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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FURIA DE REIS / George R. R. Martin
FURIA DE REIS / George R. R. Martin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A cauda do cometa espraiava-se pela madrugada, um corte vermelho que sangrava por cima dos penhascos da Pedra do Dragão como uma ferida num céu cor-de-rosa e púrpura. O meistre estava em pé, na varanda varrida pelo vento, do lado de fora dos seus aposentos. Era ali que chegavam os corvos, depois de longos voos. Os excrementos das aves salpicavam as gárgulas, que se erguiam a uma altura de três metros e meio, de ambos os lados; um mastim do inferno e uma serpe,* dois dos mil exemplares que se empoleiravam nas muralhas da antiga fortaleza. Quando chegara à Pedra do Dragão, o exército de grotescas esculturas de pedra costumava deixá-lo incomodado, mas, com a passagem dos anos, foi se acostumando. Agora, pensava nelas como em velhas amigas. Os três observaram juntos o céu, tomados por pressentimentos. O meistre não acreditava em presságios. E, no entanto... Apesar de ser tão velho, Cressen nunca vira um cometa com metade do brilho daquele, nem daquela cor, aquela cor terrível, do sangue, da chama e dos crepúsculos. Perguntou a si mesmo se suas gárgulas já teriam visto algo parecido. Já estavam ali muito tempo antes de ele chegar, e ainda lá permaneceriam muito depois de ele partir. Se línguas de pedra falassem... Que tolice. Encostou-se nas ameias, com o mar batendo lá embaixo e a pedra negra áspera sob os seus dedos. Gárgulas falantes e profecias no céu. Sou um velho acabado que se tornou de novo leviano como uma criança. Teria a sabedoria duramente conquistada ao longo de uma vida inteira fugido com a saúde e a força? Era um meistre, treinado e acorrentado na grande Cidadela de Vilavelha. A que ponto chegara, se a superstição lhe enchia a cabeça como se fosse um camponês ignorante? E no entanto... No entanto... Agora, o cometa brilhava até durante o dia, enquanto o vapor cinza-claro se erguia da cratera quente do Monte Dragão, atrás do castelo. E na manhã anterior, um corvo branco tinha trazido notícias da própria Cidadela, há muito esperadas, mas não menos temíveis por isso, notícias do fim do verão, Tudo presságios. Demasiados para ser negados. Que significa tudo isso?, ele quis gritar. - Meistre Cressen, temos visitantes - Pylos falou suavemente, como se estivesse relutante em perturbar as meditações solenes de Cressen. Se soubesse dos disparates que lhe enchiam a cabeça, teria gritado. - A princesa deseja ver o corvo branco. Sempre correto, Pylos a chamava agora princesa, visto que o senhor seu pai era um rei. Rei de um rochedo fumegante no grande mar salgado, mas ainda assim rei. - O bobo veio junto.
* Serpe: criatura mitológica semelhante a um dragão, mas de porte menor e mais longilíneo, com apenas duas patas. (N. E.) 7


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O velho virou as costas à alvorada, mantendo uma mão pousada sobre a serpe a fim de se equilibrar. - Ajude-me a chegar até a cadeira e mande-os entrar. Tomando seu braço, Pylos o levou para dentro. Na juventude, Cressen caminhara com vigor, mas agora não estava longe do octogésimo dia do seu nome, e tinha as pernas frágeis e instáveis. Há dois anos um tombo lhe causara fratura de um lado da bacia, da qual nunca chegou a ficar curado totalmente. No ano anterior, quando tinha adoecido, a Cidadela enviara Pylos de Vilavelha, apenas dias antes de Lorde Stannis ter fechado a ilha... para ajudá-lo nas suas tarefas, tinham dito, mas Cressen sabia a verdade. Pylos viera para substituí-lo quando morresse. Não se importava. Alguém teria de ocupar seu lugar, e em menos tempo do que teria gostado... Deixou que o homem mais novo o acomodasse atrás dos seus livros e papéis. - Vá buscá-la. É feio deixar uma senhora esperando. O meistre acenou, um frágil gesto de pressa de um homem que já não era capaz de se apressar. Tinha a pele enrugada e manchada, tão fina como papel, de modo que se podia ver a teia de veias e a forma dos ossos por baixo. E agora tremiam, aquelas suas mãos que tempos atrás tinham sido tão seguras e hábeis... Quando Pylos voltou, a garota veio com ele, tímida como sempre. Atrás dela, arrastando os pés e saltitando daquele seu estranho jeito torto, veio o bobo. Trazia na cabeça uma imitação de elmo, feito de um velho balde de estanho, com um par de chifres de veado atado ao topo e decorado com guizos que a cada passo deslizante soavam, cada um num tom diferente, clang-a-dang, bong-dong, ring-a-ling, clong-clong-clong. - Quem vem nos visitar tão cedo, Pylos? - Cressen perguntou. - Sou eu e o Malhas, Meistre. Olhos azuis sinceros piscaram na sua direção. Infelizmente, o rosto dela não era belo. A menina possuía o queixo quadrado e projetado do senhor seu pai e as infelizes orelhas da mãe, bem como uma deformação só sua, o legado do ataque de um escamagris, um tipo de crocodilo, que quase a matara quando bebê. Da metade inferior de uma bochecha até bem abaixo no pescoço, tinha a carne rígida e morta, com a pele rachada e escamando, manchada de negro e cinza, lembrando pedra ao toque. - Pylos disse que podíamos ver o corvo branco. - Realmente podem - respondeu Cressen. Como se alguma vez pudesse lhe negar algo. A menina tinha enfrentado negativas demais na vida. Chamava-se Shireen. Faria dez anos no próximo dia do seu nome, e era a criança mais triste que Meistre Cressen conhecera. Sua tristeza é a minha vergonha, pensou o velho, outro sinal do meu fracasso, - Meistre Pylos, faça-me a gentileza de trazer a ave do viveiro para mostrar à Senhora Shireen. - Será um prazer. Pylos era um jovem educado, com não mais de vinte e cinco anos, mas era solene como um homem de sessenta. Se ao menos houvesse nele mais humor, mais vida; era isso que fazia falta ali. Os lugares sombrios precisavam de vivacidade, não de solenidade, e Pedra do Dragão era indubitavelmente um lugar sombrio, uma cidadela solitária no deserto de água, rodeada por tempestades e sal, com a sombra fumegante da montanha às suas costas. Um meistre tinha de ir para onde era enviado, e Cressen acompanhara seu senhor havia cerca de doze anos, e bem lhe servira.
Mas nunca tinha amado Pedra do Dragão, nem se sentia verdadeiramente em casa ali, Nos últimos tempos, quando acordava de sonhos inquietos, nos quais a mulher vermelha tinha uma participação perturbadora, era freqüente não saber onde estava. 8 O bobo virou sua cabeça manchada e malhada para observar Pylos subindo os íngremes degraus de ferro que levavam ao viveiro. Seus guizos soaram com o movimento. - Debaixo do mar, as aves têm escamas em lugar de penas - ele disse, clangorejando. - Eu sei, eu sei, ei, ei, ei. Mesmo para um bobo, o Cara-Malhada era digno de pena. Talvez em outros tempos tivesse sido capaz de arrancar gargalhadas com uma frase de efeito, mas o mar lhe tinha roubado esse poder, juntamente com metade da imaginação e toda a memória. Mole e obeso, vítima de convulsões e tremores, era mais comum mostrar-se incoerente do que o contrário. A garota era a única que agora ria dele, a única que se importava com ele estar vivo ou morto. Uma menininha feia e um bobo triste, e com o meistre faz três... eis uma história boa para jazer os homens chorar. - Sente-se comigo, filha - Cressen fez-lhe sinal para se aproximar. - É cedo para vir me visitar, o dia mal amanheceu. Você deveria estar aconchegada na cama. - Tive pesadelos - Shireen respondeu. - Com os dragões. Vinham me comer. Cressen se lembrava de a criança sofrer com pesadelos desde muito pequena. - Já conversamos sobre isso - ele disse com gentileza. - Os dragões não podem ganhar vida. São feitos de pedra, filha. Antigamente, nossa ilha era o posto avançado mais ocidental da grande Cidade Franca de Valíria. Foram os valirianos que ergueram esta cidadela, e eles tinham maneiras de esculpir a pedra que desde então se perderam. Um castelo tem de ter torres sempre que duas muralhas se encontrem num ângulo, para defendê-las. Os valirianos deram forma de dragões a estas torres para fazer com que sua fortaleza parecesse mais temível, tal como coroaram as muralhas com mil gárgulas, em vez de simples ameias. O meistre tomou a pequena mão cor-de-rosa da menina na sua, manchada e frágil, e deu um apertão suave. - Viu só? Não há nada a temer. Shireen não estava convencida. - Mas... E a coisa no céu? Dalla e Matrice estavam conversando perto do poço, e Dalla disse que ouviu a mulher vermelha dizer à mãe que aquilo é respiração de dragão. Se os dragões estão respirando, não quer dizer que estão ganhando vida? A mulher vermelha, pensou amargamente Meistre Cressen .Já é ruim o bastante que tenha enchidoa cabeça da mãe com as suas loucuras, terá de envenenar também os sonhos da filha? Teria uma conversa severa com Dalla, para que não ficasse espalhando essas histórias, - A coisa no céu é um cometa, minha doce menina, Uma estrela com uma cauda, perdida nos céus. Desaparecerá em breve, para não voltar a ser vista enquanto estivermos vivos. Espere e verá. Shireen fez um pequeno, mas corajoso aceno com a cabeça. - A mãe diz que o corvo branco quer dizer que já não é verão. - E verdade, senhora. Os corvos brancos só voam da Cidadela. Os dedos de Cressen alcançaram a corrente que rodeava seu pescoço; cada um de seus elos havia sido forjado com um metal diferente, cada um simbolizando o seu domínio de mais um ramo do conhecimento; o colar de meistre, a marca da sua ordem. No orgulho da juventude, usara-o com facilidade, mas agora parecia-lhe pesado, e o metal era frio no contato com sua pele. - São maiores do que os outros corvos, mais inteligentes, e criados apenas para transportar as mensagens mais importantes. Este veio nos dizer que o Conclave se reuniu, avaliou os relatórios e as medições feitas pelos meistres de todo o reino e declarou que este longo verão finalmente terminou. Durou dez anos, duas rotações e dezesseis dias, o mais longo verão já registrado. 9 - Agora vai ficar frio? Shireen era uma criança do verão, e nunca tinha experimentado o verdadeiro frio. - A seu tempo - Cressen respondeu. - Se os deuses forem bondosos, oferecerão um Outono quente e colheitas abundantes para que possamos nos preparar para o inverno que virá depois - o povo dizia que um verão longo significava um inverno ainda mais longo, mas o meistre não tinha por que assustar a criança com histórias como essa, Cara-Malhada fez soar seus guizos. - E sempre verão debaixo do mar - entoou. - As sereias casadas usam enfeites no cabelo e cosem vestidos de algas prateadas. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei. Shireen soltou um risinho. - Eu gostaria de ter um vestido de algas prateadas. - Debaixo do mar, neva para cima - disse o bobo - , e a chuva é seca como um osso. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei. - Vai mesmo nevar? - ela perguntou. - Vai - Cressen confirmou. Mas espero que ainda demore anos, e que não neve por muito tempo. - Ah, ali vem Pylos com a ave. Shireen soltou um grito de alegria. Até Cressen tinha de admitir que a ave era impressionante, branca como a neve e maior do que qualquer falcão, com os brilhantes olhos negros que significavam não se tratar de uma ave albina, mas sim de um corvo branco puro-sangue da Cidadela. - Aqui - chamou o meistre. O corvo abriu as asas, deu um salto e bateu-as ruidosamente pela sala até pousar na mesa ao lado dele. - Vou agora tratar do seu café da manhã - Pylos anunciou, e Cressen anuiu com a cabeça. - Esta é a Senhora Shireen - disse ao corvo. A ave balançou a cabeça para cima e para baixo, como se a estivesse reverenciando. "Senhora", crocitou. "Senhora." A criança ficou de queixo caído. - Ele fala! - Algumas palavras. Como eu disse, estas aves são espertas. - Ave esperta, homem esperto, bobo esperto, esperto - cantarolou Cara-Malhada com uma voz desagradável. - Oh, bobo esperto, esperto, esperto - e começou a cantar: - As sombras vêm dançar, senhor, dançar, senhor, dançar, senhor - cantou, saltitando de um pé para outro. - As sombras vêm ficar, senhor, ficar, senhor, ficar, senhor.
Inclinava a cabeça a cada palavra, fazendo ressoar os guizos presos aos chifres. O corvo branco soltou um grito e voou para longe, indo empoleirar-se no corrimão de ferro das escadas do viveiro. Shireen pareceu encolher-se. - Ele canta isso o tempo todo. Disse-lhe para parar, mas ele não para. Ele me assusta. Faça-o parar. E como faço isso?, perguntou-se o velho. Em outros tempos poderia tê-lo silenciado para sempre,mas agora... Cara-Malhada chegara até eles ainda jovem. Lorde Steffon, de boa lembrança, encontrara-o em Volantis, do outro lado do mar estreito. O rei, o antigo rei, Aerys n Targaryen, que não era tão louco assim naqueles tempos, enviara sua senhoria em busca de uma noiva para o Príncipe Rhaegar, que não tinha irmãs com quem casar, "Encontramos o mais magnífico dos bobos", escrevera a Cressen, uma quinzena antes da hora de regressar da infrutífera missão. "E ainda jovem, mas ágil como um macaco, e espirituoso como uma dúzia de cortesãos. Sabe malabarismo, 10 adivinhas e magia, e é capaz de cantar agradavelmente em quatro línguas. Compramos a sua liberdade e esperamos trazê-lo conosco para casa. Robert vai adorá-lo; com o tempo, o bobo talvez até consiga ensinar Stannis a rir." Recordar aquela carta enchia Cressen de tristeza. Ninguém conseguira ensinar Stannis a rir, muito menos o jovem CaraMalhada. A tempestade chegara de repente, uivando, e a Baía dos Naufrágios provara a verdade do seu nome, A galé de dois mastros do senhor, Orgulho do Vento, quebrara-se à vista do castelo. Das varandas, os dois filhos mais velhos tinham observado o navio do pai ser esmagado de encontro aos rochedos e engolido pelas águas. Uma centena de remadores e marinheiros afundaram com Lorde Steífon Baratheon e a senhora sua esposa, e ao longo de vários dias cada maré deixava uma nova colheita de cadáveres inchados na costa de Ponta Tempestade. O rapaz chegara à costa no terceiro dia. Meistre Cressen tinha descido com os outros, a fim de ajudar a reconhecer os mortos. Quando encontraram o bobo, estava nu, com a pele branca, enrugada e cheia de areia molhada. Cressen julgou que se tratava de mais um cadáver, mas, quando Jommy o agarrou pelos tornozelos a fim de arrastá-lo para o carro fúnebre, o rapaz tossiu água e se sentou. Até o dia da sua morte, Jommy jurou que a pele de Cara-Malhada estava fria e pegajosa. Ninguém jamais conseguiu explicar aqueles dois dias que o bobo passou perdido no mar. Os pescadores gostavam de dizer que uma sereia havia lhe ensinado a respirar água em troca de seu sêmen. O próprio Cara-Malhada nada disse. O jovem espirituoso e inteligente nunca chegou a Ponta Tempestade; o rapaz que encontraram era outra pessoa, quebrado de corpo e de mente, quase incapaz de falar, muito menos de gracejar. Mas sua cara de bobo não deixava dúvidas sobre quem era. Era costume da Cidade Livre de Volantis tatuar o rosto dos escravos e dos servos; do pescoço ao couro cabeludo, a pele do rapaz tinha sido marcada com quadrados vermelhos e verdes. - O desgraçado está louco, e com dores, e não presta para ninguém, nem para si mesmo – tinha declarado o velho Sor Harbert, naqueles tempos castelão de Ponta Tempestade. - A coisa mais bondosa que se pode fazer com esse tipo é encher sua taça com o leite da papoula, Um sono sem dor, e acaba tudo. Ele iria abençoá-lo se tivesse esperteza para isso. Mas Cressen se recusou e acabou vencendo. Não saberia dizer se Cara-Malhada tinha sido feliz com essa vitória, nem mesmo agora, tantos anos depois. - As sombras vêm dançar, senhor, dançar, senhor, dançar, senhor - continuou o bobo a cantar, balançando a cabeça e fazendo os guizos ressoar. Bong-dong, ring-a-ling, bong-dong. "Senhor", guinchou o corvo branco."Senhor, senhor, senhor" - Um bobo canta o que quer - disse o meistre à sua ansiosa princesa. - Não deve levar suas palavras a sério. De manhã, ele poderá se lembrar de outra canção, e esta nunca mais será ouvida. "Ele é capaz de cantar agradavelmente em quatro línguas", escrevera Lorde Steffon... Pylos entrou a passos largos: - Meistre, as minhas desculpas. - Você se esqueceu do mingau - Cressen completou, rindo. Aquilo não era do feitio de Pylos. - Meistre, Sor Davos regressou ontem à noite. Estavam falando disso na cozinha, Achei que gostaria de saber de imediato. - Davos... Ontem à noite, você diz? Onde está ele? - Com o rei. Passaram juntos a maior parte da noite. 11 Em tempos passados, Lorde Stannis teria mandado acordá-lo a qualquer hora, para tê-lo junto a si, a fim de aconselhá-lo. - Eu devia ter sido informado - queixou-se Cressen. - Devia ter sido acordado – desprendeu seus dedos dos de Shireen: - As minhas desculpas, senhora, mas tenho de falar com o senhor seu pai. Pylos, dê-me o braço. H á degraus demais neste castelo, e parece-me que acrescentam uns tantos todas as noites, só para me aborrecer. Shireen e Cara-Malhada seguiram-nos, mas a menina rapidamente se cansou do passo rastejante do velho e correu na frente, com o bobo a balançar atrás dela, fazendo os guizos tinir loucamente. Enquanto descia a escada em espiral da Torre do Dragão Marinho, Cressen percebeu, mais uma vez, que os castelos não são lugares amigáveis para homens frágeis. Lorde Stannis deveria estar na Sala da Mesa Pintada, no topo do Tambor de Pedra, a fortaleza central de Pedra do Dragão, assim chamada devido ao modo como suas paredes antigas estrondeavam e ressoavam durante as tempestades. Para chegar até ele, teria de cruzar a galeria, atravessar as muralhas intermediária e interna, com as suas gárgulas de guarda e portões de ferro negro, e subir mais degraus do que queria imaginar. Os jovens subiam degraus de dois em dois; para velhos com quadris em mau estado, cada degrau era um tormento. Mas Lorde Stannis não pensaria em encontrá-lo; então, o meistre resignava-se à provação. Pelo menos tinha Pylos para ajudá-lo, e sentia-se grato por isso. Arrastando os pés ao longo da galeria, passaram na frente de uma fileira de altas janelas arqueadas com uma vista privilegiada sobre a muralha exterior e a aldeia de pescadores, que se erguia mais adiante. N o pátio, arqueiros disparavam contra alvos de treino aos gritos de "Encaixar, puxar, largar". As flechas faziam um som que era como o de um bando de pássaros levantando voo. Guardas caminhavam sobre as muralhas, espreitando, por entre as gárgulas, a tropa acampada lá fora. O ar da manhã estava enevoado com a fumaça de fogueiras para cozinhar, num momento em que três mil homens se sentavam para quebrar o jejum sob os estandartes dos seus senhores. Para lá do acampamento, o ancoradouro encontrava-se repleto de navios. Nenhuma embarcação que tivesse sido avistada da Pedra do Dragão ao longo do último semestre fora autorizada a partir de novo. A Fúria de Lorde Stannis, uma galé de guerra com três conveses e trezentos remos, quase parecia pequena ao lado de alguns dos galeões e pesqueiros de casco largo que a rodeavam. Os guardas à porta do Tambor de Pedra conheciam o meistre e o deixaram entrar.
- Espere aqui - disse Cressen a Pylos, já dentro da sala. - E melhor que eu fale com ele a sós. - E uma longa subida, meistre. Cressen sorriu: - Pensa que me esqueci? Subi tantas vezes estes degraus que conheço cada um pelo nome, No meio da subida, arrependeu-se da decisão. Tinha parado, para recuperar o fôlego e aliviar a dor na bacia, quando ouviu o raspar de botas na pedra e ficou cara a cara com Sor Davos Seaworth, que descia. Davos era um homem franzino; a origem plebeia estava escrita em seu rosto comum. Um manto verde puído, manchado de sal e maresia, e desbotado pelo sol, envolvia seus ombros estreitos, por cima de um gibão e uns calções castanhos que combinavam com os cabelos e olhos da mesma cor. Uma bolsa de couro gasto pendia de uma correia passada em volta do pescoço. Sua barba curta estava bem salpicada de cinza, e usava uma luva de couro na mão esquerda mutilada. Quando viu Cressen, interrompeu a descida. 12 - Sor Davos - cumprimentou-o o meistre. - Quando retornou? - Na escuridão da madrugada. A minha hora preferida. Dizia-se que ninguém jamais manobrara um navio de noite com metade da destreza de Davos Mão-Curta. Antes de Lorde Stannis tê-lo armado cavaleiro, Sor Davos era o mais notório e esquivo contrabandista de todos os Sete Reinos. - E? O homem balançou a cabeça. - É como o preveni. Não se levantarão, Meistre. Por ele, não. Não gostam dele. Não, pensou Cressen. Nem nunca gostarão. Ele é forte, capaz, mesmo... sim, mesmo para além da sabedoria... Mas não basta. Nunca bastou. - Falou com todos? - Todos? Não. Só os que quiseram se encontrar comigo. Aqueles bem-nascidos também não gostam de mim. Para eles serei sempre o Cavaleiro das Cebolas. A mão esquerda fechou-se, com os dedos curtos formando um punho; Stannis cortara suas pontas, exceto a do polegar. - Dividi a mesa com Guilan Swann e o velho Penrose, e os Tarth consentiram num encontro à meia-noite num bosque. Os outros... Bem, Beric Dondarrion desapareceu, alguns dizem que está morto, e Lorde Caron está com Renly. Bryce, o Laranja, da Guarda Arco-íris. - A Guarda Arco-íris? - Renly criou sua própria Guarda Real - explicou o ex-contrabandista mas esses sete não usam o branco. Cada um tem a sua cor. Loras Tyrell é o seu Senhor Comandante. Era justamente o tipo de idéia que atrairia Renly Baratheon; uma magnífica nova ordem de cavalaria, com maravilhosos novos trajes para proclamá-la. Ainda quando garoto, Renly já adorava cores brilhantes e tecidos belos, e também os seus jogos. "Olhem para mim!", ele gritava enquanto corria às gargalhadas pelos salões de Ponta Tempestade, "Olhem, sou um dragão", ou "Olhem, sou um feiticeiro", ou "Olhem, olhem, sou o deus das chuvas", O ousado rapazinho com cabelo negro bagunçado e risada nos olhos era agora um marmanjo, com vinte e um anos, e ainda jogava seus jogos. Olhem, sou um rei, pensou Cressen tristemente. Ah, Renly, Renly, querido filho, sabe o que está fazendo? E se importaria se soubesse? Haverá alguém que se preocupe com ele além de mim? - Que motivos deram os senhores para as recusas? - perguntou a Sor Davos. - Bem, quanto a isso, alguns usaram palavras suaves, e outros, rudes; alguns arranjaram desculpas, outros fizeram promessas; outros limitaram-se a mentir - e encolheu os ombros. – No fim das contas, as palavras não passam de vento. - Não poderia lhe trazer alguma esperança? - Só do tipo falso, e eu não faria isso - Davos respondeu. - De mim, ouviu a verdade. Meistre Cressen recordou o dia em que Davos fora feito cavaleiro, depois do cerco a Ponta Tempestade. Lorde Stannis e uma pequena guarnição defenderam o castelo durante quase um ano contra a grande tropa dos senhores Tyrell e Redwyne. Até o mar lhes estava bloqueado, vigiado noite e dia por galés dos Redwyne, que ostentavam as bandeiras bordo da Arvore, Dentro de Ponta Tempestade, os cavalos há muito tinham sido comidos, os cães e os gatos desaparecido, e a guarnição, limitada a raízes e ratazanas. Então, chegou uma noite em que a lua era nova e nuvens negras escondiam as estrelas. Envolto nessa escuridão, Davos, o contrabandista, desafiou o bloqueio Redwyne e os rochedos da Baía dos Naufrágios. Seu pequeno navio tinha casco, velas e remos negros e um porão apinhado de cebolas e peixe salgado. Era pouco, mas manteve a 13 guarnição viva durante tempo suficiente para que Eddard Stark chegasse a Ponta Tempestade e quebrasse o cerco. Lorde Stannis recompensou Davos com terras de boa qualidade em Cabo da Fúria, uma pequena fortaleza e o título de cavaleiro... Mas também decretou que perdesse uma falange de todos os dedos da mão esquerda, a fim de pagar por todos seus anos de contrabando. Davos aceitou se submeter, com a condição de que o próprio Stannis manejasse a faca; não aceitaria nenhuma punição vinda de mãos menores. O senhor usou um cutelo de açougueiro, a fim de fazer um corte limpo e completo. Depois, Davos escolheu o nome Seaworth para sua nova casa, e tomou como estandarte um navio negro em fundo cinza-claro... com uma cebola desenhada nas velas, O antigo contrabandista gostava de dizer que Lorde Stannis lhe fizera um favor, dando-lhe quatro unhas a menos para cortar e limpar. Não, pensou Cressen, um homem assim não daria falsas esperanças, nem suavizaria uma verdade dura. - Sor Davos, a verdade pode ser uma bebida amarga, mesmo para um homem como Lorde Stannis, Ele só pensa em retornar a Porto Real investido de todo o seu poder, a fim de derrubar os inimigos e reclamar o que é seu de direito. Mas agora... - Se levar sua tropa minguada para Porto Real, será apenas para morrer. Não tem homens em número suficiente. Disse-lhe isso, mas conhece o orgulho dele - Davos ergueu a mão enluvada. - Meus dedos voltarão a crescer antes que aquele homem se vergue ao bom-senso. O velho soltou um suspiro: - O senhor fez tudo o que podia. Agora devo somar a minha voz à sua - e, fatigadamente, retomou a subida. O refúgio de Lorde Stannis Baratheon era uma grande sala redonda com paredes de pedra negra nua e quatro janelas altas e estreitas, que se abriam para as quatro pontas da bússola. No centro do aposento encontrava-se a grande mesa que lhe dava o nome, uma enorme prancha de madeira esculpida às ordens de Aegon Targaryen nos dias anteriores à Conquista. A Mesa Pintada tinha mais de quinze metros de comprimento, talvez metade dessa medida no ponto mais largo, mas menos de um metro e vinte no mais estreito. Os carpinteiros de Aegon tinham lhe dado a forma das terras de Westeros, serrando cada baía e península até que em nenhuma parte a mesa estivesse reta. Na sua superfície, escurecida pelo verniz de quase trezentos anos, estavam pintados os Sete Reinos tal como tinham sido na época de Aegon; rios e montanhas, castelos e cidades, lagos e florestas. Havia uma única cadeira na sala, cuidadosamente posicionada no local preciso que Pedra do Dragão ocupava em relação à costa de Westeros, e levantada a fim de fornecer uma boa visão do tampo da mesa. Sentado na cadeira encontrava-se um homem vestido com um gibão de couro bem apertado e calções de grosseira lã marrom. Quando Meistre Cressen entrou, o lorde olhou de relance para cima. - Eu sabia que você viria, velho, fosse convocado ou não - não havia sinal de calor na sua voz; raramente havia. Stannis Baratheon, Senhor de Pedra do Dragão e pela graça dos deuses o legítimo herdeiro do Trono de Ferro dos Sete Reinos de Westeros, tinha ombros largos e membros fortes, com o rosto e a pele tão tensos que lembravam couro curado ao sol até ficar duro como aço. A palavra que os homens usavam quando falavam de Stannis era duro, e ele de fato o era. Embora ainda não tivesse trinta e cinco anos, só lhe restava na cabeça uma orla de fino cabelo negro, rodeando a parte de trás das orelhas como a sombra de uma coroa. Seu irmão, o falecido Rei Robert, tinha deixado 14 crescer uma barba nos seus últimos anos. Meistre Cressen nunca a vira, mas dizia-se que era uma coisa emaranhada, espessa e feroz. Como que em resposta, Stannis mantinha suas suíças bem aparadas. Espalhavam-se como uma sombra negroazulada pelo maxilar quadrado e pelas bochechas secas e ossudas. Seus olhos eram feridas abertas sob as pesadas sobrancelhas, de um azul tão escuro como o do mar à noite. A boca teria levado ao desespero o mais bufão dos bobos; era uma boca feita para ser franzida e apertada, e para ordens ríspidas, toda ela lábios finos e pálidos e músculos contraídos, uma boca que tinha se esquecido de como se sorria e que nunca soube como era rir. Por vezes, quando o mundo ficava muito quieto e silencioso de noite, Meistre Cressen imaginava que conseguia ouvir Lorde Stannis rangendo os dentes a meio castelo de distância. - Em outros tempos o senhor teria mandado me acordar - disse o velho. - Em outros tempos o meistre foi novo. Agora é velho e doente e precisa dormir – Stannis nunca aprendera a suavizar o discurso, disfarçar ou lisonjear; dizia o que pensava, e quem não gostasse que se danasse. - Eu sabia que você descobriria em breve o que Davos tinha a dizer. E sempre assim, não é? - Eu não lhe teria nenhuma utilidade se assim não fosse - Cressen respondeu. – Encontrei Davos na escada. - E ele contou tudo, suponho. Devia ter encurtado a língua do homem junto com os dedos. - Assim teria sido um enviado inútil. - De qualquer forma foi um enviado inútil. Os senhores da tempestade não se levantarão por mim. Parece que não simpatizam comigo, e a justiça da minha causa não significa nada para eles. Os covardes ficarão quietos atrás das suas muralhas, esperando ver como se ergue o vento e quem tem mais chances de triunfar. Os corajosos já se declararam por Renly. Por Renly! – cuspiu o nome como se fosse veneno que tivesse na língua. - Seu irmão tem sido senhor de Ponta Tempestade ao longo destes últimos treze anos. Esses senhores são vassalos juramentados dele... - Dele - interrompeu Stannis. - Quando de direito deveriam ser meus. Nunca pedi Pedra do Dragão. Nunca quis este castelo. Tomei-o porque os inimigos de Robert estavam aqui, e ele me ordenou que os escorraçasse. Construí sua frota e fiz o seu trabalho, obediente como um irmão mais novo deve ser a um mais velho, como Renly devia ser a mim, E como Robert me agradeceu? Nomeou-me Senhor de Pedra do Dragão e deu Ponta Tempestade e seus rendimentos a Renly. Ponta Tempestade pertenceu à Casa Baratheon durante trezentos anos; de direito devia ter passado para mim quando Robert tomou o Trono de Ferro. Era uma velha ofensa, profundamente sentida, e nunca antes tanto como agora. Ali estava o cerne da fraqueza do seu senhor; Pedra do Dragão, embora antiga e forte, detinha a lealdade de apenas um punhado de pequenos senhores, cujos domínios pedregosos e insulares tinham uma população escassa demais para fornecer os homens de que Stannis necessitava. Mesmo com os mercenários que trouxera do outro lado do mar estreito, das Cidades Livres de Myr e Lys, a hoste acampada j u n to às suas muralhas era muito menor do que necessitava ser para derrubar o poderio da Casa Lannister. - Robert foi injusto com o senhor - respondeu cuidadosamente Meistre Cressen - , mas tinha bons motivos. Pedra do Dragão era há muito a sede da Casa Targaryen. Ele precisava da força de um homem para governar aqui, e Renly era apenas uma criança. - Ele ainda é uma criança - declarou Stannis, com a ira ressoando alto no salão vazio - , uma criança ladra que pensa em surrupiar a coroa da minha cabeça. Que fez Renly para ganhar um trono? Senta-se no conselho e troca gracejos com Mindinho, e nos torneios enverga sua 15 magnífica armadura e permite que um homem melhor o derrube do cavalo. Meu irmão Renly é isto, o meu irmão que pensa que deveria ser um rei. Pergunto-lhe, por que os deuses me puniram com irmãos? - Não posso responder pelos deuses. - Pois me parece que hoje em dia é raro que responda a qualquer coisa. Quem é o meistre de Renly? Talvez deva mandar buscá-lo, talvez eu venha a gostar mais dos seus conselhos. Que acha que esse meistre disse quando meu irmão decidiu roubar minha coroa? Que conselho terá o seu colega oferecido àquele traiçoeiro sangue do meu sangue? - Eu ficaria surpreso se Lorde Renly procurasse conselhos, Vossa Graça. O mais novo dos três filhos de Lorde Steffon havia se tornado um homem corajoso, mas impetuoso, que agia por impulso, e não por cálculo. Nisso, tal como em muitas outras coisas, Renly era como o irmão Robert, e completamente diferente de Stannis. - Vossa Graça - Stannis rebateu amargamente. - Zomba de mim com o tratamento devido a um rei, mas sou rei de quê? Pedra do Dragão e um punhado de rochedos no mar estreito, eis o meu reino. Desceu os degraus da cadeira e parou junto da mesa, fazendo sombra sobre a foz da Torrente de Água Negra e sobre a floresta pintada onde agora se erguia Porto Real. Ficou ali, pairando sobre o território que pretendia reclamar, tão perto, e no entanto tão longe.
- Esta noite devo jantar com os senhores meus vassalos, aqueles que tenho. Celtigar, Velaryon, Bar Emmon, todo o insignificante bando. Colheita fraca, pra dizer a verdade, mas são aquilo que meus irmãos me deixaram. Aquele pirata liseno, Salladhor Saan, estará lá com a fatura mais recente do que lhe devo, e Morosh, o mirano, vai me advertir com histórias sobre marés e ventanias de Outono, enquanto Lorde Sunglass resmunga piedosamente sobre a Fé dos Sete. Celtigar quererá saber quantos dos senhores da tempestade irão se juntar a nós. Velaryon ameaçará levar seus recrutas para casa a menos que ataquemos de imediato. Que hei de dizer a eles? Que devo fazer agora? - Seus verdadeiros inimigos são os Lannister, senhor - foi a resposta de Meistre Cressen. - Se você e seu irmão se unissem contra eles... - Não negociarei com Renly - respondeu Stannis num tom que não admitia discussão. Pelo menos enquanto ele se disser rei. - Nesse caso, com Renly não - cedeu o meistre. Seu senhor era teimoso e orgulhoso; quando se decidia por alguma coisa, não havia jeito de fazê-lo mudar de idéia. - Outros poderão também servir às suas necessidades. O filho de Eddard Stark foi proclamado Rei no Norte e conta com todo o poderio de Winterfell e Correrrio. - Um jovenzinho verde - Stannis ironizou. - E outro falso rei. Devo aceitar um reino mutilado? - Certamente metade de um reino é melhor do que nada - Cressen observou. - E se ajudar o rapaz a vingar o assassinato do pai... - Por que eu deveria vingar Eddard Stark? O homem não era nada para mim. Ah, Robert adorava-o, com certeza. Adorava-o como a um irmão, quantas vezes ouvi isso? Eu é que era o irmão dele, não Ned Stark, mas, pela maneira como me tratava, nunca ninguém adivinharia. Defendi Ponta Tempestade em seu nome, vendo bons homens passar fome, enquanto Mace Tyrell e Paxter Redwyne se banqueteavam à vista das minhas muralhas. E por acaso Robert me agradeceu? Não. Agradeceu ao Stark, por romper o cerco quando estávamos reduzidos a ratazanas e rabanetes. Construí uma frota às ordens de Robert, tomei Pedra do Dragão em seu nome. Por 16 acaso ele pegou minha mão e disse "Muito bem, irmão, o que eu faria sem você?" Não. Culpou-me por ter deixado que Willem Derry raptasse Viserys e o bebê, como se eu tivesse podido impedi-lo. Fiz parte de seu conselho durante quinze anos, ajudando Jon Arryn a governar o reino, enquanto Robert bebia e visitava prostitutas, mas, quando Jon morreu, será que meu irmão me nomeou sua Mão? Não. Partiu a galope atrás do seu querido amigo Ned Stark e lhe ofereceu essa honra. Que de pouco valeu para ambos. - Seja como for, senhor - Meistre Cressen disse gentilmente. - Grandes injustiças foram cometidas contra você, mas o passado é poeira. O futuro ainda pode ser conquistado, caso se junte aos Stark. Há outros que também poderia sondar. E a Senhora Arryn? Se a rainha assassinou seu marido, ela certamente desejará obter justiça. Tem um filho novo, herdeiro de Jon Arryn. Se prometesse Shireen ao rapaz... - O rapaz é fraco e doente - retrucou Lorde Stannis. - Mesmo seu pai sabia como ele era quando me pediu para criá-lo em Pedra do Dragão. O serviço como escudeiro poderia ter-lhe feito bem, mas aquela maldita Lannister mandou envenenar Lorde Arryn antes de o trato ser fechado, e agora Lysa esconde-o no Ninho da Águia. Nunca se separará do rapaz, garanto. - Então, terá de enviar Shireen para o Ninho da Águia - sugeriu o meistre. - Pedra do Dragão é um lar lúgubre para uma criança. Deixe que o bobo vá com ela, para que tenha por perto um rosto familiar. - Familiar e medonho - Stannis franziu a testa enquanto refletia. - Mesmo assim... Talvez valha a pena tentar... - Deverá o senhor de direito dos Sete Reinos suplicar a ajuda de viúvas e usurpadores? – perguntou rispidamente uma voz de mulher. Meistre Cressen virou-se e inclinou a cabeça. - Minha senhora - disse, desgostoso por não tê-la ouvido entrar. Lorde Stannis carregou o olhar. - Eu não suplico. De ninguém. Tente se lembrar disso, mulher. - Agrada-me ouvir isso, senhor. A Senhora Selyse era tão alta como o marido, com corpo e feição magros, orelhas proeminentes, o nariz afilado e a mais leve sugestão de um bigode sobre o lábio superior. Arrancava os pelos todos os dias e os amaldiçoava regularmente, mas eles nunca deixavam de voltar. Seus olhos eram claros; a boca, severa; a voz, um chicote. Agora, fazia-o estalar. - A Senhora Arryn deve-lhe lealdade, tal como os Stark, seu irmão Renly e todos os outros. O senhor é o verdadeiro rei deles. Não seria adequado argumentar e negociar com eles aquilo que é seu por direito, pela graça de Deus. Deus, ela disse, e não deuses. A mulher vermelha tinha conquistado Selyse de alma e coração, afastando-a dos deuses dos Sete Reinos, tanto os velhos como os novos, para que adorasse aquele a quem chamavam Senhor da Luz. - Seu deus pode ficar com a sua graça - Lorde Stannis desdenhou; não partilhava a fervorosa nova fé da mulher. - E de espadas que preciso, não de bênçãos. Teria escondido em algum lugar um exército de que não me falou antes? Não havia afeto no seu tom de voz. Stannis sempre se sentira desconfortável junto das mulheres, até mesmo da sua própria esposa. Quando partiu para Porto Real a fim de integrar o conselho de Robert, deixou Selyse em Pedra do Dragão com a filha. As cartas tinham sido escassas, as visitas mais ainda; cumpria seu dever de marido na cama uma ou duas vezes por ano, mas não retirava disso nenhum prazer, e os filhos homens que no passado esperara nunca vieram. 17 - Meus irmãos, tios e primos têm exércitos - ela disse. - A Casa Florent vai se juntar à sua bandeira. - A Casa Florent pode pôr em campo, no máximo, duas mil espadas - dizia-se que Stannis conhecia a força de cada casa dos Sete Reinos e você tem bem mais fé nos seus irmãos e tios do que eu, minha senhora. As terras dos Florent ficam próximas demais de Jardim de Cima para que o senhor seu tio se arrisque a despertar a ira de Mace Tyrell, - Há outra forma - disse a Senhora Selyse, aproximando-se. - Olhe pelas suas janelas, senhor. Ali está o sinal que esperava, estampado no céu. E vermelho, o vermelho da chama, o vermelho do coração flamejante do verdadeiro deus. É o estandarte dele... e o seu! Veja como se desenrola pelos céus como o sopro quente de um dragão, e você é Senhor de Pedra do Dragão. Significa que a sua hora chegou, Vossa Graça. Nada é mais certo do que isso. Está destinado a zarpar deste rochedo desolado como Aegon, o Conquistador, zarpou um dia, para varrer todos à sua frente como ele o fez. Basta dizer a palavra e acolher o poder do Senhor da Luz.
- Quantas espadas porá o Senhor da Luz nas minhas mãos? - Stannis a desafiou novamente. - Quantas forem necessárias - prometeu a mulher. - As espadas de Ponta Tempestade e de Jardim de Cima, para começar, e de todos os senhores seus vassalos. - Davos discordaria - Stannis retrucou. - Essas espadas estão juramentadas a Renly, Adoram o meu encantador e jovem irmão, como anteriormente adoravam Robert... e como nunca me adoraram. - Sim - ela respondeu. - Mas, e se Renly morresse... Stannis olhou sua senhora estreitando os olhos, até que Cressen não conseguiu dominar a língua. - Não se deve pensar em tal coisa. Vossa Graça, sejam quais forem as loucuras que Renly cometeu... - Loucuras? Eu chamo de traições - então, Stannis voltou-se para a mulher. - Meu irmão é jovem e forte e tem um vasto exército ao seu redor, e aqueles seus cavaleiros do arco-íris. - Melisandre estudou as chamas e o viu morto. Cressen ficou horrorizado. - Fratricídio... Senhor, isso é uma maldade, impensável... Por favor, escute-me. A Senhora Selyse olhou-o fixamente. - E o que lhe diria, Meistre? Como ele poderá conquistar metade de um reino se for até os Stark de joelhos e vender nossa filha a Lysa Arryn? - J á ouvi os seus conselhos, Cressen - Lorde Stannis os interrompeu. - Agora ouvirei os dela. Está dispensado. Meistre Cressen dobrou o joelho rígido. Conseguia sentir os olhos da Senhora Selyse nas suas costas enquanto se arrastava lentamente até a saída da sala. Quando chegou ao fim da escada, só com muito esforço conseguia se manter em pé. - Ajude-me - pediu a Pylos. Depois de estar de novo a salvo nos seus aposentos, Cressen mandou o jovem embora e coxeou até a varanda novamente, para observar o mar junto de suas gárgulas. Um dos navios de guerra de Salladhor Saan passava pelo castelo, com o casco pintado com cores alegres, abrindo as águas cinza-esverdeadas enquanto os remos subiam e desciam. Ficou olhando-o até que desapareceu atrás de um promontório. Gostaria que os meus temores desaparecessem assim tão facilmente. Teria vivido tanto tempo para isso? 18 Quando um meistre colocava seu colar, punha de lado a esperança de ter filhos; apesar disso, Cressen sentira-se freqüentemente como um pai. Robert, Stannis, Renly... Três filhos que acabou educando depois de o mar em fúria ter reclamado Lorde Steífon para si. Teria feito um trabalho tão ruim, para agora ser forçado a ver um deles matar o outro? Não poderia permitir isso, não permitiria isso. A mulher era a chave. Não a Senhora Selyse, a outra. A mulher vermelha, como os criados a apelidaram, com medo de dizer seu nome. - Eu direi seu nome - disse Cressen ao seu mastim do inferno de pedra. - Melisandre. Ela. Melisandre de Asshai, feiticeira, umbromante e sacerdotisa de Rhllor, o Senhor da Luz, o Coração de Fogo, o Deus da Chama e da Sombra. Melisandre, cuja loucura não se podia deixar espalhar para lá de Pedra do Dragão. Os aposentos pareciam sombrios e lúgubres depois do brilho da manhã. Com mãos desajeitadas, o velho acendeu uma vela e a levou para a sala de trabalho sob a escada do viveiro, onde seus unguentos, poções e medicamentos estavam bemorganizados nas estantes. Na prateleira de baixo, atrás de uma fileira de bálsamos guardados em atarracadas vasilhas de barro, encontrou um frasco de vidro anil que não era maior do que seu dedo mindinho. Chocalhava quando o balançava. Cressen soprou uma camada de pó e o levou para a mesa. Deixando-se cair na cadeira, tirou a rolha do vidro e despejou o conteúdo do frasco. Um punhado de cristais, de tamanho próximo ao de sementes, tamborilou no pergaminho que ele acabara de ler. Brilhavam como jóias à luz da vela, tão purpúreos que o meistre pensou jamais ter realmente visto aquela cor antes. A corrente em torno do pescoço parecia-lhe muito pesada. Tocou ligeiramente em um dos cristais com a ponta do mindinho. Que coisa pequena para conter o poder da vida e da morte. Era feito de uma certa planta que crescia apenas nas ilhas do Mar de Jade, a meio mundo de distância. As folhas tinham de ser envelhecidas e embebidas numa loção de visgo, água de açúcar e certas especiarias raras vindas das Ilhas do Verão. Depois, podiam ser descartadas, mas a poção tinha de ser engrossada com cinzas e deixada cristalizar. O processo era lento e trabalhoso, e os ingredientes, caros e difíceis de adquirir. Mas os alquimistas de Lys conheciam-no, bem como os Homens Sem Cara de Bravos... E os meistres da sua ordem, apesar de não se tocar nesse assunto para lá das muralhas da Cidadela, O mundo inteiro sabia que um meistre forjava seu elo de prata quando aprendia a arte de curar... Mas o mundo preferia esquecer que os homens encarregados de curar também sabiam matar. Cressen já não se lembrava do nome que os Asshai'i davam à folha, ou os envenenadores de Lys ao cristal. Na Cidadela, era simplesmente chamado "o estrangulador". Dissolvido em vinho, fazia os músculos da garganta de um homem se fechar com mais força do que qualquer punho, obstruindo a traqueia. Dizia-se que o rosto da vítima ficava tão roxo como a pequena semente de cristal de onde tinha nascido sua morte, mas o mesmo acontecia com um homem que sufocasse com uma garfada de comida. Naquela mesma noite, Lorde Stannis iria oferecer um banquete aos seus vassalos, à senhora sua esposa... E à mulher vermelha, Melisandre de Asshai. Tenho de descansar, disse Meistre Cressen para si mesmo. Tenho de estar na posse de todas as minhas forças quando a noite chegar, Minhas mãos não podem tremer, minha coragem não pode fraquejar. É uma coisa horrível, mas tem de ser feita. Se existirem deuses, certamente me perdoarão. Andava dormindo tão mal ultimamente, que uma soneca seria restauradora para a provação que o esperava. Exausto, cambaleou até a cama. Porém, quando fechou os olhos, ainda conseguia ver a luz do cometa, vermelha, fogosa e vivida por entre a escuridão dos seus sonhos. Talvez seja o meu 19 cometa, pensou, por fim, sonolentamente, momentos antes de ser tomado pelo sono. Um pressagio de sangue, predizendo o homicídio,,, sim.,, Quando acordou, era noite fechada, o quarto estava negro, e cada articulação do seu corpo doía. Cressen sentou-se com esforço, sentindo a cabeça latejar. Agarrando a bengala com força, pôs-se em pé, cambaleante. É tão tarde, pensou. Não me  chamaram. Era sempre chamado para os banquetes, e sentava-se perto do sal, ao lado de Lorde Stannis. O rosto do seu senhor oscilou na sua frente, não o do homem que era, mas o do jovem que havia sido, sempre no frio da sombra, enquanto o sol jorrava sobre o irmão mais velho. Fizesse o que fizesse, Robert havia feito primeiro, e melhor. Pobre rapaz... Tinha de se apressar, para o bem dele. O meistre encontrou os cristais onde os tinha deixado e os recolheu de cima do pergaminho. Cressen não tinha anéis ocos, daqueles que se dizia que os envenenadores de Lys preferiam, mas uma miríade de bolsos, grandes e pequenos, tinham sido costurados do lado de dentro das grandes mangas da sua toga. Escondeu as sementes de estrangulador num deles, escancarou a porta e chamou: - Pylos? Onde está você? - diante da falta de resposta, voltou a chamar, mais alto: - Pylos, preciso de ajuda. Continuou a não haver resposta. Era estranho; a cela do jovem meistre ficava apenas meia-volta da escada abaixo, bem ao alcance da sua voz. Por fim, Cressen foi forçado a chamar os criados. - Apressem-se - disse-lhes, - Dormi demais. A esta altura já estão no banquete... bebendo... Deviam ter me acordado - que teria acontecido ao Meistre Pylos? Realmente não compreendia. De novo teve de atravessar a longa galeria, Um vento noturno sussurrava através das grandes janelas, trazendo o cheiro vivo do mar. Tochas tremeluziam ao longo das muralhas de Pedra do Dragão, e no acampamento, que se estendia para lá delas, era possível ver centenas de fogueiras de cozinhar ardendo, como se um campo de estrelas tivesse caído sobre a terra. No alto, o cometa brilhava, vermelho e malévolo. Sou velho e sábio demais para temer esse tipo de coisa, disse o meistre para si mesmo. As portas que abriam para o Grande Salão ficavam na boca de um dragão de pedra. Disse aos criados para que o deixassem do lado de fora. Seria melhor entrar sozinho; não devia aparentar fraqueza, Apoiando-se pesadamente na bengala, Cressen subiu os últimos degraus e coxeou por baixo dos dentes da entrada. Um par de guardas abriu as pesadas portas vermelhas à sua frente, libertando uma súbita explosão de som e de luz. Cressen penetrou no estômago do dragão. Por sobre o tinir de facas e pratos, e o profundo burburinho das conversas de mesa, ouviu Cara-Malhada cantando"... dançar, senhor, dançar, senhor", acompanhado por guizos dissonantes. A mesma canção horrível que cantara de manhã, "As sombras vêm ficar, senhor, ficar, senhor, ficar, senhor" As mesas inferiores estavam apinhadas de cavaleiros, arqueiros e capitães mercenários, que desfaziam nacos de pão preto para ensopar nos seus guisados de peixe. Ali não havia risos sonoros nem gritos obscenos, como os que acabavam com a dignidade dos banquetes de outros homens, Lorde Stannis não permitia tais coisas. Cressen abriu caminho na direção da plataforma elevada onde os senhores se sentavam com o rei. Teve de fazer um desvio em volta de Cara-Malhada. Dançando, com os guizos tocando, o bobo não o viu nem ouviu seus passos. Enquanto saltitava de uma perna para outra, guinou sobre Cressen, chutando a bengala em que o meistre se apoiava. No meio da afobação, caíram juntos, num emaranhado de braços e pernas, enquanto uma súbita explosão de risos se ergueu à volta deles. Não havia dúvida de que o espetáculo era cômico. 20 Cara-Malhada estatelou-se meio por cima do meistre, com a sua cara tatuada de bobo comprimida contra a de Cressen, Tinha perdido o elmo de latão com chifres e guizos. - Debaixo do mar, caímos para cima - declarou. - Eu sei, eu sei, ei, ei, ei. Aos risinhos, o bobo rolou para longe, pôs-se em pé de um salto e fez uma pequena dança. Tentando tirar o melhor proveito da situação, o meistre deu um frágil sorriso e esforçou-se para se erguer, mas sua bacia doía tanto que, por um momento, chegou a temer que a tivesse quebrado de novo. Sentiu-se sendo agarrado por baixo dos braços por mãos fortes que o puseram em pé. - Obrigado, sor - murmurou, virando-se para ver qual dos cavaleiros tinha vindo ajudá-lo... - Meistre - disse a Senhora Melisandre, com a voz profunda temperada com a música do mar de Jade. - Deveria tomar mais cuidado. Como sempre, trajava vermelho dos pés à cabeça, com um longo vestido solto de seda esvoaçante, brilhante como fogo, com longas mangas pendentes e profundos cortes no corpete, pelos quais se entrevia um tecido mais escuro, vermelho-sangue, que usava por baixo. Tinha em torno da garganta uma gargantilha de ouro vermelho, mais apertada do que qualquer corrente de meistre, ornamentada com um único grande rubi. O cabelo não era de tom alaranjado ou cor de morango dos ruivos comuns, mas de um profundo acobreado lustroso que brilhava à luz das tochas. Até seus olhos eram vermelhos... Mas a pele era lisa e branca, imaculada, clara como leite. E era esguia, graciosa, mais alta que a maior parte dos cavaleiros, com seios fartos, cintura estreita e um rosto em forma de coração. Os olhos dos homens que a encontravam não se afastavam facilmente, nem mesmo os de um meistre. Muitos diziam que era bela, Mas não era. Era vermelha, e terrível, e vermelha. - Eu... lhe agradeço, senhora. - Um homem da sua idade deve ver onde pisa - Melisandre disse cortesmente. - A noite é escura e cheia de terrores. Ele conhecia a frase, uma prece qualquer da fé dela. Não importa, tenho minha própria fé. - Só as crianças temem a escuridão - Cressen respondeu. Mas, mesmo enquanto proferia aquelas palavras, ouviu CaraMalhada retomar sua canção "As sombras vêm dançar, senhor, dançar, senhor, dançar, senhor". - Eis um mistério - disse Melisandre. - Um bobo esperto e um sábio tolo. Dobrando-se, pegou do chão o elmo de Cara-Malhada e o colocou na cabeça de Cressen. Os guizos ressoaram suavemente quando o balde de latão deslizou sobre suas orelhas. - Uma coroa para combinar com a sua corrente, Senhor Meistre - ela anunciou. Por todos os lados, os homens riam. Cressen apertou os lábios e lutou para controlar a ira. Ela o via como frágil e impotente, mas aprenderia que não era assim, antes de a noite acabar, Podia ser velho, mas ainda era um meistre da Cidadela. - Não necessito de coroa alguma além da verdade - ele respondeu, tirando o elmo do bobo da cabeça. - Há verdades neste mundo que não se ensinam em Vilavelha. Melisandre virou as costas num redemoinho de seda vermelha e abriu caminho de volta à mesa elevada, onde se encontravam o Rei Stannis e sua rainha. Cressen entregou o balde de latão com chifres a Cara-Malhada e fez menção de segui-la. Meistre Pylos estava sentado no seu lugar, O velho só conseguiu ficar parado, encarando-o.
21 - Meistre Pylos - disse por fim. - Você... você não me acordou. - Sua Graça ordenou-me que o deixasse repousar - Pylos teve pelo menos a cortesia de corar. - Disse-me que sua presença aqui não era necessária. Cressen examinou por cima os cavaleiros, capitães e senhores que se sentavam em silêncio. Lorde Celtigar, idoso e amargo, vestia um manto com um padrão de caranguejos vermelhos realçados com granadas. O belo Lorde Velaryon tinha escolhido seda verde-mar, e o cavalo-marinho de ouro branco que trazia à garganta combinava com seus longos cabelos claros. Lorde Bar Emmon, um roliço rapaz de catorze anos, estava coberto de veludo roxo debruado com pele de foca branca; Sor Axell Florent permanecia modesto, mesmo vestido de cor ferrugem e pele de raposa, O piedoso Lorde Sunglass usava selenite na garganta, no pulso e nos dedos, e o capitão liseno Salladhor Saan era um esplendor de cetim escarlate, ouro e jóias. Só Sor Davos vestia-se de forma simples, com um gibão marrom e um manto de lã verde, e só ele enfrentou seu olhar, com piedade nos olhos. - Está doente e confuso demais para me ser útil, velho - soava tanto como a voz de Lorde Stannis, mas não podia ser, não podia, - Daqui em diante, Pylos irá me aconselhar. Já cuida dos corvos, uma vez que você já não é capaz de subir até o viveiro. Não deixarei que se mate a meu serviço. Meistre Cressen pestanejou. Stannis, meu senhor, meu triste rapaz carrancudo, filho que nunca tive, não pode fazer isso. Não sabe como me preocupei com você, vivi para você, amei você apesar de tudo? Sim, amei-o, mais até do que a Robert, ou a Renly, pois você era o mal-amado, aquele que mais precisava. Mas tudo o que disse foi: - As suas ordens, senhor, mas... Tenho fome. Poderia ocupar um lugar à sua mesa? - ao seu lado, o meu lugar é ao seu lado... Sor Davos levantou-se do banco. - Ficaria honrado se o meistre se sentasse aqui ao meu lado, Vossa Graça. - Como quiser - Lorde Stannis respondeu e se virou para dizer qualquer coisa a Melisandre, que tinha se sentado do seu lado direito, lugar de grande honra. A Senhora Selyse estava à sua esquerda, ostentando um sorriso tão brilhante e anguloso como as suas jóias. Longe demais, pensou Cressen, atordoado, olhando para onde Sor Davos estava sentado. Metade dos senhores vassalos separava o contrabandista da mesa elevada. Tenho de ficar mais perto dela se quiser pôr o estrangulador na sua taça. Mas como? Cara-Malhada dava piruetas por ali, enquanto o meistre fazia seu lento trajeto em volta da mesa até Davos Seaworth. - Aqui comemos peixe - declarou o bobo em tom feliz, brandindo um bacalhau como se fosse um cetro. - Debaixo do mar, os peixes nos comem. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei. Sor Davos afastou-se para o lado, a fim de arranjar espaço no banco, - Hoje devíamos estar todos vestidos de bufões - ele disse lugubremente quando Cressen se sentou - , pois o que estamos fazendo é coisa de bobo. A mulher vermelha viu vitória nas suas chamas; portanto, Stannis deseja insistir na sua pretensão, sem se importar com os números. Receio que, antes de ela terminar, é provável que todos vejamos o que o Cara-Malhada viu... o fundo do mar. Cressen enfiou as mãos nas mangas, como se procurasse aquecê-las. Os dedos encontraram os caroços que os cristais faziam na lã. - Lorde Stannis. Stannis afastou o olhar da mulher vermelha, mas foi Selyse quem respondeu. 22 - Rei Stannis. Esqueceu-se do seu lugar, meistre. - Ele é velho, sua mente divaga - disse-lhe o rei num tom rabugento. - Que foi, Cressen? Diga o que está pensando. - Visto que pretende zarpar, é vital que faça causa comum com Lorde Stark e a Senhora Arryn... - Não faço causa comum com ninguém - Stannis Baratheon respondeu. - Assim como a luz não faz causa comum com a escuridão - a Senhora Selyse tomou sua mão. Stannis concordou com a cabeça. - Os Stark tentam roubar metade do meu reino, tal como os Lannister me roubaram o trono e o meu querido irmão, as espadas, servidores e fortalezas, que são meus de direito. São todos usurpadores, e são todos meus inimigos. Perdi-o, Cressen pensou, desesperando-se. Se ao menos conseguisse, de algum modo, se aproximar de Melisandre sem ser visto... Não precisava de mais do que um instante de proximidade da sua taça. - O senhor é o herdeiro legítimo do seu irmão Robert, o verdadeiro Senhor dos Sete Reinos, e Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens - Cressen disse, desesperadamente. - Mas, mesmo assim, não pode crer em um triunfo sem aliados. - Ele tem um aliado - interveio a Senhora Selyse. - Rhllor, o Senhor da Luz, o Coração do Fogo, o Deus da Chama e da Sombra. - Os deuses são, na melhor das hipóteses, aliados incertos - insistiu o velho. - E esse não tem poder nenhum aqui. - Acredita que não? O rubi preso ao pescoço de Melisandre capturou a luz quando ela virou a cabeça, e por um instante pareceu brilhar tão luminoso como o cometa. - Se acredita em tal besteira, Meistre, deveria voltar a colocar sua coroa. - Sim - concordou a Senhora Selyse. - O elmo do Malhada. Cai bem em você, velho. Volte a colocá-lo, eu ordeno. - Debaixo do mar ninguém usa chapéus - cantarolou Cara-Malhada. - Eu sei, eu sei, ei, ei, ei. Os olhos de Lorde Stannis estavam na sombra das suas pesadas sobrancelhas, sua boca, apertada, enquanto o maxilar trabalhava em silêncio. Rangia os dentes sempre que se zangava. - Bobo - ele rosnou por fim - , a senhora minha esposa ordena. Dê o elmo a Cressen. Não, pensou o velho meistre, este não é você, não é o seu jeito, sempre foi justo, sempre duro, mas nunca cruel, nunca, não compreendia a gozação, assim como não compreendia o riso.
Cara-Malhada se aproximou dançando, fazendo soar os guizos, clang-a-clang, ding-ding, clinc-clanc-clinc-clanc. O meistre ficou sentado, em silêncio, enquanto o bobo punha o balde com chifres na sua cabeça. Cressen abaixou a cabeça com o peso. Os sinos ressoaram. - Talvez ele deva, daqui para a frente, cantar os seus conselhos - disse a Senhora Selyse. - Foi longe demais, mulher - repreendeu-a Lorde Stannis. - E um velho, e serviu-me bem. E servirei até o fim, meu querido senhor, meu pobre filho solitário, pensou Cressen. E, de repente, descobriu um jeito. A taça de Sor Davos estava na sua frente, ainda com tinto amargo pela metade. Encontrou uma dura lasca de cristal na manga, apertou-a bem entre o indicador e o polegar enquanto estendia a mão para a taça. Movimentos suaves, hábeis, agora não posso me atrapalhar, rezou, e os deuses mostraram-se bondosos. N um piscar de olhos, os dedos ficaram vazios. Havia 23 anos que suas mãos não tinham estado tão firmes, nem com metade daquela leveza. Davos viu, mas mais ninguém, tinha certeza. De taça na mão, levantou-se. - Talvez tenha sido um tolo. Senhora Melisandre, quer partilhar comigo uma taça de vinho? Uma taça em honra do seu deus, do seu Senhor da Luz? Uma taça para brindar ao poder dele? A mulher vermelha o estudou. - Se quiser... Podia sentir que todos o observavam. Davos agarrou-o quando se levantou do banco, prendendo sua manga com os dedos que Lord Stannis tinha encurtado. - O que está fazendo? - sussurrou. - Uma coisa que tem de ser feita - respondeu meistre Cressen. - Para o bem do reino e da alma do meu senhor - sacudiu a mão de Davos, derramando uma gota de vinho nas esteiras. Encontraram-se sob a mesa elevada, com os olhos de todos os homens sobre eles. Mas Cressen só via a mulher. Seda vermelha, olhos vermelhos, o rubi vermelho no pescoço, lábios vermelhos encurvados num tênue sorriso quando colocou a mão sobre a dele, em torno da taça. A pele dela pareceu-lhe quente, febril. - Não é tarde demais para jogar o vinho fora, meistre. - Não -murmurou roucamente. - Não. - Como quiser. Melisandre de Asshai tirou a taça de suas mãos e bebeu, longa e profundamente. Quando a devolveu, restava apenas meio gole de vinho no fundo. - E agora você. As mãos de Cressen tremiam, mas obrigou-se a ser forte. Um meistre da Cidadela não devia ter medo. Sentiu o vinho amargo na língua. Deixou a taça vazia cair dos seus dedos e se estilhaçar no chão. - Ele tem poder aqui, senhor - disse a mulher. - E o fogo purifica - na sua garganta, o rubi cintilava, vermelho. Cressen tentou responder, mas as palavras ficaram presas na garganta. Sua tosse transformou-se num terrível assobio agudo quando tentou inspirar. Dedos de ferro apertaram-se em torno do seu pescoço. Quando caiu de joelhos, ainda balançava a cabeça, negando-a, negando seu poder, sua magia, negando o seu deus. E os guizos tiniam nos chifres, cantando tolo, tolo, tolo, enquanto a mulher vermelha o olhava com piedade, e as chamas das velas dançavam nos seus olhos tão... tão vermelhos. 24 ARYA Em Winterfell tinha sido chamada "Arya Cara de Cavalo", e Arya pensara, então, que nada poderia ser pior. Mas isso foi antes de o órfão Lommy Mãos-Verdes tê-la apelidado de "Cabeça de Caroço". Sua cabeça parecia ter caroços quando a tocava. Quando Yoren a arrastara para aquele beco, Arya achou que quisesse matá-la, mas o amargo velho limitou-se a segurá-la firme, abrindo caminho com o punhal pelas suas madeixas emaranhadas. Lembrava-se de como a brisa tinha soprado os punhados de cabelo castanho sujo sobre as pedras do pavimento, em direção ao septo onde o pai morrera. - Estou levando homens e rapazes da cidade - Yoren tinha resmungado, enquanto o aço afiado raspava sua cabeça. - Agora fica quieto, rapaz, Quando ele terminou, não havia nada na cabeça além de tufos de cabelos cortados curtos. Mais tarde, Yoren disse que dali até Winterfell ela seria Arry, o órfão. - O portão não deve ser difícil, mas a estrada é outra coisa. Tem muito chão pela frente com más companhias. Desta vez tenho trinta, homens e garotos, todos a caminho da Muralha, e não pense que são como aquele seu irmão bastardo - ele a sacudiu. - Lorde Eddard me deixou escolher nas masmorras, e lá embaixo não encontrei nenhum cavalheiro. Desses aí, metade entregava você pra rainha num piscar de olhos em troca de um perdão e, de quebra, umas moedas de prata. A outra metade fazia o mesmo, só que te estuprava primeiro. Por isso, fique quieta e só tire água do joelho na floresta, sozinha. Isso deve ser o mais difícil, o xixi, então, não beba mais do que precisa. Deixar Porto Real foi fácil, como ele tinha dito. Os guardas Lannister no portão mandavam parar todo mundo, mas Yoren chamou um deles pelo nome, e com um gesto mandaram as carroças em que seguiam avançar. Ninguém olhou sequer de relance para Arya. Estavam à procura de uma moça bem-nascida, filha da Mão do Rei, não de um rapaz magricela com o cabelo cortado. Arya não olhou para trás, Gostaria que a Torrente transbordasse e levasse a cidade inteira, o Baixio das Pulgas, a Fortaleza Vermelha, o Grande Septo, tudo, e todos também, especialmente o Príncipe Joffrey e a mãe dele. Mas sabia que isso não aconteceria, e, de qualquer modo, Sansa ainda estava na cidade, e seria levada também. Quando se lembrou disso, Arya decidiu que o melhor era desejar chegar a Winterfell. Mas Yoren tinha se enganado sobre o xixi. Não era a parte mais difícil, mas, sim Lommy Mãos-Verdes e o Torta Quente. Órfãos. Yoren pescara alguns das ruas, prometendo comida para as barrigas e sapatos para os pés. Os demais, tinha encontrado acorrentados. - A Patrulha precisa de bons homens - ele lhes disse quando se puseram a caminho - , mas vocês terão que servir. 25
Yoren também tirara marmanjos das masmorras, ladrões, caçadores furtivos, estupradores e afins. Os piores eram os três que tinha encontrado nas celas negras, que até a ele deviam assustar, porque os mantinha acorrentados pelos pés e pelas mãos na parte de trás de uma carroça, e garantia que os manteria presos ao longo de todo o caminho até a Muralha. Um deles não tinha nariz, mas apenas um buraco onde ele havia sido cortado, e o careca gordo com dentes pontiagudos e feridas úmidas nas bochechas tinha olhos nada humanos. Saíram de Porto Real com cinco carroças carregadas com abastecimento para a Muralha: peles e rolos de tecido, barras de ferro-gusa, uma gaiola de corvos, livros, papel e tinta, um fardo de folhamarga, vasilhas de óleo e baús de medicamentos e especiarias. Parelhas de cavalos de tração puxavam as carroças, e Yoren comprou dois corcéis e meia dúzia de burros para os rapazes. Arya teria preferido um cavalo verdadeiro, mas o burro era melhor do que seguir numa carroça. Os homens não prestavam atenção nela, mas não teve a mesma sorte com os garotos. Era dois anos mais nova do que o órfão mais jovem, sem contar que também era menor e mais magra, e Lommy e Torta Quente julgavam que seu silêncio significava que estava assustada, ou que era estúpida ou surda. - Olha aquela espada que o Cabeça de Caroço tem - disse Lommy uma manhã, enquanto abriam seu penoso caminho por entre pomares e campos de trigo. Tinha sido aprendiz de tintureiro antes de ser apanhado roubando, e seus braços eram salpicados de verde até o cotovelo. Quando ria, zurrava como os burros que montavam. - Onde é que um rato de esgoto como o Cabeça de Caroço arranjou uma espada? Arya mordeu o lábio, carrancuda. Podia ver as costas do manto negro desbotado de Yoren à frente das carroças, mas estava decidida a não ir implorar por sua ajuda. - Talvez seja um escudeirozinho - sugeriu Torta Quente. Sua mãe tinha sido padeira até morrer, e ele tinha passado dias inteiros empurrando o carrinho de mão pelas ruas, gritando "Tortas quentes! Tortas quentes!", - Um escudeirozinho de um senhorzinho de nada, é isso. - Escudeiro, nada, olha pra ele. Aposto que aquilo nem é uma espada de verdade. Aposto que é uma espada de brincar feita de latão. Arya detestava que zombassem de Agulha. - E aço forjado em castelo, seu estúpido - exclamou, virando-se na sela para encará-los. – E é melhor que cale a boca. Os órfãos vaiaram. - Onde arranjou uma arma dessas, Cara de Caroço? - quis saber Torta Quente. - É Cabeça de Caroço - Lommy corrigiu. - Deve ter roubado. - Não roubei nadai - Arya gritou. Jon Snow tinha lhe dado Agulha, Talvez tivesse de deixar que a chamassem Cabeça de Caroço, mas não ia deixar que chamassem Jon de ladrão. - Se roubou a espada, podíamos pegá-la dele - Torta Quente sugeriu. - De qualquer maneira, não é dele. Eu não me importava de ter uma dessas na mão, Lommy o incitou. - Vai lá, duvido que pegue. Torta Quente enfiou os calcanhares no burro, aproximando-se. - Ei, Cabeça de Caroço, me dá essa espada - seu cabelo era cor de palha e a cara gorda, queimada pelo sol, descarnava. - Você não sabe usá-la. Sei, sim, Arya podia ter dito. Matei um garoto, um garoto gordo como você. Dei uma estocada na barriga dele e ele morreu, e mato você também se não me deixar em paz. Mas não se atreveu. Yoren não sabia nada sobre o cavalariço, e ela tinha medo do que pudesse fazer se descobrisse. Arya 26 tinha certeza de que alguns dos outros homens também eram assassinos, os três das algemas com certeza, mas a rainha não estava à procura deles, então não era a mesma coisa. - Olha pra ele - zurrou Lommy Mãos-Verdes. - Aposto que vai começar a chorar. Quer chorar, Cabeça de Caroço? Arya tinha chorado durante o sono na noite anterior, sonhando com o pai. Ao amanhecer, acordou de olhos vermelhos e secos, e não teria conseguido derramar nem mais uma lágrima, nem que sua vida dependesse disso. - Vai molhar as calças - sugeriu Torta Quente. - Deixem-no em paz - disse o rapaz com o cabelo preto crespo, que cavalgava atrás. Lommy lhe dera o apelido de Touro, por causa do elmo com cornos que tinha e que polia o tempo todo, mas nunca usava. Lommy não se atrevia a caçoar do Touro, Era mais velho, e grande para a idade, com um peito largo e braços de aspecto forte. - É melhor dar a espada ao Torta Quente, Arry - Lommy disse. - O Torta Quente a quer muito. Matou um rapaz a chutes. Aposto que vai fazer o mesmo com você. - Atirei-o ao chão e chutei suas bolas, e continuei a chutá-lo até estar morto - vangloriou-se Torta Quente. - Estraçalhei o cara a pontapés. Ficou com as bolas estouradas, sangrando, e o pinto preto. É melhor me dar a espada. Arya puxou a espada de treino do cinto. - Pode ficar com esta - ela respondeu, sem querer lutar. - Isso é só um pau qualquer. O rapaz se aproximou e tentou alcançar o cabo da Agulha. Arya fez o pau assobiar ao bater com a madeira nas ancas do burro dele. O animal soltou um zurro e deu um salto, arqueando o dorso e atirando Torta Quente no chão. Arya fez seu próprio burro dar meia-volta e espetou o pau na barriga do rapaz quando tentava se levantar, obrigando-o a se sentar de novo com um grunhido. Então, bateu na sua cara, e o nariz dele estalou como um galho quando se quebra. Sangue escorreu de suas narinas. Quando Torta Quente começou a gemer, Arya virou-se para Lommy Mãos-Verdes, que continuava montado no burro, de boca aberta: - Também quer provar um pouco da espada? - ela gritou, mas ele não queria. Ergueu as mãos tingidas de verde na frente da cara e guinchou que ela se afastasse. Touro gritou: - Atrás de você! Arya rodopiou. Torta Quente estava de joelhos, com o punho fechado segurando uma grande pedra irregular. Arya deixou que a atirasse, abaixando a cabeça quando a pedra passou. Depois, saltou para cima dele. Ele levantou uma mão, e Arya  bateu nela, e depois na cara, e depois no joelho. Ele tentou agarrá-la, mas ela se afastou, dançando, e deu com a madeira na nuca dele. Ele caiu, se levantou e tropeçou ao ir atrás dela, com a cara vermelha toda manchada de terra e sangue. Arya adotou uma pose de dançarina de água e esperou. Quando ele chegou suficientemente perto, lançou uma estocada, bem no meio das pernas, com tanta força que, se a espada de madeira tivesse uma ponta, teria saído por entre as nádegas dele. Quando Yoren a puxou para cima, Torta Quente estava estatelado no chão, com os calções marrons e fedidos, chorando, enquanto Arya batia e voltava a bater. - Basta - rugiu o irmão negro, arrancando a espada de madeira dos dedos dela. – Quer matar esse babaca? - quando Lommy e alguns dos outros começaram a chiar, o velho virou-se também para eles. - Calem a boca vocês também, senão vou fazer com que se calem. Se 27 continuarem com isso, amarro todos atrás das carroças e arrasto vocês até a Muralha – Yoren cuspiu. - E isso vale em dobro para você, Arry. Anda comigo, rapaz. Já. Estavam todos olhando para ela, até os três acorrentados e algemados na parte de trás da carroça. O gordo bateu os dentes pontiagudos uns nos outros e silvou, mas Arya o ignorou. O velho a arrastou até bem longe, num emaranhado de árvores longe da estrada, praguejando e resmungando o tempo inteiro. - Se eu tivesse um pingo de juízo, tinha deixado você em Porto Real. Está me ouvindo, rapaz? - Yoren rosnava sempre aquela palavra, dando-lhe peso para que ela não deixasse de ouvida. - Desamarre o calção e abaixe-o. Vai, aqui não tem ninguém vendo. Faz o que eu digo. Carrancuda, Arya fez o que ele dizia. - Ali, j u n to do carvalho. Isso, assim mesmo - Arya abraçou o tronco e comprimiu a cara contra a madeira rugosa. - Agora grita. Grita com força. Não gritarei, pensou Arya teimosamente, mas, quando Yoren bateu com o pau na parte de trás das suas coxas nuas, o guincho saiu, mesmo sem permissão. - Acha que isso doeu? - ele perguntou. - Experimenta isto. O pau caiu assobiando. Arya voltou a guinchar, agarrando-se à árvore para não cair. - Mais uma vez. Ela se agarrou mais, mordendo o lábio, estremecendo quando ouviu o pau chegando. A pancada fez Arya saltar e uivar. Não chorarei, pensou, não farei isso. Sou uma Stark de Winterfell, nosso símbolo é o lobo gigante, e 05 lobos gigantes não choram. Sentia um estreito fio de sangue escorrendo pela perna esquerda. Suas coxas e nádegas ardiam de dor. - Pode ser que agora eu tenha a sua atenção - disse Yoren. - Da próxima vez que levantar o pau contra um dos seus irmãos, levará o dobro do que der, está me ouvindo? Agora, vista-se. Eles não são meus irmãos, Arya pensou, enquanto se dobrava para puxar os calções, mas sabia que não devia dizer aquilo. As mãos atrapalharam-se com o cinto e os cordões. Yoren estava olhando para ela: - Tá sentindo dor? Calma como águas paradas, disse ela a si mesma, como Syrio Forel lhe ensinara. - Um pouco. Ele cuspiu. - Aquele menino das tortas sentiu mais. Não foi ele que matou seu pai, menina, nem o ladrão do Lommy. Bater neles não vai trazê-lo de volta. - Eu sei - Arya resmungou, carrancuda. - Mas tem uma coisa que você não sabe. Aquilo não deveria ter acontecido como aconteceu. Tava pronto para ir embora, com as carroças compradas e carregadas, e chega um homem com um rapaz pra mim, uma bolsa de dinheiro e uma mensagem, não me pergunte de quem. "O Lorde Eddard deve vestir o negro", ele me disse/espera, ele vai contigo". Por que você acha que eu tava lá? Só que alguma coisa deu errado. - Jojfrey - Arya exclamou. - Alguém deveria matá-lo! - Alguém vai matar, mas não será você nem eu - Yoren jogou de volta para ela a espada de madeira. - Tem folhamarga nas carroças - ele disse, enquanto voltavam à estrada. - Mastiga um pouco, vai ser bom para a dor. De fato foi bom, um pouco, embora o gosto fosse ruim e deixasse seu cuspe parecido com sangue. Mesmo assim, seguiu o resto do dia a pé, e o dia seguinte, e o outro depois desse, dolorida demais para se sentar num burro. Torta Quente estava pior. Yoren teve de mudar algumas barricas 28 de lugar para que ele pudesse deitar na parte de trás de uma carroça, em cima de umas sacas de cevada, e choramingava cada vez que as rodas batiam numa pedra, Lommy Mãos-Verdes não estava sequer machucado, mas mantinha-se o mais longe possível de Arya. - Sempre que olha para ele, ele se encolhe - Touro disse a Arya enquanto caminhava ao lado do seu burro. Ela não respondeu. Parecia ser mais seguro não falar com ninguém. Naquela noite, ficou deitada na sua manta fina no chão duro, fitando o grande cometa vermelho. Era magnífico e assustador ao mesmo tempo. "A Espada Vermelha", assim Touro o chamara; dizia que parecia uma espada, com a lâmina ainda incandescente da forja, Quando Arya o olhava de soslaio, da maneira certa, também conseguia ver a espada, mas não era uma espada nova, era Gelo, a espada longa do pai, toda feita de aço valiriano ondulado, e o vermelho era o sangue de Lorde Eddard na lâmina depois de Sor Ilyn, o Magistrado do Rei, ter cortado sua cabeça. Yoren a obrigara a afastar o olhar quando aquilo aconteceu, mas ela acreditava que o aspecto do cometa devia ser como o que a espada deve ter tomado depois. Quando por fim adormeceu, sonhou com seu lar. A estrada do rei serpenteava ao longo de Winterfell a caminho da Muralha, e Yoren havia prometido que a deixaria lá sem que ninguém ficasse sabendo nada sobre quem era. Ansiava por voltar a ver a mãe, e Robb, Bran e Rickon... mas era em Jon Snow que mais pensava. Desejava que de algum modo pudessem chegar à Muralha antes de Winterfell, para que Jon pudesse despentear seu cabelo e chamá-la de "irmãzinha".
Diria "tive saudades de você" e ele diria a mesma coisa no mesmo instante, do modo como costumavam sempre dizer as coisas juntos. Ela gostaria disso, Gostaria mais disso do que de qualquer outra coisa. 29 SANSA Odia do nome do Rei Joffrey amanheceu claro e ventoso, com a longa cauda do grande cometa visível por entre nuvens altas e rápidas. Sansa a observava da janela de sua torre quando Sor Arys Oakheart chegou para escoltá-la até o campo de torneios. - O que você acha que significa? - ela lhe perguntou. - Glória para o seu prometido - Sor Arys respondeu de imediato. - Veja como flameja pelo céu hoje, no dia do nome de Sua Graça, como se os próprios deuses tivessem içado um estandarte em sua honra. O povo o chamou Cometa do Rei Joffrey. Sem dúvida era isso que diziam a Joffrey, mas Sansa não tinha tanta certeza de que fosse verdade. - Ouvi criados chamarem de Cauda do Dragão. - Rei Joffrey ocupa o lugar que antigamente foi de Aegon, o Dragão, no castelo construído por seu filho - disse Sor Arys. - E ele o herdeiro do dragão... E o carmim é a cor da Casa Lannister, outro sinal. Este cometa foi enviado para anunciar a ascensão de Joffrey ao trono, não tenho qualquer dúvida. Significa que triunfaremos sobre os seus inimigos. Será verdade?, perguntou Sansa a si mesma. Seriam 05 deuses tão cruéis assim? Sua mãe era agora um dos inimigos de Joffrey, e seu irmão Robb, outro. Seu pai tinha morrido por ordem do rei. Deveriam Robb e sua mãe morrer em seguida? O cometa era vermelho, mas Joffrey era tanto Baratheon como Lannister, e o símbolo Baratheon era um veado negro em fundo dourado. Não deveriam os deuses ter mandado a j o f f um cometa dourado? Sansa fechou as venezianas e deu as costas à janela bruscamente. - Está adorável hoje, minha senhora - Sor Arys a elogiou. - Obrigada, sor. Sabendo que Joffrey exigiria que ela comparecesse ao torneio organizado em sua honra, Sansa tinha tomado especial cuidado com seu rosto e suas roupas. Usava um vestido de seda lilás e uma rede de selenitas para o cabelo, presente de Joffrey. O vestido tinha mangas compridas para esconder os hematomas que trazia nos braços. Estes também presentes de Joffrey. Quando lhe disseram que Robb tinha sido proclamado Rei no Norte, sua ira havia sido terrível, e mandara Sor Boros bater nela, - Vamos? - Sor Arys ofereceu o braço, e Sansa deixou que a levasse dos seus aposentos. Se tinha de ter um membro da Guarda Real seguindo seus passos, preferia que fosse ele. Sor Boros tinha um temperamento irritável, Sor Meryn era frio, e os estranhos olhos mortos de Sor Mandon deixavam-na pouco à vontade, enquanto Sor Preston a tratava como uma criança estúpida. Arys Oakheart era cortês e falava com ela cordialmente. Uma vez até questionou quando Joffrey lhe ordenara que batesse nela. Acabou batendo, mas não com tanta força como Sor Meryn ou 30 Sor Boros teriam feito, e pelo menos discutira. Os outros obedeciam sem questionar... Exceto Cão de Caça, mas Joff nunca pedia a ele para puni-la. Para isso usava os outros cinco. Sor Arys tinha cabelo castanho-claro e um rosto que não era desagradável de contemplar, Hoje, estava um tanto elegante, com o manto de seda branca preso ao ombro por uma folha dourada, e um grande carvalho bordado no peito da sua túnica em brilhante fio de ouro. - Quem acha que conquistará as honras do dia? - Sansa perguntou, enquanto desciam os degraus de braços dados. - Eu - Sor Arys respondeu, sorrindo. - Mas temo que o triunfo não tenha sabor. Esta será uma competição pequena e pobre. Não mais de duas vintenas entrarão na arena, incluindo escudeiros e cavaleiros livres. Pouca honra se conquista derrubando garotinhos inexperientes. Sansa lembrou-se de que o último torneio tinha sido diferente. O Rei Robert organizara-o em honra a seu pai. Grandes senhores e campeões famosos tinham vindo de todo o reino para competir, e a cidade inteira apareceu para assistir. Recordava o esplendor. O parque de pavilhões ao longo do rio, com o escudo de um cavaleiro pendurado na frente de cada porta, as longas fileiras de flâmulas de seda esvoaçando ao vento, o brilho do sol em aço cintilante e esporas douradas. Os dias ressoaram ao som das trombetas e de cascos de cavalos, e as noites tinham se enchido de banquetes e canções. Aqueles tinham sido os dias mais mágicos da sua vida, mas agora pareciam a recordação de uma outra era, Robert Baratheon estava morto, e seu pai também, decapitado como traidor nos degraus do Grande Septo de Baelor. Agora havia três reis na nação, e a guerra assolava o Tridente, enquanto a cidade se enchia de homens desesperados. Não surpreendia que tivessem tido de montar o torneio de Joff atrás das espessas muralhas de pedra da Fortaleza Vermelha. - Acha que a rainha comparecerá? - Sansa sentia-se sempre mais segura quando Cersei estava presente para refrear o filho. - Temo que não, senhora. O conselho está reunido, algum assunto urgente - Sor Arys baixou a voz. - Lorde Tywin instalou-se em Harrenhal, em vez de trazer seu exército para a cidade, como a rainha ordenou. Sua Graça está furiosa. Ele ficou em silêncio, enquanto uma coluna de guardas Lannister passava por eles marchando, vestidos com mantos carmesim e elmos encimados por leões, Sor Arys adorava fofocar, mas só quando tinha certeza de que ninguém o estava ouvindo. Os carpinteiros tinham erigido uma galeria e uma arena entre as muralhas. Era, de fato, uma coisa medíocre, e a magra afluência de pessoas que tinha vindo assistir ao torneio não enchia mais do que metade dos lugares. A maior parte dos espectadores era de guardas de mantos dourados da Patrulha da Cidade, ou de mantos carmesim da Casa Lannister; senhores e senhoras não eram mais do que um punhado insignificante, os poucos que permaneciam na corte. Lorde Gyles Rosby, com sua cara cinzenta, tossia em um quadrado de seda cor-de-rosa. A Senhora Tanda estava rodeada pelas filhas, a plácida e aborrecida Lollys, e a mordaz Falyse. Jalabhar Xho, de pele de ébano, era um exilado que não tinha nenhum outro refúgio, a Senhora Ermesande, e um bebê, sentado no colo da ama de leite. Segundo se dizia, ela deveria ser casada em breve com um dos primos da rainha, para que os Lannister pudessem reclamar as suas terras.
O rei estava protegido do sol por uma abóbada carmesim, com uma perna jogada negligentemente sobre o braço de madeira esculpida da cadeira. A Princesa Myrcella e o Príncipe Tommen estavam sentados atrás dele. No fundo do camarote real, Sandor Clegane montava guarda, descansando as mãos no cinto da espada. Tinha o manto branco da Guarda Real enrolado sobre os ombros largos e preso com um broche cravejado de jóias. O pano, branco como 31 a neve, parecia de certo modo pouco natural sobre sua túnica marrom de tecido grosseiro e justilho de couro com rebites. - Senhora Sansa - anunciou secamente Cão de Caça quando a viu. Sua voz era áspera como o som de uma serra na madeira. As cicatrizes de queimaduras no seu rosto faziam com que um dos lados da boca se torcesse quando falava. A Princesa Myrcella fez um tímido aceno de saudação ao ouvir o nome de Sansa, mas o pequeno e roliço Príncipe Tommen saltou, cheio de entusiasmo. - Sansa, já te disseram? Hoje devo participar do torneio. A mãe disse que eu podia. Tommen não tinha mais do que oito anos. Fazia Sansa lembrar-se do irmão mais novo, Bran. Eram da mesma idade. Bran estava em Winterfell, aleijado, mas em segurança, e ela daria qualquer coisa para estar com ele. - Temo pela vida do seu oponente - ela lhe disse solenemente. - O oponente dele estará estofado com palha - disse Joff a se colocar de pé. O rei trajava uma placa de peito dourada com um leão rugindo gravado, como se esperasse que a guerra o tragasse a qualquer momento. Fazia naquele dia treze anos, e era alto para a idade, com os olhos verdes e o cabelo dourado dos Lannister. - Vossa Graça - disse ela, fazendo uma reverência. Sor Arys também fez uma reverência. - Peço que me perdoe, Vossa Graça. Tenho de ir me equipar para a arena. Joffrey o mandou embora com um aceno brusco, enquanto estudava Sansa da cabeça aos pés. - Fico contente que tenha usado as minhas pedras. Então, o rei decidira desempenhar hoje um papel galante. Sansa sentiu-se aliviada. - Agradeço-lhe por elas... e pelas suas ternas palavras. Desejo-lhe um afortunado dia do seu nome, Vossa Graça. - Sente-se - Joffrey ordenou, indicando-lhe com um gesto a cadeira vazia ao lado da sua. – Já lhe informaram? O Rei Pedinte está morto. - Quem? - por um momento, Sansa sentiu receio de que ele se referisse a Robb. - Viserys. O último filho do Rei Louco Aerys. Esteve andando pelas Cidades Livres desde antes do meu nascimento, chamando a si próprio rei. Bem, a mãe diz que os dothrakis finalmente o coroaram. Com ouro derretido - soltou uma gargalhada. - E engraçado, não é? O dragão era o seu símbolo. E quase tão bom como se um lobo qualquer matasse o traidor do seu irmão. Talvez eu o dê de comida aos lobos depois de capturá-lo. Já lhe disse que pretendo desafiá-lo para um duelo? - Gostaria de assistir a isso, Vossa Graça - mais do que você pensa. Sansa manteve o tom calmo e educado, mas mesmo assim os olhos de Joffrey estreitaram-se enquanto tentava decidir se estaria caçoando dele. - Vai participar da justa hoje? - ela perguntou rapidamente. O rei franziu a testa. - A senhora minha mãe disse que não seria adequado, pois o torneio é em minha honra. De outro modo, eu seria o campeão, Não é verdade, Cão? A boca do Cão de Caça retorceu-se. - Contra esses aí? E por que não? Sansa lembrou-se de que ele tinha sido campeão no torneio do pai. - Irá competir hoje, senhor? - ela lhe perguntou. A voz de Clegane soou repleta de desprezo. - Nem valeria o esforço de me armar. Isto é um torneio de mosquitos. 32 O rei soltou uma gargalhada. - Meu cão ladra ferozmente. Talvez eu deva lhe ordenar que combata o campeão do dia. Até a morte - Joffrey gostava de obrigar os homens a lutar até a morte. - Ficaria com um cavaleiro a menos. Cão de Caça nunca tinha prestado juramento de cavalaria, O irmão era um cavaleiro, e ele o odiava. Soou um toque de trombeta. O rei voltou a se instalar na sua cadeira e tomou a mão de Sansa na sua. Em outros tempos, aquilo teria feito seu coração disparar, mas isso havia sido antes de ele ter respondido à sua súplica por misericórdia apresentando-lhe a cabeça do pai, Agora, aquele toque enchia-a de repulsa, mas sabia que não devia demonstrá-la. Obrigouse a ficar sentada, muito quieta. - Sor Meryn Trant, da Guarda Real - gritou um arauto. Sor Meryn entrou, vindo do lado ocidental do pátio, usando uma placa de cintilante aço branco com filetes dourados, montando um cavalo branco lei toso com uma crina cinza esvoaçante. O manto fluía atrás dele como um campo de neve. Portava uma lança de três metros e meio. - Sor Hobber, da Casa Redwyne, da Arvore - cantou o arauto. Sor Hobber surgiu a trote, vindo do leste, montando um garanhão negro coberto de tecido borgonha e azul. Sua lança era listrada nas mesmas cores, e o escudo ostentava o símbolo do cacho de uvas da sua Casa. Os gêmeos Redwyne eram hóspedes involuntários da rainha, tal como Sansa. Perguntou a si mesma de quem teria sido a idéia da sua participação no torneio de Joffrey. Deles, aposto que não, pensou. A um sinal do mestre das festividades, os combatentes assentaram as lanças e esporearam as montarias. Ouviram-se gritos vindos da assistência de guardas e de senhores e senhoras na galeria. Os cavaleiros chocaram-se no centro do pátio com um grande estrondo de madeira e aço. As lanças branca e a listrada explodiram em lascas com um segundo de diferença uma da outra, Hobber Redwyne oscilou com o impacto, mas de algum modo conseguiu se manter montado. Dando a volta com os cavalos na extremidade da arena, os cavaleiros jogaram fora as lanças quebradas e receberam substitutas das mãos dos escudeiros. Sor Horas Redwyne, irmão gêmeo de Sor Hobber, gritou incentivos ao irmão.
Mas, na segunda passagem, Sor Meryn balançou a ponta da sua lança para atingir Sor Hobber no peito, derrubando-o da sela e fazendo-o estatelar-se com um retumbante estrondo no chão. Sor Horas soltou uma praga e correu para ajudar o irmão exaurido a sair do campo. - Cavalo mal montado - Rei Joffrey declarou. - Sor Balon Swann, de Pedrelmo, na Atalaia Vermelha - soou o grito do arauto. Grandes asas brancas ornamentavam o elmo de Sor Balon, e cisnes negros e brancos lutavam no seu escudo. - Morros, da Casa Slynt, herdeiro de Lorde Janos de Harrenhal. - Olhe para aquele arrivista imbecil - exclamou Joff, alto o suficiente para que metade do pátio o ouvisse. Morros, um mero escudeiro, e ainda por cima novato nessa posição, tinha dificuldade em manejar a lança e o escudo. Sansa sabia que a lança era uma arma de cavaleiro, e os Slynt eram homens de baixo nascimento. Lorde Janos não havia sido mais do que comandante da Patrulha da Cidade antes de Joffrey tê-lo trazido para o conselho e lhe ter dado Harrenhal. Espero que caia e se envergonhe, pensou com amargura. Espero que Sor Balon o mate. Quando Joffrey proclamou a morte do pai, foi Janos Slynt quem agarrou a cabeça cortada de Lorde Eddard pelo cabelo e a ergueu bem alto para que o rei e a multidão a contemplassem, enquanto Sansa chorava e gritava. 33 Morros usava uma capa com xadrez preto e dourado sobre uma armadura negra, incrustada de arabescos dourados. O escudo exibia a lança ensangüentada que o pai havia escolhido como símbolo da sua nova casa. Mas ele parecia não saber o que fazer com o escudo, enquanto incitava o cavalo a avançar, e a ponta de Sor Balon atingiu o brasão em cheio. Morros soltou a lança, lutou para manter o equilíbrio, mas perdeu. Um pé ficou preso no estribo quando caiu, e o cavalo em fuga arrastou o jovem até o fim da arena, com a cabeça quicando no chão.Joff soltou gritos de escárnio. Sansa ficou aterrorizada, perguntando-se se os deuses teriam escutado sua prece vingativa. Porém, quando desprenderam Morros Slynt do cavalo, encontraram-no coberto de sangue, mas vivo. - Tommen, escolhemos o adversário errado para você - disse o rei ao irmão. - O cavaleiro de palha compete melhor do que aquele ali. Em seguida, chegou a vez de Sor Horas Redwyne. Esteve melhor do que o irmão, vencendo um cavaleiro idoso, cuja montaria estava adornada com grifos de prata sobre fundo listrado de azul e branco. Apesar da magnificência que ostentava, o velho foi um oponente frágil. Joffrey franziu o lábio. - Este espetáculo está medíocre. - Eu o preveni - disse Cão de Caça. - Mosquitos. O rei estava ficando entediado, o que deixava Sansa ansiosa. Abaixou os olhos e decidiu manter-se em silêncio, acontecesse o que acontecesse. Quando o humor de Joffrey Baratheon se fechava, qualquer palavra à toa podia disparar uma das suas iras. - Lothor Brune, cavaleiro livre ao serviço de Lorde Baelish - gritou o arauto. - Sor Dontos, o Vermelho, da Casa Hollard. O cavaleiro livre, um homem pequeno numa armadura amassada e sem símbolos, surgiu como devia ser, na extremidade ocidental do pátio, mas do seu oponente não havia sinal. Por fim, um garanhão alazão surgiu trotando no meio de um redemoinho de sedas carmim e escarlate, mas Sor Dontos não se encontrava sobre ele. O cavaleiro apareceu um momento mais tarde, praguejando e cambaleando, equipado com a placa de peito e o elmo com plumas, mas nada mais. Suas pernas eram brancas e magras, e o membro balançava obscenamente enquanto perseguia o cavalo. A audiência rugiu e berrou insultos. Apanhando o cavalo pelo freio, Sor Dontos tentou montar, mas o animal não ficava quieto, e o cavaleiro estava tão bêbado que o pé descalço não acertava o estribo. Então, a multidão já uivava de rir... Todos, menos o rei. Joffrey tinha uma expressão nos olhos de que Sansa se lembrava bem, a mesma que mostrara no Grande Septo de Baelor no dia em que sentenciou Lorde Eddard Stark à morte. Por fim, Sor Dontos, o Vermelho, desistiu, sentou-se na terra e tirou o elmo emplumado. - Perdi - gritou. - Tragam-me vinho. O rei se levantou. - Um casco da adega! Quero vê-lo afogado nele. Sansa ouviu-se arquejar. - Não, não pode. Joffrey virou a cabeça. - O que você disse? Sansa não conseguia acreditar que havia falado. Estaria louca? Dizer-lhe não na frente de metade da corte? Não pretendera dizer nada, mas... Sor Dontos estava bêbado, bobo e incapaz, mas não tinha sido mal-intencionado. 34 - Você disse que não posso? Disse? - Por favor - disse Sansa. - Eu só quis dizer... seria má sorte, Vossa Graça... Matar um homem no dia do seu nome. - Está mentindo - disse Joffrey. - Deveria afogá-la também, se você se preocupa tanto com ele. - Eu não me preocupo com ele, Vossa Graça - as palavras saíram aos trancos, desesperadamente - Afogue-o, ou mande cortar sua cabeça, mas... Mate-o amanhã, se quiser, mas, por favor ... hoje não, não no dia do seu nome. Não poderia suportar que tivesse má sorte... Uma sorte terrível, mesmo para reis. Todos os cantores o dizem... Joffrey franziu o cenho. Ele sabia que ela estava mentindo, percebeu. Faria Sansa sangrar por aquilo. - A moça diz a verdade - Cão de Caça interveio. - O que um homem semeia no dia do seu nome, colhe ao longo do ano - a voz era monocórdica, como se não lhe importasse nem um pouco se o rei acreditava ou não. Poderia ser verdade? Sansa não sabia. Tinha sido apenas algo que dissera, desesperada por evitar uma punição. Pouco feliz, Joffrey moveu-se na cadeira e fez um gesto brusco com os dedos na direção de Sor Dontos. - Levem-no. Mandarei matar esse tolo amanhã. - E é o que ele é - disse Sansa. - Um tolo. Um bobo. Você é tão inteligente por ver isso. Ele fica melhor como bobo do que como cavaleiro, não fica? Deveria vesti-lo com retalhos e fazer dele seu palhaço. Não merece a piedade de uma morte rápida. O rei a estudou por um momento. - Talvez não seja tão estúpida como a mãe diz - e levantou a voz: - Ouviu a minha senhora, Dontos? Deste dia em diante, é o meu novo bobo. Pode dormir com o Rapaz-Lua e vestir-se de retalhos.
Sor Dontos, tornado sóbrio depois de roçar a morte de perto, caiu de joelhos. - Agradeço-lhe, Vossa Graça. E a você também, minha senhora. Obrigado. Enquanto um par de guardas Lannister o levava, o mestre de cerimônias aproximou-se do camarote: - Vossa Graça - disse - , deverei chamar um novo adversário para Brune ou prosseguir com a próxima justa? - Nem uma coisa nem outra. Esses aí são mosquitos, e não cavaleiros. Teria condenado todos à morte se não fosse o dia do meu nome. O torneio acabou. Leve todos para longe da minha vista. O mestre de cerimônias fez uma reverência, mas o Príncipe Tommen foi menos obediente. - Eu ia enfrentar o homem de palha. - Hoje não. - Mas eu quero. - Não me interessa o que você quer. - A mãe disse que eu podia. - E verdade - concordou a Princesa Myrcella. - A mãe disse - zombou o rei. - Não seja infantil. - Somos crianças - Myrcella declarou com altivez. - Espera-se que sejamos infantis. Cão de Caça soltou uma gargalhada: - Ela pegou você. Joffrey aceitou a derrota. 35 - Muito bem. Nem meu irmão poderá combater pior que os outros. Mestre, traga o manequim. Tommen quer ser um mosquito. Tommen soltou um grito de alegria e correu para ser preparado, com as pequenas pernas roliças batendo com força no chão. - Boa sorte - Sansa gritou para ele. Colocaram o manequim na extremidade mais distante da arena, enquanto o pônei do príncipe era selado. O oponente de Tommen era um guerreiro de couro do tamanho de uma criança, estofado com palha e montado num eixo, com um escudo numa mão e uma maça acolchoada na outra. Alguém tinha prendido um par de chifres de veado na cabeça do cavaleiro. Sansa lembrava-se que o pai de Joffrey, o Rei Robert, usava chifres no elmo, mas também os usava Lorde Renly, irmão de Robert, que tinha se tornado traidor e se coroado rei. Um par de escudeiros afivelou no príncipe sua ornamentada armadura prateada e carmim. Uma grande crista de penas vermelhas brotava do topo do seu elmo, e o leão de Lannister e o veado coroado de Baratheon brincavam juntos no seu escudo. Os escudeiros ajudaram-no a montar, e Sor Aron Santagar, mestre de armas da Fortaleza Vermelha, avançou e entregou a Tommen uma espada prateada, sem fio, com uma lâmina em forma de folha, concebida para se ajustar a uma mão de oito anos, Tommen ergueu a lâmina bem alto. - Rochedo Casterly - gritou, numa aguda voz de garoto, ao bater com os calcanhares no pônei e começar a investida contra o manequim. A Senhora Tanda e Lorde Gyles soltaram vivas desencontrados, e Sansa juntou sua voz às deles. O rei caiu no silêncio. Tommen fez o pônei seguir a trote ligeiro, brandiu vigorosamente a espada e deu um golpe sólido no escudo do cavaleiro quando passou por ele. O manequim rodopiou, a maça voou e foi dar uma poderosa cacetada na nuca do príncipe. Tommen caiu da sela, fazendo sua armadura nova retinir como um saco de penicos velhos ao atingir o chão. A espada voou para longe, o pônei fugiu a meio galope pelo pátio afora, e uma grande rajada de escárnio agitou o ar. Rei Joffrey foi, de todos, quem riu mais e durante mais tempo. - Oh - gritou a Princesa Myrcella. Saltou do camarote e correu até o irmão mais novo. Sansa deu por si possuída por uma estranha e leviana coragem, - Devia ir com ela - disse ao rei. - Seu irmão pode estar ferido. Joffrey encolheu os ombros. - E se estiver? - Devia ajudá-lo a ficar em pé e lhe dizer que montou bem - Sansa parecia não conseguir se conter. - Foi derrubado do cavalo e caiu no chão - ressaltou o rei. - Isso não é montar bem. - Olhe - Cão de Caça os interrompeu. - O rapaz tem coragem. Vai tentar novamente. Estavam ajudando o Príncipe Tommen a montar no seu pônei. Se ao menos Tommen fosse o mais velho em vez de Joffrey, pensou Sansa. Não me importaria de me casar com Tommen. Os sons vindos da guarita apanharam-nos de surpresa. Correntes retiniram quando a porta levadiça foi içada, e os grandes portões abriram-se entre rangidos de dobradiças de ferro. - Quem lhes disse para abrir o portão? - Joff exigiu saber. Com a agitação na cidade, os portões da Fortaleza Vermelha estavam fechados havia dias. Uma coluna de homens a cavalo emergiu por baixo da porta levadiça, com tinidos de aço e ruídos de cascos. Clegane se aproximou do rei, com uma mão no cabo da espada. Os visitantes vinham descompostos, rotos e empoeirados, mas o estandarte que transportavam era o leão de 36 Lannister, dourado no seu fundo carmesim. Alguns usavam os mantos vermelhos e a cota de malha dos soldados Lannister, mas a maioria era de cavaleiros livres e mercenários, com armaduras desemparelhadas e eriçados com seu aço afiado... E havia outros, selvagens monstruosos saídos  de uma das histórias da Velha Ama, aquelas assustadoras que Bran antes adorava. Trajavam peles puídas e couro fervido e usavam cabelo comprido e barbas ferozes. Alguns tinham ataduras manchadas de sangue na testa ou enroladas nas mãos e braços, e a outros faltavam olhos, orelhas e dedos. No meio dos homens, montado num grande cavalo vermelho com uma estranha sela alta que o embalava para trás e para a frente, estava o irmão anão da rainha, Tyrion Lannister, aquele a quem chamavam Duende. Deixara a barba crescer até deixar sua cara enterrada e se transformar num hirsuto emaranhado de pelos amarelos e negros, duros como arame. As suas costas, caía um manto de pele de gato-das-sombras, de pelo negro rajado de branco. As rédeas estavam na mão esquerda, e o braço direito vinha enfiado numa tira de seda branca, mas, fora isso, parecia tão grotesco como Sansa recordava da época de sua visita a Winterfell. Com sua testa proeminente e olhos de cores diferentes, ainda era o homem mais feio que já vira na vida. Mas Tommen espetou as esporas no pônei e galopou precipitadamente pelo pátio afora, gritando de alegria. Um dos selvagens, um homem enorme e desajeitado, tão peludo que a cara quase desaparecia no meio da barba, puxou o rapaz da sela, com armadura e tudo, e depositou-o no chão ao lado do tio. O riso sem fôlego de Tommen ecoou nas muralhas quando Tyrion lhe deu uma palmada na placa das costas, e Sansa espantou-se ao notar que os dois eram da mesma altura. Myrcella veio correndo atrás do irmão, e o anão pegou-a pela cintura e fez a princesa rodopiar, gritando. Quando a devolveu ao chão, o pequeno homem deu um beijo leve na sua testa e bamboleou através do pátio, na direção de Joffrey. Dois dos seus homens seguiram-no de perto; um mercenário de cabelo e olhos negros, que se movia como um gato caçando, e um jovem magro com uma órbita vazia no local onde um olho deveria estar. Tommen e Myrcella vieram atrás deles. O anão caiu sobre um joelho em frente do rei. - Vossa Graça. - Você - disse Joffrey. - Eu - concordou o Duende - , se bem que uma saudação mais cortês talvez fosse mais apropriada para um tio e um homem mais velho. - Dizia-se que estava morto - disse Cão de Caça. O pequeno homem lançou um olhar ao grande. Um dos seus olhos era verde, o outro, negro, e ambos eram frios. - Falava com o rei, não com o cachorro dele. - Eu estou feliz por não estar morto - disse a Princesa Myrcella. - Compartilhamos essa opinião, querida filha. Tyrion virou-se para Sansa. - Minha senhora, lamento as suas perdas. Os deuses são realmente cruéis. Sansa não conseguiu encontrar uma só palavra para lhe dizer. Como podia ele lamentar as suas perdas? Estaria caçoando dela? Não eram os deuses que eram cruéis, era Joffrey. - Lamento também a sua perda, Joffrey - disse o anão. - Que perda? - O seu real pai? Um homem grande e impetuoso com uma barba negra; recordará dele se fizer um esforço. Foi rei antes do senhor. 37 - Ah, ele. Sim, foi muito triste, um javali o matou. - É isso o que se diz, Vossa Graça? Joffrey franziu a testa. Sansa sentiu que devia dizer qualquer coisa. O que a Septã Mordane costumava lhe dizer? A armadura de uma senhora é a cortesia, era isso. Colocou sua armadura e disse: - Lamento que a senhora minha mãe o tenha tomado prisioneiro, senhor. - Há muitas pessoas que lamentam isso - Tyrion respondeu. - E antes que eu termine o que tenho a fazer, algumas poderão lamentá-lo um pouco mais... No entanto, agradeço o sentimento. Joffrey, onde poderei encontrar sua mãe? - Ela está com o conselho - o rei respondeu. - Seu irmão Jaime anda só perdendo batalhas - lançou a Sansa um olhar zangado, como se fosse culpa dela. - Foi capturado pelos Stark e perdemos Correrrio. Agora o estúpido irmão dela intitula-se rei. O anão deu um sorriso torto. - Nos dias que correm todo tipo de gente se intitula rei. Joff não soube o que pensar daquilo, embora tivesse uma expressão de suspeita e insatisfação. - Sim. Bem. Fico feliz que não esteja morto, tio. Trouxe-me algum presente para o dia do meu nome? - Sim. A minha inteligência. - Preferiria a cabeça de Robb Stark - Joff rebateu, com um relance maldoso para Sansa. - Tommen, Myrcella, venham. Sandor Clegane deixou-se ficar um momento para trás: - Eu teria cuidado com essa sua língua, homenzinho - preveniu-o, antes de se afastar a passos largos atrás do seu senhor. Sansa foi deixada com o anão e seus monstros. Tentou pensar no que poderia dizer mais. - Está com o braço ferido - ela disse, por fim. - Um dos seus nortenhos atingiu-me com uma maça de guerra durante a batalha no Ramo Verde. Escapei dele caindo do cavalo - seu sorriso malicioso transformou-se em algo mais suave enquanto estudava o rosto dela. - E o pesar pelo senhor seu pai que a deixa tão triste? - Meu pai era um traidor - Sansa respondeu imediatamente. - E meu irmão e a senhora minha mãe são também traidores - tinha aprendido depressa aquele reflexo. - Eu sou leal ao meu amado Joffrey. - Sem dúvida. Tão leal como uma corça rodeada de lobos. - Leões - sussurrou ela, sem pensar. Olhou em volta nervosamente, mas ninguém estava suficientemente perto para ouvir. O Lannister estendeu a mão, tomou a dela na sua e a apertou. - Eu sou só um pequeno leão, filha, e juro que não a morderei - e, com uma reverência, disse: - Mas agora deve me desculpar. Tenho assuntos urgentes a tratar com a rainha e o conselho. Sansa ficou vendo o anão afastar-se, com o corpo oscilando pesadamente de um lado para o outro a cada passo, como algo saído de um circo de aberrações. Fala com mais gentileza do que Joffrey, pensou, mas a rainha também falou comigo com gentileza. É ainda um Lannister, irmão dela e tio de J o f f , e não é amigo. Antes, tinha amado o Príncipe Joffrey de todo o coração e admirara e confiara em sua mãe, a rainha. Tinham lhe devolvido esse amor e confiança com a cabeça do seu pai. Sansa nunca mais voltaria a cometer o mesmo erro. 38 TYRON
No gelado traje branco da Guarda Real, Sor Mandon Moore parecia um cadáver envolto numa mortalha. - Sua Graça deixou ordens; a sessão do conselho não deverá ser perturbada. - Eu seria apenas uma pequena perturbação, sor - Tyrion tirou o pergammho da manga. - Trago uma carta do meu pai, Lorde Tywin Lannister, a Mão do Rei. Aqui está o seu selo. - Sua Graça não deseja ser perturbada - repetiu lentamente Sor Mandon, como se Tyrion fosse um bronco e não o tivesse ouvido da primeira vez. Jaime, certa vez, tinha lhe dito que Moore era o mais perigoso membro da Guarda Real, além dele próprio, naturalmente, porque sua cara não revelava nenhum sinal do que poderia fazer a seguir. Tyrion teria acolhido bem algum sinal. Bronn e Timett teriam boas chances de matar o cavaleiro caso se chegasse a cruzar espadas, mas dificilmente seria bom presságio começar assassinando um dos protetores de Joffrey. E no entanto, se deixasse que o homem o mandasse embora, onde estaria sua autoridade? Obrigou-se a sorrir. - Sor Mandon, não conhece os meus companheiros. Este é Timett, filho de Timett, Mão Vermelha dos Homens Queimados. E este é Bronn. Lembra-se de Sor Vardis Egen, que era capitão da guarda doméstica de Lorde Arryn? - Conheço o homem. Os olhos de Sor Mandon eram cinza-claros, estranhamente descorados e sem vida. - Conhecia - corrigiu Bronn, com um fino sorriso. Sor Mandon não se rebaixou a mostrar que o tinha ouvido. - Que seja - disse Tyrion com certa inconsequência. - Eu realmente preciso encontrar minha irmã e lhe apresentar a carta, sor. Teria a bondade de abrir a porta para nos deixar entrar? O cavaleiro branco não respondeu. Tyrion estava quase a ponto de tentar forçar passagem, quando Sor Mandon se afastou abruptamente: - Você pode entrar. Eles não. Uma pequena vitória, pensou, mas saborosa. Tinha passado pelo primeiro teste. Tyrion Lannister atravessou a porta, sentindo-se quase alto. Cinco membros do pequeno conselho do rei interromperam subitamente uma discussão. - Você - disse sua irmã Cersei, num tom que incluía partes iguais de descrença e desagrado. - Estou vendo com quem Joffrey aprendeu a boa educação - Tyrion fez uma pausa para admirar o par de esfinges valirianas que guardavam a porta, aparentando um ar de confiança casual. Cersei conseguia farejar fraqueza tão bem como um cão farejava o medo. - O que você está fazendo aqui? - os belos olhos verdes da irmã estudavam-no sem o menor sinal de afeto. 39 - Sou portador de uma carta do senhor nosso pai. Deslocou-se vagarosamente até a mesa e depositou o pergaminho bem enrolado entre ele e a irmã. O eunuco Varys pegou a carta e a revirou nas mãos delicadas e empoadas. - Que gentileza da parte de Lorde Tywin. E a cera do seu selo é de um tom dourado tão delicado - Varys inspeccionou o selo de perto. - Tem todo o jeito de ser genuíno. - Claro que é genuíno - Cersei arrancou a carta das mãos do eunuco, quebrou a cera e desenrolou o pergaminho. Tyrion observou-a enquanto lia, A irmã tinha ocupado a cadeira do rei. Tyrion concluiu que Joffrey não se importava, tanto quanto Robert, em estar presente nas reuniões do conselho, e subiu na cadeira da Mão. Parecia apropriado. - Isto é absurdo - a rainha disse por fim. - O senhor meu pai enviou meu irmão para ocupar o seu lugar neste conselho. Pedenos para aceitar Tyrion como Mão do Rei até o momento em que possa se juntar a nós. O Grande Meistre Pycelle afagou sua longa barba branca e fez um aceno solene: - Aparentemente, temos que lhe dar as boas-vindas. - Realmente - Janos Slynt, com seu grande queixo e falta de cabelo, assemelhava-se bastante a uma rã, uma rã presunçosa que tinha subido muito mais alto do que deveria. - Sentimos grandemente a sua falta, senhor. A rebelião grassa por todo o lado, há este sinistro presságio no céu, tumultos nas ruas da cidade... - E de quem é a culpa disso, Lorde Janos? - atacou Cersei. - Seus homens de manto dourado estão encarregados de manter a ordem. Quanto a você, Tyrion, poderia nos servir melhor no campo de batalha, Tyrion soltou uma gargalhada: - Não, chega de campos de batalha para mim, muito obrigado. Sento-me melhor numa cadeira do que num cavalo, e gosto mais de segurar uma taça de vinho do que um machado de batalha. Toda aquela conversa a respeito do rufar dos tambores, da luz do sol brilhando nas armaduras, de magníficos corcéis de batalha resfolegando e empinando? Pois bem, os tambores me dão dor de cabeça, a luz do sol brilhando na minha armadura me cozinha como se fosse um ganso no dia da colheita, e esses magníficos corcéis cagam por todo lado. Não que esteja me queixando. Comparando com a hospitalidade de que desfrutei no Vale de Arryn, tambores, cocô de cavalo e picadas de moscas são as minhas coisas favoritas. Mindinho soltou uma gargalhada. - Bem dito, Lannister. Um homem que partilha dos meus sentimentos. Tyrion sorriu, lembrando-se de um certo punhal com um cabo de osso de dragão e uma lâmina de aço valiriano. Teremos de ter uma conversa sobre isso, e em breve. Perguntou a si mesmo se Lorde Petyr também acharia esse assunto divertido. - Por favor - disse-lhes então. - Deixem-me ser útil, de qualquer pequeno modo que me seja possível. Cersei voltou a ler a carta, - Quantos homens trouxe consigo? - Algumas centenas. Principalmente homens meus. Meu pai se mostrou renitente em se separar de alguns dos seus. Afinal de contas, ele está travando uma guerra. - De que servirão algumas centenas de homens se Renly marchar sobre a cidade, ou se Stannis zarpar de Pedra do Dragão? Peço um exército, e meu pai me manda um anão. O rei nomeia a Mão, com o consentimento do conselho. Joffrey nomeou o senhor nosso pai. 40 - E o senhor nosso pai me nomeou. - Ele não pode fazer isso. Não sem o consentimento de Joffrey.
- Lorde Tywin está em Harrenhal com a sua tropa, se quiser levar o assunto à sua consideração - disse Tyrion amavelmente. - Senhores, queiram me permitir uma palavra a sós com minha irmã? Varys pôs-se em pé com um movimento deslizante, exibindo aquele seu sorriso engordurado. - Como deve ter ansiado pelo som da voz da sua doce irmã. Senhores, por favor, vamos lhes dar uns instantes. As desgraças do nosso perturbado reino esperarão. Janos Slynt levantou-se com hesitação, e o Grande Meistre Pycelle com solenidade, mas levantaram-se, Mindinho foi o último. - Devo ordenar ao intendente que prepare aposentos na Fortaleza de Maegor? - Agradeço, Lorde Petyr, mas ocuparei os antigos aposentos de Lorde Stark na Torre da Mão. Mindinho soltou uma gargalhada. - É um homem mais corajoso do que eu, Lannister. Conhece o destino dos dois últimos Mãos? - Dois? Se deseja me assustar, por que não dizer quatro? - Quatro? - Mindinho ergueu uma sobrancelha. - Os Mãos anteriores a Lorde Arryn tiveram algum terrível fim na Torre? Creio que era jovem demais para prestar muita atenção neles. - O último Mão de Aerys Targaryen foi morto durante o saque a Porto Real, embora eu duvide de que tenha tido tempo para se instalar na Torre. Só foi Mão durante uma quinzena. Seu antecessor foi queimado vivo. E antes desse houve outros dois, que morreram sem terras e sem dinheiro no exílio, e ainda consideravam-se sortudos. Creio que o senhor meu pai foi o último Mão a abandonar Porto Real com seu nome, propriedades e corpo intactos. - Fascinante - Mindinho respondeu. - Mais uma razão para que eu prefira passar as noites na masmorra. Talvez se possa satisfazer esse seu desejo, Tyrion pensou, mas disse: - A coragem e a loucura são primas, ou pelo menos foi o que ouvi dizer. Seja qual for a praga que paira sobre a Torre da Mão, rezo para ser suficientemente pequeno para não chamar sua atenção. Janos Slynt riu, Mindinho sorriu, e o Grande Meistre Pycelle os seguiu para fora da sala, com uma reverência grave. - Espero que nosso pai não tenha feito você percorrer toda esta distância para me atormentar com lições de história - disse a irmã quando ficaram sós. - Como ansiei pelo som da sua doce voz - Tyrion suspirou. - Como ansiei por arrancar a língua daquele eunuco com tenazes em brasa - Cersei respondeu. - Nosso pai perdeu o juízo? Ou será que você falsificou esta carta? - voltou a lê-la, com um aborrecimento crescente. - Por que ele me imporia a sua presença? Queria que viesse em pessoa - amarrotou a carta de Lorde Tywin nas mãos. - Sou regente de Joffrey e dei a ele uma ordem real! - E ele a ignorou - Tyrion observou. - Tem um exército bastante grande, pode fazer isso. E não é o primeiro. O u é? A boca de Cersei apertou-se. Tyrion viu sua cor mudando. - Se eu declarar que esta carta é uma falsificação e lhes disser para atirá-lo em uma masmorra, ninguém ignorará isso, garanto. Tyrion sabia que agora caminhava sobre gelo quebradiço. Um passo em falso, e perderia o apoio. 41 - Ninguém - concordou amigavelmente - , muito menos nosso pai. Aquele que tem o exército. Mas, por que haveria de querer me atirar em uma masmorra, querida irmã, quando percorri todo este caminho para ajudá-la? - Não pedi sua ajuda. Foi a presença do nosso pai que exigi. - Sim - Tyrion disse em voz baixa. - Mas quem você quer é Jaime. Sua irmã achava que era sutil, mas eles tinham crescido juntos. Podia ler seu rosto como se fosse um dos seus livros preferidos, e aquilo que lia agora era raiva, medo e desespero. - J a i m e . . . - ... é tanto meu irmão como seu - Tyrion interrompeu. - Apoie-me, e prometo que obteremos a libertação e devolução de Jaime, são e salvo. - Como? - Cersei quis saber. - O rapaz Stark e a mãe não esquecerão facilmente que decapitamos Lorde Eddard. - E verdade - concordou Tyrion - , mas ainda tem suas filhas, não tem? Vi a menina mais velha no pátio com o Joffrey, - Sansa - disse a rainha. - Divulguei que também tenho a fedelha mais nova, mas é mentira. Mandei Meryn Trant capturá-la quando Robert morreu, mas o maldito do seu mestre de dança interferiu e a garota fugiu. Nunca mais ninguém a viu. Provavelmente está morta. Morreu muita gente naquele dia. Tyrion esperava ter ambas as meninas Stark, mas supunha que uma teria de servir. - Fale dos nossos amigos no conselho. Sua irmã lançou um relance para a porta. - Que tem eles? - Nosso pai parece que ganhou antipatia por eles. Quando o deixei, estava pensando sobre o aspecto que aquelas cabeças teriam na muralha ao lado da cabeça de Lorde Stark - inclinou-se para a frente, por cima da mesa. - Está certa da lealdade deles? Confia neles? - Não confio em ninguém - Cersei exclamou. - Preciso deles. Meu pai acredita que estejam nos enganando? - Não acredita, suspeita. - Por quê? Ele sabe alguma coisa? Tyrion encolheu os ombros: - Sabe que o curto reinado do seu filho tem sido uma longa parada de loucuras e desastres. Isso sugere que alguém está dando a Joffrey conselhos muito ruins. Cersei sondou-o com o olhar. - Não faltaram bons conselhos a Joff. Sempre foi obstinado. Agora que é o rei, acha que deve fazer o que bem entende, não o que lhe é pedido. - As coroas fazem coisas estranhas às cabeças que estão por baixo delas - concordou Tyrion. - Esta história do Eddard Stark... Foi obra de Joffrey? A Rainha fez uma careta. - Ele foi instruído a perdoar o Stark, a deixá-lo vestir o negro. O homem ficaria para sempre fora do nosso caminho, e poderíamos ter feito a paz com aquele seu filho, mas Joff resolveu dar à multidão um espetáculo melhor. O que eu poderia fazer? Ele exigiu a cabeça de Lorde Eddard na frente de metade da cidade. Janos Slynt e Sor Ilyn avançaram alegremente, e encurtaram o homem sem uma palavra minha! - sua mão fechou-se num punho. - O Alto Septão afirma que profanamos o Septo de Baelor com sangue, depois de termos mentido a ele quanto às nossas intenções. 42 - E parece que tem razão - Tyrion disse. - Quer dizer então que este Lorde Slynt fez parte da coisa? Diga-me, de quem foi a magnífica idéia de lhe dar Harrenhal e o nomear para o conselho? - Foi Mindinho quem arranjou tudo. Precisávamos dos homens de manto dourado de Slynt. Eddard Stark estava conspirando com Renly, e tinha escrito a Lorde Stannis, oferecendo-lhe o trono. Se Sansa não tivesse vindo até mim e contado todos os planos do pai... Tyrion estava surpreso. - Ah, é? Sua própria filha? - Sansa sempre lhe parecera uma doce menina, terna e delicada. - A garota estava louca de amor. Teria feito qualquer coisa por Joffrey, até que ele cortou a cabeça do seu pai, e chamou o ato de misericórdia. Isso pôs fim ao romance. - Sua Graça tem um modo único de conquistar os corações dos súditos - Tyrion observou com um sorriso torto. - Foi também por desejo de Joffrey que Sor Barristan Selmy foi demitido da Guarda Real? Cersei suspirou. - Joff queria culpar alguém pela morte de Robert. Varys sugeriu Sor Barristan. E por que não? Isso dava a Jaime o comando da Guarda Real e um lugar no pequeno conselho e permitia que Joff atirasse um osso ao seu Cão. Gosta muito de Sandor Clegane. Estávamos preparados para oferecer a Selmy algumas terras e uma fortaleza, mais do que o inútil velho tolo merecia. - Ouvi dizer que esse inútil velho tolo matou dois dos homens de mantos dourados de Slynt quando tentaram capturá-lo no Portão da Lama. Sua irmã fez uma expressão muito infeliz. - J a n o s devia ter enviado mais homens. Não é tão competente como seria desejável. - Sor Barristan era Senhor Comandante da Guarda Real de Robert Baratheon – Tyrion lembrou contundentemente à irmã. - Ele e Jaime são os únicos sobreviventes dos sete de Aerys Targaryen. O povo fala dele da mesma forma que se referem a Serwyn do Escudo de Espelhos ou ao Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão. O que imagina que eles pensarão quando virem Barristan, o Ousado, cavalgando ao lado de Robb Stark ou de Stannis Baratheon? Cersei afastou o olhar. - Não tinha levado isso em conta. - Nosso pai levou - Tyrion rebateu. - Foi por isso que me enviou. Para pôr fim a essas loucuras e obrigar seu filho a nos obedecer. - J o f f não será mais tratável por você do que por mim. - Poderá ser. - Por quê? - Sabe que você nunca lhe faria mal. Os olhos de Cersei estreitaram-se. - Se acha que eu permitiria que fizesse mal ao meu filho, você está doente e com febre. Tyrion suspirou. Ela não tinha entendido, como acontecia freqüentemente, - J o f f r e y está tão seguro comigo como está com você - assegurou-lhe - , mas, desde que se sinta ameaçado, vai ficar mais disposto a escutar - tomou a mão dela. - Eu também sou seu irmão, sabe? Precisa de mim, quer queira admitir isso quer não. Seu filho precisa de mim, se quiser ter alguma esperança de conservar aquela feia cadeira de ferro. Sua irmã pareceu chocada por ele tê-la tocado. - Sempre foi astuto. - Ao meu pequeno modo - Tyrion deu um sorriso. 43 - Talvez valha a pena tentar... Mas não se iluda, Tyrion. Se aceitá-lo, será Mão do Rei no título, mas, na verdade, a minha Mão. Dividirá comigo todos os seus planos e intenções antes de agir e não fará nada sem o meu consentimento. Compreende? - Ah, sim. - Concorda? - Com certeza - ele mentiu. - Sou seu, mana - durante o tempo que tiver de ser. - Então, agora que temos os mesmos propósitos, não devíamos ter mais segredos entre nós. Você diz que Joffrey mandou matar Lorde Eddard, que Varys demitiu Sor Barristan, e que Mindinho nos deu de presente Lorde Slynt. Quem assassinou Jon Arryn? Cersei atirou a cabeça para trás. - Como hei de saber? - A viúva de luto no Ninho da Águia parece pensar que fui eu. Pergunto-me de onde ela tirou tal idéia... - Posso garantir que não sei. Aquele imbecil do Eddard Stark me acusou da mesma coisa. Sugeriu que Lorde Arryn suspeitava ou... bem, acreditava... - Que andava fodendo o nosso querido Jaime? Ela o esbofeteou, - Achava que eu era tão cego como nosso pai? - Tyrion esfregou a bochecha. - Com quem você se deita não é problema meu... Se bem que não pareça muito justo que abra as pernas a um irmão e não ao outro. Ela o esbofeteou novamente. - Seja gentil, Cersei. Só estou brincando com você. A bem da verdade, preferiria ter uma boa vadia. Nunca entendi o que Jaime via em você, além do seu próprio reflexo. Mais uma bofetada. Tyrion tinha as bochechas vermelhas e ardendo, mas sorria, e disse: - Se continuar a fazer isso, pode ser que me irrite. Então, ela conteve sua mão. - Por que deveria ligar para isso?
- Tenho alguns amigos novos - Tyrion confessou. - Não vai gostar nada deles. Como matou Robert? - Isso ele fez por conta própria. Nós só ajudamos. Quando Lancei viu que Robert ia atrás do javali, deu-lhe vinho forte. Seu tinto azedo preferido, mas fortificado, três vezes mais potente do que ele estava habituado. O bobalhão fedorento adorou. Podia ter parado de engolir o vinho em qualquer momento, mas não, entornou um odre e disse a Lancei para ir buscar outro. O javali fez o resto. Devia ter estado no banquete, Tyrion. Nunca houve javali mais delicioso. Cozinharam-no com cogumelos e maçãs, e tinha sabor de triunfo. - A verdade, minha irmã, é que você nasceu para viúva - Tyrion gostava bastante de Robert Baratheon, por mais que se tratasse de um grande idiota fanfarrão... Sem dúvida, em parte porque a irmã o desprezava tanto. - Bom, se já parou de me esbofetear, vou embora - virou as pernas e desceu desajeitadamente da cadeira. Cersei franziu a testa. - Não te dei licença para sair, Quero saber como pretende libertar Jaime. - Direi quando souber. As intrigas são como a fruta, requerem um certo amadurecimento. Agora, tenho em mente percorrer as ruas a cavalo e tomar o pulso desta cidade - Tyrion pousou 44 a mão na cabeça da esfinge ao lado da porta. - Um pedido de despedida. Faça o favor de se assegurar de que nenhum mal aconteça a Sansa Stark. Não seria bom perder ambas as filhas. Fora da sala do conselho, Tyrion fez um aceno de cabeça a Sor Mandon e seguiu pelo longo átrio abobadado. Bronn pôs-se a seu lado. De Timett, filho de Timett, não havia sinal. - Onde está a nossa Mão Vermelha? - Tyrion perguntou. - Sentiu vontade de explorar. Não é o tipo de homem feito para esperar em salões. - Espero que não mate ninguém importante. Os homens dos clãs que Tyrion havia trazido dos seus baluartes nas Montanhas da Lua eram leais, à sua maneira feroz, mas também orgulhosos e brigões, dados a responder com aço a insultados, reais ou imaginários. - Tente encontrá-lo. E, enquanto isso, certifique-se de que os outros foram aquartelados e alimentados. Quero-os na caserna sob a Torre da Mão, mas não deixe que o intendente instale os Corvos de Pedra perto dos Irmãos da Lua, e diga-lhe que os Homens Queimados precisam ter um salão somente para si. - Onde você estará? - Vou voltar para a Bigorna Quebrada. Bronn exibiu um sorriso insolente. - Precisa de escolta? Segundo se diz, as ruas estão perigosas. - Chamarei o capitão da guarda doméstica da minha irmã e vou lembrá-lo de que sou tão Lainnister quanto ela. Ele tem de se lembrar de que prestou juramento a Rochedo Casterly, e não a Cersei ou a Joffrey. Uma hora mais tarde, Tyrion saía da Fortaleza Vermelha acompanhado por uma dúzia de guardas Lannister usando mantos carmesim e meios-elmos com leões em cima, Quando passaram por baixo da porta levadiça, ele reparou nas cabeças espetadas no topo das muralhas. Negras de podridão e alcatrão, já tinham se tornado irreconhecíveis há muito tempo. - Capitão Vylarr - Tyrion chamou - , quero aquilo tirado dali de manhã. Entregue-as às irmãs silenciosas para que as limpem. Supunha que seria um inferno fazê-las corresponder aos corpos, mas isso tinha de ser feito. Mesmo no meio de uma guerra, uma certa decência tinha de ser mantida. Vylarr mostrou-se hesitante. - Sua Graça disse-nos que deseja que as cabeças dos traidores permaneçam nas muralhas até encher aqueles três últimos espigões que estão ali, na ponta. - Deixe-me adivinhar. Um é para Robb Stark, e os outros para os Lordes Stannis e Renly. Estou certo? - Sim, senhor. - Meu sobrinho fez hoje treze anos, Vylarr. Tente se lembrar disso. Quero aquelas cabeças nradas dali de manhã; caso contrário, um daqueles espigões poderá ter um inquilino diferente. Compreende aonde quero chegar, capitão? - Vou me assegurar pessoalmente de que sejam tiradas, senhor. - Ótimo - Tyrion encostou os calcanhares no cavalo e afastou-se a trote, obrigando os homens de manto vermelho a segui-lo o melhor que pudessem. Tinha dito a Cersei que pretendia tomar o pulso da cidade. Não era uma mentira completa. Tyrion Lannister não ficou satisfeito com muito do que viu. As ruas de Porto Real sempre tinham sido lugares apinhados, desagradáveis e ruidosos, mas agora fediam a perigo, de um modo que ele não recordava de visitas anteriores. Um cadáver nu estava estatelado na sarjeta perto da 45 Rua dos Teares, e era devorado por uma matilha de cães ferozes, mas ninguém parecia se importar. A patrulha estava bem evidente, deslocando-se aos pares pelas vielas, com seu manto dourado e camisas de cota de malha negra, as mãos sempre perto dos porretes. Os mercados encontravam-se repletos de homens esfarrapados, que vendiam os bens das suas casas por qualquer preço que conseguissem alcançar... e notoriamente vazios de fazendeiros vendendo alimentos. Os poucos produtos que via eram três vezes mais caros do que tinham sido um ano antes. Um vendedor ambulante anunciava ratazanas assadas no espeto ."Ratazanas frescas", gritava o homem sonoramente, "ratazanas frescas". Não restavam dúvidas de que ratazanas frescas eram preferíveis a velhas ratazanas fedidas e podres. O que era assustador era que as ratazanas pareciam mais apetitosas do que a maior parte daquilo que os açougueiros vendiam. Na Rua da Farinha, Tyrion viu guardas porta sim porta não. Quando as vacas estão magras, até os padeiros acham mercenários mais baratos do que pão, refletiu. - Não há comida chegando à cidade, não é? - disse a Vylarr. - Muito pouca - admitiu o capitão. - Com a guerra nas terras fluviais e Lorde Renly recrutando rebeldes em Jardim de Cima, as estradas estão fechadas para sul e para oeste. - E o que fez minha boa irmã quanto a isso? - Está tomando medidas para restaurar a paz do rei - assegurou-lhe Vylarr. -Lorde Slynt triplicou o tamanho da Patrulha da Cidade, e a rainha pôs mil artesãos para trabalhar nas nossas defesas. Os pedreiros estão reforçando as muralhas, os carpinteiros constroem balistas e catapultas às centenas, fabricantes de flechas as produzem, ferreiros forjam lâminas e a Guilda dos Alquimistas prometeu dez mil frascos de fogo vivo. Tyrion remexeu-se desconfortavelmente na sela. Agradava-lhe ver que Cersei não tinha ficado de braços cruzados, mas o fogovivo era um material traiçoeiro, e dez mil frascos eram o suficiente para transformar Porto Real inteiro em brasas. - Onde minha irmã achou dinheiro para pagar por tudo isso? Não era segredo para ninguém que Rei Robert deixara a coroa muito endividada, e os alquimistas não costumavam ser confundidos com altruístas. - Lorde Mindinho sempre acha uma maneira, senhor. Criou um imposto sobre todos aqueles que desejem entrar na cidade. - Sim, isso deve funcionar - Tyrion respondeu, pensando: Esperto. Esperto e cruel. Dezenas de milhares tinham fugido da luta em troca da suposta segurança de Porto Real. Vira-os na estrada do rei, grupos de mães, filhos e pais ansiosos, que olhavam para os seus cavalos e carroças com olhos cobiçosos. Quando chegassem à cidade, não havia dúvida de que pagariam tudo o que possuíam para colocar aquelas muralhas altas e reconfortantes entre eles e a guerra... Embora, talvez, pensassem duas vezes se tivessem conhecimento do fogovivo. A estalagem que ficava por baixo do letreiro da Bigorna Quebrada erguia-se à vista dessas muralhas, perto do Portão dos Deuses, por onde tinham entrado nessa manhã. Quando adentraram o pátio, um rapaz correu a fim de ajudar Tyrion a desmontar do cavalo. - Leve seus homens de volta para o castelo - disse a Vylarr. - Passarei a noite aqui. O capitão parecia em dúvida. - Ficará a salvo, senhor? - Bem, quanto a isso, capitão, quando deixei a estalagem, esta manhã, estava cheia de Orelhas Negras. Nunca se está propriamente a salvo quando Chella, filha de Cheyk, se encontra por perto - Tyrion bamboleou na direção da porta, deixando Vylarr sozinho, tentando compreender aquela resposta. 46 Uma rajada de alegria o acolheu quando entrou na sala comum da estalagem. Reconheceu o riso gutural de Chella, e a música mais leve da risada de Shae. A moça estava sentada perto da lareira, bebendo vinho, em uma mesa redonda de madeira, com três dos Orelhas Negras, que Tyrion havia deixado guardando-a, e um homem rechonchudo que estava de costas para a porta. Pensou que fosse o estalajadeiro... Até que Shae chamou Tyrion pelo nome, e o intruso se ergueu. - Meu bom senhor, estou tão contente por ver você - disse efusivamente o homem, com um suave sorriso de eunuco no rosto empoado. Tyrion tropeçou. - Lorde Varys. Não esperava encontrar você aqui - que os Outros o carreguem. Como os encontrara tão depressaP - Perdoe-me a intromissão - disse Varys. - Fui tomado por uma súbita vontade de conhecer sua jovem senhora. -Jovem senhora - repetiu Shae, saboreando as palavras. - Está meio certo, senhor. Sou jovem. Dezoito anos, pensou Tyrion. Dezoito anos e uma prostituta, mas com uma inteligência rápida, ágil como uma gata entre os lençóis, com grandes olhos escuros, um belo cabelo negro e uma boquinha doce, suave efaminta... E é minha! Maldito seja, eunuco. - Receio que seja eu o intruso, Lorde Varys - disse com uma cortesia forçada. – Quando entrei, estavam no meio de algo muito divertido. - O senhor Varys elogiou Chella pelas orelhas e disse que deve ter matado muitos homens para ter um colar tão bonito - Shae explicou. Tyrion ficou irritado ao ouvi-la chamar Varys de senhor naquele tom; era como o chamava entre os travesseiros. - E Chella disse que só covardes matam os vencidos. - É mais valente deixar o homem vivo, com chance de lavar a humilhação se reconquistar a orelha - explicou Chella, uma pequena mulher escura, cujo macabro colar pendia sob o peso de nada menos que quarenta e seis orelhas secas e enrugadas. Tyrion contara-as uma vez. – Só assim pode provar que não teme os seus inimigos. Shae soltou uma gargalhada. - E, então, o senhor diz que se fosse um Orelha Negra nunca dormiria, por causa dos sonhos com homens sem uma orelha. - Um problema que eu nunca precisarei encarar - Tyrion retrucou. - Os meus inimigos me aterrorizam, portanto mato todos. Varys soltou um risinho. - Toma um pouco de vinho conosco, senhor? - Tomo um pouco de vinho. Tyrion sentou-se ao lado de Shae. Compreendia o que estava acontecendo ali, ainda que Chella e a moça não. Varys entregava uma mensagem. Quando disse: Fui tomado por uma súbita vontade de conhecer sua jovem senhora, quis na verdade dizer: Tentou escondê-la, mas eu sabia onde ela estava e quem era, e aqui estou. Perguntou-se quem o teria traído. O estalajadeiro, o cavalariço, um guarda no portão... Ou algum dos seus? - Gosto sempre de voltar à cidade pelo Portão dos Deuses - disse Varys a Shae, enquanto enchia as taças de vinho. - As esculturas na guarita são magníficas, fazem-me chorar sempre que as vejo. Os olhos... tão expressivos, não acha? Quase parecem nos seguir quando passamos por baixo da porta levadiça. - Nunca reparei, senhor - Shae respondeu. - De manhã volto a olhar, se quiser. 47 Não se incomode, querida, Tyrion pensou, girando o vinho na taça. Ele não está nem aí para esculturas. Os olhos de que se orgulha são os dele. O que quer dizer é que ele estava observando, que soube que estávamos aqui no momento em que atravessamos o portão, - Tenha cuidado, menina - advertiu Varys. - Porto Real não está totalmente seguro nos dias que correm. Conheço bem estas ruas, e, no entanto, quase tive medo de vir hoje até aqui, só e desarmado como estou. H á homens sem lei por todo lado nesses tempos escuros, ah, sim. Homens com aço frio e corações mais frios ainda - onde eu posso ir só e desarmado, outros podem ir com espadas nas mãos, ele estava dizendo. Shae limitou-se a rir. - Se tentarem me incomodar, ficarão com uma orelha a menos quando Chella botá-los para correr. Varys riu como se aquilo fosse a coisa mais divertida que já tivesse ouvido, mas não havia riso nos seus olhos quando os virou para Tyrion. - Sua jovem senhora tem um jeitinho tão agradável. Se fosse você, tomaria conta dela muito bem.
- E o que pretendo fazer. Qualquer homem que tente machucá-la... Bem, eu sou pequeno demais para ser um Orelha Negra, e não me considero valente - vê? Falo a mesma língua que você, eunuco. Se lhe fizer mal, sua cabeça será minha, - Vou deixá-lo - Varys se levantou. - Sei como deve estar cansado. Só quis lhe dar as boas-vindas, senhor, e dizer como me sinto feliz pela sua chegada. Precisamos demais de você no conselho. Viu o cometa? - Eu sou baixo, mas não cego - Tyrion devolveu. Na estrada do rei, parecia cobrir metade do céu, superando em brilho o crescente da lua. - Nas ruas é chamado de Mensageiro Vermelho - Varys continuou. - Dizem que chegou como um arauto perante um rei, a fim de prevenir do sangue e fogo que estão para vir - o eunuco esfregou as mãos empoadas. - Posso deixá-lo com um pequeno enigma, Lorde Tyrion? – não esperou resposta. - Numa sala estão sentados três grandes homens, um rei, um sacerdote e um homem rico com o seu ouro. Entre eles está um mercenário, um homem pequeno, de nascimento comum e sem grande inteligência. Cada um dos grandes pede a ele para matar os outros dois. "Faça isso", diz o rei, "pois eu sou seu governante por direito". "Faça isso", diz o sacerdote, "pois estou ordenando em nome dos deuses". "Faça isso", diz o rico,"e todo este ouro será seu". Agora, diga-me: Quem sobrevive e quem morre? Com uma profunda reverência, o eunuco apressou-se em sair da sala comum, os pés com chinelos macios. Depois de ele sair, Chella fungou, e Shae franziu seu lindo rosto. - O rico sobrevive, não é? Tyrion bebericou o vinho, pensativo. - Talvez. Ou talvez não. Parece que dependeria do mercenário - ele pousou a taça. - Anda, vamos para cima. Ela teve de esperá-lo no topo da escada, pois tinha pernas magras e flexíveis, ao passo que as dele eram curtas, deformadas e cheias de dores. Mas sorria quando Tyrion a alcançou. - Sentiu a minha falta? - ela brincou quando pegou a mão dele. - Desesperadamente - admitiu Tyrion. Shae tinha pouco mais de um metro e meio, e mesmo assim ele era obrigado a olhar para cima... Mas, no caso dela, descobriu que não se importava. Era um motivo lindo para se erguer o olhar. 48 - Vai sentir a minha falta durante todo o tempo que passar na sua Fortaleza Vermelha – ela disse enquanto o levava para o quarto. - Sozinho, na sua cama fria, na sua Torre da Mão. - E bem verdade. Tyrion teria levado Shae junto de bom grado, mas o senhor seu pai o proibira. Não vai levar a prostituta para a corte, ordenara Lorde Tywin. Trazê-la para a cidade era o máximo de desafio que ousava. Toda sua autoridade derivava do pai, e a moça teria de compreendê-lo. - Não estará longe - prometeu. - Terá uma casa, com guardas e criados, e visitarei você tantas vezes quantas conseguir. Shae fechou a porta com um chute. Através da moldura enevoada da estreita janela, conseguia ver o Grande Septo de Baelor coroando a Colina de Visenya, mas Tyrion estava distraído por uma vista diferente. Dobrando-se, Shae pegou o vestido pela bainha, despiu-o pela cabeça e o atirou para o lado. Não acreditava em roupa de baixo. - Nunca vai conseguir descansar - ela disse, em pé, à sua frente, cor-de-rosa, nua e adorável, com uma mão apoiada no quadril. - Vai pensar em mim sempre que for para a cama. Depois, ficará duro, e não terá ninguém para ajudá-lo, e nunca será capaz de dormir, a não ser que... – e sorriu aquele sorriso malicioso de que Tyrion tanto gostava. - É por isso que a chamam de Torre da Mão, senhor? - Cale a boca e me beije - ele ordenou. Saboreou o vinho nos seus lábios e sentiu aqueles pequenos seios apertados contra ele, enquanto as mãos dela desciam até o cordão dos seus calções. - Meu leão - Shae sussurrou quando ele interrompeu o beijo para se despir. - Meu querido senhor, meu gigante de Lannister. Tyrion empurrou-a sobre a cama. Quando a penetrou, ela gritou alto o suficiente para acordar Baelor, o Abençoado, na sepultura, e as unhas deixaram marcas nas costas dele. Ele nunca sentira uma dor de que gostasse tanto. Idiota, disse depois a si mesmo, enquanto descansavam no meio do colchão afundado, entre lençóis amarrotados. Nunca aprenderá, anão? Ela é uma prostituta, maldito seja, é o seu dinheiro que ama não o seu pau. Lembra de Tysha? Mas quando seus dedos roçaram levemente por um mamilo endureceu, e Tyrion viu seu seio marcado onde a mordera durante o ato. - Então, o que vai fazer senhor, agora que é a Mão do Rei? - Shae perguntou, enquanto ele enchia a mão com aquela carne quente e adorável. - Uma coisa que Cersei jamais esperará - murmurou Tyrion suavemente contra seu pescoço magro. - Vou fazer... justiça. 49 Bran Bran preferia a pedra dura do banco junto à janela aos confortos do seu colchão de penas e dos cobertores. N a cama, as paredes apertavam-no e o teto caía, pesado, sobre ele; na cama, o quarto era sua cela, e Winterfell, uma prisão. Mas do outro lado da janela, o grande mundo ainda o chamava. Não podia andar, nem escalar, nem caçar, nem lutar com uma espada de madeira como antigamente, mas ainda podia olhar. Gostava de observar as janelas que começavam a cintilar por toda Winterfell, à medida que velas e lareiras eram acesas atrás das vidraças em forma de losango de torres e salões, e adorava escutar o canto dos lobos gigantes sob as estrelas. Nos últimos tempos, sonhava freqüentemente com lobos. Estão falando comigo, de irmão para irmão, dizia consigo mesmo quando os lobos gigantes uivavam. Quase conseguia compreendê-los... Não conseguia de verdade, não propriamente, mas quase... Como se cantassem numa língua que ele tivesse conhecido em outros tempos e de algum modo esquecera. Os Walder podiam ter medo deles, mas os Stark tinham sangue de lobo. Foi a Velha Ama quem lhe dissera. - Mas é mais forte em alguns do que em outros - ela o prevenira. Os uivos de Verão eram longos e tristes, cheios de dor e saudade. Os de Cão Felpudo eram mais selvagens. Suas vozes ecoavam pelos pátios e salões, até todo o castelo ressoar e parecer que uma grande matilha de lobos selvagens assombrava Winterfell, em vez de serem apenas dois... dois, onde antes tinham existido seis. Será que eles também sentem falta dos irmãos e irmãs?, perguntava-se Bran. Será que estão chamando Vento Cinzento e Fantasma, Nymeria e a Sombra de Lady? Será que querem que venham para casa e formem uma matilha, todos juntos? - Quem pode saber o que pensa um lobo? - tinha dito Sor Rodrik Cassei quando Bran lhe perguntou por que uivavam. A senhora sua mãe nomeara-o castelão de Winterfell na sua ausência, e os deveres do velho cavaleiro deixavam-lhe pouco tempo para perguntas inúteis. - E pela liberdade que chamam - declarara Farlen, que era mestre dos canis e tinha tão pouca afeição aos lobos gigantes quanto aos seus cães. - Eles não gostam de estar cercados por muros, e quem pode culpá-los? O lugar das coisas selvagens é a natureza, não um castelo. - Querem caçar - concordara o cozinheiro Gage, enquanto despejava cubos de sebo numa grande caldeira de guisado. - Um lobo tem o olfato melhor que qualquer homem. O mais certo é que tenham sentido cheiro de presa. Meistre Luwin tinha outra opinião. - Os lobos uivam freqüentemente à lua. Esses estão uivando para o cometa. Vê como é brilhante, Bran? Talvez pensem que é a lua. Quando Bran repetiu esta idéia a Osha, ela riu com gosto. - Seus lobos têm mais juízo do que seu meistre - tinha dito a selvagem. - Conhecem verdades que o homem cinzento esqueceu - a maneira como ela dissera aquilo tinha feito Bran 50 estremecer, e, quando perguntou o que significava o cometa, ela respondeu: - Sangue e fogo, rapaz, e nada de bom. Bran tinha perguntado ao Septão Cheyle sobre o cometa, enquanto organizavam alguns rolos salvos do incêndio da biblioteca. - E a espada que mata a estação - o septão respondera, e pouco tempo depois chegava o corvo branco de Vilavelha, trazendo a notícia sobre o Outono, portanto ele tinha razão. Mas a Velha Ama achava que não, e ela vivera mais tempo do que qualquer um dos outros. — Dragões - ela disse, erguendo a cabeça e fungando. Estava quase cega, e não conseguia ver o cometa, mas se dizia capaz de cheirá-lo. - São dragões, menino - insistiu. Bran não ouvia príncipes da Ama, não como antigamente. Hodor disse apenas "Hodor". Era o que ele dizia sempre. E, contudo, os lobos gigantes uivavam. Os guardas nas muralhas praguejavam, os cães, nos canis latiam furiosamente, nos estábulos, os cavalos escoiceavam, os Walder estremeciam junto a lareira, e até Meistre Luwin se queixava de noites sem dormir. Só Bran não se importava. Sor Rodrik tinha confinado os lobos no bosque sagrado depois de Cão Felpudo ter mordido o Pequeno Walder, mas as pedras de Winterfell faziam estranhos truques com o som, e às vezes os animais pareciam estar no pátio logo abaixo da sua janela. Em outras, poderia jurar que eles estavam na muralha exterior, trotando em voltas, como sentinelas. Gostaria de conseguir vê-los. Conseguia ver o cometa que pairava sobre o Salão dos Guardas, a Torre do Sino e a Primeira Fortaleza, que ficava mais além, atarracada e redonda, com as gárgulas transformadas em silhuetas negras contra o crepúsculo purpúreo ferido. Bran conhecera cada pedra daqueles edifícios, por dentro e por fora; escalara todos, correndo parede acima com a mesma facilidade com que outros rapazes corriam escada abaixo. Aqueles telhados tinham sido seus esconderijos, e os corvos que viviam no topo da torre em ruínas, seus amigos especiais. E então caíra. Bran não se lembrava de ter caído, mas diziam que sim, então supunha que fosse verdade, quase morrera. Quando viu as gárgulas desgastadas pelas intempéries no topo da Primeira Fortaleza, onde tudo tinha acontecido, sentiu um estranho aperto na barriga. E agora não podia escalar, nem caminhar, nem correr, nem lutar com uma espada, e os sonhos de cavalaria que somara tinha se azedado na sua cabeça. Verão tinha uivado no dia em que Bran caiu, e durante muito tempo depois, enquanto ele jazia inconsciente na cama; Robb tinha lhe contado antes de partir para a guerra. Verão velou por ele, e Cão Felpudo e Vento Cinzento tinham se juntado na dor. E na noite em que o corvo ensangüentado trouxe a notícia da morte do pai, os lobos também souberam. Bran estava no torreão do meistre com Rickon, conversando sobre os filhos da floresta, quando Verão e Cão Felpudo abafaram a voz de Luwin com seus uivos. Por quem eles estão de luto agora? Teria algum inimigo matado o Rei do Norte, que antes havia sido seu irmão Robb? Teria o irmão bastardo Jon caído da Muralha? Teria a mãe, ou uma das suas irmãs, morrido? Ou teria sido outra coisa, como pareciam pensar o meistre, o septão e a Velha Ama? Se eu fosse mesmo um lobo gigante, compreenderia a canção, Bran pensou com melancolia. Nos seus sonhos de lobo, conseguia correr pelas vertentes de montanhas, recortadas cobertas de neve, mais altas do que qualquer torre, e erguer-se no cume, sob a lua cheia, com todo o mundo a seus pés, como costumava acontecer. 51 - Uuuuu - gritou Bran experimentalmente. Pôs as mãos em torno da boca e ergueu a cabeça para o cometa. - Uuuuuuuuuuuuuuuu, ahuuuuuuuuuuuuu - uivou. Soava estúpido, agudo, vazio e inseguro, o uivo de um garotinho, não de um lobo. Mas Verão respondeu, com sua profunda voz sobrepondo-se ao timbre fino de Bran, e Cão Felpudo juntou-se ao coro. Bran voltou a soltar um zhuuuu. Uivaram juntos, os últimos da matilha. O barulho trouxe um guarda à sua porta, Hayhead, com seu quisto no nariz. Espreitou para dentro, viu Bran uivando na janela e disse: - O que é isso, meu príncipe? Bran sentia-se estranho quando o chamavam de príncipe, embora ele fosse herdeiro de Robb, e Robb fosse agora Rei do Norte. Virou a cabeça para uivar ao guarda. - Uuuuuuu. Uu-uu-uuuuuuuuuuuu. Hayhead contraiu o cenho. - Pare já com isso. - Uuu-uuu-uuuuuu. Uuu-uuu-uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu. O guarda retirou-se. Quando voltou, trazia consigo Meistre Luwin, todo de cinza, com a corrente apertada em volta do pescoço, - Bran, aqueles animais já fazem barulho suficiente sem a sua ajuda - atravessou a sala e pôs a mão na testa do rapaz, - Está ficando tarde, devia estar dormindo. - Estou falando com os lobos - Bran afastou a mão. - Devo mandar que Hayhead leve você para a cama? - Consigo ir para a cama sozinho - Mikken tinha pregado uma fileira de barras de ferro na parede, para que Bran fosse capaz de se deslocar pelo quarto apoiando-se nos braços. Era lento e duro, e fazia seus ombros doer, mas detestava ser transportado. - Seja como for, não tenho de dormir se não quiser. - Todos os homens têm de dormir, Bran. Até os príncipes. - Quando durmo, me transformo num lobo - Bran afastou o rosto e devolveu o olhar à noite. - Os lobos sonham? - Todas as criaturas sonham, penso eu, mas não como os homens. - Os homens mortos sonham? - o menino quis saber, pensando no pai, cujo retrato um pedreiro esculpia, em granito, nas criptas escuras por baixo de Winterfell. - Alguns dizem que sim, outros que não - respondeu o meistre. - Os próprios mortos não se manifestam sobre o assunto. - As árvores sonham? - As árvores? Não... - Sonham - Bran o corrigiu com uma certeza súbita. - Sonham sonhos de árvore. Eu sonho às vezes com uma árvore. Um represeiro, como aquele que há no bosque sagrado. Ele me chama. Os sonhos de lobo são melhores. Farejo coisas, e às vezes consigo sentir o gosto de sangue. Meistre Luwin puxou a corrente que incomodava seu pescoço. - Se ao menos passasse mais tempo com as outras crianças... - Detesto as outras crianças - Bran retrucou, referindo-se aos Walder. - Exigi que você as mandasse embora. Luwin mostrouse severo. - Os Frey são protegidos da senhora sua mãe e foram mandados para cá para serem criados sob ordens expressas dela. Não cabe a você expulsá-los, nem seria educado fazer isso. Se os mandássemos embora, para onde iriam? 52 - Para casa. É culpa deles que não me deixe ter o Verão. - O garoto Frey não pediu para ser atacado - respondeu o meistre - , e eu também não. - Mas isso foi o Cão Felpudo - o grande lobo negro de Rickon era tão selvagem que às vezes assustava até Bran. -Verão nunca mordeu ninguém. - Verão rasgou a garganta de um homem neste exato aposento, ou será que você se esqueceu? A verdade é que esses adoráveis filhotes que você e seus irmãos encontraram na neve cresceram e se transformaram em animais perigosos. Os rapazes Frey são sensatos por terem cuidado com eles. - Deveríamos pôr os Walder no bosque sagrado. Poderiam brincar de senhor da travessia o quanto quisessem, e Verão poderia voltar a dormir comigo. Se eu sou o príncipe, por que não me obedece? Quis montar a Dançarina, mas Alebelly não me deixou atravessar o portão. - E com razão. A mata de lobos está cheia de perigos. Sua última cavalgada deveria lhe ter ensinando isso. Gostaria que algum fora da lei o capturasse e o vendesse aos Lannister? - Verão me salvaria - Bran insistiu teimosamente. - Os príncipes deviam ser autorizados a velejar pelos mares, a caçar javalis na mata de lobos e ajustar com lanças. - Bran, meu filho, por que se aflige assim? Um dia poderá fazer algumas dessas coisas, mas agora é apenas um garoto de oito anos. - Preferia ser um lobo. Assim, eu poderia viver na floresta e dormir quando quisesse, e poderia encontrar Arya e Sansa. Farejaria onde elas estavam e iria salvá-las, e quando Robb partisse para a batalha, lutaria a seu lado, como Vento Cinzento. Rasgaria a garganta do Regicida com os dentes, zás, e depois a guerra chegaria ao fim e todo mundo voltaria a Winterfell. Se eu fosse um lobo... - o menino voltou a uivar. - Uuu-uu-uuuuuuuuuuuu, Luwin levantou a voz. - Um verdadeiro príncipe daria as boas-vindas... - AAHUUUUUU - Bran uivou, com mais força. - uuuuuuu-uuuuuu. O meistre se rendeu: - Como quiser, menino - com um olhar que era em parte tristeza e em parte aborrecimento, saiu do quarto. Uivar perdeu a graça depois que Bran ficou sozinho. Algum tempo depois, aquietou-se. Eu dei boas-vindas a eles, disse a si mesmo, com ressentimento. Fui senhor de Winterfell, um verdadeiro senhor, ele não pode dizer que não. Quando os Walder tinham chegado das Gêmeas, fora Rickon quem quis que fossem embora. Rickon, um garotinho de quatro anos, gritou que queria a mãe, o pai e Robb, não aqueles estranhos. Bran teve de acalmá-lo e desejar as boas-vindas aos Frey. Ofereceu-lhes comida e bebida, e uma cadeira junto ao fogo, e até Meistre Luwin dissera, depois, que ele se portara bem. Só que isso tinha sido antes do jogo. Para o jogo, eram necessários um tronco, um bastão, um curso dagua e muitos gritos. A água era o mais importante, asseguraram Walder e Walder a Bran. Podia-se usar uma prancha, ou até uma série de pedras, e um galho podia servir de bastão. Não era preciso gritar. Mas, sem água, não havia jogo. Como Meistre Luwin e Sor Rodrik não iam deixar as crianças vaguear pela mata de lobos em busca de um riacho, tinham de se virar com uma das lagoas sombrias que havia no bosque sagrado, Walder e Walder nunca antes tinham visto água quente sair do chão borbulhando, mas ambos acharam que tornaria o jogo ainda melhor. Ambos se chamavam Walder Frey. O Grande Walder dizia que havia vários Walder nas Gêmeas, todos batizados em homenagem ao avô dos rapazes, Lorde Walder Frey. 53 - Em Winterfell, temos os nossos nomes - disse-lhes Rickon, com altivez, quando ouviu a história. Para jogar, punha-se o tronco atravessando a água e um jogador ia para o meio com o bastão. Era o senhor da travessia, e, quando um dos outros jogadores se aproximava, ele tinha de dizer: "Eu sou o senhor da travessia, quem vem lá?" E o outro jogador tinha de inventar um discurso sobre quem era e o motivo pelo qual devia ser autorizado a atravessar, O senhor podia obrigá-los a prestar juramento e a responder a perguntas. Não tinham de dizer a verdade, mas os juramentos deviam ser cumpridos, a não ser que incluíssem a palavra "talvez". Portanto, o truque era dizer essa palavra sem que o senhor da travessia notasse. Então, podia-se tentar atirá-lo na água, e quem conseguisse passaria a ser o senhor da travessia, mas só se tivesse dito "talvez". Caso contrário, ficaria fora do jogo. O senhor podia atirar qualquer um na água sempre que quisesse, e era o único que podia usar um bastão. Na prática, o jogo parecia resumir-se a empurrões, pancadas e quedas na água, acompanhados de sonoras discussões sobre se alguém tinha ou não dito "talvez". Normalmente, era o Pequeno Walder o senhor da travessia. Apesar do nome, Pequeno Walder era alto e troncudo, com uma cara vermelha e uma grande barriga redonda. Já Grande Walder tinha feições angulosas, era magro, e quinze centímetros mais baixo. - Ele é cinqüenta e dois dias mais velho que eu - explicou Pequeno Walder - , e por isso, a princípio, era maior, mas eu cresci mais depressa. - Nós somos primos, não irmãos - acrescentou Grande Walder, o menor. - Eu sou Walder, filho de Jammos. Meu pai é filho de Lorde Walder e da sua quarta esposa. Ele é Walder, filho de Merrett. A avó dele era a terceira esposa de Lorde Walder, a Crakehall. Ele está na minha frente na linha de sucessão, apesar de eu ser mais velho. - Só por cinqüenta e dois dias - retrucou Pequeno Walder. - E nenhum de nós jamais ficará com as Gêmeas, seu estúpido. - Eu ficarei - declarou Grande Walder. - E não somos os únicos Walder. Sor Stevron tem um neto, Walder Negro, que é o quarto na linha de sucessão; e há o Walder Vermelho, filho de Sor Emmon; e Walder Bastardo, que não está na linha. Chama-se Walder Rivers, e não Walder Frey. Além disso, há meninas chamadas Walda. - E o Tyr. Você esquece sempre do Tyr. - Ele é Walíyr, não Walder - Grande Walder respondeu com rapidez. - E está depois de nós, portanto não importa. Seja como for, nunca gostei dele. Sor Rodrik decretou que os protegidos dividiriam o antigo quarto de Jon Snow, já que este estava na Patrulha da Noite e nunca voltaria. Bran detestou a idéia; sentia que era como se os Frey estivessem roubando o lugar de Jon. Bran observava, tristonho, enquanto os Walder lutavam com Nabo, o filho do cozinheiro, e as filhas dejoseth, Bandy e Shyra. Os donos do jogo tinham decretado que Bran seria o juiz e decidiria se os jogadores tinham dito "talvez", mas, assim que começaram a jogar, esqueceram-no por completo. Os ruídos e espirros dagua em breve atraíram outros: Palia, a moça do canil; o filho de Cayn, Calon; e também Tom, cujo pai, Gordo Tom, tinha morrido com o pai de Bran em Porto Real. Não demorou muito tempo até ficarem todos encharcados e enlameados. Palia estava marrom da cabeça aos pés, com musgo no cabelo, sem fôlego, de tanto rir. Bran não ouvia tantas gargalhadas 54 desde a noite em que chegara o corvo ensangüentado. Se tivesse as minhas pernas, atiraria todos na água pensou amargamente. Ninguém seria senhor da travessia, a não ser eu. Por fim, Rickon chegou correndo ao bosque sagrado, com Cão Felpudo logo atrás. Ficou vendo Nabo e o Pequeno Walder lutarem pelo bastão, até que Nabo se desequilibrou e caiu, provocando um grande esguicho de água, balançando os braços. Rickon gritou: - Eu! Agora eu! Quero jogar! - Pequeno Walder fez sinal para ele subir, e Cão Felpudo começou a segui-lo. - Não, Felpudo - mandou o irmão. - Os lobos não podem brincar. Fica com Bran. E o lobo ficou... ...até o momento em que o Pequeno Walder bateu com o bastão em Rickon, bem em cheio, na barriga. Antes que Bran piscasse os olhos, o lobo negro voou sobre a prancha. Havia sangue na água, e os Walder guinchavam como se fosse o fim do mundo. Rickon sentou-se na lama, rindo, e Hodor chegou pisando pesado, gritando "Hodor! Hodor! Hodor!". Depois daquilo, estranhamente, Rickon decidiu que gostava dos Walder. Não voltaram a brincar de senhor da travessia, mas jogavam outros jogos - monstros e donzelas, gatos e ratos, entra-no-meu-castelo, todo o tipo de coisas. Com Rickon a seu lado, os Walder saqueavam as cozinhas em busca de tortas e favos de mel, faziam corridas em volta das muralhas, atiravam ossos aos cachorros nos canis e treinavam com espadas de madeira sob o olhar atento de Sor Rodrick. Rickon até lhes mostrou as profundas abóbadas debaixo da terra onde o pedreiro esculpia a sepultura do pai. - Você não tinha o direito! - gritou Bran ao irmão quando soube. - Aquele lugar é nosso, dos Stark! Mas Rickon não tinha se importado. A porta do seu quarto abriu-se. Meistre Luwin entrou, carregando um bule verde, e desta vez Osha e Hayhead vinham com ele. - Fiz uma poção para você dormir, Bran. Osha pegou-o com seus braços ossudos. Era muito alta para uma mulher, e forte como metal, e o levou sem esforço para a cama. - Isto vai lhe dar um sono sem sonhos - disse Meistre Luwin, tirando a rolha do bule. – Um bom sono sem sonhos. - Vai? - Bran perguntou, querendo acreditar. - Sim. Beba. Bran bebeu. A poção era espessa e calcária, mas continha mel, e desceu facilmente. - Quando chegar a manhã, vai se sentir melhor. Luwin deu a Bran um sorriso e uma palmadinha antes de se retirar. Osha ficou por ali. - São os sonhos do lobo de novo? Bran confirmou com a cabeça. - Não devia lutar tanto, rapaz. Vejo você falando com a árvore-coração. Talvez os deuses estejam tentando responder. - Os deuses? - ele murmurou, já sonolento. A cara de Osha ficou embaçada e cinzenta. Um bom sono sem sonhos, Bran pensou. Mas, quando a escuridão se fechou ao seu redor, deu por si no bosque sagrado, movendo-se em silêncio sob árvoressentinela cinza-esverdeadas e carvalhos nodosos, velhos como o tempo. 55 Estou andando, pensou, exultante. Parte dele sabia que era apenas um sonho, mas mesmo o sonho de andar era melhor do que a verdade do seu quarto, com as paredes, o teto e a porta.
Estava escuro entre as árvores, mas o cometa iluminava seu caminho, e seus pés eram firmes. Deslocava-se em quatro boas pernas, fortes e rápidas, e conseguia sentir o chão debaixo das patas, o suave crepitar das folhas caídas, as grossas raízes e as pedras duras, as profundas camadas de húmus, Era uma sensação boa. Os cheiros enchiam sua cabeça, vivos e inebriantes; o fedor verde e lamacento das lagoas quentes, o perfume da rica terra que apodrecia sob as suas patas, os esquilos no topo dos carvalhos. O cheiro de esquilo fez com que recordasse o sabor do sangue quente e o jeito como os ossos estalariam entre os seus dentes. Sua boca encheu-se de saliva. Não comia há mais de meio dia, mas não havia qualquer graça na carne morta, mesmo que fosse de veado. Era capaz de ouvir os esquilos pipilando e sussurrando por cima da sua cabeça, em segurança entre as suas folhas, mas eram suficientemente prudentes para não descer até onde ele e o irmão rondavam. Também cheirava o irmão, um odor familiar, forte e terroso, um odor tão negro como a sua pelagem. O irmão rondava ao redor dos muros, cheio de fúria. Dava voltas e mais voltas, noite e dia, incansável, à procura... de uma presa, de uma saída, da mãe, dos companheiros de ninhada, da matilha... à procura, à procura, sem nunca encontrar. Atrás das árvores erguiam-se os muros, pilhas de rocha-de-homem morta que apareciam ao redor de toda aquela mancha de bosque vivo. Erguiam-se manchadas de cinza e salpicadas de musgo, mas espessas, fortes e mais altas do que qualquer lobo pudesse imaginar saltar. Ferro frio e madeira lascada fechavam os únicos buracos que havia entre as pedras empilhadas que os encerravam. O irmão parava junto a cada buraco e mostrava as presas, tomado de fúria, mas os caminhos permaneciam fechados. Ele tinha feito o mesmo na primeira noite, e descobriu que não valia a pena. Ali, rosnados não abriam caminhos. Dar a volta junto aos muros não os faria recuar. Levantar uma pata e demarcar as árvores não manteria nenhum homem afastado. O mundo apertara-se em volta deles, mas para lá do bosque murado ainda se estendiam as grandes cavernas cinzentas da rocha-de-homem. Winterfell, lembrou-se, com o som chegando subitamente. E para lá das suas falésias altas como o céu, o verdadeiro mundo chamava, e ele sabia que tinha de responder, ou morreria. A RY A
Viajaram do nascer ao pôr do sol, passando por florestas, pomares e campos bem-cuidados, atravessando pequenas aldeias, vilas livres cheias de gente e robustos castros. Quando a noite chegava, montavam o acampamento e comiam à luz da Espada Vermelha. Os homens faziam turnos de guarda. Arya vislumbrava as fogueiras dos acampamentos de outros viajantes tremeluzindo por entre as árvores. Parecia haver mais acampamentos todas as noites, e mais tráfego na estrada do rei durante o dia. Chegavam de manhã, à tarde e à noite, velhos e crianças, homens grandes e pequenos, garotos de pés descalços e mulheres com bebês no peito. Alguns conduziam carroças de campo ou eram sacudidos na parte de trás de carros de bois. Um número maior vinha montado em cavalos de tração, pôneis, mulas, burros, em qualquer coisa capaz de andar, correr ou rolar. Uma mulher puxava uma vaca leiteira com uma menininha no lombo. Arya viu um ferreiro que empurrava um carro de mão com suas ferramentas lá dentro, martelos e tenazes, e até uma bigorna, e pouco depois via outro homem com outro carro de mão, dessa vez contendo dois bebês enrolados numa manta. A maior parte vinha a pé, com as posses sobre os ombros e expressões muito cansadas nos rostos. Caminhavam para o sul, na direção da cidade, para Porto Real e só um em cem chegava a dirigir uma palavra a Yoren e àqueles que estavam sob sua responsabilidade, viajando para o norte. Perguntou a si mesma por que é que mais ninguém seguia na mesma direção que eles. Muitos dos viajantes vinham armados; Arya viu punhais e adagas, foices e machados, e aqui e ali uma espada. Alguns tinham feito tacapes de galhos de árvore, ou esculpido bastões nodosos. Passavam os dedos pelas armas e lançavam olhares demorados às carroças que por eles passavam, mas, no fim, deixavam a coluna avançar. Contavam-se trinta, seja lá o que fosse que transportavam naquelas carroças. Olha com os olhos, dizia Syrio, escuta com os ouvidos. Um dia, uma louca desatou a gritar para eles da beira da estrada. - Doidos! Eles matam vocês, doidos! - era magra como um espantalho, com olhos vazios e pés ensangüentados. Na manhã seguinte, um mercador de rosto liso montado numa égua cinzenta parou ao lado de Yoren e ofereceu-se para comprar as carroças e tudo o que continham por um quarto do seu valor. - É a guerra, eles levam o que quiserem, seria melhor se vendesse para mim, meu amigo. Yoren lhe deu as costas com um giro dos ombros encurvados, e cuspiu. Arya reparou na primeira sepultura nesse mesmo dia; um pequeno monte ao lado da estrada, escavado para uma criança. Um cristal tinha sido depositado na terra fofa, e Lommy insistiu para 57 ficar com ele, até que o Touro lhe disse que faria melhor em deixar os mortos em paz. Algumas léguas mais à frente, Praed apontou para mais sepulturas, uma fileira inteira recém-cavada. Depois disso, quase não se passou um dia sem verem outras. Certa vez, Arya acordou no escuro, assustada por algo que não conseguia definir. N o alto, a Espada Vermelha dividia o céu com meio milhar de estrelas. A noite lhe parecia estranhamente silenciosa, embora conseguisse ouvir os roncos resmungados de Yoren, o crepitar do fogo e até os movimentos abafados dos burros. Mas, de algum modo, sentia-se como se o mundo inteiro estivesse segurando a respiração, e o silêncio a fazia tremer. Voltou ao sono agarrada à Agulha. Ao chegar a manhã, quando Praed não acordou, Arya compreendeu que aquilo de que sentira falta tinha sido a tosse do homem. Então, cavaram eles mesmos a sepultura de Praed, enterrando o mercenário no local onde dormira. Yoren despiu-o das coisas de valor que possuía antes de jogarem terra sobre ele. Um homem ficou com suas botas, outro, com o punhal. A cota de malha e o elmo foram distribuídos. A espada longa foi entregue por Yoren a Touro. - Pode ser que braços como os seus aprendam a usar isso - disse-lhe. Um menino chamado Tarber atirou um punhado de bolotas sobre o corpo de Praed, para que um carvalho pudesse nascer e marcar o lugar em que jazia. Naquela noite, pararam em uma aldeia, numa estalagem coberta de hera. Yoren contou as moedas que trazia na bolsa e decidiu que tinham o suficiente para uma refeição quente. - Vamos dormir aqui fora, como sempre, mas eles têm uma casa de banhos aqui, se algum de vocês estiver sentindo falta de água quente e de uma esfregadinha com sabão.
Arya não se atreveu, embora já cheirasse tão mal como Yoren, toda ela acre e fedorenta. Algumas das criaturas que viviam na sua roupa a acompanhavam desde a Baixada das Pulgas; não parecia certo afogá-las. Tarber, Torta Quente e Touro juntaram-se à fila de homens que se dirigiam para as tinas. Outros instalaram-se na frente da casa de banhos. O resto amontoou-se na sala comum, Yoren até mandou Lommy levar canecas de cerveja aos três homens presos que tinham sido deixados acorrentados na parte de trás da carroça. Os lavados e os por se lavar jantaram empadões quentes de porco e maçãs cozidas. O estalajadeiro ofereceu-lhes uma rodada de cerveja por conta da casa. - Tive um irmão que vestiu o negro, há anos. Era criado de refeições, esperto, mas um dia foi visto surrupiando pimenta da mesa do senhor. Gostava do sabor, nada mais. Só uma pitada de pimenta, mas Sor Malcolm era um homem duro. Tem pimenta na Muralha? - quando Yoren balançou a cabeça, o homem soltou um suspiro. - Que pena. Lync adorava pimenta. Arya bebericou cautelosamente da caneca, entre uma e outra colherada de empadão ainda quente do forno. Lembrou-se de que o pai, às vezes, os deixava beber uma taça de cerveja. Sansa costumava fazer uma careta, dizendo que o vinho era muito melhor, mas Arya gostava bastante. Pensar em Sansa e no pai deixava-a triste. A estalagem estava cheia de gente que rumava para o sul, e a sala comum irrompeu em escárnio quando Yoren disse que viajavam na direção oposta. - Voltará em breve - garantiu o estalajadeiro. - Não há como ir para o norte. Metade dos campos está queimada, e as pessoas que restam estão trancadas dentro das muralhas dos seus castros. Um grupo afasta-se de madrugada, e outro aparece ao anoitecer. - Isso não é nada pra nós - Yoren insistiu teimosamente. - Tully ou Lannister, não importa. A Patrulha não participa. Lorde Tully é meu avô, pensou Arya. A ela importava, mas mordeu o lábio e ficou quieta, ouvindo. 58 - É mais do que Lannister e Tully - rebateu o estalajadeiro, - Há selvagens das Montanhas da Lua. Tente lhes dizer que não participa. E os Stark também estão metidos no assunto, o jovem senhor desceu, o filho do Mão morto... Arya endireitou-se no lugar, esforçando-se para ouvir. Estaria ele se referindo a Robb? - Ouvi dizer que o rapaz monta um lobo nas batalhas - disse um homem de cabelo amarelo, com uma caneca na mão. - Conversa de gente imbecil - Yoren cuspiu. - O homem que me disse isso viu com seus próprios olhos. Um lobo grande como um cavalo, Ele jurou. - Jurar não torna isso verdade, Hod - disse o estalajadeiro. - Você anda sempre jurando que Vai pagar o que me deve, e ainda não vi um único vintém. A sala comum explodiu em gargalhadas, e o homem de cabelo amarelo ficou vermelho. - Tem sido um ano ruim para lobos - interveio um homem pálido com seu manto verde manchado pela viagem. - Nas redondezas do Olho de Deus, as matilhas tornaram-se mais ousa das do que se tem registro. Ovelhas, vacas, cães, não importa, matam o que bem quiserem, e não têm medo dos homens. Entrar naqueles bosques durante a noite é arriscar a vida. - Ah, isso são mais histórias, e são tão pouco reais quanto a outra. - Eu ouvi o mesmo da minha prima, e ela não é do tipo que mente - disse uma velha, - Diz que há uma grande matilha, com centenas de lobos, matadores de homens, O animal que os lidera é uma loba, uma cadela do sétimo inferno. Uma loba. Arya bebeu sua cerveja, refletindo. Será que Olho de Deus ficava perto do Tridente? Gostaria de ter um mapa, Tinha sido perto do Tridente que deixara Nymeria. Não queria Fazê-lo, mas Jory disse que não tinha alternativa, que se a loba voltasse com eles seria morta por ter mordido Joffrey, apesar de ele ter merecido. Tinham tido de gritar, e berrar, e atirar pedras, e só depois de ser atingida por algumas delas, atiradas por Arya, é que a loba gigante deixou de segui-los. Ela provavelmente nem me reconheceria agora, Arya pensou. Ou, se reconhecesse, iria me odiar. O homem do manto verde disse: - Ouvi falar de como esta cadela do inferno entrou um dia numa aldeia... Um dia de mercado, gente por todo o lado, e ela entrou, na cara dura, e arrancou um bebê dos braços da mãe. Quando Lorde Mooton ouviu a história, ele e os filhos juraram que acabariam com ela. Seguiram-na até a toca com uma matilha de lobeiros, e foi por pouco que conseguiram salvar a própria pele. Nem um dos cães voltou, nem um. - Isso é só uma história - Arya exclamou, antes de conseguir se controlar. - Os lobos não comem bebês. - E o que você sabe disso, moço? - perguntou o homem do manto verde. Antes que Arya conseguisse pensar numa resposta, Yoren agarrou seu braço. - O rapaz tem cerveja na cabeça, é só isso. - Não tenho nada. Eles não comem bebês... - Lá pra fora, rapaz,., E vê se fica lá até aprender a calar a boca quando os homens estão conversando - Yoren deu-lhe um empurrão firme, na direção da porta lateral que levava de volta aos estábulos. - Vá. E veja se o cavalariço deu água aos cavalos. Arya saiu, dura de fúria. - Não comem - resmungou, chutando uma pedra no momento em que saía. A pedra foi rolando, e só parou debaixo das carroças. 59 - Menino - chamou uma voz amistosa. - Menino adorável. Um dos homens presos estava falando com ela. Cuidadosamente, Arya aproximou-se da carroça, com uma mão no cabo da Agulha, O prisioneiro ergueu uma caneca vazia, tilintando as correntes. - Um homem faria bom proveito de outro gole de cerveja. Um homem tem muita sede quando usa essas pulseiras pesadas. Era o mais novo dos três, esguio, com traços delicados, sempre a sorrir. Tinha o cabelo vermelho de um lado e branco do outro, todo embaraçado e sujo da cadeia e da viagem.
- Um homem também não se importaria com um banho - ele disse quando viu o modo como Arya o olhava. - Um garoto poderia fazer um amigo. - Já tenho amigos - ela respondeu. - Nenhum que eu consiga ver - disse o que não tinha nariz. Era atarracado e troncudo, com umas mãos enormes. Pelos negros cobriam seus braços, pernas, peito e até mesmo as costas. Fazia Arya lembrar-se de um desenho que tinha visto num livro, de um macaco das Ilhas do Verão. O buraco no seu rosto tornava difícil olhá-lo durante muito tempo. O careca abriu a boca e silvou, como se fosse um imenso lagarto branco. Quando Arya vacilou para trás, sobressaltada, ele abriu a boca e sacudiu a língua na sua direção, mas aquilo era mais um coto que uma língua. - Para com isso! - ela exclamou. - Um homem não escolhe os companheiros nas celas negras - disse o bonito, com o cabelo vermelho e branco. Qualquer coisa no jeito como falava lembrou-lhe Syrio; era o mesmo, mas ao mesmo tempo diferente. - Estes dois não têm educação. Um homem tem de pedir perdão. Chamam você de Arry, não é verdade? - Cabeça de Caroço - disse o que não tinha nariz. - Cabeça de Caroço, Cara de Caroço, Rapaz Pau. Toma cuidado, Lorath, que ele bate em você com o pau. - Um homem tem de sentir vergonha das companhias que tem, Arry - voltou a falar o bonito. - Este homem tem a honra de ser Jaqen Hghar, antigamente habitante da Cidade Livre de Lorath. Bem que gostaria de estar em casa. Os malcriados companheiros de cativeiro deste homem chamam-se Rorge - indicou com a caneca o homem sem nariz - e Dentadas – Dentadas voltou a silvar para ela, mostrando uma boca cheia de dentes amarelos, limados até ficar pontiagudos. - Um homem tem de ter algum nome, não é? O Dentadas não pode falar, e nem sabe escrever, mas seus dentes são muito afiados, e por isso um homem o chama de Dentadas, e ele sorri. Está encantado? Arya afastou-se da carroça. - Não - eles não podem me fazer mal, disse a si mesma, estão todos acorrentados. Ele virou a caneca ao contrário. - Um homem tem de lamentar. Rorge, o que não tinha nariz, atirou a caneca nela com uma praga. As algemas o atrapalhavam, mas mesmo assim a teria acertado em cheio na cabeça com a pesada caneca de estanho se Arya não tivesse saltado para o lado. - Traga-nos cerveja, seu bolha.Já! - Cala boca! - Arya tentou imaginar o que Syrio teria feito. Puxou a espada de treino, de madeira. - Chegue perto - disse Rorge - , e eu enfio esse pau pelo seu rabo acima, até ver você sangrar. 60 O medo golpeia mais profundamente do que as espadas. Arya obrigou-se a se aproximar da carroça .Cada passo era mais difícil que o anterior. Feroz como um glutão, calma como águas paradas. As palavras cantavam na sua cabeça. Syrio não teria medo. Estava quase perto o suficiente para tocar a roda, quando Dentadas se pôs em pé de um salto, E tentou agarrá-la, fazendo os ferros tinir e chocalhar. As algemas cortaram seu movimento a quinze e centímetros da cara dela. O homem silvou. Arya o atingiu. Com força, bem entre seus pequenos olhos. Gritando, Dentadas cambaleou para trás e depois atirou todo seu peso contra as correntes. Os aros deslizaram, torceram-se e se retesaram, e Arya ouviu o ranger de madeira velha e seca quando os grandes anéis de ferro forçaram as pranchas do chão da carroça. Enormes mãos brancas tentaram agarrá-la, enquanto veias se projetavam ao longo dos braços de Dentadas, mas os grilhões agüentaram, e, por fim, o homem caiu para trás. Escorria sangue das feridas úmidas que tinha no rosto. - Um rapaz tem mais coragem do que bom-senso - observou aquele que tinha se identificado como Jaqen H ghar. Arya afastou-se da carroça, andando de costas. Quando sentiu uma mão no ombro, rodopiou, voltando a erguer a espada de pau, mas era apenas Touro. - O que você está fazendo? Ele ergueu as mãos em defesa. - Yoren disse que nenhum de nós devia se aproximar daqueles três. - Eles não me assustam - ela respondeu. - Então você é estúpido, porque eles me assustam - a mão de Touro caiu sobre o punho da espada, e Rorge desatou a rir. - Vamos sair de perto deles. Arya o seguiu, arrastando os pés pelo chão, e deixou que Touro a conduzisse ao redor da estalagem até a parte da frente. O riso de Rorge e os silvos do Dentadas seguiram-nos. - Quer lutar? - Arya perguntou a Touro. Queria bater em qualquer coisa. Ele olhou para ela, piscando, surpreso. Madeixas de espesso cabelo negro, ainda úmido do banho, caíam sobre seus olhos profundamente azuis, - Eu machucaria você. - Não machucaria nada. - Você não conhece a minha força. - Você não conhece a minha rapidez. - Está pedindo, Arry - ele puxou a espada de Praed. - Isto é aço barato, mas é uma espada verdadeira. Arya desembainhou Agulha. - Esta é de bom aço, e por isso é mais verdadeira do que a sua. Touro balançou a cabeça: - Promete que não chora se eu te ferir? - Prometo, se você também prometer - Arya virou-se de lado, adotando a pose de dançarina de água, mas Touro não se mexeu. Estava olhando para qualquer coisa atrás dela. - Que foi? - Homens de manto dourado - ele fechou a cara. Não pode ser, Arya pensou, mas, quando olhou para trás, viu os homens cavalgando pela estrada do rei, seis, usando a cota de malha negra e os mantos dourados da Patrulha da Cidade.
Um deles era um oficial, usava uma placa peitoral esmaltada preta, ornamentada com quatro discos dourados. Pararam os cavalos em frente à estalagem. Olha com os olhos, pareceu sussurrar-lhe 61 a voz de Syrio. Seus olhos viram espuma branca debaixo das selas; os cavalos tinham corrido durante muito tempo, e duramente. Calma como águas paradas, pegou Touro pelo braço e o puxou para trás de uma cerca viva alta e florida. - O que é isso? - ele perguntou. - O que está fazendo? Me larga. - Silencioso como uma sombra - ela sussurrou, puxando-o para baixo. Alguns dos outros a cargo de Yoren estavam sentados em frente à casa de banhos, esperando sua vez de entrar numa tina. - Vocês, homens - gritou um dos de manto dourado. - São os que partiram para vestir o negro? - Talvez sejamos - foi a resposta cautelosa. - Preferíamos nos juntar a vocês, rapazes - disse o velho Reysen, - Ouvimos dizer que faz frio naquela Muralha. O oficial de manto dourado desmontou. - Tenho um mandado a respeito de um certo rapaz... Yoren saiu da estalagem, afagando sua emaranhada barba negra. - Quem é que quer esse rapaz? Os outros homens de manto dourado estavam desmontando e colocando-se ao lado dos cavalos. - Por que nós estamos escondidos? - Touro sussurrou. - Sou eu que eles querem - Arya respondeu, também sussurrando. A orelha dele cheirava a sabão. - Fica quieto. - E a rainha quem o quer, velho, não que isso te diga respeito - disse o oficial, tirando uma faixa do cinto. - Aqui está, o selo e mandado de Sua Graça, Atrás da cerca viva, Touro balançou a cabeça, duvidando. - Por que motivo a rainha haveria de te querer, Arry? Ela esmurrou seu ombro. - Fica quietol Yoren passou os dedos pela faixa do mandado com a gota de cera dourada. - Bonito - cuspiu. - Acontece que o rapaz está agora na Patrulha da Noite. O que ele fez lá na cidade não importa mais. - A rainha não está interessada nas suas opiniões, velho, e eu também não - disse o oficial. - Vou levar o rapaz. Arya pensou em fugir, mas sabia que não iria longe no seu burro quando os homens de manto dourado tinham cavalos. E estava tão cansada de fugir. Tinha fugido quando Sor Meryn havia ido buscá-la e voltou a fugir quando tinham matado seu pai. Se fosse uma verdadeira dançarina de água, sairia dali com a Agulha na mão, mataria todos, e nunca mais fugiria de ninguém. - Não vái levar ninguém - Yoren respondeu teimosamente. - Há leis sobre essas coisas. O homem do manto dourado puxou uma espada curta. - Aqui está a sua lei. Yoren olhou para a lâmina: - Isso não é lei nenhuma, é só uma espada. Acontece que eu também tenho uma. O oficial sorriu. - Velho tonto. Eu tenho cinco homens comigo. Yoren cuspiu. - Acontece que eu tenho trinta. 62 O homem de manto dourado soltou uma gargalhada, - Esses aí? - disse um grandalhão desajeitado com o nariz quebrado. - Quem é o primeiro? — gritou, mostrando o aço. Tarber puxou uma forquilha de uma pilha de feno. - Sou eu. - Não, sou eu - gritou Cutjack, o pedreiro rechonchudo, tirando o martelo do avental de couro que usava sempre. - Eu - Kurz surgiu com sua faca de esfolar na mão. - Eu e ele - Koss retesou a corda do seu arco, - Todos nós - disse Reysen, agarrando o grande bastão de madeira dura em que se apoiava ao caminhar. Dobber saiu nu da casa de banhos com as roupas numa trouxa, viu o que estava acontecendo e deixou tudo cair, menos a adaga. - E uma luta? - ele quis saber. - Parece que sim - disse Torta Quente, caindo de quatro à procura de uma pedra que pusesse atirar. Arya não acreditava no que estava vendo. Odiava Torta Quente! Por que motivo se arriscaria por ela? O homem do nariz quebrado ainda achava aquilo engraçado. - Ponham de lado essas pedras e paus, meninas, antes que apanhem. Nenhum de vocês sabe por qual lado se pega numa espada. - Eu sei! - Arya não os deixaria morrer por ela, como Syrio. Não deixaria! Abrindo caminho através da cerca viva com a Agulha na mão, adotou a pose da dançarina de água. O de nariz quebrado soltou uma gargalhada roufenha. O oficial olhou-a de cima a baixo. - Guarde a espada, menininha, ninguém quer machucar você. - Não sou uma menina! - Arya gritou, furiosa. Qual era o problema deles? Tinham percorrido todo aquele caminho à sua procura, ali estava ela, e limitavam-se a sorrir para ela. - Sou eu quem procuram. - E a ele que procuramos - o oficial indicou Touro com a espada, que tinha avançado para se colocar ao lado de Arya, com o aço barato de Praed na mão, Mas foi um erro o oficial tirar os olhos de Yoren, mesmo que por um instante. Foi o tempo que a espada do irmão negro demorou para ser pressionada contra seu pomo de adão. - Não vai ficar com nenhum deles, a não ser que queira que eu veja se o seu pomo já está maduro. Tenho mais dez ou quinze irmãos naquela estalagem, se ainda precisa ser convencido.
Se fosse você, largava esse corta-tripas, botava as bochechas em cima daquele cavalinho gordo e galopava de volta à cidade - Yoren cuspiu, e fez mais pressão com a ponta da espada. - Já, Os dedos do oficial abriram-se. A espada caiu na poeira. - Nós ficamos com isso - disse Yoren. - Bom aço sempre faz falta na Muralha. - Como quiser. Por enquanto. Homens - os homens de manto dourado embainharam as armas e montaram. - E melhor que galope em disparada até essa sua Muralha, velho. Da próxima vez que o apanhar, creio que sua cabeça terá o mesmo destino da do jovem bastardo. - Homens melhores que você já tentaram. Yoren bateu na garupa do cavalo do oficial com o lado da espada, fazendo-o desembestar pela estrada do rei afora, enquanto os outros o seguiram. Quando os perderam de vista, Torta Quente começou a gritar, mas Yoren pareceu mais zangado que nunca. 63 - Idiota! Acha que estamos livres dele? Da próxima vez, ele não vai se pavonear nem me dar nenhuma faixa maldita. Tirem os outros do banho, temos de ir andando. Cavalgando a noite toda, talvez possamos ficar à frente deles por um tempo - Yoren apanhou a espada que o oficial deixara cair. - Quem quer isto? - Eu! - Torta Quente berrou. - Não use no Arry - Yoren entregou a espada ao rapaz, com o cabo para a frente, e dirigiu-se a Arya, mas foi com Touro que falou. - A rainha o quer muito, rapaz. Arya não entendia nada. - Por que ele? Touro olhou bravo para ela. - E por que iria querer você? Não passa de um ratinho de sarjeta! - Bom, e você não passa de um garoto bastardo! - ou talvez apenas fingisse ser um rapaz bastardo. - Qual é o seu nome de verdade? - Gendry - ele respondeu, como se não estivesse muito certo daquilo. - Não vejo por que alguém haveria de querer algum de vocês - Yoren os interrompeu. – Mas não podem ficar com vocês de qualquer jeito. Montem aqueles dois corcéis. Ao primeiro sinal de um manto dourado, sigam para a Muralha como se um dragão os perseguisse. O resto de nós não têm importância para eles. - Menos você - Arya o corrigiu. - Aquele homem disse que também queria sua cabeça, - Bem, quanto a isso, se conseguir arrancá-la dos meus ombros, que faça bom proveito. 64 Jon -Sam? - Jon chamou em voz baixa. O ar tinha cheiro de papel, de pó e dos anos. A sua frente, altas estantes de madeira erquiam-se até desaparecer nas sombras, entulhadas de livros encadernados em couro e caixas de antigos rolos. Um tênue brilho amarelo era filtrado pelas pilhas de livros, vindo de uma lâmpada escondida. Jon apagou com um sopro a vela que trazia, preferindo não correr o risco de uma chama livre no meio de tanto papel velho e seco. E seguiu a luz, ziguezagueando pelas estreitas passagens sob a abóbada cilíndrica do teto. Todo vestido de preto, era uma sombra entre as sombras, com seu cabelo escuro, rosto longo e olhos cinzentos. Luvas negras de pele de toupeira cobriam suas mãos; a direita porque estava queimada, a esquerda porque um homem se sentia meio tolo usando apenas uma luva. Samwell Tarly estava debruçado sobre uma mesa num nicho esculpido na pedra da parede, iluminado pelo brilho que vinha da lâmpada pendurada sobre sua cabeça. Ergueu o olhar ao ouvir os passos de Jon. - Passou a noite toda aqui? - Passei? - Sam pareceu surpreso. - Não esteve conosco no desjejum, e ninguém dormiu na sua cama. Rast sugeriu que Sam talvez tivesse desertado, mas Jon nunca acreditou na idéia. A deserção requeria um tipo diferente de coragem, e isso era algo que Sam possuía em quantidade insuficiente. - Já é de manhã? Aqui embaixo não há como saber. - Sam, você é um bobo, mas simpático. Vai sentir falta daquela cama quando estivermos dormindo no chão frio e duro, garanto. Sam bocejou, - Meistre Aemon mandou-me encontrar mapas para o Senhor Comandante. Nunca pensei... Jon, os livros, já viu alguma coisa assim? Há milhares! Jon olhou em volta. - A biblioteca em Winterfell tem mais de cem. Encontrou os mapas? - Ah, sim - Sam passou a mão, com dedos grossos como salsichas, por sobre a mesa, indicando o amontoado de livros e rolos à sua frente. - Pelo menos uma dúzia - ele desenrolou um pergaminho quadrado. - A tinta desbotou, mas ainda se vê onde o cartografo assinalou os locais de aldeias selvagens, e há outro livro... Onde está? Eu o estava lendo agora mesmo - Sam afastou alguns rolos para o lado, revelando um volume poeirento, com uma encadernação em couro apodrecido. - Este - ele exclamou com reverência - é o relato de uma viagem desde a Torre Sombria 65 até o Cabo Desolado, na Costa Gelada, escrito por um patrulheiro chamado Redwyn. Não está datado, mas menciona um Dorren Stark como Rei do Norte. Portanto, deve ter sido escrito antes da Conquista. Jon, eles lutaram com gigantes! Redwyn até comerciou com os filhos da floresta, está tudo aqui - com toda delicadeza, Sam virou as páginas com um dedo. - Também desenhou mapas, veja... - Talvez escreva um relato da nossa patrulha, Sam. Pretendia soar encorajador, mas aquilo tinha sido a coisa errada a dizer. Tudo o que Sam menos precisava era ser lembrado do que os esperava na manhã seguinte. Então, pensativo, Sam moveu os rolos de um lado para o outro, sem propósito. - Há mais mapas, Se tivesse tempo de procurar... Está tudo uma confusão. Mas eu poderia pôr tudo em ordem; sei que poderia, mas levaria tempo... Bem, na verdade, levaria anos.
- Mormont gostaria de ter esses mapas um pouco mais depressa do que isso - Jon tirou um rolo de uma caixa e soprou o grosso da poeira. Um canto desprendeu-se entre os seus dedos quando o desenrolou. - Olha, este está se desfazendo - disse, franzindo a testa diante das letras desbotadas. - Tome cuidado - Sam rodeou a mesa e tirou o rolo da sua mão, pegando-o como se fosse um animal ferido. - Os livros importantes costumavam ser copiados quando precisavam deles. Alguns dos mais velhos foram copiados meia centena de vezes, provavelmente. - Bem, não perca tempo copiando esse. Vinte e três barricas de bacalhau em conserva, dezoito jarras de óleo de peixe, uma pipa de sal... - Um inventário - Sam concluiu. - Ou talvez uma conta de venda. - Quem se importa com quanto bacalhau em conserva comeram há seiscentos anos? – Jon perguntou. - Eu - Sam devolveu cuidadosamente o rolo à caixa de onde Jon o tirara. - Pode-se aprender muitas coisas com registros como este. E sério. Eles podem te dizer quantos homens havia na Patrulha da Noite nessa época, como viviam, o que comiam... - Comiam comida - Jon rebateu. - E viviam como nós vivemos. - Talvez você se surpreendesse. Esta galeria é um tesouro, Jon. - Se você diz... Jon tinha dúvidas. Tesouro queria dizer ouro, prata e jóias, não poeira, aranhas e couro apodrecido. - Digo sim - exclamou o gordo rapaz. Era mais velho do que Jon, legalmente um homem-feito, mas era difícil pensar nele como algo mais que um garoto. - Encontrei desenhos de caras nas árvores, e um livro a respeito da língua dos filhos da floresta... Trabalhos que nem a Cidadela possui, pergaminhos da antiga Valíria, contagens das estações feitas por meistres mortos há mil anos... - Os livros ainda estarão aqui quando voltarmos. - Se voltarmos... - O Velho Urso vai levar duzentos homens experimentados, e três quartos deles são patrulheiros. Qhorin Halfhand trará mais cem irmãos da Torre Sombria. Estará tão seguro como estava no castelo do senhor seu pai, em Monte Chifre. Samwell Tarly conseguiu dar um sorrisinho triste. - Também nunca estive muito seguro, lá, no castelo do meu pai. Os deuses fazem brincadeiras cruéis, Jon pensou. Pyp e Sapo, todos ansiosos por participar da grande patrulha, iam ficar em Castelo Negro. Era Samwell Tarly, o autoproclamado covarde, 66 extremamente gordo, tímido, e quase tão ruim em montar a cavalo como com uma espada na mão, que  teria de enfrentar a floresta assombrada. O Velho Urso ia levar duas gaiolas de corvos para que pudessem ir enviando notícias à medida que avançassem. Meistre Aemon era cego e fágil demais para ir com eles, portanto, seu intendente tinha de seguir no seu lugar. - Precisamos de você para os corvos, Sam. E alguém terá de me ajudar a manter Grenn no seu devido lugar. Os queixos de Sam estremeceram. - Você poderia cuidar dos corvos, ou Grenn, ou qualquer um - ele disse com uma ponta de desespero na voz. - Eu poderia ensiná-lo como se faz. Você também conhece as letras, poderia escrever as mensagens de Lorde Mormont tão bem quanto eu. - Eu sou o intendente do Velho Urso. Terei de ser seu escudeiro, cuidar do seu cavalo, montar sua tenda; não terei tempo para também vigiar pássaros. Sam, você pronunciou as palavras. Agora é um irmão da Patrulha da Noite. - Um irmão da Patrulha da Noite não deveria estar tão assustado. - Estamos todos assustados. Seríamos loucos se não estivéssemos. Muitos patrulheiros tinham se perdido nos últimos dois anos, até Benjen Stark, tio de Jon. Tinham encontrado dois dos homens do tio na floresta, mortos, mas os cadáveres haviam se levantado na noite gelada. Os dedos queimados de Jon se contraíam quando se lembrava daquilo. Ainda via a criatura nos seus sonhos. Othor morto, com seus ardentes olhos azuis e frias mãos negras . Mas esta era a última coisa que ele deveria fazer Sam se lembrar. - Meu pai ensinou-me que não há vergonha no medo, o que importa é o modo como o enfrentamos. Venha, eu ajudo você a reunir os mapas. Sam fez um aceno infeliz. As estantes estavam tão próximas umas das outras, que tiveram de sair um atrás do outro. A galeria dava para um dos túneis, que os irmãos chamavam caminhos de minhoca, sinuosas passagens subterrâneas que ligavam as fortalezas e torres de Castelo Negro por baixo da terra. No verão, os caminhos de minhoca raramente eram usados, exceto por ratazanas e outras pragas, mas no inverno era diferente. Quando a neve chegava a dez ou quinze metros de altura, e os ventos gelados uivavam do norte, os túneis eram tudo o que mantinha Castelo Negro em funcionamento. Em breve, Jon pensou, enquanto subiam. Tinha visto o mensageiro que chegara a Meistre Aemon com a notícia do fim do verão, o grande corvo da Cidadela, branco e silencioso como o Fantasma. Jon já vivera um inverno, quando era muito novo, mas todos concordavam que aquele tinha sido curto e suave. Este seria diferente. Conseguia senti-lo nos ossos. Os íngremes degraus de pedra deixaram Sam bufando como um fole de ferreiro quando chegaram à superfície. Depararamse com um vento fresco, que fez o manto de Jon rodopiar e esvoaçar. Fantasma estava adormecido junto à parede de taipa do celeiro, mas acordou quando Jon apareceu, mantendo a felpuda cauda branca rigidamente erguida enquanto trotava na direção deles. Sam olhou a Muralha de canto de olho. Erguia-se acima das suas cabeças, uma escarpa gelada com duzentos metros de altura. Às vezes, parecia a Jon quase uma coisa viva, dotada de humores próprios. A cor do gelo tinha o costume de mudar a cada alteração da luz. Ora era o azul-profundo, dos rios gelados, ora o branco sujo da neve antiga, e quando uma nuvem passava à  frente do sol, escurecia até o cinza-claro de pedra quebrada. A Muralha estendia-se para leste e para oeste, até tão longe quanto o olhar alcançava; tão imensa, que reduzia à insignificância as fortalezas de madeira e torres de pedra do castelo. Era o fim do mundo. E nós vamos para além dela.
67 O céu da manhã estava riscado por finas nuvens cinzentas, mas a clara linha vermelha estava lá, por trás delas. Os irmãos negros tinham apelidado o cometa de Archote de Mormont, dizendo (só em parte de brincadeira) que os deuses deviam tê-lo enviado para iluminar o caminho do velho através da floresta assombrada. - O cometa está tão brilhante que já é visível durante o dia - Sam disse, protegendo os olhos do sol com um punhado de livros. - Não se preocupe com cometas, o que o Velho Urso quer são mapas. Fantasma trotava à frente deles. A região parecia deserta naquela manhã, com tantos patrulheiros fora, no bordel de Vila Toupeira, escavando tesouros enterrados e embebedando-se até cair. Grenn tinha ido com eles. Pyp, Halder e Sapo se ofereceram para lhe pagar a sua primeira mulher, a fim de celebrar sua primeira patrulha. Queriam que Jon e Sam os acompanhassem, mas Sam sentia-se quase tão amedrontado por prostitutas como pela floresta assombrada, e Jon não quis participar daquilo. - Façam o que quiser - disse a Sapo. - Mas eu fiz um juramento. Ao passar pelo septo, ouviu vozes que cantavam. Alguns homens querem prostitutas na véspera da batalha, e outros querem deuses, Jon perguntou a si mesmo quais se sentiriam melhor depois. O septo não o tentava mais do que o bordel; seus deuses mantinham seus templos nos lugares selvagens, onde os represeiros estendiam seus galhos brancos como ossos. Os Sete não têm nenhum poder para lá da Muralha, pensou, mas os meus deuses estarão esperando, A frente do arsenal, Sor Endrew Tarth trabalhava com alguns novos recrutas. Tinham chegado na noite anterior com Conwy, um dos corvos errantes que percorriam os Sete Reinos reunindo homens para a Muralha. Esta nova colheita consistia de um homem de barba grisalha apoiado em um bastão, dois rapazes loiros que pareciam irmãos, um jovem afetado, vestido de cetim sujo, outro esfarrapado, com um pé torto, e um simplório sorridente, que devia se achar um guerreiro. Sor Endrew estava lhe mostrando o erro dessa presunção. Era um mestre de armas mais gentil do que Sor Alliser Thorne, mas suas lições geravam hematomas igualmente. Sam estremecia a cada golpe, mas Jon Snow observou com atenção o duelo das espadas. - O que acha deles, Snow? Donal Noye estava em pé na porta do arsenal, com o peito nu sob um avental de couro e, pela primeira vez, com o toco do braço descoberto. Com sua grande barriga e o peito em forma de barril, o nariz achatado e queixo hirsuto e negro, Noye não era coisa bonita de se ver, mas mesmo assim era uma visão bem-vinda. O armeiro tinha provado ser um bom amigo. - Têm cheiro de verão - Jon respondeu, enquanto Sor Endrew investia sobre o seu oponente e o fazia estatelar-se no chão. - Onde Conwy os encontrou? - Na masmorra de um senhor, perto de Vila Gaivota - respondeu o ferreiro. - Um bandoleiro, um barbeiro, um pedinte, dois órfãos e um michê. E com esta gente que defendemos os domínios dos homens. - Devem servir - Jon dirigiu a Sam um sorriso privado. - Nós servimos. Noye o chamou para mais perto. - Ouviu as notícias sobre o seu irmão? - Na noite passada. Conwy e os homens a seu cargo tinham trazido as notícias do norte, e quase não se falou em outra coisa na sala comum. Jon ainda não estava seguro dos seus sentimentos àquele respeito. Robb, um rei? O irmão com quem brincara, com quem lutara, com quem dividira a primeira taça de vinho? Mas não o leite da mãe, isso não. E, portanto, Robb agora beberica vinho do verão em 68 cálices cravejados de jóias, enquanto eu me ajoelho junto a um riacho qualquer, sugando água do degelo com as mãos em taça. Robb será um bom rei - Jon afirmou, com sinceridade. Será? - o ferreiro olhou-o com franqueza. - Espero que sim, rapaz, mas em outra época posso ter dito o mesmo de Robert. - Dizem que forjou para ele o martelo de guerra - Jon recordou. - Sim. Era seu homem, um homem dos Baratheon, ferreiro e armeiro em Ponta Tempestade, até perder o braço. Tenho idade suficiente para me lembrar de Lorde Steffon antes de o mar levá-lo, e conheço aqueles três filhos dele desde que receberam seus nomes. E lhe digo o seguinte: Robert nunca mais voltou a ser o mesmo depois de colocar aquela coroa na cabeça. Alguns homenos são como espadas, feitos para lutar. Pendure-os, e enferrujam, - E os irmãos? - Jon quis saber. O armeiro refletiu por um momento. - Robert era verdadeiro aço. Stannis é de ferro puro, negro, duro e forte, é verdade, mas quebradiço, como acontece com o ferro. Quebrará antes de dobrar. E Renly, esse é cobre, claro e brilhante, bonito de ver, mas, no fim das contas, sem grande valor, E que metal é Robb? Jon não perguntou. Noye era um homem dos Baratheon; o mais certo era que considerasse Joffrey o rei de direito, e Robb, um traidor. Na irmandade da Patrulha da Noite, havia um pacto tácito de não sondar com muita profundidade esses assuntos. Os homens que chegavam à Muralha vinham de todos os Sete Reinos, e os antigos amores e lealdades não eram esquecidos com facilidade, não importava quantos juramentos um homem fizesse... Assim como o próprio Jon tinha bons motivos para saber. Até Sam... A Casa do pai estava juramentada a Jardim de Cima, e Lorde Tyrell apoiava o Rei Renly. Era melhor não falar dessas coisas. A Patrulha da Noite não tomava partido. - Lorde Mormont nos espera - Jon disse. - Que não seja por mim que se atrase a encontrar o Velho Urso - Noye deu uma batidinha no seu ombro e sorriu. - Que os deuses o acompanhem amanhã, Snow. Traz de volta esse seu tio está me ouvindo? - Traremos - Jon prometeu. O Senhor Comandante Mormont tinha se instalado na Torre do Rei depois do incêndio que havia| devastado a sua. Jon deixou Fantasma com os guardas na porta. - Mais escadas - Sam reclamou em tom infeliz quando começaram a subir. - Detesto escadas - Bem, essa é uma coisa que não enfrentaremos na floresta. Quando entraram no aposento privado, o corvo os viu de imediato. "Snow!", guinchou a ave. Mormont interrompeu a conversa, - Demorou bastante tempo com esses mapas - afastou os restos do café da manhã para arranjar espaço na mesa. - Ponha-os aqui. Darei uma olhada neles mais tarde.
Thoren Smallwood, um patrulheiro nervoso, com um queixo fraco e uma boca ainda mais fraca, escondida sob uma fina barba desordenada, dirigiu a Jon e a Sam um olhar frio. Tinha sido um dos homens de confiança de Alliser Thorne, e não nutria nenhuma amizade por nenhum deles. - O lugar do Senhor Comandante é em Castelo Negro, senhoreando e comandando – disse a Mormont, ignorando os recémchegados - , me parece. O corvo bateu suas asas negras. "Me, me, me." 69 - Se algum dia se tornar Senhor Comandante, poderá fazer o que desejar - Mormont respondeu ao patrulheiro. - Mas, pareceme que ainda não morri, e que os irmãos não puseram você no meu lugar. - Com Ben Stark perdido e Sor Jaremy morto, sou agora Primeiro Patrulheiro – teimou Smallwood. - O comando devia ser meu. Mormont não concordava. - Enviei Ben Stark, e Sor Waymar antes dele. Não pretendo mandar você atrás deles e ficar aqui sentado, perguntando a mim mesmo quanto tempo deverei esperar até considerá-lo perdido também. E Stark continua a ser Primeiro Patrulheiro, até sabermos com certeza que está morto. Se esse dia chegar, serei eu, e não você, quem nomeará o seu sucessor. E agora, pare de me fazer perder tempo. Partimos à primeira luz da aurora, ou será que se esqueceu? Smallwood pôs-se em pé, - As ordens do meu senhor. Enquanto se encaminhava para a saída, franziu as sobrancelhas para Jon, como se aquilo de alguma maneira fosse culpa sua. - Primeiro Patrulheiro! - os olhos do Velho Urso fixaram-se em Sam. - Antes nomearia você Primeiro Patrulheiro. Tem o topete de me dizer na cara que sou velho demais para ir com ele. Pareço velho para você, rapaz? - os pelos que tinham desaparecido do couro cabeludo manchado de Mormont tinham se reagrupado sob seu queixo, numa hirsuta barba cinza que cobria a maior parte do seu peito. Então, deu uma pancada forte no próprio peito. - Pareço frágil? Sam abriu a boca e soltou um pequeno guincho. O Velho Urso aterrorizava-o. - Não, senhor - Jon interveio rapidamente. - Parece forte como um... um... - Não tente me enganar, Snow, sabe bem que não consegue. Deixe-me dar uma olhada nesses mapas - Mormont passou os olhos rapidamente, dando não mais do que um grunhido para cada um deles. - Isto foi tudo o que conseguiu encontrar? - Eu... m-m-meu senhor - Sam gaguejou - , havia... havia mais, m-m-mas... a desordem... - Estes são velhos - queixou-se Mormont, e o corvo serviu de eco com um grito penetrante de" Velhos, velhos". - As aldeias podem ir e vir, mas os montes e os rios estarão sempre nos mesmos lugares – Jon observou. - E verdade. Já escolheu seus corvos, Tarly? - O M-m-meistre Aemon p-pretende e-escolhê-los ao cair da noite, depois de a-a-alimentá-los. - Quero os melhores que tiver. Aves inteligentes e fortes. "Fortes", disse a ave dele, alisando as penas."Fortes, fortes" - Se acabarmos sendo todos massacrados lá fora, quero que meu sucessor saiba onde e como morremos. A conversa sobre massacres deixou Samwell Tarly sem fala. Mormont inclinou-se para a frente. - Tarly, quando eu era um rapaz com metade da sua idade, a senhora minha mãe disse-me que, se andasse por aí de boca aberta, era provável que uma doninha a confundisse com a sua toca e descesse pela minha garganta. Se tem alguma coisa a dizer, diga. Caso contrário, cuidado com as doninhas - o velho fez um brusco gesto de dispensa. - Fora daqui, estou ocupado demais para tolices. Sem dúvida o meistre terá algum trabalho para você. 70 Sam engoliu em seco, deu um passo para trás e saiu correndo, tão depressa que quase tropeçou nas esteiras. - Aquele rapaz é tão pateta quanto parece? - o Senhor Comandante perguntou depois de ele sair. “Pateta", lamentou-se o corvo. Mormont não esperou a resposta de Jon. - O senhor pai dele tem uma posição elevada nos conselhos do Rei Renly, e eu estava pensando em enviá-lo... Não, é melhor não. É pouco provável que Renly escute um rapaz gordo e trêmulo. Mandarei Sor Arnell. É um tanto mais firme, e a mãe dele era uma das Fossoway da maçã verde. — Se for do seu desejo me responder, o que quer do Rei Renly? - O mesmo que quero de todos eles, moço. Homens, cavalos, espadas, armaduras, cereais, queijo, vinho, lã, cotas de malha... a Patrulha da Noite não é orgulhosa, aceitamos aquilo que nos É oferecido - os dedos tamborilaram nas pranchas mal cortadas da mesa. - Se os ventos tiverem ajudado, Sor Alliser deverá chegar a Porto Real na virada da lua, mas não sei se o jovem Joffrey prestará atenção nele. A Casa Lannister nunca foi amiga da Patrulha. - Thorne tem a mão da criatura para lhes mostrar. Era uma coisa horrível e branca, com dedos negros, que se agitava e torcia no frasco como se aindaestivesse viva. - Seria bom que tivéssemos outra mão para enviar a Renly. - Dywen diz que é possível encontrar qualquer coisa para lá da Muralha. - Sim , Dywen diz. E da última vez que saiu em patrulha, disse que viu um urso com quatro e meio de altura - Mormont fungou. - Dizem que minha irmã tomou um urso como amante. Antes acredito nisso, do que num urso com quatro metros de altura. Se bem que num mundo onde os mortos andam... Ah... Mesmo assim, um homem tem de acreditar nos seus olhos. Vi o morto andando. Não vi nenhum urso gigante - dirigiu a Jon um longo olhar perscrutador - Mas estávamos falando de mãos. Como está a sua? - Melhor - Jon tirou a luva de pele de toupeira e a mostrou. O braço estava coberto de cicatrizes, desde a mão até metade do antebraço, e ainda sentia a salpicada pele cor-de-rosa esticada e sensível, mas estava sarando. - Mas ainda dá comichão. Meistre Aemon diz que isso é bom. Deu-me um unguento para levar comigo quando partirmos. - Consegue manejar a Garralonga apesar da dor?
- Suficientemente bem - Jon flexionou os dedos, abrindo e fechando o pulso, como o meistre tinha lhe ensinado. - Tenho de trabalhar os dedos todos os dias para mantê-los flexíveis, como Meistre Aemon recomendou. - Aemon pode ser cego, mas sabe do seu ofício. Rezo para que os deuses nos permitam conservá-lo por mais vinte anos. Você sabe que podia ter sido rei? Jonn foi pego de surpresa. - Ele contou-me que o pai foi rei, mas não... Julguei que talvez fosse um filho mais novo. - E era. O pai do pai era Daeron Targaryen, o Segundo do Seu Nome, que incorporou Dorne no reino. Parte do pacto determinava que casasse com uma princesa de Dorne. Ela deu-lhe quatro filhos. O pai de Aemon, Maekar, era o mais novo desses quatro, e Aemon foi o terceiro filho dele. Note que tudo isso aconteceu muito antes de eu ter nascido, por mais antigo que o Smalwood pense que eu seja. - Meistre Aemon recebeu o nome em honra do Cavaleiro do Dragão. - E verdade. H á quem diga que o Príncipe Aemon, e não Aegon, o Indigno, foi o verdadeiro pai do Rei Daeron. Seja como for, ao nosso Aemon faltava o temperamento marcial do Cavaleiro do Dragão. Gosta de dizer que possuía uma espada lenta, mas uma inteligência rápida. Não à toa 71 o avô o enviou para a Cidadela. Tinha nove ou dez anos, creio... e também era o nono ou décimo na linha de sucessão. Jon sabia que Meistre Aemon contava mais de uma centena de dias do seu nome. Frágil, mirrado, murcho e cego, era difícil imaginá-lo como um garotinho da idade de Arya. Mormont continuou: - Aemon estava às voltas com seus livros quando o mais velho dos seus tios, herdeiro da coroa, foi morto num acidente de torneio. Deixou dois filhos, mas seguiram-no para a sepultura não muito tempo depois, durante a Grande Peste da Primavera. O Rei Daeron também foi levado, e por isso a coroa passou para o segundo filho de Daeron, Aerys. - O Rei Louco? - Jon estava confuso. Aerys tinha sido rei antes de Robert, e isso não há muito tempo atrás. - Não, este foi Aerys Primeiro. O que Robert depôs foi o segundo desse nome. - Há quanto tempo isso se passou? - Oitenta anos, ou perto disso - disse o Velho Urso. - E, não, eu ainda não tinha nascido, embora Aemon já tivesse forjado meia dúzia de aros da sua corrente de meistre nessa época. Aerys casou com a irmã, como os Targaryen costumavam fazer, e reinou durante dez ou doze anos. Aemon fez seus votos e deixou a Cidadela para servir na corte de algum fidalguinho... até que seu real tio morreu sem deixar descendência. O Trono de Ferro passou para o último dos quatro filhos do Rei Daeron. Esse era Maekas, pai de Aemon. O novo rei convocou todos os filhos para a corte, e queria que Aemon participasse do seu conselho, mas este recusou, dizendo que isso usurparia o lugar que pertencia por direito ao Grande Meistre. Em vez disso, serviu na fortaleza do irmão mais velho, outro Daeron. Bem, esse também morreu, deixando como herdeira só uma filha de fraco entendimento. Alguma sífilis que pegou de uma puta, acho. O irmão seguinte era Aerion. - Aerion, o Monstruoso? - Jon conhecia aquele nome."O Príncipe que Pensava Ser Dragão" era uma das histórias mais horrendas da Velha Ama. Bran, seu irmão mais novo, adorava-a. - Esse mesmo, embora chamasse a si próprio Aerion Chama-Viva. Uma noite, bem mamado, bebeu um frasco de fogovivo, depois de dizer aos amigos que isso o transformaria num dragão, mas os deuses foram misericordiosos, e o transformaram num cadáver. Menos de um ano depois, Rei Maekar morreu em batalha contra um lorde fora da lei. Jon não era completamente ignorante em relação à história do reino; seu meistre tinha se assegurado disso. - Esse foi o ano do Grande Conselho - ele completou. - Os senhores passaram por cima do filho pequeno do Príncipe Aerion e da filha do Príncipe Daeron e deram a coroa a Aegon. - Sim e não. Primeiro, ofereceram-na, discretamente, a Aemon. E ele, também discretamente, a recusou. Disse-lhes que os deuses queriam que servisse, não que governasse. Que tinha prestado um juramento e não o quebraria, apesar de o próprio Alto Septão ter se oferecido para absolvê-lo. Bem, nenhum homem são queria um pingo do sangue de Aerion no trono, e a filha de Daeron era tola, além de ser mulher. Por isso não tiveram outra escolha que não fosse recorrer ao irmão mais novo de Aemon... Aegon, o Quinto do Seu Nome. Foi chamado de Aegon, o Improvável, nascido quarto filho de um quarto filho. Aemon sabia, e corretamente, que, se ficasse na corte, aqueles a quem o governo do irmão desagradava procurariam usá-lo, por isso veio para a Muralha. E aqui permaneceu, enquanto o irmão, o filho do irmão e o filho deste reinaram e morreram um atrás do outro, até Jaime Lannister pôr fim à linha dos Reis-Dragão. "Rei", crocitou o corvo. A ave atravessou o aposento privado e foi pousar no ombro de Mormont. "Rei", voltou a palrear, pavoneando-se de um lado para outro. 72 - Ele gosta dessa palavra - Jon sorriu. - Uma palavra fácil de dizer, e fácil de gostar. “Rei”, a ave voltou a se manifestar. - Acho que ele deseja que tenha uma coroa, senhor. - O reino já tem três reis, e isso são dois a mais para o meu gosto. Mormont afagou o corvo sob o bico com um dedo, mas os olhos nunca deixaram Jon Snow. Aquilo fez Jon se sentir estranho. - Senhor, por que me disse isso sobre o Meistre Aemon? - Preciso ter um motivo? - Mormont mexeu-se na cadeira, franzindo a testa. - Seu irmão Robb foi coroado Rei do Norte. Você e Aemon têm isso em comum. Um rei como irmão. - E também - Jon completou: - um voto. O velho Urso soltou uma sonora bufada, e o corvo levantou voo, batendo as asas em círculo pela sala . - Dê-me um homem por cada voto que vi quebrado, e a Muralha nunca mais sentirá falta de defensores. - Sempre soube que Robb seria Senhor de Winterfell. Mormont soltou um assobio, e a ave voou de novo para ele, instalando-se no seu braço. - Um senhor é uma coisa, um rei é outra - ele deu ao corvo um punhado de milho tirado do bolso. - Vão vestir seu irmão Robb em sedas, cetins e veludos de cem cores diferentes, enquanto você vive e morre em cota de malha negra. Ele se casará com alguma bela princesa e será pai dos seus filhos. Você não terá esposa, nem segurará nos braços um filho do seu próprio sangue. Robb governará, você servirá. Os homens chamarão você de corvo. Ele, de Vossa Graça, Cantores elogiarão cada coisinha que ele fizer, enquanto os maiores dos seus feitos passarão despercebidos. Diga-me que nada disso o perturba, Jon... e eu chamarei você de mentiroso, e saberei que tenho razão. Jon endireitou-se, tenso como a corda de um arco. - E se me perturbar, que posso fazer, bastardo como sou? - O que você vai fazer? - Mormont o desafiou. - Bastardo como é? - Fricar perturbado - Jon respondeu. - E respeitar os meus votos. 73 Catelyn A coroa do filho ainda estava fresca da forja, e parecia a Catelyn Stark que seu peso pressionava com força a cabeça de Robb. A antiga coroa dos Reis do inverno tinha sido perdida há três séculos, entregue a Aegon, o Conquistador, quando Torrhen Stark se ajoelhou em submissão. Ninguém saberia dizer o que Aegon fizera dela. O ferreiro de Lorde Hoster fizera bem seu trabalho, e a coroa de Robb parecia-se muito com a descrição da outra nas histórias que eram contadas sobre os reis Stark de antigamente; um anel aberto de bronze martelado, gravado com as runas dos Primeiros Homens, coroado por espigões negros de ferro, forjados em forma de espadas longas. De ouro, prata e pedras preciosas, nada tinha; o bronze e o ferro eram os metais do inverno, escuros e fortes para lutar contra o frio. Enquanto esperavam no Grande Salão de Correrrio que o prisioneiro fosse trazido até eles, Catelyn viu Robb empurrando a coroa para trás, para que repousasse no espesso esfregão ruivo que era seu cabelo; momentos depois, voltou a puxá-la para a frente; mais tarde, deu um quarto de volta nela, como se isso pudesse fazer com que se assentasse mais facilmente na sua testa. Usar uma coroa não é nada fácil, pensou Catelyn, especialmente para um rapaz de quinze anos. Quando os guardas trouxeram o cativo, Robb pediu sua espada. Olyvar Frey a ofereceu pelo punho, e o filho de Cat desembainhou-a e a pousou, nua, nos joelhos, uma clara ameaça para que todos vissem, - Vossa Graça, aqui está o homem que requisitou - anunciou Sor Robin Ryger, capitão da guarda doméstica dos Tully. - Ajoelhe-se perante o rei, Lannister! - gritou Theon Greyjoy. Sor Robin forçou o prisioneiro a cair de joelhos. Catelyn refletiu que o homem não parecia um leão. Este Sor Cleos Frey era filho da Senhora Genna, irmã de Lorde Tywin Lannister, mas não possuía nada da afamada beleza dos Lannister, nem o cabelo claro e os olhos verdes. Em vez disso, herdara as viscosas madeixas castanhas, o queixo recuado e o rosto estreito do pai, Sor Emmon Frey, o segundo filho do velho Lorde Walder. Seus olhos eram claros e úmidos, e pareciam não ser capazes de parar de piscar, mas talvez fosse só por causa da luz. As celas sob Correrrio eram escuras e úmidas... E, naqueles dias, cheias de gente, - Erga-se, Sor Cleos - a voz do filho não era tão gelada como a do pai teria sido, mas também não soava como a de um rapaz de quinze anos. A guerra tinha feito dele um homem antes da hora. A luz da manhã cintilava levemente no gume do aço que tinha sobre os joelhos. Mas não era a espada que deixava Sor Cleos Frey ansioso; era o animal. Seu filho o tinha chamado Vento Cinzento. Um lobo gigante, tão grande como um cão da raça elkhound, esguio e 74 escuro como fumaça, com olhos que eram como ouro derretido. Quando a fera avançou e farejou o cavaleiro cativo, todos os homens presentes na sala conseguiram sentir o cheiro do medo. Sor Cleos tinha sido capturado durante a batalha do Bosque dos Murmúrios, onde Vento Cinzento rasgou a garganta de meia dúzia de homens. O cavaleiro levantou-se com dificuldade, afastando-se com tanta rapidez, que alguns dos que assistiram alto. - Obrigado, senhor. - Vossa Graça - ladrou Lorde Umber, o Grande-Jon, sempre o mais sonoro dos vassalos nortenhos de Robb... e também o mais leal e feroz, ou pelo menos era o que insistia em dizer. Tinha sido o primeiro a proclamar o filho de Catelyn Rei do Norte, e não tolerava nenhuma afronta à honra do seu novo soberano. - Vossa Graça - corrigiu-se rapidamente Sor Cleos. - Perdão. Este não é um homem corajoso, pensou Catelyn. N a verdade, mais um Frey do que um Lannister. Com o primo, o Regicida, teria sido bem diferente. Aquela honraria nunca teria passado através dos dentes perfeitos de Jaime Lannister. - Tirei-o da sua cela para levar uma mensagem minha à sua prima Cersei Lannister, em Porto Real, Viajará sob uma bandeira de paz, com trinta dos meus melhores homens para escoltá-lo. Sor Cleos ficou visivelmente aliviado. - Nesse caso, será com grande alegria que levarei a mensagem de Vossa Graça à rainha. - Compreenda - disse Robb - que não estou lhe oferecendo a liberdade. Seu avô, Lorde Walder garantiu-me seu apoio e o da Casa Frey. Muitos dos seus primos e tios os acompanhavam no Bosque dos Murmúrios, mas o senhor escolheu lutar sob o estandarte do leão. Isso faz de um Lannister, não um Frey. Quero a sua garantia, pela sua honra como cavaleiro, que depois de entregar minha mensagem retornará com a resposta da rainha e voltará ao cativeiro, Sor Cleos respondeu de imediato: —Juro. - Todos os homens presentes neste salão o ouviram - preveniu o irmão de Catelyn, Sor Edmure Tully, que falava por Correrrio e pelos senhores do Tridente no lugar do pai moribundo. Se não retornar, todo o reino saberá que perjurou. - Farei o que jurei fazer - Sor Cleos respondeu rigidamente. - Que mensagem é essa? - Uma oferta de paz - Robb ficou de pé, com a espada na mão. Vento Cinzento pôs-se ao seu lado. O salão silenciou-se. - Diga à Rainha Regente que, se aceitar as minhas condições, embainharei esta espada e encerrarei a guerra entre nós. No fundo da sala, Catelyn vislumbrou a figura alta e esquelética de Lorde Rickard Karstark esgueirando-se por entre uma fileira de guardas e saindo pela porta. Ninguém mais se moveu. Robb não prestou atenção à distração. - Olyvar, o papel - ele ordenou. O escudeiro apresentou a espada e entregou-lhe um pergaminho enrolado. Robb o desenrolou. - Em primeiro lugar, a rainha deverá libertar minhas irmãs e oferecer-lhes transporte por mar de Porto Real até Porto Branco, Deve ficar claro que a promessa da mão de Sansa a Joffrey Barahteon chegou ao fim. Quando receber do meu castelão a notícia de que minhas irmãs foram devolvidas feridas incólumes a Winterfell, libertarei os primos da rainha, o escudeiro Willem Lannister e seu irmão , Tion Frey, e lhes darei uma escolta segura até Rochedo Casterly, ou qualquer outro local onde ela deseje que sejam entregues. 75 Catelyn Stark gostaria de ser capaz de ler os pensamentos que se escondiam por trás de cada rosto, de cada testa sulcada e de cada par de lábios apertados. - Em segundo lugar, os ossos do senhor meu pai nos devem ser devolvidos, para que possa repousar ao lado do seu irmão e de sua irmã nas criptas sob Winterfell, como teria desejado. Assim como devem sê-los os restos mortais dos homens da guarda doméstica que morreram ao seu serviço em Porto Real. Homens vivos tinham partido para o sul, e ossos frios regressariam. Ned tinha razão, pensou. Seu lugar era Winterfell, efoi o que ele disse, mas, por acaso, eu quis escutá-lo? Não. Vai, eu disse, você tem de ser Mão de Robert, para o bem da nossa Casa, para o bem dos nossos filhos... Fui eu que fiz isto. Eu, e mais ninguém... - Em terceiro lugar, a espada do meu pai, Gelo, será entregue em minhas mãos, aqui em Correrrio. Catelyn observou o irmão, Edmure Tully, que estava em pé com os polegares enfiados no cinto da espada, o rosto imóvel como pedra. - Em quarto lugar, a rainha ordenará a seu pai, Lorde Tywin, que liberte meus cavaleiros e senhores vassalos que capturou na batalha do Ramo Verde do Tridente. Assim que fizer isso, libertarei os seus prisioneiros capturados no Bosque dos Murmúrios e na Batalha dos Acampamentos, exceto apenas Jaime Lannister, que permanecerá meu refém a fim de garantir o bom comportamento do pai. Ela estudou o sorriso zombeteiro de Theon Greyjoy, perguntando-se o que significaria. Aquele jovem tinha um jeito de se apresentar como se soubesse de algum gracejo secreto só seu; Catelyn nunca gostou dele. - E, por fim, o Rei Joffrey e a Rainha Regente devem renunciar a todas as exigências de domínio sobre o Norte. De agora em diante, não fazemos parte do seu reino. Somos um reino livre e independente, como nos tempos antigos. Nossos domínios incluem todas as terras Stark a norte do Gargalo, às quais se somam as terras banhadas pelo Rio Tridente e seus afluentes, limitadas a oeste pelo Dente Dourado e a leste pelas Montanhas da Lua. - o REI DO NORTE! - trovejou Grande-Jon Umber, com um punho do tamanho de um presunto socando o ar enquanto gritava: - Stark! Stark! O Rei do Norte! Robb voltou a enrolar o pergaminho. - Meistre Wyman desenhou um mapa, mostrando as fronteiras que reclamamos. Levará uma cópia para entregar à rainha. Lorde Tywin deverá se retirar para lá dessas fronteiras e pôr fim aos ataques, incêndios e pilhagens. A Rainha Regente e seu filho não cobrarão impostos, rendimentos ou serviços do meu povo e libertarão os meus senhores e cavaleiros de todos os votos de lealdade, juramentos, penhores, dívidas e obrigações devidas ao Trono de Ferro e às Casas Baratheon e Lannister, Além disso, os Lannister entregarão dez reféns de alto nascimento, a se determinar por mútuo acordo, como garantia de paz. Irei tratá-los como hóspedes de honra, de acordo com suas posições sociais. Desde que os termos deste pacto sejam respeitados fielmente, libertarei dois reféns por ano, e eles serão devolvidos a salvo às suas famílias - Robb atirou o pergaminho enrolado aos pés do cavaleiro, - As condições são estas. Se ela as aceitar, terá a paz. Se não - assobiou, e Vento Cinzento avançou, rosnando terá outro Bosque dos Murmúrios. - Stark! - voltou a rugir Grande-Jon, e agora outras vozes o acompanharam no grito: - Stark. Stark. Rei do Norte! - o lobo gigante jogou a cabeça para trás e uivou. Sor Cleos tinha ficado da cor de leite coalhado. 76 - A rainha ouvirá a sua mensagem, senh... Vossa Graça. - Ótimo - Robb respondeu. - Sor Robin, providencie uma boa refeição e roupa limpa para ele. Deverá partir ao raiar do dia. - As suas ordens, Vossa Graça - sor Robin Ryger aquiesceu. - Então terminamos. Os cavaleiros e senhores vassalos dobraram os joelhos quando Robb se virou para sair, seguido de perto por Vento Cinzento. Olyvar Frey precipitou-se na frente, para abrir a porta. Catelyn os seguiu, com o irmão ao seu lado. - Você foi bem - disse ao filho, na galeria que levava para a parte de trás do salão - , embora aquela coisa com o lobo fosse uma brincadeira mais adequada a um garoto do que a um rei. Robb coçou Vento Cinzento atrás das orelhas. - Você viu a cara dele, mãe? - ele perguntou, sorrindo. - O que vi foi Lorde Karstark saindo. - Eu também. Robb ergueu a coroa com ambas as mãos e a entregou a Olyvar. - Leve esta coisa para o meu quarto. - Imediatamente, Vossa Graça - o escudeiro afastou-se a passos rápidos. - Aposto que havia outros que sentiam o mesmo que Lorde Karstark - Edmure declarou. - Como podemos falar de paz enquanto os Lannister se espalham como uma peste pelos domínios do meu pai, roubando suas colheitas e massacrando seu povo? Volto a dizer, deveríamos marchar sobre Harrenhal. - Não temos força para isso - Robb retrucou, em tom infeliz. Edmure insistiu: - Será que ficamos mais fortes aqui, parados? Nossa tropa diminui todos os dias. - E de quem é a responsabilidade disso? - Catelyn se dirigiu ao irmão. Foi por insistência de Edmure que Robb tinha dado aos senhores do rio licença para partir após a coroação, para que cada um defendesse suas terras. Sor Marq Piper e Lorde Karyl Vance tinham sido os primeiros a partir. Seguiu-os Lorde Jonos Bracken, prometendo recuperar o esqueleto queimado do seu castelo e enterrar os mortos, e agora Lorde Jason Mallister tinha anunciado sua intenção de voltar aos seus domínios em Guardamar, ainda misericordiosamente intocados pela luta. - Não pode pedir aos senhores do rio que não façam nada enquanto seus campos são pilhados e seu povo é passado na espada - Sor Edmure rebateu. - Mas Lorde Karstark é do Norte. Seria ruim se nos deixasse.
- Falarei com ele - Robb se adiantou. - Perdeu dois filhos no Bosque dos Murmúrios. Quem pode censurá-lo por não querer fazer a paz com os seus assassinos... Com os assassinos do meu pai... - Mais derramamento de sangue não trará seu pai de volta para nós, nem os filhos de Lorde Rickard - Catelyn o alertou. - Uma proposta tinha de ser feita... Embora um homem mais sábio tivesse oferecido termos mais agradáveis. - Mais agradável do que aquilo teria me dado náuseas. A barba do filho tinha se tornado mais vermelha do que seu cabelo ruivo. Robb devia pensar que lhe dava um ar feroz, régio... mais velho. Mas, com ou sem barba, era ainda um jovem de quinze anos, e não desejava menos a vingança do que Rickard Karstark. Não tinha sido fácil convencê-lo a fazer até mesmo aquela proposta, por mais que fosse fraca. 77 - Cersei Lannister nunca consentirá em trocar suas irmãs por um par de primos. É o irmão que ela quer, como você sabe muito bem - Catelyn já lhe tinha dito exatamente isso, mas estava descobrindo que os reis não escutavam com a mesma atenção que os filhos. - Não posso libertar o Regicida, nem mesmo se quisesse. Meus senhores nunca admitiriam isso. - Os seus senhores fizeram de você o rei deles. - E podem desfazer com a mesma facilidade. - Se a coroa for o preço a pagar para que Arya e Sansa nos sejam devolvidas sãs e salvas, deveríamos pagá-lo de boa vontade. Metade dos seus senhores gostaria de assassinar o Lannister na sua cela. Se ele morrer enquanto for nosso prisioneiro, os homens dirão... - ... que teve o que merecia - Robb concluiu. - E suas irmãs? - Catelyn perguntou rispidamente. - Também merecem a morte? Garanto-lhe que se algum mal acontecer ao irmão, Cersei pagará sangue com sangue... - Lannister não morrerá - Robb parecia ter certeza do que dizia. - Ninguém sequer fala com ele sem a minha autorização. Tem comida, água, palha limpa, mais conforto do que teria direito, Mas não o libertarei, nem mesmo por Arya e Sansa. Catelyn compreendeu que o filho a olhava de cima. Será que foi a guerra que o fez crescer tão depressa, perguntou a si mesma, ou a coroa que puseram na sua cabeça? - Será que tem medo de ver Lannister de novo em batalha? É esta a verdade? Vento Cinzento rosnou, como se tivesse pressentido a ira de Robb, e Edmure Tully pôs uma mão fraternal sobre o ombro de Catelyn. - Cat, pare. O menino tem razão nisso. - Não me chame de menino - Robb reagiu, virando-se para o tio, derramando toda a ira de uma vez só sobre o pobre Edmure, que só tinha querido apoiá-lo. - Sou quase um homem-feito, e um rei... o seu rei, sor. E não temo Jaime Lannister. Derrotei-o uma vez, vou derrotá-lo de novo se precisar. Ê só que... - afastou uma mecha de cabelo dos olhos e balançou a cabeça – poderia ter trocado o Regicida pelo pai, mas... - ... mas não pelas meninas? - a voz de Catelyn era calma e gelada. - Meninas não são importantes o suficiente, não é? Robb não respondeu, mas havia dor nos seus olhos. Olhos azuis, olhos Tully, que ela lhe dera. Tinha-o ferido, mas ele era filho de seu pai em excesso para admitir. Isso foi indigno de mim, disse a si mesma. Que os deuses sejam bons... No que foi que me tornei? Ele está fazendo o melhor que pode, está tentando tanto, eu sei, eu vejo, e no entanto... Perdi meu Ned, o rochedo sobre o qual minha vida estava construída, não posso suportar perder também as meninas... - Farei tudo o que puder pelas minhas irmãs - Robb se recompôs. - Se a rainha tiver algum bom-senso, aceitará meus termos. Se não, farei com que ela lamente o dia em que os recusou - era evidente que estava farto do assunto. - Mãe, tem certeza de que não aceita partir para as Gêmeas? Estaria mais longe da luta e poderia se familiarizar com as filhas de Lorde Frey a fim de me ajudar a escolher minha noiva quando a guerra terminar. Ele me quer longe, pensou Catelyn, cansada. Não se espera que os reis tenham mães, ao que parece, e eu lhe digo coisas que não quer ouvir. - Já tem idade suficiente para decidir qual das filhas de Lorde Walder prefere sem a ajuda da sua mãe, Robb. - Então vá com Theon. Ele parte de manhã. Irá ajudar os Mallister a escoltar aquele grupo de cativos para Guardamar e depois embarcará para as Ilhas de Ferro. Poderia também encontrar 78 um navio e chegar a Winterfell em uma virada da lua, se os ventos forem bons. Bran e Rickon precisam da senhora. E você não precisa, é isso o que quer dizer? - Resta ao senhor meu pai muito pouco tempo. Enquanto seu avô for vivo, meu lugar é em Correrrio, com ele. - Poderia ordenar que partisse. Como rei, poderia. Catelyn ignorou aquilo. - Digo de novo que preferia que mandasse outra pessoa a Pyke e mantivesse Theon por perto. - Quem seria melhor do que o filho para lidar com Balon Greyjoy? - Jason Mallister - Catelyn sugeriu. - Tytos Blackwood. Stevron Frey. Qualquer um... mas Theon não. Seu filho agachou-se ao lado de Vento Cinzento, afagando o pelo do lobo, e como que por acaso evitando seu olhar, - Theon lutou corajosamente por nós. Contei como ele salvou Bran daqueles selvagens na mata de lobos. Se os Lannister não quiserem fazer a paz, precisarei dos dracares* de Lorde Greyjoy. - Seria mais fácil tê-los se mantivesse seu filho como refém. - Ele foi refém metade da vida. - Por bons motivos - Catelyn respondeu. - Balon Greyjoy não é homem em quem se possa confiar. Lembre-se de que também usou uma coroa, ainda que só durante uma estação. Pode aspirar a usá-la novamente. Robb ficou em pé. - Não tenho rancor dele por isso. Se sou Rei do Norte, que ele seja Rei das Ilhas de Ferro, se é isso o que deseja. De bom grado lhe darei uma coroa, desde que nos ajude a derrubar os Lannister. - Robb . . . - Vou enviar Theon. Bom dia, mãe. Vento Cinzento, vem. Robb afastou-se rapidamente, com o lobo gigante caminhando a seu lado. Catelyn só pôde vê-lo partir. Seu filho, agora o seu rei. Como era estranho. Comande, tinha-lhe dito em Fosso Caillin. E era o que ele fazia. - Vou visitar meu pai - ela disse abruptamente. - Vem comigo, Edmure?
- Tenho de ir falar com aqueles novos arqueiros que Sor Desmond está treinando. Irei visitá-lo mais tarde. Se ainda estiver vivo, pensou Catelyn, mas nada disse. O irmão preferia enfrentar uma batalha àquele quarto de doente. O caminho mais curto para a fortaleza central onde o pai jazia moribundo passava pelo bosque sagrado, com sua relva, flores silvestres e bosques densos de olmos e paus-brasis. Uma grande quantidade de folhas sussurrantes ainda se pendurava nos galhos das árvores, completamente alheias à notícia que o corvo branco tinha trazido a Correrrio uma quinzena atrás. O Conclave declarara que o Outono tinha chegado, mas os deuses ainda não tinham achado bom informar isso aos ventos e aos bosques, Catelyn sentia-se devidamente grata por isso. O Outono era sempre um época temível, com o espectro do inverno pairando no futuro. Mesmo os homens mais sábios nunca sabiam se a colheita seguinte seria a última. * Embarcação escandinava usada pelos vikings em suas expedições. 79 Hoster Tully, Senhor de Correrrio, jazia acamado no seu aposento privado, com vista para leste, para onde os rios Pedregoso e Ramo Vermelho se juntavam para lá das muralhas do seu castelo. Estava dormindo quando Catelyn entrou, com o cabelo e barba tão brancos como a cama, e sua aparência, antes majestosa, estava reduzida e fragilizada pela morte que crescia no seu interior. Junto à cama, ainda vestindo cota de malha e um manto manchado pela viagem, sentava-se o irmão do pai, o Peixe Negro, As botas estavam empoeiradas e salpicadas de lama seca. - Robb sabe que voltou, tio? - Sor Brynden Tully era os olhos e os ouvidos de Robb, o comandante dos seus batedores. - Não. Vim para cá diretamente dos estábulos, quando me disseram que o rei estava em audiência. Creio que Sua Graça vai querer primeiro ouvir minhas notícias em particular – Peixe Negro era um homem alto e magro, de cabelo grisalho e movimentos precisos, com o rosto bem barbeado e cheio de linhas de expressão, queimado pelo vento. - Como está ele? - perguntou, e ela sabia que não se referia a Robb. - Na mesma. O meistre dá vinho de sonhos e leite de papoula para suas dores, então ele passa a maior parte do tempo dormindo, e não come o suficiente. Parece enfraquecer a cada dia que passa. - Fala? - Sim... Mas há cada vez menos sentido naquilo que diz. Fala dos seus arrependimentos, de tarefas incompletas, de pessoas há muito mortas e de tempos há muito passados. As vezes, não sabe em que estação estamos ou quem eu sou, Uma vez chamou-me pelo nome da minha mãe. - Ainda sente saudades dela - respondeu Sor Brynden. - Você tem o rosto dela. Posso vê-la nos seus malares e no queixo... - Lembra-se mais dela do que eu. Já faz muito tempo - sentou-se na cama e afastou uma madeixa de fino cabelo branco do rosto do pai. - Toda vez que parto me pergunto se o encontrarei vivo ou morto na volta. Apesar das suas desavenças, existia uma profunda ligação entre seu pai e o irmão que antes havia renegado. - Pelo menos fez as pazes com ele. Ficaram sentados durante algum tempo em silêncio, até Catelyn levantar a cabeça: - Falou de notícias que Robb precisava ouvir? - Lorde Hoster gemeu e virou-se de lado, quase como se a tivesse ouvido. Brynden se levantou: - Vamos lá fora. É melhor não o acordarmos. Ela o seguiu até a varanda de pedra que se projetava triangularmente do aposento privado, como a proa de um navio. O tio olhou de relance para cima, franzindo o cenho. - Agora é possível vê-lo de dia. Meus homens o chamam o Mensageiro Vermelho... Mas, qual será a mensagem? Catelyn ergueu o olhar, para onde a tênue linha vermelha do cometa traçava um caminho pelo profundo azul do céu como se fosse um longo arranhão no rosto de deus. - Grande-Jon disse a Robb que os deuses antigos hastearam uma bandeira vermelha de vingança por Ned. Edmure pensa que é um presságio de vitória para Correrrio... vê um peixe com uma longa cauda nas cores dos Tully, vermelho sobre azul - suspirou. - Gostaria de ter a fé deles. O carmesim é a cor dos Lannister. 80 - Aquilo ali não é carmesim - Sor Brynden respondeu. - Nem vermelho Tully o vermelho lamacento do rio. Aquilo ali em cima é sangue, filha, espalhado pelo céu. - O nosso sangue ou o deles? - Houve alguma guerra em que só um dos lados sangrou? - o tio balançou a cabeça. – As terras fluviais estão lavadas de sangue e fogo por toda a volta do Olho de Deus. A luta espalhou-se para o Sul até a Torrente de Água Negra, e para o Norte pelo Tridente, quase até as Gêmeas. Marq Piper e Karyl Vance conseguiram algumas pequenas vitórias, e aquele fidalgo do sul, Beric Dondarrion, tem assediado os invasores, caindo sobre os destacamentos logísticos de Lorde Tywin e voltando a desaparecer na floresta. Dizem que Sor Burton Crakehall andava se gabando de ter matado Dondarrion, até cair com a sua coluna numa das armadilhas de Lorde Beric e terminar com todos os homens mortos. - Alguns dos guardas que estavam com Ned em Porto Real acompanham este Lorde Beric -Catelyn se lembrou. - Que os deuses os protejam. - Dondarrion e o sacerdote vermelho, que anda com ele, são suficientemente espertos para se protegerem, se o que se conta for verdade - disse o tio - , mas a história dos vassalos do seu pai é mais triste. Robb nunca devia ter deixado que partissem. Espalharam-se como codornas, cada um tentando proteger os seus, e é uma loucura, Cat, uma loucura. Jonos Bracken foi ferido na luta entre as ruínas do seu castelo, e seu sobrinho Hendry foi morto. Tytos Blackwood expulsou os Lannister das suas terras, mas levaram todas as vacas, porcos e grãos de cereais, não lhe deixaram nada para defender além do castelo de Corvarbor e um deserto esturricado. Os homens de Darry recapturaram a fortaleza do seu senhor, mas só a mantiveram durante uma quinzena, até Gregor Clegane cair sobre eles e passar a guarnição inteira na espada, incluindo o senhor. Catelyn ficou horrorizada. - Darry não passava de uma criança. - Sim, e era também o último da sua linhagem. O rapaz teria dado um ótimo resgate, mas o que significa o ouro para um cão raivoso como Gregor Clegane? Juro que a cabeça daquela besta seria um nobre presente para todo o povo do reino.
Catelyn conhecia a péssima reputação de Sor Gregor, mas, mesmo assim... - Não me fale de cabeças, tio. Cersei enfiou a de Ned num espigão sobre as muralhas da Fortaleza Vermelha, e a deixou lá para os corvos e as moscas. Até agora era difícil para ela acreditar que ele tinha realmente ido. Algumas noites acordava na escuridão, meio adormecida, e por um momento esperava encontrá-lo lá, ao seu lado. - Clegane não passa de um fantoche de Lorde Tywin. Por sua vez, Catelyn acreditava que Tywin Lannister, Senhor de Rochedo Casterly, Protetor do Ocidente, pai da Rainha Cersei, de Sor Jaime, o Regicida, e de Tyrion, o Duende, e avô de Joffrey Baratheon, o recém-coroado rei menino, era o verdadeiro perigo. - É verdade - admitiu Sor Brynden. - E Tywin Lannister não é nada tolo. Permanece a salvo atrás das muralhas de Harrenhal, alimentando sua tropa com as nossas colheitas e queimando aquilo que não rouba. Gregor não é o único cão que deixou à solta. Sor Amory Lorch também está em campo, e há ainda um mercenário qualquer de Qohor que prefere mutilar um homem a matá-lo. Vi o que deixam para trás. Aldeias inteiras queimadas, mulheres estupradas e mutiladas, crianças massacradas largadas, sem ser enterradas, para atrair lobos e cães selvagens... São coisas que nauseariam até os mortos. - Quando Edmure ouvir isso, ficará furioso. 81 - E isso é exatamente o que Lorde Tywin deseja. Até o terror tem seu objetivo, Cat. Lannister quer nos atrair para a batalha. - É provável que Robb lhe conceda esse desejo - Catelyn disse, irritada, - Aqui, parado, está inquieto como um gato, e Edmure, Grande-Jon e os outros vão incentivá-lo a avançar - seu filho conquistara duas grandes vitórias, esmagando Jaime Lannister no Bosque dos Murmúrios e desbaratando sua tropa sem líder junto às muralhas de Correrrio, na Batalha dos Acampamentos, mas, pelo modo como alguns dos seus vassalos falavam dele, parecia que era Aegon, o Conquistador, renascido. Brynden Peixe Negro arqueou uma espessa sobrancelha grisalha: - Mais tolos são. Minha primeira regra da guerra, Cat: nunca dar ao inimigo o que ele deseja. Lorde Tywin gostaria de lutar num campo à sua escolha. Quer que marchemos sobre Harrenhal. - Harrenhal - todos os filhos do Tridente conheciam as histórias que se contavam de Harrenhal, a vasta fortaleza que o Rei Harren, o Negro, erguera junto às águas do Olho de Deus trezentos anos antes, quando os Sete Reinos eram mesmo sete reinos, e as terras fluviais governadas pelos homens de ferro das ilhas. Por orgulho, Harren desejara o salão mais elevado e as torres mais altas de todo o Westeros. Levara quarenta anos, sendo erguida como uma grande sombra na margem do lago, enquanto os exércitos de Harren saqueavam os vizinhos em busca de pedra, madeira, ouro e trabalhadores. Milhares de cativos morreram nas pedreiras, acorrentados aos trenós de carga ou trabalhando nas cinco torres colossais. Os homens congelavam no inverno e sufocavam no verão. Represeiros que resistiam há três mil anos eram abatidos para fazer vigas e esteios. Harren reduzira à miséria tanto as terras fluviais como as Ilhas de Ferro para ornamentar seu sonho. E quando Harrenhal por fim ficou completo, no mesmo dia em que o Rei Harren ali se instalou, Aegon, o Conquistador, desembarcou em Porto Real. Catelyn lembrava-se de ouvir a Velha Ama contando a história aos filhos em Winterfell. "E o Rei Harren aprendeu que muralhas grossas e torres elevadas pouco servem contra dragões", e sempre terminava a história dizendo:"Pois os dragões voam". Harren e toda sua linhagem tinham perecido nos incêndios, que engoliram sua monstruosa fortaleza, e todas as Casas que desde então possuíram Harrenhal tinham sido vítimas de infortúnio, Podia ser forte, mas era um local sombrio e amaldiçoado. - Não quer o que Robb trave uma batalha à sombra dessa fortaleza - Catelyn admitiu, - Mas temos de fazer alguma coisa. - E logo - concordou seu tio. - Não lhe contei o pior, filha. Os homens que enviei para oeste trouxeram notícias de que uma nova tropa está sendo reunida em Rochedo Casterly. Outro exército Lannister. A idéia deixou-a doente. - Robb tem de ser imediatamente informado. Quem a comanda? - Sor Stafford Lannister, segundo se diz - Sor Brynden virou-se para olhar os rios, com o manto vermelho e azul se agitando com a brisa. - Outro sobrinho? - os Lannister de Rochedo Casterly eram uma casa odiosamente grande e fértil. - Um primo - ele corrigiu. - Irmão da falecida esposa de Lorde Tywin, portanto, parente por duas vias. Velho e um pouco estúpido, mas com um filho, Sor Daven, que é mais temível. - Então, esperemos que seja o pai, e não o filho, quem coloca este exército em campo. - Ainda dispomos de algum tempo antes que tenhamos de enfrentá-los. Esta leva será de mercenários, cavaleiros livres e rapazes verdes saídos dos lupanares de Lanisporto. Sor Stafford 82 tem de se assegurar de que estejam armados e treinados antes de se arriscar a ir para a batalha... Mas não se iluda, Lorde Tywin não é o Regicida. Ele não se precipitará. Vai esperar pacientemente que Sor Stafford se ponha em marcha antes de sair da proteção das muralhas de Harrenhal. - A menos que... - Catelyn começou a falar. - Sim? - Sor Brynden a incitou. - A menos que tenha de deixar Harrenhal - ela completou. - Para enfrentar outra ameaça qualquer. O tio a olhou, pensativo: - Lorde Renly. - Rei Renly - se quisesse pedir ajuda ao homem, Catelyn teria de lhe conceder o tratamento que ele tinha reivindicado para si. - Talvez - Peixe Negro deu um sorriso perigoso. - Mas ele vai querer alguma coisa. - Ele vai querer o que os reis querem sempre - ela disse. - Homenagens. 83 Tyrion Janos Slynt era filho de um açougueiro e ria como um homem fatiando carne, - Mais vinho? - Tyrion perguntou. - Não me oponho - disse Lorde Janos, estendendo a taça. Tinha a constituição de um barril, e uma capacidade semelhante. - Não me oponho mesmo. É um ótimo tinto. Da Árvore?
- De Dorne - Tyrion fez um gesto, e seu criado serviu. Fora os criados, ele e Lorde Janos estavam sozinhos no Salão Pequeno, sentados em volta de uma pequena mesa à luz de vela, rodeados pela escuridão, - Um belo achado. Os vinhos de Dorne não costumam ser tão ricos. - Rico - repetiu o grande homem com cara de sapo, bebendo um grande gole. Não era homem de bebericar, Janos Slynt. Tyrion tinha notado isso imediatamente. - Sim, rico é a palavra exata que eu estava procurando. A palavra exata. Tem um dom para as palavras, Lorde Tyrion, se me permite dizer. E conta uma história divertida. Divertida, sim. - Fico agradecido que pense assim... Mas não sou um lorde, como você. Um simples Tyrion basta para mim, Lorde Janos. - Como quiser - o homem bebeu outro gole, derramando vinho no peito do seu gibão de cetim negro. Envergava uma meia capa de pano dourado presa com uma lança em miniatura, com a ponta esmaltada vermelho-escura. E estava muito, verdadeiramente bêbado. Tyrion cobriu a boca e soltou um arroto delicado. Ao contrário de Lorde Janos, tinha maneirado no vinho, mas já estava cheio. A primeira coisa que fizera depois de estabelecer residência na Torre da Mão foi saber quem era a melhor cozinheira da cidade e contratá-la para o seu serviço. Naquela noite tinham jantado rabada, verduras de verão com nozes, uvas, funcho e queijo ralado, empadão quente de caranguejo, abóbora com especiarias e codornas cozidas em manteiga. Cada prato tinha vindo acompanhado com o vinho mais adequado. Lorde Janos admitiu que nunca comera tão bem. - Sem dúvida tudo isso mudará quando fizer de Harrenhal sua residência. - Com certeza. Talvez deva pedir a esta sua cozinheira para entrar para o meu serviço. O que me diz? - Guerras foram travadas por menos - Tyrion respondeu, e os dois partilharam uma boa e longa gargalhada, - É um homem de coragem por aceitar Harrenhal como morada. Um lugar tão sombrio. E enorme... Custoso de manter. E há quem diga também que está amaldiçoado. - Deveria temer uma pilha de pedras? - Lorde Janos riu da idéia. - Um homem de coragem diz que é preciso ter coragem para subir, como eu fiz. Para Harrenhal, sim! E por que não? Você sabe. Sinto que também é um homem de coragem. Pequeno, talvez, mas corajoso. - E gentil demais de sua parte. Mais vinho? 84 - Não, Não, de verdade, eu,., Ah, danem-se os deuses, sim. Por que não? Um homem de coragem bebe à sua conta! - Certamente - Tyrion encheu a taça de Lorde Slynt até a borda. - Tenho passado os olhos pelos nomes que sugeriu para tomar o seu lugar como Comandante da Patrulha da Cidade. - Bons homens. Belos homens. Qualquer um dos seis servirá, mas eu escolheria Allar Deem. O meu braço direito. Homem bom, bom. Leal, Escolha-o, e não vai se arrepender. Se agradar ao rei. - Com certeza - Tyrion bebeu um pequeno gole do seu vinho. - Tenho pensado em Sor Jacelym Bywater. É capitão do Portão da Lama há três anos, e serviu com valor durante a Rebelião de Balon Greyjoy. Rei Robert armou-o cavaleiro em Pyke. E, no entanto, seu nome não aparece na sua lista. Lorde Janos Slynt sorveu um gole de vinho e bochechou-o por um momento antes de engolir. - Bywater. Bem. E um homem bravo, com certeza, mas... Esse é rígido. Um cão esquisito. Os homens não gostam dele. E também é aleijado, perdeu a mão em Pyke, foi isso que fez dele cavaleiro. Uma troca ruim, a meu ver, uma mão por um sor - ele gargalhou. - Sor Jacelyn dá valor demais a si mesmo e à sua honra, penso eu. Seria melhor se deixasse esse aí onde está, lor... Tyrion. Aliar Deem é o homem que quer. - Ouvi dizer que Deem é pouco querido nas ruas. - E temido. E preferível. - O que foi que ouvi falar dele? Um problema qualquer num bordel? - Isso? A culpa não foi dele, lor... Tyrion. Não. Ele nunca quis matar a mulher, foi obra dela. Ele a preveniu para se afastar e deixar que cumprisse o seu dever. - Mesmo assim... mães e filhos... Ele devia ter previsto que ela tentaria salvar o bebê – Tyrion sorriu. - Coma um pouco deste queijo, é ótimo com o vinho. Diga-me, por que escolheu Deem para essa tarefa infeliz? - Um bom comandante conhece os seus homens, Tyrion. Alguns são bons para um trabalho, outros para outro. Tratar de um bebê, e ainda de colo, isso requer um tipo especial. Não era qualquer um que serviria. Mesmo que fosse só uma puta e a sua cria. - Imagino que assim seja - Tyrion falou, ouvindo só uma puta, e pensando em Shae, e em Tysha, de muito tempo atrás, e em todas as mulheres que tinham recebido seu dinheiro e seu sêmen ao longo dos anos. Slynt prosseguiu, absorto. - Deem é um homem duro para um trabalho duro. Faz o que lhe pedem e, depois, nem uma palavra - o homem cortou uma fatia de queijo. - Isto é bom. Picante. Dê-me uma boa faca afiada e um bom queijo forte, e serei um homem feliz. Tyrion encolheu os ombros. - Aproveite enquanto pode. Com as terras fluviais em chamas e Renly rei em Jardim de Cima, bom queijo será em breve difícil de achar. Mas, então, quem o mandou atrás do bastardo da vadia? Lorde Janos lançou a Tyrion um olhar cauteloso, depois riu e brandiu um triângulo de queijo na sua direção, - É um astuto. Pensava que conseguiria me pegar, não é? E preciso mais do que vinho e queijo para fazer com que Janos Slynt diga mais do que deve. Orgulho-me disso. Nunca uma pergunta, e depois nunca uma palavra. Comigo é assim. - Tal como Deem. 85 - Exatamente igual. Faça dele seu Comandante quando eu for para Harrenhal, e não se arrependerá. Tyrion cortou um pequeno pedaço de queijo. Era realmente picante, e com veios de vinho; de primeiríssima linha. - Vejo que, seja quem for que o rei nomeie, não terá vida fácil para se encaixar na sua armadura, Lorde Mormont enfrenta o mesmo problema. Lorde Janos pareceu confuso. - Pensava eu que era uma senhora. Mormont. A que vai para a cama com ursos, é essa? - Era do irmão dela que eu falava. Jeor Mormont, o Senhor Comandante da Patrulha da Noite. Quando o visitei na Muralha, confidenciou-me como o preocupava encontrar um bom homem para tomar o seu lugar. A Patrulha recebe tão poucos homens bons hoje em dia – Tyrion deu um sorriso, - Imagino que ele dormiria melhor se tivesse um homem como você. Ou o valente Aliar Deem. Lorde Janos rugiu. - Há pouca chance de isso acontecer! - E o que parece - Tyrion devolveu. - Mas a vida realmente dá reviravoltas estranhas. Pense em Eddard Stark, senhor. Não acredito que ele alguma vez tenha imaginado que sua vida terminaria nos degraus do Septo de Baelor. - Muito pouca gente imaginava tal coisa - Lorde Janos concordou, com um risinho. Tyrion também soltou um risinho. - Pena que eu não estivesse lá para ver. Dizem que até Varys foi surpreendido. Lorde Janos riu tanto que sua barriga tremeu. - A Aranha - ele disse. - Sabe tudo, dizem. Bem, aquilo não sabia. - E como poderia? - Tyrion colocou o primeiro indício de frieza na voz. - Tinha ajudado a persuadir minha irmã de que Stark devia ser perdoado, na condição de vestir o negro. - Hã? - Janos Slynt piscou com uma expressão vaga. - Minha irmã, Cersei - Tyrion repetiu, com uma voz um tantinho mais forte, caso o idiota tivesse alguma dúvida sobre a quem se referia. - A Rainha Regente. - Sim - Slynt bebeu um trago. - Quanto a isso, bem... O rei ordenou, senhor. O rei em pessoa. - O rei tem treze anos - lembrou-lhe Tyrion. - Mesmo assim. Ele é o rei - a papada de Slynt tremeu quando franziu a testa. - O Senhor dos Sete Reinos. - Bem, pelo menos de um ou dois deles - Tyrion o corrigiu com um sorriso amargo. – Posso ver a sua lança? - Minha lança? - Lorde Janos pestanejou, confuso, Tyrion apontou. - O broche que prende a sua capa. Hesitante, Lorde Janos tirou o ornamento e o entregou a Tyrion. - Temos ourives em Lanisporto que fazem trabalho melhor - ele opinou. - O esmalte vermelho do sangue é um pouco exagerado, se me permite. Diga-me, senhor, foi você mesmo quem espetou a lança nas costas do homem, ou se limitou a dar a ordem? - Dei a ordem, e daria de novo. Lorde Stark era um traidor - o ponto calvo no meio da cabeça de Slynt estava da cor de beterraba, e sua capa de pano dourado tinha deslizado dos ombros para o chão, - O homem tentou me comprar. 86 - Nem sonhava que já tinha sido vendido. Slynt bateu com a taça de vinho na mesa: - Está bêbado? Se pensa que vou ficar aqui sentado ouvindo minha honra ser questionada... - E que honra é essa? Admito, faz negócios melhor do que Sor Jacelyn. Um título e um castelo por uma lança espetada nas costas, e nem sequer precisou pegar na lança - Tyrion atirou o ornamento dourado na direção de Janos Slynt. O objeto bateu no seu peito e tilintou no chão, enquanto o homem se punha de pé. - Não me agrada o tom da sua voz, lor... Duende. Sou o Senhor de Harrenhal e um membro do conselho do rei. Quem é você para me castigar assim? Tivrion inclinou a cabeça para o lado: - Acho que sabe bastante bem quem eu sou. Quantos filhos tem? - O que importam meus filhos para você, anão? - Anão? - a ira de Tyrion explodiu. - Devia ter parado em Duende. Sou Tyrion, da Casa Lannister, e um dia, se tiver o bomsenso de um caramujo, cairá de joelhos, grato por ter sido comigo que teve de lidar, e não com o senhor meu pai. Quantos filhos tem? Tyrion viu o súbito medo nos olhos de Janos Slynt. - T-três, senhor. E uma filha. Por favor, senhor... - Não precisa implorar - o Duende deslizou de cima da cadeira. - Dou a minha palavra de que nenhum mal cairá sobre eles. Os rapazes mais novos serão criados como escudeiros. Se servirem bem e com lealdade, poderão eventualmente se tornar cavaleiros. Que nunca se diga que a Casa Lannister não recompensa aqueles que a servem. Seu filho mais velho herdará o título de Lorde Slynt, e este seu terrível brasão - Tyrion chutou a pequena lança de ouro e fez com que deslizasse pelo chão. - Serão arrumadas terras para ele, e poderá construir uma sede. Não será Harrenhal, mas será suficiente. Arranjar casamento para a moça será tarefa dele. A cara de Janos Slynt tinha ido de vermelha para branca. - O que... Q q u e pretende...? - sua papada tremia como montículos de sebo. - O que pretendo fazer com o senhor? - Tyrion deixou o imbecil tremer por um instante antes de responder. - O galeão Sonho de Verão zarpa na maré da manhã. Seu mestre me disse que passará sará por Vila Gaivotas, as Três Irmãs, a ilha de Skagos e Atalaialeste do Mar. Quando encontrar o Comandante Mormont, dê-lhe os meus amistosos cumprimentos e diga que não me esqueci das necessidades da Patrulha da Noite. Desejo-lhe uma longa vida e bons serviços, senhor. Assim que Janos Slynt compreendeu que não seria sumariamente executado, a cor voltou ao seu rosto, e ele projetou o queixo. - Quanto a isso, veremos, Duende. Anão. Talvez seja você quem viajará nesse navio. O que acha disso? Talvez seja você que vai para a Muralha - soltou uma gargalhada ansiosa. - Você e a suas ameaças. Bem, vamos ver. Sou amigo do rei, sabe. Vamos ouvir o que Joffrey tem a dizer sobre isso. E Mindinho, e a rainha, ah, sim. Janos Slynt tem muitos amigos. Vamos ver quem vai velejar, prometo. Veremos. Ah! Sim, veremos. Slynt girou sobre os calcanhares como o vigia que tinha sido um dia e atravessou o Salão Pequeno a passos largos, fazendo ressoar as botas na pedra. Subiu os degraus com estrondo, abriu violentamente a porta.., E deu de cara com um homem alto, de rosto chupado, usando uma placa de peito negra e um manto dourado. Presa ao toco do seu pulso direito via-se uma mão de ferro. - Janos - o homem disse, com os olhos encovados brilhando sob supercílios proeminentes e um abundante cabelo grisalho. Seis homens de mantos dourados entraram calmamente no Salão Pequeno atrás dele quando Janos Slynt recuou.
87 - Lorde Slynt - Tyrion chamou - , creio que conhece Sor Jacelyn Bywater, nosso novo Comandante da Patrulha da Cidade. - Temos uma liteira à sua espera, senhor - disse Sor Jacelyn a Slynt. - As docas são escuras e distantes, e as ruas não são seguras à noite. Homens. Enquanto os homens de manto dourado conduziam seu antigo comandante para fora da sala, Tyrion chamou Sor Jacelyn para perto e lhe entregou um rolo de pergaminho. - É uma longa viagem, e Lorde Slynt vai querer companhia. Certifique-se de que estes seis se juntem a ele no Sonho de Verão. Bywater deu uma olhada nos nomes e sorriu: - As suas ordens. - Um deles - disse Tyrion em voz baixa - , Deem. Diga ao capitão que não seria levado a mal se por acaso este cair borda afora antes de chegarem a Atalaialeste. - Ouvi dizer que essas águas do norte são muito tempestuosas, senhor. Sor Jacelyn fez uma reverência e se retirou, fazendo esvoaçar o manto atrás de si. N o caminho, pisou na capa de pano dourado de Slynt. Tyrion ficou sentado sozinho, bebericando o que restava do ótimo vinho doce de Dorne. Criados entravam e saíam, tirando os pratos da mesa. Disse-lhes para que deixassem o vinho. Quando terminaram, Varys entrou, deslizando no salão, usando uma toga cor de lavanda, que combinava com o seu cheiro. - Ah, que bem-feito, meu bom senhor. - Então, por que tenho este sabor amargo na boca? - Tyrion passou os dedos pelas têmporas. - Disse-lhes para atirar Aliar Deem ao mar. Estou intensamente tentado a fazer o mesmo com você. - Talvez ficasse desapontado com o resultado - Varys respondeu. - As tempestades vêm e vão, as ondas rebentam sobre as nossas cabeças, os peixes grandes comem os pequenos, e eu continuo chapinhando na água. Posso lhe pedir um pouco do vinho que Lorde Slynt tanto apreciou? Tyrion fez um gesto para o frasco, franzindo a testa. Varys encheu uma taça. - Ah! Doce como o verão - bebeu outro gole. - Consigo ouvir as uvas cantando na minha língua. - Estava me perguntando o que seria esse ruído. Diga às uvas para ficarem quietas, minha cabeça está prestes a rachar. Foi a minha irmã. Foi isso que o Ah... tão.,, leal Lorde Janos se recusou a dizer. Cersei enviou os homens de manto dourado àquele bordel, Varys sufocou um riso nervoso. Então, ele sempre soubera. - Não me havia contado essa parte - Tyrion disse, acusadoramente. - A sua querida irmã - Varys respondeu, tão desgostoso que parecia perto das lágrimas. – E duro contar isso a um homem, senhor. Tive receio de como receberia a notícia. E capaz de me perdoar? - Não - Tyrion exclamou. - Maldito seja. Maldita seja ela. Sabia que. não podia tocar em Cersei. Ainda não, nem mesmo se quisesse, e estava longe de ter certeza de querer, Mas irritava-o ficar ali, fazendo uma pantomima de justiça, punindo uns infelizes da laia de Janos Slynt e Aliar Deem, enquanto a irmã prosseguia no seu rumo selvagem. - Da próxima vez, diga-me o que sabe, Lorde Varys. Tudo o que sabe. O sorriso do eunuco era malicioso. - Isso poderá demorar um tempo bastante longo, meu bom senhor. Sei muita coisa. 88 - Não o suficiente para salvar esta criança, parece. - Infelizmente, não. Havia outro bastardo, um rapaz, mais velho. Tomei medidas para afastá-lo e mantê-lo em segurança... Mas, confesso, nunca sonhei que o bebê pudesse correr riscos. Uma menina de baixo nascimento, com menos de um ano de idade, com uma mãe prostituta. Que ameaça poderia representar? - Era de Robert - disse Tyrion amargamente. - O suficiente para Cersei, ao que parece, - Sim. É muito triste. Tenho de me culpar pelo pobre doce bebê e por sua mãe, que era tão nova e amava o rei. - Amava? - Tyrion não chegou a ver o rosto da moça morta, mas na sua imaginação era uma combinação de Shae e Tysha. - Uma prostituta pode realmente amar alguém? Não, não responda. Há coisas que prefiro não saber. Tinha instalado Shae numa vasta mansão de pedra e madeira, com poço, estábulos e jardim prórios; dera-lhe criados para satisfazer as suas necessidades, um pássaro branco das Ilhas do Verão para lhe fazer companhia, sedas, prata e pedras preciosas para enfeitá-la e guardas para protegê-la. E, no entanto, parecia impaciente. Queria passar mais tempo com ele, tinha dito; queria servi-lo e ajudá-lo. "Ajuda-me mais aqui, entre os lençóis", disse-lhe uma noite depois do amor, deitado ao seu lado, com a cabeça apoiada no seu seio e uma doce dor nas virilhas. Ela não tinha respondido, exceto com os olhos, Foi aí que viu que aquilo não era o que ela queria ter ouvido. Suspirando, Tyrion fez um movimento para o vinho, mas então lembrou-se de Lorde Janos e afastou o frasco. - Parece que minha irmã falou a verdade a respeito da morte do Stark. Devemos agradecer ao meu sobrinho por essa loucura. - Rei Joffrey deu a ordem. Janos Slynt e Sor Ilyn Payne cumpriram-na, rapidamente, sem hesitar... - ... Quase como se já a esperassem. Sim, já percorremos este caminho, e sem chegar a lugar nenhum . Uma tolice. - Com a Patrulha da Cidade nas mãos, senhor, está bem colocado para se assegurar de que Sua Graça não cometerá mais... tolices? E verdade que ainda é preciso considerar a guarda doméstica da rainha... - Os homens de manto vermelho? - Tyrion encolheu os ombros. - A lealdade de Vylarr é para com Rochedo Casterly. Ele sabe que estou aqui com a autoridade do meu pai. Cersei teria dificuldade em usar seus homens contra mim... E, além disso, não passam de uma centena. Tenho uma vez e meia esse número de homens meus. E seis mil mantos dourados, se Bywater for o homen que você afirma ser. - Achará Sor Jacelyn corajoso, honroso, obediente... E muito grato, - Gostaria de saber a quem - Tyrion não confiava em Varys, embora não fosse possível negar seu valor. Sabia coisas, sem a menor dúvida. - Por que você é tão prestativo, senhor Varys? - perguntou, estudando as mãos suaves do homem, a cara nua e empoada, o sorrisinho servil. - És a Mão. Eu sirvo ao reino, ao rei e ao senhor. - Tal como serviu a Jon Arryn e Eddard Stark? - Servi a Lorde Arryn e a Lorde Stark o melhor que pude. Fiquei triste e horrorizado pelas suas mortes tão precoces.
- Imagine como eu me sinto. E provável que seja o próximo. - Ah, penso que não - Varys respondeu, agitando o vinho na sua taça. - O poder é uma coisa curiosa, senhor. Terá, por acaso, pensado no enigma que lhe deixei naquele dia na estalagem? 89 - Passou pela minha cabeça uma ou duas vezes - Tyrion admitiu. - O rei, o sacerdote, o rico... Quem sobrevive e quem morre? A quem obedecerá o mercenário? E um enigma sem resposta, ou melhor, com muitas respostas. Tudo depende do homem que tem a espada. - E, no entanto, ele não é ninguém - Varys concluiu. - Não tem uma coroa, nem ouro, nem o favor dos deuses, mas apenas um pedaço de aço afiado. - Esse pedaço de aço é o poder da vida e da morte. - Precisamente... E, no entanto, se são realmente os homens de armas que nos governam, por que fingimos que nossos reis têm o poder? Por que um homem forte com uma espada obedeceria a um rei criança como Joffrey, ou a um idiota encharcado em vinho como o pai? - Porque esses reis crianças e idiotas bêbados podem chamar outros homens fortes, com outras espadas. - Então são esses outros homens de armas que têm o verdadeiro poder. Ou será que não? De onde vieram as suas espadas? Por que é que eles obedecem? - Varys sorriu. - Há quem diga que o conhecimento é poder. Outros, que todo o poder provém dos deuses. Outros, ainda, afirmam que deriva da lei. Mas, naquele dia, nos degraus do Septo de Baelor, nosso devoto Alto Septão, a legítima Rainha Regente e este seu sempre tão sabedor criado viram-se tão impotentes como qualquer sapateiro ou tanoeiro da multidão. Quem você acha que realmente matou Eddard Stark? Joffrey, que foi quem deu a ordem? Sor Ilyn Payne, que foi quem brandiu a espada? Ou...outra pessoa? Tyrion inclinou a cabeça para o lado. - Pretende responder ao seu maldito enigma, ou quer apenas fazer com que a minha dor de cabeça piore? Varys sorriu. - Eis, então. O poder reside onde os homens acreditam que reside. Nem mais, nem menos. - Então o poder é um truque de mímica? - Uma sombra na parede - Varys murmurou. - Mas as sombras podem matar. E, muitas vezes, um homem muito pequeno pode lançar uma sombra muito grande. Tyrion sorriu. - Lorde Varys, estou ficando estranhamente seu amigo. Ainda posso acabar matando-o, mas creio que isso me entristeceria. - Tomarei isso como um grande elogio. - O que é você, Varys? - Tyrion descobriu que queria mesmo saber. - Uma aranha, segundo dizem? - Os espiões e informantes raramente são amados, senhor. Não sou mais do que um servidor leal do reino. - E um eunuco. Não nos esqueçamos disso. - Raramente me esqueço. - Também já me chamaram meio homem, mas acho que os deuses foram mais gentis comigo. Sou pequeno, tenho as pernas tortas e as mulheres não me olham com grande desejo... Mas ainda sou um homem. Shae não é a primeira a embelezar minha cama, e um dia poderei vir a ter uma esposa e gerar um filho. Se os deuses forem bons, será parecido com o tio e pensará como o pai. Você não tem uma esperança semelhante para se apoiar. Os anões são uma brincadeira dos deuses,., Mas são os homens que fazem eunucos. Quem o cortou, Varys? Quando e por quê? Quem é você, na verdade? O sorriso do eunuco nunca vacilou, mas seus olhos cintilaram com algo que não era riso. 90 - É gentil por perguntar, senhor, mas a história é longa e triste, e há traições que precisamos discutir - ele tirou um pergaminho da manga da sua túnica. - O mestre da Galé Real Veado Branco conspira para levantar âncora daqui a três dias, a fim de oferecer a espada e o navio a Lorde Stannis. Tyrion suspirou. - Suponho que temos de dar ao homem algum tipo de lição sangrenta. - Sor Jacelyn poderia fazê-lo desaparecer, mas um julgamento perante o rei ajudaria a assegurar uma continuada lealdade por parte dos outros capitães. E também manteria ocupado meu real sobrinho. - Será como diz. Encomende para ele uma dose da justiça de Joffrey. Varys rabiscou um tique no pergaminho. - Sor Horas e Sor Hobber Redwyne subornaram um guarda para deixá-los sair por uma porta dos fundos daqui a duas noites. Foram feitos preparativos para que embarcassem na galé Corredor da Lua, de Pentos, disfarçados de remadores. - Poderíamos mantê-los nesses remos durante alguns anos para ver se gostam? – Tyrion sorriu. - Não. Minha irmã ficaria perturbada por perder hóspedes tão preciosos. Informe Sor Jacelyn. Capture o homem que subornaram e explique a honra que é servir como um irmão da Patrulha da Noite. Coloque homens em torno do Corredor da Lua, para o caso de os Redwyne encontrarem um segundo guarda com falta de moedas. - Será como deseja - outro tique no pergaminho. - Seu homem, Timett, matou o filho de um vendedor de vinho esta noite, num antro de jogo na Rua da Prata. Acusou-o de trapacear nas pedras. - E verdade? - Ah, sem a menor dúvida. - Então os homens honestos da cidade têm uma dívida de gratidão para com Timett, Vou me assegurar de que receba os agradecimentos do rei, O eunuco soltou uma pequena gargalhada nervosa e fez outro tique. - Também temos uma súbita praga de homens santos. Aparentemente, o cometa gerou toda espécie de sacerdotes estranhos, pregadores e profetas. Mendigam nas tavernas e refeitórios e predizem o fim do mundo e a destruição a todos os que param para ouvir. Tyrion encolheu os ombros: - Estamos perto do tricentenário do Desembarque de Aegon, imagino que era de esperar, Deixe-os pregar. - Estão espalhando o medo, senhor.
- Pensei que este fosse o seu trabalho. Varys cobriu a boca com a mão. - É muito cruel por dizer isso. Um último assunto. A Senhora Tanda organizou um pequeno jantar ontem à noite. Tenho o menu e a lista de convidados para sua inspeção. Quando o vinho foi servido, Lorde Gyles levantou-se para fazer um brinde ao rei, e Sor Balon Swann foi ouvido comentando: "Iremos precisar de três taças para isso". Muitos riram... Tyrion levantou uma mão: - Basta. Sor Balon disse uma frase de efeito. Não estou interessado em conversas de mesa traiçoeiras, Lorde Varys. - É tão sensato como gentil, senhor - o pergaminho desapareceu na manga do eunuco. - Ambos temos muito o que fazer. Vou deixá-lo a sós. 91 Depois de o eunuco sair, Tyrion ficou durante muito tempo sentado, observando a vela e se perguntando como sua irmã receberia a notícia da dispensa de Janos Slynt. Se bem a conhecia, não ficaria feliz, mas nem perto de enviar um protesto irado a Lorde Tywin em Harrenhal. Não via o que Cersei podia esperar fazer a respeito. Tyrion controlava agora a Patrulha da Cidade, mais uma centena e meia de ferozes homens dos clãs e uma crescente força de mercenários recrutados por Bronn. Aparentemente, estava bem protegido. Sem dúvida Eddard Stark achava o mesmo. A Fortaleza Vermelha estava escura e silenciosa quando Tyrion saiu do Pequeno Salão. Bronn esperava-o no aposento privado. - Slynt? - perguntou. - Lorde Janos zarpará para a Muralha na maré da manhã. Varys quis me fazer acreditar que substituí um dos homens de Joffrey por um meu. O mais provável é que tenha substituído um homem do Mindinho por um pertencente a Varys. Mas, que seja. - E bom que saiba que Timett matou um homem... - Varys me disse - o mercenário não mostrou surpresa. - O palerma achou que um homem com um olho só seria mais fácil de enganar. Timett cravou seu pulso na mesa com um punhal e rasgou sua garganta com as mãos nuas. Ele faz um truque em que enrijece os dedos... - Poupe-me dos detalhes macabros, meu jantar mal parou quieto dentro da barriga – Tyrion protestou. - Como vai seu recrutamento? - Bastante bem. Esta noite arranjei três novos homens. - Como sabe quem recrutar? - Examino-os. Interrogo-os para saber onde lutaram e como são mentindo - Bronn sorriu. - E então dou-lhes uma chance de me matar, enquanto faço o mesmo com eles. - Matou algum? - Ninguém que pudéssemos ter usado. - E se um deles matá-lo? - Será esse que vai querer contratar. Tyrion estava um pouco bêbado, e muito cansado. - Diga-me, Bronn, se lhe dissesse para matar um bebê... digamos, uma menina, ainda no peito da mãe... Mataria? Sem questionar? - Sem questionar? Não - o mercenário esfregou o polegar no indicador. - Perguntava o preço. E para que eu precisaria do seu Aliar Deem, Lorde Slynt?, pensou Tyrion. Tenho cem meus. Desejou rir; desejou chorar; mas, acima de tudo, desejou Shae. 92 Arya A estrada era pouco mais do que dois sulcos no meio do mato. A parte boa era que, com tão pouco tráfego, não haveria ninguém para apontar e dizer para onde tinham ido. A enchente humana que jorrara para o sul pela estrada do rei era ali apenas um riacho. A parte ruim era que a estrada ziguezagueava de um lado para outro, emaranhando-se em trilhas ainda menores e, às vezes, parecendo desaparecer por completo, para reaparecer apenas meia légua adiante, quando já tinham quase perdido a esperança. Arya detestava aquilo. O terreno era bastante suave, colinas onduladas e campos em terraços intercalados com prados, bosques e pequenos vales, onde salgueiros se aglomeravam junto a riachos rasos e vagarosos. Mesmo assim, o caminho era tão estreito e tortuoso, que o ritmo do grupo tinha diminuído até quase parar. Eram as carroças que os atrasavam, arrastando-se penosamente, com os eixos estalando sob o peso das suas cargas pesadas. Uma dúzia de vezes ao dia tinham de parar para soltar uma roda que se prendera num sulco, ou duplicar as parelhas para subir uma encosta barrenta. Uma vez, no meio de um denso bosque de carvalhos, deram de frente com três homens que traziam uma carga de lenha num carro de bois, sem que houvesse espaço para que nenhum dos grupos se desvíasse. Não puderam fazer nada, a não ser esperar que os lenhadores soltassem os bois, os levassem por entre as árvores, virassem o carro de lado, voltassem a prender os bois e seguissem o caminho por onde tinham vindo. Os bois ainda eram mais lentos do que as carroças, e nesse dia quase não avançaram nada. Arya não conseguia evitar olhar por sobre o ombro, imaginando quando os homens de manto dourado os apanhariam. Durante a noite, acordava com qualquer ruído e agarrava o cabo da Agulha. Agora, nunca acampavam sem colocar sentinelas, mas Arya não confiava nelas, principalmente nos órfãos. Eles podiam ter se dado bastante bem nas vielas de Porto Real, mas aqui estavam perdidos. Quando era silenciosa como uma sombra, podia passar por todos eles, esgueirandose à luz das estrelas para urinar nos bosques, onde ninguém a visse. Uma vez, quando era turno de Lommy Mãos-Verdes, subiu num carvalho e passou de árvore em árvore até estar bem em cima da sua cabeça, e ele não chegou a ver nada. Podia ter caído em cima dele, mas sabia que o grito do rapaz acordaria todo o acampamento, e Yoren podia voltar a bater nela com um pau . Lommy e os outros órfãos agora tratavam Touro como alguém especial, porque a rainha queria a sua cabeça, embora ele detestasse isso.
- Nunca fiz nada à rainha - dizia, zangado. - Fazia o meu trabalho, só isso. Foles e tenazes, buscar e carregar. Deveria ter me tornado armeiro e, um dia, mestre Mott diz que tenho de me alistar na Patrulha da Noite. É tudo que sei. 93 Depois, ia polir seu elmo, Era um belo elmo, arredondado e curvo, com um visor em fenda e dois grandes cornos de touro em metal. Arya observava-o polir o metal com um pouco de oleado, deixando-o tão brilhante que se podia ver as chamas da fogueira refletidas no aço, Mas nunca o colocava na cabeça, - Aposto que é bastardo daquele traidor - disse Lommy uma noite, numa voz abafada para que Gendry não o ouvisse. - O senhor lobo, aquele que bateu as botas nos degraus de Baelor. - Não é nada - declarou Arya. Meu pai só teve um bastardo, o Jon. Caminhou a passos largos por entre as árvores, desejando poder simplesmente selar o cavalo e cavalgar para casa. Era um bom animal, uma égua alazã com uma mancha branca na testa. E Arya sempre foi boa cavaleira. Poderia se afastar a galope e nunca mais ver nenhum deles, a menos que quisesse. Só que, então, não teria ninguém para bater o terreno à sua frente, ou vigiar a retaguarda, ou ficar de guarda enquanto cochilava, e quando os homens de manto dourado a apanhassem, estaria só. Era mais seguro ficar com Yoren e os outros, - Não estamos longe do Olho de Deus - disse o irmão negro uma manhã. - A estrada real não será segura até atravessarmos o Tridente. Por isso, rodearemos o lago pela margem ocidental. Não é provável que nos procurem lá. No ponto seguinte onde dois sulcos se cruzaram, viraram as carroças para oeste. Ali, as terras de cultivo deram lugar à floresta, as aldeias e os castros eram menores e mais espaçados, as colinas, mais altas, e os vales, mais profundos. Tornou-se mais difícil arranjar comida. Na cidade, Yoren tinha carregado as carroças com peixe salgado, pão duro, toucinho, nabos, sacos de feijão e cevada e discos de queijo amarelo, mas tudo já tinha sido comido. Forçado a viver da terra, Yoren recorreu a Koss e Kurz, que tinham sido presos por caça furtiva. Mandava-os para a floresta à frente da coluna, e ao cair da noite eles estavam de volta, carregando entre os dois um veado pendurado em uma vara, ou com um par de codornas penduradas nos cintos. Os rapazes mais novos eram colocados para apanhar frutos silvestres ao longo da estrada, ou pulavam cercas para encher uma saca de maçãs se acaso se deparassem com um pomar. Arya era hábil em subir em árvores e apanhava frutas com rapidez, e gostava de andar sozinha. Um dia, encontrou um coelho, por puro acaso. Era marrom e gordo, com longas orelhas e um nariz nervoso. Os coelhos corriam mais depressa do que os gatos, mas não eram nem de perto tão bons em subir nas árvores. Bateu nele com o pau e o agarrou pelas orelhas; e Yoren o cozinhou com cogumelos e cebolas silvestres. Arya recebeu uma perna inteira, já que o coelho era seu. Dividiu-a com Gendry. Os outros receberam uma colherada cada, até os três que seguiam algemados. Jaqen Hghar agradeceu-lhe educadamente pelo acepipe, e o Dentadas lambeu a gordura dos dedos sujos com um ar feliz, mas Rorge, o que não tinha nariz, limitou-se a rir e a dizer: - Ai está, um caçador agora. Cabeça de Caroço Cara de Caroço Mata Coelhos. Perto de um castro chamado Sarçabranca, um grupo de camponeses os cercou num campo de milho, exigindo dinheiro pelas espigas que tinham cortado. Yoren deu uma espiada nas suas foices e atirou-lhes algumas moedas de cobre. - Em outros tempos, um homem vestido de negro era banqueteado de Dorne a Winterfell, e até os grandes senhores achavam uma honra abrigá-lo sob seu teto - ele disse amargamente. - Agora, covardes como vocês querem dinheiro vivo por uma dentada numa maçã bichada - cuspiu. - Isto é milho doce, mais do que um pássaro preto fedorento como você merece - um deles respondeu rudemente, - Some das nossas terras e leve junto esses gatunos e assassinos, senão a gente te espeta no milharal pra espantar os outros corvos. 94 Naquela noite, assaram o milho doce na casca, virando as espigas com longos paus bifurcados, e comeram-no quente, direto do sabugo. Arya achou delicioso, mas Yoren estava zangado demais para comer. Uma nuvem parecia pairar sobre ele, esfarrapada e negra como o seu manto. Andou pelo acampamento, inquieto, murmurando consigo mesmo. No dia seguinte, Koss voltou correndo para avisar Yoren de um acampamento mais à frente. - Vinte ou trinta homens, com cota de malha e capacetes - ele disse. - Alguns estão muito feridos, e um deles, moribundo. Com todo o barulho que ele estava fazendo, consegui chegar bem perto. Têm lanças e escudos, mas só um cavalo, e está coxo. Acho que estão ali há algum tempo . pelo fedor que vem do lugar. - Viu um estandarte? - Gato-das-árvores malhado, preto e amarelo, em fundo marrom lamacento. Yoren dobrou uma folhamarga, enfiou-a na boca e começou a mascar. - Não conheço - admitiu. - Podem ser de um lado ou do outro. Se estão assim tão feridos, o mais certo é que roubem nossas montarias, sejam quem forem. Pode ser que roubem mais do que isso. Acho que vamos rodeá-los de longe - isso lhes custaria milhas fora do caminho, e pelo menos dois dias, mas o velho disse que o preço era baixo, - Vocês vão ter tempo suficiente na Muralha. O resto das suas vidas, provavelmente. Parece-me que não há pressa em chegar lá. Arya viu cada vez mais homens guardando os campos quando voltaram a seguir para o norte, Muitas vezes ficavam em silêncio junto à estrada, lançando olhares frios a quem passava. Em outros locais, faziam patrulhas a cavalo, percorrendo as cercas com machados presos nas selas. Em um lugar, viu um homem empoleirado numa árvore morta, com um arco na mão e uma aljava pendurada galho a seu lado. No momento em que os viu, encaixou uma flecha no arco e não afastou os olhos até que a última carroça estivesse fora de vista. Durante todo o tempo, Yoren praguejou. - Aquele na árvore, vamos ver se ele gosta daquilo ali em cima quando os Outros vierem levá-lo. Vai gritar pela Patrulha, ah, se vai. Um dia depois, Dobber vislumbrou um clarão vermelho no céu do fim da tarde. - Ou esta estrada mudou de direção, ou aquele sol está se pondo no Norte. Yoren subiu em um morro para ver melhor. - Fogo - anunciou. Lambeu um polegar e o levantou, - O vento deve soprá-lo pra longe da gente. Mesmo assim, é melhor vigiar. E Vigiaram. A medida que o mundo escurecia, o incêndio foi se tornando cada vez mais brilhante, até parecer que tudo ao norte estava em chamas. De tempos em tempos, conseguiam até sentir o cheiro da fumaça, embora o vento se mantivesse firme e as chamas nunca chegassem a se aproximar. Pela alvorada, o incêndio apagou-se, mas nenhum deles dormiu muito bem naquela noite.
zra meio-dia quando chegaram ao local onde antes existia a aldeia. Os campos eram uma desolação carbonizada ao longo de milhas em todas as direções, e as casas, conchas enegrecidas, As carcaças de animais queimados e abatidos coloriam o chão, sob mantas vivas de gralhas pretas necrófagas que levantavam voo, crocitando furiosamente, quando eram perturbadas. Ainda saía fumaça de dentro do castro. Sua paliçada de madeira parecia forte de longe, mas provara não ser o suficiente. Avançando a cavalo em frente das carroças, Arya viu cadáveres queimados empalados em estacas afiadas no topo das muralhas, com as mãos na frente do rosto, como que tentando afastar as chamas que os consumiram. Yoren mandou que parassem quando ainda estavam a alguma distancia e disse a Arya e aos outros rapazes para vigiar as carroças enquanto ele, Murch e 95 Cutjack avançavam a pé. Um bando de corvos levantou voo de dentro das muralhas quando escalaram o portão quebrado, e os corvos engaiolados nas carroças chamaram-nos com quorcs e guinchos roucos. - Não devíamos ir atrás deles? - Arya perguntou a Gendry depois de Yoren e os outros terem desaparecido há muito tempo. - Yoren disse para esperar, A voz de Gendry soou oca. Quando Arya se virou para ele, viu que tinha colocado o elmo, todo de aço brilhante e com grandes cornos curvos. Quando finalmente retornaram, Yoren trazia uma menininha nos braços e Murch e Cutjack carregavam uma mulher numa espécie de maca improvisada com uma velha colcha rasgada. A menina não devia ter mais do que dois anos, e não parava de chorar, um som lamuriento, como se tivesse alguma coisa presa na garganta. Ou talvez ainda não soubesse falar, ou se esquecido do que aprendera. O braço direito da mulher terminava em um coto sangrento no cotovelo e seus olhos pareciam não ver nada, mesmo quando olhava diretamente para as coisas. Falava, mas dizia apenas duas palavras. "Por favor", e chorava, sem parar. "Por favor. Por favor," Rorge achou aquilo divertido. Riu através do buraco que tinha na cara no lugar do nariz, e Dentadas começou a rir também, até que Murch os amaldiçoou e lhes disse para calar a boca, Yoren fez com que arranjassem um lugar para a mulher numa carroça. - E depressa - ele disse. - Quando cair a noite, certamente haverá lobos por aqui e coisas piores. - Estou assustado - Torta Quente murmurou quando viu a mulher com um só braço debater-se na carroça. - Eu também - Arya confessou. Ele apertou seu ombro. - Nunca matei um menino aos chutes de verdade, Arry. Só vendia as tortas da minha mamãe, mais nada. Arya cavalgou à frente das carroças, o mais longe que ousava, para não ter de ouvir o choro da garotinha ou escutar a mulher sussurrando "Por favor". Lembrou-se de uma história que a Velha Ama tinha contado um dia, sobre um homem aprisionado num castelo escuro por gigantes malvados. Era muito corajoso e inteligente, enganou os gigantes e escapou... Mas, assim que saiu do castelo, os Outros o capturaram e beberam seu sangue quente e vermelho. Agora sabia como ele devia ter se sentido. A mulher sem um braço morreu ao cair da noite. Gendry e Cutjack cavaram a sua sepultura na encosta de uma colina, à sombra de um chorão. Quando o vento soprava, Arya pensava ouvir os longos ramos pendentes sussurrando: "Por favor. Por favor. Por favor". Os cabelinhos da sua nuca eriçavam-se, e quase fugiu do local. - Nada de fogueira esta noite - disse-lhes Yoren. O jantar foi um punhado de rabanetes silvestres que Koss encontrou, uma taça de feijões secos e água de um riacho que corria ali perto. A água tinha um gosto esquisito, e Lommy disse que era o sabor de cadáveres apodrecendo em algum lugar próximo à nascente. Torta Quente teria batido nele se o velho Reysen não os tivesse apartado. Arya bebeu água demais, só para encher a barriga com alguma coisa. Nunca achou que fosse capaz de dormir, mas de algum modo foi. Quando acordou, a noite estava fechada e sua bexiga estava estourando de cheia. Corpos adormecidos amontoavam-se ao seu redor, enrolados em cobertores e mantos. Arya encontrou a Agulha, levantou-se e escutou. Ouviu os passos suaves de uma sentinela, homens que se viravam num sono inquieto, os ruidosos roncos de Rorge, e o 96 estranho som sibilante que Dentadas fazia quando dormia. De outra carroça vinha o constante e ritmado raspar de aço em pedra feito por Yoren enquanto mascava folhamarga e afiava o gume do punhal. Torta Quente era um dos rapazes que estavam de vigia, - Aonde vai? - ele perguntou quando viu que Arya se encaminhava para as árvores, Arya fez um aceno vago para a floresta. - Não vai, não - Torta Quente lhe disse, Agora, tinha se tornado de novo mais corajoso, por causa espada presa ao cinto, mesmo que não passasse de uma espada curta e ele a manejasse como se fosse um cutelo. - O velho disse para todo mundo ficar por perto hoje. — Tenho de urinar - explicou Arya. - Bom, use aquela árvore ali - apontou. - Não sabe o que tem por aí, Arry? Já ouvi lobos. Yoren não gostaria que lutasse com ele. Tentou parecer assustada. - Lobos? De verdade? - Eu ouvi - ele confirmou, - Acho que na verdade não preciso ir. Voltou à sua manta e fingiu dormir até ouvir os passos de Torta Quente se afastarem. Então, virou própria e esgueirou-se para a floresta pelo outro lado do acampamento, silenciosa como sombra. Também havia sentinelas por ali, mas Arya não teve dificuldade em evitá-las. Só pra garantir, foi até duas vezes mais longe do que de costume. Quando estava certa de que havia ninguém por perto, abaixou os calções e acocorou-se para tratar do assunto. Estava urinando, com a roupa amontoada em volta dos tornozelos, quando ouviu um resfolhar vindo de debaixo das árvores. Torta Quente, pensou, em pânico, ele me seguiu. Então viu os olhos brilhando de dentro da floresta, vivos do luar refletido. Sentiu a barriga apertar-se enquanto agarrava a Agulha, sem se importar em se molhar ou não, contando olhos, dois, quatro, doze, uma alcateia inteira... Um deles saiu de debaixo das árvores. Encarou-a e mostrou os dentes, e tudo em que ela conseguiu pensar foi em como tinha sido estúpida e em como Torta Quente se regozijaria quando encontrassem seu corpo meio devorado na manhã  seguinte. Mas o lobo se virou e correu de volta para escuridão, e num instante os olhos tinham desaparecido. Tremendo, limpou-se, vestiu-se e seguiu um distante som de raspar ao voltar ao acampamento e a Yoren. Arya pulou para dentro da carroça ao lado dele, abalada. - Lobos - sussurrou em voz rouca. - Na floresta, - É. Deve haver - o homem nem a olhou. - Me assustaram, - Ah, é? - cuspiu. - Pensava que a sua gente gostava de lobos. - Nymeria era um lobo gigante - Arya se abraçou. - E diferente. Seja como for, ela sumiu, Jerry e eu atiramos pedras nela até que fugiu, senão a rainha a teria matado - falar sobre aquilo deixava-a triste. - Aposto que se ela estivesse na cidade, não teria deixado que cortassem a cabeça do meu pai. - Meninos órfãos não têm pais - Yoren disse. - Ou será que se esqueceu? - a folhamarga tinha deixado sua saliva vermelha, e parecia que sua boca sangrava. - Os únicos lobos que temos de temer são os que usam pele de homem, como os que acabaram com aquela aldeia. - Queria estar em casa - Arya disse em tom infeliz. Tentava com tanta força ser corajosa, ser feroz como um glutão ou algo assim, mas, às vezes, no final das contas, sentia-se como se fosse só uma garotinha. 97 O irmão negro puxou uma nova folhamarga do fardo e a enfiou na boca. - Talvez eu devesse ter deixado você onde o encontrei, rapaz. Todos vocês. Parece que estavam mais seguros na cidade. - Não me importo. Quero ir para casa. - Faz quase trinta anos que levo homens para a Muralha - a espuma brilhou nos lábios de Yoren, como bolhas de sangue. - Todo esse tempo, e só perdi três. Um velho morreu de uma febre, um garoto da cidade foi mordido por uma cobra enquanto cagava e um imbecil tentou me matar durante o sono, e ficou com um sorriso vermelho por ter me incomodado - Yoren passou o punhal pela garganta, para lhe mostrar. - Três, em trinta anos - cuspiu a folhamarga gasta. - Agora, um navio teria sido mais responsável. Não há como encontrar mais homens no caminho, mas, mesmo assim... Um homem esperto tinha ido de barco, mas eu... há trinta anos que ando por esta estrada do rei - ele embainhou o punhal. - Vai dormir, rapaz. Está me ouvindo? Ela tentou. Mas enquanto jazia sob a manta, ouvia os lobos uivando... e um outro som, mais tênue, que não era mais do que um sussurro no vento... podiam ter sido gritos. 98 Davos O ar da manhã estava escuro com a fumaça dos deuses que ardiam. Estavam agora todos em chamas, a Donzela e a Mãe, o Guerreiro e o Ferreiro, a Velha, com os seus olhos de pérola, e o Pai, com a sua barba dourada; até o Estranho, esculpido para ter um aspecto mais animal do que humano. A velha madeira seca e incontáveis camadas de tinta e verniz ardiam com uma feroz luz esfomeada. O calor subia, iluminando vagamente o ar frio; por trás gárgulas e dragões de pedra do castelo pareciam borrados, como se Davos os estivesse vendo através de um véu de lágrimas. Ou como se os monstros estivessem tremendo, agitando-se... - Uma coisa doentia - declarou Allard, embora tivesse pelo menos o bom-senso de manter a voz baixa. Dale concordou com um murmúrio. - Silêncio - Davos ordenou. - Lembre-se de onde está. Os filhos eram bons homens, mas jovens, e Allard, em especial, era impetuoso. Se eu tivesse continuado contrabandista, Allard teria acabado na Muralha. Stannis poupou-o desse fim, mais uma coisa que lhe devo... Centenas de pessoas tinham vindo até os portões do castelo para testemunhar o incêndio dos Sere. O cheiro no ar era pestilento. Mesmo para os soldados, era difícil não sentir desconforto perante tamanha afronta aos deuses que a maioria havia adorado durante toda a vida. A mulher vermelha caminhou três vezes em volta do fogo, rezando uma vez na língua de Asshai, outra em Alto Valiriano, e mais outra no Idioma Comum. Davos só compreendeu a última oração, - R’hllor, venha até nós na escuridão - evocou a mulher. - Senhor da Luz, oferecemos-lhe testes falsos deuses, estes sete que são um, e esse um é o inimigo. Receba-os e lance a sua luz sobre nós a noite é escura e cheia de terrores. A Rainha Selyse repetiu as palavras num eco. A seu lado, Stannis observava impassível, com o queixo duro como pedra sob a sombra negra-azulada da sua barba rente. Tinha se vestido mais ricamente do que de costume, como se fosse ao septo. O septo de Pedra do Dragão erguia-se no local onde Aegon, o Conquistador, se ajoelhara para rezar na noite antes de se lançar ao mar. Isso não salvou o templo dos homens da rainha. Tinham virado os altares, derrubado as estátuas e estraçalhado os vitrais com martelos de guerra, O Septão Barre só conseguiu amaldiçoá-los, mas Sor Hubard Rambton levou os três filhos ao septo para defender seus deuses. Os Rambton tinham matado quatro dos homens da rainha antes os demais os subjugarem. Depois daquilo, Guncer Sunglass, o mais conciliador e mais devoto dos senhores, disse a Stannis que já não podia apoiar sua pretensão. Agora, dividia uma cela sufocante com o septão e os dois filhos sobreviventes de Sor Hubard. Os outros senhores não demoraram a aprender a lição. 99 Os deuses nunca tinham significado muito para Davos, o contrabandista, embora, tal como a maioria dos homens, fizesse oferendas ao Guerreiro, antes da batalha, ao Ferreiro, quando lançava um navio ao mar, e à Mãe, sempre que sua mulher engravidava. Sentiu-se mal enquanto os via arder, e não apenas por causa da fumaça. Meistre Cressen teria impedido isso. O que as fofocas diziam era que o velho desafiara o Senhor da Luz e tinha sido abatido pela sua falta de fé. Davos conhecia a verdade. Tinha visto o meistre derramar alguma coisa na taça de vinho. Veneno. O que mais poderia ser? Bebeu uma taça de morte para libertar Stannis de Melisandre, mas de alguma forma o deus dela a protegeu. Teria matado com prazer a mulher vermelha por aquilo, mas que chance teria onde um meistre da Cidadela falhara? Era apenas um contrabandista que tinha subido na vida, Davos da Baixada das Pulgas, o Cavaleiro das Cebolas. Os deuses que ardiam brilhavam com uma luz bonita, envoltos nas suas vestes de chamas em movimento, vermelhas, laranjas e amarelas. O Septão Barre uma vez lhe contara como eles tinham sido esculpidos dos mastros dos navios que tinham trazido os primeiros Targaryen de Valíria. Ao longo dos séculos, tinham sido pintados e repintados, tinham sido dourados, prateados e cravejados de jóias. - Sua beleza vai torná-los mais agradáveis a R'hllor - tinha afirmado Melisandre quando disse a Stannis para derrubá-los e arrastá-los para fora dos portões do castelo. A Donzela estava atravessada sobre o Guerreiro, com os braços abertos, como que para abraçá-lo. A Mãe parecia quase tremer enquanto as chamas vinham lamber seu rosto. Uma espada tinha sido cravada no seu coração, e seu punho de couro estava vivo de chamas. O Pai estava embaixo, tinha sido o primeiro a cair. Davos viu a mão do Estranho retorcer-se e se enrolar enquanto os dedos enegreciam e se desprendiam, um por um, reduzidos a outros tantos pedaços de carvão em brasa. Ali perto, Lorde Celtigar teve um ataque de tosse e cobriu a cara enrugada com um lenço de linho bordado com caranguejos vermelhos. Os homens de Myr trocavam piadas enquanto desfrutavam do calor do fogo, mas o jovem Lorde Bar Emmon ficara num tom sujo de cinza, e Lorde Velaryon observava o rei, e não o incêndio. Davos teria dado muito para saber o que ele estaria pensando, mas um homem como Velaryon nunca lhe faria confidências. O Senhor das Marés era do sangue da antiga Valíria, e sua Casa havia fornecido noivas aos príncipes Targaryen três vezes; Davos Seaworth fedia a peixe e cebolas. Com os outros fidalgos era a mesma coisa. Não podia confiar em nenhum deles, nem o incluiriam algum dia nas suas reuniões privadas. Também menosprezavam seus filhos. Mas os meus netos lutarão com os deles em justas, e um dia o sangue deles poderá desposar o meu. Um dia, meu pequeno navio negro voará tão alto como o cavalo-marinho de Velaryon ou os caranguejos vermelhos de Celtigar. Isso, se Stannis conquistar seu trono. Se perder... Tudo o que sou devo a ele. Stannis armara-o cavaleiro. Dera-lhe um lugar de honra à sua mesa, uma galé de guerra, no lugar de um esquife de contrabandista, para navegar. Dale e Allard eram também capitães de galés, Maric era mestre dos remadores na Fúria, Matthos servia o pai na Betha Negra, e o rei tinha escolhido Devan como escudeiro real. Um dia seria armado cavaleiro, assim como os dois rapazes mais novos. Marya era senhora de uma pequena fortaleza em Cabo da Fúria, com criados que a chamavam sinhá, e Davos podia caçar veados vermelhos nos seus próprios bosques. Recebera tudo aquilo de Stannis Baratheon pelo preço de algumas falanges. O que me fez foi justo. Tinha zombado das leis do rei a vida inteira. Ele ganhou a minha lealdade. Davos tocou a pequena bolsa pendurada na tira de couro em seu pescoço. Os dedos eram a sua sorte, e agora precisava de sorte. Tal como todos nós. E, acima de todos, Lorde Stannis. 100 Chamas pálidas lambiam o céu cinzento. Uma fumaça preta subia, retorcendo-se e enrolando-se. Quando o vento a empurrava contra eles, os homens piscavam, lacrimejavam e esfregavam os olhos. Allard virou o rosto, tossindo e praguejando. Um gostinho do que está por vir, pensou Davos. Muitas outras coisas arderiam antes que aquela guerra chegasse ao fim. Melisandre estava toda vestida de cetim escarlate e veludo cor de sangue, com os olhos tão vermelhos como o grande rubi que cintilava na sua garganta, como se estivesse em chamas. - Nos livros antigos de Asshai está escrito que chegará um dia, após um longo Verão, em que as estrelas sangrarão e o bafo frio da escuridão cairá, pesado, sobre o mundo. Nessa hora de terror um guerreiro retirará do fogo uma espada em chamas. E essa espada será a Luminífera, a Espada Vermelha dos Heróis, e aquele que a pegar será Azor Ahai renascido, e a escuridão fugirá perante ele - e levantou a voz, para que fosse ouvida pela tropa ali reunida. - Azor Ahai, o amado de R'hllor! O Guerreiro da Luz, o Filho do Fogo! Avance, a sua espada o espera! Avance, e tome-a em sua mão! Stannis Baratheon avançou como um soldado marchando para a batalha. Seus escudeiros se aproximavam para servi-lo. Davos observou seu filho Devan enfiando a mão direita do rei numa longa luva almofadada. O rapaz usava um gibão creme com um coração em chamas cosido no peito. Byran Farrin, vestido de um modo semelhante, atava uma rígida capa de couro em torno do pescoço de Sua Graça. Atrás dele, Davos ouviu um tênue tinir de sinetas. - Debaixo do mar, a fumaça sobe em bolhas e as chamas ardem verdes, azuis e pretas – cantou em algum lugar o CaraMalhada. - Eu sei, eu sei, ei, ei, ei. O rei mergulhou no fogo de dentes cerrados, segurando o manto de couro à sua frente para manter as chamas afastadas. Dirigiu-se diretamente à Mãe, agarrou a espada com a mão enluvada e a libertou da madeira ardente com um único puxão forte. Então recuou, com a espada bem erguida e chamas verde-jade a rodopiar em volta do aço cor de cereja. Guardas correram na sua direção a fim de sacudir as fagulhas que se prendiam à roupa do rei, - Uma espada de fogo! - gritou a Rainha Selyse. Sor Axell Florent e os outros homens da rainha acompanharam-na no grito. - Uma espada de fogo! Ela arde! Ela arde! Uma espada de fogo! Melisandre ergueu as mãos sobre a cabeça. - Contemplem! Um sinal foi prometido, e agora um sinal é visto! Contemplem a Luminífera! Azor Ahai regressou! Deem vivas ao Guerreiro da Luz! Deem vivas ao Filho do Fogo! Uma onda irregular de gritos respondeu no momento em que a luva de Stannis começava a ficar incandescente. Praguejando, o rei enterrou a ponta da espada na terra úmida e apagou as chamas com pancadas na perna. - Senhor, lance sobre nós a sua luz! - Melisandre gritou. - Pois a noite é escura e cheia de terrores - responderam Selyse e seus homens. Deveria eu dizer as palavras também?, perguntou-se Davos. Deverei tanto assim a Stannis? Será este deus de fogo realmente o seu? Seus dedos encurtados contorceram-se. Stannis descalçou a luva e a deixou cair ao chão. Os deuses na pira já quase não podiam ser reconhecidos, A cabeça do Ferreiro desprendeu-se, levantando uma nuvem de cinzas e fagulhas. Melisandre cantou na língua de Asshai, com a voz subindo e descendo como as marés do mar. Scannis soltou-se da sua chamuscada capa de couro e escutou em silêncio. Espetada no chão, a Luminífera ainda brilhava, rubra de calor, mas as chamas presas à espada minguavam e morriam. Quando a canção terminou, dos deuses só restava madeira carbonizada, e a paciência do rei tinha se esgotado. Pegou a rainha pelo braço e a levou de volta a Pedra do Dragão, deixando Luminífera onde estava. A mulher vermelha ficou um momento para trás, a fim de vigiar Devan 101 e Bryen Farrung, que se ajoelharam e enrolaram a espada queimada e enegrecida no manto de couro do rei. A Espada Vermelha dos Heróis parece uma bela porcaria, Davos pensou.
Alguns dos senhores ficaram conversando em voz baixa fora do alcance do vento que soprava da fogueira. Todos caíram em silêncio quando viram que Davos os olhava. Se Stannis cair, vão me puxar para baixo num instante. Também não fazia parte do grupo dos homens da rainha, aquele grupo de cavaleiros ambiciosos e fidalgos menores que tinham se entregado àquele Senhor da Luz e ganhado assim o favor e a proteção da Senhora... não, Rainha, lembra-se?.,. Selyse. O fogo tinha começado a morrer quando Melisandre e os escudeiros se afastaram com a preciosa espada. Davos e os filhos juntaram-se à multidão que se dirigia à costa e aos navios que os aguardavam. - Devan portou-se bem - ele disse enquanto caminhavam. - Sim, pegou a luva sem deixá-la cair - Dale confirmou. Allard concordou com um meneio. - Aquele símbolo no gibão de Devan, o coração em chamas, o que era aquilo? O brasão Baratheon é um veado coroado. - Um senhor pode escolher mais do que um símbolo - Davos respondeu. Dale sorriu. - Um navio negro e uma cebola, pai? Allard chutou uma pedra. - Que os Outros levem a nossa cebola... e aquele coração em chamas. Foi coisa feia queimar os Sete. - Quando foi que se tornou tão devoto? - perguntou Davos. - O que sabe um filho de contrabandista das coisas dos deuses? - Eu sou filho de um cavaleiro, pai. Se o senhor não se recorda, por que eles o fariam? - E filho de um cavaleiro, mas não é um cavaleiro - disse Davos. - E nem será nunca, caso se meta em assuntos que não lhe dizem respeito, Stannis é nosso rei de direito, não nos compete questioná-lo. Nós manobramos os seus navios e fazemos o que ordena. Só isso. - Quanto a isso, pai - Dale falou - , não gostei daqueles barris de água que me deram para o Espectro. Pinho verde. A água vai estragar em qualquer viagem que se faça. - Eu recebi o mesmo para o Senhora Marya - retrucou Allard, - Os homens da rainha apoderaram-se de toda a madeira seca. - Falarei sobre isso com o rei - Davos prometeu. Era melhor que viesse dele do que de Allard, Os filhos eram bons guerreiros e melhores marinheiros, mas não sabiam como falar aos senhores. São malnascidos, como eu, mas não gostam de se lembrar disso. Quando olham para o nosso estandarte, tudo o que veem é um grande navio negro voando com o vento. Fecham os olhos à cebola. O porto estava mais cheio do que Davos jamais o vira. Todas as docas lotadas de marinheiros carregando provisões, e todas as estalagens cheias de soldados jogando dados, bebendo ou em busca de uma prostituta... Uma busca vã, pois Stannis não autorizava prostitutas na sua ilha. Navios alinhavam-se na margem; galés de guerra e barcos de pesca, robustos galeões e cocas de fundo chato. Os melhores ancoradouros tinham sido ocupados pelos maiores navios: o navio almirante de Stannis, Fúria, balançava entre o Lorde Steffon e o Veado do Mar; o navio de casco prateado de Lorde Velaryon e seus três irmãos, Orgulho de Derivamarca; o ornamentado Garra Vermelha, de Lorde Celtigar; o pesado Peixe-Espada, com sua longa proa de ferro. Ancorada ao largo da costa, via-se a grande Valiriana, de Salladhor Saan, entre os cascos listrados de duas dúzias de galés lisenas menores. 102 Uma pequena e velha estalagem ficava na extremidade do cais de pedra, onde o Betha Negra, o Espectroe o Senhora Marya partilhavam a área de ancoragem com meia dúzia de outras galés de cem remos ou menos. Davos tinha sede. Despediu-se dos filhos e voltou para a estalagem. Junto à porta acocorava-se uma gárgula que chegava à sua cintura, tão desgastada pela chuva e o sal que seus traços tinham sido praticamente obliterados. Mas ela e Davos eram velhos amigos. Deu uma palmadinha na cabeça de pedra ao entrar. - Sorte - ele murmurou. Na zona mais distante da ruidosa sala comum, Salladhor Saan estava em uma mesa, comendo uvas de uma tigela de madeira. Quando viu Davos, chamou-o com um gesto. - Sor cavaleiro, venha comer comigo. Coma uma uva. Coma duas. Estão maravilhosamente doces. O liseno era um homem lisonjeiro e sorridente, cuja ostentação era proverbial dos dois lados do mar estreito. Hoje, trajava um cintilante pano de prata com mangas pendentes tão longas, que as extremidades se amontoavam no chão. Os botões eram macacos esculpidos em jade, e no topo dois seus finos caracóis brancos empoleirava-se uma alegre boina verde decorada com um leque de penas de pavão. Davos abriu caminho por entre as mesas até uma cadeira. Nos dias anteriores à sua nomeação como cavaleiro, trouxera freqüentemente cargas de Salladhor Saan. O próprio liseno era contrabandista, bem como comerciante, banqueiro, notório pirata e o autoproclamado Príncipe do Mar Estreito. Quando um pirata enriquece o suficiente, fazem dele um príncipe. Tinha sido Davos quem fizera a viagem até Lys, a fim de recrutar o velho tratante para a causa de Lorde Stannis. - Não viu os deuses arderem, senhor? - ele perguntou. - Os sacerdotes vermelhos têm um grande templo em Lys. Andam sempre queimando isso e aquilo, chamando o seu R'hllor, Aborrecem-me com as suas fogueiras. Em breve, aborrecerão também o Rei Stannis, espera-se - não parecia nada preocupado em ser ouvido de outras mesas, comendo as uvas e empurrando os caroços para os lábios, jogando-os fora com um dedo. -Minha Ave de Mil Cores chegou ontem, meu bom sor. Não é um navio de guerra, mas mercante, e aportou em Porto Real. Tem certeza de que não quer uma uva? Dizem que as crianças passam fome na cidade - o homem balançou as uvas na frente de Davos e sorriu. - É de cerveja que preciso, e de notícias. - Os homens de Westeros estão sempre com pressa - lamentou-se Salladhor Saan. - De que serve, pergunto-lhe? Aquele que se apressa na vida, apressa-se a chegar à sepultura - arrotou. - Senhor de Rochedo Casterly mandou seu anão tratar de Porto Real. Talvez tenha esperança de que a cara feia do homem assuste os atacantes, hã? Ou que morramos de rir quando o Duende der piruetas nas ameias, quem sabe? O anão botou o troglodita que comandava os homens de mantos dourados para correr e pôs no seu lugar um cavaleiro com uma mão de ferro - tirou uma uva do cacho e apertou-a entre o polegar e o indicador até fazer a pele estourar, O sumo correu entre seus dedos.
Uma criada abriu caminho até eles, dando tapas nas mãos que a apalpavam durante o percurso. Davos encomendou uma caneca de cerveja, virou-se de volta para Saan e disse: - Como estão as defesas da cidade? O outro encolheu os ombros: - As muralhas são altas e fortes, mas quem irá guarnecê-las? Andam construindo balistas e catapultas de fogo, ah, claro, mas os homens de mantos dourados são poucos demais, verdes demais, e não há outros, Um ataque rápido, como um falcão caindo sobre uma galinha, e a grande 103 cidade será nossa. Dê-nos vento para encher nossas velas, e seu rei poderá sentar no seu Trono de Ferro amanhã ao cair da noite. Poderíamos vestir o anão de quadriculado e espetar suas bochechinhas com as pontas das nossas lanças para obrigá-lo a dançar para nós, e talvez seu piedoso rei possa me presentear com a bela Rainha Cersei para aquecer a minha cama por uma noite. Há tempo demais que estou longe das minhas esposas, e sempre a seu serviço. - Pirata - disse Davos. - Você não tem esposas, só concubinas, e foi bem pago por todos os dias e por todos os navios. - Só em promessas - disse Salladhor Saan com ar fúnebre. - Meu bom senhor, é ouro que desejo, não palavras em papéis - enfiou uma uva na boca. - Terá o seu ouro quando capturarmos o tesouro em Porto Real. Não há nos Sete Reinos homem mais honrado do que Stannis Baratheon. Ele manterá sua promessa. Mesmo enquanto falava, Davos pensava: Este mundo está para lá de toda a esperança quando contrabandistas de baixo nascimento têm de garantir a honra de reis. - Foi o que ele disse e voltou a dizer. E o que eu digo é: Vamos em frente. Nem estas uvas podem estar mais maduras do que aquela cidade, velho amigo. A criada voltou com a cerveja, e Davos lhe deu uma moeda de cobre. - Talvez conseguíssemos capturar Porto Real, como diz - Davos continuou, enquanto erguia a caneca - , mas por quanto tempo conservaríamos a cidade? Sabe-se que Tywin Lannister está em Harrenhal com uma grande tropa, e Lorde Renly... - Ah, sim, o jovem irmão - Salladhor Saan o interrompeu. - Essa parte não é tão boa, meu amigo. Rei Renly se apressa. Não, aqui ele é Lorde Renly, as minhas desculpas. Com tantos reis, minha língua se cansa da palavra. O irmão Renly deixou Jardim de Cima com a sua bela e jovem rainha, os seus senhores floridos e reluzentes cavaleiros, e uma poderosa tropa de infantaria. Marcha pela sua estrada das rosas em direção à mesmíssima cidade de que falamos. - Ele leva a noivai O outro encolheu os ombros. - Não me disse por quê. Talvez esteja relutante em se separar, nem que seja por uma noite, da quente toca que ela tem entre as pernas. Ou talvez tenha uma absoluta certeza de vitória. - O rei deve ser informado. - Já tratei disso, meu bom sor. Embora Sua Graça franza tanto o cenho sempre que me vê, tremo de ir à sua presença. Acha que ele gostaria mais de mim se eu usasse uma camisa de crina e nunca sorrisse? Bem, não o farei. Sou um homem honesto, tem de me agüentar vestido de seda e samito. Caso contrário, levarei meus navios para onde me apreciem mais. Aquela espada não era a Luminífera, meu amigo, A súbita mudança de assunto deixou Davos pouco à vontade. - Espada? - Uma espada arrancada do fogo, sim. Os homens contam-me coisas, é o meu sorriso agradável. Como irá uma espada queimada servir Stannis? - Uma espada ardente - Davos corrigiu. - Queimada - Salladhor Saan o corrigiu - , e fique feliz por isso, meu amigo. Conhece a lenda sobre a forja de Luminífera? Vou contá-la. Era num tempo em que a escuridão caíra, pesada, sobre o mundo. Para enfrentá-la, o herói tinha de ter uma lâmina de herói, ah, como nenhuma que já tivesse existido. E assim, durante trinta dias e trinta noites, Azor Ahai trabalhou sem dormir no templo, forjando uma lâmina nas fogueiras sagradas. Aquecer, martelar e dobrar, aquecer, martelar e dobrar, ah, sim, até a espada ficar pronta. Mas, quando a mergulhou na água para 104 temperar o aço, ela se partiu em pedaços. Como era um herói, não era do seu feitio desistir e ir atrás de excelentes uvas como estas, e, portanto, recomeçou. Da segunda vez levou cinqüenta dias e cinquenta noites, e essa espada parecia ainda melhor do que a primeira. Azor Ahai capturou um leão, para temperar a lâmina mergulhando-a no coração vermelho da fera. Mas mais uma vez o aço se estilhaçou e se dividiu. Grande foi sua aflição e grande foi seu desgosto, pois sabia o que tinha de fazer. Trabalhou na terceira lâmina durante cem dias e cem noites e, enquanto ela brilhava, incandescente, nas fogueiras sagradas, chamou a mulher. "Nissa Nissa" disse-lhe, pois era esse o seu nome,"Desnude o peito, e fique sabendo que a amo mais do que a qualquer outra coisa no mundo". Ela obedeceu, não faço idéia do porquê, e Azor Ahai enfiou a espada fumegante no meu coração vivo. Diz-se que o grito de angústia e êxtase que ela soltou abriu uma fenda no rosto da lua, mas seu sangue, sua alma, sua força e sua coragem penetraram no aço. Esta é a lenda sobre a forja da Luminífera, a Espada Vermelha dos Heróis. Compreende agora o que quero dizer? Fiquue feliz por ter sido apenas uma espada queimada que Sua Graça tirou do fogo. Luz demais pode machucar os olhos, meu amigo, e o fogo queima - Salladhor Saan comeu a última uva e estalou os lábios. - Quando pensa que o rei nos dará a ordem para zarpar, meu bom sor? - Em breve, penso - disse Davos - , se o deus dele quiser. - O deus dele, sor amigo? Não o seu? Onde está o deus de Sor Davos Seaworth, cavaleiro do navio de cebola? Davos bebeu um gole de cerveja para se dar um momento. A estalagem está lotada, e você não é Salladhor Saan, lembrou a si mesmo. Tenha cuidado com o que responde. - O meu deus é o Rei Stannis. Foi ele que me fez e me abençoou com a sua confiança. - Lembrarei disso - Salladhor Saan pôs-se em pé. - As minhas desculpas. Estas uvas deram-me fome, e o jantar aguarda na minha Valiriana. Picadinho de carneiro com pimenta, e gaivota assada recheada com cogumelos, funcho e cebola. Em breve comeremos juntos em Porto Real, sim? Vamos nos banquetear na Fortaleza Vermelha, enquanto o anão nos canta uma  cantiga alergre- Quando falar com o Rei Stannis, mencione, por favor, que me deverá mais trinta mil dragões quando a lua ficar negra. Ele devia ter me dado aqueles deuses. Eram belos demais para queimar e podiam ter obtido um bom preço em Pentos ou Myr, Bem, se me der a Rainha Cersei por uma noite, vou perdoá-lo. O liseno deu uma palmada nas costas de Davos e saiu da estalagem como se fosse seu dono. Sor Davos Seaworth ficou debruçado bastante tempo sobre sua caneca, pensando. Um ano antes, estivera com Stannis em Porto Real, quando o Rei Robert organizou um torneio no dia do nome do Príncipe Joffrey. Lembrava-se do sacerdote vermelho Thoros de Myr e da espada flamejante que ele brandiu no corpo a corpo. O homem rendeu um espetáculo colorido, com as vestes vermelhas esvoaçando, enquanto a espada estremecia com chamas verde-claras. Mas todos sabiam que não havia ali verdadeira magia, e no fim o fogo esgotou-se, e Bronze Yohn Royce abriu sua cabeça com uma maça vulgar. Agora, uma verdadeira espada de fogo, isso seria uma maravilha digna de se ver. Mas a um custo tão alto... Quando pensava em Nissa Nissa, era sua Marya que imaginava, uma mulher rechonchuda e de boa índole, com seios caídos e um sorriso amável, a melhor mulher do mundo. Tentou se imaginar enfiando uma espada nela, e estremeceu. Não sou feito do material de que se fazem os herós, decidiu. Se esse era o preço de uma espada mágica, era mais do que ele queria pagar. Davos terminou sua cerveja, empurrou a caneca para longe e abandonou a estalagem. Ao sair, deu uma palmadinha na cabeça da gárgula e murmurou: - Sorte. 105 Todos iriam precisar dela. Já era noite bem avançada quando Devan chegou a Bertba Negra, conduzindo um palafrém branco como a neve. - Senhor meu pai - anunciou - , Sua Graça ordena que compareça perante ele na Sala da Mesa Pintada. Deve montar o cavalo e ir de imediato. Era bom ver Devan com um aspecto tão magnífico nas suas vestes de escudeiro, mas a convocatória deixou Davos apreensivo. Ordenará que zarpemos?, Davos perguntou-se. Salladhor Saan não era o único capitão que sentia que Porto Real estava maduro para um ataque, mas um contrabandista tem de aprender a ter paciência. Não temos nenhuma esperança de vitória. Disse isso aoMeistre Cressen no dia em que voltei a Pedra do Dragão, e nada mudou. Somos poucos demais, e os inimigos são muitos. Se mergulharmos os remos, morreremos. Mesmo assim, subiu no cavalo. Quando Davos chegou ao Tambor de Pedra, uma dúzia de cavaleiros nobres e grandes vassalos acabavam de sair. Os Lordes Celtigar e Velaryon deram-lhe, cada um, apenas um aceno seco enquanto os outros o ignoraram por completo, mas Sor Axell Florent parou para trocar algumas palavras. O tio da rainha Selyse era um autêntico barril, com braços grossos e pernas arqueadas. Possuía as orelhas proeminentes de um Florent, ainda maiores do que as da sobrinha. Os pelos grossos que brotavam das dele não o impediam de saber da maior parte das coisas que se passavam no castelo. Sor Axell servira durante dez anos como castelão em Pedra do Dragão, enquanto Stannis participava do conselho de Robert em Porto Real, mas nos últimos tempos tinha se tornado o mais destacado dos homens da rainha. - Sor Davos, é bom vê-lo, como sempre - o homem disse. - Igualmente, senhor. - Também reparei em você hoje de manhã. Os falsos deuses arderam com uma luz feliz, não é verdade? - Arderam brilhantemente - Davos não confiava naquele homem, apesar de toda sua cortesia. A Casa Florent tinha se declarado partidária de Renly. - A Senhora Melisandre disse-nos que às vezes Rhllor permite que seus servos fiéis vislumbrem o futuro nas chamas. Pareceu-me, enquanto observava o fogo de manhã, que estava olhando para uma dúzia de belas dançarinas, donzelas vestidas de seda amarela que rodopiavam e redemoinhavam perante um grande rei. Penso que foi uma verdadeira visão, sor. Um vislumbre da glória que espera Sua Graça depois de tomarmos Porto Real e o trono, que é seu de direito. Stannis não gosta nada de tais danças, pensou Davos, mas não se atreveu a ofender o tio da rainha, - Eu vi apenas fogo - ele respondeu - , mas a fumaça estava deixando meus olhos com lágrimas, Perdoe-me, senhor, o rei aguarda - passou por Sor Axell, perguntando-se por que ele teria lhe dado trela. Ele é um homem da rainha, e eu sou do rei. Stannis estava sentado à sua Mesa Pintada com o Meistre Pylos espreitando por sobre seu ombro, e uma pilha desordenada de papéis à frente dos dois. - Sor - disse o rei quando Davos entrou - , venha dar uma olhada nesta carta. Obedientemente, Davos escolheu um papel ao acaso. - Parece bastante bonita, Vossa Graça, mas temo que não saiba ler as palavras - Davos podia decifrar mapas tão bem como qualquer outro, mas as cartas e os outros escritos estavam além do seu poder. Mas o meu Devan aprendeu as letras, e os jovens Steffon e Stannis também. - Esqueci - um sulco de irritação apareceu entre as sobrancelhas do rei. - Pylos, leia. 106 - Vossa Graça - o meistre pegou um dos pergaminhos e pigarreou. - Todos sabem que sou filho legítimo de Steffon Baratheon, Senhor de Ponta Tempestade, e da senhora sua esposa, Cassana, da Casa Estermnont. Declaro pela honra da minha Casa que meu querido irmão Robert, nosso falecido rei, não deixou legítima descendência do seu sangue, sendo o garoto Joffrey, o garoto Tommen e a moça Myrcella abominações nascidas de incesto entre Cersei Lannister e seu irmão Jaime, o Regicida. Pelo direito do nascimento e do sangue, reclamo neste dia o Trono de Ferro dos Sete Reinos de Westeros. Que todos os homens fiéis declarem a sua lealdade. Feito à Luz do Senhor, com a assinatura e o selo de Stannis da Casa Baratheon, o Primeiro do Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, e Senhor dos Sete Reinos - o pergaminho fez um suave ruído quando Pylos o pousou sobre a mesa. - Escreva Sor Jaime, o Regicida, daqui em diante - disse Stannis, franzindo a sobrancelha, - Seja o que for além disso, o homem ainda é um cavaleiro, E também não sei se devíamos chamar Robert de meu querido irmão. Não me queria mais do que era forçado a querer, nem eu a ele. - Uma cortesia inofensiva, Vossa Graça - Pylos observou. - Uma mentira. Retire-a - Stannis virou-se para Davos. - O meistre disse-me que temos à disposição cento e dezessete corvos. Pretendo usar todos. Cento e dezessete corvos levarão cento e dezesste cópias da minha carta a todos os cantos do reino, da Arvore à Muralha. Talvez uma centena vença as tempestades, os falcões e as flechas. Se assim for, uma centena de  meistres lerão as minhas palavras a outros tantos senhores em outros tantos aposentos privados e quartos de Dormir... E então, o mais provável é que as cartas sejam entregues às chamas e os lábios se comprometam com o silêncio. Esses grandes senhores amam Joffrey, Renly ou Robb Stark. Eu sou o seu legítimo rei, mas vão me recusar se puderem. Por isso preciso de você. - Estou às suas ordens, meu rei. Como sempre. Stannis acenou com a cabeça. - Desejo que leve o Bertha Negra para o norte, para Vila Gaivotas, os Dedos, as Três Irmãs, até Porto Branco. Seu filho Dale irá para o sul no Espectro, para lá de Cabo da Fúria e do Braço Partido, ao longo de toda a costa de Dorne até a Arvore. Cada um de vocês levará um baú cheio De cartas e entregará uma em cada porto, castro e aldeia de pescadores. Pregue-as nas portas dos septos e estalagens para que cada homem que saiba ler possa fazê-lo. Davos respondeu: - Serão bem poucos. - Sor Davos fala a verdade, Vossa Graça - confirmou Meistre Pylos. - Seria melhor que as cartas fossem lidas em voz alta. - Melhor, mas mais perigoso - Stannis retrucou. - Estas palavras não serão bem recebidas, - Dê-me cavaleiros para a leitura - Davos pediu, - Isso terá mais peso do que qualquer coisa que eu possa dizer. Stannis pareceu contente com a idéia. - Sim, posso lhe dar esses homens. Tenho uma centena de cavaleiros que preferem ler a lutar. Seja direto onde puder, e furtivo onde for necessário. Use todos os truques de contrabandista que conhece, as velas negras, as enseadas escondidas, o que for preciso, Se faltarem cartas, capture alguns septões e faça-os copiar mais. Pretendo usar também seu segundo filho. Ele atravessará o Mar Estreito no Senhora Marya, até Bravos e as outras Cidades Livres, para entregar outras cartas aos homens que lá governam. O mundo passará a saber da minha pretensão, e da infâmia de Cersei. Pode lhes contar, pensou Davos, mas acreditarão? Lançou um relance pensativo a Meistre Pylos. O rei reparou no olhar. 107 - Meistre, talvez devesse começar sua escrita. Necessitaremos de muitas cartas, e em breve. - Como desejar - Pylos fez uma reverência e se retirou. O rei esperou até ele sair, para só então dizer: - O que é que não queria dizer na frente do meu meistre, Davos? - Meu suserano, Pylos é bastante agradável, mas não consigo olhar para a corrente que ele tem em volta do pescoço sem sentir luto por Meistre Cressen. - E culpa dele que o velho tenha morrido? - Stannis deu uma olhada para o fogo. – Nunca quis Cressen naquele banquete. Sim, ele tinha me irritado, tinha me dado maus conselhos, mas não o queria morto. Tive esperança de que lhe pudessem ser concedidos alguns anos de tranqüilidade e conforto. Merecia pelo menos isso, mas... - rangeu os dentes - morreu. E Pylos serve-me com competência. - Pylos é o de menos. A carta... Pergunto-me o que seus senhores pensaram dela. Stannis fungou. - Celtigar declarou-a admirável. Se lhe mostrasse o conteúdo da minha latrina, iria declará-lo igualmente admirável. Os outros sacudiram as cabeças para cima e para baixo como um bando de gansos, todos, menos Velaryon, que disse que o assunto seria decidido com aço, e não com palavras num pergaminho. Como se eu nunca tivesse suspeitado de tal coisa, Que os Outros levem os meus senhores, Quero ouvir a sua opinião. - Suas palavras foram diretas e fortes. - E verdadeiras. - E verdadeiras. Mas não tem provas. Desse incesto. Não tem mais do que tinha há um ano. - Há uma espécie de prova em Ponta Tempestade. O bastardo de Robert. O que ele gerou na minha noite de núpcias, exatamente na cama que tinham preparado para mim e para a minha noiva. Delena era uma Florent, e uma donzela quando ele a tomou, por isso Robert reconheceu o bebê. Chamam-no Edric Storm. Dizem que é a imagem e semelhança do meu irmão. Se os homens o vissem e depois voltassem a olhar para Joffrey e Tommen, não teriam como duvidar, penso eu. - Mas como os homens poderão vê-lo se ele está em Ponta Tempestade? Stannis tamborilou na Mesa Pintada com os dedos. - Ê uma dificuldade. Uma de muitas - ergueu os olhos. - Tem mais a dizer a respeito da carta. Bem, prossiga com isso. Não o fiz cavaleiro para que aprendesse a proferir cortesias vazias. Para isso tenho meus senhores. Diga o que quer dizer, Davos. Davos fez uma reverência: - Há uma frase no fim. Como era? Feito à Luz do Senhor... - Sim - o maxilar do rei estava apertado. - Seu povo não gostará dessas palavras. - Assim como você? - Stannis perguntou rispidamente. - Se, em vez delas, dissesse: Feito à vista dos deuses e dos homens, ou Pela graça dos deuses, antigos e modernos... - Tornou-se agora devoto, contrabandista? - Essa era a pergunta que eu queria fazer ao senhor, meu suserano. - Ah, era? Parece que não gosta mais do meu novo deus do que do meu novo meistre. - Não conheço este Senhor da Luz - Davos admitiu - , mas conhecia os deuses que queimamos hoje de manhã. O Ferreiro manteve meus navios a salvo, ao passo que a Mãe me deu sete filhos fortes. 108 - Sua esposa lhe deu sete filhos fortes. Reza para ela? O que queimamos hoje de manhã foi madeira. - Pode ser que sim - Davos respondeu mas, quando eu era rapaz no Fundo das Pulgas e andava pedindo moedas de cobre, às vezes os septões alimentavam-me. - Quem o alimenta agora sou eu. - O senhor me deu um lugar de honra à sua mesa. E, em troca, eu lhe dou a verdade. Seu povo não o amará se tirar dele os deuses que sempre adorou, e lhe der um que tem até um nome que soa estranho na língua que falam. Stannis ficou em pé bruscamente.
- R'hllor. Por que será assim tão difícil? Eles não me amarão, você diz? Como posso perder algo que nunca possuí? - deslocou-se até a janela sul e ficou olhando o mar iluminado pela lua. — _ Deixei de acreditar em deuses no dia em que vi o Orgulho do Vento quebrar-se do outro lado da baía. Jurei que quaisquer deuses que fossem monstruosos a ponto de afogar minha mãe e meu pai nunca teriam a minha adoração. Em Porto Real, o Alto Septão gostava de tagarelar comigo sobre o modo como toda justiça e bondade emanavam dos Sete, mas tudo o que sempre vi foi que ambas eram feitas pelos homens. - Se não acredita em deuses... - ... por que me perturbar com este novo? - Stannis o interrompeu. - Perguntei-me a mesma coisa. Pouco sei sobre deuses, e me preocupo com eles ainda menos, mas a sacerdotisa vermelha tem poder. Sim, mas que tipo de poder? - Cressen tinha sabedoria. - Confiei na sabedoria dele e nas suas artimanhas, e o que foi que me trouxeram, contrabandista? Os senhores da tempestade mandaram-me embora. Fui até eles como pedinte e riram de mim Pois bem, não haverá mais pedidos, e também não haverá mais risos. O Trono de Ferro legitimamente meu. Mas como vou obtê-lo? Há quatro reis no reino, e três deles têm mais homens e ouro do que eu. Tenho navios... e tenho ela. A mulher vermelha. Metade dos meus cavaleiros tem medo até de dizer seu nome, sabia? Mesmo se não puder fazer mais nada, uma feiticieira que é capaz de inspirar tal terror em adultos não pode ser desprezada. Um homem assustado é um homem vencido. E talvez possa fazer mais. Pretendo verificar. Quando era rapaz, encontrei um açor ferido e tratei dele até que recuperasse a saúde. Chamei-o Asaltiva. Costumava se empoleirar no meu ombro, esvoaçar de sala em sala atrás de mim e comer na minha mão, mas não voava alto. Uma vez ou outra levei-o à caça, mas nunca subiu mais alto do que as copas das arvores. Robert chamou-o Asafraca. Ele tinha um falcão-gerifalte chamado Trovão que nunca errava um ataque. Um dia, nosso tio-avô, Sor Harbert, disse-me para experimentar outra ave. Disse que estava fazendo papel de idiota com Asaltiva, e tinha razão. Stannis Baratheon virou as costas para a janela e para os fantasmas que se deslocavam pelo mardo sul. - Os Sete nunca me trouxeram nem um pardal. E tempo de experimentar outro falcão, Davos. Um falcão vermelho. 109 Theon Não havia ancoradouro seguro em Pyke, mas Theon Greyjoy queria ver do mar o castelo do pai, para voltar a observá-lo como o vira pela última vez, dez anos antes, quando a galé de guerra de Robert Baratheon o levara da ilha para se tornar protegido de Eddard Stark. Naquele dia, tinha permanecido junto à amurada, escutando o bater dos remos e o ressoar do tambor do mestre enquanto via Pyke se tornar cada vez menor com a distância. Agora queria vê-lo crescer, erguer-se do mar à sua frente. Obediente aos seus desejos, o Myraham abriu caminho para lá do cabo com as velas batendo, com o capitão amaldiçoando o vento, a sua tripulação e as loucuras dos fidalgos bem-nascidos. Theon puxou o capuz do manto, protegendo-se dos borrifos, e procurou a sua casa. O litoral era todo feito de rochedos aguçados e falésias carrancudas, e o castelo parecia ser um só com as torres, muralhas e pontes esculpidas da mesma rocha cinza-escuro, umedecido pelas mesmas ondas salgadas, com as mesmas manchas de musgo verde-escuro que se espalhavam parecendo uma grinalda, salpicado pelos excrementos das mesmas aves marinhas. A ponta de terra onde os Greyjoy tinham erguido sua fortaleza projetara-se em outra época como uma espada pelas entranhas do oceano, mas as grandes ondas tinham-na martelado dia e noite até que a terra se quebrou e se estilhaçou, milhares de anos antes. Apenas restaram três ilhas nuas e estéreis e uma dúzia de grandes pilares de rocha que se erguiam da água como as colunas do templo de algum deus marinho, enquanto as ondas iradas espumavam e quebravam ao redor. Lúgubre, escuro, ameaçador, Pyke erguia-se sobre essas ilhas e pilares, quase como se fizesse parte delas, com a muralha exterior fechando o promontório para defender a base da grande ponte de pedra que se lançava do topo da falésia até a maior das ilhotas, dominada pelo sólido núcleo da Grande Fortaleza. Mais adiante ficavam a Fortaleza da Cozinha e a Fortaleza Sangrenta, cada uma erguida na sua própria ilha rochosa. Torres e edifícios externos garravam-se aos rochedos que os rodeavam, ligados uns aos outros por arcadas cobertas quando os pilares ficavam perto, ou por longas pontes suspensas de madeira e corda quando eram distantes. A Torre do Mar erguia-se da ilha mais afastada, na ponta da espada quebrada; a mais antiga parte do castelo, alta e redonda, com o pilar de faces abruptas sobre o qual se erguia, meio corroído, pelo interminável bater das ondas. A base da torre tinha se tornado branca com séculos de acúmulo de sal, os andares superiores verdes com o musgo que rastejava sobre eles como um espesso cobertor, o topo irregular negro com a fuligem do fogo das vigias noturnas. Por cima da Torre do Mar esvoaçava o estandarte do pai. O Myraham estava distante demais para que Theon visse mais do que o pano, mas sabia qual símbolo ostentava: a lula gigante dourada da Casa Greyjoy, com os tentáculos contorcendo-se e se esticando no fundo negro. A bandeira voava presa a um mastro de ferro, tremendo e retorcendo-se quando era atingida por uma rajada 110 de vento, como uma ave que lutava para levantar voo. O melhor de tudo era que, aqui, o lobo gigante dos Stark não voava mais alto, não lançava sua sombra sobre a lula gigante dos Greyjoy. Theon nunca tinha visto algo mais entusiástico. No céu atrás do castelo, a bela cauda vermelha do cometa era visível através de nuvens esparsas e rápidas. Ao longo de todo o caminho entre Correrrio e Guardamar, os Mallister tinham discutido seu significado. E o meu cometa, disse Theon a si mesmo, enfiando uma mão no manto debruado de peles para tocar a bolsa de oleado acomodada no seu bolso. Lá dentro estava a carta que Robb Stark lhe dera, um papel que valia uma coroa. - O castelo está como se recorda dele, senhor? - perguntou a filha do capitão enquanto se apertava contra o seu braço, - Parece menor - Theon confessou. - Embora talvez seja só a distância. Myrabam era um navio mercantil de casco largo, do sul, vindo de Vilavelha com um carregamento de vinho, especiarias e sementes, que pretendia trocar por minério de ferro. O capitão era também um mercador de casco largo do sul, e o mar pedregoso que espumava aos pés do castelo fazia seus lábios rechonchudos tremerem, por isso permanecia bem afastado, mais longe do que Theon teria preferido. Um capitão de ferro com um dracar os teria levado ao longo das falésias e sob a alta ponte que ligava a guarita à Grande Fortaleza, mas aquele rechonchudo vilavelhense não tinha nem o navio, nem a tripulação, nem a coragem de tentar tal coisa. Portanto, passaram a distância segura, e Theon teve de se contentar em ver Pyke de longe. Mesmo assim, o Myraham foi obrigado a lutar ferozmente para se manter afastado daqueles rochedos. - Ali deve ser ventoso - observou a filha do capitão. Ele riu. - Ventoso, frio e úmido. Um lugar duro e miserável, para falar a verdade... Mas o senhor meu pai me disse um dia que lugares duros geram homens duros, e homens duros governam o mundo. A cara do capitão estava verde como o mar quando se aproximou, às reverências, de Theon e perguntou: - Podemos nos dirigir ao porto agora, senhor? - Podemos - Theon respondeu, com um tênue sorriso a brincar nos seus lábios. A promessa de ouro tinha transformado o vilavelhense num lambe-botas sem vergonha. Teria sido uma viagem muito diferente se um dracar das ilhas o aguardasse em Guardamar, como ele tinha esperado. Os capitães de ferro eram orgulhosos e voluntariosos, e não reverenciavam ninguém pelo sangue. As ilhas eram pequenas demais para a reverência, e um dracar era ainda menor. Se qualquer capitão era um rei a bordo do seu navio, como era costume dizer, pouco admirava que chamassem as ilhas de terra dos dez mil reis. E quando se via seus reis cagando por cima da amurada e ficando enjoados durante uma tempestade, era difícil ajoelhar-se e fingir que eram deuses, "O Deus Afogado faz homens", tinha dito, um dia, o velho rei Urron Redhand, há milhares de anos, "mas são os homens que fazem coroas". Um dracar também teria feito a travessia em metade do tempo. A bem da verdade, o Myraham era uma banheira chafurdante, e Theon não gostaria de estar a bordo dele numa tempestade. Apesar de tudo, não podia se sentir muito infeliz. Estava ali, não se afogara, e a viagem tinha oferecido alguns outros divertimentos. Pôs um braço em volta da filha do capitão. - Chame-me quando chegarmos a Fidalporto - disse ao pai dela. - Estaremos lá embaixo, na minha cabine - e empurrou a garota para a popa, enquanto o pai os via partir num silêncio taciturno. 111 A cabine, na verdade, era do capitão, mas tinha sido entregue a Theon quando partiram de Guardamar. A filha do capitão não lhe tinha sido entregue, mas viera de vontade própria para sua cama mesmo assim, Uma taça de vinho, alguns murmúrios, e lá estava ela. A garota era um pouco rechonchuda para o seu gosto, com uma pele tão manchada como mingau de aveia, mas seus  seios enchiam muito bem suas mãos, e ela era donzela da primeira vez que a teve. Isso era surpreendente, considerando a idade que tinha, mas Theon achou o fato divertido. Não lhe parecia que o capitão aprovasse, e isso também era divertido, observar o homem lutando para engolir o ultraje enquanto desempenhava as suas cortesias para com o grande senhor, sem nunca ter longe do pensamento a rica bolsa de ouro  que lhe tinha sido prometida. Enquanto Theon se livrava do manto molhado, a moça disse: - Deve estar muito feliz por voltar a ver seu lar, senhor. Quantos anos esteve fora? - Dez, ou tão perto disso que não faz diferença - ele respondeu. - Era um menino de dez anos quando fui levado para Winterfell como protegido de Eddard Stark. Um protegido no nome, um refém na realidade. Metade dos seus dias como refém... Mas não mais. Sua vida era de novo sua, e não se via um Stark em nenhum canto. Puxou a filha do capitão para mais perto e beijou-a na orelha. - Tire o manto. Ela abaixou os olhos, subitamente tímida, mas fez o que lhe pedia. Quando a pesada veste, ensopada de maresia, caiu dos seus ombros e se amontoou no convés, ela fez uma pequena reverência e deu um sorriso ansioso. Ficava com um ar bastante estúpido quando sorria, mas ele nunca tinha exigido das mulheres que fossem espertas.
- Vem cá. Ela foi: - Nunca vi as Ilhas de Ferro. - Considere-se sortuda - Theon afagou seu cabelo. Era fino e escuro, embora o vento o tivesse embaraçado. - As ilhas são lugares austeros e pedregosos, de conforto escasso e perspectivas desanimadoras. Aqui a morte nunca está longe, e a vida é má e magra. Os homens passam as noites bebendo cerveja e discutindo sobre qual dos grupos é pior, o dos pescadores que lutam contra o mar ou o dos agricultores, que tentam arrancar uma colheita do solo pobre e raso. Na realidade, os mineiros vivem pior do que ambos, quebrando suas costas no escuro, e para quê? Ferro, chumbo, estanho, são esses os nossos tesouros. Não é de espantar que os homens de ferro de outrora tivessem se voltado para o saque. A estúpida moça não parecia estar ouvindo. - Podia ir para a terra firme com você - ela disse. - Faria isso, se lhe agradasse... - Podia ir para terra firme - concordou Theon, apertando seu seio - , mas receio que não comigo. - Trabalharia no seu castelo, senhor. Sei limpar peixe, cozer pão e bater manteiga. O pai diz que meu guisado de caranguejo com pimenta é o melhor que já provou. Poderia encontrar um lugar para mim nas suas cozinhas, e eu poderia preparar guisado de caranguejo com pimenta para o senhor. - E aquecer minha cama à noite? - estendeu a mão para as fitas do seu corpete e começou a desatá-las, com dedos hábeis e experientes. - Antigamente, poderia tê-la levado para casa como saque e tê-la mantido como esposa, quer você quisesse quer não. Os homens de ferro de outrora faziam coisas assim. Um homem tinha sua esposa da rocha, a verdadeira consorte, nascida de ferro como ele, mas também possuía suas esposas de sal, mulheres capturadas em saques. 112 Os olhos da moça abriram-se muito, e não era porque ele tinha desnudado seus seios. - Eu seria sua esposa de sal, senhor. - Temo que esses dias tenham passado - o dedo de Theon moveu-se ao redor de uma mama pesada, numa espiral que se dirigia para o gordo mamilo marrom, - Já não podemos montar o vento com fogo e espada, roubando o que quisermos. Agora arranhamos o solo e atiramos linhas ao mar como os outros homens e consideramo-nos sortudos se tivermos bacalhau salgado e minsau suficientes para nos sustentar durante um inverno. Tomou o mamilo na boca e mordeu-o, até ela arfar. - Pode pôr em mim de novo, se desejar - sussurrou a garota ao seu ouvido, enquanto ele chupava seu seio. Quando afastou a cabeça do seio dela, a pele estava vermelho-escura onde a boca a marcara. - Desejo ensinar uma coisa nova a você. Dispa-me, e me dê prazer com a boca. - Com a boca? O polegar dele roçou levemente nos lábios carnudos da moça. - Foi para isso que estes lábios foram feitos, doçura. Se fosse minha esposa de sal, faria o que eu ordenasse. Ela, a princípio, se mostrou tímida, mas aprendia depressa para uma garota tão estúpida, o que o agradava. Tinha a boca tão úmida e doce como a boceta, e assim não tinha de ouvir sua tagarelice tediosa. Antigamente, teria realmente ficado com ela como esposa de sal, pensou consigo mesmo, enquanto enfiava os dedos no seu cabelo embaraçado. Antigamente. Quando ainda man- ::nhamos o Costume Antigo, vivíamos pelo machado e não pela picareta, roubando o que quiséssemos, fossem riquezas, mulheres ou glória. Naqueles dias, os homens de ferro não trabalhavam nas minas; isso era tarefa para os cativos trazidos das incursões, assim como o lamentável trabalho na agricultura e na criação de cabras e ovelhas. A guerra era o oficio próprio para um homem de ferro. O Deus Afogado fizera-os para saquear e violar, para esculpir reinos e escrever seus nomes em fogo, sangue e canções. Aegon, o Dragão, destruirá o Costume Antigo quando queimou o Harren Negro, devolveu o reino de Harren aos fracos homens do rio e reduziu as Ilhas de Ferro a um grotão insignificante de um reino muito maior. Mas as velhas histórias vermelhas ainda eram contadas em torno de fogueiras feitas com madeira levada à costa e lareiras fumacentas por todas as ilhas, até no interior dos altos salões de pedra de Pyke. O pai de Theon tinha entre seus títulos o de Senhor Ceifeiro, e as palavras Greyjoy gabavam-se de que Nós Não Semeamos. Fora mais para trazer de volta o Costume Antigo do que pela vaidade vazia de uma coroa que Lorde Balon desencadeara sua grande rebelião. Robert Baratheon escreveu um fim sangrento para essa esperança, com a ajuda do seu amigo Eddard Stark, mas ambos estavam agora mortos. Meros rapazes governavam nos seus lugares, e o reino que Aegon, o Conquistador, tinha forjado encontrava-se esmagado e dividido. E esta a estação, pensou Theon, enquanto os lábios da filha do capitão deslizavam para cima e para baixo, por todo o seu comprimento, a estação, o ano, o dia, e eu sou o homem. Deu um sorriso torto, perguntando-se o que o pai falaria quando Theon lhe dissesse que ele, o caçula, o bebê e o refém, ele tinha obtido sucesso onde o próprio Lorde Balon falhara.
O clímax veio súbito como uma tempestade, e encheu a boca da moça com o seu sêmen. Surpreendida, ela tentou se afastar, mas Theon a segurou bem pelo cabelo. Depois, ela aninhou-se ao seu lado. - Satisfiz o senhor? - Bastante bem. 113 - Tinha um gosto salgado - ela murmurou. - Como o mar? A moça confirmou com a cabeça. - Sempre adorei o mar, senhor. - Como eu - ele disse, girando indolentemente o mamilo dela entre os dedos. Era verdade. O mar significava liberdade para os homens das Ilhas de Ferro. Theon havia se esquecido disso, até o Myraham desfraldar as velas em Guardamar. Os sons tinham trazido de volta velhos sentimentos; o ranger da madeira e das cordas, as ordens gritadas pelo capitão, o bater das velas quando o vento as enchia; tudo era tão familiar como o bater do seu próprio coração, e tão reconfortante quanto. Tenho de me lembrar disto, jurou Theon a si mesmo. Nunca mais deverei me afastar do mar. - Leve-me junto, senhor - suplicou a filha do capitão. - Não preciso ir para o seu castelo. Posso ficar em alguma vila e ser a sua esposa de sal - ela estendeu a mão para acariciar seu rosto. Theon Greyjoy afastou a mão para o lado e desceu do beliche. - Meu lugar é em Pyke, e o seu, neste navio. - Agora não posso ficar aqui. Ele amarrou os calções. - E por que não? - O meu pai. Depois que for embora, ele vai me castigar, senhor. Vai me chamar de nomes feios e me bater. Theon tirou o manto do cabide e o colocou sobre os ombros. - Os pais são assim - ele admitiu, enquanto prendia as dobras com uma fivela de prata. - Diga que ele devia ficar contente. Fodi você tantas vezes que é provável que já esteja esperando. Não é qualquer um que tem a honra de criar um bastardo real. Ela o olhou estupidamente, e ele, simplesmente a deixou ali. O Myraham rodeava um cabo arborizado. Sob as escarpas cobertas de pinheiros, uma dúzia de barcos de pesca puxava suas redes. O grande navio mercante permaneceu bem afastado deles enquanto manobrava. Theon foi até a proa para ver melhor. Viu primeiro o castelo, o castro dos Botley, uma Casa menor juramentada a seu pai. Quando criança, o castelo era feito de madeira e vime, mas Robert Baratheon tinha arrasado essa estrutura por completo. Lorde Sawane reconstruíra-a em pedra, e agora a colina era coroada por uma pequena fortaleza quadrada. Bandeiras verde-claras pendiam das atarracadas torres dos cantos, cada uma decorada com um cardume de peixes prateados. Sob a proteção incerta do pequeno castelo repleto de peixes ficava a aldeia de Fidalporto, com o porto apinhado de navios. Da última vez que vira Fidalporto, era um deserto fumegante, com esqueletos de galés queimadas e galés esmagadas jazendo na costa pedregosa, como os ossos de leviatãs mortos, e as casas transformadas em nada mais que paredes quebradas e cinzas frias. Dez anos depois, poucos sinais da guerra restavam. O povo tinha construído novas choupanas com as pedras dos antigos e cortara novos colmos para os telhados. Uma nova estalagem tinha sido erguida junto ao desembarcadouro, o dobro do tamanho da antiga, com um andar inferior de pedra cortada e dois superiores de madeira. Mas o septo que ficava atrás nunca foi reconstruído; só restava uma fundação com sete lados para indicar o lugar onde antes existira. A fúria de Robert Baratheon, ao que parecia, tinha azedado o gosto dos homens de ferro pelos novos deuses. Theon estava mais interessado em navios do que em deuses. Por entre os mastros de incontáveis barcos de pesca, vislumbrou uma galé mercantil de Tyrosh, que descarregava junto de um pesado navio pesqueiro ibbenês com o casco coberto de piche negro. Um grande número de 114 dracares, pelo menos cinqüenta ou sessenta, encontravam-se ao largo ou encalhados na costa pedregosa ao norte. Algumas das velas ostentavam símbolos das outras ilhas; a lua de sangue de Á ynch, o corno de guerra negro enfaixado de Lorde Goodbrother, a foice prateada de Harlaw. Theon tentou vislumbrar o Silêncio, do tio Euron. Desse esguio e terrível navio vermelho não viu sinal, mas a Grande Lula Gigante do pai estava lá, pairando sobre embarcações menores, com a proa ornamentada por um esporão cinza de ferro esculpido na forma do monstro marinho que dava nome ao navio. Teria Lorde Balon se antecipado e convocado os vassalos Greyjoy quando recebeu de Correrrio a mensagem de Robb? Sua mão voltou a introduzir-se no manto para tocar a bolsa de oleado. Ninguém conhecia aquela sua carta além de Robb Stark; não eram tolos, e só um tolo confiaria seus segredos a uma ave. Em todo caso, Lorde Balon também não era nenhum tolo. Podia perfeitamente ter adivinhado o motivo por que o filho regressava finalmente à casa, e agido de acordo. A idéia não lhe agradou. A guerra do pai tinha há muito terminado, e estava perdida. Aquela era a hora de Theon; seu plano, sua glória e, a seu tempo, sua coroa. Mas se os dracares estão reunidos...
Agora que pensava nisso, podia ser apenas uma precaução, Uma medida defensiva, caso a guerra se derramasse pelo mar. Os velhos eram cautelosos por natureza. Seu pai era agora velho, assim como o tio Victarion, que comandava a Frota de Ferro. Seu tio Euron tocava outra música, certamente, mas o Silêncio parecia não estar no porto. Ainda bem, disse Theon a si mesmo. Assim, poderei atacar ainda mais depressa. Enquanto o Myraham abria caminho em direção à terra firme, Theon passeou, agitado, pelo convés, examinando a costa. Não esperava encontrar o próprio Lorde Balon à espera no cais, mas seu pai teria certamente enviado alguém ao seu encontro. O Velho Sylas Boca Azeda, o intendente, ou talvez Lorde Botley, ou até mesmo Dagmer Boca Rachada. Seria bom ver a cara horrenda de Dagmer novamente. Eles sabiam que estava chegando. Robb tinha mandado uma mensagem antes de Theon partir de Correrrio, e quando não encontraram nenhum dracar à espera em Guardamar, Lorde Jason Mallister enviara as suas próprias aves para Pyke, supondo que as de Robb tivessem se perdido. Mas Theon não viu rostos familiares no porto, nenhuma guarda de honra de cavaleiros para escoltá-lo de Fidalporto até Pyke, só plebeus que tratavam dos seus assuntos banais. Carregadores desembarcavam cascos de vinho do navio mercante de Tyrosh, pescadores anunciavam aos gritos a mercadoria do dia, crianças corriam e brincavam. Um sacerdote com a toga marinha do Deus Afogado levava um par de cavalos ao longo da costa pedregosa, e por cima da sua cabeça uma prostituta debruçava-se de uma janela na estalagem, chamando marinheiros ibbeneses de passagem. Um punhado de mercadores de Fidalporto havia se reunido para receber o navio. Gritaram perguntas enquanto o Myraham era amarrado. - Viemos de Vilavelha - gritou-lhes o capitão em resposta - , trazendo maçãs e laranjas, vinhos da Árvore, penas das Ilhas do Verão. Tenho pimenta, couro trançado, um rolo de renda de Myr, espelhos para as senhoras, um par de harpas de madeira de Vilavelha com um som doce como nunca ouviram - a prancha de embarque desceu com um rangido e um estrondo. – E trouxe-lhes de volta o seu herdeiro. Os homens de Fidalporto olharam Theon com olhos vazios e bovinos, e ele percebeu que não sabiam quem era. Aquilo o deixou irritado. Enfiou um dragão de ouro na palma da mão do capitão e lhe disse: 115 - Mande seus homens trazerem as minhas coisas - e, sem esperar resposta, desceu a prancha a passos largos. - Estalajadeiro - ele esbravejou - , quero um cavalo. - Como quiser, senhor - respondeu o homem, sem sequer fazer uma reverência. Theon tinha se esquecido de como os homens de ferro podiam ser descarados. - Tenho um que deve servir. Para onde vai, senhor? - Pyke - o imbecil ainda não o reconhecia. Devia ter vestido o gibão bom, com a lula gigante bordada no peito, e então não teria deixado margem a dúvidas. - Desejará partir em breve, para chegar a Pyke antes de escurecer - disse o estalajadeiro. — Meu rapaz irá junto para lhe mostrar o caminho. - Seu rapaz não será necessário - gritou uma voz profunda - , nem seu cavalo. Eu levo meu sobrinho à casa do pai. Quem falava era o sacerdote que Theon tinha visto levando os cavalos ao longo da costa. Quando o homem se aproximou, os plebeus fizeram reverência, e Theon ouviu o estalajadeiro murmurar: - Cabelo Molhado... Alto e magro, com ferozes olhos negros e um nariz em forma de bico, o sacerdote usava vestimentas em verde, cinza e azul, o torvelinho de cores do Deus Afogado. Um odre de água pendia do seu ombro, de uma correia de couro, e cordões de algas secas estavam trançados no seu cabelo negro, que chegava à cintura, e na barba por fazer, Theon franziu a testa enquanto vasculhava a memória. Numa das suas sucintas cartas, Lorde Balon havia escrito algo sobre  seu irmão mais novo ter naufragado numa tempestade e se tornado um homem santo quando foi encontrado vivo na costa. - Tio Aeron? - a voz de Theon soou incerta. - Sobrinho Theon - respondeu o sacerdote. - O senhor seu pai pediu-me para vir buscá-lo. Venha. - Um momento, tio - Theon se virou para o Myraham. - As minhas coisas - ordenou ao capitão. Um marinheiro entregou-lhe o grande arco de teixo e a aljava, mas foi a filha do capitão quem lhe trouxe o pacote com a roupa boa. - Senhor. Os olhos da menina estavam vermelhos. Quando pegou o pacote, ela fez um gesto para abraçá-lo, ali mesmo, na frente do pai, do tio sacerdote de Theon e de metade da ilha. Theon virou-se habilmente de lado. - Os meus agradecimentos. - Por favor - ela pediu. - Eu o amo, senhor.
- Tenho de ir - Theon apressou-se em seguir o tio, que já avançara bastante ao longo do cais, alcançando-o com uma dúzia de longas passadas. - Não esperava encontrá-lo, tio. Depois de dez anos, pensei que talvez o senhor meu pai ou a senhora minha mãe pudessem vir em pessoa, ou mandassem Dagmer com uma guarda de honra. - Não cabe a você questionar as ordens do Senhor Ceifeiro de Pyke - os modos do sacerdote eram gélidos, bem diferentes dos do homem que Theon recordava. Aeron Greyjoy fora o mais amigável dos seus tios, fútil e de riso rápido, dado a canções, cerveja e mulheres. - E quanto a Dagmer, o Boca Rachada, partiu para a Velha Wyk a mando do seu pai, a fim de chamar os Stonehouse e os Drumm. - Com que objetivo? Por que os dracares estão reunidos? 116 - Por que se reúnem os dracares desde sempre? - o tio tinha deixado os cavalos atados em frente à estalagem, Quando lá chegaram, virou-se para Theon: - Diga-me a verdade, sobrinho, Agora reza aos deuses dos lobos? Theon raramente rezava, e ponto. Mas isso não era algo que se pudesse confessar a um sacerdote, mesmo ao irmão do pai. - Ned Stark rezava a uma árvore. Não, não me importo nada com os deuses dos Stark. - Ótimo. Ajoelhe-se. O chão era todo de pedra e lama. - Tio, eu... - Ajoelha, Ou será agora orgulhoso demais um fidalgo das terras verdes que veio para junto de nós? Theon ajoelhou-se. Tinha ali um propósito e podia necessitar da ajuda de Aeron para alcançá-lo. Supunha que uma coroa valia um pouco de lama e bosta de cavalo nos calções. - Abaixe a cabeça. Erguendo o odre, o tio tirou a rolha e apontou um fino jorro de água do mar para a cabeça de Theon. O fluxo da água ensopou seu cabelo e correu pela sua testa até os olhos. Escorreu pelo rosto, e um suave fluxo de água deslizou sob o manto e o gibão, e pelas costas abaixo, um riacho trio ao longo da espinha. O sal fez seus olhos arderem, até que só com grande dificuldade evitou gritar. Sentiu nos lábios o sabor do oceano. - Que Theon, seu servo, renasça do mar, como o senhor renasceu - entoou Aeron Greyjoy. - Abençoe-o com o sal, abençoe-o com a pedra, abençoe-o com o aço. Sobrinho, ainda conhece as palavras? - O que está morto não pode morrer - Theon respondeu, lembrando-se. - O que está morto não pode morrer - ecoou o tio - , mas volta a se erguer, mais duro e mais rorte. Erga-se. Theon ergueu-se, piscando, reprimindo lágrimas causadas pelo sal que tinha nos olhos. Sem uma palavra, o tio arrolhou o odre, desatou o cavalo e montou. Theon fez o mesmo. Arrancaram juntos, deixando a estalagem e o porto para trás, passando pelo castelo de Lorde Botley e entrando nas colinas pedregosas. O sacerdote não disse nem mais uma palavra. - Passei metade da vida longe de casa - arriscou Theon por fim. - Vou encontrar as ilhas mudadas? - Os homens pescam no mar, escavam na terra e morrem. As mulheres dão à luz crianças em sangue e dor, e morrem. A noite segue o dia. Os ventos e as marés permanecem. As ilhas são como nosso deus as fez. Deuses... Agora ele se tornou sombrio, pensou Theon. - Encontrarei minha irmã e a senhora minha mãe em Pyke? - Não. Sua mãe mora em Harlaw com a irmã dela. É menos úmido por lá, e a tosse a atormenta. Sua irmã levou Vento Negro para Grande Wyk com mensagens do senhor seu pai. Voltará em breve, pode ter certeza disso. Theon não precisava que lhe dissessem que Vento Negro era o dracar de Asha. Não via a irmã há dez anos, mas, pelo menos isso, sabia dela. Era estranho que tivesse dado esse nome ao navio, quando Robb Stark tinha um lobo chamado Vento Cinzento. - Stark é cinza, e Greyjoy é negro - ele murmurou, sorrindo - , mas parece que ambos somos ventosos. O sacerdote nada tinha a responder àquilo. 117 - E você, tio? - perguntou Theon. - Não era nenhum sacerdote quando fui levado de Pyke. Lembro-me de como cantava as velhas canções de saque em pé sobre a mesa com um corno de cerveja na mão. - Era jovem e frívolo - Aeron Greyjoy respondeu. - Mas o mar lavou minhas loucuras e frivolidades. Aquele homem se afogou, sobrinho. Seus pulmões encheram-se de água do mar, e os peixes comeram as escamas que cobriam seus olhos, Quando me reergui, via com clareza. E tão louco como amargo, pensou Theon, entristecido. Gostava do que recordava do antigo Aeron Greyjoy. - Tio, por que meu pai convocou as espadas e as velas? - Sem dúvida ele lhe dirá, em Pyke. - Gostaria de saber dos seus planos agora — disse Theon. - De mim não saberá. Foi-nos ordenado que não falássemos disso com nenhum homem,
- Nem comigo? A ira de Theon se fez notar. Comandara homens na guerra, caçara com um rei, conquistara a honra em lutas corpo a corpo de torneios, cavalgara com Brynden Peixe Negro e o Grande-Jon Umber, lutara no Bosque dos Murmúrios, dormira com mais garotas do que conseguia recordar, e mesmo assim o tio tratava-o como se ainda fosse uma criança de dez anos. - Se meu pai faz planos para a guerra, devo conhecê-los. Não sou "um homem", mas o herdeiro de Pyke e das Ilhas de Ferro. - Quanto a isso, veremos - o tio respondeu. As palavras foram uma bofetada no seu rosto. -Veremos? - Theon repetiu, em tom desdenhoso. - Ambos os meus irmãos estão mortos. Sou o único filho sobrevivente do senhor meu pai. - Sua irmã está viva - Aeron nem sequer ofereceu a Theon a cortesia de um relance. Asha, Theon pensou, confuso. Era três anos mais velha do que ele, mas, mesmo assim... - Uma mulher só pode herdar se não houver nenhum herdeiro varão em linha direta – ele insistiu em voz alta. - Não aceitarei que me privem dos meus direitos, aviso. O tio soltou um grunhido. - Avisa um servo do Deus Afogado, rapaz? Você se esqueceu mais do que pensa. E é um grande idiota se acredita que o senhor seu pai algum dia entregará estas ilhas sagradas a um Stark. E agora cale-se. A viagem já é suficientemente longa mesmo sem a sua tagarelice de pombo. Theon controlou a língua, embora não sem esforço. Então é assim, pensou. Quase riu. Como se dez anos em Winterfell pudessem gerar um Stark. Lorde Eddard podia tê-lo criado entre os filhos, mas Theon nunca se sentira um deles. Todo o castelo, desde a Senhora Stark ao mais baixo dos ajudantes de cozinha, sabia que ele estava ali como refém do bom comportamento do pai e tratava-o de acordo. Até o bastardo Jon Snow recebia mais honras do que ele. Lorde Eddard tentara fazer o papel de pai algumas poucas vezes, mas, para Theon, sempre foi o homem que havia trazido sangue e fogo a Pyke e o tirado de casa. Quando garoto, tinha vivido sob o medo do rosto severo e da grande espada escura do Stark. E a senhora sua esposa era, se possível, ainda mais distante e suspeita. Quanto aos filhos, os mais novos não tinham sido mais do que bebês chorões ao longo da maior parte da sua estada em Winterfell. Só Robb e o meio-irmão ilegítimo Jon Snow tinham idade suficiente para merecer a sua atenção. O bastardo era um rapaz carrancudo, rápido em detectar uma desfeita, invejoso do nascimento elevado de Theon e da amizade que Robb nutria 118 por ele, Por Robb Theon tinha uma certa afeição, como a que se sente por um irmão mais novo... mas seria melhor não mencioná-la. Em Pyke, ao que parecia, as velhas guerras ainda estavam sendo travadas. Isso não devia surpreendê-lo. As Ilhas de Ferro viviam no passado; o presente era duro e amargo demais para ser suportável. Além disso, o pai e os tios eram velhos, e os velhos senhores eram assim; levavam suas contendas poeirentas para a sepultura, sem esquecer nada, e perdoando menos ainda. Tinha sido assim com os Mallister, seus companheiros na viagem de Correrrio para Guardamar. Patrek Mallister era, não raro, um companheiro; dividiam o gosto por prostitutas, vinho e caça com falcões. Mas, quando o velho Lorde Jason viu seu herdeiro se tornando cada vez mais feliz com a companhia de Theon, puxou Patrek a um canto para lembrá-lo de que Guardamar havia sido construído para defender a costa dos saqueadores das Ilhas de Ferro, os Greyjoy de Pyke principalmente. Sua Torre Retumbante tinha esse nome por causa do imenso sino de bronze, que há muito tempo tocava para avisar o povo da vila e os agricultores no castelo quando os dracares eram avistados no horizonte a oeste. - Não ligue, pois o sino só foi tocado uma única vez em trezentos anos - Patrek contou a Theon no dia seguinte, quando compartilhou os avisos de seu pai e um jarro de sidra. - Quando meu irmão assaltou Guardamar - Theon respondeu. Lorde Jason matara Rodrik Greyjoy sob as muralhas do castelo e expulsara os homens de ferro de volta para a baía. – Se seu pai acha que tenho alguma inimizade em relação a ele só por causa disso, é só porque nunca conheceu Rodrik. Eles riram muito daquilo enquanto corriam até uma afetuosa esposa de um moleiro que Patrek conhecia. Gostaria que Patrek estivesse comigo agora. Mallister ou não, era uma companhia de cavalgada mais amigável que este velho sacerdote azedo em que o tio Aeron se transformara. O caminho que seguiam retorcia-se cada vez mais para cima, por montes nus e pedregosos. Logo estavam fora da vista do mar, embora o odor do sal ainda pairasse, vivo, no ar úmido. Mantinham um ritmo pesado e constante, passando pelo cercado de um pastor e pelas instalações abandonadas de uma mina. Este novo e santo Aeron Greyjoy não era muito de falar. Por isso avançavam numa melancolia de silêncio. Finalmente, Theon não conseguiu suportá-la mais. - Robb Stark é agora senhor de Winterfell - ele finalmente disse. Aeron prosseguiu seu caminho, - Os lobos são muito iguais uns aos outros.
- Robb quebrou a lealdade ao Trono de Ferro e se fez coroar Rei do Norte. Há guerra, - Os corvos do meistre voam tão bem sobre o sal como sobre a rocha. Essa notícia é velha e fria. - Significa um novo dia, tio - Theon falou em tom de promessa. - Todas as manhãs trazem um novo dia, muito igual ao velho. - Em Correrrio, diriam outra coisa - Theon respondeu. - Ouvi dizer que o cometa vermelho é um arauto de uma nova era. Um mensageiro dos deuses, dizem, - E um sinal - concordou o sacerdote mas do nosso deus, não dos deles. E uma tocha ardente, como as que a nossa gente transportava nos tempos antigos. E a chama do Deus Afogado trazida do mar e proclama uma maré cheia. E tempo de içar as velas e avançar para o mundo com fogo e espada, como ele fez. Theon sorriu. - Concordo em gênero e número. - Um homem concorda com deus como uma gota de chuva com a tempestade. Esta gota de chuva será rei um dia, velho. Theon suportara mais do que conseguia a melancolia do tio. Então, enfiou as esporas no cavalo e trotou em frente, sorrindo. O sol estava prestes a se pôr quando chegaram às muralhas de Pyke, um crescente de pedra escura que corria de falésia a falésia, com a guarita ao centro e três torres quadradas de cada lado. Theon ainda conseguia distinguir as cicatrizes deixadas pelas pedras das catapultas de Robert Baratheon. Uma nova torre sul tinha sido erguida das ruínas da antiga, feita de pedras com um tom de cinza mais claro e ainda limpa de manchas de liquens. Fora ali que Robert abrira sua brecha, subindo depois sobre o entulho e os cadáveres com o martelo de guerra na mão, e Ned Stark a seu lado. Theon observara, da segurança da Torre do Mar, e por vezes ainda via os archotes em sonhos e ouvia o estrondo abafado do colapso. Os portões estavam abertos para ele entrar, com a porta levadiça de ferro enferrujado erguida. Os guardas no topo das ameias observaram, sem o reconhecer, quando Theon Greyjoy voltou finalmente para casa. Para lá da muralha exterior estendia-se meia centena de acres de promontório, empurrado contra o céu e o mar. Os estábulos ficavam ali, bem como os canis e alguns outros edifícios espalhados. Ovelhas e porcos amontoavam-se nos seus currais, enquanto os cães do castelo corriam em liberdade. Ao sul ficavam as falésias e a larga ponte de pedra que levava à Grande Fortaleza. Theon conseguia ouvir o bater das ondas quando saltou da sela. Um cavalariço veio levar o cavalo. Um par de crianças esqueléticas e alguns servos ficaram olhando-o sem expressão, mas não viu sinal do senhor seu pai nem de mais ninguém que reconhecesse da sua infância. Um retorno ao lar gelado e amargo, pensou. O sacerdote não desmontou. - Não vai ficar esta noite para partilhar da nossa comida e bebida, tio? - Disseram-me traga-o. E eu o trouxe. Agora volto aos assuntos do nosso deus - Aeron Greyjoy virou o cavalo e saiu lentamente do castelo sob os espigões enlameados da porta levadiça. Uma velha corcunda enfiada num vestido cinza sem forma aproximou-se dele com cautela: - Senhor, mandaram-me levá-lo aos seus aposentos. - A pedido de quem? - Do senhor seu pai, senhor. Theon puxou as luvas. - Então você sabe quem eu sou. Por que meu pai não está aqui para me receber? - Espera-o na Torre do Mar, senhor. Quando estiver descansado da viagem, E eu achava Ned Stark frio. - E você, quem é? - Helya, que mantém o castelo para o senhor seu pai. - Sylas era o intendente daqui. Chamavam-no de Boca Azeda - mesmo agora, Theon recordava o fedor de vinho do hálito do velho. - Está morto há cinco anos, senhor. - E Meistre Qalen, onde está? - Dorme no mar. Wendamyr cuida agora dos corvos, mas foi para o sul, para Vilavelha, tratar de uns assuntos quaisquer de meistre. E como se eu fosse um estranho aqui, Theon pensou. Nada mudou, mas tudo mudou. - Leve-me aos meus aposentos, mulher - ele ordenou. Com uma reverência rígida, ela o levou através do promontório em direção à ponte. Isso, pelo menos, era como ele recordava; as antigas pedras escorregadias com os borrifos de água do 79 n mar e manchadas por liquens, o mar espumando sob seus pés como um grande animal selvagem, o vento salgado agarrando-se à sua roupa. Quando pensava no regresso à sua casa, sempre se imaginava voltando ao quarto confortável da Torre do Mar onde dormia quando criança. Mas, em vez disso, a velha o levou para a Fortaleza Sangrenta, Os salões eram maiores e mais bem mobilados, ainda que não fossem menos frios e úmidos. Foi-lhe dada uma suíte de salas gélidas com tetos tão altos que se perdiam na escuridão. Poderia ter ficado mais impressionado, caso não soubesse que aqueles eram exatamente os ioosentos que tinham dado nome à Fortaleza Sangrenta. Mil anos antes, os filhos do Rei do Rio tinham sido ali massacrados, cortados em  pedaços nas suas camas para que as partes dos seus corpos fossem enviadas de volta ao pai, no continente. Mas Theon era um Greyjoy, e os Greyjoy não eram assassinados em Pyke, exceto muito de vez em quando pelos irmãos, e seus irmãos estavam ambos mortos. Não era o medo de fantasmas que o fazia olhar em volta com desagrado. Os reposteiros estavam verdes de bolor, o colchão cheirava a mofo e fazia uma cova e as esteiras eram velhas e quebradiças. Tinham-se passado anos desde que aqueles aposentos tinham sido abertos pela última vez. A umidade atacava os ossos. - Quero uma bacia de água quente e um fogo nesta lareira - disse à velha. - Mande que acendam braseiros nas outras salas para expulsar um pouco deste frio. E, que os deuses sejam bondosos, mande alguém aqui imediatamente para trocar estas esteiras. - Sim, senhor. Às suas ordens - ela respondeu e fugiu. Algum tempo depois, trouxeram a água quente que pedira. Estava apenas tépida, em breve esfriaria, e ainda por cima era água.do mar, mas serviu para lavar a poeira da longa cavalgada da sua cara, cabelo e mãos. Enquanto dois servos corriam ao redor acendendo braseiros, Theon despiu as roupas manchadas pela viagem e vestiu-se para o encontro com o pai. Escolheu botas de couro negro flexível, calções suaves de lã de carneiro, cinza-prateados, um gibão de veludo negro com a lula gigante dourada dos Greyjoy bordada no peito. Em volta da garganta prendeu um fino fio de ouro, e em torno da cintura, um cinto de couro branco. Pendurou uma adaga de um lado da cintura e uma espada longa do outro, em bainhas com riscas negras e douradas. Puxando o punhal, testou seu fio com o polegar, pegou uma pedra de amolar da bolsa de cinto e deslizou-a algumas vezes pela lâmina. Orgulhava-se por manter as armas afiadas. - Quando voltar, espero encontrar uma sala quente e esteiras limpas - avisou aos servos, enquanto calçava um par de luvas pretas, cuja seda era decorada com delicados arabescos em fio de ouro. Theon retornou à Grande Fortaleza por uma passarela de pedra coberta, ouvindo os ecos dos seus passos misturados ao incessante rumor do mar lá embaixo. Para chegar à Torre do Mar, erguida no topo do seu pilar torto, tinha de atravessar outras três pontes, cada uma mais estreita do que a anterior. A última era feita de madeira e cordas, e o vento úmido e salgado a fazia oscilar sob seus pés como se estivesse viva. Quando chegou na metade, Theon tinha o coração na boca. Muito abaixo, as ondas atiravam grandes plumas de borrifos quando se quebravam de encontro às rochas. Ainda garoto, costumava correr por aquela ponte, mesmo quando noite cerrada. As crianças acham que nada pode machucá-las, segredavam-lhe suas dúvidas. Os homens sabem que não é assim. A porta era feita de madeira cinza com rebites de ferro, e Theon encontrou-a trancada por dentro. Bateu com um punho e praguejou quando uma lasca rasgou a fina seda da sua luva. A madeira estava úmida e bolorenta, e os rebites, enferrujados. 121 Passado um momento, a porta foi aberta de dentro por um guarda com uma placa de peito e um capacete redondo de ferro negro. - É o filho? - Saia da frente, ou ficará sabendo quem sou para seu desgosto. O homem abriu-lhe caminho. Theon subiu os degraus em espiral até o aposento privado de seu pai. Encontrou-o sentado ao lado de um braseiro, sob um roupão de velhas peles de foca que o cobria dos pés até o queixo. Ao ouvir o som das botas na pedra, o Senhor das Ilhas de Ferro ergueu os olhos para contemplar seu último filho homem sobrevivente. Era mais baixo do que Theon recordava. E tão descarnado. Balon Greyjoy sempre fora magro, mas agora parecia que os deuses o tinham depositado num caldeirão, fervendo cada grama de carne não imprescindível e arrancando-a dos ossos, até que nada restasse, a não ser cabelo e pele. Era magro e duro como um osso, com um rosto que podia ter sido esculpido em sílex. Seus olhos eram também de sílex, negros e penetrantes, mas os anos e os ventos salgados tinham deixado seu cabelo cinza como um mar de inverno, salpicado de espuma branca, e, quando solto, caía abaixo da cintura. - Nove anos, é isso? - disse por fim Lorde Balon. - Dez - Theon respondeu, descalçando as luvas rasgadas. - Levaram um garoto - o pai falou. - O que você é agora? - Um homem. Do seu sangue, e seu herdeiro. Lorde Balon soltou um grunhido. - Veremos. - Verás - Theon prometeu. - Dez anos, diz você. Stark teve você durante tanto tempo quanto eu. E agora chega como seu enviado. - Dele, não - Theon o corrigiu. - Lorde Eddard está morto, decapitado pela rainha Lannister.
- Estão ambos mortos - Lorde Balon recordou. - O Stark e aquele Robert que quebrou minhas muralhas com as suas pedras. Um dia jurei que viveria para ver ambos sepultados, e vivi - fez uma careta. - E, no entanto, o frio e a umidade ainda fazem minhas articulações doerem, como quando eram vivos. Portanto, de que serve? - Serve - Theon aproximou-se. - Trago uma carta... - Foi Ned Stark quem o vestiu assim? - seu pai o interrompeu, olhando-o de soslaio de dentro do roupão. - Era desejo dele enfiá-lo em veludos e sedas e fazer de você sua querida filha? Theon sentiu o sangue subir ao seu rosto. - Não sou filha de ninguém. Se não gosta do meu traje, vou trocá-lo. - Trocará - concordou Lorde Balon. Libertando-se do roupão de peles, ficou de pé. Não era tão alto como Theon recordava. - Essa porcaria em volta do seu pescoço... Comprou-a com ouro ou com ferro? Theon tocou o fio de ouro, sem encontrar palavras. Tinha esquecido. Foi há tanto tempo... Pelo Costume Antigo, só as mulheres se decoravam com ornamentos comprados com moeda. Um guerreiro usava apenas as jóias que tirasse dos cadáveres de inimigos mortos pelas suas mãos. Chamava-se isso de pagar o preço de ferro. - Fica vermelho como uma donzela, Theon - seu pai ralhou. - Foi feita uma pergunta. Foi o preço de ouro que pagou ou o de ferro? - O de ouro - Theon admitiu. O pai enfiou os dedos sob o colar e deu um puxão tão forte, que poderia ter arrancado a cabeça de Theon se a corrente não tivesse se quebrado primeiro. 122 - Minha filha tomou um machado como amante. Não permitirei que meu filho se enfeite como uma prostituta - deixou o fio partido cair no braseiro, onde desapareceu por entre os carvões. - E como eu temia. As terras verdes tornaram-no mole, e os Stark transformaram-no em um deles. - Engana-se - Theon reagiu. - Ned Stark era meu carcereiro, mas meu sangue ainda é de sal e ferro. Lorde Balon virou-se e aqueceu as mãos ossudas sobre o braseiro. - E, no entanto, o filhote Stark manda você até mim como um corvo bem treinado, agarrado à sua pequena mensagem. - Não há nada de pequeno na carta que trago. E a oferta que faz foi a que eu lhe sugeri. - Então, este rei lobo presta atenção aos seus conselhos? - a idéia parecia divertir Lorde Balon. - Sim, ele presta atenção em mim. Cacei e treinei com ele, partilhei comida e bebida com ele, guerreei ao seu lado. Conquistei a sua confiança. Olha para mim como a um irmão mais velho, ele... - Não - seu pai brandiu um dedo em frente dos seus olhos. - Não aqui, não em Pyke, não onde eu puder ouvir, não vai chamá-lo de irmão, este filho do homem que passou seus verdadeiros irmãos na espada. Ou terá se esquecido de Rodrik e de Maron, que eram do seu sangue? - Não me esqueci de nada. Ned Stark, na verdade, não havia matado nenhum dos seus filhos. Rodrik fora morto por Lorde Jason Mallister em Guardamar, e Maron morrera esmagado no colapso da antiga torre sul... Mas Stark teria acabado com eles com a mesma facilidade, caso a maré da batalha tivesse calhado de juntá-los. - Lembro-me muito bem dos meus irmãos - Theon continuou. Lembrava-se principalmente das bofetadas que Rodrik lhe dava quando se embebedava e das brincadeiras cruéis e mentiras sem fim de Maron. - Também me lembro de quando meu pai era um rei - tirou a carta que Robb tinha lhe dado e a apresentou. - Aqui está. Leia-a... Vossa Graça. Lorde Balon quebrou o selo e desdobrou o pergaminho. Seus olhos negros saltitaram de um lado para outro. - Então o rapaz quer me dar uma coroa de volta. E tudo o que tenho de fazer é destruir os seus inimigos - seus lábios finos retorceram-se num sorriso. - A esta altura, Robb deve estar montando cerco ao Dente Dourado - Theon disse. – Quando o Dente cair, atravessará os montes em um dia. Lorde Tywin e sua tropa estão em Harrenhal, separados do oeste. O Regicida é mantido cativo em Correrrio. Só resta Sor Stafford Lannister e os recrutas inexperientes, que tem andado reunindo para enfrentar Robb no oeste. Sor Stafford não terá alternativa a não ser colocar-se entre o exército de Robb e Lanisporto... O que significa que a cidade estará indefesa quando cairmos sobre ela vindos do mar. Se os deuses estiverem conosco, até o próprio Rochedo Casterly poderá cair antes que os Lannister consigam sequer perceber que estamos em cima deles. Lorde Balon soltou um grunhido, - Rochedo Casterly nunca caiu. - Até agora - Theon sorriu. E como isso seria bom. Seu pai não devolveu o sorriso. - Então é para isso que Robb Stark manda você de volta para mim depois de tanto tempo? Para que ganhe meu consentimento para este seu plano? 123
- O plano é meu, não de Robb - Theon falou orgulhosamente. Meu, tal como a vitória será minha, e, a seu tempo, a coroa. - Eu mesmo vou dirigir o ataque, se lhe agradar. Como recompensa, gostaria de pedir que me conceda domínio sobre Rochedo Casterly, depois de tomarmos o castelo dos Lannister - com o Rochedo, poderia dominar Lanisporto e as terras verdes do oeste, bem como os montes ricos em ouro que as rodeavam. Significaria riqueza e poder tais como a Casa Greyjoy nunca conhecera. - Você se recompensa bem, por uma idéia e umas poucas linhas de garranchos - seu pai voltou a ler a carta. - O lobinho não diz nada sobre uma recompensa. Diz só que fala em seu nome, que devo escutá-lo e lhe dar minhas velas e espadas, e que, em troca, me dará uma coroa – seus olhos de sílex levantaram-se até encontrar os do filho. - Que me dará uma coroa - ele repetiu, com a voz tornando-se ríspida. - Uma escolha ruim de palavras. O que quer dizer é... - O que se quer dizer é o que se diz. O rapaz quer me dar uma coroa. E o que é dado pode ser tirado. Lorde Balon atirou a carta no braseiro, juntando-a ao colar. O pergaminho encurvou-se, enegreceu e queimou-se. Theon ficou horrorizado. - Enlouqueceu? Seu pai lhe deu um forte tapa na cara com as costas da mão. - Cuidado com a língua. Agora não está em Winterfell, e eu não sou Robb, o Rapaz, para que possa falar assim comigo. Sou Greyjoy, Senhor Ceifeiro de Pyke, Rei do Sal e Rocha, Filho do Vento Marinho e ninguém me dá uma coroa. Eu pago o preço de ferro. Tomarei a minha coroa, como Urron Redhand fez há cinco mil anos. Theon recuou, afastando-se da fúria súbita no tom da voz de seu pai: - Tome-a, então - cuspiu, sua face ainda formigando. - Proclame-se Rei das Ilhas de Ferro, ninguém vai se importar... Até que a guerra acabe, e o vencedor procure e encontre o velho tolo empoleirado em sua costa com uma coroa de ferro na cabeça. Lorde Balon riu. - Bem, pelo menos você não é um covarde. Não mais do que eu sou um tolo. Você acha que juntei meus navios para vê-los ancorar? Pretendo burilar um reino com fogo e espada... Mas não do oeste, e não a pedido do Rei Robb, o Rapaz. Rochedo Casterly é forte demais, e Lorde Tywin, muito astuto. Ah, podemos tomar Lannisporto, mas jamais o manteríamos. Não. Desejo uma ameixa diferente... Não tão suculenta nem doce, para ser sincero, mas que está lá no pé, madura e indefesa Onde? Theon podia ter perguntado, mas então já sabia. 124 Daenerys Os dothrakis chamaram o cometa de shierak qiya, a Estrela que Sangra. Os velhos resmungavam que era um prenuncio do mal, mas Daenerys Targaryen vira-o pela primeira vez na noite em que cremara Khal Drogo, quando então seus dragões despertaram. E o arauto da minha chegada, dizia a si mesma enquanto fixava os olhos no céu da noite com o coração maravilhado. Os deuses enviaram-no para me indicar o caminho. Mas, quando expressou o pensamento em palavras, sua aia Doreah tremeu: - Naquela direção ficam as terras vermelhas, Khaleesi. Um lugar sombrio e terrível, dizem os cavaleiros. - A direção que o cometa aponta é a que temos de seguir - Dany insistiu, embora, na verdade, fosse a única aberta para ela. Não se atrevia a virar para o norte, para o vasto oceano de mato que chamavam de mar dothraki. O primeiro khalasar que encontrassem engoliria seu esfarrapado bando, matando os guerreiros e escravizando os outros. As terras dos Homens-Ovelha ao sul do rio estavam igualmente proibidas. Eram poucos demais para se defenderem até desse povo pacífico, e os lhazarenos tinham poucos motivos para gostar deles. Poderia ter descido o rio na direção dos portos de Meereen, Yunkai e Astapor, mas Rakharo a prevenira de que o khalasar de Pono havia partido nessa direção, levando à sua frente milhares de cativos para vender nos mercados de gente que infestavam a costa da Baía dos Escravos. - Por que devo temer Pono? - Dany quis saber. - Ele era ko de Drogo, e sempre falou comigo com gentileza. - Ko Pono falou com você com gentileza - Sor Jorah Mormont respondeu. - Khal Pono matará você. Ele foi o primeiro a abandonar Drogo. Foram com ele dez mil guerreiros. Você tem cem. Não, Dany pensou. Tenho quatro. O resto são mulheres, velhos doentes e garotos cujo cabelo nunca foi trançado. - Tenho os dragões. - Crias - corrigiu-a Sor Jorah. - Um golpe de arakh daria cabo deles, embora seja mais provável que Pono os capture para si. Seus ovos de dragão eram mais preciosos do que rubis, Um dragão vivo não tem preço. No mundo inteiro há apenas três. Todos os homens que os virem vão desejá-los, minha rainha,
- São meus - ela disse ferozmente. Tinham nascido da sua fé e da sua necessidade, tinham recebido a vida das mortes do marido, do filho natimorto e da maegi Mirri Maz Duur. Dany tinha penetrado nas chamas no momento em que nasciam, e eles tinham bebido leite dos seus seios inchados. - Ninguém vai tirá-los de mim enquanto eu viver. 125 - Não viverá por muito tempo caso se encontre com Khal Pono. Nem com Khal Jhaqo, ou qualquer um dos outros. Tem de ir para onde eles não forem. Dany nomeara-o o primeiro da sua Guarda Real... E quando os conselhos duros de Mormont e os presságios coincidiam, seu caminho ficava claro. Reuniu seu povo e montou a égua prateada. Seu cabelo tinha ardido na pira de Drogo, por isso as aias envolveram-na na pele do hrakkar que Drogo havia matado, o leão branco do mar dothraki. A medonha cabeça do animal formava um capuz para cobrir seu couro cabeludo nu, e a pele era um manto que escorria pelos seus ombros e costas. O dragão de cor creme enfiou suas negras garras afiadas na juba do leão e enrolou a cauda no braço de Dany, enquanto Sor Jorah ocupava a seu lado o lugar de costume. - Seguimos o cometa - Dany falou ao khalasar. Depois da frase pronunciada, não se levantou uma única palavra de discórdia. Eles tinham sido o povo de Drogo, mas agora eram dela. Chamavam-na de A Não Queimada e de Mãe dos Dragões. Sua palavra era a lei deles. Avançavam durante a noite, e de dia refugiavam-se do sol sob as tendas. Em breve, Dany viu a verdade das palavras de Doreah. Aquela não era uma região receptiva. Deixaram atrás de si um rastro de cavalos mortos e moribundos, pois Pono, Jhaqo e os outros tinham levado o que havia de melhor nas manadas de Drogo, deixando para Dany os animais velhos e esqueléticos, os doentes e os coxos, os animais inutilizados e os de mau temperamento. Era o mesmo com as pessoas. Não são fortes, Dany disse a si mesma, portanto, eu devo ser a sua força. Não posso mostrar medo, nem fraqueza, nem dúvida. Por mais assustado que esteja meu coração, quando olharem meu rosto, devem ver apenas a rainha de Drogo. Sentia-se mais velha do que os seus catorze anos. Se alguma vez tinha sido realmente uma menina, esse tempo já passara. Três dias depois de iniciarem a marcha, o primeiro homem morreu. Um velho desdentado, com olhos azuis enevoados, caiu exausto da sela e não conseguiu se levantar. Uma hora mais tarde, partiu. Moscas de sangue enxamearam em volta do seu cadáver e transportaram sua má sorte para os vivos. - Já tinha passado seu tempo - a aia Irri declarou. - Nenhum homem deve viver mais do que os seus dentes. Os outros concordaram. Dany ordenou-lhes que matassem o mais fraco dos cavalos moribundos, para que o morto pudesse partir montado para as terras da noite. Duas noites mais tarde, foi uma menina pequena quem pereceu. Os lamentos angustiados da mãe duraram o dia inteiro, mas não havia o que fazer. A pobre criança era pequena demais para montar a cavalo. O mato negro sem fim das terras da noite não era para ela; teria de voltar a nascer. Havia pouco alimento no deserto vermelho e ainda menos água, Era uma terra ressequida e desolada de montes baixos e planícies estéreis varridas pelo vento. Os rios que cruzaram estavam secos como ossos de cadáveres. As montarias subsistiam da dura erva-do-diabo marrom que crescia em moitas na base dos rochedos e de árvores mortas. Dany enviou batedores à frente da coluna, mas não encontraram poços nem nascentes, apenas charcos amargos, rasos e parados, minguando ao sol quente. Quanto mais profundamente penetravam no deserto, menores se tornavam os charcos, enquanto a distância entre eles crescia. Se havia deuses nessa vastidão sem trilhas feita de pedra, areia e barro vermelho, eram duros e secos, surdos às preces que pediam chuva. O vinho foi o primeiro a acabar, e pouco depois terminava o leite coalhado de égua que os senhores dos cavalos apreciavam mais do que hidromel. Então esgotaram-se também as reservas de pão frito e carneseca. Os caçadores não encontravam caça, e só a carne dos cavalos mortos 126 enchia suas barrigas. As mortes sucediam-se. Crianças fracas, velhas encarquilhadas, doentes, estúpidos e imprudentes, a terra cruel reclamava-os todos. Doreah tornou-se magra e de olhos encovados, e seu delicado cabelo dourado ficou quebradiço como palha. Dany passava fome e sede como os outros. O leite secou nos seus seios, seus mamilos racharam e sangraram, e a carne foi desaparecendo do seu corpo dia após dia, até ficar magra e dura como um pau, mas era pelos dragões que temia. O pai tinha sido morto antes de ela nascer, e seu magnífico irmão Rhaegar também. A mãe morrera trazendo-a ao mundo, enquanto lá fora a tempestade rugia. O gentil Sor Willem Darry, que a seu modo devia tê-la amado, fora levado por uma doença debilitante quando era muito nova. O irmão Viserys, Khal Drogo, que era o sol-e- estrelas de Daenerys, até o filho natimorto, os deuses tinham reclamado todos eles. Não terão os meus dragões, Dany jurou. Não os terão. Os dragões não eram maiores do que os gatos magros que via antigamente esgueirando-se junto aos muros da propriedade do Magíster Illyrio em Pentos... Até abrirem as asas. A envergadura era três vezes maior que o comprimento do corpo, e cada asa era um delicado leque de pele translúcida, maravilhosamente colorida, bem retesada entre longos ossos finos. Quando se olhava com atenção, via-se que a maior parte do corpo dos animais era pescoço, cauda e asas. Coisas tão pequenas, ela pensou, enquanto os alimentava na mão. Ou melhor, tentava alimentá--os, pois os dragões não queriam comer. Silvavam e cuspiam todos os pedaços de carne de cavalo, exalando vapor pelas narinas, mas não aceitavam a comida... Até que Dany se recordou de algo que Viserys lhe tinha dito quando eram crianças. Só os dragões e os homens comem carne cozida. Quando mandou as aias torrarem a carne de cavalo até deixá-la preta, os dragões devoraram-na avidamente, projetando as cabeças como serpentes. Desde que a carne estivesse crestada, engoliam várias vezes seu próprio peso todos os dias, e por fim começaram a crescer e a se fortalecer. Dany maravilhava-se com a maciez das suas escamas, e com o calor que emanavam, tão palpável que, em noites frias, os corpos inteiros pareciam gerar vapor. Sempre que caía a noite, quando o khalasar se punha em movimento, escolhia um dragão para seguir empoleirado no seu ombro, Irri e Jhiqui levavam os outros numa gaiola de madeira trançada, pendurada entre as suas montarias, e seguiam logo atrás dela, para que Dany sempre pudesse ser vista. Era a única maneira de mantê-los tranqüilos. - Os dragões de Aegon foram batizados em homenagem aos deuses da antiga Valíria – Dany contou aos companheiros de sangue uma manhã, depois de uma longa noite de viagem. - O dragão de Visenya era Vhagar, Rhaenys tinha Meraxes e Aegon montava Balerion, o Terror Negro. Dizia-se que o sopro de Vhagar era tão quente, que era capaz de derreter a armadura de um cavaleiro e cozinhar o homem lá dentro; que Meraxes engolia cavalos inteiros; e quanto a Balerion... Seu fogo era negro como suas escamas, as asas tão vastas que vilas inteiras eram engolidas pela sua sombra quando passava por cima delas. Os dothrakis olhavam incomodados para as crias. O maior dos três era de um negro luzidio, com as escamas rasgadas por faixas de um escarlate vivo que combinava com as asas e os chifres. - Khaleesi - Aggo murmurou - , ali está Balerion redivivo. - Pode ser como diz, sangue do meu sangue - Dany respondeu gravemente mas terá um novo nome para esta nova vida. Quero batizá-los evocando aqueles que os deuses levaram. O verde será Rhaegal, em homenagem ao meu valente irmão, que morreu nas margens verdes do Tridente. Ao creme e dourado chamo Viserion. Viserys era cruel, fraco e assustado, mas, ainda assim, era meu irmão. Seu dragão fará o que ele não pôde fazer. 127 - E o animal negro? - Sor Jorah Mormont quis saber. - O negro é Drogon. Mas, enquanto os dragões prosperavam, o khalasar definhava e morria. Em volta deles, a terra se tornava ainda mais desolada. Até a erva-do-diabo escasseava; os cavalos caíam mortos no caminho, sobrando tão poucos, que alguns dos seus tinham de se arrastar a pé. Doreah pegou uma febre e foi piorando a cada légua que venciam. Em seus lábios e mãos estouraram pústulas de sangue, seu cabelo caiu em chumaços e num entardecer faltaram-lhe forças para montar o cavalo. Jhogo disse que tinham de abandoná-la, ou atála à sela, mas Dany se lembrou de uma noite no mar dothraki, quando a moça lisena lhe ensinara segredos para que Drogo a amasse mais. Deu a Doreah água do seu próprio odre, refrescou sua testa com um pano úmido e segurou sua mão até que a moça morreu, tremendo. E só então permitiu que o khalasar prosseguisse viagem. Não viram sinal de outros viajantes. Os dothrakis começavam a murmurar, temerosos, que o cometa os levava para algum inferno. Uma manhã, Dany foi falar com Sor Jorah Mormont, enquanto montavam acampamento no meio de um amontoado de rochas pretas polidas pelo vento: - Estamos perdidos? Será que este deserto não tem fim? - Tem um fim - ele respondeu com a voz cansada. - Eu vi os mapas que os mercadores desenham, minha rainha. Poucas caravanas vêm nesta direção, isso é certo, mas há grandes reinos para leste, e cidades cheias de maravilhas. Yi Ti, Qarth, Asshai da Sombra... - Sobreviveremos o suficiente para vê-las? - Não vou mentir. O caminho é mais duro do que me atrevi a imaginar. O rosto do cavaleiro estava cinzento e exausto. A ferida que tinha sofrido no quadril, na noite em que lutara com os companheiros de sangue de Khal Drogo, nunca chegou a sarar por completo. Dany via as caretas que Mormont fazia quando montava, e parecia andar encurvado na sela enquanto avançavam. - Talvez estejamos condenados se prosseguirmos... Mas sei, com toda certeza, que estaremos condenados se voltarmos. Dany deu um leve beijo no rosto de Mormont. Sentiu-se animada ao vê-lo sorrir. Também tenho de ser forte por ele, pensou amargamente. Pode ser um cavaleiro, mas eu sou do sangue do dragão.
O charco seguinte que encontraram estava fervendo e fedia a enxofre, mas seus odres já estavam quase vazios. Os dothrakis arrefeceram a água em vasilhas e cântaros e beberam-na tépida. O sabor não ficou melhor, mas água era água, e todos tinham sede. Dany olhou o horizonte com desespero. O número do seu grupo tinha se reduzido a um terço, e o deserto ainda se estendia à sua frente, ermo, vermelho, e sem fim. O cometa zomba das minhas esperanças, ela pensou, erguendo os olhos para onde o astro riscava o céu. Será que atravessei metade do mundo e vi o nascimento de dragões apenas para morrer com eles neste deserto duro e quente? Não podia acreditar. No dia seguinte, a alvorada surgiu quando atravessavam uma planície de dura terra vermelha, cheia de rachaduras e fissuras. Dany preparava-se para ordenar ao khalasar que montassem o acampamento quando os batedores voltaram a galope. - Uma cidade, Khaleesi - gritaram. - Uma cidade pálida como a lua e adorável como uma donzela. A uma hora de cavalgada, não mais. - Mostrem-me - ela pediu. Quando a cidade surgiu à sua frente, com as muralhas e torres tremeluzindo, brancas, por trás de um véu de calor, parecia tão bela que Dany estava certa de se tratar de uma miragem. 128 - Sabe que lugar pode ser este? - perguntou a Sor Jorah. O cavaleiro exilado sacudiu fatigadamente a cabeça. - Não, minha rainha. Nunca viajei até tão longe para leste. As distantes muralhas brancas prometiam descanso e segurança, uma chance de cura e fortalecimento, e não havia nada que Dany desejasse mais do que correr para elas. Mas, em vez disso, virou-se para os seus companheiros de sangue: - Sangue do meu sangue, vão à nossa frente e investiguem o nome desta cidade e que tipo de recepção devemos esperar. - Sim, Khaleesi - Aggo respondeu. Os companheiros não levaram muito tempo para voltar. Rakharo saltou do cavalo. Do seu cinto de medalhões pendia o grande arakh curvo, que Dany lhe tinha oferecido quando o nomeou companheiro de sangue. - Esta cidade está morta, Khaleesi. Encontramo-la sem nome e sem deus, com os portões quebrados, e não mais do que vento e moscas se movendo pelas ruas. Jhiqui estremeceu, - Quando os deuses vão embora, os espíritos do mal banqueteiam-se à noite. É melhor evitar esses lugares. É sabido. - E sabido - Irri concordou. - Não por mim - Dany esporeou o cavalo e indicou-lhes o caminho, trotando sob o arco estilhaçado de um antigo portão e avançando ao longo de uma rua silenciosa. Sor Jorah e os companheiros de sangue seguiram-na, e depois, mais lentamente, o resto dos dothrakis. Não podia saber há quanto tempo a cidade estava deserta, mas as muralhas brancas, tão belas quando vistas de longe, estavam rachadas e arruinadas quando vistas de perto. Lá dentro havia um labirinto de ruelas retorcidas. Os edifícios apertavam-se uns contra os outros, com fachadas caiadas nuas, sem janelas. Tudo era branco, como se o povo que aí vivera não conhecesse cores. Passaram por pilhas de entulho lavados pelo sol onde casas tinham ruído e em outros pontos viram as desbotadas cicatrizes do fogo. Num lugar onde seis vielas se juntavam, Dany passou por um pedestal vazio de mármore. Ao que parecia, os dothrakis já tinham visitado aquele local. Talvez a estátua que ali faltava estivesse entre os outros deuses roubados em Vaes Dothrak. Podia ter passado por ela cem vezes, sem saber. Sobre seu ombro, Viserion silvou. Acamparam em frente aos restos de um palácio devastado, numa praça varrida pelo vento, onde a ervado-diabo crescia entre as pedras do pavimento. Dany enviou homens para explorar as ruínas. Alguns foram com relutância, mas foram... Um velho cheio de cicatrizes voltou pouco tempo depois, saltando e sorrindo, com as mãos repletas de figos. Eram umas coisinhas pequenas e mirradas, mas o povo de Dany atirou-se avidamente sobre eles, puxando-se e empurrando-se, enfiando a fruta na boca e mastigando em êxtase. Outros exploradores regressaram com histórias sobre outras árvores frutíferas, escondidas atrás de portas fechadas em jardins secretos. Aggo mostrou-lhe um pátio repleto de videiras retorcidas e minúsculas uvas verdes, e Jhogo descobriu um poço onde a água era pura e gelada. Mas também encontraram ossos, os crânios dos mortos por  enterrar, embranquecidos e quebrados. - Fantasmas - murmurou Irri. - Terríveis fantasmas. Não podemos ficar aqui, Khaleesi, este lugar é deles. - Não temo fantasmas. Os dragões são mais poderosos do que fantasmas - e os figos são mais importantes. - Vá com Jhiqui e encontre para mim um pouco de areia limpa para um banho, e não me incomode mais com conversas bestas. 129
Na frescura da sua tenda, Dany esturricou carne de cavalo sobre um braseiro e refletiu sobre suas alternativas. Ali havia comida e água para sustentá-los, e grama suficiente para os cavalos recuperarem as forças. Como seria agradável acordar todos os dias no mesmo lugar, passear por jardins sombreados, comer figos e beber água fresca, tanta quanta quisesse. Quando Irri e Jhiqui retornaram com vasilhas cheias de areia branca, Dany despiu-se e deixou que esfregassem sua sujeira. - Seu cabelo está voltando, Khaleesi - Jhiqui lhe disse enquanto sacudia areia das suas costas. Dany passou a mão pela cabeça, tateando os novos cabelos. Os homens dothrakis usavam o cabelo preso em longas tranças oleadas e só o cortavam quando eram derrotados. Talvez deva fazer o mesmo, ela pensou. Para lembrá-los de que a força de Drogo vive agora em mim, Khal Drogo tinha morrido com o cabelo sem cortar, algo de que poucos homens podiam se vangloriar. Do outro lado da tenda, Rhaegal abriu suas asas verdes, bateu-as e flutuou num voo curto até voltar a cair no tapete. Quando aterrissou, a cauda chicoteou em fúria, e ele levantou a cabeça e gritou. Se eu tivesse asas, também iria querer voar, Dany pensou. Os Targaryen de outrora tinham montado no lombo de dragões quando partiam para a guerra. Tentou imaginar como seria pôr as pernas em torno do pescoço de um dragão e voar alto no céu. Seria como estar no topo de uma montanha, mas melhor. O mundo inteiro ia se espalhar por baixo. Se voasse alto o suficiente, poderia até ver os Sete Reinos, erguer a mão e tocar o cometa. Irri interrompeu sua divagação para lhe dizer que Sor Jorah Mormont estava lá fora, à espera das suas ordens, - Mande-o entrar - Dany ordenou, sentindo um formigamento na pele esfregada com areia. Envolveu-se na pele de leão. O hrakkar tinha sido muito maior do que Dany, então a pele cobria tudo o que precisava ser coberto. - Trouxe-lhe um pêssego - disse Sor Jorah, ajoelhando-se. Era tão pequeno que Dany quase podia escondêlo na palma da mão, e também estava maduro demais, mas, quando deu a primeira dentada, o miolo era tão doce que quase chorou. Comeu-o lentamente, saboreando cada pedaço, enquanto Sor Jorah lhe falava da árvore de onde o arrancara, num jardim perto da muralha ocidental. - Fruta, água e sombra - Dany disse, com o rosto melado de sumo de pêssego, - Os deuses foram bons por nos trazer para este lugar. - Devemos descansar aqui até ficarmos mais fortes - sugeriu o cavaleiro. - As terras vermelhas não são gentis para com os fracos. - Minhas aias dizem que aqui há fantasmas. - Há fantasmas por todo o lado - Sor Jorah respondeu em voz baixa. - Iremos levá-los conosco para onde quer que formos. Sim, Dany pensou. Viserys, Khal Drogo, meu filho Rhaego, estão sempre comigo. - Diga-me o nome do seu fantasma, Jorah. Conhece todos os meus. O rosto dele ficou muito quieto. - O nome dela era Lynesse. - Sua esposa? - Minha segunda esposa. Dói-lhe falar dela, Dany percebeu, mas queria conhecer a verdade. - Isso é tudo o que quer dizer dela? - a pele de leão deslizou por um ombro e ela a puxou de volta para seu lugar. - Era bonita? 130 - Muito bonita - Sor Jorah ergueu os olhos do seu ombro para o rosto. - Da primeira vez que a contemplei, pensei que fosse uma deusa descida à terra, a própria Donzela transformada em carne. Seu nascimento era muito acima do meu. Era a filha mais nova de Lorde Leyton Hightower, de Vilavelha. O Touro Branco, que comandava a Guarda Real do senhor seu pai, era tio-avô dela. Os Hightower são uma família antiga, muito rica e muito orgulhosa. - E leal - Dany completou. - Eu me lembro. Viserys dizia que os Hightower estiveram entre aqueles que permaneceram fiéis ao meu pai. - E verdade - o cavaleiro admitiu. - Foram seus pais que arranjaram o casamento? - Não. Nosso casamento... Essa é uma história longa e aborrecida, Vossa Graça. Não quero incomodá-la com isso. - Não tenho de ir a nenhum lugar. Por favor - Dany insistiu. - As ordens da minha rainha - Sor Jorah franziu a sobrancelha. - Meu lar... precisa compreender isso para entender o resto. A Ilha dos Ursos é bela, mas remota. Imagine velhos carvalhos retorcidos e pinheiros altos, espinheiros em flor, pedras cinzentas recobertas de musgo, pequenos riachos correndo, gelados, por vertentes íngremes. O salão dos Mormont é feito de enormes toras, rodeado por uma paliçada de terra. Fora alguns arrendatários, minha gente vive ao longo da costa e pesca no mar. A ilha fica muito ao norte, e nossos invernos são mais terríveis do que você possa imaginar, Khaleesi. Apesar disso, a ilha servia-me bem, e nunca me faltaram muiieres. Tive a minha cota de mulheres de pescadores e de filhas de arrendatários, antes e depois ae casado. Caseime novo, com uma noiva escolhida por meu pai, uma Glover de Bosque Profundo. Ficamos casados durante dez anos, ou tão perto disso que não faz diferença. Ela era uma mulher de rosto comum, mas não desagradável. Creio que acabei amando-a depois de um tempo, embora nossas relações fossem mais respeitosas do que apaixonadas. Abortou três vezes ao tentar me dar um herdeiro. Da última vez não chegou a se recuperar. Morreu não muito tempo depois. Dany pousou sua mão na dele e a apertou. - Lamento por você, de verdade. Sor Jorah fez um aceno com a cabeça. - A essa altura, meu pai tinha vestido o negro, então eu era o legítimo Senhor da Ilha dos Ursos. Não me faltaram ofertas de casamento, mas, antes de chegar a me decidir, Lorde Balon Greyjoy rebelou-se contra o Usurpador, e Ned Stark convocou seus vassalos para ajudar o amigo Robert. A batalha final ocorreu em Pyke. Quando as catapultas de Robert abriram uma brecha na muralha do Rei Balon, um sacerdote de Myr foi o primeiro homem a entrar, mas eu não estava muito atrás. E por isso fui armado cavaleiro. Para celebrar sua vitória, Robert ordenou que se realizasse um torneio fora das muralhas de Lanisporto. Foi aí que vi Lynesse, uma donzela com metade da minha idade. Ela tinha vindo de Vilavelha com o pai, a fim de ver as justas dos irmãos. Eu não conseguia tirar os olhos dela. Num ataque de loucura, supliquei seu distintivo para usar no torneio, sem sonhar que atenderia ao meu pedido, mas ela atendeu. Luto tão bem como qualquer outro, Khaleesi, mas nunca fui um cavaleiro de torneios. No entanto, com o distintivo de Lynesse atado em volta do braço, fui um homem diferente. Ganhei justa atrás de justa. Lorde Jason Mallister caiu perante mim, assim como Bronze Yohn Royce. Sor Ryman Frey, o irmão, Sor Hosteen, Lorde Whent, o Javali Forte, até Sor Boros Blount, da Guarda Real. Derrubei todos do cavalo. No último desafio, quebrei nove lanças contra Jaime Lannister sem resultado, e o Rei Robert deu-me os louros de vencedor. Coroei Lynesse Rainha do Amor e da Beleza, e nessa mesma noite fui falar com seu pai e pedi a sua mão. Estava bêbado, tanto de glória como de 131 vinho. Pelo direito, devia ter obtido uma recusa desdenhosa, mas Lorde Leyton aceitou minha proposta. Casamo-nos lá, em Lanisporto, e durante uma quinzena fui o homem mais feliz do mundo inteiro. - Só uma quinzena? - Dany perguntou. Até a mim foi dada mais felicidade do que isso, com Drogo, meu sol-eestrelas. - Uma quinzena foi o tempo que levamos para velejar de Lanisporto à Ilha dos Ursos. Meu lar foi uma grande decepção para Lynesse. Era frio demais, úmido demais, longe demais, com um castelo que nada mais era do que um salão de madeira. Não tínhamos bailes de máscaras, nem de pantominas, nem bailes, nem feiras. Estações inteiras podiam passar sem que um cantor viesse tocar para nós, e não há na ilha um ourives. Até as refeições foram julgadas, Meu cozinheiro pouco sabia além dos seus assados e guisados, e Lynesse perdeu rapidamente o gosto por peixe e carne de veado. Eu vivia para os seus sorrisos, por isso mandei buscar um novo cozinheiro em Vilavelha, e trouxe um harpista de Lanisporto. Ourives, joalheiros, modistas, tudo o que ela queria eu encontrei, mas nunca era suficiente. A Ilha dos Ursos é rica em ursos e árvores, mas pobre em tudo o mais. Construí um belo navio para ela, e viajamos a Lanisporto e Vilavelha para festivais e feiras, e uma vez até fomos a Braavos, onde recebi um grande empréstimo dos agiotas. Tinha sido como campeão de torneio que conquistara sua mão e seu coração, então, por ela participei de outros torneios, mas a magia tinha desaparecido. Não voltei a me destacar, e cada derrota significava a perda de mais um cavalo e de outra armadura para justas, que tinham de ser resgatados ou substituídos. Não podia arcar com os custos. Por fim, insisti que voltássemos para casa, mas aí as coisas ficaram ainda piores do que antes. Já não podia pagar ao cozinheiro e ao harpista, e Lynesse ficou furiosa quando falei em empenhar suas jóias. O resto... Fiz coisas que me envergonho de contar. Por ouro, Para que Lynesse pudesse conservar suas jóias, seu harpista e seu cozinheiro. No fim, custou-me tudo. Quando ouvi dizer que Eddard Stark se dirigia à Ilha dos Ursos, estava tão desprovido de honra que, em vez de ficar e enfrentar seu julgamento, trouxe-a comigo para o exílio. Nada importava a não ser o nosso amor, disse eu a mim mesmo. Fugimos para Lys, onde vendi o navio em troca de ouro para nos manter, A voz do cavaleiro estava pesada de desgosto, e Dany sentiu-se relutante em pressioná-lo a continuar, mas tinha de saber como tudo acabou. - Ela morreu lá? - perguntou-lhe, gentilmente, - Só para mim - ele respondeu. - Em meio ano, meu ouro tinha acabado e fui obrigado a prestar serviços como mercenário. Enquanto lutava com bravosianos em Roine, Lynesse mudou-se para a mansão de um príncipe mercador chamado Tregar Ormollen. Dizem que agora é a sua concubina principal, e até a esposa dele a teme. Dany estava horrorizada.
- Você a odeia? - Quase tanto quanto a amo. Peço que me desculpe, minha rainha. Parece-me que estou muito cansado, Dany lhe deu licença para ir, mas quando ele levantou a aba da tenda, não conseguiu evitar chamá-lo para uma última pergunta. - Como era a aparência da sua Senhora Lynesse? Sor Jorah deu um sorriso triste. - Ora, parecia um pouco a senhora, Daenerys - ele fez uma profunda reverência. – Durma bem, minha rainha. 132 Dany estremeceu e apertou bem a pele de leão à sua volta. Ela se parecia comigo. Isso explicava muito do que ainda não tinha entendido bem. Ele me deseja, compreendeu. Ama-me como a amou não como um cavaleiro ama sua rainha, mas como um homem ama uma mulher. Tentou imaginar-se nos braços de Sor Jorah, beijandoo, dando-lhe prazer, deixando-o penetrá-la. Mas era em vão. Quando fechava os olhos, o rosto dele se transformava sempre no de Drogo. Khal Drogo tinha sido seu sol-e-estrelas, seu primeiro homem, e talvez devesse ser o último. Maegi Mirri Maz Duur jurara que nunca daria à luz uma criança viva. Que homem iria querer uma mulher estéril? E que homem poderia aspirar a rivalizar com Drogo, que morreu com o cabelo por cortar e agora cavalgava pelas terras da noite, com as estrelas como khalasar? Ouvira saudade na voz de Sor Jorah enquanto falava da Ilha dos Ursos. Ele nunca poderá me ter, mas um dia posso lhe devolver o lar e a honra. Isso posso fazer por ele. Nenhum fantasma perturbou seu sono naquela noite. Sonhou com Drogo e com a primeira cavalgada que tinham feito juntos na noite em que se casaram. No sonho não eram cavalos que montavam, mas dragões, Na manhã seguinte, convocou seus três companheiros de sangue. - Sangue do meu sangue, preciso de vocês. Cada um deverá escolher três cavalos, os mais resistentes e saudáveis que nos restarem. Carreguem tanta água e alimentos quanto as montarias agüentarem e partam por mim. Aggo irá para sudoeste, Rakharo para sul. Jhogo, você deverá seguir o shierak qiya para sudeste. - O que devemos procurar, Khaleesií - perguntou Jhogo. - O que houver - respondeu Dany. - Procurem outras cidades, vivas ou mortas. Procurem caravanas e pessoas, rios, lagos e o grande mar salgado. Procurem saber até onde se estende este deserto à nossa frente e o que há do outro lado. Quando deixar este lugar, não pretendo partir às cegas de novo. Quero saber para onde vou e qual é a melhor maneira de chegar lá. E eles foram, com os guizos nos cabelos tilintando suavemente, enquanto Dany se instalava com seu pequeno bando de sobreviventes no lugar que chamaram de Vaes Tolorro, a cidade dos ossos. Os dias seguiram-se às noites, e estas aos dias. As mulheres colhiam frutos dos jardins dos mortos. Os homens cuidavam das suas montarias e consertavam selas, estribos e sapatos. As crianças vagueavam pelas ruelas retorcidas e encontraram velhas moedas de bronze, pedaços de vidro roxo e canecas de pedra com alças esculpidas em forma de serpentes. Uma mulher foi picada por um escorpião vermelho, mas essa foi a única morte. Os cavalos começaram a ganhar alguma musculatura. Dany cuidou pessoalmente da ferida de Sor Jorah, e ela começou a sarar. Rakharo foi o primeiro a voltar. Ao sul, o deserto vermelho estendia-se por uma longa distância, ele relatou, até terminar numa costa desolada junto à água venenosa. Entre aquele lugar e a costa havia apenas turbilhões de areia, rochedos polidos pelo vento e plantas eriçadas de espinhos pontudos. Tinha passado junto às ossadas de um dragão, jurou, tão imensas que havia conduzido o cavalo por entre as suas grandes maxilas negras. Além disso, nada viu. Dany o encarregou, e mais uma dúzia dos seus homens mais fortes, de remover o pavimento da praça a fim de chegar à terra que tinha por baixo. Se a erva-do-diabo crescia entre as pedras, outras ervas poderiam crescer depois de se remover as pedras. Tinham bastantes poços, não faltava água. Se houvesse sementes, poderiam fazer a praça florescer. Aggo retornou em seguida. O sudoeste era estéril e queimado, jurou. Havia encontrado as ruínas de mais duas cidades, menores do que Vaes Tolorro, mas, tirando isso, iguais. Uma era protegida por um anel de crânios montados em lanças de ferro enferrujadas, então ele não se atreveu a entrar, mas explorou a segunda tanto quanto pôde. Mostrou a Dany uma pulseira de 133 ferro que encontrara, ornamentada com uma opala de fogo bruta do tamanho do seu polegar. Também havia rolos de pergaminho, mas estavam secos e desfazendo-se, por isso Aggo os deixou onde estavam. Dany agradeceu-lhe e lhe disse para tratar do conserto dos portões. Se inimigos tinham atravessado o deserto para destruir aquelas cidades nos tempos antigos, podiam perfeitamenteregressar. - Se assim for, devemos estar preparados - ela declarou. Jhogo ficou longe tanto tempo, que Dany temeu que tivesse se perdido, mas, por fim, quando já tinham quase desistido de esperar por ele, chegou a cavalo vindo do sudeste. Um dos guardas que Aggo havia colocado de sentinela nos portões foi o primeiro a vê-lo e soltou um grito, e Dany correu para as muralhas para ver com seus próprios olhos. Era verdade. Jhogo regressava, mas não vinha sozinho. Atrás dele, três estranhos vestidos de modo esquisito, montados em feias criaturas com corcundas, maiores do que qualquer cavalo. Puxaram as rédeas diante dos portões da cidade e ergueram o olhar para contemplar Dany, na muralha acima deles. - Sangue do meu sangue - chamou Jhogo. - Estive na grande cidade de Qarth e voltei com três homens que queriam vê-la com seus próprios olhos. Dany fitou os estranhos. - Aqui estou. Olhem, se é essa a sua vontade... Mas primeiro digam-me seus nomes. O homem pálido com lábios azuis respondeu em um dothraki gutural: - Sou Pyat Pree, o grande mago. O calvo com jóias no nariz respondeu no valiriano das Cidades Livres: - Sou Xaro Xhoan Daxos, dos Treze, um príncipe mercador de Qarth. A mulher com a máscara laqueada de madeira falou no Idioma Comum dos Sete Reinos: - Sou Quaithe da Sombra. Viemos em busca de dragões. - Não procurem mais - Daenerys Targaryen respondeu. - Encontraram-nos. 134 Jon Brancarbor, era como a aldeia se chamava nos mapas antigos de Sam. Jon não a achava grande coisa como aldeia. Quatro casas de um único cômodo em ruínas, feitas de pedra sem argamassa, rodeavam um curral vazio e um poço. As casas eram cobertas com grama, e as janelas, fechadas com esfarrapadas peças de couro cru. E, por cima, pairavam os galhos claros e as folhas vermelho-escuras de um represeiro monstruosamente grande. Era a maior árvore que Jon já vira, com um tronco com quase dois metros e meio de largura, e galhos que se estendiam tanto, que a aldeia inteira descansava à sombra de sua copa. O tamanho não o perturbava tanto como o rosto... Especialmente a boca, que não era uma simples fenda esculpida, mas um buraco irregular suficientemente grande para engolir uma ovelha. Mas aqueles ossos não são de ovelha. E aquilo nas cinzas não é um crânio de ovelha. - Uma árvore velha - Mormont estava montado, franzindo o cenho. "Velha", concordou o corvo empoleirado no seu ombro. "Velha, velha, velha." - E poderosa - Jon conseguia sentir o poder. Thoren Smallwood, escuro na sua placa e cota de malha, desmontou ao lado do tronco. - Olhem aquela cara. Pouco admira que os homens a temessem quando chegaram pela primeira vez a Westeros. Eu mesmo gostaria de dar uma machadada nessa coisa maldita. - O senhor meu pai acreditava que nenhum homem podia dizer uma mentira perante uma árvore-coração. Os deuses antigos sabem quando os homens mentem - Jon falou. - Meu pai acreditava nisso também - disse o Velho Urso. - Deixe-me dar uma olhada naquele crânio. Jon desmontou. Presa às suas costas, em uma bainha de ombro de couro negro, encontrava-se Garralonga, a lâmina bastarda de mão e meia que o Velho Urso tinha lhe oferecido por ter salvo sua vida. Uma espada bastarda para um bastardo, brincavam os homens. O punho tinha sido feito de novo para ele, adornado com um botão em forma de cabeça de lobo esculpido em pedra clara, mas a lâmina propriamente dita era de aço valiriano, velha, leve e mortalmente afiada. Ajoelhou-se e enfiou uma mão enluvada na goela. O interior do buraco estava vermelho da seiva seca e enegrecido pelo fogo. Sob o crânio viu outro, menor, com o maxilar arrancado. Estava meio enterrado em cinzas e pedaços de osso. Quando trouxe o crânio a Mormont, o Velho Urso o ergueu com ambas as mãos e fitou as órbitas vazias. - Os selvagens queimam seus mortos. Sempre soubemos disso. Agora gostaria de lhes ter perguntado por que, quando ainda havia alguns a quem perguntar. Jon Snow lembrou da criatura se levantando, com os olhos azuis cintilando na face morta e pálida. Ele sabia por que, tinha certeza. 135 - Se ao menos os ossos falassem - resmungou o Velho Urso. - Este aqui poderia nos dizer muitas coisas, Como morreu. Quem o queimou e por quê. Para onde foram os selvagens - suspirou. - Dizem que os filhos da floresta podiam falar com os mortos. Mas eu não posso - atirou o crânio de volta para a boca da árvore, onde aterrissou com uma nuvem de cinza fina. – Revistem todas estas casas. Gigante, suba ao topo desta árvore e olhe em volta. Também quero que os cães sejam trazidos para cá. Talvez dessa vez o rastro esteja mais fresco - seu tom de voz não sugeria que tivesse grande esperança nisso. Dois homens revistaram todas as casas, para ter certeza de que não deixariam escapar nada.
Jon fez par com o severo Eddison Tollett, um escudeiro de cabelo grisalho e magro como uma lança, a quem os outros irmãos chamavam Edd Doloroso. - Já é ruim o bastante quando os mortos caminham - disse a Jon enquanto atravessavam a aldeia - , e agora o Velho Urso quer vê-los também falando? Nada de bom viria disso, garanto. E quem poderá dizer que os ossos não mentiriam? Por que a morte deixaria um homem honesto, ou mesmo esperto? O mais provável é que os mortos sejam aborrecidos, cheios de queixas chatas... a terra está fria demais, minha lápide devia ser maior, por que é que ele tem mais vermes do que eu... Jon teve de se abaixar para passar sob a porta baixa. Lá dentro, encontrou um chão de terra batida. Não havia mobília, nenhum sinal de que ali tinha vivido gente, além de algumas cinzas por baixo do buraco para a fumaça que terminava no teto. - Que lugar triste para se viver - Jon disse. - Eu nasci numa casa muito parecida com esta - Edd Doloroso contou. - Foram meus anos encantados. Mais tarde, acabei em tempos duros - um ninho de palha seca enchia um canto da sala como um colchão. Edd o olhou com saudade. - Trocaria todo o ouro de Rochedo Casterly por dormir de novo numa cama. - Chama aquilo de cama? - Se é mais mole do que o chão e tem um teto por cima, eu chamo de cama - Edd Doloroso farejou o ar. - Sinto cheiro de estrume. O cheiro era muito fraco. - Estrume antigo - Jon observou. A casa parecia estar vazia há algum tempo. Ajoelhando-se, ele revolveu a palha com as mãos, para ver se alguma coisa tinha sido escondida por baixo, e depois percorreu as paredes. Não levou muito tempo. - Não há nada aqui. Nada daquilo era o que esperava; Brancarbor era a quarta aldeia por onde tinham passado, e em todas tinha sido a mesma coisa. As pessoas tinham desaparecido, desvanecendo com suas escassas posses e os animais que talvez tivessem. Nenhuma das aldeias dava sinais de ter sido atacada. Estavam... simplesmente vazias. - O que acha que pode ter acontecido com eles? - Jon perguntou. - Alguma coisa pior do que podemos imaginar - Edd Doloroso sugeriu. - Bem, eu talvez fosse capaz de imaginá-lo, mas prefiro não. Já é ruim o bastante saber que se vai ter um fim horrível qualquer sem se pensar nele com antecedência. Dois dos cães farejavam em volta da porta quando saíram do casebre. Outros cães patrulhavam a aldeia. Chett amaldiçoava-os sonoramente, com a voz pesada da ira que nunca parecia pôr de lado. A luz filtrada pelas folhas vermelhas do represeiro fazia os furúnculos no seu rosto parecerem ainda mais inflamados do que de costume. Quando viu Jon, seus olhos estreitaram-se; não havia nenhuma amizade entre eles. 136 As outras casas não trouxeram nenhuma informação. "Foram" gritou o corvo de Mormont, esvoaçando até o represeiro e empoleirando-se acima de suas cabeças. "Foram, foram, foram" - Havia selvagens em Brancarbor há não mais que um ano - Thoren Smallwood parecia-se com um lorde mais do que Mormont, vestindo a cintilante cota de malha negra e placa de peito gravada em relevo de Sor Jaremy Rykker. Seu manto pesado era ricamente debruado de zibelina, preso com os martelos cruzados trabalhados em prata dos Rykker. Antes havia sido o manto de Sor Jaremy... Mas a criatura havia reclamado Sor Jaremy, e a Patrulha da Noite não desperdiçava nada, - Há um ano, Robert era rei, e o reino estava em paz - declarou Jarman Buckwell, o homem impassível e quadrado que comandava os batedores. - Muitas coisas podem mudar num ano. - Uma coisa não mudou - insistiu Sor Mallador Locke. - Menos selvagens quer dizer menos preocupações, Não farei luto, seja o que for que lhes tenha acontecido. São saqueadores e assassinos, todos eles. Jon ouviu um restolhar vindo das folhas vermelhas acima. Dois ramos afastaram-se, e ele vislumbrou um homem pequeno que se deslocava de galho em galho com a facilidade de um esquilo. Bedwyck não tinha mais do que um metro e meio de altura, mas os fios grisalhos no seu cabelo mostravam sua idade. Os outros patrulheiros chamavam-no de Gigante. Sentou-se numa bifurcação da árvore, por cima das suas cabeças e disse: - Há água ao norte. Pode ser um lago. Alguns montes de sílex se erguem a oeste, não muito altos. Nada mais para se ver, senhores. - Poderíamos acampar aqui esta noite - sugeriu Smallwood. O Velho Urso olhou de relance para cima, em busca de um vislumbre de céu por entre os galhos brancos e folhas vermelhas do represeiro: - Não. Gigante, quanta luz do dia nos resta? - Três horas, senhor. - Avançamos para o norte - Mormont decidiu. - Se chegarmos a esse lago, poderemos montar o acampamento perto da margem e talvez pegar alguns peixes. Jon, vá buscar papel, já é mais que hora de escrever ao Meistre Aemon. Jon tirou um pergaminho, uma pena e tinta da sua alforja e trouxe-os ao Senhor Comandante.
Em Brancarbor, escreveu Mormont. A quarta aldeia. Tudo vazio. Os selvagens desapareceram. - Procure Tarly e certifique-se de que ele ponha isto a caminho - Mormont disse enquanto entregava a mensagem a Jon. Quando assobiou, o corvo desceu batendo as asas e foi pousar na cabeça do cavalo. "Milho", sugeriu a ave, balançando-se. O cavalo relinchou. Jon montou seu garrano, deu meia-volta e afastou-se a trote. Para lá da sombra do grande represeiro os homens da Patrulha da Noite espalhavam-se por baixo de árvores menores, tratando dos cavalos, mastigando tiras de carne de vaca salgada, urinando, coçando-se e conversando. Quando foi dada a ordem de partida, as conversas morreram, e os homens voltaram a subir nas selas. Os batedores de Jarman Buckwell foram os primeiros a avançar, com a vanguarda comandada por Thoren Smallwood, encabeçando a coluna propriamente dita. Depois vinha o Velho Urso com a força principal, Sor Mallador Locke com o comboio de abastecimentos e os cavalos de carga e, por fim, Sor Ottyn Wythers e a retaguarda. Duzentos homens ao todo, com uma vez e meia esse número em montarias. Durante o dia, seguiam rastros de animais e leitos de córregos, as "estradas dos patrulheiros", que os levavam a penetrar cada vez mais profundamente na natureza selvagem das folhas e raízes. A noite, acampavam sob um céu estrelado e admiravam o cometa. Os irmãos negros tinham 137 deixado Castelo Negro com boa moral, brincando e trocando histórias, mas nos últimos dias o silêncio pensativo dos bosques parecia ter deixado todos melancólicos. As brincadeiras tinham se tornado mais escassas, e a paciência, mais curta. Ninguém admitia que tinha medo, afinal de contas, eram homens da Patrulha da Noite. Mas Jon conseguia sentir o mal-estar. Quatro aldeias vazias, nem um selvagem em parte alguma, até a caça parecia ter fugido. Mesmo os patrulheiros veteranos concordavam que a floresta assombrada nunca parecera tão sombria. Enquanto avançava, Jon descalçou a luva para arejar os dedos queimados. Coisas feias. De repente lembrou-se de como costumava despentear o cabelo de Arya. A varetinha da sua irmã. Perguntou-se como ela estaria. Deixou-o um pouco triste pensar que talvez não voltasse a despentear seu cabelo. Ficou flexionando a mão, abrindo e fechando os dedos. Sabia que se deixasse que sua mão da espada se tornasse rígida e desajeitada, isso poderia significar o seu fim. Para lá da Muralha, um homem necessitava da sua espada. Foi encontrar Samwell Tarly, com os outros intendentes, dando água aos cavalos. Tinha de cuidar de três: a sua montaria e dois cavalos de carga, cada um carregado com uma grande gaiola de metal e vime cheia de corvos. As aves bateram as asas ao ver que Jon se aproximava e gritaram para ele através das barras. Alguns dos guinchos soavam de forma suspeita, como palavras. - Tem ensinado as aves a falar? - perguntou a Sam. - Algumas palavras. Três deles já conseguem dizer neve, - Um pássaro crocitando meu nome já era ruim o suficiente - disse Jon e a neve não é nada de que um irmão negro queira ouvir falar - ela significava freqüentemente a morte no Norte. - Havia alguma coisa em Brancarbor? - Ossos, cinzas e casas vazias - Jon entregou a Sam o rolo de pergaminho. - O Velho Urso quer enviar notícias a Aemon. Sam retirou uma ave de uma das gaiolas, afagou suas penas, prendeu a mensagem nela e disse: - Voa agora para casa, meu bravo. Para casa - o corvo crocitou qualquer coisa ininteligível em resposta, e Sam o atirou ao ar. Batendo as asas, abriu caminho para o céu por entre as árvores. - Gostaria que pudesse me levar com ele. - Ainda? - Bem - Sam respondeu - , sim, mas... Na verdade, já não estou tão assustado como antes. Na primeira noite, sempre que ouvia alguém se levantar para ir urinar pensava que eram selvagens que se esgueiravam e vinham cortar minha garganta. Tinha medo de fechar os olhos e não poder voltar a abri-los, só que... bem... a alvorada chegava, no fim - deu um sorriso abatido. - Posso ser um covarde, mas não sou estúpido. Estou dolorido e minhas costas doem de montar e de dormir no chão, mas já estou muito pouco assustado. Olha - Sam estendeu uma mão para Jon ver como estava firme. - Tenho andado trabalhando nos meus mapas. O mundo é estranho, Jon pensou. Duzentos homens de coragem tinham deixado a Muralha para trás, e o único que não estava ficando mais temeroso era Sam, o covarde confesso. - Ainda faremos de você um patrulheiro - brincou. - Daqui a pouco vai querer ser um batedor como Grenn. Devo falar com o Velho Urso? - Não se atreva! - Sam puxou o capuz do seu enorme manto negro e subiu afobadamente no cavalo. Era um cavalo de trabalho, grande, lento e desajeitado, porém mais capaz de suportar seu peso do que os pequenos garranos que os patrulheiros montavam. - Tinha esperança de que pudéssemos passar a noite na aldeia - ele disse, melancólico. - Seria agradável voltar a dormir sob um teto. 138 - Não há tetos suficientes para todos.
Jon voltou a montar, ofereceu a Sam um sorriso de despedida e afastou-se. A coluna já tinha avançado bastante, por isso deu uma volta larga em torno da aldeia para evitar o congestionamento maior. Já tinha visto o bastante de Brancarbor. Fantasma emergiu dos arbustos tão subitamente que o garrano se assustou e empinou. O lobo branco caçava bem longe da linha de marcha, mas não andava tendo melhor sorte do que os forrageadores que Smallwood enviava em busca de caça. Os bosques estavam tão vazios como as aldeias, disse-lhe Dywen junto ao fogo numa noite. - Somos um grupo grande - Jon lhe respondera. - A caça provavelmente assustou-se com todo o barulho que fizemos na marcha. - Assustou-se por causa de alguma coisa, sem dúvida - Dywen rebateu. Depois que o cavalo se acalmou, Fantasma saltitou com facilidade a seu lado. Jon alcançou Mormont no momento em que o comandante ziguezagueava em torno de uma moita de espinheiros. - A ave está a caminho? - perguntou o Velho Urso. - Sim, senhor. Sam anda ensinando-as a falar. O Velho Urso fungou: - Vai se arrepender. Esses malditos fazem muito barulho, mas nunca dizem nada que valha a pena ouvir. Avançaram em silêncio, até que Jon voltou a falar: - Se meu tio também encontrou todas estas aldeias vazias... - ... teria assumido a missão de investigar por que - Lorde Mormont terminou por ele e pode bem ser que algo ou alguém não quisesse que se soubesse do motivo. Bem, seremos trezentos quando Qhorin se juntar a nós. Qualquer que seja o inimigo que nos espera adiante, não achará assim tão fácil lidar conosco. Vamos encontrá-los, Jon, prometo. Ou eles vão nos encontrar, Jon pensou, mas não falou. 139 Arya Orio era uma fita azul-esverdeada brilhando ao sol da manhã, Juncos cresciam espessos nos baixios ao longo das margens, e Arya viu uma cobra-dagua deslizar pela superfície, criando ondulações que se alargavam atrás de si. No alto, um falcão voava em círculos preguiçosos. Parecia um lugar pacífico... Até Koss ver o morto. - Ali, nos juncos - ele apontou, e Arya viu o corpo de um soldado, sem forma e inchado. Seu manto verde encharcado estava preso num tronco apodrecido, e um cardume de minúsculos peixes prateados mordiscava sua face. - Eu disse a vocês que havia corpos - Lommy anunciou. - Podia sentir o gosto deles na água. Quando Yoren viu o cadáver, cuspiu: - Dobber, vê se ele tem alguma coisa que valha a pena levar. Cota de malha, faca, umas moedas, qualquer coisa. Esporeou seu castrado e avançou pelo rio adentro, mas o cavalo sentiu dificuldades com a lama mole, e para lá dos juncos a água aprofundava-se. Yoren voltou, zangado, com o cavalo coberto de lodo marrom até os joelhos. - Não vamos atravessar aqui. Koss, venha comigo, para cima, em busca de um vau. Woth, Gerren, vocês vão para baixo. O resto espera aqui. Fiquem de guarda. Dobber encontrou uma bolsa de couro no cinto do morto. Lá dentro havia quatro moedas de cobre e uma pequena madeixa de cabelo louro atada em uma fita vermelha. Lommy e Tarber tiraram a roupa e entraram na água. Lommy pegou punhados de lama viscosa e atirou-os em Torta Quente, aos gritos de "Torta de Lama! Torta de Lama!". Na sua carroça, Rorge praguejou, ameaçou-os e disse-lhes para o desacorrentarem enquanto Yoren estava longe, mas ninguém lhe deu atenção. Kurz pegou um peixe com as mãos. Arya viu como ele fez, em pé numa poça rasa, calmo como águas paradas, lançando a mão, rápida como uma serpente, quando o peixe nadou por perto. Não parecia ser tão difícil como apanhar gatos. Os peixes não tinham garras. Era meio-dia quando os outros voltaram. Woth falou de uma ponte de madeira a meia milha para jusante, mas alguém a tinha queimado. Yoren puxou uma folhamarga do seu fardo: - Podíamos passar os cavalos a nado e, talvez, também os burros, mas não tem como fazer passar as carroças. E há fumaça a norte e a oeste, mais incêndios. Pode ser que este lado do rio seja o lugar onde queremos ficar - Yoren pegou um longo pau e desenhou um círculo na lama, com uma linha saindo dele pela parte de baixo. - Isto é o Olho de Deus, com o rio seguindo ao sul. Estamos aqui - fez um buraco ao lado da linha do rio, abaixo do círculo. - Não podemos dar a volta pela margem oeste do lago, como eu pensava. Para leste, voltamos à estrada do rei - ele 140 deslocou o pau para onde a linha e o círculo se encontravam. - Se me lembro bem, há aqui uma vila. O castro é de pedra, e há um fidalgo que tem casa ali, é só uma casa-torre, mas deve ter sua guarda, e pode haver um cavaleiro ou dois. Seguimos o rio para norte, devemos chegar lá antes da noite. Devem ter barcos, e vou tentar vender tudo o que temos para alugar um para nós – agora Yoren riscava por cima do círculo que representava o lago, de baixo para cima. - Se os deuses forem bons, vamos ter vento para velejar e atravessar o Olho de Deus até Vila de Harren – espetou a ponta do pau no topo do círculo. - Lá podemos comprar novas montarias, ou então procurar refugio em Harrenhal. E o domínio da Senhora Whent, e ela sempre foi amiga da Patrulha. Os olhos de Torta Quente esbugalharam-se. - Há fantasmas em Harrenhal, Yoren cuspiu: - Ao diabo com os seus fantasmas - ele atirou o pau na lama, - Montem. Arya estava lembrando das histórias que a Velha Ama costumava contar de Harrenhal. O malvado Rei Harren tinha se trancado lá dentro, e por isso Aegon soltou os dragões e transformou o castelo numa pira. A Ama dizia que os espíritos do fogo ainda assombravam as torres enegrecidas. Às vezes, os homens iam dormir seguros em suas camas e eram encontrados mortos pela manhã, completamente queimados. Arya não acreditava nisso de verdade, e, fosse como fosse, tinha acontecido muito tempo atrás. Torta Quente estava sendo bobo; não haveria fantasmas em Harrenhal, mas sim cavaleiros. Arya poderia se revelar à Senhora Whent, e os cavaleiros iriam escoltá-la para casa e mantê-la a salvo. Era o que os cavaleiros faziam; mantinham-nos a salvo, especialmente as mulheres. Talvez a Senhora Whent até pudesse ajudar a menina chorona. A trilha do rio não era nenhuma estrada do rei, mas também não era ruim e, no final, as carroças puderam avançar com rapidez. Viram a primeira casa uma hora antes do cair da noite, uma pequena e confortável casa de campo, com telhado de sapé e rodeada de campos de trigo. Yoren avançou na frente, chamando, mas não obteve resposta, - Mortos, talvez. Ou escondidos. Dobber, Rey, comigo - os três homens entraram na casa. - Não há vasilhas nem sinal de moedas - Yoren resmungou quando retornaram. - Nenhum animal. O mais certo é que fugiram. Talvez encontremos essa gente na estrada do rei. Pelo menos a casa e os campos não tinham sido queimados e não havia cadáveres por ali. Tarber encontrou um jardim no fundo. Desenterraram algumas cebolas e rabanetes e encheram um saco com repolhos antes de seguirem caminho. Um pouco adiante, vislumbraram uma cabana de lenhador rodeada de árvores antigas e de troncos ordenadamente empilhados, prontos para virar lenhas, e mais tarde viram uma casa de palafitas decrépita, que se debruçava sobre o rio, apoiada em estacas com três metros de altura, ambos desertos. Passaram por mais campos, de trigo, milho e cevada amadurecendo ao sol, mas não havia homens sentados nas árvores ou percorrendo as fileiras com foices. Por fim, a vila surgiu à vista; um aglomerado de casas brancas espalhadas em torno das muralhas de um castro, um grande septo com um telhado de madeira, a casatorre do senhor empoleirada numa pequena elevação a oeste,,, E nenhum sinal de gente em parte alguma. Yoren ficou sentado no cavalo, franzindo o cenho por entre o emaranhado da barba: - Não gosto disso. Mas está aí. Vamos dar uma espiada. E que seja cuidadosa. Ver se há alguém escondido. Pode ser que tenham deixado um barco para trás ou algumas armas que possamos usar. O irmão negro deixou dez homens guardando as carroças e a garotinha chorona e dividiu o resto em grupos de cinco para fazer uma busca na vila. 141 - Fiquem de olhos e ouvidos abertos - Yoren os preveniu, antes de se dirigir à casa-torre a fim de ver se havia algum sinal do fidalgo ou dos seus guardas. Arya viu-se na companhia de Gendry, Torta Quente e Lommy. O atarracado Woth, com sua barriga redonda, tinha antigamente puxado remos numa galé, o que fazia dele o mais próximo que tinham de um marinheiro. Por isso Yoren lhe disse para levá-los até a margem do lago e ver se conseguiam encontrar um barco. Enquanto avançavam a cavalo por entre as silenciosas casas brancas, um arrepio percorreu os braços de Arya. Aquela vila vazia assustava-a quase tanto como o castro queimado onde tinham encontrado a menina chorona e a mulher sem um braço. Por que as pessoas teriam fugido, abandonando suas casas e tudo o mais? O que poderia tê-las assustado tanto? O sol estava baixo para oeste, e as casas lançavam longas sombras escuras. Um súbito estrondo fez Arya levar a mão à Agulha, mas era apenas uma veneziana batendo com o vento. Depois da margem aberta do rio, a proximidade da vila a deixava cada vez mais nervosa. Quando vislumbrou o lago à sua frente, por entre as casas e as árvores, Arya bateu os calcanhares no cavalo e passou a galope por Woth e Gendry. Irrompeu no relvado junto à margem pedregosa. O sol poente fazia a superfície tranqüila da água cintilar como uma folha de cobre martelado. Era o maior lago que já vira, sem sinal da margem oposta. Viu uma estalagem torta à sua esquerda, construída sobre a água em pesados pilares de madeira. A direita, um longo cais projetava-se lago adentro e havia outras docas mais a leste, dedos de madeira que se estendiam da vila. Mas o único barco que estava visível era um a remo, virado ao contrário, abandonado nas pedras sob a estalagem, com o casco completamente apodrecido. - Desapareceram - disse Arya, abatida. O que faremos agora? - Há uma estalagem - disse Lommy quando os outros se aproximaram. - Acham que deixaram alguma comida? Ou cerveja? - Vamos ver - sugeriu Torta Quente. - Não liguem para a estalagem - Woth exclamou. - Yoren disse para encontrarmos um barco. - Eles levaram os barcos. De algum modo, Arya sabia que era verdade; poderiam revistar a vila inteira, e não encontrariam mais do que o bote a remo de ponta-cabeça. Desanimada, saltou do cavalo e se ajoelhou junto ao lago. A água bateu suavemente em volta das suas pernas. Alguns vaga-lumes estavam surgindo, com suas luzinhas piscando, A água verde estava morna como lágrimas, mas nela não havia sal. Tinha gosto de verão, lama e coisas que cresciam. Arya mergulhou o rosto para lavar a poeira, a sujeira e o suor do dia. Quando se inclinou para trás, a água escorreu por seu pescoço e entrou pelo colarinho. Era bom. Desejou poder tirar a roupa e nadar, deslizando pela água morna como uma lontra cor-de-rosa e magricela. Talvez pudesse percorrer a nado todo o caminho até Winterfell. Woth estava gritando para que ela o ajudasse a procurar, e foi o que ela fez, espreitando docas e barracões para barcos, enquanto seu cavalo pastava na margem. Encontraram algumas velas e cavilhas, além de alguns baldes de alcatrão endurecido e uma gata com uma ninhada de gatinhos recém-nascidos. Mas nada de barcos. A vila estava escura como uma floresta quando Yoren e os outros reapareceram. - A torre está vazia. O senhor saiu para lutar, talvez, ou para deixar seu povo em segurança, não há como saber. Não ficou nem um cavalo ou porco na vila, mas vamos comer. Vi um ganso solto, e algumas galinhas, e há peixe bom no Olho de Deus. 142 - Os barcos desapareceram - Arya relatou, - Podíamos remendar o casco daquele bote a remo - Koss sugeriu. - Podia servir para quatro de nós - Yoren confirmou. - Tem cavilhas - Lommy interveio - e árvores por todo o lado. Poderíamos fazer barcos para todos. Yoren cuspiu: - Sabe alguma coisa sobre construção de barcos, filho de tintureiro? Lommy ficou sem expressão. - Uma jangada - Gendry sugeriu. - Qualquer um pode construir uma jangada e varas compridas para empurrá-la. Yoren pareceu pensativo. - O lago é fundo demais para se atravessar com varas, mas, se ficássemos nos baixios junto à margem... Isso significaria abandonar as carroças. Pode ser o melhor. Vou dormir com a idéia. - Podemos ficar na estalagem? - Lommy perguntou. - Ficaremos no castro, com os portões trancados - Yoren respondeu. - Gosto de sentir muralhas de pedra à minha volta quando durmo. Arya não conseguiu ficar calada: - Não deveríamos ficar aqui. As pessoas não ficaram. Fugiram todos, até o seu senhor. - Arry tem medo - Lommy gritou, com uma gargalhada rouca. - Não tenho nada - ela exclamou - , mas eles tiveram. - Garoto esperto - Yoren observou. - Mas o fato é que os que viviam aqui estavam em guerra, gostassem ou não. Nós, não. A Patrulha da Noite não toma partido, de modo que nenhum homem é nosso inimigo. E nenhum homem é nosso amigo, Arya pensou, mas dessa vez segurou a língua. Lommy e os outros a estavam encarando, e não queria parecer covarde na frente deles. Os portões do castro eram reforçados com cravos de ferro. Lá dentro, encontraram um par de barras de ferro do tamanho de arbustos, com buracos de encaixe no chão e suportes de metal no portão. Quando enfiaram as barras nos suportes, formaram uma enorme escora em X. Não era nenhuma Fortaleza Vermelha, declarou Yoren depois de explorarem o castro de cima a baixo, mas era melhor do que a maioria e devia servir bastante bem para uma noite. As muralhas eram de pedra grosseira sem argamassa, com três metros de altura e uma passarela de madeira na parte de dentro das ameias. Havia uma porta traseira ao norte, e Gerren descobriu um alçapão, sob a palha no velho celeiro de madeira, que levava para um túnel estreito e sinuoso. Seguiu-o por um longo trajeto subterrâneo e emergiu junto ao lago. Yoren fez com que pusessem uma carroça por cima do alçapão, a fim de se certificar de que ninguém entraria por ali. Dividiu-os em três turnos de vigia e mandou Tarber, Kurz e Cutjack para a casa-torre abandonada, a fim de manter vigilância lá em cima. Kurz tinha um berrante para soprar se algum perigo os ameaçasse.
Conduziram as carroças e os animais para dentro e trancaram os portões. O celeiro estava caindo aos pedaços, mas era suficientemente grande para guardar metade dos animais da vila. O abrigo, onde o povo da vila se refugiaria em tempos difíceis, era ainda maior, baixo, longo e feito de pedra, com telhado de sapé. Koss saiu pela porta traseira e voltou com o ganso e duas galinhas, e Yoren permitiu que fizessem uma fogueira para cozinhar. Havia uma grande cozinha dentro do castro, mas todas as panelas e chaleiras tinham sido levadas. Gendry, Dobber e Arya ficaram com os deveres de cozinha. Dobber disse a Arya para depenar as aves enquanto Gendry cortava lenha. 143 - Por que não posso ser eu quem corta a lenha? - ela perguntou, mas ninguém lhe deu atenção. Carrancuda, começou a depenar uma galinha enquanto Yoren, sentado na ponta do banco, afiava o gume do punhal com uma pedra de amolar. Quando a comida ficou pronta, Arya comeu uma coxa de galinha e um pouco de cebola. Ninguém falou muito, nem mesmo Lommy. Gendry saiu depois, sozinho, polindo o elmo com uma expressão distante, como se nem estivesse ali. A menina chorona lamentou-se e choramingou, mas quando Torta Quente lhe ofereceu um pedaço de ganso, ela devorou-o e olhou para o garoto, querendo mais. Arya ficou com o segundo turno, por isso logo se deitou num colchão rústico de palha no abrigo. O sono não chegou facilmente, então, pediu emprestada a pedra de Yoren e ficou afiando a Agulha. Syrio Forel dizia que uma lâmina cega era como um cavalo coxo. Torta Quente agachou-se no colchão a seu lado, vendo-a trabalhar. - Onde é que arranjou uma espada boa como essa? - ele perguntou. Mas, quando viu o olhar que Arya lhe deu, levantou as mãos num gesto defensivo: - Nunca disse que a roubou, só quis saber onde a arranjou, mais nada, - Foi meu irmão quem me deu - Arya murmurou. - Não sabia que tinha um irmão. Arya fez uma pausa para se coçar por baixo da camisa. Havia pulgas na palha, embora não conseguisse entender por que algumas a mais haveriam de incomodá-la. - Tenho um monte de irmãos. - Ah, tem? E são maiores ou menores do que você? Eu não devia estar falando assim. Yoren disse que eu devia manter a boca fechada. - Maiores - ela mentiu. - E também têm espadas, grandes espadas longas, e mostraram-me como matar quem me incomoda. - Eu estava conversando, não incomodando. Torta Quente afastou-se e a deixou sozinha, e Arya enrolou-se na sua colcha. Conseguia ouvir a menina chorona do outro lado do abrigo. Gostaria que ela se calasse. Por que tem de passar o tempo todo chorando? Devia ter dormido, embora não se lembrasse de ter fechado os olhos. Sonhou que um lobo estava uivando, e o som era tão terrível, que a acordou de imediato. Arya sentou-se no colchão de palha com o coração aos saltos. - Torta Quente, acorda - Arya levantou-se desajeitadamente. - Woth, Gendry, não ouviram? - tentou calçar uma bota. Em volta dela, homens e garotos agitaram-se e saíram dos colchões. - O que foi? - Torta Quente perguntou. - Ouvimos o quê? - Gendry quis saber. - Arry teve um pesadelo - alguém disse. - Não, eu ouvi. Um lobo. -Arry tem lobos na cabeça - Lommy zombou. - Deixe-os uivar - Gerren falou. - Eles estão lá fora, e nós aqui dentro. Woth concordou: - Nunca vi nenhum lobo capaz de assaltar um castro. Torta Quente estava dizendo: - Eu não cheguei a ouvir nada. 144 - Era um lobo - Arya gritou para eles, enquanto puxava a outra bota para perto. – Alguma coisa está acontecendo, alguém vem aí, levantem-se! Antes que tivessem tempo para contestá-la, o som chegou até eles, estremecendo na noite... Mas dessa vez não era lobo nenhum, mas Kurz, que soprava seu berrante, avisando do perigo. Num instante, todos foram se vestir e pegar todas as armas que possuíam. Arya correu para o portão enquanto o berrante voltava a soar. Quando passou em disparada pelo celeiro, Dentadas idrou-se furiosamente contra as correntes, e Jaqen Hghar chamou do fundo da sua carroça: - Rapaz! Querido rapaz! E a guerra, a guerra vermelha? Rapaz, liberte-nos. Um homem pode lutar. Rapaz! Ela o ignorou, e continuou a correr, já ouvindo cavalos e gritos do outro lado da muralha. Subiu para a passarela. A balaustrada era um pouco alta demais e Arya, um tanto baixa demais, teve de enfiar os pés nos espaços entre as pedras para conseguir ver. Por um momento, pensou que a vila estivesse cheia de vaga-lumes. Mas então compreendeu que eram homens com tochas, galopando entre as casas. Viu um telhado incendiar-se, com chamas lambendo a barriga da noite, com quentes línguas cor de laranja quando o sapé pegou fogo. Seguiu-se um outro, e depois outro, e em breve havia fogos ardendo em toda parte. Gendry subiu a seu lado, com o elmo posto. - Quantos são? Arya tentou contar, mas cavalgavam depressa demais, com as tochas rodopiando pelo ar quando as atiravam. - Cem. Duzentos, não sei - sobre o rugido das chamas conseguia ouvir gritos. - Em breve virão atrás de nós. - Ali - Gendry apontou. Uma coluna de cavaleiros movia-se por entre os edifícios em chamas, na direção do castro. A luz do fogo relampejava nos elmos de metal e salpicava as cotas de malha e as armaduras com pontos brilhantes laranjas e amarelos. Um deles transportava um estandarte numa grande lança. Arya achou que fosse vermelho, mas era difícil ter certeza durante a noite, com os incêndios rugindo ao seu redor. Tudo parecia vermelho, negro ou laranja. O fogo saltava de uma casa para a seguinte. Arya viu uma árvore ardendo, com as chamas rastejando pelos seus galhos até se erguer na noite vestida com uma túnica de um laranja vivo. Agora, todos estavam acordados, guarnecendo as passarelas ou lutando com os animais assustados lá embaixo. Conseguia ouvir Yoren gritando ordens. Algo esbarrou em sua perna e, ao olhar para baixo, descobriu a menina chorona agarrada a ela. - Vá embora! - Arya livrou a perna. - O que está fazendo aqui em cima? Corra e se esconda em qualquer lugar, sua imbecil - empurrou a menina para longe. Os cavaleiros refrearam os animais perante os portões. - Vocês, no castro! - gritou um cavaleiro com um elmo alto encimado por um espigão. - Abram, em nome do rei! - Bem, e que rei é esse? - berrou de volta o velho Reysen antes que Woth conseguisse lhe dar uma pancada para calá-lo. Yoren subiu à ameia junto ao portão, com o desbotado manto negro atado a uma vara de madeira. - Vocês, parem aí! - gritou. - 0 povo da vila foi embora. - E você quem é, velho? Um dos covardes de Lorde Beric? - gritou o cavaleiro com o elmo de espigão. - Se aquele gordo idiota do Thoros estiver aí, pergunte-lhe se gosta desses fogos. 145 - Não tenho nenhum Thoros aqui - gritou Yoren de volta. - Só uns moços para a Patrulha. Não participo da sua guerra - ergueu a vara, para que os outros vissem a cor do seu manto, - Olhe. Isto é negro, da Patrulha da Noite. - Ou o negro da Casa Dondarrion - gritou o homem que transportava o estandarte inimigo. Arya via agora mais claramente suas cores à luz da vila que ardia: um leão dourado sobre vermelho. - O brasão de Lorde Beric é um relâmpago roxo em fundo negro. De repente, Arya recordou-se da manhã em que atirou uma laranja na cara de Sansa e a irmã ficou com o estúpido vestido cor de marfim cheio de sumo. Havia no torneio um fidalgo qualquer do Sul, e a amiga tonta de Sansa, Jeyne, estava apaixonada por ele. Tinha um relâmpago no escudo, e seu pai enviara-o em busca do irmão do Cão de Caça para decapitá-lo. Aquilo agora parecia ter acontecido há mil anos, algo que acontecera a uma pessoa diferente, numa vida diferente... a Arya Stark, a filha da Mão, não a Arry, o garoto órfão. Como Arry conheceria os senhores e coisas como essas? - Está cego, homem? - Yoren sacudiu sua vara de um lado para o outro, fazendo o manto ondular. - Vê algum maldito relâmpago? - De noite todos os estandartes parecem negros - observou o cavaleiro do elmo de espigão. - Abra, ou serão considerados foras da lei aliados aos inimigos do rei. Yoren cuspiu. - Quem está no comando? - Sou eu - os reflexos de casas ardendo cintilaram, embaçados, na armadura do cavalo de guerra do homem, quando os outros se afastaram para deixá-lo passar. Era um homem robusto, com uma manticora no escudo e arabescos ornamentais rastejando na placa de peito de aço. Através do visor aberto do elmo, uma cara pálida e porcina espreitou para cima. - Sor Amory Lorch, vassalo de Lorde Tywin Lannister, de Rochedo Casterly, Mão do Rei. Do rei verdadeiro, Joffrey - tinha uma voz aguda e fraca. - Em seu nome, ordeno-lhe que abra esses portões. Em toda a volta dos homens, a vila ardia, O ar da noite estava cheio de fumaça, e havia fagulhas vermelhas em maior número do que as estrelas. Yoren fechou a cara. - Não vejo necessidade. Faça o que quiser da vila, não significa nada para mim, mas deixe-nos em paz. Não somos seus adversários.
Olha com os olhos, Arya quis gritar ao homem lá embaixo. - Mas eles não veem que não somos senhores nem cavaleiros? - ela sussurrou. - Não acho que se importem, Arry - Gendry sussurrou em resposta. Ela olhou para Sor Amory, da maneira como Syrio a ensinara a olhar, e viu que Touro tinha razão. - Se não são traidores, abram os portões - gritou Sor Amory. - Vamos nos certificar de que estão dizendo a verdade e seguiremos caminho. Yoren estava mastigando folhamarga. - Já disse, não há ninguém aqui além de nós. Dou a minha palavra. O cavaleiro com o elmo de espigão riu: - O corvo nos dá a sua palavra. - Está perdido, velho? - zombou um dos lanceiros. - A Muralha fica muito longe, a Norte daqui. - Ordeno-lhe uma vez mais, em nome do Rei Joffrey, que prove a lealdade que alega e que abra esses portões - gritou Sor Amory. 146 Por um longo momento Yoren refletiu, mastigando. Então, cuspiu. - Acho que não. - Assim seja. Desafiam as ordens do rei, e assim proclamam-se rebeldes, com ou sem mantos negros. - Tenho garotos novos aqui dentro - gritou Yoren, - Garotos novos e homens velhos morrem da mesma forma. Sor Amory ergueu um punho frouxo e uma lança voou das sombras brilhantes de fogo atrás dele. Yoren devia ser o alvo, mas foi Woth, a seu lado, quem foi atingido, A ponta da lança penetrou na sua garganta e explodiu na parte de trás do pescoço, escura e úmida. Woth agarrou o cabo e caiu, sem forças, da passarela. - Assaltem as muralhas e matem todos - ordenou Sor Amory numa voz entediada. Mais lanças voaram. Arya puxou Torta Quente para baixo pela parte de trás da túnica. De fora veio o clangor das armaduras, o roçar de espadas em bainhas, o bater de lanças em escudos, misturados com xingamentos e o ruído dos cascos de cavalos a galope. Um archote voou, rodopiando, por cima das suas cabeças, arrastando dedos de fogo enquanto atingia a terra do pátio. - Lâminas! - Yoren gritou. - Espalhem-se, defendam a muralha onde quer que eles ataquem. Koss, Urreg, guardem a porta traseira. Lommy, arranque aquela lança de Woth e suba para o lugar onde ele estava. Torta Quente deixou cair sua espada curta quando tentou desembainhá-la. Arya tentou enfiar a espada de volta na sua mão. - Eu não sei lutar com espada - ele disse, os olhos esbugalhados. - E fácil - Arya respondeu, mas a mentira morreu na sua garganta quando uma mão agarrou o topo da balaustrada. Viu-a à luz de uma vila que ardia, com tanta clareza que era como se o tempo tivesse parado. Os dedos eram rudes, cheios de calos, hirsutos pelos negros cresciam entre os nós e havia sujeira sob a unha do polegar. O medo corta mais profundamente do que as espadas, recordou quando o topo de um elmo redondo surgiu atrás da mão. Brandiu a espada com força para baixo, e o aço forjado em castelo da Agulha atingiu os dedos entre as articulações. - Winterfell! - ela gritou. Jorrou sangue, dedos voaram, e o rosto com o elmo desapareceu tão subitamente como surgira. - Atrás de você! - berrou Torta Quente. Arya rodopiou. O segundo homem tinha barba, não possuía um elmo e trazia o punhal entre os dentes, a fim de deixar ambas as mãos livres para escalar. No momento em que passava a perna sobre o parapeito, ela apontou a espada em direção aos seus olhos. A Agulha não chegou a tocá-lo; o homem recuou e caiu. Espero que caia de cara e corte a língua. - Olhe para eles, não para mim! - ela gritou para Torta Quente. Na vez seguinte em que alguém tentou escalar sua parte da muralha, o garoto golpeou as mãos do invasor com a espada curta até que o homem caiu. Sor Amory não tinha escadas, mas as muralhas do castro eram rudes e sem argamassa, fáceis de escalar, e os inimigos pareciam não ter fim. A cada um que Arya cortava, apunhalava ou empurrava para trás, outro surgia sobre a muralha. O cavaleiro do elmo com espigão atingiu o baluarte, mas Yoren prendeu seu estandarte negro em volta do espigão dele e forçou a ponta do punhal a penetrar na sua armadura, enquanto o homem lutava com o tecido. Toda vez que Arya olhava para cima, via mais tochas voando, arrastando longas línguas de chamas que persistiam em seus olhos. Viu um leão dourado numa bandeira vermelha e pensou em Joffrey, desejando 147 que ele estivesse ali para que pudesse enfiar Agulha na sua cara desdenhosa. Quando quatro homens assaltaram o portão com machados, Koss abateu-os com flechas, um por um. Dobber lutou com um homem corpo a corpo, conseguindo empurrá-lo para fora da muralha, e Lommy esmagou sua cabeça com uma pedra antes que pudesse se levantar e festejou, até ver a faca na barriga de Dobber e compreender que ele também não voltaria a se levantar. Arya saltou por cima de um rapaz morto, que não devia ser mais velho do que Jon, que jazia com o braço arrancado. Não achava que tivesse sido ela quem fizera aquilo, mas não tinha certeza. Ouviu Qyle suplicar por misericórdia antes que um cavaleiro com uma vespa no escudo esmagasse sua cara com uma maça de guerra. Tudo cheirava a sangue, fumaça, ferro e mijo, mas depois de algum tempo aquilo parecia ser um cheiro só. Não chegou a ver como o homem magro subiu a muralha, mas quando o fez, caiu sobre ele com Gendry e Torta Quente. A espada de Gendry estilhaçou-se no elmo do homem, arrancando-o da sua cabeça. Por baixo, era careca e parecia assustado, com dentes faltando e uma barba salpicada de cinza. Embora sentisse pena dele, Arya o matou, gritando "Winterfell! Winterfell!", enquanto Torta Quente gritava "Torta Quente!" a seu lado, dando estocadas no pescoço esquelético do homem. Depois que o homem magro morreu, Gendry roubou sua espada e saltou para o pátio, para lutar com mais alguns. Arya olhou para além dele e viu sombras de aço que corriam pelo castro, luz do fogo brilhando em cota de malha e em lâminas e compreendeu que tinham subido a muralha em algum ponto, ou aberto caminho pela porta traseira. Saltou para baixo, para junto de Gendry, aterrissando do modo que Syrio lhe ensinara. A noite ressoava com o estrondo de aço e os gritos dos feridos e dos moribundos. Por um momento, Arya ficou perdida, sem saber para onde ir. Havia morte por todo o lado. E então Yoren estava ali, sacudindo-a, gritando na sua cara. - Rapaz! - ele gritou, do jeito que gritava sempre aquela palavra. - Sai, acabou, perdemos. Reúna todos os que puder, você, ele e os outros, os garotos, e tire-os daqui. Já.' - Como? - Arya não sabia o que fazer. - O alçapão - ele gritou. - Debaixo do celeiro! E nesse mesmo instante desapareceu, correndo de volta à luta, de espada na mão. Arya agarrou Gendry pelo braço. - Ele disse para irmos! O celeiro, a rota de fuga! Através das fendas no elmo, os olhos do Touro brilharam com fogo refletido e ele fez sinal que entendera. Chamaram Torta Quente da muralha e encontraram Lommy Mãos-Verdes onde jazia, sangrando por causa de uma lança atravessada na panturrilha. Também encontraram Gerren, mas estava ferido demais para se mover. Enquanto corriam na direção do celeiro, Arya vislumbrou a menina chorona sentada no meio do caos, rodeada de fumaça e matança. Pegou-a pela mão e botou-a em pé, enquanto os outros se apressavam em seguir em frente. A menina não queria andar, mesmo depois de estapeada. Arya arrastoua com a mão direita enquanto segurava a Agulha com a esquerda. Em frente, a noite era de um vermelho lúgubre. O celeiro está ardendo, pensou. Chamas lambiam as paredes de onde uma tocha havia caído na palha, e Arya conseguia ouvir os gritos dos animais encurralados lá dentro. Torta Quente saiu do celeiro. - Arry, andai Lommy já saiu, deixe-a se ela não quiser vir! Teimosamente, Arya puxou a menina chorona com mais força, arrastando-a consigo. Torta Quente correu de volta para dentro do celeiro, abandonando-as... Mas Gendry voltou, com o fogo brilhando tão intensamente no seu elmo polido que os cornos pareciam cintilar em tons de laranja. Correu para elas e içou a menina chorona por sobre o ombro. 148 - Corre! Atravessar as portas do celeiro era como correr para o interior de uma fornalha. O ar rodopiava com fumaça, e a parede dos fundos era uma torrente de fogo do chão ao teto. Os cavalos e os burros escoiceavam, empinavam-se e berravam. Pobres animais, pensou Arya. Então viu a carroça e os três homens agrilhoados às suas traves. Dentadas estava se atirando contra as correntes, com sangue correndo dos seus braços onde os ferros prendiam seus pulsos. Rorge berrava pragas, chutando a madeira. - Rapaz! - chamou Jaqen Hghar. - Querido rapaz! O alçapão aberto estava a apenas pouco mais de um metro de distância, mas o fogo espalhava-se rapidamente, consumindo a velha madeira e a palha seca mais depressa do que Arya teria acreditado. Lembrou-se do horrível rosto queimado do Cão de Caça. - O túnel é estreito - gritou Gendry. - Como é que a faremos passar? - Puxe-a - Arya gritou. - Empurre-a. - Bons rapazes, amáveis rapazes - Jaqen Hgar falava e tossia ao mesmo tempo. - Tire de mim essas porras dessas correntes! - gritou Rorge. Gendry os ignorou. - Vá primeiro, depois vai ela e depois eu. Apresse-se, o caminho é longo. - Quando cortou a lenha - Arya lembrou-se - , onde deixou o machado? - Lá fora, junto ao abrigo - e olhou de relance para os homens acorrentados, - Eu antes salvaria os burros. Não há tempo.
- Leve-a! - Arya gritou. - Tire-a daqui! Vá! O fogo bateu nas suas costas com quentes asas vermelhas quando saiu correndo do celeiro em chamas. Lá fora estava abençoadamente fresco, mas havia homens morrendo em toda parte. Viu Koss atirar a espada no chão em rendição e viu os homens matando-o ali mesmo. Havia fumaça por toda parte. Nem sinal de Yoren, mas o machado estava onde Gendry o deixara, perto da pilha de lenha do lado de fora do abrigo. Quando o libertou da tora, uma mão revestida de cota de malha agarrou seu braço. Rodopiando, Arya brandiu a cabeça do machado e enterrou-a entre as pernas do homem. Não chegou a ver seu rosto, viu apenas o sangue escuro vazando entre os aros da sua cota de malha. Voltar àquele celeiro foi a coisa mais difícil que já tinha feito. Jorrava fumaça pela porta aberta como uma serpente negra que se contorcia. Arya conseguia ouvir os gritos dos pobres animais lá dentro, burros, cavalos e homens. Mordeu o lábio e atravessou as portas como uma flecha, abaixando-se até onde a fumaça não era tão espessa. Um burro estava encurralado no interior de um anel de fogo, gritando de terror e dor. Arya conseguia sentir o fedor de pelo queimado. O telhado também tinha se incendiado, e havia coisas caindo, fragmentos de madeira em chamas e montes de palha e feno. Arya pôs uma mão sobre a boca e o nariz. Não podia ver a carroça com a fumaça, mas ainda conseguia ouvir os gritos do Dentadas e rastejou na direção do som. Então, uma roda surgiu na sua frente. A carroça saltou e moveu-se uns quinze centímetros quando Dentadas se atirou de novo contra as correntes. Jaqen a viu, mas era difícil demais respirar, quanto mais falar. Atirou o machado para dentro da carroça. Rorge o apanhou e o ergueu acima da cabeça, com rios de suor fuliginoso jorrando do seu rosto sem nariz. Arya corria, tossindo. Ouviu o aço atravessando a madeira velha, e de novo, e de novo. Um instante depois, veio um crac sonoro como um trovão e o leito da carroça rasgou-se numa explosão de lascas. Arya atirou-se de cabeça pelo túnel adentro e deslizou pelo chão um metro e meio. Ficou com terra na boca, mas não se importou, o gosto era bom, era um sabor de lama, água, minhocas 149 e vida. Debaixo da terra, o ar estava fresco e escuro. Por cima nada havia a não ser sangue, um rugido vermelho, fumaça sufocante e os gritos de cavalos moribundos. Rodou o cinto para que Agulha não ficasse no seu caminho e começou a rastejar. Tinha penetrado uns três metros no túnel quando ouviu o som, como o rugido de alguma fera monstruosa, e uma nuvem de fumaça quente e poeira negra formou uma onda atrás dela, com o cheiro do inferno. Arya segurou a respiração, beijou a lama do chão do túnel e chorou. Por quem, não sabia dizer. 150 Tyrion Arainha não estava disposta a esperar por Varys. - A traição já é vil o suficiente - Cersei declarou, furiosa - , mas isso é vilania da mais nua e descarada, e não preciso daquele eunuco afetado para me dizer o que deve ser feito com vilões. Tyrion tirou as cartas da mão da irmã e comparou-as, lado a lado. Eram duas cópias, com exatamente as mesmas palavras, embora tivessem sido escritas por mãos diferentes. - Meistre Franken recebeu a primeira mensagem em Castelo Stokeworth - explicou o Grande Meistre Pycelle. - A segunda cópia chegou até nós por Lorde Gyles. Mindinho passou os dedos pela barba. - Se Stannis se incomodou com eles, é mais do que certo que todos os senhores dos Sete Reinos também viram uma cópia. - Quero essas cartas queimadas, todas elas - Cersei declarou. - Nem um sinal disso deve chegar aos ouvidos do meu filho ou do meu pai. - Imagino que nosso pai tenha ouvido bem mais do que um sinal a essa altura – Tyrion disse secamente. - Certamente Stannis enviou uma ave para Rochedo Casterly e outra para Harrenhal. Quanto a queimar as cartas, para quê? A canção está cantada, o vinho, derramado, a meretriz, grávida. E isso não é tão terrível como parece, na verdade. Cersei virou-se para ele com seus olhos verdes em fúria. - É completamente imbecil? Leu o que ele diz? O garoto Joffrey, ele diz. E atreve-se a me acusar de incesto, adultério e traição! Só porque é culpada. Era espantoso ver como Cersei conseguia ficar zangada por causa de acusações que sabia serem perfeitamente verdadeiras. Se perdermos a guerra, ela devia se dedicar à pantomima, pois tem o dom. Tyrion esperou até que a irmã terminasse e disse: - Stannis precisa ter algum pretexto para justificar sua rebelião. Que esperava que ele escrevesse? "Joffrey é o filho e herdeiro legítimo do meu irmão, mas, apesar de tudo, pretendo tirar o trono dele"? - Não admitirei que me chamem de prostituta! Ora, mana, ele nunca disse que Jaime lhe pagou. Tyrion fingiu que voltava a passar os olhos pelo texto. Havia uma certa frase... -"Feito à Luz do Senhor" - leu em voz alta. - Estranha escolha de palavras, esta.
Pycelle pigarreou. - Essas palavras aparecem com freqüência em cartas e documentos vindos das Cidades Livres. Não significam mais do que, digamos, escrito à vista de deus. O deus dos sacerdotes vermelhos. E o costume deles, creio. - Varys contou-nos há alguns anos que a Senhora Selyse tinha se tornado devota de uma sacerdotisa vermelha - Mindinho lembrou-lhes. 151 Tyrion bateu levemente no papel. - E agora, ao que parece, o senhor seu esposo fez o mesmo. Podemos usar isso contra ele. Instigue o Alto Septão a revelar como Stannis se virou contra os deuses, tal como se virou contra seu legítimo rei... - Sim, sim - a rainha disse impacientemente. - Mas, primeiro, temos de impedir que esta sujeirada se espalhe mais. O conselho deve emitir um édito. Qualquer homem que for ouvido falando de incesto ou chamando Joff de bastardo deverá perder a língua. - Uma medida prudente - disse o Grande Meistre Pycelle, com a corrente do seu cargo tilintando enquanto balançava a cabeça. - Uma loucura - Tyrion suspirou. - Quando arranca a língua de um homem, não está provando que ele é mentiroso, mas apenas dizendo ao mundo que teme o que ele possa dizer. - Então o que você acha que devemos fazer? - quis saber sua irmã. - Muito pouco. Deixe-os cochichar, pois vão se cansar da história em breve. Qualquer homem com um pingo de bom-senso verá nela uma tentativa desastrada de justificar a usurpação de uma coroa. Por acaso Stannis mostra provas? Como poderia, se nunca aconteceu? – Tyrion dirigiu à irmã seu sorriso mais doce. - E verdade - ela se obrigou dizer. -Mas, mesmo assim... - Vossa Graça, seu irmão tem razão nisso - Petyr Baelish juntou os dedos. - Se tentarmos silenciar este boato, isso só lhe dará crédito. E melhor tratá-lo com desprezo, como a patética mentira que é. E, enquanto isso, combater o fogo com fogo. Cersei mediu-o com o olhar. - Que tipo de fogo? - Talvez uma história da mesma natureza. Mas mais fácil de se acreditar. Lorde Stannis passou a maior parte do seu casamento afastado da esposa. Não que o culpe, pois faria o mesmo se fosse casado com a Senhora Selyse. Em todo caso, se espalharmos que a filha dela é bastarda, e Stannis um marido traído, bem... o povo está sempre ansioso por acreditar no pior em relação aos seus senhores, em especial àqueles que são tão rígidos, amargos e orgulhosos, como Stannis Baratheon. - Ele nunca foi muito amado, é verdade - Cersei refletiu por um momento. - Então, revidamos na sua própria moeda. Sim, gosto disso. Quem podemos indicar como amante da Senhora Selyse? Creio que tem dois irmãos. E um dos seus tios tem estado com ela em Pedra do Dragão durante todo este tempo... - Sor Axell Florent é seu castelão - embora Tyrion relutasse em admitir, o plano de Mindinho tinha potencial. Stannis nunca tinha se apaixonado pela esposa, mas era eriçado como um porco-espinho quando se tratava da sua honra e desconfiado por natureza. Se conseguissem semear a discórdia entre ele e seus seguidores, isso só fortaleceria a causa deles. - Disseram-me que a criança tem as orelhas dos Florent. Mindinho fez um gesto desinteressado. - Um enviado comercial de Lys, uma vez observou, para mim, que Lorde Stannis devia amar muito a filha, pois erigiu centenas de estátuas dela ao longo das muralhas de Pedra do Dragão. "Senhor", tive de lhe dizer, "aquilo são gárgulas" - e soltou uma pequena gargalhada. - Sor Axell poderia servir para pai de Shireen, mas, segundo a minha experiência, quanto mais bizarra e chocante for a história, mais provável é que a repitam, Stannis tem um bobo especialmente grotesco, um imbecil com a cara tatuada. Grande Meistre Pycelle olhou-o boquiaberto, horrorizado. 152 - Com certeza não pretende sugerir que a Senhora Selyse levaria um bobo para sua cama? - E preciso ser um bobo para querer se deitar com Selyse Florent - Mindinho respondeu. - Sem dúvida, Cara-Malhada fez-me lembrar de Stannis. E as melhores mentiras contêm dentro de si pepitas de verdade, suficientes para dar o que pensar ao ouvinte. Ora, acontece que este bobo é completamente devoto à menina e a segue para todo lado. Até se parecem um pouco. Shireen também tem uma cara malhada e meio congelada. Pycelle estava perdido. - Mas isso foi da escamagris, que quase a matou quando bebê, pobrezinha. - Gosto mais da minha história - disse Mindinho. - E o mesmo acontecerá com o povo. A maioria acredita que, se uma mulher comer coelho durante a gravidez, dará à luz um filho com grandes orelhas de abano. Cersei sorriu o tipo de sorriso que costumava reservar para Jaime. - Lorde Petyr, você é uma criatura perversa.
- Obrigado, Vossa Graça, - E um mentiroso de grande talento - acrescentou Tyrion, com menos calor. Esse aí é mais perigoso do que eu pensava, refletiu. Os olhos cinza-esverdeados de Mindinho enfrentaram o olhar desigual do anão sem sinal de desconforto. - Todos temos nossos dons, senhor. A rainha estava envolvida demais na sua vingança para reparar na conversa. - Chifrado por um bobo imbecil! Vão rir de Stannis em todas as tabernas deste lado do mar estreito. - A história não deve partir de nós - Tyrion observou - , pois seria vista como uma mentira contada em proveito próprio - que é o que ela é, é claro. De novo, foi Mindinho quem forneceu a resposta, - As prostitutas adoram fofocar, e acontece que possuo alguns bordéis. Sem dúvida Varys poderá plantar sementes nas cervejarias e refeitórios. - Varys - Cersei franziu a sobrancelha. - Onde está Varys? - Eu próprio tenho pensado nisso, Vossa Graça. - A Aranha tece suas teias secretas de dia e de noite - disse o Grande Meistre Pycelle em tom sinistro. - Não confio nesse homem, senhores, - E ele fala tão bem de você... - Tyrion empurrou-se da cadeira. Acontece que sabia o que o eunuco andava fazendo, mas não era nada que os outros conselheiros precisassem ouvir. - Peço-lhes perdão, senhores. Outros assuntos me chamam. Cersei ficou imediatamente desconfiada: - Assuntos do rei? - Nada com que tenha de se preocupar. - Prefiro eu mesma avaliar isso. - Quer estragar minha surpresa? Vou mandar fazer um presente para Joffrey. Uma pequena corrente. - Para que ele precisaria de mais uma corrente? Tem correntes de ouro e de prata em maior número do que consegue usar. Se pensa por um instante que pode comprar o amor de Joff com presentes... - Ora, certamente tenho o amor do rei, tal como ele tem o meu. E creio que ele um dia apreciará esta corrente mais do que todas as outras. 153 O homenzinho fez uma reverência e bamboleou-se em direção à porta. Bronn esperava na entrada da sala do conselho para escoltá-lo de volta à Torre da Mão, - Os ferreiros estão na sua sala de audiências, no aguardo da sua vontade - ele disse enquanto atravessavam o pátio, - No aguardo da minha vontade. Gosto de como isso soa, Bronn. Quase parece um cortesão de verdade. A seguir, vai se ajoelhar. - Vá se foder, anão. - Isso é tarefa de Shae - Tyrion ouviu a Senhora Tanda chamando-o alegremente do topo dos degraus em espiral. Fingindo não reparar nela, bamboleou-se um pouco mais depressa. -Mande aprontar minha liteira, Deixarei o castelo assim que me livrar disso - dois dos Irmãos da Lua estavam de guarda na porta. Tyrion os saudou simpaticamente e fez uma careta antes de começar a subir as escadas. A subida até seu quarto fazia suas pernas doerem. Lá dentro, deparou-se com um rapaz de doze anos que punha roupas sobre sua cama, como uma espécie de escudeiro. Podrick Payne era tão tímido que se tornava furtivo. Tyrion nunca tinha se livrado da suspeita de que o pai lhe impusera o rapaz como piada. - Seus trajes, senhor - murmurou o rapaz, fitando as próprias botas, quando Tyrion entrou. Mesmo quando conseguia arranjar coragem para falar, Pod nunca era capaz de olhar o interlocutor. - Para a audiência. E o seu colar. Seu colar de Mão. - Muito bem. Ajude-me a me vestir. O gibão era de veludo negro coberto de botões dourados em forma de cabeças de leão, e o colar, um aro de mãos de ouro maciço, com os dedos de cada uma apertando o pulso da seguinte. Pod trouxe um manto de seda carmesim debruada de dourado, cortado sob medida. Num homem normal, não seria mais do que uma meia capa. A sala privativa de audiências da Mão não era tão grande como a do rei, nem chegava a um fragmento da imensidão da sala do trono, mas Tyrion gostava dos seus tapetes de Myr, dos reposteiros nas paredes e da impressão de intimidade que dava. Quando entrou, seu intendente gritou: - Tyrion Lannister, Mão do Rei. Também gostava disso. O bando de ferreiros, armeiros e ferrageiros que Bronn havia reunido ficou de joelhos. Tyrion içou-se para a cadeira elevada, que ficava abaixo da redonda janela dourada, e ordenou que se levantassem. - Bons homens, sei que estão todos atarefados, portanto, serei sucinto. Pod, por favor - o rapaz entregoulhe um saco de pano, Tyrion puxou o cordão que o fechava e o abriu, seu conteúdo derramou-se no tapete com um tunc abafado de metal batendo em lã. - Mandei fazer isso na forja do castelo. Quero outros mil iguaizinhos, Um dos ferreiros ajoelhou-se para inspecionar o objeto: três imensos elos de aço trançavam-se, unidos. - Uma poderosa corrente. - Poderosa, mas curta - respondeu o anão. - Como eu, de certo modo. Desejo uma bastante mais longa. Tem um nome? - Chamam-me Pança de Ferro, senhor - o ferreiro era largo e atarracado, vestido simplesmente com lã e couro, mas seus braços eram tão grossos como o pescoço de um touro. - Quero todas as forjas em Porto Real dedicadas a fazer estes elos e a uni-los. Todo o trabalho restante deverá ser posto de lado. Quero todos os homens que conheçam a arte de trabalhar o metal voltados para esta tarefa, sejam eles mestres, empregados ou aprendizes. Quando subir 154 a Rua do Aço, quero ouvir martelos tinindo dia e noite. E quero um homem, um homem forte, para me certificar de que tudo isso seja feito. Esse homem é você, Pança de Ferro? - Pode ser que seja, senhor. Mas, então, e a cota de malha e as espadas que a rainha queria? Outro ferreiro interveio: - Sua Graça ordenou-nos que fizéssemos cotas de malha e armaduras, espadas, punhais e machados, tudo em grande quantidade. Para armar o novo corpo de manto dourado, senhor. - Esse trabalho pode esperar - Tyrion respondeu. - A corrente primeiro. - Senhor, com a sua licença. Sua Graça disse que aqueles que não cumprissem as suas metas teriam as mãos esmagadas - insistiu o ansioso ferreiro. - Esmagadas nas suas próprias bigornas, ela disse. Querida Cersei, sempre se esforçando para que o povo nos ame. - Ninguém terá as mãos esmagadas. Tem a minha palavra quanto a isso. - O ferro tornou-se caro - declarou Pança de Ferro - , e essa corrente irá precisar de muito e também de coque, para os fogos. - Lorde Baelish vai se assegurar de que tenham dinheiro à medida que forem necessitando dele - Tyrion prometeu. Esperava poder contar com Mindinho para isso. - Ordenarei à Patrulha da Cidade que os ajude a encontrar ferro. Derretam todas as ferraduras da cidade, se for necessário. Um homem mais velho avançou, ricamente vestido com uma túnica de damasco com presiihas de prata e um manto forrado de pele de raposa. Ajoelhou-se para examinar os grandes elos de aço que Tyrion havia despejado no chão: - Senhor - anunciou com gravidade - , isto é no máximo trabalho cru, Não possui arte. E tarefa adequada a ferreiros comuns, sem dúvida, a homens que dobram ferraduras e dão forma a tachos. Mas eu sou um mestre armeiro, se aprouver ao senhor. Isto não é trabalho para mim, nem para os mestres meus colegas. Fazemos espadas afiadas como canções, armaduras tais que um deus poderia usar. Mas isto não. Tyrion inclinou a cabeça para o lado e ofereceu ao homem uma dose dos seus olhos desiguais. - Qual é o seu nome, mestre armeiro? - Salloreon, se agradar ao senhor. Se a Mão do Rei permitir, ficaria extremamente honrado em lhe forjar uma armadura adequada à sua Casa e elevado cargo - dois dos outros soltaram um riso abafado, mas Salloreon prosseguiu sem prestar atenção neles, - Placas e escamas, acho. As escamas douradas, brilhantes como o sol, as placas esmaltadas com um profundo carmim Lannister. Para o elmo, sugeriria uma cabeça de demônio, coroada com altos chifres dourados. Quando cavalgar para a batalha, os homens vão se encolher de medo. Uma cabeça de demônio, pensou Tyrion, triste, que diz isso de mim? - Mestre Salloreon, pretendo lutar o resto das minhas batalhas a partir desta cadeira, E de elos que preciso, não de chifres de demônio. Por isso, permita-me que coloque nesses termos: Você irá fazer elos, ou então irá usá-los. A escolha é sua. Levantou-se e se retirou, sem dar sequer uma olhada para trás. Bronn esperava-o perto do portão com a liteira e uma escolta de Orelhas Negras a cavalo. - Sabe para onde vamos - disse-lhe Tyrion, aceitando ajuda para entrar na liteira. Ele tinha feito tudo o que podia para alimentar a cidade faminta. Pusera várias centenas de carpinteiros para construir barcos de pesca em vez de catapultas, abrira a floresta do rei a qualquer caçador que se atrevesse a atravessar o rio e até enviara homens de manto dourado em busca de 155 abastecimentos para oeste e para sul. Mas ainda via olhos acusadores onde quer que fosse. As cortinas da liteira afastavam-no deles e, além disso, davam-lhe tempo livre para pensar. Enquanto abriam o sinuoso caminho pela retorcida Rua da Sombra Negra até o sopé da Grande Colina de Aegon, Tyrion refletiu sobre os acontecimentos da manhã. A ira de sua irmã a levara a não prestar atenção no verdadeiro significado da carta de Stannis Baratheon. Sem provas, suas acusações não eram nada; o que interessava era que tinha se denominado rei. E o que Renly achará disso? Não podiam se sentar ambos no Trono de Ferro.
Ociosamente, puxou a cortina um pouco para trás, a fim de espreitar as ruas. Orelhas Negras cavalgavam de ambos os lados, com os macabros colares em volta dos pescoços, enquanto Bronn seguia na frente para abrir caminho. Observou os transeuntes que o olhavam e fez um pequeno jogo consigo mesmo, tentando distinguir os informantes dos demais. Aqueles que parecem mais suspeitos são provavelmente inocentes, decidiu. E com os que parecem inocentes que tenho de ter cuidado. Seu destino ficava atrás da colina de Rhaenys, e as ruas estavam cheias de gente. Passou-se quase uma hora até que a liteira parasse de balançar. Tyrion dormitava, mas acordou abruptamente quando o movimento cessou, esfregou a areia dos olhos e aceitou a ajuda de Bronn para sair. A casa tinha dois andares, o de baixo em pedra e o de cima em madeira. Um torreão redondo erguia-se de um canto da estrutura, Muitas das janelas tinham vitrais. Por cima da porta balançava uma lâmpada ornamentada, um globo de metal dourado e vidro escarlate. - Um bordel - Bronn identificou. - Que pretende fazer aqui? - O que é que normalmente se faz num bordel? O mercenário soltou uma gargalhada. - Shae não é suficiente? - Ela era bastante bonita para uma acompanhante de acampamento militar, mas já não estou num acampamento. Homens pequenos têm grandes apetites, e ouvir dizer que as garotas daqui são dignas de um rei. - O garoto já tem idade suficiente? - Joffrey não. Robert. Esta casa era uma das suas favoritas - muito embora fojfrey talvez tenha mesmo idade suficiente. Uma idéia interessante, essa. - Se você e os Orelhas Negras quiserem se divertir, sintam-se à vontade, mas as moças da Chataya são caras. Encontrarão casas mais baratas ao longo da rua. Deixe aqui um homem que saiba onde encontrar os outros quando eu quiser retornar. Bronn anuiu com um aceno. - Como queira - os Orelhas Negras eram só sorrisos. Lá dentro, uma mulher alta, vestida de sedas esvoaçantes, o esperava. Tinha pele de ébano e olhos de sândalo. - Sou Chataya - ela se apresentou, com uma profunda reverência. - E o senhor é... - Não vamos cair no hábito dos nomes. Eles são perigosos - o ar tinha cheiro de alguma especiaria exótica, e o chão sob seus pés mostrava um mosaico com duas mulheres entrelaçadas no amor. - Tem um estabelecimento agradável. - Trabalhei longamente para deixá-lo assim. Fico feliz que a Mão esteja satisfeita - a voz dela era um fluxo de âmbar, líquida, com o sotaque das longínquas Ilhas do Verão. - Os títulos podem ser tão perigosos como os nomes - Tyrion a preveniu, - Mostre-me algumas das suas garotas. 156 - Será um grande prazer. Descobrirá que todas elas são tão doces como belas e conhecedoras de todas as artes do amor. Afastou-se com movimentos graciosos, obrigando Tyrion a bambolear-se o melhor que podia em cima de pernas com metade do comprimento das dela. Por detrás de um ornamentado biombo de Myr, esculpido com flores, fantasias e donzelas sonhadoras, espreitaram, sem ser vistos, uma sala comum, onde um velho tocava uma melodia alegre numa flauta. Numa alcova coberta de almofadas, um tyroshi bêbado com sua barba roxa embalava uma roliça prostituta sobre o joelho. Tinha desatado seu corpete e inclinava a taça para derramar um fino fio de vinho sobre os seios dela a fim de lambê-los. Outras duas moças jogavam damas em frente a uma janela de vitral. A sardenta usava uma cadeia de flores azuis no cabelo cor de mel. A outra tinha uma pele tão suave e negra como azeviche polido, grandes olhos escuros e pequenos seios pontudos. Vestiam seda leve presa à cintura com cintos de contas, A luz do sol que jorrava através do vidro colorido delineava seus belos corpos jovens através do tecido fino, e Tyrion sentiu uma agitação na virilha. - Sugeriria, respeitosamente, a garota da pele escura - Chataya falou, - E nova. - Tem dezesseis anos, senhor. Uma boa idade para Joffrey, pensou, lembrando-se do que Bronn tinha dito. Sua primeira garota tinha sido ainda mais nova. Tyrion lembrou-se de como ela pareceu tímida quando ele tirou seu vestido da primeira vez. Longos cabelos escuros e uns olhos azuis nos quais um homem podia se afogar, e foi o que aconteceu com ele. Fazia tanto tempo... Que idiota desgraçado você é, anão, - Esta moça vem da sua terra natal? - O sangue é o do Verão, senhor, mas minha filha nasceu aqui em Porto Real - a surpresa dele deve ter transparecido no seu rosto, pois Chataya prosseguiu: - Meu povo considera que não há vergonha em ser visto na casa dos travesseiros. Nas Ilhas do Verão, aqueles que são treinados na dádiva do prazer são muito estimados. Muitos jovens e donzelas de elevado nascimento servem durante alguns anos após seu florescimento, para honrar os deuses.
- O que os deuses têm a ver com isso? - Os deuses fizeram nossos corpos, tal como nossas almas, não é assim? Deram-nos vozes para que possamos adorá-los com canções. Deram-nos mãos para que possamos construir-lhes templos. E deramnos desejo para que possamos acasalar e adorá-los dessa forma. - Lembre-me de dizer isso ao Alto Septão - Tyrion retrucou. - Se pudesse orar com o meu pau, seria muito mais religioso - fez um gesto com a mão. - Vou aceitar com prazer sua sugestão. - Chamarei minha filha. Venha. A moça encontrou-se com ele ao pé da escada. Mais alta do que Shae, embora não tão alta quanto a mãe, teve de se ajoelhar para que Tyrion a beijasse. - Meu nome é Alayaya - disse, apenas com o mais leve toque do sotaque da mãe. - Venha, senhor - pegou sua mão e o levou por dois lances de escadas e por um longo salão, Arquejos e guinchos de prazer vinham de trás de uma das portas fechadas, risinhos e sussurros de outra. O pênis de Tyrion fez pressão contra os cordões dos seus calções. Isso pode ser humilhante, pensou, enquanto seguia Alayaya por outra escada acima até o quarto do torreão. Havia apenas uma porta. Ela o conduziu para dentro e a fechou. Dentro do quarto havia uma grande cama com dossel, 157 um guarda-roupa alto, decorado com gravuras eróticas, e uma janela estreita de vitral num padrão de diamantes vermelhos e amarelos. - E muito bela, Alayaya - disse-lhe Tyrion quando ficaram a sós. - Dos pés à cabeça, cada parte sua é adorável. Mas, agora, a parte que mais me interessa é a língua. - O senhor achará minha língua bem instruída. Quando era menina, aprendi quando usá-la e quando não. - Isso me agrada - Tyrion sorriu. - Então, o que fazemos agora? Talvez tenha alguma sugestão? - Sim. Se o senhor quiser abrir o guarda-roupa, encontrará o que procura. Tyrion beijou sua mão e subiu para dentro do guarda-roupa vazio. Alayaya fechou-o nas suas costas. Apalpou em busca do painel traseiro, sentiu-o deslizar sob seus dedos e o empurrou para o lado até o fim. O espaço vazio por trás da parede estava negro como breu, mas Tyrion tateou até encontrar o metal. Sua mão fechou-se em torno de uma escada vertical. Encontrou um degrau mais baixo com o pé e começou a descer. Bem abaixo do nível da rua, o poço desembocou num túnel de terra inclinado, onde foi encontrar Varys à espera com uma vela na mão. Varys não parecia em nada consigo próprio. Via-se uma cara marcada por cicatrizes e uma barba negra por fazer sob seu capacete de espigão, e usava cota de malha sobre couro fervido, com um punhal e uma espada curta no cinto. - Chataya o satisfez, senhor? - Quase demais - Tyrion admitiu. - Está certo de que podemos confiar nesta mulher? - Não estou certo de nada neste mundo volúvel e traiçoeiro, senhor. Mas Chataya não tem motivo para gostar da rainha e sabe que tem de agradecer ao senhor por livrá-la de Aliar Deem. Vamos? - ele avançou pelo túnel adentro, Até seu jeito de andar é diferente, observou Tyrion. O cheiro de vinho amargo e alho grudava em Varys no lugar da lavanda. - Gosto deste seu novo traje - Tyrion mencionou enquanto caminhavam. - O trabalho que faço não me permite que cruze as ruas no meio de uma coluna de cavaleiros. Portanto, quando deixo o castelo, adoto aparências mais adequadas, e assim sobrevivo para servi-lo por mais tempo. - O couro fica bem em você. Devia ir assim à nossa próxima sessão do conselho, - Sua irmã não aprovaria, senhor. - Minha irmã sujaria a roupa de baixo - ele sorriu na escuridão. - Não vi sinais de nenhum dos seus espiões me seguindo. - Fico grato por ouvir isso, senhor. Alguns dos homens a soldo da sua irmã também estão ao meu, sem que ela o saiba. Detestaria pensar que tivessem se tornado tão descuidados que se deixassem ver. - Bem, eu detestaria pensar que tivesse escalado por dentro de guarda-roupas e sofrido os tormentos do desejo frustrado para coisa nenhuma. - Dificilmente será para coisa nenhuma - assegurou-lhe Varys. - Eles sabem que está aqui. Se algum será ousado o bastante para entrar na casa de Chataya disfarçado de cliente, não sei dizer, mas prefiro pecar pelo excesso de cautela. - Como é que um bordel pode ter uma entrada secreta? - O túnel foi escavado para outra Mão do Rei, cuja honra não lhe permitia entrar abertamente numa casa dessas. Chataya guardou com cuidado o conhecimento da sua existência. 158 - E, no entanto, você sabia. - Os passarinhos voam por muitos túneis escuros. Cuidado, os degraus são íngremes. Emergiram por um alçapão no fundo de um estábulo, depois de percorrerem talvez uma distância de três quarteirões por baixo da Colina de Rhaenys. Um cavalo relinchou na sua cocheira quando Tyrion deixou que o alçapão se fechasse com estrondo. Varys soprou a vela e escondeu-a numa viga, e Tyrion olhou em volta. As cocheiras estavam ocupadas por uma mula e três cavalos. Bamboleou-se até o castrado malhado e examinou seus dentes. - Velho - disse - e tenho as minhas dúvidas quanto ao seu fôlego. - Não é uma montaria apta a transportá-lo em batalha, é verdade - Varys respondeu - , mas servirá, e não chamará a atenção. Tal como os outros. E os cavalariços veem e ouvem apenas os animais - o eunuco tirou um manto de um cabide. Era de tecido grosseiro, desbotado pelo sol e puído, mas de corte muito amplo, - Se me der licença - passou o manto sobre os ombros de Tyrion, que o envolveu dos pés à cabeça, com um capuz que podia ser puxado para a frente de modo que escondesse seu rosto em sombras. - Os homens veem aquilo que esperam ver – disse Várys enquanto puxava e ajustava o manto. - Os anões não são uma visão tão freqüente como as crianças, então, o que verão será uma criança. Um garoto com um manto velho no cavalo do pai, indo tratar dos assuntos do pai. Embora fosse melhor se desse preferência a vir de noite. - Planejo fazê-lo... depois de hoje. Nesse momento, no entanto, Shae me espera. – Tyrion instalara-a numa mansão murada no canto nordeste de Porto Real, não muito longe do mar, mas não tinha se atrevido a visitá-la por receio de ser seguido. - Que cavalo quer? Tyrion encolheu os ombros. - Este serve. - Vou selá-lo para você - Varys tirou sela e arreios presos em um prego. Tyrion ajustou o pesado manto e ficou andando impacientemente de um lado para o outro. - Perdeu um conselho animado. Stannis coroou-se, ao que parece. - Eu sei. - Acusa meus irmãos de incesto. Pergunto a mim mesmo como terá chegado a tal suspeita. - Talvez tenha lido um livro e visto a cor do cabelo de um bastardo, como Ned Stark e Jon Arryn antes dele. Ou talvez alguém tenha sussurrado ao seu ouvido - o riso do eunuco não foi a pequena gargalhada habitual, mas mais profundo e gutural. - Alguém como você, por acaso? - Sou suspeito? Não fui eu. - Se tivesse sido, admitiria? - Não. Mas por que trairia um segredo que guardei durante tanto tempo? Uma coisa é enganar um rei, outra bem diferente é esconder-se do grilo nos caniços ou do passarinho na chaminé. Além disso, os bastardos estavam aí para que todos os vissem. - Bastardos de Robert? O que há sobre eles? - Ele gerou oito, até onde sei - Varys respondeu enquanto lutava com a sela. - As mães eram de cobre e mel, castanha e manteiga, e, no entanto, os bebês eram todos negros como corvos... e igualmente de mau agouro, ao que parece. Portanto, quando Joffrey, Myrcella e Tommen deslizaram por entre as coxas da sua irmã, todos tão dourados como o sol, não foi difícil vislumbrar a verdade. Tyrion balançou a cabeça. Se ela tivesse dado à luz um filho para o marido, teria sido o suficiente para desarmar a suspeita... Mas, nesse caso, não seria Cersei. 159 - Se não foi você quem soprou no ouvido dele, quem foi? - Algum traidor, sem dúvida - Varys apertou a cilha. - Mindinho? - Não mencionei nenhum nome. Tyrion deixou que o eunuco o ajudasse a montar. - Lorde Varys - disse de cima da sela - , às vezes sinto que é o melhor amigo que tenho em Porto Real, e, às vezes, que é meu pior inimigo. - Que estranho. Penso em você praticamente da mesma forma. 160 Bran muito antes que os primeiros pálidos dedos de luz se intrometessem através das venezianas de Bran, seus olhos já estavam abertos. Havia convidados em Winterfell, visitantes vindos para o festim das colheitas. De manhã, iriam lutar com manequins no pátio. Em outros tempos, essa perspectiva teria enchido o garoto de entusiasmo, mas isso havia sido antes.
Agora não. Os Walder iriam quebrar lanças com os escudeiros da escolta de Lorde Manderly, mas Bran não participaria. Teria de fazer o papel de príncipe no aposento privado do pai. - Escute, e talvez aprenda alguma coisa sobre o que significa ser um senhor - Meistre Luwin lhe tinha dito. Bran nunca pedira para ser um príncipe. Era com a cavalaria que sempre sonhara; armaduras reluzentes e estandartes tremulando, lanças e espadas, um cavalo de guerra entre as pernas. Por que teria de desperdiçar seus dias ouvindo velhos falando de coisas que só compreendia parcialmente? Porque está enfraquecido, lembrou-lhe uma voz no seu interior. Um senhor na sua cadeira almofada podia ser aleijado. Os Walder diziam que o avô era tão frágil que tinha de ser levado para todo o lado numa liteira. Mas um cavaleiro no seu corcel de batalha não podia. Além disso, era o seu dever. - É herdeiro do seu irmão e o Stark em Winterfell - Sor Rodrik dissera, recordando-lhe como Robb costumava acompanhar o senhor seu pai quando os vassalos vinham vê-lo. Lorde Wyman Manderly chegara de Porto Branco dois dias antes, viajando de saveiro e liteira, pois era gordo demais para montar a cavalo. Consigo viera uma longa coluna de servidores: cavaleiros, escudeiros, senhores e senhoras de menor importância, arautos, músicos, até um malabarista, num esplendor de estandartes e capas que pareciam ter meia centena de cores. Bran lhes tinha dado as boas-vindas a Winterfell sentado no cadeirão de pedra do pai, com os lobos gigantes esculpidos nos braços, e mais tarde Sor Rodrik disse que tinha se portado bem. Se tivesse sido só aquilo, não teria se importado. Mas foi apenas o começo. - O festim é um pretexto agradável - explicara Sor Rodrik - , mas um homem não atravessa cem léguas por uma fatia de pato e um gole de vinho. Só aqueles que têm assuntos importantes para sumeter à nossa consideração fazem tal viagem. Bran olhou para cima, para o rude teto de pedra sobre sua cabeça. Sabia que Robb lhe diria para não agir como um garotinho. Quase conseguia ouvi-lo, e também o senhor seu pai. O inverno está chegando, e você é quase um homem-feito, Bran. Tem um dever a cumprir. Quando Hodor entrou pela porta, apressado, sorrindo e cantarolando sem melodia, encontrou o rapaz resignado ao seu destino. Juntos, deixaram-no lavado e escovado. - Hoje quero o gibão de lã branca - Bran ordenou. - E o broche de prata. Sor Rodrik vai querer que eu tenha um ar senhorial. 161 Até onde era capaz, Bran preferia se vestir sozinho, mas havia algumas tarefas, como vestir os calções e amarrar as botas, que o atormentavam. Eram mais rápidas com a ajuda de Hodor. Uma vez ensinado a fazer alguma coisa, o gigante fazia-a com habilidade. Suas mãos eram sempre suaves, embora tivesse uma força espantosa. - Você também poderia ter sido um cavaleiro, aposto - disse-lhe Bran. - Se os deuses não tivessem levado sua esperteza, teria sido um grande cavaleiro. - Hodor? - o gigante piscou para ele seus olhos castanhos e francos, olhos inocentes de compreensão. - Sim. Hodor - Bran apontou. Na parede ao lado da porta estava pendurado um cesto, feito de vime e couro, muito firme, com buracos cortados para as pernas de Bran. Hodor enfiou os braços nas correias, cingiu bem o grande cinto ao peito, e depois ajoelhou-se ao lado da cama. Bran usou as barras presas na parede para se segurar, enquanto balançava o peso morto das suas pernas para dentro do cesto e através dos buracos. - Hodor - repetiu o gigante, erguendo-se. O cavalariço tinha quase dois metros e dez; às suas costas, a cabeça de Bran quase raspava no teto. Abaixou-se bem quando passaram pela porta. Certa vez, Hodor sentira o cheiro de pão assando e correu para as cozinhas, e Bran acabou por dar uma pancada tão forte na cabeça, que Meistre Luwin teve de dar pontos no seu couro cabeludo. Mikken dera-lhe um velho elmo enferrujado e sem visor que tinha no armeiro, mas Bran raramente o usava. Os Walder riam sempre que o viam em sua cabeça. Bran colocou as mãos nos ombros de Hodor enquanto desciam a escada em caracol. Lá fora, no pátio, já soavam os sons das espadas, dos escudos e dos cavalos, Faziam uma doce música. Vou só dar uma espiada, Bran pensou, uma espiada rápida, só isso. Os fidalgos de Porto Branco sairiam mais tarde, com seus cavaleiros e homens de armas. Até lá, o pátio pertencia aos seus escudeiros, cujas idades iam dos dez aos quarenta anos. Bran desejou tanto ser um deles, que seu estômago doeu. Tinham sido colocados no pátio dois manequins, e cada um deles era composto por um robusto poste, que sustentava uma trave mestra giratória com um escudo numa ponta e um alvo almofadado na outra. Os escudos tinham sido pintados de vermelho e dourado, embora os leões Lannister fossem granulosos e deformados e já estivessem bem marcados pelos primeiros rapazes que arremeteram contra eles, A visão de Bran no cesto atraiu olhares daqueles que não o tinham visto antes, mas ele tinha aprendido a ignorar olhares. Pelo menos tinha uma boa vista; às costas de Hodor, ficava acima de todo mundo. Viu que os Walder estavam montando, Tinham trazido boas armaduras das Gêmeas, placas brilhantes e prateadas com relevos em esmalte azul. A cimeira do elmo do Grande Walder tinha formato de um castelo, enquanto o Pequeno Walder preferia flâmulas de seda azul e cinza. Seus escudos e capas também os distinguiam um do outro. O Pequeno Walder esquartelava as torres gêmeas de Frey com o javali malhado da Casa da avó e o lavrador da Casa da mãe; Crakehall e Darry, respectivamente. Os quartéis do Grande Walder eram a árvore com corvos da Casa Blackwood e as sinuosas serpentes dos Paege. Devem estar famintos de honra, Bran pensou, enquanto os observava pegando as lanças. Um Stark necessita apenas do lobo gigante. Seus corcéis cinza-rajados eram rápidos, fortes e otimamente treinados. Lado a lado, carregaram contra os manequins. Ambos atingiram bem os escudos e já tinham passado à vontade quando os alvos almofadados rodopiaram por trás deles. O Grande Walder deu o golpe mais 162 forte, mas Bran achou que o Pequeno Walder montou melhor. Teria dado ambas as suas pernas inúteis pela oportunidade de defrontar qualquer um deles. O Pequeno Walder jogou fora a lança estilhaçada, viu Bran e freou o cavalo. - Ora, eis aí um cavalo feio - disse, referindo-se a Hodor. - Hodor não é nenhum cavalo - Bran respondeu. - Hodor - Hodor ecoou. O Grande Walder juntou-se ao primo a trote. - Bem, ele não é tão esperto quanto um cavalo, isso é certo - alguns dos rapazes de Porto Branco acotovelaram-se e riram. - Hodor - sorrindo jovialmente, Hodor olhou um Frey após outro, sem reparar na zombaria. - Hodor Hodor? A montaria do Pequeno Walder relinchou. - Está vendo, eles estão falando um com o outro. Talvez hodor queira dizer "te amo" em cavalês. - Cala a boca, Frey - Bran sentia que estava ficando vermelho. O Pequeno Walder esporeou o cavalo e aproximou-se, empurrando Hodor para trás. - E o que você vai fazer se eu não me calar? - Soltar o lobo em cima de você, primo - avisou Grande Walder. - Deixa. Sempre quis um manto de pele de lobo. - Verão arrancaria essa sua cabeça gorda - Bran retrucou. O Pequeno Walder bateu na placa de peito com um punho revestido de cota de malha, - Seu lobo tem dentes de aço para morder através de placa de aço e cota de malha? - Basta! - a voz do Meistre Luwin abriu caminho através do clangor do pátio, sonora como um trovão. Bran não sabia dizer quanto da conversa o meistre tinha ouvido, mas era claro que havia sido o bastante para irritá-lo. - Essas ameaças são impróprias e não quero ouvir mais nehuma. E assim que se comporta nas Gêmeas, Walder Frey? - Se eu quiser. De cima do seu corcel, o Pequeno Walder lançou a Luwin um olhar mal-humorado, como se dissesse: Você é só um meistre. Quem se julga para repreender um Frey da Travessia? - Bem, mas não é assim que os protegidos da Senhora Catelyn devem se comportar em Winrerfell. O que causou isso? - o meistre olhou para os garotos, um a um. - Um de vocês vai me contar, juro, senão... - Estávamos brincando com Hodor - confessou Grande Walder. - Lamento se ofendemos o Príncipe Bran. Só queríamos ser divertidos - ele tinha, pelo menos, a elegância de parecer envergonhado. O Pequeno Walder parecia apenas impertinente: - Eu também - disse. - Só estava sendo divertido. Bran via que o ponto calvo no topo da cabeça do meistre tinha se tornado vermelho; se havia alguma diferença, Luwin estava mais zangado do que antes. - Um bom senhor conforta e protege os fracos e indefesos - ele disse aos Frey. - Não vou admitir que façam de Hodor o alvo de brincadeiras cruéis, estão me ouvindo? Ele é um rapaz de bom coração, cumpridor e obediente, o que é mais do que posso dizer de qualquer um de vocês - o meistre brandiu um dedo para o Pequeno Walder. - E você vai ficar fora do bosque sagrado e longe daqueles lobos, senão responderá por isso - com as mangas esvoaçando, girou sobre os calcanhares, deu alguns passos rápidos e lançou um olhar para trás. - Bran. Venha. Lorde Wyman espera. - Hodor, siga o meistre - Bran ordenou. - Hodor - o gigante ecoou. Seus longos passos alcançaram o bater furioso dos pés do meistre nos degraus da Grande Fortaleza, Meistre Luwin manteve a porta aberta, Bran abraçou o pescoço de Hodor e abaixouse enquanto a atravessavam. - Os Walder... - começou. - Não quero ouvir mais nada sobre isso, acabou - Meistre Luwin parecia desgastado e esgotado. - Teve razão em defender Hodor, mas nunca deveria ter ido lá. Sor Rodrik e Lorde Wyman já quebraram o jejum enquanto o aguardavam. Tenho de vir em pessoa buscá-lo, como se fosse uma criança pequena? - Não - Bran respondeu, envergonhado. - Lamento. Eu só queria...
- Eu sei o que queria - a voz de Meistre Luwin soou mais gentil. - Gostaria que isso fosse possível, Bran. Quer me fazer alguma pergunta antes de darmos início a esta audiência? - Iremos falar de guerra? - Você não irá falar de nada - a aspereza tinha voltado à voz de Luwin, - Você é ainda uma criança de oito anos... - Quase nove! - Oito - repetiu o meistre com firmeza. - Não diga nada além de cortesias, a menos que Sor Rodrik ou Lorde Wyman lhe façam uma pergunta. Bran fez um aceno. - Lembrarei disso, - Não direi nada a Sor Rodrik sobre o que houve entre você e os rapazes Frey. - Obrigado. Puseram Bran na cadeira de carvalho do pai, com as almofadas de veludo cinza, por trás de uma longa mesa de armar. Sor Rodrik sentou-se ao seu lado direito e Meistre Luwin, ao esquerdo, armado com penas, frascos de tinta e um molho de pergaminhos em branco para escrever tudo o que acontecesse. Bran passou uma mão pela madeira áspera da mesa e pediu desculpas a Lorde Wyman pelo atraso. - Ora, nenhum príncipe jamais se atrasa - o Senhor de Porto Branco respondeu amavelmente. - Os que chegam antes dele chegaram cedo, só isso - Wyman Manderly tinha uma grandiosa gargalhada ressonante. Pouco admirava que não conseguisse se sentar numa sela; parecia pesar mais do que a maioria dos cavalos. Tão eloqüente como era vasto, começou pedindo a Winterfell que confirmasse os novos meirinhos que tinha nomeado para Porto Branco. Os antigos tinham andado segurando prata para Porto Real em vez de pagá-la ao novo Rei no Norte. – Rei Robb também precisa da sua própria moeda - declarou - , e Porto Branco é o lugar ideal para cunhá-la - ofereceu-se para se encarregar do assunto, se o rei desejasse, e depois passou a falar de como havia reforçado as defesas do porto, detalhando o custo de cada melhoramento. Além de uma casa de cunhagem, Lorde Manderly também propôs construir uma frota de guerra para Robb. - Há centenas de anos que não temos força no mar, desde que Brandon, o Incendiário, tocou fogo nos navios do pai. Concedam-me o ouro necessário, e ainda este ano porei para flutuar galés em número suficiente para tomar tanto Pedra do Dragão como Porto Real. O interesse de Bran foi despertado pela menção feita a navios de guerra. Ninguém lhe perguntou, mas achou a idéia de Lorde Wyman magnífica. Na imaginação já conseguia vê-los e se 164 perguntava se um aleijado havia alguma vez comandado um navio de guerra. Mas Sor Rodrik p remeteu apenas enviar a proposta para consideração de Robb, enquanto Meistre Luwin arranhava o pergaminho. O meio-dia chegou e passou. Meistre Luwin mandou Poxy Tym para as cozinhas e almoçaram no aposento privado queijo, capões e pão preto de aveia. Enquanto estraçalhava uma ave com dedos gordos, Lorde Wyman inquiriu polidamente a respeito da Senhora Hornwood, que era sua prima. - Ela nasceu como uma Manderly, sabe? Talvez, quando seu luto terminar, queira voltar a ser uma Manderly, hein? - arrancou uma mordida da asa e deu um largo sorriso. - Ora, acontece que eu sou viúvo há oito anos. Já é mais que hora de tomar outra esposa, não concordam, senhores? Um homem se sente só - pondo os ossos de lado, estendeu a mão até a perna. - Ou se a senhora preferir um rapaz mais novo, bem, meu filho Wendel também não está casado. Ele foi para o sul a fim de guardar a Senhora Catelyn, mas sem dúvida desejará arranjar uma noiva na volta. Um rapaz valente e alegre, o homem certo para ensiná-la a rir de novo, hein? - limpou um pouco de gordura do queixo com a manga da túnica. Bran ouvia o estrondo distante de armas que entrava pelas janelas. Não tinha o menor interesse em casamentos. Gostaria de estar lá embaixo no pátio, O senhorio esperou, até que a mesa fosse limpa, antes de puxar o assunto de uma carta que tinha recebido de Lorde Tywin Lannister, que mantinha prisioneiro seu filho mais velho, Sor Wylis, capturado no Ramo Verde. - Oferece-me sem resgate, sob a condição de eu retirar de Sua Graça meus recrutas e jurar parar de lutar, - Irá recusar, é claro - Sor Rodrik exclamou. - A esse respeito, nada temam - garantiu-lhes o lorde. - Rei Robb não tem servidor mais leal do que Wyman Manderly. No entanto, reluto em deixar meu filho em Harrenhal mais tempo do que o devido. Aquele lugar é mau. Dizem que é amaldiçoado. Não que eu seja o tipo de homem que engula essas histórias, mas, mesmo assim, é o que é. Vejam o que aconteceu àquele Janos Slynt. Feito Senhor de Harrenhal pela rainha e deposto pelo irmão dela. Enviado para a Muralha, segundo dizem. Peço para que alguma troca equitativa de prisioneiros possa ser acordada em breve. Sei que Wylis não gostaria de ficar esperando até a guerra acabar. Aquele meu filho é galante e feroz como um mastim. Bran sentia os ombros rígidos por ter ficado sentado na mesma cadeira durante toda a audiência.
E naquela noite, quando se sentava à mesa para jantar, soou uma trompa para anunciar a chegada de outro hóspede. A Senhora Donella Hornwood não trazia uma comitiva de cavaleiros e servidores; era apenas ela e seis fatigados homens de armas com uma cabeça de alce nas suas poeirentas fardas laranja. - Lamentamos muito tudo o que tem sofrido, senhora - disse Bran quando ela veio à sua presença para saudá-lo. Lorde Hornwood havia sido morto na batalha do Ramo Verde, e seu unico filho abatido no Bosque dos Murmúrios, - Winterfell vai se lembrar. - E bom saber disso - era uma pálida casca de mulher, com o rosto marcado pelo luto. – Estou muito cansada, senhor, Se me der licença para descansar, ficarei grata, - Com certeza - Sor Rodrik respondeu. - Há tempo bastante para conversar amanhã. Quando o dia seguinte chegou, a maior parte da manhã foi dedicada a falar de cereais, verduras e da salga de carne, Quando os meistres na sua Cidadela proclamavam a chegada do outono, os homens sensatos separavam uma parte de cada colheita... Se bem que o tamanho 165 dessa parte era assunto que parecia necessitar de muita discussão. A Senhora Hornwood estava armazenando um quinto da sua colheita. Obedecendo à sugestão de Meistre Luwin, prometeu aumentar esse valor para um quarto. - O bastardo de Bolton está reunindo homens no Forte do Pavor - preveniu-os. – Espero que pretenda leválos para o sul e ir se juntar ao pai nas Gêmeas, mas quando mandei saber quais eram as suas intenções, mandou-me dizer que nenhum Bolton seria alguma vez interrogado por uma mulher. Como se fosse legítimo e tivesse direito àquele nome. - Lorde Bolton nunca reconheceu o rapaz, que eu saiba - Sor Rodrik disse. - Confesso que não o conheço, - Poucos conhecem - ela respondeu. - Viveu com a mãe até dois anos atrás, quando o jovem Domeric morreu e deixou Bolton sem herdeiro. Foi aí que trouxe o bastardo para o Forte do Pavor. Todos dizem que o rapaz é uma criatura ardilosa e tem um criado que é quase tão cruel como ele. Chamam o homem de Fedor. Dizem que nunca toma banho. Os dois caçam juntos, o Bastardo e este Fedor, e não são veados o que caçam. Ouvi histórias, coisas em que quase não acredito, mesmo dizendo respeito a um Bolton, E agora que o senhor meu esposo e o meu querido filho foram encontrar os deuses, o Bastardo olha com fome para as minhas terras. Bran desejou dar à senhora cem homens para defender os seus direitos, mas Sor Rodrik disse apenas: - Ele pode olhá-las, mas, se fizer mais do que isso, prometo-lhe que as conseqüências serão severas. Estará bastante segura, senhora... Embora talvez, a seu tempo, quando seu luto passar, fosse prudente voltar a se casar. - Já passei do tempo em que podia dar à luz, e a beleza que tive há muito fugiu - ela respondeu com um meio sorriso fatigado - , mas os homens vêm me farejar como nunca fizeram quando era donzela. - Não vê com bons olhos esses pretendentes? - Luwin perguntou. - Casarei de novo se Sua Graça ordenar - ela respondeu - , mas Mors Crowfood é um bruto bêbado, e mais velho do que meu pai. Quanto ao meu nobre primo Manderly, a cama do meu senhor não é suficientemente grande para agüentar um homem de tal majestade, e eu sou certamente pequena e frágil demais para me deitar por baixo dele. Bran sabia que os homens dormiam em cima das mulheres quando dividiam a cama. Imaginava que dormir debaixo de Lorde Manderly seria como estar embaixo de um cavalo caído. Sor Rodrik dirigiu à viúva um aceno compreensivo, - Terá outros pretendentes, senhora. Tentaremos encontrar um pretendente mais do seu agrado. - Talvez não precise procurar muito longe, sor. Depois de ela ter se retirado, Meistre Luwin sorriu. - Sor Rodrik, creio que a senhora o aprecia. Sor Rodrik pigarreou e pareceu desconfortável. - Ela estava muito triste - Bran comentou. Sor Rodrik anuiu. - Triste e honrada. E nada deselegante para uma mulher da sua idade, apesar de toda sua modéstia. Mas, mesmo assim, um perigo para a paz do reino do seu irmão. - Ela? - Bran se espantou. Foi Meistre Luwin quem respondeu. 166 - Sem herdeiro direto, haverá com certeza muitos pretendentes disputando as terras dos Hornwood. Tanto os Tallhart como os Flint e os Karstark têm ligações com a Casa Hornwood por linha feminina, e os Glover estão criando o bastardo de Lorde Harys em Bosque Profundo. O Forte do Pavor não tem nenhuma pretensão, que eu saiba, mas as terras são contíguas, e Roose Bolton não é homem que deixaria passar uma chance dessas. Sor Rodrik puxou as suíças. - Em casos assim, seu suserano deverá encontrar para ela um par adequado. - Por que o senhor não poderia desposá-la? - Bran quis saber. - Disse que é elegante e Beth teria uma mãe.
O velho cavaleiro pôs uma mão no braço de Bran. - Uma idéia amável, meu príncipe, mas sou apenas um cavaleiro e, além disso, velho demais. Poderia manter as terras dela durante alguns anos, mas, assim que morresse, a Senhora Hornwood voltaria ao mesmo atoleiro, e os pretendentes de Beth poderiam também ser perigosos. - Então deixe que o bastardo de Lorde Hornwood seja o herdeiro - Bran sugeriu, pensando no seu meioirmão Jon. Sor Rodrik disse: - Isso agradaria aos Glover e talvez à sombra de Lorde Hornwood, mas não creio que a Senhora Hornwood iria simpatizar conosco. O garoto não é do seu sangue. - Em todo caso - disse Meistre Luwin essa possibilidade tem de ser levada em conta. A senhora Donella já passou dos seus anos férteis, como ela própria disse. Se não for o bastardo, então, quem? - Posso me retirar? - Bran conseguia ouvir os escudeiros treinando com as espadas no pátio lá embaixo, o ressoar de aço batendo em aço. - Como quiser, meu príncipe - Sor Rodrik anuiu. - Esteve bem. Bran corou de prazer. Ser um senhor não era tão entediante como temia, e a Senhora Hornwood tinha sido muito mais rápida do que Lorde Manderly, até lhe restavam algumas horas de dia para ir visitar Verão. Gostava de passar algum tempo com seu lobo todos os dias, quando Sor Rodrik e o meistre lhe permitiam. Assim que Hodor entrou no bosque sagrado, Verão emergiu de debaixo de um carvalho, quase como se soubesse que eles estavam chegando. Bran vislumbrou um esguio vulto negro que também os observava de dentro dos arbustos, - Felpudo - chamou. - Vem cá, Cão Felpudo. Aqui - mas o lobo de Rickon desapareceu tão rapidamente como havia surgido. Hodor sabia qual era o lugar favorito de Bran e o levou para a margem da lagoa sob a grande sombra da árvore-coração, onde Lorde Eddard costumava se ajoelhar para rezar. Marolas corriam pela superfície da água quando chegaram, fazendo o reflexo do represeiro tremer e dançar, Mas não havia vento. Por um instante, Bran sentiu-se desconcertado. Então, Osha surgiu de dentro da lagoa com um grande espirrar de água, tão subitamente que até Verão saltou para trás, rosnando. Hodor afastou-se aos pulos, gemendo "Hodor, Hodor", consternado, até que Bran deu palmadinhas no seu ombro para acalmar seus medos. - Como pode nadar aí? - perguntou a Osha. - Não é frio? - Quando era bebê, mamei pingentes de gelo, garoto. Gosto do frio - Osha nadou para as rochas e saiu da água, pingando. Estava nua, com pele enrugada. Verão aproximou-se com cuidado e a farejou. - Quis tocar o fundo. 167 - Não sabia que havia um fundo. - Talvez não haja - ela sorriu. - O que está olhando, rapaz? Nunca viu uma mulher? - Vi, claro - Bran tinha tomado banho com as irmãs centenas de vezes e também tinha visto criadas nas lagoas quentes. Mas Osha parecia diferente, dura e angulosa, em vez de macia e cheia de curvas. Suas pernas eram só tendões, os seios achatados como duas bolsas vazias. - Tem um monte de cicatrizes. - Todas elas duramente conquistadas - Osha pegou a camisa marrom, sacudiu dela algumas folhas e a enfiou pela cabeça. - Lutando contra gigantes? - Osha dizia que ainda havia gigantes para lá da Muralha. Um dia talvez eu até veja um... - Lutando contra homens - amarrou um pedaço de corda em torno da cintura para fazer de cinto. - Corvos negros, normalmente. E matei um, sim - Osha se vangloriou, sacudindo o cabelo. Tinha crescido desde que viera para Winterfell, e já passava das suas orelhas. Parecia mais suave do que a mulher que antes tentara assaltá-lo e matá-lo na mata de lobos. - Ouvi algum falatório hoje na cozinha a respeito de você e daqueles Frey. - Quem? O que disseram? Osha dirigiu-lhe um sorriso amargo. - Que um garoto que caçoa de um gigante é um tolo, e que é um mundo louco aquele em que um aleijado tem de defendê-lo. - Hodor não chegou a perceber que estavam caçoando dele - Bran respondeu. - Seja como for, ele nunca luta. Lembrou-se de uma vez, quando era pequeno, a caminho da praça do mercado com a mãe e a Septã Mordane. Tinham, trazido Hodor como carregador, mas ele tinha se afastado e, quando foram encontrá-lo, uns garotos tinham-no encurralado numa viela, atormentando-o com paus. "Hodor!", gritava o gigante, enrolando-se com medo e cobrindo-se com os braços, mas não chegou a levantar uma mão contra aqueles que o atormentavam. - Septão Chayle diz que ele tem um espírito bondoso. - Sim - ela confirmou - , e mãos com força suficiente para arrancar do pescoço a cabeça de um homem, se resolver fazê-lo. Em todo caso, é melhor que ele tome cuidado perto daquele Walder. Ele, e você também.
O grande a quem chamam pequeno, cá para mim, tem o nome bem dado. Grande por fora, pequeno por dentro, e malvado até os ossos. - Ele nunca se atreveria a me fazer mal. Tem medo do Verão, não importa o que diga. - Então, pode ser que não seja tão estúpido como parece - Osha era sempre cautelosa perto dos lobos gigantes. No dia em que tinha sido capturada, Verão e Vento Cinzento tinham rasgado três selvagens em pedaços ensangüentados. - Ou pode ser que seja. E isso também cheira a problema - ela prendeu o cabelo. - Teve mais daqueles sonhos de lobo? - Não - Bran não gostava de falar dos sonhos. - Um príncipe deveria mentir melhor que isso - Osha soltou uma gargalhada. - Bem, seus sonhos são assunto seu. Os meus estão nas cozinhas, e é melhor que vá voltando antes que Gage comece a gritar e a sacudir aquela sua grande colher de madeira. Com a sua licença, meu príncipe. Ela nunca devia ter falado dos sonhos de lobo, Bran pensou, enquanto Hodor subia com ele os degraus que levavam ao seu quarto. Lutou contra o sono o máximo que pôde, mas, por fim, foi tomado por ele, como sempre. Naquela noite, sonhou com o represeiro. A árvore o estava olhando 168 com seus profundos olhos vermelhos, chamando-o com sua retorcida boca de madeira, e dos galhos brancos desceu voando o corvo de três olhos, dando bicadas na sua cara e gritando seu nome com uma voz afiada como espadas. O som das trombetas o acordou. Bran ficou de lado, grato pelo adiamento do sonho. Ouviu cavalos e gritos rudes. Chegaram mais hóspedes e, pelo barulho que fazem, vêm meio bêbados. Agarrando-se às barras, puxou-se da cama e foi até o banco de janela. No estandarte dos recém-chegados via-se um gigante com correntes quebradas que lhe disse que aqueles eram homens de Umber, vindos das terras do norte para lá do Rio Ultimo. No dia seguinte, dois deles vieram juntos à audiência; os tios do Grande-Jon, homens fanfarrões no inverno dos seus dias, com barbas tão brancas como os mantos de pele de urso que usavam. Um corvo tinha um dia julgado que Mors estivesse morto e bicou seu olho, por isso usava um pedaço de vidro de dragão em seu lugar. De acordo com a versão da Velha Ama, ele tinha agarrado o corvo com uma mão e arrancado sua cabeça com os dentes, por isso o chamavam Papa-Corvos. A Ama nunca dissera a Bran por que chamavam o irmão Hother de Terror das Rameiras. Mal tinham se sentado, Mors já pedia licença para casar com a Senhora Hornwood. - Grande-Jon é o forte braço direito do Jovem Lobo, todos sabem que é assim. Quem melhor para proteger as terras da viúva do que um Umber, e que melhor Umber do que eu? - A Senhora Donella ainda está de luto - Meistre Luwin respondeu. - Tenho uma cura para o luto por baixo das minhas peles - Mors gargalhou. Sor Rodrik agradeceu-lhe com cortesia e prometeu levar o assunto à consideração da senhora e do rei. Hother queria navios. - Selvagens andam se esgueirando do norte, em maior número do que jamais vi. Atravessam a Baía das Focas em barcos pequenos e vêm dar à nossa costa. Os corvos de Atalaialeste não são suficientes para pará-los, e eles são rápidos como doninhas para se esconder. E de dracares que precisamos, sim, e de homens fortes para manobrá-los. Grande-Jon levou muitos. Metade da nossa colheita perdeu-se por falta de braços para manejar as foices. Sor Rodrik puxou as suíças: - Vocês têm florestas de pinheiros altos e velhos carvalhos. Lorde Manderly tem construtores navais e marinheiros com fartura. Juntos, deveriam ser capazes de pôr na água dracares em número suficiente para defender as costas de ambos. - Manderly? - Mors Umber fungou. - Esse grande saco bamboleante de banha? Seu próprio povo caçoa dele, chamando-o de Lorde Lampreia, segundo ouvi dizer. O homem quase não consegue andar. Se espetasse uma espada na sua barriga, dez mil enguias torceriam-se para fora. - Ele é gordo - admitiu Sor Rodrik - , mas não é bobo. Irá trabalhar com ele, caso contrário o rei ficará sabendo o por quê. E, para espanto de Bran, os truculentos Umber concordaram em fazer o que ele ordenava, embora não sem resmungos. Enquanto decorria a audiência, os homens dos Glover chegaram de Bosque Profundo, e um grande grupo dos Tallhart, de Praça de Torrhen. Galbart e Robett Glover tinham deixado Bosque Profundo nas mãos da esposa de Robett, mas foi seu intendente que veio até Winterfell. - Minha senhora pede que perdoem sua ausência. Seus bebês são novos demais para uma viagem dessas e ela estava relutante em se separar deles. Bran compreendeu rapidamente que era o intendente, e não a Senhora Glover, quem realmente governava em Bosque Profundo. O homem admitiu que estava, por enquanto, armaze169 nando apenas um décimo da colheita. Afirmou que um vidente lhe tinha dito que haveria um farto verão dos espíritos antes que o frio se instalasse. Meistre Luwin tinha uma quantidade de coisas interessantes a dizer acerca de videntes. Sor Rodrik ordenou ao homem que separasse um quinto e o interrogou detalhadamente a respeito do bastardo de Lorde Hornwood, o garoto Larence Snow. No Norte, todos os bastardos de elevado nascimento adotavam o sobrenome Snow. Este rapaz tinha quase doze anos, e o intendente elogiou sua inteligência e coragem. - Sua idéia sobre o bastardo pode ter mérito, Bran - Meistre Luwin disse mais tarde. – Um dia será um bom senhor para Winterfell, penso eu. - Não serei, não - Bran sabia que nunca seria um senhor, tal como não podia ser um cavaleiro. - Robb deverá se casar com uma moça Frey qualquer, foi você quem me disse, e os Walder dizem o mesmo. Ele terá filhos e serão eles os senhores de Winterfell depois dele, não eu. - Pode ser assim, Bran - Sor Rodrik interveio. - Mas eu fui casado por três vezes, e as minhas esposas deram-me filhas. Agora só me resta Beth. Meu irmão Martyn foi pai de quatro filhos fortes, mas só Jory sobreviveu até ser homem. Quando foi morto, a linhagem de Martyn morreu também. Quando falamos do amanhã, nada é certo. Leobald Tallhart teve sua vez no dia seguinte. Falou de presságios meteorológicos e do juízo indolente dos plebeus e contou como seu sobrinho ansiava por batalhas. - Benfred recrutou sua própria companhia de lanceiros. Garotos, nenhum deles com mais de dezenove anos, mas todos pensam que ele é outro jovem lobo. Quando lhes disse que eram apenas jovens coelhos, riram de mim. Agora chamam-se de Bravas Lebres e galopam pelos campos com peles de coelho atadas às pontas das lanças, cantando canções de cavalaria. Bran pensou que aquilo soava grandioso. Lembrou-se de Benfred Tallhart, um grande rapaz fanfarrão e barulhento que visitava freqüentemente Winterfell com o pai, Sor Helman, e tinha sido amigável com Robb e Theon Greyjoy. Mas Sor Rodrik ficou claramente descontente com o que ouviu. - Se o rei precisasse de mais homens, pediria - ele disse. - Diga ao seu sobrinho que deverá permanecer em Praça de Torrhen conforme ordenou o senhor seu pai. - Farei isso, sor - Leobald respondeu, e só então puxou o assunto da Senhora Hornwood. Pobrezinha, sem um marido que defenda suas terras ou um filho que as herde. Sua própria esposa era uma Hornwood, irmã do falecido Lorde Halys, com certeza todos se lembravam. – Um salão vazio é um salão triste. Tive a idéia de mandar meu filho mais novo para que a Senhora Donella crie como seu. Beren tem quase dez anos, é um moço promissor, e seu sobrinho. Iria animá-la, estou certo, e talvez até adotasse o nome Hornwood... - Se fosse nomeado herdeiro? - sugeriu Meistre Luwin. - ... para que a Casa possa se manter - Leobald terminou. Bran sabia o que dizer. - Obrigado pela idéia, senhor - falou antes que Sor Rodrik tivesse tempo de abrir a boca. - Levaremos o assunto ao meu irmão Robb. Ah, e à Senhora Hornwood. Leobald pareceu surpreso por ele falar. - Agradeço, meu príncipe - ele disse, mas Bran viu piedade nos seus olhos azuis-claros, talvez misturada com um pouco de alegria pelo aleijado não ser, afinal, seu filho. Por um momento, odiou o homem. Mas Meistre Luwin gostou mais. - Beren Tallhart pode bem ser a nossa melhor escolha - disse-lhes depois de Leobald partir. - Pelo sangue, é meio Hornwood. Se adotar o nome do tio... 170 - ... será mesmo assim um garoto - Sor Rodrik observou e sob grande pressão para defender as suas terras contra gente como Mors Umber ou aquele bastardo de Roose Bolton. Temos de pensar bem nisto. Robb deve ter os nossos melhores conselhos antes de tomar sua decisão. - Pode depender de detalhes de ordem prática - disse Meistre Luwin. - De qual dos senhores mais precisa na corte. As terras fluviais fazem parte do seu reino, e pode querer cimentar a aliança casando a Senhora Hornwood com um dos senhores do Tridente. Um Blackwood, talvez, ou um Frey... - A Senhora Hornwood pode ficar com um dos nossos Frey - Bran interveio. - Pode ficar com os dois, se quiser. - Não está sendo gentil, meu príncipe - Sor Rodrik o censurou levemente. Os Walder também não. Carrancudo, Bran fitou a mesa e nada disse. Nos dias que se seguiram, chegaram corvos de outras casas senhoriais, trazendo pedidos de desculpa. O bastardo do Forte do Pavor não viria; os Mormont e os Karstark tinham ido todos para o sul com Robb; Lorde Locke era idoso demais para arriscar a viagem; a Senhora Flint estava com a gravidez avançada, havia doença na Atalaia da Viúva. Por fim, todos os principais vassalos da Casa Stark tinham dado notícias, exceto Howland Reed, o cranogmano, que não punha os pés para fora dos seus pântanos havia muitos anos, e os Cerwyn, cujo castelo ficava a meio dia de viagem de Winterfell. Lorde Cerwyn era cativo dos Lannister, mas seu filho, um rapaz de catorze anos, chegou uma bela manhã à frente de duas dúzias de lanças. Bran montava a Dançarina no pátio quando atravessaram o portão. Foi a trote encontrá-los para lhes dar as boasvindas. Cley Cerwyn sempre foi amigo de Bran e dos irmãos. - Bom dia, Bran - Cley gritou alegremente. - Ou será que tenho de chamá-lo agora de Príncipe Bran?
- Só se quiser. Cley soltou uma gargalhada. - E por que não? Todo mundo é rei ou príncipe nos dias que correm. Stannis também escreveu para Winterfell? - Stannis? Não sei, - Ele também é agora um rei - Cley confidenciou. - Diz que a Rainha Cersei se deitou com o irmão, e, portanto, Joffrey é um bastardo. -Joffrey, o Mal-Nascido - rosnou um dos cavaleiros dos Cerwyn. - Não é de admirar que seja desleal, com o Regicida como pai. - Sim - disse outro os deuses detestam o incesto. Veja como derrubaram os Targaryen. Por um momento, Bran sentiu-se incapaz de respirar. Uma mão gigantesca esmagava seu peito. Sentiu-se caindo e agarrou-se desesperadamente às rédeas da Dançarina. Seu terror deve ter transparecido no rosto. - Bran? - Cley Cerwyn o chamou. - Está se sentindo mal? E só mais um rei. - Robb também o derrotará. Virou a cabeça da Dançarina na direção dos estábulos, sem notar os olhares confusos que os Cerwyn lhe dirigiram. O sangue rugia em suas orelhas e, se não estivesse preso à sela, poderia muito bem ter caído. Naquela noite, Bran rezou aos deuses do pai, pedindo um sono sem sonhos. Se os deuses ouviram, zombaram da sua esperança, pois o pesadelo que enviaram foi pior do que qualquer sonho de lobo. 171 "Voe ou morra!", gritava o corvo de três olhos enquanto o bicava. Chorou e suplicou, mas o corvo não tinha piedade. Destroçou seu olho esquerdo, e depois o direito, e quando ficou cego na escuridão, a ave começou a bicá-lo na testa, enfiando o bico terrivelmente afiado no seu crânio. Bran gritou até ficar certo de que seus pulmões iriam estourar. A dor era como um machado que abria sua cabeça, mas quando o corvo puxou o bico, todo pegajoso com pedaços de osso e cérebro, Bran conseguia ver de novo. O que viu fez com que arquejasse de medo. Estava agarrado a uma torre com muitos metros de altura, seus dedos escorregavam, com as unhas arranhando a pedra, e as pernas puxavam-no para baixo, as estúpidas e inúteis pernas mortas. "Socorro!", gritou. Um homem dourado surgiu no céu por cima dele e o puxou. "As coisas que eu faço por amor", murmurou suavemente enquanto o atirava, esperneando, para o vazio. 172 Tyrion Já não durmo como dormia quando era novo - disse-lhe o Grande Meistre Pycelle, em tom de desculpa pela reunião à alvorada. - Prefiro estar de pé, mesmo que o mundo esteja escuro, a deitar inquieto na cama, preocupado com tarefas a cumprir - ele disse, embora seus olhos de pálpebras pesadas fizessem-no parecer meio adormecido enquanto falava. Nos arejados aposentos sob o viveiro de corvos, a criada lhes serviu ovos cozidos, ameixas em compota e mingau de aveia, enquanto Pycelle pontificava. - Nestes tristes tempos, quando tantos passam fome, penso ser adequado que mantenha minha mesa frugal. - Louvável - Tyrion admitiu, quebrando o grande ovo marrom que lhe lembrava muito a cabeça calva e manchada do Grande Meistre. - Eu adoto um ponto de vista diferente. Se há comida, eu como, para o caso de não haver nenhuma amanhã - sorriu. - Diga-me, seus corvos também são madrugadores? Pycelle afagou a barba branca como a neve que caía pelo seu peito abaixo. - Com certeza. Devo mandar buscar pena e tinta depois de comermos? - Não há necessidade - Tyrion pousou as cartas na mesa ao lado do mingau, pergaminhos gêmeos bem enrolados e selados com cera em ambas as extremidades. - Mande sua moça embora para que possamos conversar, - Deixe-nos, filha - Pycelle ordenou, e a criada apressou-se em sair da sala. - Então, essas cartas... - São para os olhos de Doran Martell, Príncipe de Dorne - Tyrion tirou a casca rachada do ovo e deu uma mordida. Estava sem sal. - Uma carta, em duas cópias. Envie suas aves mais rápidas. O assunto é de grande importância. - Vou enviá-las assim que quebrarmos o jejum. - Envie-as já. Ameixas em compota podem esperar. O reino talvez não. Lorde Renly está trazendo sua tropa pela estrada das rosas, e ninguém sabe dizer quando Lorde Stannis zarpará de Pedra do Dragão. Pycelle pestanejou. - Se o senhor prefere... - Prefiro, - Estou aqui para servir - o meistre ficou solenemente em pé, fazendo tilintar suavemente o colar do seu cargo. Era coisa pesada, uma dúzia de colares de meistre enrolados uns nos outros e ornamentados com pedras preciosas. E parecia a Tyrion que os elos de ouro, prata e platina eram em número muito superior aos de metais inferiores. 173 Pycelle mexia-se tão devagar que Tyrion teve tempo de terminar o ovo e experimentar as ameixas, cozidas e aguadas demais para o seu gosto, antes que o som de asas o fizesse se levantar, Olhou o corvo, escuro no céu da alvorada, e dirigiu-se rapidamente para o labirinto de prateleiras que havia na outra ponta da sala. Os medicamentos que o meistre tinha formavam uma vitrine impressionante; dúzias de potes selados com cera, centenas de frascos arrolhados, outras tantas garrafas de vidro opaco, incontáveis potes de ervas secas, com cada recipiente ordenadamente etiquetado na letra precisa de Pycelle. Uma mente metódica, Tyrion refletiu, e, de fato, uma vez decodificada a arrumação, era fácil ver que cada poção tinha o seu lugar. E coisas tão interessantes. Viu sonodoce e beladona, leite da papoula, lágrimas de Lys, grisalheira em pó, acônito e dança do demo, veneno de basilisco, olhocego, sangue de viúva... Pondo-se nas pontas dos pés e esticando-se, conseguiu puxar uma pequena garrafa empoeirada da prateleira mais elevada. Quando leu a etiqueta, sorriu e enfiou-a na manga. Estava de volta à mesa, descascando outro ovo, quando o Grande Meistre Pycelle desceu lentamente as escadas. - Está feito, senhor - o velho sentou-se. - Um assunto como este... é melhor realizá-lo prontamente, de fato, de fato... de grande importância, foi o que disse? -Ah, sim - Tyrion achou que o mingau estava grosso demais e faltando manteiga e mel. Também era verdade que manteiga e mel eram raramente vistos em Porto Real nos últimos tempos, embora Lorde Gyles mantivesse o castelo bem abastecido de ambos os produtos. Metade da comida que ingeriam nos dias que corriam provinha das terras dele ou da Senhora Tanda. Rosby e Stòkeworth ficavam perto da cidade, para o norte, e ainda não tinham sido tocadas pela guerra. - O próprio Príncipe de Dorne. Posso perguntar... - É melhor não. - Como quiser - a curiosidade de Pycelle estava tão madura, que Tyrion quase conseguia saboreá-la. - Talvez... o conselho do rei... Tyrion batucou com a colher de madeira na borda da tigela. - O conselho existe para aconselhar o rei, Meistre. - Precisamente - Pycelle concordou - , e o rei... - ... é um garoto de treze anos. Eu falo com a sua voz. - E bem verdade. De fato. A Mão do Próprio Rei. No entanto... Sua mui graciosa irmã, nossa Rainha Regente, ela... - ... carrega um grande fardo naqueles seus adoráveis ombros brancos. Não tenho nenhum desejo de somar mais peso a esse fardo. Você tem? - Tyrion inclinou a cabeça e lançou ao Grande Meistre um olhar interrogador. Pycelle baixou os olhos para a comida. Havia algo nos desiguais olhos verde e negro de Tyrion que deixava o homem desconfortável. Sabendo disso, o anão dava-lhes bom uso, - Ah - murmurou o velho para as suas ameixas. - Sem dúvida que tem razão, senhor. E muita atenção sua... poupá-la deste... fardo. - E esse o tipo de pessoa que sou - Tyrion voltou a dedicar-se ao pouco satisfatório mingau. - Atencioso. Afinal de contas, Cersei é minha irmã querida. - E uma mulher, com certeza - disse o Grande Meistre Pycelle. - Uma mulher muito incomum, mas... não é pouca coisa, tratar de todas as necessidades do reino, apesar da fragilidade do seu sexo... 174 Ah, sim, ela é uma frágil pomba, basta perguntar a Eddard Stark. - Agrada-me que compartilhe da minha preocupação. E agradeço-lhe pela hospitalidade da sua mesa. Mas um longo dia me espera - balançou as pernas para baixo e desceu da cadeira. - Terá a bondade de me informar de imediato caso recebamos uma resposta de Dome? - As suas ordens, senhor. - E apenas a mim? - Ah... com certeza. A mão manchada de Pycelle agarrava a barba como um homem que se afoga agarra uma corda. Aquilo alegrou o coração de Tyrion. Um, pensou. Bamboleou-se até o pátio, lá embaixo; suas pernas atrofiadas queixaram-se dos degraus. O sol. estava agora bem alto, e o castelo agitava-se. Guardas patrulhavam as muralhas e cavaleiros e homens de armas treinavam com armas cegas. Ali perto, Bronn estava sentado na borda de um poço. Um par de formosas criadas passou por ele devagar, transportando entre ambas um cesto de vime cheio de esteiras, mas o mercenário nem as olhou. - Bronn, perco a esperança em você - Tyrion fez um gesto para as moças. - Com uma bela vista como aquelas duas à sua frente, e tudo o que vê é um bando de palhaços fazendo barulho.
- Há uma centena de bordéis nesta cidade onde, com uma moeda cortada de cobre, posso comprar a boceta que quiser - Bronn respondeu. - Mas, um dia, minha vida pode depender da atenção com que observei os seus palhaços - enquanto se levantava, perguntou: - Quem é o rapaz da capa azul quadriculada com os três olhos no escudo? - Um pequeno cavaleiro qualquer. Chama a si próprio de Tallad. Por quê? Bronn afastou uma madeixa dos olhos. - É o melhor de todos. Mas, observe-o, ele cai num mesmo ritmo, dando em todas as vezes que ataca os mesmos golpes na mesma ordem - o homem sorriu. - Isso será a sua morte no dia em que me enfrentar. - Ele está juramentado a Joffrey, não é provável que o enfrente. Começaram a atravessar o pátio, com Bronn ajustando seus passos longos aos curtos de Tyrion. Nesses dias, o mercenário parecia quase respeitável. Seu cabelo escuro lavado e escovado, estava recém-barbeado e usava a placa de peito preta de um oficial da Patrulha da Cidade. Dos seus ombros pendia um manto do carmim Lannister com um padrão de mãos douradas, que Tyrion lhe oferecera quando o nomeou capitão da sua guarda pessoal, - Quantos suplicantes temos hoje? - Trinta e tantos - Bronn respondeu. - A maior parte com queixas ou querendo alguma coisa, como sempre. Seu animal de estimação voltou. Tyrion gemeu. - A Senhora Tanda? - O pajem. Convida-o outra vez para jantar com ela. Deve haver uma peça de veado, diz ela, um par de gansos recheados com molho de amoras e... - ... a filha - Tyrion finalizou num tom azedo. Desde o instante em que tinha chegado à Fortaleza Vermelha, a Senhora Tanda o andava perseguindo, armada com um arsenal sem fim de tortas de lampreia, javalis selvagens e apetitosos guizados com creme. De alguma forma, tinha ficado com a idéia de que um fidalgo anão seria o consorte perfeito para sua filha Lollys, uma moça grande, mole e pouco inteligente que, segundo os rumores, ainda era donzela aos trinta e três anos. - Mande-lhe as minhas desculpas. - Não gosta de ganso recheado? - Bronn deu um sorriso maldoso. 175 - Talvez você devesse comer o ganso e casar com a donzela. Ou, melhor ainda, mandar Shagga. - E mais provável que Shagga coma a donzela e se case com o ganso. E, de qualquer forma, Lollys é mais pesada do que ele. - Também há isso - admitiu Tyrion enquanto passavam pela sombra de uma passarela que ligava duas torres. - Quem mais me procura? O mercenário ficou mais sério: - Há um agiota vindo de Braavos, trazendo uns papéis e coisas do gênero, que pede para se encontrar com o rei a propósito do pagamento de um empréstimo qualquer. - Como se JofF conseguisse contar até mais de vinte. Mande-o a Mindinho, ele encontrará uma maneira de se livrar do homem. O que mais? - Um fidalgo vindo do Tridente, diz que os homens do seu pai queimaram sua fortaleza, estupraram sua mulher e mataram todos os camponeses. - Creio que chamam isso de guerra - aquilo tinha cheiro do trabalho de Gregor Clegane, ou de Sor Amory Lorch, ou do outro mastim do inferno de estimação do pai, o que veio de Qohor. - O que ele quer de Joffrey? - Camponeses novos. Percorreu todo o caminho a pé para cantar sua lealdade e pedir uma recompensa. - Arranjarei tempo para ele amanhã - quer fosse realmente leal ou meramente desesperado, um senhor do rio obediente poderia ser útil. - Organize as coisas para que lhe seja dado um quarto confortável e uma refeição quente. Envie-lhe também um novo par de botas, das boas, uma delicadeza do Rei Joffrey - uma exibição de generosidade nunca é má. Bronn fez um aceno rápido: - Também há um grande bando de padeiros, açougueiros e vendedores de verduras clamando por serem ouvidos. - Da última vez já lhes disse que não tenho nada para lhes dar. Só um pequena quantidade de comida chegava a Porto Real, a maior parte dela destinada ao castelo e à guarnição. Os preços das verduras, tubérculos, farinha e frutas tinham subido assustadoramente, e Tyrion não queria pensar nos tipos de carne que deviam estar sendo despejados nas caldeiras dos refeitórios da Baixada das Pulgas. Peixe, ele esperava. Ainda tinham o rio e o mar... pelo menos até que Lorde Stannis zarpasse. - Eles querem proteção. Ontem à noite um padeiro foi assado no seu próprio forno. O povo dizia que ele estava cobrando muito caro pelo pão. - E estava? - Ele não está em condições de negar,
- Não o comeram, certo? - Que eu saiba, não. - Da próxima vez comerão - Tyrion falou num tom sinistro. - Dou-lhes toda a proteção que posso dar. Os homens de manto dourado... - Dizem que havia mantos dourados na multidão - Bronn completou. - Exigem falar com o rei em pessoa. - Loucos. Tyrion despacharia-os com desculpas; o sobrinho iria despachá-los com chicotes e lanças. Sentiu-se meio tentado a permitir isso... mas não, não se atrevia. Mais cedo ou mais tarde, algum inimigo marcharia sobre Porto Real, e a última coisa que queria era traidores solícitos dentro das muralhas da cidade. 176 - Diga-lhes que o Rei Joffrey partilha dos seus temores e fará tudo o que puder por eles. - Eles querem pão, não promessas. - Se lhes der pão hoje, amanhã terei o dobro batendo nos portões. Quem mais? - Um irmão negro vindo da Muralha. O intendente diz que ele trouxe uma mão apodrecida num frasco. Tyrion deu um sorriso triste. - Surpreende-me que ninguém a tenha comido. Suponho que deva recebê-lo, Não será Yoren, por acaso? - Não. Um cavaleiro qualquer. Thorne. - Sor Alliser Thorne? - de todos os irmãos negros que tinha conhecido na Muralha, Sor Alliser Thorne tinha sido aquele de que Tyrion Lannister menos gostara. Um homem amargo, de gênio ruim, com apreço excessivo pelo seu próprio valor. - Pensando melhor, não me apetece receber Sor Alliser por enquanto. Arranje-lhe uma cela razoável onde ninguém tenha mudado as esteiras durante um ano e deixe que a mão que ele traz apodreça um pouco mais. Bronn deu uma gargalhada roncada e foi embora, enquanto Tyrion subia com dificuldade a escada em caracol. Enquanto coxeava através do pátio exterior, ouviu o matraquear da porta levadiça sendo içada. A irmã e um grande grupo de pessoas esperavam junto ao portão principal. Montada no seu palafrém branco, a irmã elevava-se muito acima de todos, uma deusa vestida de verde. - Irmão - ela chamou, sem calor na voz. A rainha não tinha ficado feliz com a forma como ele havia lidado com Janos Slynt. - Vossa Graça - Tyrion fez uma polida reverência. - Tem um aspecto adorável nesta manhã - a coroa dela era de ouro, o manto, de arminho. A comitiva ocupava as suas montarias atrás dela: Sor Boros Blount da Guarda Real, usando uma armadura de escamas brancas e sua carranca preferida; Lorde Gyles Rosby, pior do que nunca da sua tosse asmática; Hallyne, o Piromante da Guilda dos Alquimistas; e o mais recente favorito da rainha, o primo Sor Lancei Lannister, escudeiro do seu falecido marido elevado à condição de cavaleiro por insistência da viúva. Vylarr e vinte guardas formavam a escolta. - Onde vai hoje, irmã? - Tyrion perguntou. - Vou fazer uma ronda pelos portões, a fim de inspecionar as novas balistas e catapultas de fogo. Não gostaria de pensar que estamos todos tão indiferentes perante as defesas da cidade como você parece estar - Cersei fitou-o com aqueles seus límpidos olhos verdes, belos, mesmo no desprezo. - Fui informada de que Renly Baratheon se pôs em marcha de Jardim de Cima. Está percorrendo a estrada das rosas, à frente de toda a sua força. - Varys deu-me a mesma notícia. - Pode estar aqui pela lua cheia. - Não no ritmo vagaroso atual - Tyrion lhe garantiu. - Banqueteia-se cada noite num castelo diferente e dá audiência em cada encruzilhada por que passa. - E todos os dias, mais homens se reúnem em volta dos seus estandartes. Diz-se que sua tropa tem agora cem mil homens. - Esse número parece bastante elevado. - Tem atrás de si o poderio de Ponta Tempestade e Jardim de Cima, meu pequeno tolo - Cersei soou irritada. - Todos os vassalos dos Tyrell, exceto os Redwyne, e deve-me agradecimentos por isso. Enquanto eu mantiver comigo aquelas pestes daqueles seus gêmeos, Lorde Paxter ficará agachado na Árvore e achará que tem sorte de estar fora de tudo isto. 177 - Uma pena que tenha deixado o Cavaleiro das Flores escapulir entre seus belos dedos. Em todo caso, Renly tem outras preocupações além de nós. Nosso pai em Harrenhal, Robb Stark em Correrrio... se eu estivesse no lugar dele, agiria de forma muito semelhante, exibindo meu poder para que o reino visse, observando, esperando. Deixaria que meus rivais lutassem, enquanto esperava minha bela hora. Se o Stark nos derrotar, o sul cairá nas mãos de Renly como um presente dos deuses, e sem que ele perca um único homem. E, se as coisas acontecerem de outro modo, pode cair sobre nós enquanto estivermos enfraquecidos. Cersei não estava apaziguada. - Quero que obrigue nosso pai a trazer seu exército para Porto Real.
Onde não servirá para nada além de fazer com que você se sinta em segurança. - Quando fui capaz de obrigá-lo a fazer seja o que for? Ela ignorou a pergunta. - E quando planeja libertar Jaime? Ele vale cem de você. Tyrion deu um sorriso torto. - Não diga isso à Senhora Stark, peço-lhe. Não temos cem de mim para trocar. - Nosso pai devia estar louco para tê-lo enviado. E pior do que inútil - a rainha sacudiu as rédeas e fez o palafrém dar meia-volta. Saiu pelo portão num trote rápido, fazendo esvoaçar o manto de arminho atrás de si. A comitiva apressou-se atrás dela. Na verdade, Renly Baratheon não assustava Tyrion nem metade do que o irmão Stannis. Renly era amado pelos plebeus, mas nunca antes tinha liderado homens em batalha. Stannis era diferente: duro, frio, inexorável. Se ao menos tivessem alguma forma de saber o que estava acontecendo em Pedra do Dragão... Mas nem um dos pescadores a quem pagara para espiar a ilha tinha voltado, e até os informantes que o eunuco dizia ter colocado entre o pessoal de Stannis se mantinham num silêncio agourento. No entanto, os cascos listrados de galés de guerra lisenas tinham sido vistos ao largo da ilha, e Varys possuía relatórios de Myr que falavam de capitães mercenários sendo contratados por Pedra do Dragão. Se Stannis atacar por mar enquanto o irmão Renly assalta os portões, montarão em breve a cabeça de Joffrey num espigão. Pior: a minha estará ao lado da dele, Um pensamento deprimente. Devia fazer planos para tirar Shae em segurança da cidade, caso o pior parecesse provável. Podrick Payne estava na porta do seu aposento privado, estudando o chão. - Ele está lá dentro - anunciou para a fivela de Tyrion. - Aposento privado. Senhor. Perdão. Tyrion suspirou. - Olhe para mim, Pod. Enerva-me quando fala para o meu tapa-sexo, especialmente se não estou usando um. Quem está no meu aposento privado? - Lorde Mindinho - Podrick conseguiu dar um relance rápido em seu rosto, e depois baixou rapidamente os olhos. - Isto é, Lorde Petyr. Lorde Baelish. O mestre da moeda. - Faz com que o homem pareça uma multidão - o rapaz encolheu-se como se lhe tivessem batido, fazendo com que Tyrion se sentisse absurdamente culpado. Lorde Petyr estava sentado no seu banco de janela, indolente e elegante num gibão de pelúcia cor de ameixa e uma capa de cetim amarelo, com uma mão enluvada descansando no joelho. - O rei está lutando contra lebres com uma besta - disse. - As lebres estão ganhando. Venha ver. Tyrion teve de ficar nas pontas dos pés para dar uma espiada. Uma lebre morta jazia no chão, lá embaixo; outra, com as longas orelhas retorcendo-se, estava morrendo da flecha espetada no flanco. Viam-se flechas jogadas pela terra batida como palha espalhada por uma tempestade. 178 - Agora! - Joff gritou, O ajudante soltou a lebre que segurava e ela fugiu aos saltos. Joffrey puxou o gatilho da besta. A flecha falhou por mais de meio metro. A lebre ficou de pé nas patas traseiras e retorceu o focinho na direção do rei. Praguejando, Joff girou a manivela para voltar a retesar a corda, mas o animal desapareceu antes que conseguisse carregar a arma. - Outra! - o ajudante enfiou a mão na coelheira. Aquela pareceu um risco marrom contra as pedras, enquanto o tiro apressado de Joffrey quase acertava a virilha de Sor Preston. Mindinho voltou-se: - Rapaz, gosta de lebre em conserva? - perguntou a Podrick Payne. Pod fitou as botas do visitante, magníficas, de couro tingido e ornamentadas com arabescos negros. - Para comer, senhor? - Invista em potes - aconselhou Mindinho. - As lebres conquistarão o castelo em breve. Comeremos lebre três vezes por dia. - E melhor do que ratazanas no espeto - Tyrion retrucou. - Pod, deixe-nos. A menos que lorde Petyr deseje algum refresco? - Obrigado, mas não - Mindinho exibiu seu sorriso zombeteiro. - Beba com o anão, dizem, e acabará na Muralha. O negro realça minha palidez doentia. Não tenha medo, senhor, Tyrion pensou, não é a Muralha que tenho em mente para você. Sentou-se num cadeirão cheio de almofadas e disse: - Está muito elegante hoje, senhor. - Sinto-me ferido. Tento parecer elegante todos os dias. - O gibão é novo? - Sim. É muito observador. - Cor de ameixa e amarelo. São essas as cores da sua Casa? - Não. Mas um homem cansa de usar as mesmas cores o tempo todo, ou pelo menos é o que descobri. - Essa também é uma bela faca.
- Ah, é? - havia travessura nos olhos de Mindinho. Puxou a faca e olhou-a num relance casual, como se nunca a tivesse visto antes. - Aço valiriano e um cabo de osso de dragão. Um pouco simples, no entanto. E sua, se quiser. - Minha? - Tyrion deu-lhe um longo olhar. - Não. Penso que não. Minha, nunca - ele sabe, o canalha insolente. Ele sabe, e sabe que eu sei, e pensa que não posso encostar nele. Se alguma vez um homem tinha mesmo se armado em ouro, havia sido Petyr Baelish, não Jaime Lannister. A famosa armadura de Jaime não passava de aço dourado, mas Mindinho, ah... Para sua crescente inquietação, Tyrion descobrira algumas coisas a respeito do querido Petyr. Dez anos antes, Jon Arryn dera-lhe uma breve sinecura no fisco, onde Lorde Petyr em breve se distinguiu ao arrecadar três vezes mais do que os outros coletores, O Rei Robert era um gastador prodigioso. Um homem como Petyr Baelish, que tinha o dom de esfregar dois dragões de ouro para fazer nascer um terceiro, não tinha preço para a sua Mão. A ascensão de Mindinho tinha sido rápida como uma flecha. Três anos depois da sua chegada à corte, era mestre da moeda e membro do pequeno conselho, e, hoje, as receitas da coroa eram dez vezes maiores do que tinham sido sob seu ausente predecessor... embora as dívidas da coroa também tivessem se tornado vastas, Petyr Baelish era um mestre do malabarismo. Ah, ele era esperto. Não se limitava a coletar o ouro e trancá-lo num cofre do tesouro, não. Pagava as dívidas do rei com promessas e punha o ouro para trabalhar. Comprou carroças, lojas, 179 navios, casas. Comprou cereais quando havia fartura e vendeu pão quando ele escasseou. Comprou lã do norte, linho do sul e renda de Lys, armazenou-os, movimentou-os, tingiu-os e os vendeu. Os dragões de ouro reproduziram-se e se multiplicaram, e Mindinho os emprestou e trouxe-os para casa com crias. E, enquanto o fazia, colocou seus homens em posição. Os Guardiães das Chaves eram dele, todos os quatro. O Real Contador e o Real Balança eram homens que ele tinha nomeado. Tal como os funcionários a cargo das três casas de cunhagem. Mestres do porto, coletores de impostos, sargentos fiscais, administradores de lã, cobradores de pedágio, intendentes navais, administradores de vinho; nove em dez lhe pertenciam. Eram homens de médio nascimento, na sua grande maioria; filhos de mercadores, fidalgos menores, às vezes até estrangeiros, mas, considerando os resultados que obtinham, muito mais capazes do que seus predecessores bem-nascidos. Ninguém tinha pensado em questionar as nomeações. E por que deveriam? Mindinho não era ameaça para ninguém. Um homem inteligente, sorridente e simpático, amigo de todos, sempre capaz de encontrar o ouro que o rei ou a sua Mão requeriam, e, no entanto, de um nascimento tão pouco distinto, um degrau acima de cavaleiro menor. Não era um homem a se temer. Não tinha vassalos que pudesse convocar, nenhum exército de servidores, nenhum grande castelo, nenhuma terra de que valesse a pena falar, nenhuma perspectiva de grande casamento. Mas será que me atrevo a encostar nele?, Tyrion se perguntou. Mesmo se for um traidor? Não tinha nenhuma certeza de poder fazê-lo e muito menos agora, enquanto a guerra se desenrolava. Com o tempo, poderia substituir os homens de Mindinho pelos seus em posições chave, mas... Um grito soou no pátio. - Ah, Sua Graça matou uma lebre - observou Lorde Baelish. - Sem dúvida, uma lenta - Tyrion retrucou. - Senhor, foi criado em Correrrio. Ouvi dizer que cresceu próximo dos Tully. - Pode-se dizer que sim. Especialmente das moças, - Quão próximo? - Deflorei-as. E próximo o suficiente? A mentira, Tyrion estava bastante certo de se tratar de uma mentira, era dita com um tal ar de indiferença que alguém podia quase acreditar. Poderia ter sido Catelyn Stark quem mentiu? A respeito da sua defloração e também do punhal? Quanto mais tempo vivia, mais Tyrion percebia que nada era simples e que poucas coisas eram verdadeiras. - As filhas de Lorde Hoster não gostam de mim - Tyrion confessou. - Duvido que dessem ouvidos a qualquer proposta que eu possa fazer. Mas, vindas de você, as mesmas palavras poderiam cair mais docemente nos seus ouvidos. - Isso iria depender das palavras. Se tem em mente oferecer Sansa em troca do seu irmão, desperdice o tempo de outra pessoa. Joffrey nunca abrirá mão do seu brinquedo, e a Senhora Catelyn não é tão tola a ponto de trocar o Regicida por uma menina insignificante. - Pretendo ter também Arya, Pus homens à procura dela. - Procurar não é encontrar. - Lembrarei disso, senhor. Em todo caso, era a Senhora Lysa que eu esperava que pudesse influenciar. Para ela, tenho uma oferta melhor. - Lysa é mais tratável do que Catelyn, sem dúvida... mas também mais temerosa, e, pelo que sei, odeia-o. - Ela crê que tem bons motivos para isso. Quando fui seu hóspede no Ninho da Águia, insistiu que eu tinha assassinado seu marido e não se mostrou disposta a dar ouvidos a negações 180
- Tyrion inclinou-se para a frente. - Se lhe entregar o verdadeiro assassino de Jon Arryn, poderá pensar melhor de mim. Aquilo fez Mindinho endireitar-se. - O verdadeiro assassino? Confesso que me deixa curioso. Quem tem em mente? Foi a vez de Tyrion sorrir: - Os presentes dou aos meus amigos, livremente. Lysa Arryn terá de compreender isso. - E a amizade dela que lhe interessa, ou as suas espadas? - Ambas. Mindinho afagou o espigão bem tratado da sua barba. - Lysa tem suas próprias aflições. Homens dos clãs que descem das Montanhas da Lua, em maior número do que há memória... e mais bem armados. - Perturbador - disse Tyrion Lannister, que os armara. - Poderia ajudá-la com isso. Uma palavra minha... - E o que lhe custaria essa palavra? - Quero que a Senhora Lysa e o filho aclamem Joffrey como rei, que lhe jurem lealdade e que... - ... façam guerra aos Stark e aos Tully? - Mindinho balançou a cabeça. - Aí está a mosca na sua sopa, Lannister. Lysa nunca enviará seus cavaleiros contra Correrrio. - Nem eu pediria isso. Não nos faltam inimigos. Usarei as suas forças para enfrentar Lorde Renly ou Lorde Stannis, caso ele saia de Pedra do Dragão. Em troca, darei justiça por Jon Arryn e paz no Vale. Até nomearei aquele seu pavoroso filho Protetor do Leste, como o pai era antes deie - quero vê-lo voar, sussurrou, tênue, uma voz de garoto na sua memória. - E para selar o acordo, darei a ela minha sobrinha. Teve o prazer de ver uma expressão de genuína surpresa nos olhos cinza-esverdeados de Petyr Baelish. - Myrcella? - Quando tiver idade, poderá casar com o pequeno Lorde Robert. Até lá, será protegida da Senhora Lysa no Ninho da Águia. - E que pensa Sua Graça, a rainha, desta manobra? - quando Tyrion encolheu os ombros, Mindinho explodiu em gargalhadas. - Era o que eu pensava. E um homenzinho perigoso, Lannister, Sim, eu poderia cantar esta canção a Lysa - de novo, o sorriso manhoso, a travessura no olhar. - Se quisesse. Tyrion acenou com a cabeça, à espera, sabendo que Mindinho nunca tolerava um longo silêncio. - Então - prosseguiu Mindinho após uma pausa, completamente impassível - , o que há para mim na sua panela? - Harrenhal. Foi interessante observar o rosto dele. O pai de Lorde Petyr tinha sido o menor dos pequenos senhores, o avô, um pequeno cavaleiro sem terras; pelo nascimento, não possuía mais do que alguns acres pedregosos na costa varrida pelo vento dos Dedos. Harrenhal era uma das mais ricas peças dos Sete Reinos, com terras vastas, ricas e férteis, e seu grande castelo mais formidável que qualquer outro do reino... e tão grande, que reduzia à insignificância Correrrio, onde Petyr Baelish tinha sido criado pela Casa Tully, até ser bruscamente expulso quando se atreveu a erguer os olhos para a filha de Lorde Hoster. 181 Mindinho demorou um instante ajustando as pregas da capa, mas Tyrion viu a cintilação da fome naqueles olhos manhosos de gato. Está na minha mão, compreendeu. - Harrenhal está amaldiçoado - disse Lorde Petyr após um momento, tentando soar entediado. - Então arrase o castelo e construa de novo como lhe for melhor. Não lhe faltará poder para tanto. Pretendo fazer de você suserano do Tridente. Aqueles senhores do rio provaram que não são de confiança, Que lhe prestem vassalagem pelas suas terras, - Até os Tully? - Se restar algum Tully quando terminarmos. Mindinho parecia um garotinho que tivesse acabado de dar uma mordida furtiva num favo de mel. Estava tentando ficar atento às abelhas, mas o mel era tão doce... - Harrenhal e todas as suas terras e rendimentos - sua voz saiu em tom de meditação. – De uma tacada, faria de mim um dos maiores senhores do reino. Não que seja ingrato, senhor, mas... Por quê? - Serviu bem à minha irmã no problema da sucessão. - Janos Slynt também o fez. A quem este mesmo castelo de Harrenhal foi outorgado muito recentemente... Só para ser arrebatado dele assim que deixou de ser útil. Tyrion soltou uma gargalhada: - Pegou-me, senhor. Que posso dizer? Preciso que me entregue a Senhora Lysa. Não precisava de Janos Slynt - encolheu os ombros tortos. - Prefiro ter você sentado no cadeirão de Harrenhal do que Renly no Trono de Ferro. O que poderia ser mais simples? - De fato, o quê? Compreende que posso necessitar deitar de novo com Lysa Arryn para conquistar seu consentimento sobre este casamento? - Tenho poucas dúvidas de que será capaz de realizar tal tarefa.
- Há algum tempo disse a Ned Stark que, quando nos encontramos nus com uma mulher feia, a única coisa a fazer é fechar os olhos e tratar do assunto - Mindinho juntou os dedos e fitou os olhos desiguais de Tyrion. - Dê-me uma quinzena para concluir os meus negócios e arranjar um navio que me leve a Vila Gaivotas. - Está ótimo. O hóspede se levantou. - Foi uma manhã muito agradável, Lannister, E lucrativa... para ambos, confio - fez uma reverência e transformou a capa num torvelinho amarelo quando saiu a passos largos. Dois, Tyrion pensou. Subiu para o quarto a fim de esperar por Varys, que em breve faria sua aparição. Supunha que ao cair da noite. Talvez mais tarde, ao nascer da lua, embora esperasse que não. Tinha esperança de visitar Shae naquela noite. Ficou agradavelmente surpreso quando Galt, dos Corvos de Pedra, o informou, nem uma hora depois, que o homem empoado estava à sua porta. - E um homem cruel por fazer o Grande Meistre sofrer assim - ralhou o eunuco. - O homem não agüenta um segredo. - Por acaso estou ouvindo uma gralha chamando de preto um corvo? Ou será que prefere não saber o que propus a Doran Martell? Varys soltou um risinho. - Talvez meus passarinhos tenham me dito. - Ah, disseram? - Tyrion queria ouvir aquilo. - Continue. 182 - Até agora, os homens de Dorne têm se mantido à parte dessas guerras. Doran Martell convocou os vassalos, e nada mais. E bem conhecido seu ódio pela Casa Lannister, e a opinião geral é de que irá se juntar a Lorde Renly, Você quer dissuadi-lo. - Tudo isso é óbvio - Tyrion concluiu. - O único enigma é o que pode ter oferecido em troca da sua fidelidade. O príncipe é um homem sentimental e ainda chora pela irmã Elia e seu querido filho. - Meu pai disse-me um dia que um senhor nunca deixa que o sentimento entre no caminho da ambição... E acontece que temos um lugar vago no pequeno conselho, agora que Lorde Janos vestiu o negro. - Um lugar no conselho não é de se desprezar - Varys admitiu - , mas será o suficiente para fazer com que um homem orgulhoso esqueça o assassinato da irmã? - Por que esquecer? - Tyrion sorriu. - Prometi entregar-lhe os assassinos da irmã, vivos ou mortos, como ele preferir. Depois que a guerra acabar, é claro. Varys lançou-lhe um olhar astuto. - Meus passarinhos dizem que a Princesa Elia gritou um... certo nome... quando vieram buscá-la. - Um segredo é ainda segredo se todos o conhecem? - em Rochedo Casterly, era de conhecimento geral que Gregor Clegane tinha matado Elia e o filho. Dizia-se que tinha violado a princesa com o sangue e os miolos do filho ainda nas mãos. - Este segredo é um homem juramentado ao senhor seu pai. - Meu pai seria o primeiro a dizer que cinqüenta mil homens de Dorne valem o preço de um cão raivoso. Varys afagou uma bochecha empoada. - E se o Príncipe Doran exigir tanto o sangue do senhor que deu a ordem como o do cavaleiro que cometeu o ato... - Robert Baratheon liderou a rebelião. No fim das contas, todas as ordens vieram dele. - Robert não estava em Porto Real. - Doran Martell também não. - Muito bem. Sangue para o seu orgulho, um cargo para a ambição. Ouro e terras, isso nem é preciso dizer. Uma bela oferta... Mas o que é doce pode estar envenenado. Se eu fosse o príncipe, exigiria mais alguma coisa antes de pegar esse favo. Algum sinal de boa-fé, alguma salvaguarda segura contra a traição - Varys deu seu sorriso mais viscoso. - Qual deles lhe dará, pergunto eu? Tyrion suspirou. - Você sabe, não é mesmo? - Já que põe as coisas nesses termos... Sim. Tommen. Seria difícil oferecer Myrcella tanto a Doran Martell como a Lysa Arryn. - Lembre-me de nunca mais jogar de adivinhas com você. Você trapaceia. - Príncipe Tommen é um bom garoto. - Se arrancá-lo de Cersei e Joffrey enquanto ainda for novo, pode até se tornar um bom homem. - E um bom rei? - Joffrey é o rei. - E Tommen, seu herdeiro, caso algo de mal caia sobre Sua Graça. Tommen, cuja natureza é tão doce, e notavelmente... tratável. 183
- Tem uma mente desconfiada, Varys. - Tomarei isso como um elogio, senhor. Em todo caso, Príncipe Doran dificilmente ficará insensível à grande honra que lhe presta. Muito hábil, devo dizer... Não fosse por uma pequena falha. O anão soltou uma gargalhada. - Chamada Cersei? - De que serve a política contra o amor de uma mãe pelo doce fruto do seu ventre? Talvez, pela glória da sua Casa e pela segurança do reino, a rainha possa ser persuadida a enviar para longe Tommen ou Myrcella. Mas ambos? Certamente não. - O que Cersei não sabe nunca poderá me fazer mal. - E se Sua Graça descobrir as suas intenções antes de seus planos amadurecerem? - Ora... Então saberei que o homem que lhe contou é decerto meu inimigo - e quando Varys soltou um risinho, Tyrion pensou: Três. 184 Sansa Venha esta noite ao bosque sagrado, se quiser ir para casa. As palavras na centésima leitura eram as mesmas que tinham sido na primeira, quando Sansa descobriu a folha de pergaminho dobrada debaixo do travesseiro. Não sabia como tinha ido parar lá ou quem a enviara. O bilhete não estava assinado nem selado, e a letra não lhe era familiar. Esmagou o pergaminho contra o peito e sussurrou as palavras para si própria. - Venha esta noite ao bosque sagrado, se quiser ir para casa - segredou quase inaudivelmente. O que aquilo poderia significar? Deveria levar a mensagem à rainha para provar que estava sendo boa? Nervosamente, esfregou a barriga. O machucado roxo que Sor Meryn lhe dera tinha se desvanecido até tomar um feio tom amarelo, mas ainda doía, Quando bateu, seu punho estava coberto por cota de malha, A culpa era dela. Tinha de aprender a esconder melhor os sentimentos, para não enfurecer Joffrey, Quando ouviu dizer que o Duende tinha enviado Lorde Slynt para a Muralha, distraiu-se e disse: - Espero que os Outros o peguem. O rei não ficou contente. Venha esta noite ao bosque sagrado, se quiser ir para casa. Sansa tinha rezado tanto. Poderia aquilo ser a resposta, por fim, um verdadeiro cavaleiro enviado para salvá-la? Talvez fosse um dos gêmeos Redwyne, ou o ousado Sor Balon Swann... ou até Beric Dondarrion, o jovem senhor que sua amiga Jeyne Poole amava, com seu cabelo ruivo-alourado e o manto negro borrifado de estrelas. Venha esta noite ao bosque sagrado, se quiser ir para casa. E se fosse alguma brincadeira cruel de Joffrey, como no dia em que a fizera ir até as ameias para ira lhe mostrar a cabeça do pai? Ou talvez uma sutil armadilha para provar que não era leal. Se fosse ao bosque sagrado, encontraria Sor Ilyn Payne à espera, sentado em silêncio sob a árvore-coração, com a Gelo na mão e os olhos claros vigiando para ver se ela vinha? Venha esta noite ao bosque sagrado, se quiser ir para casa. Quando a porta se abriu, enfiou apressadamente o bilhete sob o lençol e sentou-se por cima. Era sua criada de quarto, aquela que parecia um rato com o cabelo castanho escorrido. - O que você quer? - A senhora vai querer um banho esta noite? - Um fogo, creio... sinto frio - estava tremendo, embora o dia tivesse sido quente. - Às suas ordens, Sansa observou a moça com suspeita. Teria visto o bilhete? Teria sido ela quem o colocara sob a almofada? Não era provável; a moça parecia ser estúpida e não alguém que se quisesse usar 185 para entregar bilhetes secretos, mas Sansa não a conhecia, A rainha mudava seus criados a cada quinzena, a fim de se assegurar que nenhum deles se tornaria seu amigo, Quando o fogo cintilou na lareira, Sansa agradeceu secamente à criada e ordenou-lhe que saísse. A moça foi rápida em obedecer, como sempre, mas Sansa decidiu que havia algo de dissimulado nos seus olhos. Sem dúvida corria para apresentar o relatório à rainha, ou talvez a Varys. Tinha certeza de que todas as criadas a espiavam. Uma vez sozinha, atirou o bilhete nas chamas, observando o pergaminho enrolar-se e enegrecer. Venha esta noite ao bosque sagrado, se quiser ir para casa. Deslocou-se até a janela. Lá embaixo, conseguia ver um cavaleiro baixo com uma armadura branca como a lua e um pesado manto branco patrulhando a ponte levadiça. Pela altura, só podia ser Sor Preston Greenfield. A rainha dera-lhe liberdade no castelo, mas, mesmo assim, ele quereria saber onde ela ia se tentasse sair da Fortaleza de Maegor àquela hora da noite. O que lhe diria? De repente sentiu-se contente por ter queimado o bilhete.
Desatou o vestido e enfiou-se na cama, mas não adormeceu. Será que ele ainda está lá?,interrogou-se. Quanto tempo esperará? Era tão cruel enviar-lhe um bilhete e não lhe dizer nada. Os pensamentos andavam às voltas na sua cabeça, Se ao menos tivesse alguém para lhe dizer o que fazer. Sentia falta da Septã Mordane, e ainda mais de Jeyne Poole, sua amiga mais fiel. A septã tinha perdido a cabeça com os outros, pelo crime de servir à Casa Stark. Sansa não sabia o que acontecera a Jeyne, que desapareceu dos seus aposentos depois do ataque para não voltar a ser mencionada. Tentava não pensar muito nelas, mas de vez em quando as memórias vinham sem ser convidadas, e então era difícil segurar as lágrimas. Ocasionalmente, Sansa até sentia saudades da irmã. Àquela altura, Arya estaria a salvo, de volta a Winterfell, dançando e cosendo, brincando com Bran e o bebê Rickon, até cavalgando pela vila de inverno, se quisesse. Sansa também era autorizada a montar, mas só no pátio, e era chato passar o dia inteiro trotando em círculos. Estava bem acordada quando ouviu os gritos. A princípio distantes, mas tornando-se mais sonoros. Muitas vozes gritando em conjunto. Não conseguia distinguir as palavras, E havia também cavalos e ruído de passos, gritos de comando. Deslocou-se até a janela e viu homens correndo nas muralhas, transportando lanças e tochas. Volte para a cama, disse a si mesmaa, isso não é nada que lhe diga respeito, não passa de mais uma perturbação na cidade. Nos poços só se falava da agitação na cidade nos últimos tempos. As pessoas aglomeravam-se, fugindo da guerra, e muitas não tinham como sobreviver a não ser roubando e matando-se umas às outras. Volte para a cama. Mas, quando olhou, o cavaleiro branco tinha desaparecido, e a ponte sobre o fosso seco estava abaixada, mas sem guarda. Sansa virou-se sem pensar e correu para o guarda-roupa. Ah, que estou fazendo?, perguntou a si mesma enquanto se vestia. Isso é uma loucura. Podia ver as luzes de muitas tochas nas muralhas exteriores, Teriam Stannis e Renly enfim chegado para matar Joffrey e reclamar o trono do irmão? Se fosse isso, os guardas ergueriam a ponte levadiça, separando a Fortaleza de Maegor do castelo exterior. Sansa atirou um manto cinza liso por sobre os ombros e pegou a faca que usava para cortar carne. Se isso for alguma armadilha, prefiro morrer a deixar que me machuquem mais, disse consigo mesma e escondeu a lâmina sob o manto. Uma coluna de espadachins de manto vermelho passou por ela correndo quando saiu para a noite. Esperou até estarem bem longe, antes de atravessar como uma flecha a ponte levadiça sem guarda. No pátio, homens afivelavam cintos de espadas e cingiam as selas dos seus cavalos. 186 Vislumbrou Sor Preston perto dos estábulos com mais três homens da Guarda Real, com os mantos brancos brilhantes como a lua, enquanto ajudavam Joffrey a vestir a armadura. Ficou sem fôlego quando viu o rei. Felizmente, ele não a viu. Gritava pela espada e pela besta. O ruído foi diminuindo enquanto se deslocava mais para o interior do castelo, sem se atrever a olhar para trás, com medo de que Joffrey pudesse estar observando... ou, pior, seguindo-a. A escada em espiral enrolava-se à sua frente, riscada por linhas de luz tremeluzente, vinda de janelas estreitas mais acima. Sansa arquejava quando chegou ao topo. Correu por uma colunata sombria e encostou-se com força na parede para recuperar o fôlego. Quando algo roçou em sua perna, quase saltou para fora da sua pele, mas era apenas um gato, um macho preto esfarrapado com uma orelha roída. A criatura bufou para ela e afastou-se com um salto. Quando chegou ao bosque sagrado, o ruído tinha se reduzido a um tênue tinir de aço e gritos distantes. Sansa apertou-se mais no manto. O ar estava rico com os cheiros da terra e das folhas. Lady teria gostado deste lugar, pensou. Havia algo de selvagem num bosque sagrado; mesmo ali, no coração do castelo que se erguia no centro da cidade, podia-se sentir os deuses antigos observando com mil olhos invisíveis. Sansa preferiu os deuses da mãe aos do pai. Adorava as estátuas, as imagens nos vitrais, a frangancia de incenso ardendo, os septões com suas togas e cristais, o mágico jogo de arco-íris nos altares incrustados de madrepérola, ônix e lápis-lazúli. Mas não podia negar que o bosque sagrado também possuía um certo poder. Especialmente à noite. Ajude-me, rezou, envie-me um amigo, um verdadeiro cavaleiro para ser meu campeão... Deslocou-se de árvore em árvore, sentindo a aspereza da casca sob os dedos. Folhas rasparam no seu rosto. Teria vindo tarde demais? Ele não teria ido embora tão cedo, não é? Ou sequer teria vindo? Ousaria chamá-lo? O bosque estava tão silencioso e calmo... - Temi que não viesse, menina. Sansa rodopiou. Um homem saiu das sombras, corpulento, de pescoço grosso, trôpego. Usava uma toga cinza-escura com o capuz puxado para a frente, mas quando uma fina fatia de luar tocou seu rosto, ela o reconheceu de imediato, pela pele manchada e pela teia de veias rompidas por baixo dela. - Sor Dontos - sussurrou, de coração despedaçado. - É o senhor? - Sim, minha senhora - quando ele se aproximou, ela sentiu o fedor amargo do vinho no seu hálito. - Eu - o homem lhe estendeu uma mão.
Sansa encolheu-se. - Não! - ela enfiou a mão sob o manto, agarrando a faca escondida. - O que... o que quer de mim? - Apenas ajudá-la - Dontos respondeu. - Tal como me ajudou. - Está bêbado, não está? - Só bebi uma taça de vinho, para ajudar a ganhar coragem. Se me apanharem agora, esfolarão minhas costas. E o que farão a mim? Sansa deu por si pensando de novo em Lady. A loba podia farejar a falsidade, podia, mas estava morta, seu pai matara-a por causa de Arya. Puxou a faca e segurou-a na sua frente com ambas as mãos. - Vai me apunhalar? - Dontos perguntou. - Vou. Diga-me quem o enviou. - Ninguém, querida senhora. Juro, pela minha honra como cavaleiro. 187 - Cavaleiro? - Joffrey tinha decretado que ele já não seria cavaleiro, apenas um bobo, ainda mais baixo do que o Rapaz Lua. - Orei aos deuses por um cavaleiro que viesse me salvar – Sansa disse. - Orei e orei. Por que me enviariam um velho bobo bêbado? - Eu mereço isso, se bem que... Eu sei que é estranho, mas... durante todos estes anos em que fui cavaleiro, fui na verdade um bobo, e agora que sou um bobo, acho... acho que posso encontrar em mim o que é preciso para voltar a ser um cavaleiro, querida senhora. E tudo por causa da senhora... da sua graça, da sua coragem. A senhora me salvou, não apenas de Joffrey, mas de mim mesmo - a voz tornou-se mais baixa. - Os cantores dizem que houve antigamente outro bobo que foi o maior cavaleiro de todos... - Florian - Sansa sussurrou, e um arrepio percorreu sua pele. - Querida senhora, quero ser o seu Florian - disse Dontos humildemente, caindo de joelhos à sua frente. Lentamente, Sansa abaixou a faca. Sentia a cabeça muito leve, como se estivesse flutuando. Confiar-me a este bêbado é uma loucura, mas se virar as costas para ele, será que a possibilidade voltará a surgir? - Como... Como o faria? Levar-me para fora daqui? Sor Dontos ergueu o rosto. - Tirá-la do castelo será o mais difícil. Uma vez fora, há navios que poderão levá-la para casa. Só necessitaria arranjar o dinheiro e fazer os preparativos, nada mais. - Podemos ir já? - ela perguntou, quase sem se atrever a ter esperança. - Hoje à noite? Não, senhora, temo que não. Primeiro tenho de arranjar uma maneira segura de tirá-la do castelo quando a hora chegar. Não será fácil nem rápido, Eles também me vigiam - lambeu os lábios com nervosismo, - Não quer guardar a sua lâmina? Sansa enfiou a faca sob o manto. - Levante-se, senhor. - Obrigado, querida senhora - Sor Dontos pôs-se desajeitadamente em pé, sacudindo terra e folhas dos joelhos. - O senhor seu pai era um dos homens mais leais que o reino conheceu, mas eu fiquei e vi-os matálo. Nada disse, nada fiz... E, no entanto, quando Joffrey quis me matar, você falou. Senhora, nunca fui um herói, nunca fui nenhum Ryam Redwyne ou Barristan, o Ousado. Não ganhei torneios ou renome na guerra... Mas fui um dia cavaleiro, e a senhora me ajudou a recordar o que isso significava. Minha vida é coisa pouca, mas é sua - Sor Dontos pôs uma mão no tronco nodoso da árvore-coração. Sansa viu que ele estava tremendo. - Juro, com os deuses do seu pai por testemunhas, que a mandarei para casa. Ele jurou. Um voto solene, perante os deuses. - Nesse caso... vou me colocar nas suas mãos, sor. Mas como saberei que é tempo de ir? Vai me enviar outro bilhete? Sor Dontos lançou um relance ansioso em volta. - O risco é grande demais. Deve vir aqui, ao bosque sagrado. O tanto quanto puder. Este é o lugar mais seguro. O único lugar seguro. Mais nenhum. Nem nos seus aposentos, nem nos meus, nem nas escadas, nem no pátio, mesmo se parecer que estamos sozinhos. Na Fortaleza Vermelha as pedras têm ouvidos, e só aqui podemos falar livremente. - Só aqui - Sansa repetiu. - Lembrarei. - E se eu lhe parecer cruel, trocista ou indiferente quando os homens estiverem observando, perdoe-me, menina. Tenho um papel a desempenhar, e você deve fazer o mesmo. Um passo em falso e nossas cabeças adornarão as muralhas, assim como aconteceu com a do seu pai. 188 Ela fez um meneio. - Compreendo, - Terá de ser corajosa e forte... e paciente. Acima de tudo paciente. - Serei - Sansa prometeu. - Mas... por favor... apresse-se o máximo possível. Tenho medo... - Também tenho - Sor Dontos confessou, com um sorriso triste no rosto. - E agora deve ir, antes que notem sua ausência. - Não vem comigo? - É melhor que nunca sejamos vistos juntos. Anuindo, Sansa deu um passo... Depois, girou nos calcanhares, nervosa, e deixou suavemente um beijo na cara dele, de olhos fechados. - Meu Florian - sussurrou. - Os deuses ouviram as minhas preces. Fugiu ao longo do passeio do rio, passando pela cozinha pequena e atravessando o pátio dos porcos, com os passos apressados perdendo-se por entre os roncos dos porcos nas suas pocilgas. Casa, pensou, casa, ele vai me levar para casa, ele vai me manter a salvo, o meu Florian. As canções sobre Florian e Jonquil eram as suas favoritas. Florian também era modesto, embora não fosse tão velho. Corria em disparada ao longo da escada em caracol, quando um homem saiu de uma porta escondida. Sansa enroscou-se nele e perdeu o equilíbrio. Dedos de ferro seguraram seu pulso antes que caísse, e uma voz profunda rouquejou: - É uma longa queda pelo caracol abaixo, passarinho. Quer nos matar? - a gargalhada dele era áspera como uma serra serrando pedra. - Talvez queira. Cão de Caça. - Não, senhor, mil perdões, nunca o faria - Sansa afastou os olhos, mas era tarde demais, ele tinha visto seu rosto. - Por favor, está me machucando - tentou se soltar. - E o que faz o passarinho de Joff voando pelo caracol abaixo na noite escura? - quando ela não respondeu, ele a sacudiu. - Onde estava? - No b-b-bosque sagrado, senhor - ela respondeu, sem se atrever a mentir. - Rezando... rezando pelo meu pai e... pelo rei, rezando para que não seja ferido. - Acha que estou tão bêbado que acredito «isso? - o homem largou seu braço, cambaleando ligeiramente, com listras de luz e escuridão caindo sobre sua terrível cara queimada. – Parece quase uma mulher... cara, tetas e também está mais alta, quase... Ah, ainda é um estúpido passarinho, não é? Cantando todas as canções que lhe ensinaram... Cante-me uma canção, por que rão canta? Vai. Cante para mim. Alguma canção sobre cavaleiros e belas donzelas. Gosta de cavaleiros, não gosta? Sansa ficava cada vez mais assutada. - De cavaleiros v-verdadeiros, senhor. - Cavaleiros verdadeiros - ele caçoou. - E eu não sou senhor nenhum, assim como não sou nenhum cavaleiro. Será que preciso enfiar isso na sua cabeça na marra? - Clegane oscilou e quase caiu. - Deuses - praguejou - , vinho demais. Gosta de vinho, passarinho? De vinho verdadeiro? Um jarro de tinto amargo, escuro como sangue, é tudo do que um homem precisa. Ou uma mulher - riu, sacudindo a cabeça. - Bêbado que nem um cão, maldito seja. Vem agora. De volta à sua gaiola, passarinho. Eu a levo lá. Mantenho-a a salvo para o rei. Cão de Caça deu-lhe um empurrão, estranhamente gentil, e seguiu-a pela escada. Quando chegaram ao fundo, ele tinha caído num silêncio meditativo, como se tivesse se esquecido de que ela estava ali. 189 Quando chegaram à Fortaleza de Maegor, ela ficou alarmada por ver que era Sor Boros Blount quem agora patrulhava a ponte. Seu grande elmo branco virou-se rigidamente ao ouvir o som dos passos deles. Sansa vacilou perante seu olhar. Sor Boros era o pior dos homens da Guarda Real, um homem feio, com um gênio mau, todo ele carranca e papada. - Aquele não é nada a temer, moça - Cão de Caça pôs uma mão pesada no ombro dela. – Se pintar listras num sapo, ele não se transforma em tigre. Sor Boros ergueu a viseira, - Sor, onde... - Que se foda o seu sor, Boros. Você é o cavaleiro, não eu. Eu sou o cão do rei, lembra? - O rei andava há um tempo à procura do seu cão. - O cão estava bebendo. Era a sua noite de defendê-lo, sor. Sua e dos meus outros irmãos. Sor Boros virou-se para Sansa. - Por que motivo não está nos seus aposentos a esta hora, senhora? - Fui ao bosque sagrado rezar pela segurança do rei - a mentira daquela vez soou melhor, quase verdadeira. - Espera que ela durma, com todo este barulho? - Clegane perguntou. - O que houve? - Idiotas ao portão - Sor Boros admitiu. - Algumas línguas soltas espalharam histórias a respeito dos preparativos para o banquete de casamento de Tyrek, e aqueles infelizes puseram na cabeça que também deviam ser banqueteados. Sua Graça liderou um ataque surpresa e os escorraçou. - Rapaz corajoso - disse Clegane, com a boca se retorcendo. Veremos como ele é corajoso quando defrontar meu irmão, Sansa pensou. Cão de Caça a levou através da ponte levadiça. Enquanto subiam os degraus, ela disse: - Por que deixa que as pessoas o chamem de cão? E não aceita que ninguém o chame de cavaleiro?
- Gosto mais de cães do que de cavaleiros, O pai do meu pai era mestre dos canis no Rochedo. Num ano de outono, Lorde Tytos interpôs-se entre uma leoa e a sua presa. A leoa estava se cagando por ser o próprio símbolo dos Lannister. Rasgou o cavalo do meu senhor às dentadas e teria dado cabo também do senhor, mas meu avô chegou com os cães de caça. Três dos seus cães morreram ao afugentá-la. Meu avô perdeu uma perna, por isso o Lannister pagou-lhe com terras e uma casa-torre e tomou seu filho como escudeiro. Os três cães no nosso estandarte são os três que morreram, no amarelo da grama de outono. Um cão de caça morrerá por você, mas nunca mentirá a você. E olhará diretamente no seu rosto - agarrou-a pelo queixo, erguendo-o, com os dedos beliscando-a dolorosamente. - E isso é mais do que os passarinhos podem fazer, não é? Não cheguei a ouvir a minha canção. - Eu... eu sei uma canção sobre Florian ejonquil. - Florian e Jonquil? Um idiota e a sua boceta. Poupe-me. Mas um dia vou conseguir uma canção de você, quer queira quer não. - Cantarei de bom grado. Sandor Clegane fungou. - Coisinha linda, e tão má, mentirosa. Um cão consegue farejar uma mentira, você sabe. Olhe em volta e dê uma boa cheirada. Aqui são todos mentirosos... e todos eles são melhores do que você. 190 Arya Quando subiu até o galho mais alto, Arya conseguiu ver chaminés espreitando por entre as árvores. Telhados de sapé aglomeravam-se ao longo das margens do lago e do pequeno riacho que nele desaguava, e um embarcadouro de madeira projetava-se pela água ao lado de um longo edifício baixo com telhado de ardósia. Arrastou-se mais para a frente, até o galho começar a ceder sob seu peso. Não havia barcos amarrados ao embarcadouro, mas conseguia ver finos anéis de fumaça que se erguiam de algumas das chaminés e parte de uma carroça que se mostrava por detrás de um estábulo, Tem alguém ali, Arya mordeu o lábio, Todos os outros lugares a que tinham chegado estavam vazios e desolados. Quintas, aldeias, castelos, septos, celeiros, não fazia diferença. Se pudesse arder, os Lannister tinham posto fogo; se pudesse morrer, tinham matado. Tinham incendiado a floresta até onde puderam, embora as folhas ainda estivessem verdes e úmidas de chuvas recentes e os incêndios não tivessem se espalhado. - Se pudessem, teriam queimado o lago - Gendry dissera, e Arya sabia que ele tinha razão. Na noite da fuga, as chamas da vila incendiada tinham brilhado tanto na água, que parecia que o lago estava ardendo. Quando, por fim, reuniram coragem para se esgueirar de volta às ruínas na noite seguinte, nada restava, a não ser pedras enegrecidas, as cascas vazias de casas e cadáveres. Em alguns lugares, fiapos de fumaça branca ainda subiam das cinzas. Torta Quente tinha insistido com eles para que não regressassem; Lommy chamara-os de loucos e jurara que Sor Amory os apanharia e os mataria também, mas Lorch e seus homens já tinham partido havia muito quando chegaram ao castro. Encontraram os portões arrombados, as muralhas parcialmente demolidas e o interior polvilhado de mortos por enterrar. Uma olhadela tinha sido o bastante para Gendry: - Foram mortos, todos eles. E cães também estiveram aqui, olhem. - Ou lobos, - Cães, lobos, não faz diferença, Isso aqui acabou. Mas Arya não quis partir até encontrarem Yoren. Não podiam tê-lo matado, dissera a si mesma, ele era duro e rígido demais e, além disso, um irmão da Patrulha da Noite. Tinha dito isto a Gendry enquanto procuravam por entre os cadáveres. O golpe de machado que o matara abriu seu crânio, mas a grande barba emaranhada não podia pertencer a mais ninguém e o vestuário também, remendado, sujo, e tão desbotado que era mais cinza do que negro. Sor Amory Lorch não perdera mais tempo enterrando seus mortos do que aqueles que tinha assassinado, e os cadáveres de quatro homens de armas Lannister estavam empilhados perto do de Yoren. Arya perguntou-se quantos teriam sido necessários para abatê-lo. 191 Ele ia me levar para casa, ela pensou enquanto escavavam a cova do velho. Havia mortos demais para enterrar todos, mas Arya insistira que pelo menos Yoren tinha de ter uma sepultura. Ele prometeu que ia me levar a salvo para Winterfell. Uma parte de si quis chorar, a outra, chutá-lo.
Foi Gendry quem pensou na casa-torre do senhor e nos três que Yoren enviara para defendê-la. Tinham sido atacados também, mas a torre redonda tinha apenas uma entrada, uma porta no segundo andar à qual se chegava por uma escada. Uma vez a escada puxada para dentro, os homens de Sor Amory não podiam chegar até eles. Os Lannister tinham empilhado galhos em volta da base da torre e colocado fogo, mas a pedra não ardia, e Lorch não tivera paciência nem quis levá-los para passar fome. Cutjack abriu a porta ao grito de Gendry e, quando Kurz disse que era melhor continuarem para norte do que voltar, Arya agarrou-se à esperança de que ainda pudesse chegar a Winterfell. Bem, aquela aldeia não era Winterfell, mas os telhados de sapé prometiam calor e abrigo e talvez mesmo comida, se tivessem coragem de se arriscar. A menos que seja Lorch quem esteja ali. Ele tinha cavalos; teria viajado mais depressa do que nós. Observou da árvore durante muito tempo, à espera de ver alguma coisa, um homem, um cavalo, um estandarte, qualquer coisa que a ajudasse a saber. Vislumbrou algumas vezes movimento, mas os edifícios estavam tão distantes que era difícil ter certeza. Uma vez, com clareza, ouviu o relincho de um cavalo. O céu estava cheio de aves, principalmente corvos. De longe, não pareciam maiores que moscas, enquanto rodopiavam e batiam as asas por cima dos telhados de sapé. Para leste, o Olho de Deus era um lençol azul batido pelo sol que enchia metade do mundo. Certos dias, enquanto avançam lentamente pela margem lamacenta (Gendry não queria ouvir falar de estradas, e até Torta Quente e Lommy viam o bom-senso disso), Arya sentia que o lago a chamava. Queria saltar naquelas águas plácidas e azuis, sentir-se limpa de novo, nadar, chapinhar e tostar ao sol. Mas não se atrevia a tirar a roupa onde os outros pudessem ver, nem mesmo para lavá-la. No fim do dia, era freqüente sentar-se numa pedra e balançar os pés na água fria. Tinha finalmente jogado fora seus sapatos rachados e apodrecidos. A princípio, caminhar descalça foi difícil, mas as bolhas finalmente estouraram, os cortes sararam e as solas dos pés transformaram-se em couro. A lama era agradável entre seus dedos e gostava de sentir a terra sob os pés quando caminhava. Dali de cima, podia ver uma pequena ilha coberta por floresta a nordeste. A trinta metros da costa, três cisnes negros deslizavam pela água, tão serenos... ninguém lhes dissera que a guerra havia chegado e em nada lhes importava vilas ardendo e homens massacrados. Olhou-os com desejo. Parte dela queria ser um cisne. A outra, comer um. Tinha quebrado o jejum com um pouco da pasta de bolota e um punhado de insetos. Os insetos não eram muito ruins depois de se habituar a eles. As minhocas eram piores, mas, mesmo assim, não eram tão ruins como a dor na barriga depois de dias sem alimento. Encontrar insetos era fácil, bastava dar um pontapé numa pedra. Um dia, quando era pequena, Arya tinha comido um inseto, só para fazer Sansa guinchar, e por isso não teve medo de comer outro. A Doninha também não tinha, mas Torta Quente vomitou o besouro que estava tentando engolir, enquanto Lommy e Gendry nem queriam experimentar. No dia anterior, Gendry apanhara uma rã e a dividira com Lommy, e, alguns dias antes, Torta Quente encontrara amoras silvestres e limpara completamente o arbusto, mas tinham subsistido principalmente de água e bolotas. Kurz lhes ensinara como usar pedras para fazer uma espécie de pasta de bolota. O gosto era horrível. Gostaria que o caçador furtivo não tivesse morrido. Ele sabia mais sobre a floresta do que todos os outros juntos, mas tinha sido atingido por uma flecha no ombro enquanto puxava para 192 dentro a escada da casa-torre. Tarber tinha feito nele um emplastro de lama e musgo do lago, e durante um dia ou dois Kurz jurou que o ferimento não era nada, embora a carne do seu pescoço estivesse se tornando escura, ao passo que fortes vergões vermelhos subiam pelo seu queixo e desciam para o peito. Então, uma manhã não conseguiu encontrar forças para se levantar e na seguinte estava morto. Enterraram-no sob um montículo de pedras. Cutjack ficou com a sua espada e o berrante, enquanto Tarber se servia do arco, das botas e da faca. Levaram tudo quando partiram. A pricípio, pensaram que os dois tinham ido caçar, que em breve voltariam com caça e os alimentaram a todos. Mas esperaram, e esperaram, até que, por fim, Gendry os obrigou a prosseguir, Talvez Tarber e Cutjack tivessem pensado que teriam melhores oportunidades sem um bando de órfãos para pastorear. E provavelmente teriam, mas isso não impedia que Arya os odiasse por terem partido. Debaixo da árvore, Torta Quente latiu como um cão. Kurz lhes havia dito para usa sons de animais para se comunicar uns com os outros. Um velho truque de caçador furtivo, disse, mas morreu antes de poder lhes ensinar a fazer os sons direito. Os chamamentos de pássaro de Torta Quente eram horríveis. O cachorro era melhor, mas não muito. Arya saltou do galho mais elevado para o inferior, com os braços abertos para manter o equilíbrio. Uma dançarina de água nunca cai. Ligeira, com os pés bem encaixados em volta do galho, deu alguns passos, deixou-se cair para um ramo maior e depois balançou com uma mão atrás da outra através do emaranhado de folhas até chegar ao tronco. A casca era áspera sob seus dedos das mãos e dos pés. Desceu com rapidez, saltando os últimos dois metros e rolando ao aterrissar. Gendry a ajudou a se levantar. - Esteve lá em cima muito tempo. O que viu?
- Uma aldeia de pescadores, um lugar pequeno, para norte, ao longo da costa. Contei vinte e seis telhados de sapé e um de ardósia. Vi parte de uma carroça. Tem alguém ali. Ao ouvir sua voz, Doninha saiu dos arbustos. Lommy lhe dera aquele nome. Dizia que ela parecia uma doninha, o que não era verdade, mas não podiam continuar chamando-a de menina chorona depois de ela finalmente ter parado de chorar. Sua boca estava nojenta. Arya esperava que não tivesse andado outra vez comendo lama. - Viu gente? - Gendry quis saber, - Quase só os telhados - Arya respondeu - , mas saía fumaça de algumas chaminés e ouvi um cavalo - Doninha pôs os braços em volta da perna dela, agarrando-se bem, Agora fazia aquilo às vezes. - Se há pessoas, há comida - disse, alto demais, Torta Quente. Gendry sempre lhe dizia para fazer menos barulho, mas não adiantava nada, - Pode ser que nos deem alguma. - Também pode ser que nos matem - Gendry rebateu, - Se nos rendermos, não - Torta Quente tinha um ar esperançoso na voz. - Está parecendo Lommy. Lommy Mãos-Verdes estava sentado, apoiado entre duas grossas raízes na base de um carvalho. Uma lança tinha penetrado sua panturrilha esquerda durante a luta no castro. Ao fim do dia seguinte, tinha de coxear sobre uma perna só, com um braço em volta de Gendry, e agora não conseguia sequer fazer isso. Tinham cortado galhos de árvores para lhe fazer uma liteira, mas levá-lo era trabalho lento e duro, e choramingava cada vez que davam um solavanco. - Temos de nos render - Lommy insistiu. - Era isso o que Yoren devia ter feito. Devia ter aberto os portões, como eles disseram. 193 Arya estava farta de ouvir Lommy dizer que Yoren devia ter se rendido. Era só disso que falava enquanto o transportavam; disso, da perna e da barriga vazia. Torta Quente concordou. - Eles disseram a Yoren para abrir os portões, disseram-lhe em nome do rei. A culpa foi daquele velho fedorento. Se tivesse se rendido, tinham-nos deixado em paz. Gendry franziu o cenho. - Os cavaleiros e fidalgos tomam-se uns aos outros como cativos e pagam resgates, mas não se importam se gente como nós se rende ou não - virou-se para Arya: - O que mais viu? - Se for uma aldeia de pescadores, aposto que nos venderiam peixe - Torta Quente falou antes dela. O lago estava cheio de peixe fresco, mas não tinham nada com que pudessem apanhá-los, Arya tentara usar as mãos, como tinha visto Koss fazer, mas os peixes eram mais rápidos do que pombos, e a água enganava seus olhos. - Quanto a peixe não sei - Arya deu um puxão no cabelo emaranhado da Doninha, pensando que talvez fosse melhor cortá-lo. - Há corvos perto da água. Tem alguma coisa morta lá. - Peixes que foram levados à margem - Torta Quente interveio de novo. - Se os corvos os comem, aposto que nós também poderíamos. - Deveríamos apanhar alguns corvos, poderíamos comê-los - a sugestão veio de Lommy. - Poderíamos fazer uma fogueira e assá-los como se fossem galinhas. Gendry parecia feroz quando se mostrava carrancudo. Sua barba tinha crescido, espessa e negra como sarça. - Eu já disse, nada de fogos. - Lommy tem fome - lamentou-se Torta Quente e eu também. - Todos temos fome - Arya confirmou. - Você não tem - Lommy cuspiu no chão. - Bafo de minhoca. Arya podia ter dado um pontapé na sua ferida. - Eu disse que desenterrava minhocas também para você, se quisesse. Lommy fez cara de nojo. - Se não fosse a minha perna, caçava uns javalis para nós. - Uns javalis? - ela zombou. - Para caçá-los, precisa de uma lança para javalis e de cães e cavalos e de homens para fazer o javali sair da toca - seu pai caçava javali no bosque de lobos com Robb e Jon. Uma vez até tinha levado Bran, mas Arya nunca, embora ela fosse mais velha. Septã Mordane dizia que a caça ao javali não era para senhoras, e sua mãe limitava-se a prometer que, quando fosse mais velha, poderia ter seu próprio falcão. Agora era mais velha, mas, se tivesse um falcão, iria comê-lo. - O que você sabe sobre caçar javalis? - Torta Quente a desafiou. - Mais do que você. Gendry não estava disposto a ouvir: - Calem-se os dois, tenho de pensar no que fazer - parecia sempre dolorido quando tentava pensar, como se algo o machucasse muito.
- Renda-se - Lommy insistiu. - Falei para se calar com a rendição. Nem sequer sabemos quem está lá. Talvez possamos roubar alguma comida. - Lommy podia roubar, não fosse a perna - Torta Quente falou. - Na cidade ele era ladrão. - Um mau ladrão - Arya rebateu senão, não tinha sido pego, Gendry olhou o sol de soslaio. 194 - O cair da noite será a melhor hora para ir até lá. Eu vou fazer um reconhecimento quando escurecer. - Não, eu vou - Arya protestou. - Você é muito barulhento. Gendry pôs sua expressão conhecida no rosto, - Vamos os dois, - Devia ir o Arry - Lommy sugeriu. - Ê mais furtivo do que você. - Vamos os dois, já disse, - Mas e se não voltarem? Torta Quente não pode me levar sozinho, sabem disso... - E há lobos - Torta Quente acrescentou. - Ouvi-os ontem à noite quando estive no meu rimo. Pareciam estar perto. Arya também os ouvira. Estava dormindo nos galhos de um olmo, mas os uivos tinham-na acordado. Tinha ficado acordada, sentada, durante uma hora, escutando-os, com um formigamento percorrendo sua espinha, - E nem sequer nos deixa fazer uma fogueira para mantê-los afastados - Torta Quente reclamou. - Não está certo nos abandonar aos lobos. - Ninguém os está abandonando - Gendry respondeu, descontente. - Lommy tem a sua lança para o caso de os lobos se aproximarem, e você estará com ele. Vamos só ver, só isso, vamos voltar. - Seja quem for que está lá, deveríamos nos render - Lommy choramingou - Preciso de uma poção qualquer para a minha perna, dói muito. - Se acharmos alguma poção para pernas, vamos trazê-la - Gendry prometeu. - Arry, vamos, quero me aproximar antes que o sol baixe. Torta Quente, mantenha a Doninha aqui, não zuero que nos siga. - Da última vez ela me deu um chute. - Eu é que lhe darei um chute se não a mantiver aqui. Sem esperar resposta, Gendry colocou seu elmo de aço e se afastou. Arya teve de correr para acompanhá-lo, Ele era cinco anos mais velho, e trinta centímetros mais alto do que ela, e também tinha pernas longas. Durante algum tempo, não disse nada, limitou-se a abrir caminho por entre as árvores com uma expressão zangada no rosto, fazendo barulho demais. Mas, por fim, parou e disse: - Acho que Lommy vai morrer. Arya não ficou surpresa. Kurz tinha morrido do seu ferimento, e ele era muito mais forte do que Lommy. Sempre que era sua vez de ajudar a transportá-lo, Arya via como sua pele estava quente e sentia o fedor que a perna exalava. - Talvez encontremos um meistre. - Só se encontram meistres em castelos e, mesmo se encontrássemos um, não sujaria as mãos em alguém como Lommy - Gendry esquivou-se de um galho baixo. - Isso não é verdade - Arya estava certa de que o Meistre Luwin teria ajudado qualquer pessoa que o procurasse. - Ele vai morrer e, quanto mais depressa isso acontecer, melhor para o resto de nós. Devíamos abandoná-lo e pronto, como ele mesmo diz. Se fosse eu ou você quem estivesse ferido, bem sabe que ele nos abandonaria - desceram uma fenda profunda e subiram do outro lado, usando raízes como corrimãos, - Estou farto de carregá-lo e também de toda aquela conversa sobre rendição. Se ele pudesse ficar em pé, enfiava seus dentes para dentro. Lommy não serve para ninguém. E aquela menina chorona também não. - Deixe a Doninha em paz, ela está só assustada e com fome, é isso. 195 Arya olhou para trás, pela primeira vez a garota não os estava seguindo. Torta Quente devia tê-la agarrado, como Gendry lhe tinha dito para fazer. - Não serve para nada - Gendry repetiu teimosamente. - Ela, Torta Quente e Lommy estão nos atrasando e ainda vão fazer com que nos matem. Você é o único membro do grupo que vale alguma coisa. Mesmo sendo uma menina. Arya congelou. - Não sou uma menina! - É sim. Acha que sou tão estúpido quanto eles? - Não, é mais. A Patrulha da Noite não aceita meninas, todo mundo sabe disso. - É verdade. Não sei por que Yoren a trouxe, mas deve ter tido algum motivo. Continua sendo uma menina. - Não sou!
- Então tira o pinto pra fora e dá uma mijada. Vai lá. - Não tenho vontade de mijar. Se tivesse, podia. - Mentirosa. Não pode tirar o pinto porque não tem um. Nunca tinha reparado quando éramos trinta, mas você vai sempre para a floresta quando quer urinar. Não vejo Torta Quente fazer isso, e nem eu faço. Se não é uma menina, deve ser um eunuco. - Eunuco é você. - Sabe muito bem que não sou - Gendry sorriu. - Quer que tire o pau para fora para provar? Não tenho nada a esconder, - Tem, sim - Arya exclamou, desesperada para sair daquela conversa sobre o pinto que não tinha. - Aqueles homens de manto dourado o procuravam na estalagem e não nos quer dizer por quê. - Bem que gostaria de saber. Acho que Yoren sabia, mas nunca me disse. Mas por que você achou que eles estavam à sua procura? Arya mordeu o lábio. Lembrava-se do que Yoren lhe dissera no dia em que cortou seu cabelo. Desses aí, metade entregava você à rainha num piscar de olhos em troca de um perdão e, se der, umas moedas de prata. A outra metade fazia o mesmo, só que te estuprava primeiro. Só Gendry era diferente, e a rainha também o procurava. - Eu conto se você me contar - ela respondeu, com cautela. - Contava se soubesse, Arry... E assim mesmo que se chama, ou tem algum nome de menina? Arya fitou a raiz nodosa junto aos seus pés. Compreendeu que o fingimento tinha chegado ao fim. Gendry sabia, e ela nada tinha dentro das calças que pudesse convencê-lo do contrário. Podia puxar a Agulha e matá-lo ali mesmo ou, então, confiar nele. Não tinha certeza de que conseguiria matá-lo, mesmo se tentasse; ele tinha sua própria espada e era muito mais forte. Tudo o que restava era a verdade, - Lommy e Torta Quente não podem saber - ela pediu. - Não saberão - ele jurou. - Por mim, não saberão. - Arya - ela o encarou. - Meu nome é Arya. Da Casa Stark. - Da Casa... - Gendry precisou de um momento antes de falar: - A Mão do Rei se chamava Stark. Aquele a quem mataram por traição. - Nunca foi um traidor. Era meu pai. Os olhos de Gendry esbugalharam-se. - Então por isso é que você pensou... Ela confirmou com a cabeça. 196 - Yoren estava me levando para casa, para Winterfell. - Eu... Então, é nobre, uma... vai ser uma senhora... Arya olhou sua roupa esfarrapada e pés descalços, rachados e cheios de calos. Viu a sujeira sob as unhas, as crostas nos cotovelos, os arranhões nas mãos. Septã Mordane nem sequer me reconheceria, aposto, Sansa talvez reconhecesse, mas fingiria que não. - Minha mãe é uma senhora e minha irmã também, mas eu nunca fui. - Foi, sim. Era filha de um senhor e viveu num castelo, não foi? E você... que os deuses sejam bons, eu nunca... - de repente Gendry pareceu incerto, quase com medo. - Toda aquela convesa sobre pintos, nunca devia ter dito aquilo. E andei mijando na sua frente e tudo. Eu... lhe peço perdão, senhora. - Para com isso! - Arya ralhou com ele. Estaria caçoando dela? - Eu conheço as cortesias, senhora - Gendry disse, teimoso como sempre. - Sempre que moças nobres vinham à loja com os pais, meu mestre dizia que eu devia dobrar o joelho, só falar quando falassem comigo e chamá-las de senhora. - Se começar a me chamar de senhora, até Torta Quente vai reparar. E é melhor também que continue mijando da mesma maneira. - Como a senhora ordenar. Arya bateu no peito de Gendry com ambas as mãos. Ele tropeçou numa pedra e sentou-se no chão com um baque. - Que tipo de filha de lorde é você? - ele perguntou, rindo. - Deste tipo - Arya chutou seu quadril, mas isso só fez com que ele risse mais. - Ria o quanto quiser. Eu vou ver quem está na aldeia - o sol já tinha se escondido atrás das árvores; o ocaso chegaria num instante. Pela primeira vez, foi Gendry quem teve de correr atrás dela. - Sente o cheiro? - ela perguntou. Ele farejou o ar. - Peixe podre? - Você sabe que não é. - E melhor termos cuidado. Vou dar a volta pelo oeste, para ver se encontro alguma estrada. Deve haver, porque você viu uma carroça. Você vai pela margem. Se precisar de ajuda, lata como um cachorro.
- Isso é estúpido. Se precisar de ajuda, gritarei socorro. Arya afastou-se como uma flecha, os pés nus silenciosos no mato. Quando olhou para trás por sobre o ombro, ele a estava observando com aquele ar de dor no rosto que significava que estava pensando. Provavelmente está pensando que não devia deixar a senhora ir roubar comida. Arya sabia que Gendry passaria a ser estúpido. O cheiro ficou mais forte quando se aproximou da aldeia, Não era de peixe podre. Aquele fedor era mais fétido, mais repugnante. Franziu o nariz. Onde as árvores começaram a rarear, usou a vegetação rasteira, deslizando de arbusto em arbusto, silenciosa como uma sombra. A cada poucos metros parava para escutar. Da terceira vez, ouviu cavalos e também uma voz de homem. E o cheiro piorava. Fedor de mortos é o que isto é .Já tinha sentido esse cheiro antes, com Yoren e os outros. Uma densa moita de espinheiros crescia ao sul da aldeia. Quando a alcançou, as longas sombras do pôr do sol tinham começado a se desvanecer, e os vaga-lumes estavam surgindo. Conseguia ver telhados de sapé logo depois da cerca viva. Deslizou em volta até ver uma abertura e atravessou, rastejando sobre a barriga, mantendo-se bem escondida até ver de onde vinha o cheiro. 197 Junto às águas do Olho de Deus, que batiam levemente contra a margem, tinha sido erguido um longo cadafalso de madeira tosca e coisas que um dia tinham sido homens pendiam dela, com correntes nos pés, enquanto corvos bicavam sua carne e esvoaçavam de cadáver em cadáver, Para cada corvo havia cem moscas. Quando o vento soprava do lago, o mais próximo dos cadáveres retorcia-se ligeiramente nas suas correntes. Os corvos tinham comido a maior parte do seu rosto e outra coisa também tinha se alimentado dele, uma coisa muito maior. A garganta e o peito tinham sido rasgados; entranhas verdes e brilhantes e fitas de carne esfarrapada pendiam de onde a barriga tinha sido aberta. Um braço tinha sido arrancado pelo ombro; Arya viu os ossos alguns metros à sua frente, roídos e fendidos, completamente limpos de carne. Forçou-se a olhar para o homem seguinte, e para o outro além dele, e para o outro depois desse, dizendo a si mesma que era dura como uma pedra, Todos cadáveres, tão brutalizados e apodrecidos, que precisou de um momento para perceber que tinham sido despidos antes de ser pendurados. Não pareciam pessoas nuas; quase nem pareciam pessoas. Os corvos tinham comido seus olhos e às vezes o rosto. Do sexto, na longa fila, nada restava, a não ser uma única perna, ainda presa às suas correntes, oscilando a cada brisa. O medo corta mais profundamente do que as espadas. Os mortos não podiam lhe fazer mal, mas quem quer que os tivesse matado podia. Para além do cadafalso, dois homens com camisas de cota de malha apoiavam-se nas suas lanças em frente ao longo edifício baixo junto à água, aquele que tinha o telhado de ardósia. Um par de grandes mastros tinha sido enfiado no terreno lamacento, com bandeiras penduradas em cada um. Uma parecia vermelha e a outra mais clara, talvez branca ou amarela, mas ambas estavam murchas e, com o crepúsculo aprofundando-se, nem sequer podia ter certeza de que o vermelho fosse o carmim dos Lannister. Não preciso ver o leão, vejo todos os mortos. Quem mais poderia ser que não os Lannister? Então, ouviu-se um grito. Os dois lanceiros se viraram ao ouvi-lo, e um terceiro homem surgiu, empurrando um prisioneiro à sua frente. Estava ficando escuro demais para distinguir rostos, mas o prisioneiro usava um brilhante elmo de aço, e quando Arya viu os cornos, soube que era Gendry. Seu estúpido, estúpido, estúpido, ESTÚPIDO!, pensou. Se estivesse ali, o chutaria novamente. Os guardas falavam em voz alta, mas ela estava afastada demais para distinguir as palavras, especialmente com os corvos tagarelando e esvoaçando bem mais perto. Um dos lanceiros arrancou o elmo da cabeça de Gendry e lhe fez uma pergunta, mas não deve ter gostado da resposta, porque bateu na sua cara com o cabo da lança e o atirou ao chão. Aquele que o capturara lhe deu um pontapé, enquanto o segundo lanceiro experimentava o elmo de cabeça de touro. Por fim, puseram-no em pé e o levaram para o armazém. Quando abriram as pesadas portas de madeira, um garotinho saltou como uma flecha, mas um dos guardas agarrou seu braço e o atirou de volta lá para dentro. Arya ouviu soluços vindos de dentro do edifício e depois um grito tão alto e cheio de dor que a fez morder o lábio. Os guardas atiraram Gendry lá para dentro, com o menino, e trancaram as portas. Nesse momento, um sopro de vento veio suspirando do lago, e as bandeiras agitaram-se e se ergueram. Aquela que estava no mastro maior exibia o leão dourado, tal como Arya temera. Na outra, três formas negras e lisas corriam por um fundo amarelo como manteiga. Cães, pensou. Arya já vira aqueles cães antes. Mas onde: Não importava. A única coisa importante era que tinham capturado Gendry. Mesmo que ele fosse teimoso e estúpido, tinha de tirá-lo dali. Gostaria de saber se aqueles homens sabiam que a rainha o procurava. 198 Um dos guardas tirou seu elmo e colocou o de Gendry. Ver o homem usando-o a irritou, mas sabia que nada podia fazer para impedi-lo. Pensou ouvir mais gritos vindos de dentro do armazém sem janelas, abafados pelas paredes de pedra, mas era difícil ter certeza.
Permaneceu ali durante tempo suficiente para ver a mudança da guarda e muito mais coisas. Homens chegaram e partiram. Levaram os cavalos para beber no riacho. Um grupo de caçadores voltou da floresta, trazendo a carcaça de uma corça pendurada em uma vara. Viu quando eles a limparam, eviscerando-a e acendendo uma fogueira do outro lado do riacho, e o cheiro da carne assando misturou-se de forma estranha com o fedor da decomposição. A barriga vazia de Arya ficou embrulhada, e sentiu-se prestes a vomitar. A perspectiva de alimento trouxe outros homens de dentro das casas, quase todos usando peças de cota de malha ou couro fervido. Quando a corça ficou pronta, os melhores pedaços foram levados para uma das casas. Arya achou que a escuridão pudesse permitir que rastejasse para mais perto e libertasse Gendry, mas os guardas acenderam archotes na fogueira. Um escudeiro trouxe carne e pão aos dois que guardavam o armazém, e mais tarde outros dois homens juntaram-se a eles, e os quatro passaram um odre de vinho de mão em mão. Quando se esvaziou, os outros foram embora, mas os dois guardas ficaram, apoiados nas lanças. Os braços e as pernas de Arya estavam rígidos quando ela finalmente se contorceu para sair de debaixo do espinheiro e penetrar na escuridão da floresta. Estava uma noite escura, com uma fina lasca de lua aparecendo e desaparecendo à medida que as nuvens passavam por ela. Silenciosa como uma sombra, disse a si mesma enquanto se deslocava por entre as árvores. Naquela escuridão não se atrevia a correr, com receio de tropeçar em alguma raiz invisível ou de se perder. A esquerda, o Olho de Deus batia calmamente contra as suas margens. A direita, um vento suspirava através dos galhos, e folhas restolhavam e agitavam-se. Ao longe, ouviu os uivos de lobos. Lommy e Torta Quente quase se borraram quando ela saiu das árvores atrás deles. - Silêncio - Arya lhes disse, pondo um braço em volta da Doninha quando a garotinha correu para ela. Torta Quente a encarou com os olhos muito abertos. - Pensávamos que tinham nos abandonado - ele tinha a espada curta na mão, aquela que Yoren havia roubado do homem de manto dourado, - Tive medo de que fosse um lobo. - Onde está o Touro ? - Lommy perguntou. - Pegaram-no - Arya sussurrou. - Temos de tirá-lo de lá. Torta Quente, vai ter de ajudar, Esgueiramo-nos até lá e matamos os guardas, e depois eu abro a porta. Torta Quente e Lommy trocaram um olhar. - Quantos? - Não consegui contar - ela admitiu. - Pelo menos vinte, mas só dois estão na porta. Torta Quente pareceu prestes a chorar. - Não podemos lutar contra vinte, - Só vai ter de lutar com um, eu trato do outro. Tiramos Gendry de lá e fugimos. - Deveríamos nos render - Lommy protestou. - Vá até lá e renda-se. Arya negou teimosamente com a cabeça. - Então, deixe-o, Arry - Lommy suplicou. - Eles não sabem do resto de nós. Se nos escondermos, vão embora, sabe que vão. Não é culpa nossa que Gendry tenha sido capturado. - Você é idiota, Lommy - Arya estava irritada. - Vai morrer se não o tirarmos de lá. Quem vai carregá-lo? - Você e o Torta Quente. 199 - O tempo inteiro, sem mais ninguém para ajudar? Nunca conseguiremos, Gendry era o mais forte. Seja como for, não me interessa o que você diz, eu vou buscá-lo - Arya estava decidida, Então, olhou para Torta Quente: - Você vem? Torta Quente olhou para Lommy de relance, depois para Arya, e depois, de novo, para Lommy. - Vou - ele respondeu, relutante. - Lommy, mantenha Doninha aqui. Ele agarrou a garotinha pela mão e a puxou para perto de si. - E se os lobos vierem? - Renda-se - Arya sugeriu. Encontrar o caminho de volta à aldeia pareceu demorar horas. Torta Quente ficou o tempo todo tropeçando na escuridão e se perdendo, e Arya tinha de esperar por ele ou voltar para buscá-lo. Por fim, pegou sua mão e o levou por entre as árvores. - Limite-se a ficar calado e a me seguir. Quando conseguiram distinguir o primeiro brilho tênue das fogueiras da aldeia contra o céu, ela disse: - Há mortos pendurados do outro lado da cerca viva, mas não tem por que se assustar, lembre-se só de que o medo corta mais profundamente do que as espadas. Temos de ir em silêncio e lentamente - Torta Quente concordou com a cabeça. Arya penetrou primeiro no espinheiro e esperou por ele do outro lado, bem agachada. Torta Quente surgiu, pálido e ofegante, com longos arranhões sangrentos na cara e nos braços. Começou a dizer qualquer coisa, mas Arya pôs um dedo nos seus lábios, Apoiando-se nas mãos e nos pés, rastejaram ao longo do cadafalso, sob os mortos oscilantes. Torta Quente não olhou para cima nem uma vez e não soltou um som sequer. Até o corvo pousar nas suas costas e ele soltar um arquejo abafado: - Quem está aí? - trovejou de súbito uma voz vinda das trevas. Torta Quente ficou de pé num salto. - Rendo-me! - jogou fora a espada enquanto dúzias de corvos se ergueram no ar aos guinchos e lamentos e esvoaçarem em volta dos cadáveres. Arya agarrou sua perna e tentou arrastá-lo outra vez para baixo, mas ele se soltou e correu em frente, agitando os braços. - Rendo-me, rendo-me. Arya também ficou em pé e puxou Agulha, mas, àquela altura, já havia homens por toda volta. Arya golpeou o mais próximo, mas ele a conteve com um braço revestido de aço, outro dos homens esbarrou nela e a atirou ao chão, e um terceiro arrancou a espada da sua mão. Quando tentou morder, seus dentes fecharam-se sobre cota de malha fria e suja. - Oh-ho, esse é feroz - disse o homem, rindo. O golpe do seu punho revestido de ferro quase arrancou sua cabeça. Conversaram por cima dela enquanto jazia com dores, mas Arya não parecia ser capaz de compreender as palavras. Seus ouvidos ressoavam. Quando tentou rastejar para fora dali, a terra moveu-se debaixo de si. Eles tiraram a Agulha de mim, A vergonha daquilo doía mais do que as dores físicas e estas doíam muito. Jon tinha lhe dado aquela espada. Syrio ensinara-lhe a usá-la. Por fim, alguém agarrou o peito do seu justilho e a deixou de joelhos. Torta Quente também estava ajoelhado, na frente do homem mais alto que Arya já tinha visto na vida, um monstro saído de uma das histórias da Velha Ama. Não chegou a ver de onde tinha vindo o gigante. Três cães negros corriam pela sua desbotada capa amarela e seu rosto parecia tão duro como se tivesse sido esculpido em pedra. De súbito, Arya lembrou-se de onde já vira aqueles cães. Na noite do 200 torneio em Porto Real, todos os cavaleiros tinham pendurado seus escudos na porta dos seus pavilhões "Aquele pertence ao irmão do Cão de Caça", confidenciara Sansa quando passaram pelos cães negros em fundo amarelo, "Ele é ainda maior do que Hodor, verá. Chamam-no de a Montanha que Cavalga," Arya deixou a cabeça cair, só meio consciente do que se passava à sua volta. Torta Quente estava se rendendo um pouco mais. Montanha disse: - Vai nos levar a esses outros - e afastou-se. Em seguida, Arya tropeçava pelos mortos no cadafalso, enquanto Torta Quente dizia aos captores que lhes faria empadões e tortas se não lhe fizessem mal. Foram quatro homens com eles, Um transportava um archote, outro, uma espada longa; dois tinham lanças. Encontraram Lommy onde o tinham deixado, debaixo do carvalho, - Rendo-me - ele gritou de imediato assim que os viu. Jogou longe sua lança e levantou as mãos, manchadas de verde por antigas tintas. - Rendo-me. Por favor. O homem com o archote procurou em volta, debaixo das árvores. - E o último? O filho do padeiro disse que havia uma menina. - Ela fugiu quando os ouviu chegando - Lommy respondeu. - Fizeram muito barulho – e Arya pensou: foge, Doninha, foge o máximo que puder, foge, esconda-se e não volte. - Diga-nos onde encontrar aquele filho de puta do Dondarrion e haverá uma refeição quente pra você, - Quem? - Lommy perguntou, sem expressão. - Eu disse. Estes aí não sabem mais do que aqueles cuzões da aldeia. Uma merda de uma perda de tempo. Um dos lanceiros se aproximou indolentemente de Lommy. - Tem alguma coisa com a sua perna, rapaz? - Está ferida. - Pode andar? - o homem parecia preocupado. - Não. Terá de me carregar. - Acha mesmo? O homem ergueu displicentemente a lança e enfiou a ponta na garganta mole do rapaz, Lommy nem teve tempo de se render novamente. Sacudiu-se uma vez, e foi tudo. Quando o homem soltou a lança, jorrou sangue numa fonte escura. - Carregá-lo, ele disse - resmungou, com um risinho. 201 Tyrion Ttinham-no prevenido para vestir roupas quentes. E Tyrion Lannister seguiu fielmente o que lhe disseram. Usava pesados calções forrados e um gibão de lã, e tinha posto por cima o manto de pele de gato-dassombras que arranjara nas Montanhas da Lua. O manto era absurdamente longo, feito para um homem com o dobro da sua altura. Quando não estava montado, a única maneira de usá-lo era enrolá-lo à sua volta várias vezes, o que o deixava parecido com uma bola de pelo rajado. Mesmo assim, sentia-se contente por ter escutado o que lhe tinham dito. O frio na longa adega úmida atacava os ossos. Timett decidiu recuar para a superfície depois de experimentar brevemente o frio que fazia lá embaixo. Estavam em algum lugar sob a colina de Rhaenys, nos fundos do palácio da Guilda dos Alquimistas. As paredes de pedra úmida estavam salpicadas de salitre, e a única luz que havia ali vinha da lamparina selada de ferro e vidro que Hallyne, o Piromante, transportava tão delicadamente. Delicadamente, sim... e aqueles eram, com certeza, frascos delicados, Tyrion pegou um para inspecioná-lo. Era redondo e avermelhado, uma gorda toranja de barro. Um pouco grande demais para sua mão, mas Tyrion sabia que caberia confortavelmente na de um homem normal. A cerâmica era fina, tão frágil, que mesmo ele tinha sido prevenido para não apertar com muita força para que não a esmagasse. Sentia o barro áspero, granuloso. Hallyne disse-lhe que era intencional. - Um frasco liso é mais passível de escapar da mão de alguém. Fogovivo escorreu lentamente para a boca do frasco quando Tyrion o inclinou para espiar lá dentro. Sabia que a cor devia ser um verde lodoso, mas a luz fraca impossibilitava-lhe confirmar. - E espesso - ele observou. - E por causa do frio, senhor - foi a resposta de Hallyne, um homem pálido, com mãos moles e úmidas, e maneiras obsequiosas. Estava vestido com uma toga listrada de preto e escarlate, ornamentada com zibelina, mas a pele já estava um tanto remendada e roída pelas traças. - A medida que for aquecendo, a substância fluirá com mais facilidade, como o azeite para as lâmpadas. Substância era o termo que os piromantes usavam para o fogovivo. Também chamavam uns aos outros de sábios, o que Tyrion achava quase tão irritante como o costume que tinham de sugerir as vastas reservas secretas de conhecimento que queriam que ele pensasse que possuíam. Em outra época, aquela tinha sido uma guilda poderosa, mas nos séculos recentes os meistres da Cidadela tinham suplantado os alquimistas em quase tudo. Agora, restava apenas um punhado de membros da antiga ordem, e já nem sequer fingiam transmutar metais... ... Mas sabiam fazer fogovivo. 202 - A água não o apaga, segundo me disseram. - Assim é. Uma vez que se incendeie, a substância arderá violentamente até se extinguir. E vai, ainda, se infiltrar em roupa, madeira, couro, até mesmo aço, para que também se incendeiem. Tyrion recordou o sacerdote vermelho Thoros de Myr e sua espada flamejante. Até mesmo um fino revestimento de fogovivo podia arder durante uma hora. Thoros precisava sempre de uma espada nova depois de um combate, mas Robert gostava do homem e estava sempre feliz em fornecê-las. - Por que não se infiltra também no barro? - Ah, mas infiltra - Hallyne respondeu. - Há uma adega por baixo desta onde armazenamos os frascos mais antigos. Os do tempo de Rei Aerys. Ele preferia mandar fazer os frascos em forma de frutas. Umas frutas muito perigosas mesmo, senhor Mão, e, hummm, hoje mais maduras do que nunca, se compreende aonde quero chegar. Selamos com cera e enchemos a adega inferior de água, mas, mesmo assim... Na verdade, eles deviam ter sido destruídos, mas tantos dos nossos mestres foram assassinados durante o Saque de Porto Real, que os poucos acólitos que restaram não deram conta da tarefa. Muitas das reservas que fizemos para Aerys foram perdidas. Só no ano passado, duzentos frascos foram descobertos num armazém situado por baixo do Grande Septo de Baelor. Ninguém foi capaz de se lembrar de como eles tinham ido parar lá, mas estou certo de que não preciso dizer que o Alto Septão estava fora de si por causa do terror. Assegurei-me pessoalmente de que os frascos fossem transportados em segurança. Mandei encher uma carroça de areia e enviei nossos acólitos mais capazes. Trabalhamos apenas de noite, nós... - ... Fizeram um magnífico trabalho, não duvido - Tyrion pôs o frasco que estava segurando no meio dos outros. Cobriam a mesa, em filas ordenadas de quatro, que se estendiam pelas sombras subterrâneas adentro. E para lá daquela havia outras mesas, muitas outras mesas. - Estas, ah... frutas do falecido Rei Aerys, ainda podem ser usadas? - Ah, sim, com toda certeza... Mas com cuidado, senhor, com o máximo de cuidado. A medida que envelhece, a substância fica ainda mais, hummmm, instável, digamos. Qualquer chama pode incendiá-la. Qualquer faísca. Calor em excesso, e os frascos se incendeiam espontaneamente. Não é sensato deixá-los ao sol, mesmo que por um curto período. Uma vez que o fogo se inicie no seu interior, o calor faz com que a substância se expanda violentamente, e em instantes os frascos voam em cacos. Se outros frascos estiverem armazenados nas vizinhanças, também explodirão, e assim... - Quantos frascos vocês têm atualmente? - Esta manhã, o Sábio Munciter disse-me que tínhamos sete mil, oitocentos e quarenta. Esse número inclui quatro mil frascos dos dias do Rei Aerys, com certeza. - As nossas frutas maduras demais? Hallyne assentiu com a cabeça. - O Sábio Malliard crê que sejamos capazes de fornecer um total de dez mil frascos, como foi prometido à rainha. E eu concordo - o Piromante parecia estar indecentemente satisfeito com aquela expectativa.
Considerando que nossos inimigos lhe deem o tempo necessário. Os piromantes mantinham a receita do fogovivo como um segredo bem guardado, mas Tyrion sabia que o processo era demorado e perigoso. Partira do princípio de que a promessa de dez mil frascos era um alarde vazio, como o do vassalo que jura reunir dez mil espadas para o seu senhor e aparece no dia da batalha com cento e duas. Se nos puderem realmente dar dez mil... 203 Não sabia se devia estar deliciado ou apavorado. Talvez um pouco de ambos. - Confio que seus irmãos da guilda não estejam trabalhando com uma pressa inconveniente, Sábio. Não queremos dez mil frascos de fogovivo defeituoso, nem mesmo um... E, com toda certeza, não queremos acidentes. - Não haverá acidentes, senhor Mão. A substância é preparada numa série de celas nuas de pedra por acólitos treinados, e cada frasco é levado por um aprendiz e trazido para cá no instante em que fica pronto. Por cima de cada cela de trabalho fica uma sala completamente cheia de areia. Um feitiço protetor foi depositado nos pisos... Hummm... Muito poderoso. Qualquer incêndio na cela abaixo faz com que os pisos caiam, e a areia apaga imediatamente o fogo. - Sem falar do descuidado acólito - com feitiço, Tyrion imaginava que Hallyne quisesse dizer truque inteligente. Pensou que gostaria de inspecionar uma dessas celas com teto falso para ver como funcionava, mas aquele não era o momento para isso. Talvez depois da guerra vencida. - Meus irmãos nunca são descuidados - insistiu Hallyne. - Se posso ser, hummmm,franco... - Ah, claro. - A substância flui nas minhas veias e vive no coração de todos os piromantes. Respeitamos seu poder. Mas o soldado comum... hummm, os que manejam uma das catapultas de fogo da rainha, por exemplo, no frenesi sem raciocínio da batalha... Qualquer pequeno erro pode originar uma catástrofe. Mas isso é coisa que não se diz com muita freqüência. Meu pai disse isso mesmo, várias vezes, ao Rei Aerys, assim como o pai dele disse ao Rei Jaehaerys. - Eles devem ter escutado - Tyrion observou, - Se tivessem queimado a cidade, alguém teria me informado. Então, seu conselho é que sejamos cuidadosos? - Sejam muito cuidadosos - Hallyne reiterou. - Sejam muito, muito cuidadosos. - Esses frascos de barro... Há muitos por aqui? - Sim, senhor. Obrigado por perguntar. - Então não se importará se eu levar alguns. Alguns milhares. - Alguns milhares? - Ou o número que sua guilda possa ceder sem interferir na produção. Mas, compreenda, são frascos vazios que peço. Mande que sejam enviados aos capitães de todos os portões da cidade. - Farei isso, senhor, mas, por quê...? Tyrion sorriu-lhe. - Quando me diz para vestir roupa quente, eu assim me visto. Quando me diz para ser cuidadoso, bem... - encolheu os ombros. - Já vi o suficiente. Talvez queira ter a bondade de me acompanhar de volta à minha liteira? - Terei grande, hummm, prazer, senhor - Hallyne pegou a lamparina e seguiu à frente de volta à escada. - Foi bom da sua parte nos visitar. Uma grande honra, hummm. Passou-se muito tempo desde a última vez que a Mão do Rei nos agraciou com sua presença. Não acontecia desde Lorde Rossart, e ele pertencia à nossa ordem. Isso foi nos tempos do Rei Aerys, que tinha grande interesse pelo nosso trabalho. Rei Aerys os usou para assar a carne dos seus inimigos. Seu irmão, Jaime, contara-lhe algumas histórias a respeito do Rei Louco e dos seus piromantes de estimação. - Joffrey também se interessará, não duvido - e é por isso mesmo que é bom que o mantenha bem longe de você. - E nossa grande esperança que o rei visite nosso palácio na sua real pessoa. Falei sobre isso à sua real irmã. Um grande banquete... 204 Estava ficando mais quente à medida que subiam. - Sua Graça proibiu todos os banquetes até que a guerra esteja ganha - por insistência minha, - O rei não pensa ser adequado banquetear-se com alimentos de primeira linha enquanto seu povo passa sem pão. - Um gesto muito, hummm, dedicado, senhor. Talvez, em vez disso, alguns de nós possamos visitar o rei na Fortaleza Vermelha, Uma pequena demonstração dos nossos poderes, por assim dizer, a fim de distrair Sua Graça das suas muitas preocupações durante uma noite. O fogovivo é apenas um dos temidos segredos da nossa antiga ordem. Muitas e maravilhosas são as coisas que poderíamos lhe mostrar. - Levarei o assunto à consideração da minha irmã - Tyrion não tinha nenhuma objeção a alguns truques de magia, mas o gosto de Joff por obrigar homens a lutar até a morte já era aflição suficiente; não tinha nenhuma intenção de permitir que o rapaz experimentasse a possibilidade de queimá-los vivos.
Quando enfim chegaram ao topo dos degraus, Tyrion livrou-se da pele de gato-das-sombras e dobrou-a sobre o braço. A Guilda dos Alquimistas era um majestoso labirinto de pedra negra, mas Hallyne indicoulhe o caminho pelas suas curvas e contracurvas até chegarem à Galeria dos Archotes de Ferro, um longo salão ecoante, onde espirais de fogo verde dançavam em torno de colunas de metal negro com seis metros de altura. Chamas fantasmagóricas refletiam-se no mármore negro polido das paredes e do chão e banhavam o salão com um esplendor esmeralda, Tyrion teria ficado mais impressionado se não soubesse que os grandes archotes de ferro só tinham sido acesos naquela manhã em honra da sua visita, mas seriam extintos no instante em que as portas se fechassem nas suas costas. O fogovivo era caro demais para se esbanjar. Emergiram no topo da larga escadaria curva que dava para a Rua das Irmãs, perto do sopé da Colina de Visenya. Tyrion disse adeus a Hallyne e bamboleou-se até onde Timett, filho de Timett, esperava com uma escolta de Homens Queimados. Dado seu propósito hoje, tinha-lhe parecido uma escolha singularmente apropriada para sua guarda. Além disso, as cicatrizes deles inspiravam terror nos corações do populacho. Nos dias que corriam, isso era ótimo, Não mais do que três noites antes, outra multidão tinha se reunido nos portões da Fortaleza Vermelha,  clamando por comida. Joff soltara uma tempestade de flechas contra eles, matando quatro, e depois gritara-lhes que tinham sua autorização para comer os mortos. Ganhandonos ainda mais amigos. Tyrion ficou surpreso ao ver, agora, Bronn, em pé, ao lado da liteira. - O que você está fazendo aqui? - Venho entregar suas mensagens. - A Mão de Ferro quer você com urgência no Portão dos Deuses. Não quis me dizer por quê, E Maegor também foi convocado. - Convocado? - Tyrion só conhecia uma pessoa que se atreveria a usar essa palavra. - E o que Cersei quer de mim? Bronn encolheu os ombros. - A rainha ordena-lhe que regresse imediatamente ao castelo e se ponha a seu serviço nos seus aposentos. Foi aquele seu primo moleque quem entregou a mensagem. Quatro pelos debaixo do nariz, e se julga um homem. - Quatro pelos e um título de cavaleiro. Ele agora é Sor Lancei, nunca se esqueça disso - Tyrion sabia que Sor Jacelyn nunca mandaria chamá-lo a menos que o assunto fosse importante. - É melhor que eu vá ver o que Bywater quer. Informe minha irmã que me porei a seu serviço quando retornar. 205 - Ela não vai gostar disso - Bronn preveniu. - Ótimo. Quanto mais tempo Cersei esperar, mais zangada ficará, e a ira torna-a estúpida. Prefiro-a de longe zangada e estúpida, a tranqüila e astuta - Tyrion atirou o manto dobrado para dentro da liteira, e Timett o ajudou a subir depois. A praça do mercado, que ficava junto ao Portão dos Deuses, e que em tempos normais estaria atulhada de agricultores vendendo legumes, estava quase deserta quando Tyrion a atravessou. Sor Jacelyn foi ao seu encontro no portão e ergueu a mão de ferro numa saudação brusca, - Senhor. Seu primo Cleos Frey está aqui, vindo de Correrrio, sob uma bandeira de paz, trazendo uma carta de Robb Stark. - Condições de paz? - É o que ele diz. - Meu primo querido. Leve-me até ele. Os homens de manto dourado tinham confinado Sor Cleos em uma sala da guarda sem janelas e dentro da guarita. Ele se levantou quando entraram. - Tyrion, como é bom vê-lo. - Isso não é algo que eu ouça com freqüência, primo, - Cersei veio junto? - Minha irmã tem outras ocupações. Esta é a carta do Stark? - pegou-a da mesa. - Sor Jacelyn, pode nos deixar. Bywater fez uma reverência e saiu. - Pediram-me para trazer a oferta de paz à Rainha Regente - disse Sor Cleos quando a porta se fechou. - Farei isso - Tyrion passou os olhos pelo mapa que Robb Stark tinha enviado com a carta. - Tudo a seu tempo, primo. Sente-se. Descanse. Está com uma aparência desgastada e fatigada - na verdade, parecia pior do que isso. - Sim - Sor Cleos deixou-se cair num banco. - As coisas estão más nas terras fluviais, Tyrion. Em especial em torno do Olho de Deus e ao longo da estrada do rei. Os senhores do rio andam queimando as próprias colheitas para tentar nos fazer passar fome, e os destacamentos logísticos do seu pai incendeiam todas as aldeias que conquistam e passam o povo na espada. Era o costume da guerra. O povo era massacrado e os nobres, aprisionados, para obter resgates.
Lembre-me de agradecer aos deuses por ter nascido um Lannister. Sor Cleos passou uma mão pelo fino cabelo castanho: - Mesmo com uma bandeira de paz, fomos atacados duas vezes. Lobos em cota de malha, famintos por morder qualquer um mais fraco que eles. Só os deuses sabem de que lado começaram, mas agora estão do seu próprio lado. Perdemos três homens, e temos muitos mais feridos. - Que novidades há do nosso inimigo? - Tyrion volveu a atenção às condições do Stark. 0 rapaz não quer muito. Só metade do reino, a libertação dos nossos cativos, reféns, a espada do pai... ah, sim, e as irmãs. - O rapaz está em Correrrio sem fazer nada - Sor Cleos respondeu. - Creio que teme enfrentar seu pai no campo de batalha. Sua força diminui todos os dias. Os senhores do rio partiram, cada um para defender suas próprias terras. Seria isto o que meu pai pretendia? Tyrion enrolou o mapa de Stark. - Estas condições nunca serão aceitas. - Consentirá pelo menos em trocar as garotas Stark por Tion e Willem? - Sor Cleos perguntou em tom de lamento. 206 Tyrion recordou que Tion Frey era seu irmão mais novo, - Não - Tyrion respondeu gentilmente mas proporemos nossa própria troca de cativos. Deixe-me consultar Cersei e o conselho. Enviaremos você de volta a Correrrio com as nossas condições. Era claro que a perspectiva não o alegrava. - Senhor, não creio que Robb Stark ceda com facilidade. É a Senhora Catelyn quem quer esta paz, não ele. - A Senhora Catelyn quer as filhas - Tyrion desceu do banco, com a carta e o mapa na mão. - Sor Jacelyn tratará de providenciar comida e fogo para você. Parece-me terrivelmente que precisava dormir, primo. Mandarei chamá-lo quando soubermos mais. Tyrion foi encontrar Sor Jacelyn nas ameias, observando várias centenas de novos recrutas que treinavam no campo abaixo. Com tanta gente procurando refúgio em Porto Real, não havia falta de homens com vontade de se juntar à Patrulha da Cidade em troca de uma barriga cheia e uma cama de palha na caserna, mas Tyrion não tinha ilusões quanto à forma como aqueles defensores esfarrapados lutariam se chegasse a haver uma batalha. - Fez bem em mandar me chamar - disse Tyrion. - Deixarei Sor Cleos nas suas mãos. Ele deverá receber toda a hospitalidade. - E a escolta? - quis saber o comandante. - Dê-lhes comida e trajes limpos e arranje um meistre para tratar dos seus ferimentos. Eles não deverão pôr os pés dentro da cidade, entendido? - não seria nada bom deixar que a verdade sobre as condições existentes em Porto Real chegasse a Robb Stark, em Correrrio. - Está bem entendido, senhor. - Ah, e mais uma coisa. Os alquimistas irão enviar um grande abastecimento de frascos de argila para todos os portões da cidade. Use-os para treinar os homens que irão manobrar as suas catapultas de fogo. Encha os frascos com tinta verde e treine-os a carregar as armas e disparar. Qualquer homem que provocar respingos deverá ser substituído. Quando tiverem dominado os frascos de tinta, substitua-a por azeite de lâmpada e ponha-os a trabalhar na ignição dos frascos e no seu disparo em chamas. Uma vez tendo aprendido a fazer isso sem se queimar, estarão preprados para o fogovivo. Sor Jacelyn coçou o queixo com a mão de ferro. - Medidas sensatas. Embora eu não sinta nenhuma afeição por aquele mijo de alquimista, - Nem eu, mas uso o que me é dado. De volta à liteira, Tyrion Lannister fechou as cortinas e apoiou-se com o cotovelo numa almofada. Cersei ficaria descontente por saber que ele interceptara a carta de Stark, mas seu pai o mandara ali para governar, não para contentar Cersei. Parecia-lhe que Robb Stark lhes dera uma oportunidade de ouro. Que o rapaz ficasse em Correrrio sonhando com uma paz fácil. Tyrion responderia nos seus próprios termos, dando ao Rei do Norte apenas o bastante do que queria para mantê-lo esperançoso. Que Sor Cleos desgastasse seu ossudo traseiro de Frey cavalgando para lá e para cá com ofertas e contraofertas. Enquanto isso, seu primo Sor Stafford treinaria e armaria a nova tropa que tinha recrutado em Rochedo Casterly. Quando estivesse pronta, ele e Lorde Tywin poderiam esmagar os Tully e os Stark entre ambos. Se ao menos os irmãos de Robert fossem tão amáveis. Por mais glacial que fosse sua progressão, Renly Baratheon continuava se arrastando para o norte e para o leste com sua enorme tropa do sul, e quase não se passava uma noite sem que Tyrion temesse ser acordado com a notícia de que 207 Lorde Stannis subia a Torrente da Água Negra com a sua frota. Bem, ao que parece tenho uma considerável reserva de fogovivo, mas, mesmo assim... O som de um tumulto qualquer na rua intrometeu-se nas suas preocupações. Tyrion espiou cautelosamente por entre as cortinas da liteira. Passavam pela Praça dos Sapateiros, onde uma multidão de bom tamanho se reunira por baixo dos toldos de couro para assistir às arengas de um profeta. Uma toga de lã não tingida, cintada por uma corda de cânhamo, identificava-o como um dos irmãos mendicantes. - Corrupção! - o homem gritou estridentemente.


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- Ali está o aviso! Admirem o flagelo do Pai! - apontou para a esfiapada ferida vermelha no céu. De onde estava, o castelo distante na Colina de Aegon ficava diretamente por trás dele, com o cometa agourentamente pendurado por cima das suas torres. Uma escolha de palco inteligente, refletiu Tyrion. - Tornamo-nos inchados, intumecidos, impuros. Irmão copula com irmã na cama de reis, e o fruto do seu incesto faz piruetas no seu palácio ao som da flauta de um retorcido macaquinho demoníaco. Senhoras de alto nascimento fornicam com bobos e dão à luz monstros! Até o Alto Septão esqueceu os deuses! Banha-se em águas perfumadas e engorda com cotovias e lampreias, enquanto seu povo passa fome! O orgulho vem antes da oração, vermes governam nossos castelos, e o ouro é tudo... Mas bastai O verão putrefato chegou ao fim, e o Rei Devasso foi derrubado! Quando o javali o abriu, um grande fedor subiu ao céu, e mil serpentes deslizaram da sua barriga, silvando e mordendo! - ele voltou a balançar o dedo ossudo na direção do cometa e do castelo. - Ali vem o Mensageiro! Purifiquem-se a si mesmos, gritam os deuses, para que não tenham de ser purificados! Banhem-se no vinho da probidade, ou serão banhados em fogo! Fogo! - Fogo! - repetiram outras vozes num eco, mas os gritos de zombaria quase os afogaram. Tyrion retirou daquilo consolação. Deu ordem para prosseguir, e a liteira balançou como um navio em mar revolto, enquanto os Homens Queimados abriam caminho. Retorcido macaquinho demoníaco, certo. Mas o desgraçado tinha realmente alguma razão no que dizia do Alto Septão. O que foi que o Rapaz Lua tinha dito dele no outro dia? Um homem devoto que adora tão fervorosamente os Sete que come uma refeição por cada um sempre que se senta à mesa. A memória da piada do bobo fez Tyrion sorrir. Ficou contente por chegar à Fortaleza Vermelha sem mais incidentes. Enquanto subia os degraus que levavam aos seus aposentos, Tyrion sentia-se um pouco mais esperançoso do que de madrugada. Tempo. É tudo aquilo de que realmente preciso, tempo para juntar as peças. Assim que a corrente estiver pronta... Abriu a porta do seu aposento privado. Cersei virou as costas para a janela, fazendo rodopiar as saias em torno das suas ancas esguias. - Como se atreve a ignorar minhas convocatórias? - Quem a deixou entrar na minha torre? - Na sua torre? Este é o castelo real do meu filho. - É o que me dizem - Tyrion não soou divertido. Crawn ficaria ainda menos; eram seus Irmãos da Lua que hoje estavam de guarda. - Acontece que me preparava para ir encontrá-la. - Ah, é? Ele fechou a porta atrás de si. - Duvida de mim? - Sempre, e com bons motivos. - Sinto-me ferido - Tyrion bamboleou-se até o aparador para se servir de uma taça de vinho. Não conhecia melhor maneira de ficar com sede do que conversar com Cersei. - Se a ofendi, gostaria de saber como. 208 - Que vermezinho repugnante você é. Myrcella é minha única filha. Realmente imaginava que eu permitiria que a vendesse como um saco de aveia? Myrcella, Tyrion pensou. Bom, esse ovo eclodiu. Vejamos de que cor é o pinto, - Como um saco de aveia? Nem perto disso. Myrcella é uma princesa. Há quem diga que foi para isto que nasceu. Ou será que planejava casá-la com Tommen? Cersei avançou e arrancou a taça de vinho da mão do irmão, atirando-a ao chão. - Irmão ou não, devia mandar cortar sua língua por isso. Eu sou regente de Joffrey, não você, e eu digo que Myrcella não será enviada para este dornense como eu fui para Robert Baratheon. Tyrion sacudiu vinho dos dedos e suspirou. - Por que não? Estaria bastante mais segura em Dorne do que aqui. - Você é completamente ignorante ou apenas perverso? Sabe tão bem como eu que os Martell não têm motivos para simpatizar conosco, - Os Martell têm todos os motivos para nos odiar. Mesmo assim, espero que concordem. As razões da mágoa do Príncipe Doran em relação à Casa Lannister remontam apenas a uma geração, mas os homens de Dorne vêm guerreando contra Ponta Tempestade e Jardim de Cima há mil anos, e Renly tomou como pressuposto que teria a fidelidade de Dorne. Myrcella tem nove anos, Trystane Martell, onze. Propus que se casassem quando ela atingisse seu décimo quarto ano. Até essa altura, seria hóspede de honra em Lançasolar, sob a proteção do Príncipe Doran. - Uma refém - Cersei o corrigiu, com a boca apertando-se.


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- Uma hóspede de honra - insistiu Tyrion. - E suspeito que Martell tratará Myrcella mais gentilmente do que Joffrey tem tratado Sansa Stark. Pensei em mandar com ela Sor Arys Oakheart. Com um cavaleiro da Guarda Real como escudo juramentado, não é provável que alguém se esqueça de quem ou do que ela é. - De pouco servirá Sor Arys, se Doran Martell decidir que a morte da minha filha compensará a da sua irmã. - Martell é honrado demais para assassinar uma menina de nove anos, especialmente se for tão doce e inocente como Myrcella. Enquanto a tiver em sua posse, pode ficar razoavelmente certo de que do nosso lado honraremos o acordo, cujos termos são ricos demais para recusar. Myrcella é a menor parte do trato. Também lhe ofereci o assassino da irmã, um lugar no conselho, alguns castelos na Marca... - E demais! - Cersei afastou-se dele, irrequieta como uma leoa, com as saias rodopiando. - Ofereceu demais, e sem a minha autorização ou consentimento. - E do Príncipe de Dorne que estamos falando. Se lhe oferecesse menos, o mais certo era que cuspisse na minha cara. - É demais! - Cersei insistiu, rodopiando para olhar o irmão de frente. - O que você lhe teria oferecido? Esse buraco que tem entre as pernas? - Tyrion a desafiou, com sua própria fúria rebentando. Dessa vez ele viu o tabefe chegando. A cabeça oscilou, soltando um crac. - Querida, querida irmã... Garanto-lhe que esta foi a última vez que me bateu na vida. A irmã riu. - Não me ameace, homenzinho. Acredita que a carta de nosso pai o mantém a salvo? Um pedaço de papel. Eddard Stark também tinha um pedaço de papel, e olhe o bem que lhe fez. Eddard Stark não tinha a Patrulha da Cidade, Tyrion pensou, nem os meus homens dos clãs nem os mercenários que Bronn contratou. Eu tenho. Ou assim ele esperava, confiando em Varys, em Sor Jacelyn Bywater, em Bronn. Lorde Stark provavelmente também tivera suas desilusões. 209 Mas nada disse. Um homem sensato não lançava fogovivo num braseiro. Em vez disso, serviu-se de outra taça de vinho. - Em que segurança julga que Myrcella estará se Porto Real cair? Renly e Stannis pendurarão a cabeça dela ao lado da sua. Cersei começou a chorar. Tyrion Lannister não teria ficado mais estupefato se o próprio Aegon, o Conquistador, tivesse entrado de rompante na sala, montado num dragão e fazendo malabarismos com tortas de limão. Não via a irmã chorar desde que eram crianças em Rochedo Casterly. Acanhadamente, deu um passo na sua direção... Mas aquela mulher era Cersei! Estendeu uma mão hesitante para o seu ombro, - Não me toque - ela reagiu, afastando-se. Não devia, mas aquela reação magoou mais do que qualquer tapa. De rosto afogueado, tão zangada como atingida pela dor, Cersei lutou para respirar: - Não me olhe, não... assim, não... você, não. Delicadamente, Tyrion voltou-lhe as costas: - Não pretendia assustá-la. Prometo que nada acontecerá a Myrcella. - Mentiroso - ela disse atrás dele. - Não sou uma criança para ser acalmada com promessas ocas. Também me disse que libertaria Jaime. Pois bem. Onde está ele? - Em Correrrio, eu calculo. A salvo e sob vigilância, até que eu encontre uma maneira de libertá-lo. Cersei fungou: - Eu devia ter nascido homem. Não teria necessidade de nenhum de vocês. Não permitiria que nada disso acontecesse. Como Jaime pôde se deixar capturar por aquele garoto? E meu pai? Confiei nele, como uma idiota, mas onde está agora, justamente quando é necessário aqui? O que ele está fazendo? - A guerra. - De dentro das muralhas de Harrenhal? - Cersei exclamou desdenhosamente. – Curiosa maneira de lutar. A meu ver, parece, de forma suspeita, com se esconder, - Pois veja de novo. - Do que mais chamaria? Nosso pai está num castelo, e Robb Stark em outro, e nenhum deles faz coisa alguma. - Assim deve ser - Tyrion sugeriu. - Cada um espera que o outro se mova, mas o leão está quieto, equilibrado, retorcendo a cauda, enquanto o corço está paralisado pelo medo, com as tripas transformadas em gelatina. Qualquer que seja o lado onde saltar, o leão vai capturá-lo, e ele sabe disso. - E você tem mesmo certeza de que nosso pai é o leão? Tyrion sorriu. - Está em todos os nossos estandartes. Ela ignorou a brincadeira.
- Se tivesse sido nosso pai o capturado, Jaime não estaria parado, garanto-lhe. Jaime estaria desfazendo sua tropa em pedaços sangrentos contra as muralhas de Correrrio, e os Outros teriam sua chance. Nunca teve paciência, tal como você, querida irmã, - Nem todos podemos ser tão ousados como Jaime. Mas há outras maneiras de ganhar guerras. Harrenhal é forte e está bem situado. - E Porto Real não, como ambos sabemos ...

 

 

                                                                 

 

 

                                                   

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