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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FLETCH VENCEU / Gregory Mcdonald
FLETCH VENCEU / Gregory Mcdonald

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Frio, duro e com nervos de aço. Não, não é o contrafilé do botequim da esquina. Nem tampouco o tradicional detetive do romance policial. E muito menos é Fletch. Ou I. M. Fletcher, que, pronunciado em inglês, soa como "eu sou Fletcher", ou seja; Fletch é qualquer um, o anti-herói por excelência do romance policial. Para começo de conversa, usa camiseta, jeans e tênis furado — isso quando não está usando as roupas do defunto cujo assassinato investiga, como acontece aqui (e o defunto, diga-se de passagem, era muito menor e mais gordo). Por outro lado, também neste livro, que é sua primeira aventura, é transferido o tempo todo de editoria no jornal onde trabalha, uma vez que só arranja encrenca.

Pois, embora seja o oitavo de uma série de grande sucesso nos Estados Unidos, que já deu duas vezes a seu autor o prêmio mais importante para romance policial naquele país — o Edgar Allan Poe — e já virou filme, com Chevy Chase no papel principal, este livro é o primeiro na cronologia de suas aventuras. Nele vemos Fletch iniciando — ou melhor, tentando iniciar a qualquer custo — sua carreira de repórter da Tribuna. E investigando dois casos ao mesmo tempo. Um, por conta própria: O assassinato de um famoso advogado criminalista no estacionamento do jornal. O outro, uma mistura de academia de ginástica e prostíbulo, que conseguiu inserir gratuitamente no jornal, à revelia do editor, duas fotos publicitárias. E isso tudo na semana do seu casamento...

 

 

 

 

— Eu chamei você?

— Não, Frank, eu...

— De qualquer maneira, queria mesmo falar com você. — Frank Jaffe, o editor, dobrou o jornal concorrente, A Gazeta, e colocou-o sob o cotovelo apoiado na escrivaninha. — Tenho umas coisas duras pra te dizer.

— Pra mim? Tão insignificantezinho?

— Por acaso você gostaria de estar carregando pedras oito horas por dia, todos os dias, cinco dias por semana, talvez num meio turno no sábado?

Fletch olhou para seu tênis sobre o tapete da sala de Frank. Pelo forro da parte de cima do pé esquerdo podia ver as juntas de três dedos. No pé direito, só aparecia o dedinho.

— Não é o que vejo na estrada da vida pra mim, Frank.

— É isso que eu vejo pra você. Na estrada da vida, você acha que se enquadra em quê?

— Jornalismo.

— E o que é jornalismo pra você, jovem Fletcher?

— Não é desenvolver a habilidade de terminar frases em pronomes? Principalmente perguntas?

— Fiz isso? — Por trás de suas lentes grossas, os olhos úmidos de Frank cruzaram a bagunça de sua mesa. — Agora fiz isso.

— Frank, o que eu queria falar com você é...

Frank abriu uma pasta sobre sua mesa. — Fui atrás de seu dossiê. — A pasta não era grossa. — Você se enquadra em jornalismo e trabalho braçal. Gostaria de saber em qual categoria você seria mais adequado.

— Por que está com meu dossiê? Você me contratou há meses.

— Há três meses. Você lembra por quê. Eu não.

— Porque eu posso ser bom mesmo, Frank. Eu...

— Acho que eu estava pensando que o jornal precisava de uma lufada de ar fresco, de um jovem inconformado e independente que talvez pudesse sacudir um pouco as coisas. Chacoalhar as pessoas pra fora de suas mesmices. Ver as coisas de modo diferente, talvez.

— Como é que eu posso fazer isso, Frank, se você não me dá trabalho?

— Tenho dado trabalho pra você. Montes de trabalho.

— Não um trabalho de verdade.

— Primeiro escalei você pro Copy-desk.

— Escrever títulos é coisa pra poeta, Frank.

— E segurei você lá, sob os crescentes protestos de seus companheiros de trabalho. Sem dizer que...

—... eu derrubei laranjada no teclado do terminal de alguém.

— Isso não foi tudo.

— Tentei compensar. Comprei um par de luvas cirúrgicas pra ele.

—... até você escrever a manchete "Governador vacila de propósito".

— Achei que fosse noticia.

— E de alguma forma a manchete apareceu em duas edições antes de ser retirada.

— Pura poesia, Frank. Posso admitir que não seja poesia eterna, de longa vida, mas...

— Depois então escalei você pra escrever o Obituário.

— Você sabe, Frank, o que eu quero é escrever no Esporte. Por isso vim ver você.

— Escrever o Obituário não é o trabalho mais difícil do mundo. Você atende o telefone, ouve educadamente, às vezes dá uma checada em alguns fatos.

— Sou muito bom em checar fatos.

Frank ergueu um pedaço de papel. Sua mão tremia e seus olhos se mexiam ao ler o primeiro parágrafo da folha: — "Ruth Mulholland morreu em paz hoje, sem ter realizado nada nos seus cinqüenta e seis anos de vida". Você escreveu isto?

— Era um fato, Frank. Eu chequei.

— Fletcher, uma das condições pra você escrever o Obituário está na possibilidade de nós o publicarmos.

— Eu perguntava sem parar pra irmã dela: O que foi que ela chegou a fazer? A irmã só falava. E eu ouvia, sabe, Esta pessoa, Ruth Mulholland, nunca se formou em nada, nunca se casou, nunca teve um filho, nunca teve um emprego nem se sustentou. Ou seja, em cinqüenta e seis anos de vida ela nunca chegou a realizar porra nenhuma. Por fim, perguntei pra irmã: "Ela alguma vez tricotou um casaco pra alguém? Cozinhou uma panelada de brownies pra alguém? Ou pra ela mesma?". A irmã dizia: "Não, não, na verdade Ruthie nunca fez droga nenhuma na vida". Eu disse: "Então, é isso que devo escrever?". E a irmã disse: "Bem, sim. Acho que é a verdade sobre Ruthie". Chequei os fatos, Frank. Ruthie nunca se inscreveu na Previdência Social ou tirou carteira de motorista. Ela nem mesmo financiava o cabeleireiro mais próximo.

— Fletcher...

— O quê? Não é pra ter verdades no Obituário? Quando alguém ganhou um prêmio Nobel, a gente publica isso no Obituário. Se alguém não realiza absolutamente nada na vida, por que a gente não iria publicar? Não fazer absolutamente nada, Frank, é uma postura, uma resposta à vida. É notícia, é interessante.

— Ruthie tampouco teve seu obituário publicado. — Frank segurou outro trêmulo pedaço de papel. — Aí você foi escalado pra escrever participações de casamento. Que é só o trabalho de anotar o que é ditado. Você não precisa sequer ficar responsável pelo fato principal, o casamento, porque ele ainda não aconteceu. A primeira participação que você fez dizia: "Sarah e Roland Jameson, primos-irmãos, casam-se quarta-feira numa cerimônia restrita à família".

— Claro.

— Claro — Frank concordou.

— Conciso.

— Conciso.

— Em cima.

— Completamente em cima.

— E — disse Fletch — f atual.

— Foi preciso talento pra descobrir essa matéria.

— Não muito. Quando a mãe da noiva ligou, eu simplesmente perguntei pra ela por que o noivo e a noiva tinham o mesmo sobrenome.

— E ela respondeu sem vacilar.

— Ela vacilou.

— Ela disse que eles eram primos-irmãos?

— Ela disse que os pais deles eram irmãos.

— E que nem a noiva ou o noivo tinham sido adotados, certo?

— Frank, eu chequei. O que você pensa que eu sou?

— Acho que você é um jornalista inexperiente.

— Se as regras do jornalismo servem pras páginas de Política, Polícia e Esporte, por que não servem pra página do Obituário e das participações de casamento? Os jornais devem dar os dois lados da notícia, certo? Pô! Nós dedicamos páginas e páginas de participações de casamento no domingo. Por que não damos o mesmo espaço pra participações de divórcio?

— Fletcher...

— Notícia é notícia, Frank.

— Você acha que é escrevendo o Obituário e as participações de casamento dessa forma factual, com essa mão pesada, que você vai conseguir ser transferido para o Esporte? É isso?

— Verdades são verdades, Frank.

— Algum dia, Fletcher, possa você ser vítima de alguém igualzinho a você. — Frank olhou para Fletcher através de suas pupilas ao suco de ostras. — Você vai se casar sábado?

— Sim. No próximo sábado.

— Porquê?

— Barbara está com o dia livre.

— A não ser que o objetivo seja ter filhos — Frank falou devagar —, o casamento é uma instituição jurídica que garante só que você vai ser enrabado pelos advogados.

— Você não acredita no amor verdadeiro?

— Amor Verdadeiro correu sábado em Saratoga. Largou com força, foi diminuindo rápido e acabou no fim da carreira. Imagino que você esteja esperando uma folga pra lua-de-mel?

— Barbara tá mais ou menos contando com isso. Aliás, era outra coisa que eu queria falar com você.

— Você não trabalha há um ano aqui ainda. Pra dizer a verdade, há quem diga que você ainda não trabalhou nada aqui!

— É, mas, Frank, quantas vezes na vida você tem uma lua-de-mel?

— Não pergunte. Por que está tão queimado de sol?

— Participei da Maratona Sardinal ontem.

— Seu cabelo, aliás, parece não ter cruzado a linha de chegada ainda.

Fletch sorriu. — Aí tem notícia.

— No seu cabelo? Acreditaria em qualquer coisa que estivesse no seu cabelo.

— Na corrida. Você conhece o Atendimento a Amigos Ben Franklyn?

— Acho que não.

— É basicamente uma agência especializada em saúde e prostituição.

— O quê?

— Você liga pra lá e uma voz quente atende dizendo: "Atendimento a Amigos Ben Franklyn. Você quer um amigo?". Só às vezes ela tropeça e diz: "Você quer, amigo?".

— Você liga pra lá com freqüência?

— Os caras da Editoria me fizeram uma piada uma noite. Me disseram pra pedir umas pizzas por telefone e me deram o número de lá pra ligar. A garota que atendeu tentava marcar uma hora pra mim e eu só ficava perguntando se ela tinha de calabresa e anchova. Acho que ela pensou que eu era um depravado. Você deveria ligar pra lá uma hora dessas.

— Eu preciso de um amigo.

— Mas então dei uma investigada. Grande negócio. Garotas lindas. Todas em excelentes condições físicas. Trabalham com musculação, sabia?

— Qual é a notícia?

— Correram ontem. Na maratona. Todas elas. Uma frota de garotas de programa. Mais ou menos doze, todas juntas. Correndo pelas ruas da cidade. No centro. Usando camisetas que diziam VOCÊ QUER UM AMIGO? na frente, e BEN FRANKLYN atrás. E chegaram todas até o fim também.

— E qual é a notícia? Não me diga. Já sei. — Frank botou as mãos na testa. — "Prostitutas correm..."

— Balançam.

— "Garotas de programa vêm correndo"?

— Considere os músculos das pernas delas, Frank.

— Estou completamente excitado.

— Estavam fazendo propaganda do negócio delas, Frank.

— E você, onde terminou a maratona?

— Logo atrás delas. Você pode dizer que eu tava atrás de uma notícia.

— Fiel até o fim.

— Você não tá entendendo.

— Não estou?

— Essas prostitutas usaram um evento de saúde e esporte, uma maratona da cidade, para fazer propaganda do serviço delas.

— Então algumas prostitutas participaram da marcha da cidade ontem. Não podiam? Não é ilegal. Usavam camisetas anunciando o serviço delas. Causaram arrepios em alguns velhos escrotos, tarados por pernas, que estavam parados no meio-fio. E onde tá a notícia?

— Você deu fotos delas hoje. Nas páginas de Esporte. Indo e voltando. Frente e costas.

Frank ficou pálido. — Nós demos?

— Você deu.

— Nossa! — Frank pegou a Tribuna do chão e procurou as páginas de Esporte. — Sim, demos.

— Taí a notícia.

— Você quer dizer que nós somos a notícia.

— Uma bela divulgação pra uma agência de programa. Montes de publicidade de graça. O bispo não ligou ainda? E o promotor? Algum protesto dos anunciantes?

— Porra. Alguém fez isso de propósito.

— Você precisa de mim no Esporte, Frank.

— Olha a legenda. Ai, meu Deus. "Beleza física e vigor exemplificados pelas funcionárias da Agência Ben Franklyn, que correram juntas ontem na Maratona Sardinal. O grupo terminou perto do fim da corrida..." Não dá pra agüentar.

— Não tavam com pressa mesmo.

— Nem você, aparentemente.

— Você há pouco me dizia pra nunca estar na frente da matéria.

— Levantar e vir pro jornal segunda de manhã cedo... — Frank folheava furioso o jornal concorrente, a Gazeta, sobre sua mesa, tentando achar as páginas de Esporte. — Vou ter que passar o resto do dia demitindo gente...

— A Gazeta não deu fotos das prostitutas, Frank. Nem de frente, nem de costas. Só deram fotos dos vencedores. Credo! Fazem um jornalismo velho e ultrapassado lá.

Frank acomodou-se na cadeira. Parecia um boxeador entre dois rounds. — Por que fui começar a semana com você?

— Uma lufada de ar fresco na sua vida. Algumas risadas. Sacudir você um pouco. Fazer você ver as coisas de modo diferente, como algumas fotos nas suas páginas de Esporte.

— Você tem gravata?.

— Claro.

— Nunca vi.

— Tá segurando uma ponta da minha prancha de surf.

— Acho que você tá falando sério. O que segura a outra ponta?

Fletch baixou os olhos para a cintura de seu jeans. — Um cinto que me deram.

— Decidi durante o fim-de-semana que vou te dar mais uma chance. — Frank olhou para o relógio.

— Você vai me testar como redator do Esporte!

— Não. Afinal de contas, o que as empresas esperam é juventude, energia e experiência, tudo de uma mesma pessoa. Não é justo.

— Polícia? Ótimo!

— Acho que a gente podia polir algumas de suas arestas mais agudas.

— A Prefeitura? Posso fazer. Só me dê um crachá.

— Então imagino que o que você precisa é de experiência e refinamento. Você tem mesmo um terno, não tem?

— O foro! Porra, você quer que eu cubra o foro. Sei como funcionam os tribunais, Frank. Sabe que impressiona como eles têm pouco a ver com o Direito? Eu...

— A Social.

— A Social?

— A Social. Já que você é tão rápido pra identificar gente morta que nunca realizou porra nenhuma na vida e apresentar ao público primos-irmãos que pretendem se casar, acho que você pode ter algum talento pra cobrir sociedade.

— Você fala da sociedade assim como alta sociedade?

— Alta sociedade, baixa sociedade, você sabe, estilos de vida: todas aquelas atrações que alimentam a ansiedade de nossos leitores classe-média.

— Frank, eu não acredito em sociedade.

— Tudo bem, Fletch. A sociedade também não acredita em você.

— Eu não ia servir pra isso.

— Se você penteasse o cabelo, poderia ficar atraente.

— Velhinhas batizando seus chás com vodca?

— Habeck. Donald Edwin Habeck.

— Ele nunca tentou ser goleiro dos Red Wings?

— Se você lesse qualquer outra coisa além das páginas de esporte, Fletcher, saberia que Donald Edwin Habeck é um dos mais sensacionais advogados da área.

— Ele está em algum caso emocionante?

— Habeck me ligou ontem à noite pra dizer que ele e sua mulher decidiram, depois de conversarem muito, doar cinco milhões de dólares ao museu de arte. Você se interessa por artes plásticas, não?

— Não tanto quanto por fichas de pôquer.

— Ele quer a notícia com tratamento certinho, sabe? Com dignidade. Nada de invasão da sua privacidade. Nada de intromissão na sua vida particular.

— Frank, você se importa se eu sentar?

— À vontade. Tinha esquecido que você correu devagar na maratona de ontem.

Fletch sentou no tapete.

— Sente-se em qualquer lugar.

— Obrigado. Ai-ai-ai filantrópico.

— Acabe a estrofe e você pode ter uma canção popular.

— Frank, você quer que eu, I. M. Fletcher,* faça uma matéria do tamanho de um bonde, sem sujar as mãos, super, supereducada sobre sabe-se-lá que casal da alta roda que tá dando cinco milhões em papel ao museu de arte?

 

(*) I. M. Fletcher: a pronúncia em inglês é "I am Fletcher", "Eu sou Fletcher". (N. T.)

 

— Educada, sim. Por que não? Aqui está um casal fazendo uma boa ação para a humanidade, dividindo sua riqueza. Segure sua necessidade de informar que a senhora Habeck batiza vodca no chá. Hora de aprender a ser educado. Aliás, não consigo ver você por causa da ponta da mesa.

— Eu desapareci.

— Bem, é melhor você reaparecer. Você vai conhecer Habeck na sala do editor-chefe às dez horas. Pena que sua gravata e seu cinto estejam segurando sua prancha de surf.

— Deus! Qualquer matéria que comece com o repórter conhecendo o assunto na sala do editor-chefe não vale nem o ato de levantar-se.

— Vê? Já está melhorando como jornalista. Terminou a frase com um pronome.

— Não vou fazer.

— Fletch, tenho quase certeza de que você estaria igualmente atraente se estivesse trabalhando com pá e picareta nas ruas da cidade. Não precisaria usar gravata nem cinto nem pentear o cabelo. Posso dar um jeito de você sair daqui na sexta-feira. Daí você e Lucy podem passar uma lua-de-mel pelo tempo que durar o dinheiro.

— É capaz de ser um bom fim-de-semana. E o nome dela é Barbara.

— Foi o que imaginei. Um domingo bárbaro com Barbara. Na terça, as bolhas.

— Frank, por que você não deixa o próprio Habeck escrever a matéria? Ele tá pagando cinco milhões de dólares pelo privilégio.

Hamm Starbuck meteu a cabeça pela porta da sala. Olhou para Fletch sentado de pernas cruzadas sobre o tapete.

— Uma daquelas manhãs, não é?

— Até agora — Frank respondeu. — Derrubei um. Depois de ver algumas fotos nas páginas de Esporte, já sei que vou ter mais alguns pra derrubar hoje.

— Frank, você estava esperando Donald Habeck?

— Não eu, John está. Ele deve ser encaminhado pra sala do editor-chefe.

— Não vai chegar lá nunca.

— Ele ligou?

— Não. Está morto no estacionamento.

— O que quer dizer? — Frank perguntou.

— Dentro de um Cadillac Seville azul-escuro. Furo de bala na têmpora.

Fletch pulou do chão sem usar as mãos. — Minha matéria!

— Acho que a gente devia chamar a polícia.

— Faça os fotógrafos chegarem lá primeiro — disse Frank.

— Já fiz isso.

— Mande Biff Wilson também. Eleja chegou?

— Chamei pelo rádio. Está na estrada.

— Biff Wilson! — disse Fletch. —Frank, você deu essa matéria pra mim!

— Não dei nada pra você, Fletcher.

— Habeck, Donald Edwin. Eu não devia entrevistá-lo às dez?

— Fletcher, me faça um favor.

— Qualquer coisa, Frank.

— Suma. Apresente-se a Ann McGarrahan na Social.

— Talvez eu tenha uma gravata no carro.

— Acabei de tomar uma decisão na minha vida profissional — disse Frank para sua mesa.

— O que é, Frank?

— Não venho trabalhar cedo nas manhãs de segunda nunca mais.

 

— Habeck, Harrison e Haller. Bom dia.

— Alô. H ao cubo?

— Habeck, Harrison e Haller. Em que posso ajudá-lo?

— Senhor Chambers, por favor.

— Desculpe, senhor. Podia repetir o nome?

— Senhor Chambers. — Olhando pela redação da Reportagem Geral da Tribuna, ninguém podia adivinhar que uma pessoa tinha acabado de ser baleada e morta no estacionamento daquele prédio e que todos sabiam. Todos sabiam? Todos. Numa redação de jornal, diferentemente da maioria das outras empresas, o processo de boato virar fofoca virar fato virar notícia comprovada e confiável era profissionalmente acelerado. Acontecia na velocidade de um foguete. A assimilação de notícias era igualmente rápida. Os jornalistas estão interessados nas matérias em que estão trabalhando. Alguns têm um arquivo mental; outros, uma lata de lixo onde

'jogam todas as outras notícias. — Alston Chambers, por favor. Ele está em algum lugar por aí. Um advogado interno, um estagiário, sei lá como vocês o chamam. Um veterano e um cavalheiro.

— Ah, sim, senhor. A. Chambers.

— Provavelmente andando pelos seus corredores sem saber o que fazer.

— Um momento, senhor. — Uma linha estava tocando. A telefonista precisou acrescentar: — Desculpe, senhor, por não ter reconhecido o nome. O senhor Chambers não tem clientes.

— Chambers falando.

— Soa lúgubre.

— Deve ser Fletcher.

— Deve ser.

— Espero que tenha me ligado pra me convidar pra almoçar. Preciso sair deste lugar.

— Você acertou. À uma no Manolo's?

— Você quer conversar sobre seu casamento. Quer meu conselho de como cair fora. Barbara ainda está com ele marcado pro sábado?

— Não, não, sim. Não posso falar agora, Alston. Só quero te dar a notícia.

— Barbara te disse que estava grávida?

— Habeck, Harrison e Haller. É o escritório de advocacia onde você trabalha?

— Você sabe. Paga pouco e eu tenho que engolir uma porrada de sapos.

— Donald Edwin Habeck?

— Um dos sócios principais deste antro de injustiça jurídica.

— Donald Edwin Habeck não vai trabalhar hoje. Pensei que pudesse fazer uma visita rápida pra ele.

— Não entendi. Por que não? Qual é a piada?

— Foi morto com um tiro.

— Isso é piada?

— Não do ponto de vista dele.

— Onde? Quando?

— Na Tribuna. Há alguns minutos. Tenho que desligar.

— Será que ele deixou um testamento?

— Por que diz isso?

— Os advogados são famosos por não deixarem testamento.

— Alston, gostaria que você me falasse sobre Habeck no almoço. Me contasse o que você sabe.

— Você tá na matéria?

— Acho que sim.

— Alguém mais acha que sim?

— Estou nela até que me mandem sair dela.

— Fletch, você vai se casar no sábado. Não é hora de flertar com o desemprego.

— Te vejo à uma no Manolo's.

 

— Ele mesmo atirou? — Fletch olhava para o banco da frente do Cadillac por sobre o ombro de Biff.

Um homem de aproximadamente sessenta anos estava caído por cima do descanso de braço. Sua perna esquerda estava pendurada para fora do carro. Seu sapato quase tocava o chão.

Biff virou a cabeça devagar para olhar para Fletch. Seu olhar avisava que plebeus não podiam dirigir-se à realeza.

— Ou foi baleado?

Sem responder, Biff Wilson ergueu-se e virou-se. Esperou que Fletch saísse do caminho. Apesar do calor e do sol forte no estacionamento, Biff usava paletó e gravata, mas com o colarinho aberto. Tinha cabelo nas orelhas.

Biff andou alguns passos até os três policiais parados ao lado do carro preto e branco da polícia. Só dois deles estavam uniformizados.

— Nós já sabemos quem o encontrou? — perguntou Biff.

— Nós? — disse Fletch para si mesmo.

O policial mais jovem de uniforme estava olhando fixo para Fletch.

Três carros estavam estacionados em ângulos diferentes em volta do Cadillac azul. O primeiro era um seda verde, sem logotipo, do homem vestido à paisana. O segundo era um seda preto e branco, com a porta da frente aberta, o rádio da polícia fazendo ruídos, as luzes azul e vermelha do teto girando.

O terceiro dizia TRIBUNA nos lados e atrás. Era o carro que Biff Wilson usava. Também estava com a porta da frente aberta. Também se escutava o rádio. E uma luz azul piscava no teto.

O homem mais velho de uniforme olhou sua caderneta. — Funcionária da Tribuna chamada Pilar O'Brien.

Biff cuspiu na calçada entre seus sapatos. — Nunca ouvi falar dela.

— Suponho que seja secretária.

— E ela chamou a polícia?

— Ela falou pra segurança no portão.

— E eles chamaram a polícia?

— Não — disse o homem à paisana. — Chamaram a chefia na redação.

O sorriso de Biff brilhou. — Todo mundo batalhando uma promoção.

— Os fotógrafos de vocês já chegaram e já foram — disse o mais velho de uniforme.

— Não tocaram em nada — falou o mais moço. — Cuidei disso. Fotografaram ele pelo lado e pela janela. Tiraram algumas mais de longe. Não tocaram no carro nem na vítima.

— Acharam o revólver? — perguntou Biff.

— Não tá visível. Talvez tenha escorregado pra baixo do banco — disse o homem à paisana. — Onde tá a perícia? Quero meu café.

— Donald E. Habeck — leu o policial mais velho da sua caderneta. — Alguém sabe o que ele tava fazendo aqui?

— Sim — respondeu Biff. — Tava aqui pra ver John Winters, o editor. Um encontro marcado pras dez horas. Iam armar uma declaração de que Habeck e esposa vão, iam, doar cinco milhões pro museu de arte.

— Como você sabe, Biff? — perguntou o homem à paisana.

— Como é que eu sei de tudo, Gomez? — Biff cuspiu outra vez na calçada.

— Sei que você é o maior, Biff. Passei toda a noite de ontem falando isso pra minha mulher.

Biff encolheu os ombros. — Telefone no carro, idiota. Hamm Starbuck disse que Donald Habeck estava morto no estacionamento. Perguntei: "O que ele tá fazendo na Tribuna?". Você não acha que é uma pergunta natural?

— Por isso perguntei, Biff. — Ao menos Gomez tinha tirado o casaco e enrolado as mangas da camisa para cima.

Não havia sombra no estacionamento. O policial mais jovem continuava lançando olhares longos e severos a Fletch.

— Cinco milhões de dólares. Nossa. — O policial mais velho esfregou a manga na testa. — Pensar em poder dar cinco milhões de dólares.

— Nunca pôde fazer isso? — perguntou Biff.

— No sábado dei um sofá velho que a gente tinha na salinha pra minha sobrinha e o marido novo dela. A babaca nem veio buscar. Tive que transportar ele eu mesmo.

— Legal da sua parte — disse Biff.

— Só que eu não saí em notícia alguma no jornal por causa disso.

— Talvez Biff possa fazer uma notícia pra você — disse Gomez.

— Claro — Biff falou. — Na sexta à noite dei um soco no meu garoto embaixo do olho esquerdo dele. Sou generoso também.

— Aí vem a concorrência, Biff. — Gomez sacudiu a cabeça em direção ao portão da segurança.

Havia dois carros da Gazeta lá.

— No domingo me dei conta de como sentia falta do sofá. Tive que sentar direito durante o jogo. E minhas costas doíam por eu ter carregado a porra no dia anterior.

O policial mais jovem tocou a manga de Biff e apontou para Fletch. Falou discretamente: — Ele tá com você?

Biff julgou Fletch de seu trono de redator policial da Tribuna. — Não.

— Ele trabalha pra Tribunal

— Não sei. — Biff não mantinha sua voz baixa. — Talvez tenha visto ele por aí. Esvaziando cestos de lixo.

— Não sabia que a Tribuna tinha cestos de lixo — disse Gomez. — Só caminhões de entrega.

No portão, a segurança atrasava a chegada do repórter e do fotógrafo da Gazeta ao local do crime.

— Você ainda não tomou café algum hoje de manhã? — Biff perguntou a Gomez.

— Só duas xícaras — Gomez disse. — Anglo.

— Age como se não tivesse tomado nenhum.

— El mismo — Gomez falou.

— Porque eu vi alguma coisa sobre esse cara — disse o policial mais jovem. — Recentemente. Uma foto ou qualquer coisa do gênero.

Biff fixou Fletch com seu olhar distante outra vez. — Talvez na página dos quadrinhos.

Enfim os dois carros da Gazeta alcançaram o local do crime. Nenhum deles tinha luzes piscando ou rádios ligados.

— Vocês não toquem em nada — gritou o policial jovem de uniforme.

O repórter disse. — Cale a boca. — Ele olhou para dentro do carro.

O fotógrafo se mexia tirando fotos sem o repórter.

— Quem é ele? — perguntou o repórter.

— Não confirmado — respondeu Biff.

— Funcionário da Tribunal

— É provável — respondeu Biff. — A maioria de nós tem Cadillacs Sevilles. Deixei meu garoto levar o meu pra escola.

— A segurança deve saber quem é ele — disse o repórter. — Deve ter dado algum nome quando entrou.

— Vá perguntar — Biff falou.

— Essa é a sua matéria, hein, Biff? — perguntou o repórter.

— Aconteceu no quintal dele — disse Gomez.

— É — disse o repórter. — Espera que eu tire alguma coisa daí. Assassinato no estacionamento de um jornal de família. Tsk, tsk.

— É Habeck — falou o fotógrafo. — Donald Habeck, o advogado. Cara rico. Mora lá em The Heights.

— É? — disse o repórter. — O que está fazendo aqui?

— Pergunta natural — disse Biff.

— A ser determinado ainda — disse Gomez.

— Há quanto tempo trabalha pra Tribuna, Gomez? — perguntou o repórter.

— Nada vai ser dito até que o médico-legista e o pessoal da perícia tenham chegado e ido embora — respondeu Gomez.

— Não por você. — O repórter foi até o carro dele e começou a falar no telefone.

— Aí vêm eles. — Gomez sacudiu a cabeça em direção às caminhonetes entrando pelo portão da segurança do estacionamento. — Quer tomar um café lá dentro, Biff?

Biff olhou para a lateral do prédio da Tribuna. — O café também não presta lá dentro.

— Vou pedir pra Maria fazer um especial.

— Ah, é — disse Biff. — Esqueci que sua cunhada trabalha na cantina.

— E como. Você arranjou o emprego pra ela.

Fletch começou a se afastar da área onde a perícia estava agindo.

O policial mais jovem disse a Fletch: — Trabalha aqui?

— Nããão — disse Fletch. — Tô só fazendo uma entrega. Só vim trazer a peça de cima do senhor Wilson.

O policial jovem olhou alerta. — Peça de cima?

— É — disse Fletch. — Ele fez uma confusão comendo maçã caramelada ontem à noite. O dentista levou uma hora pra deixar ela limpa hoje de manhã.

— Ah.

O policial mais velho de uniforme olhava para Donald Edwin Habeck dentro do carro. — Aposto que eu ter dado aquele velho sofá — disse devagar — significou mais pra mim do que esse cara ter dado cinco milhas.

 

— Central de Informações da Tribuna. Nome e código, por favor.

— Dezessete-noventa-barra-nove — respondeu Fletch no telefone do carro. Ia em direção a The Heights. — Fletcher.

— Não tinha recebido ligação sua antes.

— Não me mandam muito pra rua.

— Temos alguns recados pra você.

— Quero o endereço do senhor e senhora Donald Edwin Habeck. Acho que deve ser H-A-B-E-C-K, algum lugar em The Heights.

— É estrada Palmiera, 12 339.

— Localização?

— É uma estrada pequena a nordeste do bulevar Washington. Tem várias estradinhas ali dentro. Estradas sinuosas. A melhor coisa a fazer é parar no cruzamento da Washington com a 23 e perguntar. Você vai entrar na 23 lá.

— Tudo bem.

— Os recados são: ligar para Barbara Ralton. Quer almoçar com você. Diz que tem coisas a discutir.

— Como quantos bebês a gente vai ter?

— Nossa. Esta velha mãe sugere que vocês almocem antes de entrar nesse assunto sério.

— Obrigado.

— Veja quanto custa alimentar apenas duas bocas.

— Não custa muito alimentar uma criança. Só injetar suco de laranja algumas vezes ao dia. Pasta de amendoim.

— Ha.

— Como?

— Ha.

— Quanto custa a pasta de amendoim?

O adesivo no pára-choque do carro da frente de Fletch dizia: COM SACANAGEM VOCÊ VAI LONGE.

— Devia ter seguido meu próprio conselho e ficado na cama. Mais um recado para você, Fletcher. De Ann McGarrahan, editora da Social. Disse que, caso você ligasse, era para dizer que você deve se apresentar a ela imediatamente. Sua pauta mudou.

— Ah.

— Então parece que você não vai mais precisar daquele endereço em The Heights.

— Mais uma pergunta: quem é Pilar O'Brien?

— Por que quer saber?

— Que tipo de resposta é essa?

— Uma resposta pessoal. Por que quer saber?

— Ouvi falar dela. Trabalha para a Tribuna?

Um silêncio um pouco mais longo que o normal antes que a pessoa da Central de Informações dissesse: — Você está falando com ela.

— Ah! Então foi você quem encontrou Habeck hoje de manhã?

— Quem?

— O cara que morreu no estacionamento.

— Esse é o nome dele? Pensei que você tivesse acabado de pedir o endereço de...

— Esqueça isso, certo?

— Como? Como é que um repórter de quem eu nunca tinha ouvido falar antes pede o endereço de...

— Eu disse: por favor esqueça isso. Não pedi nada.

— A senhora McGarrahan...

— Eu ligo pra ela. Me conte como encontrou Habeck.

— Não estou autorizada a falar com repórter algum antes de ser interrogada pela polícia. Posso relatar apenas o que contei à polícia.

— Credo! Você conhece o regulamento.

— Foi o que disse o senhor Starbuck.

— A porta do carro estava aberta ou fechada quando você o encontrou?

— Não posso responder.

— É importante.

— Talvez por isso não possa responder.

— Você viu algum revólver?

— Como é mesmo seu nome... Fletcher. Devo dizer a senhora McGarrahan que está voltando para a redação?

— Claro — disse Fletch. — Diga isso a ela.

— Por favor, poderia me informar o caminho para a estrada Palmiera?

O homem atrás do balcão da loja de bebidas no cruzamento do bulevar Washington com a rua 23 desviou os olhos de Fletch para a janela e para o Datsun 300 ZX dele parado com o motor ligado na porta da frente, depois voltou a olhar para Fletch. O cano de descarga tinha um buraco no silencioso. O motor fazia barulho.

— Estou procurando o doze mil da estrada Palmiera, se é que existe.

Olhando Fletch cara a cara, o homem atrás do balcão assobiou os primeiros compassos da marcha Colonel Bogey.

— Viro à direita na rua 23?

O homem tirou uma pistola 45 automática da parte de baixo do balcão. Apontou para o coração de Fletch.

— Credo — disse Fletch. — Estou sendo preso por uma loja de bebidas!

Fletch foi agarrado pelas costas. Braços escuros e musculosos apertaram-lhe as costelas, prendendo seus braços ao longo do corpo.

— Ô! — gritou Fletch. — Perguntei com educação! A pistola mantinha na mira o coração de Fletch.

O homem que segurava a pistola gritou em direção ao fundo do bar: — Rosa! Chame a polícia!

— Vou arrumar o cano de descarga! — disse Fletch. — Prometo!

— Dê queixa de um assalto! — gritou o homem atrás do balcão.

— Tudo que fiz foi pedir uma informação. Não pedi sequer pra você arranjar troco.

— Ele não tá armado — rosnou a voz atrás da orelha de Fletch.

O homem atrás do balcão olhou para as mãos de Fletch e depois para os bolsos de seu jeans.

— Deixe-me salientar um detalhe — disse Fletch com grande sinceridade. — Você não vai conseguir atirar em mim com essa pistola sem apagar o cara que tá atrás de mim.

A arma balançou. As barras de ferro que prendiam os braços de Fletch contra o corpo cederam um pouco.

— A Previdência Social não vai cobrir! — gritou Fletch, correndo para trás, empurrando o cara que o segurava.

Chocaram-se contra uma prateleira de garrafas, a menos de um metro.

Instantaneamente elas se quebraram. Espalhou-se um cheiro de bourbon.

As mãos do cara desapareceram da frente de Fletch.

— Tô me cortando — gritou.

Sentado no colo do cara, Fletch se sacudiu para cima e para baixo uma ou duas vezes, depois inclinou-se contra o peito dele.

— Ai! — berrou o cara.

Garrafas desabavam em cima deles. Uma delas aterrissou no joelho esquerdo de Fletch, provocando mais dor do que ele considerava possível.

As garrafas que caíam no chão se espatifavam, espirrando bourbon sobre os dois.

O cara da arma se movimentava atrás do balcão, tentando achar um ângulo de Fletch que não incluísse o cara em quem ele estava sentado.

Fletch rolou até a porta, entre pedaços de vidro e poças de bourbon. — É a última vez que peço informações pra vocês!

Enquanto se levantava, conseguiu abrir a porta.

Estava passando por ela quando a arma disparou. O vidro inquebrável da porta se estraçalhou.

Fletch gritou na direção da loja, ao abrir a porta do carro: — Se vocês não sabem onde fica a estrada Palmiera, por que não disseram?

Em marcha lenta, dobrou à direita, saindo da Washington e entrando na 23.

Sirenes começavam a soar.

 

— Senhora Habeck?

A senhora de cabelo azulado, vestido estampado de flores e tênis verde estava sentada sozinha numa cadeira reta na piscina. Havia uma bolsa vermelha a seus pés.

— Sim, sou a senhora Habeck.

Olhando para Fletcher contra a luz do sol, ela enrugou o nariz como um coelho.

— I. M. Fletcher. Da Tribuna. Eu deveria ter um encontro com seu marido às dez.

— Ele não está aqui.

Fletch tinha passado um tempo tocando a campainha da porta da frente do nº 12.339 da estrada Palmiera. Era uma propriedade agradável — uma casa de tijolos rodeada de rododendros —, mas na cabeça de Fletch não era a casa de alguém que pudesse doar cinco milhões de dólares sem respirar fundo.

E não havia ninguém na casa para abrir-lhe a porta numa manhã de segunda-feira.

Fletch tinha percorrido os arbustos até encontrar a senhora de cabelo azulado contemplando a piscina clara e tranqüila.

— Nunca se sabe onde ele está — disse a senhora Habeck. — Donald vaga por aí. Com certeza essa é a única coisa que se pode afirmar sobre Donald. Ele vaga por aí. — Ela estendeu a mão e fechou os dedos, como segurando alguma coisa que não estivesse ali. Disse: — Ele vagueia.

— Talvez eu possa conversar com a senhora.

Outra vez ela enrugou o nariz. — Meu jovem, você está muito, muito bêbado?

— Não, senhora. Pareço bêbado?

— Você cheira a bêbado.

Fletch puxou um pedaço da sua camiseta até o nariz e cheirou: — É meu novo desodorante. Gosta?

— É um aromatizante.

— Chama-se Bamn -o.

— Chama-se bourbon. — A senhora Habeck afastou o nariz. — Você fede a bourbon.

Fletch cheirou a camiseta de novo. — Bem ruim, não é?

— Conheço bourbon pelo aroma — disse a senhora Habeck. — Você não está usando uma marca muito boa.

— Acho que estava em promoção.

— Na sexta-feira esse bourbon não existia. — A senhora Habeck falava devagar. Havia tristeza nos seus olhos pequenos e cinzentos. — Já ouvi falar de vocês, homens de imprensa. Donald uma vez me contou sobre um jornalista que encheu sua cama d'água com bourbon. Contou aos amigos que tinha refinado a arte de se embebedar. Deitado na cama, podia bebericar pela válvula do colchão. Ele disse que, à medida que ia ficando bêbado, podia fazer o ritmo da sua cama-de-bourbon acompanhar o vaivém do mundo. Bem, ele afundou mais e mais. Em três meses, ele estava de novo dormindo no chão. — A senhora Habeck acomodou as mãos noutra posição sobre o colo. — E além disso era uma cama de casal.

Fletch respirou fundo e prendeu o ar. Tinha a sensação de que, se ele risse, a senhora Habeck ficaria ofendida.

Apertando os músculos do estômago para se segurar, olhou para o lado da piscina. No declive de um gramado, um jardineiro usando um sombrero limpava um canteiro de flores.

— Minha nossa — ele disse finalmente, num suspiro. — A verdade é que sofri um acidente.

— Vocês têm sempre uma desculpa para beber. Notícias boas. Notícias ruins. Nenhuma notícia.

— Não — disse Fletch. — Um acidente de verdade. Parei na loja de bebidas no cruzamento da Washington com a 23 e, enquanto estava lá, uma prateleira de bourbon foi derrubada. Caiu tudo por cima de mim e de um empregado.

Seus olhos claros e opacos observavam Fletch.

— Eu não estava bebendo. Sério. Posso sentar? Relutante, ela disse: — Tudo bem.

Ele sentou-se em outra cadeira reta de ferro batido. Ela estava na sombra do guarda-sol da mesa, ele não.

— Senhora Habeck, a respeito desses cinco milhões de dólares...

— Cinco milhões de dólares — ela repetiu.

—... que a senhora e seu marido decidiram doar ao museu de arte.

Lentamente, ela disse: — Sssssim — num silvo de pneu esvaziando. — Fale-me sobre isso.

— O quê?

— O que é que tem? — perguntou ela.

Fletch hesitou. — Esperava que a senhora me falasse sobre isso.

A senhora Habeck endireitou-se de leve na cadeira. — Sim, bem, meu marido e eu decidimos doar cinco milhões de dólares ao museu de arte.

— É o que eu sei. Seu marido é advogado?

— Meu marido — disse a senhora Habeck — vaga por aí. À toa, por aí. Sempre foi assim, sabe. Isso é uma coisa que pode ser dita a respeito dele.

— Entendo — disse Fletch, educadamente. Ele estava começando a imaginar a quantidade de vodca que a senhora Habeck tinha pingado no café que tomara de manhã. — Ele é um dos principais sócios no escritório de Habeck, Harrison e Haller?

— Eu disse a ele que não devia fazer isso — disse a senhora Habeck, franzindo a testa..— Três sons diferentes de H. Na verdade, três sons diferentes de Ha. — Ainda com a testa franzida, olhou para Fletch. — Você não concorda?

— Claro — Fletch falou. — Desconcertante.

— Dá a impressão de incompatibilidade — disse ela. — Sabe, como se os sócios não pudessem contar em estar juntos em nada. Em concordar..

— Sim — disse Fletch.

— Sem falar no fato de que, quando as pessoas dizem "Habeck, Harrison e Haller", o que elas realmente se ouvem dizer, no fundo, é Ha Ha Ha.

— Ah — disse Fletch.

— Ainda que o correto fosse Hab Har Hal. O que é pior.

— Muito pior — concordou Fletch. Seus dedos limparam o suor da testa.

— Queria que ele contratasse um quarto sócio — disse a senhora Habeck. — Chamado Burke.

— Hmm. O senhor Burke não quis se associar à empresa?

A senhora Habeck olhou para Fletch com ressentimento. — Donald disse que não conhecia ninguém chamado Burke.

— Ah, entendo.

— Pelo menos nenhum advogado que se chamasse Burke. Nenhum advogado que se chamasse Burke disponível para se associar à empresa.

— A senhora conhecia algum advogado que se chamasse Burke disponível para se associar à empresa?

— Não.

Sob o sol, suando dentro de suas roupas encharcadas de bourbon, Fletch sentiu a cabeça rodar. Sua sensação era de estar numa cama de bourbon. — Seu marido faz algum trabalho ligado a sociedades anônimas?

— Não — disse ela. — Ele nunca foi muito dado a associações. Estava sempre discutindo no tribunal.

Ainda não havia humor nos seus olhos tristes.

— Sei que sua reputação é de criminalista. — Fletch encolheu-se então, esperando a forma pela qual a senhora Habeck interpretaria o criminalista.

Ela disse: — Ssssim.

Fletch bufou: — Senhora Habeck, a senhora ou o seu marido tinham alguma outra fonte de renda além da que ele recebia pelo exercício da advocacia criminalista e da sua sociedade em Habeck, Harrison e Haller?

— Hab, Har, Hal — disse ela.

— Quero dizer, algum de vocês era particularmente rico, recebeu alguma herança...?

A senhora Habeck disse: — Meu marido tende a usar sapatos pretos. Você não vê sapatos pretos com muita freqüência em The Heights. Ele não gosta de se vestir de forma extravagante, como a maioria dos criminalistas.

Fletch ficou em silêncio.

Ela perguntou: — Você não acreditaria que um homem que usa sapatos pretos teria a tendência de vagar por aí, não é?

Fletch ficou em silêncio de novo. — Não é que eu esteja tentando invadir a sua privacidade, senhora Habeck.

— Não tenho nenhuma privacidade. — Ela olhou para seu tênis verde.

— Estou só tentando avaliar o que significa para a senhora e seu marido doar cinco milhões de dólares ao museu. Quero dizer, ele está dando praticamente a renda de sua vida inteira de trabalho?

— Meu senhor, está me deixando enjoada.

— Como?

— Seu cheiro. Parece sóbrio o suficiente para um homem de imprensa, para um jovem, mas você fede a bourbon. Está começando a afetar meu estômago e minha cabeça.

— Desculpe — disse Fletch. — A bem da verdade, a mim também.

— Bem, então o que vamos fazer a respeito?

Fletch olhou em direção ao fundo da casa. — Talvez pudesse tomar um banho.

— Como você disse que o bourbon se esparramou sobre suas roupas, tomar banho e vestir as mesmas roupas não vai adiantar nada.

— Certo — disse Fletch. — Muito sensato. — Balançou a cabeça afirmativamente. — Muito sensato.

— Por que não pula na piscina? Está logo aí.

— Eu podia fazer isso. — Fletch começou a tirar coisas de dentro dos bolsos. — Vestido.

— Por que pularia na piscina vestido?

— Não seria pra tirar o cheiro de bourbon das roupas?

— Mas suas roupas ficariam molhadas. Quer passar o resto do dia dentro de roupas molhadas?

— É um dia quente.

— Quentura não tem nada a ver com molhado.

— Quentura?

— Minha filha costumava dizer isso quando criança. Quentura. Não é de se estranhar que tenha acabado casando com um poeta. Como é o nome dele?

— Não sei.

— Tom Farliegh.

— Tudo bem. Ia lhe perguntar sobre seus filhos.

— Vão bem, obrigado. Obviamente vai tirar sua roupa antes de pular na piscina.

— E aí eu vou ficar sem roupa.

— Me importa? Sou mãe e avó. Não me importa. É uma piscina particular. — Olhou em direção à parte de baixo do gramado, para o jardineiro. — Aquele é Pedro. Ele não se importa. Se se importar em ver um homem nu, não devia ser um jardineiro.

— Perfeitamente.

A senhora Habeck se levantou. — Tire suas roupas. Eu desvio meus olhos e assim você pode contar pra sua namorada que nenhuma mulher viu você nu desde que sua mãe trocou suas fraldas pela última vez. Na semana passada, não foi? Fletch estava tirando o tênis. — Realmente, não me importo.

— Deixe suas roupas na cadeira. Depois que estiver na piscina, diga alô-alô e eu as apanho, levo pra dentro, coloco-as pra lavar e secar.

— É muita bondade sua. — De pé, Fletcher despiu a camiseta fedorenta.

— Alô, alô! — A senhora Habeck gritou. Ela estava acenando para o jardineiro.

Ele ergueu a cabeça e olhou para ela por baixo do sombrero. Não disse nada nem acenou de volta.

Fletch desviou o olhar. Tirou o jeans e a cueca e mergulhou na piscina.

Deliciando-se com a água fresca e vendo-se livre do fedor de suas roupas, ele atravessou a piscina embaixo d'água, virou e nadou de volta até a borda mais próxima.

Meteu o nariz sobre a borda da piscina.

— Alô, alô! — ele disse.

A senhora Habeck estava indo em direção à casa com as roupas e o tênis dele.

Levava também o livrinho vermelho dela.

 

— Ô!

Era a terceira vez que Fletch ouvia alguém gritar, mas desta vez, ao dar sua primeira braçada de volta, o chamado foi claro. Não havia dúvida de que era ele que estava sendo chamado. Ele colocou a mão na borda da piscina e ergueu a cabeça.

Quando seus olhos ficaram livres da água, pôde ver Biff Wilson vestido formalmente, de paletó e gravata, parado na beira da piscina.

— Alô! — disse Fletch.

— Por Deus — disse Biff. — É você.

— Não, não é — disse Fletch. — É Fletcher. A dois metros de Biff estava o tenente Gomez.

— Seu nome é esse? Fletcher?

— Sim, senhor.

— Você há pouco estava no estacionamento da Tribuna.

— Sim, senhor.

— Como chegou aqui tão depressa?

— Não parei pra tomar café.

— Foi por sua causa que o cara da polícia perguntou se eu uso dentadura postiça?

— Se eu o quê?

Biff enfiou o dedão atrás dos dentes superiores da frente, mostrando como eram sólidos. — Dentadura pothtitha!

— Eu, hein, Biff! Essa cola que você usa deve ser ótima.

Biff deu um olhar cansado para Gomez e virou para Fletch. — Você é ou não é funcionário da Tribuna?

— Sou, senhor.

Biff falou claro: — Qual é a sua pauta?

— Fui recentemente escalado para a Social.

— Social. — A expressão no rosto de Biff mostrava o desprezo que tinha por redatores da Social. — O que está fazendo aqui?

— Aqui?

— Aqui. Na casa de Donald Edwin Habeck.

— Tomando banho de piscina, senhor.

Biff explodiu com Gomez: — Ele tá tomando banho de piscina pelado!

Fletch disse: — Fui escalado para entrevistar Donald Habeck às dez da manhã de hoje, a respeito dos cinco milhões de dólares que ele e a mulher resolveram doar ao museu de arte.

— Mas você sabia que Donald Habeck tava morto! Eu vi você no estacionamento.

Fletch deu de ombros. — Há obstáculos que surgem em qualquer matéria.

Biff gritou para o céu, como se estivesse pessoalmente ofendido: — Ele tá tomando banho pelado na piscina da vítima!

O tenente Gomez chegou mais perto da borda da piscina. — O que você fez desde que chegou aqui?

— Entrevistei, ou tentei entrevistar, a senhora Habeck. Os dois homens arregalaram os olhos.

— Você teve com a senhora Habeck? — Gomez perguntou.

— Sim.

— Conte-nos sobre a senhora Habeck — disse Biff. — Como ela é?

— Deve ter uns sessenta anos. Cabelo azul. Tênis verde. Tipo esquisito.

Biff e Gomez se entreolharam.

— Filho — disse Biff, com extrema paciência —, o que você está fazendo, tomando banho pelado na piscina de Habeck duas horas depois dele ter sido assassinado?

— Eu não tava com um cheiro muito agradável, minha roupa...

— O quê? — Gomez disse.

— Pois é, eu fiquei preso naquela loja de bebidas enquanto tava vindo pra cá, fiquei todo encharcado de bourbon, realmente fedia com a coisa...

Biff pisou na mão de Fletch na borda da piscina.

— Ai. — Fletch deu um mergulho e esfregou a mão. Quando voltou à superfície, Biff e Gomez ainda estavam ali, olhando fixo para ele.

Fletch colocou a mão esquerda num tubo da piscina. Ele perguntou: — O que há com vocês?

— Ah, nada, não — respondeu Biff. — A gente devia ter imaginado encontrar um repórter da Tribuna tomando banho pelado na piscina da vítima duas horas depois que ela morreu.

Fletch perguntou: — Não é isso que fazem os caras que escrevem pra Social?

— Provavelmente — respondeu Biff. — Eu não saberia com certeza.

— Onde está sua roupa? — perguntou Gomez.

— A senhora Habeck levou.

— "A senhora Habeck levou" — repetiu Biff. Ele suspirou.

— Onde é que ela tá? — perguntou Fletch. — Não foi ela que deixou vocês entrarem?

— A cozinheira nos deixou entrar — disse Gomez. — Tava acabando de chegar das compras — acrescentou.

— Não falaram com a senhora Habeck?

— A senhora Habeck não está — disse Gomez.

— Ela não está? Onde estão as minhas roupas?

— Acho que isso é uma coisa que todos nós gostaríamos de saber — respondeu Gomez.

— Ela não pode ter ido embora com a minha roupa — disse Fletch.

— Talvez a tal senhora Habeck quisesse fazer outra doação ao museu — gracejou Biff. — Um exemplo da recente moda para vagabundos do século XX.

Gomez riu.

— De qualquer maneira, não consegui tirar muito dela — disse Fletch.

— Ah, você não tirou — disse Biff. — Foi ela quem tirou as roupas de você.

— Honestamente, ela parecia um pouco pirada. Tipo estranho, dá pra entender?

— Tipo estranho, né? Ela tirou suas roupas, desapareceu com elas e você chama ela de estranha?

— Ora, Biff — disse Fletch.

Na descida do gramado, Fletch viu o sombrero do jardineiro se erguer, mover-se alguns metros e desaparecer de vista outra vez.

Biff disse: — Você não devia estar aqui. E você sabe disso.

— Tem notícia da doação, Biff? O que vai acontecer com ela agora?

— Seu nome é Fletcher? — confirmou Biff.

— Com F.

— Suma da minha frente, Fletcher. Suma e fique fora.

Nu e molhado, Fletch se aproximou do jardineiro.

— Tem idéia de onde posso encontrar uma toalha?

O jardineiro levantou a cabeça para olhá-lo. Seu rosto era mais jovem do que Fletch esperava.

Lentamente, o jardineiro endireitou-se. Tirou sua camisa de brim e passou-a a Fletch.

— Pô, obrigado. To falando sério. Aqueles caras acabaram de dizer que a cozinheira tá em casa. — Ele amarrou a camisa em volta do corpo. — Devolvo assim que encontrar alguma roupa. Cara legal. Tirar a camisa do próprio corpo pra dar pra alguém.

O jardineiro ajoelhou-se e continuou a limpar o canteiro.

— Será que você sabe onde foi a senhora Habeck?

— La senora no es la senora.

— O quê?

— La senora no es la mujer, la esposa.

— O quê? "A senhora não é a esposa"? Você fala inglês melhor do que eu. O que está dizendo?

— Você fala da figura com quem estava conversando, certo? — perguntou o jardineiro.

— Certo.

— Ela não é a senhora Habeck.

— Não é?

— A senhora Habeck é jovem e bonita. — O jardineiro moldou na terra uma forma com o dedo. — Assim. Loura.

— Ela disse que era a senhora Habeck.

— Não é.

— Ela é a cozinheira?

— A cozinheira é latino-americana. Quarenta anos. Mora a dois quarteirões de mim.

— Então quem era?

— Não sei — disse o jardineiro. — Nunca vi antes.

Fletch entrou na cozinha e a cozinheira soltou um gritinho ao ver um estranho nu, com uma camisa de brim amarrada na cintura.

Fletch ia subir a escada quando Biff Wilson veio da sala e disse: — Acabei de falar com Frank Jaffe. Ele disse que você é um garoto panaca que não entendeu sua pauta. É pra você se mandar pra redação e se apresentar pra Ann McGarrahan na Social, voando.

— Certo — disse Fletch. — Voando. Começou a subir os degraus dois a dois.

— Por que está indo lá pra cima? — berrou Biff.

Fletch gritou de volta: — Estacionei meu carro aqui em cima.

Ao devolver a camisa de brim para o jardineiro, Fletch disse: — Desculpa não poder trazê-la lavada e passada, mas foi assim que perdi as últimas roupas que eu usei. Estavam a caminho de serem lavadas.

Ao levantar e vestir a camisa outra vez, o jardineiro apertou os olhos ao ver as roupas que Fletch estava usando.

Fletch encolheu os ombros. — Achei esse terno no armário de Habeck. Ele jamais vai sentir falta dele.

— O terno está curto e gordo.

— Peguei um cinto. Bela gravata. A gravata deve se destacar do resto do conjunto, certo?

— Você vai arrasar, cara.

— Mais uma vez, obrigado. A cozinheira gritou comigo.

— Eu ouvi. Achei que era o apito do almoço.

— O que ela teria feito se você não tivesse me emprestado sua camisa?

— Mexido os ovos sem que tivessem saído da geladeira.

— Onde aprendeu espanhol? — perguntou Fletch.

— CBH.

— CBH?

— É — disse o jardineiro, mergulhando no trabalho. — Colégio Beverly Hills.

 

— Boutique Cecília. Cecília falando. Você já pensou em usar calça-culote?

— Estou pensando seriamente — falou Fletch no telefone do seu carro.

— Estão começando a aparecer, senhor. Mais um mês e estarão na moda. Estou certa de que, se comprasse os culotes para sua esposa agora, ela ficaria realmente impressionada com a sua intuição.

— Os culotes também se impressionariam. Não tenho esposa. — Parado no sinal vermelho do cruzamento da Washington com a 23, Fletch percebeu que estava tudo calmo na loja de bebidas. Tinham pregado um compensado na porta, no lugar do vidro inquebrável que se estraçalhara. Estavam prontos para seu próximo assalto. — Posso falar com Barbara Ralton, por favor?

Cecília hesitou: — O pessoal de vendas não pode receber ligações particulares. Gostaria de deixar recado?

— Claro. Aqui é Fletcher. Diga que não posso almoçar com ela hoje. Por favor, diga também que eu espero poder comprar culotes pra ela. Na Saks.

— Estou aqui — disse Fletch.

— Eu quem? — Ann McGarrahan, editora da Social da Tribuna, era uma mulher alta, de ombros largos, na casa dos quarenta. Sentava atrás de uma escrivaninha que era muito pequena para ela, numa sala também muito pequena para ela.

— Pensei que vocês da Social conheciam qualquer um.

— Qualquer um que seja alguém — disse Ann de modo suave. Os cantos de sua boca esticaram-se num sorriso. — O que me obriga a repetir: quem é você?

— I. M. Fletcher. — Fletch olhou para a samambaia morta e seca no peitoril da janela de Ann. — Que não merece sua atenção. Um João Ninguém. Posso ir agora?

— Onde é que você estava?

— Ah, mudei de roupa. — Fletch segurou as pontas do paletó de Donald Habeck. — Frank falou qualquer coisa sobre eu precisar de terno e gravata pra esse trabalho.

Ann o analisou por cima dos óculos meia-taça. — E é esse o terno? É essa a gravata?

— O tecido é bom.

— Não duvido. É evidente que você investiu no tecido, não no corte.

— Eu emagreci.

— Cresceu também. A bainha de suas calças está uns cinco centímetros acima dos tornozelos.

— Já ouviu falar que dentro de um mês os culotes vão estar na moda? Por Deus, o que tenho que trazer pra este departamento!

— Entendo. E suas mangas são bermudões reformados, não? Acabam na metade dos braços.

— Estou pronto pra cobrir as rodas sociais.

— As moças daqui chamam você de Fletch, não é?

— Quando chegam a chamar. — Fletch sentou numa cadeira de madeira de encosto curvo.

— Por que não usam seu primeiro nome?

— Irwin?

— O que há de errado com Irwin?

— Soa como uma torcida desanimada.

— Ou seu segundo nome, então. Você não tem um segundo nome?

— Maurice.

— Conheço ótimas pessoas chamadas Maury.

— Não sou nenhuma delas.

— Tudo bem. Você é um Fletch. É que parece tanto um verbo.

— "Fletchar" ou não "fletchar": eis a conjunção.*

 

(*) No original: to fletch, or not to fletch: that is the copulative. (N. T.)

 

— Acho que vou ter que "fletchar". Então, Fletch, Frank Jaffe não só me mandou você com uma advertência que, embora medonha, não foi suficiente em relação à sua aparência, como também insistiu numa sugestão sobre o que deveria ser a sua primeira pauta.

— Eu sei o que é.

— Sabe?

— Sim. Ficar nessa matéria envolvendo os cinco milhões de dólares que Donald Habeck e a mulher resolveram doar ao museu de arte. Ficar em cima dela até o fim e tudo o mais que envolva os Habeck. Certo?

— Errado. É claro.

— Era minha pauta durante aproximadamente um minuto e meio hoje de manhã.

— Não foi Donald Habeck o sujeito que mataram no estacionamento hoje pela manhã?

Fletch encolheu os ombros. — Só faz a matéria ficar mais interessante.

— Ah, nós temos uma matéria interessante para você fazer, Fletch. Foi sugestão do Frank. Na verdade, ele disse que foi sugerida originalmente por você.

— Por mim? Uma matéria pras páginas da Social?

— Não consideramos mais essa seção só como sociedade, Fletch. Embora tenha sempre, é claro, o aspecto social. Nós a consideramos mais como interesses humanos, com ênfase nos interesses femininos.

— Por isso trouxe os furos sobre os culotes.

— Não é mais moda apenas, é mais pra estilo de vida. Não é só beleza, é saúde.

— Certo: o estilo de vida saudável das mulheres.

— Você se surpreenderia com alguns tópicos que nossas redatoras mais jovens querem discutir hoje em dia. — Ann pegou uma das cópias sobre sua mesa. — Este aqui é um artigo comparando os méritos relativos dos vibradores manufaturados. Com fotos fornecidas pelos fabricantes, imagino. Acha que deveríamos publicar um artigo comparando vibradores, Fletch?

— Ah...

— Qual é hoje o melhor vibrador do mundo na sua opinião?

— Não posso dizer.

— Por que não?

— Eu não seria imparcial. Estou ligado ao assunto. Seria uma opinião subjetiva.

— Sei. — Outra vez, Ann McGarrahan tentou manter os cantos da boca firmes. Largou a cópia na mesa. — Ah, as agruras de ser editora. Não é preciso dizer que esta matéria está na minha mesa há algum tempo.

— Vibradores?

— Sim.

— Tenho certeza de que você vai encontrar espaço pra ela.

— Então, como vê, nos enquadramos em todo tipo de área do seu interesse. Não nos preocupamos apenas com as velhinhas que batizam os seus chás com vodca.

— Frank e sua boca grande.

— Então ainda não descobriu qual é sua matéria? Esperava que tivesse descoberto sozinho.

— Alguma coisa sobre assistência sexual? Já sei: você quer que eu faça um relatório sobre a assistência sexual recomendada por cada dois entre três ginecologistas.

— Você correu na Maratona Sardinal ontem.

— Ah, não.

— Não correu?

— Sim.

— Frank me contou que você correu atrás de um grupo de umas doze mulheres que você não conseguia ultrapassar.

— Ah, não!

— Essas mesmas mulheres ganharam, ao que parece, uma publicidade meio excessiva nas páginas de Esporte da Tribuna de hoje de manhã. — Enquanto dizia isso, Ann McGarrahan abriu a Tribuna na seção de Esporte e olhou para as duas fotografias em duas páginas desse grupo de mulheres indo e vindo. — Nossa. São moças jovens, atraentes e saudáveis, não são?

— Dão pro gasto.

— Por alguma razão, Frank toma essa divulgação nas páginas de Esporte como uma espécie de insulto pessoal. Acho também que ele está na sua sala agora levando uma bronca considerável. Dos grupos de sempre.

— Ih, cara.

— "Atendimento a Amigos Ben Franklyn. Prestadores de serviços." — Ann parecia ler do jornal. — Que espécie de serviços você acha que elas prestam, Fletch, para deixar Frank tão irritado?

— Você tá brincando.

Ann avançou o rosto largo sobre a mesa e perguntou: — Por acaso tem alguma coisa a ver com homens?

— Suponho que sim.

— Me conte.

Fletch sentiu o encosto da cadeira pressionar suas omoplatas. — É um escort service do variado mundo da prostituição e eu imagino que você sabe disso.

— Ah! Parece que aqui tem notícia.

— O quê? Notícia nenhuma...

— Como lhe expliquei — disse Ann —, nessas páginas nós nos preocupamos com os interesses das mulheres, sua saúde, como se sustentam...

— Este é um jornal de família!

— Bom ouvir você dizer isso. Sua investigação será, é claro, discretamente relatada.

— Você quer que eu investigue um bordel?

— Quem melhor?

— Vou me casar no sábado!

— Já passou no seu exame de sangue? Fletch respirou fundo.

Ann ergueu a palma da mão para ele. — Isso é novo, pelo modo com que eu vejo: prostitutas que são obrigadas a ficar em excelente forma física. Tem a ver com uma série de artigos que já publicamos sobre jardinagem orgânica, acho. Como opera esse Atendimento a Amigos Ben Franklyn? Qual a origem de sua disciplina? Como divertem profissionalmente os homens sem que elas mesmas tenham que beber muito? Se elas não são viciadas em drogas, por que são prostitutas? Quanto ganham? — Ann mantinha a mão erguida. — Mais importante, a quem pertence o Atendimento a Amigos Ben Franklyn? Quem leva os lucros?

Fletch soltou o ar e não disse nada.

Ann disse: — Acho que isso dava uma matéria.

— A melhor maneira de fazer — disse Fletch — podia ser mandando uma de suas jovens redatoras pedir uma colocação no Atendimento a Amigos Ben Franklyn.

— Ah, mas você teve a idéia da matéria, Fletch. O próprio Frank me falou. Não seria correto da nossa parte tirá-la de você. É claro, podemos mandar uma jovem também para investigações preliminares, o lado de lá da matéria.

— Eu disse que vou me casar no sábado.

— Não lhe deixa muito tempo, não é?

— Ann...

— Além disso — disse Ann, redobrando o jornal na mesa —, acho que Frank pensa que essa matéria — bem feita, é claro — vai ajudar muito a aliviar a barra dele por causa da publicação dessas fotos lamentáveis no Esporte de hoje de manhã. — Ela juntou as mãos sobre a mesa. — Nem tudo é chá com bolinhos na editoria de Estilo de Vida, Fletcher. Decididamente, você é homem pro negócio.

Fletch estava olhando pela janela. — P. S., sua samambaia morreu.

— Eu por acaso gosto de samambaias secas — disse Ann, sem olhar em volta. — É conceituai: sempre ver o pior das coisas.

— Oh, céus.

— Estou feliz de ter você na editoria, meu jovem senhor Fletcher. Ao menos aqui ninguém vai passar a mão na sua bolsa.

— Não é com a minha bolsa que estou preocupado. — Ele se levantou.

— Será interessante ver o que você vai apresentar.

— Você tá me pedindo pra "apresentar" sob circunstâncias bem desagradáveis.

— Ah. E, Fletcher...

— Pois não, senhora?

— Cuidado com Biff Wilson. Não se meta no caminho dele. Se você fizer isso, ele vai passar por cima de você como se fosse um trem de cinqüenta vagões. Ele é um filho da puta podre. Acho que eu posso dizer isso. Já fui casada com ele.

— Fletch, tem uma ligação pendurada pra você. — A jovem do lado de fora da sala de Ann McGarrahan sacudiu as pulseiras para ele. — É o 303. Belo terno. Tá com medo de ser violentado na área?

— Alô — disse Fletch ao telefone.

— Alô — disse Barbara. — Tô uma fera.

— Acho melhor eu ser Fletch.

— Que diabo você pretende dando um esporro na minha chefe?

— Eu fiz isso?

— Cecília tá superpreocupada com culotes. Comprou em excesso.

— Sei. Ela não te deixava atender o telefone.

— Política da casa. O telefone é pro trabalho, não prós funcionários.

— Mas eu sou o noivo da vendedora número um.

— E que história é essa que você não pode almoçar comigo?

— As coisas estão um pouco confusas por aqui.

— Hoje é segunda, Fletch. A gente vai casar no sábado. Tem coisas que a gente tem que conversar, sabia?

— De qualquer forma, já me comprometi em almoçar com Alston. Queremos ele como nosso padrinho, não?

— Essa é a menor das minhas preocupações. A gente não tem muito tempo. Você tem que se mexer.

— Estou me mexendo.

— Quero dizer realmente botar pra frente. Veja tudo que você tem que fazer. A Cindy diz...

— Barbara! Dá um tempo! Não venha me dar um esporro agora!

— Por que não?

— Porque acabei de levar um esporro simplesmente da melhor. Do lado dela, você vale qualquer nota.

— Então por que não se casa com ela, seja lá quem for?

— Eu casaria — Fletch respondeu. — Se ela já não tivesse outras pretensões pras minhas aptidões.

 

— Boa tarde, Alston. — Fletch sentou na cadeira de uma mesa do café.

— Boa tarde — disse Alston. — To tomando cerveja.

— Saúde.

— Quer uma cerveja? — Fletch concordou com a cabeça. Alston fez sinal para o garçom. — Duas cervejas, por favor. — Com as costas da mão, Alston tirou um fiapo da manga de seu paletó. — Fletch, não pude deixar de reparar, conforme você arrastava os pés pela calçada...

— O quê?

— O seu terno.

— Me mandaram pra Social.

Alston deu uma risada. — Bem, esse é um autêntico terno "dane-se-a-sociedade".

— É conceitual, eu acho — disse Fletch. — Como samambaias secas. Sempre ver o pior das coisas.

— Vejo que você teve uma supermanhã também. Eles finalmente te pegaram por causa daquele título?

— Título?

— MÉDICO SALVA VIDA EM ACIDENTE?

— Nunca notaram esse aí. — O garçom trouxe as cervejas. — Às vezes penso que sou o único na Tribuna com algum senso jornalístico.

— Tenho a manchete pendurada na minha parede.

— Precisamos ver o lado brilhante, Alston.

— Pois é — disse Alston. — Barbara.

— Barbara acabou de me dar um esporro.

— Ah.

— Hoje de manhã levei um esporro do editor-chefe, Frank Jaffe, da estrela da redação policial da Tribuna, Biff Wilson, de Ann McGarrahan, editora da Social, e da minha noiva, Barbara Ralton. E é só segunda-feira.

— Dentro de um terno desses, se é que se pode dizer que você está dentro dele, me surpreende que alguém leve você a sério.

— Ah, claro. — Fletch tirou o casaco e colocou-o nas costas da cadeira. — Também fiquei preso numa loja de bebidas. Atiraram em mim.

— Muitas pessoas já ficaram presas em lojas de bebidas. Uma vez, sabe, meu tio estava com pressa, antes dele bater as botas...

— E entrevistei uma boa e pirada senhora que disse ser uma pessoa que aparentemente não é.

— Você entrevistou uma impostora?

— Suponho que sim.

— Conseguiu tirar alguma coisa interessante dela?

— Eu tive a sensação de estar comandando ela, Alston.

— Imagino que se deva fornecer respostas a uma impostora — disse Alston. — Pra conseguir qualquer tipo de matéria.

— Além do mais, ela conseguiu tirar minha roupa e fugir com ela.

— Tudo isso aconteceu agora de manhã?

— E logo aquele tênis, que estava começando a ficar confortável.

— Fletcher, tem certeza de que você vai conseguir dar certo fora do Corpo de Fuzileiros Navais?

— É duro, Alston, tomar um rumo na vida. Alston ergueu sua cerveja. — À juventude.

— Ninguém nos leva a sério. Nós, jovens.

— E nós somos sérios.

— Sem dúvida que somos. Seriamente sérios.

O garçom disse: — Os senhores já querem pedir?

— Sim — disse Fletch. — O de sempre.

— Senhor — disse o garçom, com a caneta pronta —, pode ser o de sempre para o senhor, mas o que quer que seja, não é o de sempre para mim.

— Quer dizer que eu tenho que lhe dizer meu pedido?

— O senhor pode não dizer nada. Diminuiria meu trabalho.

— Acabei de pedir isso a semana passada.

— Me agrada saber, senhor, que foi o senhor que voltou e não aquilo que pediu para o almoço.

— Este é o Manolo's, não é?

O garçom olhou de relance para o nome no toldo. — Pelo menos isso é fato consumado.

— Um sanduíche de pasta de amendoim e banana em fatias com maionese, no pão preto — disse Fletch.

— Ah — disse o garçom. — Esse é memorável. Como podíamos ter esquecido?

— Faça o meu especial.

— Assim espero. E o senhor?

— Um sanduíche de Liederkranz com aipo, no pão de centeio — respondeu Alston. — Com uma pitadinha de ketchup.

— Pelo amor de Deus, esse é outro especial. O garçom saiu apressado.

— Até o garçom não nos leva a sério — disse Fletch.

— Ninguém leva a juventude a sério. A maturidade é muito preciosa pra ser gasta no que é antigo.

— E nós não somos maduros? Veteranos. Você é um advogado. Eu sou um jornalista.

— No entanto, as pessoas ainda nos atiram na categoria "a-serem-vistos-e-não-ouvidos".

— Será que não é porque a gente tá bonito?

— Nesse terno, Fletcher, você ofusca narcisos.

— Espero que sim.

— Fui chamado na sala de Haller hoje de manhã. Sócio principal. Convocado. Você vê, sou obrigado a participar de reuniões, mantendo minha boca fechada, é claro, e nunca, nunca rir, deixar meu queixo cair de surpresa ou olhar fixo demais.

— São essas as condições de seu emprego?

— É isso aí. Eu tenho só que escutar. Fazer de conta que não estou lá. Assim aprendo como os advogados adultos elevam seus honorários até uma exorbitância, pagam os salários pra nós, almas menores, e mantêm seus Mercedes.

— Parece edificante.

— Pedagógico. É evidente que os peões como eu têm que estar presentes nas reuniões pra que a gente possa entender que a investigação e o trabalho de rua devem ser feitos no caso debaixo do pano.

— Você não tá falando de estudos, conselhos ou alguma coisa assim?

— Debaixo do pano. Tem esse cliente novo de Habeck, Harrison e Haller...

— Ha ha ha.

— Como? Eu ainda não acabei.

— Devia ter dito Hab, Har, Hal. Falei certo?

— Provavelmente. Seja lá o que estiver dizendo.

O garçom colocou os sanduíches na frente deles. E disse: — Aqui está seu papá.

— É — disse Fletch. — Obrigado, mama.

— Enfim — continuou Alston, checando o ketchup e considerando-o aparentemente satisfatório. — Esse novo cliente foi interrompido pela polícia sábado à noite, enquanto retirava a prataria, o som e outras coisas cintilantes de uma casa em The Heights. O escândalo e a razão pra esse senhor vir até Habeck, Harrison e Haller são, veja bem, porque a casa, a prataria, o som e os outros objetos cintilantes não lhe pertenciam.

— Um ladrão.

— Bem, alguém na linha de frente no negócio de furtos.

— Por que ele não tava no tribunal de manhã?

— Veio até nós diretamente do tribunal, tendo a sabedoria de pedir — e ganhar — o que vai ser, tenho certeza, o primeiro de muitos adiamentos.

— Saiu por fiança.

— Ele próprio estipulou uma modesta quantia. A razão disso e por ter saído correndo, disse ele ao tribunal, era porque ele tinha que levar seu cachorro de quinze anos ao dentista.

— Tinha uma hora marcada?

— Inadiável.

— Uma missão de misericórdia.

— Sem dúvida, o tribunal agora está predisposto a seu favor.

— Não vai me dizer que ele mentiu no tribunal?

— Bem, ele nos contou, ou melhor, contou ao senhor Haller que, enquanto estava no tribunal, o cachorro, esperando pra ir ao dentista, uivava tanto de dor que um vizinho lhe deu um tiro.

Fletch balançou a cabeça. — Ele não precisava ter corrido. — Ele colocou sal no seu sanduíche de pasta de amendoim, banana e maionese. — Me conte, ele ligou cancelando a hora do dentista?

— Ele não disse.

— Estou tentando determinar o grau de honestidade desse sujeito, entende, com o social.

— Nas reuniões, não estou autorizado a levantar tais questões.

— Eu esqueci. Você é uma planta suspensa.

— Ou isso ou qualquer coisa que seja colocada na base das plantas pra ajudar a crescerem.

— Me surpreende o senhor Haller, sendo um dos sócios principais de um importante escritório de advocacia, entrevistar em pessoa um simples ladrão. Por que admitiria um ladrão como cliente?

— Ah, Fletcher, você é inocente quanto ao funcionamento de escritórios de advocacia e também das leis.

— Pensei que soubesse de algumas coisas.

— Aposto que você pensou que escritórios de advocacia exercessem o Direito.

— E não?

— Não é sua função primordial.

— Não é?

— Não. O que se faz na verdade é o que chamam de esfriar o cliente.

— Ensinam isso na faculdade de Direito?

— Não. O que faz iniciantes como eu trabalharem em escritórios de advocacia por poucos anos e por um mínimo salário, suficiente apenas para manter os colarinhos limpos. Porque não é na faculdade de Direito que a gente aprende essa técnica essencial para a prosperidade dos escritórios.

— E o que é "esfriar o cliente"?

— Quando um cliente bate na porta de um escritório tão ambicioso quanto Habeck, Harrison e Haller, a primeira tarefa da firma é descobrir quanto vale o cliente — o cliente não, o caso. É preciso experiência e astúcia pra fazer essa avaliação.

— Não vejo o que o valor do cliente tem a ver com o valor do caso.

— Suponha que é um caso simples e honesto. Mas o sp-cio principal, que é quem faz a primeira entrevista, descobre que o cliente é rico. Nessas circunstâncias, o que é que você faria?

— Prática do Direito.

— Como você sabe pouco. Você esfria o cliente. O sócio principal, tendo avaliado o valor do cliente, decide quanto o escritório vai tirar da riqueza dele em honorários, sem levar em conta se o caso é complicado ou simples. Você se surpreenderia se soubesse como um escritório famoso pode complicar o mais simples dos casos, criando retrocessos, atrasos, preenchendo requerimentos errados ou inúteis, petições, iniciando rumos de argumentação equivocados, etc. O objetivo, veja bem, é manter o caso andando o máximo possível, mamando cada centavo que o cliente ou a cliente vale. Se apesar de todos os esforços do escritório o caso chega ao fim, e se o escritório fez um trabalho soberbo de esfriar o cliente consistentemente durante a pena, o cliente acaba empobrecido e muito, muito grato.

— Desculpe-me, doutor, mas isso não se chama roubo?

— Chama-se construir uma sólida reputação.

— Supondo, doutor, que na primeira entrevista o sócio principal descubra que o cliente em questão não é rico o bastante para ser roubado?

— Entre três coisas, uma acontece. Primeiro, o cliente é persuadido de que seu caso poderá ser tratado tão bem e mais barato por uma firma menor e menos famosa. Esta, casualmente, retribuirá ao escritório que fez a indicação uma percentagem dos tais honorários que o cliente pobre vai poder pagar.

— O rico fica mais rico.

— E o pobre se ferra. Segundo, se o caso tem algum valor social prós sócios, se pode gerar alguma publicidade ou seja lá o que for, mesmo que o cliente não tenha recursos suficientes que valham a pena ser roubados, pega-se o caso. Que então é tratado com uma velocidade e eficiência tão surpreendentes que todo mundo assiste sem fôlego. Política de armação. São feitos acordos particulares. Chega-se a um acordo rápido e barato, nem sempre pra total benefício,do cliente.

— E a reputação do escritório fica ainda mais sólida.

— Estou falando do funcionamento interno de um escritório de advocacia comum e ambicioso. Pelo menos como Habeck, Harrison e Haller. Ou a forma com que alguns advogados encaram o Direito, você pode dizer.

— Você tá acabando com minha inocência.

— A terceira coisa que pode acontecer foi o que aconteceu hoje de manhã. É o que eu estou tentando te contar.

— Se alguém que se compromete com um advogado é um tolo, alguém que se compromete com Habeck, Harrison e Haller é o que, então?

— Você pode ver por que a violência não é sempre uma solução irracional.

— Uma solução descoberta por uma percentagem crescente da população — disse Fletch. — Você já ouviu a queixa "os tribunais não funcionam"?

— Uma ou duas vezes — admitiu Alston. — A terceira coisa que pode acontecer com um cliente sem recursos é o que vi acontecer hoje de manhã. Um ladrão corre do tribunal e acaba sendo entrevistado pelo senhor Haller.

— Pode-se supor que, se o ladrão tivesse recursos suficientes pra pagar Habeck, Harrison e Haller, ele não seria um ladrão.

— Muitos ladrões podem pagar Habeck, Harrison e Haller. Pra tudo tem um sistema, você sabe.

— O sistema jurídico.

— Obviamente, ladrões têm que ser representados.

— Têm seus direitos.

— Estão numa posição arriscada. Impossível dizer quando sua presença pode ser solicitada num tribunal de justiça.

— Isso é a sorte. Oportunidades.

— Então, o senhor Haller hoje de manhã, depois de fingir escutar os pontos-chave dos problemas do nosso novo cliente-ladrão, explicou-lhe que muitos de seus colegas no ofício do roubo costumavam adiantar um valor com base anual para Habeck, Harrison e Haller. Uma espécie de seguro profissional, entende? Em caso de sua fonte de renda ser interrompida por uma detenção, condenação e prisão. Por exemplo, explica o senhor Haller, se nosso ladrão hoje de manhã já tivesse pago o tal adiantamento a Habeck, Harrison e Haller, um advogado de Habeck, Harrison e Haller, tal como eu, poderia estar esperando por ele na delegacia quando foi detido na noite de sábado, pra fazer o que fosse conveniente e necessário. Ele não precisaria sequer ter pago a fiança.

— De quanto é o adiantamento?

— Dez mil dólares. Não muito, na verdade, se você considerar que um ladrão preso não vale nada. Nem pra família, nem prós amigos, nem pra economia ou pra Habeck, Harrison e Haller. Na cadeia ele não pode ter uma fonte de renda.

— Alston, se esse cara tivesse dez mil dólares no sábado, quem ele ia roubar à noite?

— Não é por aí. Ele não ia ter os dez mil dólares. Mas o escritório teria. Então o sujeito pode sair, se sustentar, sem ter aborrecimentos. Consciência tranqüila, Fletcher, vale quase qualquer preço.

— Sei.

— Aí nosso cliente-ladrão ouve do senhor Haller hoje de manhã que se ele aparecer com dez mil dólares dentro de dez dias — ou seja, antes de sua própria apresentação no tribunal — poderá esperar os serviços completos, assistência e talentos de Habeck, Harrison e Haller. Se não, o senhor Haller pode indicar ao ladrão um escritório menor que poderá muito bem ser seu representante, mesmo dentro de seus limitados recursos.

— Como um ladrão de quinta vai aparecer com dez mil dólares dentro de dez dias?

— Adivinhe.

— Tá me gozando.

— Não estou te gozando.

— Quer dizer que um dos principais sócios de um importante escritório de advocacia está mandando um ladrão roubar?

— Realmente, só queremos profissionais na nossa clientela.

— Tecnicamente, o senhor Haller não é um membro do tribunal?

— Ele é um golfista semi-honesto e um avô apaixonado.

— O ladrão aceitou esse acordo?

— Claro. Onde ia ficar a família dele se ele fosse pra cadeia? Tranque suas portas hoje à noite.

— Em outras palavras, o ladrão está agora roubando em favor de Habeck, Harrison e Haller.

— Se ele vai ficar nessa profissão, obviamente seus honorários profissionais e gastos precisam estar garantidos.

— Supondo que ele seja detido outra vez?

— Quanto mais trabalho, maiores os honorários de Habeck, Harrison e Haller.

— Alston, você está me fazendo mal.

— Tenho certeza de que não foi o sanduíche que você acabou de comer. O que pode ser mais suavizante para o estômago do que pasta de amendoim, banana e maionese? Preciso experimentar algum dia.

— Sinceramente, estou chocado. Em primeiro lugar, que esse seu amigo Haller, que devia ter acabado de saber que o sócio tinha sido assassinado num estacionamento, tenha-se sentado e conversado seriamente com qualquer cliente, ladrão ou não.

— Durou só quinze minutos. Depois que o cliente é fisgado pelo sócio principal, ele é mandado pra um dos advogados menores da firma. Precisa-se pagar o aluguel. Manter o Mercedes.

— Alston, você quer um Mercedes?

— Minha vontade de ter um está diminuindo.

 

O garçom parou diante deles. — Os senhores gostariam de um café, chá ou preferem um sundae?

— Que tipo de sundae vocês têm? — perguntou Fletch.

— Chocolate, creme.

— Morango não? — disse Alston. — Queria de morango.

— Morango não — suspirou o garçom.

— Acho que vou tomar um café — disse Fletch.

— Eu quero outra cerveja — disse Alston. — Bote uma cereja nela desta vez, tá bom?

— Um café — anotou o garçom. — Uma cerveja com cereja.

— Alston — disse Fletch —, gostaria que você descobrisse qualquer coisa sobre Donald Habeck. Tudo que pudesse me dizer.

— Na verdade, só cheguei a cumprimentar ele no dia em que fui admitido. Um homem baixo, parrudo...

— Eu sei — disse Fletch, ajustando o cinto.

— Considerado um dos mais brilhantes criminalistas do país.

— É isso. Não é de surpreender que um homem com tanto conhecimento na área criminal acabe assassinado num estacionamento.

— É surpreendente — contrapôs Alston. — Ele é a única pessoa que você pode considerar segura contra esse tipo de coisa. Imagino que todos os bandidos desta zona devem-se considerar comprometidos com ele.

— Um café — disse o garçom. — Uma cerveja com uma cereja.

Fletch olhou para a cereja de Alston. — Ele realmente colocou uma cereja aí dentro.

— Eu queria uma cereja aqui dentro.

— Você vai comer?

— Você tá de olho na minha cereja.

— Desculpe.

— Quero dizer, imagine só se fosse um assassinato por encomenda. Quem toparia? Habeck já defendeu a maioria dos assassinos que valem esse título.

— Ei, negócio é negócio.

— Pelo que sei, assassinos profissionais não gostam de matar ninguém que conhecem, nem mesmo pessoas com quem não têm ligação alguma, a não ser mera simpatia. Sempre com medo de que alguma rede possa se armar.

— Alguém que não seja tão agradecido a Habeck. Alguém com quem Habeck tenha fracassado, que não tenha defendido de forma adequada, de quem tenha perdido o caso. Por exemplo, eu procuraria um ex-cliente de Habeck que saiu recentemente da prisão. Passou uns tempos alimentando o ressentimento.

— Duvido que exista alguém assim.

— Deve existir. Habeck não pode ser vitorioso toda vez que entra no tribunal.

— Vitorioso de uma forma ou de outra. O senhor Harrison, o outro sócio principal, me disse uma vez: "Você pode cometer uma chacina na frente de testemunhas, até de testemunhas da polícia, e nós podemos lhe assegurar que jamais irá preso por isso. Pode-se contar sempre com algum erro técnico da polícia ou do promotor no processo de detenção, na acusação formal, na coleta ou apresentação de provas".

— Ele realmente disse isso?

— Ele realmente disse isso.

— É terrível.

Alston deu de ombros. — O policial médio neste país tem algo em torno de seis semanas de treinamento formal. O advogado de defesa tem uns seis anos, somando seu estágio num escritório de advocacia. E os juízes estão irremediavelmente com excesso de trabalho e mal assessorados.

— Então como é que as pessoas chegam a ir pra prisão?

— Não contratam Habeck, Harrison e Haller.

— Alston, Habeck não poderia ter ganho cem por cento dos casos que levou pra justiça.

— Mas quase isso, aposto. Ele pode escolher seus casos. Graças aos contratos de apelação. Aposto até que os clientes dele que estão ou já estiveram na prisão ficaram felizes de ir. Acusações reduzidas, sabe? — Alston tomou um gole de sua cerveja. — Mas vou procurar.

— Habeck era um homem rico?

— Consideravelmente rico. Ele sabia de onde vinha seu próximo Bang and Olufsen.

— Rico o bastante pra dar cinco milhões de dólares?

— Existe alguém que seja tão rico assim?

— Foi por isso que ouvi falar dele hoje de manhã, pela primeira vez. Ia conversar com o editor, John Winters. Habeck queria divulgar que ele e a mulher estavam dando cinco milhões de dólares pro museu. Mas queria que isso fosse divulgado discretamente, o que quer que isso signifique. Para que sua privacidade não fosse invadida.

— Ele não era o advogado mais estrela desta costa, mas também nunca evitou publicidade.

— Suponho que nunca tenha dado cinco milhões de dólares.

— É uma quantia absurda. — Alston mastigou sua cereja empapada de cerveja.

— O que significa doar cinco milhões de dólares?

— Significa que ele deve almoçar. No mínimo.

— Não, sério.

— Significa que ele é um filantropo. Bondoso. Generoso. Tem o bem-estar do mundo dentro do coração.

— É assim que você descreveria Donald Habeck?

— Não. Como eu te disse, só encontrei com ele uma vez. Mas não é assim que eu o descreveria.

— Ele era sócio de uma firma que mantém assassinos fora da prisão e que faz ladrões saírem pra assaltar.

— Neste país, Fletch, qualquer um tem direito à sua melhor defesa.

— Ora, Alston. Não são todos os escritório de advocacia que funcionam como você descreveu Habeck, Harrison e Haller.

— Não todos. Mas muitos.

— É possível que Habeck tenha ganho tanto dinheiro só como advogado?

— Ah, sim. Em toda a vida. Isso e mais.

— Muito mais?

— Não tenho certeza.

— Por que estava doando cinco milhões de dólares?

— Não tinha mais o que fazer com eles, suponho. Um homem na casa dos sessenta...

Fletch enrugou o nariz por causa do sol. — Tinha filhos, eu acho. Crescidos, claro. Netos. A impostora que eu entrevistei hoje de manhã, a mulher esquisita que dizia ser a senhora Habeck e não era, mencionou filhos e netos. O jardineiro da casa de Habeck disse que a verdadeira senhora Habeck é jovem. Não deu pra sacar.

— Remir a culpa. Talvez Habeck estivesse tentando se livrar de sua própria culpa.

— Parece que foi um sujeito que passou a vida afastando a culpa racionalmente. Profissionalmente. A sua e a dos outros.

— Ê, mas ele estava envelhecendo.

— Com uma mulher jovem. Eu não entendi. Sua casa simplesmente não se parece com a de alguém que pode se desfazer de cinco milhões de dólares. Quero dizer, se você tem cem milhões de dólares, eventualmente cinco é uma coisa normal. Não é necessário interromper seu fluxo de vida, suas idas e vindas. Mas doar cinco milhões quando você provavelmente tem seis, e uma mulher jovem, netos talvez...

— Qual dos senhores gostaria de receber a conta? — perguntou o garçom.

— Ele — respondeu Alston, solene.

— Não — disse Fletch. — Dê pra ele.

— Você me convidou pra almoçar — Alston rebateu.

— Você também me convidou.

— Quem sabe eu pago? — perguntou o garçom. — Tive o prazer de servi-los.

— Ele tem razão — observou Fletch.

— Seria o máximo do bom serviço — concordou Alston.

— Quero dizer, indicaria que este garçom fez tudo o que foi possível por nós.

— É a única possibilidade que vocês ainda não consideraram — admitiu o garçom.

— Mas e a gorjeta? — perguntou Fletch. — Traz um dilema moral. Confusão prática também.

O garçom olhou em volta o café aberto. — Ah, trabalhar num restaurante de adultos — suspirou ele. — Um com paredes.

— Eu pago a conta — disse Alston a Fletch —, se você me responder uma pergunta.

— Qualquer coisa. — Fletch observou Alston pagar a conta.

— Cara — falou Alston, depois que o garçom se afastou.

— Durante o almoço, conversamos sobre filantropia, assassinato, justiça e nem sequer nos fizemos respeitar pelo garçom.

— Ninguém respeita jovens — lamentou Fletch. — Nem editores-chefes, redatores policiais, editoras sociais, balconistas de lojas de bebidas...

— Noivas.

— Noivas.

— Garçons.

— Agora que já pagou a conta — disse Fletch —, tenho uma pergunta pra você.

— Então por que você não pagou a conta?

— Quer ser padrinho de casamento?

— Você quer dizer o padrinho de casamento? Quantos de nós você acha que vão?*

 

(*) No original: "Would you be my best man?"/"You mean my better man?". (N. T.)

 

— Sábado de manhã. A hora que você acordar.

— Você comprou esse terno pro seu casamento?

— Você não gosta?

— Cinza não cai bem em você.

— Barbara falou alguma coisa sobre, a gente casar nu.

— Em pêlo?

Fletch confirmou com a cabeça. — Ela disse que seria honesto da nossa parte. Coerente. Ela diz que um casamento é o encontro de dois corpos, masculino e feminino.

— Você tem certeza de que quer casar com Barbara?

— Não.

— Vestir qualquer coisa ou vestir nada é melhor do que vestir esse terno ridículo.

— Então, vai ser meu padrinho?

— Minha pergunta é: onde arranjou esse terno? Não quero ir lá nunca.

— Pensei que você fosse reconhecer.

— Por que eu deveria?

— Achei que já tivesse visto o terno.

— Os hidrantes não costumam usar ternos.

— Caminhando pelos corredores de Habeck, Harrison e Haller.

Os olhos de Alston se arregalaram. — Habeck? Esse terno é de Habeck?

— Agora vai respeitar o terno. Habeck não fodia a jurisprudência pra ganhar ternos da Legião da Boa Vontade.

— Você roubou o terno de um defunto?

— Acho que dá pra se dizer isso, já que insiste.

— Eu não sei, Fletch. Me preocupo com você.

— Então, vai ser meu padrinho?

— Fletch, meu amigo: você não deve ir a lugar algum sem um advogado. Especialmente ao seu próprio casamento.

 

— Frank? — Fletch disse.

No mictório, o editor-chefe deu um salto. Não se virou.

— Quem me quer?

— Essa pergunta é diferente.

— Diferente do quê?

No banheiro dos homens, vazio exceto por eles, Fletch andou até um vaso próprio, três distantes do de Frank Jaffe.

— Tudo em cima — Fletch disse.

— Ah, é você. Terno bonito. — Fletch deu descarga.

— Não sabia que a maré já tinha subido hoje.

— Já convidei você pro meu casamento? — Fletch perguntou.

— Por Deus, não.

— É sábado, sabe.

— Que dia é sábado? — Frank lavava as mãos.

— Fim da semana. Entre sexta e domingo.

— Claro: é o dia em que tento escapar dos funcionários. Fletch seguiu Frank até o lavatório. — Estou pleiteando um caso, senhor Jaffe.

— Caso de quê? Você já confessou a como-é-mesmo-o-nome-dela que você tem algum caso de alguma coisa?

— Essa é a questão, Frank. Não quero um caso. Não quero uma doença venérea. Não quero chegar perto daquele lugar.

— Que lugar?

— Frank. — Fletch sacudiu as mãos molhadas sobre a pia e esticou-as para a frente. — Vou me casar no sábado e você me põe pra investigar um bordel!

— E virar do avesso. — Frank secou as mãos numa toalha de papel.

— Isso é alguma piada da redação?

— Ainda não — Frank disse. — Mas tenho certeza que vai ser.

— Podem sacanear o garoto, é isso?

— Fletch, você precisa de mais experiência. Não?

— Não desse tipo. Não pra casar.

— Ô, rapaz. Você pediu um trabalho, um trabalho de verdade, então te dei um.

— Um bordel na semana antes do meu casamento?

— É uma chance pra você mostrar seus dotes. Mostre pra gente o que você pode fazer.

— Muito engraçado.

— Queremos que você dê o máximo que pode, garoto. Que chegue ao fundo da coisa. Realmente no ponto crucial do assunto. O que queremos é uma reportagem penetrante. Queremos que todo mundo alcance a questão com você.

— Você esqueceu uma coisa.

— O que foi que esqueci agora? — Frank olhou para seu zíper.

— As despesas.

— A gente espera despesas.

— É, mas eu vou tomar nota das minhas despesas com uma exatidão que vai doer em você.

— Isso não vai ser novidade.

— Detalhadas. Vou especificar direitinho todo o dinheiro que estou gastando no Atendimento a Amigos Ben Franklyn e qual a finalidade.

— As notas nunca são questionadas se a matéria vale os gastos.

— Frank, eu vou arquivar uma conta referente a despesas pornográficas!

Frank abriu a porta do corredor. — Talvez a gente publique isso também.

— O que o editor vai dizer sobre isso?

Saindo do banheiro, Frank disse: — Dê o melhor de você, garoto.

 

— Tão certo quanto eu estar viva e respirando — disse a boneca embaixo do chapéu de aba larga —, você deve ser Fletcher.

Parado na porta da sua pequena sala, Fletch franziu a testa. — Por que está dizendo isso?

— Seu terno, meu bem. Seu terno. — Com as mãos relaxadas sobre o teclado de seu terminal, Amelia Shurcliffe, colunista social da Tribuna, tinha eternamente a expressão facial de alguém que acabara de ser convidado para uma festa. Ela eternamente tinha acabado de ser convidada para uma festa. Para alguns, dar festas faz a vida valer a pena. Para todo mundo, uma ou duas linhas na coluna de Amelia faziam com que dar a festa valesse a pena. O que Amelia não soubesse sobre o círculo de festas não valia a pena tomar conhecimento. — Ouvi falar tanto de você e de sua instigante maneira de vestir.

Fletch baixou os olhos para o terno de Donald Habeck. — Instigante?

— Você não pretende me dizer que não sabe o que está fazendo! Na moda, você é simplesmente um gênio inconsciente!

— Inconsciente, sim.

— Fletcher, meu bem, veja como está vestido. — Embora Amélia estivesse olhando fixo para Fletch de cima a baixo e de baixo para cima, seus olhos davam rápidas desviadas para o telefone. — Esse terno executivo está quilômetros menor que você. Evidentemente sabe disso.

— Alguém já fez esse comentário.

— Suas calças estão na altura das canelas, suas mangas praticamente nos cotovelos e há metros de tecido sobrando na cintura.

— Bacana, hein?

— Eu que o diga. Fazer moda, meu querido, se você ouvir a velha Amélia, não que você precise, é claro, é usar roupas que fazem as outras pessoas querer tirá-las de você.

— Eu consegui isso?

— Brilhantemente. Você parece perdido e desconfortável dentro desse terno.

— E estou.

— Qualquer um que o visse, iria querer arrancar essas roupas de você.

— Diminuiriam o ar condicionado primeiro?

— E você provoca esse impulso, sabe. O paletó e a camisa estão muito justos no peito e nos ombros. Os botões da camisa estão forçando. Aliás, você está ao ponto de explodir dentro dessa roupa.

— Estou na última moda, não?

— Tão original. Como chama esse estilo? Fletch deu de ombros. — Emprestado.

— "Emprestado" — disse Amélia, com grande satisfação. Datilografou algumas palavras no seu teclado. — Vou usar isso.

— Já ouviu falar em culotes?

— Que acontece com culotes?

— Vão estar super na moda dentro de um mês. A Boutique Cecília está com um grande estoque.

— Culotes, meu bem, foram moda há meses atrás.

— Ih.

Amélia olhou de relance para o telefone. — Bem, querido, além de me presentear com uma inovadora, brilhante e jovem visão da moda, a que devo a honra da visita?

— Habeck, Donald Edwin. Não fiz meu dever de casa sobre ele ainda, mas gostaria que você me apontasse a direção certa.

Amélia baixou as pálpebras. — Você se refere àquele advogadozinho criminalista que foi morto no nosso estacionamento hoje de manhã?

— O próprio.

— Não Social, meu bem. Um sujeito como Donald Edwin Habeck poderia ser assassinado em qualquer lugar. E foi.

— Mas supostamente ele estava doando cinco milhões de dólares ao museu de arte.

Lentamente, Amélia Shurcliffe disse: — Imagino que Biff Wilson tenha exclusividade nessa matéria pro jornal.

— Ah, correto — disse Fletch. — Só estou traçando os aspectos sociais da história.

— Os aspectos sociais de um assassinato? Existe algum?

— Os cinco milhões de dólares, sabe.

— Ele realmente deu cinco milhões ao museu?

— Acredito que estava quase pra divulgar isso.

— Bem — Amélia suspirou. — As pessoas dão dinheiro por caridade.

— Você diz que Habeck não se sobressaía socialmente?

— Pessoas como Habeck existem de uma maneira muito peculiar — disse Amélia. — São conhecidos, é claro, mas quando muito do outro lado de um telefone. Você sabe, se alguém atira no marido no meio da noite, depois de já o ter confundido com o amante e agora pretendendo confundi-lo com um ladrão, precisa ter alguém pra ligar, não é?

— Acho que sim.

— E preciso conhecer alguém desse tipo o suficiente pra poder ligar pra ele, mas não pra convidá-lo regularmente pra jantar. Sua presença pode dar ao marido o que pensar.

— Acho que está falando sério sobre tudo isso.

— Não se deve confiar nos Habeck deste mundo. Afinal de contas, quando contratamos alguém como Habeck, estamos contratando alguém para mentir por nós. Não é o que estamos fazendo? É o que pessoas do tipo de Habeck fazem pra viver. São mentirosos profissionais. Não nos importa contratá-los pra mentir. Mas será que gostaríamos que eles nos mentissem nas nossas próprias mesas de jantar? Ou, mais importante ainda, será que gostaríamos que eles mentissem pra outras pessoas sobre o que aconteceu e o que foi dito nas nossas mesas de jantar?

— Os advogados, em geral, não são treinados pra seguir regras de provas?

Amélia Shurcliffe fitou Fletch por um longo instante. — Os advogados, meu bem, são treinados para seguir regras de influência.

— Tudo bem. Habeck era muito rico? Rico o bastante pra dar cinco milhões de dólares?

— Não tenho a menor idéia. É provável. Está sempre sendo notícia por causa de um ou outro caso sensacional. Embora continue sendo um mistério pra mim o modo pelo qual os criminalistas fazem os criminosos pagar seus honorários. Deve haver algum truque.

— Acho que sim.

— O sócio dele, Harrison, faz todos os divórcios que vale a pena fazer. Esses malandros não estão metidos em advocacia pra servir à justiça ou ter uma fonte de renda, você sabe.

— E a senhora Habeck? Estou um pouco confuso.

— Não tenho idéia. Não sei nem se existe uma senhora Habeck. Vou ter que ler Biff Wilson de manhã. Como disse antes, os Habeck deste mundo não brilham socialmente.

— Amélia, eu fui até a casa de Habeck hoje de manhã. Muito rapidamente, admito, mas não notei nenhum quadro ou obra de arte que tenha me chamado a atenção.

— Você conhece pintura?

— Um pouco.

— Claro que conhece. Que bobagem perguntar. Basta olhar a maneira inteligente como você está vestido.

— Por que uma pessoa, particularmente sem muita proemiência social, como você diz, e que não tem um óbvio interesse em arte, estaria doando cinco milhões de dólares pra um museu de arte?

— Acho o impulso de generosidade em geral inexplicável.

— O que ele queria comprar?

— Respeitabilidade? É uma resposta tão boa quanto qualquer outra que possa dar neste caso. Esse sujeito, Habeck, vem sendo usado pela sociedade como um lenço de papel, que você usa só quando espirra. Ou, pra associar metáforas, como uma prostituta de alto preço que você pega, usa e joga fora, sem nunca convidar pra uma visita ao lar. Ele está envelhecendo. Ou estava, quando seu envelhecimento foi concluído hoje de manhã. Uma pessoa aos sessenta não teria o instinto de fazer alguma coisa que dissesse: "Ei! Sou tão bom quanto vocês! Também posso dar cinco milhas de presente!".

— A sociedade ia aceitar ele então?

— Não. Especialmente se a sociedade soubesse que não existem outras cinco milhas que ele possa dar. Mas pode ser que o faça se sentir melhor.

— Muito interessante.

— Sou sempre muito interessante. É meu trabalho, sabe. — Amélia olhou de relance para o telefone outra vez. Era evidente que o telefone sem tocar deixava-a nervosa.

— Então — Fletch deu um passo para trás, em direção à porta —, Ann McGarrahan e Biff Wilson já foram casados.

— Tinha esquecido disso — Amélia respondeu. — Sim. Há anos. Um dos maiores casos de incompatibilidade que já vi. Foram casados por mais de três semanas talvez. Há uns vinte anos. Por que pergunta?

— O que aconteceu?

— Como saber o que acontece no casamento de outra pessoa? Quando muito se sabe sobre o próprio. Minha opinião, se grosseiramente me perguntassem, seria a de que Ann é uma mulher forte, inteligente, bondosa e decente, que se viu casada com um escroto, violento e podre.

— Ufa! Que bom que eu não perguntei.

— Mas você perguntou. Você e eu estamos num negócio ingrato, senhor Fletcher.

— Ann alguma vez casou de novo?

— Com alguém que já morreu. Não está casada agora. Se você está interessado em Ann McGarrahan, que tem idade suficiente para ser sua mãe, será que eu ousaria alimentar esperanças pra mim?

— E Biff Wilson?

— Tremo em pensar. Em algum lugar do passado de Biff existe um súcubo escondido a quem ele chama de esposa. O nome é Aurora ou qualquer coisa besta assim. Agora, a não ser que você tenha mais notas sociais a respeito de advogadozinhos menores ou dicas sobre a moda dos culotes...

— De fato, tenho.

— Diga lá.

— Vou me casar sábado.

— Com quem?

— Barbara Ralton.

— Nunca ouvi falar dela.

— Ela vende culotes. Na Cecília.

— Devia ter imaginado. Bem, querido, os Stanwyck vão dar seu banquete anual para Symphony na próxima semana e eu estou absolutamente desesperada pra descobrir quais as cores que Joan vai usar na decoração da mesa. Você por acaso não saberia?

— Eu? Sequer sei o que são Stanwyck.

 

— Ei, o que você está fazendo na minha mesa?

— Tudo bem se eu usar seu terminal de computador?

— Você provavelmente está fodendo ele. — Clifton Wolf, editor de Religião, olhou para o vídeo por cima do ombro de Fletch. — Habeck — ele leu. — Agora faz pesquisa pra Biff Wilson?

— Nós todos trabalhamos pro mesmo jornal.

— O caralho. Eu trabalho pelo meu centímetro de espaço, você trabalha pelo seu centímetro. Biff Wilson trabalha pelo seu meio metro. Se você não está na matéria, malandro, é melhor cair fora dela.

Fletch desligou o terminal. — Só curiosidade.

— Curiosidade vai fazer você virar picadinho. E saia da minha cadeira.

— Eu não tenho um terminal só pra mim. — Fletch levantou, juntando o bolo de notas que tinha feito.

— A gente sempre quis saber por que você foi contratado. Agora a gente sabe: pra cobrir bordéis. Eu não quero ninguém que passa seu tempo em bordéis sentado na minha cadeira.

— Não fui ao bordel ainda. Minha mãe ainda não deu autorização.

— Nunca se sabe o que você pode estar fazendo. Al! — Clifton Wolf gritou para o editor da Geral do outro lado da redação. — Chame os caras da limpeza! Fletcher tava usando minhas coisas!

— Aposto como você gostaria dessa pauta — Fletch disse. — O único lugar pra onde te mandam é a igreja.

— Suma!

— Você conhece um poeta chamado Tom Farliegh? — perguntou Fletch.

Fletch suspeitava que, sem muito pensar a respeito, as pessoas que escreviam para as diversas editorias do jornal vestiam-se como as pessoas sobre as quais escreviam. Pessoas na editoria de Economia usavam ternos executivos; na editora de Social pareciam estar vestidos sempre para festas ao ar livre; na editoria de Esporte, o estilo parecia ser meia-branca-e-Wazer-xadrez.

Mentalmente, também se identificavam com seus assuntos. Redatores de Economia pensavam em termos de poder, lucros e perdas. Redatores de Social alimentavam uma fantástica rede de linhas sobre a aspereza do dinheiro antigo versus a crueza do dinheiro novo, magnetismo versus beleza, bom gosto versus ostentação. Redatores de Esporte pensavam em termos de vitoriosos e perdedores, talento novo versus veterano e as posições de fim-de-carreira.

Parado na frente dele, na porta escura do corredor, estava Morton Rickmers, o editor de Literatura. Usava óculos grossos, gravata chalet, blazer de tweed, calças largas e sapatos de solado de borracha. Nas suas resenhas de livros, ficava claro que ele adorava pessoas e suas histórias honestamente contadas, adorava palavras e juntá-las na sua forma mais mágica e concisa, e considerava a bíblia a realização humana mais nobre, talvez nossa única raison d'être.

Suas resenhas eram com freqüência mais interessantes e mais bem escritas que os livros que resenhava.

— Por quê? Você conheceu Tom Farliegh? — Morton perguntou.

— Não.

— Talvez gostasse de conhecê-lo — Morton ponderou. — Não tenho certeza.

— Só ouvi falar dele.

— Primeiro — Morton disse —, eu talvez gostasse de saber por que está vestido dessa maneira.

Com as notas na mão, Fletch abriu os braços. — Fui escalado pra investigar um escort service. Serve como resposta?

— Entendo. Está tentando se disfarçar de homem-de-negócios-que-chegou-de-fora? Você tá parecendo mais uma vítima de assalto que foi obrigada a pegar as roupas de outra pessoa.

— Você quase acertou. Perdi minha roupa hoje de manhã e tive que pegar emprestado esses trapos.

Morton sorriu. — Tenho certeza que tem história atrás da forma como você perdeu sua roupa.

— Não muito.

— Já faz anos desde a última vez que perdi minha roupa. Na verdade, alguma vez perdi minha roupa?

— Eu não sei. É fácil de acontecer.

— Dá um conto interessante. Como Perdi Minha Roupa. Algo que Ring Lardner podia ter feito.

— Tom Farliegh mora na cidade, não é?

— Ah, sim. Ele leciona qualquer coisa na universidade. Sendo um poeta in academia, está provavelmente mal aproveitado. Sabe, ensinar inglês ou algo do gênero, ao invés de música, matemática ou práticas eqüestres.

— Ele é o genro de Donald Habeck?

— Que interessante. Não tenho idéia. Você fala do homem que foi morto no estacionamento hoje de manhã?

— Sim.

— Seria fascinante.

— Por quê?

— Você nunca o leu?

— Não que eu me lembre.

— Pouca gente o leu. Mas se tivesse lido, lembraria. Ele escreve o que chamamos de Poesia da Violência. Seu poema mais conhecido é algo chamado A Faca, O Sangue. O editor dele deu título ao livro de poemas escolhidos com base nesse poema. Acho que tenho um exemplar na minha sala. Venha comigo.

Na sala clara, com paredes de livros, Morton tirou um livro fino de uma estante e entregou-o a Fletch. — Aqui está A Faca, O Sangue. Pode ficar com ele emprestado.

Na capa, uma faca rasgava profundamente uma pele nua. A pele sangrava, o sangue descia pela faca até um lençol de cetim.

— Este é um livro de poesia? — Fletch perguntou. — Parece mais um romance de mistério antiquado.

— É uma poesia incomum. Sem muito sentimento.

— Obrigado.

— Eu acho importante ler sobre o que se está fazendo — Morton disse, quase defensivamente. — Amplia a base de sua percepção.

Folheando o livro, Fletch disse: — Não acredito que você saiba qualquer coisa pessoal sobre Donald Habeck.

— Na verdade, eu sei. — Morton cruzou os braços e afastou-se de Fletch. — O filho de minha irmã, há anos atrás, foi acusado de roubar um carro e ter atropelado alguém. Uso de drogas, roubo grave, homicídio no trânsito aos dezoito anos.

— Que chato ouvir isso.

— Foi horrível. O garoto era um adolescente comum, frustrado e fechado, que simplesmente se soltou uma noite. — Ainda de costas para Fletch, Morton disse: — Contratamos Donald Habeck. Isto é, ele é o tipo de cara que se contrata quando as coisas parecem horríveis.

— A qualquer preço.

— Sim. A qualquer preço.

— O que aconteceu com o garoto?

— A acusação de embriaguez foi recusada. Habeck provou que a policia tinha usado o equipamento de teste de sangue e álcool de forma errada. A acusação de roubo de automóvel foi reduzida a uso de carro sem permissão do proprietário. Acredito que Habeck tenha subornado o proprietário do carro pra dizer que ele conhecia o garoto e que houve um mal-entendido em relação ao uso do carro. E quanto ao homicídio no trânsito, a culpa recaiu sobre o fabricante do automóvel. Aparentemente, ficou provado que aquele modelo de carro tinha algo errado na direção. — Morton suspirou. — Meu sobrinho teve sentença de três meses em liberdade condicional, nenhum dia na prisão.

— Podiam ter-lhe dado as chaves da cidade.

Morton virou devagar sobre os calcanhares. — Ainda estamos envergonhados com a coisa toda. Minha irmã e eu, bem, acabamos nos sentindo criminosos, como se nós tivéssemos cometido um crime.

— Em contratar Habeck.

— Eu acho que por derrotar a justiça. — Morton encolheu os ombros. — Meu sobrinho, com apenas uma má conduta na sua ficha, é hoje um professor num colégio de San Diego, casado, tem três filhos. Mas, sabe, não posso pensar nele sem me sentir culpado.

— Habeck deixou sua irmã com alguma grana?

— Não muito. Ela teve que vender a casa nova deles, seu segundo carro, tirar dinheiro da poupança e ainda aceitar uma pequena contribuição minha.

— O que você pensou hoje de manhã quando soube que Habeck tinha sido assassinado?

— Tenho pensado nisso o dia inteiro. Quando você vive disposto a brigar... — Atrás das lentes grossas, os olhos de Morton pareciam estar lendo uma página muito próxima de seu rosto. — Irônico, de certa forma. Vejo seu fantasma subir correndo do cadáver pra defender a pessoa que o matou... pra bons resultados no futuro, ou não...

— Mas sempre por dinheiro.

— Sim. Ele foi brilhante torcendo o sistema jurídico, por dinheiro. Tenho desprezo por ele. Odeio ele por isso. Mas quando nós tratamos do assunto, pagamos o dinheiro todo, satisfeitos por salvar Billy de uma vida totalmente arruinada, por lhe dar uma segunda chance — que no mínimo ele aproveitou. Não tenho certeza do número de clientes de Habeck que aproveitam essa segunda chance, quantos deles ficam livres só pra mutilar, matar e destruir outra vez.

— Obrigado pelo livro.

— Se você chegar a conhecer Tom Farliegh, me diga se ele vale um artigo.

— A que horas você vai terminar?

— Nunca. — Fletch estava sentado noutra mesa emprestada na redação da Geral. Depois de ter percorrido suas notas, separou apenas alguns itens do volumoso arquivo de Habeck para serem copiados.

— Hoje é o quê? — perguntou Barbara ao telefone. — Participações de casamentos? Mortes? Ou está escrevendo títulos pras matérias dos outros?

— Ei, estou trabalhando duro por você, garota. Tô tentando colocar uma nota sobre culotes na coluna de Amélia Shurcliffe. E o lugar pra comprá-las é a Boutique Cecília.

— Qualquer coisa ia ajudar. Já estou cheia de usá-las.

— Você tem que usar as calças na loja?

— Sim. Uma cor de ameixa, acredita? As clientes devem entrar, me ver de culotes e dizer: "Oh, querida, são divinos", e comprar pra elas ou pras filhas.

— E compram?

— Não. Elas me olham da cabeça aos pés, obviamente imaginando se eu tenho bom gosto suficiente para atendê-las. Encontro você na casa da praia, certo?

— É uma viagem muito longa.

— Só tenho a casa por mais alguns dias. Até o casamento.

— Quando você resolveu sair da sua casa, por que não se mudou pro meu apartamento? Teria sido muito mais simples.

— O que há de errado em ter uma casa na praia na semana antes do nosso casamento?

— Por que você não passa essa noite no meu apartamento? Assim não preciso dirigir até lá e voltar.

— Ei. Tô ganhando pra cuidar da casa. Sei que não é muito, mas a gente precisa do dinheiro, certo?

— Certo. É que eu preferia ficar na cidade e checar algumas coisas.

— Ouvi dizer que mataram alguém no estacionamento de vocês hoje de manhã.

— É verdade.

— Um advogado de alguma coisa.

— De alguma coisa.

— Um daqueles que você vê sempre no jornal. Tipo Perry Mason. Julgamentos de homicídios e negócios com drogas pesadas.

— Habeck. Donald Edwin Habeck.

— Isso. Notícia interessante. Quero dizer, deve ser interessante. Quero ler Biff Wilson.

Fletch ficou calado.

— Fletch, você não tá fazendo nada nessa matéria, né?

— Bem, houve uma coincidência. Eu ia encontrar ele quando...

— Você vai ser demitido.

— Que certeza a sua, hein?

— Você ainda não escreveu participações de casamento em número suficiente pra pegar uma matéria grande dessas.

— Eu não peguei ela. Só pretendo sentar e assistir.

— Você nunca na vida só sentou.

— Bem, talvez não só sentar.

— Alguém sabe que você tá metendo o nariz nessa história?

— Barbara...

— Nós vamos nos casar sábado, Fletch. Primeiro, você não tem tempo pruma matéria dessas. Segundo, seria bom que, quando voltássemos da nossa lua-de-mel esquiando, você tivesse um emprego. Tenho quase certeza de que até lá Cecília não vai ter diminuído o estoque de seus culotes.

— Fique fria. Se eu trouxer alguma coisa interessante, alguma coisa útil, você acha que o jornal vai recusar?

— Fletch, você não tem nada a ver com essa matéria. Fique fora dela. Ciumeira dentro de um jornal não deve ser nada diferente do que em qualquer outro lugar.

— De qualquer maneira, fui pautado pra uma matéria diferente.

— O que é?

— Prefiro não te contar agora.

— Por que não?

— Bem, não é tão distante de participações de casamentos, nascimentos, mortes. Uma matéria de turismo. Pode-se dizer que é uma matéria de turismo. Pode até virar uma matéria de medicina.

— Você não tá sendo muito claro.

— É porque na verdade eu ainda não botei a mão na matéria. É pras páginas sociais.

— Fletch, eu acho que não existem páginas sociais neste país há meio século.

— Você sabe o que quero dizer: páginas sobre a vida, modo de vida, estilo. Você sabe, as páginas da ansiedade.

— Até que é adequado pra você fazer um artigo pras páginas da ansiedade.

— Claro. Ansiedades, todos nós temos. Veja bem, eu estava usando minha nova influência pra conseguir enfiar os culotes na coluna da Amélia Shurcliffe.

— Bondade sua. A que horas você chega na casa da praia?

— Assim que puder.

— O que significa isso?

— Significa que tenho que fazer umas cópias de um dossiê do arquivo. E depois dar um telefonema.

— Só um?

— Só um.

— E não tem nada a ver com Habeck?

— Não, não. Tem a ver com esta outra matéria. A das páginas da ansiedade.

Fletch hesitou um pouco antes de apertar o botão que faria cópias determinadas do dossiê de Habeck.

Sentado na mesa emprestada, ele hesitou outra vez, só por um momento, antes de levantar o telefone e discar um ramal interno.

— Carradine — a voz respondeu.

— Jack? É Fletch.

— Quem?

— Fletcher. Trabalho na Tribuna.

— Você tem certeza? — o tom do redator de Economia era de leve curiosidade. — Ah, claro. Você é o cara que perpetrou aquela manchete há uns dois meses. Como era mesmo? Ah, sim: "Companhia Ocidental de Latas estoura seus fundos".

— É, sou eu.

— Você, hein? Acho que todo mundo passa pela juventude um dia.

— Não sei por que todo mundo se opôs àquilo.

— Porque todo mundo já sabia. Você ligou pra pedir desculpas, Fletcher, ou porque tem uma dica quente pra me dar sobre a dívida externa?

— Você conhece aquele cara que foi assassinado de manhã?

— Habeck? Não. Não o conhecia. Vi ele uma vez num almoço prós Laker.

— Uns caras aqui estão dizendo que ele era muito rico.

— Quando é que um rico é muito rico?

— Que ele ia doar cinco milhas.

— Duvido. Era um trabalhador. Um trabalhador de alto preço, mas trabalhador. Duvido que ele tivesse mais do que ganhava. Quais eram seus bens? Uma sociedade num escritório de advocacia reconhecidamente próspero. O que vale isso, ano a ano? E também o que tivesse conseguido acumular durante sua vida de trabalho. Talvez tenha investido em alguma coisa e feito fortuna. Mas se tivesse feito, acredito que eu teria sabido. Era uma pessoa muito de rua pra alguma vez ter herdado muito. E se ele tivesse casado com uma grande riqueza, nós realmente teríamos sabido.

— E a Máfia nisso tudo?

— Você acha que ele tinha ligação com a Máfia?

— Um criminalista...

— Claro, provavelmente tinha clientes mafiosos. Mas a Máfia não faz ninguém ficar rico, a não ser a própria Máfia. Apesar do que você lê, o maior problema da Máfia é gasto excessivo. A coisa mais arriscada que eles fazem, pelo menos no que diz respeito à sua própria segurança, é gastar dinheiro. De fato, é um problema tão grande pra eles, que não sei por que se importam em ganhar tanto.

— Quanto você supõe que Habeck tinha de dinheiro quando morreu hoje de manhã?

— Só uma suposição?

— Demore o tempo que quiser.

— Trabalhando duro a vida inteira, pagando seus impostos razoavelmente, dando pouco aos outros, não fazendo nenhum grande e estúpido investimento, não passando por muitas esposas — que são vários e grandes senões — eu diria que ele seria bem afortunado de ter cinco milhões de dólares seus.

— Bem — disse Fletch. — Sam ganhou o bolão do pessoal do escritório.

— Quem é Sam?

— Ah — Fletch disse. — Ele é motorista de um dos caminhões de entrega da Tribuna. Faz o centro.

Fletch examinou as cópias escolhidas do dossiê Habeck. Sobre a pilha, ele colocou o livro que Morton Rickmers tinha-lhe emprestado, A Faca, O Sangue.

Então hesitou um longo tempo antes de tirar o telefone do gancho e discar o número que ele uma vez pensou ser de uma pizzaria.

A voz que atendeu era jovem, feminina, forte, clara, saudável e amigável.

— Atendimento a Amigos Ben Franklyn. Você quer um amigo?

Deixando de lado o pensamento das calabresas e anchovas, Fletch disse: — Acho que sim.

— Bem, trabalhamos como escort service. Disponíveis vinte e quatro horas por dia. Na sua casa ou na nossa. Mas primeiro poderia me dizer quem o recomendou a Ben Franklyn?

Fletch engoliu: — Meu pai.

A garota hesitou. — Você tem problemas, meu filho?

— Não que eu saiba.

— Bacana, o seu pai.

— É, ele é um velho legal.

— Não quer que você fique sozinho na cidade grande, né?

— Ele não quer, hum, que eu faça amigos, hum, de que depois não possa me livrar. Hum.

Subitamente, ele tinha ficado com muito calor na redação da Geral.

— Entendo. Como é o nome de seu pai?

— Ah, acho pouco provável que ele mesmo tenha usado seus serviços. Digo, pessoalmente.

— Você se surpreenderia. Qual o nome dele, de qualquer maneira?

— Hum. Jaffe. Archibald Jaffe. Esqueça ele. Meu nome é Fletcher Jaffe. Eu é que vou. Espero.

— Tudo bem, Fletcher. Por que não vem até aqui? Podíamos checar sua saúde.

— Estou bem, obrigado.

— Ah, temos certeza de que está. Por saúde, queremos dizer tudo. Somos amigos como jamais teve antes. Cuidamos de você inteiro. Você faz exercícios, não?

— Ah, sim.

— Bem, vamos checar as condições de sua pele, sua disposição muscular, sua alimentação. Exercitar você através do desempenho sexual. Você jamais teve amigos como a gente.

— Tenho certeza.

— Levamos você até o fim, meu caro, de simples alongamentos e respiração profunda até o êxtase.

— Êxtase! Uau!

— Não acredita?

— É que eu nunca tinha ouvido êxtase ser usado numa frase. Acho que não. Quero dizer, não numa conversa.

— Você nunca tinha ligado para o Atendimento a Amigos Ben Franklyn?

— Não pra pedir nada que não tivesse queijo.

— O quê?

— Esqueça.

— Você vem agora?

— Não exatamente agora. Tem alguém esperando por mim. Que tal amanhã?

— Claro. Acho que podemos encaixar você.

— Ha ha.

— A que horas?

— Onze horas.

— Da manhã?

— Certo. Quero deixar minha pele fortificada.

— Fletcher Jaffe. Às onze da manhã de amanhã. Vemos você então. Você todo. E você verá todas nós. Á linha caiu. Fletch desligou. E depois fez uns exercícios de respiração profundos.

 

— Uau!

— Esses mosquitos tão me devorando!

— Danem-se os mosquitos. Ouça isto.

Sentada de maio na praia, Barbara Ralton cocava o cotovelo com uma mão e as costas com a outra. — Fletch, os mosquitos realmente tomam conta da praia quando o sol está baixo assim.

— Apropriado pro que você vai ouvir agora. Ouça. — Ele se recostou na sacola de praia dela. Fletch leu:

 

Carne jovem

Pele firme

Rija sobre o músculo

Macia sobre os ossos

Revelada

Real

Estudada

Explorada

Sentida

Totalmente

Ultrajada

Indignada

Explicada

Explodida

Fio

Sólido

Aço

Brilhante

em uma lâmina

atravessa a carne.

Bolhas de sangue, então

imitam o corte,

tornam-se fio de sangue,

fazendo seu caminho,

escorre na pele

líquido vermelho, viscoso

nadando sobre o rosado

macio da pele.

 

Toque sua língua no sangue.

Banhe nele seus lábios.

Sugue-o pelos dentes.

 

Faça seus olhos enxergarem acima do corte

a pele escoando, esbranquiçando-se,

mais branca com o sangue, e

veja palpitar, enquanto

apele

reverbera com o pulsante

ritmo do coração impelindo

o sangue para o ar, para

vermelhar, para

fluir.

 

O que é mais perfeito

para penetrar o calor da carne

que não a frieza do aço?

na verdade,

não foram feitos exatamente um para o outro ?

 

Barbara, cheia de mosquitos, não se cocava mais. Ela disse: — É doentio.

— Bastante áspero — Fletch disse.

— O céu estava vermelho com o pôr-do-sol. Ela estremeceu. — Punk.

Fletch deslizou a unha na perna dela. — Mas você sacou?

— É pouco metafórico — ela disse.

— Mas considere a ironia.

— Esquisito! — Ela virou o livro na mão de Fletch para ver a capa. — Isso é pra ser o quê?

— É um poema de Tom Farliegh chamado A Faca, O Sangue.

— Isso é poesia? Não tanto "Como eu vos amo? Deixe-me contar as maneiras...".

— Acho que se chama Poesia da Violência. Algo criado por Tom Farliegh, ou algo de que ele é o principal praticante ou alguma coisa assim.

— Onde você conseguiu isso, numa convenção de motoqueiros?

— Tom Farliegh pode ou não ser o genro de Donald Habeck.

— Para genro, sou mais Atila, o rei dos hunos.

Fletch deitou de barriga para baixo. — É sentimental, é claro.

— Prefiro Browning.

— Pelo menos dá à carne e a uma faca seus valores.

— Ah, claro. Isso dá. E por que, Irwin, você está andando por aí com um livro de poesia escrito pelo genro de Habeck na noite seguinte ao assassinato de Habeck?

Mesmo de costas para o sol, Fletch apertou os olhos. — Não acha interessante?

— Fascinante! — ela falou, falsamente. — O livro inteiro é assim?

— Vou ler outro pra você. — Ele pegou o livro da areia.

— Não antes do jantar, obrigado. — Ela se levantou.

— Mosquitos e poemas satânicos. Você trouxe alguma coisa pro jantar?

— Sim — Fletch respondeu. — Tem uns pretzels no carro.

— Ótimo. Eu poderia jurar que você parou no caminho. Você chegou com nada além do calção de banho.

— Sei como preparar pretzels.

— Vamos. Eu trouxe costeletas de porco. Te mostro como preparar.

— Vou dar um mergulho. — Fletch se levantou devagar.

— Tirar a areia.

— Me conte sobre sua nova pauta — disse Barbara, segurando a sacola de praia como se fosse uma bola de futebol.

— A que não tem a ver com gente que leva balas na cabeça.

— É, te conto — disse Fletch, ausente.

 

na verdade,

não foram feitos

exatamente um para o outro?

 

— Então, qual é a sua pauta? — No fogão, Barbara estava com um avental sobre o maio.

Fletch mastigava um pretzel. — Investigar Ben Franklyn. A escuridão do lado de fora e a luz no interior da casa faziam os janelões refletirem suas silhuetas.

— Não sei por que, mas Ben Franklyn não me parece notícia.

Fletch achou a sacola de papel pardo em que Barbara tinha trazido costeletas de porco, batatas, ervilhas e leite. Botou dentro terno, camisa, gravata, cuecas, sapatos e meias de Donald Habeck. — Tem cordão?

— Procure na gaveta. — Ela apontou com o espremedor de batatas. — O que acontece com Ben Franklyn?

— Tipo de sujeito saudável. Muito contemporâneo. — Fletch amarrou a sacola com o cordão. — Inventivo. Diplomático. Sempre gostou das mulheres. Homem de negócios também. Era um bom executivo, não era?

— Suas costeletas são bem passadas?

— Se você tá perguntando, pode tirar do fogo. — Ele atirou o pacote no chão, perto da porta da frente.

Na mesa, Barbara disse: — Vou ligar pra sua mãe.

— Que foi que eu fiz dessa vez?

— Você vai se casar no sábado. Não acha que Jessica devia conversar com sua futura nora?

— Ah, claro.

— Dizer a ela pra vir ao casamento, sabe? Fazer com que ela se sinta realmente bem-vinda.

— Eu escrevi pra ela. Mas não sei se ela pode pagar a passagem até aqui. É uma escritora pobre, você sabe. Quer dizer, ela é uma escritora e é pobre. E se a gente pagar uma passagem de Seattle pra ela, não vai dar pra pagar uma lua-de-mel.

— Mas, mesmo assim, o filho dela vai se casar.

— Nu? — Fletch perguntou. — Você ainda pretende que a gente se case nu?

— Não. — Barbara botou uma colherada de purê de batatas na boca. — Não consegui perder aqueles quatro quilos.

— Ah — Fletcher sorriu. — Então você tem alguma coisa a esconder.

— Vou te perguntar mais uma vez sobre teu pai.

— O que tem ele?

— O que tem ele? — ela perguntou.

— Morreu no parto. — Fletch encolheu os ombros. — Isso é o que a minha mãe sempre diz.

— Casamento Americano Moderno. — Barbara suspirou e olhou o reflexo deles na janela.

— Pois é — Fletch disse —, pra que serve?

— O que você quer dizer com "pra que serve"?

— Alston me perguntou hoje no almoço se eu tinha certeza de que queria me casar. Logo depois de ter convidado ele pra ser padrinho.

— Alston trabalha no escritório de Habeck, né?

— É.

— Ele tá feliz lá?

— Não muito.

— O que você respondeu?

— Não me lembro.

— Os advogados sempre fazem perguntas difíceis. É sua função. Faz com que se sintam superiores, eu acho. Ajuda a dar a ilusão de que valem o quanto ganham.

— Frank Jaffe falou qualquer coisa como a única razão pra se casar é se você pretende ter filhos.

— Ele tá certo. Médio.

— A gente pretende ter filhos?

— Claro. — Barbara olhou de relance para o chão de madeira da casa. — Precisamos ter dinheiro primeiro. Você não ganha muito. Na verdade, você não tem uma profissão que pague muito. Eu não tenho profissão alguma. Filhos custam caro.

— Alguém me disse isso hoje também.

— O que é que você fez hoje? Andou por aí desenvolvendo um relatório contra o casamento?

— Andei por aí hoje anunciando a boa nova de que eu e você vamos nos casar no sábado. E todo mundo perguntou: por quê? — Barbara olhava fixo para Fletch. — De fato, eu diria que em grande parte a reação das pessoas foi: ARGH!

— Não muito simpático da parte delas.

— Não. Não muito.

— Só porque os outros fazem casamentos ruins...

— Que outros critérios a gente tem que não os casamentos dos outros?

— Acho que nosso casamento tem sentido.

— Também acho.

— Nós podemos nos ajudar.

— Certo. Hoje tentei ajudar você a se livrar dos culotes de Cecília.

— Construir, na direção da família, um estilo de vida.

— Enquanto no jornal eu continuo aceitando uma pauta medíocre atrás da outra.

— Companheirismo. Envelhecer juntos, ver de alguma forma as coisas numa mesma perspectiva, ter as mesmas lembranças, proteger um ao outro.

— Certo — disse Fletch. — Você conhece alguém que esteja fazendo isso?

— Isso não quer dizer que a gente não consiga.

— Não. Não quer.

— Com certeza a gente deve se casar — disse Barbara.

— Eu também acho — Fletch concordou. — Com certeza.

— É só pensar no casamento da mesma forma que você pensa em tudo o mais — Barbara disse. — Brincar com a verdade. Só no casamento você brinca com uma verdade sua, minha e nossa.

O telefone tocou.

Assustada, Barbara olhou para ele. — Quem pode ser?

— Pedi para Alston ligar. Talvez ele tenha algo pra me contar sobre Donald Habeck.

— Habeck. — Barbara levou o prato até a pia. — Você tá louco.

— Pois é. — Fletch levantou para atender o telefone. — Considere isso também.

 

— Cara, odeio ter que admitir — Alston disse —, mas acho que você pode estar certo.

— Claro que tô. — Fletch afundou numa cadeira Morris, ao lado do telefone. — Sobre o quê?

— Fiz o melhor que pude e, sem deixar que meus dedos ficassem presos nos arquivos, consegui descobrir umas coisas pra você: o maior e mais recente caso de Habeck, o maior caso mais freqüente, e — aí é que você pode estar certo — qual o seu antigo cliente recém-saído da prisão, que talvez tenha uma irreprimível necessidade de mandar bala no crânio de Habeck.

— Existe algum?

— Primeiro, o último e mais freqüente grande caso. Sem dúvida você tem informações inteligíveis no arquivo do jornal sobre os dois.

— Sim. Peguei hoje à tarde.

— Então sabe que o caso maior e mais recente envolve o presidente do Comitê de Finanças da Assembléia, que é acusado de suborno.

— É.

— Ele é acusado especificamente de ter aceito 53.500 dólares de uma empresa de arquitetura, contratada para projetar uma ala nova na Penitenciária do Estado, em Wilton.

— Espero que o senador do estado tenha mandado fazer pra ele uma linda cela com vista pro sul.

— Se fez, duvido que algum dia a veja. As manobras aqui são muito complicadas pra eu entender. Não digo manobras jurídicas, mas manobras políticas. Habeck tem arquivado todo tipo de moção e petição que não entendo. Ele está fazendo com esse caso a mais surpreendente dança pelos tribunais. Eu não entendo por que eles admitem esse tipo de embromação.

— Habeck tava tentando deixar o caso esfriar pro público, não é? Depois de um tempo, suponho que o público, e a justiça também, estejam com menos raiva de um caso desses. A gente cansa de ler sobre a história. Fica indiferente com a seqüência, certo?

— Certo. Ajudaria se vocês jornalistas denunciassem esse tipo de trama de vez em quando. Noticiassem na íntegra a história de um caso do gênero. Exigissem que a justiça sentenciasse.

— Sim, senhor.

— Então, você se interessa pelas anotações pessoais que estão nos registros desse caso?

— E como!

— A primeira anotação diz: "Chegar nisso antes do juiz Carroll Swank".

— Ah. Pelo fato de que o juiz Swank deve alguma coisa no profundo e obscuro passado do senador Schoenbaum.

— É o que se presume. Alguma dívida seguramente escondida. A turma aí não vai descobrir nunca.

— Ou o senador Schoenbaum sabe de alguma coisa m trilha da chantagem em relação ao já citado juiz Swank.

— Os juízes podem pensar como ladrões hipócritas, mas agem como pragmáticos.

— Vou anotar isso.

— Uma segunda nota no dossiê, escrita com a própria letra de Habeck, deve te interessar também. Diz: "Suborno real Schoenbaum permite até mais de 800.000 dólares. Sem imposto, nota. Orçar taxa por volta de 500.000 dólares". Essas duas notas estão no início. O resto do dossiê é só um relato de Habeck jogando o tribunal pra lá e pra cá.

— Até que consiga fazer o caso chegar até o juiz Swank.

— E é aí que ele realmente vai jogar o tribunal pra lá e pra cá.

— Enquanto isso, o senador Schoenbaum passa férias no Havaí.

— Sim. O pobre otário acha que vai sair dessa um homem rico e livre.

— Bem, ele tá certo. Em parte.

— Eu não vejo Schoenbaum como alguém que queira ventilar a cabeça de Habeck.

— Não.

— Os outros casos que Habeck defende atualmente, e são mais de vinte, estão todos na mão de subalternos e pobres trabalhadores como eu. Vários casos de desfalque, dois de homicídio no trânsito, meia dúzia de casos de fraudes de impostos, uns dez casos de pais que seqüestram os filhos — você sabe, quando um dos membros do casal divorciado perde a custódia do filho e planeja seqüestrar o próprio filho?

— Tanto assim?

— É um grande negócio. Se eu um dia resolver sair de Habeck, Harrison e Haller, acho que vou entrar nisso. Vou me sentir mais útil.

— Faz parar pra pensar.

— Tem ainda um caso engraçado com um leiteiro.

— Uma vez conheci um leiteiro esperto.

— Este é realmente esperto! Primeiro, ele alugou por um mês um casaco de pele de marta para a mulher. A crédito.

— Que marido adorável.

— Daí ele foi com sua mulher chiquérrima até um show-room de Rolls-Royce e alugou um Rolls-Royce por um mês. A crédito.

— Gostava de bons carros também.

— Com a mulher num casaco de pele, os dois num Rolls-Royce, ele conseguiu alugar uma pequena mansão em Palm Springs.

— Por que o leiteiro não ia viver bem?

— Com o casaco, o Rolls e a casa, ele entrou num banco da região e descolou um empréstimo de 500.000 dólares em dinheiro.

— Uau!

— E largou seu emprego de leiteiro.

— Evidente. Com tudo isso, por que ia continuar trabalhando?

— Devolveu o casaco, o carro e cancelou o aluguel da casa. E fugiu pra Nebraska.

— Dá pra comprar muita vaca em Nebraska por 500.000 dólares.

— Nem mesmo o banco se importou. Por três anos. Porque o cara pagava os juros do empréstimo.

— Não me diga. Foi acusado por "entender a América muito bem".

— Um dia, é claro, a fonte secou e o banco foi atrás do leiteiro aposentado.

— Por que Habeck pegaria um caso desses? Não vejo como o leiteiro pode pagar muito pra ele.

— Tudo bem. Habeck pegou o caso do leiteiro. Assim que o banco soube disso, começaram todos a tremer nas pernas. Habeck, Harrison e Haller compraram algumas ações do banco e ameaçaram os caras, dizendo que iam denunciar o escândalo. Acusaram eles de empréstimo forçado, administração incompetente e uma política de empréstimos tão inepta que o alvará do banco deveria ser claramente anulado. Afinal, Fletch, tinham feito um empréstimo de meio milhão de dólares a um leiteiro!

— Porra! Então o banco vai engolir um prejuízo de 500.000 dólares ou a tal quantia que ainda faltava do empréstimo inicial do leiteiro?

— Não só isso, como também dois dos seus acionistas, que por acaso também trabalham no banco, estão comprando de volta algumas quotas de Habeck, Harrison e Haller por um valor que se pode qualificar como bem acima do mercado.

— Ufa. Estou aprendendo muito sobre Direito. Diga-me, Alston, isso se chama "acordo fora do tribunal"?

— Acho que se chama segurar um banco com rédea curta e ainda forçar a barra.

— Acho que se chama chantagem. É claro, nunca estive na faculdade de Direito.

— Na faculdade de Direito isso se chama chantagem.

— Até agora já descobri que o escritório de advocacia Habeck, Harrison e Haller nada mais é que uma central de extorsão, chantagem, suborno de juízes... que mais vocês fazem pra sobreviver?

— Não pergunte.

— Tem certeza de que todos os escritórios de advocacia não são assim?

— Absolutamente.

— O que aconteceu com o leiteiro?

— Mudou-se para Nova York, onde trabalha como...

— Leiteiro!

— Não. Como uma espécie de psicoterapeuta. Durante os três anos que passou em Nebraska, tirou uma espécie de diploma ou um certificado profissional que lhe permite sobreviver sendo compreensivo com os outros.

— Aposto que ele é bom na coisa.

— Aposto.

— Vencendo na vida, Alston.

— "O Sonho Americano".

— Através do uso legal de crédito.

— O nome do jogo.

— A criação de mais uma profissão livre de dívidas.

— Aquece meu coração.

— O sistema jurídico funciona, Alston.

— Nunca se esqueça disso.

— E um banco foi obrigado a aprimorar sua política de empréstimos, o que nos beneficiou a todos.

— O último caso de Habeck que chegou aos jornais é mais ou menos de um ano atrás.

— É o caso do Dr. Picareta.*

 

(*) No original: Fallen Doctor. (N. T.)

 

— É, o médico que transformou um certo número de pacientes em traficantes. O próprio médico não valia nada mesmo.

— E Habeck livrou a cara dele acusando a Delegacia de Tóxicos de envolvimento.

— Basicamente isso. Primeiro ele conseguiu realizar um admirável trabalho de rua relativo à sanidade da relação paciente/médico. A saber, os médicos não podem se envolver com os pacientes que se tornam viciados.

— E, Alston, me conte como Habeck, Harrison e Haller foram pagos por esse trabalho?

— Bem, havia um milhão de dólares em cocaína que jamais foi encontrado pelas autoridades.

— Por Deus. Extorsão, chantagem, tráfico de drogas... por que ninguém denuncia Habeck, Harrison e Haller?

— Quem ousaria? Na verdade, enquanto estou falando com você, me borro de medo.

— Eu compreendo, Alston.

— O ponto onde você deve ter razão é com um cliente de Habeck que saiu da prisão terça-feira passada. E não é uma pessoa muito legal, não. Pegou onze anos de cadeia. Primeiro, não entendo por que Habeck levou adiante o caso.

— Nenhuma anotação pessoal?

— Todos os dossiês, com exceção de um relatório em microfilme, estão num depósito em Nevada e não tenho como chegar até eles.

— Deve ter tido alguma razão.

— Um corruptor de menores. Uma verdadeira gracinha. Tinha dois pastores alemães treinados. Aparentemente ele entrava em um condomínio e atraía criancinhas com os cães. Aí os cães, treinados, levavam e prendiam as criancinhas num canto do playground ou algo assim e o filho da puta mandava ver.

— Cristo.

— Reze por mim também. Arranjava cada um, hein?

— Cristo!

— Muitas criancinhas foram depor. Havia várias testemunhas do caso e ele foi finalmente acusado. Acho que por muito tempo ele conseguiu escapar. Contava com os cães pra fugir. O que ele não contava era encontrar dois crioulões que não se intimidaram com os pastores e mandaram porrada neles, até matar.

— E ele só pegou onze anos?

— Habeck deve ter feito alguma coisa por ele.

— Onze anos!

— Tenho certeza de que foram onze duros anos, Fletch. Mexer com crianças não deixa ninguém muito popular na prisão, não. Não são convidados prós coquetéis e festas de suas alas.

— Como é o nome dele?

— Felix Gabais. Vários empregos: motorista de ônibus, motorista de ônibus escolar, motorista de táxi. Morava com uma irmã inválida perto de Santo Inácio. Deve ter quarenta e um, quarenta e dois anos agora.

— Se, com essas acusações, Habeck conseguiu tirar ele da cadeia em onze anos, não vejo por que iria atrás de Habeck.

— Ele é louco, Fletch. Quero dizer, um cara que elocubra tudo aquilo com cães treinados tem que ser louco. Você fala em premeditação.

— Acho que sim.

— Nesse caso, ele teve onze anos pra premeditar.

— Alston, pensei outra coisa. Suponha que alguém matou ou aleijou um de seus amigos. E Habeck conseguiu tirar ele absolvido ou com qualquer pena insignificante, tipo sentença suspensa ou qualquer outra. Isso não te inclinaria a ir atrás de Habeck?

— Diz de novo.

— Hoje ouvi um caso em que Habeck estava envolvido. Um adolescente alcoolizado roubou um carro e atropelou uma pessoa. Matou a pessoa. Habeck conseguiu liberdade condicional pro garoto. E a família da vítima? Não teriam razão pra estarem bem furiosos com Habeck?

— Eu vejo eles perseguindo o garoto bêbado.

— E não Habeck?

— Ia dar muito trabalho. Primeiro, raiva. Acho que as pessoas querem ver os outros receberem os castigos que merecem. Quando a justiça não condena o acusado com a pena que obviamente merece, aí sim, acho que até os mais bem-educados se sentem tentados a ir lá estourar a cabeça do sujeito com as próprias mãos.

— Mas se pensarem duas vezes...

— Se pensarem duas vezes, sentirão raiva de algo vago, tipo o sistema jurídico, a justiça, o tribunal.

— Você acha que nunca pensam exatamente no advogado de defesa, capaz de torcer o sistema jurídico pra livrar os verdadeiros bandidos?

— É possível. Alguém inteligente, talvez.

— Alguém inteligente que perceba a fórmula de Habeck.

— E, talvez, tenha alguma inveja.

— E saiba que não há como trazer Habeck pra justiça nunca.

— Pois é. Essa pessoa pode ter motivo pra estourar a cabeça de Habeck. Mas, Fletch, pense nos números. Em mais de trinta e cinco anos de carreira, o número de amigos e parentes das vítimas que viram Habeck mandar o acusado pra praia e não pra cadeia deve chegar a centenas, milhares.

— Imagino que sim. — Fletch pegou A Faca, O Sangue, da mesa ao lado do telefone. — De qualquer forma, já sei quem matou Habeck.

— Garoto inteligente — Alston suspirou. — Por que não me disse logo? Ao invés de passar esse tempão falando com você, eu poderia ter ido correr.

— Ainda pode ir — disse Fletch, virando as páginas do livro.

— Não quero ser assaltado por um leiteiro.

— Ouça isto. — Fletch leu:

 

Quadris magros, marcados

Separados por fogo automático,

cada bala

rasgando,

levantando,

empurrando,

chutando,

o corpo

no seu eixo central.

No entanto,

O Guerreiro Perfeito

reverencia sua morte,

gira,

contorce-se e cai.

Marcado, ele está caído,

mas não inutilizado.

Esta morte é sua vida

E ele cabe perfeito

dentro dela.

 

— Porra! — Alston respirou. — O que é isso?

— Um poema chamado "O Guerreiro Perfeito".

— A gente sabe um pouco mais do que isso, não é, meu amigo?

— Será?

— A belezinha dançante simplesmente não tá aí.

— Não, não tá.

— Essa é a coisa mais doentia que já ouvi. Me deixa com raiva.

— Se eu estiver certo — e não tenho muita certeza disso, não — foi escrito pelo genro de Donald Edwin Habeck.

— Ah. Qualquer um que escrevesse essa coisa faria tudo pelo prazer de se divertir.

— Li um para Barbara chamado "A Faca, O Sangue" e de repente ela resolveu sair da praia pra fazer o jantar.

— Acho que você tá certo. Você não precisa ir atrás de mais ninguém que possa ter assassinado Habeck que não a víbora que escreveu esse poema.

— Acho que vale a pena falar com ele.

— Então o jornal colocou você nesta matéria?

— Não, Alston, não botaram, não.

— Tá tentando mostrar trabalho, garoto?

— Se eu aparecer com alguma coisa boa, você acha que o jornal vai recusar?

— Não tenho idéia.

— Vou me casar. Preciso me dar bem na vida. Até agora brinquei com o jornal e o jornal brincou comigo.

— Você tá correndo risco.

— Que risco? Se eu não apresentar nada, nunca vão saber.

Barbara estava parada, enrolada numa toalha, na frente da cadeira Morris em que Fletch estava sentado.

— Você quer saber por que a gente vai se casar?

— O mundo continua perguntando — Fletch respondeu. Ela deixou a toalha cair no chão.

Estava parada na frente dele, na luz difusa da casa da praia, como uma escultura recém-terminada.

— Este corpo mais o seu corpo, movimentando-se em harmonia pela vida, copulando ou não, acasalados, sempre se relacionando um com o outro, a cada movimento, o quanto estejamos juntos ou separados, vai medir nosso minuto nesta existência, esta noite, amanhã e em todos os amanhãs.

Fletch engoliu em seco. — Ouvi poesia pior. Há pouco tempo.

— Você vem pra cama?

— Acho que é melhor eu ir. — Fletch levantou-se, pensando no amanhã imediato. — É agora ou talvez nunca mais.

 

Barbara entrou no quarto, a cabeça baixa, lendo a primeira página do jornal.

— Saco! — Fletch disse da cama. — Da próxima vez que você cuidar de alguma casa, verifique antes se os quartos têm cortinas, tá bom?

— Biff Wilson está na primeira página.

— É claro.

— Ou Habeck está.

— O sol nem nasceu ainda.

— Quer ouvir isto?— Barbara sentou na cama sobre uma perna.

— Sim.

— "Criminalista famoso no país inteiro, sócio da firma de advocacia Habeck, Harrison e Haller, Donald Edwin Habeck, sessenta e um, foi encontrado morto com um tiro dentro de seu Cadillac Seville azul, último tipo, esta manhã no estacionamento da Tribuna."

— Mesmo de frente pro oeste, este quarto tem tanta luz ao amanhecer quanto uma igreja domingo ao meio-dia.

— A polícia descreve o crime como, abre aspas, no estilo de um assassinato do mundo das quadrilhas, fecha aspas.

— Mundo das quadrilhas.

— É o que diz aqui. "Os sócios do senhor Habeck, Charles Harrison e Claude Haller, emitiram uma nota conjunta esta manhã antes do meio-dia."

— Não duvido. Largaram todos os outros casos e entraram direto nesse.

— "A advocacia perdeu um de seus profissionais mais brilhantes e hábeis com a morte de Donald Habeck. Sua compreensão incisiva e uso inovador da lei como advogado de defesa, principalmente na área criminalista, fizeram de Donald Habeck um exemplo para a advocacia nacional e de certa forma um herói popular. Nós lamentamos profundamente o desaparecimento de nosso parceiro é querido amigo, principalmente sob tão abjetas e inexplicáveis circunstâncias. Nosso pesar se estende à viúva de Donald, Jasmine, seu filho Robert, sua filha Nancy Farliegh e seus netos."

— "Inovador" — Fletch disse. — É a primeira vez que ouço essa palavra usada para significar vigarista.

— Ele era vigarista? — Barbara perguntou.

— Chegou uma hora ontem em que eu me referia a Habeck como criminalista e cheguei a pensar que fossem considerar piada.

— Esses caras são hábeis com as palavras. "Abjetas e inexplicáveis circunstâncias."

— Os advogados são as únicas pessoas no mundo que dizem: "As palavras não significam o seu significado. Significam aquilo que nós dizemos que elas significam". Um hábil profissional da lei. Ha! Um perversor do sistema jurídico.

— Você parece ter uma opinião formada, Fletch.

— Ouço o que ouço.

— Não deixe sua opinião pessoal interferir. Existem outras maneiras melhores pra você nos destruir com essa história.

— Você tá certa.

— "A mulher de Habeck, Jasmine, está em reclusão médica, não estando disponível para qualquer declaração."

— Deve ter havido uma senhora Habeck anterior. Alguma referência a ela?

— Não, ao que parece. "Nem Harrison nem Haller fizeram qualquer comentário sobre a morte de Habeck em consideração à investigação da polícia."

— Não foi nenhum assassinato do mundo das quadrilhas.

— "De acordo com John Winters, editor da Tribuna, Donald Habeck tinha solicitado uma entrevista com ele às dez da manhã de hoje para discutirem a publicação de um pronunciamento de Habeck sobre uma doação que pretendia fazer à cidade. 'Eu não conhecia Donald Habeck pessoalmente', John Winters disse. 'Naturalmente todos nós da família da Tribuna manifestamos nosso pesar a seus familiares e amigos.'"

— Velho e esperto John Winters. Ficar do lado do advogadozinho mesmo depois de morto. Amélia Shurcliffe disse que ninguém ousaria referir-se a Donald Habeck como amigo ou inimigo. Acho que ela tinha razão.

— "O corpo do senhor Habeck foi encontrado pela funcionária Pilar O'Brien quando chegava ao trabalho. O tenente da polícia Francisco Gomez afirmou que o senhor Habeck levou um tiro na cabeça de uma distância aparentemente pequena, de uma arma de calibre ainda não determinado. A arma não foi encontrada no local do crime."

— Não foi um assassinato do mundo das quadrilhas.

— "Formado pela Universidade do Estado, conferencista visitante na faculdade de Direito, Habeck..." Blá-blá-blá. A notícia continua contando seus casos famosos. — Barbara abriu o jornal numa página interna. — Nos mínimos detalhes. Quer que eu leia tudo?

— Eu vi tudo isso ontem. Até eu sei como escrever obituário.

— Acho que o genro, Tom Farliegh, deveria ser detido, julgado, acusado e preso imediatamente. — Barbara fechou o jornal.

— Você acha que Tom Farliegh matou Habeck?


— Tom Farliegh escreveu aquele poema que você me leu ontem à noite. Não é o suficiente para prendê-lo? Um sujeito que escreve aquela coisa que ele chama de poema não deveria andar livremente pela rua.

— Não foi um assassinato do mundo das quadrilhas.

— Isso é pra eu perguntar por que continua a repetir isso?

— Está perguntando?

— Suponho que sim.

— Pra poder estacionar na Tribuna você é obrigado a parar na segurança do portão, identificar-se e declarar o motivo da visita. Mas qualquer um pode entrar e sair a pé. O carro de Habeck estava mais próximo do final do estacionamento do que da frente. Simplesmente não posso imaginar criminosos profissionais parando no portão, falando qualquer coisa pro segurança, entrando com o carro, fazendo seu serviço sujo e saindo logo depois. Também não imagino um bandido profissional parando o carro fora do estacionamento, caminhando até Habeck, estourando os miolos dele e saindo de novo. Você imagina? Um bandido profissional teria pego Habeck noutro lugar.

— É estranho ninguém ter ouvido o tiro.

— Uma arma de baixo calibre faz um estalo tão leve, principalmente num estacionamento aberto, que você poderia confundir com um arroto depois de uma salada grega.

Barbara se esticou ao lado dele na cama.

— Acho bom eu começar a longa puxada de volta à cidade — disse Fletch.

— Não precisa ir já.

— Como é que você sabe? Tem milhares de coisas que eu quero fazer hoje. E outras que eu não quero.

— Não esqueça que você vai jantar com mamãe e comigo hoje à noite. Pra conversarmos sobre o casamento.

Fletch olhou o relógio. — Nós realmente acordamos terrivelmente cedo. Acho que dá tempo.

— Eu sei. — Barbara entrelaçou as mãos sob o pescoço dele. — Foi porque eu tirei todas as cortinas das janelas ontem à noite, antes de você chegar.

 

— Bom dia — disse Fletch alegremente para a senhora de avental que abriu a porta do n? 12339 da estrada Palmiera, em The Heights. Ela apertou os olhos ao reconhecê-lo como o homem que atravessara sua cozinha no dia anterior, vestindo nada além do que uma camisa de brim amarrada na cintura. Ele abriu um grande sorriso. — Não causo tantos problemas quanto aparento.

— Sim? — ela perguntou.

— Só vim entregar este pacote. — Ele lhe passou pela porta a sacola contendo as roupas de Donald Habeck. — Gostaria de ver a senhora Habeck, se possível.

A mulher manteve a porta presa com os pés enquanto pegava o pacote com as duas mãos. O cordão tinha afrouxado. — Em reclusão — disse ela. — Sob sedativos.

Um dos sapatos pretos de Donald Habeck caiu de dentro da sacola.

— Ih, nossa — Fletch disse. Apanhou o sapato e botou-o sobre a trouxa que ela segurava nos braços.

A mulher afastou a cabeça quando ele colocou o sapato.

— Uma outra pergunta — Fletch continuou. — Tinha uma senhora aqui ontem, sentada perto da piscina. Cabelo azulado, bolsa vermelha, tênis verde. Sabe quem era?

A mulher olhou para Fletch através de uma fresta estreita acima do sapato de Donald Habeck.

— Ela disse que era a senhora Habeck. Agia de modo estranho.

— Eu não falo inglês — a mulher disse. — Nem uma maldita palavra.

— Entendo.

Ela fechou a porta.

— Volto pra ver a senhora Habeck quando ela estiver se sentindo melhor! — Fletch gritou para a porta.

Entrando no carro parado em frente à garagem, Fletch olhou para cima na direção da casa.

No segundo andar uma cortina voltou à posição normal.

 

— Obrigado por me receber — Fletch disse devagar — tão prontamente.

Ele estava bastante surpreso pelo fato de o curador do museu de arte contemporânea o receber, e mais por serem nove e meia da manhã e ele não ter hora marcada. Ele esperava que curadores de museus mantivessem horas livres. Esperava também que qualquer curador de museu se retraísse diante de alguém de jeans e camiseta, mesmo limpinhos, de tênis, mesmo novos e branquíssimos, e que dissesse ser de um jornal.

Ele também não esperava que qualquer curador de museu, mesmo contemporâneo, sentasse atrás de uma mesa usando um boné de beisebol dos Detroit Tigers. Na mesa, ao lado de algumas pastas e de um livro enorme onde se lia MARGILETH, escrito à mão sobre uma capa brilhante, havia uma luva e uma bola de beisebol.

— Você é da Tribuna — confirmou o curador William Kennedy.

— Sim. Estou fazendo uma matéria sobre a doação de cinco milhões de dólares que deveria ter sido divulgada por Donald e Jasmine Habeck. — Fletch sorriu de leve pelo uso preciso do tempo do verbo. — Uma senhora da Administração disse que achava que a doação seria feita a este departamento.

— Que bom que posso falar sobre o assunto com alguém; com qualquer um — Kennedy disse.

Fletch perguntou: — Você é de Detroit?

— Não. — Kennedy tirou o boné e olhou para o logotipo. — É que admiro primazia, sob qualquer forma.

— Entendo.

— Também coleciono fitas de vídeo de Nureyev, Muhammed Ali e Michael Jackson. Gravações de Caruso, Mc-Cormack, Erroll Garner e Eric Clapton. Você acha que sou excêntrico?

— Eclético.

— Sou um homem perfeitamente feliz. — Kennedy debruçou-se para apanhar a luva de beisebol. — Não sei por que todo mundo não é como eu.

— Eu também não — Fletch disse.

— Você coleciona coisas?

— Sim — Fletch disse. — Gente.

— Que pensamento interessante.

— Eu não uso as pessoas, só coleciono. Daqui a um tempo, vão me proporcionar lembranças interessantes.

— Por isso você é jornalista?

— Imagino que sim. Por essa e algumas outras razões.

— Seu problema de armazenagem é menor que o meu.

— Primeiro, preciso que você confirme que o senhor e a senhora Habeck estavam doando cinco milhões de dólares a este departamento do museu.

— Não tenho certeza. — Kennedy jogou a bola para o alto e agarrou-a com a luva. — E se eles fossem realmente oferecer tal quantia, por escrito, não estou certo de que a aceitaríamos.

Fletch ergueu as sobrancelhas. — Um museu não aceitaria dinheiro vindo de lugar algum?

— De onde vem não nos importa. Vou fazer quinze anos de carreira em museus e nunca vi dinheiro sendo recusado por causa de sua origem, mesmo que fosse sujo. Lembra daquele velho trocadilho de Mark Twain? Um sacerdote lhe contou que tinha aparecido um gangster oferecendo dinheiro para arrumar o telhado da igreja. Twain perguntou: — Por que está hesitando? O padre respondeu: — Porque é dinheiro sujo. Sem ser meu nem seu.*

 

(*) No original, o jogo de palavras: "Because it's tainted money. T'ain 't yours and t'aint mine". (N. T.)

 

— Você coleciona histórias também.

— Conforme passam por mim.

— Estou achando que você considera o dinheiro de Habeck sujo.

Kennedy encolheu os ombros. — Nós sabemos que ele era um advogado esperto.

— Por "esperto" você quer dizer desonesto? Acho que estou colecionando maneiras de dizer desonesto.

— Com que freqüência você ouve falar de advogados que foram pra cadeia?

— Não com freqüência.

— Os médicos adoecem, mas os advogados raramente são presos.

— Por que um museu recusaria dinheiro?

— Por causa das exigências que acompanham o dinheiro. Eu explico. — Kennedy colocou a mão com a luva de beisebol sobre o boné na cabeça. A outra mão girou a bola na mesa. — No final da semana passada, Donald Habeck marcou uma entrevista comigo. Fiquei muito apreensivo quando minha secretária me falou sobre o encontro que tinha marcado. Nunca estivemos muito próximos de Donald Habeck. Nunca soube que ele tivesse algum interesse em arte ou no museu. Portanto, minha suspeita era de que ele estivesse querendo me convencer a testemunhar como perito em algum de seus casos, ou coisa assim.

— E você não teria concordado?

— Acho que não. Já testemunhei como perito antes, claro. Mas só quando senti que estava em terra firme, podendo confiar em quem me requisitava. Não faço disso uma carreira, só se justifica quando realmente precisam de mim.

— E você não sentia que pudesse confiar em Donald Habeck?

— Não sabia nada a seu respeito. Tinha apenas uma impressão dele, causada por sua aparição nos jornais ou na televisão. Tinha a vaga impressão de que, através de uma série de truques, ele conseguia manter livres pessoas que deviam estar na cadeia.

Fletch percebeu a rapidez com que as pessoas diziam nunca ter conhecido Donald Habeck, ou então que o tinham conhecido apenas superficialmente.

— Então Habeck teve sua entrevista marcada, mas não foi convidado para o almoço — Kennedy continuou. — Veio aqui na última quarta-feira à tarde, sentou na mesma cadeira em que você está sentado e me surpreendeu à beca quando contou que estava pensando em dar cinco milhões de dólares ao museu.

— Qual foi sua primeira pergunta?

Kennedy pensou um pouco. — Minha primeira pergunta foi: "Do seu próprio dinheiro?". Fiquei imediatamente desconfiado não sei do quê.

— E ele confirmou que queria dar dinheiro seu?

— Sim. Então eu disse, muito educadamente, que eu nunca soube que ele tivesse interesse em arte ou no museu. Ele respondeu que estava muito interessado em arte e, ainda, que tinha percebido na nossa coleção contemporânea algo que chamou de "vasta lacuna".

— Isso chamou sua atenção.

— Evidente que sim. Mal podia esperar pra saber que "lacuna" era aquela. Não temos a coleção de arte contemporânea mais importante do mundo, mas é bastante rica e diversificada. Graças a meu antecessor e a mim. — Kennedy estava jogando a bola para cima outra vez. — Ele disse que queria que os cinco milhões de dólares fossem gastos exclusivamente na compra de arte sacra contemporânea.

Depois de um momento, Fletch disse: — Aí fica confuso.

— Não é? — Olhando Fletch com cumplicidade, Kennedy falou: — Como você sabe, não existe quase arte sacra contemporânea. Quero dizer, toda arte é sagrada, não é? Na sua própria forma, até mesmo profana. A arte retrata o homem e sua relação com a natureza, seus amigos e sua divindade. Nem tudo é passível de adoração, mas eu considero cada obra de arte verdadeira um poderoso retrato da natureza de nossa existência.

— O que você respondeu?

— Educadamente, perguntei o que ele achava que deveríamos adquirir. Dentro de seu vocabulário jurídico, ele respondeu que nós éramos os especialistas no assunto e que, se nós não nos sentíamos em condições de achar arte sacra contemporânea de valor, ele levaria seu dinheiro pra outro lugar.

— Cara duro até na bondade.

— Calma. Você não ouviu tudo. Tentei explicar ao senhor Habeck que o que existisse de arte sacra contemporânea de valor, eu seria o primeiro a descobrir e adquirir. Claro, sempre vamos encontrar arte de "santinho". Algumas igrejas já desenvolveram um design bastante contemporâneo pra suas cruzes e paredes. Mas a não ser que você considere um Jesus com seios na cruz algo de valor, não há muito de novo na área. Como críticos e curadores, estamos considerando hoje os vários gêneros religiosos, talvez equivocadamente, da Criação até Joana D'Arc, como uma história encerrada. — Kennedy jogou a bola para o alto e pegou-a. — Aí me dei conta de que eu estava dissertando sobre o assunto e de que não tinha sido pra isso que o coitado tinha vindo aqui. Notei que ele estava ficando furioso. Eu estava indo por um caminho completamente errado. Então resolvi entrar num nível mais pessoal e perguntar por que ele queria dar tanto dinheiro.

— Uma pergunta que todos nós fazemos.

— Acredito que a resposta vá surpreendê-lo. Depois de alguns minutos se retorcendo na cadeira, tenho certeza que tão desconfortável quanto qualquer testemunha sendo interrogada por ele, Habeck balbuciou que sua vida estava acabada, que estava derrotado, que ninguém lhe dava a menor, que estava se desfazendo de tudo que possuía e — Kennedy jogou a bola bem alto, tendo que trazer o corpo para a frente para pegá-la — que pretendia passar o resto da vida num mosteiro católico romano.

Depois de um tempo em silêncio, Kennedy jogou a bola para Fletch sobre a mesa.

Pegando a bola, Fletch disse: — Vupt.

— Achei que isso ia surpreender você — disse Kennedy. — Entende por que estou feliz de falar com você esta manhã. É uma situação muito estranha, sem dúvida.

— Minha nossa. Quem poderia imaginar?

— As pessoas não são surpreendentes? Valem ser colecionadas.

— Ele queria virar monge?

— Sim. Foi o que disse. Um monge católico romano. Passar o resto da vida lendo Thomas Merton ou algo assim. Cânticos matinais e vespertinos. A coisa toda.

— Ele sempre usou sapatos pretos.

— O quê?

— Esqueça.

— Não é preciso dizer que tivemos uma série de reuniões aqui no museu para discutirmos esse caso de Habeck. Ninguém está sabendo o que pensar. E ontem quando saía pra almoçar, ouvi no rádio do carro que Habeck tinha sido assassinado. Na quarta-feira passada, quando ele disse que sua vida tinha acabado, estava mais certo do que imaginava.

— Se ele queria doar cinco milhões de dólares e entrar pra um mosteiro, por que não deu o dinheiro pro mosteiro ou pra Igreja?

— Perguntei isso a ele. Ele disse que estava muito velho para se ordenar. E também que teria muito a aprender. E que queria a paz e o silêncio de um mosteiro. Disse que estava cansado de falar, argumentar, defender e acusar. Consegue acreditar nisso?

— E instituir uma coleção de arte sacra no museu seria defesa pública de sua causa?

— Acho que sim. Ele esperava que uma coleção dessas inspirasse sentimentos sagrados entre as pessoas mais do que qualquer sermão que ele desse algum dia ou que algum dia quisesse dar. Isso, se eu compreendi corretamente.

Fletch jogou a bola de volta para Kennedy pelo alto. — Não entendo.

— Ele disse que lhe sobrava ainda um pouco mais de um milhão de dólares. Esse dinheiro ele daria ao mosteiro.

— E a mulher dele? Os filhos? Os netos?

— Não falou neles. Exceto pra dizer que ninguém lhe dava a menor. Palavras dele.

Kennedy atirou a bola para Fletch outra vez.

— O museu sendo igreja, hein?

— Um museu é, em parte, uma igreja. Talvez inteiramente uma igreja.

— E o que você fez com ele?

— Eu estava tão chocado que sugeri que ele pensasse mais sobre o assunto. Acho que até ousei sugerir que ele conversasse sobre o assunto com a mulher, os filhos, os sócios.

Fletch jogou a bola num arco com a altura máxima da sala. — Um curador sendo padre, hein?

— Ou psicanalista. — Kennedy pegou a bola sobre o vidro da mesa. — Disse a ele que nós aqui conversaríamos sobre o caso. Deixei bem claro que eu não acreditava que pudéssemos aceitar seus cinco milhões de dólares com a condição de que fossem gastos exclusivamente na compra de arte sacra contemporânea. Não seria justo com ele aceitarmos doação com exigências que não podemos cumprir. — Ele voltou a bola para Fletch. — Se pudéssemos chegar a um acordo de tal forma que ele deixasse o dinheiro à nossa disposição e nós adquiríssemos arte sacra contemporânea de valor quando e se estivesse disponível, então talvez aceitássemos o dinheiro.

Fletch jogou a bola de volta para o curador. — E ele, sendo um advogado, tinha plena certeza de que podia redigir um acordo desses.

— Provavelmente. A notícia do assassinato, que li hoje de manhã na primeira página de seu jornal, dizia que ele pretendia conversar com seu editor sobre a divulgação da doação de cinco milhões de dólares a uma instituição da cidade.

— Me disseram que seria o museu.

— Foi você que escreveu aquela matéria do jornal de hoje?

— Não. Biff Wilson.

Kennedy jogou a bola para a mão com a luva. — Foi uma boa matéria.

— Estava razoável — Fletch disse. — Para o Obituário.

 

Na pequeníssima recepção do Atendimento a Amigos Ben Franklyn, uma mulher vistosa de meia-idade, atrás de uma pequena escrivaninha de madeira, passou os olhos por Fletch.

— Se tomar a sua esquerda na esquina — ela disse, apontando a direção com uma mão bem-cuidada —, e à esquerda novamente na metade do quarteirão, vai encontrar uma viela.

— Extasiante!

— Nossa entrada de serviço é mais ou menos no meio do quarteirão à esquerda. — Ela usava um longo fio de pérolas sobre um abrigo cor-de-rosa. — É fácil identificar a porta.

— Puro êxtase!

A mulher franziu as sobrancelhas. — Você está fazendo uma entrega, não? Ela parecia ser mais o tipo de recepcionista de guichê de biblioteca pública.

— O que estou entregando? — Fletch perguntou.

— Lençóis. Toalhas.

— A mim.

— Você?

— Eu. Por completo. Cabeça, ombros, quadris e joelhos, descendo até os tornozelos. E tudo que há pelo caminho. — Fletch engoliu seco.

— Você tem hora marcada? — Ela abriu uma agenda de mesa. — Você não é bem o tipo...

— Que tipo?

Os olhos dela se certificaram de que ele estava de jeans desbotado, camiseta e tênis novo e muito branco. —... o tipo mais comum que nós recebemos.

— Fui bem recebido no museu vestido desta maneira.

— Seu nome?

— Jaffe.

— Ah, sim: Fletcher Jaffe. — Ela ticou o quadrado de "entrada" ao lado do nome dele.

— Já ouviu este nome antes?

— Não prestamos tanta atenção a nomes.

— Jaffe é um nome a que você deveria prestar atenção.

— São cento e cinqüenta dólares.

— Ótimo! Eu pago! — Ele jogou sete notas de vinte e uma de dez sobre a mesa. — Não esqueça de me dar um recibo.

Ela o olhou de modo inquisitivo. — Nossos clientes não costumam pedir recibos.

— Eu costumo.

— Eu faço um recibo pra você antes de você sair.

— Por que não agora?

— Bem, talvez você queira acrescentar uns extras.

— Que extras?

A mulher parecia constrangida. — Uma gratificação. Sei lá.

— Entendo.

— Você não é casado, é?

Fletch balançou negativamente a cabeça. — Não, minha senhora. Ninguém inspeciona meus bolsos.

— Doenças? — Seus olhos se abriram mais ao olhar para ele. — Está disposto a jurar que não tem doença alguma?

— É mais difícil entrar neste lugar do que numa escola preparatória da Nova Inglaterra.

— Perguntei sobre suas doenças.

— Catapora.

— Catapora!

— Quando tinha nove anos. — Fletch apontou para uma marquinha no seu cotovelo esquerdo. — Estou melhor agora, obrigado.

A mulher suspirou. Ela apertou um botão no interfone sobre a mesa. — Cindy? Tem alguém aqui que veio ver você.

— Ah, Cindy! — exclamou Fletch. — Eu tava esperando uma Cindy. Ninguém quer uma Zza-Zza, uma Queenie ou Bobo nesta hora do dia.

— Eu já vi você em algum lugar antes — a mulher disse, quase para si própria. — Recentemente.

— Eu ando por aí — Fletch falou jovialmente. — Um tanto boulevardier.

— Ah, Cindy — disse a mulher. — Este é Fletcher Jaffe. Parada na porta, estava uma mulher de pouco mais de vinte anos. Vestia apenas um short de nylon bem cortado, tênis e meias curtas. Seus ombros eram levemente musculosos. Seus seios eram firmes e inteiramente bronzeados, idênticos ao resto do corpo. Tinha músculos visíveis no estômago. Seu cabelo preto e seus olhos grandes combinavam perfeitamente, tinham o mesmo brilho.

Olhando para Fletch, ela torceu o nariz.

— Bom dia, Cindy. — Fletch engoliu em seco de novo. — Que bom que você veio trabalhar cedo hoje.

Uma outra jovem entrou pela porta da rua. Usava jeans branco e uma camisa vermelha larga. Tinha cabelo louro esvoaçante.

Aproximando-se da mesa, ela abertamente analisou a cena: Fletch parado no centro da pequena sala da recepção, Cindy se mostrando na porta.

— Marta! — choramingou ela para a mulher na mesa.

— Não posso fazer nada, Carla — Marta respondeu.

— Você me disse pra ficar dormindo hoje de manhã!

— Eu também disse — Marta falou energicamente — pra você nunca usar vermelho. Não combina com a cor de seu cabelo.

— Eu sei. — Carla deu uma risadinha. — Faz os homens na rua olharem pro lado.

Na porta que dava para o interior, Cindy fez um sinal com a cabeça. Fletch seguiu-a.

Ele a seguiu por um corredor acarpetado e revestido de painéis.

— É da polícia? — ela perguntou.

— Não.

— Espero que seja — Cindy murmurou. — É hora desse lugar dançar. — Ela diminuiu o passo. — Mas você me faria um favor?

— Qualquer coisa.

— Acabe com esse lugar, se quiser. Veja bem onde vai chegar. Mas livre a minha cara dessa, tá bom?

— O que te faz pensar que sou da polícia?

— Vou cair fora no fim da semana. Te juro. Não quero me incomodar.

— Se eu sou da polícia, você é horrorosa.

Mesmo no corredor escuro, a pele dela tinha um brilho lindo.

Ela sorriu com o elogio.

Ela abriu uma gaveta pesada, construída na própria parede, e pegou outro calção de nylon bem cortado. — Você acha que esse dá? Setenta e oito de cintura?

Jogou-o para ele.

— Claro.

Ela o conduziu até uma sala muito iluminada à esquerda.

Na sala, havia um aparelho de musculação com barra.

As paredes eram forradas de espelhos. Havia espelhos pendurados no teto. Num determinado ponto havia até um espelho no chão, encaixado no tapete.

Fletch pisou no espelho do chão, olhou para cima e para os lados. Pelos espelhos posicionados no teto, ele se viu em ângulos pelos quais nunca tinha se visto antes. Nos espelhos das quatro paredes viu seu corpo refletido ao infinito.

Cindy fechou a porta que dava para o corredor. — Onde conseguiu seu bronzeado?

— Na cara.

— Algum outro lugar? — Ela cruzou a sala, entrou num banheiro, voltou no mesmo instante e jogou uma toalha para ele.

Parado no espelho, vendo-se por todos os lados, Fletch disse: — Eu, eu, eu.

— Você sacou, querido.

Ele segurava a toalha e o calção na mão.

— Tome uma ducha — ela disse. — Use o sabonete. Vista só o calção e volte aqui.

Fletch ergueu o calção. — Esse calção não tem nada dentro.

— Vai ter — ela disse. — Eu espero.

Na ducha, o sabonete ardeu.

Quando ele voltou, Cindy estava preparando uma bebida em um pequeno bar escondido.

Ela deu uma olhadela nele. — Eu imaginava.

— Você imaginava o quê?

Levando a bebida até ele, perguntou: — Que vitaminas você toma?

— P.

— Nunca ouvi falar.

— Tá nas melhores cervejas.

Cindy passou-lhe a bebida. Com a outra mão, colocou cinco azeitonas recheadas na mão dele.

Ele cheirou a bebida. — O que tem dentro?

— Suco de laranja.

— Tudo bem. — Ele mastigou as azeitonas.

— Um pouco de pó protéico.

— Parece saudável.

— Um pouco de fermento.

— Parece explosivo.

— E um pouco de chifre de alce em pó.

— Estava esperando que você dissesse isso.

— É afrodisíaco, sabia?

— Mais alguma coisa?

— Não.

— Especialidade da casa?

— Beba, querido. Perfeitamente seguro. Ele tomou um gole. — Hmmm.

— Vire de primeira — ela disse.

— Realmente — ele disse, engasgando um pouco. — Você pensou em comercializar o troço? — Mesmo enquanto bebia, sentia a garganta seca. — Elixir de Ben Franklyn.

— Venha. — Ela pegou o copo vazio da mão dele e colocou-o no bar.

Em seguida pegou-o pela mão e levou-o até um dos aparelhos.

— Você sabe como usar essas coisas? Claro que sabe. Deite de costas. Você vai fazer levantamento de peso. Está programado para 54 kg. É mais ou menos isso?

— Vamos ver.

Ele deitou as costas no banco. Seus joelhos estavam dobrados, seus pés no chão.

Olhando para cima, ele viu no espelho sua própria imagem, o topo da cabeça e os ombros de Cindy.

— Levante — ela disse. Ele levantou.

— É mais ou menos isso — ela disse. — Sente-se bem?

— Como sorvete num dia quente de verão.

— Faça oito de cada vez, devagar.

Ela se sentou sobre ele, separando-lhe as coxas. Uniu os polegares, esticou as mãos e tocou-o abaixo do estômago.

Enquanto ele levantava o peso, ela pressionava as mãos contra os músculos do estômago dele.

Fletch experimentou uma sensação que nunca tinha sentido antes.

Ele gemeu.

— Não deixe cair — ela disse. — Faz um barulho enorme. Ele fez os pesos descerem silenciosamente e olhou dentro dos olhos dela.

— Vamos — ela disse. — Você vai fazer oito vezes seguidas. Estou te motivando. Respire.

Ele respirou e levantou o peso.

No terceiro levantamento, ele percebeu suas pernas se esticarem, seus calcanhares escorregarem pelo tapete.

Ela não saiu de cima de suas coxas. Pelo espelho, pôde ver que ela tinha enganchado as pernas nas pernas do banco. A cada levantamento ela pressionava as palmas das mãos contra o estômago dele.

— Respire — ela disse.

— Isso também?

Depois de oito levantamentos, ela deu um peteleco com as unhas no calção dele. — Você é saudável o bastante. Como eu imaginava.

Ele ergueu os joelhos.

— Ficarei com seu suor — ela disse.

Ela se inclinou para a frente e colocou os seios e o estômago sobre ele. Trouxe as próprias pernas para cima e colocou suas coxas sobre as dele. Relou sobre ele, um pouco.

Assim que ele cedeu ao irresistível impulso de colocar os braços em volta dela, ela já estava longe.

Estava parada sob as barras. — Venha.

— Quem disse que fazer exercício é chato?

Ao andarem pela sala fortemente iluminada, seus reflexos ao infinito, por todos os lados, causavam a impressão de que cada um deles era uma legião movimentando-se com precisão marcial.

— Coloque suas mãos na barra.

Na pontinha dos pés, ele se espichou completamente e colocou as mãos em volta da barra.

— Não — ela disse. — Ponha suas mãos mais pra trás na barra. — Ele obedeceu. — Agora erga o corpo. — Ele ergueu, enquanto ela observava. — Outra vez — ela mandou.

Enquanto ele suspendia o corpo a segunda vez, Cindy saltou e agarrou a barra bem em frente às mãos dele. Seu corpo bateu contra o dele.

Ela fez o levantamento junto com ele, seus corpos roçando-se de leve. Ela fixou os olhos nos dele enquanto suspendiam juntos seus corpos, lentamente, depois baixavam até esticar, depois suspendiam novamente.

— Agora fique em cima — Cindy disse.

— Como se eu pudesse escolher.

Ela abraçou os quadris dele com as pernas. Aos poucos ela foi soltando as mãos da barra. O corpo dele segurou o peso dela. Ela enrolou os braços em volta do pescoço dele.

— Agora nos leve pra baixo devagar.

Ela abriu a boca e colocou forte os dentes contra os músculos esticados do pescoço dele.

Enquanto abaixavam, todo e qualquer ligamento, músculo, tecido e pele acima da cintura dele estavam alongados ao máximo.

Sentiu um estalo excitante na espinha e um pequeno estouro na nuca.

Quando seus pés tocaram o chão, os joelhos dobraram.

Enroscados, os dois caíram no colchonete.

Cindy riu. — Nem todo mundo consegue fazer isso.

Suas pernas estavam enroscadas. Ele botou os braços em volta dela. Sentia seus músculos dos ombros inflamados, inchados.

Ela beijou o pescoço dele, onde tinha mordido.

Ele sentiu então a língua dela lambendo em volta do lugar em que ela o tinha beijado.

— Estou lambendo sangue — ela gracejou.

— Aula de ginástica nunca foi assim.

— Você freqüentou a escola errada.

— Sempre tive essa desconfiança.

— Ainda temos muito pela frente — disse ela.

— Será que eu consigo disposição?

— Deixa comigo.

Cindy ainda não tinha se desenroscado dele quando a porta do corredor se abriu.

Ela deu um salto. Olhou para a porta realmente surpresa.

 

— Qual é a sua? — Marta perguntou a Fletch detrás de sua escrivaninha no escritório do Atendimento a Amigos Ben Franklyn.

— Minha? — Sentado numa pequena poltrona em frente à escrivaninha, Fletch baixou os olhos. Ainda estava um pouco ofegante, ainda suava e a frente de seu leve calção amarelo indicava a qualquer observador que sua atenção ainda estava em outro lugar. — Meu, tô sofrendo.

Marta tirou o telefone do gancho e pressionou três teclas. No telefone, falou: — Cindy? Vista-se. Depois venha até aqui.

— Tenha dó de mim! — disse Fletch.

Relutante, tinha seguido Marta pelo corredor acarpetado e escuro até o escritório, que ficava atrás da recepção. Ao caminhar, Marta tinha nos quadris mais um pique atlético do que um rebolado sexy.

— Você vai se acalmar num minuto, garoto.

— Acho que não. Eu talvez fique neste estado pra sempre.

— Não queira.

As samambaias desse escritório estavam vivas. A Vênus de Milo estava parada num pedestal no canto. Numa parede havia Manhã de Setembro. Em outra, um painel largo com fotos coloridas de mulheres halterofilistas exibindo os músculos.

Sobre a mesa de Marta, havia uma pilha de notas que pareciam ser sete de vinte e uma de dez.

— Estou sendo expulso do Atendimento a Amigos Ben Franklyn? — Fletch perguntou. — Você não vai ser minha amiga?

— Eu perguntei o que você está querendo?

— Sou apenas um rapaz de sangue normal que saiu pra uma manhã de esporte.

— Não é porra nenhuma. — Marta passeou os dedos pelas pérolas penduradas até o estômago. — Eu lembrei onde tinha visto você antes.

— Eu sei! — Fletch falou. — Acabei de lembrar também. Domingo, no café Newcomer, na Igreja de Santo Anselmo.

— Está certo quanto ao dia — Marta disse. — Você está querendo alguma coisa. E acho que sei o que é.

— Estaria. — Dobrando o corpo para a frente, Fletch colocou os cotovelos nos joelhos e enterrou o rosto nas mãos. — Nada tão medonho aconteceu comigo desde o dia em que os pais de Sue Ann Murchison foram pra casa mais cedo depois da sessão do primeiro Jornada nas Estrelas e nos pegaram no sofá.

— Eu vi você no domingo. Você correu na Maratona Sardinal.

— Também não fui compreendido por ninguém na época. Me jogaram pra fora. Era uma noite superfria. Ser frágil é perigoso, você sabe. Se eu não tivesse ficado firme quando desci pra calçada da frente...

— Você perseguiu as garotas pela corrida inteira.

—... mas claro. Senão não estaria aqui hoje.

— Por quê?

— Se me. dá licença, acho que vou dar uma corrida agora.

— Sente-se.

— Tenho coisas pra fazer!

— O que você tem pra fazer é me responder. Eu perguntei por que foi que você nos seguiu por toda a Maratona Sardinal no domingo?

Fletch sentou outra vez na poltrona dura. — Porque sou um velho escroto.

— Eu perguntei por quê?

— Porque eu era um garoto sujo.

— Você é um homem jovem — Marta insistiu. — Um garoto que transpira saúde.

— Esbanja saúde.

— Você é bonito. Na verdade, eu imagino que algumas mulheres considerem você excitante de se olhar.

— Algumas mulheres consideram repolho excitante de se olhar.

— Cento e cinqüenta dólares. — Marta folheou a pilha de notas com os dedos. — Você pode conseguir o que quer, provavelmente mais do que quer, sem ter que caminhar um quarteirão inteiro.

— Se importa se eu tentar agora mesmo?

— Sente-se, por favor. Desconfiei de você no minuto que vi você. Cento e cinqüenta dólares é muito dinheiro. E isso é só pra iniciantes.

— Sabe como esfriar o cliente, hein?

— No minuto que você entrou aqui, eu soube que ninguém como você dá duzentos dólares ou mais só por uma aventura sexual.

— Eu estava gostando. Caminhava pro êxtase quando você abriu aquela porta.

— Aí eu lembrei onde tinha visto você. Vou perguntar mais uma vez: por que você ficou exatamente atrás de nós durante toda a Maratona Sardinal no domingo?

— Tudo bem — Fletch disse. — Eu confesso. Sou estudante de propaganda. Publicidade, na verdade. Eu estava estudando sua técnica. — Ele levou as mãos à frente para mostrar o meneio dos quadris. — Sua técnica realmente funcionou. Isto é, você conseguiu ganhar quilômetros com a sua publicidade.

Marta sorriu divertida. — Realmente...

— Acho que eu vi uma matéria grande sobre o Atendimento a Amigos Ben Franklyn nas páginas de Esporte dos jornais de ontem, não? Duas fotos no mínimo. Foi na Gazeta?

O sorriso da mulher tornou-se autêntico. — Na Tribuna.

— É. Isso mesmo. Tudo pelo preço de doze camisetas. Isso é quilométrico.

Marta disse: — Você é um espião.

Fletch arregalou os olhos: — Eu sou um espião? — Baixou a voz até quase sussurrar: — Quer dizer, da China vermelha?

— Está nos estudando, com certeza — Marta assentiu. — É isso? Por isso você nos seguiu no domingo. Por isso você veio aqui hoje de manhã. Está estudando nosso funcionamento.

— Ah, você quer dizer um espião industrial. — Fletch falou mais alto. — Do Japão.

— Depois de aprender o que fazemos aqui, você pretende abrir a sua academia de musculação para-o-êxtase-sexual.

— Você se expressa tão bem — disse Fletch. — Honestamente, você deve ter um talento nato pra publicidade e propaganda.

— Não é essa a verdade?

— Moi? — Fletch perguntou. — Olhe pra mim. Na minha idade, onde ia conseguir dinheiro pra abrir um desses ginásios-dos-prazeres?

— Eu não sei, mas está aqui.

— Nem mesmo sei quanto custa um desses aparelhos de musculação, mas com certeza deve ser muito caro. Todos esses espelhos. Luzes. Banheiros. Pó de chifre de alce.

— Alguém pode estar financiando você.

— Ô, minha senhora, com a minha idade, não conseguiria ser financiado nem por um leiteiro.

Marta estremeceu. — Não me chame de minha senhora.

— Certo. Desculpe.

— E então. Por que está aqui, Fletcher Jaffe?

Fletch olhou para os dedos dos pés. — Pensei que a esta altura você já tivesse adivinhado — ele disse, sem saber qual seria sua próxima linha de defesa, mas desejando alguma.

— Você quer um emprego. — Marta parecia contente consigo mesma.

— Você sacou — disse Fletch ligeiro.

— Eu tinha que ser cautelosa. — Marta endireitou as costas.

— Eu entendo.

— Nesse negócio — disse Marta — temos que tomar cuidado.

— É claro — Fletch engoliu em seco. — Naturalmente. Eu também.

— Dar uma sondada, testar-se um ao outro, antes de botarmos as cartas na mesa.

— Você é boa nisso — Fletch disse.

— É por isso que você está se aproximando dessa forma tão estranha. Solicitação é uma palavra tão feia. Você queria ver se nós te faríamos a proposta.

— Certo — disse Fletch através de seu pomo-de-adão.

— Você contava realmente em reaver seus cento e cinqüenta dólares hoje de manhã. — Ela juntou-os da mesa e os devolveu. — Aqui estão.

Ele pegou o dinheiro.

Ela se recostou na sua cadeira giratória e virou de lado para a mesa. — No momento temos apenas duas salas para mulheres, que funcionam três vezes por semana — terça, quarta e quinta — quando o movimento masculino diminui. Não se preocupe. Você vai ganhar mais dinheiro do que ganharia em qualquer outra profissão, com exceção, talvez, de neurocirurgia. As mulheres têm uma entrada separada, claro, mas falamos todos a mesma língua. O princípio aqui é que o sexo propicia muito mais êxtase depois de exercícios puxados. Funcionam como preliminares, sabe? — ouvindo-a falar, tentando engolir seu pomo-de-adão, os olhos fixos nela, Fletch olhava para Marta e lembrava de Frank Jaffe sentado na sua cadeira giratória atrás de sua mesa, tentando explicar alguns princípios de jornalismo. — Quando chega a hora, claro que você sabe, nós não esperamos que você faça uso de seu próprio, eu diria, equipamento íntimo pessoal. — Ela soltou um risinho. — Exceto seus dedos, evidentemente. Diferentemente das mulheres, os homens não conseguem agüentar tanto movimento. Os homens não conseguem disfarçar. Nossas clientes compreendem isso. Nós temos aparelhos vibradores, além de vibradores mecânicos mesmo, que eu considero bastante satisfatórios. Temos inclusive um vibrador que é preso num cinto largo de couro que você pode atar no próprio corpo, se não sentir total aversão pela mulher. Obviamente, esperamos que você cobre uma taxa extra por esse serviço. — Ouviu-se uma batida na porta. Marta falou: — Entre, querida!

Cindy abriu a porta e deu um passo dentro da sala. Estava de mocassins, meias brancas até o joelho, uma saia escocesa curta e uma camisa social azul clara, arrumadinha e abo-toada, com as mangas enroladas. Sem expressão, observou o rosto de Marta.

— Cumprimente outra vez o seu novo colega, querida.

— Marta levantou-se. — Fletcher Jaffe vai integrar a equipe do Atendimento a Amigos Ben Franklyn. Quero que o leve pra almoçar, Cindy, e lhe ofereça toda a sua sabedoria e experiência.

Cindy olhava para Fletch sem expressão. A garganta de Fletch estava seca.

— Ele se aproximou de nós de uma forma bem esperta

— Marta disse. — Ele sabia que não poderia simplesmente chegar aqui e pedir um emprego sem se tornar muito vulnerável. Tive trabalho com ele — ela deu um risinho. — Será que ele é da polícia? Me perguntei. Um espião? A polícia não mandaria alguém tão jovem. E ninguém da idade dele poderia manter um lugar desses. Disfunção sexual? Não, pelo que observei vendo vocês dois pelo espelho.

— Você é um detetive e tanto — Fletch resmungou.

Fletch ficou em pé, os joelhos frouxos.

Marta fez a volta na mesa e colocou a mão na nuca dele. — Ele é exatamente o que precisamos para formar nosso lado feminino do negócio. Não é, Cindy?

— Claro. — Cindy ainda o observava. — Eu acho.

— Ele é simplesmente perfeito. Estava procurando por você, garoto. — Ela apertou a nuca dele. — Exatamente o que nós precisamos. Bem-vindo a bordo. Pode começar a trabalhar quando quiser.

— Obrigado.

— Conte tudo a ele, Cindy. Mostre os macetes.

Fletch disse a Cindy: — Se importa se eu tomar uma ducha antes de me vestir?

— Eu ficaria grata.

— Tenham um bom almoço, crianças. Hoje almoçam por conta do Atendimento a Amigos Ben Franklyn. Mas lembrem-se os dois: bastante proteína e cuidado com os amidos e gorduras. — De volta a seu lugar atrás da escrivaninha, Marta sorriu para Fletch. — E lembre-se, Fletch, minha porta está sempre aberta.

 

— Isso nunca aconteceu antes — Cindy disse. — Marta simplesmente abrir a porta e entrar daquele jeito. Não podia imaginar o que tava acontecendo. — Estavam caminhando do carro dela até o Manolo's, o café aberto. — É claro que eu sabia que tinha algo estranho com você. Alguma coisa diferente. Lembra que eu perguntei se você era da polícia?

— Você me pediu pra dar uma batida no Atendimento a Amigos Ben Franklyn, mas não você, a nível pessoal.

— Só em caso de você ser da polícia. A gente precisa da sensação de privacidade que aquela porta fechada dá, entende? Criar o clima certo, controlar o cliente.

— Satisfazer o cliente, também.

Fletch levava na mão seu jeans e sua camiseta.

Quando estava para se vestir, Cindy havia entrado no banheiro e lhe jogara um calção leve e uma camiseta. — Marta disse pra você usar isso. Disse que você entende de relações públicas. — Na frente da camiseta e na cintura do calção estava escrito em letras pequenas: "Você quer um amigo?", e na parte de trás de ambos: "Ben Franklyn".

Cindy tinha pensado em almoçar no Café Manolo's. Fletch sugeriu que fossem a outro lugar, mas Cindy insistiu em que o Manolo's era o lugar quente do momento.

Assim, estavam caminhando pela calçada, Fletch um cartaz ambulante, desejando que ninguém soubesse exatamente o que significava a mensagem comercial que ele estava exibindo.

Marta ficara satisfeita ao vê-lo com o calção e a camiseta. O emprego estava garantido.

— É claro, Marta pode nos observar pelos espelhos a hora que quiser.

— Os espelhos são janelas pelo outro lado?

— Não todos. Só alguns. f

— O que isso representa pro seu senso de privacidade?

— É bom. Faz você se sentir segura, caso alguma coisa dê errado. Caso você esteja com algum maluco lá dentro, que de repente se torne violento ou algo assim.

— Têm malucos com freqüência?

— Não. Mas quando você sente que alguma coisa não está dando certo, você aperta um botãozinho no bar e alguém vai lá observar pelos espelhos.

— Entendo.

— E, é claro, Marta vende as poltronas. E tem as câmeras.

— O quê?

— Atrás das paredes de espelho grande, existem poltronas em um ou dois dos salões. Você sabe, para voyeurs. Velhos, gordos, repulsivos, não sei quem são. Pessoas que preferem ver a fazer.

— Homens e mulheres?

— Claro. Marta papa cem milhas a poltrona.

— Você representa pra eles?

— A gente gosta. Quero dizer, supondo que a gente esteja com um cara razoavelmente jovem e saudável. Como você. Marta teria convidado você pra uma sessão de graça, por exemplo, na sexta à noite. Você teria voltado e eu teria feito o mesmo, com a única diferença de ter pessoas olhando.

— E eu não ia saber.

— Tudo o que você ia ficar sabendo é que estava tendo o de sempre de graça.

— E o que isso significa pra você?

— Mais dinheiro. Além disso, ter pessoas observando de certa forma aumenta a experiência, entende? Especialmente quando se faz isso sempre.

— Derruba a sensação de privacidade?

— Claro que sim. Você nunca transou em público?

— Não intencionalmente.

— Às vezes Marta nos aluga pra festas. Transamos no chão depois do jantar. Um cara e uma garota, duas garotas, dois caras. Deixa realmente os coroas excitados. É divertido. Você vai ver. Sem falar que as gratificações são fantásticas!

— Você falou em câmeras?

— É. São necessárias. Pra evitar dificuldades. Ficam atrás de um dos espelhos menores em todos os salões. Uma câmera com um videoteipe e uma câmera fotográfica. Temos fotos de todos os clientes.

— Porquê?

— Bem, às vezes estão bêbados ou com raiva ou ficam frustrados. Você sabe, clientes são sempre iguais em qualquer negócio, eu imagino. Eles reclamam, ameaçam. Se parecem realmente perigosos pra gente, Marta mostra as fotos pra eles. Eles se acalmam, pode apostar. Não só porque estão fazendo esse tipo de coisa, mas porque nas fotos aparecem tão horrorosos e desajeitados com suas panças enormes, grosseiras e cinzentas penduradas, umas bundas cabeludas espetadas pra cima, apanhando dos aparelhos.

— E às vezes as fotos são usadas pra chantagem, certo?

— Claro. Principalmente se o cliente deixa de ser cliente e a gente sabe quem ele é realmente. Uma vez que você entra pela porta do Atendimento a Amigos Ben Franklyn, um pedaço de você fica lá pra sempre.

— Fez-se um amigo pra vida toda.

— É um bom negócio.

— É — disse Fletch. — Ali ali com a prática do Direito.

— Olha ali. Tem uma mesa vazia.

— Então — disse Fletch, esticando as pernas na sombra da mesa do café. — Você é a prostituta-do-coração-de-ouro?

Com os braços cruzados sobre o peito, todas as suas mensagens comerciais estavam escondidas.

— Não acredito que um coração de ouro batesse muito bem — Cindy respondeu. — Tenho um lugar melhor pra colocar meu ouro.

— Você juntou muito ouro no Ben Franklyn?

— O suficiente pra deixar aquele lugar idiota. Marta ainda não sabe. Por favor, não conte a ela. Queremos que seja uma surpresa no fim da semana. Sexta é meu último dia de trabalho. Tenho uma coisa pra fazer no sábado e no domingo vamos embora pro Colorado. Pra sempre.

— Você tá fugindo.

— E como.

— Mas se tá fazendo tanta grana...

— Não é muito legal da minha parte dizer isso pra você. Isto é, você tá acabando de entrar e eu saindo. Eu devia dizer só coisas boas, eu acho. Você pode não acreditar, Fletch, mas honestamente o Atendimento a Amigos Ben Franklyn é um lugar muito sórdido.

Fletch tentou parecer surpreso.

— Enchi o saco. Só — disse Cindy. — Lembra de quando você estava na recepção, entrou aquela loura brega e começou a fazer um número?

— Sim.

— Era Carla. Estava com ciúme porque peguei você como cliente. Ela nem devia estar lá hoje de manhã, saco!

— Ela tem a primeira escolha...

— Ela escolhe tudo primeiro. Horários, clientes, salões.

— Os mais antigos têm suas vantagens em qualquer negócio.

— Antigo! Ela tá lá há três meses! E eu há dois anos e meio, desde que abriu, porra!

— Há ciúme em qualquer negócio, eu acho. O que ela tem que você não tem?

— Você não ouviu Marta dizer alguma coisa como querer que Carla dormisse até mais tarde hoje? Adivinha quem levantou da cama (de casal) e saiu do quarto na ponta dos pés hoje de manhã pra Carla poder dormir até mais tarde?

— Sei.

— Marta.

O garçom que servira Fletch no dia anterior o reconheceu. Fletch olhou em volta inutilmente, provavelmente querendo achar outro garçom. Ele se aproximou de má vontade.

Cindy se inclinou para Fletch e disse com veemência: — Não me interessa em que negócio você esteja metido. Ninguém tem que ganhar regalias ou promoções por causa de sexo!

Fletch limpou a garganta. Levantou os olhos para o garçom.

O garçom disse: — Bom saber que você está vivo e bem disposto hoje.

— Obrigado, eu acho.

— E o que vai ser o seu "de sempre" hoje? Mal posso esperar pra saber. Na verdade, tenho certeza de que nosso chef, que não dormiu nada a noite passada relembrando o seu pedido de ontem, faz reverências na sua cozinha hoje diante da possibilidade do seu retorno.

— Você comeu aqui ontem? — perguntou Cindy.

— Uma experiência memorável, senhorita — disse o garçom. — Na verdade, pedimos ao crítico gastronômico da Tribuna para nos ignorar até que este cliente específico saia do estado ou cumpra sua condenação eterna de soluçar.

Fletch disse a Cindy: — Eu só pedi um...

O garçom ergueu a mão. — Por favor, senhor, não é necessário repetir. Depois de ter ouvido seu pedido ontem, eu mesmo tive dificuldade de atravessar o resto do dia e a noite. Se não pudéssemos acreditar que cada dia pudesse ser melhor que o anterior, onde estaríamos?

Fletch falou para Cindy: — Acha que ele está me insultando?

— Ah, não — disse Cindy. — Acho que está tentando falar sobre os requintes dos lanches.

— Os lanches têm algum requinte?

— Não duvide. — Ela disse ao garçom: — De qualquer forma, eu faço o pedido dele hoje.

— Ah, com a graça de Deus! Enfim, senhor, alguém está se responsabilizando por você.

— Ele vai querer cinco ovos mexidos.

O garçom olhou perplexo para ela: — Só isso?

— E uma musse de chocolate — Fletch resmungou.

— Sim — Cindy disse. — Sabe, daqui pra frente o emprego novo vai exigir bastante do corpo dele.

— Ele não quer saber — Fletch resmungou.

— E a senhorita?

— Eu quero uma banana-split com três tipos de sorvete, cobertura de chocolate, marshmallow e nozes picadas.

— Isso é bom pra você? — perguntou Fletch.

— Vai deixar meu estômago feliz.

Fletch disse ao garçom: — Fique sabendo que esta jovem já me alimentou com uma dose de chifre de alce em pó hoje de manhã.

O garçom disse: — Como não adivinhei?

— Não era — disse Cindy. — É falso. Acho que é pó de chifre de boi mesmo.

— Oh, céus — disse o garçom. — O que aconteceu com aquelas simpáticas pessoas que costumavam dizer: "Só uma coca e um hambúrguer mal passado"?

— Os jovens não conseguem respeito algum dos garçons — Fletch rosnou —, não importa em que trabalhem. Não importa o que conversem.

— Qual a definição do meu trabalho? — Fletch perguntou entre colheradas de sua musse. — Garoto de programa?

— Você é um michê, cavalheiro, como todos nós e não se esqueça disso. — Cindy pegou sua colher. — Se você pensar qualquer outra coisa, perde o controle. De você, de seu cliente. É uma profissão, você sabe. Não dá pra perder o controle. Descontrolar-se pode ser perigoso.

O garçom trouxe o almoço deles anunciando: — Cinco abortos de galinha e um pote de pingos de úberes congelados.

Fletch quis saber de Cindy: — Como viemos dar nisso?

— Fomos educados da mesma maneira, eu espero. De alguma forma, todos os americanos o foram. — Com a colher, ela espalhava creme e marshmallow por igual sobre o sorvete.

— Fomos educados originalmente como objetos sexuados, não fomos? Isto é, pra que serviam realmente todas as vitaminas, pediatras e ortodontistas? Por que nossos pais e escolas nos faziam praticar esportes? Pra aprender uma filosofia, pra aprender a ganhar? A perder? Bobagem. Os pais e treinadores protestavam, reclamavam, discutiam com os árbitros e cada um mais do que a gente mesmo. Por razões de saúde? Bobagem. Quantos de seus amigos sobreviveram aos esportes escolares sem danos permanentes nos joelhos, costas ou pescoço?

— Cindy botou na boca uma colherada de sorvete com cobertura de chocolate, marshmallow e creme. — Deve-se ir pra rua, fazer coisas, mas nunca sem um protetor solar pra preservar a pele. Loções de manhã e à noite. Com o único propósito de criar belas formas de pernas, braços, ombros, barriguinhas lisas. Tudo com uma pele cintilante e jovem.

— Eu sou um objeto sexual? — Fletch perguntou.

— É só o que você é, meu irmão. Enquanto você crescia, que disciplina intelectual você teve? Teologia? Filosofia? Cultura? Eu, uma garotinha de treze anos, chego correndo da escola, entro em casa e digo: "Mamãe, mamãe, tirei dez em matemática!". E mamãe diz: "Sim, meu amor, mas eu notei que seu cabelo está perdendo o brilho. Que xampu está usando?".

Fletch comia seus ovos em silêncio.

— Quem nos deram como heróis? — Cindy perguntou. — Professores? Matemáticos? Poetas? Não. Só quem tinha corpos estonteantes, atletas e estrelas de cinema. São os que aparecem sempre na televisão. E por acaso alguma vez deixaram que eles falassem sobre como realmente se tornaram os mais rápidos ou como desenvolveram suas personagens nos papéis que estavam representando? Não. Só o que perguntam pra eles é sobre suas vidas sexuais, quantas vezes foram casados, com quem e como foi cada caso. O prestígio, Fletch, tá no número de pessoas que você consegue atrair pra sua cama.

— Por isso você se tornou uma prostituta.

— Não é assim que funcionam as coisas?

— Muita perspicácia de sua parte.

— Eu acho.

— Sua banana-split está gostosa? — Já estava pela metade.

— Muito.

— Dá pra notar.

— Muito.

— Mas Cindy, eu, hm, tenho certos escrúpulos de, hm, realmente fazer a coisa, hm, você sabe, por dinheiro.

— Eu quase nunca transo realmente. Na academia, os aparelhos derrotam os clientes. Ficam inteiramente estressados e exaustos, noto que ficam excitados e faço com que gozem antes que se dêem conta do que aconteceu. Depois eles ficam se desculpando, dizendo que não conseguiram se conter e que eu deixei de me divertir, entre aspas. Quando saio à noite como escort, na maior parte das vezes sento nos bares e restaurantes e fico olhando o garotão encher a cara. Fico só ouvindo, tipo assim. Geralmente é só isso que ele quer mesmo. E muito chato. Quando ele fica totalmente bêbado, arrasto ele de volta pro quarto do hotel, tiro sua roupa e boto ele na cama. Na manhã seguinte, ele pensa que teve uma noite ótima, que fez coisas ótimas com uma garota ótima. Não fez. Você vai aprender. É provável que eu tenha transado com um número menor de homens ou um número menor de vezes com um mesmo homem do que aquela secretária ali.

Ela apontou com a cabeça para uma jovem com um senhor mais velho, sentados numa mesa próxima. Na mesa, ao lado de seus pratos, havia blocos, canetas, uma pasta de papel e uma calculadora.

Cindy disse, do fundo da garganta: — A não ser que eu ganhe mais.

Fletch disse: — Talvez eu esteja querendo dizer emocionalmente. Como vou conseguir lidar com o fato de ser pago pra ser emocionalmente íntimo? Me preocupo um pouco com isso.

— Esse é um papo de merda criado pelos psiquiatras. Deixe eu te perguntar: quem é mais íntimo do cliente, uma prostituta ou um psiquiatra?

— Hmmm.

— Conheço o texto deles de cor. A viagem da culpa. As prostitutas têm uma necessidade absurda de amor, mas a gente não sabe o que é o amor. A única maneira de nos valorizarmos é dando um preço pro nosso afeto, pra nossa atenção. Isso não serve pra psiquiatras também? Cara, eles tão só projetando. Não me importa. Eles precisam ganhar a vida também. Eu só queria que eles não botassem suas próprias neuroses em cima da gente.

— Mas, Cindy, como é que você, depois de dois anos e meio nisso, consegue real, verdadeiramente se relacionar com um homem outra vez, ter uma experiência verdadeira?

— Eu não quero. Nunca quis. Nunca vou querer. — Ela estava raspando a colher no prato. — Percebe, aí é que todo mundo se engana, pelo menos no que diz respeito a mim. E a muitas de nós. Eu citei uma pessoa amiga antes, amiga mesmo. Ela trabalha no Ben Franklyn também. Juntamos nosso dinheiro. Na semana que vem, a gente cai fora. Vamos pro Colorado comprar um sítio pra criar cães e viver felizes pra sempre.

— Vocês são amantes?

— E como. Fazer amor com um homem não significa nada pra mim, percebe? Emocionalmente. Moralmente. Seja lá o que for que essas palavras signifiquem. Não me importo com os homens. Ir pra cama com um homem não me incomoda mais do que incomodaria você ir pra cama com um garoto ou um cachorro.

Fletch disse: — Que tipo de cachorro?

Cindy encostou as costas na cadeira, afastando-se do prato vazio. — Pela maneira com que fui educada, comer este sorvete é um pecado maior do que ir pra cama com um homem. Ou homens. Ou passar em revista as tropas. — Ela olhou para o prato vazio. — Eu achei ótimo.

— As coisas são diferentes pra mim — disse Fletch.

— Eu imagino. Esse é o seu problema.

Na esquina do quarteirão, caminhando em direção a eles, vinha uma saia amarela conhecida de Fletch. Bem como a blusa azul-marinho de mangas curtas, acima da saia.

— Ai, meu Deus.

Cindy esticou um pouco os braços. — Mas pra você e pra mim é basicamente a mesma coisa, eu espero. Eu me tornei um belo corpo, supostamente sem cérebro e sem cultura, um objeto sexual. E me ensinaram que os homens são materialmente opressores e que fazer bebês é um Não Pode. Não sou realmente uma atleta. Não sou artista.

Fletch tinha se endireitado na cadeira. Embaixo da mesa, tinha colocado os pés em posição de corrida. Seu olhar mediu a distância entre sua mesa e a porta do Manolo's. — Ai, ai!

— Chega a hora de trabalhar de verdade — Cindy continuou. — O que eu tenho que fazer? Fingir que sou uma grande intelectual? Ou, pior, fingir que sou supertrabalhadora?

A mulher que se aproximava percebeu Fletch. Em seguida notou Cindy. Fletch disse: — Ah, não.

Categórica, Cindy falou: — Faço exatamente aquilo que devia estar fazendo. Sou exatamente a pessoa que devia ser.

— Fletch! — disse a mulher.

— Ah...

Então ela falou: — Cindy!

Cindy virou-se. Seu rosto se iluminou.

— Barbara! — ela gritou.

Cindy deu um pulo e abraçou o pescoço de Barbara.

Barbara abraçou Cindy.

Fletch levantou-se. — Ah, Barbara...

Quando os abraços e gritos diminuíram, Barbara olhou para Fletch. Ela ainda segurava a mão de Cindy.

Barbara disse: — Eu não sabia que vocês dois se conheciam!

 

— Você está com um chupão no pescoço — Barbara disse a Fletch.

O garçom tinha trazido uma terceira cadeira para a mesa e ouvido com alívio que eles não queriam nada mais a não ser a conta.

— Uma marca de paixão — Barbara acrescentou, olhando-o de perto na sombra do guarda-sol. — Não estava aí quando você me deixou hoje de manhã.

Fletch passou o dedo na marca do pescoço. — Bem, eu... As sobrancelhas de Cindy se enrugaram, confusas.

— E não era assim que você estava vestido quando saiu hoje de manhã. — Barbara colocou a mão sobre a camiseta e o jeans dele enrolados sobre a mesa. — Como é que você tá de calção?

Fletch cruzou os braços sobre o peito.

— O que diz sua camiseta? — Barbara inclinou-se e afastou os braços dele. — Você quer um amigo? O que significa? — Ela botou a mão no colo dele. — Seu calção diz a mesma coisa.

— Sim — Fletch admitiu com dignidade.

— Conseguiu numa promoção? — Barbara perguntou. Fletch resmungou: — Como é que vocês duas se conhecem?

— Somos velhas amigas de escola — Barbara disse tranqüilamente.

— Vocês? Velhas amigas?

— É.

— Boas amigas?

— Já falei de Cindy pra você. Ela tem me dado uns conselhos pro casamento.

Fletch disse: — Ah.

— Fletch! — Cindy deu um grito. Ela bateu com a palma da mão na testa. — Você é o tal Fletch!

De forma acusadora, Fletch perguntou a Barbara: — E por que você não está usando culotes?

— Ha, ha, ha — Cindy ria.

— Mudo de roupa pra almoçar — Barbara respondeu. — Odeio as coisas animalescas.

— Esse é o Fletch com quem você vai se casar no sábado?

— Em pessoa.* — Barbara colocou a mão sobre a coxa dele. — Fletch, você tá terrivelmente quente. Suando. Sua cara tá vermelha. Você tá bem?

 

(*) No original: In the flesh.(N. T.)

 

— Ha, ha, ha — Cindy disse.

— Ai, meu Deus — disse Fletch.

— Mas como vocês dois se conhecem? — Barbara perguntou.

— Ha, ha, ha — disse Cindy.

— Eu, bem, nós... — disse Fletch.

— Qual é a graça? — Barbara perguntou.

— Nenhuma — disse Fletch.

— Ha, ha, ha — disse Cindy.

— Depois que estivermos casados — Barbara falou —, eu tenho alguma esperança de que Fletch volte pra casa à noite vestido do mesmo jeito que saiu de manhã.

— Ha, ha, ha — Cindy estava às gargalhadas.

— Barbara — Fletch falou devagar e sério —, Cindy e eu nos conhecemos nas cruzadas do trabalho.

— Ha, ha, ha — Cindy ria.

A secretária e o senhor de idade faziam cara feia para o barulho.

— Cruzadas do trabalho? — Barbara perguntou.

— Cruzadas do trabalho! — Cindy riu.

— Nas cruzadas do trabalho. — Fletch afirmou. — Agora, Barbara, meu amor, se ao menos você...

— Barbara, meu amor! — gritou Cindy.

Sem entender o sonoro bom humor de Cindy, Barbara disse a Fletch: — A propósito, acabei de ouvir no rádio do carro que alguém confessou o assassinato de Donald Habeck.

Fletch deu um salto pra frente na cadeira. — O quê?

— Um homem chamado Childers, eu acho. Foi até a polícia hoje de manhã e confessou ter matado Donald Habeck. Um cliente de Habeck...

— Eu lembro — disse Fletch. — O julgamento acabou há dois ou três meses. Foi acusado de ter matado o irmão.

— Bem, hoje de manhã ele admitiu ter assassinado Habeck.

— Mas ele foi absolvido. Digo, do assassinato do irmão.

— Portanto, você não precisa mais ocupar sua cabecinha com o assassinato de Donald Habeck. Pode voltar e cumprir o trabalho pro qual foi designado.

— É — disse Fletch, carrancudo. — Obrigado.

— Podemos casar no sábado, fazer nossa lua-de-mel, e quando a gente voltar, talvez você até tenha um emprego.

— Tá certo. — Cindy tinha parado de rir. Olhava para Fletch com novos olhos. — Você é um repórter!

Fletch suspirou. — Certo.

— Da Gazeta — disse Cindy.

— Da Tribuna. — Fletch fuzilou Barbara com os olhos.

— O que está acontecendo? — perguntou Barbara.

— Saquei — Cindy falou. — Explica tudo!

Fletch disse: — É, acho que sim.

— Por acaso você escreveu alguma coisa no jornal que eu possa ter lido? — perguntou Cindy.

— Você leu domingo "Fanáticos do esporte chegam ao limite"? — perguntou Fletcher.

— Li — disse Cindy. — Claro que li. Era a matéria principal da página de Esporte. Boa mesmo. Você que escreveu?

Fletch disse: — Só o título.

— Ah.

— O que você tava fazendo? — ironizou Barbara, como se pedindo para entrar na piada que ela podia já ter estragado. — Sendo encoberto?

— Obrigado por perguntar. — Fletch disse.

Cindy começou a rir de novo. Batia palmas. — Super!

— Super — Fletch repetiu, sério.

O garçom deu a conta a Fletch. — Servi-lo, senhor — disse o garçom —, é uma desgraça que eu espero não se torne um vício.

Fletch olhou fixo para ele.

Cindy pegou a conta. — Não. É por conta da empresa, lembra? — Ela soltou mais uma gargalhada. — Você pode dizer que é por conta da casa!

— De qualquer maneira, Cindy — Barbara disse —, nós vamos nos casar num penhasco* com vista pro mar. Te contei isso? O tempo deve estar bom no sábado.

 

(*) No original: On a bluff. (N. T.)

 

Cindy estava pagando a conta em dinheiro.

— Lembre-se de que vamos jantar com minha mãe hoje à noite — Barbara disse a Fletch de modo displicente.

— Hoje à noite, pra jantar — disse Fletch, melancólico. — Estou com a cabeça a prêmio.

— Cindy — Barbara disse —, virando a esquina tem uma loja de esporte. Na vitrine tem uma roupa de esqui fantástica. Sabe, pra nossa lua-de-mel. Quer ir comigo até lá e me dizer como fico?

— Claro — Cindy disse. Ela deixou uma gorjeta generosa ao garçom.

As duas mulheres se levantaram da mesa. Fletch ficou com o cotovelo apoiado na mesa, a mão segurando o queixo.

— Até mais, Fletch — Barbara falou. Fletch não respondeu.

Cindy falou festivamente: — A gente se vê, Fletch! No casamento! Sábado!

Cindy tinha se afastado alguns passos quando se virou de novo, às gargalhadas. — Fletch! — exclamou. — Você vai se casar num penhasco.*

 

(*) No original: You re being married on a bluff! (N. T.)

 

— Ei! Olá! — Fletch bateu forte na parte de madeira da porta de tela. No interior do bangalô o volume alto da televisão desaparecia em meio ao choro de uma criança, aos gritos de outras e ao ruído de um brinquedo eletrônico. — Oi! — ele gritou.

A varanda era um depósito de brinquedos quebrados: um patinete de pescoço torcido, um triciclo destruído, uma boneca de plástico achatada, um fogão de brinquedo que parecia ter sido atacado a machadadas.

Na televisão, a voz de uma mulher dizia: — Se você contar a Ed o que sabe a meu respeito, Mary, verei você apodrecer no inferno.

Dentro de casa, uma voz de mulher gritou: — Se você continuar berrando, Ronnie, vou te cobrir de porradas!

Uma voz de homem disse: — Tudo bem, tudo bem. Vamos dar andamento a esse processo alimentar. Os garotos precisam comer, Nancy. Mantê-los fortes!

O bangalô do professor associado Thomas Farliegh ficava a oito quarteirões dos limites do campus da universidade. Outras casas modestas em volta tinham vestígios de tinta e pelo menos um canteiro de ervas daninhas, intocado, nos pátios da frente. A casa de Farliegh era amarela e cinza sujo. Uma janela da frente estava quebrada no centro, o pátio da frente era um bloco maciço de barro, abrigando entre outras coisas um Volkswagen amarelo sem rodas, destruído e enferrujado.

No caminho da casa de Farliegh, Fletch ouviu no rádio do carro a mesma notícia que Barbara havia comentado. Stuart Childers tinha confessado o assassinato de Donald Habeck. Tinha confessado e... sido liberado.

Fletch chegou o mais próximo que pôde da porta de tela e gritou o mais forte que conseguiu: — Ei! Olá!

O barulho dentro da casa diminuía às vezes.

Uma sombra do outro lado da porta transformou-se numa mulher que disse: — Quem é você?

— Fletcher.

— Quem? Não conheço você. Melhor entrar.

Lá dentro, ele descobriu que não fora a porta de tela que o impedira de ser escutado.

— Você é um aluno? — a mulher perguntou.

— Sou da Tribunal É sobre uma matéria.

— O Tom está aqui atrás — disse ela. — Não sei se ele está com a sua matéria.* — Ela o guiou até o fundo da casa. Você disse que seu nome era Terhune?

 

(*) No original: "...from the paper."/ "... I don't know if he's corrected your paper yet". (N. T.)

 

A casa cheirava a fraldas, comida queimada, leite derramado e sujeira doméstica comum.

— Eu sou do jornal — Fletch disse.

Na cozinha, ao lado da televisão em altos brados, um tanque de guerra à pilha circulava pelo chão, havia montes de roupa suja por todo lado, lixo e livros, e cinco crianças, todas parecendo ter menos de sete anos. Duas estavam de fralda, três de calcinha. Cada uma parecia ter saído de um banho com a água suja que sobrara da louça da manhã.

Um homem pequeno, careca e rechonchudo estava numa mesa lascada na cozinha, empurrando colheradas de uma papa de ameixa pra dentro de uma criancinha numa cadeira alta. Seus olhos, visíveis quando ele levantou a cabeça para olhar para Fletch por um instante, eram de um surpreendente azul claro. Quatro das crianças também tinham olhos azuis, mas não tão claros quanto os dele. A mulher não falou.

— O quê? — perguntou Fletch.

A televisão disse: "... transportando um carregamento de balas de festim...".

A mulher baixou o volume, restando apenas os ruídos do tanque, que vencia todos os obstáculos pelo chão, duas crianças gritando e chutando-se uma à outra e uma criança pequena, sentada contra a parede sobre uma almofada rasgada, que chorava convulsivamente.

— Ronnie — disse a mulher para a criança berrando —, pare de chorar ou vou te dar um pontapé no meio da boca.

— Sua ameaça foi inútil. Estava descalça.

— Você tem carro? — a mulher perguntou a Fletch.

— Sim. Você é Nancy Farliegh?

— Ele quer falar com você — disse o homem à mesa.

— Tenho certeza de que é com você que ele quer falar, Tom. Algo sobre uma matéria.

— Quero falar com você, Nancy. Eu sou de um jornal.

— Ah — ela disse. — Sobre a morte de meu pai. — Ela estava usando uma saia larga manchada de alvejante e uma blusa verde manchada de comida. Suas pernas e braços eram finos e brancos, seu estômago dilatado. Seu cabelo oleoso era escorrido. — Não me importo de falar sobre isso, mas o que quero é uma carona.

— Eu levo você.

— Nosso carro não funciona — disse o homem na mesa.

— Amassado. Kaput. Acabado.

— Devia ter ido ontem — disse Nancy.

— Sim, sim — disse o homem. — Bobby gota ameixa.

— Sente-se. — Nancy pegou uma pilha de jornais e um catálogo telefônico de cima de uma cadeira e jogou-os no chão. — Só vou mudar de roupa. — Ela baixou os olhos para suas roupas. — Tom, acha que devo mudar de roupa?

A criança da almofada parou de chorar. Seu rosto tomou-se de determinação.

— Nunca mude, querida.

A criança de olhar determinado levantou da almofada. Cruzou a cozinha. Alcançou o tanque e pegou-o. Arremessou-o pela janela.

Havia agora três crianças no meio do chão, gritando e destruindo-se mutuamente. A melhor estratégia parecia ser o puxão de cabelo. Gerava os guinchos mais agudos.

— Só vou me trocar — Nancy falou.

Fletch olhou pela janela da cozinha. No quintal, o tanque de brinquedo estava atacando um carrinho de bebê destruído. Ele sentou.

— Tchu, tchu, tchu, tchu! — disse Tom Farliegh. — Agora o tchu-tchu chega e o túnel se abre. Abra o túnel! — a garotinha abriu a boca. Tom enfiou a papa de ameixa dentro. — Agora — ele disse, raspando o potinho —, nham, nham, nham, nham.

— "A Previdência Social" — Fletch citou. — "As calçadas da cidade/ oferecem sem piedade/ pobres velhinhas para serem roubadas."

— Ah! — Tom limpou gentilmente a boca da criança com um trapo sujo. — Conhece meu trabalho.

— Você o chama de Poesia da Violência?

— É chamada assim. — Tom levantou a criança da cadeirinha e colocou-a com cuidado no chão.

Ele atravessou a cozinha até o fogão, onde estava um bebê ainda menor num moisés de plástico, parecendo uma coisa a ser assada. O homem tinha a forma de um nabo. Ele trouxe o moisés de plástico até a mesa da cozinha.

— Sua poesia é diferente — disse Fletch.

— Diferente, sim. — Tom tentou desenroscar a tampa de um vidro com um preparado infantil. — Por que não a chama de linda?

Ele entregou o vidro para Fletch, que desenroscou a tampa e devolveu-a para ele.

— Seria linda a palavra certa?

— Por que não? — Tom atarraxou um bico na garrafa.

— Tchu, tchu, tchu. — A criança abriu a boca. Tom colocou a garrafa. — Deve haver beleza na violência. As pessoas são tão atraídas por ela.

Segurando a mamadeira na boca da criança, ele olhou para o chão, onde agora quatro crianças brigavam e choravam. Uma tinha um arranhão sangrando no braço. Outra, uma marca diferente sobre um olho.

— É por isso que tenho tantos filhos — disse Tom Farliegh. — Veja a fúria deles. Não é maravilhoso? Violência desenfreada. Mal posso esperar que essa turma vire adolescente.

— Tomara que seus sonhos se realizem — rogou Fletch.

— Quantos você acha que vão conseguir?

— Você é atraído pela violência — disse Tom.

— Não exatamente.

— Você assiste ao futebol americano?

— Sim.

— Você assiste a lutas de boxe?

— Sim.

— Eles não são violentos? — As mãos de Tom eram as mais macias e atarracadas que Fletch já tinha visto num homem. — A maioria dos divertimentos humanos é violento. — Ele apontou a televisão com a cabeça. — Esse veículo de comunicação humana popular emite em um dia mais violência do que a maioria dos seres humanos, sem televisão, veriam normalmente numa vida. O que nos atrai pra tanta violência?

— Fascínio — disse Fletch. — É o segundo grande quebra-cabeça da vida que as pessoas desejem usar a violência contra os outros, violência essa que aparentemente desejam contra si mesmos.

— Beleza — disse Tom. — A fascinante beleza da violência. A derradeira ironia. Por que nunca houve um poeta a admitir isso?

— "Quadris magros, marcados/ separados por fogo automático,/ cada bala/ rasgando,/ levantando,/ empurrando,/ chutando/ o corpo/ no seu eixo central./ No entanto,/ O Guerreiro Perfeito/ reverencia sua morte,/ gira,/ contorce-se e cai" — citou Fletch.

— Lindo — disse Tom.

— Já vi isso — disse Fletch.

— E é lindo. Admita. — Tom Farliegh inclinou um pouco mais a mamadeira. — "Marcado, ele está caído,/ mas não inutilizado./ Esta morte é sua vida/ E ele cabe perfeito/ dentro dela."

— Que matérias você leciona na universidade?

— A obra de Geoffrey Chaucer. Uma outra cadeira que compara a obra de John Dryden e Edmond Spenser. E ainda dou minha parte de inglês para o Básico.

— Você ensina Contos de Fadas?

— Ah, sim. — Tom tirou a mamadeira da boca do bebê. Ainda tinha uma pequena quantidade do preparado na garrafa. Ele botou na própria boca e bebeu.

O bebê chorou.

Tom levou a mamadeira até a pia e lavou-a.

Fletch perguntou: — Você foi violento com seu sogro?

— Sim — Tom disse. — Casei com a filha dele. Nunca perdoou nenhum de nós dois por isso.

— Nunca veio ver seus netos?

— Não. Duvido que soubesse quantos tinha ou como se chamam. Uma pena. Teria gostado deles.

Fletch observou um pequeno Farliegh atirar uma cenoura na cabeça de outro. — Acho que sim.

— Donald Habeck não tinha honestidade.

— Você aqui vive na miséria — disse Fletch. — Seu sogro era multimilionário.

— Será que eu matei meu sogro? — O homem pequeno virou-se da pia e secou as mãos num pedaço de jornal. — Não teria havido ironia.

— Não?

— Não. É a inocência das vítimas que faz com que se torne poesia o que lhes acontece. E eu sou um poeta.

— Você sabia que ele pretendia dar praticamente toda a sua fortuna pra um museu?

— Não.

— Se ele tivesse morrido sem um testamento, o que é comum entre os advogados, sua mulher teria herdado o suficiente pra você assumir sua poesia em tempo integral. Isto é, se a fortuna dele ainda estivesse intacta. Você diz que os poetas não são pessoas práticas?

— Alguns são. — Tom Farliegh sorriu. — Aqueles que são publicados na Atlântica e ganham o prêmio Pulitzer. Podem ser práticos o bastante pra cometer assassinatos. Mas com certeza você não está acusando o mais impopular dos poetas publicados neste país de ser prático?

Nancy Farliegh reentrou na sala. Estava usando sapatilhas de balé, uma saia alinhada, de visual mais moderno, e uma blusa cinza, que já fora branca antes de sucessivas lavagens. Tinha feito algum esforço no sentido de pentear o cabelo.

— Estamos prontos pra ir? — ela perguntou. Sem saber onde ia, Fletch levantou-se.

— Morton Rickmers, o editor de literatura da Tribuna, talvez queira fazer uma entrevista com você, senhor Farliegh. Estaria disponível?

— Vê? — Tom Farliegh sorriu irônico para a mulher. — Já estou colhendo os frutos do sensacional assassinato do meu sogro. — Para Fletch; ele falou: — Claro que estou disponível. Faço qualquer coisa pra aprofundar a minha falta de popularidade.

 

— Tudo bem em deixá-lo com as crianças? — No banco do carro, Fletch fechou o cinto de segurança.

— Por que pergunta?— Nancy Farliegh achou seu cinto de segurança.

— Seu marido vê beleza na violência. Aquelas crianças estão se esmurrando entre si na frente dele.

— Ele trata as crianças melhor do que eu. Ele tem mais paciência.

— É muito mais tolerante. — Ele ligou o carro. — Onde vamos?

— Ao Mosteiro de São Tomás, em Tomasito.

— Tomasito! — Fletch olhou para ela. — É a uns cem quilômetros daqui!

— Sim — ela disse. — É.

— Pensei que ia lhe dar uma carona até o centro da cidade.

— Meu irmão está no mosteiro. — Nancy olhava a paisagem imóvel pela janela do carro. — É um mosteiro fechado. Acho que ele ainda não sabe que papai morreu. Eu sinto que preciso ir falar com ele. Não tenho outra maneira de chegar lá.

— Seu irmão é monge?

— Um monge, um monge — ela disse. — Suponho que Tom pudesse fazer disso uma rima infantil cruel. Um monge, um monge/ escondido num baú/ para não ter nada a ver/ com seu pai, o punk.* Não está muito bom.

 

(*) No original: A monk, a monk/ hiding in the trunk / to have nothing to do/ with his father, the punk. (N. T.)

 

— Não muito.

— Melhor eu deixar a poesia pro meu marido. Fico só parindo seus monstrinhos.

Fletch engrenou o carro. — Desculpe — ele disse. — O cano de descarga está furado.

— Não escuto.

— Você é cristã?

— Eu? Por Deus, não. A ida de Bob pro mosteiro foi coisa dele. Não teve nada a ver com a família, digo, com nossa educação. Acho que ele está tentando pagar os pecados do pai. Não se espera que sejam vistos no filho? Ele tem um uso perfeito pra eles.

Depois de ter atravessado a universidade, Fletch subiu o acesso até a auto-estrada e acelerou.

Ele disse: — Alguém que conversou com seu pai na semana passada me contou que ele pretendia entrar pra um mosteiro.

Nancy arfou. — Meu pai? — Ela riu. — Eu sabia que os jornais só publicavam ficção.

— É verdade — Fletch disse. — Pelo menos é verdade que alguém me contou isso.

— Talvez meu pai entrasse pra um mosteiro quando recebesse o aviso do dia do Juízo Final. Seria exatamente como ele. Uma brilhante defesa jurídica.

— Ele estava ficando velho.

— Não tão velho. Tinha uns sessenta.

— Talvez não estivesse bem.

— Espero. Se existe alguém que mereça lepra no estômago é ele.

— Vocês eram próximos?

— Emocionalmente? Não sei. Nunca estive muito com ele, enquanto crescia. Terno preto e sapatos pretos entrando e saindo da garagem. Intelectualmente? Quando fiquei adulta, me dei conta de como ele passou a vida inteira fodendo o sistema. Um verdadeiro destruidor de valores. Pra ganhar. Ele nunca acreditou no bem ou no mal ou no que é justo. Em nada dessas coisas em que a gente tem que acreditar pra direcionar, objetivar nossas vidas. Ele acreditava nos seus próprios meios, não importando as conseqüências sociais, acreditava em forrar seus próprios bolsos. Ele era o homem menos social e mais amoral que já conheci. Se não tivesse sido advogado, ele mesmo teria sido um psicopata assassino. — Depois de um momento, ela forçou o riso. — Meu pai, um monge!

— Seu marido — Fletch disse — louva a violência.

— Você não percebe a diferença? — Nancy perguntou. — Meu marido é professor. Um poeta. Ele se sacrifica. Destaca a beleza na violência. Nós somos atraídos pra ela. Ele faz com que confrontemos a violência dentro de nós mesmos. Ele nos ensina sobre nós mesmos. Sua poesia não seria tão terrivelmente eficaz se não fosse real.

— Que tipo de sacrifício ele faz?

— Ora. As pessoas atravessam a rua quando vêem ele se aproximar. Nem sequer falam comigo. Não somos convidados a um coquetel do corpo docente há três anos. A maioria dos colegas quer se livrar dele. Ele nunca ia conseguir outro emprego como professor. Vamos acabar no beco da fome. Só pra Tom poder falar o que pensa, não sobre a natureza de nós mesmos, mas sobre a natureza humana. Você não entende?

— De qualquer maneira — Fletch esticou-se no banco do carro —, esse sujeito, que devia estar sabendo, me contou que seu pai pretendia dar ao museu cinco milhões de dólares. O dinheiro era pra ser gasto em arte sacra contemporânea. Ele ia dar o resto de sua fortuna pra um mosteiro, pra onde iria entrar.

Nancy encolheu os ombros. — Devia ter algum propósito. Acho que alguém devia estar por trás dele. A Secretaria de Justiça. O Imposto de Renda. A Ordem dos Advogados. Imagino que depois que a poeira baixasse, você ia encontrar meu pai vivendo luxuosamente em algum lugar com sua jovem e sexy esposa de cérebro-de-galinha, protegidos por alguma fundação cultural ou religiosa. Todos estabelecidos legal e brilhantemente, ainda que financiados por ele próprio.

— Talvez. Mas você sabia que seu pai tinha declarado a intenção de se desfazer de sua fortuna?

— Li alguma coisa do gênero no jornal. No jornal de hoje. Depois que ele foi assassinado.

— Ninguém tinha te contado nada?

— Não.

Fletch disse: — É sempre difícil provar que você não sabe de alguma coisa.

Andaram sem falar por um tempo. Ouviam os Grateful Dead no rádio.

Finalmente, Fletch falou: — Ontem, na casa de seu pai, conheci uma senhora de seus sessenta anos, de cabelo branco ou azulado — ou de que outra cor queira chamá-lo — usando um vestido colorido e tênis verde. Perguntei se era a senhora Habeck e ela disse que sim. Tudo o que falava sobre seu pai era que usava sapatos pretos e que vagava por aí. Referia-se a Habeck, Harrison e Haller como Hab, Har, Hal.

— Hmmm. — disse Nancy.

— É sua mãe?

— Hmm. — Nancy mudou de posição no banco. — O que diz seu calção está certo. Você pode ser um amigo, eu acho.

— Não significa exatamente o que está escrito. — Fletch tinha trocado a camiseta. Esperava que a camiseta simples por fora do calção tivesse tapado a propaganda.

— Chegamos aonde eu queria— Nancy disse. — Enquanto eu crescia, eu e meu pai nos ignoramos mutuamente. Ele não era interessante. Quando fiquei mais velha, senti desprezo por ele. "Brilhante profissional da lei." Porra nenhuma. Ele era um ladrão. Quando prendeu mamãe e fez com que ela fosse mandada judicialmente pra um sanatório, eu o desprezei definitivamente. Nunca mais falei com ele ou o revi voluntariamente. Desculpe. Não tinha dito toda a verdade antes. Eu odeio aquele filho da puta.

— Ah.

— Mamãe não precisava ser expulsa de sua própria casa. Confinada numa clínica, mesmo sendo pomposa e tranqüila. Ela é só meio louquinha.

Fletch lembrou da senhora Habeck olhando seu tênis verde e dizendo: Eu não tenho privacidade alguma.

— Louquinha — Nancy repetiu. — Ano após ano, papai deixou ela sozinha naquela casa. Ninguém queria saber dela. Primeiro ela tentou sair, fazer coisas, sabe, integrar o grupo de senhoras do Clube das Flores. As outras senhoras não queriam ela. Qualquer caso fantástico de meu pai sairia nos jornais, um pequeno editorial denunciaria que Donald Habeck tinha conseguido absolver algum estuprador e os arranjos de flores de mamãe não seriam expostos. Seu telefone não iria tocar. Uma vez, quando estava ficando independente, mamãe foi à cidade e conseguiu um emprego como balconista de uma floricultura. Meu pai logo pôs fim naquilo. Pobre e maldita alma. Ela minguava sozinha naquela casa. Falava sozinha. Começou a botar a mesa da sala de jantar pra seis, oito, doze pessoas. Não tinha ninguém. — Lágrimas rolavam pelo rosto de Nancy. Sua voz soava seca. — O que eu podia fazer? Ia em casa o máximo de vezes que podia. Ela costumava ir a seis cabeleireiros diferentes num único dia, só pra ter com quem conversar. Seu cabelo estava ficando queimado. Depois ela começou a passar os dias nos shoppings, comprando tudo o que via — cortadores de grama, máquinas de lavar, toalhas. Numa semana, chegaram a entregar em casa umas vinte máquinas de lavar. Quando estavam arrumando suas coisas pra levá-la pro Lar Agnes Whitaker,* descobriu-se que ela tinha mais de dois mil pares de sapatos! Ela gostava de conversar com os vendedores, entende?

 

(*) No original: Agnes Whitaker Home, Lar Agnes Whitaker, ou "we take her home", nós a levamos para casa. (N. T.)

 

Fletch dobrou no desvio para Tomasito. — Ela foge do sanatório com freqüência?

— Quase todos os dias. No início, os enfermeiros se assustavam e me chamavam. Eu devia avisar meu pai. Repreendê-la quando voltasse. Mas ela é inofensiva. Não tem dinheiro ou qualquer cartão de crédito. Não tenho idéia de como ela se vira. Nunca consegui descobrir. Em dias bonitos, acho que ela vai até os parques, senta lá, anda pelas lojas fingindo comprar coisas, volta à sua velha casa e senta ao lado da piscina.

— É. Era onde estava ontem.

— Ela deve aparecer pra Jasmine como o Fantasma da Primeira Esposa. — Nancy riu. — E daí? Ela aparece na minha casa duas ou três vezes por semana. Senta e vê televisão. Senta e fica olhando as crianças. Conta coisas completamente malucas pra elas, como a vez que fez amizade com um urso preto enorme na floresta e o urso ensinou ela a pescar. As crianças adoram ela.

— E ela adora as crianças?

— Como vou saber? Ela continua indo lá.

— E você não acha que essa mulher devia ter ficado reclusa?

Nancy cerrou os dentes. — Eu não acho que ela devia estar isolada há anos. Eu não acho que ela devia ter vivido no ostracismo. Não. Eu não acho que ela devia ter sido expulsa da casa dela. Quando começaram a aparecer os sintomas estranhos, não acho que meu pai devia ter continuado a fazer o que estava fazendo. Podiam ter se aposentado, recomeçado outra vida em algum lugar. Ou, se fosse tarde demais, uma enfermeira poderia ter sido contratada pra ficar com ela, lhe fazer companhia. — Nancy ficou em silêncio por um longo momento, os músculos do rosto tensos. Então falou: — Meu pai se livrou dela através de um golpe jurídico — divórcio e reclusão — porque queria casar com a Jasmine-cérebro-de-galinha.

— Você não gosta de Jasmine, evidente.

— Gostar dela? — Nancy virou os olhos para Fletch. — Tenho pena dela. A mesma coisa que aconteceu com minha mãe está acontecendo com ela.

Eles desceram da auto-estrada para uma estrada de duas vias cruzando um terreno razoavelmente grande.

Nancy disse: — Ouvi na televisão hoje de manhã que alguém confessou o assassinato de meu pai.

— Sim — Fletch falou. — Stuart Childers. Um cliente de seu pai. Acusado de assassinar o irmão. Libertado há dois ou três meses.

— E aí? — Nancy disse.

— A polícia liberou-o logo em seguida. Não sei por quê. Nancy disse: — Onde está querendo chegar, meu amigo?

— Não acho que foi um trabalho de quadrilha — Fletch disse —, apesar do que sugere a Tribuna de hoje.

— Você acha que fui eu?

— Alguém da família soube que seu pai pretendia, ou disse que pretendia, distribuir toda a sua fortuna, por razões sagradas ou profanas. Aliás, minha fonte relatou que na semana passada seu pai disse que ninguém "dava a menor" pra ele. Palavras dele.

Nancy bufou. — Suponho que seja verdade.

— Alguém decidiu acabar com ele antes que ele decidisse acabar com a família. Você, seu marido, sua mãe. Em consideração a você ou a seus filhos. Ã segunda mulher de seu pai.

— Você não compreende Tom.

— Ele pode ser o poeta importante, o intelectual que você fala que é. Mas onde ele estava na segunda de manhã?

— Na universidade.

— A que horas é a primeira aula dele às segundas? Nancy hesitou. — Ãs duas da tarde.

— Tudo bem.

— A pobreza é importante pra Tom. O fato de que ele, de que seu trabalho, é desprezado faz o sacrifício mais real, a poesia — ela gaguejou — mais significativa, mais memorável.

— Você não foi educada na miséria — Fletch falou. — Seu papai pode não ter brincado de cavalinho com você, mas você tinha uma geladeira cheia numa casa limpa, com uma piscina no jardim. Mais um monte de máquinas de lavar.

— Honestamente, meu amigo, eu não quero um centavo de meu pai. Pessoas ainda são roubadas, violentadas e assassinadas porque meu pai levou seu dinheiro.

— Ah, a beleza da violência! — Fletch disse. — Você tem cinco filhos engatinhando pelo chão. Você disse que está a caminho do beco da fome. Não são muitas as mães que deixam seus filhos morrer de fome quando têm outra saída.

Depois de um minuto, Nancy disse: — Na segunda de manhã eu estava em casa sozinha com as crianças.

— Grandes testemunhas. Tem alguma outra?

— Não.

Fletch diminuiu a velocidade ao passarem por uma placa que dizia MOSTEIRO DE SÃO TOMÁS. Ele dobrou à direita depois de passar os portões.

— Existe uma guarita no portão do estacionamento da Tribuna — ele disse. — Checando os carros. Vejo alguém, que sabia que seu pai iria lá aquela manhã acertar a divulgação da doação de sua fortuna, entrando no estacionamento, atirando nele quando saía do carro e saindo normalmente, sem ser barrado.

O carro subia uma estrada no meio de um bosque bem cuidado.

— Quem? Mamãe?

— Ela realmente tem a sua própria maneira de andar por aí — Fletch disse. — E a sua própria maneira de pensar. E o que tem a perder? Ela já foi acusada de insanidade.

— Você não mencionou Jasmine.

— Não conheci Jasmine ainda. Aliás, seu pai tem uma cozinheira agora.

— Que bom! Jasmine tem com quem conversar. Duvido que ela saiba fritar um ovo.

— Uma jovem esposa, possivelmente prestes a ser deixada às traças por causa da conversão espiritual do marido ou da sua sacanagem jurídica...

No topo de um pequeno monte ajardinado à frente deles, erguia-se um prédio largo, de estilo espanhol, revestido de gesso.

— A auto-imagem de Tom seria destruída se tivéssemos dinheiro — Nancy disse. — Minha mãe não conseguia enxergar o bastante pra assassinar alguém. Eu não me importo tanto com meu pai ou com seu dinheiro pra tê-lo assassinado.

— E depois tem Robert. — Fletch colocou o carro na vaga coberta de pedrinhas e desligou o motor.

— Agora você ficou louco mesmo.

— Espero por você aqui.

Com a mão no trinco da porta do carro, Nancy não se mexeu. Outra vez olhava fixo pela janela a paisagem imóvel.

— Sinto muito por vocês — Fletch disse. — Vai ser duro pra vocês dois. Vou ficar aqui.

— Não — disse Nancy. — Vamos juntos, sim, amigo? Esse lugar me dá arrepios.

 

— Você já esteve alguma vez num mosteiro? — Robert Habeck segurou o cotovelo de Fletch, guiando-o em direção a um banco do outro lado do pequeno pátio.

— Não — Fletch respondeu. — O silêncio é pra estourar os ouvidos.

— Ouvi o barulho do carro. — Robert sorriu. Parecia uma advertência.

Fletch e Nancy Habeck Farliegh foram levados silenciosamente para uma sala de espera pequena e fresca logo depois da porta principal. Sentaram num banco de madeira esculpida.

Em poucos minutos, o abade entrou. Não os cumprimentou nem sentou. Nancy explicou que tinha vindo ao mosteiro contar ao irmão sobre a morte do pai. O abade assentiu com a cabeça e saiu sem pronunciar uma única palavra.

Enquanto esperavam, Nancy contou a Fletch que aquela sala e o pequeno pátio adjacente, de paredes altas, eram os únicos lugares no mosteiro onde se permitia a presença de mulheres. A última vez que visitara Robert tinha sido depois do nascimento de seu primeiro filho, há quase sete anos. Desde então, escrevia-lhe uma vez por ano, no Natal. Nunca recebeu resposta.

Eles esperaram pouco mais de quarenta e cinco minutos.

Quando Robert entrou na sala, sorriu e estendeu as mãos para a irmã. Não a abraçou nem beijou. Também não falou uma palavra.

Nancy apresentou Fletch como "um amigo".

Olhando para o calção de Fletch, Robert perguntou:

— Você é um quacre?

— O quê? Não.

O roupão de Robert, branco e comprido até os pés, era amarrado por uma corda preta. Ele usava sandálias. Era magricela, estava ficando careca. Sua barba parecia ter sido tomada por uma nuvem de gafanhotos.

Seus olhos iam de uma introspecção apática até um substituto mais vivido da comunicação verbal.

Seguindo-os pelo pátio, Nancy falou: — Tenho agora cinco filhos, Robert. Tom leciona na universidade, mas está ficando bem conhecido como poeta. Mamãe ainda está no Lar Agnes Whitaker. Está bem, fisicamente. Nós a vemos com freqüência.

Robert sentou-se no banco e ergueu um olhar feliz para eles.

Nancy sentou-se a seu lado.

Fletch sentou-se de pernas cruzadas no caminho de cascalho na frente deles.

— Robert, tenho uma coisa dura pra te contar. — Contrariando tudo o que tinha dito, Nancy começou a chorar.

— Papai está morto. — Ela soluçou. — Ele foi assassinado, morto com um tiro num estacionamento ontem.

Robert não falou. Seus olhos tornaram-se introspectivos. Ele não olhou, nem estendeu a mão ou tocou a irmã de alguma maneira. Não lhe ofereceu nem compaixão nem empada.

Desesperada para se acalmar, Nancy limpou os olhos com a bainha de sua pesada saia.

Enfim, Robert suspirou: — Então.

— Não sei de nada sobre o enterro — Nancy disse. — Jasmine... os sócios... Robert, você virá para o enterro?

— Não. — Ele colocou a mão sobre o banco e olhou o pátio em volta, como se quisesse se levantar e ir embora. — Aqui nós estamos acostumados com a morte... com as flores... bichos... Chega até nós, aqui. Não precisamos encontrá-la lá fora.

Fletch perguntou: — Você alguma vez chega a sair daqui?

— Quem iria querer sair?

— Você chega a sair daqui?

— Às vezes vou no caminhão aos mercados. Na caminhonete ao dentista.

— Você alguma vez vai só?

— Nunca estou só. Levo o Salvador comigo, no meu coração.

Nancy colocou sua mão sobre a de Robert. — Não importa o que a gente pensava dele, Robert, é chocante, difícil de engolir que ele foi assassinado. Que alguém na verdade pegou uma arma e acabou com a vida dele. Atirou nele.

— Ah. A Grande Presunção — Robert disse, falando claramente em maiúsculas. — Por que as pessoas insistem em ficar presumindo que todos nós temos o direito, moral e legal, de morrer uma morte natural? Quando temos, tantos de nós morremos por acidente, violência, guerras, peste, fome...

Nancy olhou Robert de relance, depois olhou para Fletch. E moveu a mão.

— Bem... — Fletch falou. — Seu pai morreu da violência.

— Um assassinato faz parecer que alguém corrigiu a Deus. — Robert sorriu. — Precisamos acreditar que alguém tenha feito isso. Mas não. Não há quem realmente possa corrigir o que é perfeito.

Nancy alisou a bainha da saia sobre os joelhos com as mãos tremendo.

— Robert — Fletch disse —, o que acontece é que na manhã de ontem seu pai foi à Tribuna discutir com o editor, John Winters, a divulgação do propósito dele de doar cinco milhões de dólares ao museu. Já tinha tido um encontro no museu pra conversar sobre a doação. O museu não estava certo se queria tal doação, visto que seu pai tinha determinado que o dinheiro fosse gasto exclusivamente em arte sacra contemporânea.

Robert parecia interessado.

— Além disso — Fletch continuou —, seu pai contou ao curador do museu que queria dar o resto de seus bens a um mosteiro, pra onde pretendia entrar, de onde pretendia fazer parte.

Primeiro, Robert ergueu as sobrancelhas e fixou o olhar em Fletch.

Depois seu rosto se contraiu. Apertou os olhos fechados. Os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos apertadas uma contra a outra, Robert baixou a cabeça.

Nancy e Fletch se entreolharam.

Por fim, Fletch perguntou: — Está zangado?

— Aquele homem — Robert falou entre dentes. Fletch perguntou: — Ele não estaria tentando se aproximar de você? O filho dele!

Olhando para Fletch, Nancy arregalou os olhos num estalo.

Robert falou: — Aquele homem!

Fletch perguntou: — Você acredita em alguma coisa do que acabei de contar?

Por um tempo, Robert ficou sentado no banco em silêncio, aparentemente se contendo com esforço. Respirava fundo pelo nariz. — Impossível — ele disse. Sua respiração ficou mais fácil. — Nancy me escreveu contando que meu pai, depois de se livrar de minha mãe internando-a, casou-se pela segunda vez...

— Jasmine — disse Nancy.

Os olhos de Robert se abriram. Seu rosto se descontraiu bastante. — Não acho que ela esteja morta, não é?

— Não — Nancy respondeu.

— Não é preciso um divórcio — Robert disse, como se elucidando uma sutil questão jurídica —, quando se tem o propósito de entrar pra um mosteiro. Fletch disse: — Ah.

— Então nada disso é verdade — Robert falou. — Como a vida toda de meu pai. É uma mentira um tanto complicada. Mesmo se ele estivesse livre, seriam necessários meses, se não anos, de reflexão e ensino de devoção.

Fletch baixou os olhos para o chão de cascalho entre suas pernas cruzadas. — Ele talvez tivesse mais do que um milhão de dólares pra doar a um mosteiro.

Olhando para Fletch, Robert não disse nada.

Fletch mudou a pergunta: — Robert, você deve acreditar em remissão. É totalmente inconcebível pra você que seu pai pudesse mudar sua vida dessa forma aos sessenta, sessenta e um anos?

— Meu pai — Robert falou com dificuldade. — Meu pai passou a vida driblando a justiça. Na verdade, atravessando. Não há drible para o paraíso eterno. Não se pode driblar as leis de Deus.

Nancy soltou uma risada. — Robert, você parece tão implacável.

Finalmente, Robert virou-se para a irmã: — E você perdoa?

— Não — ela disse. — Não o que ele fez com mamãe.

— Nunca se sabe — disse Robert. — Talvez o homem tenha morrido pela vontade de Deus. Honestamente, eu duvido.

Fletch tinha a impressão de que Robert não queria a companhia do pai nem no mosteiro nem no paraíso.

— O que ele fez com mamãe — Robert disse. — O que ele fez com todos nós.

— O que ele fez com você?

Os olhos de Robert se tornaram tão inflamados quanto uma tela de El Greco. — Ele nos ensinou a única coisa que não se deve ensinar às crianças, que não deve ser ensinada à sociedade: que é possível fazer o mal impunemente se você conseguir mentir bem. — A voz de Robert cresceu. — E você espera que uma pessoa com essa filosofia e hábito possa algum dia encontrar Deus? — Sua voz diminuiu, mas suas mãos, e mesmo os ombros, tremiam. — Estou tentando, durante toda a minha vida adulta, afastar-me de uma crença tão pecaminosa. É a única crença que pode destruir a sociedade. É a única crença que pode corromper irremediavelmente a alma de alguém. — Tentando sorrir para Fletch, Robert perguntou: — E você acredita que uma pessoa com essa predisposição mental pudesse confessar-se com honestidade e vir pra Deus?

Fletch achou que não devia responder.

Robert modulou a voz: — O que ele nos fez de imperdoável é que nos corrompeu inescrupulosamente.

Fletch levantou-se do chão.

Robert falou, olhando para os seus dedos cheios de calos: — Não importa quem o matou. Nós somos todos assassinados pela vida, pelo nosso próprio meio de vida, pela maneira como vivemos. Claro, ele morreu de forma violenta. A vida dele conciliava, encorajava a violência. Somos todos vítimas de nós mesmos. — Nancy estava em pé também. — Tudo o que importa é que ele morreu com a graça de Deus. Embora eu não acredite nisso, e ele esteja condenado a sofrer no inferno por toda a eternidade, nós não podemos saber. Tal foi sua vida, tal foi sua morte: tudo entre o Divino Criador e ele próprio.

— Apesar das circunstâncias — Nancy falou, arrumando a saia —, foi bom ver você, Robert.

Robert não se levantou do banco. Robert não respondeu.

— Certo — Fletch disse. — Tente conseguir um pouco de paz.

 

Entre a sala de espera e a porta de entrada do mosteiro, Fletch disse a Nancy: — Espere um minuto por mim, sim?

Ele atravessou o hall de entrada até uma sala exterior, cheia de arquivos.

Depois entrou pela porta aberta de uma sala maior, bem decorada, onde o abade estava sentado atrás de uma escrivaninha grande de madeira. O abade levantou os olhos dos papéis verde-acinzentados sobre sua mesa.

— Perdoe-me a invasão — Fletch disse. O abade não falou se perdoava ou não.

— O pai de Robert, Donald Habeck, não apenas morreu ontem. Ele foi assassinado. — Não havia reação aparente do abade. — É importante pra nós sabermos se Donald Habeck veio aqui recentemente e conversou com o senhor.

O abade ponderou, como se essa fosse uma pergunta capciosa, vinda de um membro da escolástica.

— Sim — disse finalmente o abade, devagar. — Donald Habeck veio encontrar-se comigo recentemente. Sim, nós conversamos.

— Mais de uma vez?

O abade olhou para a porta aberta atrás de Fletch.

— Quando ele veio falar com o senhor — Fletch perguntou —, ele também esteve com Robert?

— Pelo que eu sei, Robert não sabia que ele estava aqui

— respondeu o abade.

— Robert estava aqui ontem pela manhã?

— Segunda-feira pela manhã? Assim espero.

— Me permite perguntar a natureza de sua conversa com Donald Habeck?

— Não.

— O senhor poderá ser intimado — disse Fletch.

— Você tem meu endereço — respondeu o abade. — Estou sempre aqui.

Nancy aguardava Fletch no carro.

Antes de Fletch colocar a chave na ignição, ela disse:

— Preciso de uma cerveja. O cheiro de santidade me dá vontade de vomitar.

 

— Boutique Cecília. Cecília falando. Você já pensou em usar calça-culote?

— Boa tarde — disse Fletch. — Encomendei um par de culotes pra minha esposa hoje de manhã. Uma cor que vocês não têm em estoque.

— Existe alguma cor que nós não temos em estoque?

— É um pedido especial. Listras verdes, brancas e pretas. Verticais nas coxas e nas pernas, horizontais nos joelhos.

— Com certeza não temos em estoque.

— Tudo bem. Eu entendo. A loja é pequena. Não podem ter todos os culotes do mundo em estoque.

— Pensei que tivéssemos — Cecília falou, mentindo.

— Eu disse à vendedora — acho que seu nome é Barbara — que ligaria pra ela hoje à tarde para dar o manequim exato de minha esposa.

— Deve ser Barbara Ralton.

— Eu poderia falar com ela, por favor?

— Claro.

Depois de uma pausa, Barbara falou: — Alô?

— Oi, gatinha.

— Fletch? Como conseguiu falar comigo?

— Eu menti. Mas tá tudo bem. Posso me perdoar. Quando as pessoas são corruptas o bastante para tolerar mentiras, eu as tolero.

— Onde você está?

— No único bar de Tomasito.

— Tomasito? O que você está fazendo aí?

— Tomando uma cerveja morna.

— Andou um bocado por uma cerveja.

— Escuta, Barbara, não vou poder jantar com você e sua mãe hoje à noite. Ainda tenho umas coisas pra fazer.

— Você prometeu...

— Prometo pra amanhã à noite.

— Então ficam faltando só dois dias pro casamento.

— Prometo mesmo.

— Fletch, você ouviu no rádio que a polícia soltou o homem que confessou o assassinato de Habeck? "

— Sim.

— Ah, não. É por isso que você tá em Tomasito! É por isso que você vai chegar tarde à noite! Na semana do nosso casamento você insiste em ser demitido por causa dessa matéria sobre Habeck!

— Barbara! Fui designado pra outra matéria pra Tribuna. Mas, sabe, de uma forma ou de outra puxaram meu tapete.

— A matéria de Turismo. O que Cindy tem a ver com uma matéria de Turismo?

— Você pode ir longe com Cindy. O que ela achou da roupa de esqui?

— Gostou. Eu comprei. A Cindy tem ótimo gosto pra roupas de esporte.

— E como! Ah, Barbara, você sabe em que Cindy trabalha?

— Claro. Ela trabalha pra uma daquelas academias de dieta e saúde. Por isso fiquei tão surpresa ao vê-la comendo uma banana-split. Imagino que ela possa comer essas coisas. Mas, pra pessoas como eu, ela tá dando um péssimo exemplo.

— Ela deve gastar essas calorias, eu acho. De alguma forma.

— Não lembro em que academia ela trabalha. Uma dessas chiques, na cidade, eu acho.

— Você acha que ela pode ser gay?

— Cindy? Lésbica? Nem pensar. Já vi ela sair com vários homens.

— Tenho certeza de que viu.

— Cindy é bem legal.

— Sim, é. Te vejo à noite.

— Você vai pra casa da praia?

— Evidente. Só que vou chegar tarde. Você podia colocar umas cortinas no quarto.

— Você não gosta de acordar cedo?

— Não tão cedo.

 

— Ô! Inferno! Abram! — Fletch esmurrou a porta outra vez. Outra vez olhou para a esquina. Outra vez forçou a maçaneta da porta. Leu outra vez o que estava escrito na placa: SAÍDA DE EMERGÊNCIA. ENTRADA PRINCIPAL AO LADO. LAR AGNES WHITAKER. Estava pronto para correr de novo. Mais uma vez socou a porta. — Ei!

A porta se abriu.

No interior, sobre o chão de cimento, havia um par de tênis verde.

— Vi você pela janela — disse a senhora Habeck. — Acho melhor você entrar.

Fletch entrou rápido e fechou a porta.

— Por que a policia estava atrás de você? — perguntou a senhora Habeck.

— Que bom se eu soubesse. — Fletch respirou fundo. — Eu estacionei a uns cinco quarteirões daqui. Logo depois esse guarda saltou do carro dele, gritou comigo e começou a correr atrás de mim. O companheiro dele ficou preso no trânsito. Obrigado por me deixar entrar.

— Com certeza você enganou ele direitinho — disse a senhora Habeck com admiração. — Na verdade, você está vestido pra correr. Se o ofício da policia é correr atrás de pessoas, por que eles não usam calções e tênis também?

No corredor de serviço onde estavam, o vestido estampado dela parecia particularmente brilhante. Fletch disse: — Não sei seu primeiro nome.

— Por que deveria? — A senhora Habeck virou-se e conduziu-o por uma porta ao longo de um corredor. — Estava te esperando. Mas você chegou tarde. Vão servir o jantar daqui a pouco. Uma hora ridiculamente cedo, mas, como você sabe, essas clínicas servem as refeições dentro das oito horas da jornada de trabalho normal. O resultado é que algumas das pessoas internadas aqui são muito gordas, outras muito magras. Nenhuma delas pode ganhar de um policial na corrida, tenho certeza.

Eles entraram numa sala ampla na parte da frente do prédio.

A televisão no fundo da sala estava ligada num programa de auditório e três pessoas de aparência depressiva estavam assistindo. Um homem de terno, sentado numa mesa de bridge, meditava sobre suas cartas. À frente dos três lugares vazios da mesa havia um jogo de cartas dispostas de modo organizado. Na lateral da sala, uma jovem de jeans e camiseta — onde se lia "Propriedade Depto. Atlético Q. C. V."* — operava um terminal de computador.

 

(*) No original: PROPERTY I. C. U. ATHLETIC DEPT. (N. T.)

 

Fletch e a senhora Habeck sentaram-se num dos cantos da frente da sala. Ela tinha uma ótima vista da rua pela sua janela.

— Meu nome é Louise — ela disse.

— É assim que seus amigos a chamam?

— Não tenho amigos — disse Louise Habeck. — Nunca tive, desde que me casei. Os amigos de meu marido simplesmente não gostavam de nós, sabe? Nenhum de nossos amigos gostava. Seu calção pergunta se eu quero um amigo. Bem, uma vez eu quis um. É como querer uma xícara de chá no deserto. Tenho certeza de que você sabe como é. Depois de um tempo sem a xícara de chá fica tudo bem. Você pára de querer. — Ela pegou do chão, ao lado da cadeira, uma sacola grande de papel pardo e colocou-a no colo de Fletch. — Já faz bastante tempo que eu sou nada mais, nada menos do que apenas a senhora Habeck.

Na sacola, estavam seu jeans, camiseta, cueca e meias. Bem dobrados. Pareciam limpos. No fundo da sacola, ele podia sentir seu tênis.

— Você lavou mesmo minhas roupas!

— Eu disse que lavaria.

— Meu tênis preferido!

— Nossa! Fizeram um barulho absurdo enquanto giravam na máquina de secar. O barulho que um camelo deve fazer, depois de ser treinado pra correr numa pista olímpica.

Ele trocou seu par de tênis branco e novo pelo par velho e furado.

Ela ficou observando ele remexer os dedos dentro dele.

— Talvez você pudesse ter corrido da polícia até mais rápido. Se estivesse usando esse aí. — Do lado de fora, o policial estava parado no meio-fio com as mãos na cintura. — Meu marido, é claro, sempre usou sapatos pretos. De uma forma ou de outra, sempre conseguia vagar por aí dentro de sapatos pretos.

Eles viram o carro da polícia descer a rua, fazer o retorno e pegar o policial.

— Honestamente, não sei qual a razão daquela perseguição da polícia atrás de mim — disse Fletch. — Eu devia ter parado e perguntado, talvez, mas ainda quero fazer uma série de coisas hoje.

— Adoro a maneira como você chega nos lugares — ela disse. — Ontem, fedendo a bourbon. Hoje, perseguido pela polícia. Não me lembra ninguém.

— Você sai dos lugares muito bem. — Ele lembrou do desaparecimento dela com suas roupas no dia anterior.

— Ah, sim — ela concordou. — Uma vez que botam você pra fora de sua própria casa porque você dá muito problema, depois disso, sair de qualquer lugar fica fácil, sabe. Como não querer uma xícara de chá.

— Chá — ele disse. — Sim.

— Desculpe não poder lhe oferecer — ela disse. — Todas essas pessoas de branco por aqui não ganham pra levar e trazer. Um homem grande, vestido de branco, estava agora parado logo depois da porta da sala de recreação. — Eles deixam isso bem claro logo que você chega. São pagos pra ficar por aí feito uns boçais e fazer cara feia. — Ela fez uma careta para o enorme boçal. Ele não viu. Os olhos dele estavam completamente vermelhos. — Xô! — ela lhe disse. — Vá servir o jantar!

O elegante jogador de bridge colocou sua mão sobre a mesa, sentou-se no lugar à sua esquerda e pegou aquela mão de cartas.

— Vou ser uma xícara de chá — Fletch disse. Ela sorriu e concordou com a cabeça, cúmplice.

— Me diga — Fletch falou gentilmente —, você já sabe que seu ex-marido está morto?

Ela riu. Deu um tapinha no joelho. — Faz dele ex o bastante! Ex-pirou!

Outra vez, Fletch não sabia se devia rir na frente dela.

Ele limpou a garganta. — Passei o dia de hoje visitando sua família.

— Você está tentando descobrir quem acabou com Donald! — ela disse, divertida.

— Bem, estou tentando captar a história. Tentando entender...

— Não há o que entender em Donald. Nunca houve. Se ele próprio me contasse que estava morto, eu esperaria pelo obituário antes de acreditar.

— Também não se deve acreditar sempre em obituários — Fletch falou solene.

— Espero que tenham conseguido outra fonte além dele próprio pra noticiar sua morte. Ou seu escritório.

— Conseguiram, sim. Foi morto com um tiro. No estacionamento de um dos jornais.

— Em algum lugar deve haver um júri reunido.

— O que você quer dizer?

— Donald sempre chama atenção sobre si próprio quando um júri vai dar um veredicto favorável. Ele diz que é bom para os negócios.

— Ele não se matou — Fletch disse. — A arma não foi encontrada.

— Vaga — ela disse. — Vaga por aí dentro de sapatos pretos.

— Tá. Tudo bem. Me diga uma coisa, você volta à sua antiga casa e senta no jardim com freqüência?

— Não com freqüência. Geralmente não fico sentada lá, a não ser que saiba que não tem ninguém. Estou acostumada com aquela casa vazia, sabe? Ás vezes, Jasmine me surpreende. Ela sai de dentro da casa, senta comigo e nós conversamos. Ela descobriu que morar com Donald é mais solitário do que morar sozinha. Ele vaga por ai, sabe?.

— Dentro de sapatos pretos. O que houve de especial ontem?

— Ontem? Deixa eu pensar. Ah, sim, Donald levou um tiro.

— Quero dizer, você ficou na casa mesmo com o jardineiro lá.

— Um dia tão bonito.

— Quando nos encontramos ontem, você sabia que Donald tinha sido morto?

— Uma hora eu soube. Não sei se soube antes ou depois de encontrar com você. A princípio, encontrar com você não me pareceu tão significativo. Você não estava bêbado, estava?

— Não.

— Mas você tinha cheiro de bêbado.

— Mas você sabia antes de eu lhe contar que Donald pretendia divulgar que ele estava dando cinco milhões de dólares pro museu?

— Lavei suas roupas pra você. Po-co-tó, po-co-tó, era o som do tênis na secadora. Igualzinho a um camelo disputando os cem metros rasos.

O jogador de bridge estava agora na quarta posição da mesa.

— De qualquer maneira, como você anda por aí?

— Vago.

— Quero dizer, como você circula pela cidade? Até a casa de sua filha, até...

— Sento num carro aberto e vazio. Quando o motorista volta, das compras ou do que for, digo a ele ou a ela onde quero ir. Eles me levam.

— Sempre?

— Sempre. Sou uma pequena e velha senhora de cabelo azulado, de vestido colorido e tênis verde. Por que não me levariam? Às vezes eles têm outros lugares pra ir primeiro. Eu vou também. O segredo é que nunca estou com pressa. E — ela observou — às vezes chego a conhecer lugares que não veria de outra maneira.

Fletch franziu o cenho. — Sua filha fez mais ou menos a mesma coisa hoje à tarde.

— Foi? Nunca lhe expliquei como se faz. Ela nunca perguntou. Mas também, pobre coitada, ela nunca tem dinheiro.

— Fui com sua filha ao mosteiro de São Tomás hoje à tarde e falei com Robert.

— Aquele pecador!

— Por que diz isso?

— Você já ouviu falar do pecado da omissão?

— Não.

— Robert omite a vida naquele mosteiro. Tenho a impressão de que ele preferia estar na prisão, mas sabia que o pai iria impedir que ele fosse preso, não importando o que tivesse feito. Acho que algumas pessoas querem estar na cadeia, você não acha?

— Atirar no pai ia fazer ele alcançar dois objetivos, não é?

— Magnificamente!

— Na verdade, acho que ouvi seu filho, o monge, dizer qualquer coisa como não se importar se o pai fosse pro inferno.

— Ah, todos nós sentimos isso a respeito de Donald. Você não?

— Não o conhecia.

— O que não é uma pena.

— Quando Nancy estava contando pro Robert que o pai deles tinha morrido, ela chorou.

— Nancy! Eu a eduquei pra ser uma moça tão bonita e por um tempo ela foi tão piranha.

— Foi?

— Ela se casou com o seu professor de faculdade, sabe. Como é o nome dele?

— Tom Farliegh.

— Ontem você não sabia o nome dele. Hoje você sabe. Tá vendo? Aprendeu alguma coisa.

— Não muito.

— Tento decorar o nome dele do meu jeito.

— Tipo estranho, não acha?

— Ah, ele é uma gracinha. Ele publica os meus poemas.

— O quê?

— Bem, faz com que sejam publicados. Com o nome dele, é claro.

Fletch sentou-se para a frente. — O quê?

— Bem, você acabou de dizer que queria aprender alguma coisa.

— O que está dizendo?

— Aquele livrinho, A Faca, O Sangue. São meus poemas.

Fletch ficou olhando fixo para a senhora de cabelo azulado no canto da sala de recreação do Lar Agnes Whitaker. — Você realmente gosta de brincar com as palavras.

— Muito — ela disse com firmeza. — Muito.

— Marido ex-pirado. Com sons. Hab Har Hal.

— São bons poemas, não são?

— Acho que acredito em você. A Poesia da Violência escrita por...

— Os poucos críticos que criticaram os poemas referiram-se a eles assim. "Poesia da Violência"? Acho que sim. Poesia da Verdade e Beleza. Não gosto de rótulos.

— O fato de você ter escrito aqueles poemas muda o significado deles completamente.

— Muda? Não deveria.

— Muda a maneira de ver. "As calçadas da cidade/ Oferecem sem piedade/ Velhinhas para serem violentadas." Se você pensar que um homem jovem escreveu isso, parece cruel. Mas se você souber que foi uma senhora de sessenta anos quem escreveu...

— Não entendo de crítica. Eu sei é que Tom precisava publicar alguma coisa pra manter-se no emprego da universidade. Seus próprios poemas estão vagando por aí dentro de sapatos pretos feito o Donald. Nunca se consegue por a mão neles. Tão prolixos que deviam ser proibidos. Bem, no fundo, -são realmente proibidos. Não conseguia publicá-los. Então lhe dei os meus. Ele precisa sustentar meus cinco netos.

— Meu Deus. A vida é maluca.

— Pensamento interessante.

— Tom fala como se ele escrevesse aqueles poemas.

— Ele tem que fazer isso. É um segredo, sabe? Nem Nancy sabe. Você mencionou a perspectiva. Quem publicaria os poemas de uma velhinha internada numa clínica particular? Tom é um professor de universidade. Se ele apresentar alguma coisa a um editor, o mínimo que vai acontecer é que deverá ser lido. Certo? Não posso fazer nada se a maneira de ver o mundo é maluca.

— Quando as pessoas são corruptas o bastante para tolerar mentiras, eu as tolero.

— Tom está trabalhando agora no segundo volume. É muito difícil pra ele, você entende. Quando uma pessoa tem que dar aulas quase todos os dias em blocos de cinqüenta minutos, deve ser praticamente impossível pra ela pensar em termos de uma só linha simples e concisa, cada palavra carregando mais que seu próprio peso, um ritmo que funciona no momento certo. Você não acha?

— Não tenho a menor idéia.

— Mas, você vê, eu, por outro lado, tenho vivido mais ou menos em silêncio. Um silêncio tão profundo que, quando um som, uma palavra entra dentro dele, eu a compreendo no seu sentido mais completo, eu a ouço, sinto, toco, experimento, viro de baixo pra cima e de cima pra baixo várias vezes, no seu isolamento, no meu isolamento. Tom, com sua vida ocupada, com seus cinco filhos, deve ter, de certa forma, uma resistência ao som. Pra mim o som é algo estimado e eu o transformo numa coisa que tenha mais corpo, mais sentido.

— Examinado, explorado, explicado, explodido — Fletch disse. — Expirado.

— Na verdade, acho que identifico Tom com, como direi, uma fonte de beleza. Ele está pegando o jeito. Daqui a pouco alguns desses poemas vão ser totalmente dele. — Louise Habeck olhou a sala em volta. — E daqui a pouco vai ser hora do jantar.

— Ouvi uma história — disse Fletch devagar — de que Donald Habeck estava entrando pra religião.

— Donald sempre foi religioso — disse Louise Habeck.

— Ninguém mais parece pensar assim. Louise Habeck deu de ombros.

— Ele era um mentiroso — disse Fletch. — Um mentiroso pago, um mentiroso profissional. Você mesma disse que não acreditaria nele se ele lhe dissesse que estava morto.

— Um mentiroso considera a verdade tanto quanto a maioria de nós não considera — disse Louise Habeck. — Um mentiroso acredita que seguir a verdade é de alguma forma muito difícil, misterioso, místico, mítico, inatingível. Aposto que, enquanto Demóstenes vagava pelo mundo procurando um homem honesto, ele vendia ouro por fora e enganava seu senhorio. Para o resto de nós, a verdade é tão óbvia, comum e pura quanto um simples poema.

— Você acredita que Donald pudesse ir pra um mosteiro?

— Ah, sim. Seria a cara dele. Exatamente o que ele faria. Estava sempre estudando folhetos religiosos, livros de sermão, provas disso e daquilo, de uma coisa ou de outra.

— Como os filhos dele podiam não saber disso?

— Eles não sabem nada sobre ele, a não ser o que leram nos jornais. Ninguém sabia. Depois que você lê sobre Donald nos jornais, você não tem vontade de conhecê-lo.

— Ele alguma vez seguiu alguma crença religiosa?

— Todas. Era assim que passava a maioria de suas noites. É por isso que eu nunca o via. As crianças nunca o viam. Nunca o conheceram.

— Ouça — Fletch falou suavemente —, Donald Habeck tinha uma esposa extremamente incomum, que ambos sabemos foi internada num sanatório.

— Sim — disse Louise Habeck. — Eu. Foi muito gentil da parte dele, muito certo. Morar aqui é bem mais agradável do que morar com ele. Posso ver outras pessoas comerem. Todas as pessoas aqui — ela estendeu o braço e girou-o em volta da sala — são melhores companhias do que Donald. Eu entro e saio conforme a minha vontade. As pessoas me dão carona. Falam comigo normalmente. Conto histórias sobre o Peru pra elas. E Donald tinha razão: eu estava comprando máquinas de lavar e de cortar grama meio em excesso.

— Você já esteve no Peru?

— Não, mas nem eles.

— Senhora Habeck, seu filho é um monge que não consegue encontrar a paz. Sua filha e seus netos vivem na miséria. Seu genro é um impostor atarracado.

— O que isso tem a ver com Donald?

— Donald podia tê-los ajudado, ter conseguido ajuda pra eles, ao menos ter sido acessível, ter tentado conhecê-los, vê-los.

Louise Habeck ficou olhando para o chão entre eles por um longo tempo. — Donald desapareceu por aí — ela disse —, atrás de Deus. Eu odiei ele por causa disso. — Em algum lugar do prédio um gongo soou suavemente. Seus olhos ergueram-se para encontrar os dele. — A ironia poética seria — disse ela — se Donald fosse morto antes que conseguisse escapar de sua vida de mentiras.

— Você o matou?

Ela sorriu. — Pelo menos agora sei onde ele está. As pessoas saíam apressadas da sala.

— Venha — ela disse. — Mostro a saída lateral pra você. É muito mais simples do que passar por todas aquelas explicações na porta da frente. A sua entrada não notada ia gerar Confusão na saída.

— Obrigado por lavar minhas roupas — disse ele, seguindo-a. — Embora seu sistema de entregas deixe muito a desejar.

Caminhando pelo corredor na frente dele, ela disse: — — Lavando suas roupas passei a amar você.

Na SAÍDA DE EMERGÊNCIA, Fletch disse: — Tudo bem se eu aparecer um dia e levá-la prum chá?

Louise Habeck balançou negativamente a cabeça. — Duvido que eu esteja com sede.

 

Fletch bateu várias vezes e esperou um bom tempo, mas ninguém abriu a porta do n? 12339 da estrada Palmiera. O sol estava se pondo. Estava esfriando. Não havia carros na entrada da garagem, nenhuma coroa de flores na porta da frente. Louise Habeck estava internada numa clínica. Robert Habeck estava aflito num mosteiro. Nancy Habeck estava vivendo na miséria com um marido que era uma fraude. E Donald Habeck estava morto, assassinado.

E Jasmine?

Fletch deu alguns passos para trás e olhou para cima, para a cortina que tinha se movido quando ele estava indo embora naquela manhã.

Moveu-se novamente.

Ele sorriu, acenou para a cortina, virou-se e caminhou para o carro estacionado na rua.

Quando estava entrando no carro, a porta da frente do n? 12 339 da estrada Palmiera se abriu. A silhueta na porta era a mesma que o jardineiro tinha desenhado na terra.

Fletch fechou a porta do carro e voltou a subir o caminho de laje.

Ela desceu até a calçada. Atrás dela a porta bateu.

— Droga — ela disse —, acabei de ficar na rua.

— Você é Jasmine?

Ela concordou com a cabeça. Era mais velha do que parecia a distância. Mais velha, mais pesada, o rosto mais marcado por cosméticos, sobrancelhas mais finas, cabelo mais pintado.

— Meu nome é Fletcher. Trabalho para a Tribuna.

— Como vou entrar em casa?

— A cozinheira não está?

— Eu não tinha como lhe pagar. Ela se foi.

— Por que você saiu?

— Estava curiosa. — Jasmine estava usando um blusão decotado, de um amarelo forte, vibrante, calças verde-claro e sapatos de salto alto. — Aquela trouxa de roupas que você entregou aqui hoje de manhã eram roupas de Donald.

— Desculpe não ter lavado antes de entregá-las.

— Fazem parte da investigação?

— Não.

— Quero dizer, eu sei que não foram as roupas que ele estava usando, ah, quando morreu.

— Não. Eram apenas roupas dele. Eu as estava devolvendo.

— Ah. — Aquilo lhe pareceu satisfatório. Preocupada, ela olhava para a casa.

— Jasmine, estou confuso.

— Não estamos todos? Quero dizer, evidente!

— Donald conversou com você sobre a doação de cinco milhões de dólares ao museu?

— Não.

— Nunca? Nunca chegou a tocar no assunto com você?

— Nem um pio. Para o museu? Eu li no jornal que ele planejava dar dinheiro pra alguém.

— Ele nunca mencionou a arte religiosa pra você? Mostrou alguma peça?

— Eu nem sei o que é. Arte religiosa? Achava que só as pessoas podiam ser religiosas.

— Alguma vez ele falou sobre religião com você?

— Não. Ultimamente ele lia livros grossos ao invés de dormir. Grandes romances.

— Alguma vez ele mencionou uma visita ao mosteiro em Tomasito?

— Onde o filho dele está? Não. Eu nunca fui lá.

— Alguma vez ele insinuou que talvez quisesse entrar pra um mosteiro?

Seus olhos se arregalaram. — Não! Fletch também olhou para a casa. — Então, estamos todos confusos.

— Ele vivia como um monge — ela disse. — Acordado a noite inteira, lendo Guerra e Paz. Os Irmãos Karaminski.

Os olhos de Fletch se estreitaram. — Maldade nunca mais? — ele disse. — Algo assim. Vá embora e não faça mais maldades?

— É — ela disse. — Ele falou alguma coisa assim. Duas ou três vezes. — Ela encolheu os ombros. — Nunca soube do que estava falando. Quando ele falava.

— Nunca sugeriu ir embora com você?

— Não. Por que o faria?

Fletch balançou negativamente a cabeça. — Fico menos confuso por um segundo e depois mais confuso. Você é Jasmine Habeck, não é?

— Não. O jornal estava errado a respeito disso.

— Seu nome é Jasmine?

— Mais ou menos. Nós nunca nos casamos. Donald nunca se divorciou da sua primeira mulher, Louise. Conheceu ela?

Fletch ouviu-se dizer. — Sssssim.

— Tipo esquisito ela tem. Boa pessoa, na verdade. Ela pode sentar e ficar calada por horas, depois perguntar: "Jasmine, o que você acha do mundo melancólico?". E eu digo: "Não penso sobre o mundo melancólico tanto assim", e aí ela pode dizer uma coisa realmente esquisita como: "O melancólico Donald decolou num terno bucólico".* Realmente! Muito estranho.

 

(*) No original: "Blue Donald blew away in a blue suit". (N. T.)

 

— Estou ficando menos confuso.

— Isso é bom.

— Estava apenas morando aqui como amiga dele?

— Bem, de certa forma eu tinha que fazer isso, sabe? — Ela se virou sobre os calcanhares. — Talvez possa me dizer o que fazer.

— Tente.

Ela se aproximou mais dele. — Estou no Programa Federal de Testemunhas, sabe?

— Ah.

— Eu ia depor para o governo contra uns caras meio pilantras, num julgamento em Miami. Eles na verdade não eram caras ruins, eu não achava que eram, tinham bastante dinheiro e não se importavam se era dia ou noite. Mas estavam com problemas e o governo disse que eu devia ajudá-los. Tinha que depor contra eles ou eu poderia ir pra prisão também e eu não tinha feito nada de mal — pego algumas jóias do Pete — ela apontou para um anel de turquesa no dedo —, minha pele preferida. Daí eu falei: "Claro". Fiquei por lá muito, muito tempo, fui pro tribunal e respondi mil perguntas idiotas sobre ter visto uma mulher nua trabalhando onde se faz coca, coisas assim, entende? Então era pra eu ser protegida pelo governo federal. Você acha que eu devia falar com alguém em Washington?

— O que tudo isso tem a ver com Donald Habeck?

— Nada. Eu estava no escritório desse advogado em Miami e Donald entrou pra ver um amigo. Naquela época eles iam me mandar pra St. Louis quando eu tivesse acabado. E minha amiga, uma chanteuse latino-americana, me disse que as Bíblias eram impressas lá e que lá era terrivelmente quente e úmido e que não tinha nada a ver comigo. Donald me convidou pra beber alguma coisa. Dois dias depois eu vim pra cá com ele. Nós nunca nos casamos. — Ela concluiu com: — — Meu verdadeiro nome não é Jasmine, é claro.

— É claro.

— Acho que não é o nome verdadeiro de ninguém.

— Imagino que não.

— Quero dizer, você alguma vez conheceu alguém que se chamasse Jasmine?

— Nunca. Nem sei de alguém, acho.

— É por isso que escolhi esse nome. Se eu tinha que virar anônima, pelo menos queria um nome que chamasse a atenção. Você não gostaria?

— Acho que sim.

— E então, o que devo fazer agora que Donald está morto? Ligar pra alguém em Washington?

— Com que autoridade federal você lidou em Miami?

— Esse é o problema. Não consigo lembrar o nome dele. Era John ou Tom.

— E os sócios de Habeck? Eles sabem que você está no Programa Federal de Testemunhas?

— Acho que não. Acho que eles pensavam que eu era a senhora Habeck Parte Dois. Nas poucas vezes em que estivemos juntos, eles não falavam comigo. A não ser pra dizer "Me veja uma bebida, sim, Jasmine?". Pete e os outros caras eram mais legais. Pelo menos sabiam que eu era uma mulher, entende o que quero dizer? Por Deus, eles não me tratavam como um deles! Fiquei feliz de ter vindo pra cá com Donald antes de ter terminado de depor contra eles.

— Entendo. — Fletch olhou para alguns dedos dos pés aparecendo pela parte de cima do tênis. — Então está aí parada, sem dinheiro, sem amigos...

— E, eu quero um amigo.

— Você não é a viúva de Donald Habeck, não é sequer Jasmine...

— Eu seria a senhorita Ninguém, se não tivesse sido casada duas vezes.

— Tem idéia dos planos que Donald tinha pra você caso fosse embora, se ele fosse pra um mosteiro?

— Eu não tinha a menor idéia de que ele queria ir pra um mosteiro. Deve ter acontecido de repente na cabeça dele. Eu tinha uma amiga assim. De repente ela teve vontade de virar freira.

— É melhor fazer você entrar em contato com alguma autoridade federal daqui da cidade.

— Pensei em conversar com o carteiro sobre isso. Bem, quero dizer... é verdade.

— Alguém vai ligar pra você.

— E mais, estou trancada do lado de fora de casa. — Ela virou-se e olhou para a silenciosa e tranqüila casa de tijolos, entre os arbustos. — Meu casaco de peles está lá dentro.

Ele começou a andar em direção à casa com ela. — Há algum alarme contra ladrões? Eu não notei.

— Não. Não é ridículo? Pensar que um grande crimina-lista como ele não tenha um alarme contra ladrões em casa? Ele devia conhecer a espécie de caras que eu conheci!

— Acho que ele conhecia, Jasmine. Acho que ele conhecia todos.

 

— Tô vendo o rabo de alguém no meio dos arbustos! — Era sem dúvida a voz de Frank Jaffe. Nenhuma outra voz era tão grave. — E nesse rabo está escrito "Atendimento a Amigos Ben Franklyn"!

Na escuridão, no meio dos arbustos na frente da Tribuna, por alguns momentos Fletch imaginou que, se ele fosse até o fim na sua imitação de avestruz e enfiasse sua cabeça no chão, ele desapareceria de vista completamente.

Ao invés disso, ele ficou em pé e virou-se. Não havia percebido que tinha entrado tanto no campo de luz da segurança do prédio.

— Boa noite, Frank. Já era hora de você estar em casa.

— Ah, é você! — exclamou Frank Jaffe fingindo surpresa. — Você não acha que já demos propaganda gratuita o suficiente pra esse estabelecimento de excesso físico esta semana?

— Sim, eu acho.

— Então, por que você está na frente do prédio da Tribuna chamando a atenção do trânsito e fazendo propaganda dos serviços deles?

O envelope de papel manilha e o lápis que Fletch tinha levado do carro estavam atrás dos arbustos.

— Não é exatamente o que estou fazendo, Frank.

— O que mais está fazendo?

— Estou procurando uma pistola, Frank.

— Você tá procurando sua bola?

— Tá Dom.

— Como é que você deixou cair sua bola aí atrás nos arbustos?

Fletch levantou seu indicador. — Não sente o vento?

— Você tava tentando vomitar nos arbustos — acusou Frank.

— Não, não tava.

— Tava tentando descolar um michezinho?

— Ô, Frank...

— Além de fazer propaganda do serviço deles, estampado no rabo, você conseguiu ir mais fundo na matéria do bordel?

— Queria falar com você sobre isso, Frank.

— Você está superexposto, claramente. Por acaso vamos expô-los também?

— Frank, acho que a matéria vai demorar um pouquinho mais do que a gente pensou, a princípio.

— Ah — disse Frank. — Tá ficando envolvido mesmo, hein, garoto?

— Aconteceu um imprevisto... um obstáculo...

— Descobriu que você pode curtir à beca essa pauta, né? Ter seus ossos esmagados às custas da empresa... quem não gostaria? Ah, Fletch, eu queria que todos os funcionários da Tribuna se atirassem ao trabalho tão entusiasticamente quanto você! Eu sabia que, uma vez dentro dela, você ia gostar dessa pauta!

— É, eu me joguei nela, sim, Frank...

— Muito bem, garoto!

— O problema é que, sabe, essa garota, Cindy...

— E agora posso apostar como até você está se perguntando por que vai se casar no sábado!

— Bem, sabe, Barbara...

— Toque pra frente, Fletch, seja lá o que estiver fazendo. Mas por favor! Tanto eu quanto o editor apreciaríamos muito se você mantivesse sua cabeça erguida e seu rabo pra baixo!

— Tá certo, Frank.

— Boa noite, Fletch.

— Boa noite, Frank.

 

— O tenente Gomez está?

O balcão de entrada da delegacia era tão alto que fazia até um cidadão honesto se sentir um mísero canalha.

— Por que quer saber? — perguntou o sargento do balcão.

— Quero falar com ele — disse Fletch. — Tenho uma coisa pra ele.

— Deixe comigo. Faço com que chegue até lá.

A placa na escrivaninha dizia SARGENTO WILHELM ROHM.

— Gostaria de falar com ele. Ele está?

— O que tem dentro do envelope grande? — O sargento Rohm leu o anúncio da roupa de Fletch.

— O que eu quero dar pra ele.

— Serviço de entrega de um bordel. Isso é bom. O que tem no envelope, bonitão? Um caso de doença venérea pro tenente? Não vai ser o primeiro.

— Um revólver.

— Usado?

— Acho que sim.

— Eu dou pra ele.

— Ele não está? — O sargento pegou o envelope e apalpou o conteúdo. — Não estrague as impressões digitais — disse Fletch.

— Ah, um federal iniciante — disse o sargento. — Dá pra notar que você tá acostumado a trabalhar disfarçado.

— Pelo menos deixa eu escrever um bilhete pro tenente.

— Claro. — O sargento jogou um caderno de ocorrências virado e uma caneta por cima da escrivaninha. — Escreva o que quiser, gostosão. A gente adora confissões na íntegra. Às vezes até os advogados acham que é um obstáculo pra conseguir absolver seus clientes.

— Por que Stuart Childers foi solto?

— O que você tem a ver com isso?

— Curiosidade.

— Stuart Childers sempre é solto. Ele entra aqui uma vez por dia. Às vezes duas. Ele confessa qualquer assassinato que ouve no rádio. E também roubo, incêndio criminoso ou qualquer baderna maior. Quer bancar o réu outra vez.

Fletch escreveu:

 

Tenente Gomez:

Sua procura pela arma do assassinato de Habeck não podia ter sido extensa. A segurança que identifica os carros no portão do estacionamento da Tribuna indica que o assassino entrou e saiu a pé do estacionamento. Fiz o caminho a pé mais lógico do fundo do estacionamento, onde Habeck foi morto, até a rua, e achei esse revólver nos arbustos na frente do prédio da Tribuna esta noite. Levantei-o com o lápis pelo aro do gatilho para que as impressões digitais ficassem intactas. Espere também o relatório balístico. Diga a seu companheiro Biff Wilson que fico sempre satisfeito de ser útil. Ele claramente precisa de ajuda na redação de obituários.

  1. M. Fletcher

 

— Está escrevendo a história de sua vida? — O sargento tentava ignorar uma senhora negra chorando na outra ponta do balcão. — Eu adoraria saber o que vocês, prostitutos, fazem que valha a pena pagar. Ninguém jamais me ofereceu grana.

Fletch passou-lhe o bilhete dobrado. — Bote isso no envelope, sim?

— Claro, gostosão. Vou tomar cuidado. — Ele botou o bilhete em cima do envelope.

— Por favor — disse Fletch. — É importante.

— Claro, gostosão, claro. Agora por que você não some daqui antes que eu te jogue numa cela onde cê vai ter de fazer o que faz de graça?

 

— O que vocês tão fazendo? Enchendo a cara feito duas velhas alcoólatras?

— É. — Cindy falou. — Eu era uma boa menina, não era?

Barbara e Cindy estavam em espreguiçadeiras no terraço da casa da praia. Sobre uma mesinha redonda entre elas estavam seus óculos, uma garrafa de uísque pela metade e um balde de gelo.

— Uma banana-split no almoço, um scotch à noite — disse Fletch. — Melhor se cuidar pra não dançar, Cindy.

Ela esticou os braços. — Tudo bem. Vou me aposentar, logo,logo.

— É — disse Fletch. — Pra cachorro.

Havia uma lua crescente sobre o mar. No alto mar, um cargueiro enorme ia em direção ao sul.

— Beba alguma coisa — Barbara disse. — Nos acompanhe.

— É — disse Cindy. — Você teve um dia longo hoje, eu acho. Arranjou um emprego de manhã, quando você já tem um, teve um almoço de negócios...

— Você não sabe a metade.

— Um dia desanimador também, acho — falou Barbara.

— Pois é — disse Cindy. — Desanimador. Apresentou-se tão bem na entrevista do novo emprego. Depois no almoço foi desmascarado como impostor tão rápido.

As mulheres deram risadas.

Na cozinha, Fletch encheu meio copo com água da torneira.

— Pobre Fletch — disse Barbara. No terraço, ele acrescentou gelo e uísque ao copo com água. — Ele estava tão desanimado que foi até Tomasito só pra beber.

— Uma cerveja morna — ele resmungou. — Que tem pra comer?

— Nada — disse Barbara. — Lembra que você cancelou o jantar com minha mãe?

— Nós não comemos — disse Cindy.

— São dez horas — Fletch falou.

— Estávamos conversando — disse Cindy. — A história de minha vida.

— Talvez você queira uma pizza? — disse Barbara. Fletch sentou-se na espreguiçadeira perto da balaustrada. — Então Cindy... você acabou com minha perspectiva de conseguir um emprego? Contou pra Marta que sou um impostor? Que na verdade eu não sou um prostituto, mas um jornalista honesto que vai foder o Atendimento a Amigos Ben Franklyn?

— Pensei no caso — Cindy disse. — Pensei muito sobre o que fazer. Hoje à tarde meus clientes não tiveram atenção exclusiva. Um cara percebeu que eu não tava controlando a situação tão bem quanto deveria e veio com toda a força. Tive que provocar um acidente pra ele se acalmar. Uma das barras foi sem-querer-de-propósito contra o nariz dele. — Ela estava vestida como no almoço, kilt curto e mocassim. — Mas tudo bem. Não houve sangue no tapete.

— Você estava com uma toalha pronta.

— Estou sempre com uma toalha pronta. Os homens sempre derramam algum líquido.

Barbara tomou um gole de sua bebida.

— Contou pra Marta ou não? — Fletch perguntou.

— Tinha que decidir entre contar pra Marta quem é você e te foder — disse Cindy — ou contar pra Barbara quem sou eu e foder Marta.

— Decisão difícil. — Fletch olhou para Barbara. — Então você contou pra Barbara, sua velha amiga, quem você é, onde você trabalha... etc?

— É.

Fletch perguntou para Barbara: — Como se sente em relação a isso?

Barbara não respondeu de imediato: — Eu acho que entendo. Estou mais surpresa comigo mesma do que com qualquer outra coisa.

— O que você quer dizer?

— Que eu tivesse uma amiga e soubesse tão pouco sobre ela. Faz com que eu me questione, questione minha própria sensibilidade, minha própria percepção. — Barbara olhou por um instante para o copo que segurava no colo. — É difícil de explicar. Quero dizer, agora fico imaginando quem é você, Fletch, o cara com quem vou me casar daqui a três dias. O que eu não conheço de você? Como está minha percepção?

— Ui, ui, ui — Cindy falou.

— Hoje — disse Fletch — eu descobri coisas sobre algumas pessoas que jamais teria adivinhado. Acrescentei pessoas realmente interessantes pra minha coleção.

— Quero dizer, aqui vamos nós seguindo vida afora, aceitando todo mundo mais ou menos como parecem ser, como dizem que são. Perdoem minha concordância ruim. Chega dessa porra de mais ou menos todo mundo. E POW! um minuto depois de uma bebida ou de qualquer outra coisa, você descobre que as pessoas têm vivido a vida inteira pensando, fazendo coisas, sendo alguém que você nunca conheceu, nem mesmo sonhou ser possível.

Cindy disse: — Acho que com a ortodontia, psiquiatria, cuidados com a saúde e a moda também, com a grande idealização americana do estado normal, que não existe, as pessoas acham que querem amar pessoas semelhantes a si próprias.

— Isso tudo é a mãe do preconceito — disse Barbara.

— A economia é o pai.

— São as diferenças entre as pessoas o que a gente deve amar — Cindy disse.

— Se somos exatamente o que os outros acham que somos — Fletch falou —, não teríamos muito de nós pra nós mesmos, não é?

— É — Cindy deu uma risadinha. — A hipocrisia é nosso último reduto de privacidade.

— Nossa. — Barbara balançou o copo na frente da boca.

— Uma gota de álcool pra este trio e a gente entra num papo filosófico bem rapidinho, não?

— Não foi bem uma decisão — Cindy falou. — Estou saindo do Ben Franklyn na sexta. Não me importo que o Atendimento a Amigos Ben Franklyn saiba que eu tenho uma surpresa reservada no fim da festa.

Fletch disse: — E tem a empatia de Marta por Carla... Cindy sorriu para ele. Havia luz vindo da janela da sala.

— O elemento humano tá em tudo que a gente faz. Não é sobre isso que a gente tá falando? — Ela jogou duas pedras de gelo no copo. — De qualquer maneira, não é assim que se mantém um negócio. As pessoas deviam ser proibidas de fazer carreira na cama.

Barbara soltou um gracejo com o copo na boca. — Você tá falando de um bordel, Cindy! Desculpe, amiga, mas é engraçado.

— Meu trabalho tem menos a ver com sexo do que você pensa — disse Cindy.

— Tenho certeza.

— Então o que você decidiu mesmo? — Fletch perguntou.

— Decidi ajudar você a fazer sua matéria — Cindy disse.

— Vamos estourar Ben Franklyn.

— Ótimo!

— Vai ser meu presente de casamento pra você e Barbara. Eu ia dar um collie pra vocês quando voltassem da lua-de-mel...

— Um collie! — exclamou Barbara. — Se Fletch não segurar o emprego dele, nós não vamos ter como comer!

— Me diga o que você precisa — Cindy falou para Fletch.

— Preciso saber quem é o proprietário do Atendimento a Amigos Ben Franklyn.

— É uma coisa que se chama Ninfa da Floresta S. A.

— É lindo.

— Ninfas florescem — Barbara brincou.*

 

(*) No original: "Wood Nymph Inc." /"Nymphs would". (N. T.)

 

— A quem pertence a Ninfa da Floresta?

— Não tenho idéia.

— Ninfomaníacos sempre florescem — disse Barbara. — Não é essa a questão?

— Preciso saber. Preciso saber especificamente e por escrito que serviços vocês prestam e o custo de cada um desses serviços.

— Isso eu posso contar pra você agora mesmo.

— Por favor, não conte — Barbara disse. — Não enquanto to bebendo.

— Vou precisar de uma espécie de depoimento seu sobre as apresentações que vocês fazem prós voyeurs. E que o sujeito geralmente não sabe que tá sendo observado e sua bunda sendo vendida.

— Ah, encantador! — disse Barbara.

— E também uma descrição de todo o escort service, que na verdade vocês funcionam como garotas de programa. As festas em que vocês já atuaram, como funciona esse serviço, quanto custa. A coisa toda sobre chantagem, as câmeras.

— Câmeras! — Barbara cacarejou. — A hipocrisia é o último reduto da privacidade.

— Ouça — Fletch falou para Barbara —, há uma semana atrás você sugeriu que a gente se casasse pelados na frente de todo mundo.

— Eu tava brincando.

— Tava?

— Pensei que eu pudesse perder quatro quilos.

— Consegue isso tudo até amanhã? — Fletch perguntou para Cindy.

— Vou tentar.

— Pizza — Barbara falou. — Estou sentindo uma necessidade específica de pizza.

Cindy olhou para Fletch diretamente e perguntou: — Que tal uma lista de nossos clientes? — Ela o observou atenta, esperando sua resposta.

— Claro — ele disse normalmente. — A prostituição não pode existir sem seus clientes.

— Você vai publicar o nome deles? — Cindy perguntou.

— Não sei — disse Fletch. — Honestamente, não sei. Vou apresentar os nomes pra serem publicados.

— Argh! — disse Cindy. — Ainda é um mundo machista, meu amo!

— Fletch, por favor, você iria comprar uma pizza? — Barbara perguntou. — É melhor pedir a minha calabresa. Neste momento acho que eu não conseguiria encarar uma anchova nos olhos.

 

— Pedimos por telefone — Fletch falou para a pessoa no balcão. — Três pizzas no nome de Ralton.

O balconista suado não sorriu para ele. — Vai levar alguns minutos.

Em seguida o balconista pegou o telefone entre dois fornos. Discou e ficou de costas.

Havia mais seis pessoas esperando. Quatro homens — dois de calção, um em roupa de trabalho, um de terno. Um adolescente de black-tie. Uma garota de short, tomara-que-caia e sapato roxo de salto alto. Também estava de batom e sombra nos olhos.

— Não tem medo de derrubar pizza no seu casaco? — O homem de calção de corrida perguntou ao adolescente.

O garoto respondeu, aparentemente de modo cortês, num francês rápido.

— Ah — o homem falou.

Fletch abriu a porta da geladeira e pegou um pacote de seis Seven-Up. Colocou em cima do balcão.

— Schwartz? — chamou o balconista. O garoto de paletó pagou a pizza e saiu.

O homem em roupa de trabalho foi o próximo a pegar sua pizza. Depois um dos homens de calção. Uma mulher vestida de tenista entrou e deu o nome Ramirez. A jovem saiu da pizzaria arrastando seus saltos, carregando sua pizza como se fosse uma bandeja de canapés.

— Deve fazer meia hora que ligamos — Fletch disse para o balconista. — O nome é Ralton.

De novo o balconista não sorriu. — Vai levar alguns minutos.

O homem de terno pegou sua pizza.

Dois policiais entraram relaxadamente. O carro deles estava parado bem na porta. Não deram nenhum nome.

Eles olharam para o balconista.

O balconista apontou com a cabeça para Fletch.

Os caras da polícia pularam em cima de Fletch, fizeram-no girar e o empurraram.

Fletch se viu encostado no balcão, mãos separadas, pés afastados. Um deles, com a mão na nuca de Fletch, forçava sua cabeça para baixo. Os dedos do outro percorreram a camiseta de Fletch, o calção, examinaram o punho de suas meias de esporte.

— O que foi que ele fez? — perguntou o homem de calção de corrida.

Os olhos da mulher vestida de tenista se arregalaram. Ela deu um passo para trás.

— Estava assaltando a casa — respondeu um deles.

— Não! — o homem disse. — Tá parado aí há quinze minutos!

— Ele ia assaltar a casa.

— Ele deu um nome! Estava esperando uma pizza! Eles puxaram os braços de Fletch para trás.

Ele sentiu o metal frio das algemas em volta dos pulsos, ouviu o click de fechá-las.

— Ele assaltou um monte de lugares — falou um dos policiais. — Bares, armazéns. Depois que chegasse sua pizza, ia assaltar a casa.

— Ah — disse o homem.

O outro cara da polícia falou: — Até um assaltante tem que comer, sabe.

— Ele não parece um cara ruim — disse o homem de calção de corrida. — Rápido. Vocês nunca pegariam ele se começasse a correr.

— Bem — disse um dos policiais. — Pegamos.

O homem disse para Fletch: — Seu nome é Ralton?

— Não.

— Pra mim fecha — disse o homem. — Ele deu o nome de Ralton. Nome falso.

— O nome dele é Liddicoat — disse um dos policiais. — Alexander Liddicoat.

— Esse deve ser falso também — disse o homem.

— Ramirez? — chamou o balconista.

A mulher em traje de tênis pagou sua pizza.

— Vamos — disse o policial.

Os dois, pendurados em volta de Fletch, esperaram a mulher passar pela porta com a pizza.

— Será que a gente pode levar a minha pizza? — Fletch perguntou. — Dou um pedaço pra vocês.

— Obrigado — um policial respondeu. — Acabamos de pedir uma quentinha de comida chinesa.

Do lado de fora, puseram-no com cuidado no banco de trás da patrulha e bateram a porta.

Ao se acomodarem no banco da frente, o cara ao lado do motorista olhou para o relógio. — Onze e quarenta. Se a gente levar ele até o centro, não vai dar pra chegar a tempo de encerrar o expediente à meia-noite.

— O que ele tem de tão especial?

— O despacho dizia pra levar ele direto pra central.

— É — o motorista ligou o carro. — a gente mantém um serviço de táxi.

— Eu podia evitar a viagem — Fletch disse. Ele estava tentando acomodar as mãos algemadas na altura dos rins, contra o banco do carro. — Meu nome não é Liddi-não-sei-o-quê. Tenho a identidade na minha carteira.

— Claro, aposto que sim. Pode ir andando, Alf.

— Vocês pegaram o cara errado — disse Fletch.

O policial ao lado do motorista disse: — Doze anos na ativa e eu ainda não consegui prender o cara certo.

O carro começou a andar. — A gente não leu pra ele os direitos dele.

O outro olhou pela grade para Fletch.

— Você conhece seus direitos?

— Claro.

— Que bom! Ele conhece seus direitos, Alf.

— Já foi um castigo cruel e incomum — disse Fletch. — Deixar um cara sentir o cheiro de pizza por quinze minutos e depois não deixar ele comer nem um pedacinho.

— Conte pro seu advogado.

A patrulha passou por cima da calçada do estacionamento da pizzaria para entrar na estrada.

Fletch disse: — Próxima parada: guilhotina.

 

— Fletcher?

No beliche da cela fedendo a desinfetante, Fletch suspirou aliviado. Ao abrir-lhe a porta, o guarda o chamara de Fletcher. A confusão referente a quem ele era estava acabada. Agora podia voltar para o seu apartamento e dormir um pouco.

Ele ficou em pé. Calculou que devia ser mais ou menos quatro da manhã.

Ficara deitado em seu beliche, cerca de três horas ouvindo dois homens vomitar alternadamente, um velho choramingar, um outro cantar repetidas vezes por mais de uma hora o refrão I'll be blowed, Lucy, if you will... Na cela ao lado, dois michês discutiam infindável e apaixonadamente a respeito de barbeiros. Um deles tinha perguntado como conseguir um emprego no Atendimento a Amigos Ben Franklyn. Fletch lhe respondera que não sabia, que lá ele era só um meganha. O companheiro de cela de Fletch era um homem corpulento de meia-idade, de calças brancas e sandálias, que se dizia professor de uma escola. Segundo ele, na tarde anterior, apunhalara um de seus alunos. Havia sangue em suas calças. Depois de contar isso para Fletch, ele se virará no beliche e pegara no sono.

— Vamos — disse o guarda. — Anda.

— Estou livre pra ir?

Ele seguiu o guarda pelas celas até a porta de aço.

Enquanto Fletcher estava sendo fichado como Alexander Liddicoat por mais de vinte casos de assalto armado, sua carteira e seu relógio lhe foram tirados. Fotografias de Alexander Liddicoat estavam com os mandatos de busca. Olhando-as de cabeça para baixo, Fletch viu uma remota semelhança. Enquanto as entregava, viradas, ao oficial encarregado do ficha-mento, deu sua identidade, carteira de motorista e cartão de imprensa, provando quem era. Sem na verdade olhar para as fotos da identidade, o encarregado acusou-o também de ter roubado a carteira de Irwin Maurice Fletcher.

No outro lado da porta de ferro, Fletch dobrou à direita, indo das escadas em direção ao balcão de fichamento e ao saguão.

O guarda pegou-o pelo cotovelo. — Por aqui, por favor.

Foram para a esquerda, passando por diversas salas. A maioria delas estava com as portas abertas, as luzes acesas e tinha pessoas trabalhando.

Chegaram a uma porta fechada no final do corredor. O guarda abriu-a com uma chave. Acendeu a luz.

Havia seis cadeiras em volta de uma mesa comprida de reuniões e mais nada na sala. Bem no alto da parede do fundo havia uma janela com grades.

— Espere aqui — disse o guarda.

— Por que está me prendendo ainda? O guarda fechou a porta atrás de si.

Fletch apagou a luz, escorregou para cima da mesa no escuro e pegou no sono.

 

A luz se acendeu. A porta estava aberta.

O tenente Gomez estava parado em cima de Fletch.

— Você se sente em casa onde quer que esteja, não é?

Fletch sentou-se. — Que horas são?

Ele estava com frio.

— Cinco e meia. A piscina só abre daqui a meia hora. O prefeito e seus assessores estão lá embaixo agora, limpando-a pra você. Eles sabem que você gosta de dar um mergulho ao natural todas as manhãs.

— Prazer em vê-lo. — Fletch ficou sentado em cima da mesa. — Pega cedo no trabalho.

— To trabalhando num caso importante — Gomez disse. — O assassinato de Donald Edwin Habeck. Sabe alguma coisa sobre isso?

— Sim. Li qualquer coisa sobre o assunto nos jornais.

— Fletch bocejou e esfregou os olhos. — Pegou o revólver?

— Que revólver?

— O revólver que deixei pra você ontem à noite. Deixei pra você lá em cima, na portaria, com um bilhete.

Gomez repetiu: — Que revólver?

— Acho que é o revólver que foi usado pra matar Habeck. Eu achei...

Gomez olhou para a porta.

Biff Wilson estava parado na porta, tão barbeado e vestido como sempre, enrugado e amarrotado.

— Oi, Biff — disse Fletch. — Trouxe café?

Biff bufou. — Acho que eu já fui um cara esperto. Será que eu era tão esperto assim, Gomez?

— Você nunca foi um cara esperto — Gomez disse.

— Sempre o coroinha.

— Foi o que pensei. — Biff fechou a porta. — Não sei nem se eu me lembro exatamente do que é que se faz com um cara esperto.

— Na polícia, a gente corta o saco dele — Gomez sugeriu. — Será que todos os caras de jornal têm saco?

Biff parou mais perto de Fletch. — Olá, garoto. Ouvi dizer que você foi encarcerado.

— Caso de engano de identidade — disse Fletch. — Assaltante chamado Liddicoat. Pelo que parece, a foto dele foi distribuída por todos os bares, pizzarias...

Biff disse para Gomez: — Dá pra fazer a acusação durar um tempinho?

— Um tempinho.

— Não dá — Fletch falou. — O encarregado do ficha-mento já confirmou a identidade na minha carteira. É por isso que vocês sabem que estou aqui, certo?

— Carteira? — Biff perguntou a Gomez.

— Ele não tinha carteira — disse Gomez. — Só um relógio de pulso roubado.

Biff concordou com a cabeça, olhando para Fletch.

— Estávamos falando sobre um revólver — Fletch disse. Biff olhou para Gomez. — Que revólver?

— Um revólver que eu achei — disse Fletch. — Do lado de fora da Tribuna. Entreguei pro sargento Wilhelm Rohm ontem à noite, com instruções de dar pra Gomez.

— Não sei nada sobre arma nenhuma — disse Gomez.

— Você é um bom menino. — Biff alisou a perna de Fletch com a palma da mão. — Um bom menino mesmo.

Fletch moveu a perna.

— Músculo. — Biff apertou os dedos contra a coxa de Fletch. — Veja só esse músculo, Gomez.

Fletch desceu da mesa e se afastou.

— E o que diz esse calção? — Biff estreitou os olhos.

— Não consigo ler direito. Você consegue, Gomez? É algum time de corrida de colégio?

— Atendimento a Amigos Ben Franklyn — disse Gomez.

— Futebol — disse Biff. — Acho que significa um time de futebol.

— Essa é outra história — disse Fletch.

— Eu realmente gostaria de saber o que você descobriu

— disse Biff.

— Montes — falou Fletch. — Você escreve uns obituários de merda, Biff.

— Por que diz isso, Liddicoat?

— Primeiro, Jasmine e Donald Habeck nunca se casaram. Ele nunca se divorciou de Louise.

— Ah, é? Que mais?

Fletch olhou de Gomez para Wilson e balançou negativamente a cabeça.

— O que mais? — perguntou Biff.

— Já falou com Gabais?

— Quem?

— Felix Gabais. Corruptor de menores. Um ex-cliente de Habeck. Passou onze duros anos na prisão. Foi solto a semana passada.

— Você já falou com ele?

— Ainda não.

— Você tá na minha cola a semana inteira, garoto. Falou com todo mundo da família Habeck e, pelo que tô sabendo, você já me furou até mesmo com o irmão no mosteiro. Pra quê, Liddicoat?

De novo, Fletch balançou negativamente a cabeça. — Isso não foi trabalho de quadrilha, Biff. Você tá na pista errada.

— Você sabe mais que nós, hein? O jornal botou você nessa história?

— O ângulo do museu.

— Ah. O ângulo do museu. Faz sentido pra você, Gomez?

— Nenhum, Biff.

— Acho que esse garoto tem que sumir. Gomez disse: — A gente pode fazer ele sumir.

— Algum tipo de rolo burocrático — disse Biff. — Sabe, garoto, uma vez que você enrola com os homens, qualquer acidente pode acontecer.

— Claro — Gomez disse. — A gente bota ele no furgão pro pinel hoje de manhã. Vai levar bem uns dez dias antes que alguém desemaranhe o rolo burocrático.

— O que você ganha com isso? — perguntou Fletch. — Alguns dias. Acha que vou calar a boca?

— Não pode culpar a gente por causa de um rolo burocrático — disse Biff. — Eu nem sequer estou neste prédio hoje de manhã. Você também não tá aqui, tá, Gomez?

— Nada. Nunca chego tão cedo.

— Esse cara é esperto mesmo. Nossa oferta de passar uns dias de férias no pinel não assusta ele. A gente devia enfiar uma acusação na real em cima dele, Gomez. Tirar ele das minhas costas pra sempre. É isso que se faz com os caras espertos? Eu esqueço.

— Geralmente, Biff, quando você quer derrubar alguém, tem que derrubar com muita força pra que ele não possa levantar dando porrada.

— Só. — Embora falasse de modo suave, as veias do pescoço e das têmporas de Biff pulsavam visivelmente. Seus olhos brilhavam feito pedrinhas pretas no fundo de um riacho ensolarado. — Já ouvi isso antes em algum lugar. Vamos derrubar ele com uma acusação tão boa que ele não consiga levantar dando porrada. Vejamos. Foi pego como Alexander Liddicoat. Enquanto estava sendo fichado, descobriu-se que ele tinha no bolso uma quantidade de pó de anjo de traficante.* Você tem algum PCP disponível, Gomez?

 

(*) No original: angel dust — penciclidina ou PCP, alucinógeno tranqüilizante. (N. T.)

 

— Claro — disse Gomez. — Exatamente pra ocasiões como esta.

Fletch estava com calor. — Tudo porque estou na cola de sua matéria, Biff?

— Porque você é um cara esperto — disse Biff. — Não tem espaço prós caras espertos no jornalismo. Tem, Gomez?

— Você sempre foi um coroinha — Gomez disse a Biff.

— A gente segue as regras, garoto. Você é condenado por porte de PCP, Fletcher, e acho difícil que John Winters ou Frank Jaffe queiram continuar vendo você esvaziar os cestos de lixo pra Tribuna. Ou pra qualquer outro jornal.

— O que é que você quer que eu diga? — perguntou Fletch. — Que vou me retirar e ser um bom menino?

— Muito tarde pra isso — Biff falou. — Cheguei à conclusão de que você é muito espertinho. Queremos que você suma.

— Devo dizer que vou embora?

— Você vai embora — disse Gomez. — Às custas dos contribuintes. A gente cuida disso.

Fletch deu risada. — Você acha que eu não volto nunca mais, Biff?

Biff olhou Gomez de relance. — Talvez. Talvez não. Quem se importa?

— Você vai se importar.

— Duvido. Você passando alguns anos trancafiado a partir de agora, vai receber um trato daqui, outro dali, e quando sair não vai sequer conseguir caminhar direito. Não serve como ameaça. — Biff falou para Gomez: — Descubra esse revólver de que ele tá falando. Onde está o PCP?

— Tenho um pouco no armário.

— Pega lá. A gente vai pra tua sala e escreve a ficha desse garoto.

— Tem café de verdade no escritório. A gente toma um café de verdade.

— Eu poderia usar um pouco.

Fletch disse: — Cruzes, Biff! Você tá falando sério!

— Eu alguma vez fiz alguma piada?

— Ann McGarrahan disse que você é uma merda.

— Ela deve saber. O maior erro da vida dela foi casar comigo. Todo mundo diz isso.

Gomez riu. — Você é a causa dela nunca ter tido filhos, Biff?

— Eu tava no meio. A moça não gostava de trepar com ninguém com bafo de uísque.

Fletch disse: — Cristo!

— Acho que não vou te ver por aí mais, garoto — disse Biff. — Não dá pra dizer que vou sentir saudade.

— Biff...

— Alguém vem apanhar você logo — Gomez falou. — Boa espera. Vai levar um bocado de anos até você ficar sozinho de novo.

— A gente vai lá produzir seus documentos. — Biff segurava a porta para Gomez. — E pode acreditar, Gomez e eu somos os melhores produtores do mundo.

Fletch ficou parado sozinho na sala iluminada por uma luz fosforescente. A porta se fechara. O som dos passos de Wilson e de Gomez foi sumindo no corredor. Das celas vinham uns gritos abafados.

Louise Habeck cruzou seu pensamento.

Fletch levantou os olhos para a janela suja e com grades. Além das grades na parte de fora, um fio eletrificado corria da janela fechada para a parede.

Não havia encanamento de ar condicionado ou calefação.

As paredes eram pintadas da cor do cimento.

Tênis verde, cabelo azulado e um vestido florido...

Era loucura. Fletch foi até a porta e girou a maçaneta. Empurrou.

A porta se abriu.

Ele olhou para o lado de fora. O corredor estava vazio.

Com o coração andando mais rápido que seus pés, ele caminhou tranqüilo pelo corredor e subiu as escadas.

Não havia ninguém no balcão do fichamento.

Na portaria, a mesma mulher negra que chorava na noite anterior estava agora em silêncio, sentada num banco. O sargento no balcão da entrada lia a seção de Esporte da Tribuna.

Fletch levou um instante até que chamasse a atenção do sargento. Por fim, ele levantou os olhos.

— O tenente Gomez e Biff Wilson estão tomando café na sala do tenente — disse Fletch. — Eles gostariam que você mandasse buscar umas rosquinhas. Com geléia.

— Certo. — O sargento tirou o telefone do gancho e discou três números. — O tenente quer umas rosquinhas — ele falou ao telefone. — Não. Tem o café dele. Você conhece Gomez. Se não é tinta, não é café.

— Rosquinhas com geléia — disse Fletch. O sargento falou: — Rosquinhas com geléia.

 

— Central de Informações da Tribuna. Nome e código, por favor.

— Oi, Pilar. Tudo bem?

— Bom dia. Aqui é Mary.

— Ah. Bom dia, Mary.

— Nome e código, por favor.

Embora com uma fome devastadora, Fletch estava satisfeito de ao menos estar de volta a seu próprio carro, indo em direção a seu próprio apartamento. — Dezessete-noventa-barra-nove. Fletcher.

Enquanto correra para o ponto de ônibus, olhos atentos às lojas à procura de um lugar aberto para tomar café, Fletch se dera conta de que estava sem dinheiro. A polícia havia roubado sua carteira e suas chaves. A idéia de roubar um armazém e a culpa recair sobre Alexander Liddicoat o divertiu.

Seu carro estava no estacionamento de uma pizzaria na praia. Pediu carona. O primeiro motorista que o levou era um homem de meia-idade, que vendia instrumentos musicais. Tentou fazer com que Fletch se interessasse por um roxo-phone. Depois levou-o uma caminhonete cheia de garotos indo para a praia. Àquela hora da manhã já passavam um cigarro de maconha e tinham terminado um litro de vinho branco. Um grupo de jovens indo à praia numa bela manhã. Passava das nove quando Fletch chegou até seu carro, retirou o aviso de multa, ligou-o com arames e iniciou seu caminho de volta para o apartamento.

— Recado pra você — disse Mary ao telefone. — Alguém de nome Barbara ligou. Parece um recado particular.

— Sim?

— Nós não estamos autorizados a receber muitos recados particulares, você sabe.

— Ora, Mary, vamos lá. Não dificulta. — A fome, o calor da manhã e o sol forte faziam doer os olhos e a cabeça de Fletch.

— O recado é: "Você comeu a pizza toda sozinho? Tudo está perdoado. Por favor, ligue".

A referência à pizza fez seu estômago roncar.

— E então? — perguntou Mary.

— Então o quê?

— Você comeu a pizza toda sozinho?

— Mary, essa é uma pergunta pessoal. Sem perguntas pessoais, por favor.

— Você comeu. Acho que você comeu a pizza sozinho. Não existe nada pior do que esperar alguém trazer uma pizza pra você e esse alguém comer tudo sozinho.

— Mary, você tomou café hoje de manhã?

— Sim.

— Eu não.

— Você não precisa de café depois de toda pizza que comeu.

— Tem algum outro recado?

— Eu não te perdoaria. Sim. Ann McGarrahan quer saber de você. O recado é: "Fletch, sei que você está sobrecarregado com a pauta atual, mas por favor me ligue. Cuidado com B. W. e outras doenças venéreas".

— Tá bom.

— O que é B. W.?

— Mary, essa é outra pergunta pessoal.

— Nunca ouvi falar de B. W.

— Sorte sua.

— Pensei que eu conhecesse todas as doenças venéreas. Isto é, pensei que soubesse.

— Ótimo. Agora preciso do endereço de Felix Gabais. — Ele soletrou o nome para ela. — Distrito de Santo Inácio.

— Você não vai me prevenir contra B. W.?

— Mary? Fique longe de B. W.

— Quero dizer, como é que se pega?

— Metendo seu nariz em lugares onde não é chamada.

— Ah, a gente nunca faz esse tipo de coisa. Existe apenas um Gabais no bairro de Santo Inácio. Primeiro nome: Therese.

— É isso aí. Ele mora com a irmã.

— É rua Twig, número 45447. O mapa mostra que é meio quarteirão a oeste de um revendedor de carros na esquina.

— Obrigado. Mais um: preciso do endereço de Stuart Childers. — Soletrou o nome de novo.

— É horrível — ela disse. — Alguém com um nome desses merece B. W.

— Mary...

— É estrada Keating, 120. O mapa mostra que é o Condomínio Harndon. Metido.

— Certo. Obrigado.

— Eu acho que não devia contar isso pra você, mas o senhor Wilson ligou há pouco. Ele queria esse endereço também.

— Que endereço?

— O de Santo Inácio. Therese Gabais.

— Mary, você já pegou B. W.

— Ah, não diga isso.

— Cuidado, Mary. B. W. pode deixar você de cama um bom tempo.

— Isto é uma secretária eletrônica — Fletch falou ao telefone depois do terceiro toque. — Não posso atender agora...

— Fletch! — Barbara gritou pelo telefone. — Você não tem uma secretária eletrônica!

— Ah — ele disse. — Esqueci.

Fletch não tinha muitas coisas. Na parede em frente ao sofá de segunda mão, caindo aos pedaços, onde estava sentado, havia posters da baía de Cagna, na Ri viera italiana, de Cozumel, no México, de Belize, de Nairóbi, Kenya, de Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil. Ele esperava ter algum dia na sua parede fotos realmente decentes, uma coleção propriamente dita. Algum dia, talvez tivesse paredes grandes o suficiente para abrigar boas reproduções das pinturas de Edgar Arthur Tharpe Jr., o artista ocidental.

— Você tá bem?

— Claro. — No prato lascado sobre a mesinha lascada à sua frente havia restos do café da manhã, que fora composto de ovos mexidos, waffles e bacon. — Por que pergunta?

— Você saiu pra comprar pizza ontem às onze da noite e não voltou mais!

— Oh! Céus! Não voltei! Tem certeza?

— Você nem sequer ligou!

— Eu não comi a pizza toda sozinho. Eu não cheguei nem a comprar a pizza.

— Você sofreu um acidente ou alguma coisa assim?

— Sim, alguma coisa assim. Como é que você tá me ligando? Cecília arranjou finalmente um cliente prós culotes?

— Estou fazendo um favor pra ela. Na drogaria. Quase morremos de fome.

— Perdeu os quatro quilos que você queria?

— Acho que sim.

— O que você e Cindy fizeram?

— A gente acabou indo pra cama. Que mais podíamos ter feito? Esperamos por você até depois da uma.

— Cindy passou a noite lá? Dormiu lá?

— Claro. O que você queria? A gente tinha bebido, lembra? Ela sabia que não devia dirigir.

— Pois é.

— Que puta falta de consideração a sua. Podia ao menos ter ligado.

— Podia?

Pendurada no teto, atravessando a sala, estava sua prancha de surf, uma maravilha, uma alegria perene.

— Ficamos preocupadas. Liguei pra pizzaria. O cara disse que nenhum Fletcher tinha estado lá.

— Você fez o pedido em nome de Ralton.

— Ah, é. Eu esqueci. Onde você passou a noite?

— É uma longa história. Se importa se eu contar depois?

— Tem a ver com Habeck?

— Acho que sim. — Fletch olhou para o prato. Sua dor de cabeça tinha passado.

— Você leu a matéria de Biff Wilson hoje de manhã?

— Sim. — A Tribuna estava ao lado de Fletch no sofá. Não dizia que o revólver, possível arma do crime, tinha sido entregue à polícia na noite anterior.

— A matéria dele indica ostensivamente, Fletch. que Habeck foi apagado pela Máfia porque sabia demais.

Fletch suspirou: — Talvez ele esteja certo.

— Quero dizer, francamente, Fletch, há quanto tempo ele cobre polícia para a Tribunal

— Há muito tempo.

— Deve ter contatos por tudo quanto é lugar.

— Deve ter.

— Digo, é claro, as pessoas devem falar com ele: a polícia, mafiosos, informantes. Ele provavelmente tem isso tudo coberto.

— É provável.

— Faz pouco sentido você ficar acordado a noite inteira por conta disso. Não faz sentido nenhum você perder o emprego por conta disso.

— Escuta, Barbara. Eu tenho que fazer a barba, tomar banho e ir trabalhar.

— Comeu a pizza toda, foi dormir tarde e eu vou me casar com você?

Com um toque de seus dedos, Fletch jogou a Tribuna no chão.

— Eu pensaria duas vezes se fosse você — disse Fletch.

— Tarde demais. Estou no meu enésimo pensamento. Lembre-se de que vai jantar com minha mãe hoje.

— Certamente.

— Às seis horas na casa da praia. Se você decepcioná-la outra vez, todas as dúvidas que ela tem em relação a você com certeza vão se tornar convicções.

— Com certeza?

— Vai estar lá?

— Claro!

— Tá bom. A propósito: Cindy disse pra você ligar pra ela no 555-2900 ao meio-dia e meia em ponto. Ela mesma vai atender.

— Diga de novo? Esse não é o número de Ben Franklyn.

— Não. Ela falou que só vai estar nesse número a essa hora esperando você ligar. É 555-2900. Ela vai te contar algumas coisas.

— Tudo bem.

— Fletch, hoje é quarta-feira.

— Já?

— Vamos nos casar no sábado. Você tem que estar no jantar hoje imprescindivelmente.

— Tudo bem.

— Tem coisas pra serem discutidas.

— Tudo bem, tudo bem.

— Preciso voltar pro trabalho — disse Barbara.

— É, eu também — concordou Fletch.

 

— Sou da Tribuna — disse Fletch. A mulher que abriu a porta do apartamento térreo da rua Twig, 45 447, estava numa cadeira de rodas. — Você é Therese Gabais?

Seus olhos eram pretos, seu rosto cinza, seu cabelo sujo e despenteado. — Não podemos pagar um jornal diário. Não gosto deles também, não.

— Mais alguém da Tribuna esteve aqui?

Ela balançou a cabeça numa negativa.

A revendedora de carros na esquina da rua Twig parecia estar com uma promoção especial para sedans enferrujados de seis lugares. Fletch estacionara perto da revendedora e tinha caminhado meio quarteirão, desviando-se do lixo e das latinhas vazias na calçada. Quase tropeçou nas pernas de uma mulher que dormia na porta de uma casa.

Ele ficou de olho em algum carro da polícia por perto ou mesmo o de Biff. Enquanto tinha tomado café, falado com Barbara, feito a barba e tomado banho, sua campainha não havia tocado. Se tivesse, seu plano era sair por uma janela dos fundos e descer pela escada de incêndio. Ter sido preso por engano como Alexander Liddicoat por mais de vinte assaltos fora até meio divertido. Mas ter Wilson e Gomez planejando acusações verdadeiras contra I. M. Fletcher por envolvimento com drogas era totalmente alarmante. A polícia não tinha aparecido no apartamento de Fletch. Agora, na rua, também não era visível.

Mas Wilson e Gomez tinham todas as razões para acreditar que Fletch apareceria no apartamento de Gabais.

— Alguém já esteve aqui? — perguntou Fletch. — A polícia?

De novo a mulher balançou negativamente a cabeça. Seus olhos eram inexpressivos.

Ela levou a cadeira para o lado. Possivelmente o que faria a seguir seria fechar a porta na cara dele.

Segurando a porta aberta, Fletch deu um passo para dentro do fétido apartamento. — Estou procurando por Felix Gabais.

Uma súbita expressão tomou conta do olhar dela quando levantou os olhos para ele. Ela estava surpresa por ainda vê-lo ali. — Ele também não quer jornal.

Fletch fechou a porta. — Preciso falar com ele.

Havia uma cama, um colchão e alguns cobertores sobre uma caixa na sala.

Sem se mexer, a atenção da mulher desviou-se para uma televisão ligada num programa de auditório sobre um móvel escuro e pesado.

Fletch entrou pela única porta para a outra sala — uma cozinha ou algo similar. Havia uma pequena geladeira, aparte de cima de um fogão, uma pia. Tudo imundo. A pia transbordava de latas de comida vazias. O cheiro de lixo e fezes era insuportável. No chão, contra a parede, havia um colchão de casal sem travesseiros ou cobertores.

Havia entre o colchão e a geladeira uma pesada poltrona estofada, marrom.

E na pesada poltrona havia um homem pesado. Seu olhar estava fixo no canto da parede atrás do fogão. Havia uma garrafa de cerveja pela metade num dos braços da poltrona. Havia restos de comida e bebida na camisa e no casaco preto de presidiário.

Fletch sentou-se na ponta do colchão. — O que você tem feito desde que saiu da prisão?

— Comprei esta poltrona. — A mão livre de Felix Gabais se ergueu e abaixou sobre o braço da poltrona. — Comprei aquele colchão. — Comprei cerveja. — O balcão no canto, ao lado da geladeira, tinha mais de vinte garrafas de cerveja vazias. — Cerveja é a única coisa que me enche agora.

— A papada no pescoço de Felix mudou de posição enquanto ele virava a cabeça para Fletch. — To me dando bem na primeira semana em liberdade.

— Parece que não faltou comida na prisão.

— É, mas ela sofreu. — Felix deixou cair a garrafa em direção à outra sala. — Ninguém cuidou de minha irmã nos últimos doze anos. Esmolas vale-refeição. Manda garotos trazerem comida de gato. Saca? — Fletch concordou com a cabeça. — Olha este lugar. O senhorio tirou dela a sala e o outro quarto. Só porque não podia botar ela pra fora. Tá vendo essa parede que ele levantou? — Com a quantidade de pó na parede, Fletch imaginou que já estivesse lá pelo menos nos últimos onze anos. — Acha isso justo? — Fletch não opinou.

— O que você vai fazer a respeito? Ela não fez nada de errado. Por que tem que sofrer?

— Você fez alguma coisa de errado?

Os olhos de Felix se encheram de lágrimas no mesmo instante. — Eu não devia ter ido pra cadeia. Eu tava pirado. Como é que você chamaria alguém que incomoda criancinhas pequenas?

— Pirado.

— Claro. Eles tinham que me enjaular. Não podiam me deixar solto. Tinham que me deixar em cana. Até que eu não prestasse mais. Tinham que acabar comigo. Só que eu não entendo de cana. Isso é um insulto pra uma pessoa pirada.

— No seu julgamento você não alegou insanidade.

— No meu julgamento eu não disse nada! — Felix não se esforçou para controlar as lágrimas. — Você sabe como se sente um réu num julgamento? — Fletch balançou negativamente a cabeça. — Ele fica pasmo. Ele tá chocado com as coisas que tão acontecendo com ele. Ele tá chocado com o que tá ouvindo a seu próprio respeito, com as coisas que tá ouvindo que fez. As pessoas todas falando, falando, falando sobre você e sobre as coisas que você fez. O que elas dizem não tem nada a ver com aquilo que você sempre pensou a respeito de você mesmo. Durante todo o tempo que falam, você se sente pirado. Você fica embasbacado, entende?

— Seu advogado era Donald Habeck, certo?

— Senhor Habeck. É. Eu podia ter dito um monte de coisas se ele não falasse tanto. Sabe, eu tinha minhas razões. Meu jeito de pensar. Eu podia ter explicado.

— Você podia ter explicado por que atacava criancinhas?

— Eu tinha coisas pra dizer. Eu só tava querendo compensar.

— Como é que você pagou Habeck? Como podia pagar?

— Eu nunca paguei o senhor Habeck. Nem um centavo.

— Não entendi. Por que ele pegou o seu caso?

— Não sei. Um dia entrou na cadeia e disse: "Eu sou seu advogado". Ele nunca me perguntou nada. Nunca me deixou explicar. Eu podia ter explicado por que, do meu ponto de vista, eu era tão bandido. Ele nunca deixou o juiz me perguntar nada. Fiquei sentado lá no tribunal um dia depois do outro, enquanto essa gente toda saía lá de dentro, uma depois da outra, e dizia que tinha me visto fazer isso, fazer aquilo, os dois cachorros, isso, aquilo, isso, aquilo. — Felix levou a garrafa de cerveja à boca, mas não bebeu muito. — Todos os dias a televisão e os jornalistas faziam um estardalhaço. Foram atrás da minha irmã. Deixaram minha irmã louca. Mostraram onde a gente morava. Desenharam mapas. Mostraram os playgrounds, os pátios de escola onde eu costumava andar com os cachorros e encontrar as crianças. — Felix chorava copiosamente. — Os jornais foram canalhas! Deixaram ela imbecil!

— Tô começando a entender.

— Você alguma vez soube do julgamento pelo jornal?

— Você foi o caso que Habeck perdeu. Perdeu feio. Como não ia perder? Um corruptor de menores.

— Por que ele fez isso? Por que deixou o caso se arrastar por tanto tempo? Por que ficou falando tudo pra eles? Por que não deixou eu contar nada?

— Ele usou você pra publicidade. Através de você, ele provou que Habeck podia perder um caso grande. E botar o nome dele no jornal durante todo o julgamento, mostrando que estava perdendo. O que eu não entendo é como você ficou preso só onze anos.

— Taí o ponto. Depois desse castigo todo pra minha irmã, no jornal, depois de acabar com ela, um dia o tal senhor Habeck se levanta no tribunal e diz: "Excelência, meu cliente troca sua apelação para culpado por todas as acusações".

— Porra. E ele nunca contou pra você que ia fazer isso?

— Nunca! Nunca trocou uma palavra comigo. E eu tinha coisas a dizer. Eu não queria incomodar as crianças! Eu só tava fazendo elas felizes!

— Você tava "fazendo elas felizes" com dois cachorros em cima delas?

— Claro! Elas adoravam os cachorros. Elas sempre vinham atrás dos cachorros!

— E você empurrava elas prum canto com os cachorros.

— Nada disso! Você já viu um pátio de escola? As crianças tão sempre nos cantos! Os cachorros não empurravam elas pra lá! Os cachorros iam atrás delas. Elas é que chamavam eles.

Fletch fez um gesto de impaciência com ele mesmo. — — Eu não quero atormentar você.

— Eu entendo tudo! Eu tinha coisas pra dizer. Sabe, tinha esse psiquiatra que passava um monte de tempo comigo na primeira vez que eu fui pra prisão. Sentia culpa por causa da minha irmã. Quando a gente era criança, eu empurrei ela pra cima da traseira do carro do meu pai na hora em que ele dava ré pra sair da garagem. Ela ficou aleijada por causa disso. Meu pai ficou furioso. Foi embora. Nunca mais soube dele. Entende? Eu tava tentando compensar com as criancinhas. Eu tava só fazendo elas felizes. Tentando fazer elas felizes.

— Um psiquiatra disse tudo isso pra você?

— Me ajudou a compreender isso — ele falou. — Eu tava doente. Eu tinha coisas pra dizer naquele julgamento. Habeck só me fodeu e me jogou na lama.

Fletch balançou negativamente a cabeça. — Como você engordou tanto na prisão?

— Nenhuma turma tava a fim de mim. Nenhuma turma de trabalho. Fui mandado pra fazenda da prisão. Eu ia prum canto. Todos eles sabiam essas coisas horríveis a meu respeito por causa dos jornais. — Se o senhor Habeck ia dizer pro júri que eu era culpado de tudo, por que ele deixou os jornais infernizarem minha irmã por tanto tempo?

— Então você matou Habeck.

— Eu não matei ninguém! — Os olhos avermelhados e furiosos de Felix fuzilaram Fletch. — Tinham que me tirar de circulação. Os cachorros estavam mortos! Eu tinha que ser destruído!

— Mas sua irmã não.

Felix apontou com as duas mãos para si mesmo. — Eu vou sair pra rua e matar alguém? Eu sou um caco!

— Você tá bem furioso com Habeck.

— Eu não quero ir pra rua pra nada! O colchão, a cadeira, eu tinha que ter. Que dia é hoje?

— Quarta-feira.

— Quinta. Amanhã. Eu tenho que ir até o escritório de condicionais. Você vem comigo?

— O quê? Não.

— Minha irmã não pode ir. É lá no centro da cidade.

Fletch levantou-se. — Acho melhor você marcar presença com o pessoal da condicional.

— Você não vem comigo?

— Não.

— O que você vai fazer por minha irmã?

— Será que eu já não ouvi essa pergunta em algum lugar?

— Agora que você finalmente apareceu, você simplesmente senta pra ouvir a história da minha vida?

— Eu queria ouvir você dizer que matou Donald Habeck.

— Quem é você?

— I. M. Fletcher.

— Você não é do serviço social?

— Eu disse que eu sou de um jornal. — Fletch estava parado na porta da sala. — Você não me ouviu?

Os olhos de Felix Gabais se arregalaram. Ele tentou levantar-se da poltrona.

Fletch completou: — Da Tribuna.

Felix caiu de novo na cadeira. Ele passou a garrafa de cerveja para a mão direita.

Fletch esgueirou-se pela porta. Na sala escura, ele esbarrou na cadeira de rodas de Therese Gabais.

A garrafa de cerveja se espatifou na moldura da porta.

Therese Gabais disse: — Meu irmão não gosta de jornais.

— Eu entendo.

— Culpa eles por tudo — disse Therese Gabais.

Descendo a rua Twig, Fletch entrou rápido dentro do carro.

Enquanto abria a porta, viu o carro que Biff Wilson usava — com luzes, antenas e TRIBUNA por tudo quanto é lugar — parar em frente ao número 45.447.

 

— 555-2900.

Era exatamente meio-dia e meia.

Havia muitos lugares onde Fletch achava melhor não estar. Seu apartamento era um. A Tribuna era outro. Também achava imprudente dirigir pelas ruas sem a carteira de motorista ou os documentos do carro, que tinham sido tomados pela polícia junto com as chaves e a carteira, e mais imprudente ainda com a polícia disposta a reconhecê-lo como Alexander Liddicoat, o assaltante, e provavelmente procurando por ele como Irwin Maurice Fletcher, o traficante de pó-de-anjo.

Portanto, depois de observar Biff Wilson levantar-se do carro, abotoar o paletó e dirigir-se ao número 45 447 da rua Twig, Fletch foi até o pátio da revendedora de carros. Estacionou seu Datsun 300 ZX na primeira fila de carros usados, de frente para a rua. Todos os carros daquela fila eram maiores que o dele. Além de mais novos e mais limpos.

Não havia vendedor à vista. Sem dúvida tinham saído para reenergizar seus sorrisos e papos com sanduíches e sopa.

Fletch tirou um cartaz preso no vidro de um outro carro e botou no seu. O cartaz dizia: VENDA ESPECIAL! US$ 5,000 E ESTE CARRO É SEU!

Sentado no carro atrás do cartaz de venda, Fletch podia dar seus telefonemas. Podia também observar o número 45 447 da rua Twig.

Cindy respondeu de imediato. — Fletch?

— Você tá bem?

— Claro. Por que não estaria?

— Desculpe pela pizza ontem à noite.

— Não é assim que os homens fazem? Negociam com as mulheres e depois as abandonam, ignorando seus acordos? Isto é, até mesmo pra buscar uma pizza? Não foi surpresa pra mim. Claro, Barbara chegou a falar sobre estarmos famintas e decepcionadas com você.

— Pô, Cindy. Não fique zangada. Se você soubesse o que aconteceu...

— Não quero explicações. Pelo que conheço dos homens, são tão incapazes de falar a verdade pra uma mulher quanto as cobras de cantar uma harmonia a quatro vozes.

— Você já conheceu muitas cobras.

— Eu não estou fazendo isso por você, Fletcher. Estou fazendo por Barbara.

— Os presentes de casamento são pro noivo e pra noiva, não são? Não é por isso que caniços e carretéis são tão freqüentes entre os pacotes?

— Nós todas temos que dar aos homens tudo o que seus coraçõezinhos desejam pra que algumas poucas coisas boas deste mundo sobrem pras suas esposas, tão dependentes. Não é assim que o mundo funciona?

— Você tá fazendo isso pra acabar com Marta.

— Também.

— Onde você está?

— Não é da sua conta.

— Cindy, só to querendo ter certeza de que você tá num telefone seguro. Que ninguém tá escutando.

— Ninguém tá escutando.

— Ótimo. Quem é o dono do Atendimento a Amigos Ben Franklyn?

— Tá bom. Ninfa da Floresta S. A., como já disse. Fui até os arquivos no escritório de Marta. Ela passou boa parte da manhã na recepção. Achei uma referência a duas outras associações. Uma se chama Varas Cungwell.

— É engraçado.

— Hilário. A outra se chama Brinquedos Lingman S. A.*

 

(*) No original: Cungwell Screw e Lingman Toys, Inc. (N. T.)

 

— Alguém tem senso de humor. Qual é a relação entre essas três companhias?

— Eu não sei. Eu não estava esperando encontrar provas de propriedade precisas e completas largadas pela sala de Marta. E você?

— Não. Pelo menos nos dá mais direção do que a gente tinha, eu acho.

— Eu acho que Varas Cungwell e Brinquedos Lingman investem, são proprietários da Ninfa da Floresta.

— Alguma referência aos responsáveis por alguma dessas companhias?

Um pouco mais à frente na rua Twig, Biff Wilson saiu correndo de dentro do número 45 447, batendo a porta atrás de si. Ao olhar para trás, tropeçou e quase caiu nos degraus da escada.

— Marta, presidente da Ninfa da Floresta, vice-presidente de Varas Cungwell e de Brinquedos Lingman. Marietta Ramsin é a presidente de Varas Cungwell.

A porta do número 45447 da rua Twig abriu outra vez. Felix Gabais, garrafa de cerveja vazia em punho, feito uma bola de rúgbi, estava parado na varanda. Ele era realmente uma pessoa massuda.

Felix atirou a garrafa vazia em Biff Wilson, que se apressava em fugir.

A garrafa atingiu Biff na orelha. Caiu na sarjeta e quebrou.

— Piadas por toda parte — disse Fletch.

— E a presidente de Brinquedos Lingman é Yvonne Heller. O tesoureiro dessas companhias todas é um sujeito chamado Jay Demarest. Eu conheço ele.

— Conhece?

A janela térrea do número 45 447 da rua Twig se abriu. Therese Gabais, de sua cadeira de rodas, debruçou-se para fora o mais que podia. Ela sacudia o braço e gritava para Biff, na rua.

— Sim. Ele vem sempre aqui. Usa o lugar como se fosse dele. Nunca paga. Faz exercícios, tem o que quer a hora que quer.

— Como ele é?

Agora Felix se inclinava, da maneira que podia, para a sarjeta e juntava os pedaços de vidro quebrado da garrafa de cerveja.

— Na verdade, em mais de dois anos que o conheço, ele conseguiu chegar a uma boa forma física. Tá na casa dos trinta, não é casado.

— Por que iria casar, com as amigas que tem?

— O quê?

Com a cabeça inclinada, as mãos pressionando a orelha machucada, Biff se virou para atacar Felix.

Felix atirou os cacos de vidro na cara de Biff.

— Nada.

— Eu já saí com ele, sabe, como escort. Quando ele leva amigos pra jantar, essas coisas.

— Como são os amigos dele?

Com os irmãos Gabais aos gritos com ele, da rua e da janela, Biff entrou rápido no carro.

— Perdedores. Entende o que quero dizer? Pessoas que acham que se algum dia conseguirem organizar direitinho suas mentiras vão se tornar tão boas quanto as outras.

— Você acha que Jay Demarest é realmente proprietário?

Biff parecia estar com problemas para ligar o carro.

Todas as luzes do carro da Tribuna começaram a piscar e a girar.

— Acho que ele cuida da contabilidade e faz os pedidos de pó de chifre de alce. O testa-de-ferro.

— Recebe alguns anos de divertimento e serve de testa-de-ferro prós verdadeiros proprietários.

Agora Felix estava esmurrando o carro. Ele chutou o pára-lama traseiro com força suficiente para balançar o carro e deixar um amassado de bom tamanho. Com os punhos colados, ele aterrissou seu peso considerável no porta-malas do carro. Aquilo causou efeito.

— É bom que Marta e ele fiquem de olhos abertos. Acho que eles são apenas empregados.

O motor do carro de Biff pegou.

— Quando é que você pode conseguir o resto pra mim? Amassado em dois lugares, com as luzes piscando e girando, o carro de Biff desapareceu rua abaixo.

Uma pedra que Felix já tinha na mão atingiu o carro e quebrou o vidro traseiro.

Derrapando na esquina, Biff quase bateu num ônibus.

— Ah — disse Fletch. — A vida de repórter tem seus altos e baixos, suas vantagens e desvantagens.

— O quê?

Recolhendo-se lenta e relutantemente de volta à sua depressão, Felix e Therese Gabais gritavam sem parar, gesticulando com os punhos fechados em direção à esquina em que Biff tinha sumido.

— Quando você consegue o resto?

— A hora que você quiser encontrar comigo já vou ter terminado. Tô preparando uma lista de serviços e custos. Já consegui nomes e endereços de alguns clientes. Até passei a mão em algumas fotos e vídeo-teipes pra você.

— Fantástico! Alguma de Marta?

— Claro. Ela não vai além de um cliente de vez em quando. Tem sua vaidade.

— Jay Demarest?

— Isso aí. Marta tirou estas provavelmente pra manter Jay na linha, em caso de necessidade. Boazinha ela, hein? Todos da mesma corja.

— Não quero que você se arrisque, Cindy.

— Não se preocupe. Não se pode fazer doce sem açúcar.

— O quê? Certo! Acho que sim. Você vai estar neste número mais tarde?

A janela e a porta do número 45447 estavam fechadas agora. Therese e Felix Gabais tinham voltado para seu marasmo.

— Se não estiver, volto depois. Não ligue pra mim no Ben Franklyn.

— Claro que não. Marta vai querer saber quando vou trabalhar.

Em frente a Fletch um carro da polícia cruzou a rua devagar.

Alston Chambers disse: — Bom você ter ligado. Estava tentando achar você. Ninguém atende no seu apartamento, ninguém atende na casa da praia. O telefone do seu carro não estava atendendo. Ninguém no jornal parece saber onde você está. Tenho coisas pra te contar. Aliás, onde você está?

— No momento, estou escondido no pátio de uma revendedora de carros usados, disfarçado de manequim satisfeito dentro de um Datsun 300 ZX.

— Como é que não adivinhei?

— Preciso de alguns favores, cara.

— Por que tenho que te fazer favores? Já não estou casando você no sábado?

— Porque to tentando descobrir quem matou seu patrão, cara.

— Ninguém toca nesse assunto por aqui. Bando de calhordas de sangue-frio. Não vai interessar a ninguém de Habeck, Harrison e Haller quem matou Donald Habeck enquanto e a não ser que defendam o acusado, levando sempre em consideração se a pessoa é rica ou boa pra publicidade. Aliás, quem matou Donald Habeck?

— Você é sempre ótimo pra fazer perguntas óbvias.

— É meu treinamento jurídico.

— Não sei quem matou Donald Habeck. Até agora, estive com cada membro da família Habeck e acredito que poderia e teria sido cada um deles se — e é um se bem forte este — soubessem que Habeck os estava deserdando em favor de um museu e de um mosteiro.

— Mosteiro! Que porra é essa?

— Eu esqueci. Nós não conversamos ultimamente. Acredite ou não, meu irmão, acho que o mentiroso uma vez na vida chegou a dizer a verdade.

— E ninguém acreditou nele?

— Claro que não. Acredito que Donald Habeck realmente quisesse dar cinco milhões de dólares pro museu. E, sabendo como usar a imprensa, através de uma declaração nos jornais, forçaria o museu a aceitar a doação e prometer que usaria o dinheiro pra desenvolver uma coleção de arte sacra contemporânea. Nessa manobra astuciosa de Habeck, a Tribuna e eu seríamos involuntários objetos.

— Dizer a verdade uma vez na vida não faz de você um monge, faz?

— Eu acredito que Donald Habeck quisesse entrar pra um mosteiro. Se você consegue acreditar em qualquer uma das minhas fontes insanas, conseqüentemente inconfiáveis, você pode acreditar nisso. Com o passar dos anos, ele se instruiu em termos de religião. Ele não se divorciou da única esposa que teve. Anos antes, ele fez com que ela ficasse eternamente viúva numa clínica. Talvez Donald estivesse tentando relacionar-se com o filho, um monge. Talvez cada um deles tivesse a mesma tendência. Talvez o filho, às vezes acontece, tenha percebido e preenchido as ambições íntimas do pai, instintiva e inadvertidamente, achando que estava se rebelando contra ele. Claro que Habeck também não estava mentindo quando disse que ninguém dava "a menor" pra ele. Ninguém dava. Além disso, Habeck estava lendo romances russos ultimamente, onde abundam ícones e o tema da privação pessoal é muito forte. Especialmente em Dostoiévski.

Houve uma longa pausa antes de Alston falar. — Ah, Fletch?

— Sim, Alston?

— Você também acha que está seguindo métodos comprovados pela polícia nesse caso?

— Claro. Por que não?

A voz de Alston parecia distante no telefone. — Nunca soube que a polícia considerava a literatura mais recente da vítima como prova de qualquer coisa.

— Por que não? Existe uma maneira melhor de saber o que ela está pensando?

— Bom, de volta à dura realidade. — A voz de Alston ficou mais forte. — Você sabe que Habeck e Jasmine nunca se casaram?

— Donald e Louise nunca se divorciaram. Sei que Jasmine não é a senhora Habeck. Sei que não é sequer Jasmine. O que traz à tona um dos favores, meu irmão.

— Jasmine não é o quê?

— Ela acha que está no Programa Federal de Defesa às Testemunhas. Na realidade, enquanto ela testemunhava num julgamento em Miami, Donald Habeck fez ela sumir e desapareceu com ela.

— No meio do depoimento dela?

— Acredito que sim. Aparentemente Donald lhe deu a impressão de que ela não precisava mais depor, de que estava livre pra ir e de que ele era uma espécie de oficial. Jasmine tem um cérebro de uma célula só. Ela acreditou nele porque era um advogado, era gentil com ela, à sua moda, e suponho que porque usava um bom terno.

— Ele tinha bons ternos mesmo — devaneou Alston.

— Não do ponto de vista interior. Você poderia pedir a um agente federal pra procurá-la na estrada Palmiera e tentar regularizar a vida dela? Ela ainda pode ter provas que interessem ao tribunal em Miami, além de boas pistas.

— Isso é um favor? Claro que sim. Sempre me agrada andar de bem com os federais. A minha novidade é que Donald Habeck realmente tinha um testamento, escrito há cinco anos e que nunca foi alterado.

— Esse testamento é válido?

— Sim. Os termos indicam que vai tudo diretamente prós filhos de Nancy Habeck e Thomas Farliegh quando atingirem a maioridade.

— Uau! Os filhos do sapateiro agora usam sapatos! Ou vão usar.

— Não há nada de extraordinário em deixar tudo diretamente prós netos.

— Você não viu esses netos brigarem por causa de um tanque de brinquedo barulhento.

— Demônios, é?

— Se receberem uma herança, então, a violência que essas crianças podem desenvolver é capaz de assustar o mundo ocidental.

— Maravilha. Parece que cada uma delas vai precisar de um advogado.

— De algum tipo.

— E você não acha que o papai delas, o poeta da violência, apagou o vovô?

— O que Tom Farliegh melhor sabe fazer é botar papi-nha no túnel.

— Como é que é?

— A violência não vem de Tom Farliegh. Ele ganha dos parentes.

— Esperava que você fosse derrubar o moleque. Então ninguém da família apagou Habeck?

— Poderia ter sido qualquer um, incluindo Louise, incluindo Nancy, incluindo até mesmo o filho, Robert, que é monge. Cada um, à sua própria maneira, expressa o sentimento: que se foda Donald Habeck. Me incomodam dois pontos — um grande e outro pequeno. O grande é que não consigo conceber que nenhum deles soubesse, antes de Donald ser assassinado, que ele planejava deserdá-los em favor de um mosteiro e de um museu. Claro que é difícil provar o que as pessoas sabem e quando sabem. Mas com a mulher numa clínica, a filha em estado de miséria e o filho num mosteiro, e cada um deles dizendo que não sabia da mudança dos planos de vida, e de morte, de Donald, como não acreditar?

— Um advogado nunca acredita em ninguém. Essa é a verdade.

— O que é estranho e me incomoda é saber como essas pessoas se locomovem. Hoje, nesta era, você acredita que nenhum deles tem carro? O carro dos Farliegh é um brinquedo a mais quebrado no mato da frente. Pra Robert, o uso de veículos é limitado. Louise senta dentro de carros até que seus proprietários voltem e a levem onde quer ir. Nenhum deles parece capaz de programar coisas, tipo um assassinato. Eu não acho que o assassino entrou de carro no estacionamento da Tribuna, mas como teria chegado lá sem carro?

— Me desculpe por dizer isso, Fletch, mas existem outras linhas de investigação que podem ser seguidas. Espero que você esteja deixando alguma coisa pra polícia fazer. Não quero me meter, mas e os sócios de Habeck, por exemplo?

— Você tá certo. Mas a família vem primeiro. Donald Habeck estava prestes a declarar que ia deserdá-los. Esse é um motivo evidente pra um assassinato, não?

—... A lista de seus clientes atuais e passados...

— Pois é. Eu estive com Gabais. Habeck usou-o pra publicidade. Segundo Gabais, arruinou não só a vida dele como a da irmã paraplégica. Odeia Habeck. Mas não acho que Gabais conseguisse se organizar pra cometer um assassinato. Acho que ele desistiu mesmo da sua vida quando viu as cabeças dos cães esmagadas.

—... Stuart Childers.

— Sim. Me fale sobre ele. Que força tinha a prova de que ele matou o irmão?

— Bastante força. Mas infelizmente ele mesmo admitiu todas as provas. Tenho o dossiê em algum lugar aqui na minha mesa. Achei que você ia querer. Tá aqui. Richard era o irmão mais velho, dois anos e meio mais ou menos. Um completo play-boy. Nunca trabalhou, nunca se casou, vivia às custas dos pais, freqüentava a alta roda, destruía um carro esporte por ano. Na última vez que acabou com um carro, a garota que tava com ele morreu. Eventualmente Richard também era acusado de porte de pequenas quantidades de drogas. Foi pai duas vezes. Também foi acusado de vandalismo e estava envolvido num caso de incêndio culposo. Ele tentou queimar um abrigo de barco. Seus pais livraram ele sempre.

— Usando Habeck, Harrison e Haller?

— Sim. Por isso é que eu sei.

— Os pais são ricos?

— Você já ouviu falar da Corretora Childers? A maior, mais antiga e mais rica companhia de seguros da cidade.

— No bulevar City, certo?

— É lá que funciona a matriz, sim. Stuart, por outro lado, era o filho bom, trabalhador, aplicado, aquelas coisas todas. Nunca deu problema, se formou na faculdade com honras, trabalhou para a Corretora Childers todos os verões desde os dezesseis anos. Entrou pra companhia como um corretor qualificado no mês seguinte a sua formatura.

— Bom filho, mau filho, bah — Fletch disse.

Na rua à sua frente, outro carro de polícia passou devagar.

— Depois do último acidente, em que a menina morreu, mamãe e papai Childers largaram Richard na mão. Dinheiro da família pra ele não mais. Ele tinha que se mostrar capaz, arranjar um emprego, não se meter em encrenca, etc, etc.

— Tem sempre um porém, que deve aparecer por aqui nesta história.

— Porém, Richard se mostrou capaz fazendo chantagem com o irmão. Ou tentando fazer.

— O que Stuart tinha feito de errado?

— Conseguiu uma "honra ao mérito" trapaceando. Pagou algum orientador pra escrever a tese. Richard, é claro, nunca se formou, mas tinha contatos na escola. Conhecia o orientador, etc.

— A idéia de se expor, principalmente prós pais, provando que não era em nada melhor que o irmão, deixou Stuart louco.

— Foi o que ele disse.

— Quem disse?

— Stuart. Richard foi encontrado morto na calçada quatorze andares abaixo do terraço de seu apartamento. Havia uma série de sinais de briga no apartamento. Cadeiras viradas, mesas, vidros quebrados, etc. As impressões digitais de Stuart foram encontradas no apartamento. Outras também. Por causa da popularidade de Richard, o veredicto do inquérito foi homicídio por pessoa ou pessoas desconhecidas.

— Sei que Stuart confessou.

— Em alto e bom som. Entrou numa delegacia num fim de tarde, disse que queria confessar, ouviu seus direitos, foi levado pra uma sala em que confessou pra um gravador, esperou que a confissão fosse datilografada e assinou.

— Entra em cena Habeck.

— Donald Habeck entrou no caso imediatamente, assim que os Childers souberam que o filho estava na delegacia confessando o assassinato do irmão. Habeck pediu um exame do teor alcoólico no sangue. Ao que parece, naquele dia Stuart tinha se agarrado com quase um litro de gim antes de ir confessar.

— Então a confissão não valeu?

— Os caras da polícia não só sabiam que ele tava bêbado enquanto confessava, como também lhe deram umas doses de uísque pra manter o porre e deixá-lo falando durante a confissão até a assinatura.

— Como podem ser tão imbecis?

— Veja, é que esses caras tentam arrancar o que podem antes do advogado aparecer. Geralmente é quando fazem seus equívocos.

— In vino veritas não é um princípio do Direito, é?

— Na própria letra de Habeck, leio pra você o que está escrito no arquivo: "No tribunal, manter Stuart sob sedativos".

— Eles drogavam ele.

— Certo.

Fletch lembrou de Felix Gabais dizendo: "Você sabe como se sente um réu no tribunal? Ele está pasmo... O que eles dizem não tem nada a ver com o que você sempre pensou a seu próprio respeito... Você fica embasbacado..." — Talvez não precisassem ter-se incomodado.

— A confissão foi considerada inadmissível pelo tribunal. E mesmo que se soubesse que Richard e Stuart não se davam bem, Habeck argumentou que as impressões digitais encontradas no apartamento do irmão eram uma prova insuficiente para acusá-lo de homicídio, especialmente quando havia lá várias impressões digitais não identificadas.

— Você disse que todos têm direito à melhor defesa.

— Claro.

— Mesmo involuntariamente?

— Não sei. Tudo o que Habeck tinha a fazer nesse caso era levantar uma dúvida razoável. E foi o que fez.

— Stuart Childers confessou!

— Ora, Fletch.

— O que foi?


— Ora, Fletch... Você sempre disse tudo o que queria dizer depois de ter bebido demais?

— Tudo!

— Se eu acreditasse nisso, não estaria falando com você. Ou você comigo.

— Em vino há um germe da verdade?

— Inadmissível. Principalmente quando o vino saiu de um armário dos caras da polícia.

— Eu desisto. — Na ponta do estacionamento, um homem de sorriso produzido e gravata lilás jogou um saco de lanchonete numa lata de lixo. — Em nome de todas as tentativas, acho melhor eu conversar com Stuart Childers. A polícia não vai ouvi-lo de novo.

— Talvez ele continue confessando qualquer crime da cidade só pra ganhar outra dose de graça na delegacia.

— Já ouvi todos os outros loucos da cidade. Não me custa ouvir mais um.

— Tenho uma história pra te contar.

— Chega de histórias.

— Você gosta de histórias sobre advogados.

— Não gosto mais, não.

— Eu lembro que antigamente, quando meu avô era advogado no norte da Califórnia, os advogados costumavam cobrar pelo caso, ao invés de cobrar pela hora. Então, nos Seus escritórios, eles costumavam serrar alguns centímetros das pernas da frente das cadeiras em que seus clientes iriam se sentar. Você sabe, pra fazê-los ficar inclinados pra frente, relatar o caso e sair.

— O que tem de engraçado nisso? As cadeiras das lanchonetes modernas são desenhadas assim.

— O que é engraçado é que quando os advogados começaram a cobrar seus serviços por hora, eles todos compraram cadeiras novas prós seus clientes e serraram alguns centímetros das pernas traseiras. Prós clientes relaxarem e ficarem contando histórias sobre suas últimas férias, entendeu?

O vendedor de carros estava parado na calçada, mãos na cintura e sorriso produzido, procurando fregueses.

Fletch limpou a garganta enquanto Alston ria. — O segundo favor, cara...

— Sim?

— É um favor mesmo. Três companhias chamadas Ninfa da Floresta, Varas Cungwell e Brinquedos Lingman...

— Não creio que estejam mais no mercado.

— Nem nas páginas amarelas. Preciso saber, a relação entre elas. E, o que é mais importante, a quem pertencem.

— Descubro isso já.

— Não precisa. A qualquer momento dentro da próxima meia hora tá bom.

— Não. Sério. Faço agora mesmo.

O vendedor localizou Fletch sentado no Datsun. — Habeck, Harrison e Haller não te dá nenhum outro trabalho, não?

— Não dá mais. Pedi demissão de Habeck, Harrison e Haller há uma hora.

— O quê?

Alston Chambers tinha desligado.

— Então você gosta? — perguntou o vendedor de carros pela janela para Fletch.

— Gosta de quê? — perguntou Fletch.

— Do carro. Quer comprá-lo?

— Detesto ele. — Fletch ligou o carro. — Tá ouvindo? O silencioso tá uma merda!

Para surpresa do vendedor, Fletch engatou o Datsun e saiu rugindo do estacionamento para a rua. O cartaz de venda voou pela janela e aterrissou na calçada, não muito longe dos pés do vendedor.

 

— Você é da Tribuna? — Stuart Childers, de paletó e gravata, parecia jovem e arrumado atrás de sua escrivaninha de madeira. Sua aparência era saudável, apesar das olheiras. Mordia os lábios continuamente.

— Sim. Nome Fletcher.

— Acredito que não veio aqui pra falar comigo sobre seguros.

— Não. O porteiro do seu prédio disse que você estava no escritório.

— Você pode ser a resposta de uma oração. — Stuart Childers pegou um revólver calibre 22 da primeira gaveta de sua escrivaninha. Colocou-o no centro de um bloco grande à sua frente. — Se não me prenderem até as cinco horas de hoje por homicídio, tenho o propósito de estourar meus miolos.

— Uma ameaça e tanto essa. — Fletch sentou-se numa cadeira de frente para a escrivaninha. E acrescentou: — Quando os deuses querem nos punir, eles atendem nossas preces.

O escritório era pequeno, forrado de boa madeira. Havia um tapete turco no chão.

— Você quer descobrir quem matou Donald Habeck, é isso? — Childers perguntou.

— Isso é trabalho da polícia e da justiça — respondeu Fletch.

— A polícia! — zombou Childers. — A justiça! Oh, céus!

— Eu quero a notícia — disse Fletch. — Sou um jornalista. Meu propósito é entender o máximo possível Donald Habeck e saber por que foi assassinado.

— Já avançou nisso?

— Sim. Tenho um bom material.

Childers observou a arma sobre a escrivaninha. — Eu matei Donald Habeck.

— Porra nenhuma.

— A polícia não me ouve.

— Você confessou tudo o que aconteceu na área nos últimos dois meses.

— Eu sei — disse Childers. — Foi um engano.

Fletch encolheu os ombros. — Nós todos cometemos enganos.

— Você não acha que temos necessidade de punição? — Mordendo os lábios, Childers olhou para Fletch procurando uma resposta. Esperou. — Se estamos sendo punidos pelo que fizemos de errado, podemos ao menos ser coerentes, morrer coerentes. — Seus dedos apontaram para a arma. — Simplesmente fazer pow-pow não é a melhor maneira.

Fletch ainda estava calado.

— O que você sabe sobre a morte de meu irmão?

— Sei que você estava bêbado quando confessou na polícia. Sei que Habeck te manteve drogado durante o julgamento.

— Sim. Tranqüilizantes. Habeck disse que sempre os dava prós clientes durante um julgamento. Eu não imaginava como eram fortes. O julgamento passou como um furacão, como um trem ultra-rápido. — Childers mordeu os lábios. — Eu matei meu irmão.

Fletch disse: — Eu acredito que sim.

— Como isso pode ser perdoável? — De novo ele parecia estar fazendo uma pergunta verdadeira para Fletch. — Richard disse que iria me chanta­gear, querer dinheiro pra poder manter sua vida alucinada e desleixada. Mesmo que eu o pagasse, não podia confiar que fosse ficar de boca fechada. Sua necessidade de me machucar e de machucar meus pais era enorme. Meu erro foi ter ficado apavorado diante da ameaça da faculdade, do mundo in­teiro e de meus pais ficarem sabendo que eu tinha trapaceado, que tinha contratado um orientador pra escrever a minha tese. Fui até o apartamento de Richard, não tinha intenção de matar. Brigamos como duas crianças gritonas, choronas, furiosas. De repente, estávamos naquela pequena sacada. De repente, a expressão de seu rosto mudou. Ele caiu pra trás. Caiu.

— Você é muito convincente quando confessa.

— Eu acordei do outro lado do julgamento. Estava morando outra vez no meu apartamento, vindo trabalhar aqui todos os dias. Todo mundo dizia que o incidente tinha terminado, estava encerrado, que eu devia tocar minha vida pra frente. Como podia? O chamado incidente tinha terminado. Meus pais sabiam que eu tinha forjado minha tese. Um filho estava morto. O outro filho o matara. E meus pais sabiam. Eu tinha destruído todo e qualquer sonho dos meus pais, toda a realidade. Eu poderia ter matado eles também. — Pela maneira como olhava para ele, Fletch sabia que a seguir vinha uma de suas perguntas sem resposta. — Meus pais fizeram o que julgavam o melhor, contratando Habeck para livrar minha cara. Mas será que, no fundo de seus corações, eles não se sentiriam melhor se o único filho que lhes restava assumisse a responsabilidade pelo que tinha feito?

Fletch não falou.

— Você pediu uma história — disse Childers.

— Então você entrou numas de confessar.

— Pois é. Já li o bastante sobre crimes pra ser capaz de ir até a polícia e dizer que sou o culpado. A princípio, eles tinham que ouvir. Eu inventava provas contra mim. Esse foi o meu erro. Não eram provas procedentes. Então não acreditavam em nada do que eu dissesse.

— Tem certeza de que você não queria ser a estrela do tribunal outra vez? — Childers lançou-lhe um olhar de ninfeta acusada de ser atraente. — Algumas pessoas vêem nisso um grande barato.

Childers suspirou e olhou para o revólver.

— Stuart, você não pode ser julgado de novo pelo assassinato de seu irmão.

— Eu sei disso. Então matei Habeck.

— Agora a história fica um pouquinho difícil de engolir.

— Porquê?

— O assassinato de seu irmão foi um crime passional. Dois irmãos, que provavelmente nunca tiveram a chance de conversar direito um com o outro, com raiva um do outro, se vêem brigando, se batendo, trazendo à tona todo tipo de fúria de um para com o outro desde o tempo em que usavam fraldas. E um deles morre. Isso é bem diferente do crime bastante intelectualizado de matar a pessoa que impediu você de receber a punição pelo seu primeiro crime.

— É? Suponho que sim. — Ele olhou asperamente para Fletch. — Mas frustração é frustração, não é? Quando você já tirou uma vida, tirar outra é muito mais fácil.

— Isso é um clichê. Pessoas que cometem crimes passionais raramente o fazem de novo. O objeto de sua raiva já está morto.

— Será que eu não podia ter transferido pra Habeck a raiva que sentia pelo meu irmão?

— Continue tentando, Stuart. De alguma forma, você vai conseguir.

— Quem disse que uma pessoa que comete um crime passional, como você diz, não é capaz de cometer um assassinato racional, completamente diferente?

— O que tem de racional em você assassinar Habeck? O filho da puta livrou a sua cara!

— Sim, ele me livrou! — Debruçando-se sobre a escrivaninha, Childers falou com força: — E o filho da puta sabia que eu era culpado! Ele obstruiu a justiça!

— Em seu favor! Você é que tá livre, andando por aí!

Childers encostou-se na cadeira. — Eu não sei muito sobre Direito, mas depois desse fato eu chamaria Donald Habeck de cúmplice do assassinato. Não é correto, de alguma forma? Pense nisso.

Fletch pensou.

— Quantas vezes Donald Habeck foi cúmplice de um crime depois dele ter ocorrido?

Fletch disse: — Acredito que antes de ter ocorrido também.

— O quê?

Fletch lembrou do que disse a Louise Habeck sobre o filho dela, Robert: "Matar o pai faria ele atingir dois objetivos, não? E a resposta dela: Magnificamente!".

— Tá bom, Stuart. Se você atirou em Habeck por causa de sua enorme vontade de ser punido, por que não ficou lá? Por que você não foi encontrado ao lado dele com o revólver?

Childers sorriu. — Você acredita que eu precisava mijar?

— Não.

— Vá dar um tiro em alguém pra ver o que acontece com sua bexiga. — Sentado atrás de sua escrivaninha, Stuart Childers falava como se estivesse discutindo uma apólice de seguro contra incêndio e roubo com algum proprietário. — Eu esperei lá. Achei que alguém tivesse ouvido o tiro. Atirei em Habeck bem no fim do pátio, onde ele tinha estacionado. Atirei nele quando saía do carro. Não havia ninguém por perto. O guarda no portão falava com alguém que estava entrando no estacionamento. Eu podia vê-lo. Esperei. Eu tinha uma vontade terrível de mijar. Quero dizer, precisava muito. Eu não queria passar por todo o processo de detenção com as calças molhadas, sabe. Então entrei no saguão da Tribuna e perguntei ao guarda se podia usar o banheiro.

— Por que não saiu depois? Havia polícia, repórteres, fotógrafos, que se interessariam em ver você em pessoa no local de um de seus crimes.

— Me sentia enjoado. Aflito.

— Isso teria sido compreendido.

Stuart Childers falou algo que Fletch não ouviu.

— O quê?

— Eu queria uma bebida. Alguns drinques antes que eu desistisse.

— Você queria ficar bêbado antes de confessar outra vez, é isso? O que é que você supostamente queria, Stuart?

— Queria ter controle sobre mim mesmo. Fui pra casa, bebi um pouco, tomei um banho, dormi bem. Na manhã seguinte, tomei café. Depois fui pra delegacia confessar. — Childers encolheu os ombros. — Rotina de vida de um cavalheiro, suponho. Fui educado assim.

Fletch balançou a cabeça numa negativa. Em seguida perguntou: — Como é que você sabia que Habeck estaria no estacionamento da Tribuna alguns minutos antes das dez da manhã de segunda-feira?

— Eu não sabia. Matar Habeck foi uma coisa que decidi durante o fim de semana. Então, na manhã de segunda, fui até a casa dele. Cheguei lá pelas sete e meia. Esperei. Ele saiu da garagem dirigindo seu Cadillac Seville azul. Eu o segui. Ele foi até a Tribuna. Enquanto falava com o segurança no portão, eu estacionei do lado de fora e entrei a pé. Foi sua primeira parada. Quando ele abriu a porta do carro, eu atirei.

— Daí você sentiu a irresistível necessidade de mijar.

— Eu estava sentado no carro desde as sete da manhã! Então, depois que mijei, me senti muito enjoado do estômago. Minhas pernas tremiam. Estava com uma horrível dor de cabeça. — Childers esfregou a nuca. — Eu queria um tempo! Não é compreensível?

— Não sei. Você diz que queria ser pego, mas fugiu. Não há prova alguma de que você esteve no local do crime. Tudo o que você me contou até agora — que Habeck dirigiu um Cadillac Seville azul, que levou o tiro no fim do estacionamento quando saía do carro — tudo isso saiu na imprensa.

— Desculpe se minha história confere com a verdade.

— Você não confessou até depois de ter lido os detalhes do crime no jornal.

Childers fixou o olhar no revólver sobre a escrivaninha.

— Tudo bem, Stuart. O que você fez com a arma do crime?

— Você quer saber?

— O quê?

— Eu não sei.

— Você não sabe o que fez com a arma?

— Eu não sei. Quando cheguei em casa, não tinha mais o revólver. Tento lembrar. Eu tava mal...

— Você tinha que mijar.

—... Tentei reconstruir a cena.

— Claro que sim!

— Eu não podia estar com o revólver na mão quando entrei no saguão da Tribuna. Eu devo ter jogado nos arbustos.

Fletch olhou para ele com atenção. — Você jogou nos arbustos na frente do prédio?

— Devo ter jogado.

— Que tipo de revólver era?

— Uma pistola calibre 22.

— Stuart, a sua pistola calibre 22 está na escrivaninha, à sua frente.

— Esta eu comprei ontem à noite. A que usei com Habeck eu já tinha há anos. Meu pai me deu quando fiz dezesseis anos. — Childers sorriu irônico. — Ele nunca deu uma arma pra Richard.

— Ah, meu Deus!

— O quê? Fletch levantou-se.

Childers disse: — Por que a polícia não achou a arma? Fletch disse: — Por que você não achou a arma?

— Eu tentei. Voltei lá pra procurar. Não tava lá. Fletch fez um sinal com a cabeça em direção à arma sobre a escrivaninha. — Posso levar esta?

Childers colocou a mão sobre ela. — A não ser que você queira levar um tiro se tentar.

— Ah, não — disse Fletch. — Isso só vai te dar o trabalho de confessar outra vez!

 

— Alô? Alô? — Fletch ouviu o telefone do carro tocando enquanto abria a porta.

— Aqui é a Central de Informações da Tribuna. Nome e código, por favor.

— Ah, oi, Mary.

— Aqui é Pilar. Código, por favor.

— Dezessete-noventa-barra-nove.

— Senhor Fletcher, está sendo chamado pra uma reunião com Biff Wilson na sala de Frank Jaffe às três horas.

— Ah. É isso que tá acontecendo.

— É isso que tá acontecendo.

O relógio do painel marcava duas e vinte. — Duvido que eu consiga chegar a tempo.

Pilar disse: — O resto do recado do senhor Jaffe é: "Esteja na minha sala às três horas pra essa reunião ou não se preocupe em voltar mais à Tribuna, ponto".

— A vida oferece mesmo suas opções.

— Bem como a Tribuna. Alguma palavra a mais?

— Sim — disse Fletch. — E isso foi tudo o que ele disse.

Olhando a todo minuto para o relógio no painel, Fletch sentou-se no carro estacionado e pensou durante todo o tempo de que dispunha.

Quando ficou muito tarde para chegar à Tribuna a tempo até as três horas, ele deu partida no carro.

Devagar, entrou no trânsito e foi em direção a seu apartamento.

— Alston, sei que você ainda não teve tempo...

— Claro que tive, cara. — O carro de Fletch passeava pela via tranqüila do bulevar em direção à sua casa. — Assim que anunciei minha demissão de Habeck, Harrison e Haller hoje de manhã, uma mulher apareceu e levou todas as pastas da minha escrivaninha. Até mesmo a do caso em que eu estava trabalhando! O que você acha disso?

— Ah, é. Você se demitiu. Me conte como foi.

— Eu não me formei advogado pra me tornar um picareta. Acho que agora mesmo eles não se importariam se eu fosse pra casa e só voltasse sexta pra pegar meu último pagamento. Talvez faça isso. Quer me encontrar no Manolo's pra uma cerveja?

— Alston, acho que não vai ter ninguém empregado no meu casamento no sábado.

— Não conte pro cara do buffet. Aliás, meu amigo, o presente de casamento de seu padrinho vem no futuro. Não se apavore se atrasar um pouco.

— Não sou eu que tenho que te dar um presente por ser padrinho ou coisa parecida?

— Tem?

— Também vai atrasar.

— Desde que o casamento aconteça na hora e seja um evento normal...

— Pois é. — Fletch parou o carro para deixar uma pomba investigar um toco de charuto na estrada. — Normal.

— Então. Há uma hora mais ou menos estou trabalhando pra você, usando os recursos consideráveis de Habeck, Harrison e Haller. Não se preocupe: você não tem como pagar.

— Verdade.

— Sobre aquelas companhias que você me pediu pra investigar... Tá pronto?

— Tô.

— Brinquedos Lingman e Varas Cungwell parece que existem com o único objetivo de possuir, cada uma, uma parte de Ninfa da Floresta S. A. Depois, Brinquedos Lingman e Varas Cungwell pertencem a uma associação chamada Companhia de Vapores Paraska. Tudo isso é uma estruturação típica de companhias, feita para dissuadir a curiosidade e conciliar interesses. O objetivo dessas companhias todas parece ser, única e exclusivamente, manter um negócio chamado Atendimento a Amigos Ben Franklyn, em essência um bordel, localizado à... — Uma mulher de short verde-limão e sapatos de salto alto andava pela calçada com um poodle na coleira. O cinza do cabelo da mulher combinava com a cor do poodle. Seu short deixava à mostra metade de suas nádegas. Alston listava os responsáveis pelas diversas companhias. Os nomes se repetiam: Jay Demarest, Yvonne Heller, Marta Holsone, Marietta Ramsin. A mulher e o cachorro entraram numa loja de fotos para passaporte.

— Tudo bem, Alston, chega. Fala logo quem é o proprietário dos Vapores Paraska ou o que quer que seja.

— Quatro mulheres. — Alston começou a relatar uma salada de nomes.

Fletch parou num sinal amarelo. O carro de trás buzinou. — Você disse o quê? Repete? — Um carro de polícia passou ao lado de Fletch. O cara da polícia olhou as feições de Fletch cuidadosamente.

Alston repetiu os nomes.

— Tchau, Alston! — Ele deixou o telefone cair no colo. Fletch pisou fundo no acelerador.

Passou com o sinal fechado, fez a volta no meio do cruzamento e atravessou o sinal vermelho outra vez.

O carro da polícia seguiu-o, fazendo a mesma coisa.

— O tenente Francisco Gomez, por favor. É urgente!

Com certeza era urgente. Havia agora dois carros da polícia atrás dele pelas ruas da cidade. Sua tentativa de fugir enquanto falava no telefone do carro era um perigo ostensivo no trânsito.

— Quem quer falar?

Fletch não pensou duas vezes: — Biff Wilson.

Ele acendeu o pisca-pisca da esquerda e foi para a pista da direita. Um truque não muito bom para se livrar de seus perseguidores, mas que não deixou de provocar uma barulhenta confusão no cruzamento.

— Sim? — parecia que Gomez estava no meio de uma conversa ao invés de estar iniciando uma.

— Gomez, Biff Wilson tá numa encrenca.

— Quem tá falando?

— Fletcher, também conhecido como Alexander Liddicoat. Lembra-se de nós?

— Merda! Onde é que você tá?

— Porra, você não sabe? — Fletch girou sua roda no meio da quadra e correu por uma viela. — Pensei que a polícia eram os olhos e os ouvidos da cidade.

— Sobre o que você tá falando? Que barulheira é essa? Sirenes? Pneus cantando?

— Pois é, obrigado pela escolta policial. To com pressa. Você já tem o laudo daquele revólver?

— Que revólver?

— O revólver que mandei pra você. O revólver de que lhe falei.

— E daí? Garoto tentando fazer nome...

— Você nem tomou conhecimento?

— Você é tão ruim quanto Charles. Como é mesmo o nome dele? Childers, Stuart Childers. Querem brincar de polícia e ladrão. Você quer ser polícia, ele quer ser ladrão.

— O laudo balístico também deve estar pronto a esta altura. — Fletch teve um momento de relativa paz ao subir na contramão de uma rua de mão única.

— Eu tenho uma ordem de prisão pra você, Fletcher. Posse de uma quantidade de pó-de-anjo. Eu tenho a prova aqui mesmo na minha mesa.

— Faço votos de poder vê-la. — Três carros da polícia localizaram Fletch na esquina. Aceleraram atrás dele. — Você não tá ouvindo, Gomez? Seu parceiro Biff tá numa encrenca.

— É?

— No jornal. Está na sala de Frank Jaffe. Sobre o tapete, pode-se dizer. Corre o risco de perder o emprego.

— Sem chance.

— Você sabe que é possível. Gomez ficou calado.

Fletch acendeu os faróis e entrou no meio de um cortejo, demonstrando um pouco de respeito, enquanto os três carros da polícia vinham atrás, aos gritos.

— Ele precisa da sua ajuda — disse Fletch. — Precisa dos laudos balísticos e da perícia daquele revólver. Imediatamente.

— Ê?

— Eu ia mentir pra você?

— O que é isso?

Fletch apagou os faróis e mergulhou numa rua lateral. — Assim que você conseguir os laudos, ligue pra Tribuna. Peça a sala de Frank Jaffe. Biff está lá.

A dois quarteirões da esquina, um carro da polícia hesitava no meio de um cruzamento. Assim que avistou o carro de Fletch, dobrou e veio atrás dele, com as luzes piscando e as sirenes tocando.

— Gomez, você quer ver Biff pelas costas?

A linha caiu.

Fletch deixou o telefone cair no colo outra vez. Ele podia ver o telhado do prédio da Tribuna. Os três carros da polícia estavam atrás dele em forma de "V".

Faltavam só mais duas esquinas para chegar.

 

— Ei! Você não pode deixar o carro aí!

O guarda do saguão da Tribuna era conhecido por corar com facilidade. Fletch tinha deixado o carro em cima da calçada, na porta da frente da Tribuna.

Fletch estava na escada rolante que subia até a redação da Geral.

— O quê? — ele perguntou.

Na ponta da escada, o guarda olhou em direção à porta da frente. — O que são todas essas sirenes?

— Não consigo ouvir — disse Fletch. — Muitas sirenes. Ele passou por Morton Rickmers, editor de Literatura, na redação da Geral.

— Você esteve com Tom Farliegh — perguntou Morton.

— Vale uma entrevista?

— Não — respondeu Fletch. — Ele é uma velhinha de cabelos azulados, que usa um par de tênis verde.

Morton enrugou as sobrancelhas. — Tá bom.

Pela porta de vidro, Fletch viu Frank atrás de sua mesa e Biff Wilson sentado numa cadeira lateral. Seus rostos tinham a mesma cor do rosto do guarda do andar de baixo, agora, sem dúvida, conversando com seis policiais.

A secretária de Frank disse: — Você está atrasado.

— Tudo é relativo. — Ele passou voando por ela. Fletch fechou a porta da sala de Frank atrás de si. — Boa tarde, Frank. Que bom que você me convidou pra uma visita. — Os olhos úmidos de Frank registraram a camiseta de Fletch, seu jeans e tênis furado. — Boa tarde, Biff. — Biff cerrou os dentes. Ele virou o rosto. Sua orelha direita estava vermelha e inchada. Fletch sentiu pena. — Isso parece um machucado e tanto. — O rosto de Biff estava pontilhado de pequenos cortes causados pelo vidro que tinha sido atirado contra ele. — Sorte sua que nenhum daqueles cacos de garrafa pegou nos seus olhos. — Biff olhou para Fletch interrogativamente. Fletch falou para Frank: — Isso não é nada. Você precisa ver o carro da Tribuna que Biff dirige. Amassados enormes. O vidro traseiro quebrado. Duvido que você consiga grande coisa por ele no mercado de carros usados.

— Porra! Como você sabe disso? — Biff perguntou.

— Sou um repórter. — Fletch sentou-se numa cadeira. — Bem, Frank. Fico satisfeito de informar que a senhora Donald Habeck não batiza seu chá com vodca. Na verdade, a coitada não chega nem a tomar chá. Tive minha lição de humildade. Jamais sair pra determinada matéria com idéias preconcebidas. Certo, Biff?

Frank lhe disse: — Me surpreende você ter aparecido.

— Frank — disse Fletch. — Daqui a pouco seu telefone vai tocar. Deve ser o tenente Francisco Gomez, da polícia, chamando Biff. Ele sabe que Biff tá na sua sala. Eu gostaria que você tomasse o recado pra ele, por favor.

— Caramba! — Na sua cadeira, Biff jogou uma perna sobre o joelho da outra. — Agora o espertalhão tá te dizendo o que fazer!

Pelas janelas da sala de Frank, Fletch viu seis policiais uniformizados rodando pela redação da Geral.

— O que está acontecendo entre vocês dois? — Embora esquentado, Frank tentava parecer razoável. — Fletch, Biff me disse que você tá botando no dele. E de uma forma que nem eu consigo acreditar. Em qualquer lugar que ele vá nessa matéria de Habeck, você já andou cagando tudo, nadando pelado na piscina dele, incomodando de tal maneira o filho, um monge, que ele se recusa a receber Biff, enfurecendo tanto um outro suspeito que, quando Biff apareceu, o brutamontes jogou uma garrafa de cerveja na cara dele. Duas vezes. — Fletch sorria irônico. — Não é engraçado. Você sabe que essa matéria não é sua. Ann McGarrahan e eu deixamos isso bem claro. Tem maneiras mais fáceis de você ser demitido.

— Nenhum foca deveria chegar perto de mim. Nunca.

— disse Biff. — Principalmente nenhum moleque esperto e fodão.

Frank sorriu para si próprio. — Achei que você iria queimar seu excesso de energia em cima da matéria do bordel. Ao invés disso, ontem à noite ouvi você dizer que não pode fazer a matéria.

— Eu posso fazer.

— Você disse que precisava de mais tempo nela. Talvez se passasse seu tempo na matéria pra que foi escalado e não ficasse na cola de Biff...

Pela janela, Fletch viu Morton Rickmers falando com um dos policiais. Morton apontou na direção da sala de Frank.

— Foda-se. — Biff fez um movimento para se levantar.

— Isso é perda de tempo. Dê um chute no filho da puta e me deixe voltar ao trabalho.

— Você gosta de crápulas, Frank? — Fletch perguntou.

— Eu não gosto.

Frank forçou o riso. — Biff está na Tribuna desde que começou no jornalismo. Você tá com a gente o quê? Três meses? Ele é o melhor repórter policial da área. Tem o direito de fazer seu trabalho sem ter um moleque babaca torrando o saco dele.

— Ele é um crápula — disse Fletch. — Eu não gosto de crápulas.

— Você andou na cola de Biff porque ele é um crápula?

— Frank perguntou. — Um cacete! Você foi atrás de Biff porque achou que podia ganhar dele na matéria. Você não sabe de nada.

— Eu ganhei dele.

— Claro — disse Biff. — Você tá pronto pra arrematar a matéria sobre o assassinato de Habeck? Duvido muito.

— Exatamente — Fletch disse. — Estou.

Frank observava Fletch atentamente. — Eu te disse, Fletch, há dois dias, na segunda-feira, que já chega das suas besteiras por aqui. Eu achei que se você tivesse uma pauta de verdade, a matéria do bordel Ben Franklyn...

— To com isso mais ou menos arrematado também. — Fletch olhou para o telefone em silêncio sobre a mesa de Frank.

— Claro — disse Biff. — Conte pra gente quem matou Donald Habeck, espertalhão. Mal dá pra esperar ouvir de seus lábios. Um membro da família, aposto. A maluca Louise? Jasmine-sem-cérebro? A filhinha Nancy deixou seus cinco filhos dentro de fraldas molhadas,. saiu correndo e baleou papai? Que tal o marido dela, o poeta de quinta categoria? Ou, melhor ainda, o monge Robert? Conte pra gente que o monge matou o velho dele. Isso vai vender jornal...

O telefone sobre a mesa de Frank não tocava. Naquele momento, Fletch teria apreciado muito se tivesse alguma prova factual. Ele respirou fundo. — Stuart Childers matou Donald Habeck.

Biff riu. — Céus! Aposto que você sabe disso porque ele te confessou!

— É — disse Fletch. — Ele confessou. — Biff riu mais alto. — Tem que ser ouvido. Às vezes os mentirosos falam a verdade.

Frank olhou através das janelas de sua sala para a redação. — O que a polícia está fazendo lá fora? Seis deles rodeavam a secretária de Frank.

— O criminoso é vítima de seu próprio crime — disse Fletch para Biff —, como você vai entender, eu acho.

O telefone tocou. Do lado de fora, a secretária estava muito ocupada para atender.

Irritado, Frank levantou o fone do gancho. — Alô... Quem fala?... — Ele olhou para Biff. — Tenente Gomez... Sim, Biff está aqui... Não. — Em seguida, Frank olhou para Fletch. — Me dê o recado, tenente... o revólver? Certo... pistola calibre 22... registrada em nome de Stuart Childers... — Biff olhou para cima. — Impressões digitais de Stuart Childers... — Frank fixou os olhos em Biff. —... balística... foi a arma usada pra matar Donald Habeck... certo. Digo pra ele... — Lentamente, Frank desligou.

Frank sentou-se para trás na cadeira, as mãos no colo. Seu olhar passou de Biff para Fletch e de volta para Biff.

Biff estava sentado ereto, alerta como um coelho.

Do lado de fora da sala, a bagunça criada pela polícia crescia visivelmente. Dois policiais discutiam entre si. Ambos apontavam para a janela na direção de Fletch.

Também a secretária tinha levantado a voz.

Irritado, Frank perguntou: — O que tá acontecendo lá fora?

— Tá legal. — Biff endireitou a prega numa perna de sua calça. — Gomez tem trabalhado de perto comigo no assassinato de Habeck. — Ele limpou a garganta. — Aquele telefonema era pra mim.

— Você nem sabia que ele ia ligar — disse Frank.

Do lado de fora, Hamm Starbuck tinha chegado. Estava parado entre a polícia e a porta da sala de Frank.

Fletch inclinou-se para a frente na cadeira. — Agora, Frank, sobre a matéria de Ben Franklyn...

— Foda-se — gritou Biff.

Frank levantou as sobrancelhas. Ele disse a Fletch: — Me conte.

— Atendimento a Amigos Ben Franklyn pertence à Ninfa da Floresta S. A. — disse Fletch. — Que pertence a duas companhias: Varas Cungwell e Brinquedos Lingman. — O olhar de Frank ia de Biff para o tumulto do lado de fora da sala e para Fletch. Mesmo assim, parecia atento. — Varas Cungwell e Brinquedos Lingman pertencem inteiramente à Companhia de Vapores Paraska, que pertence inteiramente a quatro mulheres: Yvonne Heller, Anita Gomez, Marietta Ramsin e Aurora Wilson.

As manchas de sangue desapareceram com a nova cor do rosto de Biff.

Agora, do lado de fora, até mesmo Hamm Starbuck gritava.

Frank olhou para o telefone. Ele disse: — Anita Gomez. — Depois olhou para Biff. — Aurora Wilson. — Frank chegou sua cadeira mais perto da mesa. — Gomez e Wilson. Acho que vocês dois trabalharam de perto mesmo. — Ele pegou o telefone. — E foi assim que as fotos daquelas prostitutas conseguiram chegar nas minhas páginas de Esporte na manhã de segunda.

Biff explodiu: — Filho da puta!

— Matt? — Frank falou ao telefone. — Frank Jaffe. Faça um cheque de pagamento para Biff Wilson. Quero ele fora daqui até as cinco. Demitido, sim. Demitido. Nem mais um minuto de proteção da Tribuna pra ele ou pra seus empreendimentos.

Biff deu um pulo. Com os punhos fechados. — Seu filho da puta!

Avançou na direção de Fletch e mandou-lhe um soco. Fletch rolou da cadeira, derrubando-a. A porta se abriu.

Hamm Starbuck disse: — Desculpe, Frank. A polícia... qualquer coisa em relação a Fletch. — Ele olhou para Fletch no chão. — O que há com você? Usa o tapete como fetiche? Biff mandou um pontapé em Fletch, que escapou rolando.

A polícia entrou em bando na sala de Frank. Gordos, magros, velhos, jovens, todos discutiam ruidosamente entre si. Apontavam-se uns aos outros e ocasionalmente apontavam para Fletch, no chão.

Biff, com os pés plantados nos lados de Fletch, inclinou-se. Pegou Fletch pelo pescoço.

— Alexander Liddicoat! — gritou um policial. — Eu o reconheci no sinal!

— Você não checou a placa! — gritou outro deles. — Nós checamos! Ele é Irwin Fletcher, procurado por traficar PCP!

Fletch gargarejou: — Socorro! Polícia!

— Assalto à mão armada...

— Você tava dormindo durante a chamada da manhã.

— Pó-de-anjo...

— Ouça, Fletch. — Frank tinha saído detrás de sua escrivaninha. Com as mãos nos joelhos, ele se inclinou sobre Fletch, que estava sendo estrangulado por Biff Wilson no chão da sala. A concentração de Frank era nítida. — Quero a história completa do assassinato de Habeck, a confissão e detenção de Childers pra edição de amanhã. Gomez disse que iam prendê-lo hoje à tarde. O resto da imprensa vai dar a prisão, mas nós vamos ter a história completa. Também a notícia de que ele confessou pra um repórter da Tribuna. Você vai fazer uma matéria especial pro jornal de sábado.

— Grrr-uggg! — Fletch tentava separar os braços de Biff.

— Pára com isso! — Frank bateu no braço de Biff.

— Toda infração de trânsito tá registrada! — gritou um policial. — Seja quem for, temos tudo contra ele! Até mesmo um silencioso quebrado.

Frank continuou: — Queremos uma reportagem completa, com toda a história do caso Habeck pro jornal de domingo. Vamos precisar disso até as seis da tarde de sábado.

Depois de ficar imaginando por alguns instantes o que estaria testemunhando, Hamm Starbuck tomou uma atitude. O rosto de Fletch, que já tinha passado do vermelho para o branco, estava agora azulado. Colocando os braços em volta dos ombros de Biff, Hamm prendeu as mãos dele sob o próprio peito. Levantou-o.

Sem soltar-lhe o pescoço, Biff ergueu Fletch do chão.

Seis policiais discutiam com veemência.

O telefone tocava.

Frank se endireitou enquanto Fletch era erguido. — E agora, o que fazer com a matéria de Ben Franklyn? Acho que devia ser tratada como denúncia no jornal de domingo. Vamos publicar chamadas nas edições de amanhã, sexta e sábado. O que significa que vamos precisar da matéria pronta até o meio-dia de sábado, pras fotos.

Hamm enfim separou Biff de Fletch.

A pressão de Biff no pescoço de Fletch cedeu.

Fletch caiu estatelado no chão. Sua cabeça bateu com força no tapete.

— Consegue fazer isso? — perguntou Frank. Engolindo ar, Fletch falou: — Vou me casar no sábado!

— Ah, à merda com isso! — Frank virou-se e se afastou com ódio. — Não existe mais espírito esportivo nesta profissão!

Ele olhou a sua volta.

Num canto, Hamm Starbuck lutava para segurar Biff Wilson.

Cinco policiais discutiam entre si sobre Irwin Fletcher, pó-de-anjo, Alexander Liddicoat, assaltos e infrações de trânsito. Dois tinham seus cassetetes na mão.

O sexto policial estava inclinado, tentando algemar Fletch.

Fletch esfregava o pescoço com as mãos.

Praticamente toda a redação olhava para dentro da sala de Frank pelas janelas e pela porta.

— O que está acontecendo? — gritou Frank. Ele segurou o braço do policial que estava por algemar Fletch. — Pare com isso! Preciso dele! — O cara parou. — Credo — disse Frank —, o que será que aconteceu com a santidade da redação!

— "Só uma lufada de ar fresco." — Fletch lembrou, do chão. — "Um jovem inconformado e independente que pudesse sacudir um pouco as coisas"...

A secretária de Frank Jaffe inclinou-se sobre Fletch.

— Fletcher, tem uma mulher no telefone dizendo que precisa falar com você. Diz que é urgente.

— "Ver as coisas de modo diferente, talvez" — Fletch recitava, enquanto se levantava —, "chacoalhar as pessoas pra fora de suas mesmices." — Já em pé, ele quase perdeu o equilíbrio. — Era minha função, não era, Frank? Não foi pra isso que fui contratado? — Os seis policiais tentavam falar com Frank, quase todos ao mesmo tempo. Fletch resmungou:

— Algumas mesmices são mais fundas do que outras.

Entre as pessoas que se deliciavam pela porta da sala, estava Ann McGarrahan. Um sorriso se desenhou no canto de seus lábios.

Hamm Starbuck falava no ouvido de Biff. Biff sacudiu a cabeça afirmativamente duas vezes. Hamm soltou-o.

Endireitando o casaco e transformando as mãos em punhos outra vez, Biff evitou os policiais exaltados. Bateu em retirada.

— Biff! — Fletch segurou o pescoço ao gritar. — Conheço um bom advogado! Tá disponível!

A secretária disse: — Ela falou que o nome dela é Barbara-qualquer-coisa.

Frank falava alto para os policiais agrupados. — Olha, pessoal, ele não pode ir até a delegacia agora. Precisamos dele aqui. — Frank viu Fletch tirar o fone do gancho sobre a sua mesa. — Vou com vocês até a delegacia. Eu mesmo dou um jeito nas coisas.

— Alô, Barbara! — falou Fletch, com voz áspera. — Não vou conseguir jantar com sua mãe hoje. Hoje à noite não dá. Nem amanhã à noite. Nem sexta à noite. De jeito nenhum. Tenho que trabalhar. Arranjei um trabalho. Tento encontrar com você no sábado. Espere um minuto. Espere aí... — Fletch colocou a mão sobre o fone. — Frank?

Na lateral da sala, Hamm Starbuck respirava fundo.

Frank, cercado pela polícia, olhou para Fletch.

— Quando eu fizer a matéria sobre Ben Franklyn — perguntou, esfregando a garganta —, você quer que eu relate os detalhes completos do envolvimento de Biff Wilson, recentemente desligado da Tribuna?

— Porra, se quero. — Frank deu um risinho. — Pode acabar com aquele crápula.

 

                                                                               Gregory Mcdonald 

 

 

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