugar havia ido o amigo, também jornalista, João Vernestino. E era ele, naquele momento, quem fazia algumas perguntas.
— Boa tarde, Sr. Queise. Eu sou o jornalista João Vernestino do Jornal Científico Distopia, e gostaria de saber o que se passou com o Senhor todos esses meses em que esteve se recuperando, e como conseguiu escapar da explosão?
— Primeiramente, eu gostaria de agradecer a atenção que todos vocês tiveram com a minha família, e gostaria de lembrá-los que estou com amnésia — Sean foi firme e direto e um grande burburinho se fez, ninguém conseguiu ouvir direito mais nada.
— Por favor, Senhores... Silêncio! — pediu Kelly, ao ver o alvoroço na sala.
Sean a olhou de lado. Ela era bela.
— Mas o Senhor se lembra de como escapou? — perguntou uma jornalista de uma revista inglesa.
— E quem é você? Pensei que tinham que se apresentar antes.
A mulher se encolheu perante a frieza de Sean e Kelly sentiu o mega empresário fluindo naquele momento.
— Sou a jornalista Berenice City, da revista semanal “Franchini”.
— Muito prazer, Senhorita. Sou Sean Queise pelo que me disseram. E agora que ambos já nos apresentamos, podemos conversar — ele viu a jornalista não gostando muito, mas sabia ser chato quando queria. — E respondendo, lembro-me de estar todo esse tempo num asilo, no Sudão.
Outro alvoroço e Kelly voltou a pedir calma.
— Mas nos foi dito que o Senhor foi encontrado no Cairo?
— E o porquê de estar com amnésia não me permitiria viajar a passeio?
Falatório e mais falatório e Kelly interviu pela terceira vez.
— Não é possível que ninguém no asilo soubesse quem o Senhor era? — cogitou outro jornalista.
— Tanto quanto eu sei quem você é.
— Meu nome é Leopold Baistarn. Sou correspondente do Jornal Dot And Dot da Noruega.
— Agora sim! — exclamou cínico olhando Kelly. — Somos tão internacionais assim? — sussurrou.
Kelly riu discretamente, mas não respondeu.
— Ninguém sabia então, Sr. Queise? — perguntou novamente.
— Eu estou com amnésia para antes da explosão, Sr. Leopold. É o que eles chamam de amnésia retroativa. Não estou com amnésia para o momento de agora, e estou afirmando que ninguém no asilo sabia, já que meu nome não esteve envolvido no acidente automobilístico pela mídia local.
— Mas o Senhor participava da corrida? Porque houve um único sobrevivente mencionado nos jornais egípcios e seu nome não constava na lista.
— Acabei de dizer que meu nome...
— Foi retirado! — exclamou alguém ali. — A Computer Co. tem poderes para isso Sr. Queise?
Kelly percebeu a demora em ele responder.
— Não sei dizer.
— Mas os jornais anunciaram que esse único sobrevivente, morreu faz uma semana numa explosão criminosa, a um centro de compras na Inglaterra. Ele foi eliminado?
Sean olhou Kelly e ela fez que nada sabia.
— Não sei dizer — foi o que ele disse outra vez.
— Como é provável que tenha escapado Sr. Queise se esteve realmente lá? — questionou João Vernestino outra vez.
— Não sei dizer. E não sei dizer porque não sei se estive realmente lá.
— O que fazia no Egito afinal se não era para correr?
— Não sei dizer.
— Houve um julgamento de uma empresa chamada Eschatology Inc. no Egito, após divulgação de que ela sequestrava relíquias arqueológicas do país, e a Computer Co. e outros empresários do ramo armamentista tinha contrato com ela.
Sean outra vez voltou a olhar Kelly.
— Os contratos da Computer Co. são confidenciais. Temo que sua pergunta não possa ser respondida — foi ela quem respondeu.
— Mas a Computer Co. já teve um contrato cancelado quando foi culpada pela morte de três arqueólogos onze anos atrás Sr. Queise?
Sean continuou mais perdido ainda.
— Não sei dizer...
— Mas se era um contrato escuso com uma empresa escusa por que a Computer Co. já tinha funcionários no Cairo?
— Tínhamos? — perguntou Sean a Kelly. — Realmente não sei dizer — responder aos jornalistas que não se identificavam mais. —, porque estou com amnésia...
— Muito providencial de sua parte estar com amnésia, não? — voltou a falar um jornalista ali.
— Não é? — foi o mais cínico possível.
Risadas surgiram e se foram.
— Do que lembra após sua recuperação?
— Só me lembro de sentir muita dor de cabeça e ficar muito tempo como que em estado de choque. Numa sensação de que havia algo errado só não sabia o quê.
— Boa tarde, Sr. Queise. Sou a jornalista Érika Crawford, da revista Wares e eu queria saber se, já que a Computer Co. matou três arqueólogos onze anos atrás, como conseguiu participar outra vez de uma concorrência que envolvia o satélite de observação Spartacus?
— Matamos? — Sean procurou Kelly com um olhar e um pedido de socorro.
— Volto a dizer que isso é um assunto particular da Computer Co., Srta. Érika — a voz de Kelly endurecia não gostando que a mídia soubesse que Sean ia usar o satélite na concorrência, quando a própria Computer Co. não sabia daquilo. Havia com certeza um informante infiltrado em algum lugar. — E o satélite de observação Spartacus pertence a Polícia Mundial; a Computer Co. só lhe dá suporte com os banco de dados após sua construção.
— Mas é sabido que a Computer Co. usava o satélite...
E Kelly cortou tudo:
— Mais tarde responderemos a todas essas perguntas feitas. Obrigada por comparecerem! — e ergueu Sean Queise da cadeira pelo braço fazendo a confusão aumentar.
Sean nada entendeu daquela reação e Kelly o empurrou para fora, para a antessala deixando para trás uma multidão enraivecida.
— Sr. Queise?! Não pode fugir assim!!! — gritavam.
Kelly fechou a porta e Sean a encarou.
— Isso quer dizer que vai me ajudar, não? — pareceu mais uma súplica.
Kelly ficou séria.
— Não tenha dúvidas sobre isso, patrãozinho.
— Posso lhe perguntar algo?
— Sim...
— Se não é mais uma funcionária dessa empresa, como é mesmo o nome?
— Computer Co.!
— Isso... — olhou-a. — Por que me chama desse jeito?
— Para irritá-lo!
— Wow! — Sean achou que foi uma resposta justa. — Quem é você mesmo? — perguntou agora mais solto.
— Eu sou Kelly Garcia, nascida na Catalunha, uma comunidade autônoma da Espanha, geóloga formada, especialista na participação de matérias primas para a construção de transistores e chips à base de quartzo purificado. Sr. Fernando Queise, faleceu a coisa de três anos atrás… — ela o viu só erguer o sobrolho. —, me contratou onze anos atrás, ainda na Computer Co. de Barcelona. Depois vim para o Brasil para ser secretária da secretária de seu pai, e tornei-me sua first quando você com quinze anos, foi chamado para construir os bancos de dados do satélite de observação.
— Spartacus, o escravo que desafiou Roma?
— Sim — ela lhe sorriu avisada que a memória dele funcionava para algumas coisas e totalmente apagada para outras. — Deu esse nome ao satélite porque você... — e parou. — Não vai gostar de saber o porquê Sr. Queise.
— Por que me chamou de Senhor agora? Para me irritar?
Kelly não soube o que responder.
— Porque todos na Computer Co. o chamam assim. E porque era a sua secretária First até você me transformar em sua sócia. E porque acho que vinha fazendo um bom trabalho nestes seis meses que sua morte nos havia sido dada como certa...
— Wow! Por que está nervosa? Acredito que tenha feito um bom trabalho Senhorita... Garcia? É isso, não é?
— Exatamente, Sr. Queise! Sou Kelly Garcia.
— Quantos anos tenho agora, Srta. Garcia?
Ela estranhou a pergunta e o tipo de esquecimento.
— Vinte e seis anos, Sr. Queise.
— Então sou mais novo que você?
— Sim. Catorze anos de diferença.
— Wow! É um bocado de diferença não? — e Sean se lembrou dela, da mulher nua, de cabelos longos, puxando-lhe seus cabelos. — Então não me chame mais de Senhor.
Kelly o encarou.
— Não sei por que não me espanto com sua frieza.
— Do que está falando?
— Falando que não mudou nada.
— Ótimo! Podemos ir embora agora Srta. Garcia? Porque não estou com a mínima paciência de voltar a enfrentar aqueles jornalistas.
Kelly abriu a boca e fechou, e ambos ganharam o estacionamento do aeroporto. Ela apontou para o carro dela e ele entrou sentando-se no banco do passageiro.
— Não quer dirigir?
— Não devo dirigir muito bem se me acidentei não?
Kelly agora achou graça.
— Aonde quer ir?
— Você sempre veste amarelo?
“Sempre?” ela nada comentou.
— Ultimamente... — e ligou o carro. — Por quê?
— Fica linda de amarelo — e olhou para fora.
Kelly sentiu todo seu corpo amá-lo. Nada comentou, porém; não depois dos ‘catorze anos de diferença’.
O trânsito de São Paulo àquela hora da noite, depois de uma longa chuva, estava intransitável. Saíram do aeroporto sem falar com mais ninguém e se dirigiram para o flat onde ele havia morado. O flat já se via à frente e Sean parou para olhar outro grande edifício, de vidro azul, que se erguia à sua vista.
— É seu! — afirmou Kelly, esperando uma reação de Sean que não veio. — Computer Co. House’s.
— Bonito... — disse sem muita emoção. Kelly o olhou de lado e ele se viu completando. — Ah! Muito bonito!
— Quer vê-lo?
— Não! — exclamou. — Queria que pudesse me levar a um lugar.
— Aonde quer ir?
— Ao cemitério! — exclamou com firmeza.
— Por que, patrãozinho?
— Sem perguntas para as quais não tenho respostas, por favor.
— Ok... — Kelly nada mais cogitou e se dirigiram para o cemitério.
Ela até sabia exatamente qual cemitério mostrar. Imaginava que o que Sean queria ver era a sua própria morte. Estacionaram bem distante da entrada e Kelly precisou de permissão para entrar por causa da hora.
O caminho de pedras percorrido foi longo e feito em silêncio, na noite que alagara ruas e fazia seus passos levantarem a água do chão.
— É essa a lápide? — perguntou Sean ao ver Kelly fazê-lo parar num largo corredor.
— É essa a lápide da sua família — respondeu Kelly, abalada com a situação.
Sean respirou fundo e leu:
— “Perda irreparável, dor imensa. Que a luz esteja no seu caminho. E que a paz, sempre desejada, abasteça a sua alma!” — Sean apenas piscou lentamente e mais nada disse. Virou-se ainda em choque e ficou olhando os corredores lotados de granito e metais; e lápides, e anjos, e dores e gritos que ecoaram por todo seu corpo. Ele olhou assustado para ela e ela nada falou. Ele não sabia bem o que ouvia ou se ouvia realmente alguma coisa, mas atingiu o Dura-Sravana, ouvindo as coisas de longe, do outro lado, do lado dos mortos. — Podemos ir?
Caminharam para a saída do cemitério sem trocar uma palavra. Kelly o conhecia, ou pelo menos conhecia o outro Sean, e sabia que quando não queria falar, de nada adiantava insistir. No portão ele olhou para trás, lembrou-se de uma moça loira e bonita, usando coque discreto, perfumada com essências de rosas brancas, morta num caixão.
— Você está bem?
— Quem mais está enterrado aqui?
— Como é que é?
— Uma moça que se matou.
— Sandy Monroe! — ela o viu a encarar sem muita emoção. — Ela se suicidou quando você acusou-a de roubo na noite de seu noivado — falou para machucá-lo, como quem se vinga por não ter sido lembrada e Sean dobrou os joelhos indo ao chão. — Sean?! — gritou Kelly ao vê-lo caído. — Mas que saco Sean. Sabia que não devíamos ter vindo até aqui.
— Estou... Estou bem... — falou tentando se erguer sozinho da calçada. — Desculpe o incomodo.
— “Desculpe o incomodo”? — sentiu que já não era tão íntima como antes.
Sean a olhou de lado confuso com lembranças nada confortáveis.
— Podemos ir embora? — e Sean nada mais falou.
Kelly realmente conhecia aquela frieza, foi buscar o carro o deixando sentado no meio fio, e Sean percebeu que alguns homens usando terno preto os seguiam desde o aeroporto. Kelly estacionou o carro próximo ao portão e ele entrou.
— Aonde agora?
Mas ele inclinou o espelho retrovisor do lugar e mostrou a Kelly.
— Quem são?
Ela olhou no espelho retrovisor.
— Homens de terno preto.
— O que isso significa?
— Você nunca me disse — ela viu Sean escorregar um olhar e partiu. Atravessaram a cidade novamente e voltaram ao flat com a mídia acampada na frente. — Desculpe-me patrãozinho. Não sabia que eles estariam aqui.
— Não me importo Senhorita — ele viu Kelly não gostando do termo ‘Senhorita’ usado. — Eu era casado? — disparou.
Kelly sentiu o coração na boca.
— Não! Ela morreu antes!
Sean não entendeu se aquilo fora uma ironia ou só a resposta à sua pergunta.
Nada comentou.
— Namoradas?
— Não que eu me lembre — se esquivou de falar sobre a jornalista vistosa.
— Quem é a Poliu?
Ela olhou assustada para ele.
— Onde ouviu esse nome?
— De você!
— De mim? Como de mim? O que está fazendo?
— Como é que é?
— Nada! — Kelly recuou.
Havia algo errado com a amnésia dele. Kelly precisava conversar com Oscar Roldman, pedir-lhe orientação já que Mona Foad não lhe atendia.
— Desculpe-me se...
— A Poliu é uma corporação de inteligência que age por debaixo dos panos; guerras, guerrilhas, principalmente por países desestabilizados. E que podem pagar, é claro — disparou.
— Wow! Parece que não a aprova?
— Você também não aprovava. Dizia que ela controlava todo o mundo, outros mundos também — e estacionaram o carro na garagem.
— Como assim ‘outros mundos também’?
— Você acreditava em outros mundos habitáveis, Sr. Queise. Pelo o quê, nunca entendi muito bem. Participava de fóruns, listas de e-mails, discussões na Internet, e todo tipo de encontros ufológicos.
— Parece que também não aprovava isso?
— Não é questão de aprovar ou não, é que o mercado não aprovava esse seu lado scifi.
— Mas a Poliu aprovava...
— Ah! Sim! A Poliu de Mr. Trevellis, não só aprovava como permitia que você fosse a fundo, em suas pesquisas.
Sean se sentiu totalmente confuso com tudo aquilo. Preferiu não prosseguir.
Olhou para os lados.
— E por que a Poliu me odeia?
— Quem disse isso a você? Eu? — ela viu Sean não sabendo se queria responder àquilo. — Na verdade a Poliu teme você tanto quanto o odeia. E eles andaram felizes com seu sumiço, pode acreditar.
— Uma agência de inteligência com agentes que controlam todo o mundo, outros também, me teme porque sou um hacker?
Kelly o encarou.
— Eu não tenho a mínima ideia do que falou ou porque se lembra disso, já que nunca se considerou um hacker, mas o interesse da Poliu está em Spartacus, o satélite de observação que você projetou para o Sr. Oscar Roldman, chefe da Polícia Mundial. E a Poliu, ou mais precisamente Mr. Trevellis, sempre o quiseram.
— Por que o satélite que projetei é tão importante? O que eu fiz de diferente nele?
Kelly voltou a rir e parou na seriedade dele.
— Não posso nem se quer imaginar o que fez com ele, mas o grande Mr. Trevellis sempre quis você como seu espião psíquico, pela sua genética, pela sua inteligência, pelo seu domínio nos computadores e principalmente por seus...
— Por meus dons de siddhi.
— Ou o que isso signifique — e Kelly saiu do carro.
Sean também saiu do carro e correu atrás dela que andava a passos largos até o elevador.
— Quem é Oscar Roldman? — Sean a interpelou.
Agora Kelly teve medo.
— O homem no comando da Polícia Mundial.
— Perguntei quem é Oscar Roldman que me recebeu no aeroporto como se fosse meu pai, Srta. Garcia. Porque sei que ele e minha mãe brincavam comigo em parques de diversão enquanto eu era criança.
Kelly arregalou tanto os olhos que olhou um lado e outro com medo de serem ouvidos.
— Vamos conversar sobre isso amanhã, isso e outras coisas mais. Tudo depois de uma noite de descanso merecido. Porque nós dois estamos cansados Sr. Queise.
E o elevador os levou até a portaria do flat.
— Eu sofri com a morte dela não foi? — segurou o braço dela outra vez.
— De todas as maneiras... — e Kelly se livrou das mãos dele, porque ela sabia que falavam de Sandy Monroe outra vez, e que suas memórias nas quais percebeu, não constava, estavam voltando.
Kelly Garcia tomou seu lugar o mais fria que conseguiu e explicou ao gerente que o quarto retornaria a Sean Queise, que voltara.
Sean a esperava no saguão do flat por detrás de cortinas cerradas por causa dos jornalistas.
“Sean... Sean... El Sean...”, ele ouviu lhe chamarem.
Olhou em volta, mas nada viu. Os quadros da parede lhe chamaram a atenção, cenas bucólicas de um artista em decadência; flores frescas nos vasos, arranjos grandes e pequenos, tapetes orientais vindos de terras distantes, e olhos de pássaro a lhe encarar. Sean teve um sobressalto e um odor ocre invadiu o ar. Sean se virou e El Zarih o observava sentado no sofá do hall de entrada do flat. Olhou para um lado e outro e já não havia El Zarih, não havia sofá, não havia hall. A cena toda brotava do chão, subia até tomar conta do hall do flat e lá uma areia quente que queimava seus pés.
Ele ergueu os olhos e havia um horizonte ali, um quente com homens de pele de ébano, com estranhos crânios alongados levantando pedras que flutuavam, e El Zarih estava com ele, não no sofá, mas com ele, naquele deserto.
“Precisar”; Sean escutou ele falar.
— O que eu preciso? — ele perguntou.
“Retornar precisar”, El Zarih voltou a falar.
— Retornar aonde? — Sean falou confuso.
Em volta uma grande construção de pedra em formato de leoa, com cabeça de mulher, estava sendo colorida. Homens negros e dourados, muitos deles, trabalhavam nela. Martelavam a quase ensurdecer as areias escaldantes, construindo uma esfinge de mulher, de uma faraó-leoa.
“Retornar”; falava agora um homem com cabeça de pássaro de bico fino que escrevia ao lado da mulher leoa, com cabeça de pássaro que também falava. E em nada eles pareciam aquela figura masculina leonina e desfocada do asilo Faãn que o atacara.
Mas Sean não conseguiu escutar mais nada. Fechou os olhos e o calor do deserto, a água quente nos seus pés que afundavam na areia molhada, tudo desmanchado quando Kelly atravessou por entre ela, fazendo os pássaros desaparecerem de vez e Sean acordar.
— O que foi? — estranhou Kelly ao vê-lo de olhos arregalados.
— Ãh? — Sean olhou para o sofá e El Zarih realmente não estava lá. — Eu... E os jornalistas?
— Não se preocupe! Eu já dei alguns telefonemas e o Sr. Oscar Roldman já cuidou de sua segurança lá fora.
— Você havia me chamado agora a pouco?
— Ainda ouvindo vozes?
— “Ainda”? — nada mais falou. — Me dê às chaves, por favor — esticou a mão.
— Achei que me convidaria para ficar.
— Costumava fazer isso, Srta. Garcia?
— Nunca! Nem eu nem outras mulheres.
— Então até amanhã! — e estendeu-lhe a mão após colocar as chaves no bolso.
Kelly se virou e foi embora sem dar-lhe a mão. Sean ficou com ela esticada até que recuou. Queria e não queria. Porque queria tê-la convidado, subido com ela ao quarto, invadido seu corpo ao gosto de um tinto Cabernet Sauvignon gelado. Ou um Canaiolo, ou um Carménère, ou um Cinsaut, ou um Dolcetto, ou até um Gamay, mas só olhou em volta atordoado com tudo aquilo e subiu.
O corredor estava vazio e Sean procurou a chave que pareciam não estar no bolso. Virou-se e um homem enorme, lotado por uma gosma verde caiu em seus braços atravessando-lhe como uma holografia. Sean o viu cair no chão sem fazer barulho algum e lá sumir. Passou a mão em si mesmo e viu que outra vez via o que não via.
Chegou ao número indicado e abriu a porta, se projetando para dentro do quarto.
— Olá Sean yá habibi... — uma mulher ruiva, dentro do seu quarto, sorria.
— Quem... — Sean olhava para os lados. — Você existe?
— Existo? — Tahira achou graça da pergunta sorrindo escandalosamente e Sean não sabia se ela era mais uma das visões. — Sean yá habibi! — ela sorria insinuante.
Sean abriu e fechou os olhos repetidamente para a ruiva Tahira vestindo uma ‘cegante’ calça de tafetá verde e justa. Completava a indumentária com uma blusa toda desfiada que a ele, parecia ter sido rasgada.
— Por que... Por que me chamou assim? — Sean recuperou a voz.
— Porque você é ‘yá habibi’, meu amor — e Tahira tentou tocá-lo.
— Não me toque! — falou assustado. — Eu não te conheço! — e Sean não a conhecia mesmo.
— Não se lembra de mim, Sean yá habibi?
— Devia?
— Ora vamos... — e ela se divertia com o desespero dele. — Por que todo esse medo?
— “Medo”? Não... Não... — olhava para os lados tocando tudo, tentando saber se atingira algum siddhi diferente.
— Vamos Sean yá habibi... Você me conhece...
— Não... Não... Eu não te conheço.
— Conhece!
— Não... Não conheço ninguém. Nem sei se a estou vendo.
— Me vendo? — e deu uma risada esganiçada. — Do que é que você está falando? Estamos noivos! — exclamou sorridente.
Sean paralisou sua fuga.
— “Noivos?” — perguntou sem nada compreender. — Você está morta?
— Morta? — abriu o primeiro botão da blusa que mal abotoada estava. — Pareço morta Sean yá habibi?
Sean não sabia dizer, acabara de ver mortos, egípcios e uma esfinge mulher sendo construída sob a supervisão de homens e mulheres negros e dourados, com cara de pássaro.
— Acho melhor, seja quem for, sair.
— Não se lembra?
— Lembro?
— Em Abu Simbel?
— “Em Abu Simbel”?
— Jura? Vai ficar repetindo tudo o que eu falo Sean yá habibi?
— O quê... O que sabe sobre Abu Simbel? — piscava descontrolado.
— Vai me dizer que se esqueceu daquela noite na sacada?
— “Na sacada”?
— Eu disse para você que fazia frio.
— Fazia frio...
— Mas você me desejava mesmo assim, não é? — falava Tahira maliciosa, se insinuando para cima dele, o arrastando para a cama.
Sean se descuidou e caiu.
— Por favor, Senhorita... — e ela se deitou sobre ele.
— Que é isso Sean yá habibi? Não se lembra do sexo gostoso? — perguntou, mordendo a orelha dele.
— Está me sufocando Senhorita... — e Tahira abriu a camisa dele mordendo os mamilos dele. — Ahhh... Enlouqueceu?
— Enlouqueci!
— Pare com isso!
— Responda a seus instintos.
— Eles não vieram.
— O quê?
— Ficaram em Abu Simbel tomando frio na sacada.
— Quê? — e Tahira agarrou o pescoço de Sean, que tentou se virar e sair da cama quando ela agora alcançou um pedaço do pescoço dele com dentes que arrancaram sangue.
— Ahhh! — exclamou com força. — Você decididamente é louca!
— Por você! — respondeu decidida mesmo.
— Como entrou aqui? — olhava desesperado para a porta.
— Jura? Eu sempre vinha ao seu flat; não se lembra? — se insinuou abrindo o resto dos botões da blusa desfiada que usava, e Sean viu que os belos seios realmente mexiam com os tais instintos, que ficaram em Abu Simbel tomando frio da sacada.
— Kelly disse que ninguém vinha aqui...
— “Kelly”? Ah! Logo vi!
— O que quer dizer com isso?
— Que Kelly sempre teve ciúme do nosso amor.
— Teve? — Sean a mudou de repente de posição na cama e de humor virando-a sob ele e sorrindo-lhe, tirou-lhe o sutiã.
Tahira fechou e abriu os olhos achando que o havia enfim atingido. Sean sorriu cínico outra vez e tirou-lhe a horrorosa e cegante calça de tafetá verde e justa. Tahira outra vez fechou e abriu os olhos deixando toda sua libido se esparramar por ela. Sean sorriu mais uma vez e tirou-lhe a lingerie a deixando nua. Tahira fechou os olhos e se viu deitada no carpete do corredor.
— Ahhh!!! — ergueu-se em choque e nua.
— Alô? É da cozinha? — disse Sean ao telefone, dentro do quarto do flat.
— Sean?! — batia na porta ferozmente. — Sean?! Abra essa porta?! — mas Sean não respondia.
— Podem subir imediatamente uma garrafa de Chardonnay? — questionava ele calmamente.
— Sean?! — batia na porta. — Sean?! Sean?! — batia mais forte na porta. — Sean?! Sean?! Sean?! — e ainda batia quando a porta do elevador apitou na abertura. — Ahhh!!! — Tahira se assustou ao virar e dar de cara com o garçom e uma garrafa.
— Ahhh!!! — o garçom se assustou ao virar e dar de cara com a mulher escandalosa em uma cegante calça de tafetá verde e justa gritando.
Ela se olhou e estava vestida novamente. Engoliu aquilo sem conseguir respirar e se virou indo embora furiosa, no mesmo elevador em que o garçom chegara.
— Idiota... — soou de dentro do quarto do flat.
18
Flat de Sean Queise; São Paulo, capital.
23° 33’ 31” S e 46° 39’ 44” W.
30/05; 09h00min.
A bela Kelly Garcia que adentrou o restaurante do flat estava mais bela que nunca, carregando uma sacola e uma bolsa vermelha Channel que combinava com a sandália Chloé, e vestindo seu melhor vestido envelope amarelo ouro, que marcava suas curvas, seus seios, suas pernas, e toda a atenção dele que paralisou ao vê-la andando até ele, que estava em pé, esperando ela sentar-se como um cavalheiro faria.
Já Kelly percebeu que ele ainda mantinha a barba, mas que ela estava aparada, o deixando mais velho, mais magro e mais lindo.
— Gostei do novo visual.
Ele empurrou a cadeira dela e sentou-se.
— Não era esse o meu visual Srta. Garcia?
— Raramente o vi usando barba. Nem nunca o vi tão magro.
— Najma disse que eu não me alimentei direito durante o coma.
— “Najma” a médica?
Sean percebeu algo.
— Sim, a Dra. Najma Faãn.
— Entendo... — Kelly olhou para os lados tentando manter aquela frieza.
— Por que está fazendo isso?
— Isso o que? — ela encarou a xícara vazia.
— A distância que mantém de mim, Srta. Garcia — ele a viu erguer os olhos e se levantou nervoso indo até a mesa se servir.
Kelly não moveu um único fio do cabelo negro e brilhante. Sean voltou logo após com uma grande xícara de café para cada um.
— Ainda gosta de xicronas? — olhou-o.
— Há coisas que são intrínsecas ao ser, não?
— E o que mais está dentro de você patrãozinho? No seu interior? Alguma coisa ou alguém?
E Sean a amou. E a amou como sabia, jamais amaria outra mulher.
— Acho que algo, um sentimento característico dos seres humanos.
— Amor?
— Medo!
Kelly brilhou os olhos.
— Entendo...
— Eu não. Não entendo nada, ninguém, coisa alguma. Pouco me lembro, recordo, sinto. Sou um vazio existencial, Srta. Garcia. Um vazio que tem medo do que o preenchia, que teme a verdade da qual se escondeu anos a fio, e que não sabe o que é amor porque uma tristeza muito grande se encravou em mim, que não se lembra de nada.
Foi a vez de Kelly amá-lo, e ele leu aquilo. Depois o silêncio, o limbo de sentimentos.
— O que pretende fazer?
— Não sei. Pensei que você me ajudaria com as lacunas.
— Trabalho, Sr. Queise, é o que posso preencher, é o que me permitiu esses anos a fio em que se escondeu.
Sean nada falou, não sobre aquilo. Ambos se levantaram e se serviram. E ambos estavam felizes de estarem ali apesar da distância.
— Por que aquela mulher disse que a minha empresa matou três arqueólogos?
E Kelly contou tudo o que sabia.
— Como vê, não posso elucidar muita coisa.
— Thomas Paine tinha razão, não Srta. Kelly? O fato de continuarmos a pensar que uma determinada coisa não é errada dá-nos uma aparência superficial de que estarmos certos.
— E estamos?
— Não sei. Nem onde vou achar respostas.
— Com Mona Foad.
— Quem é ela?
— Sua mentora; ou foi.
— Ela é a egípcia que tem almofadas de veludo vermelho ou é a egípcia que lê Enuma Elish?
Kelly caiu em sonora risada.
— Você é uma figura patrãozinho. Porque não tenho a mínima ideia de quem são essas mulheres. Mas posso dizer que você já havia me falado sobre o Enuma Elish, as tabulas sumérias que contam que os Anunnakis, ‘os que vieram do céu à Terra’, nos criaram; os alienígenas nos criaram.
“Você está realmente dormindo e não se levanta? Os deuses, suas criaturas, estão reclamando”, a voz da mulher que lia Enuma soou ali.
— Ela é irmã de Mona… — soou da boca dele.
— Quem? Samira?
— É esse seu nome?
— Não sei o que está acontecendo com você Sean...
— Não está acontecendo nada se...
E a mão dela no ar o parou.
— Há um médico em Campinas, interior do estado. Ele é um psiquiatra, e nós o conhecíamos como um especialista em projeciologia.
— “Nós o conhecíamos”? Ele era um namorado seu?
Ela sorriu maravilhosamente.
— Não sou essa mulher namoradeira, patrãozinho.
E ele a amou outra vez.
— O que é projeciologia?
— Projeciologia ou viagem astral era o que você fazia atrás de respostas. Muitas sobre a morte de Sandy Monroe, que se suicidou na noite do seu noivado porque você a culpou.
— Você parece se satisfazer em contar-me sobre isso.
— Eu a odiava, Sean. Porque ela sabia que eu amava você, e que eu o respeitava e o amava a ponto de me anular por você, porque você era meu patrão, porque você era mais jovem, porque você era mais rico. Mas ela passou por cima de tudo isso, por cima de mim, e me roubou a chance de... — e parou ao ver um Sean de olhos azuis e arregalados. — Perdão! Eu só ia dizer para você procurar o Dr. Juca Mendes.
— Percebi...
— E também vai perceber que apesar de ser considerada uma pseudociência, você acreditava que ele era capaz de fazer pessoas retornar ao ventre materno e até às outras vidas, a vidas passadas.
“Wow!”, foi só o que Sean pensou.
— Você outra vez demonstra que duvidava disso.
— Não sei até hoje no que acredito ou duvido, mas vi você fazendo coisas que jamais imaginei existirem, como tocar em objetos e saber o que acontecia ali. Porque você conseguiu fotografar Nabta Playa há dez mil anos atrás, usando seus dons paranormais que controlam máquinas, que controlam satélites, que controlam Spartacus.
— O que é Nabta Playa? — foi só o que perguntou.
— Um sítio arqueológico que a Poliu acreditava ter pertencido a uma dinastia de mulheres faraós e deuses alienígenas.
— Wow! Éramos deuses alienígenas?
— “Éramos”? Quem ‘éramos’ Sean?
— Eu e aquelas mulheres da parede?
— Que parede Sean? A que você viu na viagem astral ou a que você encontrou naquela pasta?
— Pasta?
— Uma pasta que... — e Kelly parou. — Você havia me dito que Afrânio Strauss, marido de Samira Foad Strauss, irmã de Mona Foad Almeida, era um arqueólogo que havia descoberto uma pirâmide, e que fez croquis de homens Anunnakis das paredes dela, e que isso foi parar numa pasta cor de vinho. Que havia também mulheres de pele ébano e dourado, ajoelhadas, rezando para uma entidade que parecia uma leoa mascarada, e tudo isso na mesma pasta cor de vinho, que falava de um agente da Poliu de nome Joh Miller, que foi dado como arquivo apagado.
— E o que é um ‘arquivo apagado’?
— Você me disse que era um arquivo morto, retirado de serviço e apagado dos anais da Poliu, provável assassinado.
— Wow!
— E você confirmou tudo aquilo, porque recebeu de Samira onze anos depois de ter recebido o mesmo pacote.
— Por que eu recebi onze anos depois o mesmo pacote?
— Não recebeu. Seu pai Fernando não permitiu que ele fosse entregue. Então onze anos depois ele voltou a ser enviado.
— Por que onze anos?
— Não sei. Nem você pelo que me disse.
— O que havia no pacote?
— Um papiro em branco que desenhava para você.
— O papiro... Ele escreveu...
— Escreveu?
— E o robô viu.
— Que robô?
— Posso lhe perguntar algo Srta. Garcia?
— Sim.
— Se você recebesse um aviso em um papiro para voltar ao passado, sabendo que suas atitudes mudariam completamente o destino do mundo, sem que pudesse voltar ao presente, embarcaria ou não?
— Se fosse para trazê-lo de volta antes desses seis meses de sofrimento, sim.
E Sean sentiu algo, alguma coisa.
— Eu...
— E se fosse para lhe conhecê-lo antes de Sandy, sim.
— Kelly...
— Não diga nada Sean.
— Nem sei mesmo o que ia dizer Senhorita... — e se levantou para pegar mais café na xicrona.
Porque voltou a sentir algo, alguma coisa. E foi tudo regado a amor.
— Você foi lá, não foi? — Kelly questionou-o na volta.
— Aonde?
— Atrás dos mesmos desenhos feitos por Afrânio nas escavações de Nabta Playa; uma Nabta Playa de onze anos atrás.
— Não sei o que dizer... E não encontrei nada na Internet que se parecesse com... — e olhou para os lados. — Afrânio é um dos arqueólogos que matei?
— A Computer Co. não teve culpa, já disse. O robô falhou e não mostrou que a estrutura da parede iria desabar.
— Mas o robô não falhou.
— Não? Do que está falando patrãozinho?
— Estou falando que a parede não desabou, que eles não foram soterrados, e que Clarice abriu-a usando ‘Abracadabra!’.
— Usando ‘abra’ o que?
— Não sei ao certo, mas depois Samira e Afrânio saíram vivos de lá para o Cairo, para seu laboratório no bairro de Corniche el-Nil, com folhas de uma planta que provocava CHE.
— Quê? — Kelly arregalou tantos os olhos que não sentiu mais nem os lábios. — Quanta sandice.
— Como assim sandice? Você não sabia?
— Não. E acho que você também não sabia ou teria me contado.
— E eu te contava tudo?
Agora Kelly não gostou por onde a conversa se encaminhava.
— Não, Sr. Queise. Você não me contava nada, mas você sabia tudo sobre mim porque entrava em meus pensamentos o tempo todo.
E Sean entrou no pensamento dela, no de Oscar Roldman no apartamento dela, e tudo aquilo enquanto ela usava um robe de seda amarelo, mentindo a ele que não conversava com Oscar Roldman.
— Desculpe-me... — recuou enciumado. — Eu nunca quis magoá-la.
E Kelly não soube o que falar. Porque magoá-la, ele nunca quis.
— Preciso lhe avisar sobre outra coisa.
— Outra coisa?
— Tahira... — e ela viu Sean arregalar os olhos. — Tahira Bint Mohamed; conhece? Ela lhe procurou?
— Você também pegou informações na portaria? Porque a faxineira disse que a mulher ruiva e escandalosa entrava e saía do meu flat.
— Ela esteve aqui outra vez?! — se alterou.
— Ontem! Depois que você saiu.
— Nossa patrãozinho! Só esperou eu ir embora?
— Não fiz nada disso! — se enervou. — Ela estava no meu quarto, dizendo que estava acostumada a ir lá, e que você mentiu para mim que eu não levava ninguém lá, porque você tinha ciúme do ‘nosso amor’.
E Kelly deu uma gargalhada para lá de tensa:
— E eu tenho?
— Tem o que? Eu não conheço aquela louca.
Kelly só esperou alguns segundos para se recuperar e tirou de dentro da sacola, a valise que pertencia a ele.
— Isso é seu! Dentro da valise está seu notebook do qual você quase ou nunca se separava, e não se separava porque é com ele que você acessa os bancos de dados, que instalou em Spartacus, e do qual faz pontes para invasões; invasões à Poliu.
— Wow!
— Mais que isso. Pode confiar no que eu digo.
— E por que essa valise está com você se eu não me separava dela?
— Ela não estava comigo, você deixou para Tahira em Abu Simbel, no banco de trás do táxi em que fez teletransporte de si mesmo, deixando o taxista avisado que ela ia lá buscar sua valise.
Sean só arregalou os olhos antes de dizer de novo.
— Wow! — ele olhou Kelly lhe olhando furiosa. — Wow! — voltou a repetir. — E por que você está com a valise? Eu mandei aquela idiota da Tahira entregar a você antes de sumir?
“Idiota?”, soou por Kelly.
— Não! Você estava em Abu Simbel, antes da explosão, quando deixou a valise com ela. Tahira voltou ao Brasil e levou seis meses para devolvê-la.
— E por que ela esperou tanto para entregar as fotos?
— Que fotos?
— As que deixei na valise — apontou.
— Fotos com homens e mulheres construindo a esfinge com pedras que flutuavam? Estavam aqui no flat.
— Aqui no flat? Deus... O que eu fiz de errado?
— O que fez de errado? Não sei responder a todas essas perguntas, patrãozinho. Mas coincidentemente você estava saindo do coma no tal asilo de ‘Najma’ quando Tahira me entregou.
“Wow!”, agora ele só pensou.
— Acha que a Srta. Tahira sabia que eu estava vivo?
— Não sei patrãozinho, mas ela sabia sobre a morte de Miro Capazze.
— Ah! Aquele Miro...
— Sabe quem é ele?
— Não... Sim... O embaixador Ângelo Antônio contou-me sobre o advogado que pegou fogo. E que meu nome havia sido apagado do registro do hotel, um dia depois do acontecido pela Poliu. E que também o gerente havia dito ao Sr. Roldman, que me parece, investigou, que eu aluguei um helicóptero e saí do Cairo indo para Abu Simbel, onde aluguei um carro Jeep anos 70 e sofri um acidente.
— E foi isso o que aconteceu?
— Não sei! Não me lembro! Só recordo do Dr. Mustafá ter um irmão gêmeo policial... — e parou tentando entender o que lembrava. —, e que escondeu as plantas que acendiam mãos...
— Acendiam o que?
— Mãos...
Kelly girou os olhos não entendendo toda aquela sandice.
— Sean... Eu queria pedir...
— Por favor, Kelly. Não queira...
Ela o olhou furiosa, ele havia invadido sua privacidade outra vez. A cadeira fez um som agudo quando ela a arrastou e se levantou indo embora. Sean percebeu que ela já havia feito aquilo, que foi pelo mesmo motivo que ele pedira para ela não querer, não pedir. Porque ele não queria falar com sua mãe, não queria voltar a mansão dos Queise onde Sandy Monroe se suicidara, e não queria enfrentar o homem de bigode grisalho que vagava lá também, ambos mortos.
E tudo aquilo sem lembrar-se de quem era.
19
Unicamp, Campinas, interior de São Paulo; Brasil.
22° 49’ 3” S e 47° 4’ 11” W.
31/05; 09h00min.
A Unicamp, Universidade Estadual de Campinas, interior do Estado de São Paulo era mundialmente conhecida por suas pesquisas, em qualquer área que atuasse. Não seria diferente na área da psiquiatria.
Sean se levantara cedo e partira para a Unicamp atrás de um desses profissionais depois de uma tarde e uma noite de pesquisas no computador do flat; e foi no computador do flat porque não conseguiu abrir a tal valise com seu notebook dentro.
— Bom dia! — exclamou Sean para o professor Dr. Juca Mendes, catedrático psicanalista, especialista em projeciologia.
— Bom dia, Sean. Folgo em saber que está vivo.
— Obrigado Juca. Posso chamá-lo assim?
— Seria uma honra. Sua sócia, a morena Kelly, me ligou ontem à noite e me disse que viria — apontou um divã. — Ela lhe contou?
— Que nos conhecemos de alguns congressos de ufologia? — Sean se acomodou no divã de veludo verde.
— Sim. Sempre que podíamos terminávamos nossos congressos com uma rodada de vinho. Isso quando os jornalistas saíam da sua ‘cola’, como dizem — riu. — Achei até que a morena Kelly viesse junta — olhou esperançoso para a porta.
— Desculpe-me, por isso, Juca. Não quis tirar a ‘morena Kelly’ de seus afazeres — riram ambos.
Sean um pouco mais seco quanto a maneira que sua sócia era chamada.
— Que pena...
— Não é? Mas deixei um recado no flat dizendo que viria sozinho — Sean fez uma careta. — Creio que a Srta. Garcia entenderá.
Juca percebeu a maneira como a sócia foi tratada. Não era a mesma maneira de anos atrás.
— Para o que precisa de mim, Sr. Queise?
— Por favor, volte a me chamar de Sean — ele viu o Dr. Juca concordar. —, porque a Srta. Garcia me disse que é um dos maiores especialistas no assunto de projeção astral, e já devo ter lido muito ao seu respeito, tenho certeza. Foi gentil da parte dela me enviar aqui.
— “Gentil”? A morena Kelly sempre foi mais que gentil com você, Sean.
Sean assustou-se ao ouvir aquilo. Não era bem o que buscava.
— Não posso responder a isso, doutor. Nem responder se me lembro de já ter tido tais visões no passado, digo, antes da amnésia, porque nem conheço todos os detalhes do que vejo, mas tem coisas que vem me intrigando.
— O que exatamente lhe intriga?
— Desde que estou com amnésia, nada lembro sobre mim, sobre meu passado, ou seja, meu passado mais próximo, diria. Até do presente tenho certa dificuldade em relembrar. Mas de um passado que não me pertence eu vejo; lembro-me dele, entende?
— Um passado que não lhe pertence?
— Sim! Às vezes vejo essas cenas de um Egito muito distante... Porque eu passei a noite toda navegando por alguns sites na Internet, e o ‘meu’ Egito em nada se parece com o Egito das enciclopédias.
— Continue... — Juca ergueu o sobrolho.
— Eu vi uma grande pirâmide doutor. Ela era dourada e pontiaguda, com colunas na frente formando um largo caminho. À sua frente, havia uma esfinge sendo construída. Uma esfinge com a cabeça de uma faraó-leoa, a mesma que adornava as colunas em volta; muitas colunas adornadas, com hieróglifos mostrando o dia a dia deles, de oferendas e sacrifícios de gado. Mas não há fotos de colunas nas pirâmides de Gizé, no Egito, em imagens do Google.
— Não! Não há colunas em Gizé, no Egito. Só as três grandes pirâmides Quéops, Quéfren, e Miquerinos, e a Esfinge.
— E mesmo no Sudão, as pirâmides em nada se pareciam com aquela. E também havia água no entorno, muita água na construção do corpo da Esfinge de pedras pesadas e coloridas, e que flutuavam até a construção. Mas não há fotos de água na Esfinge nem nenhuma esfinge desse tipo no Google.
— Interessante! Você pode estar vendo uma vida passada.
— Não sei o que dizer. Mas uma vez, um homem com cabeça de pássaro, escreveu e falou ao meu ouvido.
— O que o homem com cabeça de pássaro falou?
— Não sei. É uma língua estranha.
— ‘Estranha’ quanto?
— Não sei. E há também uma voz de mulher, acho que é uma; e ela aparece para mim vestida de egípcia, com uma máscara mortuária colorida adornada de dourado. E ela me chama ‘Sean... Sean... El Sean...’ em meio a pessoas que parecem egípcios e trabalham, e suam muito nas cabeças alongadas... Yemin ou Shemâl? Direita ou esquerda? — e Sean parou para olhá-lo. — Acha que estou perdido, Juca?
— Talvez um pouco.
— Yemken shwayya. Talvez um pouco.
— Interessante você lembrar que fala árabe, lembrar que a construção com corpo de leoa se chama Esfinge, mas não localizar a língua que o homem com cabeça de pássaro lhe fala.
— Mas eu o entendo. Entendo o que ele fala... Só não consigo saber o que é. Traduzir, entende? Como se outro Sean Queise falasse àquela língua, que esse Sean Queise — tocou-se. —, não entende.
Dr. Juca o olhava com interesse.
— Isso é realmente diferente de tudo que conversávamos Sean. Porque eu realmente lhe chamava assim — sorriu. —, porque você nunca levantou a questão de que já fora alienígena em outras vidas.
Sean não entendeu muito bem, mas aquela informação não o assustou como deveria o ter assustado.
Prosseguiu:
— Acho que todos nós já tivemos a oportunidade de viver em outros mundos Juca.
— É verdade! É verdade! — voltou a sorrir. — Continue...
— Há outras cenas, cenas de morte próxima, de pessoas que morrem com buracos pelo corpo, saindo luzes, e um líquido verde feito o que Jablah colocavam nas pessoas que queriam morrer... — e Sean parou.
— “Líquido verde”?
— Todas as noites, entre choros e lamurias, e gente que sumia...
— Você está bem Sean?
— Não... Nem Sandy no lago, que sofre pelo suicídio, pela coragem de ter se matado e pela covardia de ter me deixado sofrer — e chorou.
Juca ficou olhando Sean chorar.
— Já havíamos conversado sobre suas viagens astrais Sean, sobre sua eterna ida ao éter atrás dela, de sua ex-noiva Sandy Monroe, que sofre.
— Por que não consigo esquecê-la nem com amnésia?
— Porque Sandy de alguma forma fez mais que magoá-lo Sean. Ela roubou sua juventude, seu amor, o amor de Kelly por você.
Sean olhou-o assustado.
— E meu pai? Por que ele sofre?
— Seu pai foi assassinado Sean. Segundo uma vez me disse, lhe defendendo de alguém que não queria que você nascesse. E que você interferiu no passado dele para que ele não nascesse. Mas que isso não impediu a morte de seu pai.
— Wow! — foi só o que Sean conseguiu falar.
E aquilo sim foi uma tremenda informação.
— Conversávamos sobre isso?
— Muitas vezes — sorriu amigo.
— Há um homem, El Zarih, que penetra minha mente.
Dr. Juca agora teve um sobressalto.
— Está querendo dizer que, como a gíria popular diz, que esse El Zarih pode ‘ler’ os seus pensamentos?
— Exato!
— Já ouvi falar em casos desse tipo. Já tive até alguns pacientes que se diziam ‘iluminados’, mas para a ciência, nada disso é concreto ou provado. Algumas entidades dizem que os iniciados têm esse dom.
— Siddhas!
— Isso! Siddhas com poderes siddhis que desafiam a física.
— E eu posso!
— Pode?
— Desafiá-la!
O Dr. Juca respirou profundamente antes de falar.
— Você faz... Você faz... — Juca buscou palavras para completar aquilo. — Então o que diziam nas listas é verdade?
— Não sei o que essas listas diziam, nem se eu dizia alguma coisa nelas, mas sou um siddha, Juca.
— Meu Deus do céu! — e o olhou com interesse dobrado. — Por isso as viagens... Meu Deus do céu... — e se arrumou na cadeira. — A viagem astral para o esotérico, projeção astral para o teosofista, experiência fora do corpo para o parapsicólogo, desprendimento espiritual para o espírita, projeção da consciência na projeciologia; é sabido que isso ocorre desde a mais remota antiguidade e alguns amigos nossos, ufologistas — e o Dr. Juca parou. —, se é que se lembra de algo Sean.
— Lembro-me?
— Dizem que o dom de sair do corpo é uma técnica alienígena.
— Aprendi com algum alienígena?
— Não acredito nessa hipótese — Juca o olhou. — Provavelmente já devia fazer isso com frequência, quero dizer se projetar. Você nunca comentou isso nas reuniões em que participava, e só alguns colisteiros faziam uma fofoca aqui outra ali... Então de certa forma, quando esse homem penetrou, como disse na sua mente, ele fez aflorar essa técnica perdida na sua amnésia — e parou na duvida se devia falar algo. — Já perguntou isso a alguém?
— Não me lembro de ninguém a quem possa perguntar, nem à minha família. A quem vou perguntar uma coisa dessas? Para dizerem que a explosão afetou a minha cabeça? Dizem até que eu havia me relacionado com alienígenas — falou cínico.
— E você se relacionou? — olhou ressabiado.
— Não me lembro — Sean riu.
— Posso lhe perguntar algo? Foi Kelly quem lhe deu meu endereço?
— Não! As coordenadas de seu consultório surgiram na minha cabeça. Porque eu olho um lado e coordenadas se desenham para mim. E também eu vejo uma coordenada e sei a qual lugar se refere...
E Juca o viu fazendo algo como lê-lo.
— O que está fazendo Sean?
— Sua irmã Aurora tem câncer.
Juca voltou a se arrumar na poltrona.
— Ela não me contou.
— Sinto! Mas ela não vai lhe contar.
Juca engoliu a seco sabendo que não ia gostar do que ia ouvir.
— Continue...
— Você é um homem só. Por isso não permitiu que Aurora saísse de sua vida, por isso nunca permitiu que ela tivesse uma — ele viu Juca incomodado. — Por isso ela nunca pôde tomar outro rumo, nunca se casou com Gyrimias Leferi.
— Isso só não é da sua conta Sean.
— Gyrimias é meu cientista não?
— Já disse que não é da sua conta.
— Parece que passou a ser da minha conta quando a Srta. Garcia me acompanhava aos congressos de ufologia e você a convencia de desistir de mim para ficar com você, dormir com você, mesmo nunca deixando Aurora dormir com outro.
— Como se atreve... — Juca se ergueu furioso.
— A que? A saber, que você fazia relatórios a Wlaster sobre Gyrimias e meus projetos? Que você usava Aurora sem Trevellis saber? Ou porque Aurora era uma agente da Poliu que contava coisas a meu pai Fernando, a você, e a Wlaster, que se acha a ‘última bolacha do pacote’?
Agora Juca sentiu medo dele.
— Como... Como sabe sobre... Você nunca...
— Quem é esse Wlaster que se acha o homem mais lindo do planeta? — foi só o que quis saber.
— Alguém quem você não ia querer conhecer Sean. Alguém quem você devia manter a distância, que eu devia ter mantido, se não tivesse sido pego por Wlaster Helge Doover.
— Pego em que?
— Lhe ajudando.
Sean percebeu que de alguma forma, em algo, ele era seu amigo.
— Então me ajude outra vez, Juca. Ajude-me a lembrar-me por que esse Wlaster está no meu pé, me filmando durante seis meses na frente do asilo Faãn, sem contar a minha família que eu estava vivo, só porque não quer que eu conte o que descobri em Nabta Playa.
— “Nabta Playa”? — Juca ergueu-se da poltrona. — Fala daquele sítio onde os arqueólogos da Poliu morreram?
— Falei sobre isso?
— Nos congressos. Sobre Nabta Playa e sua dinastia alienígena.
— Deus... — Sean arregalou os olhos azuis. — Foi isso o que fui fazer lá?
— Você nunca me disse que ia lá. Nem sabia que você havia ido.
— Acho que fiz mais que ir, Juca, já que não voltei ‘vivo’ de lá.
— Wlaster queria o que?
— Não sei. Não sei. Droga! Não consigo me lembrar. Mas sei que há outro agente envolvido.
— Joh Miller.
— Isso. O arquivo morto. Falei sobre ele?
— Falou não, você o venerava.
— Como é que é?
— Joh Miller era amigo de Mona Foad e os espiões psíquicos, uma experiência da Poliu, na qual você se infiltrou.
— Me infiltrei? Então Mona Foad, a egípcia das almofadas de veludo vermelho é uma espiã psíquica?
— Uma espiã não, foi ela quem os criou, os ensinou técnicas milenares que a família dela possuía, ensinadas desde épocas remotas no Egito, e antes na Atlântida e provável antes na Lemúria.
— Por isso a Srta. Garcia não gosta dela?
— Kelly lhe ama.
— Não quero voltar a falar sobre isso! — se enervou.
— Ok! Então vamos falar sobre Joh Miller, agente da Poliu que começou a ter uma vida dupla quando lançou na Internet uma lista de ufologia, sobre uma dinastia alienígena que chegou ao planeta Terra. Os espiões psíquicos de Mona, primeiro fizeram viagens astrais até energias gravitantes desses alienígenas, e depois conseguiram entrar em contato com alguns deles ainda vivos, vivendo entre nós, alguns dentro de nós.
— Dentro de nós?
— Através de uma força paranormal que nunca conseguimos descobrir. Nem eu, nem você, acredito.
— O que são essas energias gravitantes que meu pai tanto temia?
— Seu pai Fernando ou seu pai Oscar?
— Deus... — ele só escorregou o olhar para o lado e Juca percebeu que fora inconveniente.
— Desculpe-me, Sean...
— Prossiga!
Juca respirou profundamente. Tudo aquilo ao redor deles era pura tensão.
— Energias gravitantes são rastros energéticos existentes em torno de objetos ou restos de objetos, e até mesmo em torno de consciências intrafísicas ou extrafísicas como espíritos desencarnados ou alienígenas, e que formam um campo magnético que pode ser percebido por uma pessoa com dons paranormais.
— Como uma rede de energias?
— Como uma rede de pequenos filamentos invisíveis a olho nu, essas energias gravitantes se encontram em campos energéticos de pessoas, e quando elas tocam algo ou permanece muito tempo num local, ficam impregnadas em paredes, tetos, chão ou objetos.
— A Srta. Garcia disse que eu tocava as coisas e sabia... — e parou de falar. — Tudo isso é muito confuso para mim.
— Mas não era assim antes. Você acompanhava todos colisteiros daquela lista, onde Joh Miller dizia que os tais alienígenas ensinaram os atlantes, que fugiram do caos e se instalaram no Egito e Núbia, e onde fundaram escolas de mistérios que ensinavam siddhis, poderes paranormais divulgados pelos hindus, também, que desafiavam não só a física, mas a química e a biologia.
— Como crescer em proporções assustadoras? — e Sean atingiu Mahima crescendo tanto que todo o consultório ficou imprensado no seu corpo enorme quebrando os cristais do abat-jour, os copos da bandeja com água que derramou; as pernas das cadeiras, mesa, amassando as portas do armário, até entortar as hélices do ventilador e quebrar as lâmpadas do teto em meio ao grito que Juca deu. — Ou ficar pequeno como um átomo? — e Juca viu Sean atingir Anima e diminuir do enorme tamanho até se parecer com rabiscos e sumir das suas vidas, se teletransportando dali; quando conseguiu voltar a respirar no consultório destruído, a porta trancada da sala se abriu e Sean estava lá.
— Acho que... Acho que... Você está preparado para conhecer Wlaster — Juca sorriu encantado.
Sean também achava.
— Então vai me ajudar?
Juca deu um pulo da poltrona onde havia sido imprensado pelo enorme Sean Queise, e começou a empurrar tudo quebrado e bagunçado a sua volta até chegar ao divã onde apontou para Sean deitar-se.
— Não tenha medo de morrer durante uma projeção — olhou em volta procurando uma caneta.
Pegou o caderno e olhou-o ainda com os olhos esbugalhados e o coração batendo disparado na garganta.
— As pessoas temem isso?
— Sim. O psicossoma ou o que leigos chamariam de alma, é ligado ao corpo físico por um feixe energético conhecido como cordão de prata, através do qual é transmitida a energia vital para o corpo físico, abandonado durante a projeção — Juca levantou-se e serviu-se de água a fim de acalmar sua glote oferecendo a Sean.
— Não obrigado. Posso vomitar.
— Como falava, o cordão é um emaranhado de filamentos energéticos, que durante a projeção ficam embutidos em toda a extensão do corpo físico, e os principais filamentos são aqueles que partem da área da cabeça.
— Ele pode romper? Digo o cordão?
— Independentemente da distância em que o psicossoma estiver projetado, o cordão é como um cabo grosso que não se rompe. Às vezes a bebida, as drogas fazem esse fio ficar estreito, fino a ponto de se romper, mas tal medo é infundado. Por mais longe que o projetor estiver, o cordão de prata sempre o trará de volta para dentro do corpo físico.
— Alguém pode rompê-lo? — perguntou um Sean abalado.
— Só a morte!
Sean respirou profundamente e fechou os olhos.
“Meu filho levante-se de sua cama! Use sua sabedoria e crie um substituto para que os deuses possam deixar suas ferramentas”; ecoou por todo um Sean confuso, extremamente confuso.
Juca voltou a chutar uma coisa e outra e sentou-se na poltrona.
— Às vezes, na projeção — Juca prosseguiu. —, a consciência tem pleno domínio sobre si mesmo, no sonho não há coerência. Na projeção a consciência mantém o seu padrão normal de coerência, no sonho a capacidade mental é reduzida. Na projeção, a capacidade mental é ampliada.
— Acha que o papiro foi uma alucinação?
— Que papiro Sean?
— Um do qual não me lembro, mas um que escreve para mim.
Juca olhou-o com interesse que crescia cada vez mais rápido. Com certeza Sean passara a se tornar um objeto de estudo para ele. E em nada do que Wlaster Helge Doover um dia podia acreditar que ele era capaz de ser, fazer; nada parecido com o que Wlaster colocou naquela pasta cor de vinho.
E Sean captou tudo aquilo; formas-pensamentos, energias gravitantes de Wlaster o vigiando, vigiando seus dons genéticos, dons dos Roldmans.
“Wow!”
— Não está com medo está, Juca?
Juca parou de escrever de repente sem saber do que ele estava falando.
— Medo?
— Sabe que estou com forte segurança lá fora, não sabe?
— Não percebi aonde...
— Não percebeu mesmo? — Sean cortou-o. — Porque sei que a Poliu está lá fora, me dando segurança — Sean esperou a cara de susto que Juca fez; e ele sabia que ele faria.
— Está insinuando...
— Insinuando que algo muito importante pode vir à tona nessa regressão — e ele viu Juca arrumar-se na poltrona um tanto desconfortável. — Porque há alguma coisa que ficou no passado, Doutor, no meu passado. Algum detalhe que me escapou — e ficou a observar outra vez as reações do Dr. Juca Mendes. — E quero que saiba sobre os riscos que corre indo contra a Poliu.
Dr. Juca se encolheu de vez, Sean percebeu.
— Não trabalho mais para a Poliu. Já disse que paguei meus erros ajudando Wlaster a vigiá-lo Sean. E parei, porque você salvou a vida de Aurora naquele acidente radioativo, que você disse que ia acontecer e aconteceu. Só não imaginei que seu sonho pré-cognitivo se repetisse com essa frequência.
— Mas não é Wlaster quem está lá fora, é Dolores Trevellis, filha de Mr. Trevellis.
— Meu Deus do céu...
— Ainda quer continuar?
Juca levantou-se e voltou a afastar tudo quebrado por ali até conseguir abrir a porta do armário baixo, e tirar de dento uma câmera digital. Depois foi a uma porta na parede que se revelou um armário, e tirou de lá o tripé onde encaixou a câmera digital.
— Isso lhe responde Sean?
— Sim! — Sean voltou a fechar os olhos e se entregou às mãos hábeis do psicanalista que o ajudou a viajar.
— Em três, dois, um...
E passos rápidos subiam uma escada adornada de mármore branco carrara. Gritos de pavor se espalhavam por toda aquela mansão. Pessoas choravam, corriam, eram empurradas. Os olhos de Sean Queise se pregavam à cena. Queria ajudar, queria gritar, mas nada fez. Estava sem barba, menos magro e mais jovem; sabia que tinha dezessete anos e ia ficar noivo.
Sean correu, subindo os degraus que não acabavam mais e uma essência de rosas brancas invadiu o ar da mansão, mais escura, mais brilhante, mais dourada.
As paredes se aumentaram, aumentaram o pé direto e colunas brotaram do chão transformando toda a arquitetura da escada da mansão da família Queise; porque ele sabia que era a sua casa, a casa onde morou no passado, onde Sandy se matou, onde a Poliu nada fez para evitar.
“Sean... Sean... El Sean...”, uma mulher o chamava.
Sean se virou para vê-la. Tinha cabelos vermelhos escapando da máscara mortuária egípcia, de olhos pintados de preto, delineados com forte maquiagem e coberto por ouro. Uma cobra adornava sua cabeça, uma Íbis ela tinha em seu ombro.
— Apaga a luz?! — gritou Sean, na sala do Dr. Juca, que se assustou com o grito. — Está me cegando!!! — gritava para o holofote da mesa cirúrgica sob ele.
“Ele está morto?”, ecoou a voz da Dra. Najma Faãn.
Sean abriu os olhos. Estava sangrando, deitado numa maca. Ao lado dele, um homem magro, usando um turbante branco que se inclinava sobre ele. Reconheceu El Zarih, mas não reconheceu as outras pessoas ali com ele, inclinados para vê-lo, quando a agulha da seringa contendo um líquido verde foi-lhe injetado.
Sean estava deitado numa sala cirúrgica; morrendo.
“Não!!!” “Você o matou!!!”, gritou Najma e um fogo brotou dele, de seu chakra laríngeo, tomando conta da sala cirúrgica, de mulheres que queimavam no fogo crepitante, na larga fogueira.
“Bruxas?!”, ele ouviu gritarem, todo o vilarejo gritar, em meio a casas, casebres e a data de 1777.
— Onde estou? — soou da sua boca.
Juca escrevia atônito tudo o que ouvia.
— Onde está Sean? Sean?
Mas Sean não respondia. Queria ajudá-las, mas sua mão não as alcançava, e seus corpos tinham buracos, com luzes saindo delas e ele nada podia fazer; corpos alienígenas que afundavam numa poça esverdeada, que gritavam pedindo socorro, que eram queimados.
— Não!!! — gritava Sean desesperado na sala do Dr. Juca.
O Dr. Juca ficou a anotar tudo, escondendo uma ou outra página quando terminava de escrever enquanto Sean gritava na sala e na projeção.
— Sean? Onde está?
Mas Sean não sabia. Lá, só um local escuro onde estava um borrão de animal felino que se posicionou para atacá-lo.
— Deus... — Sean o viu apesar da imagem borrada, do cheiro ocre, da areia esverdeada molhada que encharcava seus pés, que umedecia os sapatos que usava e que molhava o divã de Juca, que arregalava os olhos vendo os pés de Sean se tomando de um líquido verde.
Voltou a escrever alucinadamente enquanto Sean encarava a besta, o leão de pelagem vermelho-amarelada, com cara de pássaro pronto para atacá-lo, grunhindo algo, uma língua que ele não compreendia.
“Ou compreendia?”, ficou a pensar.
Sean tentou gritar, mas o som outra vez não saiu quando a mulher alienígena, vestida de egípcia acalmava a besta e uma canção de ninar tomou conta da sala do psiquiatra. Juca se ergueu em choque ouvindo uma música que não estava ali, mas estava nos ouvidos de Sean, que adormecia na areia esverdeada, caído, com uma mulher se inclinando sobre ele.
“Ele está morto?” perguntava a faraó-leoa.
“Não! Não está! Ele atingiu Sva-Chanda m?tyuh!”, respondiam pessoas, ou o que pareciam ser pessoas esguias, cinzas, debruçadas sobre ele.
Seus olhos eram amendoados, não tinham boca nem nariz e falavam sem que sons emitissem.
Sean olhou em volta, um altar era o que parecia aquilo. Um altar localizado numa antessala de teto alto, dourado, cheio de colunas, e ele não estava mais no chão de areia quente e esverdeada, nem havia mais a besta leão, de pelagem vermelho-amarelada feito fogo, nem o cheiro ocre. La só uma faraó-leoa, que o tinha no colo; porque Sean era pequenino outra vez e ele era filho dela, da faraó-leoa.
“Mamãe?”, Sean tentou falar, sem a voz sair.
Tão pouco compreendeu quem eram os homens esguios, cinzas, com grandes olhos amendoados, falando uma língua estranha. Uma língua que ele sabia conhecer. Uma língua de um lugar longínquo, de outra cultura, em meio a criaturas de culturas mais longínquas ainda.
Juca ficou a observá-lo em posição fetal Pensou em parar a regressão, mas não sabia a que estágio Sean Queise já havia alcançado. Deixou-o continuar sua jornada a um passado distante, um passado sob a proteção de uma Deusa dourada, uma deusa em corpo de mulher com máscara mortuária egípcia, e que carregava na mão um pássaro de bico fino falando uma língua estranha a homens que não pareciam com nada que a sua memória havia registrado até então.
“Ou havia?” Sean se questionou.
Mas o som de um avião de criança o distraiu. Sean virou para trás, não era mais um bebe de colo, nem estava no Egito antigo. Tinha um carpete marrom de losangos aos seus pés e uma mulher que cheirava ocre passando por ele, quando o corpo de um homem grande caiu sujo, verde e pegajoso desenhando na poça criada o desenho de uma planta.
“Fator Shee-akhan!” falou o homem verde quando pegou fogo e pedaços dele caíram no chão acarpetado de marrom e losangos.
“O que? Não conseguiu ler minha mente?”
“Por que acha que não consegui ler?”
“Porque se tivesse me lido, se desde que eu cheguei aqui realmente tivesse me lido saberia o que vou fazer no Egito, atrás de um fator que leva homens à morte”.
— Ahhh!!! — e Sean gritou no que acordou da regressão ecoando por todo o corredor da Unicamp ativando três homens brancos usando terno preto e óculos escuros, ao lado de uma mulher jambo, de olhos esverdeados e belas pernas roliças.
Ambos os quatro, agentes da Poliu, se olharam.
— Vamos! — ela deu a ordem e os quatro correram invadindo os corredores de portas trancadas e nenhuma movimentação.
Porque dentro do consultório, no divã, Sean sentiu o odor forte que se misturou a delicada essência de rosas brancas, sabendo que estava se arriscando.
Olhou em volta e lá, no consultório, só ele e a bagunça gerada pelo seu siddha.
— Dr. Juca?! Doutor?! — mas ninguém respondeu, nenhum som além da vitrola atrás dele. Sean se virou com medo e El Zarih tocava uma música no salão de entrada do asilo Faãn. — Najma... — e Sean se apavorou, correndo pelo consultório bagunçado pisando vidros quebrados, cristais para então atingir Manah-javah e pisar pesado nas toras de madeira do piso do asilo que reverberavam cada passada dele, cada movimento dele, alcançando a cozinha onde se jogou sobre Najma que foi ao chão protegida pelo corpo dele, não permitindo que o fogo do corpo de Jablah a atingisse.
Ela abriu os olhos em choque e viu Sean Queise sobre ela, ambos sobre uma poça esverdeada e os pedaços de Jablah que viraram cinza tomando conta da cozinha.
“Ahhh!!!”, Najma gritou levando Sean de volta ao consultório bagunçado.
E Sean agora corria para fora da sala de Juca, para os corredores de portas trancadas, se jogando dessa vez sobre os três agentes e a mulher jambo, agentes da Poliu, protegendo o corpo roliço de Dolores Trevellis que ele teletransportou do corredor, da explosão que destruiu todo andar da psiquiatria, no que um drone vindo dos céus acionou um raio vermelho que incinerou tudo.
Os cinco se olharam em choque caídos no estacionamento, ilesos.
20
Trafalgar Square; Londres, Inglaterra.
51° 30’ 27” N e 0° 7’ 40” W.
01/06; 09h00min.
— Eu não posso falar nada sobre isso! — afirmava Oscar Roldman pela quarta vez.
— Não pode ou não quer Sr. Roldman? — perguntou Sean Queise que viajara de São Paulo até Londres sem escalas, no jato particular da Polícia Mundial.
Oscar o recebera num discreto, porém sofisticado escritório. Ele estava tão feliz quando viu Sean na porta que pensou mesmo em abraçá-lo. Controlou-se, porém, ao ver a secretária Lucy chorando.
Porque Lucy gostava do ‘nosso Sean’.
— Já disse que não posso falar — e Oscar também não gostou de como foi chamado.
— Droga! Eles tentaram me matar de novo com aquele maldito drone.
Oscar arregalou os olhos para Sean que permanecia em pé, rígido, frio.
— Drone?
— Você sabe que eu nunca dirigi mal, nem que meu Jeep anos 70 causou aquele acidente.
— Onde ouviu isso? — Oscar viu Sean o olhar de uma maneira que ele não gostou de ser olhado. — Porque se voltar a penetrar meus pensamentos vou...
— Vai o que? Contar a Nelma ou exigir que Fernando me eduque melhor?
Oscar engoliu tudo aquilo com dificuldades. Aquele Sean ali à sua frente era diferente. Diferente quanto, ele ainda tinha que descobrir.
Resolveu dar um passo de cada vez.
— Fernando está morto.
— Para você e Nelma.
E Oscar não gostou do que ouviu.
— Eu não sei que tipo de amnésia tem Sean querido — e foi um ‘querido’ para lá de irônico. —, mas vamos colocar regras em nosso relacionamento.
— Prossiga... — também soou irônico.
Eram iguais.
— Primeira regra, nunca mais chame sua mãe de ‘Nelma’; é mamãe.
— Wow!
— Segunda regra, nunca mais invada meus pensamentos.
— Não se preocupe, não faço questão de fazê-lo Sr. Roldman. Porque vim até Londres exigir respostas que podia conseguir do Brasil.
Oscar ficou a pensar o que realmente ele fazia ali.
— O que sabe sobre esse drone Sean?
— Que ele pertence a jurisdição da Poliu controlada por Wlaster Helge Doover, que controlava Mark O’Connor, que controlava Ahmad Al-badi e Nazih Sab`bi, que controlava Schiller König, que controlava Stefano Cipollone e Giovanni Bacci, que controlava Aaron Augustine, que controlava Christian Tyrone e Robert Avillan, e que controlava Alam Al Alam. E eu nem sei quem são esses todos.
Mas Oscar também não sabia era quem era aquele Sean ali sentado à sua frente.
— Está bem! Vamos lá... Ahmad, Nazih, Schiller, assim como Aaron, Stefano, Giovanni, Christian e Robert eram empresários, armamentos sofisticados, e que vendiam armas para a Polícia Mundial, Poliu e outras agências de inteligência. Se eles eram controlados por Mark O’Connor, CEO da Eschatology Inc., que contratou a Computer Co. para desenvolver programas de rastreamento, me é tão ilógico quanto afirmar que Wlaster Helge Doover controlava Mark O’Connor, já que o CEO da Eschatology Inc. era quem andava dando as cartas no Egito, e bancava toda essa gente. Também não estou muito certo de quem seja esse tal Alam Al Alam, porque Robert só sabia que ele era um consultor de obras egípcias que intermediava o governo e empresas exploradoras.
— Mas eu fui apresentado a Alam Al Alam junto a Miro Capazze, um advogado que acendia mãos, e que sabia que eu estava indo ao Egito antes do tempo da concorrência.
“Acendia mãos?”, Oscar dobrou a testa num puro sinal de confusão.
— Do que se lembra, exatamente?
— Nada mais que isso. Mas eu li no jornal que Jablah Faãn me mostrou no asilo para onde fui levado, que havia outros nomes dizendo que eram onze homens os que haviam morrido no acidente.
— Robert não morreu. O mataram seis meses depois porque comprometi sua segurança quando fui pedir-lhe ajuda.
— O que você queria com ele?
— Entrar no Sudão atrás de seu corpo.
Sean sentiu toda sua estabilidade ser afetada.
Sentou-se porque precisava sentar.
— Prossiga...
— Wlaster Helge Doover era um agente subordinado a Joh Miller onze anos atrás, na época em que Afrânio, Samira e Clarice, três arqueólogos contratados pela Poliu, conseguiram entrar numa pirâmide descoberta pelos espiões psíquicos de Mona Foad, durante suas viagens astrais, mais precisamente em suas conversas com alienígenas — Oscar viu que nada daquilo parecia espantá-lo. — Fernando entrou na jogada e desenvolveu um robô que permitia fazer releituras das imagens vistas, as transformando em imagens 3D, inserindo dados com o uso de raios laser, dentro da pirâmide, logo que o buraco foi aberto.
— Meu pai sempre foi um gênio da engenharia robótica, por isso a Computer Co. foi contratada pela Polícia Mundial para desenvolver o satélite de observação.
Oscar arregalou os olhos.
— Nem imagino como... — e parou para respirar. — Mas sim, e você foi incluído aos quinze anos na construção do satélite porque sua inteligência para os computadores era superior a de seu pai, que ficou encantado com os bancos de dados que você criava para Spartacus.
E Sean sabia do orgulho dele, do amor de Fernando por ele, daquele encantamento vindo de um homem que aceitou criar o filho de Oscar Roldman, de quem era amigo de juventude, por amor a Nelma.
— Deus... — Sean olhou Oscar lhe olhando. — Prossiga! Porque já sei que os três arqueólogos não morreram. Não no suposto acidente que tirou a Computer Co. de concorrências arqueológicas.
Oscar riu. Tinha que rir.
— Não! Eles foram assassinados depois, quando descobriram que o líquido verde retirado da pirâmide, e que levaram para o laboratório do Cairo em Corniche el-Nil, era capaz de gerar CHE.
— A mesma CHE que matou Miro Capazze?
— A mesma CHE que matou Robert Avillan, que estava no seu ‘acidente’ do deserto.
— Quem deu ordens àquele drone Sr. Roldman?
— Não sei, ‘Sr. Queise’. Mas Robert me garantiu que não foi Wlaster, já que foi ele quem resgatou os corpos na explosão dos carros no deserto.
— O mesmo Wlaster que sabia que eu estava vivo?
— O que? — se ergueu tão rápido que todo seu corpo estremeceu.
Oscar voltou à cadeira em choque e Sean teve medo de algo, de que talvez ele estivesse estressado.
— Você nunca soube?
As lágrimas surgiram no rosto marcado pelo sofrimento, pelas mentiras contadas, do amor repelido.
— Eu nunca teria permitido... — Oscar olhou um lado e outro. — Desgraçado!
— Agora isso não vai adiantar de nada — manteve-se frio. — Preciso saber por que Wlaster estava naquele encontro em Nabta Playa.
— Ele estava?
— Sim. Dentro de um dos quatro carros Land Rovers que ali chegou depois de mim. O que me agora leva a pensar, por que ele iria usar um drone contra ele mesmo?
— Mas você se lembra de tê-lo visto?
— Não sei. Mas isso tudo não é uma lembrança, é uma visão atual.
— Como assim atual?
— Eu posso atingir o siddhi Prapti e ter acesso irrestrito a todos os lugares, para então atingir o siddhi Tri-kala-jñatvam e conhecer o passado, presente e futuro, e saber que esse agente Wlaster estava dentro de um dos carros tendo ou não o visto naquele dia; e posso voltar à Nabta Playa, àquele dia, e ver-me ali, discutindo com Mark O’Connor o porquê de uma concorrência para Nabta Playa, quando o que me levou ao Egito era a concorrência em Tebas.
— O que o levou ao Egito foi uma fotografia que você tirou de dez mil anos atrás.
— Foi a Srta. Garcia quem lhe contou?
— Ela encontrou as fotografias no seu flat.
— Droga! Achei que as tivesse colocado na valise. Por isso aquela idiota era tão importante.
— “Idiota”? Que idiota era importante?
— Prossiga! — o encarou.
Oscar tentou não desmanchar o que acontecia ali.
— Você alterou a órbita de Spartacus para uma órbita espiã a fim de fotografar o sítio arqueológico de Nabta Playa, e criou um holograma do satélite para enganar Trevellis sobre ele estar numa órbita geoestacionária. Agora por que fez isso, não sei. Porque, pelo que eu saiba, eu ainda sou o proprietário do satélite de observação.
— Não sei do que está falando.
— Você tirou fotografas simultâneas, de um Egito antigo habitado por alienígenas que chegaram ao planeta Terra séculos antes, e que fugiram do afundamento de Atlântida.
— Com mais de dez mil anos? Não sei do que está falando.
— Estou falando de uma entidade de entrantes que passou inócua aos séculos, transmitindo ensinamentos adiantados ao nosso tempo. E você sabia que esses alienígenas haviam ensinado a escolhidos, ou ditos ‘iluminados’, dons que permitiam produzir por alquimia uma substância tirada de uma planta chamada Shee-akhan, e que produzia um dom que permitia entrar nos corpos dos outros.
— Para-Kaya pravesanam, um siddhi — olhou Oscar esperando mais que aquilo. —, um dom que permite inserir-se nos corpos dos outros.
— Você é louco!
— Sou? Porque não sei do que está falando.
— Sabe! E sabe como eu sei que você vai voltar lá, ao Egito antigo, atrás do Fator Shee-akhan, porque tem que impedi-lo.
— Impedir quem?
— Wlaster Helge Doover.
— Como meu pai tentou impedir o assassino dele de me assassinar?
— Meu Deus do céu Sean querido. O que houve com você?
— Amnesia? Talvez?
— É… Percebo…
— E por que vou fazer isso Sr. Roldman?
— Isso?
— Isso que disse que eu ia fazer. Suponho!
— Porque onze anos atrás, Robert ouviu Joh e Wlaster discutindo sobre uma dinastia inteira de mulheres faraós, que veneravam esses alienígenas que dominavam a alquimia.
— Joh, o arquivo morto?
— Joh Miller que estava nervoso a ponto de assumir o problema com aquela entidade de homens sem nome sozinho, antes que Samira Foad contasse a Mona o que encontraram.
— Mona então não sabia de nada?
— Não sei dizer.
Sean balançou a cabeça de um lado a outro, tenso, confuso.
— Jablah?
— Disse a você, ainda pelo celular, que Jablah está em coma, mas vivo, e que você deve ter tido uma visão errada dele explodindo.
— Droga! Eu corri, me teletransportei e salvei Najma de um Jablah com CHE. Não posso ter errado.
— Não sei o que dizer.
— El Zarih?
— Os agentes da Polícia Mundial nada conseguiram com a Poliu e Trevellis não me atende.
— Droga...
— Isso se El Zarih for realmente prisioneiro da Poliu.
— Ele é! Acredite! — exclamou Sean nervoso. — E o Dr. Juca Mendes?
— Desaparecido.
— Droga! Droga! — balançou o pescoço. — A explosão na Unicamp?
— Abafada pela Poliu.
— Exato! — Sean sabia que a explosão de Nabta Playa também foi abafada pela Poliu. Ergueu-se da cadeira e abriu a porta para sair, mas parou com a porta aberta vendo sua mãe passar por ela carregando um menino loirinho, de olhos azuis, feliz por ter ido à Londres. — Era sempre bolo de chocolate no meu aniversário não, Sr. Roldman? Com morangos em cima. E eu sempre dizendo que não gostava de morangos, para então minha ‘mamãe’ sempre dizer que os morangos, era você quem gostava — e se virou para um Oscar em choque. —, e ela os colocava na sua boca, para então você sorrir para ela.
— Sean...
E o silêncio.
— Meu pai tinha ciúme de você — ele viu Oscar erguer os olhos. — Um ciúme igual ao que você provoca achando a Srta. Garcia bela de amarelo — e Oscar agora nada falou. — Por que o silêncio?
— Não sei ao certo se sua preocupação era com Fernando ou é comigo — foi o que respondeu.
— E por que você dá tanto valor assim à bela Kelly? O casamento de vocês está abalado?
Oscar só fechou os olhos sem saber ao certo dar que resposta.
— Meu casamento não existe e o casamento de seus pais nunca esteve abalado, porque seu pai era um homem honesto para com sua mãe, Sean. Não devia se preocupar com isso.
— E por que eu tenho ciúme da minha sócia?
— Isso só você vai poder responder, não?
— Claro! Com amnésia! Vou mesmo poder responder.
— Dizem que as lembranças vão além da nossa capacidade de lembrarmo-nos delas. Então seu sentimento pela Srta. Garcia ultrapassa sua amnésia, a ponto de você ter ciúme de mim.
— Que ama Nelma Queise.
Oscar sentiu que não ia conseguir.
— De mim que ama Nelma Queise — conseguiu.
Sean se virou para porta aberta outra vez.
— Por que incomoda tanto eu ser seu filho?
— Por que isso Sean? Por que tocar nesse assunto agora?
— Porque a Srta. Garcia disse que eu fugi desse assunto à vida inteira.
— Meu Deus! Como você está frio.
— “Frio”? Eu não sei quem você é. Provável até não o conhecia antes da amnésia.
— Você me conhecia...
— Antes ou depois que abandonou minha mãe?
Oscar sentiu-se atingido novamente. A frieza, a maneira como falava, o transformava em algo que jamais imaginou nele, no seu filho.
— Não a abandonei!
— Porque foi antes de eu nascer, não?
— A sua mãe se foi... Com você dentro dela.
— E você a deixou ir? Por quê? Por que o cargo na Polícia Mundial era mais importante que um filho bastardo?
— Chega! — Oscar bateu forte na mesa fazendo o pouco de líquido por lá deixado vir à tona. Mas Sean só deu uma risada evasiva e Oscar sabia que tinha mais. — O que você ainda quer de mim Sean?
— A pasta cor de vinho que salvou daquela explosão.
Oscar agora arregalou tanto os olhos que sentiu dor. Ninguém sabia daquilo. Sobre aquilo não.
— Não existe pasta cor de vinho alguma.
— Já disse a você que poderia ter alcançado respostas do Brasil? — se aproximou tanto dele que Oscar pôde ver o quanto eram parecidos.
— E por que não o fez?
— Porque Trevellis desenvolveu materiais, materiais como seu cofre — apontou. —, que não permite que espiões psíquicos penetrem.
— Você se incluiu neles?
— A pasta cor de vinho que eu sei que a Poliu tinha a meu respeito, por favor? — esticou a mão.
Oscar Roldman teve um sobressalto. Algo naquele Sean Queise que adentrara à sua sala, que falava sobre paternidade, abandono e genética não se encaixava ao Sean Queise que conhecia.
— O que anda fazendo com seus ‘dons’, Sean querido?
— A pasta cor de vinho! Vamos! Abra o cofre! Tenho pressa! — esticava a mão em movimentos cadenciados.
— Cuidado Sean... Não sou Fernando que...
— Não é mesmo, Sr. Roldman! Ou teria mandado Mona Foad parar de seguir Sandy Monroe no astral antes que ela...
E Oscar saiu da cadeira e chegou tão rápido em Sean, que ele não teve tempo de ver que foi atingido no rosto, com o soco que o fez girar e cair assustado no chão, com a reação de um Oscar que pareceu nem se quer ter se mexido de onde estava sentado.
Sean ficou alguns segundos, o olhando, percebendo que Oscar fazia Manah-javah.
— Nunca mais me julgue! — Oscar ficou vendo o fio de sangue correr dos lábios onde uma barba rala encobria.
Oscar então se levantou, e se dirigiu até o computador no canto, digitando algo que fez a impressora expelir papéis.
Sean caiu em sonora gargalhada.
— O quê? Quer que eu acredite que você tinha isso arquivado nos seus computadores? Nos mainframes que a Computer Co. aluga a Polícia Mundial? — ele não obteve respostas. — Não Sr. Roldman, quero a pasta cor de vinho no cofre...
— Ela foi roubada!
Sean parou de falar.
— Como é que é?
— Não estou mentindo. Porque pode saber não pode? — Oscar então pegou as folhas que saíram da impressora e enfiou numa pasta padrão da Polícia Mundial vazia. — De qualquer forma, vai se arrepender por ter me pedido isto — e Oscar entregou a ele. —, Sean querido.
— Não sou seu querido.
— Não! Você sempre teve prazer de lembrar-me disso.
Sean estava tremendamente confuso, dando tiros no escuro. Pegou a pasta padrão e se pôs a folhear.
— Está completa?
— Não me desafie, Sean querido.
— Já disse que não sou seu querido.
— Não! Não mais!
Aquilo agora doeu nele, Sean não soube por quê.
— Eu vou ler no avião — Sean encarou Oscar que ficou a olhá-lo. — Vou voltar ao Brasil e depois retornar ao Egito.
— Tenho como impedi-lo?
— Duvido muito! — e se virou para sair, voltando mais uma vez. — Só uma coisa final — olhou Oscar com um brilho nos olhos. — Se você recebesse um aviso em um papiro para voltar ao passado, sabendo que suas atitudes mudariam completamente o destino do mundo, sem que pudesse voltar ao presente, embarcaria ou não?
— Por que essa...
— Embarcaria ou não?
— Se fosse para mudar o destino que tirou você de mim, sim.
E Sean foi embora, o amando como um filho amaria um pai.
Aeroporto de Heathrow, Londres; Inglaterra.
51° 28’ 39” N e 0° 27’ 41” W.
01/06; 12h00min.
Sean saiu do escritório na Trafalgar Square, a mesma onde sua mãe o levava de férias. Chegou ao aeroporto fazendo leitura dinâmica das folhas impressas. E se aquilo era original ou não, a Poliu tinha uma longa ficha sobre ele, sobre dons que iam de hacker, cracker, warez, e phreacker, percebendo que era um cara muito perigoso nos computadores.
E que tinha dons que incluíam telecinese, clarividência, bilocação, experiências fora do corpo, telepatia, pré-cognição, pós-cognição, poltergeist e contatos ‘íntimos’ com alienígenas.
— Wow! — terminou por ler a sua ficha na pasta cor de vinho, rindo. — Era só o que me faltava.

 

 

 

C O N T I N U A